De Poesia E Poetas - Ts Eliot

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« O Ateneu

Retórica e paixão Ley la Perrone Moyses (org.) Capítulos de Literatura Colonial

Sergio Buarque de Holanda Conversas com Vargas LI osa

T.S.

Rumor da Língua

Sade, Fourier e Loyola

Roland Barth es Os Sertões

Discurso sobre a Poesia Dramática

Coleção Primeiros Passos O que é Língua

Fernando Pessoa

Antônio Houaiss

Um detetive-leitor e muitas pistas Salete de Almeida Cara

O que é Literatura

Rosenfield

Tradução e Prólogo: Ivan Junqueira

Edição crítica Walnice N. Galvão

A História e o Conceito na Literatura Medieval Katharina Holzermayr-

DE POESIA E POETAS

Roland Banhes

Ricardo A. Setti

Denis Diderot

ELIOT

Marisa La^olo O que e Poesia

Fernando Paixão O que é Comunicação Poética Décio Pignatari

Introdução à Literatura Negra

Zilá Bernd Literatura como Missáo

Tensões sociais e criação cultural na Primeira República Nicolau Sevcenko Obras Escolhidas

Vols. /, II e III Walter Benjamin

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editora brasiliense

Copyright © by Faber and Faber Limited, 1988 Título original: On Poetry and Poets Copyright © da tradução: Editora Brasiliense S.A. Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em sistemas eletrônicos, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.

ISBN: 85-11-22032-1 Primeira edição, 1991

Indicação editorial: Paulo Cesar Souza Preparação de originais: Cássio Arantes Leite Revisão: Ana Célia de M. Goda. Irati Antonio e Ana Maria M. Barbosa índice Onomástico: Claudia Beck Abehng Capa: Ettore Bottini

IP

Rua da Consolação, 2697 01416 São Paulo SP Fone (OU) 881-3066 - Fax 881-9980 Telex: (11) 33271 DB LM BR

IMPRESSO NO BRASIL

Para Va/erte

SUMÁRIO

Prefácio Prólogo

9 11 I

DE POESIA A função social da poesia (1945) A música da poesia (1942) O que é poesia menor? (1944) O que é um clássico? (1944) Poesia e drama (1951) As três vozes da poesia (1953) As fronteiras da crítica (1956)

25 38 56 76 100 122 140

II DE POETAS Virgílio e o mundo cristão (1951) Sir John Davies (1926) Milton I (1936) Milton II (1947) Johnson como crítico e poeta (1944) Byron (1937) Goethe, o sábio (1955) Rudyard Kipling (1941) Yeats (1940)

163 178 187 197 216 257 277 303 335

índice onomástico

351

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PREFÁCIO

Com u m a única exceção, 1 todos os ensaios incluídos neste livro são posteriores aos q u e integram meus Selected essays (Ensaios escolhidos).2 A maioria deles foi escrita nos últimos dezesseis anos. Meus Ensaios escolhidos eram u m a miscelânea; este livro, como o título indica, restringe-se aos ensaios relativos a poetas ou à poesia. A presente coletânea difere de meus Ensaios escolhidos em outro aspecto. Somente um ensaio nesse volume — o estudo sobre Charles Whibley — foi escrito para ser lido diante de u m a platéia; todos os demais foram escritos para publicação em periódicos. Dos dezesseis ensaios que constituem o presente volume, dez foram originalmente escritos para serem lidos junto ao público; um décimo primeiro, o que escrevi sobre Virgílio, era u m a palestra radiofónica. Ao publicar agora tais conferências, não tentei transformá-las naquilo em q u e poderiam ter sido se destinadas originalmente aos olhos, e não aos ouvidos; nem me ocupei de fazer alterações, a não ser omitir os comentários preliminares a "Poesia e d r a m a " , além de algumas daque-

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i I

1 O ensaio sobrr Sir J o h n Davies, q u e apareceu em The Times Literary Supple ment em 1926, foi resgatado do esquecimento e recomendado para ser aqui incluído pelo Sr. J o h n Hayward. (N A.) 2. Selected essjys 1917 1932. Fáber and Fáber. Londres, and C o m p a n y , Nova York, 1932. ( N . T . )

1932; e Harcourt, Brate

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T. S. ELIOT

las observações preambulares e gracejos incidentais q u e , t e n d o sido concebidos para seduzir o ouvinte, poderiam apenas irritar o leitor. Tampouco me pareceu correto, ao preparar para a publicação em um volume de ensaios escritos em épocas distintas e em diversas ocasiões, remover passagens q u e repetem afirmações feiras alhures, ou tentar suprimir discrepâncias e reconciliar contradições. Cada item é substancialmente idêntico ao da época de sua leitura para o público ou primeira publicação. Ao reler algum tempo depois certos ensaios e palestras, classificados por data e assunto para inclusão, decidi rejeitá-los por não os considerar bons o bastante. Pretendi poder considerar dignas de inclusão duas conferências pronunciadas na Universidade de Edimburgo, anteriores à Segunda Guerra Mundial, sobre "O desenvolvimento do verso shakespeariano", pois o que eu estava tentando dizer parecia-me digno de ser dito. Tais conferências, porém, deram-me a impressão de estar mal escritas, e seria necessário uma revisão completa — tarefa q u e adiei para algum f u t u r o longínquo. Lamento menos a omissão, entretanto, uma vez que tomei desse c o n j u n t o de conferências uma de suas melhores passagens — uma análise da primeira cena do Hamlet — para incorporá-la a u m a outra palestra, " P o esia e d r a m a " . Assim, já que furtara u m a conferência em benefício de outra, aduzo agora a Poesia e drama outro breve extrato da mesma conferência de Edimburgo, um comentário

à cena do balcão em Romeu e Julieta. Meus reconhecimentos aparecem sob a forma de notas de pé de página aos diversos ensaios. Elas me p e r m i t e m expressar as gratas lembranças da hospitalidade com q u e me acolheram em várias cidades, como Glasgow, Swansea, Minneapolis, Bangor (Gales do Norte) e Dublin. As dívidas de gratidão são por demais numerosas para particularizá-las; mas como meu ensaio sobre Goethe* foi lido na ocasião em que recebi da Liga Hanscática o Prêmio Goethe, gostaria de expressar meu apreço à hospitalidade da Stiftung F. V. S. (a fundação que concede o prêmio), ao reitor da universidade e ao burgomestre e ao Senado da cidade de Hamburgo. T. S. Eliot O u t u b r o de 1956 " G o e t h e as the s a g e " , aqui traduzido como " G o e t h e , o s á b i o " . ( N . T . )

ELIOT ENSAÍSTA

Faz um q u a r t o de século q u e T h o m a s Stearns Eliot morreu em Londres, com setenta e seis anos de i d a d e , a 4 de janeiro de 1965. Ocioso dizer aqui q u e sua obra — o vasto e complexo legado desse tríplice talento de p o e t a , ensaísta e d r a m a t u r g o , " u m devoto d a tradição q u e q u e b r o u o s moldes tradicionais para dar novas formas à poesia i n g l e s a " , c o m o dele disse Brand Blanshard — continua viva, talvez até mais viva do q u e na época em q u e foi escrita. Antes de mais n a d a , c u m p r e e n t e n d ê - l o , e n q u a n t o crítico e ensaísta, n a q u e l e sentido cm q u e Baudelaire e n t e n d i a o poeta q u a n d o e n t r e g u e à sua eventual atividade de prosador: " S ê sempre poeta, m e s m o em p r o s a " . Ou a i n d a , s e g u n d o o m e s m o Baudelaire, d e n t r o d a q u e l e ideal de q u e " t o d o s os grandes poetas se fazem natur a l m e n t e , f a t a l m e n t e , críticos". O u a i n d a , afinal, d e n t r o d o p e n s a m e n t o de Alceu Amoroso Lima, para q u e m " t o d o g r a n d e poeta ( . . . ) é um g r a n d e crítico, ao menos na perspectiva ( . . . ) , c o m o t o d o g r a n d e crítico é um poeta, ou em perspectiva ou em a ç ã o " . Q u e m tentar e n t e n d e r - l h e o ensaísmo ou a crítica literária fora do contexto de sua concepção poética, ou seja, de sua perspectiva ou de sua ação, corre o risco de passar ao largo não apenas de seus propósitos e formulações estéticas, mas de seu próprio p e n s a m e n t o como h o m e m e como artista.

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PRÓLOGO

O que aqui se p r e t e n d e configurar como o p e n s a m e n t o de Eliot se esgalha em muitas vertentes e direções, mercê de seus compromissos não apenas poéticos, mas t a m b é m filosóficos e religiosos, ou até mesmo políticos. Um ano após adotar em 1927 a cidadania britânica, Eliot se d e f i n i u , em sua célebre tríplice declaração, como " u m algo-católico em religião, um classicista em literatura e um monarquista em p o l í t i c a " . Na verdade, como herdeiro de uma elite de emigrantes ingleses q u e , em meados do século XVIII, se estabeleceram em Massachusetts, na Nova Inglaterra — entre os quais se incluía o reverendo William Greenleaf Eliot (1811-1887), avô do poeta e f u n d a d o r da Igreja Unitária de St. Louis e da Universidade de Washington —, não é de surpreender que Eliot haja chegado às conclusões filosóficas, religiosas e políticas a q u e chegou, as quais tangenciam não raro um extremo reacionarismo. Acrescente-se a isso não apenas o fato de q u e seus ancestrais mais próximos pertenciam à sociedade mercantilista em Boston, mas t a m b é m a circunstância de que tal condição lhe iria favorecer u m a formação intelectual esmerada cm academias de primeira linha em St. Louis e Massachusetts e, depois, na Universidade de Harvard, em Boston, estudos esses q u e o poeta concluiu na Sorbonne, em Paris, o n d e fez os cursos de língua e literatura francesas e de filosofia contemporânea, e no Merton College, em Oxford, onde durante o ano de 1914, pouco antes de eclodir a Primeira Guerra Mundial, dedicou-se, na q u a l i d a d e de Lector, às pesquisas filosóficas sobre os prc-socráticos. Esse perfil de exigente e sofisticado scholar pode não dizer m u i t o , sobretudo q u a n d o se pensa nos destinos q u e tomou a vida de Eliot, mas afinal sempre diz alguma coisa, pois é ele, queiram ou não, a matriz de suas futuras convicções. Embora tenha Eliot recusado a vida acadêmica, como era desejo do pai, sua formação universitária só poderia m e s m o têlo conduzido àquilo que, do ponto de vista intelectual, entendia ele como um sistema mental cujos corolários eram a o r d e m , a disciplina, a coerência e a tradição. Para além daquela formação, todavia, são múltiplas as influências q u e atuaram sobre o espírito de Eliot, e é possível reconstituí-las em certa ordem, considerando-se não apenas a relação entre o esteticismo e o pessimismo, como também a relação entre pessimismo e deter-

PRÓLOGO

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minadas atitudes religiosas e políticas. Podem explicar-se assim as influências dos simbolistas franceses, cm particular a de Jules Laforgue, as de T. H. H u l m e e Ezra P o u n d , a do pessimismo splcngeriano, as analogias com as dos humanistas norte-americanos, entre os quais George Santayana e Irving Babbit, o resgate de D o n n e e de toda a poesia metafísica inglesa,do século XVII, a exumação de Dryden e Pope como poetas da inteligência, e daí, afinal, o tortuoso c a m i n h o rumo ao m o d e r n i s m o , ao seu modernismo sui generis, um modernismo passadista e reacionário, pois o q u e de fato interessava a Eliot era o fim da literatura romântica e da democracia do século XIX. Eliot destrói a métrica e a sintaxe como um vanguardista parisiense e engendra visões apocalípticas como um expressionista alemão, mas é, ao m e s m o t e m p o , um saudosista da antigüidade clássica q u e , graças à sua m o n u m e n t a l cultura literária, mobiliza (ou "eliotiz a " ) Ésquilo, Sófocles, Aristófanes, Empédocles, Heráclito, Virgílio, D a n t e , Arnault Daniel c os provençais, Santo Agostinho, São João da Cruz, Juliana de Norwich, Pascal, Baudelaire, Mallarmé — e n f i m , todas as literaturas de todas as épocas e países, pois, como um estrangeiro dentro da literatura européia, ignora quaisquer fronteiras nacionais. Em 1914, a civilização européia ia acabar m u i t o simplesmente porque os europeus se recusavam a ser o q u e Eliot apregoava ser: anglo-católico, classicista e monarquista. Era a hora dos exilados norte-americanos no Velho M u n d o . A hora de Eliot e de P o u n d . Eliot e P o u n d tornam-se assim os norte-americanos q u e d o m i n a m t o d o o passado da civilização européia, interpretando as catástrofes políticas, espirituais e morais da Europa através do a b a n d o n o , pelos europeus, de suas grandes c vivificantes tradições. São ambos como q u e cristãos novos q u e vieram para ensinar os cristãos velhos, os quais eles consideram apóstatas já condenados. É esse, sem dúvida, o espírito q u e impregna

cada um dos versos de The waste land (A terra desolada — 1922), sem a leitura dos quais n i n g u é m poderá e n t e n d e r seu ensaísmo ou sua crítica literária. Criador de u m a desconcertante " m ú s i c a de idéias" , Eliot é, na verdade, o ú l t i m o dos metaphysical poets q u e ele próprio exumou e, talvez, o mais a m b í g u o poeta de u m a época em t u d o e por t u d o a m b í g u a , a época rentre deux guerres, como ele m e s m o a define n u m a das

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PRÓLOGO

PRÓLOGO

passagens de seus Four quartets (Quatro quartetos —

1943).

Por isso mesmo, como já dissemos, sua primeira visão do m u n d o é essencialmente pessimista e apocalíptica, sugerindo-nos u m a árida "terra desolada" na qual se arrastam e agonizam os homens ocos". É esse o cenário purgatorial q u e nos descortina o mais terrível poema de toda a literatura ocidental c o n t e m p o r â nea, The waste landy insólita c o m u n h ã o de sátira e desespero, de pensamento e emoção, de caducidade e transcendência, de liturgia e perversão, de náusea profana e êxtase religioso, de discurso oratório e balada metafísica. Embora convertido ao catolicismo anglicano, a impressão q u e se tem é a de q u e Eliot jamais conseguiria desvencilhar-se desses estigma s espirituais, pois, se era inabalável a sua fé no pecado original, o m e s m o já não se pode dizer de sua esperança na redenção h u m a n a . De sua obra como poeta e ensaísta quase t u d o se poderá dizer ou argüir, menos q u e seja gratuita, pois o q u e aí se encena é o drama daquele h o m e m arcaico, antigo, medieval, renascentista e moderno, o h o m e m do qual todos descendemos. Embora solidário com a reação desencadeada pelo New Criticism contra a crítica histórica e psicológica no sentido de focalizar os aspectos formais da obra literária, Eliot não chegou propriamente a filiar-se àquele m o v i m e n t o , t e n d o inclusive lhe denunciado u m a série de abusos, como se p o d e 1er sobretudo em De poesia e de poetas (1957). Não obstante, é ele considerado um dos fundadores dessa importante vertente crítica angloamericana, ao lado de J o h n Crowe Ransom, Cleanth Brooks, Ivor Armstrong Richards, William Empson, K e n n e t h Burke, Richard Blackmur, Allen Tate e alguns outros. Mas o New Criticism estava longe de constituir um bloco h o m o g ê n e o , abrigando tendências das mais divergentes, embora todas revelem um ponto comum: a origem na contribuição crítica de Samuel Taylor Coleridge, a partir de cuja Biographia literaria (1817) reaparece como exigência basilar a necessidade de se 1er, cada vez mais exatamente, as "palavras na p á g i n a " , o q u e se prestou até para pesquisas estatísticas sobre a freqüência de certas expressões e imagens em determinado poeta. Ε o close reading, princípio do qual Eliot foi ortodoxo adepto. De acordo com a lição de Coleridge, deve ser dispensada a mesma atenção à estrutura do conjunto de palavras e à técnica de sua organização

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em estruturas poéticas. Assim, a crítica literária passa a ser entendida como uma ciência autônoma que se dedica ao estudo dessa técnica, sem n e n h u m a preocupação com os elementos biográficos, psicológicos ou históricos. Exigia-se t a m b é m do close reading q u e tivesse um f u n d a m e n t o filosófico, da mesma forma como filosófica foi a técnica exegética de Coleridge, o q u e de certo m o d o deixava Eliot m u i t o à vontade graças ao seu p r o f u n d o conhecimento da filosofia ocidental e mesmo dos corpos de doutrina do Oriente. Nesse caso, entretanto, os new critics voltavam a recorrer à psicanálise, à antropologia, à sociologia ou até m e s m o à execrada biografia do autor como ciências auxiliares do close reading, q u e deixou então de ser estritamente lingüístico. Mais importante do que essa base filosófica, porém, foi a distinção, proposta por Ramson e incorporada por Eliot, entre a " e s t r u t u r a " do p o e m a e sua " t e x t u r a " , ou seja, a lógica poética de acordo com a qual os detalhes se subordinam ao c o n j u n t o e se relacionam entre si, o q u e reflete um conceito tipicamente coleridgiano. E a partir dessa distinção, aliás, q u e Cleant Brooks irá propor os "símbolos d e t e r m i n a n t e s " , ou symbolic patterns, q u e caracterizam a obra literária e constituem a chave para sua interpretação. Sempre q u e necessário ou o p o r t u n o , esses patterns são explicados à maneira psicanalítica e, a partir daí, praticamente se a b a n d o n a o ideal do close reading no que se refere à interpretação p u r a m e n t e formal e estética da obra literária. O m é t o d o dos symbolic patterns acabou assim por transformar a obra estudada n u m a alegoria que o crítico decifrava como bem lhe aprouvesse. Os abusos foram inevitáveis, o q u e levou Helen Gardner a denunciá-los, no q u e foi seguida pelo próprio Eliot poucos anos depois. O curioso na formação de Eliot como crítico e ensaísta é q u e esta, pelo menos no início, nos dá a nítida impressão de ser mais francesa do que inglesa, razão pela qual, em um de seus primeiros ensaios, Hamlet, datado de 1919, ousa o autor manifestar sérias dúvidas q u a n t o à perfeição dramática e à prof u n d i d a d e filosófica daquela tragédia shakespeariana. Um ano depois, em The sacred wood, Eliot aconselha aos críticos ingleses o estudo de Rémy de G o u r m o n t , que lhe fora revelado por Pound. É que, nessa cpoca, o p o n t o de partida de Eliot se frag-

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PRÓLOGO

mentava em premissas p u r a m e n t e estéticas. Em sua crítica afloram certos critérios cientificamente definidos, como o objective

Houaiss, q u e , e n q u a n t o poeta, Eliot " s e h u m i l h o u quase à condição de um n ã o - e u " , para assim — e somente assim — " a t i n gir a condição de p a n - p o e t a " . E seu ensaísmo, assim como sua crítica literária, deve t u d o não apenas a essa formação, mas sobretudo à sua convicção de q u e a literatura ocidental nada mais é do que um continuum q u e se estende desde H o m e r o até a m o d e r n i d a d e , o q u e lhe confere aquela revitalizante condição de f e n ô m e n o de cultura , sobre a qual ele tanto insistiu. Ao longo dos dezesseis ensaios aqui reunidos pode-se observar a extraordinária e cerrada coerência com q u e Eliot expõe e d e f e n d e seus pontos de vista, os quais, como ele próprio a d m i t e cm diversas passagens, pouco se modificaram d u r a n t e o período de trinta e três anos em q u e foram escritos esses textos sobre poesia c poetas, seara fora da qual — à exceção da dramaturgia em verso pouco se arriscou o autor, sob a alegação de q u e , para além de certos limites, se diluiria sua competência. É de fato notável, entretanto, a naturalidade com q u e Eliot se move no â m b i t o da estética, da filosofia, do pensamento religioso, da história, e, não raro, da psicologia e da política. É q u e , como herdeiro direto do ensaísmo de Coleridge e como um dos principais demiurgos do New Criticism, não podia ele compreender a análise do texto literário sem um sólido e coeso entourage cultural. Q u e m lê os textos críticos de Eliot percebe de imediato q u e os f u n d a m e n t a m não apenas u m a formação acadêmico-erudita, mas sobretudo uma harmônica, c o n q u a n t o dilacerante, visão do m u n d o c um ideário estètico-filosofico q u e confere à sua crítica uma condição de obra do pensamento, embora jamais se deva esquecer, como anteriormente dissemos, q u e ela não pode ser e n t e n d i d a senão e n q u a n t o vinculada à sua atividade de poeta e dramaturgo.

correlative, a auditory imagination ou a dissociation of sensibility. os quais, todavia, nada têm em c o m u m com as pretensões "científicas" de alguns críticos da vertente norte-americana do New Criticism. O próprio Eliot, aliás, julgava q u e o valor de sua crítica estava diretamente ligado às suas próprias experiências como poeta. E foi isso, sem dúvida, q u e lhe permitiu descobrir não só a p r o f u n d i d a d e poética dos dramaturgos elisabetanos, mas t a m b é m "a poesia metafísica" de J o h n D o n n e , Andrew MarvelI, George Herbert, Richard Crashaw ou Henry King e a poesia da " i n t e l i g ê n c i a " de J o h n Dryden e Alexander Pope. Mas tais descobertas não seriam possíveis se não o guiasse, t a m b é m , o agudo senso do f u n d o moral da obra desses autores, o mesmo senso moral e religioso q u e o levou, anos mais tarde, a rejeitar o agnosticismo dos vitorianos e de todos os liberais e o pelagianismo de T h o m a s Hardy e D. H. Lawrence, aos quais opõe o dogma do pecado original e a perversão (logo, a existência) dos valores morais dos católicos transviados Baudelaire e Joyce. Revela-se em Eliot, portanto, aquela previsível consciência de alguém que fora herdeiro de gerações e gerações de puritanos anglo-saxónicos. E como se, ao final, o esteta cedesse lugar ao moralista. Ainda assim é preferível q u e se e n t e n d a Eliot, para além de seus fundos e inequívocos compromissos éticos e religiosos, como um poeta de poetas e um crítico de poetas, c o m o o autor de uma obra que, a um t e m p o clássica e m o d e r n a , révolue ionária e reacionária, realista e metafísica, está na própria raiz q u e informa e conforma a mentalidade poética de nossos dias, t e n d o exercido fecunda e duradoura influência sobre todas as gerações que se fizeram a partir de 1930. Isso se explica pelo fato de que Eliot resume e absorve, nos complexos c heterodoxos estratos do mosaico intertextual de sua atividade criadora, toda a herança poética legada por aqueles q u e o precederam, desde o remoto passado oriental sanscrito e as difusas inervações grecolatinas ou mesmo hebraicas até a m u l t i f o r m e floração da poesia ocidental. Em decorrência dessa inumerável e mimètica assimilação literária, que alguns críticos passaram a designar de "eliotização", pode-se afirmar, como o faz lucidamente Antônio

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Tais virtudes p o d e m ser melhor apreciadas em determinados ensaios, particularmente em "O que é um clássico?" e em seu d e s d o b r a m e n t o apendicular, "Virgílio e o m u n d o crist ã o " , nos quais ele nos convence, a partir de premissas literárias m u i t o sugestivas e dentro de parâmetros histórico-filosófícos e lingüísticos irretorquíveis, de q u e Virgílio é o único clássico da literatura ocidental, se a entendermos como aquele continuum q u e se estratifica e amadurece a partir do advento da era cristã c de t u d o aquilo com q u e ela impregnou a alma do

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PRÓLOGO

homem do Ocidente. Virgílio seria o único clássico ocidental porque, ao escrever a sua Eneida, o fez n u m m o m e n t o histórico em q u e se consumava a m a t u r i d a d e de u m a língua — a latina —, de u m a literatura — a greco-latina, s o b r e t u d o porque Virgílio reinventa e revigora o m o d e l o helénico —, e de uma civilização — a romana, da qual somos herdeiros diretos em todos os campos do saber e do p e n s a m e n t o . E q u e , e m b o r a mais criativo e poderoso, o espírito grego só nos chega através de Roma e, mais do q u e isso, modificado e interpretado por Roma. E no caso de Eliot se observa, além disso, um o u t r o aspecto f u n d a m e n t a l : o de sua p r o f u n d a filiação ao cristianismo; e seria ocioso recordar q u e o m u n d o cristão e m e r g e precisamente das ruínas do Império Romano, logo após conhecido, aliás, como o Sacro Império Romano do O c i d e n t e . Em dois outros ensaios, "Poesia e d r a m a e As três vozes da poesia", Eliot se debruça sobre a questão do e m p r e g o do verso na dramaturgia, f a z e n d o aí, paralelamente, u m a análise de sua própria obra como d r a m a t u r g o . A preocupação do autor nesses ensaios é com a recuperação do d r a m a em verso no cenário do teatro contemporâneo, pouquíssimo interessado, aliás, em recorrer a esse expediente estilístico do qual t a n t o se serviram os tragediógrafos gregos e latinos e quase todos os d r a m a turgos elisabetanos, a começar por Shakespeare, Marlowe e Ben Johnson, entre vários outros. U m a das teses aqui sustentadas por Eliot é a de q u e a platéia não deve estar, d u r a n t e o espetáculo, consciente do recurso dramático do verso, pois isso a desviaria tanto da ação q u a n t o da intriga cénicas, colocando-a em permanente sobressalto nos momentos de transirão entre as partes em verso e cm prosa de uma peça em q u e ambas sc misturem. Eliot alude aqui, quase à exaustão, ao vasto cxcmplário do drama shakespeariano, que, talvez como n e n h u m outro, conseguiu superar esse impasse por meio de u m a arte teatral em cuja tessitura tais transições são praticamente imperceptíveis porque atendem, acima de tudo, a exigência de caráter estritamente dramático. Em Shakespeare, como assinala Eliot, as três vozes da poesia — a do poeta que fala consigo m e s m o , a do poeta que se dirige a u m a platéia e a do poeta q u a n d o tenta criar uma personagem dramática q u e fala em verso — soam como que cm uníssono, daí resultando a grandeza e a absoluta

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pertinência de sua linguagem teatral. Segundo Eliot, Shakespeare seria aquele q u e criou um m u n d o dramático " n o qual o criador está presente em toda parte, e em toda parte o c u l t o " . No ensaio O q u e é poesia m e n o r ? " , o autor nos delineia os critérios de q u e nos devemos servir para estabelecer as possíveis fronteiras entre o q u e seja poesia maior e poesia menor, descartando de saída aquela concepção maniqueísta e necrosada de q u e o autor de poemas curtos seria necessariamente um poeta menor, e n q u a n t o o autor de poemas longos seria obrigatoriamente um poeta maior. Ao examinar o problema com base na produção de alguns dos chamados "poetas metafísicos", o autor consegue nos esclarecer um pouco mais sobre o assunto q u a n d o , a partir dos poemas curtos de George Herbert, sublinha q u e eles têm não apenas um significado em si, e n q u a n t o unidades poemáticas definidas, mas t a m b é m um sentido de c o m p l e t u d e q u a n d o examinados à luz do conjunto a q u e pertencem no plano global da obra do poeta. E seria inadmissível, pelo menos para o autor, considerar Herbert como um poeta menor, "pois não é de alguns poemas prediletos que me recordo ao pensar nele, mas de toda a sua o b r a " . Eliot aproveita a ocasião para pôr o d e d o na mais p r o f u n d a ferida poética do século XIX, q u a n d o a literatura, especialmente a inglesa e a francesa — com perniciosas repercussões pelo m u n d o afora, inclusive aqui m e s m o , entre nós —, viu-se assolada pela praga do poema longo, q u e levou a própria poesia a um impasse somente ultrapassado com o advento do modernismo em princípios de nosso século, e justamente com a publicação, em 1922, de um poema longo escrito por Eliot, The waste land, q u e revolucionou a m e n t a l i d a d e poética contemporânea. Outra peça importante na ensaística eliotiana é a "A música da p o e s i a " , o n d e o autor examina em p r o f u n d i d a d e a questão da métrica e da versificação, assim como a da utilização do verso branco e do verso livre, na poesia inglesa. Muito particularmente, Eliot esmiuça o problema representado pelo terreno movediço q u e é a fronteira a ser imposta entre a poesia e a música. Essa " m ú s i c a da poesia" se nutre de uma estrutura verbal e sintática q u e não pode ser c o n f u n d i d a com a trama específica de u m a partitura musical, sob o risco de u m a inevitável diluição da linguagem poética. Apesar disso, Eliot admite que, em

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determinadas instâncias, caiba ao poeta recorrer a certas propriedades da música que lhe poderão interessar m u i t o de perto, como a noção de ritmo e de estrutura. E vai ainda mais longe o ensaísta q u a n d o nos sugere q u e "seria possível para um poeta trabalhar muito intimamente com analogias musicais", já q u e o ritmo pode conduzir ao nascimento da ideia e da i m a g e m . Pouco adiante observa o autor q u e há no verso possibilidades que comportam certa analogia com o desenvolvimento de um tema por diferentes grupos de instrumentos e q u e " h á n u m poema possibilidades de transições comparáveis aos distintos movimentos de uma sinfonia ou de um q u a r t e t o " . Ao leitor habituado aos textos poéticos de Eliot, tais considerações não chegam a surpreender, pois não foi exatamente isso o q u e ele fez q u a n d o recorreu ao esquema da sonata-forma para escrever

os seus Four quartets? Em dois outros ensaios, 44A f u n ç ã o social da p o e s i a " e "As fronteiras da crítica Eliot aborda mais especificamente o problema da poesia no contexto social em q u e é p r o d u z i d a e a delicada questão dos limites além dos quais, n u m a certa direção, a crítica literária deixa de ser literária e. n u m a outra, deixa de ser crítica. A função social da poesia, e m b o r a esteja ela mais ou menos difusa em toda grande poesia p r o d u z i d a até hoje, constitui uma questão diante da qual Eliot nos dá a impressão de um ceticismo algo desolado, t a n t o assim q u e , logo de início, observa: "Mas me parece q u e se a poesia — e refiro-me a toda grande poesia — não exerceu n e n h u m a f u n ç ã o social no passado, não é provável que venha a fazê-lo no f u t u r o " . Pouco interessa, como salienta o ensaísta, q u e o poeta utilize sua poesia para defender ou atacar d e t e r m i n a d a a t i t u d e social. Todos sabemos que o mau verso p o d e alcançar prestígio temporário q u a n d o o poeta reflete u m a a t i t u d e p o p u l a r do momento, mas a verdadeira poesia, adverte o autor, "sobrevive não apenas à mudança da opinião pública como t a m b é m à completa extinção do interesse pelas questões com as quais o poeta esteve apaixonadamente envolvido". Q u a n t o à questão das fronteiras da crítica, alerta o ensaísta para o fato de q u e , em muitos casos, certa crítica "explicativa" das origens do p o e m a conduziu antes a um vazio exegético, pois, em seu afã de espremer todas as gotas do significado de um texto, esqueceu-se de

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que a função do crítico é f u n d a m e n t a l m e n t e a de ajudar seus leitores a compreender e a sentir o prazer que nos pode proporcionar esse mesmo texto, e não, como a m i ú d e se fez em n o m e de sabe-se lá que estapafúrdios objetivos, de dissecá-lo ao nível da prospecção cadavérica, impedindo às vezes tais leitores de fruírem o poema apenas e n q u a n t o poesia. O grande crítico, conclui Eliot, é aquele q u e consegue fazer com que vejamos algo q u e jamais havíamos visto anteriormente, ou que havíamos entrevisto apenas "com os olhos enevoados pelo preconceito". O u , em outras palavras, aquele que nos coloca face a face com u m a nova realidade e, desse modo, nos deixa sozinhos com ela. A segunda parte do volume está toda ela dedicada ao exame específico de sete poetas, além do já citado Virgílio, alguns de importância secundária, como J o h n Davies e Rudyard Kipling, outros de alta significação, entre os quais Milton, Byron, Goethe e Yeats. Dois desses ensaios c h a m a m atenção particular: " J o h n s o n como crítico e p o e t a " e " G o e t h e , o s á b i o " , este ú l t i m o talvez a peça maior dessa segunda parte do volume e na qual a u n i d a d e criadora reflete admiravelmente as preocupações literárias do escritor. O caso de Johnson é particularmente curioso e parece decorrer, pelo menos até certo ponto, da própria concepção eliotiana de q u e muitas vezes admiramos alguns escritores mesmo q u e deles não gostemos. Não é bem o caso das relações entre Eliot e J o h n s o n , mas observe-se q u e o próprio Eliot se confessa muito mais à vontade como herdeiro de

Coleridge do que do autor do Dictionary of the English language. C o m o se sabe, ao longo da ditadura intelectual e literária q u e exerceu durante quase toda a segunda metade do século XVIII, J o h n s o n tornou-se o responsável direto pelo esquecim e n t o de D o n n e c de todos os demais "poetas metafísicos" do século XVII até a segunda década do presente século, quando Eliot os resgatou do limbo no memorável ensaio " T h e metaphysical p o e t s " , escrito cm 1921 e publicado originalmente em Homage to John Dry den (1924). E é t a m b é m o mesmo Eliot q u e , como já o fizera com Dryden e Pope, por ele reabilitados como poetas da " i n t e l i g ê n c i a " , resgata o prestígio de Johnson não apenas como poeta, mas t a m b é m como crítico e ensaísta, sobretudo graças a The lives of the English poets, que o autor publicara cm 1791.

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Não creio que seja pertinente, como t a m p o u c o razoável, alongar-me aqui mais d e t a l h a d a m e n t e sobre a matéria de q u e consiste De poesia e de poetas. Seria como q u e antecipar a fruição do leitor em seu contato direto com o texto eliotiano o u , o que é pior, correr o risco de perturbar-lhe c até m e s m o frustrar-lhe tal fruição. Q u e ele possa, assim c o m o nós, degustar a elegância, a erudição, a inteligência e a luz invisível" desses admiráveis e f u n d a m e n t a i s ensaios, desse lúcido e instigante testemunho literário de um poeta maior e de um sábio para quem A única sabedoria que podemos aspirar E a sabedoria da humildade a humildade é infinita. Ivan Junqueira Rio, 9 de fevereiro de 1990

I

DE POESIA

A FUNÇÃO SOCIAL DA POESIA'

É de tal m o d o provável que o título deste ensaio sugira coisas diíerentes a diferentes pessoas q u e posso desculpar-me por explicar de início o q u e ele não significa, antes de tentar esclarecer o q u e significa. Q u a n d o aludimos à " f u n ç ã o " de qualquer coisa, provavelmente estamos pensando naquilo q u e essa coisa deve produzir em vez daquilo que ela produz ou haja prod u z i d o . Trata-se de u m a importante distinção, pois não pret e n d o falar sobre aquilo q u e julgo que a poesia deva produzir. Pessoas q u e nos disseram o que a poesia deve produzir, sobret u d o se são poetas, tem habitualmente em mira a espécie particular de poesia que gostariam de escrever. E sempre possível, n a t u r a l m e n t e , q u e a poesia possa desempenhar no f u t u r o um papel distinto daquele d e s e m p e n h a d o no passado; mas, ainda assim, vale a pena decidir primeiro qual a função por ela exercida no passado, seja n u m a ou noutra época, seja nesse ou naquele idioma, e de um p o n t o de vista universal. Poderia escrever facilmente sobre o que eu próprio faço com a poesia, ou o q u e gostaria de fazer, e então tentar persuadir alguém de q u e isso é exatamente o que todos os bons poetas têm ten-

1. Palestra p r o n u n c i a d a no I n s t i t u t o Británico-Norueguès cm 1943 e posteriorm e n t e desenvolvida para ser a p r e s e n t a d a ao p u h l i c o parisiense em 1945. Esse texto apareceu d e p o i s em The AJelphi. ( N . A . )

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tado fazer, ou devem ter feito, no passado — só q u e não o lograram de todo, embora talvez não por sua culpa. Mas me parece provável q u e se a poesia — e refiro-me a toda grande poesia — não exerceu n e n h u m a função social no passado, não é provável que venha a fazê-lo no f u t u r o . Q u a n d o digo toda grande poesia, p r e t e n d o abster-me de outro meio através do qual possa ocupar-me do assunto. Alguém poderia estudar as diversas espécies de poesia, u m a após outra, e discutir a função social de cada u m a delas sucessivamente sem tangenciar a questão geral de qual é a f u n ç ã o da poesia c o m o poesia. Desejo distinguir entre as funções gerais e particulares, de m o d o que saibamos do q u e estamos f a l a n d o . A poesia pode ter um deliberado e consciente propósito social. Em suas mais primitivas formas, esse propósito é a m i ú d e absolutamente claro. Há, por exemplo, antigas runas- e cantos, alguns dos quais revelam propósitos mágicos verdadeiramente práticos, destinados a esconjurar o mau-olhado, a curar certas doenças ou a obter as boas graças de algum d e m ô n i o . A poesia era utilizada primitivamente em rituais religiosos e, q u a n d o e n t o a m o s um hino, estamos ainda utilizando-a com um d e t e r m i n a d o propósito social. As primitivas formas do gênero épico e a saga p o d e m ter transmitido aquilo q u e sustentamos c o m o história antes de se tornar apenas u m a diversão comunitária, e antes do uso da linguagem escrita, u m a forma de verso regular deve ter sido extremamente proveitosa à memória — e a memória dos primitivos bardos, dos contadores de histórias e dos sábios deve ter sido prodigiosa. Nas sociedades mais evoluídas, tal c o m o a da Grécia antiga, as funções sociais reconhecidas da poesia são também bastante conspícuas. O drama grego se desenvolve a partir dos ritos religiosos, e permanece como cerimónia pública formal associada às tradicionais celebrações religiosas; a ode pindàrica se desenvolve em relação com u m a d e t e r m i n a d a ocasião social. Certamente, tais usos definidos da poesia deram a ela uma estrutura que tornou possível alcançar a perfeição em gêneros particulares.

Algumas dessas formas persistem na poesia mais recente, como é o caso dos hinos religiosos a q u e me referi. O significado da expressão didática, para poesia, passou por algumas transformações. Didático pode significar "transmissão de informação ', ou significar "administração de instrução m o r a l " , ou pode equivaler a algo q u e abrange ambas as coisas. As Geórgicas de Virgílio, por exemplo, são poesia belíssima e contêm considerável dose de informação sobre a boa agricultura. Mas pareceria impossível, nos dias de hoje, u m a obra atualizada sobre a agricultura q u e pudesse t a m b é m ser poesia refinada: de um lado, o próprio assunto tornou-se m u i t o mais complexo e científico; de outro, pode ser mais facilmente desenvolvido cm prosa. N e m poderíamos, como o fizeram os romanos, escrever tratados astronómicos e cosmológicos em verso. O p o e m a , cujo objetivo ostensivo é transmitir informações, foi s u p l a n t a d o pela prosa. A poesia didática tornou-se aos poucos restrita à poesia de exortação moral, ou poesia que pretende persuadir o leitor a aceitar o p o n t o de vista do autor sobre alguma coisa. Por conseguinte, ela inclui em boa parte aquilo q u e se pode chamar de sàtira, embora esta se c o n f u n d a com o burlesco e a paródia, cujo propósito é, f u n d a m e n t a l m e n t e , causar hilariedade. Alguns dos poemas de Dryden, no século XVII, são sátiras na m e d i d a cm q u e têm em mira ridicularizar os objetos contra os quais a p o n t a m , e são t a m b é m didáticos q u a n d o objetivam persuadir o leitor a aceitar determinado ponto de vista político ou religioso; e, ao cumprir esse desígnio, eles se utilizam do m é t o d o alegórico, q u e apresenta a realidade como ficção: The hind and the panther, q u e se propõe a persuadir o leitor de que a razão estava do lado da Igreja de Roma, contra a Igreja da Inglaterra, é seu mais notável poema desse gênero. No século XIX, boa parte da poesia de Shelley inspirou-se n u m entusiasmo pelas reformas políticas e sociais.

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2. Nome dado aos caracteres dos mais antigos alfabetos germânicos. A escrita rùnica de que se serviam alguns povos, inclusive os escandinavos, e q u e se gravava em rochedos e vasos de madeira. Por extensão, poemas escritos com esses caracteres (Ν Τ )

Q u a n t o à poesia dramática, que hoje tem uma função social peculiar, pois e n q u a n t o a maior parte da poesia atual é escrita para ser lida em solidão, ou em voz alta em pequenos grupos, o verso dramático tem em si a f u n ç ã o de provocar u m a impressão imediata e coletiva sobre um a m p l o n ú m e r o de pessoas reunidas para assistir a um episódio imaginário encenado n u m palco. A poesia dramática é diferente de qualquer outra,

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mas, como suas leis específicas são as do d r a m a , sua f u n ç ã o em geral se f u n d e à do drama, e não me refiro aqui à f u n ç ã o social específica do drama. No que se refere à função particular da poesia filosófica, implicaria esta u m a análise e u m a explicação de certa amplitude. Penso que já mencionei bastantes gêneros de poesia para deixar claro que a função específica de cada um deles se relaciona com alguma çutra função: a poesia dramática, com o drama; a poesia didática informativa, com a f u n ç ã o de seu assunto; a poesia didática filosófica, ou religiosa, ou política, ou moral, com a função de tais temáticas. Podemos considerar a função de quaisquer desses gêneros poéticos e, ainda assim, deixar intocado o problema da f u n ç ã o da poesia, pois todas essas coisas podem ser abordadas na prosa. Mas, antes de prosseguir, q u e r o descartar u m a objeção q u e pode ser levantada. As pessoas suspeitam às vezes de q u a l q u e r poesia com um propósito particular, isto é, a poesia em q u e o poeta defende conceitos sociais, morais, políticos ou religiosos, assim como outras pessoas julgam a m i ú d e q u e determinada poesia seja autêntica só p o r q u e exprime um p o n t o de vista que lhes apraz. Eu gostaria de dizer q u e a questão relativa ao fato de o poeta estar utilizando sua poesia para d e f e n der ou atacar determinada atitude social não interessa. O m a u verso pode obter fama temporária q u a n d o o poeta reflete u m a atitude popular do m o m e n t o ; mas a verdadeira poesia sobrevive não apenas à mudança da opinião pública c o m o t a m b é m \ à completa extinção do interesse pelas questões com as quais o poeta esteve apaixonadamente envolvido. Os poemas de Lucrécio não perderam sua grandeza, embora suas noções de física e de astronomia hajam caído em descrédito; os de Dryden também, embora as controvérsias do século XVII há m u i t o já não nos digam mais respeito; da mesma forma, um grande p o e m a do passado ainda nos agrada, mesmo q u e seu assunto seja um daqueles que deveríamos hoje abordar em prosa. Mas se estamos à procura da função social essencial da poesia, precisamos olhar primeiro para suas funções mais óbvias, aquelas que precisam ser cumpridas, se é q u e algum poema o faz. O principal, suponho, é que possamos nos assegurar de que essa poesia nos dê prazer. Se alguém perguntar qual o

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gênero de prazer, só poderei responder: o gênero de prazer q u e a poesia proporciona; simplesmente porque qualquer outra resposta nos levaria a nos perdermos em divagações estéticas e na questão geral na natureza da arte. S u p o n h o q u e se deva concordar com o fato de q u e qualquer poeta, haja sido ele grande ou não, tem algo a nos proporcionar além do prazer, pois se for apenas isso, o próprio prazer pode não ser da mais alta espécie. Para além de q u a l q u e r intenção específica que a poesia possa ter, tal como foi por m i m exemplificado nas várias espécies de poesia, há sempre comunicação de alguma nova experiência, ou u m a nova compreensão do familiar, ou a expressão de algo que experimentamos e para lo q u e não temos palavras o que amplia nossa consciência ou apura nossa sensibilidade. Mas não é com esse benefício individual extraído à poesia, nem tampouco com a qualidade do prazer individual, que este ensaio se relaciona, l odos compreendemos, creio eu, tanto a espécie de prazer q u e a poesia p o d e proporcionar, q u a n t o a diferença que, para além do prazer, ela pode oferecer às nossas vidas. Caso não se o b t e n h a m esses dois resultados, simplesmente não há poesia. Podemos reconhecer isso, mas ao m e s m o t e m p o fazer vista grossa para algo q u e isso faz por nós coletivamente, e n q u a n t o sociedade. E falo no mais a m p l o sentido, pois creio ser importante q u e cada povo deva ter sua própria poesia, não apenas por causa daqueles q u e gostam de poesia — tal pessoa poderia sempre aprender outras línguas e apreciar a poesia delas —, mas t a m b é m porque isso estabelece de fato u m a diferença para a sociedade como um todo, ou seja, para pessoas que não gostam de poesia. Incluo até m e s m o aqueles q u e ignoram os nomes de se us próprios poetas nacionais. Eis o verdadeiro assunto deste ensaio. Observa-se q u e a poesia difere de qualquer outra arte por ter um valor para o povo da mesma raça e língua do poeta, q u e não p o d e ter para n e n h u m outro. E verdade que até a música e a pintura têm um caráter local e racial; mas decerto as dificuldades de apreciação dessas artes, para um estrangeiro, são muito menores. É verdade, por outro lado, que os textos em prosa têm um significado em suas próprias línguas que se perde na tradução; mas todos sentimos que perdemos muito menos ao lermos u m a novela traduzida do q u e um poema ver-

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tido de outro idioma; e na tradução de alguns gêneros de obra científica a perda pode ser virtualmente nula. O fato de q u e a poesia é muito mais local do q u e a prosa p o d e ser comprovado na história das línguas europeias. Ao longo de toda a Idade Média e no curso dos cinco séculos seguintes, o latim p e r m a n e ceu como a língua da filosofia, da teologia e da ciência. O impulso concernente ao uso literário das linguagens dos povos começa com a poesia. E isso parece a b s o l u t a m e n t e natural q u a n d o percebemos q u e a poesia tem a ver f u n d a m e n t a l m e n t e com a expressão do s e n t i m e n t o e da emoção; e esse s e n t i m e n t o e emoção são particulares, ao passo q u e o p e n s a m e n t o é geral. É mais fácil pensar do q u e sentir n u m a língua estrangeira. Por isso, n e n h u m a arte é mais visceralmente nacional do q u e a poesia. Um povo pode ter sua língua trasladada para longe de si, abolida, e u m a outra língua imposta nas escolas; mas a menos que alguém ensine esse povo a sentir n u m a nova língua, ninguém conseguirá erradicar o idioma antigo, e ele reaparecerá na poesia, que é o veículo do sentimento. Eu disse precisamente "sentir n u m a nova língua ", e pretendi dizer algo mais do q u e apenas "expressar seus sentimentos n u m a nova língua ". Um pensamento expresso n u m a língua diversa p o d e ser praticamente o mesmo pensamento, mas um s e n t i m e n t o ou u m a emoção expressos n u m a língua diferente não são o m e s m o sentimento nem a mesma emoção. U m a das razões para q u e aprendamos bem pelo menos u m a língua estrangeira é q u e isso nos permite adquirir u m a espécie de personalidade s u p l e m e n t a r ; uma das razões para não adquirirmos u m a nova língua em lugar de nossa própria é que a maioria de nós não deseja tornar-se u m a pessoa diferente. Uma língua superior raramente p o d e ser exterminada, a menos que se extermine o povo q u e a fala. Q u a n d o u m a língua suplanta outra, isso acontece habitualmente porque essa língua tem vantagens q u e a r e c o m e n d a m — e que oferecem não u m a mera diferença, mas um espectro mais amplo c refinado, não só para o pensamento, mas t a m b é m para sentir — preferencialmente à língua mais primitiva. A emoção e o sentimento são, portanto, melhor expressos na língua comum do povo, isto é, na língua c o m u m a todas as classes: a estrutura, o ritmo, o som, o m o d o de falar de u m a língua expressam a personalidade do povo que a utiliza. Q u a n d o

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afirmo que a poesia, mais do q u e a prosa, diga respeito à expressão da emoção e do sentimento, não pretendo dizer q u e a poesia necessite estar desprovida de conteúdo intelectual ou significado, ou que a grande poesia não contenha mais esse significado do que a poesia menor. Mas para levar adiante essa invesr tigação cu teria que me afastar de meu propósito imediaio. Admitirei como aceito o fato de que as pessoas encontram a expressão mais consciente de seus sentimentos mais p r o f u n d o s antes na poesia de sua própria língua do q u e em qualquer outra arte ou na poesia escrita em outros idiomas, isso não significa, é claro, que a verdadeira poesia esteja restrita a sentimentos que cada um possa identificar c compreender; não devemos restringir poesia a poesia popular. Basta q u e , n u m povo homogêneo, os sentimentos dos mais refinados c complexos t e n h a m algo em c o m u m com os dos mais simples e grosseiros, algo q u e eles não têm em c o m u m com as pessoas de seu próprio nível ao falar outra língua. E, q u a n d o se trata de u m a civilização sadia, o grande poeta terá algo a dizer a seu compatriota em qualquer nível de educação. Podemos dizer que a tarefa do poeta, como poeta, é apenas indireta com relação ao seu povo: sua tarefa direta é com sua língua, primeiro para preservá-la, segundo para distendêla e aperfeiçoá-la. Ao exprimir o q u e outras pessoas s e n t e m , t a m b é m ele está modificando seu sentimento ao torná-lo mais consciente; ele está tornando as pessoas mais conscientes daquilo q u e já sentem e, por conseguinte, ensinando-lhes algo sobre si próprias. Mas o poeta não é apenas uma pessoa mais consciente do q u e as outras; é t a m b é m individualmente distinto de outra pessoa, assim como de outros poetas, e pode fazer com que seus leitores partilhem conscicntcmente de novos sentimentos que ainda não haviam experimentado. Essa é a diferença entre o escritor q u e é apenas excêntrico ou louco c o autêntico poeta. Aquele primeiro pode ter sentimentos q u e são únicos, mas q u e não p o d e m ser partilhados, e que por isso são inúteis; o último descobre novas variantes da sensibilidade das quais os outros podem se apropriar. E, ao expressá-las, desenvolve e enriquece a língua q u e fala. Já disse absolutamente o bastante sobre as impalpáveis diferenças de sentimento entre um povo e outro, diferenças que

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se afirmam e se desenvolvem através de sua s diferentes línguas. Mas as pessoas não sentem o m u n d o apenas d i f e r e n t e m e n t e em diferentes lugares; elas o sentem d i s t i n t a m e n t e em t e m p o s distintos Na verdade, nossa sensibilidade está c o n s t a n t e m e n t e se transformando, assim como o m u n d o q u e nos rodeia se transforma; o que sentimos não é o m e s m o q u e sente o chinês ou o hindu, mas t a m b é m não é o mesmo q u e sentiam nossos ancestrais vários séculos atrás. Não é o m e s m o q u e nossos pais; e, finalmente, nós próprios já somos t o t a l m e n t e diferentes do q u e éramos há um ano. Isso é óbvio; mas o q u e não é tão óbvio é que esta constitui a razão pela qual não p o d e m o s nos dar o luxo de pararmos de escrever poesia. As pessoas mais educadas têm um certo orgulho dos grandes autores de sua língua, ainda que nunca os tenham lido, da mesma f o r m a c o m o se o r g u l h a m de qualquer outra qualidade q u e distinga seu país: alguns autores tornam-se amiúde celebrados o bastante para serem citados ocasionalmente em discursos políticos. Mas a maioria das pessoas não percebe q u e isso não é o bastante; q u e a menos q u e se continue a produzir grandes autores, e particularmente grandes poetas, sua língua apodrecerá, sua cultura se deteriorará e talvez venha a ser absorvida por outra mais poderosa. Uma coisa é absolutamente certa: se não dispusermos de uma literatura viva, nos tornaremos cada vez mais alienados da literatura do passado; a menos q u e m a n t e n h a m o s continuidade, nossa literatura do passado tornar-se-á mais e mais distante de nós até nos parecer tão estranha q u a n t o a literatura de um povo estrangeiro. E q u e nossa língua está se transformando; nossa maneira de viver t a m b é m m u d a , sob a pressão das transformações materiais de toda ordem em nosso meio; e a menos que disponhamos daqueles poucos h o m e n s q u e associam a uma excepcional sensibilidade um excepcional poder sobre as palavras, nossa própria capacidade, não apenas de nos expressar, mas até mesmo de sentir q u a l q u e r emoção, exceto as mais grosseiras, se degenerará. Pouco importa q u e um poeta haja alcançado u m a a m p l a repercussão cm sua própria época. O q u e importa é q u e possa ter sempre existido, pelo menos, um p e q u e n o interesse por ele em cada geração. Entretanto, o que acabo de dizer sugere q u e sua importância se relaciona à sua própria época, ou q u e os

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poetas mortos deixam de ter qualquer utilidade para nós, a menos que tenhamos t a m b é m poetas vivos. Eu poderia até impor meu primeiro ponto de vista e dizer q u e se um poeta a l c a n a um grande público muito r a p i d a m e n t e , isso constitui antes uma circunstância suspeita, pois nos leva a desconfiar de que ele não esteja realmente p r o d u z i n d o algo de novo, q u e esteja apenas proporcionando às pessoas aquilo a q u e estas já estão habituadas e, por conseguinte, o q u e já receberam dos poetas de gerações anteriores. Mas se couber a um poeta tal regalia, um p e q u e n o público em sua época / i m p o r t a n t e . Haveria sempre ali uma vanguarda de pessoas, apreciadoras de poesia, que são independentes e estão algo adiante de seu t e m p o , ou prontas para assimilar mais rapidamente a novidade. Desenvolvimento da cultura não significa trazer todo m u n d o para compor a linha de frente, o q u e equivale apenas a fazer com q u e todos m a n t e n h a m a marcha: significa a m a n u t e n ç ã o de u m a tal élite, com a massa principal e acomodada de leitores distante não mais do q u e cerca de u m a geração para trás. As m u d a n ç a s e os desdobramentos da sensibilidade q u e afloram de início em alguns começarão a insinuar-se g r a d u a l m e n t e na língua, através de sua influência sobre outros, e mais facilmente sobre autores populares; e com o t e m p o tornam-se bem definidas, exigindo assim um novo avanço. Ademais, é através dos autores vivos q u e os mortos permanecem vivos. Um poeta como Shakespeare influenciou p r o f u n d a m e n t e a língua inglesa, e não apenas pela influência que exerceu sobre seus sucessores imediatos. Pois os poetas de maior estatura têm aspectos q u e não se revelam de imediato; e ao exercerem u m a influência direta sobre outros poetas séculos mais tarde, continuam a afetar a língua viva. Na verdade, se um poeta inglês aprende a usar palavras em nosso tempo, deve dedicar-se ao rigoroso estudo daqueles que melhor as utilizaram em sua época, daqueles q u e , em seus próprios dias, reinventaram a língua. Até agora apenas sugeri o ponto extremo até o qual, creio eu, pode-se dizer que se estende a influência da poesia; e isso pode ser melhor expresso pela afirmação de que, no decurso do tempo, ela produz uma diferença na fala, na sensibilidade, nas vidas de todos os integrantes de u m a sociedade, de todos os membros de uma c o m u n i d a d e , de todo o povo, independen-

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temente de que leiam e apreciem poesia ou não, ou até mesmo, na verdade, de q u e saibam ou não os nomes de seus maiores poetas. A influência da poesia, na mais distante periferia, é naturalmente muito difusa, muito indireta e muito difícil de ser comprovada. É como acompanhar o trajeto de um pássaro ou de um avião num céu luminoso: se alguém os percebeu q u a n d o estavam muito próximos, e os manteve sob a vista q u a n d o se afastavam cada vez mais, poderá vê-los a u m a grande distância, a uma distância na qual o olho de outra pessoa, de q u e m se tenta chamar a atenção para o fato, será incapaz de percebê-los: Assim, se rastrearmos a influência da poesia através dos leitores mais afetados por ela às pessoas q u e jamais leram nada, a encontraremos presente em toda parte. Pelo menos a encontraremos se a cultura nacional estiver viva e sadia, pois n u m a sociedade saudável há uma influência recíproca e u m a interação contínuas de uma parte sobre as outras. E isso é o q u e eu e n t e n d o como a função social da poesia em seu mais a m p l o sentido: é isso o que, proporcionalmente à sua existência e vigor, afeta a fala e a sensibilidade de toda a nação. Ninguém deve imaginar q u e estou d i z e n d o ser a língua que falamos exclusivamente d e t e r m i n a d a por nossos poetas. A estrutura da cultura é muito mais complexa do q u e isso. A rigor, é igualmente verdadeiro que a q u a l i d a d e de nossa poesia depende do m o d o como o povo utiliza sua língua: pois um poeta deve tomar como matéria-prima sua própria língua, da maneira como de fato ela é falada à volta dele. Se a língua se aprimora, ele se beneficiará; se entra em declínio, deverá tirar daí o melhor proveito. Até certo p o n t o , a poesia p o d e preservar, e mesmo restaurar, a beleza de u m a língua; ela pode e deve ajudá-la a se desenvolver, a tornar-se tão sutil e precisa nas mais adversas condições e para os cambiantes propósitos da vida moderna, q u a n t o o foi n u m a época menos complexa. Mas a poesia, como qualquer outro e l e m e n t o solitário nessa misteriosa personalidade social a q u e chamamos nossa 4 'cultur a " , deve permanecer d e p e n d e n t e de muitíssimas circunstâncias que escapam ao seu controle. Isso me conduz a algumas reflexões posteriores de natureza mais geral. Minha ênfase nesse ponto tem sido sobre a f u n ç ã o local c nacional da poesia, e isso deve ser explicado. Não desejo

A K J N Ç À O SOCIAL Γ)Α POESIA

dar a impressão de que a função da poesia é distinguir entre um povo e outro, pois não creio que as culturas dos diversos povos da Europa possam florescer isoladas u m a das outras. Não resta dúvida de que houve no passado altas civilizações q u e produziram grande arte, pensamento e literatura, e q u e se desenvolveram sozinhas. Não posso falar disso com segurança, pois algumas delas podem não ter sido tão isoladas q u a n t o inicialmente parece. Mas na história da Europa não tem sido assim. Até mesmo a Grécia antiga deveu muito ao Egito, e algo às suas fronteiras asiáticas; e nas relações dos Estados gregos entre si, com seus diferentes dialetos e seus diferentes costumes, podemos encontrar uma influência recíproca e estímulos análogos aos q u e os países europeus exerciam uns sobre os outros. Mas a história da literatura européia não indica q u e q u a l q u e r literatura tenha sido i n d e p e n d e n t e das outras, revelando antes um movimento constante de dat e receber, e q u e cada u m a delas, sucessivamente, vem sendo revitalizada por estímulos externos. Uma autarquia geral na cultura simplesmente não f u n cionará: a esperança de perpetuar a cultura de q u a l q u e r país repousa na comunicação com as demais. Mas se a separação de culturas dentro da unidade européia é um perigo, t a m b é m o seria uma unificação q u e levasse à uniformidade. A variedade é tão essencial q u a n t o a unidade. Por exemplo, há m u i t o a ser dito, para certos propósitos limitados, de u m a língua franca universal como o esperanto ou o inglês básico. Mas s u p o n d o que toda a comunicação entre as nações fosse conduzida por uma língua artificial, quão imperfeita ela seria! Ou antes, seria absolutamente adequada em alguns aspectos, e apresentaria u m a completa falha de comunicação em outros. A poesia é uma constante advertência a t u d o aquilo q u e só pode ser dito em u m a língua, e que é intraduzível. A comunicação espiritual entre um povo e outro não pode ser levada adiante sem indivíduos q u e assumam o desafio de aprender pelo menos u m a língua estrangeira tão bem q u a n t o é possível aprender qualquer língua que não a sua própria, conseqüentemente, q u e estejam capacitados em maior ou menor grau, a sentire m outra língua tão bem q u a n t o na sua. E a compreensão de outro povo por parte de qualquer pessoa necessita, dessa forma, ser complementada pela compreensão daqueles indivíduos dentre esse povo que se esforçaram para aprender a sua própria língua.

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Pode ocorrer q u e o estudo da poesia de um o u t r o povo seja particularmente instrutivo. Eu disse q u e há qualidades poéticas em cada língua q u e só p o d e m ser e n t e n d i d a s por aqueles q u e dela são nativos. Mas há t a m b é m um outro lado da questão. Descobri algumas vezes, ao tentar 1er u m a língua q u e não conhecia muito bem, que não conseguia c o m p r e e n d e r um texto cm prosa senão na m e d i d a em q u e o digeria c o n f o r m e os padrões do professor: ou seja, eu estava seguro q u a n t o ao significado de cada palavra, dominava a gramática e a sintaxe, e podia então decifrar a passagem em inglês. Mas descobri t a m b é m algumas vezes q u e um texto poético, q u e eu não conseguia traduzir, incluindo muitas palavras q u e não me eram familiares e orações q u e eu não conseguia interpretar, c o m u n i c a v a - m e algo vívido e imediato, q u e era único, distinto de q u a l q u e r coisa em inglês — algo q u e eu não podia transcrever em palavras e, não obstante, sentia q u e c o m p r e e n d e r a . E ao a p r e n d e r melhor aquela língua, descobri q u e essa impressão não era ilusória, ou algo que eu imaginasse existir na poesia, mas algo que estava de fato ali. De m o d o q u e . em poesia, vez por outra alguém pode penetrar em outro país, por assim dizer, antes que seu passaporte seja expedido ou q u e seu bilhete de viagem seja comprado. Toda a questão do relacionamento entre países de línguas diferentes, mas que possuem afinidades culturais, no â m b i t o europeu, é por conseguinte aquela à qual somos conduzidos, talvez inesperadamente, pela investigação relativa à função social da poesia. E claro que não pretendo passar desse p o n t o para questões estritamente políticas; mas gostaria q u e aqueles q u e se ocupam das questões políticas pudessem mais a m i ú d e cruzar a fronteira que conduz aos problemas q u e acabo de examinar, pois são estes que conferem ao aspecto espiritual das questões o aspecto material de que se ocupa a política. Do lado em q u e me encontro na fronteira, u m a dessas questões se relaciona com as coisas vivas que têm suas próprias leis de crescimento, as quais nem sempre razoáveis, mas que somente devem ser aceitas pela razão; coisas que não podem ser caprichosamente planejadas e postas em ordem da mesma forma q u e não p o d e m ser disciplinados os ventos, as chuvas e as estações.

A F U N Ç Ã O SOCIAL DA POESIA

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Finalmente, se eu estiver certo de q u e a poesia tem u m a " f u n ç ã o social" para o conjunto das pessoas da língua do poeta, estejam elas conscientes ou não de sua existência, conclui-se que interessa a cada povo da Europa que os demais devam continuar a ter sua poesia. Não posso 1er a poesia norueguesa, mas, se fosse dito que não mais está sendo escrita q u a l q u e r poesia em língua norueguesa, eu sentiria um sobressalto q u e seria muito mais do q u e uma generosa simpatia. Eu o veria como um indício de doença que provavelmente estaria d i f u n d i d a por todo o continente, como o início de um declínio significando que os povos de toda parte houvessem deixado de estar aptos a expressar, e conseqüentemente a sentir, as emoções dos seres civilizados. Isso, é claro, poderia ocorrer. Muito já se falou em toda parte sobre o declínio da crença religiosa; não tanto q u a n t o se observa relativamente ao declínio da sensibilidade religiosa. O problema da idade moderna não se resume apenas à incapacidade de acreditar cm certas coisas em relação a Deus e ao h o m e m em que nossos antepassados acreditavam, mas à incapacidade de sentir Deus e o h o m e m como eles o fizeram. Uma crença na qual ninguém mais deposita sua fé constitui algo que, até certo ponto, alguém ainda p o d e entender; mas q u a n d o desaparece o sentimento religioso, as palavras com as quais os homens lutaram para expressá-lo perdem o sentido. É verdade que o sentimento religioso varia naturalmente de país para país e de época para época, da mesma forma como ocorre com o sentimento poético; o sentimento varia, mesmo q u a n d o a crença e a doutrina não se modificam. Mas essa é u m a condição da vida h u m a n a , e o que me deixa apreensivo é a morte. É igualmente possível que o sentimento pela poesia, e os sentimentos que constituem a matéria-prima da poesia, possam desaparecer em toda parte: o q u e talvez pudesse favorecer aquela unificação do m u n d o que alguns povos consideram cm si desejável.

Α MÚSICA DA POESIA

A MÚSICA DA POESIA'

O poeta, q u a n d o fala ou escreve sobre poesia, revela qualificações e limitações peculiares: se admitirmos estas, p o d e r e m o s apreciar melhor aquelas — trata-se de u m a prudência q u e recom e n d o tanto aos próprios poetas q u a n t o aos leitores acerca do que ambos dizem sobre poesia. Jamais releio q u a l q u e r de meus próprios textos sem um a g u d o desconforto: esquivo-me à tarefa, e conseqüentemente posso desconsiderar todas as acusações que, nessa ou naquela época, fiz a m i m m e s m o ; posso amiúde repetir o que já dissera, e posso com freqüência me contradizer. Mas creio que os textos críticos dos poetas, dos quais no passado há alguns autênticos exemplos ilustres, devem grande parte de seu interesse ao fato de q u e o poeta, no f u n d o de sua mente, q u a n d o não com o propósito confesso, está sempre tentando defender o gênero de poesia q u e escreve, ou formular o gênero que deseja escrever. Especialmente q u a n d o jovem, e ativamente comprometido na luta pelo gênero de poesia que pratica, ele vê a poesia do passado em relação à sua, e sua gratidão com aqueles poetas mortos com os quais a p r e n d e u , bem como sua indiferença por aqueles cujos objetivos são estranhos aos seus, pode ser exagerada. Ele é antes um advogado 1. Terreira conferência a memória de W. P. Kcr, pronunciada na Universidade de Glasgow cm 1942 e publicada pela Glasgow University Press no m e s m o ano. ( Ν . Α . )

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do que um juiz. Seu conhecimento tende mesmo a ser parcial, pois seus estudos o levarão a concentrar-se em certos autores em detrimento de outros. Q u a n d o teoriza sobre criação poética, provavelmente generaliza um tipo de experiência; q u a n d o se aventura à estética, provavelmente será menos, em vez de mais competente do que um filósofo; e simplesmente faria m e l h o r se relatasse, para a informação do filósofo, os dados de sua própria introspecção. O q u e ele escreve sobre poesia, em s u m a , deve ser avaliado em relação à poesia q u e escreve. Convém voltarmos ao erudito para averiguar os fatos, e ao crítico mais desinteressado para um julgamento imparcial. O crítico, certamente, deveria ter algo de um erudito, e o erudito algo de um crítico. Ker, 2 cuja atenção se concentrou sobretudo na literatura do passado e nos problemas de relacionamento histórico, deve ser incluído na categoria dos eruditos; mas tinha ele em alto grau o sentido do valor, o bom gosto, a compreensão dos padrões críticos e a capacidade de aplicá-los sem o q u e a contribuição do erudito não pode ser senão indireta. Há um outro aspecto mais particular em q u e diferem o conhecimento do erudito e do poeta no que se refere à versificação. Aqui, talvez, eu devesse ser cauteloso ao falar apenas de mim mesmo. Nunca fui capaz de memorizar os nomes de pés e versos, ou de guardar o devido respeito às regras consagradas da escansão. Na escola, gostava muito de recitar H o m e r o ou Virgílio à minha própria maneira. Talvez tivesse alguma suspeita instintiva de q u e ninguém sabia de fato como o grego deveria ser pronunciado, ou o q u e , entretecendo os ritmos gregos e latinos, pudesse o ouvido romano apreciar cm Virgílio; talvez fosse meu ócio que instintivamente me protegesse. Mas certamente, q u a n d o esse ouvido conseguia aplicar as regras da escansão ao verso inglês, com seus diversos acentos diferentes e valores silábicos variáveis, eu queria saber por q u e um verso era bom e outro ruim; e isso a escansão não podia me explicar. O

2. Ker. William Patton. Escritor inglês (Glasgow, 1853 Mac u g n a ga, Alpes. 1925). Professor de história e literatura inglesas em Cardiff (1883), de literatura inglesa na Universidade de Londres (1889-1922) c de poesia em Oxford (1922); suas principais obras versam sobre literatura medieval, como, entre outras. Epic

and romance (1897), The dark ager (1904), Essays on medieval literature (1903) e The art of poetry (1923).

(N.T.)

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único meio de aprender a manipular q u a l q u e r espécie de verso inglês me pareceu ser o da assimilação e da imitação, das quais resulta um envolvimento tal com a obra de um d e t e r m i n a d o poeta que se torna possível produzir um derivado reconhecível. Isso não significa que eu considere o estudo analítico da métrica, das formas abstratas q u e soam tão extraordinariamente distintas quando manuseadas por diferentes poetas, c o m o total perda de tempo. O que ocorre apenas é q u e o estudo da a n a t o m i a não lhes pode ensinar o q u e é preciso para fazer u m a galinha botar ovos. Desaconselho qualquer outro c a m i n h o para começar o estudo dos versos grego e latino q u e não seja o da a j u d a dessas regras de escansão q u e foram estabelecidas pelos gramáticos com base na maior parte da poèsia q u e se escreveu até agora; mas, se pudéssemos reviver essas línguas a p o n t o de nos tornarmos capazes de falá-las e ouvi-las c o m o o fizeram os autores que nelas se exprimiram, poderíamos encarar tais regras com indiferença. Aprendemos as línguas mortas por meio de um método artificial, e nossos métodos de ensino t ê m sido aplicados a alunos que, em sua maioria, têm apenas um modesto dom para as línguas. Mesmo ao abordarmos a poesia de nossa língua, podemos descobrir a classificação de metros, de versos com diferentes números de sílabas e acentos cm lugares distintos, úteis n u m estágio preliminar, como o m a p a simplificado de um complexo território; mas é apenas o estudo, não da poesia, mas de poemas, que será capaz de educar nosso ouvido. Não é a partir das regras, ou pela fria imitação do estilo, q u e aprendemos a escrever: aprendemos graças à imitação, é verdade, mas por meio de u m a imitação mais p r o f u n d a do q u e aquela que se adquire pela análise do estilo. Q u a n d o imitamos Shelley, não foi tanto por um desejo de escrever como ele o fazia, mas porque nosso eu adolescente estava s u b j u g a d o por Shelley, e isso tornou o estilo de Shelley, naquela época, a única forma de que dispúnhamos para nos expressar. Não há dúvida de q u e a prática de versificação inglesa tem sido afetada pela consciência das regras da métrica: a avaliação da influência do latim sobre os inovadores W y a t t 3

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c Surrey 4 é assunto para o erudito especializado em história. O grande gramático O t t o Jespersen 5 sustentou q u e a estrutura da gramática inglesa tem sido mal interpretada em nossas tentativas de torná-la a d e q u a d a às categorias do latim, c o m o no suposto " s u b j u n t i v o " . Na história da versificação não se cogita da questão relativa ao fato de que os poetas h a j a m e n t e n d i d o mal os ritmos da língua ao imitar modelos estrangeiros; devemos aceitar as práticas dos grandes poetas do passado por serem práticas com relação às quais nosso ouvido foi treinado e deve ser treinado. Acredito que um certo n ú m e r o de influências vindas de fora haja enriquecido o espectro e a variedade do verso inglês. Alguns eruditos clássicos sustentaram o conceito — este é um assunto q u e transcende m i n h a competência — de q u e a m e d i d a original da poesia latina foi mais rítmica do q u e silábica, de q u e foi eclipsada pela influência de u m a língua m u i t o diferente — o grego — e de que regrediu a algo próximo de sua forma primitiva em poemas como o Pervigilium Venens (Vigília de Vénus) e os primeiros hinos cristãos. Nesse caso, não podemos deixar de suspeitar q u e , para o público cultivado da época de Virgílio, parte do prazer da poesia provém da presença, na poesia, de dois esquemas métricos n u m a espécie de contraponto, ainda q u e esse público não fosse necessariamente capaz de analisar a experiência. De m o d o semelhante, é possível que a beleza de certa poesia inglesa seja devida à presença de mais de u m a estrutura métrica. São em regra m u i t o frias as tentativas deliberadas de estruturar metros ingleses com base em modelos latinos. Entre os q u e obtiveram maior êxito incluem-se alguns exercícios de C a m p i o n , 6 em seu breve mas pouquíssimo lido tratado de métrica; entre os mais notáveis malogros, em m i n h a opinião, estão as experiências de Robert 4. Surrey, Henry Howard (conde de). Político e poeta inglês (c. 1519 — Londres, 1547). autor de Songs and sonnets (1557), publicados com os poemas de T h o m a s Wyatt. A ele se deve a forma do soneto inglês. ( N . T . ) 5. Jespersen (Jens O i t o Harry). Lingüista d i n a m a r q u ê s (Randers, 1860 Copenhague. 1943), autor de obras de lingüística geral, como Language, its nature, develop-

ment and origin (1922). (N.T.) y Wyatt. Sir Thomas. Poeta inglês (Allington Castle. K e n t . c. 1303 - S h e r b o r n e , Dorset, 1542), responsável pela introdução do soneto na literatura inglesa. Seus poemas foram reunidos na To t tei's miscellany (1557). ( N . T . )

6. C a m p i o n . Thomas. Poeta inglês (Londres, 1567 — id. 1619), talvez o mais melodioso dos poetas elisabetanos. Figura em quase todas as antologias inglesas graças aos poemas reunidos em A book of Ayres (1601). ( N . T . )

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Bridges 7 — eu trocaria todas as sua s engenhosas invenções por seus primeiros versos líricos, mais tradicionais. Mas q u a n d o um poeta assimila tão intensamente a poesia latina a p o n t o de essa absorção estruturar-lhe o verso sem q u a l q u e r artifício deliberado — como no caso de Milton e em alguns poemas de Tennyson —, o resultado pode ser incluído entre as grandes conquistas da versificação inglesa. O que suponho possuirmos na poesia inglesa é u m a espécie de amálgama de sistemas de diversas fontes ( e m b o r a não me agrade usar a palavra " s i s t e m a " , pois ela implica antes uma sugestão de invenção consciente do q u e de crescimento espontâneo): um amálgama semelhante ao c a l d e a m e n t o de raças, e de fato parcialmente devido a origens raciais. Os ritmos dos anglo-saxões, celtas, franceses n o r m a n d o s , ingleses medievais e escoceses deixaram todos a sua marca na poesia inglesa, juntamente com os ritmos latinos e, em diversos períodos, os franceses, italianos e espanhóis. C o m o os seres h u m a nos constituem uma raça compósita, e diferentes tendências podem ser dominantes em diferentes indivíduos, inclusive cm membros de uma mesma família, do m e s m o m o d o q u e um ou outro elemento no composto poético p o d e ser mais congenial para um ou outro poeta ou para um ou o u t r o período. A espécie de poesia que criamos é d e t e r m i n a d a , de t e m p o s em tempos, pela influência de u m a ou outra literatura c o n t e m p o rânea em língua estrangeira, ou por circunstâncias q u e t o r n a m um período de nosso passado mais simpático do q u e o u t r o , ou pela ênfase que prevalece na educação. Mas há u m a lei da natureza mais poderosa do q u e quaisquer tendências variadas, ou influências vindas de fora ou do passado: a lei é de q u e a poesia não deve se afastar demasiado da língua c o m u m de cada dia que usamos e ouvimos. Seja a poesia rítmica ou silábica, rimada ou não rimada, formal ou livre, ela não p o d e darse ao luxo de perder o contato com a linguagem m u t a n t e da conversação ordinária.

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Pode parecer estranho que, q u a n d o admito estar escrevendo sobre a " m ú s i c a " da poesia, p o n h a eu tanta ênfase na palestra. Mas gostaria de lembrar-lhes, antes de mais nada, q u e a música da poesia não é algo que exista à margem do significado. Do contrário, poderíamos ter poesia de grande beleza musical q u e não fizesse sentido, e jamais me deparei com tal poesia. As aparentes exceções revelam apenas u m a diferença de grau: há poemas nos quais somos inebriados pela música e a d m i t i m o s o sentido como correto, assim como há poemas nos quais prestamos atenção ao sentido e somos envolvidos pela música sem q u e disso nos apercebamos. Consideremos um exemplo aparent e m e n t e extremo: o do verso absurdo de Edward Lear. 8 Sua falta de sentido não implica vacuidade de sentido: é u m a paródia do sentido, e esse é o seu sentido. The jumblies é um poema de aventuras, e de nostalgia pelo romance de viagem ao estran-

geiro e de exploração; The yong-'>ongy bo e The donq with a luminous nose são poemas de paixão não correspondida — na verdade blues. Apreciamos a música, que é de alta q u a l i d a d e , c o sentimento de irresponsabilidade para com o sentido. Ou tomemos um poema de outro tipo, o Blue closet, de William Morris." Trata-se de um delicioso poema, embora eu não possa explicar o que significa, e duvido q u e o autor t a m b é m o possa. Há um efeito algo semelhante ao de u m a runa ou de um sortilégio, mas as runas e os sortilégios têm fórmulas práticas destinadas a produzir resultados definidos, como tirar u m a vaca de um atoleiro. Mas sua intenção óbvia (e creio q u e o autor a realizou) é produzir o efeito de um sonho. Não é necessário, para apreciar o poema, saber o que o sonho significa; mas os seres humanos cultivam uma crença inabalável de q u e os sonhos significam alguma coisa: era costume acreditar — e muitos ainda acreditam — que os sonhos revelem os segredos do f u t u r o ; a 8. Lear. Edward. Poeta, artista plástico e humorista inglês (Londres, 1812 — San Remo, Itália, 1888), autor das ilustrações de boa parte das obras de Tennyson. Deixou, entre outros, Views of Rome and its environs (1841), A book of nonsense

(1846), Nonsense songs, stones, botany and alphabets (1871) e Teapots and quails (ed. pósi., 1953). ( N . T . ) L π Λ '

*Cymour

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inglês ( W a l m e r . ilha d e T h a n e t , 1844

Sla SC ,ns ,ra n a rosódia //o,, Çí? P P (1876) C The U S t a m e n t beau

S Γ η o s t 'u m a Λ °í ' y <> P dos poemas d e Gerard Manley Hopkins

« . m o o atestam The Ε o responsável pela edi(NT)

9. Morris, William Robert Poeta, pintor e historiador de arte inglês (Elm House, Walthampstow, Essex. 1834 — Londres. 1896). Escreveu poemas narrativos de inspirarão pos-romântica e medievalista, como The life and death of Jason (1867) e The earthly paradise (1868-1870). Deixou belas traduções da ilíada e da Odisseia. ( N . T . )

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fé ortodoxa moderna é de q u e eles desvelem os segredos — ou pelo menos os mais horrendos segredos — do passado. E um lugar-comum observar q u e o significado de um p o e m a escapa à possibilidade de parafraseá-lo. Não é a b s o l u t a m e n t e tão comum salientar que o significado de um p o e m a p o d e ser algo mais amplo do que conscientemente o pretendeu seu autor, e algo distante de suas origens. Um dos mais obscuros poetas modernos foi o escritor francês S t é p h a n e Mallarmé, cuja linguagem os próprios franceses dizem ser tão peculiar q u e só p o d e ser entendida pelos estrangeiros. O recém-falecido Roger Fry 10 e seu amigo Charles Mauron publicaram u m a tradução inglesa com notas destinadas a esclarecer os significados: q u a n d o ouço dizer que um soneto difícil foi inspirado pela visão de u m a pintura sobre o teto refletido a partir do t a m p o polido de u m a mesa, ou pela visão da luz refletida a partir da e s p u m a de um copo de cerveja, só posso dizer q u e se trata possivelmente de uma embriologia precisa, mas não de um significado. Se nos sensibilizarmos com um poema, isso significa algo, talvez importante, para nós; caso contrário, será então, e n q u a n t o poesia, sem sentido. Podemos nos excitar ao ouvir a declamação de um poema n u m a língua da qual não c o m p r e e n d e m o s u m a só palavra; mas se nos disserem q u e o p o e m a é e s t a p a f ú r d i o e não tem qualquer significado, nos consideraremos logrados — não se trataria de n e n h u m poema, mas simplesmente u m a imitação de música instrumental. Se, já q u e estamos conscientes, apenas uma parte do significado puder ser transmitida por u m a paráfrase, é porque o poeta está às voltas com as fronteiras da consciência, além das quais as palavras d e f i n h a m , e m b o r a os significados continuem a existir. Um poema p o d e dar a impressão de significar coisas muito distintas a diferentes leitores, e todos esses significados podem ser diferentes daquilo q u e o autor imaginou expressar. Por exemplo, o autor p o d e ter descrito a l g u m a experiência pessoal peculiar q u e considerou a b s o l u t a m e n t e dissociada de qualquer coisa exterior; para o leitor, todavia, o poema pode tornar-se a expressão de u m a situação geral, bem

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como de alguma experiência particular dele m e s m o . A interpretação do leitor pode diferir e ser igualmente válida. E pode até ser melhor. Pode existir n u m poema muito mais do q u e aquilo que o autor ali julgava existir. As diferentes interpretações p o d e m todas constituir formulações parciais de u m a coisa; as ambigüidades podem ser devidas ao fato de q u e um p o e m a significa mais, e não menos, do q u e a língua ordinária é capaz de comunicar. Assim, embora a poesia tente transmitir algo além do q u e pode ser transmitido pelos ritmos da prosa, ela permanece, não obstante, como u m a pessoa falando com outra; e isso é igualmente verdadeiro se você a canta, pois cantar é outro m o d o de falar. A relação íntima entre a poesia e a conversação não constitui um assunto sobre o qual possamos formular leis exatas. Cada revolução na poesia pode tornar-se, e às vezes assim se proclama, um retorno à fala c o m u m . Essa foi a revolução que Wordsworth anunciou em seus prefácios, e ele estava certo; mas a mesma revolução foi conduzida um século antes por O l d h a m , 1 1 Waller, 1 2 D e n h a m 1 5 e Dryden; e a mesma revolução deveria ocorrer de novo cerca de um século depois. Os seguidores de uma revolução desenvolvem a nova linguagem poética em uma ou outra direção, polindo-a e aperfeiçoando-a; entretanto, a língua falada vai m u d a n d o e o idioma poético envelhecendo. Talvez não consigamos conceber q u ã o natural deve ter sido a linguagem de Dryden aos mais sensíveis de seus contemporâneos. N e n h u m a poesia, é claro, constitui sempre a mesma linguagem q u e o poeta fala e ouve, mas ela precisa estar de tal m o d o relacionada à linguagem de sua época q u e o ouvinte ou leitor possa dizer "assim e que eu falaria se pudesse falar em verso". Essa é a razão pela qual a melhor poesia contemporâ11. O l d h a m , J o h n . Satirista inglês (Shipton Moyne. perto de T e t b u r y , Gloucestershire, 1653 - Holme-Pierrcpoint, perto de N o t t i n g h a m , 1683), cuja principal obra, Satires on the Jesuits (1681). foi m u i t o elogiada por Dryden. 12. Waller, E d m u n d . Poeta inglês (Coleshill, 1606 — Hall Barn, 1687). Primo de Cromwell, foi m e m b r o do Parlamento, mas depois passou para o lado de Carlos 1. Deixou um Panegyrical (1655), o n d e celebra os feitos do primo. Sua obra anuncia o classicismo inglês. ( N . T . ) 13 D e n h a m , Sir J o h n . Poeta e arquiteto inglês ( D u b l i n , 1615 — Londres, 1669), autor do poema didático-descritivo Cooper s hill, publicado em 1642. ( N . T . )

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nca podc nos dar um sentimento de excitação e um sentido de plenitude distinto de qualquer outro s e n t i m e n t o provocado até mesmo por uma poesia verdadeiramente maior de u m a época anterior. A música da poesia deve ser, portanto, a música latente na fala comum de sua época. E isso significa t a m b é m q u e ela deve estar latente na fala c o m u m da região do poeta. N ã o seria meu presente propósito censurar a u b i q ü i d a d e do inglês padronizado ou daquele que se fala na BBC. Sc todos viermos a falar do mesmo modo, não estaremos m u i t o longe do p o n t o em q u e passaremos a escrever da mesma maneira; mas até chegar esse tempo — e espero q u e ele chegue o mais tarde possível — é tarefa do poeta utilizar a língua falada à sua volta, aquela com a qual está mais familiarizado. Lembrarei sempre a impressão que me causou W. B. Yeats ao 1er seus poemas em voz alta. Ouvi-lo 1er suas próprias obras foi o m e s m o q u e reconhecer quanto o acento irlandês é necessário para apreciarmos as belezas da poesia irlandesa: ouvir Yeats lendo W illiam Blake foi uma experiência de um gênero diferente e q u e me causou mais surpresa do que satisfação. Não desejamos, é claro, q u e o poeta simplesmente reproduza com exatidão sua linguagem coloquial, ou a de sua família, de seus amigos e de seu distrito particular, mas o que se encontra aí é a matéria a partir da qual deverá ser feita sua poesia. Como o escultor, ele deve manter-se fiel à matéria em que trabalha; é a partir dos sons q u e percebe q u e o poeta deve constituir sua melodia e sua h a r m o n i a . Seria um erro, entretanto, admitir q u e toda poesia deva ser melodiosa, ou que a melodia seja mais q u e um dos c o m p o nentes da música das palavras. Há um tipo de poesia q u e se destina a ser cantada; a maior parte da poesia dos t e m p o s modernos destina-se a ser falada — e há muitas outras coisas a serem ditas além do zumbido de incontáveis abelhas ou do arrulho dos pombos nos olmos imemoriais. A dissonância, e m e s m o a cacofonia, têm seu lugar: assim, n u m p o e m a de certa extensão, deve haver transições entre passagens de maior ou m e n o r intensidade, a fim de que se o b t e n h a um ritmo de emoção flutuante essencial à estrutura musical do c o n j u n t o ; e as passagens de menor intensidade serão, com relação ao nível sobre o qual todo o poema opera, prosaicas — ou seja, no sentido q u e o con-

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texto implica, poder-sc-ia dizer que n e n h u m poeta será capaz de escrever um poema longo a menos q u e seja um mestre do prosaico. 14 O que importa, em suma, é o c o n j u n t o poemático; e se esse conjunto não precisa ser — e a m i ú d e não deveria sê-lo — totalmente melodioso, deduz-se q u e o poema não é feito apenas de "palavras belas". Duvido q u e , do p o n t o de vista estritamente fonetico, uma palavra seja mais ou menos bela do q u e outra dentro de sua própria língua, pois a questão relativa à possibilidade de certas línguas não serem tão belas q u a n t o outras é, a rigor, um outro problema. As palavras feias são aquelas que não se adaptam à companhia em q u e elas próprias se encontram; há palavras q u e são feias devido à sua crueza ou ao seu anacronismo; há palavras q u e t a m b é m o são devido à sua estranheza ou rudeza (p. ex. televisão); mas não creio q u e n e n h u m a palavra de uso corrente em sua própria língua seja bela ou feia. A música de u m a palavra está, por assim dizer, num ponto de intersecção: ela emerge de sua relação, primeiro, com as palavras que imediatamente a antecedem e a ela se seguem, e indefinidamente com o restante do contexto; e de outra relação, a de seu imediato significado nesse contexto com todos os demais significados q u e haja possuído em outros contextos, com sua maior ou menor riqueza de associação. N e m todas as palavras, é óbvio, são igualmente ricas e bem aparentadas: é parte da tarefa do poeta dispor as mais ricas entre as mais pobres, nos lugares corretos, e não podemos nos permitir sobrecarregar demasiadamente um poema com aquelas primeiras, pois apenas em certos m o m e n t o s é q u e a palavra pode ser disposta para insinuar a história global de u m a língua e de uma civilização. Trata-se de uma " a l u s i v i d a d e " q u e não corresponde à maneira ou à excentricidade de um tipo peculiar de poesia; mas de u m a alusividade q u e está na natureza das palavras, e que é t a m b é m a preocupação de cada tipo de poeta. Meu propósito aqui é insistir em q u e um " p o e m a musical" é um poema q u e tem um modelo musical de som e um modelo 14 Trata-se da doutrina c o m p l e m e n t a r à do verso ou da passagem tidos como " p e dra de toque por Matthew Arnold: esse· teste para aferir a grandeza de um poeta é o m o d o c o m o ele escreve suas passagens menos intensas, ainda q u e vitais do p o n t o de vista estrutural. (N A.)

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musical de significados secundários das palavras q u e o c o m p õ e m , e também cm que esses dois modelos sào indissolúveis e únicos. E se alguém objetar que se trata apenas do som puro, divorciado do sentido, ao qual o adjetivo "musical' p o d e ser corretamente aplicado, só me cabe repetir o q u e já disse antes, ou seja, q u e o som de um poema é tanto u m a abstração do p o e m a q u a n t o do sentido. A história do verso branco ilustra dois pontos interessantes e relacionados: a dependência da linguagem e a s u r p r e e n d e n t e diferença, embora metricamente a forma seja a mesma entre o verso branco dramático e o verso branco utilizado com propósitos épicos, filosóficos, reflexivos e idílicos. A d e p e n d ê n c i a do verso em relação à linguagem é m u i t o mais direta na poesia dramática do que em qualquer outra. Na maioria dos gêneros poéticos, a necessidade que tem ela de continuar para nós idêntica à linguagem contemporânea está reduzida pela latitude que leva em conta a idiossincrasia pessoal: um p o e m a de Gerard Hopkins, 1 ^ por exemplo, pode soar razoavelmente distante do modo pelo qual eu e vocês nos expressamos — ou m e l h o r , do modo como nossos pais e avós se expressaram; mas H o p k i n s dá a impressão de que sua poesia tem a necessária fidelidade à sua maneira de pensar e conversar consigo m e s m o . Mas no verso dramático o poeta está falando em n o m e de u m a personagem após outra, por intermédio de u m a c o m p a n h i a de atores ensaiados por um diretor, e de diferentes atores em épocas diferentes: seu idioma deve abranger todas as vozes, mas precisa estar presente num nível mais p r o f u n d o do q u e o necessário q u a n d o o poeta fala somente para si mesmo. Alguns dos últimos versos de Shakespeare são muito elaborados c peculiares; no e n t a n t o , a língua subsiste, não a de u m a pessoa, mas a de um universo de pessoas. Ela toma por base a língua de três séculos atrás, mas, quando a ouvimos bem interpretada, p o d e m o s esquecer

15. Hopkins, Gerard Manley. Poeta inglês (Stratford. Essex, 1844 - D u b l i n . 1889). Membro da Companhia de Jesus, nada publicou em vida. Seus Poemi apareceram apenas em 1918 e pouco tem em c o m u m com t u d o o q u e se escreveu na poesia vitoriana de seu tempo: sào intelectualistas e gravemente trágicos, distinguindo-se pelo ineditismo métrico do sprung rhythm, q u e nos remete à poesia metafísica de Donne e outros auiores ingleses do século XVII. H o p k i n s influenciou toda a geração de Eliot. (N.T.)

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a distância que dela nos separa — como nos foi d e m o n s t r a d o mais claramente cm u m a daquelas peças, das quais Hamlet é a principal, que podem ser a d e q u a d a m e n t e produzidas com roupagem moderna. A época de Otway, 1 6 o verso branco dramático torna-se artificial e, na melhor das hipóteses, reminiscente; e q u a n d o chegamos às peças em verso dos poetas do século XIX, das quais a maior é provavelmente The Cenci}1 é difícil guardar qualquer ilusão de realidade. Quase todos os poetas do século passado puseram à prova sua habilidade ao escrever peças em verso. Essas peças, que algumas pessoas leram mais de uma vez, são respeitosamente consideradas alta poesia, e sua insipidez é habitualmente atribuída ao fato de q u e os autores, embora grandes poetas, eram amadores em teatro. Mas mesmo q u e os poetas houvessem tido maiores dons para o teatro, ou houvessem mourejado para adquirir alguma destreza, suas peças poderiam ter sido ineficazes, a menos q u e seu talento teatral e sua experiência lhes demonstrassem a necessidade de um gênero distinto de versificação. Não é primordialmente a falta de intriga, ou a falta de ação e de suspense, ou a inexistência de t u d o o q u e chamamos de 4 ' t e a t r o " , q u e torna tais peças tão apáticas: é que, acima de t u d o , seu ritmo de linguagem constitui algo q u e não podemos associar a n e n h u m ser h u m a n o , exceto a um declamador de poesia. Mesmo sob a poderosa manipulação de Dryden, o verso branco dramático revela u m a grave deterioração. Há esplêndidas passagens em All for love}8 todavia, as personagens de Dryden falam às vezes mais naturalmente nas peças heróicas q u e ele escreveu em dísticos rimados do que o fazem naquilo que poderia sugerir a mais espontànea das formas de verso branco, embora com menos naturalidade do que as personagens de Corneille e Racine em francês. As causas dessa ascensão e queda 16. Otway, Thomas D r a m a t u r g o inglês (Trotten, perro de Midhurst, Sussex. 1652 Londres, 1685), último descendente da dramaturgia elisabetana e já discípulo do teatro clássico francês. Sua obra-prima é Venice preservi(1682), de inequívoca influência shakespeariana. ( N . T . ) 17 Drama em cinco atos (1819) do poeta romàntico ingles Percy Bysshe Shelley (Field Place, perto de Horsham, Sussex, 1792 — La Spezia, 1882). ( N . T . ) 18 Escrita cm 1677. é talvez a melhor das peças de J o h n Dryden (Aldwinkle, Northamptonshire, 1631 — Londres. 1700), na qual o autor explora o tema de Antônio e Cleópatra, de Shakespeare. ( N . T . )

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de qualquer-forma de arte são sempre complexas, e p o d e m o s registrar diversos fatores q u e para isso contribuíram, ao m e s m o tempo em que parece subsistir alguma causa mais p r o f u n d a incapaz de ser formulada: eu não anteciparia n e n h u m a das razões pelas quais a prosa acabou por suplantar o verso no teatro. Mas estou certo de que uma razão pela qual o verso branco não pode agora ser utilizado no drama é q u e muita poesia não dramática, e de alta qualidade, tem sido escrita em verso branco nestes últimos três séculos. Nossa m e n t e está saturada dessas obras não dramáticas nas quais existe formalmente a mesma espécie de verso. Se pudermos conceber, com um vôo de imaginação, Milton precedendo Shakespeare, este teria tido de descobrir um meio bastante diferente daquele q u e utilizou e aperfeiçoou. Milton lidou com o verso branco de u m a maneira c o m o ninguém jamais o trabalhou ou jamais o trabalhará; e, assim fazendo, realizou mais do que q u a l q u e r o u t r o ou q u a l q u e r outra coisa por torná-lo impossível para o d r a m a , e m b o r a possamos também acreditar q u e o verso branco dramático haja esgotado seus recursos, e não tenha n e n h u m f u t u r o em q u a l q u e r caso. A rigor, Milton por pouco não tornou o verso branco impraticável para qualquer propósito por duas gerações. Foram os precursores de Wordsworth — T h o m p s o n , 1 ' Y o u n g , 2 0 Cowper — que empobreceram os primeiros esforços para resgatá-lo da degradação a q u e o reduziram no século XIX os imitadores de Milton. Há muito e variado verso branco no século XIX: o mais próximo da linguagem coloquial é o de Browning, conquanto, significativamente, mais em seus monólogos do q u e em suas peças. Tal generalização não implica n e n h u m j u l g a m e n t o q u a n t o à relativa estatura dos poetas. Simplesmente adverte para a prof u n d a diferença entre o gênero dramático e as demais espécies de verso: uma diferença na música, que é u m a diferença na telaio. T h o m p s o n , Francis. Escritor inglês (Preston. 1839 - Londres.

1907). Além

de crítico (Essay on Shelley. 1909), tornou-se conhecido c o m o poeta lírico e de ins-

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ção com a língua falada corrente. Isso conduz à minha próxima questão, ou seja, a de que a tarefa do poeta diferirá não apenas segundo sua constituição pessoal, mas t a m b é m de acordo com o período ao qual ele pertence. Em certos períodos, essa tarefa consiste em explorar as possibilidades musicais de u m a convenção estabelecida na relação entre o idioma do verso e da fala; em outros períodos, a tarefa se destina a a c o m p a n h a r as mudanças na linguagem coloquial, que são f u n d a m e n t a l m e n t e mudanças no pensamento e na sensibilidade. Esse movim e n t o (íclico exerce t a m b é m uma enorme influência sobre nosso julgamento crítico. N u m a época como a nossa, um revigoramento da dicção poética semelhante àquele q u e foi instaurado por Wordsworth (quer tenha sido ele satisfatoriamente realizado ou não) exigiu q u e nos mantivéssemos predispostos, em nossos julgamentos sobre o passado, a exagerar a importância dos inovadores à custa da reputação dos q u e a f o m e n t a v a m . Já falei o bastante, suponho, para deixar claro q u e não acredito que a tarefa do poeta seja sempre e primordialmente a de promover u m a revolução na linguagem. Não seria desejável, mesmo q u e isso fosse possível, viver n u m estado de perpétua revolução: o anseio pela p e r m a n e n t e novidade da dicção e da métrica é tão pernicioso q u a n t o u m a obstinada aderência à língua de nossos avós. Há tempos em q u e se explora e tempos em que se cultiva o território conquistado. O poeta q u e mais fez pela língua inglesa foi Shakespeare; e ele e m p r e e n d e u , cm sua breve existência, a tarefa de dois poetas. Posso apenas dizer aqui, em suma, que o desenvolvimento do verso shakespeariano pode ser dividido, grosso modo, em dois períodos. D u r a n t e o primeiro ele foi lentamente a d a p t a n d o sua forma à linguagem coloquial: assim, à época cm que escreveu Antônio e Cleopatra concebeu um meio-termo graças ao qual t u d o o q u e houvesse a ser dito por qualquer personagem flramática, quer elevado ou rasteiro, quer "poético' ou prosaico ', pudesse ser dito com beleza e naturalidade. Após atingir esse ponto, começou a elaborar. O primeiro período do poeta que principiou com

piração mistico-religiosa, como o atesta The hound of heaven (1893). ( N . T . )

Vénus e Adônis, mas que já havia, em Love's labour s lost,

20. Y o u n g , Edward

começado a perceber o que havia por ser feito vai do artificialismo à simplicidade, da rigidez à flexibilidade. As peças posteriores caminham da simplicidade para a elaboração. O

Poeta inglês (Winchester, Hants, 1683 — W e l w y n . O x f o r d -

shire, 1763). Além de d r a m a t u r g o , deixou o longo poema Nights (1742-1745), u m a meditação gravemente melancólica sobre a morte, a noite e os t ú m u l o s , de imensa influência na Europa pré-romântica. ( Ν . Ί )

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Shakespeare dos últimos t e m p o s está o c u p a d o com outras tarefas do poeta — a da experimentação para ver q u ã o e l a b o r a d a e complexa poderia se tornar a música sem p e r d e r i n t e i r a m e n t e o contato com a linguagem coloquial, e sem q u e suas p e r s o n a gens deixassem de se c o m p o r t a r c o m o seres h u m a n o s . Ε o poeta

de Cy m beline,

The Winters tale, Pericles e A tempestade.

Milton é o mestre s u p r e m o d e n t r e todos aqueles q u e se envered a m exclusivamente nessa direção. P o d e m o s s u p o r q u e Milton, ao explorar a música orquestral da língua, deixa às vezes por completo de falar um idioma social; p o d e m o s i m a g i n a r q u e Wordsworth, ao tentar redimir o i d i o m a social, ultrapassou às vezes o limite e tornou-se prosaico. Mas é q u a s e s e m p r e verd a d e q u e apenas ao irmos m u i t o longe p o d e r e m o s descobrir q u ã o longe ainda p o d e m o s ir, e m b o r a se t e n h a q u e ser de f a t o um grande poeta para q u e tais aventuras se j u s t i f i q u e m . Até aqui falei apenas da versificação, e n ã o da e s t r u t u r a poética; é t e m p o de advertir q u e a música do verso n ã o constitui um assunto passível de ser t r a t a d o verso a verso, mas u m a questão q u e se refere à totalidade do p o e m a . A p e n a s com isso em m e n t e é q u e p o d e m o s abordar a controversa q u e s t ã o do modelo formal e do verso livre. Nas peças de Shakespeare p o d e se perceber um esboço musical em cenas isoladas, esboço q u e se manifesta como um todo em suas peças mais acabadas. E uma música t a n t o de imagens q u a n t o de sons: em sua análise de diversas peças de Shakespeare, Wilson K n i g h t 2 1 d e m o n s t r o u q u a n t o o emprego de imagens recorrentes e d o m i n a n t e s , do começo ao fim de u m a peça, tem a ver com o resultado global. Uma peça de Shakespeare é u m a estrutura musical extremamente complexa; a estrutura mais facilmente assimilada é a de tormas como as do soneto, da o d e tradicional, da b a l a d a , da villanelle,J: do rondeau25 ou da sextina. 2 4 A d m i t i u - s e às vezes 21. Crítico inglcs contemporâneo q u e se consagrou ao e s t u d o dos símbolos e d a s imagens nas peças de Shakespeare. (N.T.) 22. Em port., vilanela: na França do se'eulo XVI, canção pastoril ou p o p u l a r . (Ν Τ ) 23 F.m port., rondò: composição poética com estribilho constante q u e inclui o rondò simples, com duas rimas e f o r m a d o por três estrofes, e o r o n d ò dobrado. também com duas rimas e constituído de seis q u a d r a s sobre d u a s rimas. (N T ) 24. Poema de forma fixa, geralmente em decassílabos, composto de seis sextilhas e. quase invariavelmente, um terceto, no qual cada uma das últimas palavras dos versos da primeira sextilha (não r.mados, c o m o os demais) se repete no final dos versos das estrofes seguintes, m u d a n d o , p o r e m , d e posição d e n t r o d e u m processo. (N.T.)

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q u e a poesia m o d e r n a aboliu formas como essas. T e n h o percebido indícios de q u e elas voltaram a ser utilizadas; e, na verd a d e , creio q u e a tendência ao retorno a tais modelos, inclusive aos mais complexos, é p e r m a n e n t e , assim como p e r m a n e n t e é a necessidade de um refrão ou de um coro n u m a canção p o p u lar. Algumas formas são mais apropriadas a certas línguas do que a outras, e q u a l q u e r forma pode ser mais a d e q u a d a a determinados períodos do q u e a outros. Em outro estágio, a estrofe constitui u m a formalização correta e natural da linguagem n u m modelo. Mas a estrofe — e q u a n t o mais elaborada ela for, q u a n t o mais regras forem observadas em sua correta estruturação, tanto mais s e g u r a m e n t e isso acontece —, t e n d e a tornarse regular para o idioma no m o m e n t o de sua perfeição. Ela perde r a p i d a m e n t e o contato com a linguagem coloquial flut u a n t e , sendo d o m i n a d a pela perspectiva mental de u m a geração passada; cai em descrédito q u a n d o utilizada de forma solene por escritores q u e , não t e n d o em si n e n h u m instinto para desenvolver u m a f o r m a , a ela recorrem para verter seus s e n t i m e n t o s liquefeitos n u m m o l d e pré-fabricado n o qual p r e t e n d e m e m vão introduzi-los. O q u e admiramos n u m soneto perfeito não é tanto a habilidade do autor em adaptar-se ao m o d e l o , mas a perícia e a força através das quais h a r m o n i z a tal m o d e l o àquilo que p r e t e n d e dizer. Sem essa adequação, q u e d e p e n d e t a n t o da época q u a n t o do génio individual, o restante se resume, na melhor das hipóteses, ao virtuosismo; e o n d e o e l e m e n t o musical é o único e l e m e n t o , ele t a m b é m desaparece. As formas elaboradas retornam, mas há períodos d u r a n t e os quais elas são deixadas de lado. Q u a n t o ao "verso livre", expressei meu p o n t o de vista há vinte e cinco anos ao dizer q u e n e n h u m verso é livre para alguém q u e deseja executar bem seu ofício. N i n g u é m m e l h o r do q u e cu tem razões para saber q u e boa parte da má prosa foi escrita sob a d e n o m i n a ç ã o de verso livre, e m b o r a me pareça indiferente q u e seus autores h a j a m escrito má prosa ou m a u verso, ou mau verso nesse ou naquele estilo. Mas s o m e n t e um mau poeta poderia acolher o verso livre e n q u a n t o libertação da forma. Houve u m a rebelião contra a forma morta, e u m a preparação para a nova forma ou para u m a renovação da antiga; trata-se de u m a insistência sobre a u n i d a d e interior q u e é única

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para cada poema, contra a u n i d a d e exterior q u e é característica. O poema surge anteriormente à forma, no sentido de q u e a forma emerge da tentativa de alguém dizer algo, precisamente como um sistema de métrica constitui apenas a formulação das identidades nos ritmos de u m a sucessão de poetas influenciados uns pelos outros. As formas existem para serem destruídas e refeitas; mas creio que qualquer língua, desde q u e permaneça a m e s m a , impõe suas leis e restrições e concede sua própria autorização, ditando seus ritmos próprios de linguagem e padrões fônicos. E uma língua está sempre se t r a n s f o r m a n d o ; seus desenvolvimentos vocabulares, sintáticos, de pronúncia e de acentuação — e até mesmo, ao longo dos tempos, sua deterioração — devem ser aceitos e aproveitados pelo poeta. Ele t e m , por sua vez, o privilégio de contribuir para o desenvolvimento e a m a n u tenção da qualidade, a aptidão lingüística para expressar um amplo espectro (e uma sutil gradação) do s e n t i m e n t o e da emoção; sua tarefa é, a um só t e m p o , reagir à m u d a n ç a e torná-la consciente, e lutar contra a degradação abaixo dos padrões q u e recebeu no passado. As liberdades q u e ele p o d e tomar as t o m a por amor à ordem. Q u a n t o ao estágio contemporâneo em q u e o próprio verso se encontra, devo deixar q u e vocês o julguem por si mesmos. Suponho estarmos de acordo em q u e as obras dos últimos vinte e cinco anos merecem de algum m o d o ser classificadas, e sê-lo-ão como algo que pertence a um período de busca por u m a adequada linguagem coloquial moderna. l e m o s ainda um longo caminho a percorrer no que se refere à invenção de um verso apropriado ao teatro, um instrumento graças ao qual nos tornemos capazes de ouvir a linguagem dos seres h u m a n o s contemporâneos, graças ao qual as personagens dramáticas possam expressar a mais pura poesia sem retórica e graças ao qual possam transmitir a mensagem mais trivial sem n e n h u m absurdo. Mas quando alcançamos um ponto no qual o idioma poético pode ser estabilizado, é possível que advenha então um período de elaboração musical. Penso que um poeta pode lucrar m u i t o com o estudo da música: não sei q u a n t o de conhecimento técnico da forma musical é desejável adquirir, pois não d i s p o n h o desse conhecimento. Mas creio que as propriedades da música

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que mais interessam ao poeta são as da noção de ritmo e de estrutura. Julgo que seria possível para um poeta trabalhar muito intimamente com analogias musicais: o resultado poderia ser um produto artificial, mas sei que um p o e m a , ou u m a passagem de um poema, pode tender a definir-se inicialmente como um ritmo particular antes de alcançar sua expressão verbal, e que esse ritmo pode levar ao nascimento da idéia e da imagem; e não creio que essa seja u m a experiência restrita a mim mesmo. O uso de temas recorrentes é natural tanto na poesia q u a n t o na música. Há no verso possibilidades q u e comportam certa analogia com o desenvolvimento de um tema por diferentes grupos de instrumentos: há n u m poema possibilidades de transições comparáveis aos distintos movimentos de uma sinfonia ou de um quarteto; há possibilidades de arranjo contrapontístico com relação ao tema.2** E n u m a sala de concerto, mais do que n u m a casa de ópera, que a matriz de um poema pode ganhar vida. Não posso dizer mais do q u e isso, mas convém deixar aqui o assunto aberto àqueles q u e tiveram u m a iniciação musical. Entretanto, caberia recordar-lhes ainda duas tarefas da poesia, as duas direções em q u e a língua deve ser trabalhada em tempos distintos: assim, por mais q u e se possa levar adiante a elaboração musical, devemos aguardar algum t e m p o até que a poesia seja outra vez chamada de volta à linguagem. Os mesmos problemas se apresentam, e sempre sob novas formas; e a poesia tem sempre diante de si, como dizia F. S. Oliver~'6 da política, u m a "aventura infinita' a cumprir.

25. C u m p r e lembrar aqui que uma das maiores, senào a maior, dentre todas as criações poéticas de Eliot, Four quartets (Quatro quartetos, 1943), recorre, em sua estrutura, ao esquema da sonata-forma, rigidamente distribuída em cinco movimenros ( N . T . ) 2í>. Oliver, F S H o m e m ile negócios e pensador ingles (1864-1934) que se dedicou ao estudo dos problemas políticos. Deixou u m a obra sobre Horace W a l p o l e ìht endless adventure e cartas sobre a Primeira Guerra Mundial (The anvil of war (N.T.)

O Q U E F POESIA M E N O R ?

o QUE É POESIA MENOR? 1

Não me disponho a oferecer, n e m no princípio n e m no fim uma definição de 44 poesia m e n o r " . O perigo de u m a delinição como essa e que ela poderia nos levar à expectativa de que chegássemos a um acordo definitivo sobre quais são os poetas " m a i o r e s " e os poetas " m e n o r e s " . Portanto, se tentássemos estabelecer duas listas, uma de poetas maiores e outra de poetas menores da literatura inglesa, descobriríamos estar de acordo com relação a alguns poucos poetas, q u e ali haveria mais n o m e s acerca dos quais discordaríamos e q u e duas pessoas jamais elaborariam a mesma lista: e qual seria e n t ã o a utilidade de nossa definição? O que julgo podermos fazer, todavia, e nos inteirarmos do fato de que, q u a n d o definimos um poeta c o m o m e n o r , estamos dizendo coisas distintas em épocas distintas; p o d e m o s clarear um pouco nossa mente sobre o q u e significam tais distinções, e evitar assim a confusão e o m a l - e n t e n d i d o . C o n t i n u a r e mos certamente a conceituar várias coisas com o m e s m o t e r m o , de modo que devemos, como no caso de muitas outras palavras, tirar daí o melhor partido, e não tentar introduzir coisa alguma à força numa definição. O q u e me c o m p e t e é descartar

1. Conferência pronunciada diante da Associação dos Letrados de Swansea e do Oeste do País de Gales em Swansea, em s e t e m b r o de 1944. Posteriormente publi-

cada em The Sewanee Review. ( N A . )

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qualquer associação depreciativa vinculada à expressão "poesia m e n o r " , j u n t a m e n t e com a sugestão de q u e a poesia menor é mais fácil de 1er, ou vale menos a pena ser lida, do q u e a " p o esia m a i o r " . A pergunta é simples: quais são os gêneros de poesia menor, e por q u e deveríamos lê-los? A abordagem mais direta, s u p o n h o , é considerar os diversos gêneros de antologias poéticas, pois u m a associação da expressão poesia menor faz com que esta signifique "a espécie de poemas que só lemos em antologias". E, casualmente, sinto-me satisfeito com a oportunidade de dizer algo sobre os usos das antologias, pois, se os compreendermos, poderemos t a m b é m nos precaver contra seus perigos, u m a vez q u e existem amantes de poesia que p o d e m ser definidos como viciados em antologias e que não conseguem 1er poesia a não ser desse modo. Naturalmente, o valor primordial das antologias, como de toda poesia, repousa no fato de serem elas capazes de proporcionar prazer, mas, além disso, deveriam servir a diversos propósitos. Uma espécie de antologia, que se justifica por si m e s m a , é aquela que inclui poemas de autores jovens, aqueles q u e permanecem inéditos ou cujos livros não são ainda suficientemente conhecidos. Tais coletâneas têm um valor particular tanto para poetas q u a n t o para leitores, ou porque apresentam a obra de um grupo de poetas q u e possuem algo em c o m u m , ou porque a única u n i d a d e de seu conteúdo corresponde àquela q u e é dada pelo tato de todos os poetas pertencerem à mesma geração literária. Para um poeta jovem é desejável ter vários estágios de publicidade antes de ter um p e q u e n o volume todo para si. Primeiro, os periódicos: não os que são bem conhecidos e circulam em âmbito nacional — a única vantagem, para o poeta jovem, de neles figurar é o provável guinéu (ou guinéus) q u e poderá receber pela publicação —, mas as pequenas revistas, dedicadas ao verso contemporâneo e lançadas por jovens editores. Essas pequenas revistas parecem a m i ú d e circular apenas entre os colaboradores c os pretensos colaboradores; com uma circulação habitualmente precária, aparecem a intervalos irregulares, e sua existência é efêmera, embora sua importância coletiva seja totalmente desproporcional à obscuridade em que lutam para sobreviver. Além do benefício q u e p o d e m trazer,

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ensejando experiência aos futuros editores literários e bons editores literários têm um i m p o r t a n t e papel a d e s e m p e n h a r numa literatura saudável —, tais publicações d ã o ao poeta a vantagem de ver sua obra impressa, de compará-la com a de seus também obscuros (ou ligeiramente mais conhecidos) contemporâneos e de mobilizar a atenção e a crítica daqueles q u e mais provavelmente despertam simpatia graças a seu estilo de escrever Pois um poeta deve conquistar um espaço para si mesmo entre seus pares e no seio de sua própria geração antes de atrair um público mais a m p l o e mais velho. Para as pessoas que estão interessadas em publicar poesia, essas p e q u e n a s revistas proporcionam t a m b é m um meio de m a n t e r sob os olhos aqueles que se iniciam e acompanhar de perto seus progressos. ( omo passo seguinte, um g r u p i n h o de jovens escritores, com certas afinidades ou recíprocas simpatias regionais, p o d e j u n t o produzir um volume, l ais grupos f r e q ü e n t e m e n t e se a g l u t i n a m graças à formulação de um c o n j u n t o de regras ou princípios, aos quais em geral ninguém adere; com o correr do t e m p o , os grupos se desfazem, os integrantes mais fracos desaparecem e os mais fortes desenvolvem seu estilo pessoal. Mas o g r u p o , e o grupo da antologia atendem a um propósito proveitoso: os poetas jovens normalmente não despertam m u i t a atenção — e na verdade é melhor que não a t e n h a m do público em geral, mas necessitam de apoio e de avaliação crítica recíprocas, e de algumas outras pessoas. E, par último, há antologias mais abrangentes do verso novo, quase sempre compiladas pelos mais eminentes editores jovens; têm elas t a m b é m o mérito de dar ao leitor de poesia uma noção do q u e se está f a z e n d o , u m a oportunidade de estudar as mudanças na temática e no estilo, sem que haja a necessidade de recorrer a um grande n ú m e r o de periódicos ou volumes isolados; e servem para dirigir, mais adiante, a atenção desses leitores para a evolução de alguns poetas que lhes podem parecer promissores. Mas m e s m o tais coletâneas não atingem o leitor em geral, q u e , via de regra, não ouvirá talar de n e n h u m desses poetas até q u e estes p r o d u z a m vários volumes e, conseqüentemente, passem a ser incluídos em outras antologias que cubram um maior lapso de t e m p o . Quando o leitor dá uma olhada n u m desses livros, pode julgálo pelos padrões que não deveriam ser aplicados: considera

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uma promessa como se fosse uma realização madura, e julga a antologia, não pelos poucos poemas mais dignos nela incluídos, mas, na melhor das hipóteses, pela média. As antologias q u e dispõem de mais ampla circulação são

naturalmente aquelas que, como o Oxford book of English verse J abrangem a totalidade da literatura inglesa até a geração mais recente; ou aquelas que se especializam n u m d e t e r m i n a d o período do passado; ou, ainda, as que abrangem a história de alguma parte da poesia inglesa, ou, afinal, as q u e se restringem à poesia moderna' das duas ou três últimas gerações, incluindo poetas vivos q u e já conquistaram certa reputação. Estas últimas, é claro, atendem t a m b é m a algumas das exigências da antologia estritamente contemporânea. Mas, limitando-nos à conveniência dessas antologias q u e incluem apenas a obra de poetas mortos, cabe-nos perguntar quais os propósitos q u e p r e t e n d e m elas alcançar para atender a seus leitores.

Não há dúvida de que The golden treasury3 ou o Oxford book proporcionaram a muita gente o acesso a Milton, a Wordsworth ou a Shelley (não a Shakespeare, mas não esperemos adquirir conhecimento sobre um poeta dramático através de antologias). Não me caberia afirmar, entretanto, q u e q u e m quer q u e haja lido, e apreciado, tais poetas, ou meia dúzia de outros, n u m a antologia, e não tenha ainda a curiosidade e o apetite de devorar suas obras completas, ou pelo menos por elas ter corrido os olhos para ver o q u e de outro m o d o poderia gostar não me caberia afirmar, repito, q u e essa pessoa seja verdadeiramente um a m a n t e de poesia. O mérito das antologias ao nos introduzir à obra dos maiores poetas é m u i t o efêmero; e n e n h u m de nós irá consultar antologias em busca de seleções desses poetas, embora elas continuem a ser úteis. A antologia t a m b é m nos ajuda a descobrir se não há alguns poetas menores cuja obra nos caberia conhecer melhor — poetas

2 Publicada cm 1900 c 1939. esta antologia, organizada por Sir Arthur QuillerCouch, é notável q u a n t o à sua abrangência relativamente a períodos histórico-literários e à sua organic idade como obra de consulta. ( N . T . ) 3. O título completo desta coletânea é Golden treasure of English songs ami lyrics (1861), de Francis Turner Palgrave Trata-se de u m a antologia-padrão da poesia lirica do período vitoriano e, embora reúna várias gerações de autores, está dividida em volumes por assunto. ( N . T . )

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nue não figurem tão conspicuamente em n e n h u m a história da literatura que possam não ter influenciado o curso da literatura poetas cuja obra não é f u n d a m e n t a l para n e n h u m esquema abstrato de educação literária, mas q u e p o d e m ter um forte apelo pessoal para certos leitores. Na verdade, eu tenderia a duvidar da autenticidade do amor à poesia por parte de qualquer leitor que não tivesse uma ou mais predileções pessoais pela obra de algum poeta sem grande importância histórica: caber-me-ia suspeitar de que a pessoa q u e só gostasse de poetas que os livros de história concordam em indicar c o m o os mais importantes não passasse de um e s t u d a n t e consciencioso, participando com muito pouco de si m e s m o em suas apreciações. Esse poeta pode não ser muito importante, diriam vexes dcsatiadoramente, mas sua obra é boa para mim. Trata-se em boa parte de uma questão de q u a n d o e c o m o a l g u é m a d q u i r e o conhecimento de tal poesia. N u m a biblioteca familiar p o d e se encontrar um livro q u e ninguém adquiriu à época em q u e foi publicado, porque dele muito se falou, e q u e n i n g u é m leu. Foi assim que me deparei, q u a n d o criança, com um p o e m a pelo qual nutri uma fervorosa afeição: The light of Asta, de Sir Edwin Arnold. 4 Trata-se de um longo p o e m a épico sobre a vida de Buda; devo ter alimentado u m a simpatia latente pelo tema, pois o li com prazer do principio ao f i m , e mais de u m a vez. Nunca tive a curiosidade de saber nada sobre o autor, mas ainda hoje me parece um bom p o e m a , e q u a n d o conheço q u e m quer que o haja lido e apreciado, sinto-me atraído por essa pessoa. Via de regra, não mais se encontram nas antologias extratos de epopéias esquecidas; não obstante, é sempre possível que numa antologia seja alguém surpreendido por a l g u m a composição de um autor obscuro, capaz de levar a um íntimo conhecimento da obra de algum poeta de q u e n i n g u é m mais parece gostar, ou que ninguém mais lê. Assim como a antologia pode nos dar a conhecer poetas de pouca importância, mas de cuja obra alguém talvez possa gostar, é certo que uma boa antologia pode nos trazer um pro-

4. Este poema, cujo título completo é lhe light of Aua, or the great renunciation (Mahabhishkramana), foi escrito em 1879 pelo poeta e jornalista inglês Sir Edwin Arnold (1832-1904). tendo gozado de extraordinário prestígio em sua época. ( N . T . )

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ve i toso conhecimento de outros poetas de grande importância, mas de q u e m não gostamos. Há somente duas razões para ler-

mos em sua totalidade The faery queen** ou Prelude, de Wordsworth. 6 Uma delas é q u e gostamos de lê-los: c gostarmos de ambos os poemas é um ótimo sinal. Mas se não gostarmos, a única solução é nos tornarmos um professor de literatura ou um crítico literário, e sermos obrigados a conhecer esses poemas. Todavia, Spenser e Wordsworth são ambos m u i t o importantes na história da literatura inglesa porque toda a outra poesia que compreendemos melhor resulta do fato de conhecê-los, de m o d o q u e todos devemos saber algo sobre eles. Não existem muitas antologias que forneçam trechos substanciais de poemas longos; é muito útil, entretanto, a que foi compilada por Charles Williams, q u e teve a singular peculiaridade de realmente apreciar toda sorte de poemas longos q u e ninguém mais lê. Mas até mesmo uma boa antologia constituída de peças curtas pode proporcionar algum conhecimento, que vale a pena adquirir, acerca daqueles poetas de que não gostamos. E da mesma forma que todos devem ter seu gosto pessoal por certa poesia à qual outras pessoas não dão valor, assim t a m b é m , desconfio, todos têm um ponto cego relativamente à obra de um ou mais poetas que devem ser reconhecidos como grandes. Uma outra utilidade da antologia é aquela que só pode ser proporcionada caso o organizador não seja apenas alguém de muita leitura, mas um h o m e m de gosto muito sensível. Há vários poetas que são em geral enfadonhos, mas que têm iluminações ocasionais. A maioria de nós não dispõe de t e m p o para 1er do princípio ao fim as obras de competentes e ilustres poetas enfadonhos, especialmente os de outra época, para pinçar os bons trechinhos que nos interessam; c raramente isso valeria a pena, mesmo q u e dispuséssemos de tempo. Há um século ou mais, todo amante de poesia devorava um novo livro de 5 E a obra-prima de E d m u n d Spenser, poeta inglês (Londres, c. 1552 — id. 1599). Escrita entre 1590 e 1596. essa epopeia, a m b i e n t a d a na Irlanda e prevista para doze livros, ficou incompleta, dela restando apenas seis livros e dois cantos do sétimo. O poema é todo alegórico, revelando visível influência de Virgílio. Ariosto e Tasso. (N.T.) 6 Longo p o e m a , escrito entre 1799 e 1805. do poeta inglês William Wordsworth ( C o c k e r m o u t h , C u m b e r l a n d , 1770 — Grasmere. 1850J, em q u e este aborda a sua infância, e q u e só foi publicado após a morte do autor. ( N . T . )

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Tom Moore - tão logo era este publicado: q u e m nos dias de hoje terá lido inteiro sequer Lalla Rookbi Southey* foi poeta laureado e, conseqüentemente, escreveu epopéias: duvido que alguém haja lido Thalaba, ou mesmo The curse of Kehavia, q u a n d o criança, e g u a r d a d o por eles algo da estima que tenho por The light of Asia. Q u e r o saber quantas pessoas chegaram a 1er Gebir\ e no e n t a n t o Landor, 9 o autor desse nobre poema longo, foi na verdade um habílimo poeta. Há muitos poemas longos, entretanto, q u e parecem ter sido legíveis q u a n d o publicados pela primeira vez, mas q u e agora ninguém lê — embora eu desconfie de q u e , hoje em dia, q u a n d o a prosa de ficção supre a necessidade que era preenchida, para muitos leitores, pelos romances em verso de Scott, Byron e Moore, algumas pessoas ainda leiam um poema m u i t o longo mesmo que seja recém-saído do prelo. Assim, as antologias e seletas são proveitosas, pois ninguém dispõe de t e m p o para 1er t u d o e porque há poemas dos quais apenas algumas passagens continuam vivas. A antologia pode ter u m a outra utilidade q u e , de acordo com a linha de pensamento que estou seguindo, poderíamos aqui examinar. Essa utilidade se relaciona ao interesse da comparação, da habilidade em estabelecer, n u m espaço exíguo, u m a sinopse da evolução da poesia; e se é m u i t o o q u e podemos aprender com a leitura de toda a obra de um poeta, é muito o que aprendemos ao passar de um poeta para outro. Transitar de um lado para o outro entre u m a balada fronteiriça, uma lírica elisabetana, um poema lírico de Blake ou de Shelley e um monólogo de Browning é ser capaz de ter experiências emocionais, bem como temas para reflexão, q u e a concentração da atenção sobre um poeta não pode proporcionar. Assim como num jantar bem organizado o que se aprecia não é pro-

priamente a q u a n t i d a d e de iguarias, mas a combinação de coisas boas, há também prazeres poéticos a serem degustados; e vários poemas muito diferentes, de autores de t e m p e r a m e n t o s distintos e de distintas épocas, q u a n d o lidos juntos, p o d e m proporcionar o sabor peculiar que lhes é recíproco, ganhando-se em um deles o que se perde nos outros. Para fruir esse prazer precisamos não apenas de uma boa antologia, mas t a m b é m de alguma prática de como utilizá-la. Voltarei agora à questão da qual p o d e m vocês imaginar que me extraviei. Embora não sejam apenas os poetas menores os q u e se encontram incluídos em antologias, cabe-nos julgar como poetas menores os que somente lemos cm antologias, l ive de fazer uma advertência com relação a isso, assegurando que para cada leitor de poesia deveriam existir alguns poetas menores q u e lhe justificassem o esforço de lê-los por completo. Mas além desse caso, encontramos mais de um tipo de poeta menor. Há, é claro, poetas q u e escreveram exatamente um ou apenas alguns bons poemas, de m o d o que parece não haver razão para que ninguém vá além dos limites da antologia. Ε o caso, por exemplo, de Arthur O'Shaughnessy, 1 0 cujo poema que começa com o verso Somos os criadores da m ú s i c a " não figura em n e n h u m a antologia que inclua as produções poéticas do fim do século XIX. T a m b é m será o caso, para alguns leitores, embora não todos, de Ernest Dowson 1 1 ou de J o h n Davidson. 1 2 Mas é de fato muito reduzido o n ú m e r o de poetas dos quais podemos dizer ser verdade para todos os leitores que hajam deixado apenas um ou dois poemas particulares dignos de ser lidos: as probabilidades são de que se um poeta houvesse escrito um bom poema, este constituiria, no conjunto de sua obra, algo digno de ser lido por, pelo menos, algumas pessoas. Deixando de lado esses poucos leitores, descobrimos que quase sem-

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7. Moore, Thomas. Poeta irlandês ( D u b l i n . 1779 — Sloperton. 1852). autor de Irish melodies (1808-1834) e do longo p o e m a orientalista Lallj Rookh (1817) Foi grande amigo de Byron na Itália. ( N . T . )

iti

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O'Shaughnessy. Arthur. Poeta inglês (1844-1881) amigo de D a n t e Gabriel

Rossetti. Autor maneirista, mais atento à melodia do verso. ( N . T . )

8. Southey, Robert. Poeta e historiador inglês (Bristol, 1^-4 Kerwick, 184 5). que formou com Wordsworth e Coleridge o g r u p o dos l^ike Poets Os p o e m a v n a r rativas Thalaba e The curse of Kehama foram publicados, respectivamente, em 1801 e 1810. ( N . T . )

11. Dowson. Einest. Poeta inglês (Lee. K e n t , 1867 — Cat f o r d , Lcwisham. 1900). Influenciado por Verlaine e Swinburne, deixou dois volumes de poemas: Verses (1896) e Decora/ions (1899). ( N . T . )

9. Landor. Walter Savage. Escritor inglês (Warwick. F 7 5 Florença. 1864) q u e permaneceu fiel ao classicismo em pleno período romântico, c o m o se pode ver em suas Imaginary conversations (1824-1846). Gehn data de 1798 (N I )

12 Davidson, J o h n . Poeta escocês (Barrhead. 1857 Pezance, C o r n u a l h a , 1909). Celebrizou-se pelo poema anarquista Fleet street eclogues (1893), escrito em métrica tradicional. ( N . T . )

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pre julgamos o poeta menor como aquele q u e só escreveu poemas curtos. Mas poderíamos às vezes falar igualmente de Southey e Landor, e de um p u n h a d o de escritores dos séculos XVIII C XIX, t a m b é m como poetas menores, embora t e n h a m estes deixado poemas de dimensões mais grandiosas; c penso que hoje em dia sejam poucos, pelo menos entre os leitores mais jovens, os que considerariam D o n n e um poeta m e n o r , mesmo q u e ele jamais houvesse escrito sátiras e epístolas, ou Blake como de idêntica estirpe, ainda que nunca houvesse escrito seus Livros Proféticos. Assim devemos julgar como poetas menores, até certo ponto, alguns autores cuja reputação, tal como se afigura, se deve a poemas muito longos; e como poetas maiores, aqueles q u e escreveram somente poemas curtos. Pareceria mais simples à primeira vista considerar os autores menores de epopéias como secundários. ou ainda, mais rigorosamente, como grandes poetas malogrados. Eles fracassaram, sem dúvida, no sentido em q u e n i n g u é m mais lê seus poemas longos; são eles secundários na m e d i d a em q u e julgamos os poemas longos de acordo com padrões m u i t o elevados. Não sentimos que um poema longo valha o esforço de ser lido a menos q u e seja, em seu gênero, tão bom q u a n t o The faery queen, O

menor. O q u e dizer sobre as Seasons de T h o m s o n 1 6 e a Task de Cowpcr? 1 7 São ambos poemas longos q u e , se o interesse do leitor se orienta em outras direções, esse mesmo leitor p o d e ficar satisfeito ao conhecê-lo apenas por meio de extratos; mas eu não admitiria que são poemas menores, ou q u e n e n h u m a parte, de um ou de outro, seja tão boa q u a n t o o c o n j u n t o . O q u e dizer de Aurora Leigh,18 da senhora Browning, ou d a q u e l e longo poema de George Eliot cujo título não me recordo? 1 9 Sc tivermos dificuldade em separar os autores de poemas longos em poetas maiores e menores, não nos caberá n e n h u m a decisão mais fácil no que se refere a autores de poemas curtos. Um caso muito interessante é o de George Herbert. 2 0 Todos nós conhecemos alguns de seus poemas, que aparecem cada vez mais em antologias, mas q u a n d o percorremos seus poemas reunidos, surpreendemo-nos ao descobrir que esses poemas nos comovem tanto q u a n t o aqueles que encontramos nas antologias. Mas The temple é algo mais do que um acervo de poemas religiosos escritos por um autor: ele é, como o título nos leva a supor, um livro construído segundo um plano; e q u a n d o começamos a conhecer melhor os poemas de Herbert, chegamos à conclusão de que há algo que extraímos do livro como um todo, que é mais do que a soma de suas partes. Aquilo q u e , à primeira vista, tem a aparência de uma sucessão de belos mas isolados poemas líricos acaba por manifestar-se como u m a contínua

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Paraíso perdido,13 Prelude, Don JuanM ou Hyperion.1

além

de outros poemas longos do mesmo nível. Todavia, consideramos que alguns desses poemas secundários sejam capazes de ser lidos por certas pessoas. Ademais, advertimos q u e não podemos simplesmente dividir os poemas longos em um pequeno número de obras-primas e um grande n ú m e r o daqueles com os quais não precisamos nos aborrecer. Entre esses poemas aos quais acabo de me referir, e u m a estimável obra menor como The light of Asia, há toda sorte de poemas longos de gêneros diferentes c de vários graus de importância, de m o d o q u e não podemos traçar n e n h u m a linha definitiva entre o maior e o 13. A obra-prima do poeta inglcs J o h n Milton (Londres, 1608 id. 1674), publicada em 1667 e à qual se segue, q u a t r o anos depois, Paraíso reconquistado Tratase do maior poema épico da literatura inglesa. (N 1 ) 14. Poema do poeta inglês George G o r d o n Byron (Londres, 1788 1824), publicado em 1819. ( N . T . ) 15. Poema do poeta inglês J o h n Keats (Londres. 1795 cm 1820. ( N . T . )

- Missolonghi,

Roma. 1821). publicado

16. Este longo p o e m a descritivo, escrito entre 1726 e 1730. é da autoria do poera inglês J a m e s T h o m s o n ( E d n a m . Roxburgh. 1700 — Kew, perro de Londres, 1748). um dos discípulos de Alexander Pope. A obra pertence à literatura pré-romântica e toi traduzida na época em quase toda a Europa. (Ν T.) 17 Trata-se da mais conhecida dentre todas as obras do poeta inglês William Cowpcr (Great Bcrkhampstead, Hertfordshire. 1731 — Eats D e r e h a m , Norfolk. 1800). É um poema descritivo em estilo classicista, com versos de acentuada eloqüência. (N.T.) 18. Longo poema da poetisa e ficcionista inglesa Elizabeth Barret Browning (Coxhoc Hall, D u r h a m . 1806 Florença. 1861). casada com Robert Browning. A obra foi publicada em 1857 (N.T.) 19. Muito provavelmente. Eliot alude aqui a The legend of Jubat (1874), da romancista inglesa George Eliot (Arbury Farm. 1819 — Londres, 1880), p s e u d ó n i m o de Mary Evans. ( N . T . ) 20. Herbert, George. Poeta inglês (Castelo de Montgomery, 1593 — Bemerton, perto de Salisbury, 1633). Embora tenha pertencido ao g r u p o dos " p o e t a s metafísicos' , jamais sacrificou sua poesia aos abusos metafóricos do barroco. O p o e m a The temple (1633) é considerado u m a das obras-primas da poesia inglesa. Devese sua reabilitação, assim como a dos demais " m e t a f í s i c o s " , a T. S. Eliot. ( N . T . )

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meditação religiosa dentro de uma estrutura intelectual; e o livro como um todo nos revela o espírito devoto anglicano da primeira metade do século XVII. E mais: começamos a compreender melhor Herbert, e sentimo-nos recompensados pelo esforço, se conhecermos algo sobre os escritores teológicos ingleses dessa época; e alguma coisa sobre os escritores místicos ingleses do século XIV; e qualquer coisa de alguns outros poetas q u e lhe foram contemporâneos — D o n n e , 2 1 Vaughan, 2 2 Trahcrne J —, e se viermos a perceber algo em c o m u m entre eles e sua origem e formação galesa; e, finalmente, se conhecermos alguma coisa sobre Herbert cm comparação com a típica devoção anglicana que ele expressa, com o mais continental, e romano, sentimento religioso de seu contemporâneo Richard Crashaw. 2 4 Assim, ao final, não posso, de minha parte, admitir q u e Herbert seja chamado de " p o e t a m e n o r " , pois não é de alguns poemas prediletos que me recordo ao pensar nele, mas de toda a sua obra. Ora, compare-se Herbert a dois outros poetas, um algo mais velho do que ele e outro de u m a geração anterior, mas ambos ilustríssimos autores de poemas líricos. Dos poemas de Robert Herrick,^ ainda um clérigo anglicano, mas h o m e m de 21. D o n n e . J o h n rado o maior de c o m o "o primeiro tes dos reis J a i m e tra as convenções

Poeta e orador sacro inglês (Londres. 15^2 id. 1631 ), considetodos os " p o e t a s metafísico* e reconhecido por Ben J o h n s o n poeta do m u n d o em certos aspectos Pregador favorito das corI e Carlos I, D o n n e foi um notável inovador q u e se rebelou conpoéticas do renascimento petrarqui^ta D e n t r e suas m u i t a s obras,

lembrem-se Elegia, songs and soneti. Poems e Divine poems, todas reeditadas no século X X . ( N . T . ) 22 Vaughan. Henry Poeta inglês ( N e w t o n Saint Briget. Bretknochshire. 1622 — Seethrog. 1695) Sob influência de Herbert, escreveu p o e m a s de f u n d a inspiração religiosa e acentuados traços "metafísicos , c o m o se pode ver em Sílex suntil lans (1650 e 1655). ( N . T . ) 23. Trahcrne. Thomas. Poeta inglês (Herefordshire. 1637? T e d d m g t o n , Middlesex, 1674), pertencente ao g r u p o dos 'metafísicos' . Publicou Roman forgeries (1673) e Christian ethics (1675). ( N . T . ) 24. Crashaw. Richard Poeta inglês (Londres, c. 1613 Loretto. Itália, 1649). Após converter-se ao catolicismo, passou a viver na Itália, o n d e publicou poemas religiosos que se incluem entre os melhores da poesia "metafísica . em estilo barroco extremamente o r n a m e n t a d o e e l o q ü e n t e , c o m o é o caso do p o e m a " l h e flaming h e a r t " . Seus poemas a b r a n g e m duas edições: Steps to the temple e Carmen Deo nostro. A edição definitiva, sob o título de Poems, é de 1957. ( Ν . Τ ) 25. Herrick, Robert. Poeta inglês (Londres, 1591 Dean Prior, Devonshire, 1674), pertencente ao g r u p o dos "metafísicos e considerado o maior anacreóntico da poesia inglesa. Seus poemas estão reunidos em Hespendes (1648), c arac ter izando-se pela perfeição da forma e do estilo, bem como por sua extrema musicalidade. ( N . T . )

O Q U E E POESIA M E N O R ?

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temperamento muito diferente, extraímos t a m b é m o sentimento de uma personalidade uniforme, e acabamos por conhecer melhor essa personalidade graças à leitura de todos os seus poemas — e ao lermos todos os seus poemas deleitamo-nos sobret u d o com aqueles de q u e mais gostamos. Mas, cm primeiro lugar, não há semelhante propósito consciente contínuo nos poemas de Herrick; trata-se de um h o m e m mais estritamente espomâneo e inconsciente, q u e escreve seus poemas q u a n d o a imaginação dele se apodera; e, em segundo lugar, a personalidade que neles se manifesta é menos i n c o m u m : na verdade, seu encanto reside cm sua mediania. Relativamente, gostamos muito mais dele a partir de um poema do que de Herbert, se nos restringirmos t a m b é m à leitura de um único poema deste; e mais: há algo mais no conjunto do q u e nas partes q u e o constituem. Consideremos em seguida Thomas C a m p i o n , o autor elisabetano de canções. Caberia dizer que, dentro de seus limites, não existe artesão mais competente do q u e C a m p i o n em toda a poesia inglesa. Admito que, para compreender integralmente seus poemas, há certas coisas q u e se deveriam saber: Campion foi um músico e escreveu suas canções para serem cantadas. Apreciamos melhor seus poemas se possuirmos algum conhecimento da música da época dos Tudor e dos instrumentos para os quais ela foi composta; gostamos mais deles se gostarmos dessa música; e não desejamos apenas lê-los, mas ouvirmos alguns deles cantados, e cantados com a própria música de Campion. Mas não precisamos igualmente conhecer algumas das coisas que, no caso de George Herbert, nos a j u d e m a compreende-lo c estimá-lo melhor; não precisamos nos preocupar com o que ele pensa, ou com os livros q u e leu, ou com suas raízes étnicas ou sua personalidade. O q u e sentimos, ao transitarmos daqueles seus poemas que lemos nas antologias para suas obras completas, é um prazer repetido, um júbilo diante de novas belezas e novas variações técnicas, mas não uma impressão global. Não podemos dizer, em seu caso, que o conjunto é mais do que a soma das partes. Não digo que até mesmo esse teste — que, de qualquer modo, alguém deve aplicar a si próprio, com resultados diversos , caso o conjunto constitua mais do que a soma das partes, seja em si um critério satisfatório para distinguir entre um

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O QUE É POESIA MENOR?

poeta maior e um poeta m e n o r . Nada é tão simples assim; e embora não percebamos, após a leitura de C a m p i o n , q u e compreendemos o h o m e m C a m p i o n , como o sentimos após 1er Herrick, ainda que em outros níveis, porque ele é acima de t u d o o mais notável artesão, eu, de m i n h a parte, julgaria C a m p i o n como um poeta mais importante do q u e Herrick, embora m u i t o abaixo de Herbert. T u d o o q u e afirmei é q u e uma obra q u e consiste em um acervo de poemas curtos — mesmo em se tratando de poemas q u e , considerados isoladamente, seriam capazes de parecer algo ligeiros — poderia, se tivesse u m a u n i d a d e de modelo f u n d a m e n t a l , constituir o equivalente de um p o e m a longo de primeira ordem ao estabelecer a pretensão de um autor a ser um poeta " m a i o r " . Essa pretensão poderia ser, é claro, estabelecida por um único p o e m a longo, e q u a n d o esse p o e m a longo é suficientemente b o m , q u a n d o inclui em si a u n i d a d e e a variedade adequadas, não precisamos conhecer — ou, se conhecemos, não precisamos valorizar intensamente — as demais obras do poeta. De m i n h a parte, eu definiria Samuel Johnson como um poeta maior graças ao simples testemunho de The vanity of human wishes, e Goldsmith pelo de

alguém pode fazer semelhante reivindicação são m u i t o poucos. Alguém pode subir na vida sem ter lido todos os últimos poemas de Browning ou Swinburne; não me caberia afirmar com segurança que alguém devesse 1er t u d o de Dryden ou de Pope; e certamente não compete a mim dizer q u e não haja partes

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The deserted village. Até aqui, parece termos chegado à conclusão provisória de que, qualquer que fosse um poeta menor, um poeta maior é aquele cuja obra devemos 1er em sua totalidade, a fim de q u e apreciemos plenamente cada u m a de suas partes; mas já modificamos um pouco essa afirmação extrema ao admitir qualquer poeta que haja escrito equilibradamente um poema longo q u e combine suficiente variedade e unidade. Mas há decerto m u i t o poucos poetas na Inglaterra de cuja obra alguém pode dizer que deva ser lida em sua totalidade. Shakespeare, é claro, e Milton; e como no caso de Milton alguém pode advertir para o fato de q u e seus diversos poemas longos — O Paraíso per-

dido, O Paraíso reconquistado e Sansão Agonista — deveriam ser lidos inteiros devido a sua própria finalidade, necessitamos lê-los todos, assim como precisamos 1er todas as peças de Shakespeare, a fim de compreendermos plenamente cada uma delas; e a menos que leiamos t a m b é m os sonetos de Shakespeare e os poemas menores de Milton, há algo do q u e lemos q u e se perde em nossa apreciação. Mas os poetas em relação aos quais

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de Prelude ou de The excursion que não possam admitir um salto. Muito pouca gente se dispõe a conceder seu t e m p o aos primeiros poemas longos de Shelley, The revolt o} Islam e Queen Mab, embora as notas a este último p o e m a mereçam ser lidas. De m o d o q u e seremos obrigados a dizer q u e um poeta maior é aquele de cuja obra temos de 1er u m a boa parte, mas não necessariamente toda a obra. E além de f o r m u l a r a pergunta De q u e poetas vale a pena 1er t u d o ? " , devemos t a m b é m perguntar: " Q u e poeta vale para mim o esforço de 1er toda a sua o b r a ? " . A primeira p e r g u n t a significa q u e devemos sempre tentar aprimorar nosso gosto; a s e g u n d a , q u e devemos ser sinceros com relação ao gosto q u e temos. Assim, de um lado, não é praxe percorrer com atenção tanto Shakespeare q u a n t o Milton da primeira à última página, a menos q u e alguém ali se depare com algo de q u e goste i m e d i a t a m e n t e : é apenas esse prazer imediato que pode dar a alguém seja a força motriz para 1er tudo, seja a expectativa de algum proveito assim pretendido. E ali poderiam existir, ou na verdade deveriam existir — como eu já disse — alguns poetas q u e lhes falassem tão de perto a ponto de levá-los a 1er toda a sua obra, embora não tivessem eles o mesmo valor para a maioria das outras pessoas. E essa espécie de vínculo não se refere apenas a um estágio em seu desenvolvimento de gosto q u e vocês ultrapassarão, mas poderia indicar t a m b é m alguma afinidade entre vocês mesmos e um determinado autor q u e persistirá pela vida afora; poderia até ocorrer que vocês estivessem peculiarmente habilitados a apreciar um poeta de q u e m pouquíssimas outras pessoas fossem capazes de gostar. Eu diria então que há u m a espécie de ortodoxia q u a n t o à relativa grandeza e importância de nossos poetas, embora haja muito poucas reputações que permanecem inteiramente inalteradas de u m a geração para outra. N e n h u m a reputação poética jamais permanece exatamente no mesmo lugar: trata-se de u m a bolsa de valores em constante flutuação. Há os nomes consagra-

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dos que só f l u t u a m , por assim dizer, d e n t r o de u m a estreita faixa de pontos: se Milton sobe hoje para 104 e cai a m a n h ã para 97 1/4, não importa. Há outras reputações, como as de D o n n e ou Tennyson, q u e variam m u i t o mais intensamente, de m o d o q u e alguém tem de julgar seu mérito por u m a média tomada durante um longo t e m p o ; há ainda autores que permanecem muito estáveis em sua extensa trajetória abaixo daquele par e que persistem como bons investimentos graças àquele preço. E há certos poetas q u e constituem bons investimentos para algumas pessoas, embora sem preço algum de cotação no mercado, e a mercadoria poderia não ser convidativa ( t e n h o m e d o de que a comparação com a bolsa de valores provavelmente se dilua nesse ponto). Mas eu diria q u e . c o n q u a n t o haja um objetivo ideal de gosto ortodoxo em poesia, n e n h u m leitor pode ser, ou deveria tentar ser, inteiramente ortodoxo. Há decerto alguns poetas, q u e muitas gerações de pessoas inteligentes, sensíveis e de considerável leitura apreciaram, q u e (se gostarmos de qualquer poesia) mereceram de nossa parte um esforço no sentido de tentar descobrir por q u e tais pessoas os apreciaram, e se t a m b é m não é o caso de podermos apreciá-los. D e n tre os poetas de menor estatura, há certamente alguns sobre os quais, após u m a amostragem, p o d e m o s agradavelmente e sem risco considerar a opinião costumeira de q u e estão de todo a d e q u a d a m e n t e representados por dois ou três poemas, pois, como já disse, ninguém dispõe de t e m p o para descobrir t u d o por si mesmo, e devemos aceitar algumas coisas sobre a convicção dos outros.

tudo, constituem admiráveis janelas. Acho q u e George Crabbe 26 foi um excelente poeta, mas ninguém dele se aproxima pela mágica: se alguém gosta de relatos realistas sobre a vida de aldeia em Suffolk há cento c vinte anos, em versos tão bem escritos que nos convencem de q u e o mesmo não poderia ser dito em prosa, é possível então que goste de Crabbe. Crabbe c um poeta que tem de ser lido em grandes porções, se é q u e se deve lê-lo; dc m o d o que se alguém o considerar tedioso, deve apenas dar-lhe uma olhadela e seguir em frente. Mas vale a pena conhecer-lhe a existência, caso ela possa ser de seu agrado, c t a m b é m porque lhe contará algo sobre as pessoas q u e o apreciaram. As principais questões que até aqui tenho tentado situar são, creio eu, as seguintes: a diferença entre poetas maiores e menores nada tem a ver com o fato dc terem eles escrito poemas longos ou poemas curtos, embora os verdadeiros grandes poetas, que são numericamente poucos, hajam tido todos algo a dizer que só poderia ser dito n u m poema longo. A diferença importante é se um conhecimento da totalidade, ou pelo menos de uma parte m u i t o extensa, da obra de um poeta faz com que alguém desfrute mais intensamente, porque o leva a compreender melhor qualquer um de seus poemas. Isso implica uma significativa unidade em toda a sua obra. N i n g u é m pode pór inteiramente em palavras essa compreensão ampliada: cu não poderia dizer com exatidão por que penso q u e compree n d o c me deleito mais intensamente com Com us 2 por haver lido O Paraíso perdido, ou mais intensamente com este por haver lido Sar/são Agonista, mas estou convencido de q u e é assim. Nem sempre posso dizer por q u e , graças ao conhecimento de uma pessoa cm situações distintas, c observando seu comportamento n u m a diversidade dc situações, sinto q u e compreendo melhor seu c o m p o r t a m e n t o ou sua conduta n u m a determinada ocasião; mas nos esquecemos dc q u e essa pessoa é uma unidade, apesar de sua conduta inconsistente, e de q u e

A maioria dos poetas menores, entretanto — daqueles q u e não preservam em absoluto n e n h u m a reputação —, está constituída de poetas dos quais todo leitor de poesia deveria conhecer algo, mas apenas alguns deles chegam a ser bem conhecidos por raros leitores. Alguns nos atraem graças a u m a congenialidade peculiar de caráter; outros devido à sua temática; outros, ainda, em razão de u m a qualidade particular, de espírito ou compaixão, por exemplo. Q u a n d o falamos sobre Poesia, com maiúscula, podemos julgar apenas a mais intensa emoção ou a mais fantástica expressão; todavia, há muitos e grandes caixilhos em poesia q u e nada têm de mágicos e q u e não se abrem sobre a espuma de mares perigosos, mas q u e , apesar de

26 Crabbe, George Poeta inglês ( A l d e b u r g h , Suffolk, 1754 Trowbridge, 1832). Suas obras crii rigoroso estilo clássico, descrevem com simpatia e realismo a vida miserável dos pescadores e camponeses, como em The village, o n d e d e n u n c i a a falsa concepção idílica da vida campesina. ( N . T . ) 2

Peça pastoril de J o h n Milton, escrita em 1634. ( N . T . )

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essa comunicação com ela d u r a n t e um lapso de t e m p o a torna mais inteligível. Finalmente, condicionei essa discriminação objetiva entre os poetas maiores e menores ao atribuí-la anteriormente a cada leitor em particular. N e n h u m grande poeta terá talvez inteiramente a mesma significação para dois leitores, não importa q u a n t o estejam eles de acordo no q u e respeita à sua estatura: é mais provável, portanto, q u e o modelo de poesia inglesa jamais seja exatamente o m e s m o para duas pessoas, de m o d o que, no caso de dois leitores igualmente capazes, determinado poeta poderia ser, para um deles, de maior importância e, para o outro, de menor envergadura. Há u m a reflexão final a ser feita, q u a n d o passamos a considerar a poesia contemporânea. Encontramos às vezes críticas presunçosamente sentenciosas em seu primeiro contato com a obra de um novo poeta, da qual afirmam ser poesia " m a i o r " ou " m e n o r " . Ignorando a possibilidade de q u e aquilo q u e o crítico está louvando ou reconhecendo possa ou não ser efetivamente poesia (pois às vezes alguém p o d e dizer: liSe isso fosse poesia, seria poesia maior, mas não é .), não julgo aconselhável tomar u m a decisão tão r a p i d a m e n t e . O máximo a q u e eu me arriscaria, do p o n t o de vista do compromisso crítico, sobre a obra de um poeta vivo, ao deparar-me com ela pela primeira vez, seria averiguar se se trata de poesia autêntica ou não. Esse poeta tem algo a dizer, pouco diferente do q u e um outro disse antes, e descobriu, não apenas uma maneira diferente de dizelo, mas a maneira diferente de dizé-lo q u e expressa a diferença no que está dizendo? Mesmo q u a n d o me c o m p r o m e t o até esse ponto, sei que poderia estar correndo um risco especulativo. Eu poderia estar impressionado por aquilo q u e esse poeta está tentando dizer c negligenciar o fato de q u e ele não descobriu a nova maneira de dizê-lo, ou de q u e a forma peculiar da linguagem, que de início dá a impressão de q u e o autor tem algo de próprio a dizer, poderia constituir apenas um artifício ou um maneirismo que dissimula u m a visão inteiramente convencional. Para q u e m lê, como cu, um bom n ú m e r o de manuscritos, c manuscritos de escritores dos quais se pode não ter visto antes obra alguma, as armadilhas são ainda mais perigosas: se um conjunto de poemas for muito melhor do q u e quaisquer outros que acabo de 1er, posso enganar-me e confundir meu

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m o m e n t â n e o sentimento de alívio com o reconhecimento de que se trata de algum notável talento. Muitas pessoas ou se satisfazem com o que encontram em antologias — e, m e s m o q u a n d o são atraídas por um poema, p o d e m não se dar conta do fato ou, se isso ocorre, p o d e m não reparar no n o m e do autor —, ou aguardam até que se torne evidente q u e determinado poeta, após escrever diversos livros (c isso em si m e s m o revela certa garantia), haja sido aceito pelos resenhadores (e o q u e mais nos impressiona não é o que estes dizem ao escrever sobre um poeta, mas suas alusões àquele poeta q u a n d o escrevem sobre algum outro poeta). O primeiro m é t o d o não nos leva m u i t o longe; o s e g u n d o não é muito seguro. Em primeiro lugar, somos todos propensos a ficar na defensiva de nossa própria época. Agrada-nos perceber que ela pode produzir uma grande arte, sobretudo porque queríamos ter uma velada suspeita de q u e não o possa; e percebemos em parte que, se pudéssemos acreditar q u e dispomos de um grande poeta, isso de algum m o d o nos tranqüilizaria e nos daria autoconfiança. Trata-se de um desejo patético, mas que t a m b é m perturba o julgamento crítico, pois poderíamos chegar à conclusão de que alguém é um grande poeta sem sê-lo; ou poderíamos, com absoluta injustiça, menosprezar um bom poeta por não ser este um grande poeta. E no caso de nossos contemporâneos, não devemos estar tão interessados no fato de que sejam grandes ou não; devemos insistir na pergunta: " S ã o eles autênticos"*". E deixar a questão de q u e sejam grandes para o único tribunal capaz de decidir: o tempo. Em nossa própria época há, na verdade, um considerável público para a poesia contemporânea; há, talvez, mais curiosidade e mais expectativa com relação à poesia contemporânea do que havia uma geração antes. Por outro lado, há o perigo de formar um público leitor que nada saiba sobre qualquer poeta mais antigo do que, digamos, Gerard Manley Hopkins, e que não disponha de uma cultura necessária à apreciação crítica. Há t a m b é m o perigo de que as pessoas esperem para 1er um poeta até que sua reputação contemporânea esteja estabelecida; e a angústia, para aqueles dentre nós que estão no negócio, de. após outra geração ter escolhido seus poetas, nós, que lhes somos ainda contemporâneos, não mais sermos lidos. O

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perigo para o leitor e d u p l o : o de q u e ele jamais disporá de nada totalmente fresco e o de q u e jamais voltará a 1er o q u e sempre permanece fresco. Há, por conseguinte, u m a proporção a ser observada entre nossa leitura da poesia antiga e da poesia moderna. Eu não confiaria no gosto de n i n g u é m q u e jamais leu alguma poesia contemporânea, e certamente não confiaria no gosto de alguém que não leu nada além disso. Mas até m e s m o muita gente q u e lê poesia contemporânea não desfruta o prazer, e o benefício, de descobrir de algum m o d o algo para si. Q u a n d o vocês lêem poesia nova, poesia de alguém cujo n o m e ainda não é amplamente conhecido, alguém a q u e m os resenhadores ainda não criticaram, vocês estão exercendo, ou deveriam tazê-lo, seu próprio gosto. Não há outro no qual se fiar. O problema não é, como parece para muitos leitores, o de tentar gostar de alguma coisa de que vocês não gostam, mas de deixar sua sensibilidade livre para reagir naturalmente. De m i n h a parte considero isso bastante difícil, pois q u a n d o vocês estão lendo um poeta novo com o deliberado propósito de vir a fazer u m a escolha, esse propósito pode interferir e obscurecer a consciência d a q u i l o q u e vocês sentem. É difícil responder ao m e s m o t e m p o a duas perguntas: "É b o m , quer eu goste ou não? e " E u gosto d i s s o ? " . E amiúde descubro q u e o melhor teste é q u a n d o alguma frase, ou imagem, ou verso fora de um poema novo, acorre à m i n h a m e n t e sem q u e o tenha desejado. Acho t a m b é m proveitoso para mim dar uma espiada em poemas novos publicados em revistas de poesia e em seletas de autores novos nas antologias contemporâneas, pois, ao lê-los, não me preocupo em perguntar: " D e v o me esforçar para que tais poemas sejam publicad o s ? " . Julgo que ocorra aí algo semelhante à m i n h a experiência: q u a n d o ouço pela primeira vez u m a nova composição musical, ou q u a n d o vejo u m a nova exposição de quadros, prefiro fazê-lo sozinho. Pois, se estou sozinho, não há ninguém a q u e m eu esteja obrigado a formular imediatamente u m a opinião. Não é que eu precise de t e m p o para articular a m i n h a m e n t e : preciso de t e m p o para saber o que realmente senti naquele m o m e n t o . E esse sentimento não constitui u m a avaliação de grandeza ou de importância — é u m a percepção de autenticidade. Assim, ao lermos um poeta contemporâneo, não estamos

de fato interessados em saber se é um poeta " m a i o r " ou " m e n o r " . Mas se lermos um poema, c se reagirmos a ele, deveremos querer 1er mais do mesmo autor, e q u a n d o houvermos lido o bastante, deveremos estar aptos a responder a pergunta: "É somente algo mais da mesma coisa?" — é, em outras palavras, apenas a mesma coisa, ou algo diferente, sem q u e nada haja sido acrescentado, ou é uma relação entre os poemas q u e nos leva a ver um pouco mais em cada um deles? Isso ocorre porque, com a mesma reserva que observamos em relação à obra de poetas mortos, devemos 1er não apenas poemas isolados, como o fazemos em antologias, mas a obra inteira de um poeta.

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O Q U E É UM CLASSICO?

O QUE É UM CLÁSSICO?'

O assunto do qual me dispus a falar resume-se apenas a esta pergunta: "O q u e é um clássico? . Não é u m a pergunta nova. Há, por exemplo, um célebre ensaio de Sainte-Beuve com esse mesmo título. A pertinência de fazer essa pergunta, t e n d o em vista particularmente Virgílio, é óbvia: qualquer q u e seja a definição a q u e cheguemos, ela não p o d e excluir Virgílio — poderíamos dizer com toda a segurança q u e ela deve ser u m a das q u e expressamente o levarão em conta. Mas, antes de prosseguir, gostaria de descartar alguns preconceitos e antecipar certos equívocos. Não pretendo substituir, ou proscrever, qualquer uso da palavra "clássico' que u m a utilização anterior haja tornado permissível. A palavra tem, e continuará a ter, diversos significados em diversos contextos: interesso-me por um unico significado em um único contexto. Ao definir o termo nesse sentido, não me comprometo, daqui cm diante, a não utilizar o termo em n e n h u m dos outros sentidos em q u e ele tem sido empregado. Se, por exemplo, eu concluir q u e , em alguma f u t u r a ocasião, ao escrever, em discurso público ou n u m a palestra, que devo utilizar a palavra "clássico' apenas para reconhecer um " a u t o r modelar " em qualquer língua — 1. Discurso presidencial à Virgil Society em 1944. Publicado pela Faber & Faber em 1945. ( Ν . A . )

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empregando-a simplesmente como indicação da m a g n i t u d e , ou da permanência e da importância, de um escritor em seu próprio campo de atividade, como q u a n d o falamos de The f i f t h form at St. Dominic's como um clássico da ficção entre os estudantes, ou do Handley cross como um clássico no c a m p o da caça —, ninguém deverá esperar que o esteja elogiando. E há um livro muito interessante intitulado A guide ίο the classics, q u e ensina como ganhar a disputa do Derby. Em outras ocasiões, permitir-me-ei considerar " o s clássicos" — quer os das literaturas grega e latina in toto, quer os maiores autores q u e se expressaram nessas línguas — conforme o contexto. E, finalmente, julgo q u e a avaliação do clássico q u e me p r o p o n h o a fornecer aqui possa deslocá-la daquele terreno antitètico entre "clássico" e " r o m â n t i c o " — u m a d u p l a de termos q u e pertence à política literária e que, por essa razão, insufla os ventos da paixão, os quais peço a Eolo, 2 nessa o p o r t u n i d a d e , q u e guarde na sacola. Isso me conduz à próxima consideração. Segundo os termos da controvérsia classico-romàntica, considerar qualquer obra de arte "clássica implica ou o mais alto elogio, ou o mais desdenhoso abuso, conforme a parte a que pertença. Isso implica certos méritos ou defeitos particulares: seja a perfeição da forma, seja o zero absoluto da frigidez. Mas desejo definir u m a espécie de arte, e não me interessa que cia seja absolutam e n t e e em cada aspecto melhor ou pior do q u e qualquer outra. Enumerarei certas qualidades q u e presumiria fosse o clássico capaz de manifestar. Mas não afirmo q u e , se u m a literatura for u m a grande literatura, deva ter algum autor, ou algum período, em que todas essas qualidades se manifestem. Se, como suponho, todas elas se encontram em Virgílio, com relação ao qual não cabe assegurar que seja o maior poeta de todos os tempos — tal afirmação acerca de qualquer poeta me parece espatafúrdia —, não é decerto correto afirmar que a literatura latina seja maior do que qualquer outra. Não devemos considerar como defeito de n e n h u m a literatura se n e n h u m autor, ou n e n h u m período, for rigorosamente clássico; ou se, como ocorre na literatura inglesa, o período que mais se ajusta à definição 2.

Do gr. Aiolos, pelo lat. Aeolus. Na mitologia grega, o deus dos ventos. ( N . T . )

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clássica não é o maior. Penso q u e essas literaturas, das quais a inglesa é uma das mais ilustres, na qual as virtudes clássicas se acham dispersas entre vários autores e diversos períodos, poderiam ser perfeitamente as mais ricas. Cada língua tem seus próprios recursos e suas próprias limitações. As condições de u m a língua e as condições da história do povo q u e a fala poderiam colocar fora de questão a expectativa de um período clássico, ou de um autor clássico. Esse não é em si m e s m o senão um assunto mais para tristeza do q u e para congratulação. Ocorre que a história de Roma foi tão grande, o caráter da língua latina tão poderoso, q u e , em d e t e r m i n a d o m o m e n t o , um único poeta estritamente clássico tornou-se possível, embora devêssemos nos lembrar de que isso exigiu que tal poeta, e toda u m a vida de trabalho da parte desse poeta, extraísse a obra clássica a partir da matéria de q u e d i s p u n h a . E, n a t u r a l m e n t e , Virgílio não pôde saber q u e aquilo era o q u e ele estava fazendo. Ele foi, se algum poeta chegou a sê-lo um dia, a g u d a m e n t e consciente do que estava t e n t a n d o fazer; a única coisa q u e não p ô d e almejar, ou não sabia q u e estava fazendo, toi escrever u m a obra clássica, pois é somente graças a u m a compreensão tardia, e em perspectiva histórica, que um clássico p o d e ser reconhecido como tal. Se houvesse u m a palavra cm q u e pudéssemos nos fixar, capaz de sugerir o máximo do que pretendo dizer com a expressão " u m clássico esta seria maturidade. Distinguirei entre o clássico universal, como Virgílio, e o clássico que permanece como tal apenas em relação à literatura de sua própria língua, de acordo com a concepção de vida de um determinado período. Um clássico só pode aparecer q u a n d o u m a civilização estiver madura, q u a n d o u m a língua e u m a literatura estiverem m a d u ras; e deve constituir a obra de u m a m e n t e m a d u r a . E a importância dessa civilização e dessa língua, bem como a abrangência da mente do poeta individual, q u e proporcionam a universalidade. Definir maturidade sem admitir que o ouvinte já saiba o q u e isso significa é quase impossível. Permitam-nos dizer, portanto, que, se estivermos a d e q u a d a m e n t e maduros e formos pessoas educadas, poderemos reconhecer a maturidade n u m a civilização e n u m a literatura, do mesmo m o d o como fazemos em relação aos outros seres h u m a n o s q u e encontramos. Tornar

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o significado da maturidade realmente compreensível — na verdade, até mesmo torná-lo aceitável — para o imaturo é talvez impossível. Mas se formos maduros, reconheceremos de imediato a maturidade, ou viremos a reconhecê-la graças a um relacionamento mais íntimo. N e n h u m leitor de Shakespeare, por exemplo, pode se enganar ao reconhecer, progressivamente e n q u a n t o ele próprio cresce, o gradual a m a d u r e c i m e n t o da mente shakespeariana: até mesmo o mais medíocre leitor p o d e perceber o rápido desenvolvimento da literatura c do drama elisabetanos como um todo, da primitiva crueza Tudor às peças de Shakespeare, e captar um declínio na obra dos sucessores deste último. Podemos t a m b é m observar, a partir de uma epidérmica familiaridade, que as peças de Christopher Marlowe revelam uma maturidade mental e estilística superior à das peças que Shakespeare escreveu na mesma época: é i m p o r t a n t e especular que, se Marlowe tivesse vivido tanto q u a n t o Shakespeare, seu desenvolvimento poderia ter continuado no m e s m o ritmo. Mas não o creio, pois observamos que certas mentes amadurecem antes de outras, da mesma forma como verificamos que aquelas que amadurecem muito cedo nem sempre vão muito longe. Suscito essa questão como um lembrete: primeiro, porque o mérito da maturidade d e p e n d e do mérito daquele que amadurece; segundo, porque saberíamos q u a n d o estivéssemos preocupados com a maturidade de determinados escritores e com a relativa maturidade de períodos literários. Um escritor que tenha individualmente um espírito mais maduro poderá pertencer a um período menos maduro de que outro, de m o d o que, desse ponto de vista, sua obra será menos madura. A maturidade de uma literatura é um reflexo da sociedade dentro da qual ela se manifesta: um autor individual — especialmente Shakespeare e Virgílio — pode fazer m u i t o para desenvolver sua língua, mas não pode conduzir essa língua à maturidade a menos que a obra de seus antecessores a tenha preparado para seu retoque final. Por conseguinte, uma literatura amadurecida tem u m a história atrás de si uma história que não é apenas uma crònica, um acúmulo de manuscritos e textos dessa espécie, mas uma ordenada, embora inconsciente, evolução de u m a língua capaz de realizar suas próprias potencialidades dentro de suas próprias limitações.

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C u m p r e observar q u e u m a sociedade e u m a literatura, do mesmo m o d o que um ser h u m a n o como indivíduo, não a m a d u recem necessariamente de maneira idèntica e corrente em cada um de seus aspectos. A criança precoce é quase sempre, em alguns óbvios sentidos, tola para a sua idade cm comparação com as crianças comuns. Há algum, período da literatura inglesa que possamos qualificar de p l e n a m e n t e m a d u r o em sua abrangência e em equilíbrio? Não penso assim — e, c o m o repetirei mais tarde, espero q u e não seja assim. N ã o posso dizer q u e algum poeta na língua inglesa haja se tornado, no curso de sua vida, um h o m e m mais m a d u r o do q u e Shakespeare; não podemos sequer dizer q u e algum poeta tenha feito tanto para tornar a língua inglesa capaz de exprimir o mais sutil p e n s a m e n t o ou as mais refinadas nuanças de s e n t i m e n t o . Todavia, não podemos senão sentir q u e u m a peça como Way of the world, de Congreve,· é, em certo sentido, mais m a d u r a do q u e qualquer das peças de Shakespeare, mas apenas q u a n t o a esse aspecto, já q u e ela reflete u m a sociedade mais m a d u r a , ou seja, u m a maior m a t u r i d a d e de costumes. A sociedade para a qual Congreve escreveu era, do nosso p o n t o de vista, vulgar e bastante grosseira; no entanto, ela está mais próxima de nós do que a sociedade dos Tudor; talvez por essa razão a julguemos com maior severidade. Não obstante, era u m a sociedade mais polida e menos provinciana: sua m e n t a l i d a d e era mais superficial, sua sensibilidade mais tacanha; descumpriu algumas promessas de maturidade, mas realizou outras. Assim, à maturidade da mente devemos acrescentar a m a t u r i d a d e dos costumes. O avanço em direção à m a t u r i d a d e da língua é, creio cu, mais facilmente reconhecido e mais r a p i d a m e n t e apreciado no desenvolvimento da prosa do q u e no da poesia. Ao considerarmos a prosa, perturbam-nos menos as diferenças individuais de grandeza, e inclinamo-nos antes a buscar u m a aproximação com um padrão c o m u m , um vocabulário c o m u m e u m a estru3. Congreve. William. D r a m a t u r g o inglês (Bardsley, perto de Leeds, 1670 — Londres, 1729), considerado por Voltaire o Molière da Inglaterra. É o m e l h o r c o m e d i ó grafo da época da Restauração, destacando-se pela habilidade técnica. a graça dos diálogos e, sobretudo, por um cinismo epigramático e c o m e d i d o , e m b o r a às vezes obsceno. Além de Way of the world, escrita em 1700, deixou The old bachelor

(1693), The double dealer (1694) e Love for love (1695) (Ν T.)

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tura fraseologica c o m u m — na verdade, é a prosa q u e , com maior freqüência, se distancia mais desses padrões comuns, q u e é individual ao extremo, dc m o d o q u e somos capazes de admitir uma "prosa poetica". N u m a época em q u e a Inglaterra já realizara milagres em poesia, sua prosa era relativamente imatura, desenvolvida o bastante para certos propósitos, mas não para outros: nessa mesma época, q u a n d o a língua francesa já oferecera pequenas promessas de poesia tão grandes q u a n t o as que se descortinavam em inglês, a prosa francesa era m u i t o mais madura do q u e a inglesa. Só dispomos de um ou outro escritor Tudor para compará-los a Montaigne — e o próprio Montaigne, como estilista, é apenas um precursor, e seu estilo não amadureceu o bastante para atender às exigências francesas do q u e fosse um clássico. Nossa prosa estava pronta para algumas tarefas antes que pudesse competir com outras: um Malory poderia aparcccr m u i t o antes de um Hooker, 4 e um Hooker antes de um Hobbes, e um Hobbes antes de um Addison. Quaisquer que sejam as dificuldades que tenhamos ao aplicar tais padrões à poesia, é possível observar que o desenvolvimento dc u m a prosa clássica é o desenvolvimento em direção a um estilo comum. Por isso, não pretendo dizer q u e os melhores escritores sejam indistinguíveis entre si. As diferenças c características essenciais permanecem: não é que as diferenças sejam menores, mas se tornam mais sutis e refinadas. Para um paladar sensível, a diferença entre a prosa dc Addison e a de Swift será registrada como a diferença entre duas safras de vinho por um connoisseur. N u m período de prosa clássica, o q u e encontramos não é uma simples convenção c o m u m de escrita, como o estilo c o m u m dos que redigem os artigos dc f u n d o dos jornais, mas uma c o m u n i d a d c do gosto. A época que precede uma época clássica poderá revelar tanto a excentricidade q u a n t o a monotonia: monotonia porque os recursos da língua não foram ainda explorados, e excentricidade porque ainda não há n e n h u m padrão genericamente aceito, caso seja verdade que se possa 4 Hooker, Richard. Teòlogo e jurista inglês (Heaviiree, perto dc Exeter, 1554 — Bishopsbourne, 1600) Processado como herege por suas idéias contrárias ao puritanismo, escreveu uma obra m o n u m e n t a l , em cinco volumes, sob o título de Of the laws of ecclesiastical policy (1594-1597), notável por sua elegância estilística. ( N . T . )

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chamar de excêntrico aquilo q u e não está no centro. Seus textos poderão ser, ao mesmo t e m p o , pedantes e licenciosos. A época q u e se segue a u m a época clássica p o d e t a m b é m revelar excentricidade e monotonia porque os recursos da língua, pelo menos para aquele t e m p o , foram esgotados, e excentricidade porque a originalidade se torna mais valorizada do q u e a correção. Mas a época na qual encontramos um estilo c o m u m será uma época em q u e a sociedade já cristalizou um m o m e n t o de ordem c de estabilidade, de equilíbrio e de h a r m o n i a , assim como a época que manifesta os maiores extremos de estilo individual será uma época de imaturidade ou de senilidade. Pode-se presumir q u e a m a t u r i d a d e da língua a c o m p a n h e a maturidade da m e n t e e dos costumes. Podemos admitir q u e a língua tangencia a m a t u r i d a d e no m o m e n t o em q u e os homens adquiram um sentido crítico do passado, u m a confiança no presente e n e n h u m a dúvida q u a n t o ao f u t u r o . Em literatura, isso significa que o poeta está consciente de seus antecessores, c que estamos conscientes dos antecessores q u e pulsam por detrás de sua obra, assim como p o d e m o s estar conscientes dos traços ancestrais n u m a pessoa q u e é, ao m e s m o t e m p o , única c individual. Os antecessores deveriam ser eles próprios grandes e dignos, mas suas realizações devem ser de tal ordem q u e sugiram recursos ainda não desenvolvidos da língua, não de m o d o a intimidar os escritores mais jovens com o temor de q u e t u d o o que possa ser feito já foi feito em sua língua. O poeta, é claro, n u m a época madura, pode ainda obter estímulo a partir da esperança de que esteja fazendo algo q u e seus antecessores não fizeram; pode até mesmo rebelar-se contra estes, como um adolescente promissor pode insurgir-se contra as cienças, os hábitos e as maneiras de seus pais, mas, retrospectivamente, p o d e m o s observar que ele é o herdeiro de suas tradições, o q u e preserva as características familiares, c que sua diferença de comportam e n t o é u m a diferença dentro das circunstâncias de u m a outra época. E, por outro lado, assim como observamos às vezes certos homens cujas vidas foram eclipsadas pela fama dos pais ou dos avós, homens dos quais qualquer realização de q u e foram capazes parecem comparativamente insignificantes, t a m b é m uma época tardia da poesia pode ser conscientemente incapaz de competir com sua ilustre ancestralidade. Encontramos poe-

tas dessa estirpe no final de qualquer época, poetas com u m a noção apenas do passado ou, alternativamente, poetas cuja esperança no f u t u r o repousa na tentativa de renunciar ao passado. A persistência da criatividade em qualquer povo consiste, conseqüentemente, na manutenção de um equilíbrio coletivo entre a tradição no sentido mais amplo — a personalidade coletiva, por assim dizer, consubstanciada na literatura do passado e a originalidade da geração que se encontra viva.

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Não podemos considerar a literatura da era elisabetana, em q u e pese a sua grandeza, inteiramente m a d u r a ; não podemos considerá-la clássica. N e n h u m íntimo paralelismo pode ser traçado entre o desenvolvimento das literaturas grega e latina, pois esta tinha aquela atrás de si; tampouco podemos esboçar um paralelismo entre ambas e qualquer literatura m o d e r n a , pois as literaturas modernas têm tanto a latina q u a n t o a grega em suas origens. Na Renascença há uma precoce aparência de maturidade que foi herdada da Antigüidade. Estamos cônscios de u m a aproximação mais íntima da maturidade com Milton. Milton se encontrava n u m a posição mais favorável para desenvolver um sentido crítico do passado — do passado na literatura inglesa - do que seus grandes antecessores. Ler Milton é confirmar o respeito pelo gênio de Spenser, e a gratidão a Spenser por haver contribuído para que o verso de Milton se tornasse possível. Todavia, o estilo de Milton não é um estilo clássico: é o estilo de uma língua ainda cm formação, o estilo de um escritor cujos mestres não foram ingleses, mas latinos e, em menor escala, gregos. Isso, creio eu, parafraseando o que disseram J o h n son e depois Landor q u a n d o se queixaram de que o estilo de Milton não era inteiramente inglês. Permitam-nos modificar esse julgamento dizendo desde já que Milton fez muito para desenvolver a língua. Um dos indícios do avanço em direção a um estilo clássico é um desenvolvimento q u e tem cm mira a maior complexidade da frase e da estrutura da oração. Tal desenvolvimento é visível em uma única obra de Shakespeare, q u a n d o rastreamos seu estilo das primeiras às últimas peças: podemos mesmo dizer que, em suas derradeiras peças, ele vai tão longe quanto possível rumo à complexidade dentro dos limites do verso dramático, os quais são mais restritos do que os de outros gêneros. Mas a complexidade, para seu próprio bem,

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não constitui um objetivo a d e q u a d o ; seu propósito deve ser, antes de mais nada, a expressão concisa das mais delicadas nuanças da emoção e do pensamento; e, em s e g u n d o lugar, a introdução de maior apuro e variedade musicais. Q u a n d o um autor parece haver perdido, em seu amor à estrutura elaborada, a capacidade de dizer q u a l q u e r coisa de m o d o simples, q u a n d o seu apego ao modelo torna-se tal q u e ele diz coisas a f e t a d a m e n t e no m o m e n t o em que o melhor seria dizê-las com simplicidade, limitando assim seu espectro de expressão, o processo de complexidade deixa de ser inteiramente b e n i g n o , e o escritor começa a perder o contato com a linguagem falada. N ã o obstante, como o verso se desenvolve, nas mãos de um poeta após outro, ele transita da m o n o t o n i a à variedade, da simplicidade à complexidade; e, q u a n d o declina, caminha outra vez em direção à monotonia, embora possa p e r p e t u a r a estrutura formal à qual o gênio dá vida e significado. Vocês julgarão por si mesmos até q u e p o n t o essa generalização é aplicável aos antecessores e seguidores de Virgílio: p o d e m o s todos observar essa m o n o tonia secundária nos imitadores de Milton d u r a n t e o século XVIII ele mesmo nunca é m o n ó t o n o . E aí chega um t e m p o em que u m a nova simplicidade, até m e s m o u m a relativa crueza, poderá ser a única alternativa. Vocês anteciparão a conclusão em direção à qual estou caminhando: que as virtudes do clássico q u e até agora mencionei — maturidade mental, de costumes, de língua e perfeição do estilo c o m u m — são mais fáceis de serem comprovadas na literatura inglesa do século XVIII; e, na poesia, mais na poesia de Pope. Se isso fosse t u d o o q u e eu tivesse a dizer sobre o assunto, decerto não seria novo, e nem valeria a pena dizê-lo. Consistiria apenas em propor u m a escolha entre dois erros à qual os homens já chegaram: u m , o de q u e o século XVIII é o mais refinado período da literatura inglesa; outro, o de q u e a idéia clássica deveria estar inteiramente desacreditada. Minha opinião pessoal é a de q u e não possuímos, na língua inglesa, n e n h u m a época clássica nem qualquer poeta clássico; de q u e , q u a n d o observamos por q u e a situação é essa, não temos a mais leve razão para nos aborrecermos; mas q u e , apesar disso, devemos manter o ideal clássico diante de nossos olhos. Porque nos cumpre mantê-lo, e porque o gênio inglês da língua tem

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tido outras coisas a fazer do que realizá-lo, não podemos nos dar o luxo nem de rejeitar nem de superestimar a época de Pope; não podemos encarar a literatura inglesa como um todo, ou visar corretamente o f u t u r o , sem uma apreciação crítica do nível cm que as virtudes clássicas estão exemplificadas na obra de Pope; e isso significa que, a menos que estejamos aptos a desfrutar a obra de Pope, não podemos chegar a compreender plenamente a poesia inglesa. E absolutamente óbvio que a cristalização das virtudes clássicas em Pope só foi obtida por alto preço, ou seja, m e d i a n t e a exclusão de algumas das maiores potencialidades do verso inglês. Mas, cm certa medida, o sacrifício de algumas potencialidades para consubstanciar outras é u m a condição da criação artística, como é uma condição da vida em geral. O h o m e m que em vida se recusa a sacrificar algo para ganhar outra coisa em troca, acaba na mediocridade ou no fracasso, e m b o r a , por outro lado, haja o especialista que sacrificou muito por quase nada, ou aquele que tem tolerado a tal ponto o especialista q u e nada tem a sacrificar. Mas na Inglaterra do século XVIII temos motivo para perceber que m u i t o mais se perdeu. Criouse uma mentalidade madura, mas estreita. A sociedade e as letras inglesas não foram provincianas no sentido de q u e não se encontravam isoladas das melhores sociedades e letras européias, nem tampouco na retaguarda delas, ainda q u e a própria época fosse, por assim dizer, u m a época provinciana. Q u a n d o alguém pensa num Shakespeare, n u m Jeremy Taylor 5 ou n u m Milton, na Inglaterra — ou num Racine, num Molière, num Pascal, na França —, durante o século XVII, mostra-se inclinado a dizer que o século XVIII manteve perfeito o seu jardim convencional, restringindo apenas a área cultivada. Concluímos que, se o clássico e dc fato um ideal digno, deve ser ele capaz de revelar u m a amplitude, uma catolicidade, as quais o século XVIII não pode reivindicar para si; qualidades que estão visi5. Taylor, Jeremy. Teólogo e religioso inglês ( C a m b r i d g e , 1613 — Lisburn, 1667), um dos maiores representantes da Igreja anglicana no período da guerra civil. G r a n d e poeta em prosa e mestre da retórica, foi o maior orador sacro inglês depois de J o h n D o n n e . Deixou, entre outros, The liberty of prophesyng (1647) e The minister's duty in life and doctrine ( 1661 ). ( N . T . )

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veis em alguns grandes autores, como Chaucer, 6 que não p o d e m , a meu ver, ser olhados como clássicos da literatura inglesa, e que se encontram presentes de corpo e alma na m e n t e medieval de Dante. Pois cm A divina comedia, possivelmente em qualquer de suas passagens, encontramos o clássico n u m a língua europeia moderna. D u r a n t e o século XV11I estamos sufocados por um espectro restrito da sensibilidade, especialmente no plano do sentimento religioso. N ã o é q u e a poesia, pelo menos na Inglaterra, não fosse cristã, como tampouco até mesmo os poetas não fossem cristãos devotos, pois um m o d e l o de ortodoxia de princípios, c dc sincera religiosidade de sentimentos, poderão ser vislumbrados m u i t o antes q u e nos deparemos com um poeta mais autêntico do q u e Samuel J o h n s o n . Todavia, há evidências de u m a sensibilidade religiosa mais p r o f u n d a na poesia de Shakespeare, cuja fé e prática p o d e m ser apenas u m a questão dc conjectura, E essa limitação da sensibilidade religiosa produz ela mesma u m a espécie de regionalismo (embora devamos acrescentar q u e , nesse sentido, o século XIX foi ainda mais provinciano): o regionalismo q u e indica a desintegração da cristandade, a decadência da crença e da cultura c o m u n s . Pareceria, portanto, que o nosso século XVIII, apesar de sua proeza clássica — u m a proeza, creio e u . q u e tem ainda grande importância como um exemplo para o f u t u r o —, estava perdendo ccrta condição q u e possibilita a criação de um verdadeiro clássico. Para descobrir o q u e seja tal condição, devemos voltar a Virgílio. Em primeiro lugar, gostaria de insistir sobre as características que já atribui ao clássico, aplicando-as especialmente a Virgílio, à sua língua, à sua civilização e ao m o m e n t o particular da história dessa língua e dessa civilização a q u e ele chegou. Maturidade da mente: isso implica a história, e a consciência da história. Essa consciência não pode estar plenamente desperta, a não ser que haja outra história além da história do próprio 6. Chauccr, Geoffrey Poeta e ficcionista inglês (Londres? c 1340 id. 14(H)). estudioso das obras de Ovídio, Virgílio e Boécio, de q u e m traduziu De comolatione philosophie ($23-524). Influenciado por D a n t e . Peitaria e a literatura francesa, traduziu L· roman dt' la rose, de G u i l l a u m e de Loris e J e a n de Meung O b r a s princi-

pais: The hook of the duchess (1369). Troylus and Cnseyd (c. 1385) c. acima de todas, os Canterbury tales. (Ν T.)

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povo do poeta; precisamos disso para ver nosso próprio lugar na história. Devemos conhecer a história de pelo menos outro povo altamente civilizado, e a de um povo cuja civilização é suficientemente aparentada para ter influenciado e penetrado a nossa própria história. Essa foi u m a consciência q u e os romanos tiveram, e que os gregos, por mais q u e possamos estimar cm alto grau sua proeza — e, na verdade, c u m p r e respeitá-los acima de t u d o por isso —, não possuíram. Foi u m a consciência que certamente o próprio Virgílio se e m p e n h o u bastante em desenvolver. Desde o começo, Virgílio, como seus contemporâneos e antecessores imediatos, foi c o n t i n u a m e n t e a d a p t a n d o e utilizando as descobertas, as tradições e as invenções da poesia grega; utilizar uma literatura estrangeira nesse sentido assinala um estágio ulterior de civilização que suplanta aquele em q u e apenas se utilizam os primitivos estágios da sua própria, embora eu julgue ser possível dizermos que n e n h u m poeta jamais revelou um senso de proporção mais aguçado que o de Virgílio q u a n t o à utilização que ele faz dos poetas gregos e da primitiva poesia latina. E esse desenvolvimento de u m a literatura, ou de u m a civilização, relativamente à outra, q u e confere u m a significação peculiar à temática da épica virgiliana. Em Homero, o conflito entre gregos e troianos é acentuadamente mais a m p l o em alcance do que u m a disputa entre uma cidade-estado grega e u m a coalizão de outras cidades-cstados: atrás da história de Enéias^ está a consciência da mais radical distinção, u m a distinção que é, ao mesmo tempo, u m a declaração de parentesco entre duas grandes culturas e, afinal, de sua reconciliação sob um destino totalmente entrelaçado. A maturidade da mente de Virgílio, e a m a t u r i d a d e de sua época, estão manifestas nessa consciência da história. Relacionei a maturidade da mente à maturidade das maneiras e à ausência de provincianismo. S u p o n h o que, para um europeu moderno subitamente imerso no passado, o c o m p o r t a m e n t o social dos romanos e dos atenienses poderia parecer indiferentemente grosseiro, bárbaro e agressivo. Mas se o poeta puder retra7. Eni lai. Aeneas, cm gr. Aíneias. Príncipe troiano, herói de u m a lenda grega retomada e ampliada por Virgílio na Eneida Essa lenda supõe a origem asiática de certos povos italianos, provavelmente os etruscos. De acordo com a lenda, Roma teria sido f u n d a d a pelos descendentes de Enéias. ( N . T . )

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tar algo superior à prática contemporânea, não o fará no sentido de antecipar algum tardio, e absolutamente distinto, código de conduta, mas por meio de u m a percepção (insight) na qual a conduta de seu próprio povo em sua própria epoca poderia ser o melhor de t u d o isso. As reuniões festivas das classes abastadas na Inglaterra eduardiana não foram exatamente o q u e lemos nas páginas de Henry J a m e s ; 8 a sociedade de J a m e s foi u m a idealização (de qualidade inferior) dessa sociedade, e não a antecipação de n e n h u m a outra. S u p o n h o q u e estejamos conscientes, mais em Virgílio do q u e em qualquer outro poeta latino — pois, se comparados a ele, Catulo 9 e Propércio 1 0 parecem rufiões, e Horácio um tanto plebeu —, de um r e f i n a m e n t o de maneiras que brota de u m a sensibilidade delicada, e particularmente nesse teste de maneiras, u m a c o n d u t a pública e privada entre os sexos. Não me c o m p e t e , n u m a reunião de pessoas, as quais todas p o d e m ser mais eruditas do q u e eu, recapitular a história de Enéias e Dido. 1 1 Mas sempre imaginei o encontro entre Enéias e a sombra de D i d o , no livro IV da Eneida, não apenas u m a das mais pungentes, mas t a m b é m u m a das mais civilizadas passagens em verso. Ela é complexa q u a n t o ao significado e económica do ponto de vista da expressão, pois não nos informa apenas sobre a atitude de D i d o , mas t a m b é m — o que é ainda mais importante — sobre a atitude de Enéias. 8. James, Henry. Romancista e contista norte-americano (Nova York, 1843 — Londres, 1916), irmào do filósofo pragmatista William J a m e s Passou a maior parte da vida na Europa e naturalizou-se cidadão inglês em 1916. Seu tema quase obsessivo é o conflito moral entre a m e n t a l i d a d e norte-americana e a européia, c o m o se pode ver em The Bostonian (1886), The turn of the screw (1898) ( n o Brasil. A

outra volta do parafuso ou Os inocentes). The wings of the dove (1902) e The gol den howl( 1914).

(N.T.)

9. Catulo, Caio Valério (em lat. Caius Valerius Catullus) Poeta latino (Verona, c. 87 — Roma, c. 54 a . C . ) . cuja breve existência foi preenchida pelos prazeres m u n danos e pela paixão por Lésbia. Dele sobrevivem cento e dezesseis p o e m a s , imitados dos poetas alexandrinos. ( N . T . )

10. Em lat. Sextus Aurelius Propertius. Poeta latino (Umbria, c 47 ? c. 15 a . C . ) que dedicou seus poemas à m u l h e r q u e celebrizou sob o n o m e de Cíntia. Suas elegias se inspiram nas dos alexandrinos, mas distinguem-se de simples imitações pela autêntica paixão erótica. Foram m u i t o traduzidas na Renascença. ( N . T . ) 11. Segundo a lenda, após várias peregrinações, Enéias, q u e escapara de Tróia q u a n d o da t o m a d a da cidade pelos gregos, foi a m a d o em Cartago pela rainha Dido, chegando depois à Itália, o n d e o rei do Lácio lhe deu a filha Lavinia em casamento. Os amores de Enéias e D i d o foram eternizados por Virgílio na Eneida. ( N . T . )

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O comportamento de Dido nos dá a impressão de ser quase uma projeção da própria consciência de Enéias, e percebemos que es se é o meio através do qual a consciência de Enéias poderia esperar que Dido se comportasse em relação a ele. A questão, me parece, não é a de que Dido se mostre inexorável, embora seja importante que, cm vez de zangar-se com ele, cia simplesmente o censura — talvez a mais eficiente censura em toda a poesia; o que importa sobretudo é que Enéias não se esqueça de si mesmo — e isso, significativamente, a despeito do (ato de que ele esteja bastante consciente dc q u e t u d o aquilo que fez, o fez de acordo com o destino, ou em conseqüência das intrigas dos deuses que são eles próprios, percebemo-lo, apenas instrumentos de um poder inescrutável superior. Aqui, o que seleciono como um exemplo de maneiras civilizadas continua a testemunhar uma consciência e u m a percepção civilizadas, mas todos os níveis em q u e podemos considerar um episódio isolado pcrtencem a um conjunto. Podcr-se-á observar, finalmente, que o comportamento das personagens de Virgílio (eu poderia excetuar Turnus, o h o m e m sem destino) jamais parece estar de acordo com algum código de conduta estritamente local ou tribal: ele pertence a seu t e m p o , tanto romano q u a n t o europeu. No plano dos costumes, Virgílio não é decerto um provinciano. Tentar demonstrar a maturidade da língua e do estilo virgilianos é, na presente ocasião, uma tarefa supérflua: muitos dc vocês poderiam se portar melhor do que cu, e imagino q u e todos deveríamos estar de acordo. Mas vale a pena repetir q u e o estilo dc Virgílio não teria sido possível sem que houvesse uma literatura a sua retaguarda, e sem que houvesse de sua parte um conhecimento muito íntimo dessa literatura, de m o d o que, cm certo sentido, ele estava reescrevendo a poesia latina, como nos casos cm que toma dc empréstimo uma frase ou uma invenção de um antecessor e as aperfeiçoa. Virgílio foi um autor culto, para o qual toda a erudição era relevante à sua tarefa; e teve à sua disposição, em termos de literatura, apenas o bastante atrás de si, e não mais do que isso. Q u a n t o à maturidade dc estilo, não creio que n e n h u m poeta tenha jamais desenvolvido um domínio maior da complexa estrutura tanto de sentido q u a n t o de som, sem perder o recurso da simplicidade direta, concisa e

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surpreendente q u a n d o a ocasião o exigia. Desnecessário alongar-me sobre isso, mas imagino q u e valha a pena dizer u m a palavra mais sobre o estilo comum, pois se trata de algo q u e não podemos ilustrar p e r f e i t a m e n t e a partir da poesia inglesa e para o qual somos capazes de tributar menos respeito do q u e o suficiente. Na m o d e r n a literatura européia, as mais íntimas aproximações com o ideal de um estilo c o m u m são provavelmente encontradas em Dante e Racine; q u e m dele mais se aproxima na poesia inglesa é Pope, e o estilo c o m u m de Pope é um estilo que, em comparação, revela um alcance m u i t o estreito. O estilo c o m u m é aquele q u e nos leva a exclamar, não este é um h o m e m de gênio no uso da l í n g u a " , mas este realiza o gênio da l í n g u a " . Não afirmamos isso ao 1er Pope, p o r q u e conhecemos muito bem todos os recursos da língua inglesa dos quais ele se serviu; p o d e m o s no m á x i m o dizer este realiza o gênio da língua inglesa n u m a d e t e r m i n a d a é p o c a " . Não afirmamos isso ao 1er Shakespeare e Milton, p o r q u e estamos sempre conscientes da grandeza do h o m e m e dos milagres q u e ele está realizando com a língua; estamos mais próximos talvez de Chaucer, mas é q u e Chaucer está utilizando, do nosso p o n t o de vista, u m a língua diferente e mais grosseira. Shakespeare e Milton, como demonstra a história mais recente, deixaram abertas muitas possibilidades para outros empregos do inglês na poesia, ao passo q u e , após Virgílio, é mais verdadeiro dizer que não se registrou n e n h u m desenvolvimento até a língua latina tornar-se algo diferente. A esta altura, gostaria de voltar à questão q u e anteriormente propus, isto é: se o aparecimento de um clássico, no sentido em que tenho utilizado o termo em todos os aspectos, constitui inteiramente, para o povo e a língua de sua origem, u m a pura bênção — ainda que isso seja indiscutivelmente um motivo de orgulho. Suscitar essa questão na m e n t e de alguém é quase tão simples q u a n t o meditar sobre a poesia latina depois de Virgílio e considerar cm que extensão os poetas q u e se lhe seguiram viveram e trabalharam à sombra de sua grandeza, de m o d o que os louvamos ou não, dc acordo com os padrões q u e ele estabeleceu, ou os admiramos, às vezes, pela descoberta dc alguma variação que era nova, ou mesmo apenas pela recombinação de modelos vocabulares destinados a proporcionar uma

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lembrança agradavelmente vaga do distante original. Mas a poesia inglesa c t a m b é m a francesa podem ser consideradas b e m sucedidas sob este aspecto: o de que os maiores poetas esgotaram apenas determinadas áreas. Não podemos dizer q u e , desde a época de Shakespeare, e respectivamente desde os tempos de Racine, tenha-se escrito algum drama poético realmente de primeira grandeza na Inglaterra ou na França; desde Milton não tivemos n e n h u m grande poema épico, embora t e n h a m sido estritos poemas longos de grande qualidade. E verdade que cada supremo poeta, clássico ou não, tende a esgotar o solo que cultiva, de modo que este, após a produção dc u m a colheita reduzida, deve afinal ser deixado sem cultivo por algumas gerações. Pode-se aqui objetar que o efeito sobre a literatura por mim atribuído ao clássico resulte não no caráter clássico dessa obra, mas simplesmente de sua grandeza, pois tenho negado a Shakespeare e a Milton a condição de clássicos no sentido em q u e estou utilizando o termo de forma cabal, c ainda q u e não haja admitido que n e n h u m a poesia superlativamente grande do mesmo gênero tenha sido desde então escrita. E incontestável o fato de que cada grande obra de poesia tende a tornar impossível a produção de obras igualmente expressivas da mesma espécie. A razão para isso pode ser parcialmente exposta em termos de propósito consciente: n e n h u m poeta de primeira ordem tentaria fazer novamente o que já foi feito tão bem q u a n t o p ô d e tê-lo sido em sua língua. Somente após ter sido a língua mais ainda a sua cadência do q u e o vocabulário e a sintaxe — modificada o bastante, com o correr do tempo e das transformações sociais, é que outro poeta dramático tão grande q u a n t o Shakespeare, ou outro poeta épico tão grande q u a n t o Milton, pode torná-lo possível. Não unicamente todo grande poeta, mas todo poeta autêntico, mesmo que poeta menor, satisfaz alguma possibilidade da língua, deixando então u m a possibilidade a menos para seus sucessores. O veio q u e ele esgotou pode ser muito p e q u e n o , ou pode representar alguma forma maior dc poesia, épica ou dramática. Mas o que o grande poeta esgotou foi apenas uma forma, c não a totalidade da língua. Q u a n d o o grande poeta é t a m b é m um grande clássico, ele esgota não apenas uma forma, mas t a m b é m a língua de sua

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época; e a língua de sua época, como ele a utilizou, será a língua em sua perfeição. De m o d o q u e não é o poeta sozinho que temos de levar em conta, mas a língua em q u e ele escreveu: não se trata simplesmente do fato de q u e um poeta clássico esgota a língua, mas de q u e u m a língua esgotável constitui a variedade lingüística q u e produz um poeta clássico. Podemos estar propensos a perguntar, p o r t a n t o , se não somos afortunados por dispor de u m a língua q u e , em vez de ter produzido um clássico, pode orgulhar-se de u m a rica variedade no passado e, além disso, da possibilidade de algo novo no f u t u r o . Mas e n q u a n t o estivermos dentro de u m a literatura, e n q u a n t o falarmos a mesma língua e tivermos f u n d a m e n t a l mente a mesma cultura q u e produziu a literatura do passado, desejaremos conservar duas coisas: o o r g u l h o de q u e nossa literatura já se cumpriu e a crença de q u e p o d e ainda cumprir-se no futuro. Se deixássemos de acreditar no f u t u r o , o passado deixaria de ser p l e n a m e n t e o nosso passado: tornar-se-ia o passado de uma civilização morta. E essa consideração deve atuar de forma particularmente irrefutável sobre a m e n t e daqueles que se comprometeram com a tentativa de contribuir para ampliar o repertório da literatura inglesa. Não há n e n h u m clássico na língua inglesa; por conseguinte, n e n h u m poeta vivo pode dizer q u e não resta ainda a esperança de q u e eu — e os que vierem depois de m i m , pois n i n g u é m p o d e encarar com serenidade, u m a vez q u e c o m p r e e n d e o q u e está implícito, a idéia de ser o derradeiro poeta — possa ser capaz de escrever algo que valerá a pena preservar. Mas do p o n t o de vista da eternidade, esse interesse pelo f u t u r o nada significa: q u a n d o duas línguas são ambas línguas mortas, não p o d e m o s dizer q u e u m a delas seja maior devido ao n ú m e r o e à diversidade de seus poetas, ou que a outra possa sê-lo p o r q u e seu gênio está mais cabalmente expresso na obra de um poeta. O q u e desejo afirmar, a um só e mesmo t e m p o , é isto: q u e , pelo fato de ser o inglês u m a língua viva e a língua na qual vivemos, p o d e m o s nos dar por satisfeitos de que ela jamais se realizou inteiramente em si na obra de um poeta clássico, mas q u e , por outro lado, o critério clássico é de importância vital para nós. Ele é indispensável para julgarmos nossos poetas em separado, embora nos recusemos a julgar nossa literatura como um todo em com-

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paração com aquela que produziu um clássico. Se a literatura culminasse n u m clássico, isso seria uma questão de sorte. Tratase a m p l a m e n t e , suponho, de uma questão relativa ao grau de fusão dos elementos dentro dessa língua, de m o d o que as línguas laiinas podem se aproximar mais i n t i m a m e n t e do clássico, não apenas porque são latinas, mas porque são mais homogêneas do que o inglês e, por conseguinte, t e n d e m mais naturalmente ao esti/o comum, enquanto o inglês, por ser a mais diversificada das grandes línguas no que se refere a seus elementos constitutivos, tende mais à variedade do que à perfeição, carece de um t e m p o maior para cristalizar sua potencialidade e contém ainda, talvez, possibilidades mais inexploradas. Ele tem, provavelmente, a maior capacidade para m u d a r e, não obstante, permanecer a mesma língua. Abordarei agora a distinção entre o clássico relativo e o clássico absoluto, a distinção entre a literatura q u e podemos chamar de clássica em relação a sua própria língua e aquela q u e é clássica em relação a u m a série de outras línguas. Antes de mais nada, porém, desejo registrar mais u m a característica do clássico, alénrdas q u e já enumerei, a qual nos ajudará a estabelecer essa distinção e sublinhar a diferença entre um clássico como Pope e outro como Virgílio. Convém aqui recapitular certas afirmações que fiz anteriormente. Logo de início sugeri que uma freqüente, senão universal, característica do amadurecimento dos indivíduos pode ser um processo de seleção (não de todo consciente), de desenvolvim e n t o de algumas potencialidades em detrimento de outras; e que a semelhança pode ser encontrada no desenvolvimento da língua e da literatura. Sc assim fosse, deveríamos esperar ser possível que n u m a literatura clássica menor, tal como a nossa no fim do século XVII e no século XVIII, os elementos excluídos, para atingir a maturidade, fossem mais numerosos e mais sérios, c que a satisfação diante do resultado fosse sempre qualificada por nossa consciência q u a n t o às possibilidades da língua, reveladas nas obras dc autores mais antigos, q u e haviam sido ignorados. A era clássica da literatura inglesa não é representativa do gênio total da raça; como insinuei, não podemos dizer que esse gênio esteja cabalmente consumado em n e n h u m período, resultando daí que podemos ainda, com referência a

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um ou outro período do passado, imaginar possibilidades para o futuro. A língua inglesa oferece um a m p l o espectro para legítimas divergências de estilo, q u e parece ser tal q u e n e n h u m a época, c certamente n e n h u m escritor, p u d e r a m estabelecer u m a norma. A língua francesa parece ter permanecido mais intimamente apegada a um estilo normal; todavia, mesmo em francês, embora a língua dê a impressão de q u e sc estabeleceu, definitivamente, no século XVII, hâ um sprit gaulois, um elemento de riqueza presente em Rabelais e em Villon, a consciência de que ele pode alterar nosso j u l g a m e n t o q u a n t o à totalidade de Racine ou Molière, pois sentimos q u e esta se acha não apenas irretratada, mas t a m b é m irrcconciliada. Podemos concluir, portanto, q u e o perfeito clássico deve ser aquele cm q u e todo o gênio de um povo esteja latente, senão de todo revelado; e que ele só pode se manifestar n u m a língua se t o d o o seu gênio puder estar presente de u m a vez. Devemos assim acrescentar, à nossa lista de características do clássico, a da comp letude. Dentro de suas limitações formais, o clássico deve expressar o máximo possível da gama total de s e n t i m e n t o q u e representa o caráter do povo q u e fala essa língua. Representá-lo-á o melhor que puder, e exercerá t a m b é m o mais a m p l o fascínio: junto ao povo a q u e pertence encontrará sua resposta entre todas as classes e condições h u m a n a s .

ção, pretender encontrar a semelhança aproximada com o clássico cm nenhuma língua moderna. E necessário remontar às duas línguas mortas; é importante que elas estejam mortas, pois graças à sua morte é que podemos penetrar cm sua herança (o fato de que estejam mortas não lhes daria n e n h u m mérito, a não ser a circunstância de que todos os povos da Europa são seus beneficiários). E de todos os grandes poetas gregos e romanos, julgo ser a Virgílio aquele a quem mais devemos pelo estabelecimento de nosso padrão do que seja um clássico, o q u e , volto a insistir, não é o mesmo que pretendê-lo como o maior de todos, ou aquele com o qual, de qualquer m o d o , mais estamos em dívida — é de uma dívida particular que falo. Sua completude, sua singular espécic de completude, é devida à situação única, em nossa história, do Império Romano c da língua latina — uma situação com cujo destino se p o d e dizer estar de acordo. Esse sentido de destino vem à consciência na Eneida. Enéias é cm si, do princípio ao fim, um " h o m e m com destino' , um h o m e m que não é nem um aventureiro nem um intrigante, nem um vagabundo nem um carreirista, mas um homem obediente ao seu destino, não por compulsão ou decreto arbitrário, e não certamente por qualquer desejo dc glória, por submeter sua vontade a um poder superior ao dos deuses q u e o frustrariam ou o dirigiriam. Ele teria preferido ficar em Tróia, mas optou pelo exílio, e por algo maior e mais significativo do que qualquer exílio: exilou-se por um propósito maior do que poderia imaginar, mas que reconhecia; c não é, n u m sentido h u m a n o , um homem feliz ou bem-sucedido. Mas é o símbolo de Roma; e assim como Enéias está para Roma, a antiga Roma está para a Europa. Assim, Virgílio adquire a centralidade do único clássico; ele está. no centro da civilização européia, n u m a situação que n e n h u m outro poeta pode usurpar-lhe ou dividir com ele. O Império Romano e a língua latina não constituíram um império qualquer nem uma língua qualquer, mas um império e uma língua com um destino único em relação a nós mesmos; e o poeta em cuja consciência e expressão cs se império e essa língua vieram à tona é um poeta de destino único.

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Q u a n d o u m a obra literária, além dessa c o m p l e t u d e relativamente a sua própria língua, revela idêntica significância em relação a várias outras literaturas, p o d e m o s dizer q u e possui t a m b é m universalidade. Podemos falar, por exemplo, merecid a m e n t e o bastante da poesia dc G o e t h e como constituindo um clássico, devido ao lugar q u e ela ocupa em sua própria língua e literatura. Mas, devido, ainda, a sua parcialidade, à impermanência de alguns de seus conteúdos, e ao germanismo da sensibilidade, por G o e t h e se revelar, para um olhar estrangeiro, limitado por sua época, por sua língua e por sua cultura, de m o d o a não ser representativo de u m a tradição européia global — e, como nossos autores do século XIX, um pouco provinciano — „ n ã o podemos considerá-lo um clássico universal. É ele um autor universal no sentido de que é um autor com cujas obras todo europeu viu-se obrigado a se familiarizar, mas isso é outra coisa. Não podemos tampouco, n u m a ou noutra avalia-

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Se Virgílio é, pois, a consciência de Roma e a suprema voz de sua língua, deve ter uma significação para nós que não

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pode ser expressa inteiramente em termos de apreciação literária e de crítica. Todavia, m a n t e n d o - n o s fiéis aos problemas de literatura, ou aos termos literários q u a n d o a b o r d a m o s a vida, podemos nos permitir ir além do q u e afirmamos. Em termos literários, o mérito de Virgílio reside para nós no fato de q u e ele nos proporciona um critério. Podemos, c o m o já disse, ter motivos para nos alegrar com a circunstância de q u e esse critério é fornecido por um poeta q u e escreve n u m a língua diferente da nossa, mas esta não constitui u m a razão para rejeitar o critério. Preservar o padrão clássico, e avaliar por meio dele cada obra literária individual, é comprovar q u e , e n q u a n t o nossa literatura em c o n j u n t o pode abarcar t u d o , cada u m a de suas obras pode ser imperfeita em algum p o r m e n o r . Pode se tratar de uma imperfeição necessária, de u m a imperfeição sem a qual certa qualidade nela presente se perderia, mas devemos vê-la como u m a imperfeição e ao m e s m o t e m p o c o m o u m a necessidade. À falta desse padrão a q u e me refiro, um padrão q u e podemos manter claramente diante de nós se confiarmos apenas em nossa própria literatura, nos inclinaremos, acima de tudo, a admirar obras de génios por motivos erróneos, como louvamos Blake por sua filosofia e Hopkins por seu estilo, e daí caminharemos para um erro maior, ao nivelarmos u m a categoria de primeira grandeza a u m a de segunda o r d e m . Em suma, sem a contínua aplicação da medida clássica, q u e devemos mais a Virgílio do que a qualquer outro poeta, tenderemos a nos tornar provincianos. Por "provinciano' e n t e n d o aqui algo mais do q u e encontro nas acepções dicionárias. Pretendo dizer mais, por exemplo, do que " n ã o possuir a cultura ou o requinte da capital·', embora, é claro, Virgílio fosse da capital, n u m a escala q u e torna qualquer poeta mais recente de igual estatura semelhante a um p e q u e n o regionalista; e p r e t e n d o dizer mais do q u e estreito no pensamento, na cultura, no c r e d o " — u m a definição traiçoeira, aliás, pois, de um ponto de vista liberal m o d e r n o , Dante foi " l i m i t a d o no p e n s a m e n t o , na cultura, no c r e d o " , embora, como m e m b r o da Igreja, fosse mais liberal do q u e conservador, q u e é o mais provinciano. Refiro-me t a m b é m a u m a distorção de valores, à exclusão de alguns, ao exagero de outros, que resultam, não de u m a falta de ampla circunscrição geográ-

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fica, mas da aplicação de padrões adquiridos dentro de u m a área restrita, para a totalidade da experiência h u m a n a , q u e conf u n d e m o contingente com o essencial, o efêmero com o permanente. Em nossa época, q u a n d o os homens parecem mais do que propensos a confundir sabedoria com conhecimento, e conhecimento com informação, e a tentar resolver problemas da vida em termos de engenharia, começa a emergir na existência uma nova espécie de provincianismo que talvez mereça um novo nome. E um provincianismo, não de espaço, mas de tempo, aquele para o qual a história é simplesmente a crónica dos projetos humanos que têm estado a serviço de suas reviravoltas e q u e foram reduzidos à sucata, aquele para o qual o m u n d o constitui a propriedade exclusiva dos vivos, a propriedade da qual os mortos não partilham. A ameaça dessa espécie de provincianismo é que podemos todos, todos os povos do m u n d o , ser provincianos juntos; e aqueles que não estiverem . satisfeitos em ser provincianos podem apenas tornar-se eremitas. Se essa espécie de provincianismo conduzir a uma tolerância maior, n u m sentido de indulgência, poderia haver mais a ser dito sobre ela; parece mais provável, contudo, que ela nos leve a nos tornar indiferentes a assuntos cm relação aos quais somos obrigados a manter um dogma ou um padrão característico, e a nos tornar intolerantes em assuntos que poderiam ser deixados à preferência local ou pessoal. Podemos ter quantas variedades de religião nos aprouver, desde que todos enviemos nossas crianças às mesmas escolas. Mas minha preocupação aqui é apenas com o corretivo para o provincianismo em literatura. Precisamos lembrar a nós mesmos q u e , como a Europa é um todo (c mais: cm sua gradual mutilação c desfiguração, o organismo fora do qual n e n h u m a harmonia mundial superior deve se desenvolver), assim também a literatura européia é um todo, cujos diversos membros não podem florescer se a mesma corrente sangüínea não circular por todas as partes do corpo. A corrente sangüínea da literatura européia é latina e grega, não como dois sisicmas dc circulação, mas um só, pois c através de Roma que nosso parentesco deve ser delineado na Grécia. Q u e unidade comum dc excelência temos nós na literatura, entre nossas várias línguas, senão a unidade clássica? Q u e inteligibilidade recíproca podemos pretender preservar, a não ser a de

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nossa herança c o m u m de p e n s a m e n t o e de sensibilidade naquelas duas línguas, para a compreensão de q u e n e n h u m povo europeu está em situação de vantagem com relação a q u a l q u e r outro? N e n h u m a língua moderna poderia aspirar à universalidade do latim, ainda q u e viesse a ser falada por milhões de pessoas a mais do q u e aquelas q u e talaram o latim e m e s m o que se tornasse o veículo de comunicação para os povos de todas as línguas e culturas. N e n h u m a língua m o d e r n a p o d e pretender produzir um clássico no sentido em q u e considero Virgílio um clássico. O nosso clássico, o clássico de toda a Europa, é Virgílio. Em nossas diversas literaturas temos m u i t a opulência da qual nos gabar para q u e a literatura latina seja c o m p a r a d a a quaisquer delas; mas toda literatura tem sua grandeza, não isoladamente, c sim graças ao lugar q u e ocupa n u m m o d e l o mais vasto, um modelo q u e se estabelece em Roma. Já talei da nova seriedade — poderia dizer gravidade , da nova percepção histórica, ilustrada pela devoção de Eneias a Roma, a um f u t u r o muito alem de sua realização viva. Sua recompensa foi pouco mais do q u e u m a estreita cabeça-de-praia e um casamento político n u m a extenuada meia-idade: sua j u v e n t u d e foi sepultada, a sombra dela se m o v e n d o com as trevas do o u t r o lado de Cumae. 1 2 De fato, disse e u , alguém intuiu o destino da Roma antiga. Assim podemos imaginar a literatura romana: à primeira vista, u m a literatura de alcance limitado, com um modesto repertório dc grandes nomes, ainda q u e tão universal q u a n t o n e n h u m a outra literatura conseguiu sê-lo; u m a literatura inconscientemente sacrificial, de acordo com seu destino na Europa, com a opulência e a variedade das línguas mais recentes, destinada a produzir, para nós, o clássico. Bastaria q u e esse p a d r ã o fosse estabelecido em definitivo; não cabe realizar n o v a m e n t e a tarefa. Mas a m a n u t e n ç ã o do padrão é o preço de nossa liberdade, a defesa da liberdade contra o caos. Podemos nos recordar dessa obrigação através de nossa prática anual de compaixão para com o grande espectro que guiou a peregrinação de Dante: aquele q u e , qualquer q u e fosse sua f u n ç ã o ao conduzir Dante rumo a u m a visão da qual jamais ele próprio poderia 12. Segundo Estrabão, a mais antiga (721 a . C . ) das colônias gregas no c o n t i n e n t e .

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desfrutar, conduziu a Europa para a civilização cristã q u e ele nunca poderia conhecer; e aquele que, ao pronunciar suas derradeiras palavras na nova língua italiana, disse ao se despedir: il temporal foco e l'eterno veduto hai, figlio, e sei venuto in parte dov Ίο per me più oltre non di scemo.1 s Meu filho, ο fogo eterno e o temporal já contemplaste, e eis-me chegado à parte que ultrapassar não posso, por rneu mal.14

13. Dante Alighieri. L· divina comme Ju, Purgatorio, Canto XXVII, 127-129. ( N . T . ) 1·ί. Ί rad. dc Cristiano Martins, A divina comedia. vol. 2, Itatiaia, Belo Horizonte. Editora da USP, São Paulo, 1979. ( N . T . )

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Revendo minha produção crítica destes últimos estranhos trinta anos, surpreendi-me ao perceber q u a n t o voltei insistentemente ao drama, quer por meio da análise da obra dos c o n t e m porâneos de Shakespeare, quer m e d i a n t e a reflexão sobre as possibilidades do f u t u r o . E possível até q u e as pessoas estejam cansadas de me ouvir falar sobre o assunto. Mas, do m e s m o modo como descubro q u e t e n h o escrito variações sobre o t e m a durante toda a minha vida, minhas concepções tem sido continuamente modificadas e renovadas pelo a c ú m u l o de experiências, de maneira q u e sou levado a fazer um novo balanço da situação a cada etapa de minha própria experimentação. C o m o tenho gradualmente a p r e n d i d o mais sobre os problemas do drama poético e sobre as exigências q u e ele deve satisfazer para se justificar, passei a me esclarecer um pouco não apenas no q u e se refere às m i n h a s próprias razões q u a n t o à ambição de escrever nessa forma, mas t a m b é m no q u e respeita às razões gerais que me levam a pretender vê-lo recolocado em seu lugar. E considero q u e , q u a n d o digo alguma coisa sobre tais problemas e condições, isso deveria tornar mais claro 1. Primeira das conferencias à memória de T h e o d o r Spencer, p r o n u n c i a d a na Universidade de Harvard e publicada pela Fáber & Faber e pela Harvard University Press em 1951. ( N . A . )

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para outras pessoas, se for o caso, por que o drama poético tem potencialmente algo a oferecer aos que freqüentam teatro q u e o drama em prosa não tem. Sc partirmos do pressuposto de que a poesia é apenas um ornamento, um enfeite q u e se acrescenta, que simplesmente proporciona às pessoas de gosto literário o prazer de ouvir poesia ao mesmo t e m p o cm que assistem a uma peça, então ela é supérflua. A poesia deve justificar a si mesma dramaticamente, e não apenas apresentar-se como esplêndida poesia adaptada a uma forma dramática. Concluise daí que n e n h u m a peça para a qual a prosa é dramaticamente adequada deveria ser escrita em verso. E daí sc conclui, novamente, que o público, com seu interesse mobilizado pela ação dramática, com suas emoções excitadas pela tensão entre as personagens, deveria permanecer p r o f u n d a m e n t e atento à peça para adquirir plena consciência dos recursos utilizados. Se usarmos no palco a prosa ou o verso, ambos constituirão apenas meios destinados a um fim. De certo ponto de vista, a diferença não é tão grande q u a n t o possamos imaginar. Nas peças em prosa que ainda sobrevivem, e que são lidas e encenadas por gerações mais recentes, a prosa que as personagens talam está tão distante, no melhor dos casos, do vocabulário, da sintaxe e do ritmo de uma linguagem c o m u m — com suas hesitações vocabulares, seus constantes recursos de aproximação, sua desordem e suas frases intermináveis — q u a n t o está o verso. Assim como o verso, essa prosa tem sido escrita e reescrita. Nossos dois maiores estilistas da prosa dramática — além de Shakespeare e de outros elisabetanos que misturaram prosa c verso na mesma peça — são, creio eu. Congreve c Bernard Shaw. A fala dc uma personagem de Congreve ou de Shaw tem embora as personagens possam estar claramente diferenciadas aquele inequívoco ritmo pessoal que constitui a marca de um estilo em prosa, do qual somente os mais consumados conversadores que, no que diz respeito ao assunto, são habitualmente criadores de monólogos — revelam algum indício em sua linguagem. Todos já ouvimos (e quão amiúde!) a personagem de Molière que exprime surpresa ao declarar que ele fala em prosa. Mas monsieur Jourdain é que estava certo, e não seu mentor ou seu criador: ele não falou em prosa, apenas conversou. E por isso que pretendo esboçar uma tripla distinção: entre

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a prosa e o verso e nossa linguagem c o m u m q u e está mais abaixo do nível tanto do verso q u a n t o da prosa. Assim, se vocês a encararem nesse sentido, parecerá q u e a prosa, no palco, é tão artificial q u a n t o o verso; ou, a l t e r n a d a m e n t e , q u e o verso pode ser tão natural q u a n t o a prosa. Mas e n q u a n t o o espectador sensível da plateia percebe, ao ouvir uma excelente prosa falada n u m a peça, q u e ela é algo melhor do q u e u m a conversa c o m u m , ele não a considera c o m o uma língua inteiramente distinta d a q u e l a q u e ele próprio fala, pois isso ergueria u m a barreira entre ele e as personagens imaginárias no palco. Por outro lado. muitíssimas pessoas aproximam-se de u m a peça q u e sabem estar escrita em verso conscientes da diferença. E u m a lástima q u a n d o são repelidas pelo verso, mas pode ser t a m b é m deplorável q u a n d o são atraídas por ele, caso isso signifique q u e estejam preparadas para desfrutar da peça e sua linguagem como duas coisas distintas. O principal efeito do estilo e do ritmo na linguagem dramática, quer em prosa, quer em verso, deveria ser inconsciente. Conclui-se daí que a mistura da prosa e do verso na m e s m a peça deve ser evitada, pois cada transição torna o espectador consciente, através de um sobressalto, do recurso utilizado. Podemos dizer q u e isso é justificável q u a n d o o autor deseja produzir tal sobressalto, isto é, q u a n d o p r e t e n d e deslocar violentamente a platéia de um plano da realidade para outro. Suspeito que essa espécie de transição fosse facilmente aceita por u m a platéia elisabetana, a cujos ouvidos t a n t o a prosa q u a n t o o verso chegavam naturalmente; por q u e m apreciava a comédia rasteira e bombástica na mesma peça; e a q u e m parecia talvez apropriado que as mais humildes e rústicas personagens devessem falar u m a linguagem chula, e n q u a n t o as de nível mais elevado deveriam se expressar em verso. Mas m e s m o nas peças de Shakespeare algumas das passagens em prosa parecem ter sido esboçadas para produzir um efeito de contraste q u e , q u a n d o o b t i d o , é algo que jamais se torna anacrónico. As batidas no portão em Mache//? são um exemplo q u e vem à m e n t e de q u a l q u e r u m ; mas por muito t e m p o me pareceu q u e a alternância das cenas cm prosa e em verso de Hennc/ue IV indicava um contraste irónico entre o m u n d o da alta política e o m u n d o da vida c o m u m . A platéia provavelmente imaginou que estes esti-

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vessem lhe proporcionando uma peça de crónica social costumeira com cenas divertidas da vida pobre; todavia, as cenas em prosa tanto da primeira parte q u a n t o da segunda desferem uma crítica sardónica às ruidosas ambições dos líderes dos partidos que se envolveram na insurreição dos Percy. 2 Hoje, todavia, devido às dificuldades q u e enfrenta o drama em verso, creio que o drama cm prosa deveria a rigor ser utilizado mais parcimoniosamente, que deveríamos almejar u m a forma de verso na qual tudo pudesse ser dito e q u e , q u a n d o encontrássemos alguma situação à qual o verso não se adaptasse, isso ocorreria apenas porque nossa forma de verso seria inelástica. E se f icasse provado haver cenas que não pudéssemos colocar em verso, deveríamos ou aprimorar nosso verso, ou evitar introduzir tais cenas, pois temos que acostumar nossas platéias ao verso até o ponto em q u e estas deixem de perceber que ele existe; e introduzir diálogos em prosa equivaleria apenas a desviar sua atenção da própria peça para o veículo por meio do qual ela se exprime. Mas se nosso verso for tão distenso a ponto de tornar-se incapaz de dizer o que hã para ser dito, concluise que não será poesia" durante todo o tempo. Só será " p o e sia' q u a n d o a situação dramática atingir tal ponto de intensidade que a poesia se torne elocução natural, porque então é a única linguagem na qual as emoções podem ser cabalmente expressas. E de fato necessário para qualquer poema longo, se desejarmos escapar à monotonia, ser capaz de exprimir coisas simples sem efeitos patéticos, bem como empreender os mais altos vôos sem abusiva sonoridade. E isso é ainda mais importante n u m a peça, especialmente se ela aborda a vida contemporânea. A razão para escrever até as partes mais prosaicas de uma peça em verso utilizando o verso em lugar da prosa, não é, todavia, apenas evitar chamar a atenção da platéia para o fato de que, em outros momentos, ela está ouvindo poesia. E que o verso rítmico t a m b é m deveria produzir seus efeitos nos ouvintes, sem que estes estivessem conscientes disso. Uma rápida análise de 2. Sene de revoltas ocorridas entre 1-103 e 1108. d u r a n t e o reinado de Henrique IV, inspiradas pela família Percy, n o t a d a m e n t e Henry Percy (1364-1403). c h a m a d o Hotspur, e seu tio T h o m a s Percy (13 11-1103). ( N . T . )

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uma peça de Shakespeare pode ilustrar esse aspecto. A cena de abertura de Hamlet — tâo bem construída quanto jamais o foi uma cena dc abertura dc qualquer peça já escrita até hoje — tem a vantagem de ser uma daquelas que todos conhecem. O que não percebemos, quando assistimos a essa cena no teatro, é a grande variação de estilo. Nada é supérfluo, e não há um único verso que não se justifique por seu mérito dramático. Os primeiros vinte e dois versos estão construídos com as mais simples palavras na linguagem mais trivial. Shakespeare trabalhou por longo tempo no teatro e escreveu um bom número dc peças antes dc atingir o ponto em que conscguiu escrever aqueles vinte e dois versos. Nada existe de absolutamente tão simples e seguro em seu trabalho anterior. Ele desenvolveu de início o verso familiar, coloquial, no monólogo da parte que pertence à personagem: Faulconbridgc, no Ret João, e posteriormente a ama em Romeu e Julieta Trata-se de um passo adiante para conduzi-lo discretamente ao diálogo de respostas curtas. N e n h u m poeta pode tornar-se um mestre do verso dramático até que consiga escrever versos que, como estes de Hamlet, sejam transparentes. Vocês estão conscientemente à espera, não da poesia, mas do significado da poesia. Se ouvirem Hamlet pela primeira vez, sem conhecerem nada da peça, não julgo que possa ocorrer a vocês perguntar se os interlocutores estão falando em verso ou em prosa. O verso destina-se a exercer sobre nós um efeito diferente da prosa, mas, no m o m e n t o , o que temos é a consciência da noite gelada, dos soldados q u e estão de guarda nas ameias e do presságio de uma ação trágica. Não digo que não haja nenhum lugar destinado à situação em que parte do prazer de alguém consista no regozijo de ouvir bela poesia, contanto que o autor proporcione, naquele lugar, a fatalidade dramática. E, naturalmente, quando não só assistimos por diversas vezes a uma peça, mas também a lemos entre as encenações, começamos a analisar os recursos graças aos quais o autor produziu seus efeitos. Mas no instante do impacto imediato dessa cena ignoramos os meios de que ele se valeu para expressar-se. Das curtas e bruscas exclamações no princípio, adequadas a situação e â índole dos guardas - mas que não expressam

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mais caráter do que o exige sua função na peça —, o verso desliza num movimento mais vagaroso ante a chegada dos cortesãos Horácio e Marcelo. Hora t io says 'tis but our fantasy. c o movimento m u d a novamente diante da aparição dc Majestade, o espectro do rei, com o solene e sonoro What art thou, that usurp'st this time of night. (...)4 (e observem, a propósito, essa antecipação da intriga transmitida pelo emprego do verbo usurpar)\ e a majestade é sugerida n u m a alusão q u e nos recorda q u e o fantasma é este: So frowndd he once. when, in an angry parle, He smote the sle de d Polac ks on the ice Há u m a mudança abrupta para stacatto nas palavras q u e Horácio dirige ao Espectro em sua segunda aparição; esse ritmo m u d a novamente com as palavras We do it wrong, being so majestic il, To offer it the show of violence: For it is, as the air, invulnerable, And our vain blows malicious mockery} A cena chega a uma decisão com as palavras de Marcelo: It faded on the crowing of the cock. Some say that ever gainst that season comes Wrhe re in our Saviour's birth is celebrated, The bird oj dawning singe t h all night long; (...)' \ " D i / Horácio q u e t u d o não passa de nossa imaginação.' I. ( N . T . ) ι

" Q u e m és tu, q u e usurpas esta hora da noite.

Hamlet, Ato I, Cena

Hjm/et, Ato I. Cena I. ( N . T . )

V "Ele franzia os sobrolhos do m e s m o m o d o , q u a n d o , n u m a entrevista confusa, / Derrubou de seus trenós os poloneses sobre o gelo.' Hamlet. Ato I, Cena I ( N . T . ) 6. "Fizemos mal, perante tanta majestade. / Oferecendo-lhe um espetáculo de violência, ' Porque e. c o m o o ar, invulnerável, / E nossos golpes vãos, u m a brincadeira c r u e l ! " Hamlet, Aro I, Cena I. ( N . T . ) 7. "Dissipou-se com o canto do galo. / Dizem q u e . q u a n d o está próximo o t e m p o / Da celebração do nascimento de nosso Salvador. / A ave da alvorada canta d u r a n t e a noite inteira. Hamlet, Ato I, Cena I. ( N . T . )

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e com a resposta de Horácio: have I heard and do in part believe it. But, look, the morn, in russet mantle clad\ Walks o 'er the dew of yon high eastern bill. Break we our watch up.s Isso é grande poesia, e é dramático; mas, além de poético e dramático, é algo mais. Ai allora, quando analisamos, uma especie de esboço também musical que reforça o movimento dramático e a ele se ajusta, retardando e acelerando o pulso de nossa emoção sem que disso nos apercebamos. Observem q u e nestas ultimas palavras de Marcelo há uma breve aparição do poético na consciência. Q u a n d o ouvimos os versos But, look, the morn, is russet mantle clad. Walks o *er the dew of yon high eastern hill somos afastados por um m o m e n t o para além da personagem, mas não com o sentido de inadequação das palavras q u e nos chegam, precisamente nesse m o m e n t o , dos lábios de Horácio. As transições cênicas obedecem às leis da música da poesia dramática. Reparem que os dois versos da fala de Horácio q u e citei por duas vezes estão precedidos por um verso de linguagem mais simples e que poderia estar tanto cm verso quanto em prosa: So have I heard and do in part believe it.10 e que ele os conclui de forma abrupta com um semiverso q u e provavelmente nada mais é que uma rubrica: Break we our watch up.u Seria interessante rastrear, por meio de uma análise semelhante, esse problema de duplo modelo no grande drama poético o modelo que pode ser examinado do ponto de vista da montagem de peças teatrais ou da música. Mas imagino que o exame 8. "Ε o que tenho ouvido e em que acredito em parte. / Mas, vede. a aurora, num manto avermelhado. / Caminha sobre o orvalho daquela alta colina ao Oriente. / Rendamos nossa g u a r d a . " Hamlet, Ato 1, C ena 1. ( N . T ) 9. Trata-se do segundo e terceiro versos traduzidos na nota 8. 10. 1 rata-se do primeiro verso traduzido na nota 8 11. Trata-se do último verso traduzido na nota 8.

dessa única cena baste para nos mostrar que o verso não constitui simplesmente uma formalização, ou um enfeite que se acrescenta, mas algo que intensifica o drama. Isso indicaria t a m b é m a importância do efeito inconsciente do verso sobre nós. E, finalmente, não julgo que esse efeito seja sentido apenas pelos integrantes de uma platéia que "gosta de poesia", mas t a m b é m por aqueles que desfrutam de uma peça sozinhos. Por pessoas que não gostam de poesia e n t e n d o aquelas que não conseguem se sentar com um livro de poesia e se satisfazer com sua leitura; t a m b é m essas pessoas, q u a n d o assistem a uma peça em verso, deveriam ser tocadas pela poesia. E são elas q u e constituem a plateia que o escritor de tais peças deve ter em m e n t e . A esta altura, eu poderia dizer u m a palavra sobre aquelas peças que t h a m a m o s de poéticas, embora estejam escritas em prosa. As peças de J o h n Millington Synge 12 são antes um caso especial, pois se baseiam no idioma de uma população rural cuja linguagem é naturalmente poética tanto no q u e se refere às imagens q u a n t o no que concerne ao ritmo. Creio q u e o autor chegou mesmo a incorporar frases que ouviu dessa população interiorana da Irlanda. A linguagem de Synge não é compreensível senão nas peças encenadas para essa mesma platéia. Podemos tirar conclusões mais genéricas a partir das peças em prosa (tão estimadas cm minha juventude, mas q u e agora dificilmente são lidas) de Maeterlinck, l a i s peças estão, n u m sentido distinto, limitadas por sua temática; e dizer q u e nelas a caracterização é obscura constitui u m a interpretação incompleta. Não nego que elas tenham certa qualidade poética. Mas para ser poético cm prosa, um dramaturgo tem dc ser tão consistentemente poético que seu alcance se torna muito restrito. Synge escreveu peças sobre personagens cujas réplicas vivas conversavam poeticamente, dc m o d o que pôde fazê-las dialogar em verso e permanecer como pessoas reais. O dramaturgo que escreve em prosa poética sem dispor desse privilégio tende a ser extremamente poético. O drama poético cm prosa está mais limi12. Synge, J o h n Millington. D r a m a t u r g o irlandês ( R a t h f a r n h a m , 1909), autor de peças "célticas" e altamente poéticas, como ( 1901) e The well o) the saints (1905), mas sua obra-prima é. sem boy of the U estern world (1907). Escreveu t a m b é m a tragedia que ficou inacabada ( N . T . )

1871 — D u b l i n . Ridden to the sea dúvida, The playsombria Dei rd re.

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tado pela convenção poética ou por nossas convenções, q u a n d o sua temática é poética, do que o drama poético em verso. Lm autêntico verso dramático pode ser utilizado, como o laz Shakespeare, para dizer as coisas mais corriqueiras. Yeats é um caso muito distinto dos de Maeterlinck ou Synge. Um estudo de sua evolução como dramaturgo revelaria, creio eu, a grande distância que os separa e o êxito de suas ultimas peças. Em seu primeiro período, ele escreveu peças em verso sobre temas convencionalmente adaptados como o exigia o verso, numa métrica que — embora denuncie, nesse primeiro estágio, o ritmo pessoal dc Yeats - não constitui a rigor u m a forma de linguagem inteiramente adequada a ninguém, à exceção de reis e rainhas míticos. As Plays for dancers do período intermediário são muito bonitas, mas não solucionam n e n h u m problema do dramaturgo com o verso: são peças em prosa poética com expressivos intcrlúdios em verso. Apenas em sua última peça. Purgatory, é que ele resolveu seu problema com a linguagem em verso, legando a todos os seus sucessores uma dívida para com ele.

comunicação, daquilo que o leitor dela irá receber, não é o primordial: se seu poema estiver correto para vocês, vocês só podem esperar q u e os leitores venham eventualmente a aceitá-lo. O poema pode aguardar um pouco; a aprovação dc alguns críticos simpáticos e criteriosos é o bastante para começar; e serve para que os futuros leitores entrem em contato com o poeta além da metade do caminho. Mas no teatro o problema da comunicação se apresenta de imediato. Vocês estão intencionalmente escrevendo verso para outras vozes, não para a sua, e não sabem que vozes serão essas. Vocês estão planejando escrever versos que tenham um efeito imediato sobre u m a platéia desconhecida e despreparada, a serem interpretados para essa platéia por atores desconhecidos ensaiados por um diretor desconhecido. E não cabe esperar que essa platéia desconhecida demonstre qualquer indulgência para com o poeta. O poeta não pode se permitir escrever sua peça simplesmente para seus admiradores, para aqueles que conhecem sua obra não-dramática e estão dispostos a receber favoravelmente t u d o aquilo em que puser seu nome. Ele deve escrever tendo em vista u m a platéia que tudo ignora e que não está absolutamente interessada cm qualquer antecipado sucesso que possa ter alcançado antes dc se aventurar ao teatro. Conseqüentemente, conclui-se q u e muitas das coisas que se gosta de fazer, c que se sabe como fazer, são inoportunas; e que qualquer verso deve ser julgado por uma nova lei, a da relevância dramática.

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Arriscar-me-ia a fazer agora algumas observações baseadas em minha própria experiência, o que me levará a comentar minhas intenções, malogros e êxitos parciais. Faço isso na suposição de que qualquer explorador ou experimentador em novo território pode, com base nos registros de uma espécie de diário de suas explorações, dizer algo de útil àqueles que o acompanham a certas regiões e àqueles que talvez possam ir mais longe. A primeira coisa de alguma importância que descobri foi que um escritor que trabalhou por muitos anos, e adquiriu certo sucesso ao escrever outros tipos de verso, tem que se aproximar do texto de uma peça em verso com uma estrutura menta! diferente daquela a que se habituou cm seu trabalho anterior. Ao escrever outro tipo de verso, julgo que se esteja escrevendo, por assim dizer, nas condições da própria voz: a maneira como ela soa quando vocês o lêem para si mesmos é o teste, porque são vocês mesmos que estão falando. O problema da

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Q u a n d o escrevi Murder m the cathedral13 eu tinha a vantagem, para um principiante, de uma ocasião que requeria um assunto geralmente admitido como apropriado ao verso. As peças em verso, como se havia em geral sustentado, deveriam tirar sua temática ou de alguma mitologia, ou, do contrário, de algum distante período histórico, afastado o bastante do presente para que as personagens não precisassem ser rcconhccíveis como seres humanos e, por conseguinte, estivessem autorizadas a dialogar em verso. Períodos pitorescos costumam tornar o verso muito mais aceitável. Alem disso, minha peça foi escrita com o objetivo de ser encenada para um tipo de platéia algo 13. É a primeira tias cinco peças escritas por Eliot, publicada em 1933. Alguns de seus fragmentos toram aprovei ι ados pelo autor em burnt Norton. o primeiro dos Four quartets, sob a forma de temas recorrentes. (Ν Γ )

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especial - uma platéia constituída por essas pessoas serias que freqüentam "festivais" e esperam edificar-se pela poesia embora talvez, nessa ocasião, algumas delas não estivessem em absoluto preparadas para aquilo a que iam assistir, h atinai era uma peça religiosa, e as pessoas que deliberadamente assistem a uma peça religiosa num festival religioso esperam ser pacientemente toleradas e se satisfazer com o sentimento de que cumpriram algo meritório. Assim, o c a m i n h o foi percorrido facilmente. Só q u a n d o pus minha cabeça para pensar no tipo de peça que pretendia escrever em seguida é que cheguei à conclusão de que, em Murder in the cathedral, eu não resolvera n e n h u m problema geral, mas, do meu ponto de vista, a peça não tinha saída. Em primeiro lugar, o problema de linguagem que essa peça me criou era especial. Felizmente, não tive de escrevê-la na língua do século XII, pois essa língua, ainda que eu conhecesse o francês normando e o anglo-saxão, teria sido ininteligível. Mas o vocabulário e o estilo não podiam ser exatamente os da conversação moderna — como em algumas peças modernas francesas que recorrem à intriga e às personagens do drama grego — porque eu não havia considerado minha platéia voltada para um acontecimento histórico; o fato, porém, é que eles não podiam dar-se o luxo de serem arcaicos: primeiro, porque o arcaísmo teria apenas sugerido o período errôneo; segundo, porque eu queria colocar a platéia a par da relevância contemporânea da situação. Por isso. o estilo tinha de ser neutro, não comprometido nem com o presente nem com o passado. Q u a n t o à versificação, eu só estava consciente àquela época de que o essencial era evitar qualquer imitação de Shakespeare, pois me convencera de que o malogro fundamental dos poetas do século XIX ao escreverem para o teatro (e a maioria dos maiores poetas ingleses se aventurou ao drama) não pode ser atribuído à sua técnica teatral, mas à sua linguagem dramática; e de que isso se devia em grande parte à sua limitação a um estrito verso branco que, após um abusivo emprego na poesia não-dramática, perdera a flexibilidade que o verso branco deveter caso pretenda proporcionar o efeito da conversação. O ritmo do verso branco regular tornara-se muito distante do movimento da linguagem moderna. Por conseguinte, o que eu tinha em

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m e n t e era a versificação de Everyman," na esperança de q u e qualquer raridade fonica aí incluída pudesse ser, no c o n j u n t o , proveitosa. Uma fuga do verso excessivamente iâmbico, certo emprego da aliteração e ocasionais rimas inesperadas ajudaram a distinguir a versificação daquela que se utilizou no século XIX.

A versificação do diálogo em Murder in the cathedral tem, por isso mesmo, em minha opinião, apenas um p o n t o negativo: ela foi bem-sucedida ao evitar o que tinha de ser evitado, mas isso não levou a n e n h u m a novidade positiva; em suma, na medida em q u e isso resolveu o problema da linguagem em verso para um texto de hoje, somente o resolveu para essa peça, não me fornecendo n e n h u m a chave para o verso que eu utilizaria em outro gênero de peça. Aqui, portanto, dois problemas ficaram sem solução: o da língua e o da métrica (na verdade são um mesmo problema), para uso geral em qualquer peça que eu desejasse escrever no futuro. Tornei-me em seguida conscio de minhas razões por ter permanecido, nessa peça, tão intensamente subordinado à ajuda do coro. Havia dois motivos para isso que, circunstancialmente, o justificavam. O primeiro era 0 de que a ação essencial da peça — tanto os fatos históricos q u a n t o o assunto que inventei — fosse algo limitada. Um h o m e m chega em casa prevendo que será assassinado, e o crime se consuma. Não pretendi aumentar o n ú m e r o de personagens nem escrever uma crônica sobre a política do século XII, como tampouco adulterar inescrupulosamente a situação com escassos registros históricos, como o fez Tennyson ao introduzir a bela Rosamunda e ao sugerir que Becket tenha sido infeliz no amor durante a primeira juventude. 1 5 Preferi fixar-me na morte e no martírio. A introdução de um coro de mulheres excitadas e algo histéricas, refletindo em sua emoção a relevância da ação, ajudou maravilhosamente. O segundo motivo foi este: o de que um poeta, ao escrever pela primeira vez para o palco, está 1 » Truta st* talvez do mais consumado exemplo entre as antigas moralidades inglesas (c 1529), coni passagens decerto destinadas a revitalizar o ensino específico de Roma. Escritas d u r a n t e os reinados de H e n r i q u e VI e H e n r i q u e VII, essas moralidades h a b i t u a l m e n t e alegorizam o conflito entre o bem e o mal, sem n e n h u m propósito de controvérsia religiosa. ( N . T . ) η Eliot alude aqui à tragédia Bei kel, q u e I cniivson escreveu em 188 i e q u e , após a morte do autor, alcançou extraordinário sucesso em quase todos os palcos ingleso. ( N . T . )

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muito mais à vontade no verso coral do que no diálogo dramático. Isso, sinto-o seguramente, era algo que eu podia lazer, e talvez a fragilidade dramática fosse um pouco neutralizada pelos gritos das mulheres. O emprego de um coro fortaleceu o poder e dissimulou as falhas de minha tecnica teatral. Por essa razão decidi que da próxima vez tentaria fazer com que o COTO se integrasse mais intimamente à peça. Pretendi descobrir também se aprenderia a dispensar inteiramente o uso da prosa. As duas passagens cm prosa de Mur der in the cathedral não podiam ter sido escritas em verso. E claro que, devido ao tipo de diálogo em verso que utilizei nessa peça, a platéia ficaria desconfortavclmente conscia de que era verso o que estava ouvindo. Um sermão protendo em verso constitui uma experiência bastante incomum até mesmo para o mais assíduo fiel: ninguém poderia em absoluto reagir a ele como a um sermão. E nas falas dos cavaleiros, que estão absolutamente cônscios de que se dirigem a uma platéia surda, o uso da prosa tribunícia destinou-se, é claro, a produzir um efeito especial: o de arrancar a platéia dc sua satisfação. Mas isso é uma espécie de truque, ou seja, um artifício cabível apenas em uma peça e inútil cm qualquer outra. Que eu saiba, admito ter sido ligeiramente influenciado por Saint Joan.16 Não desejo dar-lhes a impressão de que eu expurgaria da poesia dramática estas três coisas: a temática histórica ou mitológica, o coro e o tradicional verso branco. Não desejo formular nenhuma lei segundo a qual as personagens e as situações da vida moderna são as únicas adequadas, ou de acordo com a qual a peça cm verso consistisse apenas de diálogos, ou conforme a qual a versificação inteiramente nova fosse necessária. Estou apenas esboçando o roteiro de investigação de um escritor, e o meu. Se o drama poético quiser reconquistar seu lugar, deve, em minha opinião, entrar em franca competição com o drama em prosa. Como já disse, as pessoas estão dispostas a edificar-se com o verso que sai dos lábios de personagens vestidas com os figurinos de alguma época distante; conseqüentemente, deveriam elas estar preparadas para ouvi-lo das pessoas que se vestem como nós, que vivem em casas e apartamentos 16. Uma das mais conhecidas peças de George Bernard Shaw, escrita em 1923 (N T )

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como os nossos, e que usam telefones, automóveis c aparelhos de rádio. As platéias estão dispostas a aceitar a poesia recitada por um coro, porque se trata de uma espécie de recital de poesia que as leva a crer que se divertirão. E as platéias (aquelas constituídas de pessoas que se dispõem a assistir a uma peça em verso porque ela está escrita em verso) esperam que a poesia esteja composta em ritmos que perderam contato com a linguagem coloquial. O cjue temos de fazer é levar a poesia ao m u n d o em que essa platéia vive c ao qual retorna q u a n d o sai do teatro; mas não transportar a platéia para algum universo imaginário inteiramente alheio ao seu, um m u n d o irreal em que a poesia é tolerada. O que espero que possa ser realizado, por uma geração de dramaturgos que têm o privilégio de nossa experiência, é fazer a platéia descobrir, no instante em que se conscientiza de que está ouvindo poesia, que está dizendo para si mesma: Eu também poderia conversar em verso!". Logo, não deveríamos ser transportados para um m u n d o artificial; pelo contrário, nosso próprio m u n d o sórdido, cotidianamcnte sombrio, poderia ser de súbito iluminado e transfigurado. Por essa razão, em minha peça seguinte resolvi abordar um tema da vida contemporânea, com personagens do nosso tempo vivendo cm nosso m u n d o . O resultado foi The family reunion.1 Aqui, meu primeiro interesse foi com o problema da versificação, no sentido de encontrar o ritmo adequado à linguagem contemporânea, no qual aò sílabas tónicas podiam ser distribuídas de modo a descobrirmos onde naturalmente deveríamos colocá-las ao articularmos a frase particular na situação particular. O que decidi foi substancialmente o que já vinha utilizando: um verso de duração flutuante e de variado número de sílabas, com uma cesura e três acentos tônicos. A cesura e as sílabas tônicas podem ser dispostas em pontos diferentes, praticamente em qualquer lugar no verso; as sílabas tônicas podem estar muito próximas ou bastante afastadas por sílabas leves; a única regra é a de que uma sílaba tônica deve estar dc um lado da cesura e duas do outro. Em resumo, logo percebi que havia dirigido minha atenção para a versificação à custa da intriga e da personagem. Na verdade, eu conseguira algum progresso 1 " É a segunda peça de Eliot, publicada em 1939. C o m o a anterior, esta t a m b é m antecipa alguns dos temas recorrentes que iremos encontrar nos Four quartets. ( N . T . )

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ao prescindir do coro, mas o artifício de utilizar quatro das S personagens secundárias para representar a Família, às vezes Μ I como partes da personagem individual e às vezes coletivamenW t e como coro, não m e pareceu muito satisfatório. E m primeiro j· lugar, a transição imediata da parte individual, caracterizada, para a do integrante de um coro é exigir demais dos atores: ^B trata-se de uma transição muito difícil de realizar. Segundo, fll isso me pareceu um outro truque, aquele que, embora bemsucedido, poderia não ser aplicável em outra peça. Além disso, eu utilizara em duas passagens o artifício de um d u e t o lírico posteriormente retirado do resto do diálogo por estar escrito em versos mais curtos com apenas duas sílabas tônicas. Em certo sentido, tais passagens estão "além da personagem' e os interlocutores têm que ser apresentados como se estivessem mergulhados num estado semelhante ao transe para talar de si mesmos. Mas elas estão de tal modo distantes da necessidade da ação que dificilmente constituem mais do q u e trechos poéticos que não poderiam ser falados por ninguém; essas passagens se assemelham muito mais a árias operísticas. O espectador da platéia, se gosta desse tipo de coisa, entra em êxtase com a interrupção da ação dramática e passa a fruir de u m a fantasia poética; tais passagens estão a rigor menos associadas à ação do

que os coros em Murder in the cathedral. Observei que, quando Shakespeare, em uma dc suas peças maduras, introduz o que poderia parecer um verso ou trecho puramente poético, ele nunca interrompe a ação ou revela-se alheio à personagem, mas, pelo contrário, de algum m o d o misterioso fortalece tanto a ação quanto a personagem. Q u a n d o Macbeth diz suas tão freqüentemente citadas palavras To-morrow and to morrow and to morrow,18 ou quando Otelo, confrontado à noite com o sogro e os amigo s indignados, pronuncia o belo verso Keep up your bright swords, for the dew will rust them. 18. " A m a n h ã c amanhã c a m a n h ã . ' Macbeth. Aio V. Cena V. (Ν T . ) 19 " G u a r d a i vossas brilhantes espadas, pois o orvalho as e n f e r r u j a r á . " Otello. Ato I. Cena II. ( N . T . )

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não percebemos que Shakespeare haja concebido versos que expressam bela poesia e deseje ajustá-los de algum m o d o , ou que haja, por um instante, chegado ao fim de sua inspiração dramática e retornado à poesia para com ela preencher o vazio. Os versos são inesperados e, no entanto, se a d a p t a m à personagem; ou então somos levados a ajustar nossa concepção da personagem de tal m o d o que os versos se tornam a d e q u a d o s a esta. Os versos ditos por Macbeth revelam a fadiga do h o m e m fraco que foi obrigado por sua esposa a realizar seus próprios desejos timoratos e suas ambições e que, com sua morte, perde a razão para continuar. O verso de Otelo expressa ironia, dignidade e destemor; e incidentalmente nos recorda a noite em q u e a cena se desenrola. Somente a poesia poderia fazê-lo, mas é poesia dramática, ou seja, não interrompe, mas intensifica, a situação dramática. Não foi apenas graças à introdução de passagens q u e despertaram a atenção como poesia, e que não podiam se justificar dramaticamente, que considerei The family reunion defeituosa: havia duas fraquezas que viriam a me afligir como ainda mais graves. A primeira era que eu ultrapassara em muito o t e m p o estritamente limitado que se concede a um d r a m a t u r g o para q u e exponha uma situação, e não me concedi o t e m p o suficiente, ou não me abasteci com material bastante, para desenvolvê-la na ação. Eu havia escrito o que constituía, cm conjunto, um bom primeiro ato, muito embora ele fosse, para um primeiro ato, demasiado longo. Q u a n d o o pano subiu novamente, a platéia estava aguardando, como lhe compete aguardar, que algo fosse acontecer. Na verdade, ela se considera convidada a uma exploração que a conduza para além do f u n d o de cena: em outras palavras, àquilo que lhe deveria ter sido anunciado muito antes, se é que o foi. O início do segundo ato apresenta, na maioria das vezes, o mais difícil desafio para o diretor e o elenco, pois a atenção da platéia começa a se diluir. E então, após o que parece a essa platéia um interminável t e m p o de preparação, o desfecho chega tão a b r u p t a m e n t e q u e nos encontramos, afinal de contas, «despreparados para ele. Essa foi uma falha elementar na estrutura mecânica da peça. A mais aguda de todas as talhas, porém, ocorreu devido a um malogro na adaptação do episódio grego à situação moderna.

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Eu deveria, ou ter me apegado mais intimamente a Esquilo, " ou então tomado em boa parte mais liberdade com seu mito. Prova disso é a aparição daquelas desgraçadas figuras, as Fúrias. 21 Elas devem, no futuro, ser omitidas do elenco e se tornar visíveis apenas para algumas de minhas personagens, e não para o público. Tentamos todas as maneiras possíveis de representálas. Pusemo-las no palco, e elas se assemelhavam a hóspedes indesejados que perambulavam num baile à fantasia. Ocultamolas sob gazes, e elas nos deram a impressão de que haviam saído de um filme de Walt Disney. Tornamo-las mais sombrias, e elas pareciam moitas que se moviam do lado de tora da janela. Vi outros expedientes serem tentados: percebi-as fazendo sinais atrave's do jardim, ou enxameando no palco como um time de futebol, e jamais estavam corretas. Jamais funcionaram quer como deusas gregas, quer como fantamasgorias modernas. Mas seu malogro foi simplesmente um sintoma do fracasso em adaptar o antigo ao moderno. Uma evidência mais grave é a de que somos a b a n d o n a d o s numa estrutura mental dividida, ignorando se consideramos a peça como a tragédia da mãe ou como a salvação do filho. As duas situações não se reconciliam. Encontrei a confirmação disso no fato de que minhas simpatias se dirigem agora todas para a mãe, que me parece, não fosse talvez pelo motorista, o único ser humano completo na peça; e meu herói assalta-me agora como um intolerável gatuno. Bem, eu fizera algum progresso aprendendo como escrever o primeiro ato de uma peça, e — a unica coisa de q u e me sentia seguro — boa parte desse progresso fora obtida q u a n d o encontrei a forma de versificação e a linguagem q u e atenderiam a todos os meus propósitos, sem recorrer à prosa ou a transições descontínuas entre a mais intensa das falas e o mais frouxo diálogo. Vocês poderão compreender, após essas críticas q u e faço a The family reunion, alguns dos erros que me esforcei 20. Em gr. Aiskhylos. Poeta tràgico grego (Eleusis, perto de Atenas, c. 525 a . C . Gela, Sicília, 426 a.C.). pertencente a uma família da antiga nobreza ateniense. Escreveu mais de noventa tragédias, das quais sete chegaram completas até nossos dias. entre elas As suplicantes, Os sete contra Tebas, Prometeu acorrentado e a trilogia Ores tia Segundo Aristóteles, foi o criador da tragédia grega. ( N T ) 21. Na mitologia grega, divindades infernais. ( N . T . )

por evitar no projeto de The cocktail party.11 Para começar, nem coro nem fantasmas. Eu estava ainda inclinado a recorrer a um dramaturgo grego para urdir o meu tema, mas decidi fazêlo apenas como um p o m o de partida e para dissimular tão bem as origens de modo que ninguém pudesse identificá-las até q u e eu as revelasse por mim mesmo. Nisso, pelo menos, fui bemsuccdido, pois ninguém de minhas relações (e n e n h u m crítico teatral) reconheceu que a matriz de minha história era Alceste de Eurípedes. 2 3 Na verdade, tive dc descer a uma explicação detalhada para convencê-los — refiro-me, é claro, àqueles q u e estavam familiarizados com a trama dessa peça — da autenticidade da inspiração. Mas os que estavam inicialmente perturbados com o comportamento excêntrico de meu convidado desconhecido, ou com seus hábitos aparentemente destemperados e sua tendência a explodir n u m a canção, encontraram certo consolo ao ter sua atenção despertada para o c o m p o r t a m e n t o de Heracles na peça de Eurípedes. Em segundo lugar, impus-mc a regra ascética dc evitar qualquer poesia q u e não pudesse resistir ao teste da estrita utilidade dramática: com tamanho êxito, aliás, que talvez seja uma questão aberta não haver em absoluto qualquer poesia na peça. E, afinal, busquei ter em m e n t e q u e n u m a peça, de vez em quando, algo deveria acontecer, que a platéia deveria manter-se na constante expectativa de que algo vai acontecer e que, q u a n d o acontece, deveria ser diferente, mas não muito diferente, daquilo que o público fora induzido a esperar. Ainda não cheguei ao fim dc minha investigação q u a n t o às fraquezas dessa peça, mas espero e presumo descobrir mais do que aquelas de que já estou consciente. Digo espero" porque, assim como ninguém jamais repete um sucesso — e, por conseguinte, deve sempre tentar descobrir algo de diferente, ainda que menos popular, para fazer —, t a m b é m o desejo de escrever alguma coisa que esteja livre das falhas da última obra 22. É a terceira das peças de Eliot, publicada em 1949. ( N . T . ) 23 Em gr. Euripídés Poeta trágico grego (Salamina, c »85 a.C. Pela. Macedònia. 406 a.C ). considerado por Aristóteles o mais trágico d e n t r e todos os tragediógrafos de seu t e m p o . A obra a que Eliot se refere data de -1.38 a.C. Além dessa, c u m p r e lembrar A\ bacantes. Medeia, As troianas, Electra, Andrômaca, Efigênia em Tá uri da, lie/ena e Orestes. ( Ν . Τ )

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de alguém constitui um poderosíssimo e proveitoso incentivo. Estou ciente de que o último ato de minha peça somente escapa, se de fato escapa, à acusação de que não é um último ato, e sim um epílogo; e decidi fazer algo diferente, se o p u d e r , a esse respeito. E creio também que, assim como a auto-educação de um poeta que tenta escrever para o teatro parece exigir um longo período destinado a disciplinar sua poesia — e a submetê-la, por assim dizer, a uma severa dieta para adaptá-la às necessidades do palco —, ele pode, por outro lado, descobrir que mais tarde, quando (e se) o conhecimento da técnica teatral se tornar uma segunda natureza, será capaz de atrever-se a fazer um uso mais liberal da poesia e tomar maiores liberdades no que se refere à linguagem coloquial ordinária. F u n d a m e n t o essa crença na evolução de Shakespeare e em algum estudo da linguagem de suas últimas peças. Ao dedicar tanto tempo ao exame de minhas próprias peças, fui movido a fazê-lo, suponho, por um motivo maior do q u e o egoísmo. Parece-me que, se nos cabe ter um d r a m a poético, é mais provável que ele nos venha de poetas q u e a p r e n d e r a m como escrever peças do que de talentosos dramaturgos em prosa que aprenderam a escrever poesia. Q u e certos poetas sejam capazes de aprender como escrever peças, e boas peças, p o d e ser apenas uma esperança, mas não creio q u e se trate de u m a esperança absurda; mas que alguém que começou escrevendo peças em prosa de sucesso seja capaz de aprender como escrever boa poesia parece-me extremamente improvável. E, nas presentes condições, e até que a peça em verso seja reconhecida por um público mais numeroso como possível fonte de e n t r e t e n i m e n t o , o poeta provavelmente só terá sua o p o r t u n i d a d e de trabalhar para o palco após adquirir alguma espécie de notoriedade para si mesmo como autor de outros tipos de verso. Por isso foi m e u desejo registrar, já que pode ser valioso para outros, certa avaliação das dificuldades que tenho encontrado, dos equívocos em que tenho incorrido e das fraquezas que me sinto i n d u z i d o a tentar superar. Eu não gostaria de concluir sem tentar estabelecer para vocês, embora apenas em vagas linhas gerais, o ideal pelo qual o drama poético deveria pugnar. É um ideal inatingível:

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eis por q u e ele me interessa, porque fornece um estímulo às futuras experiências e explorações a partir de qualquer objetivo que alimente a expectativa de atingi-lo. E atributo de toda arte nos proporcionar certa percepção de u m a ordem na vida ao impor u m a ordem sobre ela. O pintor trabalha por meio da seleção, da combinação e da ênfase entre os elementos do m u n d o visível; o músico, no m u n d o do som. Parece-me q u e , para além das emoções e motivos reconhecíveis e classificáveis de nossa vida consciente q u a n d o orientada para a ação — a parte da vida que o drama em prosa é cabalmente capaz de expressar —, há uma franja de extensão indefinida, de sentim e n t o que só podemos vislumbrar, por assim dizer, com o canto do olho e q u e jamais podemos focalizar c o m p l e t a m e n t e ; de sentimento do qual só nos tornamos conscientes graças a u m a espécie de distanciamento da ação. Há grandes d r a m a t u r gos em prosa — como Ibsen e Tchékhov — q u e realizaram às vezes coisas das quais eu não imaginaria que a prosa fosse capaz, mas que me parecem, apesar de seu sucesso, ter sido prejudicados no q u e se refere à expressão por escreverem em prosa. Esse alcance peculiar da sensibilidade pode ser expresso pela poesia dramática em seus momentos de maior intensidade. Nesses momentos tangenciamos a fímbria daqueles sentimentos q u e apenas a música pode exprimir. Não podemos jamais competir com a música, pois chegar à condição de música equivaleria à extinção da poesia, especialmente da poesia dramática. Não obstante, t e n h o diante dos olhos u m a espécie de miragem da ação h u m a n a e das palavras, tal como apresentar de imediato os dois aspectos da ordem dramática e da ordem musical. Parece-me que Shakespeare a materializou pelo menos em algumas cenas — inclusive algo p r e m a t u r a m e n t e , pois há a cena do balcão de Romeu e Julieta —, e isso era o q u e ele estava se esforçando por obter em suas últimas peças. Ir tão longe q u a n t o possível nessa direção, sem perder aquele contato com o m u n d o ordinário cotidiano ao qual o drama deve se adaptar, parece-me o objetivo a d e q u a d o da poesia dramática. Por isso, afinal de contas, é função da arte, ao impor u m a ordem digna de crédito sobre a realidade ordinária — e, desse modo, trazer à superfície certa percepção de u m a ordem na realidade —, nos proporcionar uma condição de serenidade,

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de repouso e de reconciliação; e então nos deixar, como Virgílio deixou Dante, seguir para uma região cm que esse guia não poderá mais nos ser útil. NOTA A "POESIA E DRAMA" Como expliquei em meu Prefácio, a passagem nesse ensaio 1 que analisa a primeira cena de Hamlet foi extraída de uma conferência pronunciada alguns anos antes na Universidade de Edimburgo. Dessa mesma conferência de Edimburgo extraí a seguinte nota sobre a cena do balcão em Romeu e Julieta: Na primeira fala de Romeu ainda há certo artificialismo: Two of the fairest stars in all the heaven, Having some business, do intreat her eyes To twinkle in their sphers till they return.

E à Julieta cabe t a m b é m a palavra-chave " r e l â m p a g o " , q u e ocorre novamente na peça e que é sintomática da súbita e desastrosa intensidade de sua paixão, q u a n d o ela diz Tis like the lightning, which doth cease to be Ere one can say Ίί lightens '.1 Nessa cena, Shakespeare realiza uma perfeição dc verso que. sendo perfeição, nem ele nem ninguém mais pôde superálo no que se refere a esse propósito particular. A dureza, o artifitialismo, a ornamentação de seu verso inicial cede lugar, atinai, a uma simplificação da linguagem da fala natural, e essa linguagem de conversação ascende outra vez à grande poesia, à grande poesia que é essencialmente dramática, pois a cena possui u m a estrutura da qual cada verso é uma parte essencial.

Pois parece improvável que alguém situado abaixo, no nível do jardim, mesmo sob o intenso brilho do luar, pudesse perceber os olhos da amada cintilando tão luminosamente q u e fosse capaz de justificar tal comparação. Todavia, tem-se consciência dc q u e , desde o início dessa cena, há um modelo musical q u e se aproxima, tão inesperado cm seu gênero quanto aquele que se encontra nas primeiras obras de Beethoven. O arranjo de vozes — a Julieta cabem três únicos versos, seguidos por três, quatro e cinco de Romeu, aos quais se segue a mais longa das falas da heroína — é de fato notável. Nesse modelo percebe-se que cabe à voz de Julieta a parte principal; atribui-se à sua voz a frase dominante de todo o dueto: My bounty is as boundless as the sea, My love as deep: the more I give to thee The more I have, for both are infinite.26 24 Esse ensaio apareceu em sua forma primitiva como prefácio à tradução de The cocktail party, Aux Éditions du Seuil, Paris, 1952. ( N I ) 25. " D u a s das mais luminosas estrelas de todo o céu. / l e n d o alguma ocupação, suplicaram aos olhos dela / Q u e brilhassem em suas esferas até que elas voltass e m . " Romeu e Julieta, Ato II Cena II ( N T ) 26. " M i n h a bondade é tão ilimitada q u a n t o o mar, / E tão p r o f u n d o q u a n t o este é o meu amor: q u a n t o mais te dou / Mais tenho para dar-te, pois são ambos infinitos. Idem, ibidem. ( N . T . )

" M u i t o semelhante ao relâmpago que sc extingue / Antes q u e possamos d i z e r Esta r e l a m p e j a n d o ! ' " Idem. ibidem. (N T )

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Há pelo menos duas pessoas que poderiam ter discordado de mim nesse ponto: o Sr. e a Sra. Robert Browning. No poema O n e word m o r e " , escrito como epílogo a Men and women2 dirigido à Sra. Browning, o marido faz um surpreendente julgamento de valor: Rafael made a century of sonnets, Wade and wrote them in a certain volume, Dr η ted with the silver-pointed pencil Else he only used to draw Madonnas: These, the world might view but one. the volume. Who that one, you ask? Your heart instructs you... You and I would rather read that volume... Would we not? than wonder at Madonnas...

A primeira voz é a voz do poeta que fala consigo mesmo — ou com ninguém. A segunda voz é a voz do poeta ao dirigir-se a uma platéia, seja grande, seja p e q u e n a . A terceira é a voz do poeta quando tenta criar uma personagem dramática que fala em verso, quanto está dizendo, não o q u e diria à sua própria pessoa, mas apenas o que pode dizer dentro dos limites de uma personagem imaginária que se dirige a u m a outra personagem imaginária. A distinção entre a primeira e a segunda voz, entre o poeta que fala consigo mesmo e o poeta q u e fala com outra pessoa, conduz ao problema da comunicação poética; a distinção entre o poeta que se dirige a outra pessoa seja com sua própria voz, seja com uma voz hipotética, e o poeta q u e cria uma linguagem na qual personagens imaginárias falam entre si, aponta para o problema da diferença entre os versos dramático, quase dramático e nào-dramático. Desejo antecipar uma questão que alguns de vocês poderiam perfeitamente suscitar. Não pode um poema ser escrito para o ouvido, ou para o olho, de uma única pessoa? Poderiam vocês dizer simplesmente: " N ã o será a poesia de amor, às vezes, uma forma de comunicação entre uma pessoa e outra, sem nenhuma possibilidade de uma outra platéia?". 1. Decima primeira conferênua anual da Liga National do Livro, pronunciada em 1953 e publicada para essa instituirão pela Cambridge University Press. (N A )

Dante once prepared to paint an angel: Whom to please? You whisper 'Beatrice'... You and I would rather see that angel, Pat η ted by the tenderness of Dante. Would we not ? — than read a fresh Inferno.3 Concordo que um Inferno. ainda que escrito por D a n t e , é o que basta; e talvez não precisemos lamentar muito q u e Rafael não multiplicasse suas Madonas, mas só posso dizer q u e não sinto n e n h u m a curiosidade por quaisquer dos sonetos de Rafael ou dos anjos de Dante. Se Rafael escrevesse, e D a n t e pintasse, para os olhos de uma única pessoa, que sua privacidade fosse respeitada! Sabemos que o Sr. e a Sra. Browning gostavam de escrever poemas um para o outro porque os publicavam, e alguns deles eram bons. Sabemos que Rossetti 4 s u p u n h a estar 2

Coletânea publicada em 1855. ( N . T . )

3. "Rafael fez uma teniúria de sonetos, / Fê-los e escreveu-os n u m certo volume. / Gravados com o lápis de ponta de prata / Q u e usava apenas para desenhar Madonas: II Esi .is, ofertas ao m u n d o mas o volume, a uma só pessoa. ! Q u e m , perguntaria você? Seu coração lhe diz. . . / Você e eu bem q u e gostaríamos de 1er esse volume... / Não poderíamos? mais do q u e admirar Madonas... // D a n t e se preparou outrora para pintar um anjo: I Para agradar a q u e m ? A Beatriz, sussurrou você... / Você e eu bem q u e poderíamos ver esse anjo, I Pintado pela ternura de D a n t e , / Não poderíamos? em vez de 1er um novo I n f e r n o . " ( N . T . ) •1 Rossetti, Dante Gabriel Poeta e pintor inglês (Londres. I82H - Birchington, Kent. 1882), f u n d a d o r da Confraria Pre-Rafaelita q u e . cm 1847, se insurgiu contra a arte oficial Herdeira do csteticismo de Keats e Poe, sua poesia antecipa de certa forma o simbolismo. A obra citada por Eliot constitui um ciclo de sonetos, alguns dos quais figuram entre os mais belos da língua inglesa. ( N . T . )

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escrevendo os sonetos de sua House of life para uma única pessoa e que somente os exumou q u a n d o persuadido por seus amigos. Ora, não nego que um poema possa ser dirigido a u m a pessoa: há u m a forma conhecidíssima, nem sempre erótica no conteúdo, chamada A Epístola. Não teremos jamais u m a evidência conclusiva, pois o testemunho dc poetas sobre o q u e julgavam estar fazendo q u a n d o escreviam um poema não pode ser tomado em absoluto por moeda corrente. Mas m i n h a opinião é a de que um bom poema de amor, ainda que seja dirigido a uma pessoa, está sempre destinado a ser ouvido secretamente por outra. Seguramente, a linguagem a d e q u a d a do a m o r _ ou seja, da comunicação do ser a m a d o com q u e m quer que seja — é a prosa. Após rejeitar como ilusória a voz do poeta que fala apenas para uma pessoa, julgo que a melhor maneira para m i m , no que se refere à tentativa de tornar minhas três vozes audíveis, é delinear a gênese da distinção em minha própria m e n t e . O escritor em cujo espírito mais provavelmente ocorre a distinção é, sem dúvida, um escritor como eu. q u e passou um bom número de anos escrevendo poesia antes de tentar escrever para o palco. E possível, como tenho lido, que haja um e l e m e n t o dramático em muitas de minhas primeiras obras. E possível que, desde o início, eu aspirasse ao teatro — ou, como poderiam dizer alguns críticos hostis —, à Shaftesbury Avenue c à Broadway.' Todavia, cheguei aos poucos a conclusão de q u e , ao escrever versos para o palco, tanto o processo q u a n t o o resultado foram muito distintos do que o são q u a n d o se escrevem versos para serem lidos ou declamados. Há vinte anos fui encarregado de escrever uma peça pageant6 que deveria intitular-se The rock? O convite para escrever as palavras desse espetáculo — à epoca de um apelo destinado a angariar fundos para a construção de igrejas em novas áreas residenciais — chegou n u m V Equivalentes ingleses do teatro de bulevar. ( N . T . ) 6. Representação teatral de grandes proporções. de caráter alegórico, religioso ou lendário, q u e remonta às próprias origens do teatro inglês e q u e permaneceu em voga ate' o fim do século XVI. ( N . T . )

7. Publicado em 1934. Nos Collected poems 1909-1933 (1936) aparece com o m u l o dc Choruses from "The rock ' Eliot recorre aqu, as matrizes da herança biblica do Livro de Neemias. mais precisamente à construção do s e g u n d o T e m p l o de Nc.cmias. (Ν. Γ.)

m o m e n t o em que me pareciam esgotados meus escassos dons poéticos c q u a n d o eu nada mais tinha a dizer. Ser incumbido, n u m m o m e n t o desses, de escrever algo que, bom ou m a u , deve estar concluído em dcierrninada data, pode ter às vezes o mesmo efeito que tem um violento giro de manivela sobre um motor de automóvel q u a n d o a bateria está descarregada. A tarefa estava nitidamente delineada: eu tinha apenas de escrever as palavras do diálogo em prosa para as cenas do modelo habitual de pageant histórico, para o qual me haviam fornecido o cenário. Tinha também de providenciar um certo número de passagens corais em verso, cujo conteúdo foi deixado à minha própria imaginação, exceto q u a n t o à razoável determinação de que todos os coros mantivessem alguma relação com o objeto do pageant c de que cada coro ocupasse um certo n ú m e r o dc minutos do tempo de duração do espetáculo. Mas, ao realizar essa segunda parte de minha incumbência, nada havia q u e me despertasse a atenção para a terceira, ou voz dramática: era a segunda voz, a do poeta que se dirige a uma platéia — ou, a rigor, que arenga com ela —, a que mais distintamente se ouvia. Afora o óbvio fato de que escrever sob encomenda não significa o mesmo que fazê-lo para satisfazer-se a si próprio, aprendi apenas que o verso a ser dito por um coro deveria ser diferente do verso a ser dito por uma única pessoa; e q u e q u a n t o mais vozes houver num coro, mais simples e diretos devem ser o vocabulário, a sintaxe e o conteúdo dos versos. Esse coro de The rock não era uma voz dramática; embora muitos versos fossem distribuídos, as personagens não estavam individualizadas. Seus integrantes estavam falando para mim, c não articulando palavras que, na verdade, representassem qualquer personagem que eles s u p u n h a m ser. O coro em Murder in the cathedral representa, creio cu, algum avanço no desenvolvimento dramático, o que vale dizer: atribuí a mim mesmo a tarefa de escrever versos, não para um coro anónimo, mas para um coro de mulheres de Cantuária (alguém poderia quase dizer, faxineiras de Cantuária). Eu tinha de fazer algum esforço para me identificar com tais mulheres, cm vez dc simplesmente identificá-las comigo. Mas q u a n t o ao diálogo da peça, a intriga tinha o inconveniente (do ponto de vista de minha própria formação dramática) de apresentar ape-

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nas uma personagem dominante; e o conflito ocorria dentro do espírito dessa personagem. A terceira voz, ou voz dramática, não se tornou audível para mim senão q u a n d o abordei o problema de apresentar duas (ou mais) personagens envolvidas em alguma espécie de conflito, vítimas de um mal-entendido, ou que se empenhavam cm compreender-se m u t u a m e n t e , personagens com cada uma das quais eu tentava me identificar enquanto escrevia as palavras que eu ou elas deveríamos pronunciar. Vocês poderão se lembrar de que a Sra. Cluppins, no processo que opôs Bardei! a Pickwick, testemunhou q u e ' as vozes eram muito estridentes, senhor, e ecoavam em meu ouvid o " . 44 Bem, Sra. C l u p p i n s " , disse o sargento Buzfuz, 'você não escutava, mas ouviu as vozes. 8 Foi em 1938, portanto, que a terceira voz começou a ecoar em meu ouvido. A esta altura posso imaginar o leitor m u r m u r a n d o : Estou certo de que ele já disse tudo isso \ Recorrerei à memória suprindo a referência. Na conferência 4 Poesia e drama proferida exatamente há três anos e posteriormente publicada, eu disse: Ao escrever outro tipo de verso (isto é, o verso não-dramático), julgo que se esteja escrevendo, por assim dizer, nas condições da própria voz: a maneira como ela soa q u a n d o vocês o lêem para si mesmos é o teste, porque são vocês mesmos q u e estão falando. O problema da comunicação, daquilo q u e o leitor dela irá receber, não é primordial ( . . . ) " . Há certa contusão de pronomes nessa passagem, mas creio que o significado é claro, tão claro que ilumina o óbvio. Nesse ponto percebi apenas a diferença entre falar para si próprio e falar para uma personagem imaginária; e passei a outras considerações sobre a natureza do drama poético. Comecei por tomar consciência da diferença entre a primeira e a terceira voz, mas negligenciei a segunda voz, sobre a qual me alongarei mais em breve. Tentarei agora penetrar um pouco mais no â m a g o da questão. Assim, antes de começar a refletir sobre as outras vozes, quero alinhavar algumas palavras sobre as complexidades da terceira voz. 8 Esse diálogo pertence ao romance burlesco Pickwick papers (1836-1837) do e s m tor ingles Charles Dickens ( L a n d p o n , Portsmouth, 1812 Gadshill Rochester 1870). O episódio da injusta condenação imposta a Pickwick satiriza o sistema judiciário ingles. (N I )

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N u m a peça em verso, vocês provavelmente terão de encontrar palavras para diversas personagens que diferem imensamente umas das outras q u a n t o ao substrato h u m a n o , ao temperamento, à educação e à inteligência. Vocês não p o d e m se permitir identificar n e n h u m a dessas personagens com vocês mesmos e atribuir-lhe (a ela ou a ele) toda a " p o e s i a " a ser dita. A poesia (ou seja, a linguagem nesses momentos dramáticos em q u e ela atinge sua intensidade) deve estar tão d i f u s a m e n t e distribuída q u a n t o o permita a natureza das personagens; e cada u m a das personagens — q u a n d o há falas a dizer que são poesia, e não simplesmente versos —, deve ser contemplada com versos adequados a si própria. Q u a n d o a poesia aflora, a personagem no palco não deve dar a impressão de que é apenas um porta-voz do autor. Conseqüentemente, o autor está limitado pelo gênero de poesia e pelo grau de intensidade nesse gênero, que pode ser plausivelmente atribuído a cada personagem de sua peça. E essas passagens poéticas em verso devem t a m b é m justificar-se pela maneira como fazem evoluir a situação cm que são elas pronunciadas. Mesmo que uma explosão de esplêndida poesia esteja adequada o bastante à personagem à qual se destina, ainda assim é preciso que ela nos convença de que é necessária à ação dramática, que ajude a extrair a máxima intensidade emocional da situação. O poeta que escreve para o teatro pode, como o percebi, cometer dois erros: o de atribuir a u m a personagem passagens poéticas em verso impróprias a serem ditas por essa personagem, e o de atribuir versos que, embora adequados à personagem, não conseguem fazer progredir a ação da peça. Em alguns dos dramaturgos clisabetanos menores há passagens de magnífica poesia que estão cm ambos os aspectos fora de lugar, passagens suficientemente belas para que a peça sobreviva para sempre como obra literária, mas ainda assim incapazes dc fazer com que a peça se torne uma obra-prima dramática. Os exemplos mais conhecidos estão no 'Γα τη burlarne de Marlowe." 9 Marlowe, Christopher. Poeta e d r a m a t u r g o ford, perto de Londres, 159^). A tragèdia em duas partes, respectivamente publicadas em escreveu, entre outras, a hamous tragedy o) the

inglês (Canterbury. 1564 DeptTamburinine the Great está dividida 1590 e 1593. Alem desta, Marlowe neh jew of Malta (c. 1592, impressa

em 163 5) e The tragical history of doctor Pausi us (public. 1604), que Eliot define ι omo u m a "farsa trágica". ( Ν . Τ )

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Como os maiores poetas dramáticos — Sófoclcs, 1 Shakespeare ou Racine — enfrentaram essa dificuldade? Esse é, naturalmente, um problema que interessa a toda a ficção imaginativa — romances e peças em prosa — na qual se pode dizer que as personagens estão vivas. No que me concerne, não vejo como fazer uma personagem ganhar vida se não se nutre por ela u m a profunda simpatia. Idealmente, um dramaturgo, que tem habitualmente de manipular muito menos personagens do que um romancista — e que dispõe apenas de duas horas dc vida, ou pouco mais, para lhes conceder —, deveria simpatizar prof u n d a m e n t e com todas as suas personagens; mas isso é como aconselhar a perfeição, pois a intriga de uma peça até mesmo com um modestíssimo elenco pode exigir a presença de uma ou mais personagens cuja realidade, caso desconsideremos sua contribuição à ação dramática, não nos interessa. Pergunto-me, todavia, se é possível tornar inteiramente real uma personagem de todo abominável — dessas pelas quais nem o autor nem ninguém pode sentir senão antipatia. Precisamos misturar fraqueza espiritual com virtude heróica ou vilania satânica para tornar plausível a personagem. Iago me assusta mais do que Ricardo

III; tenho dúvidas de que Parolles, em All's well that ends well, me perturbe mais do que Iago. (E estou absolutamente certo de que Rosamund Vincy, em Middle march,11 me atemoriza muito mais do que Goneril ou Regan. 12 ) Parecc-me que o que ocorre, quando um autor cria uma personagem vital, é uma espécie de intercâmbio. O autor pode colocar nessa personagem, além de outros atributos, algum traço que lhe pertence, alguma força ou fraqueza, alguma tendência à brutalidade ou à indecisão, ou mesmo alguma excentricidade que descobriu em si próprio. Algo que talvez jamais realizou em sua própria vida, algo que aqueles que melhor o conhecem podem ignorar, algo cuja transmissão não se restringe às personagens do mesmo 10. Em gr. Sophokles. Dramaturgo grego (Atenas, c. 495 a.C. — id. 406 a . C . ) . Segundo a tradição, escreveu cerca de cento e vinte peças, sete das quais se preser-

varam até nossos dias, entre elas Antífona, Édipo rei, Electra. As Iraq ut mas e Édipo em Colonos. Foi homenageado e festejado, a part.r de 468 a . C . , como o maior poeta trágico da Grécia. ( N . l )

11. M iddlemarch a ttudy of provincial life (1871-1872) é a obra-prima da romancista inglesa George Eliot. ( N . T . ) 12. Os dois filhos ingratos do Rei Lear, de Shakespeare. ( N . T . )

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temperamento, da mesma idade e, menos ainda, do m e s m o sexo. Cada parcela de si q u e o autor concede a uma personagem pode constituir o germe a partir do qual a vida dessa personagem se desenvolve. Por outro lado, u m a personagem q u e consegue interessar o autor pode fazer aflorar potencialidades latentes que nele se encontravam adormecidas. Creio q u e o autor transmite algo em si às suas personagens, mas creio também que ele é influenciado pelas personagens q u e cria. Seria muito fácil perder-se num labirinto de especulações sobre o processo pelo qual uma personagem imaginária pode tornarse tão real para nós q u a n t o alguém q u e conhecemos. Só penetrei tão a f u n d o nesse labirinto para indicar as dificuldades, as limitações e o fascínio, para um poeta que se acostumou a escrever poesia em seu próprio nome, do problema q u e é fazer com q u e as personagens imaginárias falem em termos de poesia; e para caracterizar a diferença abismal q u e existe entre escrever para a primeira e a terceira vozes. A singularidade de minha terceira voz, a voz do drama poético, manifesta-se de uma outra maneira pela comparação dela com a voz do poeta na poesia não-dramática que tem em si um elemento dramático — e, acima de tudo, no monólogo dramático. N u m m o m e n t o de distração crítica. Browning dirigia-se a si mesmo nos seguintes termos: 4 Robert Browning, tu, escritor de peças . Quantos dentre nós leram u m a peça deBrowning mais de uma vez? E, se chegaram a fazê-lo, teriam sido contemplados com o prazer que esperavam? Q u e personagem, n u m a peça de Browning, permanece viva em nossa mente? Por outro lado, quem pode esquecer Fra Lippo Lippi, ou Andrea del Sarto, ou o bispo Blougram, ou aquele outro bispo que encomenda um túmulo? 1 3 Pareceria, sem precisar ir mais longe, que, a partir da mestria de Browning no trato com o monólogo dramático, e de sua contribuição mais modesta ao drama, as duas formas devem ser essencialmente distintas. Há, talvez, uma outra voz que não foi possível escutar, a voz do poeta dramático cujas virtudes dramáticas são mais bem cxerci-

13 Todas essas personagens pertencem à coletânea de poemas Men and women. de Browning, já mencionada na nota 2. ( N . T . )

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das fora do teatro. E, certamente, se alguma poesia, não esenta para o palco, merece ser caracterizada como "dramática , esta seria a de Browning. N u m a peça, como já disse, um autor deve estar dividido entre lealdades; deve simpatizar com personagens q u e p o d e m de algum modo não ser simpáticas umas às outras. E deve distribuir a " p o e s i a " tão largamente quanto o permitam as limitações de cada personagem imaginária. Essa necessidade de dividir a poesia implica certa variação do estilo poético de acordo com a personagem à qual ela é atribuída. O fato de q u e certo número de personagens numa peça tenha direitos sobre o autor quanto à distribuição de falas poéticas obriga-o a tentar extrair a poesia da personagem em vez de impor-lhe sua poesia. Ora, n u m monólogo dramático não enfrentamos tal obstáculo. O autor pode tanto identificar perfeitamente a personagem consigo mesmo quanto identificar-se t o m ela, pois o obstáculo que o impediria de ir adiante não existe mais — e esse obstáculo é a necessidade de se identificar com qualquer outra personagem que responda em primeiro. Na verdade, o q u e normalmente ouvimos num monólogo dramático é a voz do poeta, q u e passa a usar o traje e a máscara, seja de alguma personagem histórica, seja de outra que não pertença à ficção. Sua personagem deve estar identificada para nós — t a n t o como indivíduo quanto, pelo menos, como tipo — antes q u e comece a falar. Se, como freqüentemente ocorre em Browning, o poeta estiver falando no papel de uma personagem histórica, c o m o Lippo Lippi, ou no papel de uma personagem conhecida da ficção, como Caliban, ele se apodera dessa personagem. E a diferença é mais evidente em seu "Caliban upon S e t e b o s " . Em The tempest é Caliban q u e m fala; em " C a l i b a n u p o n Setebos" é a voz de Browning que ouvimos. Browning falando em voz alta pela boca de Caliban. Foi o maior discípulo de Browning, o Sr. Ezra Pound, que adotou o termo persona para indicar as diversas personagens históricas por meio das quais ele fala. E o termo é correto. Arrisco-me também à generalização — que pode, a rigor, ser muito vasta — de que o monólogo dramático não pode criar uma personagem, pois esta é concebida e materializada somente numa ação, numa comunicação entre pessoas imaginárias. Não

é sem razão que, q u a n d o o monólogo dramático não é colocado na boca dc alguma personagem já conhecida do leitor — da história ou da ficção —, provavelmente façamos a pergunta: " Q u e m era o original?". Com relação ao bispo Blougram, as pessoas se mostram sempre inclinadas a perguntar: em q u e medida se pretendia um retrato do cardeal Manning ou de algum outro religioso? Q u a n d o , como o faz Browning, o poeta fala com sua própria voz, ele não pode dar vida a uma personagem; pode apenas imitar uma personagem de algum m o d o por nós conhecida. Mas a essência da imitação não reside no fato de que reconhecemos a pessoa imitada e no relativo malogro da ilusão? Devemos estar conscientes de q u e a imitação e a pessoa imitada são pessoas distintas: se formos dc fato iludidos, a imitação se torna uma impostura. Q u a n d o ouvimos u m a peça de Shakespeare, não ouvimos Shakespeare, mas suas personagens; q u a n d o lemos um monólogo dramático de Browning, não podemos supor que estejamos ouvindo qualquer outra voz que não seja a dele. No monólogo dramático, portanto, é seguramente a segunda voz, a voz do poeta que fala com outra pessoa, que predomina. O simples fato de que ele assume um papel, de que está falando por meio de uma máscara, implica a presença de u m a platéia: por que deveria alguém usar máscara e fantasia para falar consigo mesmo? A segunda voz é, na verdade, a voz mais freqüente c claramente ouvida na poesia que não pertence ao teatro; cm toda poesia, é claro, há um propósito social consciente — poesia que pretende divertir ou instruir, poesia que conta uma história, poesia que prega ou sugere uma moral, ou u m a sátira que é uma forma dc doutrinação. Pois onde estaria o sentido de uma história sem uma platéia, ou de um sermão sem u m a congregação? A voz do poeta que se dirige a outra pessoa é a voz dominante da poesia épica, embora não a única voz. Em Homero, por exemplo, ouve-se t a m b é m , vez por outra, a voz dramática: há momentos em que ouvimos, não Homero a nos contar o que disse um herói, mas a voz do próprio herói. A divina comedia não é, no sentido estrito, uma poema épico, mas nela também ouvimos homens e mulheres que falam conosco. E não temos n e n h u m a razão para supor que a simpa-

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tia de Milton por Satã fosse tão exclusiva que ele tivesse parte com o Demônio. Mas o poema epico é essencialmente uma história que se conta para um público, enquanto o drama é essencialmente uma ação que se expõe diante de uma platéia. Ora, o que dizer da poesia da primeira voz — aquela que não é primordialmente uma tentativa cabal para nos comunicarmos com alguém? Devo salientar que essa poesia não é, a rigor, o que chamamos vagamente de "poesia lírica". O termo lírico é em si insatisfatório. Consideramos inicialmente o verso escrito para ser cantado — das canções de Campion, Shakespeare e Burns 1 1 às árias dc W. S. Gilbert, 1 5 ou às palavras dos últimos números de music-hall. Mas o aplicamos também à poesia que jamais foi composta para um quadro musical, ou que dissociamos dc sua música; falamos do "verso lírico' dos poetas metafísicos, de Vaughan e Marvell, 16 assim como de D o n n e e Herbert. A verdadeira definição de "lírico" no Dicionário de Oxford revela que a palavra não pode ser satisfatoriamente definida:

these yellow s a n d s " , 1 7 ou " H a r k ! Hark! the lark!" I H são versos líricos não é mesmo? , mas que sentido existe em dizer que eles expressam diretamente os pensamentos e as emoções do poeta? London, The vanity of human wishes,19 The deserted village20 são poemas que parecem expressar os pensamentos c as emoções do poeta, mas será que porventura consideramos tais poemas como líricos"? Eles decerto não são curtos. Todos os poemas que acabo de mencionar parecem não poder ser qualificados como líricos, bem como os Srs. Daddy Longless e Floppy Fly21 não puderam ser considerados palacianos:

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Lírico: Palavra que designa atualmente poemas curtos, geralmente divididos em estâncias ou estrofes, e que exprimem diretamente os pensamentos e as emoções do poeta. Quão curto deve ser um poema para ser chamado de lírico"? A ênfase sobre a brevidade e a sugestão da divisão em estâncias parecem ser tudo o que resta da associação da voz com a música. Mas não há necessariamente uma relação entre a brevidade e a expressão dos pensamentos e emoções do poeta. " C o m e u n t o

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One never more can go to court. Because his legs have grown too short; The other cannot sing a song, Because his legs have grown too long!22 E obviamente lírico no sentido de um poema q u e "expressa os pensamentos e as emoções do p o e t a " , e não no sentido desconexo de um poema curto destinado a ser posto em música, que se relaciona à minha primeira voz — a voz do poeta q u e fala consigo mesmo, ou com ninguém. É nesse sentido q u e o poeta alemão Gottfried Benn, 2 3 n u m a conferência dc fato interessante intitulada " P r o b l e m e der Lyrik" ( " O problema do poema lírico"), considera o poema lírico como a poesia da primeira voz: ele inclui aí, estou certo, poemas como as Elegias 17. " V e m para essas areias amarelas. Primeiro verso de uma canção de Ariel em A tempestade, Ato 1, Cena II. de Shakespeare. ( N . T . ) 18. "Escuta! Escuta! A cotovia!" (N T.) 19. Dois poemas de Samuel J o h n s o n . ( N . T . )

14. Burns. Robert Poeta escocês (Allowcy, Ayrshire. 1759 Dumfries, 1796), segundo o qual a poesia e a música eram a linguagem do amor Considerado o

poeta nacional da Escócia, escreveu Poems, chiefly m the Scottish dialect (1786) e resgatou as canções do folclore escocês nos cinco volumes de The Scotch musical museum (1787-1797). ( N . T . ) 15. Gilbert, William Schwenck. Poeta e dramaturgo inglês (1836-1911). famoso por sua colaboração com o compositor Sir Arthur Sullivan particularmente no que se refere à produção de numerosas óperas cômicas. ( N . T . ) 16. Marvell. Andrew. Poeta e pregador inglês (Winestead. 1621 Londres, 1678). Amigo de Milton e D o n n e , seus textos estão impregnados de um classicismo obscuro, à exceção do extraordinário e transparente " T o his coy mistress", em que renova o tema do carpe diem horaciano. Suas obras poéticas foram publicadas sob o título d t Miscelaneous poems (1681). ( N . T . )

20. Poema de Oliver Goldsmith, poeta, romancista e d r a m a t u r g o inglês (Pallsmore, Longford, Irlanda, c 1730 Londres, 17 7 4). Além do poema citado por Eliot, que data de 1~*70. c u m p r e lembrar The traveller {MM), bem como o romance The

vicar of Wakefield (1766) e a comedia The stoops to conquer (1771). (N.T.) 21 Personagens de Edward Lear que se encontram n u m livro para crianças americanas. ( N . T . ) 22. " U m jamais poderá ir à corte, / Porque suas pernas cresceram m u i t o pouco; / O outro não pode cantar uma canção. / Porque suas pernas cresceram demais!" ( N . T . ) 23. Benn. Gottfried. Poeta alemão (Mansfeld. 1886 Berlim. 1956). Foi sempre um anarquista e, por desespero, mergulhou no niilismo. Sua obra está repleta de metáforas violentas e brutais, como em Morgue (1912). Fleisch (Carne, 1917),

Schutt (Escombros, 1919), Statische Gedichte (Poemai estáticos, 1948) ou Der Ptoiernaer (O Ptolomeu, 1949). (N.T.)

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de Duino, de Rilke, e La jeune Parque (A jovem Parca), de Valéry. O n d e ele fala de "poesia lírica", portanto, eu preferiria dizer "verso meditativo". Pelo quê, pergunta Herr Benn nessa conferência, começa o escritor de um poema " q u e não se dirige a n i n g u é m " ? Antes de mais nada, diz ele, há um embrião inerte ou " g e r m e criati-

vo" (ein dumpfer schöpferischer Keim24) e, por outro lado, a

linguagem, os recursos verbais à disposição do poeta. Há alguma coisa que nele germina para a qual ele precisa encontrar palavras, mas ele não sabe de que palavras necessita até q u e as descubra; não sabe identificar esse embrião até que este seja transformado numa combinação de palavras justas n u m a ordem correta. Quando vocês encontram as palavras, a coisa" para a qual estas têm de ser encontradas desapareceu, e eis que um poema as substituiu. O ponto do qual vocês partiram não tem sequer a clareza de uma emoção, em qualquer sentido ordinário do termo; é decerto algo menos que uma idéia; é — para adaptar dois versos de Beddoes 2
bodiless childful of life in the gloom Crying with frog voice, 'what shall 1 be? 20 Concordo com Gottfried Benn, e poderia até ir um pouco além. N u m poema que não é nem didático nem narrativo, e q u e não está animado por n e n h u m outro propósito social, o poeta pode estar apenas preocupado em exprimir cm verso — utilizando todos os seus recursos verbais, com sua história, suas conotações, sua música — esse obscuro impulso. Ele não sabe o q u e tem a dizer até que o diga; e no esforço para dizê-lo não está interessado no fato dc que outra pessoa não entenda coisa alguma. Ele não está, nesse momento, absolutamente interessado em ninguém, a não ser em descobrir as palavras certas, ou então 24. " U m germe mais apático c criativo." ( N . T . ) 25. Beddoes, Thomas Lovci 1. Poeta ingles (Clifton, Somerset. 1803 Basiléia. 1849). Avido leitor de romances góticos, manifestou desde seu primeiro livro, The bride'i tragedy (1821), uma aguda obsessão pela morte Deixou t a m b é m um estra-

nho poema dramático, Death \ jest hook, or the fool's revenge tragedy, só publicado após sua morte, assim como os Poems. ( N . T . ) 26. "Criança sem corpo que aspira à vida nas trevas / G r i t a n d o com u m a voz coaxante: Ό que serei e u ? ' . " ( N . T . )

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as que são as menos impróprias. Não está interessado em saber se alguém mais as ouvirá ou não, ou se alguém mais as compreenderá, se ele as compreende. Está sob o peso de um fardo do qual precisa se livrar para obter algum alívio. O u , para recorrer a uma outra imagem, está acossado por um demónio, um demónio contra o qual ele se julga impotente, pois em sua primeira manifestação este não tem face, nem nome, nem nada; e as palavras, o poema que ele concebc, são u m a espécie de exorcismo desse demônio. Em outras palavras ainda, ele se concede todo esse cuidado, não para se comunicar com alguém, mas para obter alívio de um agudo mal-estar; e q u a n d o as palavras afinal se arrumam de m o d o correto — ou de acordo com aquilo que ele chega a admitir como o melhor arranjo dc q u e foi capaz —, pode o poeta experimentar um instante dc exaustão, de apaziguamento, de absolvição e de algo m u i t o próximo do aniquilamento, que é em si indescritível. E enrão ele pode dizer ao poema: Vai! Encontra para ti um lugar em um livro — e não espera de mim que eu tenha algum f u t u r o interesse por t i ! " . ^ t Não creio q u e a relação de um poema com suas origens possa ser mais claramente delineada. Vocês podem 1er os ensaios de Paul Valéry, que estudou as funções de sua própria m e n t e na composição de um poema com mais obstinação do q u e qualquer outro poeta. Mas sc, que^ com base naquilo q u e os poetas tentam dizer a vocês, quer por meio de pesquisas biográficas, com ou sem o instrumental do psicólogo, vocês tentarem explicar um poema, provavelmente dele se distanciarão cada vez mais, sem chegar a n e n h u m outro destino. A tentativa de explicar o poema remontando a suas origens desviará a atenção do poema para dirigi-la a qualquer outra coisa q u e , na forma em que pode ser apreendida pelo crítico ou por seus leitores, não tem n e n h u m a relação com o poema e absolutamente não o esclarece. Não gostaria que vocês imaginassem que estou tentando tornar o texto de um poema mais misterioso do que ele já é. O que sustento c que o primeiro esforço do poeta deveria ser no sentido de adquirir clareza para si mesmo, dc assegurar para si que o poema constitui o resultado correto do processo que foi desenvolvido. A mais desastrada forma dc obscuridade é aquela do poeta que não foi capaz dc

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se expressar para si mesmo; a mais pretensiosa das formas ocorre q u a n d o o poeta tenta persuadir a si mesmo de q u e tem algo a dizer q u a n d o não o tem. Até agora falei, por amor à simplicidade, das três vozes como se elas reciprocamente se excluíssem; como se o poeta, cm qualquer poema particular, falasse fosse consigo mesmo, fosse com os outros, c como se n e n h u m a nem outra das duas primeiras vozes fossem audíveis na hora da boa poesia dramática. E essa, na verdade, é a conclusão à qual a argumentação de Herr Benn parece conduzi-lo, pois ele fala como se a poesia da primeira voz — que considera, aliás ser afinal um desenvolvimento de nossa própria época — constituísse u m a espécie totalmente distinta de poesia daquela do poeta q u e se dirige a uma platéia. Mas, para mim, as voze< são a m i ú d e encontradas juntas: a primeira c a segunda, como penso, na poesia não-dramática; e associadas à terceira também na poesia dramática. Mesmo que, como tenho sustentado, o autor dc um poema possa tê-lo escrito inicialmente sem pensar n u m a platéia, ele desejará também saber o que o poema q u e o satisfez terá a dizer a outra pessoa. Antes dc mais nada, existem aqueles poucos amigos à apreciação dos quais ele pode desejar submetê-lo antes de o considerar concluído. Eles podem ser de muita utilidade, sugerindo uma palavra ou uma frase q u e o autor não foi capaz de encontrar por si mesmo, embora a maior contribuição que possam dar seja talvez a de dizer apenas: "Essa passagem não está b o a " , confirmando assim uma suspeita que o autor suprimiu de sua própria consciência. Mas não penso essencialmente naqueles poucos amigos criteriosos cuja opinião o autor preza, e sim num público leitor mais numeroso e desconhecido — pessoas para as quais o nome do autor não significa mais do que o poema de seu p u n h o que acabaram de 1er. A entrega definitiva, por assim dizer, do poema a um público desconhecido, à revelia do que esse público possa fazer do poema, parece-me o epílogo do processo iniciado na solidão e sem que se cogitasse do público, esse longo processo de gestação do poema, pois ele assinala a separação final entre o poema c o autor. Deixemos o autor, a essa altura, descansar em paz. Por ora é o bastante do poema que é, acima de tudo, um poema da primeira voz. Julgo que em todo poema, da meditação pessoal ao poema épico ou ao drama, há mais do que uma

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voz a ser ouvida. Se o autor jamais falasse consigo mesmo, o resultado nunca poderia ser poesia, embora pudesse ser esplêndida retórica; e uma parte dc nosso prazer com a grande poesia consiste no prazer de ouvir ao acaso palavras que não nos foram destinadas. Mas se o poema fosse escrito exclusivamente para o autor, seria ele um poema concebido n u m a língua secreta e desconhecida; e um poema que estivesse reservado apenas para o autor não seria em absoluto um poema. Q u a n t o ao drama poético, estou inclinado a acreditar que nele todas as vozes sejam audíveis. Primeiro, a voz de cada personagem — u m a voz individual distinta daquela de qualquer outra personagem, de modo que podemos dizer dc cada elocução q u e ela só pode ter sido articulada por aquela personagem. Podem ser ouvidas aí, vez por outra, c talvez q u a n d o menos o percebamos, as vozes do autor e da personagem cm uníssono, dizendo algo a d e q u a d o à personagem, mas algo que o autor também poderia dizer a si próprio, embora as palavras pudessem não ter em absoluto o mesmo significado para ambos. Tal ocorrência pode ser algo dc muito distinto do ventriloquismo que faz da personagem apenas um porta-voz das idéias ou dos sentimentos do autor.

A manhã e amanhã e amanhã (...) Não seriam o impacto e a surpresa desses versos triviais a prova de que Shakespeare e Macbeth estivessem pronunciando as palavras em uníssono, embora talvez com um significado diferente? E afinal há os versos, nas peças do maior dentre todos os poetas dramáticos, nos quais ouvimos uma voz ainda mais impessoal do que a da personagem ou do autor:

Ripeness is all27 ou

Simply the thing I am

Shall make me live.2H

27. "A maturidade e' tudo " Aforismo largado por Edgar a seu pai Gloucester (Shakespeare. Rei Lear, Ato V. Cena II). que significa que se morre na sua hora, e nâo antes. ( N . T . ) 28. " S i m p l e s m e n t e aquilo que sou / Me fará vivo. ' Shakespeare, All's well lhat ends well. Ato IV. Cena III. (N T )

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Gostaria agora de voltar por um m o m e n t o a Gottfried Renn e à sua desconhecida e obscura materia psíquica — poderíamos dizer, o polvo ou o anjo com os quais o poeta luta. Sugiro que entre as très espécies de poesia às quais correspondem minhas très vozes haja uma certa diferença processual. No poema em que predomina a primeira voz — a do poeta que fala consigo mesmo —, a "matéria psíquica tende a criar sua própria voz: a forma eventual será, em maior ou menor grau, aquela que convém a um único poema, e não a outro. E errôneo, decerto, falar da matéria como algo que cria ou impõe sua própria forma: o que ocorre é um desenvolvimento simultâneo da forma e da matéria, pois a forma afeta a matéria cm todas as etapas, e talvez tudo o que caiba à matéria seja repetir "isso, não! isso, n ã o ! " , diante de cada tentativa malograda que vise a organização formal; e, finalmente, a matéria é identificada com sua forma. Mas na poesia da segunda e da terceira vozes a forma se acha pronta até certo ponto. Entretanto, por mais que essa forma possa ser / r j ^ j f o r m a d a antes que o poema esteja concluído, ela pode ser representada desde o início por um esboço ou um cenário. Se eu preferir contar uma história, preciso ter alguma noção do enredo da história que me disponho a contar; se optar pela sátira, a de f u n d o moral ou a inventiva, já há algo dado que posso reconhecer e que existe tanto para os outros quanto para mim. E se me p o n h o a escrever uma peça, começo por um ato de escolha: decido-me por u m a determinada situação emocional, da qual as personagens e a intriga irão emergir, e posso antecipadamente elaborar um plano sumário cm prosa da peça, quaisquer que sejam as alterações a que ele possa ser submetido antes que a peça esteja concluída, de acordo com a maneira como as personagens se desenvolvem! E provável, naturalmente, que ocorra no início a pressão de alguma matéria psíquica grosseira e desconhecida capaz de induzir o poeta a contar aquela determinada história, a desenvolver aquela determinada situação. E, por outro lado, o q u a d r o , já escolhido, dentro do qual o autor decidiu trabalhar, pode evocar outra matéria psíquica; e então os versos podem nascer nao do inipulso original, mas a partir de um estímulo secundário do subconsciente. Tudo o que importa é que, ao f i m , as vozes sejam ouvidas em harmonia; e, como já disse, duvido que cm qualquer verdadeiro poema apenas uma voz seja audível

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A esta altura, o leitor pode muito bem estar se perguntando aonde pretendo chegar com todas essas especulações. Estaria eu me d a n d o o trabalho de tecer uma trama requintada dc inútil ingenuidade? Bem, estou tentando falar, não para mim mesmo — como vocês podem ter tentado imaginar —, mas para o leitor de poesia. Eu gostaria dc pensar que esse a m a n t e dc poesia pudesse estar interessado em averiguar minhas afirmações ao longo de suas próprias leituras. Poderiam vocês distinguir essas vozes na poesia que lêem, ou ouvem declamada, ou escutam no teatro? Se vocês se queixam de que um poeta é obscuro, e aparentemente os ignora, a vocês, leitores, ou de que está falando apenas para um restrito círculo de iniciados do qual vocês estão excluídos, lembrem-se dc que aquilo q u e ele pode ter tentado fazer foi colocar algo nas palavras que não poderia ser dito de outro modo c, conseqüentemente, n u m a linguagem que talvez valesse a pena aprender. Se vocês lamentam que um poeta é demasiado retórico, e que se dirige a vocês como se todos estivessem n u m a reunião pública, tentem prestar atenção aos momentos em que ele não está se dirigindo a vocês, mas apenas deixando-se ser ouvido ao acaso: ele pode ser um Dryden, um Pope ou um Byron. E se vocês forem escutar uma peça em verso, considerem-na antes de mais nada pelo que ela vale como entretenimento, pelas personagens que falam cada uma por si, qualquer que seja o grau de realidade que seu autor lhes pôde atribuir. Talvez, caso se trate de uma grande peça, e se vocês não tentarem se empenhar ao máximo para ouvi-las poderão t a m b é m discernir as outras vozes. Pois a obra de um grande poeta dramático, como Shakespeare, constitui um universo. Cada personagem fala por si, mas n e n h u m outro poeta teria encontrado as mesmas palavras para que elã as dissesse. Se vocês procurarem por Shakespeare, somente o encontrarão nas personagens que ele criou, pois a única coisa em comum entre tais personagens é que ninguém, a não ser Shakespeare, poderia ter criado qualquer uma delas. O m u n d o de um grande poeta dramático é um m u n d o no qual o criador está presente em toda parte, e em toda parte oculto.

AS FRONTEIRAS DA CRITICA

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e considerável entusiasmo; e poderia parecer que eu estivesse pensando cm um ou mais críticos de reputação solidamente estabelecida e mais antigos do que cu no ofício, cujos textos não atendiam às minhas exigências do que deveria ser a crítica literária. Mas não consigo me lembrar de um livro de ensaios, ou do nome de um só crítico, como representante da espécie dc crítico impressionista que despertou a minha ira trinta e três anos atrás. A única razão que tenho agora para mencionar esse ensaio é advertir até que ponto o que escrevi sobre esse assunto cm

1923 está "datado". Os Principles of literary criticism, de

A tese que sustento neste ensaio é a de que há limites além dos quais, numa certa direção, a crítica literária deixa de ser literária e, numa outra, deixa de ser crítica. Em 1923 escrevi um artigo intitulado " T h e function of criticism".· 1 Devo ter esse ensaio em alta estima, tanto assim q u e , dez anos depois, o incluí em meus Selected essays, nos quais ele pode ainda hoje ser encontrado. Ao reler recentemente esse ensaio, fiquei talvez algo confuso, surpreso com todo o estardalhaço que se criou em torno dele, embora me sentisse contente por nada encontrar aí que na verdade contrariasse minhas presentes opiniões. E que, deixando de lado u m a querela com o Sr. Middleton Murry* sobre "a voz interior'' — disputa na qual reconheço a antiga aporia Autoridade versus J u l g a m e n t o Individual —, concluí ser impossível relembrar as razões de meu destempero. Fiz uma série de afirmações com segurança 1. Conferência da Fundação Gideon Seymour, pronunciada na Universidade de Minnesota em 1956 e publicada por essa universidade. (N A.) 2. A tradução desse ensaio foi recentemente publicada no Brasil em Ensaios, de T. S. Eliot, tradução, introdução e notas de Ivan J u n q u e i r a , Art Editora São Paulo 1989. ( N . T . ) 3. Murry. J o h n Middleton. Escritor inglês (Pcckham, perto de Londres 1889 — Londres. 1957) amigo pessoal de Eliot, de q u e m publicou poemas e ensaios na revista The Athenaeum, por ele dirigida. Casou-se com Katherine Mansfield e foi amigo de D. H. Lawrence e Aldous Huxley. ( N . T . )

Richards, 4 foram publicados cm 1925. Muitas coisas aconteceram na crítica literária desde que esse influente livro foi editado, c meu ensaio foi escrito dois anos antes. A crítica se desenvolveu e se esgalhou em diversas direções. A expressão " T h e New Criticism ( " A Nova Crítica") é amiúde utilizada por pessoas que não supõem a diversidade que cia comporta, mas seu uso corrente, creio cu, reconhece o fato de que os mais ilustres críticos de hoje, por maiores que sejam suas divergências, diferem todos, de algum modo significativo, dos críticos da geração anterior. Há muitos anos salientei que toda geração deve produzir sua própria crítica literária, pois, como disse, "cada geração traz à contemplação da arte suas próprias categorias dc julgamento, faz suas próprias exigências artísticas e desenvolve seus próprios usos da a r t e " . Q u a n d o fiz essas afirmações, estava certo de ter em mente que isso significava mais para mim do que as mudanças de gosto e de moda: cu tinha em mente, pelo menos, o fato de que cada geração, ao examinar uma obra-prima do passado a partir de uma perspectiva diferente, é prejudicada cm sua atitude por um número dc influências maior do" que aquele que se exerce sobre a geração precedente. Mas duvido 4 Richards. Ivor Armstrong. Crítico literário inglês (Sandbach, 1893 — Cambridge. 1979), cujas idéias sobre os valores racionais e emocionais da língua foram desenvolvidas nos Estados Unidos pelos f u n d a d o r e s do New Criticism. Toda a sua crítica literária se apoia em bases semânticas. "A obra citada por Eliot é hoje um clássico da crítica contemporânea. Deixou, ainda, entre outros, lhe meaning of meaning

(1923), Science aru/poetry (1926). Practical criticism (1929) e Coleridge on imagi nation (1934). ( N . T . )

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que eu tivesse em mente o fato de que uma importante obra de crítica literária pudesse alterar e expandir o conteúdo da expressão "crítica literária" em si. Alguns anos depois, dirigi a atenção para as constantes variações no significado da palavra educação desde o século XVI até os dias de hoje, uma mudança que se produziu graças ao fato de que a educação não apenas englobava cada vez mais assuntos, mas também vinha sendo ministrada ou imposta a um número cada vez maior de pessoas. Se decidíssemos acompanhar os desdobramentos da expressão "crítica literária" da mesma maneira, concluiríamos q u e algo análogo estaria ocorrendo. Compare-se uma obra-prima como Lives of the poets, de Johnson, 5 com a grande obra crítica q u e se lhe seguiu, a Biographia literaria, de Coleridge. 6 Não se trata simplesmente do fato de Johnson representar uma tradição literária ao fim da qual ele próprio pertence, e n q u a n t o Coleridge defende os méritos e critica as fragilidades de um novo estilo. A diferença mais pertinente com relação àquilo q u e cu disse deve-se ao alcance e à variedade dos interesses que Coleridge fez pesar em sua discussão sobre a poesia. Estabeleceu a importância da filosofia, da estética e da psicologia; e a partir do momento em que introduziu tais disciplinas na crítica literária, os futuros críticos não puderam mais ignorá-las senão sob seus próprios riscos. É necessário um esforço de imaginação histórica para apreciar Johnson; um crítico moderno terá decerto muito mais em comum com Coleridge. Na verdade, pode-se dizer q u e

a crítica dc nossos dias descende em linha direta de Coleridge, que, estou certo, se ainda estivesse vivo, teria pelas ciências sociais e pelo estudo da língua e da semântica o mesmo interesse que as ciências de sua época lhe proporcionaram. A consideração da literatura à luz de um ou mais desses estudos é u m a das duas causas principais da transformação da crítica literária cm nosso tempo. A outra causa não foi tão plenamente reconhecida. A crescente atenção dada ao estudo das literaturas inglesa c americana em nossas universidades e, na verdade, em nossas escolas levou a uma situação em que muitos críticos sc tornaram professores e muitos professores passaram a ser críticos. Longe de mim lamentar essa situação: a maior parte da crítica que hoje de fato nos interessa é obra de homens de letras que encontraram seu caminho nas universidades e de eruditos cuja atividade crítica começou a ser exercida na sala de aula. E nos dias que correm, q u a n d o um jornalismo literário sério constitui um veículo inadequado, assim como um precário meio de sustento para todos à exceção de uns pouco privilegiados, é assim que deve ser. Isso significa apenas q u e o crítico de hoje pode ter um contato algo diferente com o m u n d o e estar escrevendo para um público algo distinto daquele em que viveram seus antecessores. Tenho a impressão de que u m a crítica séria está sendo agora escrita para um público diferente, mais limitado, ainda que não necessariamente menos numeroso, do que aquele do século XIX.

5. Johnson, Samuel. Poeta e crítico literário inglês (Lichfield, Stratrfordshire. 1709 — Londres, 1784). cuja autoridade intelectual d o m i n o u as letras inglesas d u r a n t e toda a segunda metade do século XVIII. Embora reabilitado por Eliot como p o e t a , foi o responsável pelo esquecimento, por mais de um século e meio, de D o n n e e de toda a poesia metafísica. A obra citada por Eliot, cujo título c o m p l e t o é The T L , /

E n g l t s h poets

>

data

dc

1791

·

Escreveu, ainda, entre outros. Account

of the life of Mr. Richard Savage (1744) e o Dictionary of the English language (1755). ( N . T . )

*

Λ

Coleridge, Samuel Taylor. Poeta e ensaísta inglês (Ottery, Saint-Mary, Devonshire. 1772 — Londres. 1834). Suas principais obras poéticas estão reunidas em

Poems on various subjects (1796) e nas Lyrical ballads (1798). de parceria com Wordsworth. A obra a que Eliot se refere foi publicada em 1817 e é sem dúvida uma das maiores de toda a crítica literária inglesa. Nela, o autor estabelece as distinções fundamentais entre a imagination e a fancy. bem como o revolucionário conceito da suspension of disbelief, que influenciou toda a moderna crítica literáD C , X 0 U a m d a A i d s t o Te ecti fl <>» (1825) e Lectures o n Shakespeare (1856). ( N . T . )

Não faz muito tempo impressionei-me com uma observação do Sr. Aldous Huxley em seu prefácio à tradução inglesa

de The supreme wisdom (A sabedoria suprema), livro do psiquiatra francês Dr. Hubert Benoit sobre a psicologia do zenbudismo. A observação do Sr. Huxley corresponde à impressão que recebi dessa notável obra q u a n d o a li cm francês. Huxley compara a psiquiatria ocidental à disciplina do Leste tal como ela é encontrada cm Tao e Zen: "A meta da psiquiatria ocidental", diz ele, "é ajudar o indivíduo perturbado a se ajustar à sociedade dc indivíduos menos perturbados — indivíduos que a observação nos revela estarem bem adaptados uns aos outros e às instituições locais, sem que nos preocupemos, porém, em saber se eles estão ajustados à Ordem Fundamental das Coisas (...) Mas há uma outra

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espécie de normalidade — uma normalidade q u e funciona perfeitamente (...) Até mesmo alguém que esreja perfeitamente ajustado a uma sociedade desequilibrada pode se preparar, se assim o quiser, para tornar-se ajustado à Natureza das Coisas". A aplicabilidade disso ao assunto de que estou me ocupando não é imediatamente óbvia. Mas assim como a psiquiatria ocidental, do ponto de vista do zen-budismo, é confusa ou equivocada quanto à finalidade da cura a ponto de tornar-se necessário que sua atitude deva a rigor retroceder, da mesma forma me pergunto se a fragilidade da crítica moderna não advém de uma incerteza q u a n t o à finalidade da crítica. Q u e benefício ela traz, e a quem? Sua verdadeira riqueza e variedade talvez estejam obscurecidas por seu propósito final. Q u a l q u e r crítico pode ter em vista um objetivo definido, pode estar comprometido com uma tarefa que dispense justificativas, e no e n t a n t o a crítica em si pode estar em dúvida q u a n t o a seus objetivos. Se assim o for, não chega a surpreender: pois não é agora lugarcomum dizer que as ciências e até mesmo as h u m a n i d a d e s alcançaram um ponto de desenvolvimento no qual há tanto a saber sobre qualquer especialidade que n e n h u m estudante dispõe de tempo para aprender grande coisa sobre todo o resto? E a procura de um programa que associasse o estudo especializado a alguma educação geral foi seguramente um dos problemas mais discutidos em nossas universidades.

autor me isolaria tão radicalmente dos críticos americanos, mas, por outro lado, não consigo perceber n e n h u m movimento crítico do qual se possa dizer que haja derivado de m i m , embora eu espere que, como editor de The Criterion, haja dado ao New Criticism algum estímulo e certo campo para experiências. Entretanto, julgo que, para justificar essa aparente modéstia, eu deveria indicar o que considero ter sido minha própria contribuição à crítica literária e quais são as suas limitações. O melhor de minha crítica literária - à parte algumas expressões famosas que obtiveram um sucesso realmente embaraçoso pelo m u n d o afora abrange ensaios sobre poetas e dramaturgos do verso que me influenciaram. Trata-se de um p r o d u t o derivado de minha oficina poética particular, ou um prolongamento da reflexão que levou à elaboração de meu próprio verso. Se olho para trás, vejo que escrevi melhor sobre poetas cujas obras me influenciaram e com cuja poesia me familiarizei muito antes de escrever sobre eles, ou de ter encontrado a ocasião de fazêlo. Minha crítica tem isso em comum com a de Ezra P o u n d , de m o d o q u e seus méritos e limitações só podem ser plenam e n t e apreciados q u a n d o considerados em relação à poesia que eu mesmo escrevi. Na crítica de Pound há um elemento mais didático: o leitor que ele tem em vista, suponho, é primordialmente o poeta jovem cujo estilo ainda não amadureceu. Mas foi o amor de certos poetas que o influenciou, e (como digo de mim mesmo) um prolongamento de sua meditação sobre sua obra pessoal que inspira um antigo livro que permanece como um dos melhores do ensaísmo literário p o u n d i a n o , The

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Não podemos, é claro, voltar à universidade de Aristóteles ou à de Santo Tomas de Aquino; e não podemos voltar ao estágio da crítica literária anterior a Coleridge. Mas talvez nos caiba fazer algo para evitar que sejamos subjugados por nossa própria atividade crítica, por continuamente estarmos fazendo perguntas como esta: a partir de que m o m e n t o a crítica não é mais crítica literária, mas algo diferente? Tenho me surpreendido um pouco ao constatar q u e , de vez em quando, consideram-me como um dos ancestrais da crítica moderna, ainda que eu fosse muito velho para ser um crítico moderno. Assim, num livro que li recentemente escrito por um autor que decerto é um crítico moderno, encontrei uma referência ao New Criticism, segundo a qual, diz ele, " d e signo não apenas os críticos americanos, mas todo movimento crítico que deriva de T. S. Eliot". Não compreendo por que o

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spirit of romance. Esse género de crítica da poesia feita por um poeta, ou o q u e chamo de crítica de oficina, tem uma óbvia limitação. O que não tem n e n h u m a relação com a própria obra do poeta, ou o que lhe é desfavorável, está fora do alcance de sua competência. Outra limitação da crítica de oficina é que o julgamento crítico pode revelar-se pouco confiável fora de sua arte. Minhas avaliações de poetas permaneceram razoavelmente as mesmas durante toda a minha vida; em particular, minhas opiniões sobre um certo número de poetas vivos continuaram inaltera7. Publicação de glande prestígio literário que Eliot dirigiu de 1922 a 1939. ( N . T . )

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das. Não é por essa razão, entretanto, q u e aquilo q u e t e n h o em mente, ao falar sobre crítica, é o q u e a maioria dos críticos tinha em mira ao generalizar sobre literatura. A crítica da prosa de ficção é de criação relativamente recente, e não estou qualificado para discuti-la; mas parece-me q u e ela exige um sistema de pesos e medidas algo diferente do q u e aquele que se aplica à poesia. O exame das diferenças entre as maneiras mediante as quais o crítico deve abordar os vários genres de literatura, bem como entre as espécies de aparato mental requeridas, poderia, na verdade, fornecer um interessante assunto para algum crítico da crítica, alguém que não fosse nem poeta nem romancista. Mas a poesia é o assunto mais a d e q u a d o de crítica para se ter em mente q u a n d o se fala sobre crítica, pela simples razão de que suas qualidades formais se prestam mais facilmente a uma generalização. Na poesia poderia parecer que o estilo é tudo, o que está longe de ser verdadeiro; mas a ilusão de que, na poesia, estamos mais próximos de u m a experiência estritamente estética torna a poesia o mais apropriado genre de literatura que devemos ter em m e n t e ao discutirmos a crítica literária em si. Uma boa parte da crítica contemporânea, que tem sua origem no ponto em que a crítica se confunde com a erudição e em que a erudição se dissolve na crítica, pode ser caracterizada como a crítica de explicação por meio das origens. Para tornar claro o que pretendo dizer, citarei dois livros q u e exerceram, nesse contexto, uma influência antes maléfica. Não quero dizer que sejam maus livros; pelo contrário: são ambos livros que todos deveriam conhecer. O primeiro é The road to Xanadu, de John Livingstone Lowes,8 e que recomendo a todo estudante de poesia que ainda não o tenha lido. O outro é Finnegans wake de James Joyce, cuja leitura, pelo menos a de algumas páginas, aconselho a todo estudante de poesia. Livingstone Lowes foi um notável erudito, um bom professor, um h o m e m louvável e com relação ao qual tenho razões pessoais para me sentir profundamente grato. James Joyce foi um homem de gênio, um amigo pessoal, e a referência que faço aqui ao Ftnnegans wake não é nem para louvar nem para reprovar um livro que certamente

pertence à categoria dos quais se pode dizer que são monumentais. Mas o único e óbvio traço comum entre The road to Xanadu e Finnegans wake é que podemos dizer de cada um deles: um livro como este é o que basta Explicarei àqueles que nunca leram The road to Xanadu, que se trata de um fascinante trabalho detetivesco. Lowes investigou todos os livros que Coleridge leu (e Coleridge foi um leitor onívoro e insaciável) e dos quais tomou por empréstimo imagens ou expressões que podem ser encontradas em Kubla Khan e em The ancient marinerà Muitos dos livros que Coleridge leu são obscuros e esquecidos — ele leu, por exemplo, todos os livros de viagem que lhe caíram às mãos. E Lowes demonstrou, de uma vez por todas, que a originalidade poética consiste, em grande parte, n u m a forma original de reunir os mais disparatados e inverossímeis materiais para constituir um novo conjunto. A demonstração é de todo convincente e atesta q u a n t o o material é digerido e transformado pelo gênio poético. Ninguém que haja lido esse livro poderia supor que compreendeu melhor The ancient manner, nem que o Dr. Lowes haja tido a menor intenção de tornar o poema mais inteligível como poesia. Ele estava envolvido na investigação de um processo, u m a investigação que se desenvolvia, stneto sensu, além das fronteiras da crítica literária. Mas permanece um mistério tão denso quanto antes a maneira como a matéria constituída por essas migalhas das leituras de Coleridge se transformou em grande poesia. Alguns eruditos otimistas, todavia, se apoderaram do método de Lowes para oferecer a chave da compreensão de qualquer poema escrito por qualquer poeta que evidencie haver lido o que quer que seja. " P e r g u n t o - m e " , escreveu-me há um ou dois anos um senhor de Indiana, "— é possível que eu esteja louco, naturalmente —" (era uma interjeição dele, não minha; é claro que ele não estava louco de todo, mas apenas ligeiramente perturbado ao terminar a leitura de The road to Xanadu)y 4, se 4os gatos cadavéricos da civilização', hipopótamo apodrecido' e o Sr. Kurtz têm alguma vaga relação com aquele cadáver que você plantou no ano passado em seu jardim ?" Isso

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8. Publicado em Boston, em 1927. A segunda ediçào é de 1930 (N T )

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9. São talvez os dois mais conhecidos poemas de Coleridge. O título completo do primeiro c Kubla Khan. a vision. ( N . T . )

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nos leva a pensar em algo que se assemelha ao delírio, a menos que vocês identifiquem as alusões: trata-se apenas dc um pesquisador honesto que tenta estabelecer certo vínculo entre lhe

a montagem de minha peça The cocktail party, minha correspondência se avolumou durante meses com cartas que me ofereciam soluções surpreendentes para aquilo que os missivistas julgavam ser o enigma do significado da peça. E era evidente q u e tais missivistas não se mostravam agastados com o quebra-cabeça que, como s u p u n h a m , eu lhes havia proposto — pelo contrário, isso os encantava. Na verdade, embora estivessem inconscientes do fato, eles inventaram a charada pelo prazer de encontrar a solução. Devo admitir aqui que, n u m a ocasião memorável, não consegui furtar-me à culpa dc haver induzido os críticos em tentação. As notas a The waste landi Eu pretendia de início fornecer apenas todas as referências de minhas citações, com o objetivo dc frustrar as intenções dos críticos de meus primeiros poemas, os quais me acusaram de plágio. Mais tarde, na época cm que se acabou de imprimir The waste land sob a forma dc um livrinho — pois o poema, q u a n d o de sua primeira publicação em The Dial12 e em The Criterion, não incluía notas dc espécie alguma —, descobriu-se que o texto era infelizmente curto, de m o d o que me entreguei à tarefa de ampliar as notas para conseguir algumas páginas a mais de matéria impressa, com o propósito de que elas se tornassem uma exibição de falsa erudição que se pode ainda ver hoje em dia. Tenho às vezes pensado em me livrar dessas notas, mas agora elas jamais poderão ser removidas da obra, pois alcançaram uma popularidade quase tão grande q u a n t o a do próprio poema — todos os que compravam meu livro de poemas, e lá não encontravam as notas a The waste land, pediam o dinheiro dc volta. Mas não creio que elas tragam n e n h u m prejuízo a outros poetas: certamente não conheço n e n h u m bom poeta contemporâneo que haja abusado dessa mesma prática. (Quanto à Srta. Marianne Moore, 1 ' suas notas aos poemas que escreve são sempre perti-

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waste lande o Heart of darkness, de Joseph Conrad. 10 Ora, enquanto o Dr. Lowes excitava tais adeptos da hermenêutica com um zelo instigativo, o Fmnegans wake lhes fornecia um modelo segundo o qual gostariam eles que fossem escritas todas as obras literárias. Apresso-me em explicar que não estou nem ridicularizando nem denegrindo o trabalho desses exegetas que se dedicam a desemaranhar todos os tios e rastrear todas as pistas nesse livro. Se o Fmnegans wake deve ser cabalmente compreendido — e não podemos julgá-lo sem esse estorço — cumpre perseverar nessa espécie de investigação; e os Srs. Campbell e Robinson 11 (para mencionar os autores desse gênero de trabalho) realizaram um esplêndido estudo. Minha queixa, se há alguma, é contra James Joyce, o autor dessa monstruosa obra-prima, por haver escrito um livro tal cujas vastas extensões constituem, caso não haja uma requintada explicação, apenas um belo absurdo (belíssimo, aliás, q u a n d o declamado por u m a voz irlandesa tão encantadora quanto a do autor — poderia ele tê-la gravado mais vezes!). É possível que Joyce não imaginasse quão obscuro é seu livro. Qualquer que seja o julgamento (c não me arrisco a fazê-lo) quanto ao lugar que o Fmnegans wake possa ter na literatura, não creio que a maior parte da poesia (pois o livro de Joyce constitui u m a espécie de vasto poema em prosa) seja escrita desse m o d o ou que exija essa espécie dc dissecção para q u e possa ser fruída ou entendida. Mas suspeito que os enigmas que encontramos no Fmnegans wake tenham dado crédito ao erro, predominante hoje em dia, de uma interpretação equívoca quando à sua compreensão. Após 10. Cabe aqui um breve esclarecimento ao leitor: as últimas linhas da carta do senhor de Indiana transcritas por Eliot aludem a dois versos pertencentes à primeira seçào. "O enterro dos mortos ', 71-72, de The waste land (V)2iy " T h a t corpse you planted last year in your garden, / Has it begun to sprout? Will it bloom this year?" ( " O cadaver que plantaste ano passado cm teu jardim / Já começou a brotar? Dará flores este a n o ? " ) ; e ao Sr. Kurtz, personagem de Heart of darkness, romance q u e Conrad publicou em 1902 e do qual Eliot extraiu a frase "Mistah Kurtz — he d e a d " . ( " O Sr. Kurtz ele está m o n o . " ) , que serve de epígrafe ao seu poema The hollow men, publicado em 1925. ( N . T . ) 11. Joseph Campbell e Η. M. Robinson. A skeleton key, 1947. ( N . T . )

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12. Importante publicação literária londrina em que Efíot publicou alguns de seus

poemas, como The waste land e The hollow men. (N.T.) 13 Moore. Marianne Poetisa norte-americana (Saint-Louis, Missouri, 1887 — Nova York, 1972). Sua poesia apela mais à inteligência do que a emoção, sem obediência aos esquemas tradicionais e com absoluta liberdade metrica e decomposição

sintática. Obras principais: Poems (1941), Observations (1941), What are years? ( 194 1 ). To be a dragun (1959) e Tell me. tell me (1966). ( N T )

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ncntes, curiosas, conclusivas, deliciosas e absolutamente não encorajam n e n h u m pesquisador a descer às origens.) Não, não é por causa do mau exemplo que dei a outros poetas que me penitencio: é porque minhas notas estimularam u m a espécie de equívoco de interesse junto aos pesquisadores de fontes. Sena justo, sem dúvida, que eu pagasse tributo à obra da Srta. Jessie Weston, 1 4 mas lamento ter feito tantos inquisidores correrem à toa em busca das cartas do Taro e do Santo Graal. E n q u a n t o refletia sobre essa questão de tentar c o m p r e e n der um poema por meio da explicação de suas origens, deparei-me com uma citação de C. G. J u n g , q u e me pareceu ser de alguma relevância. A passagem foi transcrita por trei Victor White, O. P., em seu livro God and the unconscious. Frei W h i t e menciona durante sua exposição u m a radical diferença entre os métodos de Freud e de l u n g . "Aceita-se geralmente como verdade , diz J u n g , ' q u e os acontecimentos físicos podem ser encarados de duas maneiras: do ponto de vista mecanicista e do ponto dc vista energético. O ponto de vista mecanicista é puramente causal: desse ponto de vista, um acontecimento é concebido como o resultado de uma causa (...) Por outro lado, o ponto de vista energético é, em essência. Finalista; o acontecimento é acompanhado desde o efeito até a causa, na suposição de q u e a energia constitui a base essencial de mudanças no fenómeno (...). ' A citação pertence ao primeiro ensaio do volume Contribu-

tions to analytical psychology. Acrescento uma outra frase, não citada por frei White, que inicia o parágrafo seguinte: " A m bos os pontos de vista são indispensáveis à compreensão do fenômeno físico". Tomo isso simplesmente como u m a analogia sugestiva. Alguém pode explicar um poema ao investigar aquilo de quede é feito e as causas que o produziram; e a explicação pode ser uma preparação necessária à sua compreensão. Mas para compreender um poema é t a m b é m necessário — e cu diria que, na maioria dos casos, é ainda mais necessário — q u e nos 14. Nas notas a The waste land, Eliot t ita algumas passagens do livro dc Jessie Weston. From ntual to romance (1920), particularmente no q u e se refere ao m i t o do rei-pescador e à "capcla perigosa". ( N . T . )

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esforcemos por captar aquilo que a poesia pretende ser; poderse-ia dizer embora há muito t e m p o eu utilize esses termos com absoluta segurança que nos esforcemos por captar sua enteléquia. A forma de crítica em que talvez mais se manifeste o perigo de confiança excessiva sobre a explicação causal é a da biografia crítica, especialmente q u a n d o o biógrafo complementa seu conhecimento de fatos externos com suposições psicológicas sobre a experiência interior. Não sugiro que a personalidade e a vida privada de um poeta morto constituam um solo sagrado que o psicólogo não deva palmilhar. O cientista deve estar livre para estudar esse material do m o d o como sua curiosidade lhe determine investigar, contanto que a vítima esteja morta c não se possam invocar as leis sobre difamação para detê-lo. N e m há qualquer razão para que não se devam escrcver biografias dc poetas. Além disso, o biógrafo dc um autor deve possuir certa capacidadc crítica: deve ser alguém de gosto c dc julgamento, apreciador da obra do homem de cuja biografia se encarregou. E, por outro lado, deve-se esperar de qualquer crítico seriamente interessado na obra de um homem q u e conheça algo sobre a vida desse h o m e m . Mas a biografia crítica de um escritor constitui em si uma tarefa delicada; e o crítico ou o biógrafo que não seja um psicólogo treinado c experiente, e que conduza o seu assunto com a perícia analítica que adquiriu apenas graças à leitura de livros escritos por psicólogos, corre o risco dc tornar as questões mais confusas do que já são. O problema de saber até que ponto a informação sobre o poeta nos ajuda a compreender sua poesia não é tão simples quanto se imagina. Cada leitor deve responder a ele por si mesmo, e deve faze-lo não de modo genérico, mas cm circunstâncias particulares, pois isso pode ser mais importante no caso de determinado poeta e menos importante no caso de outro. E que o prazer que se extrai da poesia pode constituir uma experiência complexa em que diversas formas de fruição se acham misturadas, e elas podem estar misturadas cm diferentes proporções para diferentes leitores. Darei um exemplo. Aceita-se geralmente que a maior parte da melhor poesia dc Wordsworth haja sido escrita num curto espaço de tempo — curto em si, e curto se o compararmos à duração da vida dc Wordsworth.

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Diversos especialistas em Wordsworth propuseram interpretações destinadas a explicar a mediocridade de suas obras ulteriores. Há alguns anos, Sir Herbert Read 15 escreveu um livro sobre Wordsworth — um livro interessante, embora eu considere que sua melhor análise sobre Wordsworth esteja cm um ensaio posterior, incluído num livro intitulado A coat of many colours —, em que explicou a ascensão e a queda do gênio de Wordsworth devido às conseqüências do caso amoroso q u e o poeta manteve com Annette Valon, sobre o qual se haviam descoberto àquela época alguns documentos. Mais recentemente, o Sr. F. W. Batcson 16 escreveu um livro sobre Wordsworth t a m b é m de considerável interesse (o capítulo sobre As duas vozes' nos a j u d a a compreender o estilo de Wordsworth). Nesse livro, ele sustenta que Annette não e' a personagem tão importante q u a n t o Sir Herbert Read imaginou, e que o verdadeiro segredo de Wordsworth foi que cie se enamorou de sua irmã Dorothy; isso explica, particularmente, os poemas dedicados a Lucy, e também por que, após o casamento do poeta, sua inspiração se esgotou. Bem, ele pode estar certo: sua argumentação é de fato plausível. Mas a verdadeira questão, aquela à qual cada leitor deve responder por si mesmo, é: tem isso algum interesse? isso me ajuda a compreender os poemas dedicados a Lucy melhor do que antes? Q u a n t o a mim, só posso dizer q u e o conhecimento das fontes das quais emana um poema não constitui necessariamente uma ajuda que nos leve a compreendê-lo: muito mais informação sobre as origens do poema pode até romper meu contato com ele. Não sinto necessidade dc n e n h u m a luz sobre os poemas dedicados a Lucy além da fulguração que se irradia dos próprios poemas.

não é diretamente relevante para a nossa compreensão dc sua poesia. Ou melhor, não importa para a nossa compreensão da poesia enquanto poesia. Estou mesmo disposto a sugerir que há, em toda grande poesia, algo que deve permanecer inexplicável, por mais completo que possa ser nosso conhecimento do poeta, c que é o que mais importa. Q u a n d o o poema é escrito, algo de novo acontece, algo que não pode ser expli-

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Não estou sustentando que não haja nenhum contexto no qual essa informação ou essa conjetura, como as de Sir Herbert Read ou do Sr. Bateson, possa ser relevante. É relevante na medida em que desejamos compreender Wordsworth, mas LJ c E d m u n d . Ensaísta c poeta inglês (K,rhvrnoors.de. Yorkshire, 1893 - Stonegravc, 1968), autor de obra numerosa e variada que se impõe por seu espirito humanístico não apenas no campo da estética, mas t a m b é m nos da pedagogia, da sociologia e da filosofia política. A obra a que Eliot se refere intitula-se Word sworth ( 1930). A que o autor cita logo adiante foi publicada em 1945. ( N . T . ) 16.

Bateson, Frederick Wilse. Wordsworth, a re interpretation, Londres, 1954. ( N . T . )

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cado por nada do que se passou antes. Isso, creio eu, é o que e n t e n d e m o s por " c r i a ç ã o " . A explicação da poesia mediante o exame dc suas fontes não constitui cm absoluto o método de toda a crítica contemporânea, mas é um método que atende às exigências de um bom número de leitores desejosos de que a poesia lhes seja explicada em termos de algo mais: a maioria das cartas que recebo de pessoas desconhecidas para mim, relativas a meus próprios poemas, consiste dc pedidos para uma espécie de explicação que possivelmente não posso oferecer. Há outras tendências, como as que foram relatadas pelas investigações do professor Richards sobre o problema dc como se pode ensinar a gostar de poesia, ou pelas sutilezas verbais de seu ilustre discípulo, o professor E m p s o n . r Observei recentemente um desenvolvimento que suspeito ter origem nos métodos pedagógicos do professor Richards e que constitui, à sua maneira, uma saudável reação à transferência, em favor do poeta, do interesse atiibuído à poesia. Podemos encontrá-la num livro publicado não faz muito tempo sob o título dc Interpretations, uma série de ensaios assinados por doze dentre os mais jovens críticos ingleses na qual cada um analisa um poema de sua própria escolha. O mé odo consiste em tomar um poema bastante conhecido — cada poema analisado nesse livro é bom cm seu gênero - , sem referência ao autor ou a outra obra de sua autoria, em analisá-lo estrofe por estrofe e verso por verso, e dele extrair, espremer, destrinçar, sugar cada gota dc significado de que se é capaz. Podería17. Empson, William. Crítico literário e poeta inglês (Yorkshire, 1906 Londres, 1981). Influenciado por Richards, abandonou a matemática para dedicar-se às letras. Seu livro Seven types of ambiguity (1930) constitui a base para o movimento q u e . nos Estados Unidos, passou a ser conhecido como New Criticism. Deixou ainda, entre outros, English pastoral poetry ( 1935 ), The structure of complex words (1951 ), The gathering storm ( 1940). Collected poems (1949) e Milton 's God (1961). ( N . T . )

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mos chamá-lo dc escola de espremer limão da crítica. Como os poemas pertencem ao período compreendido entre o século XVI e a época contemporânea, como diferem consideravelmente uns dos outros — o livro começa com The Phoenix and the t u r t l e " 1 8 e termina com " P r u f r o c k " 19 e " A m o n g school child r e n " , de Yeats —, e como cada crítico tem seus próprios procedimentos, o resultado é interessante c algo confuso, convindo admitir que estudar doze poetas, os quais todos são laboriosamente analisados, é uma forma exaustiva de passar o tempo. Imagino que alguns dos poetas (estão todos mortos, exceto eu) ficariam surpresos ao saber o que significam seus poemas. Eu mesmo experimentei uma ou duas surpresas sem maior importância ao saber que a neblina, mencionada no início do " P r u f rock", estava se insinuando, sem que se soubesse como, no salão. Mas a análise do "Prufrock' não se destinava a descobrir suas fontes, quer na literatura, quer nos recessos mais recônditos dc minha vida privada; era uma tentativa para descobrir o que de fato o poema queria dizer — se era ou não o que pretendi que ele significasse. E sou grato por isso. Havia diversos ensaios que me surpreenderam por sua categoria. Mas como todo método tem suas próprias limitações e perigos, seria razoável mencionar apenas o que me parecem ser as limitações e os perigos desse método, perigos contra os quais, se o aplicarmos àquilo que desconfio deva ser sua principal utilização, isto é, um exercício para alunos, caberia ao professor prevenir seus alunos. O primeiro perigo é o de admitir que não há senão u m a única interpretação do poema como um todo que seja correta. Haverá detalhes de explicação, especialmente no caso dc poemas escritos cm outra época que não seja a nossa, de fatos, dc alusões históricas, do significado de determinada palavra n u m a certa época, que podem estar estabelecidos, e ao professor cabe impedir que seus alunos incorram em erro. Mas q u a n t o ao significado do poema como um todo, n e n h u m a explicação pode esgotá-lo, pois o significado é aquilo que o poema quer dizer 18. Poema atribuído a Shakespeare, que o teria estrito provavelmente entre 1599 e 1600. ( N . T . ) 19. Poema de T. S. Eliot cujo título completo e' " T h e love song of J. Alfred Prutrock", incluído em Prufrock and other observations (1917). ( N . T . )

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a leitores de diferentes sensibilidades. O segundo perigo perigo em que não creio que n e n h u m dos críticos incluídos no volume acima citado haja incorrido, mas ao qual o leitor está exposto —, é o dc admitir que a interpretação de um poema, supondo-se que cia seja válida, é necessariamente u m a descrição daquilo que o autor, consciente ou inconscientemente, está tentando fazer. Pois a tendência a crer que compreendemos um poema q u a n d o identificamos suas fontes e delineamos o processo a que o poeta submeteu sua matéria é tão geral que podemos facilmente acreditar no oposto, ou seja, que qualquer explicação do poema seja também capaz dc proporcionar u m a descrição de como ele foi escrito. A análise do " P r u f r o c k " a que me referi interessou a mim porque me ajudou a ver o poema com os olhos de um leitor inteligente, sensível e aplicado. Isso não é dizer, em absoluto, que ele tenha visto o poema através de meus olhos, ou que sua descrição tenha algo a ver com as experiências que me levaram a escrcvc-lo, ou com alguma coisa que eu sentisse e n q u a n t o o escrevia. E minha terceira observação é a dc que gostaria, como um teste, de ver o método aplicado a algum novo poema, um poema muito bom e q u e não fosse de meu prévio conhecimento, pois me agradaria descobrir se, após percorrer a análise, seria cu capaz de gostar do poema. E que quase todos os poemas do volume eram poemas que eu conhecia e dos quais já gostava há muitos anos; c após 1er as análises percebi que seria necessario algum t e m p o para que eu resgatasse o que anteriormente havia sentido com a leitura desses poemas. Era como se alguém houvesse desmontado as peças de uma m á q u i n a e me encarregado da tarefa dc reajustá-las. Na verdade, suspeito de que boa parte do mérito de u m a interpretação reside no fato de que ela deve ser m i n h a própria interpretação. Há talvez muitas coisas a saber sobre esse poema, ou seja, muitos fatos sobre os quais os eruditos podem me instruir e que me ajudarão a evitar ///^/-entendidos já comprovados; mas creio que uma interpretação válida deva ser, ao mesmo t e m p o , uma interpretação de meus próprios sentimentos q u a n d o o li. Não fazia parte de meu propósito apresentar um panorama abrangente dc todos os tipos dc crítica literária praticados em nossa época. Em primeiro lugar, queria alertar para a transfor-

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mação da crítica literária da qual se pode dizer q u e começou com Coleridge, mas que alcançou maior aceleração durante os últimos vinte e cinco anos. Creio que essa aceleração tenha se devido à importância que as ciências sociais passaram a ter para a crítica, e ao ensino da literatura (inclusive a literatura contemporânea) nos colégios e universidades. Não lamento a transformação, pois me parece que ela era inevitável. N u m a época de incerteza, uma época em que os homens estão desnorteados diante das novas ciências, uma época cm que tão pouco pode ser aceito como verdadeiro no que se refere às crenças comuns, às hipóteses e ao conhecimento de todos os leitores, n e n h u m a área de exploração pode se tornar solo interdito. Mas, em meio a toda essa variedade, cabe-nos perguntar o q u e há, se é q u e existe algo, que deveria ser comum a toda a crítica literária. Trinta anos atrás afirmei que a função essencial da crítica literária era "a elucidação das obras de arte e a correção do g o s t o " . 2 0 A frase pode soar algo pomposa aos nossos ouvidos em 1956. Talvez eu pudesse expressá-lo de modo mais simples e mais aceitável à época atual se dissesse que seu objetivo é o de " p r o m o ver a compreensão da literatura e o prazer q u e dela se o b t é m " . Eu acrescentaria que está implícita aqui t a m b é m a tarefa negativa de sublinhar o que não deveria constituir fonte de prazer. Pois o crítico pode às vezes ser obrigado a condenar a mediocridade e a denunciar a fraude, embora esse dever seja acessório ao dever de louvar discriminadamente o q u e é digno de louvor. E devo insistir no fato de que não considero o prazer e a compreensão como atividades distintas — uma emocional e outra intelectual. Por compreensão não pretendo dizer explicação, embora a explicação do que cabe ser explicado possa constituir amiúde uma operação preliminar necessária à compreensão. Para dar um exemplo muito simples: ensinar palavras pouco familiares e formas verbais incomuns é u m a operação preliminar necessária à compreensão de Chaucer; é uma explicação, mas alguém poderia tornar-se mestre do vocabulário, da ortografia, da gramática e da sintaxe de Chaucer — ou, na verdade,

fazendo o exemplo retroceder ainda mais, poderia estar muito bem informado sobre a época de Chaucer, sobre seus hábitos sociais, suas crenças, sua cultura e sua ignorância — e, todavia,

20 Essa passagem pertence ao ensaio "A f u n ç ã o da crítica", escrito em 1923 e incluído nos Selected essays 1917-1912 cit A tradução brasileira é de Ivan J u n queira. Ensaios, de T. S. Eliot, Art Editora, São Paulo, 1989 (Ν Τ )

não compreender sua poesia. Compreender um poema vem a ser a mesma coisa que apreciá-lo por boas razões. Poder-se-ia dizer que isso significa extrair do poema todo o prazer que ele é capaz de proporcionar: gostar de um poema equivocando-sc em relação àquilo que ele é equivale a gostar do que constitui simplesmente uma projeção de nossa própria mente. A linguagem é um instrumento de manuseio tão difícil que " g o s t a r " e "extrair prazer d c " não parecem significar em absoluto a mesma coisa, e dizer que "se recebc prazer d a " poesia não soa exatamente como dizer que "se gosta de poesia". E, a rigor, o próprio significado de " p r a z e r " varia de acordo com o objeto que o inspirou; diferentes poemas, inclusive, nos proporcionam diferentes satisfações. E certo que não gostamos inteiramente de um poema a menos que o compreendamos; e, por outro lado, é t a m b é m verdadeiro que não compreendemos plenamente um poema a não ser que gostemos dele. E isso significa apreciá-lo em sua justa medida e da maneira correta relativamente a outros poemas (é na relação do prazer que um poema nos proporciona com aquele que nos proporcionam outros poemas que se define o gosto). Seria apenas necessário acrescentar que isso implica que não se devena gostar de maus poemas, a menos que sua mediocridade fosse capaz de excitar nosso senso de humor. Eu disse q u e a explicação pode ser uma operação preliminar necessária à compreensão. Todavia, parece-me que compreendo certa poesia sem necessidade de explicações, como, por exemplo, estes versos de Shakespeare: Full fathom five thy father lies,11 ou estes de Shelley: Art thou pale for weariness Of climbing heaven and gazing on the earth." 21. "A cinco braças dc p r o f u n d i d a d e jaz teu pai.' de, Ato I, Cena II. ( N . T . ) 22

Canção dc Anel, A tempesta-

"Estás pálida dc cansaço / Por te ergueres ao céu e contemplares a Terra." (N.T.)

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pois aqui, e n u m a boa parie da poesia, não vejo nada para ser explicado, isto e', nada que me ajude a compreendê-la melhor e, conseqüentemente, a gostar mais dela. E às vezes a explicação, como já insinuei, pode nos afastar por completo do poema enquanto poesia, em vez de nos conduzir à compreensão. Minha razão mais forte, talvez, para acreditar que não me enganei ao julgar que comprccndo tais fragmentos líricos de Shakespeare e dc Shelley, é que esse s dois poemas me causam um frêmito tão intenso q u a n d o os repito hoje q u a n t o o que eles me causaram há cinqüenta anos. Portanto, a diferença entre o crítico literário e o crítico q u e ultrapassou a fronteira da crítica literária não é a de q u e aquele primeiro seja " p u r a m e n t e " literário, ou q u e não tenha outros interesses. Um crítico que não estivesse interessado em nada a não ser em 4 'literatura" não teria quase nada a nos dizer, pois sua literatura seria apenas abstração. Os poetas têm outros interesses além da poesia — do contrário, sua poesia seria extremamente oca; eles são poetas porque sua principal preocupação foi a de transformar sua experiência e seu pensamento (e experimentar e pensar significa ter interesses além da poesia), a de transmutar, digo, sua experiência e seu pensamento em poesia. Em conseqüência, o crítico é um crítico literário se o seu objetivo primordial, ao escrever crítica, for o de ajudar seus leito-

ulterior, embora também possa, ao dirigir nossa atenção para o poeta, nos afastar da poesia. Não devemos confundir o conhecimento — informação fatual relativa ao período cm que o poeta produziu, às condições sociais em que viveu, às idéias correntes em sua época c que estão implícitas nas obras que escreveu, ao estágio da língua em seu tempo — com a compreensão de sua poesia. Esse conhecimento, como já disse, pode ser uma preparação necessária à compreensão da poesia; além disso, tem ele um valor intrínseco e n q u a n t o história, mas para a avaliação da poesia isso só nos pode conduzir até a porta: cabe-nos descobrir a maneira de abri-la. E que as razões para adquirir esse conhecimento, do ponto de vista que sustentamos neste estudo, não são primordialmente as de que devêssemos ser capazes de pensar e sentir, q u a n d o lemos o poema, como um contemporâneo do poeta poderia ter pensado e sentido, embora essa experiência tenha seu próprio valor; tentamos obtêlo, antes de mais nada, para nos descartarmos das limitações de nossa própria vida, e para livrar o poeta, cuja obra estamos lendo, das limitações dc sua época, a fim de adquirirmos a experiência direta, o contato imediato com sua poesia. O que mais importa, permitam-nos dizer, ao 1er uma ode de Safo, não é imaginar que eu estivesse cm uma ilha grega há cerca de vinte e cinco séculos; o q u e importa é a experiência que é a mesma para todos os seres humanos de diferentes séculos e idiomas capazes de gostar de poesia, a faísca que pôde atravessar esses dois mil e quinhentos anos. Assim, o crítico ao qual sou mais grato é aquele que conseguiu fazer com que cu visse algo que jamais vira, ou vira apenas com os olhos enevoados pelo preconceito, aquele q u e me colocou face a face com essa nova realidade c, desse modo, deixou-me sozinho com ela. A partir desse m o m e n t o , cumpre que cu conile em minha própria sensibilidade, em minha inteligência e em minha capacidade para a sabedoria.

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res a compreender e a sentir prazer. Mas ele deve ter outras preocupações, exatamente como o próprio poeta, pois o crítico literário não é apenas um especialista técnico q u e aprendeu as regras a serem observadas pelos escritores q u e critica; o crítico deve ser um h o m e m na plena acepção da palavra, um h o m e m de convicções e de princípios, de conhecimento c experiência de vida. Caberia, pois, perguntarmos, a respeito de qualquer texto que nos seja apresentado como crítica literária, se ele visa à compreensão e ao prazer. Caso contrário, estaríamos ainda diante de uma legítima e proveitosa atividade, mas que deveria ser julgada como contribuição à psicologia, à sociologia, à lógica, à pedagogia ou a qualquer ciência — c ser julgada por especialistas, não por homens de letras. Não devemos identificar a biografia com a crítica: a biografia é geralmente útil por fornecer uma explicação que pode abrir caminho a uma compreensão

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Se, em matéria dc crítica literária, colocarmos toda a ênfase na compreensão, correremos o risco de escorregar da compreensão para a explicação pura e simples. Correremos até o perigo de pretender a crítica como ciência, o que ela jamais pode ser. Se, por outro lado, supervalorizarmos o prazer, tenderemos a cair no subjetivo e no impressionistico, e nosso prazer não terá

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outro proveito senão o do entretenimento e do simples passatempo. Há trinta e três anos pareceu-me que este fosse o segundo tipo de crítica, o impressionistico, responsável pelo tédio q u e experimentei q u a n d o escrevi sobre "a função da crítica". Hoje parece-me que precisamos estar mais alertas contra o q u e é puramente explicativo. Mas não quero deixar vocês com a impressão de que pretendo condenar a crítica de nossa época. Estes últimos trinta anos têm sido, suponho, um brilhante período da crítica literária tanto na Inglaterra q u a n t o nos Estados Unidos. Retrospectivamente, ele pode até chegar a parecer muito brilhante. Quem sabe? II

DE POETAS

VIRGILIO E O MUNDO CRISTÃO 1

Pode-se facilmente demonstrar que a estima de q u e Virgílio tem sido objeto ao longo de toda a história cristã é devida em grande parte, na perspectiva histórica sob a qual a consideramos, a acidentes, irrelevâncias, mal-entendidos c superstições. Sob tal perspectiva, poder-se-ia dizer por que os poemas de Virgílio foram tão entusiasticamente louvados, mas não se encontraria talvez n e n h u m a razão para justificar por que ele merece um lugar de tamanho destaque, e menos ainda para nos persuadir de que sua obra tenha qualquer valor para o m u n d o de hoje, de amanhã ou de sempre. O que me interessa aqui são aquelas características de Virgílio que o tornaram singularmente simpático à mentalidade cristã. Afirmar isso não significa atribuir-lhe qualquer merito exagerado como poeta, ou mesmo como moralista, capaz de situá-lo em nível superior a todos os demais poetas gregos e romanos. Há, entretanto, um " a c i d e n t e " , ou um m a l - e n t e n d i d o " , que desempenhou tal papel na história que ignorá-lo pareceria uma fuga. Trata-se, 6 claro, da quarta Écloga, na qual Virgílio, por ocasião do nascimento — ou do próximo nascimento — 1. Palestra radiofônica p r o n u n c i a d a na BBC de Londres em 1951 e publicada em The Listener. A tradução citada e a da Biblioteca Locb. A tradução dc D a n t e citada aqui c mais a d i a n t e c a dos Clássicos T e m p l e . ( Ν . A . )

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de um filho de seu amigo Poilio, recém-nomeado cônsul, expressa, numa linguagem bombástica, o que nada mais c do que uma simples carta de congratulações endereçada ao venturoso pai.

Eis que e chegada a última epoca da profecia de Cumae; a grande linhagem dos séculos recomeça novamente. Agora a Virgem regressa, e retoma o reino de Saturno (...) Ele receberá o dom da vida divina, verá os heróis misturados aos deuses, e ver-se-á a si próprio entre eles. e dominará um mundo pacificado pelas virtudes de seu pai (...) Sucumbirá a serpente, e a perfida planta venenosa morrerá; e a fragrância assina brotará sobre toda a terra (...)2 Tais expressões sempre pareceram excessivas, e a criança q u e as inspirou jamais obteve n e n h u m a notoriedade no m u n d o . Chegou-se mesmo a sugerir q u e Virgílio estivesse f a z e n d o seu amigo de b o b o ao utilizar essa parábola à maneira oriental. Alguns eruditos chegaram a pensar q u e ele estivesse i m i t a n d o , ou mesmo macaqueando, o estilo dos oráculos da Sibila. Outros conjeturaram q u e o poema pudesse estar secretamente dirigido a Otávio, ou ate mesmo q u e estivesse relacionado à progenie de Antônio e Cleópatra. Um erudito francês, Carcopino / dá boas razões para que se acredite q u e o p o e m a inclui alusões à doutrina pitagòrica. O mistério do poema não parece ter despertado n e n h u m a atenção particular até q u e os Padres da Igreja dele se apoderassem. A Virgem, a Idade de O u r o , o G r a n d e Ano, o paralelo com as profecias de Isaías, a criança cara deum suholes — querido rebento dos deuses, grande 2. Essa tradução cm prosa corresponde aos versos de n ú m e r o s 4-6. 15-17 e 24 25 da Écloga IV, cujo texto em latim é o seguinte: " U l t i m a C u m a e i venu jam carminis acras; / Magnus ab integro saeclorum nascitur ordo. ! J a m redit et Virgo, redeunt Saturnia regna ( . . . ) // Ille d e u m vita accipiet divisque videbit / Permixtos heroes et ipse videbitur illis / Pacatumquc reget patriis virtutibus o r b e m . / / ( . . ) Occidct et serpens, et fallax herba vencni / Occidct Assyrium volgo nascctur amom u m " . (N.T.) 3. Carcopino, Jérôme. Historiador francês (Vcrncuil-sur-Avre. 1881). especialista cm história romana. A obra a que Eliot se refere é Virgile et le mystère de la W Eclogue. Paris, 1930. ( N . T . )

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descendente de Júpiter 1 —, poderia apenas ser o próprio Cristo, cuja vinda foi prevista por Virgílio para o ano 40 a.C. Lactâncio* e Santo Agostinho acreditavam nisso, assim como toda a Igreja medieval e Dante, c até mesmo, à sua maneira, Victor Hugo. 6 Cabe supor ainda q u e possam ser encontradas outras explicações, e já sabemos mais sobre essas possibilidades do que o sabiam os Padres da Igreja. Sabemos também que Virgílio — que foi um h o m e m dc grande cultura para a sua época e, como nos revela o Sr. Jackson K n i g h t / bem informado em matéria de folclore e dc antigüidades —, teve pelo menos conhecimento das religiões e da linguagem figuradaldo Oriente, o que seria em si o bastante para explicar qualquer sugestão de profecia hebraica. Sc considerarmos a predição da Encarnação apenas uma coincidência, isso irá depender do que entendemos por coincidência; sc considerarmos Virgílio um poeta cristão, isso irá depender da interpretação que dermos à palavra p r o f e r i a " . De que o próprio Virgílio estivesse conscientemente interessado apenas nos assuntos internos ou na política de Roma estou ccrto: creio que ele teria ficado muito mais surpreso com a carreira q u e sua quarta Écloga iria ter. Se o profeta fosse por definição um h o m e m que compreendesse o pleno significado do q u e estivesse dizendo, isso para mim encerraria o assunto. Mas se a palavra "inspiração" tem algum significado, ela quer dizer simplesmente isto: aquele q u e fala ou escreve não compreende inteiramente o que está enunciando, ou pode até se enganar q u a n d o a inspiração o abandona. Isso é verdade no que concerne à inspiração poética, e há razões mais óbvias 4. Cara d e u m subolcs. m a g n u m lovis i n c r e m e n t u m ! " Trata-se do verso 49 da Écloga IV. ( N . T . ) 5 Em lat. Ucius Caeltus (ou Caecilius) Etrmianus Lactantius. Escritor cristão (Numídia. Africa, c. 250 Trier, c 320). autor de trabalhos apologéticos, entre os quais De mortibuspersecutorum (Sobre a morte dos perseguidores). ( N . T . ) 6. F.in Les voix intérieures (18^7). XVIII. Victor H u g o acrescenta uma vaga força lírica ã interpretarão da Bucólica IV, q u a n d o escreve: " D a n s Virgile, parfois, dieu tout près d ' ê t r e un ange, / Le vers porte à sa ι ime un lueur étrange. / C'est que. rêvant déjà ce q u ' à présent on sait, / Il chantait presqu'a l'heure où Jesu s vagissait". (N.T.) William Francis Jackson K n i g h t , ex-professor da Universidade de Exeter, autor de várias obras sobre Virgílio, entre as quais Roman Virgil. Londres. 1944. ( N . T . )

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para admirarmos Isaías como poeta do que reivindicar para Virgílio a condição de profeta. Um poeta pode acreditar q u e esteja exprimindo apenas sua experiência pessoal; seus versos p o d e m ser para ele apenas um meio de falar sobre si mesmo sem se libertar inteiramente. Todavia, para seus leitores, o q u e ele escreveu pode tornar-se a expressão tanto de seus próprios sentimentos q u a n d o da exultação ou do desespero de uma geração. Ele não precisa saber o q u e sua poesia irá significar para os outros, e n q u a n t o o profeta não precisa compreender o significado do que propõe a sua profecia. Temos um hábito mental que torna m u i t o mais fácil para nós explicar o miraculoso cm termos naturais do q u e explicar o natural em termos miraculosos: todavia, este é tão necessàrio quanto aquele. Um milagre que todos aceitassem e no qual todos acreditassem sem n e n h u m a dificuldade seria, na verdade, um estranho milagre, pois o q u e fosse miraculoso para todos também pareceria natural para todos. Julgo que se possa aceitar não importa que explicação da quarta Écloga por um erudito ou um historiador, que é o mais plausível, pois os eruditos e os historiadores não podem levar cm conta senão o que Virgílio imaginava estar fazendo. Mas, ao m e s m o t e m p o , se existe algo que se assemelhe à inspiração — e continuamos a empregar a palavra —, então é algo que escapa à pesquisa histórica. f ui levado a considerar a quarta Écloga porque cia é tão importante q u a n d o se fala da história do lugar de Virgílio na tradição cristã q u e o fato dc omiti-la poderia levar a um malentendido. E é quase impossível referir-se a ela sem indicar dc que maneira se aceita ou se recusa a concepção de q u e ela profetiza o advento de Cristo. Eu queria apenas esclarecer q u e a aceitação literal dessa Écloga como profecia tem muito a ver com a precoce acolhida da obra de Virgílio entre os cristãos e, por conseguinte, com a abertura do caminho de sua influência no m u n d o cristão. Não vejo isso como um mero acidente, ou uma simples curiosidade literária. Mas o q u e dc fato me interessa é o elemento que, em Virgílio, lhe concede um lugar único e significativo no final da era pré-cristã e nas origens do m u n d o cristão. Ele os divisa a ambos, promovendo u m a ligação entre o m u n d o antigo e o novo, c podemos tomar a quarta

Écloga como símbolo dessa posição peculiar. Sob que aspectos, portanto, os maiores dentre os poetas romanos anteciparam o m u n d o cristão de u m a forma que os poetas gregos não o fizeram? A melhor resposta a essa pergunta foi dada por Theodor llaeckcr n u m livro, publicado alguns anos depois n u m a tradu-

ção inglesa, sob o título de Virgil the father o f the West. Colocarei em prática o método de Haecker. Farci aqui uma breve e talvez banal digressão. Ainda nos tempos de escola quis o destino que cu fosse iniciado na Ilíada c na Eneida no mesmo ano. Até então, eu considerava o grego uma língua muito mais atraente do que o latim. Considero-a ainda uma língua bem superior, uma língua que jamais foi superada como veículo para exprimir o mais amplo espectro c as mais delicadas nuanças do pensamento e da emoção. Todavia, sinto-me mais à vontade com Virgílio do que com Homero. Poderia ter sido diferente se tivéssemos começado com a Odisséia, cm vez da Ilíada, pois q u a n d o chegamos a 1er cm separado certos livros da Odisséia — c nunca li da Odisséia em grego senão esses livros isolados —, sentimo-nos muito mais felizes. Minha preferência decerto não significava, apraz-me dizê-lo, que eu julgasse Virgílio o maior dos dois. Eis uma espécie de erro do qual nos preserva a juventude, pela simples razão dc que estamos muito naturalmente à vontade para propor uma questão artificial artificial porque, sejam lá quais tenham sido as maneiras de q u e Virgílio se utilizou para seguir os procedimentos de Homero, não estava ele tentando fazer a mesma coisa. Poder-se-ia, com bastante razão, tentar medir comparativamente a "grandeza da Odisséia c do Ulysses, dc James Joyce, simplesmente porque Joyce, para fins absolutamente distintos, utilizou a estrutura da Odisséia. O que me impedia de gostar da ilíada naquela época era o comportamento das personagens sobre as quais Homero escreveu. Os deuses eram tão irresponsáveis, tão escravos de suas paixões, tão despidos de espírito público e da noção dc jogo aberto, q u a n t o os heróis. Isso era chocante. Além do mais, seu senso de humor atendia apenas

8. Haeckcr, T h e o d o r . Filósofo católico alemão (Eberback. W ü r t t e m b e r g . 1879 Usterbach. perto de Augsburg, 1945). O título do original alemão a que Eliot se refere é Vergi/, Valer dei Abendlander (1932). ( N . T . )

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às exigências das mais grosseiras formas de farsa. Aquiles era um rufião, e o único herói q u e se poderia recomendar quer pela conduta, quer pelo julgamento, era Heitor; e me parecia que essa era também a opinião de Shakespeare:

If Helen then be wife to Sparta's king, As it is known she is, these moral laws Of nature and of nations speak aloud To have her back returned (...f1 T u d o isso pode dar a impressão de ter sido apenas o capricho de um garotinho pedante. Modifiquei minhas opiniões anteriores — a explicação que eu daria agora seria a de q u e instintivamente preferiria o mundo de Virgílio ao mundo de Homero, porque era um m u n d o mais civilizado em termos de dignidade, de razão e de ordem. Q u a n d o digo "o m u n d o de Virgílio", quero dizer o que o próprio Virgílio fez do m u n d o em que vivia. A Roma do período imperial era bastante rude e bestial e, sob certos aspectos, muito menos civilizada do q u e Atenas em seu apogeu. Os romanos eram menos dotados do q u e os atenienses para as artes, a filosofia e a ciência pura; e sua língua era menos flexível para exprimir tanto a poesia q u a n t o o pensamento abstrato. Com sua poesia, Virgílio fez da civilização romana algo melhor do que ela realmente o era. Sua sensibilidade está mais próxima da sensibilidade cristã do q u e a de qualquer outro poeta romano ou grego: não do q u e a de um cristão primitivo, talvez, mas daquela de um cristianismo à época em que podemos dizer que a civilização cristã se instaurou. Não podemos comparar Homero e Virgílio, mas podemos comparar a civilização que Homero aceitou à de Roma, já refinada pela sensibilidade de Virgílio. Quais são, portanto, as principais características de Virgílio que o tornaram simpático à mentalidade cristã? Considero q u e a maneira mais promissora para fornecer algumas breves indicações é adotar o procedimento de Haecker e tentar desenvolver

9- " S c Helena r, pois, a mulher do rei de Esparta. / C o m o é fato notório, essas leis morais / da natureza e das nações gritam em voz alta / Q u e devemos devolvêla ( . . . ) . " Trotto e Cr e s si da, Ato II. Cena II. ( N T )

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o significado de certas palavras-chave. Palavras como labor, pietas e fatum. As GeórgicasU) são, creio eu, indispensáveis à compreensão da filosofia de Virgílio, mas convém lembrar que, ao empregarmos essa palavra, não pretendemos dizer em absoluto a mesma coisa do que q u a n d o falamos da filosofia de um poeta, do que q u a n d o falamos da filosofia de um pensador abstrato. As Geòrgie as, e n q u a n t o tratado técnico sobre agricultura, são difíceis e tediosas. A maioria de nós não tem o necessário domínio do latim para lê-las com prazer, como tampouco o desejo de reviver nossos martírios dos tempos de escola. Somente as recomendo na tradução do Sr. Day Lewis,11 que as verteu em versos modernos. Mas são elas uma obra à qual o autor consagrou boa parte de seu tempo. E por que as escreveu? Não cabe supor que ele se haja e m p e n h a d o na tarefa de ensinar seu assunto aos agricultores de sua terra natal, ou que pretendesse apenas produzir um manual proveitoso para os citadinos desejosos de adquirir terras e de se estabelecer como agricultores. E nem é provável q u e estivesse apenas preocupado em arquivar registros para a curiosidade das gerações vindouras sobre os métodos de agricultura de sua época. E mais provável que ele tivesse em mira lembrar aos proprietários absenteístas, alheios às suas responsabilidades e atraídos pelo amor ao prazer ou à política da metrópole, seu dever fundamental de cuidar da terra. Qualquer que fosse seu motivo consciente, parece-me claro que Virgílio desejava afirmar a dignidade do trabalho agrícola e a importância do bom cultivo da terra para o bem-estar tanto material q u a n t o espiritual do Estado. O fato de q u e cada forma da poética maior tenha algum precedente no verso grego não deve permitir que se iclegue à sombra a originalidade com que ele recriou cada uma das formas de que se serviu. Não há, penso eu, nenhum precedente para o espiato das Geòrgie as; e a atitude para com a terra, que 10. As Geórgicas foram escritas entre 37 e SO a.C. Trata-se »le um grande hino ù terra italua. uma obra de propaganda cm favor da reagrarizaçào empreendida pelo imperador Augusto. ( N . T . ) U. Lewis, Cecil Day Poeta inglês (1904). catedrático de poesia na Universidade de Oxford Alem das Georgias, traduziu t a m b é m a Eneida. Entre suas obras, cumpre lembrar Transitional poem (1929), Magnetic mountains (1933), Λ time to dance (1955). Ouvertures to death (19*8) e Word over all ( 19-13). ( N . T . )

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ali está expressa, e algo que deveríamos considerar particularmente inteligível agora, q u a n d o a concentração urbana, o êxodo rural, a pilhagem da terra e o desperdício dos recursos naturais começam a despertar a atenção de todos. Foram os gregos q u e nos ensinaram a dignidade do lazer; foi deles que herdamos a percepção de que a vida mais elevada é a vida de contemplação. Mas esse respeito ao lazer, entre os gregos, se fazia acompanhar por um desprezo às ocupações manuais. Virgílio percebeu q u e a agricultura é fundamental à civilização, e afirmou a dignidade do trabalho manual. Q u a n d o foram criadas as ordens monásticas cristãs, a vida contemplativa e a vida dos trabalhos manuais estavam de início associadas. Estas não eram mais ocupações para as diferentes classes de pessoas, u m a nobre, outra inferior e adequada apenas aos escravos ou scmi-escravos. Boa parte do m u n d o medieval não era cristã, e as práticas do m u n d o laico eram muito diferentes daquelas das ordens religiosas no que tinham estas de melhor; mas pelo menos o cristianismo estabeleceu o princípio de q u e aςão e contemplação, trabalho e oração, são essenciais à vida do h o m e m completo. E possível que a intuição dc Virgílio fosse reconhecida pelos monges q u e liam suas obras em seus retiros religiosos. Além disso, precisamos nos lembrar dessa afirmação das Geórgicas quando lemos a Eneida. Aí, Virgílio está preocupado com o Imperium romanu m, com a extensão e a justificação da norma imperiai. Eie formula um ideal para Roma, e para o império em geral, que jamais foi realizado na história, mas esse ideal como Virgílio o entende não carece de nobreza. Sua devoção a Roma estava baseada n u m a devoção à terra, a determinada região, a determinada cidade e a determinada família nessa cidade. Para um leitor de história, essa f u n d a m e n t a ç ã o do geral no particular pode parecer quimérica, assim como a união da vida contemplativa e da vida ativa pode parecer quimérica à maioria das pessoas. É q u e tais objetivos são a m i ú d e encarados como alternativas: exaltamos a vida contemplativa e menosprezamos a vida ativa, ou exaltamos esta e olhamos aquela com divertido desprezo, se não mesmo com desaprovação moral. E, todavia, pode ser que o h o m e m q u e afirma aquilo que é aparentemente incompatível esteja certo.

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Chegamos à segunda palavra. É um lugar-comum dizer que a palavra piedade constitui apenas uma tradução reduzida, modificada e especializada de pietas. Usamo-la cm dois sentidos: em geral, ela sugere uma assiduidade devota à Igreja, ou pelo menos u m a assiduidade aparentemente devota. Em outro sentido, está sempre precedida pelo adjetivo " f i l i a l " , significando um comportamento correto para com os pais. Q u a n d o Virgílio fala, como o faz, do pius Aeneas, podemos pensar em seu cuidado para com o pai, na devoção à memória do pai e no tocante reencontro do pai com o filho em sua descida às regiões infernais. Mas a palavra pietas usada por Virgílio tem conotações bem mais amplas: ela implica uma atitude com relação ao indivíduo, à família, à região e ao destino imperial de Roma. E afinal Enéias é piedoso" também em seu respeito para com os deuses e em sua escrupulosa observância dos ritos c oferendas. E uma atitude para com todas essas coisas e que, por conseguinte, implica uma unidade e uma ordem entre elas: é, na verdade, u m a atitude para com a vida. Enéias não é, assim, somente um homem dotado de uma série de virtudes, cada u m a das quais constitui uma espécie de piedade; de m o d o que chamá-lo de piedoso equivale apenas, em geral, a utilizar um termo coletivo conveniente. A piedade é una. Aqueles são aspectos da piedade em diferentes contextos, e todos eles guardam relação entre si. Em sua devoção ao pai, ele não está sendo apenas um filho admirável. Há uma afeição pessoal, sem a qual a piedade filial seria imperfeita, mas a afeição filial não é piedade. Há também devoção ao pai enquanto pai, e n q u a n t o progenitor: trata-se da piedade e n q u a n t o aceitação de um vínculo que não se escolheu. A qualidade da afeição está alterada, e sua importância sc aprofunda quando se torna amor devido ao objeto. Mas essa piedade filial é também o reconhecimento de um vínculo a mais, o que se mantém com os deuses, aos quais essa atitude agrada: falhar com relação a isso equivaleria a tornar-se culpado de impiedade para com os deuses. Os deuses devem assim ser dignos desse respeito; e sem deuses, ou um deus, se podemos considerá-lo dessa maneira, a piedade filial está ameaçada, pois deixa dc ser então um dever, seus sentimentos para com o pai serão devidos apenas a um feliz acidente de congenialidade ou reduzidos a um

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sentimento dc gratidão pelos cuidados e consideração recebidos. Enéias é piedoso para com os deuses, e jamais sua piedade aflora mais claramente de que q u a n d o os deuses o afligem. Teve ele não poucos aborrecimentos com J u n o , e até mesmo sua mãe Vénus, instrumento benévolo de seu destino, colocou-o n u m a situação muito embaraçosa. Há em Enéias uma virtude — ingrediente essencial em sua piedade — que consiste n u m a analogia com a humildade cristã e que a prefigura. Sob importantes aspectos, Enéias é a antítese quer de Aquiles, quer de Odisseu. Na medida em que ele é heróico, o é como a Pessoa Deslocada original, como o fugitivo da cidade arruinada e de uma sociedade destruída, da qual alguns raros sobreviventes, à exceção dos de seu grupo, definham como escravos dos gregos. Não lhe couberam, como a Ulisses, maravilhosas e excitantes aventuras, entremeadas de ocasionais episódios eróticos, q u e não deixaram n e n h u m a úlcera na consciência daquele viajante. Ele não devia afinal regressar à saudosa lareira, a u m a esposa exemplar que o aguardava, e ali reunir-se a seu filho, a seu cão e a seus serviçais. O fim dc Enéias é apenas um novo começo, e o objetivo de sua peregrinação é algo q u e só virá a ser alcançado por futuras gerações. Sua réplica mais próxima é J ó , mas sua recompensa não foi a que Jó obteve, e sim estritamente o cumprimento de seu destino. Ele sofre para si mesmo, e só age para obedecer. Ele é, na verdade, o protótipo do herói cristão; é, humildemente, um homem com uma missão, e a missão é tudo.

h o m e m de destino, pois sobre cie repousa o futuro do m u n d o ocidental. Mas essa é uma eleição que não pode ser explicada, um fardo e uma responsabilidade mais do que uma razão de que alguém se glorifique. Toca simplesmente a um h o m e m , e não a outros, ter os dons necessários num m o m e n t o de crise p r o f u n d a , mas ele não pode se atribuir n e n h u m crédito pelos dons e pela responsabilidade que lhe couberam. Certos homens tiveram uma f u n d a convicção de seu destino, e prosperaram com essa convicção; mas q u a n d o deixam de agir como um inst r u m e n t o e passam a considerar-se como fonte ativa do que fazem, seu orgulho é punido com o desastre. Enéias é um hom e m guiado pela convicção profunda do destino, mas é um h o m e m h u m i l d e que sabe que seu destino não constitui algo para ser desejado nem evitado. De que potência é ele o servidor? Não a dos deuses, q u e são apenas instrumentos, e às vezes instrumentos rebeldes. O conceito de destino nos lega um mistério, mas um mistério não contrário à razão, pois implica que o m u n d o , e o curso da história humana, tenham um significado.

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A pietas não se explica assim senão em termos de fatum. Eis uma palavra que aparece constantemente na Eneida, uma palavra carregada de significado e talvez com mais significado do q u e aquele que o próprio Virgílio conhecia. Nossa palavra mais próxima é destino \ e esta é uma palavra que significa mais do que quaisquer definições que lhe possamos atribuir. Trata-se de uma palavra que não pode ter n e n h u m significado num universo mecânico: se o que se eleva deve decair, o n d e fica o destino nisso tudo? O destino não é um fatalismo! como tampouco um capricho: é algo que essencialmente tem um significado. Cada h o m e m tem seu destino, embora alguns sejam indubitavelmente " h o m e n s de destino" n u m sentido em que a maioria dos homens não o é; e Enéias é eminentemente um

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Ε o destino não livra a humanidade de responsabilidade moral. É esse, pelo menos, o sentido que atribuo ao episódio de Dido. O caso amoroso de Enéias e Dido foi tramado por Vénus: nenhum dos amantes poderia abster-se. Ora, a própria Vénus não agiu por capricho ou por maldade. Ela estava decerto orgulhosa do destino de seu filho, mas seu comportamento não é o de u m a mãe insensata: ela é em si um instrumento para a realização do destino de seu filho. Enéias e Dido deviam ser unidos, e deviam ser separados. Enéias não se opôs, obedeceu a seu destino. Mas estava decerto muito infeliz por isso, e julgo que sentiu ter se comportado vergonhosamente. Pois, do contrário, por que teria Virgílio arranjado seu encontro com a sombra dc Dido no Hades? Ao ver Dido, ele tenta desculpar-se de sua trai-

ção. Se d me iussa deum — mas eu estava sob as ordens dos deuses; era u m a decisão muito desagradável que eles me impuseram, e lamento que você a tenha compreendido tão mal. Ela evita seu olhar e se volta, o rosto tão imóvel como se houvesse sido talhado n u m a rocha ou num mármore de Paros. , : Não 12. Em gr. P J ros, ilha grega do grupo das Cidades, outrora celebre pelos mármores brancos e brilhantes que produzia. ( N . T . )

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tenho dúvida de que Virgílio, ao escrever estes versos, * assumira o papel de Enéias e se sentira decididamente um verme. Não, um destino como o de Enéias não torna a vida de n e n h u m homem mais fácil: é uma pesadíssima cruz a ser carregada. E não imagino que n e n h u m herói da Antigüidade se haja encontrado numa situação tão inexorável e deplorável. Creio q u e o poeta que melhor teria podido rivalizar com Virgílio ao tratar uma situação como essa seria Racine: certamente o poeta cristão que pôs nos lábios da furiosa Roxane o explosivo verso Rentre dans le Néant d ' o ù je t'ai fait sortir 14 teria podido, se fosse o caso, encontrar as palavras que caberiam a Dido nessa ocasião. O que significa, pois, esse destino, que n e n h u m herói homérico compartilha com o de Enéias ? Para o espírito consciente de Virgílio, significa o impenum romanum. Isso em si, como Virgílio o viu, era uma digna justificativa da história. Creio q u e ele teve algumas ilusões e que via claramente ambos os lados da questão: tanto o do que perde quanto o do que ganha. Todavia, mesmo aqueles que sabem tão pouco latim quanto eu devem recordar estes versos e arrepiar-se à sua lembrança: His ego nec metas rerum, nec tempora pono: Imp en um sine tine dedi (...J1 Tu regere impeno populos, Romane. memento (hae tibi erunt artes) pacique imponere morem, parcere subiectis et debellare superbos(...) 16 Eis aí todo o fim da história ao qual se podia pedir a Virgílio que chegasse, e era um fim digno. E de fato julgam vocês q u e Virgílio se enganou? Vocês devem se lembrar de q u e o Império Romano foi transformado no Sacro Império Romano. O q u e Virgílio propôs aos seus contemporâneos foi o mais elevado 13 Os versos são os seguintes: "Illa solo fixos oculos anversa tenebat / nec magis incepto vohuni sermone moveiur / q u a m si dura silex aut stet Marpesia c a u r e s " Eneida, VI, 469-471. ( N . T . ) 14.

Regressa ao Nada de o n d e te fiz s a i r . " Ba/azet, Ato II, Cena I. (N T )

15. " N ã o fixo n e n h u m limite ao seu poder nem à sua durarão: / dei-lhes um imperio sem fim ( . . . ) . " Eneida. I, 278-279. ( N . T . ) 16. "Lembra-te, romano, de impor aos povos teu impe'rio / (lá estarão tuas artes), de impor as leis da paz, / de poupar os vencidos e de subjugar os orgulhosos ( ) " Eneida, VI. 851-853. ( N . T . )

ideal mesmo para um sacrílego Império Romano, bem como para qualquer império que fosse simplesmente temporal. Somos todos ainda, na medida em que herdamos a civilização européia, cidadãos do Império Romano, e o tempo ainda não desmentiu Virgílio q u a n d o escreveu nec tempora pono: impenum sine fine dedi. Mas, naturalmente, o Império Romano que Virgílio imaginou e através do qual Enéias cumpriu seu destino não era exatamente o mesmo que o Império Romano dos legionários, dos pró-cônsules e dos governadores, dos negociantes e dos especuladores, dos demagogos e dos generais. Ele foi algo maior, mas algo que existe porque Virgílio o imaginou. E permanece como um ideal, mas um ideal que Virgílio transmitiu ao cristianismo para q u e fosse desenvolvido e estimado. Em suma, parece-me que o lugar que Dante destinou a Virgílio na vida futura, bem como o papel de guia e professor que lhe atribuiu até a fronteira que Virgílio não foi autorizado a cruzar, constitui uma exata confirmação das relações entre Virgílio e o m u n d o cristão. Comparado ao m u n d o de Homero, chegamos à conclusão de que o de Virgílio nos parece próximo do m u n d o cristão na escolha, na ordem e no relacionamento entre seus valores. Eu disse que isso não implica n e n h u m a comparação entre Homero poeta e Virgílio poeta. E nem imagino que essa seja exatamente uma comparação entre os mundos nos quais eles viviam, considerados à parte da interpretação desses m u n d o s que os poetas nos deram. E possível que conheçamos mais o m u n d o de Virgílio e que o compreendamos melhor; e, por conseguinte, que vejamos mais claramente quanto, na idéia romana segundo Virgílio, é devido ao poder criador c ao espírito filosófico do próprio Virgílio. Pois, no sentido em que um poeta é um filósofo (distinto do sentido em que um grande poeta pode dar corpo a uma grande filosofia numa grande poesia), Virgílio é o maior filósofo da Roma antiga. Isso não significa, portanto, simplesmente que a civilização na qual Virgílio viveu esteja mais próxima da civilização cristã do que a de Homero; podemos dizer que Virgílio, entre os poetas ou prosadores clássicos latinos, tangencia o cristianismo de uma maneira única. Há uma frase que tentei evitar, mas que agora me sinto na obrigação de utilizar: anima naturaliter Christiana.r Aplicá-la 17.

"Alma por natureza cristã." ( N . T . )

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VIRGÍLIO Ε O M U N D O CRISTÃO

a Virgílio é uma questão de escolha pessoal, mas estou propenso a pensar que ele justamente não alcança o objetivo, eis por que eu disse ainda agora acreditar que Dante colocou Virgílio no lugar certo. Tentarei justificar-me. Penso cm outra palavra-chave, além de labor, pietas t fatum, que cu desejaria pudesse servir de exemplo, segundo Virgílio, da mesma forma que as outras. Que palavra-chave se pode

a história tinha urn significado. Mas foi-lhe negada a visão daquele que podia dizer: " E m suas profundezas vi reunidas, atadas pelo amor em um volume, as folhas dispersas de todo o universo".

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Legato con amor in un volume.10

encontrar em A divina cornédia que já não esteja na Eneida? Uma delas, naturalmente, é lume, e todas as palavras exprimem a significação espiritual da luz. Mas essa palavra, creio eu, da maneira como Dante a emprega, tem um significado que pertence apenas ao cristianismo explícito, associado a um sentido que pertence à experiência mística. E V irgílio não é um místico. O termo cuja ausência se pode justificadamente lamentar em Virgílio é amor. Ele é, acima de quaisquer outros, a palavrachave em Dante. Não quero dizer que Virgílio jamais a utili-

zou. A palavra amor ocorre nas Éclogas (amor vincit omniax Mas os amores dos pastores só a custo simbolizam mais do q u e uma convenção poética. O uso da palavra amor nas Éclogas não está iluminado por significados que ela adquire na Eneida da maneira como, por exemplo, nos voltamos para Paolo e Francesca com maior compreensão de sua paixão após termos atravessado os círculos do amor no Paraíso. É claro que o amor de Enéias e Dido tem maior força trágica. Há ternura e pathos suficientes na Eneida. Mas o Amor jamais recebe, segundo penso, a mesma significação como um princípio de ordem na alma h u m a n a , na sociedade e no universo que recebe a pietas\ e não é o Amor que determina o fatum, ou move o sol e as estrelas. Mesmo no que se refere à paixão física. Virgílio é menos intenso do que alguns outros poetas latinos, situando-se bem abaixo do nível de Catulo. Se não formos gelados, teremos pelo menos a impressão de que, em Virgílio, nos movemos n u m a espécie de crepúsculo emocional. Dentre todos os autores da Antigüidade clássica, Virgílio foi aquele para quem o m u n d o tinha um sentido, para quem ele tinha ordem e dignidade c para q u e m como para n e n h u m outro, à exceção dos profetas hebraicos —, 18.

"O amor vence t u d o . " (N T.)

19. Os versos citados por Eliot na tradução inglesa dos Clássicos Tempie e o verso em italiano pertencem a A divina comedia. Parano, C a n t o XXX, 85-87: " N e l suo p r o f o n d o vidi che s'interna. / legato con amore in un volume. / ciò che per I universo si s q u a d e r n a ; " . ( N . T . )

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a maioria dos leitores conhece de Davies esteja representado pelas duas estrofes compiladas no Oxford hook of English verse:

SIR JOHN DAVIES1

I know my soul hath power to know all things, Yet she is blind and ignorant m all: I know I'm one of Nature 's little kings, Yet to the least and vilest things am thrall I know my life 's a pain and but a span; I know my sense is mock 'd in everything: And\ to conclude, I know myself a Man Which is a proud and yet a wretched thing.3

O juiz da Suprema Corte John Davies : morreu em 7 de dezembro de 1626. Deixou uma série de poemas, um tratado filosófico. Reason's academy, alguns textos jurídicos e vários alentados documentos oficiais sobre a Irlanda. Fez uma brilhante carreira como servidor público, mas muito provavelmente o poema que preservou sua memória. Kosce teipsum, foi o que lhe recomendou ao rei Jaime. Possivelmente, Jaime apreciava mais a erudição do que o mérito poético, mas, de qualquer modo, reconheceu o valor de um poeta que estava, sob certos aspectos, tão deslocado em sua época quanto na nossa. Os poemas curtos de Davies são de modo geral graciosos e ocasionalmente encantadores, mas estão a tal ponto eclipsados até mesmo pela modesta reputação de Nosce teipsum e de Orchestra que jamais foram compilados como peças antológicas. Por sua enunciação gnomica e seus quartetos indevassáveis, Nosce teipsum presta-se à mutilação, mas uma ou duas estrofes é rudo o que figura nas antologias. Provavelmente, tudo o q u e 1. Publicado cm The Times literary Supplement cm ΐυ26

(Ν. A )

2. Davies, Sir J o h n . Poeta e jurista inglês (Tisbury. W i l t s h i r e 1569 Newcastle-on-Lyme, 1626). Os poemas Nosce teipsum e Orchestra d a t a m r e s p e t i vamente, de 1599 e 1596. Dav.es deixou ainda, entre outras obras, vinte e seis acrosticos sobre as palavras TJisabetha Regina, sob o título dc Hymns to Astrea publicados em 1599. ( N . T . )

Embora belas e completas tanto quanto podem sê-lo, essas duas estrofes não representam o poema, e n e n h u m a seleção estrófica pode representá-lo. Davies é autor de belos versos, mas é mais do que isso. Não é um desses que se podem incluir naquele segundo escalão de poetas dos quais, aqui e ali, ecoam notas do que é importante. Se há, em Orchestra, indícios da influência de Spenser, isso não constitui senão o débito que muitos elisabetanos pagam a esse mestre da versificação. Ε o esquema, a versificação e o conteúdo de Nosce teipsum são, nessa época, decididamente originais. O poema do Nosce teipsum é uma longa discussão sobre a natureza da alma e sua relação com o corpo. As teorias de Davies não são as dos filósofos do final do século XVII, nem constituem muito bom aristotelismo. Davies está mais preocupado em provar que a alma é distinta do corpo do que em explicar como tais entidades distintas podem estar unidas. A alma é um espírito e, como tal, tem inteligência, vontade, razão e capacidade de julgamento. Ela não se assemelha à torma do corpo, e a palavra " f o r m a " aparece no poema mais no sentido de "representação" {similitude). A alma está no corpo como a luz no ar, o que está de acordo com a questão escolástica relativa ao fato de que a alma esteja mais cm uma parte do corpo "Sei q u e m i n h a alma tem o poder dc saber tudo, / E todavia e' dc todo cega e ignorante: ! Sei q u e sou um dos pequenos reis da*Natureza, / E contudo escravizo me às coisas mais íntimas e vis. // Sei que minha vitla dói e dura apenas um instante; / Sei que em tudo meu juízo é escarnecido; / E. para concluir, reconheçome como um h o m e m / Q u e ao mesmo t e m p o c miserável e orgulhoso." (N. I.)

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do que em outra. N e m mesmo os problemas do sentido de percepção parecem difíceis de resolver: Davies não está perturbado pela "recepção de formas imateriais". Sua contribuição à ciência da acústica consiste na explicação de que os sons devem percorrer os "canais e labirintos" do ouvido:

SIK J O H N DAVIES

(um símile que Alexander

But sith our life so fast away doth slide, As doth a hungry eagle through the wind,6 4. Pois sc a voz atingisse diretamente o ce'rcbro, / Haveria de deixá-lo bastante maravilhado e c o n f u s o . " ( N . T . ) Nemésio. Filósofo cristão (final do século IV), autoi do tratado Da natureza humana. que constitui u m a tentativa destinada a compilar um sistema de antropologia do p o n t o dc vista do p e n s a m e n t o cristão no qual estavam presentes as doutrinas platônicas da preexistência e da metempsicose (N. I ) 6. Mas visto que nossa vida velozmente desliza para longe. / C o m o o faz u m a águia faminta pelos a r e s . " ( N . T . )

toma de empréstimo para o seu

Julius Caesar), ou And if thou, like a child'. didst feare before, Being in the darke, where thou didst nothing see: Now I have brought thee torch-light, fear no more; Now when thou diesi, thou canst not hud winkt be*

For should the voice directly sinke the brain, It would astonish and confuse it much.4 Se Davies tomou ou não de empréstimo suas teorias — se é que cabe chamá-las assim — a Nemésio' ou a qualquer outro autor primitivo cristão, ou se as recebeu diretamente ou de segunda mão, é evidente que não podemos levá-las m u i t o a sério. Mas o final do século XVI não foi um período de refinamento filosófico na Inglaterra nessa época, a rigor, a filosofia nada mais era que a vítima de um d e f i n h a m e n t o q u e se estendera por um século ou mais. Considerando-se o lugar e a época, esse poema filosófico de um eminente jurista não constitui de modo algum uma realização desprezível. N u m a época em que a filosofia, se não considerarmos a teologia, reduzia-se habitualmente (e em especial em verso) a u m a compilação dos lugares-comuns de Séneca, a de Davies corresponde à de um espírito independente. O mérito e a estranheza do poema, todavia, residem na pcrleição dos meios para se alcançar um fim. N u m a linguagem de clareza e austeridade notáveis, Davies atinge seus objetivos ao manter o poema consistentemente no nível da poesia; ele jamais descamba para a hipérbole ou a linguagem bombástica, e jamais cscorrcga, como facilmente poderia fazê-lo, para o prosaico e o burlesco. Certos versos e quartetos estranhos persistem na memória, como:

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Davies não deve ser louvado pela grande felicidade na construção da frase, mas pode-sc observar que, sempre que outros poetas dele furtaram algo ou chegaram independentemente à mesma imagem, é geralmente Davies quem melhor a expressa. Grosart 9 compara as duas passagens seguintes, mostrando um símile utilizado por Davies e por Pope: Much like a subtill spider, which doth sit In middle of her web. which spreadelh wide: If aught do touch the utmost thread of it. She feels it instantly on every side.10 Pope: The spider's touch, how exquisitely fine. Feels at each thread, and lives along the line.11 A aranha de Davies está mais viva, embora o autor lhe destine mais dois versos. Outro exemplo é o da conhecidíssima imagem

de

lhe ancient manner.

7. Alexander. William Dramaturgo inglês (1567-1640). autor dos four monarchi que tragedies Crœsut, Danus, The Alexandraen e Julius Caesar (1604-1607). nas quais consegue anglicizar a filosofìa estóica ( N . T . ) 8 "E se tu. qual uma criança, temeste antes, / Estando no escuro, onde nada podias ver; / Agora q u e eu te trouxe a luz dc u m a tocha, não temas mais; / Agora, q u a n d o morreres, não mais poderás pestanejar. ( N . T ) 9. Grosart, Alexander Balloch. Sacerdote e editor escocês (Stirling, 1827 — Dublin. 1899), responsável pela publicação de obras de numerosos puritanos e de vários outros trabalhos, além de livros raros considerados inacessíveis. Editou as obras de Davies em 1869-1876. a c o m p a n h a d a s dc u m a extensa biografìa. ( N . T . ) 10. "À semelhança de urna aranha sutil, que se instala / No meio dc sua teia. que toda se esparrama; / Se alguém lhe toca o menor fio, / Ela dc pronto o percebe em todos os l a d o s . " ( N . T . ) 11. "O t o q u e da aranha, q u ã o belo e delicado. / Vibra em cada fio, e vive em toda a t e i a . " ( N . T . )

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Still as a slave before his lord. The ocean hath no blast; His great bright eye most silently Up to the Moon is cast — onde most é uma nódoa. Davies escreve (em Orchestra)'. For loe the Sea that fleets about the Land\ And like a girdle clips her solide waist. Mustcke and measure both doth understand: For his great chrystall eye is always cast Up to the Moone, and on her fixed fast: And as she daunceth in her pallid spbeere So daunceth he about his center heere.1 * Mas a mestria do artesanato de Nosce teipsum e sua beleza não devem ser apreciadas por meio de citações dispersas. Seu efeito é cumulativo. Davies escolhe uma estrofe difícil, dessas em que é quase impossível evitar a monotonia. Ele não a enfeita com n e n h u m a das flores do conceito de sua própria época ou da seguinte, e não recorre a n e n h u m a das antíteses ou engenhos verbais com que os agostinianos sustentam seus períodos gramaticais. Seu vocabulário é claro; a escolha, precisa. Seu pensamento, para um poeta elisabetano, é surpreendentemente coeso; não há nada que seja irrelevante em seu principal a r g u m e n t o , n e n h u m a digressão ou vôo. E, embora cada quarteto seja completo em si mesmo, a seqüência não constitui jamais um "colar de pérolas ' (como foi moda na época seguinte, tal como em The weeper, de Crashaw); o pensamento é contínuo. Todavia, n e n h u m a estrofe é ritmicamente idêntica à outra. O estilo parece singelo, até mesmo pobre, embora a cadência pessoal de Davies esteja sempre presente. Muitos críticos observaram a condensação das idéias, a economia da linguagem e a consistên12. " Q u i e t o como um escravo diante dc seu dono, I O oceano jamais ondula, / Seu grande olhar brilhante, silenciosamente. / Se ergue cm direção à Lua — ." ( N . T . ) 13. "Pois, ai, o Mar q u e se move em torno da Terra. / E como um cinto enfeita sua sólida cintura. / De música e medida ambos e n t e n d e m . I Pois seu grande olho de cristal sempre se volta / Para,a Lua, e sobre sua fixa amarra; / E e n q u a n t o ela dança em sua pálida esfera, / Dança ele t a m b é m em redor de seu centro terrestre." (N.T.)

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cia da alta qualidade, mas alguns incorreram no erro de supor que o mérito de Davies estivesse na prosa. Hallam, 1 4 após louvar o poema, diz: " S e ele atinge em cheio o coração, é por meio da razão. Mas visto que o poderoso e conciso argumento e o estilo correto não conseguem nos proporcionar prazer em prosa, parece estranho q u e eles percam o efeito q u a n d o obtêm a ajuda do metro regular para gratificar o ouvido e socorrer a m e m ó r i a " . A crítica de Hallam é confusa. O coração de Hallam deve ter se revelado singularmente inacessível, ou sua razão muito facilmente impressionada. O argumento não é poderoso; se Davies subisse ao ringue da argumentação filosófica, seu contemporâneo, o cardeal Bellarmine, o teria nocauteado no primeiro assalto. Davies não tinha um espírito filosófico; era primordialmente um poeta, mas com o dom da exposição filosófica. Seu apelo, na verdade, se dirige àquilo que Hallam chama de coração, embora não devamos de m o d o algum empregar esse único órgão como o veículo de toda a emoção poética. Entretanto, a excelência da teoria sobre o corpo e a alma que Davies expôs é irrelevante. Se alguém o tivesse provido de uma teoria melhor, o poema poderia ter sido, em certo aspecto, melhor do que é; em outro aspecto, isso absolutamente não interessa. O espantoso é q u e Davies, em seu país e em sua época, pudesse elaborar, como o fez, u m a teoria tão coerente e respeitável. Ninguém, nem mesmo Gray, 1 5 superou Davies no uso do quarteto que ele utilizou em Nosce teipsum\ e n e n h u m poema em qualquer metro semelhante (compare-se-lhe The witch of Atlas) é metricamente superior a Orchestra. Até mesmo seus acrósticos sobre o nome da rainha Elisabeth são admiráveis em graça e melodia. E com seu gênio para a versificação, com um gosto pela língua notavelmente puro para sua época, Davies teve esse estranho dom, tão raramente conferido, de transformar o pensamento em emoção. 14. Hallam. Henry. Historiador inglês (Windsor. 1777 — Penshurst. Kent, 1859), especialista na história da França, Itália, Espanha. Alemanha c impérios grego e sarraceno. A passagem transcrita por Eliot pertence, porem, à sua Introduction to the literature of Europe during the 16" and 17th centuries (1837-1839). (N.T.) 15. Gray, Thomas. Poeta inglês (Londres, 1716 — Cambridge, 1771). precursor do romantismo em seu país. Escreveu puuco c tornou-se celebre graças a um Unico poema. Elegy written m a country churchyard (1751). ( N . l . )

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Em sua tentativa de " s i t u a r " Davies, que parece anòmalo, os críticos o compararam, de um lado, aos herdeiros de Séneca, a C h a p m a n , 1 6 a Daniel 1 7 e a Greville 18 e, de outro, a D o n n e e os metafísicos. N e n h u m a dessas classificações c absolutamente exata. A única dívida direta de Davies como poeta parece ser a que ele tributa a Spenser, o mestre de todos. Seu tipo de pensamento, e conseqüentemente o tom de sua expressão, afasta-o dos herdeiros de Séneca. Seu pensamento, como dissemos, é inferior como filosofia, mas é coerente e isento de excentricidade ou pose. Ele pensa como um escolástico, embora a qualidade de seu pensamento possa chocar um escolástico. Chapman, Daniel e Greville, até onde se pode dizer q u e de algum modo pensaram, pensavam como retóricos latinos. C o m o os demais dramaturgos, eles absorveram de Séneca u m a filosofia q u e é indispensável à pose teatral. Por isso, sua linguagem, mesmo q u a n d o pura e contida — e a de Daniel é surpreendentemente pura e contida —, é sempre bombástica e oratória; seu verso é como que falado em público, e seus sentimentos como que sentidos em público. O de Davies tem a linguagem e o tom da meditação solitária; ele fala como alguém q u e pensa consigo mesmo na solidão, e jamais eleva sua voz. Do mesmo modo, pode-se dizer q u e Davies tem algo em c o m u m com Donne, e não se trata apenas de sua moderação no emprego do símile e da metáfora. O conceito verbal, como foi utilizado por D o n n e , implica uma atitude bem mais diferente para com as idéias do que a dc Davies, sendo a deste talvez muito mais conscienciosa. D o n n e era propenso a se divertir praticamente com qualquer idéia, a brincar com ela, a esgo16. C h a p m a n . George. Poeta e dramaturgo inglês (Hicchin, Harrfordshire, c. 1559 — Londres. 1634). Tradutor da ilíada (1598) e da Odisseu ( 1614). deixou as c o m i dias Ml fools e The widdowes teares (1612) e as tragédias Bus sy d'Amhois (1607) e The revenge of Bussy d'Ambois (1613). entre ouïras (Ν Τ ) 17. Daniel, Samuel. Poeta e dramaturgo inglês ( T a u n t o n . Somerset, c. 1562 — Beckington. Somerset, 1619). C o m p ô s para a rainha Ana diversas peças, entre as quais The vision of twelve goddesses (1604) e The queenes Arcadia (1606). Eoi mais tarde apreciado por Coleridge e Wordsworth. ( N . T . ) 18. Greville, Fulke (Primeiro barão Brooke). Poeta e dramaturgo inglês (Beauchamp Court, Warwickshire, 1554 — castelo de Warwick, 1628). É o mais barroco de todos os dramaturgos da época em suas tragédias de v i n g a d a , sempre marcadas pelo estoicismo e a religiosidade angustiada, como em Alaham e a Tragedy of Mustapha (1609), ambas fiéis ao modelo de Séneca. ( N . T . )

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tar sua estranheza, a explorar-lhe todas as possibilidades capazes de afetar sua sensibilidade. Davies é muito mais medieval; sua capacidade de crer é maior. Ele não tem senão uma única idéia, q u e persegue com toda a seriedade uma espécie de seriedade rara em sua época. O pensamento não é explorado por amor à emoção, mas perseguido apenas por amor ao próprio pensamento; c o sentimento é uma espécie dc subproduto, embora um s u b p r o d u t o cujo valor é muito maior do que o do pensamento. O efeito da seqüência poemática não sc destina a diversificar ou ornamentar o sentimento, mas estritamente a intensificá-lo. A variação está na métrica. Há apenas um único paralelo cm relação a Nosce teipsum, c, conquanto seja ele temerário, não se mostra incorreto no caso de Davies. Trata-se de diversas passagens sobre a exposição da natureza da alma que ocorrem no meio do Purgatório. Comparar Davies a Dante pode parecer fantástico. Mas, afinal de contas, foram muito poucas as pessoas que leram esses trechos de Dante, e menos ainda as que obtiveram qualquer prazer com sua leitura; em suma, tais passagens são tão pouco lidas ou apreciadas q u a n t o o próprio Nosce teipsum. E claro que elas são muitíssimo mais belas por duas razões inteiramente distintas: Dante era um poeta incomensuravelmente maior, e a filosofia que expõe é infinitamente mais sutil e substancial: Esce di mano a lui, che la vagheggia prima che sta, a guisa di fanciulla che piangendo e ridendo pargoleggia, L 'anima semplicetta, che sa nulla, salvo che, mossa da lieto fattore, volentier toma a ciò che la trastulla. Dt ptcciol bene in pria sente sapore; quivi s 'inganna, e retro ad esso corre, se guida o fren non torce suo amore.!<> 19 Divina cor/tedia. Purgatòrio, 85-93: "A alma, daquela mão que à vida a deita. / e com carinho a afaga, c o m o o infante / que em pranto e riso a um t e m p o se deleita. // emerge, ingênua e simples, ignorante / de tudo em torno, salvo do pendor / que a leva a se expandir, irradiante. // Logo de um falso bem prova o sabor; / e assim se engana, e o persegue, e corre, / se um freio, presto, não lhe amaina o a r d o r " . Trad, de Cristiano Martins, cit. (Ν. Γ.)

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Colocar Davies no mesmo nível de Dante não corresponde em absoluto a dizer q u e alguém que possa apreciar a beleza de versos como esses deva ser capaz de extrair um considerável prazer da leitura de Nosce teipsum.

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Conquanto.se deva admitir que Milton é de fato um altíssimo poeta, decidir em que consiste a sua grandeza tem algo de um quebra-cabeça. Sob o aspecto da análise literária, as observações contra ele parecem mais numerosas e significativas do q u e as observações a seu favor. Como homem, ele é antipático. Seja do ponto de vista do moralista, do teólogo, do psicólogo ou do filósofo político, seja se o julgarmos pelos padrões comuns da qualidade que torna os seres humanos dignos de estima, Milton é insatisfatório. As dívidas que devo reconhecer com relação a ele são mais sérias do que tais objeções. Sua grandeza como poeta foi suficientemente celebrada, embora eu julgue que em grande parte por razões equívocas, e sem as reservas adequadas. Seus delitos como poeta foram denunciados — como, entre outros, pelo Sr. Ezra Pound —, mas normalmente de passagem. O que me parece necessário é afirmar ao mesmo tempo sua grandeza — no que podia fazer bem, ele o fez melhor do que qualquer outro jamais o faria — e as sérias acusações que devem ser movidas contra ele no que se refere à deterioração — a singular espécie de deterioração — a que ele submeteu a língua. 1. Contribuição aos Essays and studies da Assoc iação Inglesa, Oxford University Press, 1936. (N A.)

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Muitos concordarão cm que um homem pode ser um grande artista e, não obstante, exercer uma má influência. A influência de Milton sobre a mediocridade do mau verso do século XVIII é maior do que a de qualquer outro: ele certamente causou mais prejuízos do que Dryden e Pope, e talvez boa parte da difamação de que foram vítimas esses dois poetas, especialmente o último, devido a sua influência, deva ser atribuída a Milton. Mas colocar o assunto simplesmente em termos de " m á influência" não é necessariamente fazer u m a acusação séria, pois boa parte da responsabilidade, q u a n d o colocamos o problema nesses termos, pode ser transferida aos próprios poetas do século XVIII, por serem tão maus poetas q u e se revelaram incapazes de ser influenciados por outra coisa q u e não o mal. Há muito mais do que isso a ser acrescentado à acusação contra Milton: parece que tudo se torna consideravelmente mais grave se afirmarmos que a poesia de Milton poderia exercer uma influência apenas sobre o pior dentre quaisquer poetas. E mais grave ainda se afirmarmos que a má influência de Milton poderia ser rastreada para bem além do século XVIII, e para bem além dos maus poetas — se dissermos que foi u m a influência contra a qual ainda lutamos. Há uma numerosa classe de pessoas, incluindo algumas que aparecem sob a forma de críticos, q u e encaram q u a l q u e r censura a um 'grande poeta como u m a violação da paz, como um ato de temerária iconoclastia, ou mesmo de baderna. A espécie de crítica desfavorável que me cabe fazer a Milton jamais é cogitada por pessoas como essas, q u e são incapazes de compreender que é mais importante — e, sob certos aspectos, vital — ser um bom poeta do q u e um grande poeta; e com relação ao que tenho a dizer considero q u e o único júri é aquele que está formado pelos mais competentes usuários da poesia de minha própria época. A mais importante ocorrência na vida de Milton, com relação àquilo a que me proponho, é a sua cegueira. Não quero dizer que ficar cego na meia-idade seja em si o suficiente para determinar toda a natureza da poesia de alguém. Essa cegueira deve ser considerada em relação à personalidade e ao caráter de Milton, e à singular educação que ele recebeu. Deve-se também considerá-la paralelamente à sua devoção religiosa e ao seu

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talento na arte da música. Se Milton tivesse sido uin homem com sentidos aguçados quero dizer com todos os cinco sentidos —, sua cegueira não teria importado tanto. Mas para um homem cuja sensibilidade, tal como era, tivesse murchado cedo devido à leitura de livros, e cujos dons fossem naturalmente auriculares, isso importava de modo considerável. Caberia supor, na verdade, q u e isso o ajudou a se concentrar sobre o que ele podia fazer melhor. Em n e n h u m período a imaginação visual é conspícua na poesia de Milton. Seria aconselhável dar alguns exemplos do que e n t e n d o por imaginação visual. Em Macbeth'. This guest o] summer, lhe temple-haunting martlet, does approve By his loved mansionry that the heaven s breath Smells wootngly here: no jutty, frieze, Buttress, nor coign of vantage, but this bird Hath made his pendent bed and procréant cradle: Where they most breed and haunt. I have observed The air is delicate.1 Pode-se observar que essa imagem, bem como outra citação familiar pouco adiante na mesma peça, Light thickens, and the crow Makes wing to the rooky wood.3 proporciona não apenas alguma coisa à vista, mas, por assim dizer, ao senso c o m u m . Quero dizer que elas transmitem a sensação de que se encontram em determinado lugar num determinado tempo. A comparação com Shakespeare oferece outra indicação da singularidade de Milton. Com Shakespeare, muito mais do que com qualquer outro poeta inglês, as combinações verbais proporcionam uma permanente novidade; elas ampliam 2 A fala e dc Banquo, Ato I. Cena VI: "Este hospede do verão, I O martincte familiar dos templos, prova / Por seus adorados abrigos, que o hálito dos céus Embalsama aqui o a m b i e n t e . Não há saliência, friso. / Contraforte, canto íavorável, o n d e esse pássaro / Não haja erguido o leito e o berço fecundo: / Observei q u e . o n d e ele habita c de preferência procria, / O ar c d e l i c a d o " . (N T ) 3. A fala é de Macbeth. Ato III. Cena II: "A luz agoniza, c o corvo / distende suas asas r u m o ao bosque s o m b r i o " . ( N . T . )

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o significado das palavras particulares associadas: assim, procréant cradle ("berço f e c u n d o " ) , rooky wood ( " b o s q u e s o m b r i o " ) . Em comparação, as imagens de Milton não oferecem esse sentido de particularidade, como tampouco as palavras isoladas são desenvolvidas cm sua significação. Sua linguagem é, se podemos utilizar o termo sem n e n h u m menosprezo, artificial c convencional. O'er the smooth enamel d green (...) (...)paths of this drear wood The nodding horror of whose shady brows Threats the forlorn and wandering passenger.4 Shady brows ("frontes sombrias ') equivale aqui a u m a diminuição do valor das palavras a partir de seu e m p r e g o n u m verso do Dr. Faustus: Shadowing more beauty m their airy brows. * As imagens em L 'allegro e LIpenseroso são todas genéricas: While the ploughman near at hand. Whistles o er the furrowed land And the milkmaid singe t h blithe. And the mower whets his scythe, And every shepherd tells his tale, Under the hawthorn in the dale.0 Não é um lavrador, uma ordenhadora e um pastor particulares o que Milton vê (como Wordsworth poderia vê-los); o efeito sensual desses versos atinge plenamente o ouvido, e está associado aos conceitos de lavrador, de ordenhadora e de pastor. Até mesmo em sua obra mais madura, Milton não i n f u n d e vida nova à palavra, como Shakespeare o fez. 4. "Sobre o macio verde esmaltado (...) II (...) trilhas dessa mata sinistra / C u j o horrível meneio de suas frontes sombrias / Ameaça o erradio e d e s a m p a r a d o passant e . " (N.T.) " S o m b r e a n d o mais beleza em suas frontes altaneiras." (N T ) 6. " E n q u a n t o o lavrador nas cercanias / Assobia sobre a terra semeada / E a ordenhadora canta suavemente, / Ε o ceifeiro afia sua foice, / E cada pastor conta a sua história, / Sob o espinheiro no vale." ( N . T . )

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The sun to me is dark And silent as the moon, When she deserts the night Liid in her vacant interlunar cave. Aqui, a palavra interlunar é um achado de gênio, mas, a rigor, está mais associada a vacant ( " v a z i a " ) e a cave ( " c a v e r n a " ) do que propriamente lhes d a n d o vida e delas recebendo vida. Assim, não é incorreto, como pareceria à primeira vista, dizer que Milton escreve o inglês como u m a língua morta. A crítica foi feita em relação à sua sintaxe arrevesada. Mas um estilo tortuoso, q u a n d o sua singularidade visa à precisão — como no caso de Henry James —, não é necessariamente um estilo morto, a menos que a dificuldade seja determinada por uma exigência de música verbal, c não por qualquer imposição de sentido. Thrones, dominations, princedoms, virtues, powers, If these magnifie titles yet remain Not merely titular, since by decree Another now hath to himself engrossed All power, and us eclipsed under the name Of King anointed, for whom all this haste Oj midnight march, and humed meeting here, This only to consult how we may best With what may be devised of honours new Receive him coming to receive from us Knee-tribute yet unpaid, prostration vile, Too much to one, but double how endured. To one and to his image now proclaimed?* Compare-se-ihe a isto: However, he didn Ί mind thinking that if Cissy should prove all that was likely enough their having a subject in com7. "O sol é para m i m escuro / E silencioso como a lua. / Q u a n d o ela deixa a noite, / Oculta em sua vazia caverna i n t e r l u n a r . " ( N . T . ) Κ " T r o n o s , dominações, principados, virtude*, poderes. / Se tais esplêndidos títulos ainda p e r d u r a m / N ã o simplesmente titulares, desde que por decreto / Um outro agora arrebatou para si / Todo o poder, e nos eclipsou sob o nome / Do rei ungido, para q u e m toda essa pressa / De marcha da meia-noite, e improvisada reunião aqui, / Somente para saber de que maneira poderemos melhor / Com o que possa ser divisado como nossas honrarias / Recebê-lo para receber de nós / Tributo ajoelhado ainda não prestado, vil prostração / Excessiva para alguém, mas como suportar cm dobro, / Poi alguém e por sua imagem agora proclamada?" (N.T.)

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mon couldn't but practically conduce; though the moral of it all amounted rather to a portent. the one that Haughty, by the same token. had done least to reassure him against, of the extent to which the native jungle harboured the female specimen and to which its ostensible cover. the vast level of mixed growths stirred wavingly in whatever breeze. was apt to be identifiable but as an agitation of the latest redundant thing in ladies ' hats.9

é preciso que, a rigor, não leiamos analiticamente uma passagem dessas. Não estou sugerindo que Milton não tenha nenhum proposito dc transmitir o que entende como importante, mas apenas q u e a sintaxe está determinada pelo sentido musical, pela imaginação auditiva, mais do que por uma tentativa de acompanhar a linguagem ou o pensamento reais. É pelo menos mais tangivelmente possível distinguir o prazer que provém do barulho, do prazer devido a outros elementos, daquele que se irradia de um verso de Shakespeare, no qual a imaginação auditiva e a imaginação dos outros sentidos estão mais intimamente fundidas, e fundidas com o pensamento. No caso de Milton, o resultado é, em certo sentido da palavra, retórico. Esse termo não deve ser entendido como pejorativo. Essa espécie de "retórica não exerce necessariamente uma má influência, mas pode-se considerá-la má em relação à vida histórica de uma língua como um todo. Eu disse alhures que o inglês vivo, como era o de Shakespeare, se dividia em dois componentes, um dos quais foi explorado por Milton e outro por Dryden. Dos dois, considero ainda o desenvolvimento de Dryden mais saudável, pois foi Dryden q u e m preservou, na medida em que cabalmente a preservou, a tradição da linguagem coloquial na poesia, e eu poderia acrescentar que me parece mais fácil resgatar a saúde da linguagem a partir de Dryden do que fazê-lo a partir de Milton; pois se cabe aqui recorrer a essa generalização, a influência de Milton sobre o século XVIII foi muito mais deplorável do q u e a de Dryden.

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A citação desse trecho, tornado quase ao acaso de The ivory tower, não pretende apresentar Henry James no q u e hipoteticamente ele tem de " m e l h o r ' , do mesmo m o d o q u e a nobre passagem de O paraíso perdido não se destina a revelar Milton no que hipoteticamente ele tem de pior. O problema é a diferença de intenções na elaboração de dois estilos q u e se afastam da lúcida simplicidade. O som, naturalmente, não é jamais irrelevante, e o estilo de James decerto d e p e n d e em boa parte, no que se refere a seu efeito, do som de u m a voz, a do próprio James, dolorosamente explicativa. Mas a dificuldade, no caso de James, é devida a uma determinação de não simplificar, e nisso a simplificação não perde n e n h u m a das complexidades reais nem as veredas do movimento mental, já q u e a dificuldade de uma oração miltoniana é uma dificuldade ativa, u m a dificuldade intencionalmente introduzida naquilo q u e era um pensamento previamente simplificado e abstrato. O a n j o negro não está aqui pensando ou conversando, mas elaborando uma fala cuidadosamente preparada para ele; e o arranjo foi feito por apego ao valor musical, e não ao significado. A enunciação direta, como a de uma personagem homérica ou dantesca, tornaria o interlocutor muito mais real para nós, mas a realidade não faz parte da intenção. Para colhermos a impressão poética, 9. Entretanto, ele não se importava d e f e n s a r q u e se Cissy houvesse de provar que eles tinham um assunto em c o m u m , o q u e era bastante crível, isso não seria senão uma conclusão lógica, embora a moral de t u d o isso chegasse a ser antes um prodígio, aquele mesmo que Haughty, a partir de identità evidência, fizera o menos possível para convencê-lo do contrário, na medida em q u e a floresta nativa abrigara o espécime feminino e para o qual sua cobertura ostensiva, a vasta superfície de variadas plantações agitadas por ondulações graças a u m a brisa q u a l q u e r , era capaz de ser identificada como não mais do q u e uma agitação da mais recente redundância do chapéu das senhoras." ( N . T . )

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Se várias e importantíssimas reservas e objeções cabem ser feitas, creio que não seja inútil comparar o desenvolvimento de Milton com o de James Joyce. As semelhanças iniciais são o gosto musical e as habilidades, seguidas pelo aprendizado musical, o amplo e precioso conhecimento, o dom para línguas e os extraordinários poderes da memória, talvez fortalecidos pelo defeito da visão. A diferença é que a imaginação de Joyce não é decerto de um tipo tão estritamente auditivo quanto a de Milton. Em suas primeiras obras, e pelo menos em partes do Ulysses, há uma imaginação visual e outra imaginação da mais alta espécie; e posso estar enganado ao julgar que a última parte do Ulysses revele um retorno do m u n d o visível para que o autor estimule, preferivelmente, os recursos da fantasmagoria.

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De qualquer modo, pode-se supor que o recrudescimento das imagens visuais durante os últimos anos tenha sido insuficiente, de modo que aquilo que encontramos em Work in progress10 é uma imaginação auditiva a n o r m a l m e n t e estimulada à custa do elemento visual. Há ainda um pouco a ser visto, e o q u e há para ver merece ser visto. E eu insistiria em q u e , no caso de Joyce, esse desenvolvimento me parece devido em g r a n d e parte a certas circunstâncias, u m a vez q u e se p o d e dizer dc Milton que ele nunca viu nada. Para Milton, conseqüentemente, a concentração no som era de todo benéfica. Na verdade, ao 1er O paraíso perdido, percebo q u e me sinto mais feliz nas passagens em que há menos o q u e visualizar. A visão não se horroriza diante de seu Inferno crepuscular como ocorre no Jardim do Eden, o n d e , no que Tne concerne, só consigo extrair prazer do verso graças a um esforço para não visualizar Adão e Eva e aquilo que os rodeia. Não estou sugerindo n e n h u m íntimo paralelo entre a "retórica' de Milton e o estilo das últimas obras de Joyce. Trata-se de uma música diferente; e Joyce sempre m a n t é m algum contato com o tom coloquial. Mas pode-se provar q u e se trata também de um beco sem saída para o f u t u r o desenvolvimento da língua. A desvantagem do estilo retórico parece ser a de q u e ocorre um deslocamento, por meio da hipertrofia da imaginação auditiva à custa dos elementos visuais e táteis, de m o d o q u e o significado interno está separado da superfície e t e n d e a tornar-se algo oculto, ou pelo menos sem efeito, sobre o leitor até q u e seja plenamente compreendido. Para extrair t u d o o q u e é possível dc O paraíso perdido parece-me q u e seria necessário lê-lo de duas maneiras diferentes, primeiro apenas pelo som, e segundo, pelo sentido. A beleza integral de seus longos períodos só dificilmente pode ser apreciada e n q u a n t o estivermos também em luta com o significado; e para o deleite do ouvido o significado só a custo é imprescindível, exceto na medida em que certas palavras-chaves indiquem o tom emocional da passagem. Ora, Shakespeare ou Dante poderão comportar inú10. Obra dc Joycc pouco conhecida entre nós, publicada em cinco partes entre 1927 c 1930. abrangendo alguns fragmentos que seriam depois utilizados no Finne %an\ wake. ( N . T . )

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meras leituras, mas a cada uma delas todos os elementos da a p r e c i a ç ã o podem estar presentes. Não há intervalo entre a casca que esses poetas exibem a vocês e o miolo. Conseqüentemente, na medida em que não posso pretender ter penetrado em qualquer " s e g r e d o " desses poetas, sinto que essa apreciação de sua obra do m o d o como sou capaz de fazê-lo aponta para a direção correta, visto que não posso sentir que minha apreciação de Milton conduza a algum lugar que esteja fora dos labirintos do som. Este, suponho, seria assunto para um estudo isolado, como o dos livros proféticos de Blake; bem que o esforço valeria a pena, mas pouco teria a ver com meu interesse pela poesia. Pelo q u e dc algum m o d o percebo, trata-se de uma visão de relance de u m a teologia que considero em boa parte repugnante, expressa através de uma mitologia que teria sido melhor deixar com relação ao Livro do Gênese, que Milton não aperfeiçoou. Parecc-me q u e ocorre em Milton uma divisão entre o filósofo ou o teólogo e o poeta; e, no caso deste último, suspeito também q u e essa concentração sobre a imaginação auditiva conduza a u m a ocasional leviandade. Posso apreciar a cadência de (...) Cambula, seat of Cathaian Can And Samare hand by Oxus, Tern ir's throne, To Faquin of Sinaean kings, and thence To Agra and Uhor of great Mogul Down to the golden Chersonese, or where The Persian in Ecbatan sate, or since In HIspahan, or where the Russian Ksar On Mosco, or the Sultan in Bizance, Turchestan born (,..).11 e sua continuação, mas sinto que não se trata de poesia séria, de poesia integralmente preocupada com seu objetivo precípuo, mas antes de um jogo solene. Mais freqüentemente, e de modo confesso, Milton utiliza nomes próprios com parcimônia para, por meio deles, obter o mesmo efeito de magnificência como U. " C a m b u l a , sede de Cataia Can I E Samarcanda em Oxus. trono de Temir, / A F a q u m dos reis sín.cos, e daí I A Agra e Lahor do Grào-Mogol. / Descendo ate o dourado Chersonese, ou o n d e / Em Ecbátana os persas tinham sede, ou desde / Hisfahan. ou o n d e o czar russo / Em Moscou, ou o sultão em Bizâncio. / Nascido no Turquestào ( . . . ) . " ( N . T . )

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ο fez Marlowe — cm n e n h u m lugar, talvez, melhor do q u e nesta passagem do Lycidas: Whether beyond the stormy Hebrides, Where thou perhaps under the whelming tide Visit 'st the bottom of the monstrous world: Or whether thou to our moist vows deny'd Sleep 'st by the fable of Bellerus old, Where the great vision of the guarded Mount Looks toward Namancos and Bayona '$ hold

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em relação à qual, para o estrito efeito de grandeza de som, nada existe de mais belo em poesia. Não faço n e n h u m a tentativa para louvar a g r a n d e z a " de Milton em relação a poetas que me parecem mais abrangentes e mais bem equilibrados; pareceu-me mais proveitoso por ora

enfatizar o paralelo entre O paraíso perdido e Work in progress; e tanto Milton quanto Joyce são tão sublimes em seus respectivos gêneros, no conjunto da literatura, q u e os únicos escritores com os quais se pode compará-los são escritores q u e tentaram algo muito diferente. De qualquer modo, nossos conceitos sobre Joyce devem, no momento, permanecer provisórios. Mas há duas atitudes, ambas necessárias e corretas, a serem adotadas q u a n d o se considera a obra de qualquer poeta. Uma é a de isolá-lo, quando tentamos compreender as regras de seu próprio jogo ou adotar o seu próprio ponto de vista; a outra, talvez menos comum, é a de avaliá-lo à luz de padrões externos, mais pertinentemente por padrões de língua e daquilo a q u e chamamos poesia, em nossa própria língua e em toda a história da literatura européia. E a partir do segundo ponto de vista q u e faço minhas objeções a Milton: é por esse prisma que podemos chegar ao ponto de afirmar que, conquanto suas obras realizem admiravelmente um importante elemento da poesia, ele pode, não obstante, ser considerado como o responsável por um prejuízo à língua inglesa do qual ela jamais se recuperou inteiramente. 12. " S e além das tormentosas H í b r i d a s , / O n d e tu talvez e n g o l f a d o pela maré / Visitaste o t u n d o do monstruoso universo; / Ou sc t u . diante de nossos ú m i d o s rostos renegados, i Dormiste e m b a l a d o pela fábula do velho BdJerus, / O n d e a grande visão do monte vigiado / Descortina-se na direção de N a m a n c o s e dos domínios de Bayona (...). Ver nota 13 a " J o h n s o n como crítico e p o e t a " (N T )

Samuel J o h n s o n , que se encarregou de analisar a versificação de Milton no The Rambler, em sua edição de sábado, dia 12 de janeiro de 1751, julgou necessário desculpar-se de sua temeridade ao escrever sobre um assunto já tão amplamente discutido. Para justificar seu ensaio, o grande crítico e poeta observou: " F m cada época há novos erros a serem corrigidos e novos preconceitos aos quais se o p o r " . Vejo-me obrigado a expressar m i n h a própria apologia de maneira algo distinta. Os erros de nossa própria época tem sido corrigidos por mãos vigorosas, e os preconceitos, obstados por vozes imponentes. Alguns dos erros e preconceitos estão associados a meu próprio nome, e sobre estes, particularmente, sinto-me compelido a lalar; espero q u e eles sejam atribuídos a mim mais por modéstia do que por vaidade, ainda que eu sustente que ninguém pode corrigir um erro com maior autoridade do que a pessoa considerada responsável por ele. E há, suponho, uma outra justificativa para falar sobre Milton, além daquela que acabo de dar. Os paladinos de Milton em nossa época, com uma notável exceção, foram eruditos e professores. Não pretendo que seja de outro modo: estou cônscio de que minha única pretensão 1. Conferência na Fundação Henrietta Hertz, pronunciada para a Academia Britânica em 1917 e, posteriormente, no Museu Frick, de Nova York. (N A.)

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quanto ao interesse de vocês, ao falar de Milton ou de qualquer outro grande poeta, é a de aguçar-lhes a curiosidade na esperança de que vocês possam se preocupar em saber o q u e um poeta contemporâneo pensa de um de seus antecessores. Creio que o erudito e o poeta que a t u a m no c a m p o da crítica literária deveriam suplementar cada um o trabalho do outro. A crítica do poeta será tanto melhor, é claro, na m e d i d a em que ele não esteja inteiramente destituído de erudição; e a crítica do erudito será tanto melhor na m e d i d a em q u e ele tenha alguma experiência das dificuldades de escrever em verso. Mas a orientação das duas espccies de crítica é distinta. O erudito está mais preocupado em compreender a obra-prima no ambiente de seu autor, o m u n d o em q u e este viveu, as condições de sua época, sua formação intelectual, os livros q u e porventura haja lido c as influências q u e sobre ele exerceram. Ao poeta interessa mais o poema do que o autor, e o poema em relação à sua própria época. Ele pergunta: de q u e serve a poesia desse autor para os poetas que escrevem hoje? Seria ela, ou viria a ser, u m a força viva na poesia inglesa q u e ainda não foi escrita? Podemos dizer, portanto, q u e o interesse do erudito está naquilo q u e permanece, e n q u a n t o o do poeta reside no imediato. O erudito pode nos ensinar onde deveríamos focalizar nossa admiração e nosso respeito; o poeta deveria ser capaz, q u a n d o se trata do poeta certo ao falar do poeta certo, de tornar atual u m a antiga obra-prima, de dar-lhe significação contemporânea e de persuadir o seu público de que ela é instigante, perturbadora, agradável e ativa. Posso dar apenas um exemplo da crítica c o n t e m p o rânea sobre Milton feita por um crítico do tipo a q u e eu pertenceria se tivesse em absoluto quaisquer pretensões críticas: é o da introdução aos English poems de Milton, da série "Clássicos do M u n d o " , do recém-falecido Charles Williams. 2 N ã o se trata de um ensaio abrangente, mas é notável, acima de t u d o , porque nos brinda com o melhor preâmbulo a Comus de q u e qualquer leitor moderno poderia dispor; mas o q u e s o b r e m o d o o distingue (e o mesmo se aplica à maioria dos textos críticos 2. Williams, Charles. Poeta, crítico e d r a m a t u r g o inglês (1886-1945). autor de. entre outras obras. Poetry and present, Essays on 15 poets (1930), Three plays

(1931).

The English poetic mmd{\902), Reason and beauty m poetic mind(1933)

c The figure of Be a t nee; a study m Dante (1943)

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de Williams) é a vivacidade do sentimento do autor e seu êxito em transmiti-la ao leitor. Nesse particular, até onde me considero lúcido, o ensaio de Williams é um exemplo único. Julgo ser proveitoso, nesse exame a que me proponho fazer, ter em m e n t e algum crítico do passado, alguém do nosso próprio tipo, através de cujos conceitos possamos avaliar nossas opiniões um crítico afastado o bastante no tempo, cujos equívocos e preconceitos não sejam idênticos aos nossos. Eis por q u e comecei com u m a citação de Samuel Johnson. Será difícil contestar que, e n q u a n t o crítico de poesia, Johnson escreveu como poeta, e não como erudito, pois foi ele um poeta, e um bom poeta, e o q u e escreveu sobre poesia deve ser lido com respeito. E a menos que conheçamos e apreciemos a poesia de J o h n s o n , não poderemos julgar nem os méritos nem as limitaçõesde sua crítica. E pena que aquilo que o leitor comum de nossos dias leu, ou aquilo dc que ainda se lembra, ou viu citado, seja em sua maioria aquelas poucas afirmações de Johnson das quais os críticos mais recentes discordam com veemência. Mas q u a n d o Johnson sustenta uma opinião que nos parece errada, jamais tomamos as devidas precauções quando a rejeitamos sem averiguar por que ele estava errado; é claro que ele teve seus próprios "equívocos e preconceitos", mas, por deixarmos dc examiná-los com simpatia, corremos sempre o risco de confrontar equívoco com equívoco e preconceito com preconceito. Ora, Johnson foi, em seus dias, um crítico moderníssimo, e interessou-se por toda a poesia que porventura haja sido escrita em sua própria época. O fato de que ele se voltou mais para o aspecto final do q u e para as origens de um estilo, o fato de q u e seu t e m p o rapidamente passou e de que os cânones de gosto aos quais ele se apegou estivessem a ponto dc cair em desuso, não d i m i n u e m o interesse de sua crítica. Nem mesmo a probabilidade dc que o desenvolvimento da poesia nos cinqüenta anos seguintes iria tomar direções inteiramente distintas daquelas que me pareciam desejáveis explorar me impede de fazer as perguntas que Johnson comporta: Como deveria a poesia ser escrita agora? E que lugar caberia a Milton na resposta a essa pergunta? E considero que as respostas a tais perguntas possam ser agora diferentes das respostas que estavam corretas vinte e cinco anos atrás.

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Há um preconceito contra Milton, visível em quase todas as páginas da Life of Milton, de Johnson, q u e s u p o n h o ser ainda geral; todavia, como dispomos de u m a perspectiva histórica mais ampla, estamos n u m a posição melhor q u e a de J o h n s o n para reconhecê-lo e levá-lo em conta. Trata-se de um preconceito do qual compartilho: uma antipatia para com o h o m e m Milton. Sobre isso em si nada tenho a acrescentar: t u d o o q u e cabe č registrar o conhecimento q u e dele tinha J o h n s o n . Mas tal preconceito está sempre envolvido com um outro, mais obscuro, e não creio que Johnson os tenha dissociado em seu espírito. O fato é que a Guerra Civil do século XVII, na qual Milton é uma figura simbólica, simplesmente jamais acabou. A Guerra Civil não terminou pergunto se q u a l q u e r guerra civil séria um dia chega ao fim. l o d o esse período da sociedade inglesa é de tal modo convulso e dividido q u e seus efeitos ainda são sentidos. Ao 1er o ensaio de Johnson sempre se percebe q u e ele toma obstinada e apaixonadamente outro partido. N e n h u m outro poeta inglês, nem Wordsworth, n e m Shelley, viveu tão intensamente esses graves episódios, ou ficou de um dos lados, quanto o fez Milton; de n e n h u m outro poeta é tão difícil considerar a poesia simplesmente e n q u a n t o poesia, sem recorrermos às nossas inclinações teológicas e políticas, conscientes ou inconscientes, herdadas ou adquiridas, f a z e n d o assim u m a intromissão indevida. Ε o perigo é tanto maior na m e d i d a em que tais emoções vestem agora diferentes roupagens. Considerase agora grotesco, em âmbito político, pertencer ao partido do rei Carlos; e creio que se considera agora igualmente grotesco, do ponto de vista moral, pertencer ao partido dos puritanos; e para a maioria das pessoas de hoje as concepções religiosas de ambos os partidos podem parecer igualmente remotas. Todavia, as paixões não se extinguiram, e se não estivermos p r o f u n d a mente atentos, sua fumaça poderá embaçar a lente através da qual analisamos a poesia de Milton. Algo tem de ser feito, é claro, para nos persuadirmos de q u e Milton jamais pertenceu de fato a qualquer partido, mas de que se desentendeu com todos eles. O Sr. Wilson Knight, 3 em Chariot of wrathy argüiu que Milton foi mais um monarquista do q u e um republicano,

e não, em qualquer sentido moderno, um " d e m o c r a t a " , e o professor Saurar* deu provas, ao mostrar que a teologia de Milton era altamente excêntrica — e tão escandalosa para os protestantes q u a n t o para os católicos —, que ele era, na verdade, uma espécie de cristão oracular, e talvez nem mesmo assim um autêntico cristão oracular; por outro lado, entretanto, o Sr. C. S. Lewis' contestou habilmente o professor Saurat argüindo que Milton, pelo menos cm O paraíso perdido, pode ser absolvido da acusação de heresia até mesmo de um ponto de vista tão ortodoxo q u a n t o o do próprio Sr. Lewis. Sobre essas questões não sustento n e n h u m a opinião: é provavelmente benéfico à questão admitir q u e Milton fosse um saudável membro independente da Igreja e t a m b é m m e m b r o do Partido Liberal; mas julgo q u e devamos ainda permanecer cm guarda contra um sectarismo inconsciente se pretendermos servir à poesia por amor à poesia. Chega de preconceitos. Considerarei em seguida a objeção positiva q u e deve ser feita a Milton em nossa própria época ou, por assim dizer, a acusação de que ele é uma influência perniciosa. E daí prosseguirei em direção à constante crítica de reprovação (para empregar uma frase de Johnson), c finalmente aos territórios nos quais o considero um grande poeta, um daqueles, aliás, q u e poderiam ser hoje estudados com proveito. Devido a u m a afirmação sobre a crença generalizada na perniciosidade da influência dc Milton, volto à crítica que o Sr. Middleton Murry fez a Milton em seu Heaven and Earth, um livro q u e inclui capítulos dc aguda intuição, entremeados de passagens que me parecem imoderadas. O Sr. Murry aborda Milton cm seguida ao seu longo e paciente estudo sobre Kcats, e é com os olhos dc Keats que ele vê Milton. " K e a t s " , escreve o Sr. Murry, " c o m o artista poético que não deve nada a ninguém desde Shakespeare, e Blakc, como profeta de méritos espirituais único em nossa história, expressam ambos, substancialmente, o mesmo julgamento sobre Milton: *A vida para ele scria a morte para m i m ' . E qualquer que

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4. Denis Saurat. autor de .Wilton: man and thinker {1925). ( N . T . )

5. C. S. Lewis, autor de A preface to "Paradise lost" (1942) e The life records of 3. Ver nota 22 ao ensaio "A música da p o e s i a " , nesta coletânea. ( N . T . )

Milton. cm 5 vols. (1949). ( N . T . )

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venha a ser nosso veredicto sobre o desenvolvimento da poesia inglesa a partir de Milton, devemos admitir a justeza da opinião dc Keats de que a grandiloqüência de Milton não leva a parte alguma. Ό inglês deve ser mantido em boas condições', diz Keats. Ser influenciado além de um certo ponto pela arte dc Milton, percebe ele, arruina o fluxo criativo do gênio inglês em si e por si. Ao dizer isso, creio eu, Keats exprime o q u e de mais profundo existe no gênio inglês. Permanecer sob os efeitos da magia de Milton é estar condenado a imitá-lo. E inteiramente distinto o que ocorre com Shakespeare. Shakespeare desconcerta e libera; Milton é claro e constringe." Trata-se de uma afirmação muito segura, e critico-a com ccrta insegurança porque não posso pretextar ter dedicado tanto estudo assim a Keats, como tampouco ter insinuado u m a compreensão de suas dificuldades, q u a n t o o Sr. Murry. Mas este parece estar tentando aqui transformar a predicação de um determinado poeta com um determinado objetivo n u m determinado m o m e n t o do tempo numa censura de validade atemporal. Ele parece afirmar que a função liberatória de Shakespeare e a ameaça constritora de Milton são características permanentes desses dois poetas. Ser influenciado além dc um certo pont o " por qualquer mestre é ruim para qualquer poeta; c não interessa se essa influência for a de Milton ou a dc um outro; e como não podemos prever onde esse ponto se situa, não poderíamos estar mais bem informados para designá-lo como um ponto /«certo. Se não é bom permanecer sob os efeitos da magia dc Milton, seria bom permanecer sob os efeitos da de Shakespeare? Isso depende de que gênero de poesia vocês estejam tentando desenvolver. Keats queria escrever um poema épico, e concluiu, como seria de esperar, que não havia ainda chegado a hora em que outro poema épico inglês, comparável em grandeza a O paraíso perdido, pudesse ser escrito. Ele o tentou t a m b é m ao escrever peças, e alguém poderia argüir que King Stephen6 acabou sendo mais frustrado por Shakespeare

prazer da leitura. Milton deixou um grande poema épico impossível de ser escrito pelas gerações seguintes; Shakespeare concebeu um drama poético impossível de ser superado; essa situação é inevitável, e persiste até que a língua seja tão modificada q u e não haja mais o risco, porque não haveria a possibilidade, de imitação. Qualquer um que tente escrever um drama poético, mesmo hoje em dia, deveria saber que metade de sua energia corre o risco de se exaurir no esforço para escapar às árduas c opressivas dificuldades de Shakespeare: no m o m e n t o em que sua atenção relaxa, ou em que sua mente se afadiga, ele incorre no mau verso shakespeariano. Por longo tempo, desde um poema épico como o de Milton, ou um drama poético como o de Shakespeare, nada podia ser feito. Todavia, esse esforço deve ser continuamente repetido, pois não podemos jamais saber antecipadamente q u a n d o estará próximo o m o m e n t o em que se tornará possível um novo poema épico ou um novo drama poético; e q u a n d o esse m o m e n t o estiver prestes a se delinear é possível que o gênio de um único poeta empreenda a derradeira transfiguração do idioma e da versificação que levará essa nova poesia a adquirir sua forma.

do que Hyperion

por Milton; e o King Stephen é uma peça

que podemos 1er uma vez, mas à qual jamais voltaremos pelo 6. Keats começou a escrever essa pe«,a em 1818. mas não chegou a concluí-la. ( N . T . ) 7. Ver nota 15 a "O que c poesia m e n o r ? " . ( N . T . )

Referi-me ao conceito do Sr. Murrv4 sobre a má influência de Milton como algo generalizado porque, implicitamente, é toda a personalidade de Milton que está em jogo, e não especificamente suas crenças, sua linguagem ou sua versificação, mas as crenças como foram conccbidas por essa personalidade particular, e sua poesia como expressão dessa mesma personalidade. Pelo conceito particular que define a influência de Milton como algo de ruim entendo aquele que atende às exigências da linguagem, da sintaxe, da versificação, da imagística. Não sugiro que haja aqui uma completa diferença de tema: tratase da diferença de abordagem, da diferença de foco de interesse, entre a crítica filosófica e a crítica literária. Uma incapacidade para o abstruso e um interesse pela poesia que é, primordialmente, um interesse técnico dispõem meu espírito para a mais limitada e talvez mais superficial tarefa. Permitam-me que continue a encarar a influência de Milton desse ponto de vista, o de alguém que escreve poesia cm nossa própria época. A censura contra Milton, a de que sua influência técnica foi má, parece não ter sido feita por ninguém mais positiva-

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mente do que por m i m . Constatei que eu mesmo, muito recentemente, em 1936, havia dito que essa crítica a Milton ' consideravelmente mais grave se afirmarmos que a poesia de Milton poderia exercer uma influência apenas para o pior dentre quaisquer poetas. E mais grave ainda se afirmarmos que a má influência de Milton poderia ser rastreada para bem além do século XVIII, e para bem além dos maus poetas — se dissermos q u e foi uma influência contra a qual ainda lutamos".* Ao escrever essas frases esqueci-me de fazer uma tripla distinção, q u e agora me parece de certa importância. Há três afirmações isoladas aí incluídas. A primeira é a de que u m a influência haja sido má no passado: isso equivale a afirmar q u e os bons poetas dos séculos XVIII ou XIX poderiam ter escrito melhor se não houvessem se submetido à influência de Milton. A segunda afirmativa é a de que a situação contemporânea é tal que Milton se converteu num mestre a q u e m deveríamos evitar. A terceira é a de que a influência de Milton, ou a de qualquer poeta em particular, pode
cedido, seria sensato deplorar uma obra-prima que não foi escrita, em troca de outra de que dispomos e que conhecemos? E quanto àquele futuro remoto, o que nos caberia afirmar então sobre a poesia que poderá ser escrita, a não ser que seríamos provavelmente incapazes de compreendê-la ou apreciá-la, e que por conseguinte não leríamos n e n h u m a opinião sobre o que poderão significar uma " b o a " e uma " m á " influência nesse mesmo futuro? A única relação em que a questão da influência, boa ou má, é significativa é a relação para com o futuro imediato. E com essa relação que estou comprometido até o pescoço. Desejo inicialmente mencionar outra censura contra Milton, a que está representada pela expressão "dissociação da sensibilidade".

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Observei, muitos anos atrás, num ensaio sobre Dryden, que: " N o século XVIII manifestou-se uma dissociação da sensibilidade da qual jamais nos recuperamos; e essa dissociação, como é natural, deveu-se à influência dos dois mais portentosos poetas do século, Milton e D r y d e n " . ' A extensa passagem da qual esse período foi extraído está citada pelo Dr. Tylliard 10 em seu Milton. O Dr. Tylliard faz o seguinte comentário: " F a l a n d o apenas daquilo que nessa passagem se refere a Milton, eu diria que existe aqui uma mistura de verdade e falsidade. Cabe admitir certa espécie de dissociação da sensibilidade em Milton, não necessariamente indesejável; mas o fato de que ele haja sido responsável por qualquer dissociação semelhante em outros (pelo menos até que essa dissociação geral inevitavelmente se manifestasse) não é verdadeiro". Creio que a afirmação genérica representada pela expressão "dissociação da sensibilidade" (uma das duas ou três expressões de minha lavra, como "correlato objetivo", que acabariam por alcançar uma repercussão internacional que me surpreendeu) conserva alguma validade, mas inclino-me agora a concordar com o Dr. Tylliard em que deixar o fardo sobre os ombros de Milton e Dryden foi um erro. Se essa dissociação ocorresse, 9 Essa p a r a g e m p e r t e m e ao ensaio John Dry Jen, T. & F.. HoUiday, Nova York. 1932. ( N . T . ) 10 E. M

8. O trecho citado pertence ao ensaio anterior, "Milton I"

(N.T.)

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W

Tylliard. autor de Milton (1930), The Miltomc setting (1947) e Stu

dies tri Milton (1951). (N.T.)

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desconfio que as causas seriam muito complexas e profundas para justificar nossos princípios teóricos relativamente à mudança em termos dc crítica literária, l udo o que podemos dizer é q u e algo semelhante a isso aconteceu, que isso teve algo a ver com a Guerra Civil; mas seria inclusive imprudente dizer q u e foi causado pela Guerra Civil, e sim que constitui u m a conseqüência das mesmas causas q u e levaram a ela, q u e devemos procurar as causas na Huropa, e não apenas na Inglaterra; e considerando o que foram essas causas, podemos escavar e escavar até alcançarmos uma profundidade cm que as palavras e os conceitos nos sejam insuficientes.

plasma seu estilo graças a um princípio perverso e pedante. Ele pretendia utilizar palavras inglesas com um idioma estrangeiro. Isso foi descoberto e condenado em toda a sua prosa; é que aqui a capacidade de julgamento atua livremente, seja suavizada pela beleza, seja atemorizada pela dignidade de seus pensamentos; mas essa é uma força de sua poesia, ou seja, a de q u e seu apelo é obedecido sem resistência: o leitor se sente tativo de um espírito mais nobre c elevado, e a crítica se transforma em admiração." "O estilo de Milton não foi modificado por sua temática: o que se revela com maior extensão cm O paraíso perdido pode ser encontrado em Cornus. Uma das fontes dc sua singularidade foi seu convívio com os poetas toscanos; a distribuição de suas palavras, suponho, é freqüentemente italiana, talvez aqui e ali combinadas com as de outras línguas. Podc-sc dele dizer, pelo menos, o que Johnson disse de Spenser, isto é, que ele não

Antes de prosseguir em nossa argumentação contra Milton, nos termos em que foi ela sustentada por alguns poetas há vinte e cinco anos — ou seja, nos do segundo, mas expressivo significado da " m á influência" —, creio que o melhor seria considerar quais as críticas permanentes que podem ser suscitadas: aquelas censuras que, quando as fazemos, devemos admitir que sejam feitas mediante leis duradouras do gosto. A essência da censura permanente a Milton deve ser encontrada, creio eu, no ensaio de Johnson. Não cabe examinar aqui certos julgamentos pessoais e errôneos de Johnson, como tampouco explicar sua conde-

nação de Comus e de Sansão Agonista, nem a aplicação de cânones dramáticos que nos parecem inaplicáveis; ou perdoar-lhe o abandono da versificação no Lycidas em nome da especialização, mais do que da ausência, de seu senso de ritmo. A mais importante censura que Johnson faz a Milton está contida em três parágrafos, os quais peço permissão para citar na íntegra. " E m todas as suas maiores obras' , diz J o h n s o n , " p r e d o mina do princípio ao fim uma peculiaridade uniforme de dicção, um modo e um molde dc expressão que não guarda a menor semelhança com n e n h u m escritor precedente, c q u e até o momento se afasta do uso comum, de m o d o que um leitor inculto, ao folhear o livro pela primeira vez, se surpreende com uma nova linguagem." Essa novidade tem sido atribuída, por aqueles q u e não conseguem perceber nada de errado em Milton, a seus laboriosos esforços em busca de palavras adequadas à grandeza de

suas idéias. Nossa língua, diz Addison, se degrada com ele. Mas a verdade é que, tanto em prosa quanto em verso, ele

escrevia em nenhuma língua, tendo formulado o que Butler chamou de um dialeto babilónico, áspero c bárbaro em si, mas transformado por um gênio sublime e por um conhecimento abrangente num veículo dc tamanha instrução e de tal prazer que, como ocorre a outros amantes, encontramos encanto em sua d e f o r m i d a d e . " Essa crítica me parece substancialmente verdadeira: a rigor, a menos que a aceitemos, não consigo imaginar de que maneira possamos apreciar a grandeza de Milton. Seu estilo não é um estilo clássico no que este não corresponde à elevação dc um esulo comum. graças ao toque final do gênio, à grandeza. Tratase, desde seus fundamentos, c em cada elemento particular, de um estilo pessoal, que não está baseado na linguagem comum ou na prosa c o m u m , como tampouco na comunicação direta do significado. É difícil afirmar o que seja exatamente certa grande poesia, o que seja o retoque infinitesimal responsável por toda a diferença de uma óbvia afirmação que qualquer um poderia fazer; a leve transformação que, embora permita que u m a óbvia afirmação continue a ser óbvia, produz sempre a máxima, e não a mínima, alteração na língua comum. Cada deformidade de construção, cada distorção do idioma estrangeiro, do emprego de uma palavra utilizada de iorma alienígena ou com o significado de uma palavra estrangeira da qual

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ele se originou, passando a ser mais aceito do que aquele que era dc uso corrente em inglês, cada idiossincrasia, é um ato pessoal de violência que Milton foi o primeiro a cometer. Não se trata de n e n h u m clichê, de n e n h u m a dicção poética no sentido depreciativo, mas de uma seqüência contínua de atos originais de ilegalidade. Dentre todos os modernos usuários do verso, o exemplo mais próximo parece-me ser o de Mallarmé, um poeta muito menor do que Milton, embora também um grande poeta. As personalidades, as teorias poéticas de ambos não poderiam ter sido muito diferentes, mas q u a n t o à violência q u e praticaram contra a língua, e que justificaram, há uma remota semelhança. A poesia de Milton é poesia na medida em q u e está o mais distante possível da prosa; sua prosa me parece muito próxima de uma linguagem semipoética para q u e dela possamos dizer que seja boa prosa. Dizer que a obra de um poeta está o mais distante possível da prosa teria outrora me impressionado como algo condenatório, mas agora, quando tenho que me defrontar com um Milton, isso me soa simplesmente com a exatidão de sua singular grandeza. Como poeta, Milton me parece provavelmente o maior de todos os excêntricos. Sua obra não ilustra princípios da boa escrita; os únicos princípios da escrita q u e ela ilustra são de tal ordem que só têm validade para o próprio Milton. Há duas espécies de poetas que podem ser úteis a outros poetas. Existem aqueles que sugerem, a um ou outro dc seus sucessores, algo que eles mesmos não fizeram, ou q u e estimulam u m a maneira diferente de fazer a mesma coisa: não são estes provavelmente os maiores, mas os menores, isto é, os poetas incompletos com os quais os poetas mais recentes descobrem uma afinidade. E há os grandes poetas com os quais podemos aprender regras negativas: n e n h u m poeta pode ensinar outro a escrever bem, mas alguns grandes poetas p o d e m ensinar a outros como evitar certas coisas. Eles nos ensinam o q u e há por evitar ao nos revelar aquilo de que a grande poesia é capaz sem recorrer ao que lhe é alheio — q u a n t o ela pode ser despojada. Dante e Racine pertencem a essa categoria. Mas se fizermos uso continuo de Milton, deveremos fazê-lo de um m o d o absolutamente distinto. Até mesmo um poeta de pequena estatura pode aprender algo a partir do estudo de Dante, ou a partir

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do estudo dc Chaucer; talvez devamos aguardar por um grande poeta antes dc encontrarmos algum que possa tirar proveito do estudo de Milton. Repito que a distância que separa o verso de Milton da linguagem cotidiana, a invenção de sua própria linguagem poética, pareceu-me uma das características de sua grandeza. As outras características são o seu senso de estrutura, tanto no esquema geral do Paraíso quanto no do Sansão, e a sua sintaxe; e afinal, mas não menos importante, sua infalibilidade, consciente ou inconsciente, ao escrever de modo a proporcionar a melhor ostentação de seus talentos e a melhor dissimulação de suas fraquezas. A adequabilidade do tema do Sansão é muito óbvia para que sobre ela se discorra cm detalhes: era provavelmente a única história dramática a partir da qual Milton podia ter escrito uma obra-prima. Mas a total conveniência de O paraíso perdido não foi, creio eu, tão freqüentemente observada. Trata-se com toda a certeza de uma percepção intuitiva daquilo que ele não podia fazer, a do projeto miltoniano interrompido de um poema épico sobre o rei Artur. Primeiro, ele tinha pouco interesse em, ou o conhecimento de, seres humanos individuais. Em O paraíso perdido, ele não estava obrigado a recorrer a nenhum conhecim e n t o de homens e mulheres. Mas tal interesse pelos seres h u m a n o s não era exigido — a rigor, sua ausência era uma condição necessária — para a criação das figuras de Adão e Eva. Não são eles o h o m e m e a mulher como qualquer um de nós conhece: se o fossem, não seriam Adão c Eva. São apenas o Homem e a Mulher originais: não são tipos, mas protótipos. Revelam as características gerais dos homens e das mulheres, tais como as podemos reconhecer, na tentação e na queda, os primeiros impulsos das faltas e das virtudes, a abjeção e a nobreza, de todos os seus descendentes. Têm a humanidade ordinária no grau certo, e todavia não são, c nem deveriam ser, ordinariamente mortais. Caso fossem mais particularizados, seriam falsos, e se Milton tivesse mais interesse pela humanidade, não poderia tê-los criado. Outros críticos salientaram a precisão, sem falha ou exagero, com que Moloch, Belial e M a m m o n , no segundo livro, falam de acordo com o pecado pessoal que cada um deles simboliza. Não seria adequado que

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os poderes infernais devessem possuir, no sentido h u m a n o , caracteres, pois um caráter é sempre mesclado, mas nas mãos de um manipulador de segunda ordem poderiam eles ter sido facilmente reduzidos a humores. A adequabilidade da matéria de O paraíso perdido ao gênio e às limitações de Milton torna-se ainda mais evidente q u a n d o consideramos as imagens visuais. Já assinalei, n u m estudo escrito há alguns anos, sobre a deficiência de Milton no q u e se refere à observação visual — uma deficiência que s u p o n h o esteja sempre presente — de que o efeito de sua cegueira pode ter sido exercido antes para fortalecer as qualidades compensatórias do que para agravar um defeito que desde sempre existiu. 11 O Sr. Wilson Knight, que dedicou um rigoroso estudo às imagens recorrentes na poesia, alertou para a propensão de Milton às imagens relacionadas à engenharia e à mecânica; parece-me que o melhor de Milton está nas imagens q u e sugerem vastas dimensões, espaços ilimitados, profundezas abismais, luz e treva. N e n h u m tema ou cenário, diferentes daqueles q u e ele escolhe em O paraíso perdido, podiam proporcionar-lhe esse campo de ação para a espécie de imagens nas quais ele se superou, ou fazer jus àqueles poderes de imaginação visual q u e nele foram precários.

ramos Adão e Eva no Éden. Assim como um grau maior de caracterização de Adão e Eva teria sido inadequado, também uma pintura mais vívida do Paraíso terrestre teria sido menos paradisíaca, pois uma definição maior, uma descrição mais detalhada da flora e da fauna, só poderiam ter assimilado o Éden à paisagem da Perra com a qual estamos familiarizados. Nessas circunstâncias, a impressão que guardamos do Éden é a mais adequada, e é essa a que Milton estava mais qualificado para nos oferecer: a impressão da luz, uma luz do dia e uma luz das estrelas, uma luz do amanhecer e do anoitecer, uma luz que, relembrada por um cego, irradia uma glória jamais experimentada por aqueles que não perderam a visão.

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Os absurdos e as discrepâncias para os quais, em sua maioria, Johnson chama a atenção — e que, tanto q u a n t o possam ser adequadamente isolados dessa maneira, ele corretamente condena — poderão aparecer, creio eu, n u m a proporção mais justa se os considerarmos em relação a esse julgamento geral. Não julgo que devêssemos tentar ver muito claramente qualquer cena que Milton descreve: elas deveriam ser aceitas como uma fantasmagoria errática. Lamentarmo-nos porque de início nos deparamos com uma pessoa perversa "acorrentada sobre o lago ardente' , e depois de um ou dois minutos vê-la percorrer o seu caminho até a margem, é esperar por uma espécie de discrepância que o mundo ao qual Milton nos introduziu não requer. Essa limitação do poder visual, semelhante ao limitado interesse de Milton pelos seres humanos, torna-se não somente uma falha desprezível, mas uma virtude positiva, q u a n d o visi11. Eliot alude aqui ao ensaio anterior, " M i l t o n I " . ( N . T . )

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Não devemos, portanto, em O paraíso perdido, esperar que vejamos claramente; nosso sentido de visão deve se obscurecer, de m o d o que nossa audição possa tornar-se mais aguda.

O paraíso perdido, assim como o Finnegans wake (pois não consigo pensar em n e n h u m a outra obra que proporcione um paralelo mais interessante: dois livros escritos por dois grandes músicos cegos, cada um deles trabalhando numa língua de sua própria criação baseada no inglês), realiza esse movimento peculiar cm busca de um reajuste da maneira de apreensão por parte do leitor. A ênfase recai sobre o som, e não sobre a visão, sobre a palavra, c não sobre a idéia; e, ao final, é a versificação invulgar que constitui o signo mais inequívoco da mestria intelectual de Milton. No q u e se refere ao problema da versificação de Milton, tanto q u a n t o sei, muito pouco se escreveu. Temos o ensaio de Johnson no The Rambler, que merece mais atenção do que recebeu, c dispomos também de um breve tratado de Robert Bridges sobre a métrica de Milton, Milton's prosody. Refirome a Bridges com respeito, pois n e n h u m poeta de nossa época deu uma atenção tão rigorosa à métrica quanto ele. Bridges cataloga as sistemáticas irregularidades que conferem permanente variedade ao verso de Milton, e não consigo descobrir nenhuma falha em sua análise. Mas, embora tais análises sejam interessantes, não julgo que sejam esses os meios mais adequados para nos oferecer uma apreciação do ritmo peculiar de um poeta. Parece-me também que o verso de Milton é particularmente refratário à decifração de seus segredos quando apenas um deles

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é submetido a exame, pois seu verso não é elaborado dessa maneira. Ε o periodo gramatical, a oração e, mais ainda, o parágrafo o que constitui a unidade do verso miltoniano; e a êntase colocada em sua estrutura é a mínima necessária para fornecer um modelo oposto à estrutura do período. E somente no período que se pode encontrar o comprimento de onda do verso miltoniano; é sua capacidade de dar a cada parágrafo u m a forma perfeita e inigualável, de tal m o d o que a plena beleza do verso só pode ser desfrutada em seu contexto, e sua destreza em trabalhar com unidades musicais mais amplas do que a de qualquer outro poeta, o que, a meu ver, constitui a mais convincente evidencia da suprema mestria de Milton. É impossível extrair do verso rimado o sentimento peculiar, quase u m a súbita transição sem fôlego, transmitido pelos longos períodos de Milton, c tãosomente por eles. Na verdade, essa mestria expressa u m a evidência mais convincente de sua força intelectual do que o alcance de quaisquer idéias que ele haja inventado ou tomado de empréstimo. Ser capaz de dominar tantas palavras ao mesmo t e m p o é o testemunho de um espírito da mais excepcional energia.

nossa língua. O que chama a atenção no parágrafo de Milton, entretanto, é que cie representa o julgamento dc um homem que não tinha em absoluto um ouvido surdo, mas simplesmente educado, para a música verbal. Dentro dos limites da poesia de sua própria época, Johnson é um excelentc árbitro dos relativos méritos dc diversos poetas que escreveram verso branco. Mas, no todo, o verso branco de sua época poderia mais propriamente ser chamado de verso arrímico; e em nenhum lugar essa diferença é mais visível do que num verso de uma tragédia de sua autoria, Irene12: o fraseado é admirável, o estilo elevado e correto, mas cada verso clama por outro que rime com ele. Na verdade, é somente com trabalho, ou graças a uma inspiração ocasional, ou por submissão à influência de dramaturgos mais velhos, que o verso branco do século XIX obtém êxito ao tornar a ausência da rima inevitável e justa, com a justeza de Milton. Até mesmo Johnson admitiu não poder imaginar q u e Milton fosse um artesão da rima. E nem levou o século XIX a obter sucesso ao conferir ao verso branco a flexibilidade de que ele necessita se o tom da linguagem comum, ao abordar os tópicos da comunicação ordinária, tiver dc ser empregado; de m o d o que, q u a n d o nossos modernos usuários do verso branco não conseguem tangenciar o sublime, freqüentemente caem no ridículo. Milton aperfeiçoou o verso branco não-dramático e, ao mesmo tempo, lhe impôs limitações, difíceis de superar, relativamente ao emprego que cie pode ter se suas maiores possibilidades musicais forem passíveis de ser exploradas.

E interessante nesse ponto recordar as observações gerais sobre o verso branco, que uma consideração sobre O paraíso perdido instigou Johnson a fazer em relação ao fim de seu ensaio. "A música dos versos heróicos ingleses fere o ouvido dc m o d o tão indistinto que facilmente se perde, a menos q u e as sílabas de cada verso colaborem em conjunto; essa colaboração só pode ser obtida pela preservação de cada verso dissociado do outro n u m sistema distinto de sons; e essa distinção é obtida e preservada pelo artifício da rima. A variedade de pausas, dc que tanto se gabam os amantes do verso branco, transforma as medidas métricas de um poeta inglês cm períodos de um declamador; e existem apenas alguns competentes e privilegiados leitores de Milton capazes de perceber onde os versos terminam e principiam. O verso branco, disse um crítico sagaz, parece ser

um verso destinado apenas ao olho. " Alguém na platéia pode recordar q u e essa última observação, com palavras muito semelhantes, já foi feita muitas vezes, uma geração literária atrás, sobre o "verso livre" utilizado na época; e mesmo sem esse estímulo de Johnson me teria ocorrido declarar que Milton é o mestre supremo do verso livre em

Compararei afinal minha própria atitude, como a dc um representante típico dc uma geração de vinte c cinco anos atrás, com minha presente atitude. Julguei aconselhável considerar os assuntos na ordem em que os tenho considerado para discutir; em primeiro lugar, as censuras e difamações que suponho terem validade permanente, e que foram feitas melhor por Johnson, no sentido de esclarecer as cafcsas, e a justificativa, da hostilidade a Milton por parte de alguns poetas numa determinada conjuntura. E desejo esclarecer aquelas virtudes dc Milton que particularmente me impressionam, antes de explicar por que considero que o estudo de seu verso poderia afinal ser proveitoso aos poetas. 12. Ver nota 25 a "Johnson como critico e p o e t a " . ( N . T . )

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Sugeri em diversas ocasiões q u e as mudanças importantes na linguagem do verso inglês, que estão representadas pelos nomes de Dryden e Wordsworth, p o d e m ser caracterizadas como tentativas bem-sucedidas de escapar a u m a linguagem poética que deixou de ter relação com a maneira de falar de nossos dias. Esse é o sentido dos Prefácios de Wordsworth. Em princípios do presente século, uma outra revolução na maneira de falar — e tais revoluções trazem em seu bojo u m a alteração da métrica, um novo apelo ao ouvido — foi o p o r t u n a . Acontece, inevitavelmente, que os jovens poetas engajados nessa revolução exaltarão os méritos dos poetas q u e não são responsáveis pelas qualidades que eles se e m p e n h a m fervorosamente em concretizar. É até justo, e decerto inevitável, que sua prática, mais influente ainda do que seus pronunciamentos críticos, deva atrair seus próprios leitores para os poetas por cuja obra foram eles influenciados. Essa influência tem certamente contribuído para ampliar o gosto (se cabe aqui distinguir o gosto da moda) por Donne. Não creio que n e n h u m poeta m o d e r n o , a menos que se encaixe n u m a atitude de rabugice irresponsável, tenha sempre negado os consumados poderes de Milton. E c u m p r e dizer que a dicção de Milton não constitui u m a dicção poética no sentido de que equivale a u m a moeda depreciada: q u a n d o violenta a língua inglesa, ele não está imitando n i n g u é m , e ele é inimitável. Mas, como já disse, Milton representa a poesia no extremo limite da prosa; e um de nossos princípios era o de que o verso teria as virtudes da prosa, de que a dicção poética deveria vir a ser incorporada à linguagem culta contemporânea, antes de pretendermos que esta se elevasse à condição de poesia. Outro princípio era o de que a temática e as imagens poéticas deveriam estender-se aos assuntos e às questões relacionadas a um h o m e m ou a uma mulher modernos; de q u e pretendemos o não-poético, de que tentamos até mesmo a transmutação de matéria refratária em poesia, e em palavras e frases que não haviam sido anteriormente utilizadas na poesia. Ε o estudo de Milton de nada nos valia aqui: ele era apenas um obstáculo. Não podemos em literatura, como tampouco na vida, viver em permanente estado de revolução. Se cada geração de poetas assumisse o compromisso de atualizar a dicção poética relativamente à linguagem falada, a poesia fracassaria no que se refere

a um de seus mais importantes deveres. É que a poesia deveria não apenas ajudar a purificar a língua da época, mas também a evitar que ela se transforme muito rapidamente: um desenvolvimento demasiado rápido da língua poderia constituir um desenvolvimento no sentido de uma gradual deterioração, e esse é o risco q u e corremos hoje em dia. Se a poesia do resto deste século mantiver a linha de desenvolvimento que me parece, ao rever a evolução da poesia durante os últimos três séculos, seguir o curso correto, haverá de descobrir novas e mais refinadas formas de dicção agora estabelecidas. Nessa busca, ela teria muito a aprender com a estrutura do longo verso miltoniano; poderia t a m b é m evitar o perigo de um servilismo à linguagem coloquial e aos jargões correntes. E poderia ainda aprender que a música do verso é mais poderosa na poesia, que tem um significado definido expresso nas mais apropriadas palavras. Os poetas poderiam ser levados a admitir que o conhecim e n t o da literatura de sua própria língua, associado ao conhecimento da literatura na construção gramatical de outras línguas, constitui uma parte valiosa do equipamento daqueles q u e escrevem em verso. E poderiam também, como já insinuei, dedicar algum estudo a Milton como aquele que, fora do teatro, é o mestre supremo em nossa língua da liberdade dentro da forma. Um estudo do Sansão aguçaria a apreciação de qualquer um q u a n t o à irregularidade justificada, colocando-o ainda em guarda contra a irregularidade gratuita. Ao estudarmos O paraíso perdido, tornamo-nos capazes de perceber que o verso está continuamente acionado pelo distanciamento do metro regular e pelo retorno a ele; e que, em comparação com Milton, somente a custo um escritor que haja posteriormente cultivado o verso branco foi capaz de exercer de algum modo qualquer liberdade. Podemos também ser induzidos a pensar que a monotonia de um verso incapaz de ser decomposto em seus elementos métricos esgota a atenção ainda mais rapidamente do q u e a monotonia de um metro regular. Em suma, pareceme agora que os poetas estão suficientemente liberados do peso da reputação de Milton para abordar o estudo de sua obra sem risco e com proveito para a sua poesia e para a língua inglesa.

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J O H N S O N C O M O CRÌTICO E POETA

JOHNSON COMO CRITICO E POETA 1

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É sobretudo como crítico, como o autor de The lives of the poets, que Johnson me interessa aqui. Mas t e n h o algo a dizer também sobre sua poesia, pois julgo q u e , ao estudar a crítica da poesia exercida por um crítico q u e é t a m b é m poeta, só podemos apreciar essa crítica — seus padrões, seus méritos e suas limitações — à luz do género de poesia que ele escreveu. Considero Johnson um dos três maiores críticos de poesia da literatura inglesa (os outros dois são Dryden e Coleridge). Iodos os três foram poetas, e no caso de todos eles o estudo de sua poesia é altamente relevante para o estudo de sua crítica, pois cada um deles estava interessado em determinada espécie de poesia. Se essa relação direta é menos aparente no caso de Johnson do que nos de Dryden e de Coleridge, isso se deve a motivos banais. E grande a bibliografia existente sobre Johnson, mas é relativamente pouco o que se escreveu sobre seus textos. Seus dois grandes poemas 2 têm sido negligenciados, e q u a n t o a The 1. Conferência da Ballard Matthews, pronunciada na University College, Gales do Norte, em 1944. ( Ν . A . ) 2. Sem dúvida alguma, London, a poem (1738) e The vanity of human wishes (1749), já citados no ensaio " A s três vozes da p o e s i a " , nesia coletânea. ( N . T . )

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lives of the poets as poucas pessoas cultas que o leram não chegam a uma dúzia, e dessa dúzia, a metade se lembra sobretudo das passagens com relação às quais todos discordam. Uma das razões para a indiferença com que se encara a sua crítica é a de que ele não iniciou n e n h u m movimento poético: Johnson era um poeta secundário do fim de um movimento que fora lançado por poetas que lhe eram superiores, e seus poemas refletem uma vertente pessoal de um estilo que se encontrava bem definido. Dryden e Coleridge, este de parceria com Wordsworth, representam para nós algo de novo na poesia de sua época. O q u e Dryden escreveu sobre poesia é, portanto, mais excitante do que o que Johnson escreveu. Em seus ensaios críticos, Dryden antecipou as leis da linguagem poética a que se submeteriam duas gerações vindouras, enquanto os conceitos de Johnson são retrospectivos. Interessado na defesa de sua própria maneira de escrever, Dryden parte do geral para o particular, e critica determinados poetas apenas para ilustrar sua argumentação; Johnson, ao criticar a obra de certos poetas — e de poetas cuja obra já estava concluída —, é levado a generalizar. As situações históricas em que ambos viveram são absolutamente distintas. O fato de um autor escrever do princípio ao fim de uma época não deveria, afinal de contas, ser relevante para o julgam e n t o que possamos fazer sobre sua estatura, mas inclinamonos a favorecer injustamente aquele primeiro. Não há nada o que dizer sobre a influência de Johnson, e nos deixamos sempre impressionar por uma reputação influente, pois a influência é u m a forma de poder. Mas q u a n d o a maré de influência que um escritor pode desencadear para uma ou duas gerações atingiu seu ponto culminante, e uma outra força impeliu as águas em direção diferente, e q u a n d o várias outras marés houverem subido e baixado, grandes escritores permanecem com a mesma influência potencial no futuro. Resta saber se a influência literária dc Johnson, assim como, no âmbito político, a de seu amigo de outro partido, Edmund Burke, 3 simplesmente não aguardam uma geração que ainda não nasceu para recebê-la. 3 Burke, E d m u n d . Estadista c escritor inglês (Dublin, 1729 — Beaconsfield. Inglaterra, 1797). Membro da Câmara dos C o m u n s desde 1765, tornou-se um dos mais destacados integrantes do partido whig. Suas principais (»bras são A philosophical enquiry into the origin of our ideas of the sublime and beautiful ( 1756) e On conciliation with A menca (1775). ( N . T . )

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Um óbvio obstáculo ao nosso prazer q u a n d o lemos The lives of the poets como um todo — e devemos lê-lo como um todo se quisermos avaliar a magnitude da realização de Johnson é que não lemos as obras de muitos dos poetas ali incluídos, e n e n h u m a promessa de prazer ou de enriquecimento nos pode ser feita para nos persuadir a lê-los. Li alguns dos poetas menores do século XVIII para compreender por q u e Johnson os estimava; em outros dei apenas uma olhadela; e há alguns mais que Johnson recomenda com tal indulgência, ou que aborda dc maneira tão superficial, que sequer me dei o trabalho de consultá-los. Ninguém desejaria 1er os versos de Stepney 4 ou de Walsh: 5 c somente a custo acredito q u e algum candidato ao doutorado poderia ser estimulado por seus orientadores a dedicar sua tese ao estudo da obra de Christopher Pitt. 6 A afirmação dc Johnson de que os poemas de Yalden merccem leitura atenta' não é mais convincente do q u e u m a carta de apresentação escrita para um visitante do qual o escritor deseja se livrar. O estudante interessado na história do gosto literário poderá sobressaltar-se com a observação de Johnson dc que "talvez n e n h u m a composição em nossa língua haja sido lida mais vezes do que a 'Choice', de Pomfret , 8 e desejará descobrir por quê. Mas o leitor comum provavelmente ficará mais desapontado com as omissões dc Johnson do que impelido à curiosidade por todas as suas inclusões. Todo m u n d o sabe que a coletânea representava a escolha de um grupo de livreiros, ou editores, que presumivelmente consideravam vendáveis as obras de todos esses autores e que certamente julgavam, com mais evidente razão, que os prefácios do Dr. Johnson compensariam de longe a falta de direitos autorais ao recomendarem sua edição para o público. Podemos estar razoavelmente certos de q u e 4. Stepney, George. Poeta inglês (1663-1707). ( N . T . )

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o próprio Johnson, embora haja feito o melhor com relação a cada um, não teria considerado que todos esses autores merecessem figurar na coletânea. Todavia, sabemos que Johnson tinha certa liberdade para acrescentar nomes à coleção, pois nos disseram que ele sugeriu três dos poetas ali inclusos, e sobre um deles. Sir Richard Blackmore, 1 ' terei algo mais a dizer. O fato de que os antecessores e contemporâneos de Shakespeare, bem como os poetas metafísicos anteriores a Cowley, 10 não fossem vendáveis naquela época teria justificado o veto dos livreiros a qualquer proposta dc Johnson quanto à sua inclusão. Mas não há n e n h u m a evidência de que Johnson pretendesse incluí-los; os fatos demonstram que seu conhecimento sobre eles era muito limitado e que ele estava absolutamente satisfeito cm editar uma antologia poética que começava por Cowley e Milton. O belíssimo prefácio a Shakespeare é um trabalho isolado, e cm nada revela a consciência da necessidade de avaliar qualquer poeta em relação a seus antecessores e contemporâneos. Todavia, essa inocência quanto aos métodos históricos e comparativos, que a crítica moderna toma como garantia, contribui para o mérito singular desse prefácio; e as virtudes de Shakespeare para as quais ele chama a atenção são em sua maioria aquelas em que Shakespeare foi inigualável, as que ele não compartilha, nem mesmo no menor grau, com os outros dramaturgos. Essa limitação do campo da poesia inglesa é uma importante característica positiva. Seria um erro capital atribuir a estreita faixa dos interesses dc Johnson apenas à ignorância, ou apenas à falta de avaliação crítica, ou mesmo a ambas. Seria talvez mais verdadeiro dizer que sua ignorância era devida à falta de compreensão do que dizer que sua falta de compreensão era devida à ignorância, mas a coisa não é tão simples assim. Se censurarmos um crítico do século XVIII por não ter possuído

5. Walsh, William. Poeta inglês ( 1663-1708). autor de poemas adoravelmente eróticos, como "The jealousy" e " l h e desperate lover" ( N . T . ) 6. Pitt, Christopher Poeta inglês (1669-1748), famoso no setulo XVIll por sua tradução da F.neida ( N . T . )

9. Blackmore, Sir Richard. Poeta inglês (1655-1729), autor de poemas heróicos, filosóficos e religiosos Foi louvado por Addison no Spectator. ( N . T . )

7. Yalden. Thomas. Poeta inglês (1670-1737). autor dos Hymns to darkness, cm oposição aos Hymns to light. ( N . T . )

10. Cowley. Abraham. Poeta inglês (Londres. 1618 — Chcrtsey, 1667), pertencente ao g r u p o dos " m e t a f í s i c o s " e cuja obra está na raiz do ensaio que Johnson escreveu sobre a poesia metafísica. Deixou poemas anâcreônticos (" l h e lover' ) c odes {Odes) à maneira de Pindaro. Sua poesia, que representa a decadência do barroco inglês, foi definitivamente reunida em Works (1905-1906). ( N . T . )

8. Pomfret, J o h n . Poeta inglês (1667-1702), autor dc Poems of circumstance (1669) e do p o e m a citado por J o h n s o n , " C h o i c e " , sobre o tema da filosofia da felicidade. ( N . T . )

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u m a capacidade dc apreciação moderna, histórica e abrangente, devemos adotar com relação a esse mesmo crítico a atitude cuja ausência nele reprovamos; precisamos não ser estreitos ao acusálo de estreiteza, ou preconceituosos ao acusá-lo de preconceito. Johnson tinha um ponto de vista positivo que não coincide com o nosso, um ponto de vista q u e d e m a n d a um vigoroso esforço de imaginação para comprccndê-lo, mas se conseguirmos entendê-lo, perceberemos sua ignorância ou sua sensibilidade sob u m a luz diferente. Walter Raleigh 11 diz de Johnson q u e " e l e havia lido imensamente para escrever o Dictionary,12 mas o conhecimento da literatura inglesa q u e adquiriu desse m o d o não era sempre aproveitável para um propósito distinto. Sob certos aspectos, isso constituía até mesmo um obstáculo. O Dictionary de Johnson foi concebido primordialmente para proporcionar um padrão de tratamento polido, a d e q u a d o aos ideais clássicos da nova época. Ele se viu obrigado, portanto, a se antecipar aos elisabetanos menores, cuja autoridade ninguém reconheceu, e cuja liberdade e extravagância eram contrárias ao seu projeto". Para o poeta e o crítico do século XVII1, os valores da língua e da literatura estavam mais i n t i m a m e n t e associados do que parece aos escritores e ao público leitor dc nossos dias. A excentricidade ou a esquisitice eram condenáveis: um poeta era louvado não porque inventasse u m a forma original de linguagem, mas por sua contribuição à língua c o m u m . Johnson e os homens de seu t e m p o observaram q u e se registrara um progresso no refinamento e na precisão da língua, assim como na finura e no decoro dos costumes, e tais conquistas, por serem recentes, eram altamente estimadas. Johnson é capaz de censurar Dryden por seus maus costumes e seu mau gosto na controvérsia. Ora, observa-se geralmente que, na exaltação do sucesso relativo a uma empresa que nos arrebata, podemos nos esque-

cer de muitas coisas que somos obrigados a abandonar para que ela se realize. Não vemos com bons olhos especialmente a idéia de que, para obter uma coisa, devamos admitir dar em troca uma outra dc valor. Os caminhos da história estão, c sempre estarão, juncados desses valores perdidos; e a visão limitada desses valores talvez seja uma qualificação necessária para quem quer q u e aspire a tornar-se um reformador político e social. O aperfeiçoamento da língua, que o século XVIII conquistou, foi um aperfeiçoamento genuíno: somente uma geração futura podia tomar consciência dessas perdas inevitáveis. Johnson, com toda a certeza, viu o corpo da poesia inglesa do ponto de vista que adotou para assegurar um progresso, um refinamento da língua c da versificação segundo linhas definidas, c que implicavam uma confiança na correção e na permanência do estilo que havia sido conquistado — uma confiança de tal m o d o mais poderosa do que aquela que podemos ter no estilo, ou estilos, de nossa época, que somente a custo poderíamos imaginá-la como qualquer coisa menos como um defeito de sua capacidade crítica. A ênfase sobre (c a preocupação com) o estilo e as normas comuns que Johnson revela — o que nos dá às vezes á impressão de que ele julga os grandes gênios pelos padrões adequados apenas aos espíritos menores — pode nos induzir a superestimar o valor de uma poesia de poucos recursos em detrimento da obra de determinado gênio que se mostre menos obediente às regras. Todavia, o embotamento que podemos atribuir a Johnson é raramente visível em suas afirmações positivas, evidenciando-sc apenas pelo silêncio, e esse silêncio é a prova, não de uma insensibilidade pessoal, mas de uma atitude que nos é difícil assumir. Do ponto de vista de Johnson, a língua inglesa da época anterior não estava suficientemente avançada, encontrando-se ainda " c m sua infânc i a " ; a língua com a qual os poetas mais antigos trabalhavam era ainda muito grosseira para que estes fossem tratados cm pé de igualdade com os dc uma época mais refinada. Suas obras, caso não estivessem em nível muito alto, constituíam um objeto de estudo mais apropriado a um antiquário do que a um público leitor culto. A sensibilidade de qualquer época do passado dâ sempre a impressão dc que provavelmente é mais limitada do que a nossa, pois estamos naturalmente muito mais cônscios

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11. Raleigh ou Ralegh. Sir Walter. Escritor inglês (Hayes. Devonshire, c 1552 Londres. 1618). Participou de diversas c a m p a n h a s militares e organizou expedições de exploração na América do Norte. C o n d e n a d o à prisão p e r p e t u a , escreveu no cárcere u m a Htslory of the world (1614). Atribuem-se-lhe alguns notáveis poemas incluídos na coletânea anónima Elizabethan song books O trecho citado por Eliot pertence a Remains (10 vols., 1651). ( N . T . ) 12. Raleigh se refere aqui ao Dictionary of the English language, em dois volumes, que Johnson publicou em 1755. ( N . T . )

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da falta da consciência de nossos ancestrais cm relação às coisas dc que somos conscientes do que da falta de consciência, em nós mesmos, relativamente às coisas q u e eles perceberam c das quais não temos a menor idéia. Podemos perguntar, portanto, se não há u m a distinção capital a ser estabelecida entre a sensibilidade limitada — lembrando aqui q u e a a m p l i t u d e mais extensa da história de que temos conhecimento tende a nos dar a impressão de que todas as mentes do passado são limitadas — ca sensibilidade precária; e, conseqüentemente, perguntar se Johnson, dentro de seus próprios limites, não seria um crítico tão sensível q u a n t o criterioso, se as virtudes que ele louva na poesia não persistiriam sempre como virtudes e se as espécies de defeito q u e ele censura não permaneceriam hoje como defeitos que merecessem ser evitados. Mesmo que eu ainda não haja conseguido me expressar mais claramente, espero ter feito algo para perturbar-lhes o espírito e prepará-los para uma investigarlo sobre a crítica de que Johnson era insensível à música do verso. Um leitor moderno que tenha lido The lives of the poets não se lembra com muita clareza dc nada do que Johnson observa sobre a versificação de Donne a do Lycidas1 ' de Milton. Se não nos recordarmos de n e n h u m a outra opinião dc Johnson, recordemos a seguinte: " O s poetas metafísicos eram homens de saber q u e se e m p e n h a r a m ao máximo em exibi-lo, mas desgraçadamente, ao decidir engastá-lo na rima, cm vez de escrever poesia, escreveram apenas versos, e com muita freqüência versos que dependiam mais do teste dos dedos do que do ouvido, pois a modulação era tão imperfeita que os versos só foram reconhecidos como tais graças à contagem das sílabas No que toca à obra de Cleveland, 1 4 c de outros metafísicos menores, esse julgamento seria bastante razoável, mas podemos estar certos de que Johnson estendia essa censura a D o n n e 13. Escrito cm 1638, o Lycidas c u m a elegia bucólica sobre a morte dc um a m i g o dc Milton dos tempos dc C a m b r i d g e , Edward King (1612-1637). q u e morreu afogado d u r a n t e uma viagem à Irlanda. (N T . ) 14. Cleveland ou Cleiveland, J o h n . Poeta e h u m o r i s t a inglês ( L o u g h b o r o u g h . 1613 — ? 1658). p e r t e n c e n t e ao g r u p o dos metafísicos. Iornou-sc mais conhecido na m e t a d e do século XVII gradas às i n ú m e r a s edições de seus poemas, sobret u d o " T h e rebel s c o t " . A edição definitiva de suas obras, sob o título de Poems, c de 196*7. ( N . T . )

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a pari ir de sua observação de que Ben Jonson se assemelhava a D o n n e mais na aspereza dc seus versos do que no matiz de seus s e n t i m e n t o s " . Na verdade, hoje em dia encaramos Donne como um competentíssimo artesão, como um artista do verso de notável virtuosismo; e o que Johnson designa "aspereza" chega aos nossos ouvidos como uma música sutilíssima. Mas o julgamento crítico sobre o Lycidas, tão bem conhecido quanto o que ele emitiu sobre os poetas metafísicos, também agride nossa sensibilidade. Johnson afirma que nesse poema "a dicção é ríspida, os ritmos indecisos e as cadências desagradáveis". Podemos julgar possível concordar com algumas outras observações de Johnson sobre o Lycidas. Se considerarmos que uma elegia requer a justificativa de uma tristeza sincera e profunda, poderemos chegar à conclusão de que o poema é frio. A associação de imagens cristãs e clássicas está de acordo com o gosto barroco q u e não agradava ao século XVIII, c devo admitir de minha parte que jamais me senti gratificado com o espetáculo de padre C a m u s n e São Pedro caminhando juntos na mesma procissão, como uma dupla de professores a perambular através da King's Parade 1 6 para ouvir o sermão universitário. Mas seguramente é a virtude musical que veste os absurdos da grandiosidade, tornando t u d o aceitável. Cabe-nos, pois, perguntar: seria Johnson insensível à música do verso? Teria ele, como toda a sua geração, u m a audição defeituosa? Não há talvez razão mais irredutível das extremas diferenças de opinião entre respeitáveis críticos dc poesia do que uma diferença de ouvido; e por o u v i d o " , cm sc tratando de poesia, e n t e n d o uma apreensão imediata de duas coisas que podem ser consideradas abstratamente uma isolada da outra, mas que produzem seu efeito em uníssono: o ritmo e a dicção. Elas não existem uma sem a outra, pois a dicção — o vocabulário e a construção — determina o ritmo, e os ritmos que um poeta considera congeniais determinam sua dicção. É a imediata impressão favorável do ritmo c da dicção que nos dispõe a aceitar um poema, cstimulando-nos a dar-lhe mais atenção e a descobrir 15. Camus simboliza o regato C a m . que passa em Cambridge, alegoria da Universidade q u e . como Milton, presta h o m e n a g e m a Edward King. (N. 1.) 16. Famosa rua de Cambridge, que leva à Capela do Rei, o n d e sào proferidos os sermões. ( N . T . )

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outras razões para apreciá-lo. Esse contato imediato pode desaparecer na leitura da poesia de u m a geração para outra. Não é senão q u a n d o uma literatura atinge a maturidade quando, talvez, acaba de superar esse m o m e n t o e penetra, mais adiante, n u m a época posterior que os críticos se tornam capazes de perceber que o ritmo e a dicção não se satisfazem simplesmente em melhorar, ou deteriorar-se, de uma geração para outra, mas o fato é que ocorre também uma modificação de extrema pureza, de modo que algo está sempre sendo perdido, assim como algo está sendo ganho. Pode-se observar não apenas na perfeição de qualquer estilo, mas t a m b é m no a m a d u r e c i m e n t o de um indivíduo, que certas potencialidades só chegam a ser fruídas se outras forem abandonadas; a rigor, parte do prazer q u e usufruímos com a literatura do passado, como da alegria q u e nos dão as crianças, reside na consciência q u e temos de q u e muitas potencialidades não serão de todo realizadas. Sob esse aspecto, a literatura primitiva pode ser mais rica do q u e aquela q u e se lhe seguiu. Uma literatura difere de u m a vida h u m a n a porque pode regressar ao seu próprio passado e desenvolver alguma capacidade que foi a b a n d o n a d a . Assistimos em nossa própria época a um renovado interesse por D o n n e e, depois deste, por poetas mais antigos, como Skclton. 1 U m a literatura pode também renovar-se a partir da literatura de u m a outra língua. Mas a época em que Johnson viveu não era velha o bastante para que sentisse a necessidade de u m a renovação como essa, pois acabara de alcançar a sua própria m a t u r i d a d e . Johnson podia imaginar a literatura de sua época como aquela q u e havia alcançado o padrão a partir do qual a literatura do passado podia ser julgada. N u m a época como a nossa, em q u e a novidade é amiúde admitida como a principal exigência da poesia, caso se pretenda que ela desperte nossa atenção, e na qual os conceitos de pioneiro e de inovador estão entre os mais honrosos títulos, é difícil assimilar esse ponto de vista. Percebemos facilmente seus absurdos, e maravilhamo-nos diante da segurança com q u e Johnson foi capaz dc censurar o Lycidas, baseado na ausência 17. Skelton, J o h n . Poeta ingles (Diss, Norfolk, c. 1465 — Londres, 1529) da epoca Tudor. Foi um dos maiores representantes da literatura satírica de seu país. como o atestam The boke of Phyllyp sparowe, Ballade of the Scottyshe kyng (1513), Speke, parrot (1521) e Why come ye not to court? (1522) (N T.)

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do mérito que nos parece o mais conspícuo, e rejeitar Donne devido à rudeza de sua dicção. E quando Johnson escreve sobre Shakespeare, surpreendemo-nos que ele silencie sobre a mestria da versificação. Não houve aqui n e n h u m preconceito contra uma maneira particular de escrever, como q u a n d o ele discute os metafísicos, nem qualquer antipatia pessoal cm relação ao h o m e m , como q u a n d o ele fala de Milton, mas apenas a mais aguda observação, a mais alta estima, o mais justo e generoso louvor; e Johnson concede a Shakespeare o mais elevado nível entre os poetas, por todas as razões possíveis, menos as da beleza do ritmo c da dicção. Sustento que não deveríamos levar em conta essa miopia, que para nós é muito estranha, como um defeito pessoal dc Johnson, o que diminui sua estatura como crítico. O que lhe falta é um sentido histórico cujo momento ainda não havia chegado. Eis aqui algo que Johnson nos pode ensinar, pois, se conseguirmos chegar a esse sentido histórico, nossa única linha de conduta será a dc desenvolvê-lo daqui em diante; c uma das maneiras pelas quais podemos fazê-lo em nós mesmos é por meio da compreensão de um crítico no que ele não é aparente. Johnson não chegou a compreender o ritmo e a dicção que lhe pareciam arcaicos, não devido à falta de sensibilidade, mas por causa de u m a especialização da sensibilidade. Se o século XVIII admirasse a poesia das épocas passadas do mesmo modo como o fazemos, o resultado seria o caos: não haveria nenhum século XVIII como o conhecemos. Essa época não teria rido a convicção pára aperfeiçoar os gêneros poéticos que aperfeiçoou. A surdez do ouvido de Johnson para certos gêneros dc melodia era a condição necessária à sua agudeza dc sensibilidade cm relação à beleza verbal dc outros gêneros. Dentro de seu raio de ação c dc seu tempo, Johnson tinha o ouvido tão sensível quanto o de qualquer outro. Freqüentemente, quando ele chama a atenção para as belezas ou as deficiências da obra dos poetas sobre os quais escreve, devemos reconhecer que ele está certo, e que nos revela algo que não conseguiríamos observar sem a sua ajuda. Isso pode atestar que seus critérios têm um valor permanente. Há uma outra consideração a ser feita quanto ao problema da diferença entre as sensibilidades de um e de outro século que é digna de nota. Trata-se do problema da ênfase sobre o

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som ou sobre o sentido. A poesia mais elevada, cumpre admitir, passa nos mais severos exames em ambos os assuntos. Mas há uma grande parte da boa poesia q u e firma sua reputação graças à sua excelência em apenas u m a dessas vertentes. A tendência moderna é a de acolher até certo p o n t o a incoerência do sentido, de ser tolerante com poetas q u e ignoram o q u e estão tentando dizer exatamente, contanto q u e o verso soe bem e apresente imagens surpreendentes e insólitas. Há, de falo, um certo mérito no delírio melodioso, q u e pode constituir uma autêntica contribuição à literatura, q u a n d o efetivamente corresponde àquele perene apetite da h u m a n i d a d e por um ocasional festim de címbalos e tambores. Todos desejamos nos sentir às vezes um pouco embriagados, quer o estejamos, quer não, ainda que entregar-se exclusivamente a certos gêneros de poesia implique perigos análogos àqueles q u e decorrem do uso imoderado do álcool. Além da poesia do som e, de um certo ponto de vista, ocupando uma posição intermediária entre a poesia do som e a poesia do sentido . há a poesia q u e representa uma tentativa para distender os confins da consciência h u m a n a c relatar as coisas desconhecidas, para exprimir o inexprimível. Mas essa poesia não me interessa aqui. Entre os dois extremos do encantamento e do sentido temos sido hoje em dia, creio eu, mais facilmente seduzidos pela música do absurdo hilariante do que satisfeitos com a inteligência e a sabedoria que se expressam em medidas prosaicas. A época de Johnson, e o próprio Johnson, estavam mais inclinados por essa última escolha. J o h n son era capaz de atribuir qualidade poética a muitas coisas que nos parecem apenas competentes e corretas; nós, por outro lado, estamos excessivamente dispostos a aceitar como poesia o que não é nem competente nem correto. Perdoamos m u i t o ao som e à imagem; ele perdoava muito ao sentido. E um excesso n u m a ou noutra direção equivale ao risco de trocar o efêmero pelo permanente. Johnson às vezes se enganou. Aludi, pouco antes, a Sir Richard Blackmore.

com certa curiosidade. Cheguei à conclusão de que os elogios de Johnson a esse poema revelam um grave equívoco em dois sentidos. Em primeiro lugar, o poema infringe quase todas aquelas regras de excelência que o próprio Johnson, ao abordar um poeta de maior estatura, estabelecera para o uso do terceto c do alexandrino sob a forma do dístico rimado. Em vez de reservar o terceto (três versos que rimam juntos e o alexandrino com a função do terceiro verso) para a conclusão de um período, onde essa terminação pode ser muito eficaz, Blackmore introduz um terceto quase de saída, e nos brinda com um alexandrino como o segundo verso de um dístico. Ε o que é pior: a versificação às vezes não é melhor do que a de um exercício de um escolar. Mas Johnson, como todos os bons anglicanos e todos os bons tories ™ abominava Hobbes, insigne ateu c totalitário. Ele deve ter fechado os olhos a defeitos que teria reprovado um Dryden ou Pope devido ao prazer que sentia com os seguintes versos que aludem àquele filósofo:

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Impressionado pela afirmação de Johnson de que Creation, de Blackmore, era sozinho um poema que "o teria feito passar à posteridade como um dos cinco eleitos da Musa inglesa", c por sua declaração dc q u e ele próprio recomendou que Blackmore fosse incluído na coletânea que organizou, li o poema

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At lenght Britannia's soil. immortal darnel Brought forth a sage of celebrated name, Who with contempt on blest Religion trod. Mocked all her precepts, and renunced her God. Se aplicarmos a es ses versos o gênero de crítica minuciosa em que J o h n s o n se notabilizou, observaremos que o primeiro deles é ruim do ponto de vista gramatical, pois dame ( " d a m a " ) está gramaticalmente em oposição a soil ( "solo"), quando deveria estar a Britannia ( " G r ã - B r e t a n h a " ) ; e podemos censurar o segundo verso pela observação de que o nome de Hobbes não se tornou célebre senão muito após seu nascimento. Poderíamos esperar t a m b é m que a personificação da Religião, como u m a fêmea desamparada esmagada por Hobbes, fosse assaz deselegante para o gosto de Johnson. Para mim, esse é o tipo de descuido que mais severamente se deve reprovar num crítico, um descuido q u e contraria seus próprios padrões de gosto. 18. Membros do Partido Conservador o u . simplesmente, conservadores. (N.T.) 19. " E n f i m , o solo da Grã-Bretanha, dama imortal! / Deu à luz um sábio de n o m e celebrado. / Q u e com desprezo esmagou sob os pés a santa Religião. I Zombou de todos os seus preceitos c rct.egou seu D e u s . " ( N . T . )

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E, em segundo lugar, a leitura que ti z do poema me leva a desconfiar de q u e Johnson deveria rejeitá-lo até mesmo em razão das matrizes de seu conteúdo, pois Johnson e isso é m u i t o importante com relação a ele era um dos anglicanos mais ortodoxos, assim como um dos mais devotos cristãos de sua época, e n q u a n t o Blackmore me parece estar expressando um estrito deísmo. Só me cabe supor q u e o deísmo impregnara a tal ponto a atmosfera do século q u e o nariz de Johnson não conseguiu perceber-lhe o odor. Todavia, quero distinguir essa espécie de erro — a do crítico que não aplica seus próprios padrões daqueles erros aparentes que nascem dos princípios de um espírito particular num momento particular, e que de m o d o algum nos parecem erros da mesma tempera logo que conseguimos assimilar o ponto de vista de quem os comete. E assim q u e <e irão manifestar, após nos deixar de início surpresos, diversas observações de Johnson sobre os poetas que escreveram versos brancos. No q u e se refere a essa espécie de verso, ele parece conferir o lugar de maior destaque a Akenside, 20 de q u e m diz q u e " n a fatura global de seus versos ele é talvez superior a qualquer outro que haja utilizado o verso branco". Mesmo que não considerássemos o verso branco dos grandes poetas dramáticos de u m a época anterior — ou o verso dramático de Otway em seus melhores momentos —, essa parece à primeira vista uma afirmação extravagante. Em nossos dias empregamos palavras de m o d o tão relaxado q u e o pensamento de um escritor pode às vezes nos escapar pela simples razão de ele haver dito exatamente o q u e queria. Para extrair o significado da afirmação de Johnson sobre Akenside, devemos primeiro comparar sua versificação com a de outros usuários do verso branco em seu século; temos t a m b é m de comparar o que Johnson disse sobre os outros, e com o q u e ele disse sobre o verso de Milton. Em seu ensaio sobre Milton, vocês haverão de se lembrar que Johnson confirma as palavras de Addison, segundo q u e m a língua se degrada nas mãos de Milton. Johnson prossegue dizendo que Milton "plasmara seu

estilo graças a um princípio perverso e p e d a n t e " e que "ele pretendia utilizar palavras inglesas com um idioma estrangeir o " . Mas, após fazer essa crítica, Johnson lhe rende os maiores elogios, afirmando q u e Milton 'era um mestre de sua língua em toda a p l e n i t u d e " . E ao referir-se à fragilidade do verso branco " h e r ó i c o " particularmente à dificuldade, q u a n d o é declamado, de preservar a identidade métrica de cada verso — c, finalmente, após dizer tudo o que poderia ser dito contra o verso branco, faz ele a generosa concessão: " N ã o posso me persuadir a lamentar que Milton não tivesse escrito versos rimados, pois não me cabe desejar que sua obra não seja o que ela é; entretanto, como outros heróis, deve ser ele antes admirado do q u e i m i t a d o " . O reconhecimento da grandeza de Milton como versiflcador é inequívoco. Mas há leis relativas ao uso das palavras e da construção fraseologica que Milton desafia. O transgressor não deveria ser louvado pelas infrações; e um poeta de segunda ordem pode ser mais obediente às leis do que um poeta de grande gênio. Assim, Akenside, na fatura global de seus versos", pode ser mais correto do que Milton, e, se prezarmos a correção, sob esse aspecto é superior a ele.

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20. Akenside, Mark Poeta c medico inglês (Newcastle, 1721 - Londres, 1770), autor do poema descritivo e filosófico The pleasures of imagination (1744) e de urn volume de Odes (1745). ( N T . )

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Não creio que a história do verso branco desde a época de Milton lhe dê um desmentido absoluto. "A música dos versos heróicos ingleses fere o ouvido de modo tão indistinto", diz Johnson, " q u e facilmente se p e r d e . " E é verdade; o outro perigo é o de u m a pulsação monótona, que deixa por completo de transmitir qualquer música. O que Johnson esqueceu de observar é que Milton tornou o verso branco um recurso bemsucedido para o poema heróico, graças à própria excentricidade que Johnson condena. Todavia, Johnson fez com que o verso de Milton fosse visto como uma exceção. Ele admite que há propósitos para os quais o verso branco permanece como um instrumento adequado, muito embora não se preocupe cm definir e particularizar rais

propósitos. Diz cie dos Night thoughts, de Young:21 21. Y o u n g . Edward. Poeta ingles (Winchester, Hants, 1683 - Wclwyn, Oxfordshire, 1765). Os Night thoughts ( 1742-1745), que exerceram grande influencia sobre o pre'-romantismo, constituem um monólogo de cerca de dez mil versos brancos. Young deixou ainda Conjectures on original composition ( P 5 9 ) . que tambem antecipa o pré-romantismo. ( N . T . )

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"Eis um dos poucos poemas cm q u e o verso branco não podia ser preterido pelo verso rimado senão com desvantagem. A difusão desenfreada dos sentimentos c os arroubos dc imaginação teriam sido reprimidos e paralisados caso estivessem contidos pela r i m a " . Johnson aprova o emprego do verso branco utilizado por Thomson cm Seasons por razões semelhantes: "Eis uma das obras em que o verso branco é adequadamente empregado. A ampla expansão dos conceitos gerais dc Thomson, e sua enumeração dc variedades circunstanciais, poderiam ter sido obstruídas e prejudicadas pelas freqüentes intersecções do sentido, q u e são efeitos necessários da r i m a " . Permitam-nos voltar a Akenside. o autor sobre cujos versos brancos Johnson prodigalizou tão altos elogios. Seu contexto é este: 4 Na fatura global de seus versos, ele é talvez superior a qualquer outro que haja utilizado o verso branco; sua fluência é uniforme, e suas pausas são musicais, mas o encadeamento de seus versos sc prolonga por m u i t o t e m p o , e a conclusão integral não ocorre com suficiente freqüência. O sentido se distende ao longo de um entrelaçamento de frases complicadas e, como aí nada se distingue, nada pode ser r e l e m b r a d o " . E Johnson continua, generalizando seus conceitos críticos sobre Akenside: "A liberdade que o verso branco proporciona de escapar à necessidade de concluir o sentido com o dístico instiga os espíritos luxuriantes c ativos a uma tal auto-indulgéncia, q u e eles amontoam imagem sobre imagem, ornamento sobre ornamento, sendo facilmente persuadidos a encerrar seu discurso. Receio, por conseguinte, que o verso branco seja encontrado com muita freqüência nas descrições exuberantes, nas argumentações loquazes e nas narrativas e n f a d o n h a s " . Dizer que o encadeamento dos versos de Akenside se prolonga por muito tempo e q u e o sentido se distende ao longo de um entrelaçamento de frases complicadas equivale a uma censura plenamente justificada por nossa análise dos versos desse autor, embora caiba observar que esse encadeamento e essas frases complicadas eram exatamente aquilo que Milton foi capaz de manipular com êxito conspícuo e solitário. Mas as observa-

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ções gerais sobre os perigos do verso branco são tais que os usuários que em seguida dele se serviram teriam feito bem em ponderar. E Johnson não podia antever que os futuros poetas estariam também aptos a exibir no dístico rimado, por meio de seu desejo de estender os recursos dessa forma para além dos rígidos limites impostos pelos melhores versos do século XVIII, a mesma exuberância, a mesma loquacidade e o mesmo tédio que Johnson relaciona como os vícios do verso branco. Temos que rccorrer a William Morris para dele arrancar alguns exemplos. Dentre todos os poetas cujas obras Johnson apresenta podemos, creio eu, convir que as de Thomson e de Young são as únicas que nos legaram poemas em versos brancos mais ou menos legíveis e que o estudante de poesia inglesa tem ainda algum interesse em 1er. Portanto, ao louvar sua versificação, Johnson se revela incapaz de saber como deveria ser escrito o verso branco. Ao qualificar sua aprovação da versificação de Akenside, é preciso acrescentar que seu elogio do poema que revela os dons moderados de Akenside no que ele tem de melhor (The pleasures of imagination ou Pleasures oj the imagination t), é, na verdade, muito fraco. " A s palavras se multiplicam até que o sentido somente a custo se torne perceptível; a atenção abandona a mente, e sc fixa no ouvido. O leitor vagueia em meio à difusão lasciva, às vezes aturdido, às vezes extasiado, mas, após várias voltas por esse florido labirinto, dele sai como havia entrado. E pouco o que lhe desperta a atenção, e ele nada consegue reter." Isso equivale a dizer, de maneira direta, como Johnson se incumbiu de fazer, que o poema não merece leitura. Impusme a operação mecânica de 1er esse poema do princípio ao fim, mas não posso dizer que o li; pois, como advertia Johnson, ,4 a atenção abandona a m e n t e " . Assim, na verdade, li apenas algumas passagens. Contudo, guardei a impressão de que o som é mais melodioso do que o dos versos quer de Thomson, quer de Young, embora estes sejam poetas de muito mais substância. Suas sílabas tônicas são bem distribuídas; suas pausas c estruturas fraseológicas são concebidas geralmente de modo a assegurar uma permanente variedade, sem que a medida métrica jamais seja rompida. E ainda que ele seja sempre enfadonho, só raramente é absurdo. Se vocês mergulharem em The seasons,

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de Thomson, encontrarão a m i ú d e deliciosas paisagens, mas concluirão t a m b e m q u e o autor se e m p e n h a constantemente em elevar o que e humilde e embelezar o q u e é banal, o que convida ao ridículo. Considerem, por exemplo, sua exortação humanitária ao pescador: But let not on thy book the tortur 'J worm Convulsive, twist in agonising fold.11 Akensidc jamais diz nada q u e valha a pena dizer, mas o que não vale a pena dizer ele o diz b e m . O final do Livro III de seu poema (que ele deixou inacabado na m e t a d e do Livro IV) é bom o bastante para q u e o citemos aqui: When at last The Sun and Nature s tace again appear'd, Not far I found me; where the public path, Winding through cypress groves and swelling meadsf From Cnossus to the cave of Jove ascends. Heedless I followed on: till soon the skirts Of ìda rose before me, and the vault W ide opening pierced the mountain s rocky side. Entering within the threshold, on the ground I flung me, sad. faint, overworn with toil.25 Se vocês não soubessem q u e m escreveu esses versos, poderiam atribuí-los a um poeta superior. Mas, como J o h n s o n observa em relação às odes do mesmo autor: 4 4 De q u e vale criticar uma obra que não mais será lida? . Todavia, s u p o n h o q u e podemos agora compreender — e, dentro de certos limites, aceitar — a afirmação de que 'na fatura global de seus versos, [Akenside] é talvez superior a qualquer outro q u e haja utilizado o verso b r a n c o " . 22. ' Q u e na ponta dc teu anzol o verme t o r t u r a d o / N ã o se contorna convulso em agònicas d o b r a s ! " ( N . T . ) 23. " Q u a n d o afinal / O sol e a face da natureza outra vrz d e s p o n t a r a m . / Eu me achava ali por perto, o n d e a vereda pública, / F a r e j a n d o por e n t r e os ciprestes e as t ú m i d a s c a m p i n a s , / Sobe desde Cnossos ate a gruta de Zeus / Descuidoso, segui adiante; e logo a* bordas / do Ida surgiram à m i n h a f r e n t e , e a abóbada / Escancarada se entreabriu na rocha da m o n t a n h a . / Ao cruzar a soleira, melancólico, a b a t i d o . / Deixei-me cair ao solo. a l q u e b r a d o pelo esforço " (Ν Γ.)

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Não posso me impedir de perguntar quantos poemas em versos brancos do século XIX poderão ser lidos pela posteridade com qualquer interesse maior do que aquele que agora nos proporcionam os poemas de Thomson, Young ou Cowpcr. Perdurarão o Hyperion, o Prelude (que, apesar de enfadonho em muitas passagens, deve ser lido inteiro), algumas belas composições curtas de Tennyson, certos monólogos dramáticos de Browning. Mas, de m o d o geral, suponho que os poemas do século XIX q u e devem continuar a ser lidos sempre com prazer são os poemas rimados. Q u e Johnson considerava o verso branco como mais apropriado ao teatro do que o verso rimado é algo que podemos deduzir de sua preferência por All for loveu dentre as peças heróicas de Dryden, assim como do fato de haver ele escolhido o verso branco para a sua tragédia Irene,2' Que Johnson não chegou a compreender as peculiaridades do verso branco dramático, comprova-o esta peça, pois o que nela encontramos é o verso branco de um escritor que pensava e sentia cm termos do dístico rimado. Já observei que, quando Johnson expressa toda a sua alta e justa estima por Shakespeare como poeta dramático, ele fala como se Shakespeare escrevesse numa língua cujo conteúdo tivesse sido preservado, mas cujo som nada significasse para nós, pois não há de sua parte uma única palavra sobre a música do verso shakespeariano. Johnson sustentava que o verso branco é o mais adequado ao palco, simplesmente porque está mais próximo da prosa; cm outras palavras, as pessoas que conversam entre si ocasionalmente articulam um pentàmetro iâmbico, mas quase nunca incidem na rima. Não creio que esse ponto de vista seja absolutamente válido. Se, por outro lado, Johnson não foi capaz de apreciar a música especial do verso branco dramático, também se enganou ao considerar que o verso branco é necessariamente a forma que melhor convém à conversação. Observei há muito tempo que Dryden me parece se aproximar mais intimamente dos tons da conversação em suas peças com versos rimados do que o faz em All for love.

24. Ver nota IH a "A música na poesia

(N.T.)

25. Tragédia clássica escrita por J o h n s o n em 1749 e que constitui, acima de tudo, um diálogo moral sobre os temas da virtude. ( N . I . )

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A Irene dc Johnson tem todas as virtudes q u e se presumiria tivesse o verso do autor; e para J o h n s o n , q u e h a b i t u a l m e n t e escrevia sem muito esforço, parece q u e essa obra lhe exigiu muito trabalho. Seu verso não tem n e n h u m a q u a l i d a d e dramática; é correto, mas a correção isolada dessa forma torna-se em si um defeito. A peça seria hoje mais legível se ele a tivesse escrito em versos rimados; no c o n j u n t o , ela seria mais facilmente declamada, e o que há dc b o m , mais facilmente retido; o texto não teria perdido n e n h u m a de suas virtudes de estrutura, de pensamento, de vocabulário e de figuras de retórica. O que seria harmonioso com as rimas, torna-se apenas monótono sem elas. Ocupei-me até aqui primordialmente com a tarefa de tentar reduzir alguns dos obstáculos à apreciação de J o h n s o n como crítico. Antes de concluir, restam duas opiniões incidentais de Johnson que preciso encarar, pois. do contrário, eu ficaria exposto à crítica de q u e as evitei. A primeira é a opinião de Johnson sobre o drama coral, ao qual ele era desfavorável; a segunda é sua atitude em relação ao verso religioso ou devoto, com o qual se mostrou condescendente. Devo assim dirigir a atenção do júri para essas duas questões. "Se O paraíso reconquistado foi m u i t o depreciado, Sansão Agomsta, em compensação, foi m u i t o a d m i r a d o . Somente um velho preconceito e o fanatismo pelo saber p u d e r a m fazer com que Milton preferisse as tragédias antigas, atravancadas por um coro, para a« montagens em palcos franceses e ingleses, e somente devido a u m a cega confiança na reputação de Milton é que se poderia louvar um drama t u j a s partes intermediárias não têm causa nem efeito, e que não apressam nem retardam a catástrofe." Aproveito a ocasião para lembrar enfaticamente a vocês q u a n t o Johnson era moderno para a sua época: sua preferência pelo teatro francês e inglês em detrimento do teatro grego é apenas um dos exemplos disso. Desejaria tornar mais clara a ccnsura que ele faz a Milton, na passagem q u e acabo dc transcrever, dizendo que não creio ser devido a um velho preconceito, ou ao fanatismo pelo saber, que Milton foi levado a escrever sua peça a partir do modelo grego. Julgo q u e isso se deve sobret u d o a um conhecimento, consciente ou não, de quais eram

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os seus próprios dons. Hm Sansão, ele escolheu o assunto que melhor lhe convinha; c se adota o modelo grego, o faz porque era um poeta, e não um dramaturgo, e é dentro dos limites dessa forma que melhor revela sua mestria e dissimula suas fraquezas. O que mais surpreende, entretanto, desde que Johnson elegeu o drama francês, assim como o inglês, como aqueles que deveriam ser imitados, é que ele não faz n e n h u m a referência ao caso, inconveniente à sua tese, do Athalie, de Racine. Racine era um poeta do teatro, se é que algum dia houve algum; em Athalie ele utiliza o coro, e Athalie, creio cu, é na verdade u m a grande peça. Mas, com essa exceção, Johnson estava julgando o drama coral segundo padrões dramáticos que não imagino que a maioria de nós aplique ao Sansão. Para muita gente, o Sansão é a mais legível dentre as obras maiores de Milton; certamente, mais legível do que O paraíso reconquistado. Podemos até mesmo apreciar o Sansão, como podemos apreciar Com us, q u a n d o são encenados. Mas não creio que ninguém possa apreciá-los exclusivamente como dramas: precisaríamos ou estar muito familiarizados com o texto, ou então possuir um ouvido muito atento, para degustar a beleza das palavras. Do contrário, não acredito que a intriga ou as personagens de u m a ou de outras dessas peças possam mobilizar por m u i t o t e m p o a nossa atenção. Inclino-me a acreditar que, no conjunto, Johnson, ao permitir-se criticar o Sansão como drama, está correto. Não creio que ele estimasse a força dramática das convenções gregas em seu lugar e em seu tempo. Na verdade, duvido que isso seja possível para qualquer um que estivesse no insipiente estágio de conhecimento arqueológico cm sua época: com certeza, nossa própria compreensão das peças gregas como peças foi imensamente ampliada por pesquisas c estudos recentes. Mas a verdadeira questão é se a forma do drama grego pode ser adaptada ao m u n d o moderno. E suspeito que a principal justificativa para Milton, tanto quanto para alguns poetas mais recentes, ao imitar a forma grega do drama, é que o emprego de um coro permite a certos poetas destituídos de qualquer talento dramático utilizar o melhor de suas qualidades e, desse modo, dissimular algumas de suas deficiências.

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As opiniões de Johnson sobre o verso religioso estão mais cabalmente expressas cm sua Life of Waller1* É aqui q u e ele faz as seguintes observações: " Q u e n e n h u m ouvido piedoso se ofenda se declaro, contrariamente a diversas autoridades, q u e a devoção poética não pode f r e q ü e n t e m e n t e agradar ( . . . ) " . "A piedade contemplativa, no intercâmbio de Deus com a alma h u m a n a , não pode ser poética ( . . . ) Essas e outras palavras poderiam ser transpostas para a Life of Watts,2 na qual estão elas c o n f i r m a d a s pela seguinte passagem: " S u a poesia devota, como a dos demais, é insatisfatória. A penúria de seus temas leva a repetições intermináveis, e a santidade do assunto repele os ornamentos da dicção figurativa". Como crítica sobre Watts, isso é o q u e basta. Para uma geração que aprendera a admirar os sonetos sacros de D o n n e c os poemas líricos de George Herbert, Crashaw e V a u g h a n , ele parece rigorosamente pervertido. J u l g o q u e temos de levar eni conta não apenas as limitações do gosto literário dc sua época, mas t a m b é m suas limitações religiosas. A m b a s as coisas vão aqui de par u m a com a outra, pois, do m e s m o m o d o q u e não ocorre ao espírito de Johnson q u e existam valores poéticos nas épocas anteriores, os quais haviam desaparecido e n q u a n t o se aperfeiçoavam os de seu tempo, assim t a m b é m não creio que lhe pudesse ocorrer que havia uma sensibilidade religiosa que também desaparecera. As críticas dc Johnson se aplicam à maioria dos versos religiosos que foram escritos desde então, bem como aos que se escreveram em sua própria época, O q u e compromete sua condenação é a ausência de qualquer discriminação entre a poesia sacra do serviço religioso das igrejas e a poesia sacra originária da experiência pessoal. No hino, na antífona, na seqüência, a intromissão da experiência pessoal seria imperti-

nente, e talvez por essa razão a poesia sacra do serviço religioso está, na melhor das hipóteses, na eloqüência impessoal do latim. É verdade q u e alguns versos religiosos de caráter devoto parecem igualmente válidos em ambos os contextos. Alguns dos poemas de George Herbert podem ser encontrados nos hinários, e todavia os considero menos satisfatórios como hinos do q u e os de Watts, pois neles percebo sempre a personalidade de Herbert, e jamais o menor vestígio da personalidade de Watts. Mas a maior parte da poesia devota do século XVIII não tem o mérito nem de uma espécie nem dc outra. As razões pelas quais a boa poesia desse gênero não foi escrita, e as razões pelas quais Johnson não podia reconhecer a possibilidade de que ela o fosse, estão relacionadas às limitações da sensibilidade religiosa nesse século. Eu disse limitações, e não falta de sensibilidade, pois ninguém poderá 1er as Prayers and meditations,,28 ou o Serious calf de Law, 29 sem reconhecer que essa época possui t a m b é m seus m o n u m e n t o s de fervor religioso.

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26. Waller, E d m u n d . Poeta inglês (Colcshill. 1606 Hall Barn, 1687). Primo de Cromwell, foi m e m b r o do Parlamento, mas depois passou para o lado de Carlos I. Deixou um Panegyrical (1655). o n d e <elebra os feitos do p r i m o . Sua obra anuncia o classicismo inglês. ( N . T . ) 27. W a t t s , Isaac. Hinólogo e poeta inglês (1674-1748), considerado o iniciador da moderna hinologia inglesa, com seus Hymns and spiritual songs (1707) e The psalms of David imited in the language of the New Testament (1719). ( N T )

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II N ã o me proponho discutir a poesia do século XVIII em geral, ou sequer discutir as Vidas de Dryden e Pope, dc Johnson, exceto para delas extrair algumas declarações capazes de caracterizar a teoria crítica de Johnson. Preciso dizer algo sobre a poesia de Johnson, sobre o princípio que já estabeleci dc que só poderemos compreender a crítica dc poesia de um poeta em relação à poesia que ele escreve. Sobre seus poemas mais curtos só podemos dizer que a maioria deles possui aquelas duas qualidades que Johnson julgava ser tudo o que se pode exigir de poemas curtos: concisão e elegância. Um deles, Long 28. Título de um diário íntimo q u e J o h n s o n manteve, com intervalos irregulares, desde 1729, ainda na epexa em q u e vivia em Oxford, e que testemunha o seu espirito p r o f u n d a m e n t e religioso. Observam-se aí seus escrúpulos, suas perplexidades, seus impulsos para uma ortodoxia anglicana, que seu racionalismo e sua sensibilid a d e ameaçavam abalar. ( N . T . ) 29. Law William. Poeta inglês (1686-1761). Recusou-se a cumprir o juramento dc obediênc ia a Jorge I e permaneceu ortodoxamente a n g l i c a n o . O título completa da obra citada por Eliot é A serious call to J devote and holy life (1728), que influenciou Wesley, o f u n d a d o r do metodismo. (N. I )

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expected one-and-twenty, poderia proporcionar u m a interessante comparação, sem prejuízo para J o h n s o n , com The Shropshire lad: o verso de H o u s m a n 3 0 é t a m b é m conciso e. elegante, mas apenas do ponto de vista da dicção; q u a n t o à edificação (trata-se de dois critérios de J o h n s o n , como se verá), poderíamos dizer que o poema de J o h n s o n é superior. O único, suponho, dos poemas curtos de J o h n s o n q u e é mais do q u e conciso e elegante, o único q u e realiza o q u e n i n g u é m antes dele realizou e que n e n h u m sucessor pôde igualar, é o p o e m a sobre a morte do Dr. Levett, um h o m e m obscuramente sábio e grosseiramente b o n d o s o " — um p o e m a único graças a sua ternura, sua piedade e sua sabedoria. Os dois poemas aos quais se deve a reputação de Johnson como poeta são, todavia, The vanity of human wishes e London. Este soma 364 versos; aquele, 263. Johnson era um poeta reflexivo: podia não se expressar plenamente num poema de menor extensão, mas, por ser um poeta reflexivo, não tinha os recursos necessários para um poema de maior alcance. London tem belos versos e passagens, mas não me parece bem realizado como um todo. O cenário, ou o prólogo do poema, é artificial. É tedioso ver a invectiva apresentada como um discurso de "Tales injuriado a um amigo q u e lhe foi levar as despedidas em Greenwich, e n q u a n t o ele entra n u m bote para embarcar no navio q u e o conduzirá a seu exílio voluntário em Pembrokeshire. Há, como em outras passagens do poema, u m a impressão de falsidade. J o h n s o n queria escrever uma sátira à maneira de Juvenal para denunciar a perversidade londrina, mas que houvesse algum dia p r e t e n d i d o deixar Londres por um distante promontório em Saint David é tão incompatível com seu t e m p e r a m e n t o e com os confessos sentimentos q u e lhe povoarão o restante da vida q u e não p o d e m o s acreditar que lhe houvesse algum dia passado pela cabeça o propósito de fazê-lo. Ele era o último h o m e m a fixar residência cm Saint David, ou a ter apreciado as belezas desse sítio romântico q u a n d o ali viesse a chegar. 30. Housman, Alfred Edward. Poeta ingles (Catshill. 1859 - C a m b r i d g e . 1936). A coletânea citada por Eliot, que data de 1896, possui grande força rítmica e metaíórica, e foi durante muito tempo o volume de poemas mais lido na Inglaterra O próprio Housman admitiu a influencia de Johnson sobre os poemas dessa coletânea. (N.T.)

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For who would leave, un bribe d, Hibernia 's land. Or change the rocks of Scotland for the Strand?" A resposta é: Samuel Johnson, melhor do que qualquer outro. Tais objeções podem parecer desfavoráveis, mas cias reforçam minhas dúvidas sobre o talento de Johnson para a sátira. Johnson era um moralista c carecia de uma certa leveza divina que torna fulgurantes os versos dos dois maiores poetas satíricos ingleses. A indignação pode transformar-se em poesia, mas é preciso que seja uma indignação relembrada em tranqüilidade; 3 2 em London sinto que se manifesta uma débil indignação, cm vez de uma indignação autêntica a ser relembrada. Na sátira dc Dryden, como de um m o d o distinto na de Pope, o objeto satirizado se dilui na poesia, c somente a custo pode-se percebêlo como algo mais do que um pretexto para a poesia. Com Dryden, o h o m e m ridicularizado torna-se absurdamente gigantesco, e o inseto pernicioso de Pope se transforma em algo belo e estranho. Em London, o efeito global é o dc uma lamúria. A indiciação dc toda uma cidade malogra: é incrível, mesmo no século XVIII, que não se pudesse jamais sair à noite sem ser assaltado por bêbados turbulentos, ou dormir cm sua casa sem o perigo de ser assassinado por ladrões. Johnson dissemina generalizações, e tais generalizações não são verdadeiras; o que mantém o poema vivo é o fluxo subterrâneo dos sentimentos pessoais, a amargura da miséria, das afrontas, das injúrias c das privações, realmente vivenciadas por Johnson em sua juventude. O espírito de Johnson tende a uma reflexão geral que se apoia em exemplos. N u m a passagem bem conhecida, Imlac, o preceptor de Rasselas, 33 chega a observar que: "A missão de um poeta é analisar, não o indivíduo, mas a espécie; observar as propriedades gerais e as vastas aparências; ele não conta as estrias da tulipa, nem descreve as diferentes nuanças do verde da floresta. Ele deve mostrar em seus retratos da natureza os traços marcantes e surpreendentes que recordam 31 "Pois q u e m . gratuitamente, abandonaria as terras da Hibérnia, / Ou desejaria transformar no Strand as rochas da Escóciaí'" ( Ν . Ί .) 32. Óbvia alusão ao célebre toiKeito de Wordsworth no prefácio às Lyrical ballads (1798). segundo o qual a poesia era uma "emotion recollected in tranquillity". (Ν. I .) 33. Herói do conto de J o h n s o n , Rasselas (1759). (N.T.)

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o original cm todos os espíritos; c deve negligenciar as diferenças mais minuciosas q u e alguém possa ter observado, mas que um outro pode ter esquecido, para escolher as características que são analogamente óbvias à vigilância e ao d e s c u i d o " . Essa disposição para o geral afeta até m e s m o as regras de Johnson relativas à dicção poética. Έ u m a regra geraí em poes i a " , diz ele em sua Life of Dry Jen, q u e todos os termos de arte apropriados se diluam cm impressões gerais, porque a poesia deve falar uma linguagem universal. Essa regra torna-se ainda mais poderosa em relação às artes não-liberais, e por conseguinte distanciada do conhecimento c o m u m '; e prossegue censurando Dryden pelo emprego de termos técnicos de navegação, a maioria dos quais como seam ( " s u t u r a ). mallet ( " m a r r e ta '), tarpauling ( " t o l d o " ) — consideraríamos agora corriqueiros. Mas não estou interessado nas idéias de Johnson sobre dicção poética: desejo apenas sugerir q u e as regras poéticas dc J o h n son estavam, até certo p o n t o , limitadas pelo género de poesia que ele próprio foi capaz de escrever.

Em The vanity of human wishes, Johnson encontrou o tema que mais admiravelmente lhe convinha. A idéia, indicada pelo título, não era nova, e nunca o fora. Aliás, isso não era necessário nem desejável para um poema dessa natureza: o essencial é que fosse u m a idéia q u e o leitor não questionasse por

um só instante. A esse respeito, The vanity of human wishes, como poema meditativo, é superior à Elegy de Gray, 3 4 pois esse ultimo poema contém u m a ou duas idéias q u e talvez não sejam muito consistentes: na verdade, é m u i t o pouco provável que um cemitério de aldeia, ou qualquer cemitério, abrigue o corpo de alguém que pudesse ter sido H a m p d e n / 3 Milton ou Cromwell. Com toda a certeza, em seu p o e m a . Gray não se revela em absoluto estritamente meditativo: o q u e avulta na Elegy como descrição, como evocação da paisagem rural inglesa, é de suma importância. Por outro lado, sc Johnson se limitasse ao genérico, sem apoiá-lo em exemplos, pouco restaria de The 34. O título completo desse poema é Elegy writ ten in a country churchyard nota 15 ao ensaio "Sir J o h n D a v i e s " , nesta coletânea. ( Ν , Τ . )

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vanity of human wishes. Dentre tais exemplos, a passagem sobre Carlos da Suécia " 6 é amiúde citada como a que melhor se sustenta. Esses 32 versos compõem um parágrafo que é, em si mesmo, totalmente perfeito na forma: a curva ascendente da ambição, a súbita calamidade, e o lento declínio seguido de degradação, ao longo dos quais vemos o conquistador,

Compelled a needy supplicant to wait W hile ladies interposi and slaves debate,37 expirando em

a barren strand, A petty fortress, and a dubious hand.38 Mas essa passagem não é daquelas que preservam seu valor integral q u a n d o isoladas do contexto a que pertencem: ela exige o que a antecede e o que se lhe segue para ocupar o lugar que lhe cabe no conjunto do poema.

A grande poesia do tipo de The vanity of human wishes é rara, e não podemos censurar Johnson por não ter escrito mais nessc genero, q u a n d o consideramos quanto é difícil encontrála. Entretanto, essa especie de poesia não pode ser alçada ao nível mais elevado. Ela é, por natureza, de construção quase sempre frouxa; a idéia nos é dada de saída, e como se trata de uma idéia universalmente aceita, não comporta senão um p e q u e n o desenvolvimento, ou apenas variações sobre um tema. Johnson não possuía o dom da estrutura. Para se chegar a uma construção mais elaborada — c sustento que a estrutura deve ser um elemento importante na composição poética —, é indispensável uma variedade de talentos: descritivos, narrativos e dramáticos. Não esperamos jamais de um poema escrito cm rimas parelhas que ele tenha uma estrutura muito coesa, que às vezes, de acordo com o que o autor pretende dizer, poderia

Ver

36. Ou Carlos II (Londres. 1630 - id., 1685), rei da Inglaterra, da Escócia e da

35. H a m p d e n , J o h n . Político inglês (Londres, c. 1595 — T h a m e , 1643). primo de Cromwell, ao lado de q u e m combateu durante a Ouerra Civil. Sua oposição ao pagam e n t o do ship money (1637) tornou-o um dos heróis desse conflito nacional. ( N . T . )

Irlanda, filho de Carlos I. ( N . T . ) 37. " O b r i g a d o a esperar, como um pedinte necessitado. / Enquanto as damas se interpõem e os escravos discutem.' ( Ν . Ί . ) 38. " u m a árida praia, / N u m forte desprezível, sob mãos suspeitas." ( N . T . )

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começar ou terminar não importa onde. Mas há um poema, de um amigo e contemporâneo de J o h n s o n , que revela um alto grau de organização poemática. Considero The deserted village39 superior a qualquer poema de Johnson ou de Gray. No poema de Goldsmith, a arte da transição está admiravelmente ilustrada. Se vocês o examinarem estrote a estrofe, encontrarão sempre uma mudança correta no lugar certo, do descritivo ao meditativo, ao pessoal, de novo ao meditativo, à paisagem com personagens (o clérigo e o mestre-escola), com um talento e uma concisão raramente igualados desde Chaucer. Essas partes estão adequadamente proporcionadas. Enfim, a idéia, embora tão aceitável q u a n t o a de Johnson, é mais original e t a m b é m profética:

ou de qualquer outro poeta, do que as rimas dc Prior 41 são as dc Cowley. Suas cadências, suas pausas, sua dicção, constituem criações pessoais, sem transição nem imitação. Ele pensa segundo um encadeamento peculiar, e o faz sempre como um homem de gênio; olha para a Natureza e a Vida que lhe rodeiam com o olho que a Natureza concede apenas aos poetas; um olho que distingue em todas as coisas que sc lhe apresentam aquilo sobre o que a imaginação pode se deleitar quando aí se demora, e com um espírito que abarca de uma só vez a vastidão, sem negligenciar os pormenores. O leitor de The seasons se maravilha diante do que jamais vira antes que Thomson lhe houvesse revelado, e com o fato dc jamais ter sentido o que Thomson lhe t r a n s m i t e " .

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III fares the land, to hastening ills a prey, Where wealth accumulates, and men decay.40 Fiz essa digressão porque não creio que Johnson revele grande poder de construção em seus poemas e porque não acredito que ele reconheça a importância de considerar a estrutura na avaliação de um poema. Passo agora a rever aquelas propriedades de um bom poema que Johnson ilustra em seus próprios versos e, sobretudo, recomenda nos dos outros. Johnson atribuía importância à originalidade. Originalidade é uma dessas numerosas palavras cujo significado pode se alterar de geração para geração, e devemos nos prevenir cm relação ao que Johnson quer dizer com cia. Seu próprio emprego em todo o m u n d o está ilustrado pela seguinte passagem tomada

à sua Life of Thomson·. " C o m o escritor, Thomson merece um elogio da mais alta espécie: sua maneira de pensar, e de expressar o q u e pensa, é original. Seu verso branco não é mais o verso branco de Milton, 39. Famoso poema do escritor inglês Oliver G o l d s m i t h , publicado cm 1770 É um poema melancólico e sentimental q u e denuncia a explorarão do aldeào pelo aristocrata e o êxodo rural causado em parte pelo sistema de l a t i f ú n d i o q u e favorecia os abusos da grande propriedade. Ver t a m b e m nota 20 a " A s três vozes da poesia". (N.T.) 40. ' Perra infeliz, vítima de desgraças q u e se aceleram. / O n d e a riqueza se acumula e os homens d e g e n e r a m . " ( N . T . )

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A originalidade se encontra aqui diluída numa "maneira de pensamento e de expressão". Mas o pensamento cm si não tem necessidade de ser novo ou difícil dc apreender e dc aceitar; ele pode ser, e para Johnson amiúde o foi, o lugar-comum, ou um pensamento que, quando apreendido, é tão rapidamente aceito que o leitor se extasia diante do fato de nunca tê-lo pensado por si mesmo. A originalidade não requer a recusa da convenção. Habituamo-nos, durante o século passado, ou mesmo antes, a uma tal desordem de estilos pessoais que nos esquecemos de que a originalidade é tão significativa num período de calma quanto numa época de constantes modificações; a c o s t u m a m o - n o s dc tal modo às diferenças de estilo poético identificáveis por qualquer um que podemos nos tornar menos sensíveis às mais sutis variações dentro de uma forma, variações que o espírito e o ouvido habituados a essa forma podem perceber. Mas a originalidade, quando se torna a única — ou a mais louvada — virtude da poesia, pode deixar por completo de ser uma virtude; c quando diversos poetas, e seus respectivos grupos de admiradores, deixarem de ter em comum quaisquer padrões de versificação, qualquer identidade de gosto e de dogmas em que acreditar, a crítica poderá detenorar-se

41. Prior, Matthew. Poeta inglês ( W i m b o r n e Minster, East Dorset. 1664 Wimpole. Cambridgeshire, 1721). Discípulo e è m u l o de Pope, escreveu versos dc sociedade m u i t o esi miados na epoca. Sua principal obra é Poems on several occasions (1709). (N T.)

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até o nível de u m a proclamação de preferencia. A originalidade que Johnson sanciona é u m a originalidade limitada pelas outras qualidades q u e ele exige. Johnson atribuía importância à edificação. Esse t e r m o tornou-se objeto de zombaria, embora o q u e signifique possa ser algo de que jamais conseguimos escapar. Q u e a poesia deva proporcionar sabedoria ou inculcar virtudes parece à maioria das pessoas um valor absolutamente secundário, ou mesmo estranho; a alguns, inclusive, parece até m e s m o incompatível com a verdadeira função da poesia. Mas, em primeiro lugar, devemos observar q u e J o h n s o n , q u a n d o seu senso crítico é aguçado, jamais se permite superestimar um p o e m a unicamente sob o pretexto de q u e este inclua um e n s i n a m e n t o moral. Ele sustentava que um poema deveria ser interessante c que proporcionaria prazer imediato. Na verdade, julgo q u e ele superestime esse requisito q u a n d o , em sua life of Cowley, diz: " T o d o aquele que proclama ser útil p o r q u e agrada deve agradar de imediato. Os prazeres do espírito implicam algo dc súbito c inesperado; aquilo q u e eleva deve t a m b é m surpreender. O que se percebe lenta e gradativamente p o d e nos gratificar com a consciência do aperfeiçoamento, mas jamais nos surpreenderá com o sentido do prazer . Concordo q u e um poema q u e não cause n e n h u m a impressão imediata, que de algum m o d o não desperte a nossa atenção, provavelmente não provocará depois n e n h u m f r é m i t o de prazer. Mas Johnson não me parece admitir a possibilidade de qualquer desenvolvimento ou expansão do prazer, n e m da gradual percepção de novas belezas, em seguida a um conhecimento mais profundo; e nem consente em um a m a d u r e c i m e n t o do leitor e no desenvolvimento de sua sensibilidade por meio de uma experiência mais p r o f u n d a e um c o n h e c i m e n t o mais abrangente. Todavia, não fiz a citação acima com o objetivo de manifestar meu desacordo, mas para indicar q u ã o estritam e n t e o prazer e a edificação se encontram associados no espírito de J o h n s o n . Ele fala de " t o d o aquele q u e proclama ser útil porque a g r a d a " , e diz " q u e aquilo q u e eleva deve também s u r p r e e n d e r " . A edificação não constitui um acréscimo que se possa separar de um poema, pois é organicamente essencial a este. Não temos duas experiências, uma dc prazer e outra

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de edificação: trata-se de uma única experiência cujos elementos constituintes analisamos. Ao julgar a permanência dos princípios de um crítico pertencente a u m a época de fato distinta da nossa, devemos const a n t e m e n t e reinterpretar sua linguagem de acordo com a nossa própria situação. No sentido mais generalizado, suponho que a "edificação" signifique apenas que da boa poesia, e com certeza da grande poesia, devemos extrair não só algum proveito, mas t a m b é m um prazer. Se identificarmos a "edificação" com a propagação das idéias morais da época de Johnson — idéias que os cristãos podem sustentar ter sido maculadas pelo deísmo, e que outros podem considerar bastante cristãs —, não conseguiremos perceber que foram apenas as nossas noções de edificação q u e m u d a r a m . Q u a n d o Matthew Arnold disse que a poesia era u m a crítica da vida, 12 estava mantendo o padrão da edificação. Até mesmo a teoria " d a arte pela a r t e " constitui apenas u m a variante sob a forma dc um protesto; c em nossa época, a defesa da poesia como substitutivo da religião — e a tentativa, nem sempre bem-succdida ou benéfica à poesia, dc exprimir ou impor uma filosofia social em verso — revela que é somente o conteúdo da "edificação que se transforma. Se, portanto, conferirmos à "edificação" toda a elasticidade q u e o termo comporta, este, ao que parece, se reduzirá à afirmação de que a poesia deveria ter algum valor sério para o leitor: trata-se de uma proposição que não se poderá negar e q u e , por conseguinte, não vale absolutamente a pena afirmar. Nossa única discordância será quanto à espécie de conteúdo que consideramos edificantes. Nossa dificuldade real em relação aos conceitos de Johnson são antes de outra ordem. Distinguimos mais claramente entre a intenção consciente do escritor e o resultado de sua obra. Desconfiamos do verso em que o autor busca deliberadamente instruir ou persuadir, fai distinção não constitui um daqueles l u g a r e s - c o m u n s do pensamento de Johnson. Entretanto, suponho, ele está de fato preocupado com a moralidade do poema, e não com os desígnios morais do poeta. 42 "Poetry is a criticism oi l i f e " : frase que se tornou celebre desde que o crítico e ensaísta inglês Matthew Arnold (Laieham. 1822 Londres, 1888) a adotou como o próprio f u n d a m e n t o de sua atitude crítica, como se pode ver em seus Essays m criticism (2 vols.. 1865-1888). ( N . T . )

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Bossu e é da opinião diz J o h n s o n na Life of Milton, " d c que a primeira tarefa do poeta é descobrir uma moral, que sua fábula ilustrará e, logo em seguida, estabelecerá. Esse parece ter sido o único processo dc Milton; a moral de outros poemas é incidental e conseqüente; somente em Milton ela é essencial e intrínseca." Considero verdadeiro esse julgamento sobre Milton, embora se Johnson tivesse conhecido Dante melhor, talvez não houvesse tomado Milton como exemplo único. Isso parece confirmar, todavia, que aquilo q u e interessa a J o h n s o n é antes o poder edificante do poema do q u e a deliberada intenção do poeta. Somos todos, naturalmente, segundo nosso grau de atração, influenciados por qualquer obra de arte em particular graças à nossa simpatia ou antipatia para com as ideias e a personalidade do autor. Hmpenhamo-nos, e em nossa época cumpre que o façamos, em descartar essa atração ou repulsa para chegarmos a uma justa avaliarão do mérito artístico. Sc vivêssemos, como Johnson, n u m a época dc relativa u n i d a d e e de hipóteses geralmente aceitas, deveríamos provavelmente estar menos interessados em fazer esse esforço. Se estivéssemos de acordo com a natureza do m u n d o em q u e vivemos, com o lugar q u e nele cabe ao h o m e m e com seu destino; se estivéssemos de acordo com o significado que atribuímos à sabedoria, à qualidade dc vida para o indivíduo e a sociedade, deveríamos aplicar julgamentos morais à poesia com a mesma segurança de J o h n s o n . Mas numa época em que não encontramos sequer dois escritores que precisem estar de acordo seja lá com o q u e for, n u m a época em que necessitamos constantemente admitir q u e um poeta com uma concepção de vida q u e julgamos estar equivocada pode escrever uma poesia m u i t o superior à daqueles cuja concepção coincidc com a nossa, somos obrigados a fazer essa abstração; c, ao fazê-la, caímos na tentação dc ignorar por completo, com resultados desastrosos, o valor moral da poesia. Dc m o d o que, com respeito à concepção de vida de um poeta, inclinamo-nos a perguntar, não "é verdadeiro?", mas "é origi43. Bossu, René Le. Crítico francês (1631-1680). autor dc um Traité du poème e'pique que Boilcau muitíssimo estimava. Esquecido na França, é ainda l e m b r a d o pelos escritores ingleses, s o b r e t u d o os q u e viveram nos se'culos XVII e XVIII. ( N . T . )

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n a l ? " E essa é uma das teses sustentadas nessa discussão sobre a crítica de Johnson: a de que ele se encontrava numa posição, como n e n h u m crítico de idêntica estatura desde então o esteve, para escrever crítica puramente literária. apenas porque foi capaz dc admitir que havia uma atitude geral para com a vida, e uma opinião comum quanto ao lugar que nela ocuparia a poesia. Volto agora ao emprego que Johnson fazia da expressão

dicção poética [poetic diction). Para a maioria das pessoas dc hoje, imagino que dicção poética" signifique uma linguagem e uma escolha de palavras que estão em desuso, e que talvez jamais foram muito boas no que tinham de melhor. Se formos tolerantes, entenderemos o uso dc uma linguagem e um vocabulário tomados de empréstimo aos poetas de uma geração, linguagem c vocabulário diferentes como não mais adequados à poesia. Se formos rigorosos, entenderemos que essa linguagem c vocabulário foram sempre ruins, mesmo quando eram novos. Wordsworth, cm seu Prefácio, diz: 1 encontrar-se-á tambem nesses volumes um pouco daquilo a que chamamos de dicção poética ". Johnson emprega o termo num sentido laudatorio. Na Life of Dryden ele observa: " N ã o havia, portanto, na época de Dryden n e n h u m a dicção poética, nenhum sistema dc palavras que estivessem, por sua vez, purificadas da aspereza de termos apropriados a determinadas artes. Palavras demasiado familiares, ou excessivamente remotas, não servem ao propósito de um poeta. Os sons que percebemos cm ocasiões triviais ou grosseira s não nos transmitem facilmente impressões fortes, ou imagens deleitáveis; e as palavras que são para nós quase estranhas, sempre q u e ocorrem, despertam sobre si a atenção que deveriam despertar sobre as coisas". É preciso ter em mente, com relação ao vocabulário e à construção, o que tentei expor acima dc maneira mais geral: que a noção da língua como algo permanentemente em mutação não constitui a única a causar impressão na época dc Johnson. Recuando no passado cerca dc dois séculos, ele constatou tanto na língua q u a n t o nos costumes um contínuo aperfeiçoamento. Até onde ele pôde observar, esse aperfeiçoamento não o decepcionou, mas Johnson não tinha nem a consciência dc que algo se perdera, nem a percepção das inevitáveis mudanças que estavam por vir. O próprio Wordsworth não revela tampouco

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n e n h u m a consciência mais aguda do q u e Johnson da constância com que a língua deve mudar: o q u e ele julgara ter estabelecido era um retorno a uma dicção de simplicidade popular e de pureza rural. Wordsworth estava certo ao perceber que a língua literária não devia perder contato com a linguagem falada, mas seu padrão de dicção poética correta era tão relativo q u a n t o o dc Johnson. Nós, pelo contrário, deveríamos ser capazes de reconhecer que caberia haver, para todo período, algum padrão de correta dicção poética que não fosse nem idêntico ao da língua corrente nem dela muito distante; e cumpre admitir q u e a dicção poética correta, daqui a meio século, não será a mesma que hoje se reconhece. O que quero dizer é q u e o vocabulário, a linguagem c as normas gramaticais da poesia não p o d e m ser idênticos aos da prosa. No que toca à escolha das palavras, a restrição de Johnson permanece verdadeira: a de que os 4 sons que percebemos em ocasiões triviais ou grosseiras" devem ser evitados, exceto, devo acrescentar, q u a n d o o propósito do poeta é apresentar algo de trivial ou de grosseiro; e a de q u e 4as palavras que são para nós quase estranhas, sempre q u e ocorrem, despertam sobre si a atenção que deveriam despertar sobre as coisas", exceto, acrescentaria eu, q u a n d o a palavra é a única capaz de designar essa coisa, ou q u a n d o o objetivo do poeta é despertar a atenção sobre a palavra.

viais" ou grosseiras' , nos parecem dignas de ser celebradas em verso. Os preceitos de Johnson sobre dicção poética contin u a m sólidos, mas temos de utilizar nosso próprio engenho q u a n d o os aplicarmos. Q u e Johnson alertou para o vício do maneirismo, atesta-o uma outra passagem da Life ofDryden, uma passagem que deveria ser p r o f u n d a m e n t e considerada por qualquer um que aspire a escrever bons versos: Aquele q u e escreve cm demasia dificilmente escapará ao maneirismo, ou seja, um retorno a determinados modismos como facilmente se pode observar. Dryden é sempre um outro e o mesmo\ ele não revela, numa segunda vez, as mesmas elegâncias dentro da mesma forma, nem parece praticar nenhuma outra arte q u e não seja a de expressar com clareza o que pensa vigorosamente. Seu estilo não podia ser imitado com facilidade, nem séria nem ludicamente, pois, como ele sempre foi idêntico a si m e s m o , e sempre variado, não há nenhuma característica p r e d o m i n a n t e ou distintiva".

Criticar a dicção poética da poesia do século XVIII é u m a coisa; criticar uma teoria sobre a dicção poética desse mesmo século é outra. Devemos nos lembrar de q u e se não se a d m i t e n e n h u m a dicção poética não dispomos de n e n h u m padrão para criticar o bom c o mau texto poético; negar q u e não há n e n h u m estilo comum correto é tão perigoso q u a n t o insistir em que o estilo poético dc nossa época deveria ser o mesmo q u e o do século XIX. Nosso moderno vocabulário abriga muitas palavras comparativamente novas q u e poderiam soar como bárbaras aos ouvidos dc Johnson. Passamos a inventar, a descobrir, a modelar e a teorizar num ritmo desconhecido a qualquer época anterior, c cada nova palavra se consolida m u i t o mais rapidamente. N e n h u m a palavra é demasiado nova, se for a única que atende a um propósito; n e n h u m a palavra é demasiado arcaica, se for a única que atende t a m b é m a um propósito. E muitas ocasiões, que para Johnson poderiam parecer 4 4 tri-

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Desejo chamar atenção especial para esse problema da dicção poética, porque se trata dc um padrão essencial da crítica de Johnson e porque considero que a ausência dc qualquer padrão c o m u m dc dicção poética constitui uma fraqueza tanto do verso moderno q u a n t o da crítica que dele fazemos. E deliberadamente cuidei dessa questão antes de abordar seu padrão de edificação. Q u e a poesia, quando ilustra alguma verdade ou inculca alguma prática virtuosa, seja mais digna de ser louvada do q u e no caso contrário, e que a poesia que recomenda ou insinua maus princípios, ou induza ao erro, deva ser condenada, demonstra-o, de maneira cabal, o tratamento que Johnson dispensa aos autores de que se ocupa. Todavia, ao elogiar os Pleasures of imagination, de Akenside, disse ele: Nada tenho a ver com os princípios filosóficos ou religiosos do autor; meu problema é com sua poesia". Johnson não confundia seu julgamento sobre o que um autor estava dizendo com seu julgamento sobre a maneira como ele o dizia. Ora, observo as vezes na crítica contemporânea dc poesia e nas mais ambiciosas abordagens à poesia que hoje se escrevem uma confusão entre esses julgamentos. O padrão de edificação esgalhou-se numa variedade de preconceitos; mesmo que não haja nenhuma opi-

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nião comum sobre aquilo q u e a poesia teria o dever de ensinar, o crítico não está necessariamente liberado de julgamento moral, mas amiúde considerará um poema bom ou ruim segundo seja este simpático ou antipático do p o n t o de vista do autor. Não raro. o conhecimento do crítico sobre os conceitos do autor será adquirido graças a outras fontes q u e d e t e r m i n a d o poema oferece à sua crítica, e essas fontes influenciarão seu julgamento do poema. E q u a n t o às questões de saber se um poema é bem ou mal escrito, se podia ser melhorado, se as cadências são musicais, se a escolha das palavras é fastidiosa ou literária", se as imagens são felizes e estão a d e q u a d a m e n t e distribuídas, se a sintaxe é correta e as transgressões à estrutura normativa estão justificadas, são elas evitadas como se deixassem aquele q u e as coloca exposto à suspeita de p e d a n t i s m o . O resultado é quase sempre um comentário q u e não tem n e n h u m valor para o autor, a não ser que, q u a n d o favorável, possa constituir u m a boa publicidade — como uma crítica de processos eleitorais, pela qual os críticos classificam a si mesmos contra ou a favor de determinado poeta. Q u e não haja em nossos dias n e n h u m padrão d e f i n i d o de gosto na poesia é em parte o resultado das condições da sociedade e das origens históricas, q u e estão além de nosso controle e de nossa responsabilidade. O melhor, talvez, q u e p o d e m o s fazer, e que merece ser feito, é aprender a reconhecer os benefícios, para o escritor e para o crítico, do estilo comum na poesia. Somente q u a n d o de fato se reconhece um estilo c o m u m , do qual o poeta não pode se afastar sem o risco de ser censurado, é que a expressão "dicção poética' p o d e adquirir um significado que não seja pejorativo. Q u a n d o tais padrões relativos a um estilo c o m u m existem, o autor q u e visa alcançar a originalidade é levado a preocupar-se com as mais sutis nuanças que lhe poderia atribuir. Ser original d e n t r o de limites definidos de propriedade pode requerer maior talento e esforço do que q u a n d o cada autor pode escrever da maneira q u e lhe apraz, e q u a n d o dele se espera, acima de t u d o , q u e seja diferente dos demais. Ser obrigado a trabalhar sob as mais sutis nuanças é o mesmo que ser compelido a lutar em favor da precisão e da clareza: boa parte do q u e se condena como obstinado hermetismo por parte dos escritores modernos deve-se à

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falta de qualquer estilo c o m u m e à conseqüente dificuldade dc comunicação, l ais condições também favorecem o florescim e n t o daquilo em que o próprio verso dc Johnson, no que ele tem dc melhor, se revela notável: a eloqüência. A eloqüência é u m a virtude que está associada à grande oratória; deveríamos distingui-la de um tipo inferior, c muito mais comum, o da oratória política, através do teste relativo ao efeito que ela pode exercer sobre a razão c a sensibilidade, e de sua recusa quanto à possibilidade de recorrer às mais grosseiras e inflamáveis paixões. A eloqüência é o aguilhão que pode instigar as emoções dos espíritos inteligentes e criteriosos. Mas, no âmbito poético, não se pode dizer q u e seja eloqüente, no sentido em que utilizo a palavra, toda a poesia que dela se originou. A poesia só se torna eloqüente q u a n d o o poeta recorre às emoções que os espíritos inteligentes e criteriosos podem experimentar juntos — cm outras palavras, q u a n d o o poeta se dirige não a um leitor isolado, mas a uma platéia. Não se trata de uma virtude poética universal; é eficaz em alguns casos, mas incompatível com a materialização de alguns outros desígnios. Porém a maioria dos grandes poetas dela se valeu em alguma ocasião. Ela está relacionada àquela força peculiar da poesia de Johnson e de Goldsmith, como, antes deles, das de Dryden e de Pope, que posso definir dizendo que cada palavra e cada epíteto nela se dirigem diretamente às suas metas. Em compensação, muitos dos poetas que se seguiram recorreram às palavras mais por amor aos efeitos harmoniosos, às associações e ao poder indefinido das sugestões. Os maiores poetas fizeram muito isso, e cumpre admitir q u e poderemos nos enganar se concedermos atenção exclusiva a uma categoria de palavras ou a outra. Na Life of Pope, Johnson define, tal como a poesia dc Pope as ilustra, as três qualidades que constituem o gênio poético. Diz ele, significativamente, que Pope tem essas três qualidades " e m proporções muito harmoniosamente ajustadas umas às o u t r a s " — o que é u m a advertência sadia de que não se trata de qualidades isoladas, mas de qualidades que estão relacionadas entre si e por meio das quais devemos julgar um poeta —, e que, na verdade, o equilíbrio de sua proporção é em si a qualidade final. Ele escreve o seguinte:

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"Ele tinha invenção [invention), graças à qual sc constituíam novos encadeamentos de fatos, e se produziam novos cenários imagísticos, como em The rape of the lock, e pela qual ornamentos e ilustrações extrínsecos c adventícios cram associados a um assunto conhecido, como no Essay on criticism. Ele tinha imaginação [imaginationque exerce u m a poderosa influência sobre o espírito do escritor, p e r m i t i n d o - l h e transmitir ao leitor as diversas formas da natureza, os incidentes da vida e as energias da paixão, como em sua Eloisa, em Windsor

ginação [imagination] que considero difícil aplicá-la na prática. As mudanças no significado das palavras, e as flutuações da ênfase que nelas se coloca, fazem parte da história da nossa civilização. Um crítico contemporâneo, comprometido com a mesma tarefa dc análise, chegaria a uma conclusão mais complicada, que seria provavelmente influenciada pelo estudo das ciências dc desenvolvimento mais recente. A conclusão moderna estaria mais dc acordo com nosso equipamento mental, mas não seria necessariamente mais verdadeira por essa razão; devido à instabilidade das ciências das quais ela poderia se originar, seria até possível que fosse antes levada a se desgarrar daquilo que é o verdadeiro propósito de tais discriminações, a saber: a ajuda que elas proporcionam no sentido de discernir os méritos e os defeitos dc determinados poemas. As conclusões de Dryden e de Johnson — porque esses críticos estavam interessados na literatura e n q u a n t o tal, e não em psicologia ou sociologia, c devido a sua extrema simplicidade — têm uma utilidade duradoura. O interesse particular de uma variante de Johnson reside, creio

forest e nas Ethic epistles. Ele tinha julgamento [judgementJ, q u e seleciona da vida ou da natureza aquilo q u e exige o propósito presente e q u e , ao isolar a essência das coisas de suas qualidades concomitantes, torna a m i ú d e a ficção mais poderosa do q u e a realidade; e tinha as cores da língua sempre à sua disposição, prontas para o r n a m e n t a r seu assunto com toda a graça da expressão elegante, como nos casos em q u e adapta sua dicção à maravilhosa multiplicidade dos s e n t i m e n t o s c das descrições de Homero . Os perigos de tentar catalogar as faculdades do poeta são de duas espécies. Essas denominações p o d e m separar faculdades que somente se encontram juntas e p o d e m elas ser consideradas muito seriamente, como u m a verdade psicológica ou filosófica final, q u a n d o sc tornam apenas análises de validade pragmática, a serem tratadas com base em sua utilidade q u a n d o nos a j u d a m a ponderar os méritos de d e t e r m i n a d o s poetas. E prudente não apenas escolher um jogo dc definições q u e melhor nos convenha, ou admitir q u e o mais exato é o mais reccnte, mas t a m b é m cotejar todas aquelas que provenham de respeitáveis autoridades de diferentes épocas. Percebemos q u e elas têm muito em c o m u m . Johnson acompanha Dryden no e m p r e g o do termo invenção (invention), pois o situa ao lado da imagina

ção [imagination], enquanto Dryden tornara a invenção \inven tion] uma espécie de imaginação {imagination], juntamente com a fantasia [fancy] e a elocução {elocution]', Johnson não emprega a elocução [elocution), mas introduz o julgamento [judgement]. Coleridge se concentra na imaginação [imagina Hon], na qual descobre profundezas de significado insuspeito seja de Dryden, seja de Johnson; e subestima a fantasia, estabelecendo uma distinção tão sutil entre a fantasia [fancy] e a ima-

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eu, no uso que ele fez do termo julgamento {judgement). indício dc suma importância da faculdade crítica que se encontra na composição criadora. Na época atual, o poeta (cu gostaria que se compreendesse que falo em termos gerais, sem aludir a esse ou àquele nome) parece propor-se como objetivo principal, entendido como o mais característico de sua arte, novas e surpreendentes imagens, com episódios que interessem às emoções ou excitem a curiosidade. Tanto suas personagens quanto suas descrições são, na medida do possível, específicas e individuais, até que se reduzam apenas a retratos. Em sua dicção e sua métrica, por outro lado, ele se mostra relativamente desleixado." Essas palavras não são minhas, mas de Coleridge, poderiam elas, com extrema pertinência, ser aplicadas aos tempos de hoje; por outro lado, o princípio aqui mantido é um daqueles que, estou certo, Johnson aprovaria. De modo semelhante, as observações de Coleridge sobre dicção poética, quando comparadas com as dc Johnson, revelam uma concordância fundamental no que se refere à diferença entre o uso da língua em verso e sua utilização na prosa. Numa época como a nossa, carente de padrões comuns, os poetas precisam se lembrar eles próprios

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de que não basta confiar naqueles dons q u e lhes são inatos, e que cada um deles exerce com naturalidade, mas de q u e a boa poesia deve revelar diversas qualidades de proporção, das quais u m a é o bom senso. Eles deveriam t a m b é m utilizar seu julgamento para descobrir por si mesmos as matrizes de sua própria força e fraqueza, a fim de refrear a exuberância de sua força e de evitar ocasiões em q u e se revelaria apenas sua fraqueza. Recordo-me de q u e certa vez uma famosa tenista me disse que jogava melhor q u a n d o se mostrava n a t u r a l m e n t e traça em determinados golpes, pois o esforço para superar sua deficiência — e a manobra destinada a deixá-la menos vulnerável — aumentavam consideravelmente suas fontes de energia. Há aqui alguma coisa sobre a qual os poetas poderiam refletir. Uma avaliação exaustiva da crítica de J o h n s o n exigiria, em primeiro lugar, um estudo do contexto geral do século XVIII; em segundo lugar, um estudo sobre o próprio J o h n s o n , não como objeto de anedota, mas no q u e se refere às suas outras obras, e à luz de suas opiniões religiosas e políticas; e, finalmente, um estudo muito mais d e t a l h a d o de sua crítica sobre os maiores poetas que ele examinou, como Shakespeare, Milton, Dryden, Pope ou Gray. Seria mais u m a tarefa de mestre-escola do que de professor. Q u e r o apenas sugerir ao estudioso da poesia e da crítica de poesia ingleses q u e aqui está um assunto q u e merece muito mais investigação séria do q u e até agora lhe concederam. E, para concluir, desejaria resumir aquelas questões q u e me parecem ter particular importância para a crítica de poesia de nossa própria época. Em primeiro lugar, é espantoso q u e The lives o j the poets de Johnson seja a única coletânea m o n u m e n t a l de estudos críticos sobre poetas de língua inglesa, com u m a coerência e uma amplitude que n e n h u m a outra crítica inglesa p o d e reivindicar. Cabe aqui perguntarmos por q u e não se escreveu depois n e n h u m a obra dc crítica do mesmo gênero. A crítica do século XIX, q u a n d o não pertence primordialmente à categoria das pesquisas eruditas, à apresentação de fatos q u e se p o d e m afirmar sobre um ou outro autor, t e n d e m a configurar-se como algo que foi menos estritamente literário. Com Coleridge, a crítica mergulha na filosofia e n u m a teoria dc estética; com Arnold, ela submerge na ética e na propedêutica, e a literatura

se torna um meio para a formação do caráter; cm alguns críticos, dos quais Pater 44 é um exemplo, a temática da crítica se converte num pretexto de outra espécie. Em nossos próprios dias é bastante visível a influência da psicologia e da sociologia sobre a crítica literária. Por outro lado, essas influências das ciências sociais ampliaram o campo da crítica e consolidaram — num m u n d o que, ao contrário, está inclinado a relegar a importância da literatura — as relações da literatura com a vida. Mas de outro ponto de vista, esse enriquecimento tem sido também um empobrecimento, pois os valores estritamente literários, a apreciação do bom texto pelo próprio amor a esse texto, desaparecem q u a n d o a literatura é julgada à luz dc outras considerações. O fato de q u e as coisas sejam assim não deve ser atribuído nem à aprovação nem ao descrédito de determinados críticos. O q u e ocorre simplesmente é que as condições sob as quais a literatura é julgada apenas c naturalmente como literatura, e não como outra coisa, não existem mais. Para que esse julgam e n t o da literatura seja a tarefa normal e natural do crííico, é necessário q u e haja um público definido e limitado ao qual pertença um grupo ainda menor de pessoas de gosto e dc discernimento, com as mesmas características de educação e de costumes. E preciso que seja uma sociedade que acredite em si mesma, u m a sociedade cm que as diferenças de conceitos religiosos e políticos não sejam extremas. Somente numa sociedade desse tipo é q u e os padrões de um estilo comum podem tornarse sólidos c inquestionáveis. Essa é a espécie dc sociedade para a qual Johnson escreveu. E uma das provas da transformação da sociedade, acelerada em nossa própria época, uma transformação que traz inevitavelmente uma mudança na consciência da própria crítica literária, é que, ao tentar explicar a mim mesmo e à m i n h a platéia o singular interesse da crítica de Johnson, vejo-me obrigado a adotar um ponto de vista muito distinto do dele e a introduzir a sugestão de um contexto social que se tornou a necessária preocupação do crítico. 44. Pater, Walter Horácio. Crítico c ensaísta inglês (Shadwcll, 1839 - Oxford, 1894). Sua obra principal são os Studies in the history of the Renaissance ( 1873). em que o autor lança os valores estéticos da Renascença. O estcticismo amoralista de Paicr, q u e exerceu forte influência sobre Wilde, pode ser visto ainda em A p pre nation*, with an essay on style ( 1889). Plato andplatomsm (1893) e no romance filosófico Marius. the Epicurean (1885). ( N . T . )

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A conclusão dc que uma obra comparável a The lives of the*poets não pode ser escrita nos dias dc hoje não deveria nos induzir a colocar Johnson nos píncaros nem a lamentar o declínio de civilidade que torna essa crítica impossível, c o m o tampouco deveria, por outro lado. nos incitar a definir tais ensaios como curiosidades que não tivessem nenhuma relação com os nossos problemas atuais. Seu primeiro mérito é um mérito que deveria ter para nós todo o estudo do passado, ou seja, o de que nos tornaria mais conscientes daquilo que somos, e de nossas próprias limitações, proporcionando-nos assim uma compreensão mais ampla do mundo em que agora vivemos. Seu mérito secundário é o de que, ao estudarmos esses poetas, e ao tentarmos assim compreender o ponto de vista dos autores que ele analisa, poderemos resgatar alguns dos critérios de julgamento que desapareceram da crítica de poesia. N ã o é preciso aceitar todos os juízos críticos de Johnson ou concordar com todas as suas opiniões para aprender essa lição. E nem deveremos superestimar a poesia daquele período ao qual os nomes de Dryden e de Johnson podem servir de fronteira. Mas entre as variedades de caos nas quais hoje em dia nos encontramos imersos, uma é a do caos da língua, no qual não mais são visíveis nenhum padrão de escrita, e onde assistimos a uma crescente indiferença para com a etimologia e a história do uso das palavras. E precisamos constantemente nos lembrar de que a sobrevivência da língua é responsabilidade de nossos poetas e críticos.

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As circunstâncias dc uma grande parte da vida de Byron foram bem esclarecidas, ao longo destes últimos anos, por Sir Harold Nicholson- 1 e pelo Sr. QuennelJ, 3 os quais forneceram também interpretações concordantes que tornam mais inteligíveis para as atuais gerações o caráter de Byron. Nenhuma interpretação semelhante, todavia, foi apresentada em nossa época sobre o verso de Byron. Dentro e fora das universidades, Wordsworth, Coleridge, Shelley e Kcats tem sido discutidos de vários pontos dc vista; Byron c Scott foram deixados dc lado. Mas Byron, pelo menos, nos daria a impressão dc ser provavelmente o menos simpático a todos os críticos contemporâneos. Seria interessante, portanto, se pudéssemos dispor de meia dúzia de ensaios sobre ele para sabermos qual o índice de concordância a que poderíamos chegar. Este ensaio constitui uma tentativa para que isso se torne possível. 1. Texto publicado em From Ann io Victoria. coletânea de ensaios editada por Bonamy D o b r é e , publicada por Cassei & Co.. em 1937 (N A ) 2. Nicholson. Sir Harold. Biografo e crítico literário inglês (Teerã, 1886 — 1961). Editor literário de vários jornais ingleses, escreveu biografias de lennyson. Verlaine e Byron. ( N . T . ) 3. Q u e n n e l l , Peter. Crítico c ensaísta ingles contemporâneo, autor de obras como Byron: the yean of fame (1935), Byron m Italy ( 1941 ) e Baudelaire ami the symbo listes (1929). ( N . T . )

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Há várias dificuldades iniciais. É problemático voltar a um poeta cuja poesia despertou — suponho que em muitos de nossos contemporâneos, exceto aqueles que eram m u i t o jovens para ter lido qualquer poesia desse período o primeiro entusiasmo da juventude. Ouvir histórias da infância de alguém contadas por um parente mais velho é geralmente tedioso; uma volta, muitos anos depois, à poesia de Byron, faz-se acompanhar de uma melancolia semelhante: as imagens retornam à mente misturadas à lembrança de alguns versos no estilo cie Don Juan, matizadas pela desilusão e pelo cinismo somente possíveis aos dezesseis anos, versos que poderiam estar publicados num jornal de colégio. Há obstáculos mais impessoais a superar. A massa da poesia de Byrgn é deprimente em relação à sua qualidade; alguém poderia supor que ele jamais destruiu nada do que escreveu. Todavia, essa massa é inevitável num poeta do tipo de Byron, e a ausência de um e l e m e n t o destruidor em seus poemas indica a espécie de interesse, e a espécie de falta de interesse, que ele teve em poesia. Nossa opinião é deque a poesia deve ser algo de muito concentrado, algo decantado, mas se Byron tivesse decantado seus versos, nada teria restado. Quando percebemos exatamente o que ele fazia, concluímos que o. fez da melhor maneira que poderia ter feito. No que se refere à maioria de seus poemas mais curtos, sentese que ele fazia algo que Tom Moore poderia fazer tão bem ou melhor; em seus poemas mais extensos, ele realizou algo que ninguém jamais conseguiu igualar. E às vezes desejável abordar a obra de um poeta inteiramente desacreditado através de uma via dc acesso pouco familiar. Sc a via de acesso que escolhi para chegar a Byron for uma estrada que só existe cm meu próprio espírito, serei corrigido por outros críticos: ela pode, de qualquer m o d o , frustrar os preconceitos c encorajar uma nova opinião a ser formada. Sugiro, por conseguinte, considerar Byron como um poeta escocês — eu disse escocês, e não de expressão escocesa, já que ele escreveu em inglês. O único poeta de sua época que se podia considerar capaz de rivalizar com ele, um poeta ao qual Byron se referia invariavelmente nos mais altos termos, era Sir Walter Scott. Sempre vi, ou imaginei ter visto, no busto dos dois poetas, uma certa semelhança no formato da cabeça. A compa-

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ração faz honra a Byron, mas sc vocês examinarem os dois rostos, não há mais nenhuma semelhança. Para qualquer um que gostasse dc ter bustos em sua casa, um busto de Scott seria algo com que se poderia conviver. Há um ar de nobreza que circunda essa cabeça, um ar de magnanimidade, uma espécie dc serenidade interior e talvez inconsciente que pertence àqueles grandes escritores que são também grandes homens Mas Byron - esse rosto intumescido que sugere uma tendência à corpulência, essa boca fraca e sensual, essa banalidade inquieta da expressão e, pior do que tudo, esse olhar vazio da consciência da beleza —, o busto de Byron é o de um homem que, sob todos os aspectos, era um trágico ambulante. Entretanto, por ser um ator a tal ponto consumado é que Byron chegou a uma espécie de conhecimento do mundo exterior do qual era preciso que aprendesse alguma coisa para nele desempenhar o seu papel, e um conhecimento dessa parte de si mesmo que era o seu papel. Conhecimento superficial, é claro, mas tão apurado quanto poderia sê-lo. Falarei de uma virtude escocesa da poesia de Byron quando chegarmos ao Don Juan. Mas há uma parte muito importante do composto byroniano que pode sem dúvida ser mencionada antes dc considerarmos sua poesia, para a qual suponho que sua ascendência escocesa forneceu a matéria. E seu singular diabolismo, seu prazer em posar como criatura condenada e em dar provas de sua danação de maneira quase sempre terrificante. Ora, o diabolismo de Byron é muito distinto daquele que a "agonia romântica", como a chama o Sr. Praz,·' produziu nos países católicos. E não julgo que seja fácil fazê-lo derivar do confortável compromisso entre o cristianismo e o paganismo a que se chegou na Inglaterra e que é caracteristicamente inglês. Ele só podia provir do contexto religioso de um povo embebido na teologia calvinista. O diabolismo byroniano, se na verdade merece esse nome, era de tipo compósito. Até certo ponto, cie compartilha da ati4· Praz, Mario. Crítico c ensaísta italiano (Roma. 1896), especialista do período romântico e de história da literatura inglesa. Escreveu sobre C h a u c e r . Donne c o teatro elisabetano. Suas obras principais são La carne, la morte e il diavolo noia letteratura romantica ( 1930), Stona della letteratura inglesa {1937) e The romantic agony (1947), o n d e analisa o erotismo byroniano. (N.T.)

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rude prometeica de Shell. - e da paixão romântica pela liberdade; e essa paixão, que inspirou seus mais românticos arroubos. se combinava à imagem de si mesmo como h o m e m de ação capaz de trazer à tona a aventura grega. E sua atitude prometeica se confunde com uma atitude satânica (miltoniana). A concepção romântica que Milton tinha de Satã e semiprometéica, além de contemplar o Orgulho como virtude. Seria difícil dizer se Byron era um h o m e m orgulhoso, ou um h o m e m que gostava de se fazer de orgulhoso — a possibilidade de as duas atitudes estarem combinadas na mesma pessoa não as torna nem um pouco diferentes no plano abstrato. Byron era sem dúvida um h o m e m vaidoso, de maneira absolutamente simples:

I can 7 complain. whose ancestors are there. Emets, Radulphus — eightand-forty manors (.If that my memory doth not greatly err) Were their reward for following Billy s banners. (...)s Seu sentido de danação estava também suavizado por um toque de irrealidade; para um h o m e m tão ocupado consigo mesmo e com a personagem que interpretava, nada q u e pertencesse ao mundo exterior podia ser inteiramente real. E impossível, portanto, fazer de seu diabolismo algo coerente ou racional. Parece que ele era capaz de atuar de duas maneiras,, e de se considerar ao mesmo tempo um indivíduo isolado e superior aos outros homens por causa de seus próprios crimes, e uma criatura naturalmente boa e generosa, corrompida por crimes cometidos contra si pelos outros. E essa criatura inconseqüente que se torna o Giaour, o Corsário, Lara, Manfredo e Caim; somente como Don Juan é que ele se avizinha de sua própria verdade. Mas nessa estranha composição de atitudes e crenças o elemento que parece mais real e profundo é o da perversão da fé calvinista dos ancestrais de sua mãe. Uma das razões para o esquecimento de Byron, creio eu, é que ele foi admirado por suas mais ambiciosas tentativas de 5. " N ã o posso me queixar, c u , cujos ancestrais lá quarenta e oito solares / (Se m i n h a memória não recompensa por ter seguido os estandartes de Billy liar de William ( G u i l h e r m e , o Leão), rei da Escócia

estão. / Erneis, R a d u l p h u s — me traísse tanto) / Eoram sua ( . . . ) . " Billy era o n o m e famientre 1165 e 1214. ( N . T . )

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ser poético, e tais tentativas, após as examinarmos, se tornam fraudulentas: são apenas afirmações de lugar-comum sem nenhuma profundidade de significação. Um bom exemplo dessa impostura é a conhecidíssima estrofe do final do Canto XV do

Don Juan: Between two worlds life hovers like a star, Twixt night and morn, upon the horizon's verge. How h t tie do we know that which we are I How less what we may be! lhe eternal surge Of time and tide rolls on, and bears afar Our bubbles; as the old burst, new emerge, Lashed from the foam of ages; while the graves Of empire heave but like some passing waves.G São versos indignos até mesmo de uma revista colegial. A verdadeira excelência de Byron situa-se em outro nível. As qualidades do verso narrativo que se encontra em Don Juan não são menos notáveis nos contos anteriores. Antes de me ocupar deste ensaio, confesso que desde os tempos de meu entusiasmo escolar jamais relera esses contos, e deles me reaproximei com certa apreensão. Eles são legíveis. Por mais absurda que seja a concepção de vida neles expressa, tais contos são, como contos, muito bem contados. Como contador de histórias, cumpre-nos, na verdade, ter Byron em alta conta; considero que n e n h u m outro além de Chaucer possui maior legibilidade, com exceção de Coleridge, a quem Byron usou mal e çóm quem muito aprendeu. E Coleridge jamais realizou uma narrativa dessa extensão. Os enredos de Byron, caso mereçam ser assim considerados, são extremamente simples. O que torna os contos interessantes é, em primeiro lugar, uma fluência torrencial do verso e uma habilidade para fazê-lo variar aqui e ali, a fim de evitar a monotonia; e, em segundo lugar, um gênio para o devaneio. A digressão, na verdade, é uma das artes mais eficazes 6. Entre dois m u n d o s a vida oscila, c o m o u m a estrela, / Entre a noite c a m a n h ã , nas bordas do horizonte. / Q u ã o pouco sabemos do q u e somos! / Menos ainda o que seremos! A vaga eterna / Do t e m p o e da morte rola sem cessar, e leva para longe / Nossas bolhas dc ar; e q u a n d o estouram as antigas, as novas se f o r m a m , ' Saídas da e s p u m a dos séculos, e n q u a n t o as t u m b a s / Dos impérios se levantam, nias c o m o vagas passageiras." ( N . T . )

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do contador de histórias. O efeito das digressões de Byron tem por objetivo nos manter interessados no próprio narrador, e, graças a esse interesse, interessar-nos ainda mais na história. Para os leitores de sua época, esse interesse deve ter sido muito forte do ponto de vista da magia encantatória, pois, ainda hoje em dia, se a ela nos submetermos a ponto de 1er um poema de cabo a rabo, o fascínio da personalidade de Byron é poderoso. Se citássemos alguns poucos versos, não importa, a rigor, diante de que platéia, eles provavelmente desencadeariam um acesso de momentânea hilaridade:

Her eye 's dark charm 'twere vain to tell. But gaze on that o) the Gazelle. It will assist thy fancy well; As large, as languis hingly dark. But Soul beam'd forth in every spark (...), mas o poema como um todo pode mobilizar a atenção de alguém. The Giaour* é um longo poema, mas seu enredo é muito simples, embora nem sempre fácil dc acompanhar. Um cristão, presumivelmente um grego, se e m p e n h o u , por alguns meios sobre os quais nada nos é dito, cm insinuar-se na intimidade de uma jovem que pertencia ao harém, ou q u e talvez fosse a esposa favorita de um muçulmano chamado Hassan. Na tentativa de escapar com seu amante cristão, Leila é recapturada c morta; no curso devido, o cristão, com alguns de seus amigos, embosca e mata Hassan. Descobrimos depois q u e a história dessa vingança — ou parte dela — é contada pelo próprio Giaour a um padre de meia-idade, sob a forma de confissão. E de uma espécie singular de confissão, pois o Giaour é tudo, menos penitente, e torna absolutamente claro que, embora seja ele pecador, não o é de fato por sua própria culpa. Ele parece antes impelido pelo mesmo motivo do Velho Marinheiro 9 do Seria inútil proclamar o encanto de seu olho negro, / Mas olha f i x a m e n t e a pupila da Gazela. / Ela virá socorrer a tua fantasia; / Ainda q u e tão vasta e tào languidamente sombria. / A Alma fulgura em cada centelha ( . . . ) . " ( N . T . ) 8. Publicado em 1813, o título completo desse p o e m a e The Giaour; a fragment of a Turkish tale. ( N . T . ) 9. Personagem central do poema de Coleridge, The ancient manner, q u e , corno castigo por um crime comeiido no mar (ele m a t o u um albatroz), e' vítima dc um desejo irrefreável de contar a sua história ( N . T . )

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que por qualquer desejo de· absolvição, que dificilmente lhe poderia ter sido concedida; mas o emprego do artifício acrescentava uma pequena complicação à história. C o m o já disse, não é absolutamente fácil descobrir o que aconteceu. O poema se inicia por uma longa apóstrofe à extinta glória da Grécia, tema a partir do qual Byron podia tecer variações com grande habilidade. O Giaour faz uma entrada dramática:

Who thundering comes on blackest steed\ With slackened bit and hoof of speed?10 E temos dele uma vaga aparição através de um olho muçulmano:

Though young and pale, that sallow front Is scathed by fiery p as s ton s brunt (...),11 que é o bastante para nos dizer que o Giaour é uma pessoa interessante, pois encarna, talvez, o próprio Lord Byron. Segue-se uma longa passagem sobre a desolação na casa de Hassan, habitada apenas pela aranha, o morcego, a coruja, o cachorro-domato e as ervas daninhas; deduzimos que o poeta omitiu a conclusão da história e que devemos esperar que o Giaour assassine Hassan, que é, obviamente, o que ocorre. N e m Joseph Conrad poderia ser mais perifrástico. Um embrulho cai então secretamente na água, e suspeitamos que seja o do corpo de Leila. Segue-se uma passagem reflexiva cm que o poeta medita, sucessivamente, sobre a Beleza, o Espírito e o Remorso. Leila volta de repente, viva, por um m o m e n t o , mas isso nada mais é do que outro deslocamento na ordem dos acontecimentos. Testemunhamos então a surpreendente chegada de Hassan e seu séquito — isso pode ter ocorrido meses ou mesmo anos após a morte de Leila — surpreendidos pelo Giaour e seus bandidos, e não resta dúvida de que Hassan será assassinado:

Fali'η Hassan lies — his unclosed eye Yet lowering on his enemy. (...) 12 10. " Q u e m chega com o clamor do trovão sobre o corcel mais negro, / O bridão afrouxado e os cascos apressados? ' ( N . T . ) 11. " E m b o r a pálida e jovem, essa f r o n t e amarelada / Está destruída pelos arroubos da fogosa paixão ( . . . ) . " ( N . T . ) 12. " H a s s a n cai ao solo - seus olhos a i n d a abertos / Eitam ameaçadores o inimigo ( . . . ) . · ' ( N . T . )

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Ocorre então uma deliciosa mudança de métrica, bem como uma súbita transição, justamente no instante em que esta se faz necessária:

The browsing camels' bells are tinkling; His mother look d from her lattice high — She saw the Jews of eve besprinkling The pasture green beneath her eye, She saw the planets faintly twinkling: 4 'Tis twilight sure his train is nigh. n Segue-se uma exéquia para Hassan, pronunciada evidentemente por outro muçulmano. E eis que o Giaour reaparece, nove anos depois, num mosteiro, c o m o ficamos sabendo por um dos monges que responde a uma pergunta sobre a identidade do visitante. N ã o se esclarece de que m o d o o Giaour se ligou ao mosteiro; os monges parecem tê-lo aceito sem reservas, e seu comportamento entre eles é m u i t o estranho, mas somos informados de que ele doou ao mosteiro uma vultosa soma em dinheiro pelo privilégio de permanecer ali. O p o e m a termina com a confissão do Giaour a um dos monges. Por q u e um grego daquela época teria ficado abatido pelo remorso (embora de todo impenitente) por assassinar um m u ç u l m a n o n u m combate que teria considerado leal, ou por que Leila teria sido culpada de abandonar um marido ou senhor a q u e supostamente estava unida sem seu consentimento, são perguntas a que não podemos responder. Considerei alguns detalhes do Giaour para provar a extraordinária engenhosidade de Byron como contista. Nada existe de direto no relato de uma história simples; nada do que gostaríamos de saber é contado, e o comportamento dos protagonistas é às vezes tão inexplicável que suas razões e sentimentos são confusos. Todavia, o autor não apenas dela se afasta, c o m o também dela se distancia enquanto nanativa. Trata-se do mesmo talento que Byron deveria ter utilizado melhor no Don Juan\ e a primeira razão pela qual Don Juan continua ainda legível é que o poema tem a mesma qualidade narrativa dos contos anteriores. 13. " O s camelos pastando fazem tilintar os guizos: / Sua m ã e olha do alto da janela Ela viu o orvalho da noite q u e umedecia / O verde pasto sob os seus olhos, / Viu os planetas q u e t i h i a m e n t e cintilavam: É o crepúsculo decerto o seu séquito está p r ó x i m o ' . " ( N . T . )

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Vale a pena observar, suponho, que Byron levou o conto em verso bem mais adiante do que Moore e Scott, se quisermos considerar sua popularidade como qualquer coisa mais densa do que o capricho do público ou o fascínio de uma personalidade habilmente explorada. Certamente, tais elementos contribuem para ela, mas, acima de tudo, os contos em verso de Byron representam um estágio mais amadurecido do que os de Moore. O Laila Rookh, desse último autor, é apenas uma seqüência de contos reunidos por um pesado relato em prosa das circunstâncias de sua narração, sem dúvida imitada de As mil e uma noites. Scott aperfeiçoou uma história em estilo direto com um tipo de enredo que ele utilizaria cm suas novelas. Byron c o m b i n o u o exotismo com a realidade, e desenvolveu mais efetivamente o emprego do suspense. Suponho também que a versificação de Byron é a mais hábil possível, mas essa espécie de verso precisa ser lida em toda a sua extensão se se* pretende formar uma impressão, e seu mérito relativo não pode ser revelado por meio de citações. Identificar cada passagem tomada ao acaso c o m o se fosse de Byron ou de Moore exigiria um conhecimento que está além da minha capacidade, mas s u p o n h o que q u e m quer que haja recentemente lido os contos de Byron concordaria que a seguinte passagem não pode ser de sua autoria:

And ohi to see the unbuned heaps On which the lonely moonlight sleeps — The very vultures turn away, And sicken at so foul a prey I Only the fierce hyaena stalks Throghout the city s desolate walks At midnight, and his carnage plies Woe to the half de ad wretch, who meets The glaring of those large blue eyes A mid the darkness of the streets!u 14. "E oh! ao ver os m o n t u r o s insepultos, / Sobre os quais o luoar d o r m e solitário / — Ate m e s m o os abutres se afastam / De presa tão m e d o n h a q u e os nauseia 1 / Somente a esquiva hiena p e r a m b u l a I Pelas ruas desoladas da cidade A meianoite, e se lança à carniça / — Infeliz do miserável semimorto, que vc / O olhar faiscante d a q u e l a s grandes pupilas azuis / No coração das trevas q u e povoam as ruas." (N.T.)

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Isso é de Lalla Rookh, e foi assinalado c o m o excepcional por algum leitor da Biblioteca de Londres. Childe Harold15 parece-me inferior a esse grupo de poemas (The Giaour, The bride of Abydos. The corsair, Lara etc.). De tempos em tempos, é verdade, Byron desperta um tíbio interesse graças a uma passagem brilhante, mas as passagens brilhantes de Byron jamais são suficientemente boas para torná-las o que delas se espera em Childe Harold:

dito pela arte instintiva graças à qual, num poema como Childe Harold, e ainda mais eficazmente cm Beppoig ou em Don Juan, ele evita a monotonia ao transitar com habilidade de um assunto para outro. Ele tinha a virtude maior de jamais ser enfadonho. Mas, ao admitirmos a existência de virtudes esquecidas, reconhecemos ainda uma falsidade na maioria daquelas passagens que foram anteriormente mais admiradas. A que se deve essa falsidade? Qualquer que seja, na poesia de Byron, o elemento 4 'impróprio", estaríamos enganados se o chamássemos de retórico. Muitas coisas têm sido grupadas sob essa designação, e se nos dispusermos a julgar o verso de Byron como retórico", estaremos então constrangidos a evitar o emprego desse adjetivo a propósito de Milton e de Dryden, a propósito daqueles em relação aos quais (e sob formas muito distintas) parece que estamos d i z e n d o algo que tenha sentido, quando aludimos a sua ''retòrica". Seus fracassos, quando eles fracassam, são de uma espécie mais comprometedora do que a dos êxitos de Byron, quando o b t é m êxito. Cada um deles tinha uma forma de se expressar acentuadamente pessoal, assim como um sentido da língua; na pior das hipóteses, eles tem um interesse pela palavra. Vocês p o d e m reconhecê-los graças a um único verso, e podem dizer: eis aqui uma maneira particular de usar a língua. Não há uma individualidade desse gênero no verso de Byron. Se avaliarmos alguns versos isolados da passagem sobre a batalha de Waterloo no Childe Harold, os quais poderiam passar por "citações familiares' \ não poderemos dizer que algum deles seja grande poesia:

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Stop! for thy tread is on an Empire s dust16 é justamente o que se deseja para reviver o interesse nesse ponto, mas a estrofe que se segue, sobre a batalha de Waterloo, parece-me absolutamente falsa, e é de todo representativa da falsidade em que Byron se refugia toda vez que tenta escrever poesia:

Stop! for thy tread is on an Empire's dust! An Earthquake 's spoil is sepulchred below! Is the spot mark d with no colossal bust? Nor column trop hie d for triumphal show? None; but the moral's truth tells simpler so, As the ground was before. so let it be; — How that red rain hath made the harvest grow! And is this all the world has gained by thee, Thou first and last of fields! king making victory ?r h muito mais difícil, numa epoca que perdeu m u i t o cedo a capacidade de apreciar as virtudes que p o d e m ser encontradas na poesia de Byron, analisar com acuidade seus vícios e defeitos. E por isso que não queremos conceder a Byron o cré15. O Childe Harold's pilgrimage é um longo p o e m a narrativo em catorze cantos, dos quais os dois primeiros foram publicados em 1812 e o ú l t i m o em 1818 O poema narra a peregrinação de um herói d e s e n c a n t a d o e suas aventuras amorosas pela península Ibérica, a Grécia e a Albânia. ( N . T . ) 16. "Pára 1 pois teu pé repousa sobre o pó de um i m p é r i o . " (N T . )

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And all went merry as a marriage bell (...) On with the dance! let joy be unconfined. (...) 19 Pode-se dizer de Byron, como de nenhum outro poeta inglês de sua estatura, que ele nada acrescentou à língua, nada descobriu

1 7 • Pára· pois teu pé repousa sobre o pó de um unpério! / As ruínas de um cataclisma estão sepultas lá embaixo! / O sítio está assinalado por um busto colossal> Ou por uma gloriosa coluna em sinal de triunfo? / N a d a ; mas a verdadeira moral

18. Beppo, a Venetian history. publicado em 1818, é um poema em oitava-rima, em tom ligeiro e cáustico, ern que o autor satiriza a sociedade veneziana da época. (N. 1 )

fala tao mais simplesmente. / C o m o antes era o solo, q u e assim p e r m a n e c e / Como a chuva vermelha faz crescer a colheita! / E eis t u d o o q u e o m u n d o recebeu de ti, / l u . a primeira e a última baralha! Vitória artífice de reis?" (N T . )

19. "E t u d o seguia alegremente, c o m o um carrilhão nupcial ( . . . ) / Continuai a dançar! Q u e a alegria não t e n h a fim ( . . . ) . " Alusão ao famoso baile de Bruxelas, d u r a n t e a noite q u e antecedeu a batalha de Waterloo. ( N . T . )

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quer nas sonoridades, quer no significado das palavras, se as considerarmos de per si. Não consigo pensar cm n e n h u m poeta dc sua distinção que pudesse ter sido tão facilmente um consumado estrangeiro que escrevia em inglês. A pessoa c o m u m fala inglês, mas somente algumas pessoas cm cada geração podem escrevê-lo; e dessa colaboração involuntária entre um grande número de pessoas que falam uma língua viva e algumas poucas que a escrevem é que d e p e n d e a continuidade e a sobrevivência dessa língua. Assim c o m o um artista q u e pode se exprimir magnificamente em inglês enquanto se dedita a sua obra ou se encontra num bar, e somente a duras penas é capaz de escrever uma carta numa língua morta que guarda certa semelhança com o artigo de fundo de um jornal, enfeitado com palavras como "redemoinho ou p a n d e m ò n i o \ assim t a m b é m Byron escreve uma língua morta ou agonizante. Essa insensibilidade de Bvron para com o vocábulo inglês — a tal ponto dc empregar um grande número de palavras antes que delas tomemos consciência indica, para propósitos práticos, uma sensibilidade precária. D i g o "para propósitos práticos" porque estou preocupado com a sensibilidade em sua poesia, e não com a sua vida privada, pois se um escritor não dispuser da língua em que expressa seus sentimentos, estes poderiam perfeitamente não existir. Não precisamos sequer comparar seu relato de Waterloo com o de Stendhal para sentirmos a falta de detalhes precisos, mas vale a pena assinalar q u e a sensibilidade de Stendhal, expressa em sua prosa, revela certos valores poéticos que Byron absolutamente não tem. Byron fez pela língua muito mais do que os redatores de artigos de f u n d o de nossos jornais fazem todos os dias. Julgo que esse malogro é muito mais importante do que a banalidade dc suas intermitentes divagações filosóficas. Todos os poetas exprimiram banalidades, todos disseram coisas que já haviam sido ditas. N ã o é a fragilidade das idéias, mas o domínio escolar da linguagem, que faz o seu verso nos parecer trivial, e seu pensamento, pouco profundo:

Mais que Hugo aussi était dans tout ce peuple.™ As palavras de Péguy não deixam de flutuar cm meu espírito q u a n d o penso em Byron: 20.

E que H u g o t a m b e m pertencia a toda essa g e n t e . " ( N . T . )

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Non pas vers qui chantent dans la mémoire, mais vers qui dans la mémoire sonnent et retentissent comme une fanfare, vibrants, trépidants, sonnant comme une fanfare, sonnant comme une charge, tambour éternel, et qui battra dans les mémoires françaises longtemps après que le réglementaires tambours auront cessé de battre au front des régiments \21 Mas Byron não pertencia "a essa g e n t e " , nem à de Londres, nem à da Inglaterra, mas à gente de sua mãe, e a mais excitante estrofe de sua Waterloo é a seguinte:

And wild and high the 'Cameron s gathering ' rose! lhe war note of Lo chie I which Albyn's hills Have heard, and heard, too, have her Saxon foes; — How in the noon of night that pibroch thrills, Savage and shrill! But with the breath which fills Their mountain-pipe, so fill the mountaineers With the fierce native daring which instils The stirring memory of a thousand years, And Evan s, Donald's fame rings in each clansman s ears!22 Tudo concorria para fazer de Don Juan2 " o maior dos poemas de Byron. A estrofe que ele tomou de empréstimo aos poetas italianos permitia-lhe valorizar admiravelmente seus méritos e dissimular suas deficiências, do mesmo m o d o que sc sentia mais à vontade sobre um cavalo ou na água do que sobre seus pés. Seu ouvido era precário e capaz apenas de efeitos grosseiros; e em sua estrofe de ritmo lento, com seus finales habitual21. " N ã o os versos q u e c a n t a m na m e m ó r i a , mas os versos q u e ecoam e r e t u m b a m na m e m ó r i a c o m o u m a fanfarra, vibrantes, trepidantes, ecoando como uma fantarra, e c o a n d o c o m o um disparo, t a m b o r eterno, c q u e pulsarão nas memórias francesas por longo t e m p o depois q u e os tambores regulamentares silenciarem à trente dos r e g i m e n t o s . " ( N . T . ) 22. " S e l v a g e m e altissonante, ergueu-se o grito das 'tropas dos Camarões'! / O grito de guerra de Lochiel. q u e as colinas de Albyn / O u v i r a m , e q u e ouviram tamb é m seus inimigos saxónicos; / C o m o no ápice da noite essa p í b r o q u e marcial reboa, / A g u d a e selvática! Mas o sopro q u e insufla / Sua cornamusa insufla de tal m o d o os m o n t a n h e s e s / C o m a bravia audácia nativa q u e instila / A excitante lembrança de mil anos, / E a glória de Evan e de Donald ecoa nos ouvidos de cada h o m e m d o c l ã ! " ( N . T . ) 23. O Don Juan é um p o e m a heróico-cómico q u e constitui u m a sátira brilhante e atrevida a maneira do século XVIII, talvez u m a auto-ironia, ou uma visão sarcástica do herói do Childe Harold. Byron começou a escrevê-lo em 1819 e terminou-o em 1824. ( N . T . )

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mente femininos e ocasionalmente t r i p l o s , e l c parece sempre nos advertir de que não está fazendo muito esforço e de que, não obstante, está produzindo algo de tão bom ou melhor do que os poetas solenes que consideram sua versificação mais seriamente. E, na verdade, Byron alcança o melhor de si quando não faz muito esforço para ser poético; quando tenta sê-lo em alguns versos, produz coisas como a estrofe que anteriormente citei e que começa assim:

cação deliberada, uma fabricação que só se completa com o texto dos últimos versos. A razão pela qual Byron compreendeu esse eu tão bem é ele que constitui sua própria invenção, e o poeta não compreendeu perfeitamente senão o eu que inventou. Sc não me engano, não se pode sentir piedade e horror senão diante do espetáculo dc um homem que consagra uma energia tão desmesurada e tanta pertinácia a um propósito inútil c insignii icantc; ao mesmo tempo, contudo, sentimos simpatia e humildade ao refletir que se trata dc um vício ao qual a maioria de nós se entrega de maneira indecisa e menos obstinada, o que vale dizer que Byron fazia da vocação aquilo que, para quase todos nós, constitui uma fraqueza momentânea, merecendo por isso uma certa admiração melancólica por seu êxito. Mas em Don Juan temos algo muito mais próximo de uma autêntica au to-revelação, pois Juan, apesar das fulgurantes virtudes que Byron lhe atribui — de modo que cie pudesse manter seu nível junto à aristocracia inglesa —, não é uma personagem heróica. Nada há de absurdo na sua presença de espírito c coragem durante o naufrágio, nem nas suas proezas nas guerras otomanas; ele exibe uma espécie de coragem física e uma capacidade de heroísmo que estamos absolutamente dispostos a atribuir ao próprio Byron. Mas nos relatos de suas relações com as mulheres, ele nada faz para parecer heróico ou mesmo digno, e temos a impressão de que tais relatos incluem tanto um ingrediente autêntico quanto uma dose de simulação.

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Between two worlds life hovers like a star. Mas numa escala de intensidade menor, ele alcança uma surpreendente gama dc efeitos. Seu gênio para a digressão, que o afasta de seu assunto (usualmente para falar de si mesmo) e de súbito o traz de volta a este, atinge no Don Juan o ápice de sua força. O sarcasmo e a zombaria contínuos, que sua estrofe e seu modelo italiano encarregam-se de manter constantemente em seu espírito, atuam como um admirável antídoto contra o estilo bombástico que tende, nos relatos anteriores, a embrulhar o estômago do leitor; e sua sátira social ajuda-o a permanecer objetivo, além de revelar uma sinceridade que, se não é profunda, parece pelo menos plausível. O retrato que cie pinta de si mesmo chega a ser bem mais honesto do que tudo o que nos é dado a ver em suas primeiras obras. Vale a pena examinálo em certos detalhes. Charles Du Bos, em seu admirável Byron et le besoin de la fatalité^ cita uma longa passagem de Lara1' em que Byron se auto-retrata. Du Bos mcrece pleno crédito por rcconhcccr sua importância, e Byron merece todo o crédito que Du Bo§ lhe dá por tê-la escrito. Essa passagem me surpreende também como uma obra-prima de auto-análise, mas de uma análise do eu que é, em boa parte, uma fabricação deliberada, uma fabri24. Trata-se de um verso cuja solução recai sobre u m a sílaba á t o n a . ( N . T . ) 25. Obra do crítico e ensaísta francês Charles Du Bos (Paris. 1882 — La Celle-Saint-Cloud, 1939), publicada em 1931. Ou Bos deixou ainda um m a g n í f i c o ensaio sobre G o e t h e (1949) e as sete séries das Approximations (1922-1937), além de um diário (1946-1954). de publicação p ó s t u m a . ( N . T . ) 26 C o m o The corsair, Ura (1814) é um p o e m a narrativo q u e tem c o m o cenário as ilhas gregas do Mediterrâneo e q u e descreve as aventuras de um herói melancólico e algo sinistro. ( N . T . )

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É notável — e isso confirma, creio eu, o ponto dc vista sobre Byron sustentado pelo Sr. Peter Quennell — que, nesses episódios amorosos, Juan desempenhe sempre o papel passivo. Até mesmo Haidee, a despeito da inocência e da ignorância dessa flor da natureza, parece antes a sedutora do que a seduzida. Esse episódio é o mais longo c o mais cuidadosamente elaborado dentre todas as passagens amorosas, c julgo que ele mereça ser bastante ressaltado. É verdade que, após a iniciação que Juan recebera anteriormente de Donna Julia, somente a custo nos tornaremos crédulos o bastante para acreditar na inocência que se lhe atribui com Haidee, mas isso não nos levaria a rejeitar a descrição como falsa. A inocência de Juan é apenas um substitutivo da passividade de Byron, e se a situarmos em

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seu devido lugar, poderemos reconhecer no relato alguma autêntica compreensão do coração humano e aceitar versos c o m o

Alasi They were so young, so beautiful. So lonely, loving. helpless, and the hour Was that in which the heart is always full. And having o'er itself no further power. Prompts deeds eternity cannot annul (...)2 O amante de Donna Julia e de Haidee é justamente aquele homem, percebe-se, que vira a ser em seguida o favorito de Catarina, a Grande — para cuja apresentação, suspeita-se, Byron se preparou ao longo de seus oito meses com a condessa de Oxford. 2 8 E aí permanece, se não a inocência, pelo menos aquela estranha passividade que curiosamente se assemelha à inocência. Entre a primeira e a segunda parte do p o e m a , entre as aventuras de Juan no exterior e suas estripulias na Inglaterra, há uma notável diferença. Na primeira parte, a sátira ê incidental; a ação é picaresca, e da melhor categoria. A criatividade de Byron jamais falha. O episódio do naufrágio, muitíssimo conhecido graças às citações, revela algo de absolutamente novo e bem-sucedido, ainda que o autor carregue um pouco nas tintas no ato de canibalismo com o qual a seqüência culmina. A última aventura extravagante ocorre i m e d i a t a m e n t e após a chegada de Juan à Inglaterra, q u a n d o é d e t i d o por bandidos na estrada para Londres; e aqui, mais uma vez, me parece que, na oração fúnebre do bandido morto, há algo de novo no verso inglês:

He from the world had cut off a great man, Who in his time had made heroic bustle. Who in a row like Tom could lead the van. Booze in the ken, or at the spellken hustle? " A i dc m i m ' l ies cram tào jovens, tão belos, / Tão solitários, amorosos, indefesos. e a hora / Era aquela em que o coração, sempre t r a n s b o r d a n t e , / E n ã o t e n d o mais n e n h u m controle sobre si, / C o m e t e atos q u e a e t e r n i d a d e não p o d e a n a t a r (...)." (N.T.) 28. Na verdade. Byron teve u m a breve ligação amorosa t o m a condessa de Oxíord em fins de 1812, época em q u e manteve t a m b é m relações tempestuosas com Lady Caroline Lamb. ( N . T . )

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Who queer a flat? Who (spite of Bow-street's ban) On the high toby-spice so flash the muzzle? Who on a lark. with black-eyed Sal (his blowing) So prime, so swell, so nutty, and so knowing?29 Isso é de primeira ordem. N ã o lembra nem um pouco Crabbe, sugerindo antes Burns. Os últimos quatro cantos são, se não estou redondamente enganado, os mais substanciosos do poema. Satirizar a humanidade requer em geral um talento mais cordial que o de Byron, tal como o de Rabelais, ou mais profundamente torturado, como o de Swift. Mas na última parte do Don Juan Byron revelase preocupado com um cenário inglês no qual nada restava de romântico para ele; o poeta estava interessado num campo restrito que conhecera muito bem, e uma cortante animosidade aguçava seus poderes de observação, facilitando-lhe assim o exercício da sátira. Sua capacidade de entendimento permanecia superficial, mas era precisa. E bastante possível que ele tenha compreendido algo que não foi capaz de levar a uma conclusão eficaz; possivelmente era-lhe necessária, para completar a história daquela reunião monstruosa, certa capacidade de rir, o que era avesso ao temperamento de Byron. Ele poderia ter julgado impossível lidar com aquela notável personagem de Aurora Raby, a mais consistente de sua galeria, dentro dos limites de uma sátira. T e n d o criado uma personagem demasiado séria, de um m o d o bastante real para o m u n d o que conhecia, poderia ele ter sido levado a reduzi-la às dimensões de uma dc suas heroínas românticas comuns. Mas Lord Henry e Lady Adeline Amundeville são pessoas exatamente do nível de Byron quando à sua capacidade de compreensão, e têm uma realidade pela qual seu autor talvez não haja recebido o devido crédito. O que coloca os últimos cantos do Don Juan no topo das obras de Byron é, creio eu, a circunstância de que a temática 29. " E l e privara o m u n d o dc um g r a n d e h o m e m . / Q u e , em sua época, promovera heróicas desordens. I Nos distúrbios, q u e m , melhor do q u e T o m . podia assumir o c o m a n d o . / Embriagar-se na taverna, ou bancar o t r o m b a d i n h a na multidão? / Ou e n g a n a r os otários? Q u e m (apesar da proibição do comissário) / Nos assaltos de estrada melhor acendia a pólvora? / Q u e m , n u m a pilantragem. com Sarah de olhos negros, sua a m a n t e , / Era tão maravilhoso, tão elegante, tão sedutor e tão a s t u t o ? " ( N . T . )

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lhe proporciona afinal um objeto adequado a uma autèntica emoção. A emoção é avessa à hipocrisia, e se ela fosse revigorada por sentimentos mais pessoais e mesquinhos, os sentimentos do homem que, quando criança, conhecera a humilhação de aposentos miseráveis em companhia de uma mãe excêntrica; que, quando tinha quinze anos, se revelara desajeitado, desgracioso e incapaz dc dançar com Mary Chaworth; que permanecera estranhamente alheio na sociedade que tão bem conhecia — essa mistura da origem de sua atitude para com a sociedade inglesa lhe daria apenas maior intensidade. E a hipocrisia do mundo que ele satirizou se situava no extremo oposto da sua. Na verdade, o termo "hipócrita' , exceto no sentido original da palavra, é duro demais para ser aplicado a Byron. Ele era um ator que consagrou imensos esforços para se adaptar ao papel que desempenhava; sua superficialidade foi algo que ele criou para si próprio. E difícil, ao considerarmos a poesia de Byron, não sermos atraídos pela análise do h o m e m que ele loi, mas muito mais atenção já se dedicou ao h o m e m do que ao poeta, e prefiro, dentro dos limites de um ensaio c o m o este, manter a poesia em primeiro plano. O caso é que a sátira byroniana à sociedade inglesa, na última parte do Don Juan, é algo com relação a que não consigo encontrar paralelo na literatura inglesa. Ele estava certo ao fazer do herói de sua reunião social um espanhol, pois o que Byron compreende e detesta na sociedade inglesa c muito mais do que um estrangeiro poderia compreender e detestar nessas mesmas circunstâncias. Não sc pode abandonar a leitura de Don Juan sem chamar a atenção para uma outra parte que enfatiza a diferença entre esse poema e qualquer outra sátira escrita em inglês: os versos da dedicatória. A dedicatória a Southcy me parcce uma das peças dc injúria mais hilariantes da língua:

Bob Sou they! You re a poet Poet laureate, And representative of all the race; Although 'tis true that you turn 'd out a Tory at Last, yours has lately been a common case; And now, my Epic Renegade! what are ye at?...™ 30. Bob Sou t hey 1 És um poeta Poeta Laureado, / E s í m b o l o de (oda a raça; / Embora seja verdade q u e te tornaste um Tory / Afinal, teu caso e d i g n o dos tempos q u e correm; I E agora, m e u epico renegado, o q u e t r a m a s ? " ( N . T . )

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sustentada sem remissão até o último verso da décima sétima estrofe. Essa não é a sátira de Dryden, e muito menos a dc Pope; está mais próxima talvez das de Hall 51 ou de Marston, 32 que são, aliás, impróprios para comparação. Na verdade, não se trata em absoluto da sátira inglesa; é antes um flyling, 33 mais próximo em sentimento e inienção da sátira de Dunbar: 5 4

Lene larbar, loungeour, baith lowsy in lisk and lonye; Fy! skoldent skyn, thow art both skyre and skrumple; For he that rostit Lawrance had thy grunye. And he that hid Sand John is ene with ane worn pie, And he that dang Sane t Augustine with ane rumple, Thy fowl/ front had\ and he that Bartilmo flaid; The gallo wis gaipis e ft it thy graceles grunt ill. As thow wald for ane haggeis, hungry gled.53 Esse paralelo pode parecer questionável a alguns, mas, quanto a m i m , ele me levou a gostar mais vivamente — e, suponho, a fazer uma apreciação mais justa — da poesia dc Byron do que antes. Não pretendo que Byron seja Villon (nem, por outras razões, que Dunbar ou Burns se igualem ao poeta francês), mas cheguei a encontrar nele certas qualidades, além de sua abundância, que são muito raras na poesia inglesa, bem como a ausência de alguns vícios que são bastante freqüentes.

31. Hall, J o s e p h (1608). ( N . T . )

Poeta inglês (1574-1656), autor de Characters of virtues and vices

32. Marston, John D r a m a t u r g o e poeta inglês (Coventry. Warwick, 1576 Londres. 1634). Alcançou g r a n d e p o p u l a r i d a d e com o p o e m a licencioso The métamor-

phosa of Pygmalion '» image and certain satyres (1598). Deixou as peças The Dutch courtezan (1605),

The malcontent e Sophomshe (1606).

(N.T.)

33. Flyting. invectiva poética dos poetas escoceses do século XVI. ( N . T . ) 34. D u n b a r , William Poeta inglês (East Lothian, c. 1465 ? c. 1530). Sua obra. exemplo do gótico flamboyant, está cheia de melancolia e humorismo, como o ates-

tam The dance of the seven deidly synnts (1503-1508) e In honour of the city of London. (N.T.) 35. " S u j e i t o ético, m a n d r i ã o p i o l h e n t o na ilharga e na perna, / Fora! magro escalpelado, b o r b u l h e n t o e e n c a r q u i l h a d o ; / Aquele q u e pós Lourenço na grelha tinha tua cabeça d e c e p a d a , / Ε o q u e escondeu São J o ã o sob um escapelário, / Ε o que feriu Santo Agostinho a golpes de açoite. / Tinha tua goela ignóbil, e o escalpelador de São Bartolomeu; / A forca boquiaberta aguarda teu focinho horrendo / E te quereria para seu p i c a d i n h o , ó milhafre a f a m a d o . Estes versos pertencem a um p o e m a de D u n b a r . " L i f e at œ u r t " . e x e m p l o típico do fly ting escocês. ( N . T . )

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H até mesmo seus vícios parecem virtudes gêmeas que intimamente os recordam. Com seu charlatanismo, ele revela também uma franqueza invulgar; com sua pose, mostra-se igualmente um poete contumace num país solene; com sua impostura e sua automistificação, exibe também uma honestidade descuidada e canalha; ele é, ao m e s m o t e m p o , um aristocrata vulgar e um bêbado respeitável; com seu falso diabolismo e sua vaidade pretensamente dissoluta, é autenticamente supersticioso e devasso. Refiro-me às qualidades e aos defeitos visíveis em sua obra, os quais são importantes para julgá-la, e não a sua vida privada, que não me interessa.

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Sobre o consolo da lareira de meu escritório encontra-se há uns quinze anos ou mais, entre os retratos de meus amigos escritores, o fac-símile de um desenho de Goethe já na velhice. O retrato irradia vitalidade — obra, percebe-se, não apenas de um desenhista bem-dotado, mas de um artista inspirado por seu m o d e l o . 2 Goethe aparece com as mãos juntas por detrás das costas; os ombros estão arqueados e a figura se inclina para a frente, mas o corpo, embora possa estar alquebrado por enfermidades, continua obviamente sob o controle de. um espírito vigoroso. Os olhos são amplos e luminosos, e a expressão, travessa, a um tempo benévola e mefistofélica: estamos na presença de uni h o m e m que combina a vitalidade da juventude com a sabedoria da velhice. Houve um m o m e n t o , há alguns anos, em que o desenho foi bruscamente deslocado junto com seus pares, mas, como se poderia esperar de Goethe, esse desenho — sereno, alerta e crítico — sobreviveu e ignorou os incidentes daqueles tempos tumultuados.

I. Conferencia p r o n u n c i a d a na Universidade de H a m b u r g o , por ocasião da entrega do Premio G o e t h e da Liga Hanseáttca de 1954, em m a i o de 1955. (N A.) 2 Fui i n f o r m a d o de q u e o artista era Maclise, e n t ã o um jovem em visita a Weimar. ( Ν . A . )

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Esse é ο Goethe da época das conversações com Eckermann. 3 Ε o Goethe sábio, e como o que tenho a dizer aqui poderia ser quase considerado uma Apologia cm Louvor da Sabedoria, o desenho constituiria um frontispício adequado ao meu texto. Se se empregar a palavra "sábio" com todo o cuidado c escrúpulo que ela requer, ter-se-á então em mente uma das mais raras conquistas do espírito humano. A inspiração poética não é em absoluto muito c o m u m , mas o verdadeiro sábio é mais raro do que o verdadeiro poeta, c q u a n d o essas duas virtudes, a da sabedoria e a da linguagem poética, existem numa só pessoa. então voccs estão diante do grande poeta. São poetas dessa espécie que pertencem não apenas ao seu próprio povo, mas também ao mundo; são apenas poetas dessa espécie que se podem considerar, não essencialmente c o m o limitados por sua própria língua e por sua pátria, mas c o m o grandes europeus. Em primeiro lugar, perguntei-me se ainda havia algo a dizer sobre Goethe que já não tivesse sido dito melhor. Todavia, quando me vi na contingência de escolher um assunto c esboçar a maneira de abordá-lo, senti-me surpreso diante do excesso de possibilidades, dos incontáveis aspectos de G o e t h e e dos inúmeros contextos em que ele podia ser examinado. Ao cabo, eu podia reduzir meus assuntos a dois, mas, após essa reflexão, me dei conta de que ambos estavam tão intimamente associados que não constituíam senão um único problema a ser tratado como um todo. A primeira pergunta era a seguinte: em que consistem as características c o m u n s daquele número seleto de autores, dos quais Goethe é um e x e m p l o , q u e são grandes europeus? E a segunda era esta: em q u e se resume o processo pelo qual alguém chega a se reconciliar c o m esses grandes autores em relação aos quais, em nossa juventude, não sentíamos senão indiferença, ou que nos eram antipáticos — não apenas porque isso ocorre, mas porque convém q u e ocorra, e não apenas o processo, mas a necessidade moral do processo? Ao longo deste ensaio considerarei alternadamente esses dois 3. São os anos d u r a m e os quais G o e t h e conversava d i a r i a m e n t e sobre todos os assuntos possíveis com seu secretário J o h a n n Peter E c k e r m a n n ( 1 7 9 1 - 1 8 5 4 ) , q u e publicou em 1837 sua s notas sob o título de Gespräche mit Goethe, obra em q u e o poeta revela seu interesse pelas novas tendências literárias c seu ideal de u m a c o m u n i d a d e literária de todas as nações. ( N . T . )

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problemas, e espero que o leitor possa vir a concordar em que o subtítulo que cu tinha cm mente — uma Apologia em Louvor da Sabedoria — não era inteiramente gratuito. No desenvolvimento do gosto e do julgamento crítico em literatura — uma parte ou um aspecto do processo global que leva à maturidade há, segundo minha própria experiência, três importantes etapas. Durante a adolescência fui tomado de entusiasmo por um autor após outro, por qualquer um que atendesse às instintivas exigências dc meu estágio de desenvolvimento. Nesse estágio entusiástico, a faculdade crítica está semidesperta, pois não há nenhuma comparação de um autor com outro, n e n h u m a consciência da base sobre a qual repousa o relacionamento entre o leitor e o autor em cuja obra ele está absorto. N ã o apenas pouco se leva em conta a escala de valores, como também é falsa a apreciação da grandeza desse ou daquele autor, pois se trata de um padrão inacessível ao espírito ainda imaturo; nesse estágio existem apenas os escritores pelos quais somos tomados de assalto e aqueles que nos deixam indiferentes. Na medida em que alguém amplia sua leitura, e começa a conhecer uma variedade cada vez maior dc grandes autores em prosa e em verso, adquirindo ao mesmo tempo uma experiência maior do m u n d o e das mais poderosas forças da reflexão, o gosto se torna mais apurado, as paixões arrefecem e a compreensão se aprofunda. Nesse estágio começamos a desenvolver aquela capacidade crítica e aquele poder de autocrítica sem os quais o poeta nada fará senão repetir-se pelo resto da vida. Todavia, embora possamos desfrutar do prazer nesse estágio, assim como compreender e apreciar uma variedade indefinida de gênios artísticos e filosóficos, continuarão a existir certos autores de alto nível que insistiremos obstinadamente em considerar antipáticos. Assim, o tercciro estágio de desenvolvimento de maturação, na medida em que esse processo pode ser representado pela história de nossas leituras e estudos — é aquele cm que começamos a investigar as razões pelas quais não conseguimos gostar daquilo que outros leitores, ou talvez muitas gerações de leitores, julgaram delicioso, e que estavam tão ou mais bem qualificados do que nós para fazer um julgamento. Ao tentarmos compreender por que não conseguimos apreciar corretamente determinado autor, procuramos deitar

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alguma luz não apenas sobre esse autor, mas t a m b é m sobre nós mesmos. O estudo de autores de cuja obra não conseguimos gostar pode constituir assim um valiosíssimo exercício, conquanto essa prática se inclua entre aquelas às quais o b o m senso impõe limites, pois ninguém dispõe de t e m p o para estudar a obra de todos os grandes autores cuja leitura não oferece prazer algum. O processo de averiguação não é um esforço para apreciar aquilo de que não se consegue gostar; é um esforço para compreender essa obra, e para que possamos nos compreender em relação a ela. O prazer virá, se vier, s o m e n t e c o m o conseqüência da compreensão. Há óbvias razões, no meu próprio caso, para certas dificuldades em compreender Goethe. Para qualquer um c o m o eu, que combina uma forma de espírito católica, uma herança calvinista e um temperamento puritano. G o e t h e implica na verdade alguns obstáculos a serem superados. Mas minha experiência me ensina que o reconhecimento dos obstáculos — c esse reconhecimento requer antes um auto-exame do q u e um exame do autor —, ainda que eles não sejam abolidos, pode diminuirlhes a importância. As diferenças que não são examinadas jamais emergem da obscuridade do preconceito: q u a n t o melhor compreendermos as razões pelas quais não conseguimos apreciar um autor, mais próximos estaremos de vir a apreciá-lo, pois compreensão e simpatia estão intimamente associadas. Sem jamais haver negado o gênio de G o e t h e , sem ter permanecido insensível àquela parte de sua poesia mais facilmente assimilável para um estrangeiro, eu havia, receio-o, sido irritado por ele. Com o tempo, vim a compreender que minha discordância em relação a Goethe — afora alguns traços pessoais cuja importância parece agora ter diminuído — era primordialmente uma discordância em relação a sua época, pois eu havia chegado, com o correr dos anos, a me sentir distante dos maiores poetas ingleses do século XIX, tanto os do m o v i m e n t o romântico quanto os do período vitoriano. Gosto ainda de determinados poemas, mas, à exceção de Coleridge — e de Coleridge mais como filósofo, teólogo e pensador social do que c o m o poeta —, venho perdendo contato com os autores dessa época; Tennyson, Browning, Arnold, Meredith — a filosofia de vida desses autores chega a me parecer inconsistente, e seus f u n d a m e n t o s reli-

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giosos, indignos de confiança. Mas tive a experiência de haver convivido com essa poesia cm minha juventude, e isso me ficou na memória. Durante algum tempo tais poetas me emocionaram bastante: eu sentia, e ainda sinto, que aprendi com eles o que podia aprender e o que eles foram capazes de me ensinar. Com G o e t h e a questão é outra. No que se refere aos poetas a que acabo de aludir, cu poderia imaginá-los como poetas de maior envergadura se tivessem sustentado uma concepção de vida diferente. Mas com Goethe, por outro lado, parece-me correto c necessário que haja tido as idéias que teve, e se comportado da maneira c o m o o fez. E a antipatia superada, quando se trata da antipatia para com uma figura tão grande quanto a de G o e t h e , equivale a uma importante libertação das limitações de nosso próprio espírito. Poderá parecer uma frivolidade egoistica dedicar tanto t e m p o às mudanças de minha própria atitude em relação a Goethe. Faço-o por duas razões. Primeiro, porque as poucas referências esparsas a Goethe em meus ensaios críticos anteriores são, em sua maioria, eivadas de má vontade e de caráter denegritório, de m o d o que, para justificar minha presente atitude e evitar qualquer suspeita de leviandade, preciso levar em conta a evolução de m e u espírito. Segundo, porque julgo que a situação pode ser generalizada de m o d o a se tornar útil. Eu disse que, na medida em que meu próprio desenvolvimento é típico, a educação recebida começa, na adolescência, a ser arrebatada, invadida, desfigurada por um escritor após outro (refiro-me, é claro, à formação recebida em poesia). Posteriormente, adquirimos um conhecimento e um prazer que derivam da leitura de uma infinidade de obras; somos influenciados por espíritos de natureza cada vez mais diferente; tornamo-nos mais senhores de nós mesmos; o julgamento crítico se desenvolve; tornamo-nos mais conscientes daquilo que hizemos e daquilo que ocorre cm nossas explorações das obras-primas do pensamento e da imaginação. Passada a meia-idade, duas mudanças adicionais me ocorreram. De um lado, minhas preferências literárias diminuíram, e sinto-me inclinado a voltar cada vez mais freqüentemente à obra de um número cada vez menor de poetas; de outro, chego à conclusão de que entre eles podem existir alguns autores que jamais conheci de fato, no sentido

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de sermos íntimos de algum escritor ou de com ele nos sentirmos à vontade, e com os quais devo acertar contas antes de morrer. Há alguns anos comecei a pensar que devia finalmente fazer um esforço para me reconciliar com Goethe: não primordialmente para reparar uma injustiça cometida, pois já se cometeram muitas injustiças literárias sem que ninguém sentisse remorso, mas porque devo ter de algum m o d o negligenciado alguma ocasião dc me aperfeiçoar, que seria um pecado negligenciar. Experimentar esse sentimento já constitui um importante reconhecimento: é, com toda a certeza, o reconhecimento de que Goethe é um dos grandes europeus. O leitor perceberá agora, espero, que essas duas questões a da reconciliação e a da definição do grande europeu — se encontram tão intimamente associadas em meu espírito que eu não podia considerar uma sem tocar na outra. Parece-mc que a abordagem mais idónea a essa definição é tomar alguns autores cujo direito a esse título é universalmente admitido, c considerar o que eles tem em c o m u m . Antes de mais nada, entretanto, estabelecerei os limites dentro dos quais farei minha seleção. Em primeiro lugar, limitar-mc-ei aos poetas, pois a poesia é o setor em que estou melhor qualificado para apreciar a grandeza de um autor. Em segundo lugar, excluirei todos os poetas gregos e latinos. Minhas razões para isso estão indicadas pelo título que Theodor Haecker deu a seu ensaio sobre Virgílio: Vergil% Vater des Abendlandes ( Virgílio, pai do Ocidente).4 Os grandes poetas da Grécia e de Roma, bem como os profetas de Israel, são os ancestrais da Europa, mais que dos europeus, no sentido medieval e moderno. É por causa de nosso substrato comum, nas literaturas da Grécia, de Roma c de Israel, que podemos falar de uma "literatura européia", e a sobrevivência da literatura européia, posso dizer de passagem, depende de nossa contínua veneração aos nossos ancestrais. Nessa qualidade, estão eles excluídos dc minha presente investigação. Há também poetas modernos, cuja influência tem sido muito importante cm países e idiomas que não são os nossos, que não atendem às exigências dc meu propósito.

Byron é um poeta que foi o poeta de uma Época e, durante essa Epoca, o poeta de toda a Europa. Hm Edgar Poe, a América produziu um poeta que, sobretudo por sua influência sobre três poetas franceses de três gerações consecutivas, pode ser considerado europeu, mas o correto lugar e a categoria desses dois homens ainda são, e talvez sejam para sempre, matéria de controvérsia. E desejo restringir-me àqueles cujas qualificações são incontestadas. Para começar, quais são nossos critérios? Dois, seguramente, são a Permanência e a Universalidade. O poeta europeu deve não apenas ser aquele que mantém uma certa posição na história: sua obra deve continuar a proporcionar prazer c proveito às gerações que se sucedem. Sua influência não constitui apenas um assunto dc registro histórico; ele continuará a ser valioso para qualquer época, e cada época o compreenderá de maneira diferente, e será obrigada a avaliar novamente sua obra. E ele deve ser tão importante para os leitores de sua raça e dc sua língua quanto para os outros: os de sua raça e de sua língua sentirão que ele faz parte integral de seu grupo, c que é, na verdade, seu representante no estrangeiro. Para os leitores dc diferentes países c de diferentes épocas, ele pode significar coisas muito distintas, mas nenhuma nação ou geração questionará sua importância. A história de tudo o que foi escrito sobre a obra de um h o m e m como esse fará parte da história do espírito europeu.

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4. Ver nota 8 ao ensaio "Virgílio e o m u n d o c r i s t à o " . nesta c o l e t â n e a

(N.T.)

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Obviamente, não se podem elaborar duas listas, uma de grandes poetas que são grandes europeus, e outra constituída por aqueles que não conseguiram adquirir os direitos a essa distinção. Tudo o que podemos fazer, creio cu, é estarmos de acordo no que se refere a um número mínimo, considerarmos quais as características comuns que eles apresentam e nos empenharmos para nos aproximar de uma definição, através da qual procederemos à avaliação de outros poetas. Não creio que possa haver qualquer dúvida com relação a três deles: Dante, Shakespeare c Goethe. Aqui devo introduzir uma palavra de cautela. Tenho dúvidas se deveríamos chamar um poeta de "grande europeu" a menos que seja também um grande poeta,.mas julgo que temos de admitir que há grandes poetas que não são grandes euro-

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peu s. Na verdade, suspeito que quando chamamos qualquer homem de letras de grande europeu, ultrapassamos os limites do julgamento estritamente literário, fazendo ao m e s m o tempo uma avaliação histórica, social e ética. Comparem Goethe com um poeta inglês contemporâneo algo mais jovem: William Wordsworth. Wordsworth foi seguramente um grande poeta, se o termo chega a ter algum sentido; no melhor do que produziu. seu vôo é bem mais alto que o de Byron, bem c o m o o de Goethe. Além disso, sua influência foi decisiva para os rumos da poesia inglesa em determinado momento: seu nome marca uma época. Todavia, ele jamais significou para seus próprios conterrâneos o que Goethe significa para os dele. Analogamente — mas aqui falo com a desconfiança que convém —, pareceme possível sustentar que Hölderin foi, em certos momentos, mais inspirado do que Goethe; entretanto, t a m b é m ele não pode jamais ser colocado no m e s m o nível de uma figura européia. Não me proponho abordar as possíveis explicações das diferenças entre as duas espécies de poetas; desejo apenas, nesse contexto, lembrar-lhes que se D a n t e , Shakespeare ou Goethe são incontestavelmente h o m e n s europeus, não é apenas porque são os maiores poetas de suas respectivas línguas. Eles não seriam grandes europeus se não fossem grandes poetas, mas sua grandeza como europeus é algo mais complexo, mais abrangente, do que sua superioridade sobre outros poetas de sua própria língua.

e o drama de Fausto são apenas partes da estrutura montada por Shakespeare e por Goethe, partes que ficariam muito reduzidas se constituíssem a única obra dc seu autor. O que confere a Shakespeare e a Goethe suas respectivas condições não é uma única obra-prima, mas a obra total de toda uma existência. E, por outro lado, Cervantes é, para aqueles dentre nós que não são versados em literatura espanhola, o autor de um único livro; embora seja um grande livro, isso não basta para colocar Cervantes em pé de igualdade com Dante, Shakespeare e Goethe. Dom Quixote figura, inquestionavelmente, entre aqueles livros seletos que atendem às exigências do teste da "literatura européia", isto é, livros sem cujo conhecimento — no sentido em que não foram apenas lidos, mas assimilados —, nenhum homem da raça européia pode ser realmente educado. Mas não podemos dizer que seja necessário para o europeu educado conhecer Cervantes, no sentido em que podemos dizer que o europeu educado deve conhecer Dante, Shakespeare e Goethe. Como autor de um único livro, Cervantes está para nós inteiramente nesse livro; ele é, por assim dizer, Dom Quixote compre endendo-se a si próprio. Que parte da obra de Dante, de Shakespeare ou de Goethe podemos destacar e dela dizer que nos fornecc o essencial de Dante, de Shakespeare ou de Goethe? Dizer simplesmente que não podemos conhecer Cervantes tanto quanto podemos conhecer aqueles três outros autores não diminui o escritor espanhol. E não estou aqui cometendo o erro de separá-los de seus textos e transformá-los em ídolos, ainda que, especialmente no caso de Goethe, agora que dispomos de tantos documentos sobre o h o m e m que ele foi, assim como do imenso corpo dc sua obra, seja perigosamente fácil fazê-lo. Falo desses homens tal como eles existem em seus textos, nos três mundos que criaram de modo a perdurar para sempre como parte da experiência européia.

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Há também a tentação — no caso de Shakespeare c dc Goethe, mas não no de Dante —, de pensar nas duas grandes personagens míticas quê eles criaram: Hamlet e Fausto. Ora, Hamlet e Fausto tornaram-se símbolos europeus. Eles têm isso em comum com Ulisses e D o m Quixote, que são típicos de seus países, e todavia compatriotas de cada um de nós. Q u e m poderia ser mais grego do que Ulisses, ou mais espanhol do que Dom Quixote, ou mais inglês do que Hamlet, ou mais alemão do que Fausto? Todavia, passaram eles a compor o mosaico em que estamos todos representados c ajudaram — como é função dessas personagens — a explicar o h o m e m europeu para si mesmo. De modo que podemos ser tentados a classificar Shakespeare e Goethe como europeus, simplesmente porque criaram um herói mítico europeu. No entanto, a peça de Hamlet

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Em primeiro lugar, cu diria, como algo que me parece imediatamente óbvio, que na obra desses três autores encontramos três características comuns: Abundância, Amplitude c Unidade. Abundância: todos escreveram copiosamente, c nada do que escreveram é desprezível. Por amplitude quero dizer que cada um deles tinha uma vastíssima gama de interesse, de simpatia e de compreensão. Há uma variedade de interesses, uma

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curiosidade universal e uma capacidade mais abrangente do que a da maioria dos mortais. Alguns autores têm revelado talento versátil, outros uma curiosidade sempre insatisfeita, mas o que caracteriza a variedade de interesses e a curiosidade de artistas como Dante, Shakespeare e G o e t h e é a U n i d a d e fundamental. N ã o é fácil definir essa unidade, a m e n o s q u e digamos que aquilo que cada um deles nos proporciona é a própria Vida, o Mundo visto de um ângulo particular de uma determinada época européia e de um d e t e r m i n a d o h o m e m dessa época.

sobre mineralogia e sobre cores — não passavam de excentricidades deleitáveis de um h o m e m de curiosidade insaciável que deambulava por regiões para o acesso às quais não se encontrava aparelhado. Ainda hoje não me sinto propenso a 1er o que ele escreveu sobre tais assuntos. E que, de saída, a unanimidade quanto ao ridículo e a facilidade com que as pessoas versadas nesses assuntos pareciam rejeitar os conceitos de Goethe me induziram a perguntar se G o e t h e não poderia estar certo ou, pelo menos, se seus críticos não poderiam estar enganados. Somente há alguns anos é que me debrucei sobre um livro em que os conceitos de G o e t h e eram de lato defendidos: Man or matter, do Dr. Ernst Lehrs. E verdade que o Dr. Lehrs é um dos discípulos de Rudolph Steiner, e creio que a ciência dc Steiner não seja considerada muito ortodoxa; mas isso não é da m i n h a conta. O q u e o Dr. Lehrs fez foi sugerir-me que os conceitos científicos de G o e t h e se ajustavam de algum m o d o à sua obra de imaginação, que a mesma intuição se esforçava por manifestar-se em ambas as expressões e que não seria razoável rejeitar, c o m o afirmação absurda no campo da pesquisa científica, o q u e aceitamos c o m o inspirada sabedoria na poesia. Voltarei a essa questão daqui a pouco em outro contexto, mas, sob o risco de me expor ao ridículo, direi que, em virtude do que o Dr. Lehrs escreveu sobre a ciência de G o e t h e , julgo entender trechos do Fausto, c o m o o da cena de abertura da Parte II, melhor do que antes; e acredito agora que a Parte II é melhor do q u e a Parte I, ao contrário do que sempre me disseram pessoas mais instruídas que cu.

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Não creio que seja preciso me alongar sobre a diversidade dos interesses e atividades de D a n t e e de G o e t h e . Shakespeare, é verdade, confinou-se, ou está c o n f i n a d o , pelas circunstâncias, ao meio de expressão do teatro, mas, q u a n d o consideramos o imenso espectro de temas e personagens dentro dessa estrutura, a enorme variedade e o d e s e n v o l v i m e n t o de sua técnica, sua contínua abordagem a novos problemas, d e v e m o s reconhecer pelo menos que, nessa amplitude e abundância, Shakespeare se situa à parte até m e s m o daqueles poucos escritores de teatro que, como dramaturgos e poetas, são seus iguais. Q u a n t o à Unidade, julgo que os objetivos de u n i d a d e política, teológica, moral e poética de Dante são d e m a s i a d o evidentes para exigir demonstração. Eu afirmaria, c o m base em m i n h a própria experiência, que a unidade da obra de Shakespeare é tal q u e não se pode compreender as últimas peças a não ser q u e se conheçam as primeiras, e não se pode entender as primeiras sem se conhecer as últimas. N ã o é fácil detectar a unidade na obra de Goethe. Em primeiro lugar, ela é mais s u r p r e e n d e n t e m e n t e heterogênea do que a obra dos dois outros; além disso, devo confessar que há muito dessa vasta obra q u e não c o n h e ç o , ou conheço apenas superficialmente, de m o d o q u e estou longe de ser o advogado mais qualificado para a defesa do caso. Portanto direi apenas que acredito sinceramente q u e q u a n t o mais vier a conhecer sua obra — cada v o l u m e da mais volumosa edição — , mais convicto estarei de sua u n i d a d e . O teste é este: será que cada parte da obra de um escritor nos ajuda a compreender o resto? Arriscarei afirmar essa crença no m o m e n t o em que ela estiver mais próxima de ser questionada. Durante a maior parte de minha vida e m p e n h e i - m e em assegurar q u e as teorias científicas de Goethe — suas especulações sobre taxionomia botânica.

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É pelo m e n o s certo que devemos, no esforço para compreender autores c o m o esses três a que me referi, tentar penetrar em t u d o aquilo que lhes despertou interesse. A crítica literária é uma atividade que deve constantemente definir suas próprias fronteiras; deve t a m b e m constantemente ultrapassá-las: a única regra imutável é q u e , q u a n d o a crítica literária transgride esses Steiner. R u d o l p h . Filósofo e místico austríaco (Kraljevič, 1861 Dörnach, perto de Basiléia. Suíça, 1925). Interessou-se de início pelos textos científicos de G o e t h e , q u e reeditou. Desenvolveu q u a l i d a d e s de percepção extra-sensonal que o levaram à teosofia. D e n t r e suas obras, avultam Geheimwhsenchaft im Umnss

(Esboço da ciência oculta. 1913) e Wie erlangt man Erkenntnisse der höheren Welten (Como alcançar o conhecimento dos mundos superiores, 1920). (N. I.)

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limites, deveria fazê-lo com plena consciência do que está fazendo. Não podemos ir muito além no caso de D a n t e , ou de Shakespeare, ou de Goethe, sem tocar na teologia, na filosofia, na ética e na política; e no caso de G o e t h e sem penetrar, de uma maneira clandestina e sem 'cartas dc crédito", nos territórios interditos da ciência. Meus argumentos, ou minha defesa, foram até aqui estritamente negativos. Afirmei apenas que na obra de D a n t e , de Shakespeare e de Goethe vocês encontram Abundância, Amplitude c Unidade. Abundância e A m p l i t u d e comprovadamente, e Unidade se vocês se derem o esforço de procurá-la. Após postular que Dante, Shakespeare e Goethe foram três grandes europeus, parece óbvio que essas características devam ser encontradas juntas em qualquer outro autor antes q u e possamos atribuir-lhe a mesma condição. £ viável, c o n t u d o , q u e um autor possa nos oferecer Abundância, A m p l i t u d e e Unidade sem, no entanto, conseguir tornar-se um grande europeu. J u l g o que haja um outro elemento positivo a ser considerado. Mas antes de abordar o problema final, há outro termo a ser discutido:

Universalidade. J anto quando podemos julgar a partir de nossos três autores exemplares, o escritor europeu não é m e n o s enfaticamente um homem de seu próprio*país, de sua raça e de sua língua do que qualquer daqueles autores de segunda ordem q u e , com raras exceções, só sensibilizam seus próprios compatriotas. Podese até dizer que Dante, Shakespeare e G o e t h e não são apenas muito italiano, inglês e alemão, mas q u e cada um deles é também representativo da região particular em que nasceu. É óbvio, naturalmente, que o sentido em que eles são regionais não constitui uma limitação a seu fascínio, embora haja neles muitos elementos que só podem sensibilizar seus conterrâneos. Eles são regionais devido a sua concretudc: ser h u m a n o significa pertencer a uma determinada região da Terra, e h o m e n s de gênio como esses são mais conscientes do que outros seres humanos. O europeu que não pertencesse a n e n h u m país seria um h o m e m abstrato — um rosto vazio que falaria todas as línguas sem sotaque de sua terra ou sem acento estrangeiro. Ε o poeta é o último dos homens abstratos, pois é o que mais se encontra ligado a sua língua: ele não pode sequer se permitir conhecer uma lín-

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gua tão bem quanto a sua, pois, para o poeta, explorar todos os recursos de sua própria língua constitui o trabalho de uma vida inteira. A maneira pela qual ele está ligado às pessoas dc seu país, o m o d o como delas depende, e como desempenha o papel dc representar seu próprio povo, não devem ser, acrescentaria eu, identificados como patriotismo (que é uma resposta particular a circunstâncias particulares), embora seja esta uma espécie de ligação da qual pode nascer o mais nobre dos patriotismos. E uma espécie de ligação que pode até mesmo estar em agudo conflito com o sentimento patriótico dc muitos compatriotas do poeta. Logo, o poeta europeu não é necessariamente um poeta cuja obra seja mais fácil de traduzir em outra língua do que a dos poetas cuja obra só tenha significação para seus compatriotas. Sua obra é mais traduzível apenas neste sentido: o dc que sempre que se traduz um poeta como Shakespeare para outra língua, perde-se exatamente tanto de sua significação quanto se perde ao se traduzir um poeta inglês de menor envergadura, embora no caso de Shakespeare se preserve algo mais, pois há mais substância a ser preservada. O que pode ser traduzido? Uma história, uma intriga dramática, as impressões de uma personagem viva em cena, uma imagem, uma proposição. O que não pode ser traduzido é a magia encantatória, a música das palavras e aquela parte do significado que está na música verbal. Mas aqui, ainda uma vez, não atingimos o cerne da questão; estávamos apenas tentando indicar o que torna um poeta traduzível, sem explicar a razão pela qual se pode dizer que Dante, Shakespeare e Goethe pertencem, como não podemos afirmar com a mesma segurança de quaisquer outros poetas, não apenas a seus compatriotas, mas a todos os europeus. Creio que podemos aceitar sem muita dificuldade o aparente paradoxo de que o poeta europeu é, ao mesmo tempo, não menos, mas dc maneira mais positiva, um homem de sua raça particular, de seu país e de sua cultura local, do que o poeta que só pode ser apreciado por seus compatriotas. Podemos a um só e mesmo tempo perceber que esse poeta, não importa a que país pertença, é nosso compatriota, e todavia é também um representante, entre os maiores, de seu próprio povo. Esse h o m e m pode ajudar seus compatriotas a se entende-

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rem entre si, e ajudar outro povo a compreendê-lo e aceitá-lo. Mas a questão relativa à maneira pela qual ele é representativo de sua própria epoca é algo mais difícil. Dc que maneira alguém é representativo de sua época, e todavia de permanente importância — não por causa de seu caráter representativo", mas apenas em si mesmo —, para todas as épocas subseqüentes? Como deduziríamos do q u e ficou exposto, do mesmo modo que um h o m e m pode ser um grande poeta, sem ser um poeta "europeu bem c o m o pode ser representativo dc seu povo e despertar interesse em outros povos justamente por essa capacidade, assim também um h o m e m p o d e ser representativo de sua própria época e tornar-se importante para outras épocas apenas no sentido em q u e ajuda a compreender a sua propria. Mas, como tentei dizer anteriormente, estamos interessados em Dante, Shakespeare e G o e t h e não apenas cm relação aos seus respectivos país, língua e raça. mas fora do tempo e de m o d o direto. N e n h u m europeu educado, qualquer que seja sua língua, sua cidadania, sua ascendência e a época em que nasceu, deve furtar-se à pergunta: 4 Ό q u e têm Dante, Shakespeare e Goethe a me dizer diretamente — e c o m o irei responder a eles? . É essa confrontação direta q u e tem importância fundamental. Ora, se tomarmos a palavra no sentido literal, o h o m e m realmente representativo de um período, como h o m e m representativo de uma nação, é um h o m e m que não é nem muito grande nem m u i t o p e q u e n o . N ã o quero dizer que seja l'homme moyen sensuel: Mas um h o m e m insignificante só poderia representar um período insignificante — e nenhum período da história é desprezível a esse p o n t o , ao passo que o caráter excepcional de um h o m e m verdadeiramente grande deve nos fazer suspeitar que ele não é totalmente "representativo". Julgo que, se pudéssemos considerar nossos três poetas como inteiramente representativos de sua época, concluiríamos que cada um deles estaria limitado por ela dc uma maneira como eles não estão. Em suma, consideramos tais homens como representativos apenas para descobrir que eles não o são; porque um h o m e m pode não ser representativo não apenas por estar aquém ou além dc sua época, mas por estar

acima dela. Certamente, não devemos admitir que esses homens compartilhem todas as idéias de sua época. Eles compartilham os problemas, compartilham a língua em que os problemas são discutidos, mas podem repudiar todas as soluções corrcntes. E mesmo q u a n d o levam uma vida social ou pública, experimentam também uma solidão maior do que a da maioria dos homens. Seu caráter representativo, caso sejam eles representativos, deve ser algo que percebemos, mas que não podemos formular inteiramente. Há muita coisa que não sabemos sobre o homem que Dante foi, e pouquíssimo é o que conhecemos de Shakespeare. Mas sabemos bastante sobre a vida dc Goethe. Confesso não ser daqueles que a conhecem muito bem. Mas quanto mais aprendo sobre G o e t h e , a partir de sua própria obra e de comentários sobre ela, menos considero possível identificá-lo com sua época. Julgo-o às vezes em completa oposição a ela, tão completa talvez que tivesse sido imensamente incompreendido. Ele me parece ter vivido mais plena e conscientemcnte em vários níveis do que a maioria dos outros homens. O conselheiro particular, a celebridade de uma pequena corte, o colecionador de estampas, desenhos e gravuras, foi também o homem que não conseguia dormir de angústia em Weimar, porque ocorrera um terremoto em Messina. Após 1er o livro do Dr. Lehrs, ao qual já aludi, e e m seguida reler certas passagens do Fausto, ocorreu-me que para Wordsworth e Goethe a natureza' significava quase a mesma coisa, ou seja, significava algo que eles haviam experimentado — e que eu não experimentei — e que estavam ambos tentando exprimir alguma coisa que, mesmo para h o m e n s tão excepcionalmente dotados com o dom da linguagem, era em definitivo inefável. Não faz muito tempo, recebi um cartão-postal com a reprodução de um retrato de William Blake: era um desenho bastante conhecido, com o qual eu estava absolutamente familiarizado. Mas por acaso o deixei por um instante sobre o consolo da lareira, ao lado da gravura de G o e t h e , e julgo ter observado uma expressão semelhante em seus olhos. Só que Blake tinha o olhar de quem pertencia a outro m u n d o , enquanto Goethe dava a impressão, no m o m e n t o cm que o artista o retratou, de estar à vontade em ambos os mundos. Blake também repudiava parte das opiniões

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6.

"O homem mediano sensual." (N.T.)

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dominantes em sua época. Entendam vocês que não posso me

desligar da Farbenlehre e da Ur-Pflanze.

Trata-se apenas da

questão de saber q u e m estava certo: G o e t h e ou os cientistas? Ou seria possível que G o e t h e estivesse e n g a n a d o apenas ao julgar que os cientistas se enganaram, e os cientistas enganados somente ao julgar que G o e t h e se enganara? N ã o seria possível que Goethe, sem saber inteiramente o que estava fazendo, devesse proclamar os direitos de um tipo distinto de consciência daquele que havia d o m i n a d o os séculos XIX e X X ? Se assim for, então Goethe era tão pouco representativo de sua Época quanto pode sê-lo um h o m e m de gênio. E talvez haja chegado a hora em que possamos dizer q u e não seria absurdo ver o universo como Goethe o viu. e não c o m o o viram os cientistas, agora que o traje vivo de Deus' já se encontra um pouco rasgado devido à ação das manipulações científicas. Certamente, Goethe foi um h o m e m de sua época. É difícil para nós ignorar ou tratar c o m o acidental o fato de que Dante, Shakespeare e Goethe tenham chegado a representar cada um deles um período da história moderna européia, na medida em que um poeta pode desempenhar esse papel, e devemos nos lembrar das próprias palavras de G o e t h e sobre o h o m e m e o momento. Mas devemos também nos lembrar, entre outras coisas, de que tendemos a julgar uma época nos termos do h o m e m que dela consideramos representativo, esquecendo-nos de que uma parte igual da significação desse h o m e m possa constituir a luta que ele travou contra a sua época. Tentei simplesmente introduzir certas reservas cautelosas em nosso e m p r e g o do termo representativo", perigoso quando aplicado a tais homens. O homem que é representativo" de seu povo pode ser o crítico mais severo desse mesmo povo e ser por ele repudiado; o homem que é "representativo de sua época pode estar em oposição às verdades mais amplamente aceitas dessa época. Preocupei-me até agora, antes de mais nada, em reconhecer certas qualidades à falta das quais não p o d e m o s admitir que um poeta faça parte desse grupo seleto, para definir em seguida em que sentido a "representatividade", seja de um lugar ou de uma língua, seja de uma época, pode ser conside7. Respectivamente, "Teoria das cores" e " P l a n t a o r i g i n a l " . ( N . T . )

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rada característica. Mas nos cabe ainda perguntar: qual é a qualidade que sobrevive à tradução, que transcende o lugar e o tempo, e é capaz de suscitar uma resposta direta de h o m e m para h o m e m , em leitores de qualquer lugar e de qualquer época? E preciso também que alguma coisa possa estar presente em distintos graus, pois obviamente Dante, Shakespeare e Goethe não são os únicos poetas "europeus". Mas é preciso que algo possa ser reconhecido por uma grande diversidade de homens, pois o teste para um poeta desse tipo, como eu disse no princípio, é que n e n h u m europeu que seja inteiramente ignorante de sua obra possa ser definido como educado — quer a língua do poeta seja a sua, quer tenha ele aprendido essa língua depois de árduos estudos, quer ainda seja ele capaz de 1er apenas uma tradução. Pois se é verdade que o total desconhecimento da língua limita agudamente nossa apreciação desse poeta, isso não serve de desculpa para que ignoremos por completo sua obra. Receio que a palavra que estou prestes a pronunciar venha a surpreender muitos ouvidos como um anticlimax a esse exórdio, pois se trata simplesmente da palavra Sabedoria. Todavia, não há nenhuma palavra mais difícil de definir, e nenhuma mais difícil de compreender. Compreender o que seja a Sabedoria é ser o próprio sábio, e não atingi senão o grau de compreensão da Sabedoria que pode ser alcançado por um homem que sabe que não é um sábio, embora tenha razões para crer que seja màis sábio do que há vinte anos. Digo vinte anos atrás porque me encontro na angustiante situação de citar uma frase que escrevi em 1933. Ei-la: " D e G o e t h e , talvez, seja mais verdadeiro dizer que chapinhou tanto na filosofia quanto na poesia, não obtendo muito êxito nem em uma nem em outra; seu verdadeiro papel foi o de um h o m e m do m u n d o e de um sábio, como um La Rochefoucauld, um La Bruyère, um Vauvenargues". Jamais reli a passagem em que essa frase jaz sepulta: sempre considerei uma tarefa extremamente incómoda reler meus textos em prosa. Descobri essa citação não faz muito tempo na introdução do Sr. Michael Hamburger à sua edição e tradução dos poemas de Hölderlin. O Sr. Hamburger é minha autoridade para me atribuir essa frase. Ele a citou, cumpre dizê-Io, com desaprovação. É uma frase interessante — interessante por-

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que enuncia muitos equívocos em pouquíssimas palavras juntamente com uma verdade: a de que G o e t h e era um sábio. Mas o equívoco para o qual desejo chamar a atenção é a identificação da sabedoria com a sabedoria temporal. Dizer que a sabedoria de um " h o m e m do m u n d o é, a rigor, uma sabedoria muito limitada não diminui minha admiração por La Rochefoucauld, mas agora, pelo menos, não posso de maneira alguma confundir as duas sabedorias. Há a sabedoria temporal e a sabedoria espiritual. Aquela primeira pode tornar-se afinal uma forma de loucura se ignorar, ou pretender julgar, aquilo que está alem de sua compreensão, enquanto a sabedoria espiritual pode não dar nenhuma ajuda aos problemas deste mundo. Assim, considero que, quando dizemos que um h o m e m e um "sábio' e que o contexto não indica senão que se trata antes de uma espécie de sabedoria do que de outra, o que pretendemos é dizer que esse h o m e m possui uma sabedoria cujo alcance é superior à de outro. E é isso o que nos cabe dizer de Goethe. E possível que haja domínios da sabedoria aos quais ele não teve acesso, mas estou mais interessado em tentar compreender a sabedoria que ele possuía do que em definir suas limitações. Quando um homem é consideravelmente mais sábio do que lhe compete, não tem por que se queixar de que não seja mais sábio do que é. Cabe assinalar um outro equívoco na frase que citei contra mim mesmo, além do que acabo de denunciar. Ela parece sugerir que a sabedoria seja algo que se expressa cm provérbios, aforismas e máximas sábios, e que a soma desses adágios c máximas, incluindo os que alguém pensou mas nunca transmitiu, configure a sua sabedoria". Tudo isso, é claro, pode ser considerado como indícios de sabedoria. Mas a sabedoria é maior do que qualquer soma de provérbios sábios, e a Sabedoria ela mesma é maior do que a realização da sabedoria em qualquer alma humana. A Sabedoria se louva a si própria, hla se glorifica em meio ao seu povo, Na assembléia do Mais Alto ela abre a boca, E triunfa diante de Seu poder. Eclesiastes, xxiii.

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A sabedoria de um ser humano reside tanto no silêncio quanto na palavra; c, diz Filóteo do Sinai, "os homens de espírito silencioso são muito raros". 8 A sabedoria é um dom que provém da intuição, que amadurece e é exercido pela experiência para compreender a natureza das coisas, certamente das coisas vivas, e mais certamente ainda do coração humano. Em certos homens, ela pode aparecer de maneira indecisa e ocasional, ou apenas uma vez em toda a existência, no êxtase de uma única experiência, seja beatífica, seja terrível: em um homem como Goethe, ela parece ter sido constante, sólida e serena. Mas o h o m e m sábio, contrariamente àquele que é de um lado simplesmente um sábio temporal, e de outro um homem que tem certa visão intensa das culminâncias e das profundezas, é aquele cuja sabedoria aflora de fontes espirituais, que aproveitou sua experiência para chegar à compreensão e que adquiriu a caridade que vem da compreensão dos seres humanos em toda a sua variedade de temperamento, de caráter e dc circunstância. Tais homens se agarram às mais diversas crenças e podem até sustentar certos princípios que consideramos odiosos, mas isso faz parte de nossa própria busca da sabedoria, no afã de compreendê-la. Creio, portanto, que é afinal em virtude da sabedoria que informa sua obra que um autor passa a pcrtenccr à categoria de "grande europeu"; é também graças à sabedoria que ele se torna um compatriota comum de todos nós. Ele não é necessariamente fácil de compreender e, como já disse, pode apresentar tantas dificuldades dc interpretação quanto qualquer outro. Mas o estrangeiro que leu Dante, Shakespeare ou Goethe cm tradução, ou que foi prejudicado pela falta dc um conhecimento perfeito da língua ao 1er o original, não deve perguntar, como poderia fazê-lo em relação a muitos de nossos grandes poetas, "o que admiram os italianos, ou os ingleses, ou os alemães, nesse autor?" Longe de mim a idéia de que a sabedoria desses poetas seja algo distinto da poesia c de que o estrangeiro desfrute daquela cm detrimento desta. A sabedoria é um cle8. É importarne citar um ensaio de Joseph Pieper: Über das Schweigen Goethes (Kösel-Verlag, M u n i q u e ) . ( Ν . Α . )

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mento essencial à poesia, e é preciso apreendê-la enquanto poesia para que dela se possa usufruir enquanto sabedoria. O leitor estrangeiro, ao assimilar a sabedoria, é t a m b é m envolvido pela poesia, pois é a sabedoria da poesia que não seria de modo algum transmitida caso não fosse vivenciada pelo leitor enquanto poesia. Aqui se coloca uma pergunta que não pode ficar sem resposta, em parte porque fui eu que a coloquei, sob forma um pouco distinta, há muitos anos, e porque minha resposta não me satisfez; e em parte porque ela foi recentemente colocada por um crítico de filosofia por cujas opiniões tenho grande apreço, o professor Erich Heller, de Cardiff. Refiro-me a um i} livro de publicação recente, The disinherited mind\ particularmente ao capítulo dedicado a Rilke e a Nietzsche. O professor Heller critica, severamente mas sem aspereza, certas afirmações que fiz há alguns anos e m Thought und belief in poetry. Eu não sustentaria agora certas coisas que disse naquela ocasião, e estaria algo inclinado a expô-las de m o d o diferente; mas no que toca a outras afirmações que fiz na época, as críticas do professor Heller não me deixam abatido, tanto mais que, como admite o mesmo Dr. Heller, compartilho tais equívocos com o próprio Goethe. A questão se refere ao lugar das "idéias" na poesia, e à 'filosofia ou o sistema de crenças sustentados pelo poeta. O poeta defende uma 'idéia da mesma maneira como o faz um filósofo?, e quando exprime uma determinada "filosofia' em sua poesia, dever-se-ia esperar que ele acreditasse nessa filosofia, ou que pudesse legitimamente tratá-la apenas como matéria adequada a um poema? E, ademais, a aceitação dessa mesma filosofia por parte do leitor seria condição necessária a sua plena apreciação do poema? Ora, na medida cm que aquilo que escrevi anteriormente sobre o assunto diga ou sugira que o poeta não precisa acreditar numa idéia filosófica que escolhe para dar corpo cm seu verso, o professor Heller, sem dúvida, está no absoluto direito de me contradizer, já que uma sugestão dessa índole poderia parecer uma justificativa de leviandade, e anularia todos os valo9 Publicado por Bowes & Bowes, C a m b r i d g e . U m a edição alemã foi publicada sob o titulo de Enterbter Geist (Suhrkamp-Verlag). ( Ν . A . )

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res poéticos, exceto os dc realização técnica. Sugerir que Lucrécio decidiu deliberadamente explorar com propósitos poéticos uma cosmologia que julgava falsa, ou que Dante não acreditava na filosofia extraída a Aristóteles e aos escolásticos, que lhe fornecem a matéria para os mais belos cantos do Purgatorio, seria condenar os poemas que eles escreveram. Mas julgo que o professor Heller simplifica demais o problema ao generalizar o caso particular que examino: nesse ensaio, ele se preocupa em mostrar que Rilke não apenas foi profundamente influenciado por Nietzsche em sua juventude, mas também que a concepção de vida que revela a maioria dos poemas maduros daquele autor constitui uma espécie de equivalente poético da filosofia nietzschiana. E estou absolutamente disposto a admitir que, no caso da relação de Rilke com Nietzsche, o Dr. Heller defende uma excelente causa. Explorar o problema da crença poética versus crença filosófica, e a natureza da atitude (seja da crença, seja da Annahme) do poeta em relação a um sistema filosófico, não só nos levaria muito longe, como também nos afastaria consideravelmente do assunto de que agora me ocupo, pois o objetivo de nossa pesquisa é a questão da crença que se pode exigir do leitor de um poema. O Dr. Heller parece-me inferir que o próprio leitor deva aceitar a filosofia do poeta, se gosta de sua poesia. Aparentemente, é nesse contexto que o Dr. Heller censura o julgamento de um crítico brilhante, Hans Egon Holthusen, sobre Rilke. "Sc as idéias [de Rilke] fossem todas um embuste", diz o Dr. Heller, "ou se, como Herr Holthusen diz em sua obra sobre Rilke, 10 elas estivessem todas equivocadas, no sentido de contradizer aquela 'lógica intuitiva' que nos ensina

Rilke, d e Η . E (Studies ,n modern 10.

H o l t h u s e n . Bowes & Bowes. C a m b r i d g e , e' uma excelente serie European literature and thought), editada pelo próprio Dr. Heller. O D r . Heller não cita, mas o seguinte parágrafo do ensaio de Herr Holthusen deve estar na raiz dc seu comentário: . " U m a vez abstraída a vivacidade concreta de sua linguagem metafórica, seu contexto estético, e consideradas como d o u t r i n a filosófica, as idéias' de Rilke são falsas. E essa afirmação é válida se admitirmos que haja um critério objetivamente Válido de distinção entre idéias 'corretas' e falsas', que haja u m a espec.e de logica intuitiva que controle grupos de idéias em seu acordo com a existência do h o m e m , q u e . em s u m a . exista um equilíbrio intelectual capaz de nos permitir distinguir as idéias corretas das idéias falsas. A idéia de ' m i n h a própria morte c falsa porque

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o que são uma imagem verdadeira e uma imagem falsa do homem, então a poesia teria pouca chance dc ser o que ele julga que cia seja: a grande p o e s i a / ' O Dr Heller chega a dizer: 4 4 Não há poesia se percebermos que as 'idéias' são falsas a ponto de constituírem uma distorção da verdadeira imagem do h o m e m " . Parece que somos levados a essa estranha conclusão: a de que Herr Holthusen e vítima de uma ilusão quando imagina que gosta da poesia dc Rilke, pois para ele não pode restar aí nenhuma poesia. H, por outro lado, o próprio Dr. Heller é levado a aceitar uma situação intolerável: a de uma "fenda que tornou impossível para a maioria dos cristãos não sentir, ou pelo menos não sentir também como verdadeiras, muitas verdades que são incompatíveis com a verdade de sua f é " . Q u e não apena s parecem incompatíveis, prestem atenção, mas que o são' Todavia, se percebermos a verdade das "verdades incompatíveis", o sentimento da verdade não se tornará inteiramente ilusório? Considerome de acordo com Herr Holthusen; e, na verdade, se ele estiver enganado c o Dr. Heller certo, então não poderei gostar da poesia de Rilke senão como um mal-entendido. O que pretendo, por um atalho, é estabelecer a distinção entre a filosofia de um poeta e sua sabedoria. A menos que não seja possível estabelecer essa distinção, estarei condenado a permanecer cego aos méritos dc alguns dos maiores poetas. Mas, em primeiro lugar, devo me arriscar a uma teoria da relação entre a aceitação da filosofia e o prazer do poema. O melhor, suponho, é ter em mente não a filosofia de um poeta — pois ela pode variar com seu desenvolvimento —, mas a filosofia daquilo que pode ser considerado um poema filo-

si morte não pode ser conquistada por rneio de um s e n t i m e n t o monistico; a m o r t e deve permanecer sempre inteiramente distinta de nós, c o n s t i t u i n d o u m a conquisi j por meio daquilo q u e nos é estranho, u m a invasão da realidade h u m a n a por uma realidade que é s o b r e - h u m a n a . A idéia do amor q u e abdica da Posse e falsa, assim como falsas são as idéias de u m a glorificação do m u n d o , da criação sem um criador. da imanência sem transcendência, da m e t a m o r f o s e de todas as realidades transcendentais de um iminente ' t u d o - e - u m ' , da dissolução de D e u s na interioridade, da dissolução de Sua pessoa na mais intensa e m o ç ã o , da d e f i n i ç ã o do Divino em termos de sentimento a rigor, rodo o vocabulário do 'indizível' e do 'invisível I odas essas idéias são tão falsas q u a n t o as teses proféticas de Nietzsche a doutrina do Eterno Retorno, do S u p e r - H o m e m - ou o satanismo' de Baudelaire (N A )

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SÓ fico. Há três óbvios exemplos: o Bhagavad-Gítã, De rerum naturae (Da natureza das coisas),12 de Lucrécio, e a Divina comédia, de Dante. E o terceiro deles tem uma singular vantagem para os nossos propósitos pelo fato de estar baseado numa doutrina teológica que pertence ao mundo ocidental e que ainda hoje é aceita por um grande numero dc pessoas. Esses três poemas representam outras tantas conccpções do mundo com discordâncias tão agudas quanto possíveis entre cada uma delas. Deixando de lado as outras diferenças específicas — as de que o Bhagavad Gitã está muito mais próximo de mim no tempo do que Lucrécio —, estaria eu obrigado a admitir que, como cristão, posso compreender melhor o poema de Dante do que os outros, embora estivesse na obrigação de poder compreendê10 ainda melhor se fosse um católico romano? Parece-me que o que faço, quando abordo um grande poema como o Canto sagrado da epopéia hindu, ou o poema dc Lucrécio, não é apenas, como diz Coleridge, "suspender minha incredulidade", mas também colocar-me na posição de um crente. Mas esse é apenas um dos dois movimentos dc minha atividade crítica; o segundo tem por objetivo desligar-mc novamente e olhar o poema do lado de fora da crença. Se o poema estiver distante de minhas próprias crenças, então o esforço de que mais estou consciente é o do desligamento. Com a Divina comédia encontro uma espécie dc equilíbrio; é de preferência com os trechos poéticos da Bíblia, com os profetas e com a maioria de todos os Evangelhos que descubro o esforço do desligamento — isto é, o esforço para apreciar "a Bíblia como literatura" — e nas traduções de nossa Versão Autorizada 1 ' e de Martinho Lutero 11 O Bhagavad Gitã (O canto do bem aventurado) é um poema mistico-filosofico de edificação religiosa q u e faz parte do sexto livro do Mahâbharjta, no qual se fund e m d o u t r i n a s pertencentes .i sistemas diversos, como o panteísmo do Vedanta e o d u a l i s m o filosófico do Sankhya. Escrito em forma de diálogo, contém os conselhos de Krishna, encarnação de Vishnu, a Arjuna Sào visíveis os traços desse poema no terceiro m o v i m e n t o do terceiro quarteto, The Dry Salvages. dos Four quartets, de Eliot. ( N . T . ) 12. Esse p o e m a de Titus Lucretius Caro (Roma, c. 94 a.C. - id. c. a . C . ) está dividido em seis cantos, ao longo dos quais o autor rejeita as teorias de Heráclito, Empédocles e Anaxágoras e exalta as de Demócrito e Epicuro. O poema tenta explicar os f e n ó m e n o s da natureza de maneira científica, e x p o n d o teorias ate hoje nem sempre a n t i q u a d a s . ( N . T . ) 13. Trata-se da versão de 1611, levada a termo por um g r u p o de sábios por ordem de J a i m e I. ( N . T . )

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a Bíblia faz parte de nossas duas literaturas —, e aí o esforço de desligamento é mais difícil. C o m as Elegias de Duino^ admito, encontro-me no extremo oposto: eu poderia contentarme com o prazer da beleza verbal, e m o c i o n a r - m e com a música do verso; e acabo por realizar um esforço para tentar penetrar num pensamento q u e , para m i m , e tão difícil q u a n t o adverso. Vocês observarão q u e nessa sístole e diástole, nesse movimento que vai e vem, de aproximação e de recuo, de identificação e de distinção, evitei c u i d a d o s a m e n t e recorrer aos termos forma e conteúdo. A noção de apreciação da forma sem conteúdo, ou do c o n t e ú d o sem forma, é u m a ilusão; se ignorarmos o conteúdo de um p o e m a , não conseguiremos apreciar a forma; se ignorarmos a forma, não captaremos o c o n t e ú d o , pois o significado de um p o e m a reside nas palavras do p o e m a e apenas nessas palavras. Ε o q u e acabo de dizer não esgota o conteúdo. Em t u d o o q u e eu disse não nos revelamos preocupados com todo o conteúdo, mas apenas com o c o n t e ú d o e n q u a n t o sistema filosófico, e n q u a n t o idéias" q u e p o d e m ser formuladas em outras palavras, e n q u a n t o um sistema de idéias em relação ao qual existe sempre a alternativa de um sistema possível que a razão poderia aceitar. Esse sistema filosófico deve ser convincente: um poema que emergisse de u m a religião q u e nos desse a impressão de ser inteiramente vil, ou de u m a filosofia que nos parecesse um completo a b s u r d o , s i m p l e s m e n t e não poderia ser de m o d o algum encarado c o m o um p o e m a . Pelo contrário, se dois leitores de mesma inteligência e sensibilidade começassem a 1er um grande p o e m a , um q u e acreditasse na filosofia do autor e outro q u e simpatizasse com u m a filosofia algo diferente, ambos convergiriam para um p o n t o q u e jamais poderiam alcançar, no qual as duas apreciações se equivalessem. Assim, é concebível que o professor Heller e Herr H o l t h u s e n pudessem quase chegar ao p o n t o de compartilhar sua estima por Rilke. Não me lancei a essa análise g r a t u i t a m e n t e , mas sim para chegar à conclusão de que há algo mais na poesia de grande 14. Em al . Duineser Elegien. É um c o n j u n t o dc dez elegias, publicadas em 1923. do poeta austríaco Rainer Mana Rilke (Praga, 1875 Val Mont, perto de Montreux. 1926). 1 rata-se de poesia hermética, em q u e o autor exprime u m a filosofia espiritualista e fantástica bastante original, mas obviamente influenciada por Nietzsche. ( N T )

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qualidade do q u e " i d é i a s " de uma espécie que devemos aceitar ou rejeitar, expressas n u m a forma que faz do conjunto uma obra de arte. Q u e r aceitemos ou não a " f i l o s o f i a " ou a fé religiosa de D a n t e , de Shakespeare ou de Goethe (e, na verdade, a questão de saber quais eram as crenças de Shakespeare jamais foi definitivamente esclarecida), há a Sabedoria que todos podemos aceitar. E precisamente por amor a essa Sabedoria que devemos nos dar o esforço de freqüentar tais autores; é porque eles são sábios q u e deveríamos tentar, se considerarmos q u e um deles nos é antipático, superar nossa aversão ou nossa indiferença. Dentre as religiões reveladas e os sistemas filosóficos, devemos acreditar q u e um deles é correto, e os demais, falsos. Mas a sabedoria é XÓ70Ç f u r ò ç 1 o mesmo para todos os homens em q u a l q u e r parte. Se assim não fosse, que proveito poderia tirar um europeu da leitura dos Upanixades, 1 6 ou dos Nikayas budistas? Apenas algum exercício intelectual, a satisfação de u m a curiosidade, ou u m a sensação interessante como a de saborear algum exótico prato oriental. Eu disse que a Sabedoria de fato não p o d e ser definida. O que é a Sabedoria de Goethe? C o m o sugeri, os adágios de Goethe, em prosa ou cm verso, são apenas ilustrações de sua sabedoria. A melhor prova da sabedoria de um grande escritor é o testemunho daqueles q u e p o d e m dizer, após um longo convívio com suas obras, " s i n t o - m e mais sábio graças ao t e m p o que passei com e l e " . Pois a sabedoria é transmitida em um nível mais p r o f u n d o do q u e o das proposições lógicas; qualquer linguagem é inadeq u a d a , mas provavelmente a linguagem poética está mais apta a transmitir a sabedoria. A sabedoria de um grande poeta está dissimulada em sua obra, mas q u a n d o dela nos tornamos conscientes, tornamo-nos mais sábios. Há muito admito que Goethe tenha sido um dos mais sábios dentre todos os homens, há m u i t o q u e reconheço ter sido um grande poeta lírico, mas que a sabedoria e a poesia sejam inseparáveis, em poetas da mais alta estatura, é algo que somente percebo a partir do instante em q u e começo a me tornar um p e q u e n o sábio. Assim,

15. "Logos z u n o s . " ( N . T . ) 16. Texto filosófico composto entre os séculos Vili e IV a.C., anexado ao Veda e no qual se desenvolve a rcllexão sobre o relacionamento entre Atmã e Brahma. ( N . I )

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volto a contemplar as feições de G o e t h e q u e t e n h o sobre o consolo de minha lareira. Considerei-o, assim como aos dois outros, como os três poetas q u e são incontestavelmente grandes europeus. Mas não gostaria de concluir sem antes recordar-lhes que tenho esses homens na conta de seres excepcionais, não em espécie, mas em grau; q u e existiram outros, até m e s m o vivos na memória, os quais, embora de nível inferior, pertencem à mesma estirpe; e que u m a das condições de sobrevivência de nossa cultura européia no f u t u r o será a da possibilidade de q u e os povos europeus continuem a produzir tais poetas. E se chegar o m o m e n t o em q u e a expressão "literatura e u r o p é i a " deixe de ter algum significado, então a literatura e a lingua de cada uma de nossas nações começará t a m b é m a d e f i n h a r e a correr risco de morte.

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Há muitas razões para que não conheçamos os poemas de Kipling tão bem q u a n t o imaginamos. Q u a n d o alguém é conhecido primordialmente como autor de prosa de ficção, inclinamonos — e quase sempre, creio eu, com justiça — a ver o seu verso c o m o um s u b p r o d u t o . Confesso que sempre duvido de q u e q u a l q u e r h o m e m seja capaz de se dividir ao ponto dc tirar o melhor proveito de duas formas dc expressão tão distintas q u a n t o a poesia e a prosa de imaginação. Se abro uma exceção no caso de Kipling, não é porque ele tenha feito dessa divisão algo de bem-sucedido, mas porque penso que, por razões que constituirão em parte o objeto deste ensaio, seu verso e sua prosa são inseparáveis; devemos julgá-lo, afinal, não separadam e n t e como um poeta e um autor de prosa de ficção, mas como o inventor de u m a forma mista. Assim, o conhecimento dc sua prosa é essencial à compreensão de seu verso, e um conhecimento de seu verso é essencial à compreensão de sua prosa. Portanto, na m e d i d a cm q u e me ocupo aqui de seu verso, não o faço apenas com o propósito de situá-lo posteriormente e olhar com maior clareza o c o n j u n t o da obra. Na maioria dos

1. Introdução a A choice of Kipling's verse. publicada pela Haber & Faber em colaboração com a M c t h u e n and Macmillan, em 1941. e t a m b é m nos Estados Lenidos. pela D o u b l e d a y . (N A.)

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estudos sobre Kipling q u e li, os autores me parecem ter abordado seu verso como secundário, esquivando-se assim à questão — que c, não obstante, u m a questão q u e t o d o m u n d o se c o | o c a _ dc saber se o verso de Kipling é r e a l m e n t e poesia e, caso contrário, o q u e é. O ponto dc partida do verso de Kipling é o motivo do escritor de baladas, e a balada m o d e r n a se utiliza dc um tipo de verso capaz de ser apreciado por aqueles q u e não dispõem de instrumental crítico apropriado. T e n d e m o s , c o n s e q ü e n t e m e n t e , a condenar os poemas ao nos referirmos a critérios poéticos q u e não se aplicam a eles. E nossa tarefa, p o r t a n t o , c o m p r e e n d e r o tipo ao qual eles pertencem antes de tentar avaliá-los: por conseguinte, devemos considerar o q u e Kipling estava e não estava tentando fazer. A tarefa é oposta àquela com a qual g e r a l m e n t e nos defrontamos q u a n d o d e f e n d e m o s o verso c o n t e m p o r â n e o . Esperamos conseguir d e f e n d e r um poeta contra a acusação de obscuridade, defendé-lo contra a acusação de excessiva lucidez. Esperamos censurar um poeta por sua falta de respeito pela inteligência do h o m e m c o m u m , ou m e s m o por escarnecer intencionalmente d a inteligência d o h o m e m c o m u m , c u m p r e - n o s defender Kipling da acusação de ser um ' j o r n a l i s t a " q u e recorria apenas às emoções coletivas mais c o m u n s . C u m p r e - n o s ridicularizar um poeta porque seu verso não parece destinar-sc a ser escandido; cumpre-nos ainda d e f e n d e r Kipling da acusação de escrever rimas q u e tilintam. Em s u m a , as pessoas se exasperam diante da poesia q u e não c o m p r c c n d c m , e m e n o s p r e z a m a poesia q u e c o m p r e e n d e m sem esforço, da m e s m a maneira que uma platéia se sente o f e n d i d a por um orador q u e profere um discurso acima dc sua compreensão, c por um o u t r o de quem suspeita estar baixando o nível a fim de q u e ela o e n t e n d a . Um obstáculo adicional à apreciação dc m u i t o s dos poemas de Kipling é seu caráter anedótico e ocasional, b e m c o m o suas vinculações políticas. As pessoas estão quase sempre inclinadas a depreciar a poesia que parece não ter q u a l q u e r ligação com a situação presente, mas estão sempre dispostas a ignorar aquela que não parece estar associada senão à situação da véspera. IJma agremiação política pode ajudar a conferir à poesia um interesse imediato: é a despeito dessa agremiação q u e a poesia será lida, se o for, amanhã. A poesia é c o n d e n a d a c o m o " p o l í -

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tica" q u a n d o nos encontramos em desacordo com a política, e a maioria dos leitores não deseja nem o imperialismo nem o socialismo cm verso. Mas a questão não consiste no que é efêmero, e sim no que é permanente: um poeta que nos pareça estar inteiramente fora dc contato com sua época pode, apesar disso, ter algo dc muito importante para dizer a ela, e um poeta q u e abordou problemas de seu tempo não cairá necessa-

riamente no esquecimento. As Stanzas from the Grande Chartreuse·, de Arnold, expressam um m o m e n t o de dúvida histórica, registrado por seu mais representativo espírito, um m o m e n t o q u e passou, q u e a maioria de nós já superou n u m a ou noutra direção, mas tais estrofes representam aquele m o m e n t o para sempre. Devemos, por conseguinte, tentar descobrir o que é permanente no verso de Kipling, mas isso não equivale simplesmente a dissociar a forma do conteúdo. Devemos considerar o conteúdo em si, as atitudes sociais e políticas em seu desenvolvimento, e fazer um esforço para nos desligarmos das presunções de nossa própria geração, e nos perguntarmos se há algo mais cm Kipling do q u e está expresso pela caricatura de Beerbohm: um virtuose de cornetim farreando durante o feriado bancário.

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Em m i n h a seleção dos versos de Kipling não encontrei nen h u m lugar para os q u e foram publicados nos primeiros períodos dc produção do autor: para ser exato, a seleção começa à página 81 da edição completa. As obras anteriores pertencem à juventude; todavia, são obras que, tendo sido publicadas em sua época e nela obtido êxito, são de leitura indispensável para u m a plena compreensão do processo evolutivo de Kipling. A maioria delas não tinha outro objetivo que não tosse o de constituir uma leitura recreativa n u m jornal inglês editado na índia: nelas se encontra aquele mesmo conhecimento precoce dos níveis mais epidérmicos da fraqueza h u m a n a , que e eficaz c irritante cm algumas dc suas primeiras histórias sobre a índia. É obviamente a obra de um jovem inteligente que poderia fazer carreira no jornalismo, mas que nem pelo sentimento nem pelo

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ritmo poderia nos levar a crer q u e o a u t o r fosse a l g u m dia escrever um p o e m a memorável. Ocioso dizer q u e n ã o se trata de poesia: o q u e s u r p r e e n d e e instiga é q u e isso não p r e t e n d e ser poesia, q u e não é a obra de um adolescente a q u e m se poderia atribuir q u a l q u e r aspiração a escrever poesia. Q u e ele seja dotado, q u e seja d i g n o de ser observado, é obvio q u a n d o se sabe q u ã o jovem era e n t ã o , mas esse d o m parece ser apenas efêmero, e o escritor não cogitava de nada de mais elevado. Houve, entretanto, influências literárias em sua formação. Encontramos em seus versos um pastiche de Atalanta in Calydon1 realizado para seus próprios propósitos imediatos; lembramos t a m b é m q u e Mcintosh Jellaludin ( q u e nos é a p r e s e n t a d o ao cair sobre um jovem camelo, e n q u a n t o recita The song of the bower) declama, n u m a ocasião, o Atalanta inteiro m a r c a n d o o ritmo com o pé na beira da cama. A família de Kipling m a n tinha relações com a Sociedade Pré-Rafaelita, 3 e é considerável a dívida que Kipling tem para com S w i n b u r n e . N ã o se trata em absoluto de u m a imitação: o vocabulário, o c o n t e ú d o e os ritmos são diferentes. Há um m o n ó l o g o dos t e m p o s da juventude que é muito mais visivelmente i m i t a d o de Browning do que qualquer coisa imitada de S w i n b u r n e , mas é em dois poemas extremamente distintos do estilo de Browning — McAn-

drew's hymn e The "Mary Gloster" — que a influência dc Browning torna-se mais visível. Por q u e a influência de Swinburne e Browning é tão diferente d a q u e l a q u e p o d e r í a m o s supor? Ela se deve, acredito, a u m a diferença de motivo: o q u e eles escreveram tinha a intenção de ser poesia, e n q u a n t o Kipling não estava em absoluto t e n t a n d o escrever poesia. Houve muitos escritores em verso q u e jamais p r e t e n d e r a m escrever poesia: à exceção de alguns autores de versos humorísticos, eles são em sua maioria r a p i d a m e n t e esquecidos. A diferença é q u e eles jamais escreveram poesia. Kipling não escrevcu poesia, pois não era isso o q u e se p r o p u n h a fazer. É essa peculiaridade de intenção q u e t e n h o em m e n t e ao c h a m a r Kipling 2. Tragedia lírica do poeta inglês Algernon Charles S w i n b u r n e (Londres. 1837 Putney, perto de Londres. 1909), publicado em 1865. Trata-se de um h i n o a G r é cia antiga, em versos de encantadora riqueza musical ( N . T . ) 3. Confraria literária f u n d a d a em 1847 por D a n t e Gabriel Rossetti para reagir aos padrões da arte oficial da época. ( N . T . )

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de um 'escritor de b a l a d a " e me foi necessário algum t e m p o para esclarecer o q u e pretendo dizer com isso, pois estou distend e n d o e t a m b é m limitando um pouco o significado da palavra " b a l a d a " . E verdade que há u m a linha contínua no que se refere ao significado que reúne as várias espécies de verso às quais se pode aplicar o termo " b a l a d a " . Na balada narrativa da fronteira da Escócia, a intenção é contar uma história em q u e , nesse estágio da literatura, constitui a forma natural para a história q u e visa elevar a emoção. Nela, a poesia é incidental e, cm (erta m e d i d a , inconsciente; a forma é a da estrofe curta rimada. A atenção do leitor se encontra na história e nas personagens, e a balada deve ter um significado imediatamente apreensível por parte de seus ouvintes. Audições sucessivas podem confirmar as primeiras impressões, repetir o efeito, mas a plena compreensão deveria ser transmitida na primeira audição. O e s q u e m a métrico deve ser simples a fim dc não chamar a atenção para si, mas as repetições e os refrões podem contribuir para um efeito encantatório. Não devem ocorrer complicações métricas correspondentes a sutilezas de sentimentos às quais não se possa reagir imediatamente. Em outro estágio de cultura — como em anglo-saxão e nas formas elaboradas do País de Gales —, a poesia desenvolve um virtuosismo consciente, exigindo t a m b é m um virtuosismo dc apreciação por parte da platéia: as formas impõem ao bardo dificuldades e obstáculos que evidenciam sua destreza q u a n d o ele as supera. Cumpre lembrar q u e essa sofisticação não se encontra apenas presente naquilo a q u e chamamos de literatura " m o d e r n a ' ou cm estágios ulteriores dc desenvolvimento das literaturas clássicas, como a latina, a grega, a sanscrita, a persa ou a chinesa; trata-se de um estágio alcançado às vezes na poesia de povos dc cultura inferior. E, por outro lado, a balada em verso não constitui simplesmente um estágio do desenvolvimento histórico: a balada persiste e se desenvolve à sua própria maneira, equivalendo a um nível perm a n e n t e de prazer literário. Há sempre* um público potencial para a balada, mas as condições sociais da sociedade moderna criam dificuldades para que a boa balada seja escrita. E talvez mais difícil agora escrevê-la do que no tempo em que foram compostas as baladas de caserna, pois Kipling tinha, pelo menos, a inspiração e o frescor do music-hall vivo.

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Para escrever a balada contemporânea não cabe recorrer à ajuda particular a fim de sustentar conceitos sociais avançados ou de acreditar que a literatura do f u t u r o deva ser u m a literatura 4 ' p o p u l a r " . A balada deve ser escrita por aqueles a q u e m ela satisfaz c para seus próprios fins. Seria t a m b é m um e n g a n o , e uma espécic arrogante de engano, supor q u e o público das baladas consista de operários de fábricas, de trabalhadores de manufaturas, de mineiros e lavradores. Ela mobiliza pessoas dessas categorias, mas a composição de sua audiência, suspeito, não guarda relação com n e n h u m a estratificação social e económica da sociedade. O público para as formas mais a l t a m e n t e desenvolvidas/mesmo para as mais esotéricas espécies de poesia, é recrutado em todos os níveis: as pessoas de pouca educação as consideram amiúde mais fáceis de aceitar do q u e as de educação média. Por outro lado, o público fiel às baladas inclui muitas pessoas que são, segundo as convenções, bastante educadas, além de muitas outras entre as quais se incluem os poderosos, os instruídos, os altamente especializados, os herdeiros da propriedade. Não pretendo sugerir q u e esses dois públicos estejam obrigados a constituir, ou devam constituir, dois universos, mas que existe aí um público capaz apenas de prestar atenção à balada, e um outro, mais restrito, capaz de gostar t a n t o de baladas quanto das mais exigentes formas de poesia. Ora, são às pessoas de ouvido sensível à balada q u e Kipling se dirige, mas isso não significa que todos os seus poemas despertem o fascínio dos leitores apenas nesse nível. Pouco c o m u m nas baladas de Kipling é sua intenção exclusiva de não tentar transmitir mais do q u e o espírito simples pode apreender n u m a primeira leitura ou audição. Elas se tornam melhores q u a n d o lidas em voz alta, e o ouvido não requer n e n h u m treinamento para acompanhá-las com facilidade. Essa simplicidade de propósito faz-se acompanhar dc um c o n s u m a d o dom da palavra, da frase e do ritmo. Não há poeta q u e não esteja menos exposto à acusação de se repetir. Na balada, a estrofe não deve ser muito longa e o esquema rítmico não m u i t o complicado; 4 a estrofe deve ser i m e d i a t a m e n t e apreensível como

um todo; um refrão pode ajudar a identificar a espécic dc estrofe dentro da qual é possível um limitado espcctro de variações. A variedade de formas q u e Kipling utiliza em suas baladas é notável: n e n h u m a delas é igual a outra, c todas se ajustam perfeitam e n t e ao conteúdo c ao estado de ânimo que o poema deve transmitir. Tampouco a versificação é muito regular: a pulsação só é m o n ó t o n a q u a n d o a monotonia do poema assim o exige; e as irregularidades dc escansão revelam um amplo espectro de possibilidades. Um dos mais interessantes exercícios na combinação das pulsações pesadas e das variações de tempo pode ser encontrado cm Danny Deever, um poema notável tanto do p o n t o de vista da técnica q u a n t o do conteúdo. A recorrência regular das mesmas terminações vocabulares, que lucram imens a m e n t e com o ritmo imperfeito (parade e said) dá a impressão de pés em marcha e do movimento de homens em formação disciplinada, n u m a u n i d a d e de movimento que realça o horror da ocasião e a náusea q u e se apodera dos homens como indivíduos; e o t e m p o ligeiramente acelerado dos versos finais marca a m u d a n ç a no movimento e na música. Não há uma única palavra ou frase q u e chame demasiada atenção para si, ou que aí não se encontre com vistas no efeito global, de modo que q u a n d o advém o clímax:

4. Embora Kipling fosse capaz dc lidar ate' m e s m o com u m a f o r m a t ã o difícil q u a n t o a da sextina. (N A . )

V " ' Q u e m c q u e soluça lá cm cima?' pergunta o cabo na fileira. / 'É a alma de D a n n y q u e esvoaça agora', responde o p o r t a - b a n d e i r a . " ( N . T . )

'What's that that whimpers over'ead?' said hiles-on-Parade, 'It's Danny 's soul that's passin ' now. ' the Colour-Sergeant said3 (sendo a palavra whimper [ " s o l u ç a r " ] rigorosamente correta), a atmosfera havia sido preparada para que ocorresse uma completa suspensão da incredulidade. Seria ilusório sugerir q u e todos os poemas de Kipling, ou pelo menos todos os q u e têm importância, sejam " b a l a d a s " : há u m a grande variedade de gêneros. Quero dizer apenas que o acesso à compreensão do que ele estava tentando fazer, em todos os seus variados versos, passa pelo motivo da balada. A melhor introdução, para o meu presente propósito, é chamar a atenção para u m a dúzia de determinados poemas bastante

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representativos de seus diferentes tipos. Ao leitor para o qual o acesso à poesia através da balada é o mais natural não é necessário mostrar q u e o verso de Kipling alcança de vez em q u a n d o a intensidade da " p o e s i a " ; para tais leitores e mais proveitoso discutir o conteúdo e a concepção de vida do autor, e superar os preconceitos que possam alimentar contra q u a l q u e r verso q u e apresente uma temática distinta ou um p o n t o de vista diferente daqueles q u e eles estão habituados a aceitar, destacando-o, outrossim, da irrelevante associação com acontecimentos e atitudes subseqüentes. Isso é o q u e tentarei fazer na seção seguinte. Ao escolher os exemplos q u e se s e g u e m , penso antes no leitor que, caso suponha q u e Kipling haja escrito " t i l i n t a n tes rimas políticas", dá mais ênfase à expressão tilintantes rimas

do que à palavra políticas. A primeira impressão que podemos colher a partir do exame de um certo n ú m e r o de poemas selecionados para mostrar a variedade é que essa variedade c suspeitamente g r a n d e . Ou seja, podemos não conseguir perceber aí mais do q u e o virtuosismo de um escritor capaz de manipular à vontade quaisquer formas e assuntos; podemos não discernir n e n h u m a u n i d a d e . Podemos ser levados a admitir que um p o e m a após o u t r o , de u m a maneira ou de outra, tenha seu m o m e n t o poético ', e todavia acreditar q u e os m o m e n t o s são apenas acidentais ou ilusórios. Seria um erro admitir q u e sc possam escolher alguns poemas que sejam poesia , e q u e o restante, por implicação, não tenha necessidade de ser lido. U m a seleção feita dessa maneira seria arbitrária, pois não há um p u n h a d o de poemas que possam ser isolados dos demais; isso seria ilusório p o r q u e a significação dos " p o e m a s estaria perdida fora do contexto do " v e r s o " , do mesmo m o d o q u e a significação do verso nos escaparia fora do contexto da prosa. N e n h u m a parte da obra de Kipling, e n e n h u m a fase dc sua obra, são inteiramente apreciáveis sem que se levem em conta as demais; e, afinal, essa obra — q u e , se for examinada peça por peça, não parece ter n e n h u m a unidade além do acaso de circunstâncias externas — acaba por revelar uma unidade de u m a espécie mais complicada. Portanto, se cu chamar a atenção particular de vocês para Danny Deever como u m a balada de caserna q u e só alcança em parte a intensidade da poesia, não o faço com o propósito

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de isolá-la das outras baladas do mesmo tipo, mas para lembrar q u e , no caso de Kipling, vocês não podem traçar uma linha além da qual alguns dos versos se tornem " p o e s i a " , e que a poesia, q u a n d o aflora, deve a intensidade de seu impacto ao fato de ser algo q u e está mais além, algo mais do que o escritor prometeu oferecer a vocês, e que o assunto não é jamais simplesmente um pretexto, u m a ocasião para a poesia. Há outros poemas em q u e o e l e m e n t o da poesia é mais difícil dc se patentear do q u e em Danny Deever. Dois poemas que muito se asse-

melham são o Mc Andrew's hymn e The "Aíary Gloster". São monólogos dramáticos, obviamente, como já disse, que devem algo à invenção de Browning, embora intrínseca e metricamente constituam baladas. O veredicto popular escolheu a primeira como a mais memorável; acho q u e o veredicto popular está correto, mas as razões pelas quais o Mc Andrew's hymn c superior a The " M a r y Gloster não são fáceis de explicar. O velho armador rapace desse ú l t i m o p o e m a não está facilmente descartado, e a presença do filho silencioso confere uma qualidade dramática q u e está ausente no solilóquio de McAndrew. Um poema não é menos bem-sucedido do que o outro. Sc o poema de McAndrew é o mais memorável, isso não ocorre porque Kipling estivesse mais inspirado pela contemplação do sucesso do fracasso do q u e pela contemplação do fracasso do sucesso, mas porque havia poesia da maior qualidade na temática. Foi McAndrew q u e m criou a poesia do Vapor, e Kipling quem criou a poesia de McAndrew. Falamos às vezes como se o cscritor que se mostra mais consciente e meticulosamente um "artesão' estivesse o mais distante possível dos interesses do leitor c o m u m , e como se o escritor popular fosse um escritor inábil. Mas n e n h u m escritor se revela artífice mais cuidadoso com as palavras do que Kipling: trata-se de u m a paixão q u e lhe dá um prodigioso respeito pelo artista dc q u a l q u e r arte e pelo artesão de qualquer ofício/' e q u e talvez esteja implícita cm seu respeito à 1 ranco-Maçonaria. 6. O touro que pensava (The bull that thought), na arena , "se enfurecia prodigios a m e n t e ; ele simulava a derrota; desesperava em a b a n d o n o estatuário, e por isso faiscava de novo paroxismos de cólera, mas sempre com o desligamento do verdadeiro artista q u e sabe nào ser mais do q u e o receptáculo de uma emoção em que outros, mas nào ele. d e v e m b e b e r " . ( N . A . )

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Os problemas do artista literário reaparecem c o n s t a n t e m e n t e em suas histórias: em Wireless por exemplo, na qual o pobre assistente do farmacêutico tuberculoso é por u m a noite identificado com Keats no m o m e n t o em q u e escrevia The eve of St.

Agnes\ em The finest story in the world, em que Kipling enfrenta dificuldades para produzir um p o e m a m u i t o b o m em versos livres (a Song of the galley slaves) c o u t r o m u i t o ruim em versos regulares para ilustrar a diferença entre o p o e m a q u e se insinua à força na consciência do poeta e a q u e l e a q u e o próprio escritor se obriga. A diferença entre a artesania e a arte da poesia é, naturalmente, tão difícil de estabelecer q u a n t o a diferença entre a poesia e a arte da balada. Ela não poderá nos ajudar a definir o lugar de Kipling na poesia; só p o d e m o s dizer que a artesania de Kipling é mais consistente do q u e a dc alguns poetas de maior estatura, e q u e a rigor há m u i t o poucos poemas, mesmo em suas obras reunidas, em q u e ele não consegue fazer o que se propusera. A artesania do g r a n d e poeta pode às vezes lhe faltar, mas em seus melhores instantes ele faz o que Kipling realiza n u m plano inferior, ou seja, escreve transparentemente, de m o d o q u e nossa atenção está dirigida para o objeto, e não para o meio de expressão. I al resultado não é obtido simplesmente pela ausência de e l e m e n t o s decorativos — pois até mesmo a ausência destes p o d e ser responsabilizada por chamar a atenção sobre si —, mas graças ao fato de jamais os utilizarmos em si mesmos, 8 e m b o r a , ainda u m a vez, o q u e parece supérfluo possa ser o q u e é de fato i m p o r t a n t e . O r a , um dos problemas que surgem com relação a Kipling está relacionado àquela perícia artesanal q u e parece torná-lo t a p a z dc transitar de forma para forma, embora sempre n u m a linguagem identificável, e de assunto para assunto, de m o d o q u e ignoramos qualquer compulsão interior q u e nos obrigaria a escrever isso mais do que aquilo versatilidade q u e p o d e nos levar à suspeita de que ele seria apenas um performático. Procuramos, tanto num poeta q u a n t o n u m novelista, o q u e Henry J a m e s 7. Em Proofs of Holy Writ (uma história publicada apenas na edição dc Sussex). Shakespeare e J o h n s o n discutem um p r o b l e m a de escolha de palavras colocado diante deles por um dos tradutores da Bíblia do rei J a i m e ( N . A . ) 8. O grande discurso de Enobarbus em Antônio e Cleópatra é p r o f u s a m e n t e ornamentado, mas essa ornamentação tem um propósito além dc sua própria beleza ( N A . )

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chamava de a Figura no Tapete. 9 No que respeita aos maiores dentre os poetas modernos, essa Figura se encontra perfeitam e n t e manifesta (pois podemos estar certos da existência da Figura sem compreendê-la inteiramente): cito Yeats nesse ponto devido ao contraste entre seu desenvolvimento, que é muito visível na maneira como ele escreve, e o desenvolvimento de Kipling, q u e só é aparente nos temas sobre os quais ele escreve. O q u e esperamos perceber, no caso de um grande escritor, é o q u e ele tinha a escrever sobre o assunto que escolheu, e de que maneira o tez. Em n e n h u m escritor de estatura idêntica à de Kipling é tão difícil discernir essa exigência interior, essa unid a d e na variedade. Passo das primeiras baladas a uma segunda categoria do verso de Kipling: a daqueles poemas que se inspiram em tópicos da atualidade ou q u e os comentam. Alguns desses, como The truce oj the beary sob forma de um apologo, não almejam m u i t a elevação. 1 0 Mas ser capaz de escrever bons versos de circunstância é, na verdade, um dom extremamente raro: Kipling tinha esse d o m e se dispunha a utilizá-lo muito seriamente. D e n t r e os poemas desse tipo, eu colocaria Gehazi — poema inspirado pelos escândalos de Marconi — em nível muito alto, como u m a apaixonada invectiva q u e se eleva à autêntica eloqüência (e como um poema que ilustra, incidentalmente, a i m p o r t a n t e influência das imagens bíblicas e da linguagem da Versão Autorizada sobre os seus textos). Os poemas sobre o Canadá e a Austrália, c sobre os funerais do rei Eduardo VII, são excelentes no gênero, embora não muito memoráveis individualmente. Ε o dom para versos de circunstância está associado ao d o m para dois outros gêneros de verso em que Kipling exceleu: o epigrama c o hino. Os bons epigramas são raríssimos em inglês; e o grande hinólogo é muito raro. São ambos tipos de verso e x t r e m a m e n t e objetivos: eles podem e deveriam estar carregados de intensa emoção, mas é preciso que seja uma emoção capaz dc ser integralmente compartilhada. E capaz dc escrevê-los um autor tão impessoal q u a n t o Kipling, e gostaria 9. Eliot alude a q u i à novela The figure tn the carpet {1896), do escritor norte-americano naturalizado inglês Henry James (Nova York, 1843 — Londres. 1916). (N. I . ) 10. E m b o r a The truce of the hear deva ser citado entre os poemas que evidenciam a intuição política de Kipling. (N A.)

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que o leitor olhasse a t e n t a m e n t e os Epitaphs of the war. T e n h o Kipling na conta de um grande escritor de hinos por causa do Recessional.11 Trata-se de um p o e m a quase tão conhecido q u e não carece chamar a atenção do leitor para ele, a não ser para sublinhar que constitui um dos poemas em q u e algo se revela através dc um nível mais baixo do q u e o do espírito do observador consciente de assuntos políticos e sociais — algo q u e tem uma inspiração verdadeiramente profética. Kipling poderia ter sido um dos mais notáveis hinólogos da língua inglesa. Esse mesmo dom da profecia aflora, no plano político, cm outros poemas, como The storm cone, mas em parte a l g u m a c o m categoria superior à do Recessional. É possível, todavia, agrupar todos os p o e m a s de Kipling cm u m a ou outra entre diversas categorias distintas. Há o poema Gethesemane, q u e julgo não c o m p r e e n d e r 1 2 e q u e é dc tal m o d o misterioso q u e o poeta decidiu situá-lo cronologicamente bem no início de sua edição completa, já q u e ele ostenta como subtítulo a data " 1 9 1 4 - 1 9 1 8 " . E há os p o e m a s do período posterior. Os versos do último período revelam, inclusive, u m a diversidade maior do q u e a dos poemas da j u v e n t u d e . A palavra "experimentação pode ser aplicada, e h o n r o s a m e n t e aplicada, ao trabalho de muitos poetas q u e se aperfeiçoaram e m u d a ram na maturidade. Na m e d i d a em q u e um h o m e m envelhece, pode voltar-sc para novos temas, ou abordar a m e s m a matéria de um m o d o diferente; na m e d i d a em q u e envelhecemos, passamos t a m b é m a viver n u m m u n d o d i f e r e n t e , e nos t o r n a m o s homens diferentes no mesmo m u n d o . As m u d a n ç a s p o d e m ser expressas por uma mudança de ritmo, de imagens, de f o r m a : o verdadeiro experimentador não se sente mais instigado por uma curiosidade irrequieta, ou pelo afã da novidade, ou pelo desejo de surpreender ou causar espanto, mas pela compulsão dc descobrir, em cada novo poema c o m o em seus primeiros, a forma correta para as emoções cujo desenvolvimento não consegue mais, como poeta, controlar. Mas, precisamente, no caso de Kipl ing, o termo desenvolvimento" não parece de m o d o 11. Hino que se entoa depois do ofício divino. ( N . T . ) 12. Embora a morte de seu filho deva ser a causa de sua i n t e n s i d a d e . (N A . )

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algum a d e q u a d o , assim como o termo "experimentação". Há grande variedade, além dc algumas inovações de fato notáveis,

como em The way through the woods c em The harp song of the Dane women-. What is a woman that you forsake her. And the hearth-fire and the home-acre, To go with the old grey Widow-maker?13 E nas belíssimas Runes on Weland's sword. Mas havia idênticas invenções originais nos poemas anteriores (Danny Deever); e entre os últimos se registram alguns belíssimos modelos em formas mais convencionais, como Cold iron, The land c The children 's song. Confesso, por conseguinte, que o instrumental crítico que estamos acostumados a utilizar na análise e na crítica de poesia não parecem funcionar aqui; confesso, além disso, que a introspecção de meus próprios processos não me concede n e n h u m a a j u d a , pois parte do fascínio desse assunto reside na exploração de um espírito q u e é m u i t o diferente do meu. Estou habituado a pesquisar a forma, mas Kipling não parece jamais estar à procura da forma, a não ser de u m a forma particular para cada p o e m a , de m o d o q u e encontramos nos poemas uma extraordinária variedade, mas n e n h u m modelo evidente — a conexão deve ser estabelecida em algum outro nível. Todavia, não se trata de n e n h u m a exibição de virtuosismo vazio, e podemos estar certos de q u e não há n e n h u m a ambição de êxito popular ou esotérico apenas pelo gosto do êxito em si mesmo. O escritor não é apenas um h o m e m sério, mas um homem que tem u m a vocação. Ele é c o m p l e t a m e n t e ambidestro, ou seja, está a b s o l u t a m e n t e a p t o a se expressar em verso ou em prosa, mas sua necessidade dc expressar a m i ú d e a mesma coisa numa história ou n u m p o e m a é u m a necessidade mais p r o f u n d a do que simplesmente exibir sua habilidade. Não sei de n e n h u m escritor tão b e m - d o t a d o para q u e m a poesia pareça ter sido mais exclusivamente um instrumento. A maioria de nós está interessada na forma pela forma — não i n d e p e n d e n t e m e n t e do con13. "O q u e <5 u m a m u l h e r q u e vos a b a n d o n o u , / E ao fogo da lareira c às terras de vossa p r o p r i e d a d e , / Para seguir o velho fabricante grisalho de viúvas?" ( N . T . )

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teúdo mas p o r q u e , ao realizarmos algo q u e , acima dc t u d o , existirá, almejamos algo q u e , c o n s e q ü e n t e m e n t e , terá a capacidade de excitar, d e n t r o de um l i m i t a d o espectro, u m a considerável variedade dc respostas para diferentes leitores. Para Kipling, o poema é algo concebido para atuar — c, na maioria dos casos, para extrair a m e s m a resposta de todos os leitores, e a p e n a s a resposta q u e eles p o d e m elaborar cm c o m u m . Para o u t r o s poe, o poema pode t a s _ pelo m e n o s para alguns outros poetas começar a se configurar em f r a g m e n t o s de r i t m o musical, c sua estrutura surgirá de início em t e r m o s de algo a n á l o g o à f o r m a musical; c tais poetas acham c ô m o d o se o c u p a r c o n s c i e n t e m e n t e dos problemas relativos à artesania, d e i x a n d o q u e o significado mais p r o f u n d o aflore a partir de um nível inferior. Trata-se, portanto, da questão de saber a q u i l o de q u e a l g u é m decide tornar-se consciente, e qual a parte do significado, n u m p o e m a , a ser diretamente transmitida à inteligência, assim c o m o qual a parte a ser i n d i r e t a m e n t e c o m u n i c a d a por m e i o da impressão musical à sensibilidade — l e m b r a n d o s e m p r e q u e o e m p r e g o da palavra " m u s i c a l " e de analogias musicais, q u a n d o se discute poesia, tem lá seus perigos se n ã o a v e r i g u a r m o s c o n s t a n t e m e n t e suas limitações, pois a música do verso é inseparável dos significados e das associações de palavras. Se eu disser, por conseguinte, q u e essa preocupação musical é secundária e episódica em Kipling, isso não significa q u e estou lhe a t r i b u i n d o qualquer deficiência artesanal, mas antes u m a o r d e m de valores diferentes cuja estrutura poética e s p e r a m o s d e t e r m i n a r . Se pertencemos à espécic de crítico q u e se h a b i t u o u a avaliar poemas somente segundo os padrões da obra de a r t e " , poderemos tender a repudiar o verso de Kipling a partir de padrões q u e não se apliquem a ele. Se, por o u t r o lado, formos o crítico biográfico, interessado primordialmente na obra e n q u a n t o revelação do h o m e m , Kipling se tornará o mais incompreensível dos objetos: n e n h u m escritor foi mais reticente sobre si m e s m o , ou concedeu tão poucas oportunidades à curiosidade alheia, seja por auto-idolatria, seja por repulsa à sua própria pessoa. O leitor p u r a m e n t e hipotético q u e se d e b r u c e sobre este ensaio sem n e n h u m c o n h e c i m e n t o prévio dos versos de Kipling poderia talvez imaginar q u e me a t r i b u í r a m a causa dc um escritor de indiscutível s e g u n d a o r d e m , e q u e estou t e n t a n d o , c o m o n u m a demonstrarão de m i n h a habilidade c o m o a d v o g a d o , obter

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u m a p e q u e n a redução da pena de esquecimento. Poder-se-ia esperar q u e um poeta q u e se revelou tão pouco comunicativo com seus êxtases e desesperos pessoais fosse e n f a d o n h o ; poderse-ia esperar q u e um poeta q u e concedia tanto de seu t e m p o ao serviço da imaginação política fosse efêmero; poder-se-ia, afinal, esperar q u e um poeta tão constantemente ocupado com a aparência das coisas fosse superficial. Sabemos q u e ele não é e n f a d o n h o , pois f o m o s todos, u m a vez ou outra, por esse ou por a q u e l e p o e m a , t o m a d o s dc emoção; sabemos que ele não é e f ê m e r o , pois nos l e m b r a m o s bastante daquilo que lemos de seu p u n h o . Q u a n t o à superficialidade, essa acusação não lhe p o d e ser feita senão por aqueles q u e continuaram a lê-lo apenas com um interesse pueril. Às vezes, Kipling não se revela a p e n a s d o t a d o de penetração, mas quase " p o s s u í d o " de uma espécie de s e g u n d a visão. E em si u m a coisa curiosa e sem i m p o r t â n c i a q u e se lhe haja reprovado o fato de ele haver colocado para d e f e n d e r a Muralha 1 1 u m a legião romana que os historiadores a f i r m a r a m jamais ter estado nas proximidades, mas q u e descobertas recentes comprovaram, na verdade, ter ali a c a m p a d o : eis u m a espécie de coisa que cabe esperar de Kipling. Há cavernas mais p r o f u n d a s c sombrias nas quais ele penetrou, p o u c o i m p o r t a se através da experiência ou graças à imaginação: ocorrem alusões a estas em The end of the passage e, mais

tarde, em The woman in his life e In the same boat\ bastante estranhas, tais histórias se encontram prefiguradas por um poema de sua j u v e n t u d e q u e não incluí, Lι nuit blanche, que introd u z u m a i m a g e m q u e reaparece em The end of the passage. Kipling tinha algum conhecimento das coisas que estavam ocultas, e das coisas q u e se encontravam para além das f r o n t e i r a s . π

14 Trata-se da célebre Muralha Romana construída por Adriano no norte da Inglaterra, d e s t i n a d a a d e f e n d e r suas tropas contra as investidas dos pictos (Ν. Γ.) IV C o m p a r e m a descrição da agonia em In the same boat (história cujo final c mais fiel à experiência do q u e o de The brushwood boy)'. " S u p o n h a que você seja u m a corda dc violino - vibrante e q u e alguém ponha o dedo sobre você" com a i m a g e m da "corda do b a n j o distendida ao máximo pela onda que se quebra em The finest story tn the world. C o m p a r e m ainda a história A matter of fact, relativa à erupção de um vulcão submarino q u e lança um monstro do mar à superfície, com as primeiras passagens de Alice no país das maravilhas', ambas descrevem acontecimentos exteriores q u e revelam uma exata correspondência com algum rerror espi-

ritual. A matter of Jact é uma história superior a In the same boat, pois a explicação psicológica desta última eclode como um anticlimax à experiência. (N A.)

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Não expliquei o verso de Kipling nem a p e r m a n e n t e impressão que ele p o d e causar sobre vocês. Basta-me poder evitar que o coloquem em nichos de columbários q u e não lhe são adequados. 1 6 Se o leitor deste livro negar q u e Kipling seja um grande artista do verso, espero q u e pelo m e n o s possa ter descoberto novas razões para seu j u l g a m e n t o crítico, pois as acusações comuns q u e se fazem contra ele não são n e m verdadeiras nem relevantes. Utilizei a palavra verso' com sua própria autoridade, pois era assim q u e ele próprio os designava. Há poesia nesses versos, mas q u a n d o ele escreve versos q u e não são poesia não é p o r q u e haja t e n t a d o escrever poesia e não o tenha conseguido. Ele tinha outro objetivo, um objetivo ao qual se aferrava e que se encontra expresso no p o e m a q u e se segue, extraído de A diversity of creatures'. THE FABULISTS 1 9 1 4 — 1 9 1 8

When all the world would keep a matter hid, Since Truth is seldom friend to any crowd', Men write in fable as old ALsop did\ Jesting at that which none will name aloud. And this they needs must do. or it will fall Unless they please they are not heard at all. When desperate Folly daily laboureth To work confusion upon all we have, When diligent Sloth demandeth Freedom s death. And banded Fear commandeth Honour's grave Even in that certain hour before the fall, Unless men please they are not heard at all. 16. O Dr. J. H. O l d h a m despertou m i n h a atenção para a i m p o r t â n c i a do c a p í t u l o sobre Arte e mágica no extraordinário livro The principles of ari, do professor R. G. Collingwood. Collingwood t o m a Kipling c o m o um e x e m p l o do "artista como m á g i c o " , e dei me a arte mágica c o m o " u m a arte q u e é representativa e, portanto, evocadora de emoções, u m a arte q u e evoca c o m u m a f i n a l i d a d e d e t e r m i nada algumas emoções mais do q u e outras para descarregá-las nos assuntos da vida p r á t i c a " . A contribuição do professor Collingwood parece-me a q u i e x t r e m a m e n t e valiosa, mas, q u a n t o ao fato de Kipling ser a rigor um b o m e x e m p l o d a q u i l o q u e ele chama o artista como m á g i c o " , não sinto q u e "o artista c o m o m á g i c o " corresponda a uma descrição cabal de Kipling c o m o um artista do verso. (N A . )

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Needs must all please, yet some not all for need. Needs must all toil, yet some not all for gain, But that men taking pleasure may take heed. Whom present toil shall snatch from later pain. Thus some have toiled, but their reward was small Since, though they pleased\ they were not heard at all.

This was the lock that lay upon our hps, This was the yoke that we have undergone, Denying us all pleasant fellowships As in our time and generation. Our pleasures unpursued age past recall. And for our pains — we are not heard at all. What man hears aught except the groaning guns? What man heeds aught save what each instant brings? When each man's life all imaged life outruns, What man shall pleasure in imaginings? So it has fallen, as it was bound to fall, We are not, nor we were not, heard at all. r

17. " Q u a n d o o m u n d o inteiro deseja guardar um segredo, / Pois a Verdade é raram e n t e amiga de q u a l q u e r m u l t i d ã o . / Os h o m e n s escrevem fábulas como o fazia o velho Esopo, / Z o m b a n d o do q u e n i n g u é m ousará anunciar em voz alta. / E d e v e m eles fazê-lo, ou a q u e d a advirá. / Pois a menos q u e agradem, de m o d o a l g u m serão ouvidos // Q u a n d o a Loucura em desespero a cada dia se e m p e n h a / Por lançar a c o n f u s ã o sobre t u d o o q u e possuímos, / Q u a n d o a zelosa Preguiça c o n d e n a à m o r t e a Liberdade. / E o Medo a m o t i n a d o cava o t ú m u l o da honra / — Mesmo nessa hora incerta antes da q u e d a — / A menos que agradem, de m o d o algum serão ouvidos. // C u m p r e agradar a qualquer preço, e todavia nem a todos por necessidade, / C u m p r e t a m b e m mourejar, e todavia nem todos para o g a n h o , / Mas q u e m se vale do prazer deve manter-se em guarda, / Q u e m arrancara a dor f u t u r a o trabalho presente / Assim, alguns trabalharam, mais foi escassa a recompensa. / Pois, e m b o r a agradassem, de m o d o algum foram ouvidos. // Foi esse o ferrolho q u e nos puseram sobre os lábios. / Foi esse o jugo que tivemos de aguentar. / Recusando-nos quaisquer reconfortantes amizades. / Tanto em nosso t e m p o q u a n t o em nossa geração. / Nossos prazeres negligenciados perdidos para sempre / E q u a n t o às nossas dores n i n g u é m de m o d o algum a* ouve. // Q u e escuta o h o m e m a não ser os g e m e b u n d o s canhões? / A que presta atenção, exceto ao q u e cada instante lhe proporciona? / Q u a n d o a vida de cada h o m e m se esquiva a toda vida imaginada, / Q u e h o m e m sentira prazer na imaginação? / Assim caiu afinal o q u e estava previsto para cair. / Nào somos, nem fomos, de m o d o algum o u v i d o s . " (A linguagem especiosa e a sintaxe arrevesada tornam puramente tentativa a tradução desse p o e m a , q u e , c o m o observa o tradutor francês Henri Fluchère. "esta i m p r e g n a d o de u m a nostalgia mística i n d e t e r m i n a d a " . ) ( N . T . )

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II

Expressei a opinião de q u e a variedade do verso de Kipling e suas mutações de um período para outro não p o d e m ser explicadas, como tampouco fornecer um m o d e l o unificado, graças ao estudo de seu desenvolvimento, c o m o poderíamos fazer com a maioria dos poetas. Seu desenvolvimento não p o d e ser compreendido por meio de um único verso, pois Kipling foi, c o m o já disse no início, um escritor c o m p l e t o em prosa e em verso; e para compreender essas mudanças temos de considerar a prosa e o verso c o n j u n t a m e n t e . Kipling parece ser desde o início um escritor de diferentes fases e ocupações, alguém q u e se desenvolveu por completo em cada um desses períodos, q u e jamais se comprometeu com u m a d e t e r m i n a d a torma de verso a p o n t o de ficar impossibilitado de transitar para o u t r a . Ele é tão diferente de outros poetas q u e o crítico preguiçoso é t e n t a d o a afirmar apenas que não se trata em absoluto de um poeta, e fica tudo por isso mesmo. As mudanças em sua poesia, na m e d i d a em que são incapazes de ser explicadas por q u a l q u e r e s q u e m a habitual de desenvolvimento poético, p o d e m , até certo p o n t o , ser explicadas por modificações de circunstâncias alheias à sua vida. Digo 4 até ceno ponto porque Kipling, q u e não é aparentemente senão o reflexo do m u n d o q u e o rodeia, é o mais inescrutável de todos os autores. Um imenso d o m para o uso das palavras, uma espantosa curiosidade e um poder dc observação tanto do espírito q u a n t o de todos os sentidos; a máscara do comediante e, além disso, um estranho d o m de segunda visão, de transmissão de mensagens vindas de alhures, d o m tão desconcertante q u a n d o dele nos tornamos conscientes q u e , a partir de então, jamais estamos certos de q u a n d o ele não está presente — tudo isso faz de Kipling um escritor absolutamente impossível de compreender e inteiramente impossível de depreciar. A primeira caractcrística q u e observamos em Kipling é, sem dúvida, u m a excepcional sensibilidade em relação ao meio ambiente, de m o d o que, nesse plano, p o d e m o s traçar sua trajetória a partir de circunstâncias externas. O q u e a vida teria feito desse homem se seu nascimento, sua adolescência, sua maturidade e sua velh ice houvessem se desenrolado nos mesmos ambientes, é algo que está para além da especulação. C o m o a

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vida o o r d e n o u , o resultado foi conceder-lhe um singular deslig a m e n t o e distanciamento de todo o meio ambiente, uma alienação universal q u e constitui o reverso de sua f u n d a paixão pela India, pelo Império Britânico, pela Inglaterra c por Sussex, um distanciamento semelhante ao de um visitante perigosam e n t e inteligente vindo de outro planeta. Ele permanece algo alienado c indiferente em relação a tudo aquilo com que se identifica. O leitor que pode descer um pouco — mas não muito p r o f u n d a m e n t e — abaixo do nível da popularidade de Kipling como contador de histórias e declamador de baladas, e que revele um vago sentimento em relação a algo que se situe mais abaixo, está apto a fornecer a explicação errônea dc seu próprio desconforto. Tentei desestabilizar a crença de que Kipling é um simples autor de estribilhos populares; precisamos agora considerar se tais "estribilhos populares" são, no sentido pejorativo do termo, " p o l í t i c o s " . ler nascido na India e ali ter vivido os primeiros anos de q u e sua memória tem lembrança é um fator de importância capital para u m a criança tão impressionável. Ter permanecido dos dezessete aos vinte e quatro anos g a n h a n d o ali a sua vida é, para um jovem m u i t o precoce e observador, uma experiência t a m b é m i m p o r t a n t e . Parece-me que disso resultaram dois estratos q u e se c o n f u n d e m na apreciação de Kipling sobre a índia: o estrato da criança e o do adolescente. Foi esse adolescente q u e observou os britânicos na índia e escreveu as mais insolentes e ácidas histórias de Delhi e Simla, mas foi por meio da criança q u e ele aprendeu a amar o país e sua gente. E Purun Bhagat, são as quatro grandes personagens indianas de Kim q u e se tornam reais: o Lama, Mahbub Ali, Hurree Chunder Mookerjee e a opulenta viúva do norte. Q u a n t o aos britânicos, aqueles com os quais ele se revela mais simpático são os que sofreram ou decaíram — Mcintosh Jellaludin aprendeu mais do q u e Strickland. 1 8 Kipling pertence à índia de uma maneira diferente da de qualquer outro inglês que haja escrito sobre esse país, e de u m a maneira diferente da de qualquer indiano

18. A propósito da etica de Kipling e dos tipos h u m a n o s que ele indica respeitos a m e n t e , consu Ite-se um valioso ensaio do Sr. Bonamy Dobrée em lhe lamp ami the lute (N A.)

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em particular, q u e tem u m a raça, um credo, uni domicílio local e, caso seja um h i n d u , u m a casta. Ele poderia quase ser chamado de o primeiro cidadão da India. E sua relação com a índia nele determina o q u e de mais i m p o r t a n t e existe n u m h o m e m : sua atitude religiosa. Trata-se de u m a a t i t u d e de compreensiva tolerância. 1 9 Ele não é um descrente pelo contrário, é capaz de aceitar todas as crenças, as dos m u ç u l m a n o s , dos hindus, dos budistas, dos parses ou dos jainas, e ate m e s m o (por meio da imaginação histórica) a do culto de Mithra; se sua compreensão do cristianismo é menos cordial, isso se deve a sua formação anglo-saxónica; e não há dúvida de q u e ele vira na í n d i a muitos clérigos do tipo do Sr. Bennett, em Ktm. Seria um equívoco capaz de nos indispor contra a compreensão da singular contribuição de Kipling explicar seus sentimentos em relação ao Império Britânico e sua posterior afeição por Sussex simplesmente como a nostalgia dc um apátrida, como a necessidade de um apoio sentida por um h o m e m q u e não pertence a parte alguma. Explicar satisfatoriamente se us sentimentos patrióticos dessa maneira é necessário apenas àqueles que consideram q u e tais sentimentos sejam impróprios como tema poético. Há talvez aqueles q u e a d m i t a m o patriotismo expresso em poesia, porém na defensiva: o H e n r i q u e V dc Shakespeare é aceitável, com sua grandiloqüência aliás e m b a raçosa, pois o exército francês era consideravelmente maior do que as tropas inglesas, ainda q u e a guerra c o n d u z i d a por Henrique só dificilmente pudesse ser descrita c o m o defensiva. Mas se há um preconceito contra o verso patriótico, há um preconceito ainda mais poderoso contra o patriotismo imperial em verso. Para muitas pessoas, um império acaba por tornar-se alguma coisa da qual se deve pedir desculpas, sob o pretexto de que este se constituiu por acidente, e q u e , ademais, é dc algum m o d o um assunto temporário a ser e v e n t u a l m e n t e absorvido por alguma associação m u n d i a l de caráter universal, e n q u a n t o o patriotismo em si haverá de tornar-se inarticulado. Mas é preciso que nos habituemos a reconhecer, no caso dc Kipling, que o Império Britânico não era s i m p l e s m e n t e u m a idéia, uma boa ou má idéia; era algo cuja realidade ele sentia. 19. Não a tolerância da ignorância ou da indiferença. (N A )

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E na expressão de seus sentimentos ele não estava certamente p r e t e n d e n d o adular uma vaidade nacional, racial ou imperial, ou t e n t a n d o divulgar um programa político: o que Kipling pretendia era comunicar a consciência de alguma coisa de cuja existência ele percebia que a maior parte das pessoas não se encontrava de todo consciente. Era uma consciência de grandeza, decerto, mas era muito mais uma consciência de responsabilidade. Há a questão de que a poesia " p o l í t i c a " seja admissível; há a questão da maneira pela qual a poesia política de Kipling é política; há a questão relativa àquilo em que consistia a sua política; e, finalmente, perdura a questão do que temos a dizer daquela considerável parte de sua obra que não pode em absoluto, por mais q u e se amplie o alcance do termo, ser chamada dc política. C u m p r e chamar atenção para um outro grande escritor inglês q u e pôs política em verso — Dryden. A questão dc saber se Kipling era um poeta não se relaciona à questão de saber se Dryden t a m b é m o era. O autor de Absalom and Achiíopel2υ estava satirizando uma causa perdida retrospectivamente, e se colocara ao lado do vencedor; o autor dc The hind and the pantherx argüia um caso de política eclesiástica, e ambos os propósitos eram muito distintos daquele a que Kipling se propunha. Os dois poemas de Dryden eram mais políticos em seu apelo à razão do q u e o foi qualquer um dos de Kipling. Mas ambos t i n h a m m u i t o em c o m u m . Um e outro eram mestres da trase, e utilizavam ambos ritmos mais simples que faziam habilmente variar; e exigiam ambos que seu meio de expressão tosse empreg a d o para transmitir uma afirmação singela c vigorosa, mais intensa q u e um modelo musical de tons carregados dc emoção. E (se é possível utilizar esses termos sem confusão) eram ambos antes poetas clássicos do que românticos. Chegaram à poesia pela eloqüência, pois tanto para um q u a n t o para outro a sabedoria predominava sobre a inspiração; e estavam os dois mais 20. Trata-se de um dos poemas satíricos mais conhecidos do poeta e dramaturgo inglês J o h n Dryden (Aldwinkle All Saints, N o r t h a m p t o n . 1631 - Londres, 1700), p u b l i c a d o em 1681. (N T ) 21 Esse p o e m a de D r y d e n . t a m b é m de caráter alegórico, foi publicado em 1687. Já convertido ao catolicismo, Dryden se envolve aí n u m a controvérsia entra a Corça (Igreja de Roma) e a Pantera (Igreja Anglicana). ( N . T . )

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interessados no m u n d o q u e os rodeava do q u e em suas próprias alegrias e tristezas, e seus sentimentos os interessavam mais no que tinham de semelhantes aos dos outros h o m e n s do q u e em suas particularidades. Mas eu não desejaria levar tal semelhança muito longe, como t a m p o u c o ignorar suas grandes diferenças; e se Kipling suporta a comparação sob certos aspectos, cabe lembrar que ele tem outras qualidades q u e não foram aqui de m o d o algum cogitadas. Certamente, Kipling concebia t a n t o o verso q u a n t o a prosa como meio de expressão destinado a um propósito de caráter público; se nos fosse necessário emitir um j u l g a m e n t o sobre seu propósito, deveríamos tentar nos colocar nas situações históricas cm que várias de suas obras foram escritas; e se nosso preconceito for favorável ou adverso não deveremos encarar suas observações sobre determinada situação histórica do p o n t o de vista de um período posterior. Devemos t a m b é m considerar sua obra como um todo, e os primeiros anos à luz dos últimos, e não exagerar a importância de composicões ou expressões particulares de que possamos não gostar. Até m e s m o estas p o d e m ser mal interpretadas. O Sr. Edward Shanks, q u e escreveu o melhor livro sobre Kipling q u e já li (e c u j o capítulo sobre Ό profeta do I m p é r i o " — " T h e prophet of Empire' — resume admiravelmente os conceitos políticos de Kipling), 2 2 diz do p o e m a intitulado Loot, u m a balada de soldado q u e descreve as formas de extorquir aos nativos seus tesouros escondidos: Esse p o e m a é totalmente odioso, e faz o comentarista de Kipling enrubescer q u a n d o se e m p e n h a em explicá-lo" . E 1er u m a a t i t u d e no poema da qual nunca suspeitei. N ã o creio q u e nesse p o e m a Kipling haja recomendado a rapacidade e a avidez de tais irregularidades, como tampouco desculpado a rapina. Se o acreditarmos, deveremos t a m b é m presumir q u e The ladies foi escrito para glorificar a caótica miscigenação por parte dos soldados profissionais aquartelados em terras estrangeiras. D u r a n t e o período a que pertencem tais poemas, Kipling, indubitavelmente, percebeu que o soldado profissional e seus oficiais eram bastante desprezados por seus pacíficos compatriotas q u e se 22. A obra de Shanks a q u e Eliot se refere é Rudyard Kipling: a study m litera ture and political ideas. ( N . T . )

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encontravam na Inglaterra, c que no tratamento dispensado aos soldados c aos militares desmobilizados havia menos do q u e justiça social, mas sua preocupação era a de tornar o sold a d o conhecido, e não de idealizá-lo. Kipling se exasperava tanto com o sentimentalismo q u a n t o com o menosprezo ou a negligência — e u m a atitude está sujeita a suscitar a outra. Eu disse q u e na poesia de Kipling não há desenvolvimento, mas mutação; e por desenvolvimento devemos entender as mudanças ocorridas no meio ambiente e no próprio homem que Kipling foi. O primeiro período é o da índia; o segundo, da viagem à América e de seu domicílio nesse continente; e o terceiro, o dc seu estabelecimento cm Sussex. Tais divisões são óbvias; o q u e não é tão óbvio é o desenvolvimento de sua concepção de império, u m a concepção que se distende e se contrai ao m e s m o t e m p o . Ele jamais fez vista grossa às falhas e aos erros do Império Britânico, mas sustentou uma sólida crença com relação àquilo q u e este deveria e poderia ser. Em sua última fase, a Inglaterra — e um determinado recanto da Inglaterra — tornou-se o centro de sua visão. Ele se mostra mais preocupado com o problema da saúde do coração do império; esse coração está algo envelhecido, mais natural c mais permanente. Ao m e s m o t e m p o , entretanto, sua visão descortina uma perspectiva mais ampla, e Kipling vê o Império Romano c o lugar que nele ocupa a Inglaterra. A visão é quase a de uma idéia de império no seio do paraíso. E com toda a sua imaginação geográfica e histórica, n i n g u é m poderia estar mais longe do que ele do interesse pelo h o m e m na coletividade, ou da manipulação deste na massa: seu símbolo foi sempre um h o m e m individual. O símbolo, q u e em determinada época havia sido o de homens c o m o Mulvaney ou Strickland, tornou-se o de Parnesius e Hobd e n . Os mecanismos técnicos não perderam seu encanto para ele; o telégrafo sem fio e a aviação sucederam-se ao navio a vapor, c n u m a de suas histórias que mais surpreenderam o m u n d o — They — um considerável papel é desempenhado por um primitivo, e não muito confiável, modelo dc automóvel; mas Parnesius e Hobden são mais importantes do que as máquinas. Um é o defensor de uma civilização (de uma civilização, não da civilização em abstrato) contra a barbárie, enquanto o outro representa o contato essencial da civilização com o solo.

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Ευ disse que há sempre algo de estranho cm Kipling, como se ele fosse o visitante de outro planeta, c para alguns leitores ele pode ainda parecer estranho na identificação de si mesmo com Sussex. Há um elemento de tour de force em toda a sua obra que deixa alguns leitores pouco à vontade (sempre suspeitamos de pessoas muito inteligentes). Kipling pode suscitar um pouco a mesma desconfiança de outro grande h o m e m que era t a m b é m estranho dc uma maneira m u i t o diferente, e num plano mais trivial, embora t a m b é m tivesse a sua visão de império e seus lampejos de p r o f u n d a intuição. Mesmo aqueles que admiram Disraeli podem se considerar mais à vontade com Gladstone, gostem ou não do h o m e m e de sua política. Mas a estranheza de Disraeli era comparativamente algo de simples. E, sem dúvida, a diferença do meio a m b i e n t e dos primeiros anos, ao qual se deve a estranheza de Kipling, proporcionoulhe uma compreensão do meio rural inglês distinta daquela que tem um homem que aí nasceu e se educou, e nele deu origem a pensamentos sobre esse mesmo a m b i e n t e q u e os nativos da região fariam bem em considerar. É possível que seja prejudicial à reputação de um escritor o fato de que ele haja alcançado grande sucesso no começo da vida, com uma obra ou com um tipo de obra, pois é devido à sua obra pregressa que ele será lembrado, e as pessoas (os críticos, às vezes, principalmente) não costumam modificar suas opiniões a partir de obras mais recentes do autor. Além disso, no caso de Kipling, um preconceito contra o c o n t e ú d o p o d e associar-se a uma falta de compreensão da forma e produzir uma condenação inconsistente. Com base no c o n t e ú d o , ele era considerado um tory\ e com base no estilo, um jornalista. T a n t o um termo q u a n t o o outro deveriam certamente ser tidos apenas como honrosos, mas o primeiro acaba por granjear um ódio popular por causa de uma identificação vulgar com uma palavra mais detestável: para muitas pessoas, uma atitude crítica em relação à democracia' veio a implicar uma atitude simpática ao fascismo, que, de um ponto dc vista autenticamente Cory, constitui apenas a extrema degradação da democracia. Dc modo análogo, o termo " j o r n a l i s t a " , q u a n d o aplicado a alguém que não pertence à redação de um jornal, acabou por adquirir uma conotação dc bajulador para o gosto popular do

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m o m e n t o . Kipli ng não chegava sequer a ser um tory no sentido d a q u e l e q u e se m a n t é m incondicionalmente leal a um partido político: ele pode ser assim considerado num sentido em q u e s o m e n t e um p u n h a d o de escritores, juntamente com um g r u p o dc pessoas em sua maioria incapazes de se expressar, obscuras e sem prestígio, podem ser sempre os tones dc uma geração. E q u a n t o ao fato dc ser um jornalista (no sentido acima citado), devemos ter em mente que as causas por ele defendidas não eram causas populares no momento em que ele as form u l o u , q u e ele não pretendeu idealizar os conflitos de fronteira n e m o soldado profissional e que suas reflexões sobre a guerra dos Bôeres'' são mais de censura do que de louvor. É possível sugerir q u e , na medida em que ele se associava à glória do império, contribuía desse modo para dissimular seus aspectos mais sórdidos: o comercialismo, a exploração e a negligência. N e n h u m leitor atento de Kipling pode sustentar, entretanto, q u e ele não estivesse ciente das falhas do domínio britânico: ele simplesmente acreditava que o Império Britânico era u m a coisa boa e pretendia colocar diante dos olhos de seus leitores a i m a g e m ideal q u e esse império deveria ser, embora estivesse a g u d a m e n t e cònscio da dificuldade que seria até mesmo se aproximar dessa imagem, e do permanente perigo de se afastar inclusive do m o d e l o que poderia ser atingido. Não consigo encontrar n e n h u m a justificativa para a acusação de que ele sustentava u m a d o u t r i n a de superioridade racial. Kipling acreditava q u e os britânicos tinham uma aptidão maior para dominar do q u e a de outros povos, e que dispunham de um maior n ú m e r o de h o m e n s generosos, incorruptíveis e desinteressados capazes de realizar u m a boa administração; e sabia que o ceticismo, no q u e toca a essa matéria, conduz mais provavelmente a uma m a g n a n i m i d a d e maior do que a um relaxamento do senso de responsabilidade. Mas não se pode acusá-lo dc sustentar q u e q u a l q u e r britânico, simplesmente por causa de sua raça, fosse de algum m o d o necessariamente superior ou mesmo igual a um indivíduo de outra raça. Oi tipos de homem que

23. C o n f l i t o (1899-1902) causado pelo a n t a g o n i s m o entre Cecil Rhodes, pnmc.roministro do C a b o (Africa do Sul) e pione.ro do .mperialismo britânico na Atrua. e Paul Kruger, presidente do Transvaal, que levou à ocupação de Pretoria em e à vitória final das forças inglesas em 1902. ( N . T . )

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Kipling admira não estão limitados por quaisquer preconceitos. Sua obra mais madura sobre a índia, e o maior d e n t r e os seus livros, e Kim. O conceito de Kipling como um divertido autor popular é devido ao fato de que suas obras foram populares e de q u e divertem. Todavia, nada i m p e d e que alguém expresse conceitos populares do m o m e n t o n u m estilo impopular, e eis q u e todos se queixam q u a n d o o escritor divulga conceitos impopulares e os exprime de forma extremamente legível. Não p r e t e n d o discutir por mais tempo o " i m p e r i a l i s m o " q u e Kipling professa em seus primeiros anos, pois é preciso falar sobre o desenvolvimento de suas concepções. Caberia dizer a essa altura, antes de ir mais adiante, que Kipling não é um doutrinário nem um homem de programa. Suas opiniões não devem ser consideradas como antíteses às de H. G. Wells A imaginação de Wells é uma coisa e suas opiniões políticas, outra: estas últimas se modificaram, mas não amadureceram Mas Kipling não pensa, mesmo no sentido em que se pode atribuir essa atividade a Wells: seu objetivo, e seu d o m , é o de fazer com q u e as pessoas vejam, pois a primeira condição de um p e n s a m e n t o correto é a sensação correta; a primeira exigência para compreender um país estrangeiro é sentir-lhe o cheiro, como sentimos o cheiro da índia em Kim. Se vocês virem e sentirem verdadeiramente, se Deus lhes conceder esse poder, então vocês serão capazes de pensar corretamente. O resumo mais simples da m u d a n ç a de Kipling, na m e t a d e de sua vida, é o "desenvolvimento da imaginação imperial na imaginação histórica . Para tal desenvolvimento deve ter contribuído em alto grau sua permanência em Sussex, pois teve ele a humildade de se submeter à paisagem dos arredores e ao frescor de visão de um estrangeiro. Aludirei aqui mais aos contos do que aos poemas, pois o modelo desses últimos anos de sua produção conjuga o poema c o conto n u m a espécie de todo — ou um conto e dois poemas —, combinando-os para cunhar uma forma que nunca ninguém utilizou do m e s m o m o d o e no emprego da qual provavelmente ninguém jamais o superou. Quando falo de "imaginação histórica", isso não significa q u e dela eu admita apenas uma espécie. Duas espécies distintas estão exemplificadas por Victor Hugo e por Sthcndal em seus

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relatos sobre a batalha de Waterloo. Para aquele primeiro, é a carga da Velha Guarda, e a estrada cm desnível que leva a O h a i n ; para Sthendal, a súbita consciência de Fabrice de que o barulhinho incessante à sua volta era causado pelas balas. O historiador de uma dessas espécies é aquele que dá vida a abstrações; o historiador de outra espécie pode envolver toda a civilização no comportamento de um único indivíduo. H. G. Wells pode conferir uma grandeza épica ao acúmulo de uma fortuna americana. A imaginação de Kipling insiste sobre a experiência pessoal de um determinado homem, assim como a sua índia se realiza graças a determinados homens. Em The finest story in the world vê-se aflorar a mesma paixão pelo detalhe exato q u e amplia a latitude de seus estudos sobre a maquinaria. A galera grega é descrita do ponto de vista da galera eslava. A embarcação pertencia "à espécie movida a remos, e a água do mar jorra através dos orifícios do remo, e os homens remam com a água pelos joelhos. Em seguida há um banco que corre entre duas fileiras de remos, e um capataz munido de um açoite vai e vem ao longo desse banco para fazer os homens trabalharem (...) Há uma corda esticada no ar, atada ao convés superior, a fim de que o capataz a segure quando a embarcação sc move; assim que o capataz solta a corda e cai entre os remadores, lembrem-se de que o herói explode numa gargalhada e é vergastado como punição. Ele está acorrentado a seu remo, é claro — o herói (...) com um cinturão de ferro ao redor dos quadris, fixo no banco em que está sentado, e com uma espécie de algema no p u n h o esquerdo, que o acorrenta ao remo. Ele está no convés inferior, onde lhe são encaminhados os piores galés, e onde a única luz que chega provém das escotilhas e dos orifícios dos remos. Poderiam vocês imaginar a luz do sol se espremendo entre o cabo do remo e as bordas do orifício e vacilando conforme o balanço da embarcação?" 2 4

24. Eis o texto original: " T h e kind rowed with oars, and the sea spurts through the oar-holes, and the m e n row sitting up their knees in water. Then there's a bench r u n n i n g down between the two lines of oars, and an overseer with a whip walks up and down the bench to make the m a n work. ( . . . ) There's a rope running overhead, looped to the u p p e r deck, for the overseer to catch hold of when the ship rolls. W h e n the overseer misses the rope once and falls among the rowers r e m e m b e r the hero laughs at him and gets licked for it. He's chained to his oar, of

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A imaginação histórica p o d e nos proporcionar u m a consciência angustiante da extensão do t e m p o , ou nos transmitir u m a impressão vertiginosa da p r o x i m i d a d e do passado. Ou ambas ao m e s m o t e m p o . Especialmente em Puck of Pook's hill e Rewards and fairies, Kipling visa, creio e u , fornecer a um rempo um sentido de a n t i g ü i d a d e da Inglaterra, do n ú m e r o dc gerações e de pessoas q u e cultivaram a terra e foram por sua vez nela sepultas, e da c o n t e m p o r a n e i d a d e do passado. Tendo previamente revelado u m a compreensão imaginária do espaço, na qual se inclui a Inglaterra, ele procede a u m a conquista semelhante em relação ao t e m p o . Os contos da história inglesa precisam ser considerados em relação às histórias posteriores que m a n t ê m um vínculo c o n t e m p o r â n e o com o período

de Sussex, como An habitation enforced, My son's wife e The wish house, juntamente com They, sob um aspecto dessa curiosa história. A consciência q u e Kipling tinha dc Sussex e o a m o r que este lhe inspirava constituem u m a q u e s t ã o m u i t o distinta do sentimento de q u a l q u e r o u t r o escritor regional de f a m a semelhante, como T h o m a s Hardy N à o é apenas q u e ele estivesse a g u d a m e n t e cônscio d a q u i l o q u e deveria ser preservado, e n q u a n t o Hardy se revela um cronista da decadência; ou q u e escrevesse sobre Sussex tal c o m o o encontrara, e n q u a n t o Hardy escrevia sobre um Dorset q u e já se encontrava em declínio na sua infância. E q u e , antes de mais n a d a , a consciência do " f a bulista" e a consciência da i m a g i n a r ã o política e histórica estão sempre presentes na obra do autor de Kim. I m a g i n a r Kipling como um escritor q u e pudesse abordar q u a l q u e r assunto, q u e escrevia sobre Sussex p o r q u e estivesse s a t u r a d o de seus temas estrangeiros e imperiais, ou q u e já houvesse saciado o interesse do público por estes, ou simplesmente p o r q u e fosse um camaleão q u e mudasse dc cor c o n f o r m e o a m b i e n t e , seria totalmente erróneo, pois sua obra posterior n a d a mais é do q u e a continuação e o coroamento da produção dos primeiros tempos.

course — ehe hero ( . . . ) with an iron b a n d r o u n d his waist fixed to t h e b e n c h he sits o n . and a sort of h a n d c o f f on his left wrist c h a i n i n g h i m to the oar. H e ' s on the lower deck where the worst men are sent and t h e onls light c o m e s f r o m t h e hatchways and t h r o u g h the oar-oles. C a n ' t you i m a g i n e t h e sunlight just squeezing through between the h a n d l e a n d the hole an w o b b l i n g a b o u t as t h e ship moves?"(N.T )

R U D Y A R D KIPLING

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A outra peculiaridade das histórias que Kipling escreveu sobre Sussex, à qual já me referi, consiste no fato de que ele empresta à sua obra o frescor de um espírito e de uma sensibilidade desenvolvidos e amadurecidos n u m meio inteiramente distinto: ele descobre e reclama uma herança perdida. Os Chapins americanos, em An habitation forced, têm um papel passivo: o protagonista da história é a casa e a vida que ela implica, com a p r o f u n d a insinuação dc que o camponês pertence à terra, o proprietário aos arrendatários, o fazendeiro aos seus lavradores, e não o contrário. Trata-se de u m a deliberada inversão dos valores da sociedade industrial. Os Chapins (exceto no que concerne à sua origem, pois vêm de um país de mentalidade industrializada) são na verdade u m a espécie de máscara do próprio Kipling. Ele está t a m b é m por trás do herói de uma história m e n o s bem-sucedida desse m e s m o grupo, My son's wife. (Considero-a menos bem-succdida porque ele parece indicar sua moral de maneira excessivamente direta, e porque o contraste entre a sociedade tagarela dos intelectuais de Londres — ou dos subúrbios — e a filha silenciosa do notário, que gosta dc caçar, é martelada com enorme insistência. O contraste entre o m u n d o bucólico em que os medíocres ainda participam do q u e está bem e um m u n d o intelectual em que o medíocre é h a b i t u a l m e n t e dissimulado e sempre enfadonho não é inteiramente justo. A animosidade q u e ele revela contra este sugere q u e ele não tem seu olho no objeto: pois só podemos julgar o q u e c o m p r e e n d e m o s , e deve-se constantemente jantar com a oposição. ) O que mais importa nessas histórias,

em The wish house c cm Friendly brook, é a visão dc Kipling sobre as pessoas da terra. Não se trata de uma visão cristã, mas pelo menos de u m a visão pagã — contradição da concepção materialista; é a intuição dc u m a harmonia telúrica que deve ser restabelecida caso os cristãos desejem redescobrir uma imaginação de fato cristã. O que o escritor tenta transmitir, mais u m a vez, não é um programa de reforma agrária, mas um p o n t o de vista ininteligível para a mentalidade industrializada. Daí o valor artístico do elemento obviamente inacreditável de The wish house, q u e se combina estranhamente com o sórdido realismo das mulheres do diálogo, do ônibus rural, da vila s u b u r b a n a e do câncer dos pobres.

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Essa difícil e obscura história, The wish house, tem sido estudada cm relação a dois difíceis e obscuros p o e m a s (não incluídos aqui) q u e a precedem e sucedem, e q u e seriam ainda mais difíceis c obscuros sem a história. A essa altura, estamos m u i t o distantes do simples contador de histórias — m u i t o distantes, inclusive, do h o m e m q u e considerava seu dever tentar q u e certas coisas se tornassem claras para seus compatriotas, coisas q u e eles não poderiam ver. Ser-lhe-ia difícil imaginar q u e tantas pessoas de sua própria época, ou de q u a l q u e r época, julgassem problemático c o m p r e e n d e r as parábolas, ou m e s m o apreciar a precisão das observações, os esforços calculados para selecionar e combinar elementos, a escolha de palavras e expressões, q u e exigia o seu processo de elaboração. Ele devia saber que qualquer deslize nesse sentido poderia c o m p r o m e t e r sua fama, seu prestígio como contador de histórias, sua reputação como "jornalista tory', como escritor fácil capaz de improvisar n u m relance algo sobre o q u e ocorrera na véspera e até mesmo como autor de livros infantis q u e as crianças gostavam de 1er e de ouvir 1er. Voltemos ao p o n t o de partida. Os últimos p o e m a s , assim como os últimos contos aos quais eles p e r t e n c e m , são às vezes muito obscuros, pois t e n t a m exprimir algo mais difícil do q u e os primeiros poemas. São poemas de um escritor mais sábio e mais amadurecido, mas não revelam n e n h u m a evolução do " v e r s o " em direção à " p o e s i a " , c o n s t i t u i n d o e x a t a m e n t e o mesmo instrumental das primeiras obras, e m b o r a sejam agora instrumentos que a t e n d e m às exigências dc um propósito maduro. Kipling sempre pôde m a n i p u l a r , do começo ao f i m , uma considerável variedade de formas métricas e estróficas com absoluta competência, às quais introduzia notáveis variações de seu próprio p u n h o ; como poeta, todavia, nada inovou. Ele não é um desses escritores dos quais se p o d e dizer q u e , a partir de sua contribuição, a forma da poesia inglesa seria diferente caso cies não tivessem escrito. O q u e f u n d a m e n t a l m e n t e diferencia seu " v e r s o " da " p o e s i a " é a subordinação do interesse musical. A rigor, muitos de seus poemas, se julgados por aquilo que deles nos chega aos ouvidos, dão u m a impressão do estado de â n i m o do autor, e n q u a n t o outros são distinta-

GOETHE. O SABIO

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m e n t e onomatopaicos: há u m a linha harmônica de poesia que não se desenvolve simplesmente para além de seu alcance, mas q u e poderia interferir na intenção. É possível argüir exceções, mas refiro-m e aqui a sua obra em conjunto, e sustento q u e , sem c o m p r e e n d e r o propósito que anima seu verso como um t o d o , não se p o d e estar preparado para compreender as exceções. N ã o alego escusas por ter utilizado aqui os termos "verso " e " p o e s i a " de u m a forma reticente, de modo que, quando me refiro à obra de Kipling corno verso, e não como poesia, não me julgo a i n d a capaz dc falar dc composições em separado c o m o poemas, c o m o tampouco sustentar que há " p o e s i a " nesses " v e r s o s " . Lá, o n d e a terminologia se torna flutuante, o n d e nos faltam palavras para expressar o que sentimos, a única maneira de sermos precisos é reconhecer a imperfeição de nosso i n s t r u m e n t a l e dos diferentes sentidos em que utilizamos as mesmas palavras. Caber-me-ia deixar claro que, quando opon h o " v e r s o " a " p o e s i a " , não estou, nesse contexto, emitindo um juízo de valor. Não e n t e n d o aqui por verso a obra de a l g u é m q u e escreveria " p o e s i a " , se disso fosse capaz; entendo por verso algo q u e faz o que a " p o e s i a " não poderia fazer. O q u e transformaria o verso de Kipling em poesia não representa n e m um fracasso n e m u m a deficiência: ele sabia perfeitam e n t e o q u e estava fazendo; e, de seu ponto de vista, mais p o e s i a " poderia interferir em seu propósito. E reivindico, em se t r a t a n d o de Kipling, o direito que temos de falar em "grande v e r s o " . Q u e outros famosos poetas devessem ser incluídos na categoria de grandes artistas do verso é uma questão q u e não vamos aqui tentar esclarecer. Essa questão está agravada pelo f a t o de q u e teríamos de nos ocupar com assuntos tão imprecisos q u a n t o a forma e o t a m a n h o de uma nuvem ou o começo e o fim de u m a onda. Mas o escritor cuja obra está sempre mais próxima do verso não é um grande artista do verso; se um escritor deve ser assim considerado, deve existir algo em sua obra de q u e possamos dizer se é verso ou se e poesia. Ε o poeta q u e não pudesse escrever em "verso" quando este fosse necessário estaria privado daquele sentido de estrutura q u e se requer para tornar legível um poema de qualquer

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extensão. Eu sugeriria t a m b é m q u e aceitássemos mais facilmente que aquilo q u e é mais valioso é t a m b é m mais raro, e vice-versa. Posso cogitar de u m a série de poetas q u e escreveram grande poesia e somente de alguns poucos dos quais se poderia dizer que foram grandes artistas do verso. E a m e n o s q u e eu esteja enganado, o lugar q u e Kipling ocupa nessa categoria é não apenas elevado, mas único.

YEATS 1

As gerações poéticas em nossa época parecem se estender por um período de cerca de vinte anos. Não quero dizer que a melhor obra de q u a l q u e r poeta esteja limitada a vinte anos; 0 q u e p r e t e n d o dizer é q u e esse é o período de tempo que se deve considerar para q u e u m a nova escola ou um novo estilo poético apareçam. No m o m e n t o , por assim dizer, em que um h o m e m atinge os cinqüenta anos, ele tem atrás de si uma espécie de poesia escrita por autores q u e já chegaram aos setenta, e d i a n t e de si u m a outra espécie escrita por aqueles que mal alcançaram os trinta. Essa é a minha posição no momento, e se eu conseguir viver mais vinte anos, espero ver ainda uma outra escola mais jovem de poesia. Minha atitude em relação a Yeats, c o n t u d o , nào se encaixa nesse esquema. Na época em q u e eu era jovem e estudava n u m a universidade norte-americana, e começava então a escrever meus primeiros versos, Yeats já era um n o m e de considerável prestígio no m u n d o da poesia, e seu primeiro período de produção já se achava bem definido. Não consigo me lembrar se, nesse m o m e n t o , sua poesia chegou a me causar qualquer p r o f u n d a impressão. Um homem muito 1 Primeira conferência anual sobre Yeats, pronunciada para os Amigos da Academia Irlandesa no Abbey Theatre, em D u b l i n , cm 1940. Essa conferência foi depois publicada em Purpose. (N A . )

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jovem, instigado eie próprio pelo desejo de escrever, não é primordialmente um crítico ou sequer possui um espírito amplam e n t e aberto. Ele está à procura de mestres q u e lhe facilitem a tomada dc consciência daquilo q u e ele próprio quer dizer, da espécie de poesia q u e traz em si e q u e p r e t e n d e escrever. O gosto de um escritor adolescente é intenso, mas estreito, pois está determinado por necessidades pessoais. A espécie de poesia de que cu tinha necessidade, capaz de me ensinar a fazer uso de minha própria voz, não existia em absoluto na língua inglesa; ela só podia ser encontrada na França. Por essa razão, a poesia do jovem Yeats quase n e n h u m a impressão me causou até o dia em q u e meu entusiasmo foi desencadeado pela poesia de um Yeats mais velho; e por essa época — q u e r o dizer, a partir de 1919 —. o próprio curso de m i n h a evolução já estava determinado. Daí se conclui q u e , de certo p o n t o de vista, passei a considerádo um c o n t e m p o r â n e o , e não um antecessor; e, por outro lado, compartilho dos sentimentos de autores mais jovens que vieram a conhecê-lo e a admirá-lo graças àquela obra escrita a partir de 1919, q u e foi concebida q u a n d o eles eram adolescentes. Estou absolutamente certo de q u e a admiração dos poetas mais jovens da Inglaterra e dos Estados Unidos pela poesia de Yeats lhes foi inteiramente benéfica. Sua maneira de se exprimir era muito pessoal para correr o risco de ser i m i t a d a , e suas opiniões muiro diferentes das deles para q u e lhes exaltassem c ratificassem os preconceitos. Foi bom para eles estar d i a n t e do espetáculo de um poeta vivo indiscutivelmente g r a n d e , c u j o estilo não tentaram reproduzir e cujas idéias se o p u n h a m àquelas que estavam na m o d a entre eles. Vocês não encontrarão, cm seus textos, senão indícios passageiros da impressão q u e Yeats lhes causou, mas a obra, e o próprio h o m e m c o m o poeta, tiveram para eles, não obstante, a maior significação. Isso pode parecer contrariar o q u e eu havia dito sobre a espécie de poesia que um poeta jovem escolhe para admirar. Mas, na verdade, estou falando de algo diferente. Yca*s não teria exercido essa influência se não se tornasse um grande poeta, mas a influência a que me refiro é devida à própria figura do poeta, à integridade de sua paixão pela arte e ao seu ofício, ao qual cie imprimiu o impulso indispensável a seu extraordinário desen-

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volvimento. Q u a n d o ele vinha a Londres, gostava de se reunir e conversar com os poetas mais jovens. As pessoas disseram algumas vezes q u e ele era arrogante e autoritário. Jamais o considerei assim; cm sua conversa com um escritor mais jovem sempre senti q u e ele se comportava de m o d o ' i g u a l , como com um companheiro de trabalho, um artífice do mesmo mistério. Assim o era, s u p o n h o , porque, ao contrário de muitos escritores, ele se preocupava mais com a poesia do q u e com sua própria reputação de poeta ou da imagem que dele se fazia como tal. A arte é maior q u e o artista, e Yeats transmitia aos outros esse s e n t i m e n t o ; eis por q u e os mais jovens jamais se sentiam pouco à vontade em sua companhia. Isso, estou certo, era parte do segredo de seu talento, após tornar-se indiscutivelmente o mestre, em permanecer sempre c o n t e m p o r â n e o . O outro segredo era o contínuo desenvolvim e n t o a q u e me referi, q u e se tornou quase um lugar-comum na crítica sobre sua obra. Mas quase sempre que dela se fala, não se analisam n e m suas causas nem sua natureza. Uma das razões, decerto, era simplesmente a concentração e o trabalho árduo. E por trás disso está o caráter: refiro-me aqui ao caráter especial do artista como artista, isto é, à força de caráter graças à qual Dickens, após esgotar sua inspiração inicial, foi capaz de escrever, em plena meia-idade, u m a obra-prima como Bleak house, tão diferente de seus primeiros trabalhos. É difícil e i m p r u d e n t e generalizar os meios de composição — são tantos os meios quantos forem os h o m e n s —, mas minha experiência me ensina q u e , na meia-idade, um h o m e m tem três escolhas: parar inteiramente de escrever, repetir-sc com uma habilidade q u e talvez haja sido intensificada pelo virtuosismo ou, graças à reflexão, adaptar-se à idade que tem e descobrir uma maneira diferente de trabalhar. Por q u e os últimos poemas longos de Browning c de Swinburne são, cm sua maioria, ilegíveis? S e g u n d o creio, p o r q u e o essencial de Browning ou Swinburne está inteiramente nos primeiros poemas, e n q u a n t o com os últimos o q u e percebemos é a perda do frescor que havia nos anteriores, sem q u e neles se possam encontrar novas qualidades que a c o m p e n s e m . Q u a n d o um autor está envolvido numa obra de p e n s a m e n t o abstrato — se é q u e existe algo que se possa chamar cabalmente de pensamento abstrato fora das ciências

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físicas c matemáticas — , seu espírito pode amadurecer, e n q u a n t o suas emoções ou permanecem as mesmas, ou se atroliam, o q u e pouco importa. Mas amadurecer, para o poeta, significa amadurecer como h o m e m inteiro, sentir novas emoções próprias à sua idade, e com a mesma intensidade q u e na sua j u v e n t u d e . U m a forma — forma perfeita de desenvolvimento — é a de Shakespeare, um dos raros poetas cuja obra da m a t u r i d a d e é tão instigante q u a n t o a da época de sua j u v e n t u d e . H á , creio eu, u m a diferença entre o desenvolvimento de Shakespeare e o de Yeats, q u e torna ainda mais curioso o caso desse ú l t i m o . Em Shakespeare observa-se um lento e c o n t í n u o desenvolvim e n t o da mestria de seu artesanato cm relação ao verso, e a poesia da meia-idade parece implícita na da primeira maturidade. Após os primeiros raros exercícios verbais, vocês dirão dc cada peça da obra: "Essa é a perfeita expressão da sensibilidade desse estágio de seu desenvolvimento". Q u e um poeta de algum m o d o se desenvolva, q u e encontre algo de novo para dizer, que o diga igualmente b e m . em plena meia-idade, é s e m p r e algo de milagroso de sua parte. Mas no caso de Yeats a espécie de desenvolvimento me parece distinta. N ã o q u e r o dar a impressão de q u e vejo sua obra da j u v e n t u d e e seus textos da maturidade quase como se tivessem sido escritos por dois autores diferentes. Se retrocedermos a seus primeiros poemas após um íntimo conhecimento dos últimos, perceberemos, logo de saída, q u e ocorreu em sua técnica um lento e p e r m a n e n t e desenvolvimento daquilo q u e constitui sempre o m e s m o meio de expressão e a mesma maneira de exprimir. E q u a n d o d i g o desenvolvimento, não pretendo afirmar q u e muitos dos primeiros p o e m a s , pelo q u e representam, não estejam tão m a g i s t r a l m e n t e escritos q u a n t o podiam sê-lo. Há alguns, como Who goes wtth Fergus?, que são tão perfeitos em seu gênero q u a n t o q u a l q u e r o u t r o cm língua inglesa. Mas os melhores, e os mais conhecidos dentre eles, têm esta limitação: são tão satisfatórios em si, c o m o "peças antológicas", q u a n t o o são no contcxto de seus outros poemas do mesmo período. Obviamente, estou mc utilizando da expressão "peças antológicas" n u m sentido bastante especial. Em q u a l q u e r antologia, encontram-se alguns poemas q u e proporcionam por si só u m a completa satisfação c deleite, dc forma q u e o leitor mal se inte-

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resse por saber q u e m os escreveu, ou fique desejoso de penetrar mais p r o f u n d a m e n t e na obra do poeta. Há outros, não necessariamente tão perfeitos ou completos, que despertam uma irresistível curiosidade de saber mais daquele poeta por meio de outra obra de sua autoria. Naturalmente, essa distinção só se aplica a poemas curtos, aqueles em que um autor foi capaz de colocar apenas parte dc seu espírito, se tal espírito tem alguma envergadura. C o m tais poemas, vocês percebem imediatamente que q u e m os escreveu devia ier muito mais o que dizer, em diferentes contextos, de idêntico interesse. Ora, entre todos os poemas pertencentes aos primeiros volumes dc Yeats encontro apenas em um ou o u t r o verso aquele sentido de uma personalidade única q u e nos instiga e nos deixa sequiosos de conhecer mais sobre o q u e pensa e sente o autor. Só dificilmente é que a intensidade da própria experiência emocional de Yeats se entremostra. Temos prova suficiente da intensidade da experiência de sua j u v e n t u d e , mas essa evidência só se manifesta retrospectivam e n t e q u a n d o lemos algumas de suas obras da maturidade. Em meus ensaios anteriores enaltcci o que chamei de impessoalidade na arte, e poderia parecer que, ao dar como razão para a superioridade das obras maduras de Yeats a expressão mais intensa da personalidade q u e nelas se patenteia, estou me contradizendo. E possível q u e eu tenha mc expressado mal, ou q u e fosse apenas um adolescente que se agarrara a essa idéia — c o m o jamais suportei reler meus textos em prosa, admito deixar esse ponto em suspenso —, mas penso agora, pelo menos, q u e a verdade a respeito do assunto seja a que se segue. Há duas formas de impessoalidade: a q u e é natural para o artesão talentoso e a q u e é mais ou menos adquirida pelo artista à m e d i d a q u e amadurece. A primeira é a que caracteriza os fragmentos a q u e chamei de "peças antológicas", ou a de poemas líricos de Lovelacc 2 ou Suckling, 3 ou mesmo de Campion, esse 2. Lovelacc, Richard. Poeta inglês (Woolwick. Kent. 1618 Londres, c. 1657). Seus versos, de erotismo delicado e sensibilidade musical, foram influenciados por D o n n e e os " m e t a f í s i c o s " , c o m o o atestam To Altbea. from pmon (1642) e lo Lucana, going to the war (1649). ( N . T . ) 3. Suckling, Sir J o h n . Poeta inglês ( W h i t t o n , Middlesex. 1609 - Paris, 1642). Cortesão b r i l h a n t e , envolveu-se n u m a conspiração e morreu no exílio. Ficou celebre por sua Ballad upon a wedding. bem como pela tragèdia Aglaura. publicada em 1638. ( N . T . )

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último superior àqueles. A outra f o r m a de impessoalidade č a do poeta q u e , graças a u m a experiência intensa e pessoal, é capaz dc exprimir u m a verdade geral: sem nada perder da particularidade de sua experiência, esse poeta dela faz um símbolo geral. Η o estranho é q u e Yeats, q u e se revelou um grande artesão na primeira categoria, tornou-se um g r a n d e poeta na segunda. Não c q u e ele se haja t o r n a d o um h o m e m diferente, pois, c o m o sugeri, percebe-se c l a r a m e n t e q u e a intensa experiência da j u v e n t u d e foi b e m vivida — e, na verd a d e , sem essa experiência anterior ele jamais p o d e r i a , s e q u e r de longe, ter alcançado a sabedoria q u e aparece em seus textos da m a t u r i d a d e . Mas ele tinha q u e a g u a r d a r a ú l t i m a etapa da m a t u r i d a d e para encontrar a expressão de sua experiência pregressa; e é isso, s u p o n h o , q u e o torna um poeta único e particularmente interessante. Considerem o p o e m a da j u v e n t u d e q u e se encontra em

todas as antologias, When you are old and grey and full of sleep ou A dream of death, incluído no m e s m o volume de 1893. São belos poemas, mas produtos apenas de um artesão, pois neles não se percebe a particularidade q u e deve prover a matéria para a verdade geral. Na época em q u e se publicou o v o l u m e de 1904 há um desenvolvimento visível em um p o e m a de f a t o

encantador, The folly of being conforted, e em Adam's curse; algo se passa e, ao pôr-se a falar c o m o um h o m e m particular, ele começa a falar para o h o m e m . Isso se torna ainda mais claro no poema Peace, pertencente ao volume q u e foi p u b l i c a d o em 1910. Mas isso não está p l e n a m e n t e evidenciado até o volume q u e se deu à estampa em 1914, na violenta e terrível dedicatória epistolar da Responsibilities, com os grandes versos

Pardon that for a barren passion 's sake, Although I have come close on forty-nine. (...)* Ε o fato de confessar sua idadc no p o e m a é significativo. Mais da metade de uma vida para chegar a tal liberdade de expressão... E um triunfo. 4. P e r d o e m - m e por causa dc u m a paixão estéril. / E m b o r a eu esteja c o m q u a s e quarenta e nove anos (. . ) . " ( N . T . )

INDICE ONOMASTICO

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Yeats tinha t a m b é m m u i t o o que descobrir sozinho, mesmo no q u e se refere à sua técnica. Ser o mais jovem dos integrantes de um g r u p o dc poetas, n e n h u m deles certamente dc estatura semelhante à sua, mas que se desenvolveram em seu domínio limitado, eis algo que poderia interromper por algum tempo a evolução da linguagem de um autor. E em seguida, mais u m a vez, o peso do prestígio pré-rafaelita deve ter sido trem e n d o . O Yeats do crepúsculo céltico — que me parece ter sido mais o Yeats do crepúsculo pré-rafaelita — utiliza o folclore céltico quase da mesma maneira como William Morris se vale do folclore escandinavo. Seus poemas narrativos mais extensos trazem a marca de Morris. Na verdade, durante a fase prérafaelita, Yeats não é de m o d o algum o menor dos pré-rafaelitas. Posso estar e n g a n a d o , mas a peça The shadowy waters parece-me u m a das mais perfeitas expressões da vaga beleza encantada d a q u e l a escola poética; e, todavia, tenho a impressão — isso p o d e ser u m a impertinência de minha parte — de que são os mares ocidentais vislumbrados através da janela dos fundos de u m a casa em Kensington,' 1 mito irlandês para a Kelmscott Press. 6 E q u a n d o tento visualizar os interlocutores dessa peça, descubro-lhes os grandes olhos vagos c sonhadores de Burne-Jones." J u l g o q u e a fase cm que ele aborda a lenda irlandesa da maneira como o fizeram Rossetti e Morris é uma fase de confusão. Yeats não conseguiu tornar-se um mestre dessa lenda até o m o m e n t o cm q u e dela fez um veículo para a sua própria criação de personagens — na verdade, até o momento em q u e começou a escrcvcr as Plays for dancers. O fato é que, ao tornar-se mais irlandês, não do ponto de vista do fundo, mas da expressão, ele se torna ao mesmo tempo universal. Desejo sublinhar particularmente dois aspectos no que se refere ao desenvolvimento de Yeats. Em primeiro lugar — c já aludi a isso , ter realizado o que Yeats realizou na meia5. Q u a r t e i r a o em q u e reside a burguesia abastada de Londres. ( N . T . ) 6. A Kelmscott Press estava instalada na casa de William Morris, em Hammersmith. (N.T.) 7. Burne-Jones. Edward (na verdade. Edward Coley Jones) Pintor e desenhista inglês ( B i r m i n g h a m . 1X33 - Londres, 1898). Um dos fundadores, com William Morris e D a n t e Gabriel Rossetti, da escola pré-rafaelita. Sua obra esta bem representada na B i r m i n g h a m Art Gallery. ( N . T . )

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idade e nos últimos anos de sua vida constitui um g r a n d e e p e r m a n e n t e exemplo — que os poetas de hoje deveriam considerar com respeito — daquilo a q u e chamei de Caráter do Artista: u m a espécie de excelência tanto moral q u a n t o intelectual. O segundo aspecto, q u e se revela n a t u r a l m e n t e em virtude do que eu disse na crítica sobre a absoluta falta de expressão emocional em sua obra da juventude, é aquele q u e se relaciona ao Yeats como um poeta e m i n e n t e m e n t e da m a t u r i d a d e . Longe de mim afirmar q u e ele é um poeta destinado apenas aos leitores de meia-idade: a atitude para com Yeats por parte dos poetas mais jovens q u e escrevem em inglês no m u n d o inteiro é prova suficiente do contrário. Ora. em teoria, não há n e n h u m a razão pela qual a inspiração ou a matéria poética desapareçam na maturidade ou em q u a l q u e r época anterior à senilidade, pois um autor q u e é capaz de viver u m a experiência se encontra n u m m u n d o diferente em cada década de sua vida; como ele a vê com olhos diferentes, a matéria de sua arte é continuamente renovada. Mas, na verdade, são raros os poetas q u e revelam essa capacidade de adaptação aos anos. Isso exige, a rigor, u m a honestidade e u m a coragem excepcionais d i a n t e da transformação. A maioria dos h o m e n s ou se agarra às experiências da juventude, de maneira q u e seus textos se t o r n a m u m a réplica leviana de sua obra anterior, ou deixa a paixão de lado, passando a escrever apenas com a cabeça, com um virtuosismo estéril e vazio. Há u m a outra tentação, inclusive pior: a de se tornarem figuras respeitáveis, h o m e n s públicos sem n e n h u m a participação na vida pública — cabides a p i n h a d o s de m e d a l h a s e condecorações, fazendo, d i z e n d o ou m e s m o p e n s a n d o e sentindo aquilo q u e acreditam q u e o público deles espera. Yeats não pertencia a essa estirpe de poetas, e essa é, talvez, u m a razão pela qual os jovens deveriam julgar sua poesia da maturidade mais aceitável do q u e com maior facilidade poderiam fazêlo os mais velhos, pois o jovem pode vê-lo c o m o um poeta que, ao longo de sua obra, permaneceu sempre jovem no melhor dos sentidos e que, sob certo aspecto, rejuvenesceu com a idade. Mas os velhos, a menos q u e não sejam em parte instigados pela honestidade para consigo mesmos expressa na poesia, ficarão agastados com a revelação daquilo q u e um h o m e m de tato é e continua a ser, recusando-se a crer q u e eles sejam isto:

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You think it horrible that lust and rage Should dance attendance upon my old age; They were not such a plague when I was young; What else have I to spur me into song?8 Esses versos são particularmente impressionantes e nada agradáveis, e o s e n t i m e n t o q u e os inspira foi recentemente censurado por um crítico inglês q u e costumo respeitar. Não os li como u m a confissão pessoal de um h o m e m diferente de qualquer outro, mas a de um h o m e m que era essencialmente como a maioria dos outros; a única diferença é a de uma claridade, de u m a honestidade e de um vigor maiores. A que homem honesto, idoso o bastante, tais sentimentos podem ser inteiram e n t e estranhos? Podem eles ser subjugados e disciplinados pela religião? Mas q u e m será capaz de dizer que eles estejam mortos? S o m e n t e aqueles aos quais se aplica a máxima de La Rochefoucauld: " Q u a n d les vices nous quittent, nous nons flattons de la créance que c'est nous qui les q u i t t o n s " . 9 A tragédia do epigrama de Yeats está toda no último verso. A n a l o g a m e n t e , a peça Purgatory não é também nada agradável. Eu desejaria q u e ele não tivesse escolhido esse título, pois não posso aceitar um purgatório em que não haja nenhuma alusão — ou, pelo menos, n e n h u m a ênfase — relativamente à Purgação. Mas, afora o extraordinário talento dramático com q u e ele introduziu t a m a n h a ação dentro dos limites de uma cena tão exígua e de pouco movimento, a peça oferece uma magistral exposição das emoções de um velho. Segundo penso, o epigrama q u e acabo de citar me parece dever ser considerado no m e s m o sentido dramático que o da peça Purgatory. O poeta lírico — e Yeats foi sempre um lírico, mesmo quando dramático — p o d e se dirigir a qualquer h o m e m , ou a homens muito diferentes de si próprio, mas, para fazê-lo, ele deve momentan e a m e n t e identificar-se com cada h o m e m ou com outros homens; e é apenas sua capacidade de imaginação de se trans-

8. " J u l g a m vocês ser terrível q u e a luxúria e a cólera / Devessem bailar ao sabor dc m i n h a velhice; / Elas não me afligiam tanto q u a n d o eu era jovem: / O que mais poderia me instigar a c o m p o r u m a c a n ç ã o ? " ( N . T . ) 9. " Q u a n d o os vícios nos a b a n d o n a m , gabamo-nos na crença de que fomos nós que os a b a n d o n a m o s . " (N.T.)

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formar nisso q u e leva alguns leitores a supor q u e ele esteja falandò para si mesmo e consigo m e s m o , especialmente q u a n d o prefere não se comprometer. Não desejo enfatizar apenas esse aspecto da poesia da m a t u ridade de Yeats. Gostaria de chamar a atenção para o belo poema The winding stair, em memória de Eva Gore-Boot h c de Con Markiewicz, 10 no qual a i m a g e m , a princípio de

Two girls in silk kimonos, both Beautiful one a gazelle,11 recebe uma grande intensidade graças ao i m p a c t o do verso seguinte:

When withered. old and skeleton gaunt.12 e também para Coole Park, q u e começa assim:

I meditate upon a swallow s flight. Upon an aged woman and her house. Nesses poemas percebe-se que as emoções mais intensas e desejáveis da juventude foram preservadas para acolher, retrospectivamente, a plena expressão q u e lhes era devida, pois os sentimentos interessantes da velhice não são s e n t i m e n t o s diferentes: são sentimentos aos quais os sentimentos da j u v e n t u d e são incorporados. O desenvolvimento de Yeats em sua poesia dramática é tão instigante q u a n t o o q u e se observa em sua poesia lírica Referime a ele como poeta lírico n u m sentido em q u e não aplicaria tal conceito, por exemplo, a m i m m e s m o ; e com isso q u e r o dizer que me refiro antes a uma certa espécie de emoção do 10. Eva Gore-Booth (1870-1926) e sua irmã C o n s t a n t e , depois condessa Markiewicz, estiveram associadas à renovação poética irlandesa e aos trágicos a c o n t e c i m e n ios da rebelião de 1916. cujos líderes foram executados (N T . ) 11. " D u a s moças em q u i m o n o de seda. a m b a s / Belas, u m a delas u m a g a z e l a . '

(NT.) 12. " Q u a n d o murchas, velhas e encarquilhadas " ( N . T . ) 13. " M e d i t o sobre o vôo da a n d o r i n h a , / Sobre u m a m u l h e r e n v e l h e t i d a e sua casa." ( N . T . )

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»

]

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q u e a determinadas formas métricas. Mas não há nenhuma razão pela qual um poeta lírico não seja t a m b é m um poeta dramático; e, para m i m , Yeats é o tipo de lírico dramático. ForamIhe necessários muitos anos para que desenvolvesse a forma dramática q u e melhor convinha ao seu génio. Q u a n d o ele começou a escrever peças, drama poético era o mesmo que peças escritas em verso branco. Ora, o verso branco era há muito u m a u n i d a d e métrica morta. Identificar todas as razões desse desaparecimento escaparia ao cscopo deste ensaio, mas é óbvio q u e u m a forma q u e foi tratada tão magistralmente por Shakespeare tem lá suas desvantagens. Se vocês escreverem uma peça do m e s m o tipo das dc Shakespeare, a lembrança é angustiante; se escrevcrem u m a peça de tipo diferente, é dc enlouquecer. Além disso, como Shakespeare é tão superior a qualquer dramaturgo q u e se lhe seguiu, o verso branco somente a custo pode estar dissociado da vida dos séculos XVI e XVII; e só dificilm e n t e se consegue captar os ritmos com que o inglês é falado nos dias de hoje. Considero que se algo que se assemelhasse ao verso branco regular devesse ser restabelecido, isso não poderia ocorrer senão depois de um longo interludio, ao longo do qual ele se libertaria das associações de sua época. No tempo em q u e Yeats escreveu suas primeiras peças não era possível recorrer senão à peça em verso; não se trata dc uma crítica ao próprio Yeats, mas de u m a afirmação de que as formas do verso m u d a m em determinados momentos e cm outros, não. Suas primeiras peças em verso, incluindo o Green helmet, escrita n u m a espécie de verso irregular rimado de catorze pés, são de grande beleza e, pelo menos, as melhores que se escreveram em verso em nossa época. E mesmo nestas cumpre observar certo desenvolvimento na irregularidade das medidas métricas. Yeats não inventou em absoluto um novo metro, mas o verso branco de suas últimas peças revela um grande progresso em direção a essa forma; e o que mais surpreende é o virtual aband o n o do verso branco cm Purgatory. Um artifício usado com grande sucesso em algumas das últimas peças é o interludio coral lírico. Mas u m a outra (e importante) causa do aperfeiçoam e n t o dramático dc Yeats é o gradual expurgo de qualquer o r n a m e n t o poético. Essa é, talvez, a mais penosa etapa do trabalho, no q u e se refere à versificação, do poeta moderno que

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tenta escrever u m a peça em verso. Esse a p e r f e i ç o a m e n t o se torna cada vez mais absoluto. O belo verso q u e ali se encontra e, por sua própria beleza, um luxo perigoso para o poeta q u e se tornou um virtuose da técnica teatral. O q u e preciso é u m a beleza q u e não se reduza a um verso ou a u m a passagem isolada, mas que esteja tecida na própria textura d r a m á t i c a , de m o d o q u e só dificilmente poderiam vocês dizer se são os versos que conferem grandeza ao d r a m a , ou se é o d r a m a q u e transforma as palavras em poesia. ( U m dos mais tocantes ver-

sos do Rei Lear c o singelo Never, never, never, never, never, u mas, sem o conhecimento do contexto, c o m o p o d e r i a m vocês dizer que isso é poesia, ou m e s m o verso c o m p e t e n t e ? ) A purificação do verso de Yeats torna-se m u i t o mais evidente nas q u a tro Plays for dancers e nas duas q u e estão incluídas no v o l u m e póstumo: a rigor, é nessas duas q u e se encontra sua f o r m a dramática correta e definitiva. É t a m b é m nas primeiras três das Plays for dancers q u e ele ensina como se pode tratar o mito irlandês mais do lado de dentro do que do lado de fora, como a n t e r i o r m e n t e aludi. Nas primeiras peças, assim como nos primeiros poemas, sobre heróis e heroínas lendários, percebo q u e as personagens são tratadas, com o respeito que tributamos à lenda, c o m o criaturas de um , m u n d o distinto do nosso. Nas últimas peças, elas se t o r n a m homens e mulheres universais. Talvez eu não incluísse The dreaming of the hones rigorosamente nessa categoria, pois Dermot e Devorgilla são personagens da história m o d e r n a , e n ã o figuras da pré-história; mas, para reforçar o q u e já disse, eu observaria q u e , nessa peça, os dois a m a n t e s têm algo da universalidade de Paolo e Francesca de D a n t e , e tal característica o Yeats mais jovem não lhes poderia ter atribuído. O m e s m o ocorre com o Cuchulain, em The hawk's well, e com C u c h u l a i n , Emer e Eithne, em The only jealousy of Emer\ o mito deixa de ser apresentado gratuitamente e passa a constituir o veículo de uma situação de significação universal 14. "Jamais, jamais, jamais, jamais, j a m a i s . " Ato V, cena III Esse verso p e r t e n c e ao último monólogo do rei Lear, pouco antes de sua m o r t e . ( N T )

YEATS

347

Percebo a esta altura que posso ter dado a impressão, contrária ao meu desejo e à minha crença, de que a poesia e as peças do primeiro período de produção de Yeats podem ser ignoradas em favor de suas últimas obras. Vocês não podem dividir tão radicalmente assim a obra de um grande poeta. O n d e se observa o prolongamento de uma personalidade tão positiva e de um propósito tão exclusivo não se pode compreender, ou propriamente apreciar, a obra ulterior sem antes estudar e estimar aquela que a antecedeu; e a obra dos últimos anos sempre deita alguma luz sobre a dos primeiros, revelandonos u m a beleza e u m a significação que não havíamos percebido até então. Temos t a m b é m que levar em conta as condições históricas. C o m o eu disse ainda há pouco, Yeats nasceu no fim de um movimento literário que, afinal de contas, era um movim e n t o literário inglês. Somente aqueles que trabalharam com a língua conhecem o esforço e a constância exigidos para se libertar de tais influências; por outro lado, entretanto, assim que nos familiarizamos com a voz mais antiga, tornamo-nos capazes de lhe ouvir as modulações individuais, mesmo em seus primeiros versos publicados. Na época de minha própria juvent u d e pareceu-me que não havia grandes forças poéticas imediatas q u e pudessem ser úteis ou adversas, que nos ensinassem alguma coisa ou contra as quais deveríamos nos insurgir, ainda q u e não me escapassem a dificuldade da outra situação e a magn i t u d e da tarefa. No caso da peça em verso, por outro lado, a situação é oposta, pois Yeats de nada dispunha, e não dispúnhamos de Yeats. Ele começou a escrever peças numa época em q u e a peça em prosa sobre a vida contemporânea parecia triunfante, com um f u t u r o indefinido que se abria à sua frente; em q u e a comédia de farsa ligeira se ocupava apenas de certas camadas sociais privilegiadas da vida metropolitana; e em que a peça séria tendia a se configurar como um tratado sobre algum efêmero problema social. Podemos agora começar a perceber q u e até mesmo suas precárias tentativas são provavelmente textos literários mais duradouros do que as peças de Shaw, e que sua obra dramática como um todo pode atestar uma resistência mais poderosa à vulgaridade urbana bem-sucedida da Shaftesbury Avenue, 1 5 contra a qual ele arremeteu com tanta energia

15. É o que na França se chama dc " t e a t r o de b u l e v a r " . ( N . T . )

348

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q u a n t o contra o teatro dc Shaw. Assim, desde o início, Yeats concebeu e escreveu sua poesia em termos de l i n g u a g e m , c não de caracteres impressos, do m e s m o m o d o q u e , na d r a m a t u r g i a , sempre quis escrever peças para serem encenadas, e não apenas para serem lidas. Creio q u e ele se preocupava mais com o teatro e n q u a n t o instrumento de expressão da consciência de um povo do q u e como meio capaz de lhe granjear prestígio e realização pessoal; e estou convencido dc q u e s o m e n t e recorrendo ao espírito é q u e se consegue realizar algo q u e valha a pena ser feito. Naturalmente, ele dispunha de algumas consideráveis vantagens, cuja narração não rouba coisa alguma à sua glória: seus conterrâneos, um povo com um d o m natural e intacto para a palavra e a representação. É impossível dissociar o q u e ele fez pelo teatro irlandês do q u e o teatro irlandês fez por ele. Desse ponto estrategicamente vantajoso, a idéia do d r a m a poético foi mantida viva, e n q u a n t o em todas as partem ela já desaparecera. Não sei o n d e termina nossa dívida para com ele c o m o d r a m a turgo — c, ao longo do t e m p o , ela não será paga senão q u a n d o o próprio teatro acabar. Em seus textos ocasionais sobre assuntos dramáticos, ele firmou certos princípios q u e devemos apoiar, como o da primazia do poeta em relação ao ator, e a do ator em relação ao cenógrafo; e o princípio s e g u n d o o qual o teatro, na medida em que não deve se preocupar apenas com o povo" no sentido estrito dos russos, deve ser para o povo, e dc acordo com o qual, para tornar-se p e r m a n e n t e , deve prcocuparse com situações f u n d a m e n t a i s . Nascido n u m m u n d o em q u e a doutrina da "arte pela arte era h a b i t u a l m e n t e aceita, e t e n d o vivido n u m ambiente em q u e se exigia da arte q u e ela fosse um instrumento para fins sociais, cie aderiu d e c i d i d a m e n t e ao correto ponto dc vista q u e se situa entre os dois, e m b o r a sem assumir de m o d o algum n e n h u m compromisso, c mostrou q u e um artista, ao ser absolutamente fiel à sua arte, está p r e s t a n d o ao mesmo t e m p o o maior serviço q u e p o d e a sua própria nação e ao m u n d o inteiro. Ser capaz de louvar alguém não sc resume, necessariamente, a estar sempre de acordo com a pessoa louvada, e n ã o escondo o fato de que há aspectos do p e n s a m e n t o e das emoções de Yeats que não me são simpáticos. Digo isso apenas para indicar os limites q u e cstabclcci cm m i n h a crítica. As questões dc

GOETHE. O SABIO

285

diferença, de objeção e de protesto pertencem ao terreno doutrinário, e são questões vitais. Preocupei-me apenas com o poeta e com o dramaturgo, na medida em q u e estes podem ser considerados isoladamente. Um exame cabal e minucioso de toda a obra de Yeats deverá ser algum dia empreendida; é possível q u e seja necessária u m a perspectiva mais ampla. Há certos poetas cuja poesia pode ser analisada mais ou menos à parte não só pela experiência, mas t a m b é m pelo prazer que nos proporliona. Há outros cuja poesia, embora t a m b é m nos proporcione experiência e prazer, tem u m a importância histórica maior. Yeats é um desses últimos, pois foi um dos poucos cuja história é a história de seu próprio t e m p o , um daqueles que fazem parte da consciência dc u m a época que não pode ser compreendida sem eles. Essa é a altíssima posição que lhe atribuo, embora não creia q u e ela seja definitiva.

ÌNDICE ONOMASTICO

Ab so/am an J Ac hitopel, dc

Bajazet, dc Racine: 174

Dryden: 323 Adam 's curse, de Years: 340 Addison, Joseph: 81, 206, 228 Agostinho, Santo: 165 Akcnside, Mark: 228, 232, 249

Bateson, Frederick Wilse: 152 Becket, de Tennyson: 111 Beddoes. Thomas Lovell: 134 Benn. Gottfried: 134, 136, 138

Alceste, de Eurípedes:

117

Alice no país das m ara ν ilhas, dc Lewis Carroll: 317

Allegro, L\ dc Milton: 190 Alexander. William: 181

Ml for love, de Dryden: 49. 233 All's well that ends well, de Shakespeare: 128, 137

Among school children, de Yeats: 154

Ancient mariner, lhe, de Coleridge: 147

Antonio e Cleopatra, de Shakespeare: 49, 51, 312 Arnold, Matthew: 47, 245 Arnold, Sir Edwin: 60, 280, 305

Atalanta in Calydon, de Swinburne: 306

Athalie, de Racine: 235

Aurora Leigh, de Elizabeth Barrett Browning: 65

Beppo, a Venetian history, de Byron: 267

Bhagavad-Gita: 299 Btographia lite rana, de Coleridge 142 Blake, William: 46, 62, 64, 96, 195, 201, 291 Blackmorc, Richard: 219, 226, 227, 228

Bleak house, dc Dickens: 337 Blue doset, de William Morris: 43 Bossu, René Le: 246

Bride of A by dos, The, de Byron: 266

Bridges, Roben Seymour: 41, 211, 280

Browning, Elizabeth Barrett: 65, 123 Browning, Robert: 50, 62, 65, 69, 123, 129-131, 233, 306, 311, 337

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352

Brushwood boy, 317

The, dc Kipling:

Bull that thought, The, dc Kipling: 311 Burke. E d m u n d : 2 Ρ Burnc-Jones, Edward (Edward Colcy Joncs): 341 Burns, Robert: 132, 273. 275

Byron et le besoin de la fatalité, de Charles Du Bos: 270 Byron. Lord (George Gordon): 61, 64, 139, 257-276, 283, 284

Caliban upon Se te bos, d c Robert Browning: 130 Campbell, Joseph : 148 Campion, Thomas: 41. 67. 68. 132, 339 Carcopino, Jérôme: 164 Catulo, Caio Valério: 88, 176 Cenci, The, de Shelley: 49 C h a p m a n , George: 184

Chano t of wrath, de Wilson Knight: 200 Chauccr, Geoffrey: 86, 90, 156, 187, 209, 242. 261

Childe Harold t pilgrimage, dc Byron: 266. 267

Children s song. The, de Kipling: 315

Choice, d c Pomfret: 218 Cleveland (ou Cleiveland), J o h n :

222

Coat of many colors, A, dc Sir Herbert Read: 152

Cocktail party, The, de Eliot: 117, 149

Cold iron, dc Kipling: 315 Coleridge, Samuel Taylor: 62, 142-144, 147, 156,' 216, 217, 252-254, 257, 261, 280, 299

Cornus, de Milton: 74, 198, 206, 207 Congreve, William: 80. 101

ÍNDICE ONOMÁSTICO

C o n r a d , Joseph (Teodor Józef Konrad Nalet z Korzeniowski): 148, 263

Coole Park, dc Yeats: 344

D u n b a r , William: 275

Dream of death, A, de Yeats: 340 Dreaming of the bones, The, de Yeats: 346 Dryden, J o h n : 27, 28, 45, 49, 69, 139, 188, 193. 205, 214, 216, 217, 220, 227, 233, 237, 239, 240, 247, 249, 251-256, 267, 275, 323

Corsair. The. dc Byron: 266 Cowley, A b r a h a m 219. 243 Cow per, W i l l i a m : 50, 65, 233 C r a b b e . George: 71. 273 Crashaw. Richard: 66, 182. 236

Creation, de Blackmore: 226

353

Folly of being conforte d, The, de Yeats: 340 Friendly brook, de Kipling: 331 Fry, Roger Elliot: 44 Gebir, de Landor: 62

Gehazi, de Kipling: 313

Geòrgicas, de Virgilio: 27, 169, 170

Gethsemane, de Kipling: 314

Giaour, The, de Byron: 262, 266

Criterion, The: 145, 149

Eikermann, Johann Peter: 278

Cromwell, Oliver: 45, 240

Gilbert, William Schwenck: 132

Éclogas, de Virgílio: 163, 165.

God and the unconscious, de

Curse of Kehama, The, de

166, 176

Southey: 62 ( yrnbe/tne, d e Shakespeare: 52

EJegias de Duino, dc Rilke: 134. 300

Elegy written m a country Daniel, Samuel:

churchyard. de Gray: 183, 240

184

Danny Deever, de Kipling: 309, 311. 315 D a n t e Alighieri: 86, 90, 96, 98, 99. 120, 123, 163. 165, 175, P 6 , 185, 186, 194, 208, 246, 283, 301. 346 Davidson, J o h n : 63 Davies, Sir J o h n : 9, 179-186 D c n h a m , Sir J o h n : 4 5

De rerum naturae. de Lucrécio: 299

Deserted village. The, de Oliver G o l d s m i t h : 68, 133. 142

End of the passage, The, de Kipling: 317 Eneida, de Virgílio: 88, 96, 167, 170, 172, 174 English poemi, de Milton: 198 Enterbter Geist. de Erich Heller: 296

99, 131, 176, 177, 185, 299

Dom Quixote, dc Cervantes: 285 Don Juan, de Byron: 64, 258-261, 264. 267, 269-274

Dong with a luminous nose. The, de Edward Lear: 43 D o n n e , J o h n : 48, 64, 66, 85, 132, 184, 214, 222-225, 236 Dowson, Ernest: 63 Du Bos, Charles: 270

Green helmet, de Yeats: 345 Greville, Fulke: 184 Grosart, Alexander Balloch: 181

314 Ésquilo: 116 Eurípedes: 117

Kipling: 330, 331 Haecker, Theodor: 167, 168, 282 H a l l j o s e p h : 275 Hallam, Henry: 183

Everyman: 111 86,

Goldsmith, Oliver: 68. 133, 242, 251 Gore-Booth, Eva: 344 Gray. Thomas: 183, 240, 242, 254

Habitation enforced. An, dc

312

guage, de Samuel J o h n s o n : 142, 220

Golden treasure of English songs and lyhcs: 59

Epitaphs of the war, de Kipling:

Eve of St. Agnes, The, de Yeats:

Dial. The: 149 Dictionary of the En git ih lan Divina comédia. A, de Dante

Eliot, George: 65, 128 F.mpson, William: 153

Victor White: 150 Goethe, Johann Wolfgang: 10, 94, 277-302

Eabuhste, The, de Kipling: 318

Faery queen. The, de Edmund

Hamlet. de Shakespeare: 10, 49, 104-106, 120, 284 H a m p d e n . John: 240 Hardy, Thomas: 330

Harp song of the Dane Women, The, de Kipling: 315

Family reunion, de Eliot: 113,

Hawk's well. The, de Yeats: 346 Heart of darkness, de Conrad:

115, 116 Fausto, de Goethe: 285. 287

Heaven and Earth, de Middleton

Spenser: 61, 64

Finest story m the world, The, de Kipling: 312, 317, 329

Fmnegans wake, de Joyce: 146, 148, 211

148 Murry: 201 Heller. Erich: 296-298, 300

Henrique IV, de Shakespeare: 102 Henrique V, de Shakespeare: 322

INDICE ONOMASTICO

T. S. ELIOT

354

Herbert, George: 65-68, 132, 236. 237 Herrick, Robert: 66-68 Dryden: 27. 323 Hobbcs, Thomas: 81. 227 Hölderlin. Friedrich: 293 Homero: 39. 87. 131, 167. 168.

Lactântio, Lácio Caclio (ou Caecilio) Firmiano: 165 Ladies, The, d e Kipling: 324

lalla Rookh, dc Thomas Moore:

175, 252 Hooker, Richard 81 Hopkins, Gerard Manlcy: 42. 48,

265, 266

Land, The, de Kipling

315

Landor. Walter Savage: 62, 64, 83

73, 96

Lara, de Byron: 266. 270

124

La Rochefoucauld: 293. 294 Law, William: 237 Lear. Edward: 43 Lehrs, Ernst: 287, 291 Lewis. Cecil Day: 169

Housman, Alfred Edward: 238 Hugo, Victor: 165. 328 Huxley, Aldous: 140. 143

Hyperron, dc Keats: 64. 202, 233

Lewis. C. S.: 201

Ilíada, dc Homero: 43. 167

Laghi of Ana.

In the same boat. d e Kipling: 31 " Interpretations : 153 Irene, de Johnson: 213, 233. 234

The, de Sir Edwin

Arnold: 60. 62, 64

Lives of the English poets, The,

Ivory tower, The, dc Henry James: 192

'Mary GlosterThe, de Kipling:

Kuhla Khan, dc Coleridge: 147

Hm d and the panter, The, de

House of life, de Rossetti:

Marston. J o h n : 275 Marvell. Andrew: 132

Kipling. Rudyard: 303-334 Knight, William Francis: 165 Knight, Wilson: 52, 200, 210

J

James, Henry: 88. 191. 192 Jespcrsen (Jens O t t o Harry): 41 Jeune Parque, La, de Valéry: 134 Johnson. Samuel: 68, 83, 86, 142, 197, 199-201, 206, 207, 210-213, 216-256, 312 Joyce, James: 146, 148, 167, 193, 194, 196 Julius Caesar. de William Alexander: 181

J um blies, The, de Edward Lear: 43 J u n g , Carl Gustav: 150 K e a t s . J o h n : 64, 123, 201. 202, 204, 257, 312 Ker, William Pattori: 38, 39 Kim, de Kipling: 321, 322, 328, 330 King Stephen. de Keats: 202

de Samuel J o h n s o n : 142, 216-218, 222, 254, 256 London, de Samuel Johnson: 133, 238, 239

Long expected one and twenty, de J o h n s o n : 237

Loot, de Kipling: 324

Love's labour's lost, d e Shakespeare: 51 Lovelace. Richard: 339

Matter of fact, A, de Kipling: 317 McAndrew'\ hymn, de Kipling: 306, 31 1

Men and women, dc Robert

The, de Eliot: 154, 155 Lowes. J o h n Livingstone: 146-148 Lucrécio Caro, Tito: 28, 297, 299

Lycidas, de Milton: 196, 206, 222, 223, 225

102,

114, 189 Maeterlinck, Maurice: 107, 108 Mallarmé. Stéphane: 44, 208 Markiewicz, Constance: 344 Marlowe, Christopher: 79, 127, 196

One word more, de Robert Browning: 123

Only jealousy of Emer, de Yeats* 346

Orchestra, de Davies: 178, 179, 182

O'Shaughnessy, Arthur: 63

Otelo, de Shakespeare: 114

Browning: 123 Middle marc h, de George Eliot: 128 Milton, dc Tylliard: 205 Milton, J o h n : 40, 50, 52, 59, 68, 69. 71, 83-85, 90. 91, 132, 187-215. 219, 222. 225, 228-230. 234, 240. 242, 246, 254. 260, 267

Otway, Thomas: 49, 228

Milton's prosody, de Robert

ton: 64, 68. 234, 235 Pascal; Blaise: 85 Pater, Walter Horácio: 255

Bridges: 211 Molière (Jean Baptiste Poquelin): 80, 85, 94, 101 Montaigne, Michel Eyquem senhor de: 81 Moore, Marianne: 149 Moore, Thomas: 62, 258. 265 Morris, William Robert: 42, 231, 341 Murder in the cathedral, dc Eliot: 109-114, 125 Murry, J o h n Middleton: 140, 201-203

My son's wife, dc Kipling: 330,

Love song of J. Alfred Prufrock,

Macbeth, dc Shakespeare:

306, 311

331 Nemésio: 180 Nicholson, Sir Harold: 257 Nietzsche. Friedrich: 296-298

Night thoughts, dc Young: 229 Nosce teipsum, de Davies: 178. 179, 182. 186

Nuit blanche, L·, dc Kipling: 317 Odisséia, de Homero: 43, 167 O l d h a m , J o h n : 45, 318 Oliver, F. S.: 55

355

Oxford book of English verse: 59, 179

Paraíso perdido, O, de Milton: 64, 68, 71, 192. 194, 196, 201, 202, 207, 209-212, 215

Paraíso reconquistado, O, de Mil-

Peace, de Yeats: 340

Ρ en seroso, II, de Milton: 190 Pericle s, de Shakespeare: 52 Pervigilium Venens, de Virgilio: 41

Phoenix and the turtle, The, de Shakespeare: 154 Pickwick papers, de Charles Dickens: 126 Pitt. Christopher: 218

Plays for dancers, de Yeats: 108, 341, 346

Pleasures of imagination, (The), de Akenside: 231, 249 Poe, Edgar Allan: 123, 283 Pomfrct, John: 218 Pope, Alexander: 84, 85, 90, 93. 139, 181, 188, 227, 237, 239, 251, 254, 275 Pound, Ezra: 130, 145, 187 Praz, Mario: 259

Prayers and meditations, de Johnson: 237

Prelude, de Wordsworth: 61, 64, 69, 233

INDICE ONOMASTICO

T. S ELIOT

356

Principles of art, The, de R. G. Collingwood: 318 Principles of literary criticism, dc Richards: 141 Prior, Matthew: 243 Proofs of Holy Writ. de Kipling: 312 Propcrcio, Sexto Aurelio: 88

108. 343,

Kipling: 315

Sabe dona suprema. A, d e Hubert Benoit: 143

Saint Joan, dc Bernard Shaw:

112

San\Jo Agonista, dc Milton: 68,

265

Seasons, de T h o m s o n : 65, 230, 231. 243 Seneca: 180, 184

£)**** Aíj£. de Shelley: 69

Serto us cai L de \\ 1111 am La w : 237 Shadow, u a te rs. The. de

Qucnncll. Peter: 257, 271 Racine, Jean: 49. 85, 90, 91. 94, 128, 174, 208, 235 Rafael: 123 Raleigh (ou Ralegh). Sir Walter: 220 Rambler, The, de Samuel Johnson: 1 9 7 , 2 1 1 Read, Sir Herbert E d m u n d : 152

Reason's academy. dc Davies: 178

Recessional, dc Kipling: 314 Ret João, de Shakespeare: 104 Rei Lear, de Shakespeare: 137, 346

Responsibilities, de Yeats: 340 Revolt of Islam, The, dc Shelley: 69

Rewards and fat ries, de Kipling: 330 Richards, Ivor Armstrong: 141 Rilke, Rainer Maria: 134. 296-298, 300

Road to Xanadu. The, dc John Livingstone Lowes: 146, 147 Robinson, H. M.: 148

Rock, The. de Eliot: 124, 125

Romeu e Julieta, dc Shakespeare: 10, 104, 119, 120 Rossetti. Dante Gabriel

I

71, 206, 209, 215, 234, 235 Saurat, Denis: 201 Scott, Sir Walter: 62, 257-259,

Puck ofPook's hill, de Kipling: 330 Purgatory, de Yeats: 345

Runes on U eland's sword, de

123, 341

Yeats: 341 Shakespeare William: 3 3 . 4 8 - 5 2 . 58, 68-80. 85, 86. 91-102, 104. 108, 110, 114, 115, 118-121, 128. 189. 190. 193, 194, 201-203, 219. 225. 233. 254, 283-295, 301. 312. 322, 338. 345 Shanks. Edward: 324 Shaw. George Bernard: 101, 347, 348 Shelley Percy Bysshc: 27. 40, 59. 6 2 , 6 9 . 157. 158, 200, 257, 260 Shropshire lad, de H o u s m a n : 238 Skclton, J o h n : 224 Sófocles: 128

Song of the galley slaves, de

Kipling: 306. 312 Southcy, Robcri: 62, 64. 274 Spenser, E d m u n d : 61, 83. 207

Spirti of romance. The, de Pound: 145

Stanzas front the Grande Char tre use, de Arnold: 305 Steiner, Rudolph: 287 Stendhal (Marie-Henry Beylc): 268, 328, 329 Stepney, George: 218 Storm clone, The, dc Kipling: 314

Suckling, Sir John: 339 Surrey. Henry Howard (conde de): 41 Swift, Jonathan: 81, 273 Swinburne, Algernon Charles: 306, 337 Synge, John Millington: 107.108

Iamhurlaine, de Marlowe: 127 Task, de Cowper: 65 Taylor, Jeremy: 85 Tempest, The, dc Robert Browning: 130

Tempestade, A, de Shakespeare: 52, 133. 157 Tempie, The, de George Herben: 65 Tennyson. Lord (Alfred): 42, 111, 233. 280

Thalaba, de Southcy: 62 They, dc Kipling: 325. 330 Thompson, Francis: 50 Thomson, James: 65. 230-233. 242. 243

Thought and belief in poetry, de Eliot: 296 Traherne, Thomas: 66

Troilo e Cresstda, de Shakespeare: 168

357

Villon, François: 94, 275 Virgílio Maro, Publio: 27, 39, 41, 76-79. 84-93, 95. 96. 98, 120. 163-176, 282 Waller. Edmund: 45. 236 Walsh, William: 218 Wasteland, The, de Eliot: 148, 149 Watts, Isaac: 236. 237 Way of the world, de Congreve: 80

Way through the woods, The, dc Kipling: 315 Weeper, The, de Crashaw: 182 Wells. H. G.: 328, 329 Weston. Jessie: 150

When you are old and grey and full of sleep, de Yeats: 340 White. Victor: 150

Who goes with Fergus?, de Yeats: 338 William. Charles: 61, 198, 199 U in ding star. The, de Yeats: 344

Winter's tale, The, de Shakespeare: 52

Wireless, de Kipling: 312

Wish house, The, de Kipling: 330-332

Woman in ht s life, The, de

Ulysses, de Joyce: 167, 193

Kipling: 317 Wordswonh, William: 45, 50-52, 59, 61, 151, 152, 190, 200. 214, 217, 247, 248, 257, 284, 291

Upanixadcs: 301

Work m progress, de Joyce: 194,

Truce of the bear, The, de Kipling: 313 Tylliard. E. M. W : 205

Valéry, Paul: 134, 135 Valon. Annette: 152

Vanity of human wishes, The, dc Samuel Johnson: 216, 238, 240 Vaughan, Henry: 66, 132, 236 Vénus e Adônis, de Shakespeare: 51

Vergil, Vater des Abendlander, de Theodor Haccker: 282

196 Wyatt. Sir Thomas: 40 Yaldcn, Thomas: 218 Yeats, William Butler: 46, 108. 154, 313. 335-349

Yongy-bongy bo, The, de Edward Lear: 43 Young, Edward: 50, 229, 231

Obras de T. S. Eliot 1. Poesia Prufrock and other Observations, T h e Egoist Ltd., Londres, 1917. Poems, T h e Hogarth Press, R i c h m o n d , 1919. Ara vos Prec, T h e Ovid Press, Londres, 1920. The Waste Land. Boni & Liveright, Nova York, 1922. Hollow Men, Faber & Gwyer, Londres, 1925. 1909-1925, Faber & Gwyer, Londres, 1925. Ash-Wednesday, Faber & Faber, Londres, 1930. Sweeney Agonistes, Faber & Faber, Londres, 1932. The Rock, Faber & Faber, Londres, 1934. Collected Poems 1909-1955, Faber & Faber, Londres, 1936. Old Possum's Book of Practical Cats, Faber & Faber, Londres, 1939. Four Quartets, Harcourt, Brace & Co., Nova York, 1943.

The Complete Poems and Plays 1909-1950, Harcourt, Brace and Co., Nova York, 1962.

The Cultivation of the Christmas Trees, Faber & Faber, Londres, 1954. Collected Poems 1909-1962, Faber & Faber, Londres, 1963. Poems Written in Early Youth, Faber & Faber, Londres, 1967.

2. Ensaio e Crítica Ezra Pound\ his Metric and Poetry, A. A. K n o p f , Nova York, 1917. The Sacred Wood, M e t h u e n Sc C o . , Londres, 1920. Homage to John Dryden, T h e Hogarth Press, Richmond, 1924. *. Esta relação foi extraída de Poesia de T. S. Eliot, tradução, introdução e notas de Ivan J u n q u e i r a . Rio de J a n e i r o , Nova Fronteira, 4» edição, 1984.

For Lancelot Andrewes, Faber Sc Gwyer, Londres, 1928. Dante, Faber Sc Faber, Londres, 1929. Thoughts after Lam berth, Faber Sc Faber, Londres, 1931. Selected Essays 1917-1932, Faber Sc Faber, Londres. 1932. John Dryden, T . & E. Holliday, Nova York, 1932. The Use of Poetry and the Use of Criticism, Faber & Faber, Londres, 1933. After Strange Gods, Faber & Faber, Londres, 1934. Elizabethan Essays, Faber & Faber, Londres, 1934.

Ancient and Modern, Faber & Faber, Londres, 1936. The Idea of a Christian Society, Faber & Faber, Londres, 1939. Points of View, Faber Sc Faber, Londres, 1941. The Music of Poetry, Jackson, Son & C o . , Glasgow, 1942. The Classics and the Men of Letters, OUP, Londres, 1942. Reunion by Destruction, T h e Pax H o u s e . Londres, 1943. What Is a Classic?, Faber & Faber. Londres, 1945. On Poetry, Concord A c a d e m y , C o n c o r d , Massachusetts, 1947. Milton, G . C u m b e r l e g e , Londres, 1947. Note* towards the Definition of Culture, Faber Sc Faber, Londres, 1948. Poetry and Drama, Harvard University Press, C a m b r i d g e , Mass., 1951. The Frontiers of Criticism, University of M i n n e s o t a Press, 1956. Essays on Poets and Poetry, Faber Sc Faber, Londres, 1957. George Herbert, L o n g m a n s , G r e e n & C o . , Londres, 1962. Knowledge and Experience in the Philosophy of F. H. Bradley, Faber & Faber, Londres, 1964. To Criticize the Critic, Faber Sc Faber, Londres, 1965.

3. Teatro Murder in the Cathedral, Faber Sc Faber, Londres, 1935. The Family Reunion, Faber Sc Faber, Londres, 1939. The Cocktail Party, Faber Sc Faber, Londres, 1950. The Confidential Clerk, Faber Sc Faber, Londres, 1954. The Elder Statesman, Faber Sc Faber, Londres, 1959.

4. Traduções Anabasis, a Poem by St.-John P e r s e " , Faber Sc Faber, Londres, 1965.

Sobre o autor T h o m a s Stearns Eliot nasceu em Saint Louis, Missouri, Estados U n i d o s , a 26 de s e t e m b r o de 1888, e m o r r e u em Londres a 4 de janeiro de 1965. D e s c e n d e n t e de e m i g r a n t e s ingleses q u e se e s t a b e l e c e r a m em M a s s a c h u s e t t s em meados do século XVIII, Eliot foi criado n u m a m b i e n t e f a m i l i a r b u r g u ê s , religioso e c u l t u r a l m e n t e r e f i n a d o . Um de seus avós, o r e v e r e n d o W i l l i a m G r e e n l e a f Eliot, foi f u n d a d o r da Igreja Anglicana de Saint Louis e da U n i v e r s i d a d e de W a s h i n g t o n , da qual se torn o u p r e s i d e n t e . Seu p a i , H e n r y W a r e Eliot, o c u p o u - s e por quase toda a vida dos interesses empresariais da f a m í l i a , t e n d o p r e s i d i d o a Hydraulic Press Brick C o m p a n y of Saint Louis. C h a r l o t t e C h a u n c e y Stearns, m ã e do poeta, pertencia a família aristocrática de Boston, ligada ao comércio. De boa cultura humanística e a l g u m p e n d o r literário, escreveu u m a biografia do sogro e um p o e m a , de caráter biográfico, sobre o pregador f l o r e n t i n o Savonarola. Eliot era o caçula dos sete filhos do casal. C r i a d o até q u a s e o final da adolescência em Saint Louis, Eliot concluiu os estud o s secundários em Massachusetts, na A c a d e m i a M i l t o n . C o m 18 anos, m u d o u - s e para Boston e ingressou na U n i v e r s i d a d e de H a r v a r d , o n d e se f o r m o u em Letras Clássicas. Em 1910, um a n o a p ó s a f o r m a t u r a , foi para a França. Em Paris, f r e q ü e n tou os cursos de l í n g u a e literatura francesas e de filosofia na S o r b o n n e . De volta aos Estados U n i d o s , d o u t o r o u - s e em filosofia em Harvard. No verão de 1914, Eliot partiu para a Inglaterra. No a n o s e g u i n t e surgiu seu p r i m e i r o p o e m a i m p o r t a n t e , The Love Song of John Prufrock, na revista Poetry, de Chicago. N a Inglaterra, e m p r e g o u - s e i n i c i a l m e n t e em u m a p e q u e n a escola para crianças nos arredores de Londres. Dois a n o s d e p o i s , t o r n o u - s e f u n c i o n á r i o do Lloyds Bank Ltd.. Em 1920, p u b l i c o u The Sacred Wood e, e m 1922, The Waste Land, q u e o consagrou como u m dos maiores p o e t a s d e l í n g u a inglesa d o século. A i n d a n o m e s m o ano, f u n d o u a revista trimestral de literatura e filosofia The Criterion, q u e d u r a n t e dezessete anos exerceu g r a n d e i n f l u ê n c i a nos m e i o s intelectuais e u r o p e u s . O passo seguinte no m u n d o e d i t o r i a l levou-o à d i r e t o r i a da Faber SC Fáber, à testa da q u a l p e r m a neceu a t é a m o r t e . Seus laços c o m a I n g l a t e r r a est re i t a r a m - s e d e f i n i t i v a m e n t e em 1927, q u a n d o a d q u i r i u a c i d a d a n i a inglesa. É dessa época a frase conhecida c m q u e s e a u t o d e f i n i u c o m o u m anglo-católico e m religião, classicista e m poesia c m o n a r q u i s t a em política.

/i ougruyuu uu mmuvciu

Alejo Carpentier •

A k)<> Í '«· n*nl l«T

A SAGRAÇÃO DA PRIMAVERA

Um homem luta nas Brigadas Internacionais durante a Guerra Civil Espanhola. Uma mulher é expulsa de seu país com a Revolução Russa. Um cubano e uma russa. Uma história de amor que culmina com a Revolução Cubana. A Sagração da Primavera é um fascinante mosaico construído na linguagem envolvente de Alejo Carpentier. Ε o último romance escrito por ele, um dos maiores escritores cubanos de todos os tempos.

DESERTO De J.M.G. Le Clézio Tradução de Maria Lúcia Machado

I1

Um romance magnífico, de um dos mais talentosos escritores franceses contemporâneos, ganhador do G r a n d e Prêmio Paul Morand da Academia Francesa. Conta a história da terra dos Homens Azuis, guerreiros nômades que em 1910 resistem à conquista colonizadora no Saara. Eles buscam a liberdade, a mesma que irá impulsionar Laila, uma sua descendente que vive na França, a voltar ao Deserto. Paradiso

Lezama Lima "yEm seus instantes mais altos, Paradiso é uma cerimonia, algo preexistente a toda leitura com fins e modos literários. " — Julio Cortázar. Finalmente chega ao Brasil uma das maiores obras-primas da literatura latino-americana, Paradiso, romance maior, barroco, sensual e emocionante do maior escritor cubano de todos os tempos, José Lezama Lima.

U A n i A AVJ

A METAMORFOSE Franz Kafka Enigmático e sombrio, Kafka é o a r a u t o da m o d e r n i d a d e , porta-voz de um m u n d o em p e r m a n e n t e confronto com o a b s u r d o . Metáfora grotesca da c o n d i ç ã o h u m a n a , a tragédia de G r e g o r Samsa — q u e certo dia a c o r d a ''metamorfoseado num monstruoso inseto" — tornou-se um clássico da literatura de todos os tempos.

ΓΛ1

Franz Kafka

KAFKA

A MF lAMORrOSE

C o n s i d e r a d o , ao lado de Proust e Joyce, um dos maiores escritores deste século, Kafka e r a um h o m e m p r o f u n d a m e n t e ang u s t i a d o . No sanatório, d u r a n t e o tratam e n t o de uma t u b e r c u l o s e q u e o mataria anos d e p o i s , ele inicia esta Carta ao Pai, v e r d a d e i r o a c e r t o de c o n t a s com o c a u s a dor d o s e n t i m e n t o d e f r a c a s s o q u e permeia toda a sua vida.

KAFKA

CARTA AO PAI

t r a d u ç ã o d e Modesto C a r o n e

t r a d u ç ã o d e Modesto C a r o n e

UM MÉDICO RURAL Pequenas Narrativas Franz Kafka Toda força literária de Kafka está p r e s e n t e n a s catorze narrativas q u e c o m p õ e m Um Médico Rural, b r i l h a n t e m e n t e t r a d u z i d a s pelo escritor Modesto C a r o n e (prêmio Jabuti de t r a d u ç ã o c o m O Processo, de Kafka). P o u c o c o n h e c i d a s , n u n c a p u b l i c a d a s no Brasil, elas r e ú n e m escritos pert u r b a d o r e s , o n d e estão p r e s e n t e s , d e forma magistralmente concisa, os e l e m e n t o s da prosa de Kafka.

Histórias do Sr. Keuner Bertolt Brecht As Histórias do Sr. Keuner foram escritas entre 1935 e m e a d o s dos anos 50, a p r e s e n t a n d o um p e r s o n a g e m através do qual Bertolt Brecht e x p r e s s a sua e x p e r i ê n c i a moral: o Sr. Keuner é o Sr. Brecht, um dos maiores poetas, d r a m a t u r g o s e literatos d e s t e século. Pela primeira vez r e u n i d a s , as Histórias do Sr. Keuner mostram Brecht no perfeito domínio da prosa curta, objetiva, aliada a uma ferina crítica social.

O PROCESSO De Kafka Tradução de Modesto Carone Um dos maiores romances desse século recebe uma brilhante tradução de Modesto Carone, o mais autêntico tradutor de Kafka no Brasil. Pesquisando em edições alemãs, ele acolheu os capítulos incompletos bem como passagens riscadas pelo próprio autor, compondo a mais precisa e completa tradução do grande autor tcheco já publicada em nosso país.

KAFKA

CARTAS NA RUA C h a r l e s Bukowski t r a d u ç ã o : A l b e r t o A l e x a n d r e Martins e Marilene Felinto l

Jm b e b e r r ã o simpático, cético, nostálgico e c h e i o d e h u m o r passeia pela monotonia b u r o c r á tica dos c o r r e i o s e mostra a A m é r i c a com a visão de um a n t i g u r u . Talvez o melhor e mais divertido r o m a n c e d o i r r e v e r e n t e escritor n o r t e - a m e r i c a n o C h a r l e s Bukowski.

\ Cartas •na Rua ( BUKOWSKI

MANIFESTOS André

DO

SURREALISMO

i\DKf un m λ

Breton

Uma edição histórica que reúne os très Manifestos do Surrealismo. Mais do que subverterem os conceitos da criação artística, estes textos revolucionaram a própria relação do homem consigo mesmo e com o mundo.

\u\ntxms

IMI SI KM LL/WM

JÓIAS DE FAMÍLIA Zulmira Ribeiro Tavares Maria Bráulia tem dois rubis. Um falso, um verdadeiro. Assim, em sua vida, nem sempre a aparência correspondia à realidade. Essa foi a primeira lição dos rubis de Maria Bráulia. A segunda foi que com rubis, falsos ou verdadeiros, é possível manipular os outros. E que, do jeito como funcionam as coisas, convém construir um certo poder pessoal para ter felicidade. Essa é a fábula sobre a hipocrisia social de Zulmira Ribeiro Tavares em seu novo livro, uma novela deliciosa.

AQUELE RAPAZ m e m ó r i a s e ficções Jean-Claude Bernardet Uma surpresa do c o n s a g r a d o crítico e professor de cinema J e a n - C l a u d e B e r n a r d e t : seu p r i m e i r o texto ficcional revela um escritor fluente e cativante. L e m b r a n ç a s do internato, do amigo, da g u e r r a na E u r o p a . A imigração, a c h e g a d a ao Brasil. Memórias e ficções de um h o m e m sensível e refinado.

1%V I I I I I I I U W

IV VHUMIVU) v w » -

à exceção de um deles, nas déca-

das de 1940 e 1950, De Poesia e Poetas é uma mostra luminosa da monumental erudição de um dos grandes poetas, dramaturgos e críticos do século. " Q u e m lê os textos críticos de Eliot percebe de imediato que os fundamenta não somente uma formação acadêmica, mas sobretudo uma visão de mundo, um ideário^ estético-filosófico que lhes confere o estatuto de obra do p e n s a m e n t o . "

Do prólogo de Ivan Junqueira Area de interesse: Literatura

Tradução: Ivan Junqueira

II*

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