Kupdf.net_teoria-king-kong-virginie-despentes.pdf

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Centro Nacional do Livro Livro -

m i n is t e r io

d a c u l t u r a francés

O U V R A G E P U B L I É A V E C LE LE S O U T I E N S U I V A N T  

Centre national national du livre livre -

m i n i s t è r e

français

 T Í T U L O O R I G I N A L

King Kong Théorie AUTORA

 Vir  V irgg in ie D es pe nt es  T R A D U Ç Ã O

Luís Leitão REVISÃO

Nuno Quintas C O N C E P Ç Ã O G R Á F I CA CA

Rui Silva | w w w .alf .a lfaa ia ta ria ri a .o rg DESENHOS

M iguel Carneiro Carneiro | w w w .o fici fi ci n a -a r a r a .o rg IMPRESSÃO

Gráfica Maiadouro COPYRIGHT 

© 2006 Éditions Grasset & Fasquelle © 2016 Orfeu Negro

1.a ED IÇÃ O

Lisboa, Setembro 2016 414686/16 ISBN 978-989-8327-85-7

d l 

ORFEU NEGRO

Rúa Silva Carvalho, n.° 152 —2.0 125 0-2 57 Lisboa |Portu |Portugal gal | +351 21 3244170 [email protected] | ww  w w w .o r fe u n e g ro .o r g

c h a r g é de la culture

Para Karen Bach, Raffaê Raffaêla la An derson e Coralie Trinh Th i

T EM E N TE S C O R R U P T A S 1

Escrevo da terra das feias, para as feias, as velhas, as m ac ho  nas, as frígidas, as malfodidas, as infodíveis, as histéricas, as taradas, todas as excluidas do grande mercado das gajas bo as. E com eço por aqui para que as coisas sejam claras: não peço desculpa de nada, não me venho lamentar. Não troco o meu lugar com ninguém, porque ser Virgiriie Despentes p a r e c e - m e u m a ta r e fa m a i s i n te r e s s a n t e d e c u m p r ir d o q ue qualque r outra.  A cho óptim o que haja ta m bém m ulh eres que gostam de sedu zir, que sabem seduzir, outras arranjar marido, mulheres que cheiram a sexo e outras a bolo do lanche das crianças que saem da escola. E óptim o que ha ja um as m uito m eigas, outras esfuziantes na sua feminilidade, que haja mulheres jovens, muito belas, outras va ido sas e flam an tes. A sério que fico muito contente por todas aquelas a quem as coisas tal como são convêm. Isto sem a mais pequena ironia. Acontece, porém, que não me integro nesse grupo. E claro que não escreveria 0 que escrevo se foss e bela, tão be la que fizesse m udar a atitude de todos os hom ens com quem me cruzo. E na minha qu ali dade de proletária do feminismo que falo, que falei ontem e

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No original « BadLieutenantes», do inglês BadLieutenant,  tenente (da polícia) corrupto. ( N .I !)

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que recomeço hoje. Quando recebia o RSI, não sentia vergo nha nenhum a por ser um a excluída, sentia ap ena s raiva. É a m esm a que sinto enquanto mulher: não tenho a m ínim a ve r gonha de não ser uma ga ja superboa. Em contrapartida, fico  verde de raiva que, enquanto rapariga que in teressa pouco aos homens, me estejam sempre a dar a entender que nem sequer devia existir. Ora, nós sempre existimos. Embora não haja som bra de nós nos rom ances de hom ens, cuja im agina ção é apen as po voad a por mulheres com qu em gostariam de ir para a cam a. Sem pre existim os, nunca falám os. M esm o hoje, em que as m ulheres publicam im ensos rom ances, raramente encontramos personagens femininas com físicos ingratos ou m edíocres, incapazes de amar os hom ens e de se fazerem amar por eles. Pelo contrário, as heroínas contemporâneas amam os homens, encontram-nos facilmente, deitam-se com eles em dois capítulos, gozam em quatro linhas e gos tam todas de sexo. A figura da falhad a da fem inilidade é -m e ç.mais do que sim pática, é-m e essen cial. Exactam ente como a figura do falhad o social, econ óm ico ou político. Prefiro aque í les que não têm sucesso, pela b o a e sim p les razão de que eu própria também não tenho muito; e de que, em termos gerais, o hu m or e a ima ginaç ão se situam rnais do nosso lado. Quando não tem os o que é preciso pa ra dar nas vistas, som os muitas vezes mais criativos. Sou uma rapariga mais do tipo King Kon g do que Kate M oss. Sou o tipo de mulher com quem não se casa, com quem não se tem um filho, falo da minha posição de mulher que é sempre demasiado em tudo o que é, demasiado agressiva, demasiado ruidosa, demasiado gros seira, demasiado brutal, demasiado hirsuta, sempre dema siado viril, dize m -m e. Porém, são as m inhas qualidades viris que fazem de m im qualquer coisa diferente de um caso social

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entre os outros. Tudo de que gosto da minha vida, tudo o que me salvou, devo-o à minha virilidade. É pois aqui, enquanto m ulher inap ta para atrair a atenção m asculina, para satisfazer o desejo m asculino e para me satisfazer com u m lugar à som  bra, que escrevo. É daqui que escrevo, enquanto mulher não sedutora, m as am biciosa, atraída pelo dinheiro que eu próp ria ganho, atraída pelo poder de fazer e de recusar, atraída pela cidade e não pelo interior, sempre excitada pelas experiências e incapaz de me satisfazer com o relato que m e h ão -de fazer delas. Estou-me nas tintas para dar tesão a homens que não são o meu sonho. Nunca me pareceu evidente que as rapa rigas sedutoras tivessem assim tanto gozo com isso. Sempre m e senti feia, e acom odo-m e tanto me lhor a essa c ircun stân cia quanto foi precisamente ela que me salvou de uma vida de merda a gramar tipos simpáticos que nunca me teriam levado m ais longe do que a linh a azul dos Vosges. E stou c on  tente comigo assim como sou, mais desejosa do que desejá  vel. E screvo , p o is, daqui, da terra d as que ficaram p o r vender, das m alfeitonas, das que têm a cabeça rapada, das que não se sabem vestir, das que têm med o de cheirar m al, das que têm os dentes podres, das desajeitadon as, das que os ho m ens n ão poupam, das capazes de foder com qualquer homem que as queira, das grandes putas, das pequenas desavergonhadas, das que têm a rata sempre seca, das que têm g rande s ban du  lhos, das que go stavam de ser hom ens, das que se tom am por hom ens, das que sonh am ser actrizes pornog ráficas, das que se estão a m arimb ar para os gajos m as que se intere ssam p elas amigas deles, das que têm um grande rabo, das que têm pêlos abundantes e bem negros e que não se depilam, das mulhe res rudes, barulhen tas, das que arrasam tudo à sua passagem , das que não gostam de perfumarias, das que põem um blush

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demasiado vermelho, das que são demasiado malfeitas para poderem enfarpelar-se como engatatonas mas que morrem de vontade de o fazer, das que querem u sar rou pa de hom em e ba rba na rúa, das que querem m ostrar tudo, das que são pu di cas por complexo, das que não sabem dizer não, das que são fechadas para serem submetidas, das que metem medo, das que m etem pen a, das que não fazem inveja, das que têm a pele flácida e rugas por todo o rosto, das que sonham com fazer um lifting, fazer um a lipoa spiração ou partir o nariz para o refazer m as que n ão têm dinheiro para isso, das que já não se pa re cem com nada, das que só contam consigo próprias para se protegerem, das que não sabem dar segurança, das que não querem saber d os filhos, das que gostam de beber até rebo la rem no chão no s bares, das que não sab em como p roceder; tal como, ao mesmo tempo, para os homens que não têm von tade de ser protectores, os que o queriam ser mas que não sabem como, os que não sabem lutar, os que choramingam por tudo e por nada, os que não são am biciosos, nem com pe  titivos, ne m bem dotados, nem agressivos, os que são m edro  sos, tím ido s, vulneráveis, os que prefeririam tratar da casa em  vez d e ir trab alh ar, os que são d elicad o s, calv o s, d e m asiad o po bres p ara a gradar, os que têm vontad e de levar no cu, os que não qu erem que contem os com eles, os que têm m edo de ficar sozinh os à noite. Porque o ideal da mulher branca, sedutora sem ser puta, b e m c a s a d a m a s a p a g a d a , qu e t r ab a l h a m a s s e m f az e r g ra n d e carreira, para não apoucar o seu hom em , m agra m as sem ser neurótica com a comida, que permanece sempre jovem sem se deixar desfigurar pelos cirurgiões de estética, m am ã v en  turosa sem estar obcecada pelas fraldas nem pelos traba lhos de casa, bo a dona de casa sem ser a sopeira tradicional,

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culta m as m enos do que um ho m em , ess a m ulher branca que nos agitam con stantem ente à frente do nariz, aquela que nos devíamos esforçar por copiar, à parte ter ar de se chatear a fundo por tudo e por nada, de qualquer maneira nunca me cruzei com ela, em lado nenhum . Acho m esm o que não existe.

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Se a mulher apenas existisse, de facto, na ficção escrita pelos homens, surgiria na imaginação como um ser da máxima importancia; muito versátil; heroica e mesquinha; maravilhosa e sórdida; infinitamente be la e terrivelmente medonha; tão im po rtante como um homem e segundo alguns aind a ma is. Contudo, esta é a mulher como aparece na ficção.  A verdade é que, tal como o professor Trevelyan acentua, a mulher era fechada à chave, espancada e torturada.  V  i r g i n i a   w o o l f ,

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Um Quarto Que Seja Seu 1

Tracl. M aria Em ilia Ferros M oura, pref. M aria Isabel Barren o, 3.a ed., Lisboa, Vega, 1996 . ( N.T .!)

E N R A BO -T E O U E N R A B A S - M E ?

Há algum tempo, em França, que não paramos de ouvir das boas por causa dos anos setenta. Que nos engan ám os no cam i nho, e que raio fizemos com a revolução sexual, e que temos a mania de ser homens ou quê, e que com as nossas parvoíces nos p erguntam os para onde foi a boa e velha virilidade, a do pap á e do vovô, esses hom ens que sabiam m orrer na guerra e comandar um lar com uma saudável autoridade. E com o apoio da lei. Ouvimo s das boas porque os hom ens têm m edo. C omo se tivéssemos alguma coisa que ver com isso. Mas não deixa de ser espantoso e, no mínimo, moderno que um dominante  ven h a ch oram ingar que o dom in ado não dá su fic ie n te m en te o couro... Neste caso, o homem branco dirigir-se-á realmente às mulheres ou procura expressar a sua surpresa pelo rumo que tom am globalmen te os seus assun tos? Seja como for, são inconcebíveis as reprimendas que nos dão, as advertências, o controlo que exercem sobre nós. Aqui, pom o-n os dem asiado no papel de vítimas, ali, não fodemos como deve ser, somos dem asiado debochadas ou demasiado am orosas, m as de qual quer m odo não é para perceber, ou m uito porn ográficas ou não suficientemente sensuais... Decididamente, esta revolução sexua l era dar péro las a estúp idas. M as, seja o que for que fizer mos, há sempre alguém que se dá ao trabalho de afirmar que é um a porcaria. Dan tes era m elhor, por assim dizer. Ah sim?

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N a s c i e m 1 9 6 9 . A n d e i n u m a e s c o l a m i s ta . D e s d e a p r i  mária que percebi que a inteligência dos rapazes para os estudos era igual à das rap arigas. Use i saias curtas sem que n i n g u é m d a m i n h a f a m í li a s e t en h a a lg u m a ve z p re o cu p a d o c o m a m i n h a r e p u ta ç ã o ju n t o d o s v i z in h o s . C o m e c e i a t o m a r a p í l u l a a o s c a to r z e a n o s s e m p r o b l e m a n e n h u m . F o d i lo g o que pude, o que, na época, me encheu as medidas, e vinte anos passados o único comentário que isso me inspira é: « P a r a m i m f o i su p e r .» S a í d e c a s a a o s d e z a s s e t e a n o s e p o d i a  v iv e r s o z in h a s e m qu e n in g u é m fiz e s s e re p a ro s . S e m p re sou be que iria trabalhar, que não ser ia ob rigada a sup ortar a c o m p a n h i a d e u m h o m e m p a r a qu e e le m e p a g a s s e a re n d a de casa. Abri uma conta no banco em meu nome sem ter consciência de pertencer à primeira geração de mulheres q u e o p ô d e fa z er se m p a i n e m m a r id o . M a s t u r b e i- m e b a s  t a n t e ta r d e , e m b o r a já c o n h e c e s s e a p a l a v r a p o r a te r li d o e m l iv r o s m u i to c l a r o s a c e r c a do a s s u n t o : n ã o e r a u m m o n s t ro a s s o c i a i p o r m e m a s t u r b a r , e a l iá s , o q u e f a z ia c o m a m i n h a rata só a mim dizia respeito. Deitei-me com centenas de g a j o s , s e m n u n c a e n g r a v id a r , m a s d e q u a lq u e r m o d o s a b i a a o n d e m e d i r ig i r p a r a f a z e r u m a b o r t o , s e m a u t o r iz a ç ã o d e n i n g u é m , s e m a r r i s c a r o p ê l o . T o r n e i - m e p u t a , c a l c o r re e i a c i d a d e d e s a l to s a lt o s e d e c o t e s p r o n u n c i a d o s , s e m p r e s t a r contas a ninguém, arrecadei e gastei cada cêntimo que me p a g a r a m . A n d e i à b o l e ia , f u i v i o l a d a , v o l te i a a n d a r à b o l ei a . E s c r e v i u m p r im e i ro r o m a n c e q u e a s s i n e i c o m o m e u n o m e próprio de mulher, sem imaginar um instante que, quando f o i p u b l ic a d o , m e v i e s s e m r e c i ta r o a l fa b e t o d e f r o n t e ir a s q u e n ã o d e v i a a tr a v e s sa r . A s m u l h e re s d a m i n h a id a d e s ã o a s p r im e i ra s a t e r a p o s s ib i li d a d e d e u m a v i d a s e m s e xo s e m p a s s a r p e la c a s a c o n v en t o . O c a sa m e n t o f o rç a d o t o r n o u - s e

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chocante. O dever conjugal deixou de ser urna evidencia. D u ra n t e a no s e s t i ve a m i l h as d o f e m in i s m o, n ã o p o r f a l t a de solidariedade ou de consciencia, mas porque, durante m u i to t e m p o, s e r d o me u s e x o nã o m e i m p e d i u r e al m e nte d e qu a s e n a d a . U r n a v ez q ue q u e ria te r u m a v id a d e ho m e m , t iv e u m a v i d a d e h o m e m . E q ue a r e vo lu ç ão f e m i n is t a te v e de facto lugar. Era m elhor pararem de nos d izer que, antes, e s tá v a m o s m a i s r e a liz a d a s . R a s g a r a m - s e h o r i z o n t e s , a b r ir a m - s e b r u s c a m e n t e te r rit o rio s , c om o s e t iv e s s e m e s ta d o s e m p r e ab e r to s . É certo que a França actual está longe de ser a A rcá d ia para todos. Aqui, nós, mulheres, e eles, homens, não somos feli zes. Isso não tem n ad a que ver com o respeito da tradição dos géneros. Pod eríamo s ficar todas de avental na cozinh a a fazer miúdos de cada vez que fodemos, que isso não mudaria em na da o fracasso do trabalho, do liberalismo , do c ristian ism o ou do equ ilíbrio ecológico.  A s m ulheres à m in h a v o lta g an h am efectiv am e n te m en o s dinheiro do que os homens, ocupam lugares subalternos, consideram normal serem subvalorizadas quando tomam qualquer iniciativa. Há um orgulho de criada em ter de ca m i nhar de saia travada, como se isso fosse útil, agradável ou sedutor. Um gozo servil perante a ideia de servir de tram po  l i m. S e n t im o - n os c o n st r a n gi d a s c om a s n os s a s ca p a c id a des e espiad as todo o tem po pelos hom ens, que con tinu am a im iscuir-se nos n ossos assuntos e a indicar o que está bem ou mal para nós, mas sobretudo pelas outras mulheres, através da família, das revistas femininas e do discurso dominante. E preciso apoucar essas capacidades, jamais valorizadas numa m ulher: «c om petente» con tinu a a querer dizer «m asculina».

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 Jo a n R iv ie re , p s ic a n a lis ta do in ício do século x x , e scre ve, em 1927, Womanliness as a Masquerad e.  A autora estuda o caso de uma mulher «intermedia», ou seja, heterossexual mas viril, que sofre de um a situa ção em que, de cada vez que se exprim e em público, é aco m etida de um terrível pavor que lhe faz p er  der todas as faculdades e se traduz por uma necessidade ob sess iva e hu m ilhan te de atrair a atenção dos hom ens. « A an álise revelou que a sua coqu etería e os seus pisca res de olho com pulsivos [...] se explicavam da seguinte m aneira: t r a t a v a - s e d e u m a te n t a t i v a i n c o n s c ie n t e d e a fa s t a r a a n g ú s  tia que resultaría do facto de ela tem er as rep resalias da pa rte das figuras paternais relativamente às suas proezas intelec t u a i s . A d e m o n s t r a ç ã o e m p ú b li co d a s s u a s c a p a c i d a d e s in t e  lectuais, que em si m esm a representava um triunfo, adqu iria o sentido de uma exibição tendente a mostrar que possuía o pén is do pai, depo is de o ter castrado. Fe ita a dem onstração, f ic a v a a t er r o ri z a d a c o m m e d o d a v i n g a n ç a d o p a i. T r a t a v a - s e e v i d e n te m e n t e d e u m c o m p o r ta m e n t o te n d e n t e a a p a z i g u a r a s u a v in d i c t a p r o c u r a n d o o f e r e c e r - s e a e le s e x u a l m e n t e . » Esta análise proporciona urna chave de leitura para a engat a ti c e q u e g r a s s a n a c e n a  pop  actual. Ba sta pas sea r n a cidade,  v e r u m p ro g ra m a d a M T V ou u m a e m issã o de v a rie d a d e s no p r i m e i r o c a n a l, o u f o lh e a r u m a r e v is t a fe m i n in a , p a r a f i c a r  m o s e s p a n t a d o s c o m a e x p l o s ã o d o look   c a d e l a e m ú l t i m o grau, que aliás fica m uito bem, a.doptado por m uitas rap ari gas. E de facto u m a m an eira de pedir desculpa, de tranquilizar os homens: «Vê como sou boa, apesar da minha autonomia, da minha cultura, da minha inteligência, continuo a querer a g r a d a r - t e » , p a r e c e m c l a m a r a s m i ú d a s e m f io d e n ta l. T en h o c a p a c i d a d e s q ue m e p e r m i te m v iv e r o u t ra c o is a , m a s d e c id o

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 v iv e r a alie n açã o atrav és d as e stra tég ia s de sed u ção m a is eficazes. P o d e m o s e s p a n t a r - n o s , à p r i m e i r a v i s ta , c o m o f ac to d e as raparigas adoptarem com tanto entusiasmo os atribu t o s d a m u l h e r - « o b j e c t o » , m u t il a re m o co r p o e e x i b i r e m - n o de uma maneira espectacular, ao mesmo tempo que esta geração jove m valo riza a «m ulher respeitável», ou seja, que r e j e it a o se x o f e s ti v o . M a s a c o n t r a d i ç ã o é a p e n a s a p a r e n t e .  A s m u lh e re s e n v ia m a o s h o m e n s u m a m e n s a g e m t r a n q u i liz a d o r a : « N ã o t e n h a m m e d o d e n ó s .» V a le a p e n a u s a r t r a   je s d e s c o n fo r tá v e is e s a p a to s que e n tra v a m o a n d ar, p a r tir o n a r iz o u a u m e n t a r o p e it o , p a s s a r fo m e . N u n c a n e n h u m a s o c i e d a d e e x i g iu t a n t a s p r o v a s de s u b m i s sã o à s i m p o s i ç õ e s e s t é t ic a s , t a n t a s m o d if ic a ç õ e s c o r p o r a is p a r a f e m i n iz a r u m c o rp o . E is to a o m e s m o t e m p o q u e n u n c a n e n h u m a s o c i e  d a d e p e r m i ti u t a n t o a l iv r e c i r c u la ç ã o c o r p o r a l e i n t e l e c t u a l d a s m u l h e r e s . O s u b l i n h a r e x ce s s iv o d a f e m i n il id a d e p a r e c e u m a d e s c u l p a p e ra n te a p e rd a d a s p r e r r o g a t iv a s m a s c u l i n a s , u m a m a n e i r a d e n o s t ra n q u i li z a r m o s , t ra n q u i li z a n d o - o s . « S e j a m o s liv r e s, m a s n ão d e m a s ia d o . Q u e re m o s jo g a r o j o g o , n ã o q u e r e m o s p o d e r e s l ig a d o s a o f a lo , n ã o q u e r e m o s m e te r m e d o a n in g u é m .» A s m u l h er e s a p o u c a m - se e s p o n  taneamente, dissimulam o que acabam de adquirir, colo c a m - s e n a p o s iç ã o d e s e d u t o r a s , r e in t e g r a n d o o se u p a p e l, d e u m a m a n e i r a t a n to m a i s o s t e n s i v a q u a n to s a b e m q u e , n o fundo, se trata apenas de um simulacro. O acesso a pode r es tr a d ic io n a l m e n t e m a s c u l in o s m i s tu r a - s e c o m o m e d o da pu nição. D esde sem pre que o sair da gaiola foi acom pa n h a d o d e s a n ç õ e s b r u t a i s. Não é tanto a ideia da nossa própria inferioridade que a s s im i lá m o s : f o s s e q u a l f o s s e a v i o l ê n c i a d o s i n st ru m e n t o s d e

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controlo, a historia quotidiana mostrou-nos que os homens não eram , po r natureza, superiores, nem ass im tão diferentes, das m ulheres. E a ideia de que a no ssa indep end ência é nefasta que está incru stad a em nós até ao osso. E os m eios de com u nicação social encarniçam-se a retransmiti-la: nos últimos  vin te an o s, q u an to s artigo s fo ram escrit o s so b re as m u lheres que m etem m edo aos hom ens, as que estão sozinhas, punidas pelas suas ambições ou pelas suas singularidades? Como se s e r v iú v a , a b a n d o n a d a , s o z in h a e m t e m p o d e g u e r ra o u m a l  t r a ta d a f o s s e u m a i n ve n ç ão r e c e n te . T i v e m o s s e m p r e d e n o s desenvencilhar sem a ajuda de ninguém. Pretender que os homens e as mulheres se entendiam melhor antes dos anos s e te n t a é u m a fa l si d a d e h i s tó r ic a . C o n v i v ía m o s m e n o s , n a d a m ais do que isso . N a m e s m a o r d e m d e i d eia s , a m a t er n id a d e t o r n o u - s e a e xp e  riência fem inin a incontornável, valorizad a entre todas as o u t ra s: d a r v i d a é u m a c o i sa f a n t á st ic a . A p r o p a g a n d a « p r ó - m a t e r n i d a d e » r a ra m e n t e f o i t ão r u i d o s a . G o z a r co m a s p e s  soas, eis o método contemporâneo e sistemático do duplo  vín cu lo : « F a ç a m crian ças, é fa n tá stico , s e n t ir - s e -ã o m ais m u l h e re s e m a i s r e a li za d a s d o qu e n u n c a » , m a s fa ç a m - n a s numa sociedade em derrocada, onde o trabalho assalariado é um a cond ição de sobrevivência social, m as não é garantido a ninguém, sobretudo às mulheres. Dêem à luz nas cidades onde a ha bitaçã o é prec ária, onde a esco la se dem ite, onde as crianças são submetidas às agressões mentais mais perver sas, através d a publicidad e, da televisão, da Internet, dos ve n  dedores de refrigerantes e seus con frades. Sem filhos, não há felicidade feminina, mas criar miúdos em condições decen tes será quase impossível. De qualquer modo, é preciso que

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as m ulheres se sintam em xeque. S eja q ual for a tarefa a que se proponham , tem de se poder dem onstrar que estão a realizá-la mal. Não há atitude correcta, cometemos certamente um erro na nossa escolha, somos consideradas responsá  v eis p or u m fra c a sso que, n a realid ad e, é colectivo e m isto . A s armas contra o nosso género são específicas, mas o método aplica-se aos homens. Um bom consum idor é um con sum i dor insegu ro. Espantoso e brutalmente revelador: a revolução feminista dos anos setenta não produziu nenhuma reorganização na guarda das crianças. E o mesmo se passa com a gestão do e s p a ç o d o m é s t ic o . T r a ba lh o s n ão p a g o s , p o r t a n to f e m i  ninos. Permanecemos no mesmo estado de artesanato. Nos planos político e económico, não ocupámos o espaço público, não nos apropriámos dele. Não criámos os infantá rios, nem os locais de guarda das crianças de que precisáva mos, não criámos os sistemas industrializados de serviços domésticos ao domicílio que nos teriam emancipado. Não nos empenhámos nesses sectores economicamente rentá  v e is , n e m p a ra fa z e r fo rtu n a n e m p a r a p r e sta r u m s e rv iç o à n o s s a c o m u n i d a d e . P o r q ue ra zã o n in g u é m i n v en t o u o e q u i   v a le n te do Ik e a p a ra a g u a rd a de c ria n ç a s , o e q u iv a le n te do

 M aci nt os h  

para a lida da casa? O colectivo permaneceu

um modo masculino. Falta-nos segurança quanto à nossa l e g i ti m i d a d e d e n o s a p o d e r a r m o s d o p o l í ti c o - e i s to é o m í n i m o q u e p o d e m o s f az e r, te n d o e m c o n t a o t e r ro r f í s i c o e m o r a l co m q u e s e c o n f r o n t a a n o s s a c a t e g o r i a se x u a l . C o m o s e o u t ro s s e fo s s e m o c u p a r co r re c ta m e n t e d o s n o s s o s p r o  blemas, e como se as nossas preocupações específicas não fossem assim tão importantes. Estamos erradas. Embora

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seja evidente que as mulheres, quando chegam ao poder, se tornam exactamente tão corrup tíveis e noj entas como os homens, é ine gável que certas considerações são especificamente fe mininas. Descurar o terreno p olítico como fize mos traduz as nossas p róp rias reticências à emancipação. É verdade que para lutar e ter êxito em política é preciso sacrificar a noss a feminilidade, p ois temos de estar dis postas a bater-nos, triunfar, dar mostras de poder. É pre ciso deixarmos de ser meigas, agradáveis, solícitas, é preciso arrogar-nos o direito de dominar o outro, publicamente. Pre scind ir da sua ap rovação, exercer o p oder frontalm ente, sem req ue bro s nem d esculp as, p ois raros serão os com p eti dores que vos felicitarão por os vencerem .  A m a te rn id a d e to rn o u -se o asp ecto m a is g lo rific a d o da condição feminina. É também, no Ocidente, o asp ecto em que o po de r da m ulher m ais cresceu. O que é verd ade d esde há muito temp o p ara as filhas , esse domínio total da mãe, tornou-se também verdade para os filhos. A mamã sabe o que é bom p ara o seu rebento, dizem-nos constantemente em tod os os tons; ela seria intrinseca m ente p ortado ra desse p oder assombroso. Rép lica doméstica daquilo que se orga niza no colectivo: o Estado, cada vez mais vigilante, sabe m elhor do que nós o que devem os com er, beber, fum ar, in ge  rir, o que estamos aptos para ver, ler, compreender, como devemos deslocar-nos, gas tar o nosso dinh eiro, distrair-nos. Q uando Sarkoz y exige a p o lícia na escola, ou Ro yal o exército no s ba irros, não estão a introduzir na s crian ças um a figura viril da lei, mas o prolongamento do poder absoluto da mãe. Só ela sabe castigar, enquadrar, manter a s crian ças em e stado de engorda prolongada. Um E stado que se arvora e m m ã e t o d o - p o d e r o s a é u m E s t a d o f a sc i z a n te . O c id a d ã o

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de uma ditadura regressa ao estado de bebé: fraldado, ali mentado e man tido no berço por uma força omnipresente, que sabe tudo, que pode tudo, tem todos os direitos sobre ele, para o seu próprio bem. O indivíduo é privado da sua autono m ia, da sua faculdade de se engan ar, de correr riscos. É para aí que caminha a nossa sociedade, possivelmente porque o no sso tem po de grandeza ficou já m uito p ara trás; estam os a reg ressa r a estádios de organ ização c olectiva que infantilizam o indivíduo. N a tradição, os valore s viris são os  v a lo re s da exp e rim en taçã o , da assu n ç ã o de risc o s , da ru p  tura com o lar. Q uando a virilidad e das m ulheres é sistem a ticam ente desprezada, e ntravada e apontada com o n efasta, os homens fariam mal em regozijar-se ou sentir-se pro tegidos. Com efeito, é a sua autonomia, tal como a nossa, que é posta em causa. Numa sociedade liberal de vigilân cia, o ho m em é um con sum idor com o outro qualquer, e não é dese jável que tenh a muito m ais pode res do que um a mulher. O corpo colectivo fun cion a com o um corpo ind ividua l: se o sistema é neurótico, gera espontaneamente estruturas autodestrutivas. Quando o inconsciente colectivo, através des ses instrum entos de poder que são os m eios de com unicação social e a ind ústria do entretenim ento, sobrev aloriza a m ater  nidade, não o faz por am or do fem inino n em por benevo lência global. A m ãe inv estida de todas as virtude s é o corpo co lec tivo que preparam os p ara a regressão fascista. U m po der que um Estado doente concede é obrigatoriamen te suspeito. Ouvimos hoje em dia homens a lam en tarem -se de que a em an cipação fem inista os desviriliza. Se ntem no stalgia de um estado anterior, em que a sua força se en raizava na op ressã o fem inina. Mas esquecem-se de que essa vantagem política que lhes era

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dada teve sempre um preço: os corpos das m ulheres só perte n cem aos homens como contrapartida de os corpos dos hom ens pertencerem à produção, em tempo de paz, e ao Estado, em tempo de guerra. O confisco do corpo das mulheres pro du z-se ao m esm o tem po que o confisco do corpo dos hom ens. A lém de alguns dirigentes, aqui não há ganh ado res. O soldado mais conhecido da guerra no Iraque é uma m u lh e r. O s E s t a d o s e n v i a m a g o r a o s s e u s p o b r es p a r a a f r en t e d e b a t a l h a. O s c o n f l i t o s a r m ad o s t o r n a r a m - se t e r r i t ó r i os m i s t o s. C a d a v e z m a i s , a p o l ar i d a d e n a r e a l i d ad e f a z - s e e m função da classe so cial. O s h o m e n s d e n u n c i a m c o m v i r u l ê n c i a i n j u s t i ç as s o c ia i s o u r a c i a i s, m as m o st r a m - s e i n d u l g e n t es e c o m p re e n s i v o s q u a nd o se tr a ta d e d o m i n a ç ã o m a c h i s ta . M u i to s de l e s p r et e n  d e m e x p l i ca r q u e o c o m b a t e f e m i n is t a é a c e s s ó r io , u m d es  porto de ricos, que não é oportuno nem urgente. E preciso ser i m b e c il , o u a b s o l u t a m en t e d e s o n e s t o , pa r a c o n s i d e ra r u m a opressão insupo rtável e a outra plena de poe sia. D e ig u a l m o d o , a s m u l h e re s t e r i am i n t e re s s e e m t o m a r m a i o r c o n s c i ê n c ia d a s v an t a g e n s d o a c e s s o d o s h o m e ns a um a paternidade activa, em vez de tirar proveito do pod er que lhes é conferido politicam en te através d a exaltação do instinto m a t er n a l. A m a n e i r a c o m o o p a i o lh a pa r a a c r i a n ç a c o n s t it u i u m a r ev o lu ç ã o e m p o t ê n cia . O s pa i s p o d e m d e s i g n a d am e n t e m ostrar às filhas que elas têm um a existênc ia própria, fora do mercado da sedução, que podem ter força física, espírito de iniciativa e indepe ndê ncia, e va lorizá -las po r essa força, sem tem or de um castigo im ane nte. E po dem advertir os filhos de que a tradição m ach ista é um a arm adilha, um a forte restrição das em oções, ao serviço do Exército e do Estado. Co m efeito, a ¡virilidade tradicional é um a d ispo sição tão m utiladora com o

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um a fixação n a fem inilidade. O que im plica, em con creto, ser u m h o m e m , u m h o m e m v e rd a d eir o ? R e p r e s s ão d a s e m o ç õ e s. Calar a su a própria sensibilidade. Ter vergon ha da sua fragili dade, da sua vulnerabilidade. D eixar a infân cia bruscam en te e d e u m a m a n e i r a d ef in i ti va : o s h o m e n s - c r i a n ç a n ã o t ê m b o a imp rensa. Ter angústias com o tam anh o da pila. S ab er fazer gozar as mulheres sem que elas saibam ou queiram in di car a ma neira de lá chegar. Não m ostrar fraqueza. Am ord aça r a s u a s e n s u a l id a d e . V e s t i r -s e c o m c o re s n e u t r as , u s a r s e m  pre os mesmos sapatos pesadões, não brincar com os cabe l o s, n ã o u s a r d e m a s i a d a s jó i as , n e m n e n h u m a m a q u i lh a g e m . Dever dar o prim eiro passo, sem pre. Não ter nen hu m a cultura sexual para melhorar o seu orgasmo. Não s aber pedir ajuda. D e v e r s er c o ra jo s o m e s m o q ue n ão s e te n h a n e n h u m a v o n  tade de o ser. V alorizar a força seja qual for a su a natu reza. D ar provas de agressividade . Ter um acesso restrito à paternidade. Triunfar socialmente, para cons eguir as melhores mulheres. T e m e r a s u a h o m o s s ex u a li d ad e , p o rq u e um h o m e m , u m v e r  dadeiro, não deve ser pene tra do. Não brincar com bonecas quando se é pequeno , contentar-se com carrinho s e arm as de plástico horrorosas. Não cuidar do seu corpo. Estar sujeito à brutalidade dos outros hom ens sem se queixar. Sa be r defender-se, mesmo que se seja pacífico. Estar cortado d a sua feminilidade , simetricamente às mulheres que renunc iam à s u a v i ri lid a d e , n ã o e m f u n ç ã o d a s n e c e s s i d a d e s d e u m a s i tu a  ção ou de um a personalidade, m as em função do que exige o corpo colectivo. Pa ra que, sem pre, as m ulheres d êem os filhos para a guerra, e os homens aceitem ir dei xar-se mat ar para salvar os intere sses de três ou quatro im bec is de v ista s curtas. Se não cam inharm os em direcção a esse d esconhecido que é a revolução do s géneros, conhecem os exactam ente para onde

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 v a m o s regredir. Um E stad o to d o -p o d e ro so que nos in fa ntil iz a e intervém em todas as nossas decisões, para nosso próprio bem , que - sob o pretexto de m elhor nos proteger - nos m an  tém n a infância, na igno rância, no tem or do castigo e da exclu são. O tratamento de favor que até então estava reservado às m ulheres, com a vergonh a como instrum ento de ponta pará as m an ter no isolam ento, na passividade, no imo bilismo , poderia estender-se a todos. Compreender os mecanismos da n ossa inferiorização e o modo como somos levadas a ser os seus m elhores vigilantes é com preender os m ecan ism os de controlo de tod a a pop ulação. O capitalismo é um a religião igualitarista,  já que nos sub m ete a tod os e lev a cad a um de n ós a sentir que caiu num a armadilha, como caíram todas as mulheres.

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Nos Estados Unidos e noutros países capitalistas, as leis relativas à violação enquanto regras foram inicialmente pensadas para a protecção dos homens das classes altas, cujas filhas e esposas podiam ser atacadas. O que acontecia às mulheres das classes trabalhadoras era pouco importante para a justiça; é assim que que foram muito poucos os homens brancos acusados pelos crimes sexuais que infligiram a estas mulheres.  a n g e l a  d a v i s

,

Women, Race and Class, 1981

I M P O S S Í V E L V I O L A R E ST S T A M UL ULH E ER R  C H E IA IA D E V Í C I O S 1

 Ju  J u lh o d e 1 9 8 6 , t e n h o d e z a s s e t e a n o s . S o m o s d u a s r a p a r i g a s , d e m i n i - s a i a , e u c o m collants às collants  às risca s e converses d converses d e c a n o b a i x o  v e r m e l h o s . R e g r e s s a m o s d e L o n d r e s , o n d e g a s t á m o s , e m d i s  cos, tintas para o cabelo cabel o e diversos divers os acessório s cravejad os, todo t odo o dinheiro dinheir o que tính tí nh am os de parte, de m odo que estam os sem c h et e t a p a r a a v i a g e m d e v o lt lt a. a. V e m o - n o s e d e s e j a m o - n o s p a r a ir até até Ca lais à boleia, foi preciso preci so um dia inteir inteiro, o, e p ar a paga r 0 ferry   tivemos de nos pôr a pedir ao lado das bilheteiras, de modo que quando chegamos é já noite cerrada. Durante a t r a v e s si s i a , p r o c u r á m o s p e s s o a s d e c a rr rr o q ue ue f o s s e m m a i s do nosso género. Dois italianos, belos homens, que fumam marijuana, levam-nos até às portas de Paris. Agora estamos numa estação de serviço, em plena noite, algures no bulevar periférico. periféri co. D ecidim os e sperar o nascer do dia e o acorda r dos c a m i o n i s ta ta s , p a r a e n c o n t r ar a r u m q u e n o s le le v a s s e d i re r e c t am am e n t e a N a n c y . V a g u e a m o s p e lo lo p a rq r q u e de d e e st s t a c io io n a m e n t o e d e p o i s p ela loja, loja, não faz muito frio. fri o.  A u t o m ó v e l d e t r ê s r u fi a s , b r a n c o s , t í p i c o s h a b i t a n t e s d o s subúrbios d a época, cervejas, charros, fa la- se de Re nau d, o can tor tor. Com o são três, três, ao ao princípio recusam os ir com e les. Dão -se ao trabalho de serem verdadeiramente simpáticos, de dizer

1

Canção «An tisocial», tisocial», da banda francesa Trust.

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 p i a d a s e d e f a l a r c o n n o s c o . C o n v e n c e m - n o s d e q u e s e r i a estú

pido esperar a oeste de Paris, quando nos poderiam deixa r a leste, ond e seria m ais fácil arranja arranjarr uma boleia. boleia. E lá entramo s

no carro. Das duas, sou a mais viajada, a que fala mais alto, a que decide que podemos ir. Porém, no momento em que as portas se fecham, já sabemos que foi estúpido. Mas em vez de gritarmos «deixem-nos sair» nos poucos metros em que isso ainda é possível, cada uma de nós pensa com os seus botões que temos de nos debcar de paranoias e de ver violadores por todo todo o lado. Já há m ais de urna urna hora que falam falam os com eles; têm um simples ar de calões, divertidos e nada agressivos. Depois havia aquela proximidade entre as coisas indeléveis: corpos de homens num espaço fechado de onde não podemos sair, onde estam os juntam juntam ente com eles eles,, m as não não somo s sem elhan tes a eles. Jamais semelhantes, com o nosso corpo de mulheres.  Ja  J a m a i s e m s e g u r a n ç a , j a m a i s a s m e s m a s d o q u e e le s . N ó s som os do sexo do do me do, da hum ilhação, ilhação, o sexo sexo alheio. alheio. É sobre essa exclusão do nosso corpo que se constroem as virilidades; é nesses momentos que se tece a sua famosa solidariedade masculina. Um pacto que assenta na nossa inferioridade. Os seus riso s de gajos, en tre eles, o riso do m ais forte, em núm ero. Enquanto isso se passa, eles fingem não saber bem o que s e p a s s a . D a d o q u e e s t a m o s d e m i n i -s - s a ia i a , u m a co co m o s c a b e  los verdes e a outra com os cabelos cor-de-laranja, temos obrigatori obrigatoriam am ente de «foder como coelhos», coel hos», pelo pelo que a v iola  ção çã o que se s e perspectiva não é bem u m a violação. violação. C om o a co n  tece tec e com a m aioria das violações, violações, imagino eu. eu . Suponho que, depois, nenh um destes três tipos tipos se irá irá reconhecer como v io  lador. Com efeito, o que eles fizeram foi outra coisa. Os três com um a carabina contra duas raparigas raparigas a quem bateram até até fazê-las sangrar: nad a de violação. violação. A p ro va é que que,, se realm realm ente

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não quiséssem os ser violad as, teríam os preferido m orrer, ou teríamos conseguido matá-los. Aquelas a quem isso acon tece, do ponto de vista dos agressores —eles lá se arranjam, de um a m an eira ou de outra, para acreditar nisso a , desde que escapem com vida é porque o ocorrido não lhes desagradou tanto quanto isso. É a única explicação que tenho para este paradoxo: desde a publicação de Baise-moi, tenho encontrado mulheres que me vêm contar coisas do género «fui violada, com tal idade, em tais circunstân cias». Isso re pe tiu-se a po nto de se tornar incómodo, e num primeiro momento cheguei a pergun tar-m e se estariam a mentir. Faz parte da n o ssa cul tura, desde a Bíblia e da história de José no Egipto, a palavra da mu lher que acusa o hom em de violação ser antes de m ais uma palavra de que duvidamos. Por fim, acabei por admitir que isso acontece constantemente. Eis aqui um acto unifi cador, que liga todas as classes, sociais, etárias, de beleza e até de person alidad e. Sen do assim , como explicar que a parte contrária quase nunca seja ouvida: «violei fulana, em tal dia, em tais circunstân cias»? Porque os hom ens co ntinuam a fazer aquilo que as mulheres aprenderam a fazer durante séculos: cham ar a isso outra coisa, bordar, am an ha r-se, sobretudo não utilizar a  palavra para descrever o que fizeram. Eles «força ram um pouco» uma rapariga, foi uma «brincadeira levada um pouco longe demais», ela estava «demasiado toldada» ou era uma ninfomaníaca que fingia não querer: mas se isso se pôd e fazer, foi porque, no fundo, a rap ariga con sentiu. Q ue tenha sido preciso bater-lhe, a m eaçá-la, jun tarem -se vários para a forçar e ela choramingar antes, durante e depois não altera nada: na maior parte dos casos, o violador arranja-se com a sua consciência, não houve qualquer violação, apenas uma galdéria que não se assume e que só foi preciso saber

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convencer. A m eno s que isso tam bém seja difícil de aguentar, para a outra pa rte. Não sabem os, eles não falam .  A v erd a d e é que só os p sic ó p a ta s g rav es, v io la d o re s em série que retalham as ratas a golpes de cacos de garrafas, ou pedófilos que ata cam rapariguinhas, são identificado s na p ri são. Porque os hom ens con denam a violação . M as o que eles fazem é sem pre outra coisa. D i z - s e m u i t a s v e ze s q u e a p o r n o g r a f ia a u m e n t a o nú m e r o d e v i o l a ç õ e s . A s s e r ç ã o h i p ó c r it a e a b s u r d a . C o m o s e a a g r e s  são sexual não passasse de uma invenção recente e fossem p r e c is o s f il m e s p a r a a i n tr o d u z ir n o s e s p í r it o s . E m c o m p e n  sação, o facto de os hom ens franceses n ão irem p ara a guerra desde os ano s se ssen ta e o conflito argelino aum entam s egu  r am e n t e a s v i o l a ç õ e s « c i v is » . A v i d a m i li ta r e r a u m a o c a s iã o , que se apresentava periodicamente, de praticar a violação c o le c ti va , « p o r u m a b o a c a u s a » . T r a t a - s e e m p r i m e i ro l u g a r de um a estra tégia de gue rra que contribui para a virilização do grupo que a comete ao mesmo tempo que enfraquece, hibridizando-o, o grupo adversário, e isto desde que existem as guerras de conquista. Deixem de nos querer impingir que a i violencia sexu al co ntra as m ulheres é um fenóm eno recente  ypu e sp e c ífico de u m grup o qualq uer. No s prim eiros ano s, evitava-se falar nisso. P assado s três anos, no b a i rr o d a C r o i x R o u s s e , u m a r a p a r i g a d e q u e m g o s t o m u i to fo i v i o l a d a e m c a s a , e m c i m a d a m e s a d a c o z i n h a, p o r u m t ip o que a seguiu da rúa. No dia em que soube disso, trabalhava numa pequena loja de discos, a Attaque Sonore, na velha L y o n . T e m p o m a r a v i lh o s o , s o l, g ra n d e l u m i n o s i d a d e d e V e rã o que se espraiava ao longo das paredes das ruas estreitas da cidade antiga, velha s ped ras de cantaria polidas, nos brancos

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amarelecidos e alaranjados. O cais do Saône, a ponte, as fachadas das casas. Sempre me impressionou aquela b eleza, sobretudo n esse dia. A violação não pe rturba qualquer tran  quilidade, está já inse rida na cidade. Fech ei a loja e fui dar um a  volta. A q u ilo revo lto u -m e m ais do que q u an do n o s aco n teceu a nós. Atravé s da sua história, com preendi que era um a coisa que apan háv am os e de que não nos con segu íam os livrar. Que nos fora inocu lada. A té então, estava con ven cida de que tinha aguen tado o golpe, que tinha a pele co riácea e m ais que fazer na vida do que permitir que três labregos m e traum atizassem . Só quando vi até que ponto eu equiparava a su a violaçã o a um acontecimento após o qual nada seria como dantes, aceitei ouvir, po r ricochete, o que sentia por nó s pró prias. Fe rida de um a guerra que tem de se travar no silêncio e na obscu ridade. Eu tinha vinte anos quando aquilo lhe aconteceu, e não queria ouvir falar de feminismo, que considerava não ser s u f i c i e n t e m e n t e  punk rock   e e s t a r d e m a s i a d o i m p r e g n a d o de boas intenções. Depois da agressão da minha amiga, m u d e i de o p in i ã o e p a r t ic i p e i n u m f i m - d e - s e m a n a d e fo r  mação de escuta de Stop Viol, um serviço telefónico per m a n e n t e , p a r a f a la r n a s e q u ê n c i a d e u m a a g r e s s ã o , o u o b t e r informações jurídicas. Aquilo mal tinha começado, e eu estava já a resmungar comigo própria: porque havemos de estar a acon selhar alguém a ap resentar queixa? Ir ter com a b ó f ia n ã o s e r v i a d e n ad a , a m e n o s q u e f o s s e p a r a o b t e r u m a indemnização da companhia de seguros. Pensava instinti  v a m e n te que d ec la ra r u m a v io la ç ã o n u m a e sq u a d ra de p o lí c i a e r a c o r re r u m r i s c o d e s n e c e s s á r i o . A l ei d o s c h u i s é a l e i dos homens. Depois, uma das participantes explicou: «Na m a i o r p a r t e d o s c a s o s , u m a m u l h e r q ue fa l a d a s u a v i o l a ç ã o c o m e ç a p o r lh e c h a m a r o u tr a c o i s a . » C o n t in u e i a r e s m o n e a r

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interiormente: «Tretas.» Eis o que me parecia altamente improvável: por que razão elas não diriam a palavra, o que é que e s ta q ue e s t á a f a l a r s a b e d i s so ? S e c a l h a r p e n s a q u e s o m o s todas iguais. De repente, contenho o meu impulso: o que fiz até ago ra? A s raras vezes - na m aior parte do s caso s já bem entornada —em que quis falar disso, terei dito a pala  v ra? N u n ca . A s p o u c a s vezes em que p ro cu rei co n ta r o que se passou, contornei o termo «violação»: «agredida», «enro l a d a » , « a b u s a d a » , « u m a a l h a d a » , whatever . .. A qu estão é q ue, e n q u a n t o e l a n ã o fo r c h a m a d a p e lo s e u n o m e , a a g r e s s ã o perde a sua especificidade, pode confundir-se com outras a g r e s s õ e s , c o m o s e r a s s a l ta d a , ir p r es a , s e r d e t i d a p r e v e n t i   v a m e n te o u e sp a n c a d a . E sta e stra té g ia da m io p ia te m a su a utilidade. Com efeito, quando chamamos violação a uma  v io la ç ã o , to d o o ap a relh o de v ig ilâ n c ia d as m u lh e res en tra em acção: queres que se saiba o que te aconteceu? Queres q ue to d a a g e n t e o l h e p a r a t i c o m o u m a m u l h e r a q u e m i s s o a c o n t e c e u ? E , de to d o s o s m o d o s , c o m o p u d e s t e s a i r v i v a de u m a c o i s a d e s s a s s e n ão f o s s e s u m a r e m a t a d a g a ld é r ia ? Uma mulher que prezasse a sua dignidade teria preferido m a t a r - s e . A c i r c u n s t â n c i a d e t er s o b r e v iv i d o c o n s t it u i, e m s i m e s m a , u m a p r o v a c o n t r a m i m . O fa c to d e f ic a r m a i s a t e r r o  rizada com a ideia de ser morta do que traumatizada com o t r u c a - t r u c a d o s tr ê s id i o t a s a p r e s e n t a v a - s e c o m o u m a c o i s a m on struosa , algo de que nun ca tinha ouvido falar, em p arte n e n h u m a . F e l i z m e n t e q u e, n a m i n h a q u a l id a d e d e  punk   p r a ' ficante, podia prescindir da minha pureza de mulher como deve ser. Co m efeito, tem os de ficar traum atizadas co m um a  v io la çã o , h á u m a sé rie de m a rca s v is ív e is que é p re c is o r e s  peitar: medo dos homens, da noite, da autonomia, nojo do s ex o e o u t r a s g r a ç a s . O u v i m o s r e p e t ir o m e s m o e m t o d o s o s

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tons: é grave, é um crime, os homens que te amam, se sou berem , vão ficar doidos de dor e de raiva (a viola çã o tam bém é um diálogo privado, onde um homem declara aos outros homens: fodo as vossas mulheres à bruta). Mas o conselho mais sensato, por toda uma série de razões, continua a ser «guarda isso para ti». Ou seja, sufoca entre as duas injunções. V ai-te lixar, minh a puta. De mod o que se evita a palavra. Por ca usa de tudo o que ela envolve. No cam po das agredidas, tal com o no do s a gressores, fala -se com rodeios. E um silêncio cruzado. Nos primeiros anos após a violação, surpresa desagradável: os livros não poderão fazer nada por m im, coisa que nunca m e tinha acontecido. Quando, por exemplo, em 1984, fui inter nada durante alguns meses, a minha primeira reacção, ao sair, foi a de ler. 0 Pavilhão das Crianças Loucasa, One Flew Over  The Cuckoo'sNest, W henlW asF ivelKilledM yself,  e ensa ios sobre psiquiatria, internamento, vigilância, adolescência. Os livros estavam ao meu lado, faziam-me companhia, tornavam a coisa possível, dizível, partilhável. Prisão, doença, maus-tra tos, drogas, aban don os, depo rtações, todos os traumas têm a sua literatura. M as este traum a crucial, fundam ental, defini ção prim eira da fem inilidade, «aqu ela que se pode possuir por arromb am ento e que deve ficar sem d efesa», e sse traum a não entrava na literatura. N enhu m a mulher, depois de ter passado pela violação, recorreu às palavras para fazer disso um tema de romance. Nada, nem que guie, nem que acompanhe. Isso não tran sitava para o dom ínio do simbó lico. É extraordinário que, entre mu lheres, não se d iga nad a às rapar igas, não ocorra 2

Valerle Valere, O Pavilhão das Crianças Loucas,  trad. Estela Cruz Ferreira, Lisboa, Via Editora, 1979. (N.T)

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a m ais pequena transm issão de saber, de dicas de sobreviven  cia, de conselhos práticos simples. Nada. Finalmente, em 1990, vou a Paris para ver um concerto das Limbomaniacs. No TGV, leio a revista Spin.  Nela, urna certa Camille Paglia escreve um artigo que me invectiva e que de inicio me fez rir, em que desc reve o efeito que lhe pr o  v o ca m os futeb o li stas no cam p o, fa sc in a n te s b estas de se xo, plenos de agressividade. Começava o artigo a falar de toda aquela raiva guerreira e de como lhe dava prazer tal exibi ção de suor e de coxas m uscu ladas em acção. O que, pouco a pouco, a ia levando para o assunto da violação. Não m e lem  bro dos termo s exactos, m as dizia essen cialm en te o seguinte: «E um risco inevitável, é um risco que as mu lheres devem ter em conta e aceitar correr se quiserem sair de casa e andar á  vo n tad e. S e isso te aconte cer, le v a n ta -te , dustyourself e p a s s a à frente. Se te aterroriza, então o m elhor é ficares em casa d a mãezinha a arranjar as unhas.» Aquilo, na altura, revoltou-m e. N áu sea de defesa, e, nos m inutos que se seguem, ná u sea de ssa coisa da grande calm a interior: estou apardalada. G are de Lyon, era já de noite, telefone i à Caro line, a am iga de sempre, antes de me pirar para norte em direcção à sala da rúa Ordener. Falei-lhe, toda excitada, daqu ela italiana am e ricana, e disse-lhe que tinha de ler isto p ara m e dar a sua op i nião. A Caroline ficou tão ap ardalada com o eu. S

Depois, nunca mais nada ficou compartimentado, afer rolhado, como antes. Pensar pela primeira vez a violação de um a m aneira nova. A té agora, o assunto tinha permanecido tabu, estava de tal modo minado, que ninguém se permitía dizer nada além de «que horror» e «p ob res raparigas ». Pela primeira vez, alguém valorizava a faculdade de uma mulher se recompor, em vez de discorrer indulgentemente

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sobre o florilégio dos traum as. Desv alorização da vio laçã o, da sua importancia, da sua ressonância. Isso não anulava nada do que se tinha passado , não apagava n ada do que tínham os aprendido nessa noite. Cam ille Paglia é sem dúvida a m ais controversa das fem i nistas am ericanas. Ela sugeria que se co nsiderasse a violação como um risco que era preciso correr, inerente à nossa con dição de mulheres. Uma liberdade inaudita, de desdramatização. Sim, tínhamos estado lá fora, num espaço que não era para nós. Sim, tínhamos vivido, em vez de morrer. Sim, estávam os de m ini-s aia sozinhas, sem um gajo conn osco, de noite, sim, tínhamos sido parvas, e fracas, incapazes de lhes dar cabo da fronha, fracas como as raparigas aprendem a ser quando as agridem. Sim, aquilo tinha-nos acontecido, mas pela prim eira vez com preendíamos o que ha víam os feito: s a í ramos para a rua porque em casa do papá e da mam ã não acon tecia nada de interessante. Assumimos o risco e pagámos o preço, e em vez de termos vergonha de estarm os viva s, p od ía m os decidir voltar a pô r-no s de pé e recom po r-nos o melhor possível. Paglia permitia que nos im aginássem os com o gu er reiras, já não responsáveis pessoalmente por algo que está  v am o s m esm o a pedir, m as v ítim a s v u lgares do que seria de esperar que nos acontecesse quando somos mulheres e nos queremos arriscar a sair do casulo. Ela era a prim eira a reti rar a violação do pe sad elo absoluto, do não dito, do que é p re  ciso que nunca ocorra, tran sform and o-a num a circunstância política, em algo que devíamos aprender a aguentar. Paglia mudava tudo: já não se tratava de negar nem de sucumbir, m as sim de viver com isso.  V erão de 2 0 0 5 , F il ad élfia , ten ho d ia n te de m im C am ille P a g l i a , q u e e s t á a se r e n t r e v i s ta d a p a r a u m d o c u m e n t á r io .

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 A cen o que sim com a c abeça, e n tu sia sm ad a com o que ela diz: «Nos anos sessenta, nos campi  universitários, as raparigas estava m fech ada s nos dorm itórios às dez da noite, enquanto os rapazes faziam o que queriam. Quando perguntámos: “Porquê essa diferença de tratamento?”, explicaram-nos: "Porque o mundo é perigoso, arriscam-se a ser violadas.” E nós respondemos: “Então dêem-nos o direito de nos arris carm os a ser violadas.” » Entre as reacções que o relato da minha história suscitou, houve a seguin te: «E continuaste a pedir boleia, depo is?» Não tinha dito nada aos meus pais, com medo de que me fechas sem a sete chaves, para m eu bem. Sim, voltei a pedir boleia. M eno s coquete, m eno s airosa, mas voltei. A té outros  punks m e darem a ideia de viajar de comboio a apanhar multas sem as pagar, não conhecia outra m ane ira de pod er ir a um concerto em Toulouse, na quinta-feira, e a outro em Lille, no sábado. E, nessa época, ir a concertos era o mais importante de tudo.  Ju stific a v a qu e s e co rresse m risco s. N ad a p o d ia ser p ior do que ficar no m eu quarto, arredada da vida, enquanto se passa vam tantas co isas lá fora. C ontinuei, pois, a chegar a cidades onde não con he cia ninguém , a ficar na estação até ela fechar para lá pa ssa r a noite, ou a dorm ir no corredor de entrada dos prédios à espera do comboio do dia seguinte. A com portar-m e como i se não fosse u m a mulher. E, em bora nunca m ais tivesse sido  v io la d a , a rrisq u e i-m e a s ê -lo cem vezes d ep ois, só p o r p a s sa r muito tempo cá fora. O que vivi, nes sa época, com es sa idade, era insub stituível, bem m ais intenso do que me ir encerrar na escola a aprender a ser obediente ou do que ficar em casa a  v er re v ista s. F oram os m elh o res an os da m in h a vid a, os m ais ricos e retum bantes, e encontrei os recursos suficientes para aguentar toda s as chatices assoc iadas.

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Mas evitei escrupulosamente contar a minha historia porque conhecia antecipadamente o julgamento: «Ah, por que depois co ntinuaste a ped ir boleia; se isso não te refreou, é porque deve s ter go stado .» C om efeito, nisto da violação , é preciso sem pre provar que não se estava de acordo. A culpab i lidade está como que sujeita a um a atracção m oral não e nu n ciada, que faz que ela se incline sempre para o lado daquela que foi pe netrad a e não p ara aquele que agrediu. Quand o o film e Baise-moi  foi retirado de cartaz, muitas mulhe res —os hom ens não ousara m pron un ciar-se sobre este aspecto - fizeram q uestão de afirmar publicamen te: «Q ue horror, não nos queiram convencer de que a violência é uma solução para a violação.» Ah não? Nos jornais nunca se fala de rapari gas, sozinhas ou em grupo, que arrancam pilas com os dentes durante as agre ssões, ou que depois vão p rocurar os atacantes par a lhes dar cabo do canastro ou lhes chegar a roup a ao pêlo. Por agora, isto só existe nos filmes realizados por homens.  A Ultima Casa à Esquerda,  d e Wes Crav en, Vingança de Uma Mulher, de Ferrara,  Mulher Violada, de M eir Zarchi, por exe m plo. Os três filmes com eçam por violações m ais ou m eno s ignóbeis (aliás, mais mais do que menos). E, numa segunda parte, descrevem pormenorizadamente as vinganças ultra-sanguinárias que as mulheres exercem sobre os seus agressores. Quando homens encenam person agens de m ulheres, raramente é com o objectivo de tentar compreender o que elas suportam e sentem enquanto mulheres. É sobretudo um a mane ira de encenar a sua sen sibilidad e de hom ens, nu m corpo de mu lher. Voltarei a isso quando falar da pornografia, que segue a me sm a lógica. Nestes três filmes, vê-se, pois, como os homens reagiriam, no lugar das mulheres, perante a violação. Banho de sangue, de uma

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 vio len cia desum ana. A m ensagem que nos transm item é clara: por que razão não se defendem vocês de uma maneira mais brutal? De facto, é espanto so não reagirm os d esse mo do. Uma operação política ancestral, implacável, ensina as mulheres a não se defenderem. Como de costume, temos aqui um caso de duplo vínculo: dizer-no s que não há nad a pior e, ao m esm o tempo, que não nos devemos defender nem vingar. Sofrer e não poder fazer mais nada. É uma espada de Dâmocles entre as coxas. Mas há mulheres que sentem a necessidade de repetir que a violência não é solução. No entanto, no dia em que os ho m ens com eçarem a ter medo de que lhes cortem a pila a golpes de xis-acto quando abusam de uma mulher, fica rão bruscamente a saber controlar melhor as suas pulsões «masculinas» e a perceber o que quer dizer «não». Nessa noite, teria preferido ser capaz de me abstrair daquilo que foi inculcado no m eu sexo e esg an á-los a todos, um a um , em  vez de v iv e r com o u m a p e sso a que n ão tem co ragem p ara se defend er, porque é mu lher, a vio lên cia não é o seu território e a integridad e física do corpo de um ho m em é m ais im po r tante do que a de um a mulher. Du rante a violação, tinha no bolso do m eu body  vermelho e branco um a nav alha de ponta e m ola, de cabo negro cintilante, mecânica impecável, lâmina fina mas longa, afiada, polida, brilhante. Uma navalha de que eu sacava com a maior das facilidades nesses tempos globalmente confusos. Tinha-me afeiçoad o a ela e, à m inha man eira, aprendera a u sá-la . N essa noite, ficou no meu bolso, e o único pensamento que tive a respeito daq uela lâm ina foi: oxalá não a encon trem e não se pon ham a brincar com ela. N em me pa ssou pela cabeça u ti lizá-la. De sde o m om ento em que percebi o que nos estava a

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acontecer, tive consciencia de que eles eram os mais fortes. Uma questão mental. Mais tarde, convenci-me de que, se a questão tivesse sido eles quererem roubar-nos os blusões, a minha reacção teria sido diferente. Eu não era temerária, mas bastante inconsciente. Porém, nesse momento preciso, senti-me mulher, miseravelmente mulher, como nunca o ha via sentido, como nun ca me viria a sentir depois. Defen der a minha pele não me permitia ferir um homem. Creio que teria reagido da mesma maneira se houvesse apenas u m rapaz contra mim. Era a perspectiva da violação que fazia outra vez de m im um a mulher, alguém e ssencialm ente vu l nerável. A s m eninas são am estradas para nunca fazerem m al aos hom ens, e as mulheres são cham adas à pedra sem pre que infringem essa regra. N inguém gosta de saber até que ponto é cobarde. N inguém tem vontade de o ficar a saber n a carne. Não estou zangada comigo por não ter ousado matar um deles. Estou zangada com um a sociedade que me educou sem  ja m a is m e e n sin ar a ferir u m h o m em se ele m e abrir as p ern a s à força, enquanto essa m esm a sociedade me inculcou a ideia de que a violação era um crim e de.que. nunca m e iria re co m  por. E estou absolutamente furiosa por, perante três homens e um a carabina, e presa num a floresta de onde seria im p o ssí  vel fugir a correr, me sentir ain d a hoje culp ada po r n ão te r tido coragem de nos defender com u m a pequena n avalha. Finalmente, um que encontra a faca e m ostra -a ao s outros, sinceramen te admirado por eu não a ter usado. «E ntão é po r que ela estava a gostar.» Para dizer a verdade, os hom ens igno  ram a que ponto o d ispositivo de castração Idas rap ariga s é imp arável, a que ponto tudo está escrupu losam ente o rganizado para garantir que eles vencem, sem arriscar muito, quando atacam as mulheres. Acreditam, inocentemente, que a sua

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superiori superioridade dade advém da sua força. força. Não se incom i ncom odam nada em ter um a luta luta de carabina contra navalha. Con sideram, os dito sos cretinos, que que esse co m bate é igualitário. igualitário. E esse o segredo da sua tranqu tranqu ili ilidad dad e de espírito. Parece impossível que, em 2006, quando tanta gente se passeia com minúsculos computadores portáteis, máqui nas fotográficas, telefones, agendas e leitores de música, não exista exista nenhum object obj ecto o que se poss a enfiar enfiar na rata rata quando quan do sa í m os p ara dar um a volta, capaz de desfazer desfaz er a pila do prim prim eiro saca na que a quisesse lá m eter. eter. Tal Talvez não seja desejável to r nar o sexo sexo feminino inac essív el pela força. força. A m ulher tem de ficar abe rta e tem erosa. Se não fosse assim , o que definiria definir ia a masculinidade? Depois da violação, a única atitude tolerada da mulher con siste em virar a vio lên cia contra si. si. Por exemplo, engordar  vin  v in t e q u i lo s . S a i r d o m e r c a d o s e x u a l, p o r j á t e r s i d o e s t r a g a d a , excluir-se voluntariamente do desejo. Em França, não se m ata as mu lheres lheres violada s, mas espe ra-se delas del as que qu e tenham a dec ência de se apresen tarem como m ercadoria deteriorada, deteriorada, poluída. Putas ou desfeadas, devem sair espontaneam ente do  v i v e ir o d a s a p t a s p a r a o c a s a m e n t o . Com efeito, é a violação que fabrica as melhores putas. Uma vez abertas à força, elas conservam por vezes à flor da pele um emurchecimento que os homens apreciam, qualquer coisa de desesperado e de sedutor se dutor.. A violação violação é com frequên cia iniciática, iniciática, corta n a carne pa ra tornar a mulher o ferecida, ferecida, e nunca se vai voltar a fechar completamente. Estou certa de que há como que um odor, qualquer coisa que os machos detectam e que que os excita excita especialmen te. Insistimos em comportarmo-nos como se a violação fosse uma coisa rara e periférica, alheia à sexualidade, evitável.

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Como se tivesse apenas que ver com pouca gente, agresso res e vítimas, como se constituísse uma situação excepcio nal, que não dissesse nada do resto. Ora, pelo contrário, ela está no centro, centro, no coração, coração, na base, das no ssas sexualidades. Ritual de sacrificio fulcral, encontra-se omnipresente ñas artes, desde a An tiguidade, rep resentad a em textos, textos, estátuas e pinturas através dos sécu los. No s jardin s e m use us de Paris,  Metam tamorf orfose oses, s, há figuras de homens a forçar mulheres. Nas  Me de Ovídio, dir-se-ia que os deuses passam o tempo a que rer apanhar mulheres contra a vontade destas e a conseguir pe la força força o que pretend em . Para eles, que são d euse s, é fácil. fácil. E, quando elas ficam grávidas, têm ainda de sofrer a vingan ça das mulheres dos deuses. É esta a condição feminina, a sua cartilha. Sempre culpadas do que nos fazem. Seres conside rados responsáveis pelo desejo que suscitam. A violação é um programa político preciso: esqueleto do capitalismo, é a representação crua e directa do exercício do poder. Designa um dominante e organiza as leis do jogo de modo a permi tir-lhe exercer o seu poder sem restrições. Roubar, arrancar, extorquir extorquir,, impor, que a sua vontad e se cum pra sem entraves e que ele desfrute da  sua brutalidade, brutalidade, sem que a parte adversa po ssa m anifestar resistência. resistência. De sfrute sfrute da anulação do outro out ro,, da sua palavra, da sua vontade, da sua integridade. integr idade. A v iola ção é a guerra civil, a organização política pela qual um sexo declara ao outro: assumo todos os direitos sobre ti, obrigo-te a sen tires-te inferior, culpa da e aviltada.  A v io la ç ã o é a p a n á g io do h o m e m . A ú n ic a c o i s a de que qu e as mu lheres lheres nunca - até até agora agora - se apropriaram apropriaram não foi da guerra, guerra, da caça, do desejo cru, da violência nem da barbárie, mas da  vio  v io la ç ã o . A m í s t i c a m a s c u lin li n a d e v e se r c o n s t r u íd a c o m o i n t r i n  secamente perigosa, criminosa, incontrolável. Como tal, deve

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ser rigorosamen te vigia da p ela lei lei e regida pelo pelo grupo. A trás da cortina do controlo da sexualidade feminina, surge o objectivo principal principal do do político: form ar o carácter viril como associai, pulsional, brutal. E a violação serve em primeiro lugar de veículo da segui seguinte nte constata ção: o hom em não con segue dom inar o seu desejo; desejo; é um a co isa m ais forte do que ele. ele. M uitas vezes, ouvimos ainda dizer dizer que «gra ças às putas, há m eno s vio laçõ es» , como se os machos não se conseguissem conter e tivessem de ejacular em qualquer qualquer lado. E u m a crença política construída, e não a evi dência natural natural - pu lsional — em que nos querem fazer fazer acredi tar. tar. Se a testosterona os transfo rm asse em anim ais de pulsões indomáveis, indomáveis, eles m atariam com tanta facilidade facilidade como violam. Ora, isso está long e de acontecer. Os d iscurso s sobre a questão questão do masculino masculino estão rechead os de resíduos de ob scurantismos.  A v io laç la ç ã o , o a c t o c o n d e n a d o de que qu e n ã o se d e v e fa lar la r , s in t e t iz a um conjunto de crenças fundamentais envolvendo a virilidade. E há a fantasia da violação . U m a fanta sia sexual. Se qu iser iser ve r dadeiramente dadeiramente falar da «m inha» violação , tenho tenho de pa ssa r por isso. É um a fan tasia que tenho desde pequena. D iria iria que é um  ve  v e s t íg io d a p o u c a e d u c a ç ã o r e l ig io s a q u e r e c e b i, i n d i r e c t a  mente, através dos livros, da televisão, dos colegas de escola e dos vizinhos. As santas, amarradas e queimadas vivas, as mártires, foram as primeiras imagens que provocaram em mim emoções eróticas. A ideia de ser entregue, forçada, coagida, era um fascínio mórbido e excitante para a menina pequena que que eu era era ne ssa altur altura. a. D esde então, essa s fantasias nunca mais me a ban don aram . Tenho Tenho a certeza certeza de que que há m ui tas m ulheres que pre ferem não se masturb ar, a pretexto de que que isso não lhes lhes intere ssa, a sabe r aquilo aquilo que as excita. N ão som os todas iguais, mas o meu caso não é único. Essas fantasias de

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 vio lação, de ser p o ssu íd a à fo rça, em con diç ões m ais ou m en os brutais, que sempre rejeitei ao longo da minha vida mastur batoria, não me surgem out ofthe blue.  T r a t a - s e d e u m d i s p o  sitivo cultural profundo e preciso que prede stina as m ulheres para terem um a sexualidade que tira prazer da su a im po tên  cia, ou seja, da sup erioridade do outro, assim com o as faz ter prazer contra a sua vontade, em vez de gozar como deprava das que gostam de sexo. Já ouvimos vezes sem conta que, na moral judaico-cristã, mais vale ser possuída à força do que tomada por u m a cadela. Existe um a predisposição fem inina para o masoquismo, que não vem das no ssas h orm onas nem do temp o das cavernas, mas de um s istem a cultural específico, e que não deixa de ter implicações pertu rbad oras no exe rcício que podemos fazer das nossas independências. Voluptuosa e excitante, ela é ao mesmo tempo incapacitante: sermos atraí das pelo que destrói afas ta-n os sem pre do poder. No ca so concreto da violação, es ta põe o prob lem a do s en  timento de culpa: já que tanto a fantasiei, sou co-responsá vel da m in h a a g ressão . P ara piorar as co isa s, n ão se fa la d e sse tipo de fanta sias. Sobretudo se tiverm os sido violad as. S om os provavelmente muitas as que nos encontramos na mesma situação: fom os vítim as de violação tendo tido anteriorm ente fanta sias desse género. No entanto, o silêncio reina a este re s peito, pois o que é indizível pode corroer sem entraves. Quando o rapaz se volta e declara «acabou a brincadeira» enquanto me assesta a primeira lambada, o que me aterro riza não é a pene tração, m as a ide ia de que eles no s vão m atar. Para que depois não possamos falar. Nem apresentar queixa, nem testem unh ar. A verdad e é que, no lugar deles, era o que eu faria. Lem bro-m e nitidamente do medo de morrer, essa sen sa ção branca, um a eternidade, não ser nada, já nada. U m a coisa

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m ais parec ida com um trauma de guerra do que com o trauma de violaç ão , segun do o que tenho lido a esse respeito. É a p o s sibilidad e da morte, a proxim idade da m orte, a subm issão ao ódio d esu m an izado dos outros, que torna indelével esta noite. Para mim, a violação tem sobretudo a seguinte particulari dade: é ob sessiva . Vem -m e à cabeça constantemente. Desde há vinte a no s, de cada vez que julgava já a ter esquecido, volto a pensar nela. Para dizer coisas diferentes, contraditórias. Ro m anc es, novelas, canções, filmes. Im agino semp re que um dia vou poder acabar com isso. Liquidar o acontecimento, esvaziá-lo, esgotá-lo. Im po ssível. Ele é um aco ntecimen to fundador. Do que sou enquanto escritora, enquanto mulher que já não o é exacta mente. É ao m esm o tempo o que me d esfigura e m e constitui.

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O paradigma serviço feminino/compensação masculina corresponde a urna troca social desigual - troca a que propus chamar «prostitucional» a fim de tornar mais explícitas as bases materiais concretas das convenções heterossexuais. Quer sejam publicamente consagradas pela cerimónia do casamento ou clandestinamente nego ciadas na indústria do sexo, as relações heterossexuais são social e psicologicamente moldadas pelo postu lado do direito dos homens ao trabalho das mulheres. Mesmo aqueles que denunciam a difamação e as vio lên  cias contra as mulheres exercidas pelos homens põem raramente em causa as prerrogativas dos homens nos domínios sexual, doméstico e reprodutivo. g a il

p h e t e r s o n

,

ThePwstitudonPrism,  1996

D O R M IN D O C O M O IN IM I G O

Fazer o que não se faz: pedir dinheiro po r aquilo que deve p er  manecer gratuito. A decisão não pertence à mulher adulta: o colectivo impõe as suas leis. As prostitutas constituem o único proletariado cuja condição comove tanto a burguesia.  A tal ponto que, m u itas vezes, m u lh eres a q uem n u n c a fa l tou nad a estão convencidas desta evidên cia: isso não d eve ser legalizado. Os tipos de trabalho que as m ulheres que nã o são ricas exercem, os salários m iseráveis pelos qu ais ven dem o seu tempo, não interessam a ninguém. E o destino das m ulheres que nasceram pobres, habituamo-nos a isso com facilidade. D o r m i r n a  rua

aos quarenta anos não é proibido por nen hum a

l eg i s la ç ã o . T o r n ar - s e u m s e m - a b r ig o é u m a d e g r a d a ç ão t o l e rável. O trabalho é outra. M as vend er sexo diz resp eito a toda age nte, e as mulheres « respeitáveis» têm um a palavra a dizer. Nos últimos dez anos aconteceu-me muitas vezes encont r a r- m e n u m a s a l a e le g an t e, e m c o m p a n h i a d e s e n h or a s q ue semp re foram m antidas por via do contrato conjugal, frequen  temente mulheres divorciadas que recebiam pensões dignas desse nom e, e que com ar de quem está a dizer um a evidência m e ex plicam, a mim , que a prostituição é em si uma coisa má para as mulheres. Elas sabem, por intuição, que esse traba lho é mais degradante do que os outros. Intrinsecamente. Não por ser praticado em circunstâncias absolutamente específicas,

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m as em si mesm o. A afirmação é categórica, raram ente m ati zada por acrescentos do género « se não for de livre von tade», ou «quando não ganham um tostão com o que fazem», ou ainda «quando são obrigadas a ir trabalhar fora, nas perife rias das cidad es». À partida, é indiferente se elas são putas de luxo, oca siona is, de rua, velhas, jovens, dotadas, do m ina doras, drogad as ou mã es de fam ília. Trocar um serviço sexual por dinheiro, m esm o em boas con dições, m esmo vo luntaria mente, é um atentado à dignidade da mulher. A prova é que, se tive ssem alternativa, as prostitutas não o fariam . Q ue raio de retórica... como se a depiladora da YvesRocher  espalhasse cera ou perfurasse pontos negros por pura vocação estética.  A verdade é que a m aior parte das p esso as que trabalh a p a s  sava bem sem isso. O que não impede que, em certos meios, se repita até à exaustão que o que está em causa não é tirar a prostituição da periferia das cidades onde as prostitutas se encontram à mercê de todas as agressões (condições nas quais a sim ples venda de pão seria um desporto radical), nem obter quadros legais como os que são reclamados pelas tra balhadoras sexuais, mas proibir a prostituição. É difícil não pe ns ar que o que as m ulheres respe itáveis não dizem, quando se preocup am com a sorte das putas, é que, no fundo, tem em a concorrência. Uma concorrência desleal, por demasiado adequada e directa. Se a prostituta exercer o seu comércio em condições decentes, as m esm as que a esteticista ou a p si quiatra, se a sua actividade for expurg ada de todas as p ressõ es legais que conhece actualmente, a posição da mulher casada tornar-se-ia bruscamente menos atraente. Com efeito, se o contrato prostitucional se banalizasse, o contrato conjugal apareceria mais claramente como aquilo que é: um comér cio em que a mulher se com promete a desem penh ar um certo

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número de obrigações que asseguram o conforto do homem por urna tarifa que bate toda a concorrência. D esignad am ente as tarefas sexuais.  Já d isse p u blic am en te por vá ria s vezes, em e n trevistas, que m e prostituí, de form a ocas iona l, durante cerca de dois ano s. D esde que com ecei a escrita deste livro, tropeço sem pre neste capítulo. N ão esp erava isso. Sã o várias reticências ao m esm o tem po. R elatar a m inh a expe riência é difícil. Entrar na vid a de engate, naquela época, era-o m uito m enos. Em 1991, a ideia de me prostituir surgiu-me graças ao minitel1. Todas as ferramentas de comunicação modernas servem sobretudo para o comércio do sexo. O minitel, essa prefiguração da Internet, perm itiu que toda u m a geração de m ulheres se pro stituísse ocasiona lme nte em condições quase ideais de anonimato, escolha do cliente, discussão de preço e de autonomia. Aqueles que queriam pagar para ter sexo e aquelas que se dispun ham a vend ê-lo pod iam contactar -se facilmente e acordar entre si as mo dalidades da tran sac ção. A po ssibilidade de pagar o hotel com cartão bancário era a última peça que faltava para facilitar o negócio: os quartos eram asseados, os preços acessíveis e o cliente não se cru zava com nin gu ém à entrada. O prim eiro trabalho que tive no m initel, em 198 9, co ns istia justam ente em vig iar um servidor; era paga para desligar todos os intervenientes que tivessem um discurso racista ou an ti-sem ita, bem com o os pedó filos e, finalm ente, as prostitutas. Ze lava -se, a ssim , por que esta fer ramenta não estivesse ao serviço das mulheres que queriam dispor livremente do seu corpo para ganhar dinheiro, nem dos homens que podiam pagar e d esejavam p edir claramente 1 Tecn ologia de comu nicação , que utilizava term inais de videotexto ligado s à linha telefónica, desenvolvida e utilizada em França sobretudo nas d écadas de 1980 e 1990. (N.T.)

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aquilo que procuravam , sem pa ssar pela casa conversa fiada para o conseguir. Era preciso não deixar que a prostituição se banalizasse nem se exercesse em condições confortáveis. Corria o ano de 1991, primeira guerra do Golfo, retransmitida pelas televisões, scuds  sobre Bagdade, o single  da banda Noir Désir, «A ux Som bres Héros», sempre ap assar, o Professor G riff foi expulso dos Pub lic Enemy, Nen eh C herry usa leggings e ténis enormes. Pela m inha parte, visto-m e da m aneira m ais unissexo po ssível, ou seja, a atirar para o rapaz. Não tenho n enhu m a m aquilhagem, ne m corte de cabelo identificável, nem bijuteria, nem sapatos de senhora. Os atributos femininos clássicos não m e dizem nada. Tenho outras coisas n a cabeça. Trabalho num supermercado, ocupo-me da revelação de fotografias nu m a hora. Tenho vinte e dois ano s. À p ar tida, não tenho p erfil pa ra p as sar pa ra o negócio do sexo. E m todo o caso, falta-me o look   adequado. Aliás, dois ano s antes, quando era vigilante nas redes minitel e via «homens gene rosos» oferecerem mil francos por um serviço, pensava que aquilo era uma armadilha: se pagavam tanto era para atrair pobres raparigas a sua casa e fazer-lhes uma série de coisas horríveis antes de as atirar, nuas e ensanguentadas, para a  vala m ais próxim a. Leitura de Ellroy, alg uns film es no cinem a, a cultura dominante faz sempre passar a sua mensagem: tenham cuidado, meninas, gostam muito de vocês transfor m adas em cad áveres. C om o tempo, acabei por me convencer de que hav ia ho m ens que pag avam efectivam ente m il francos por encontro e deduzi que as tipas em qu estão d eviam ser ve r dadeiras m egabom bas sexuais. Eu detestava trabalhar. Ficava dep rimida com o tem po que aquilo m e tom ava, co m o pouco que gan ha va e com a facilidade

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com que o gastava. O lhava as mulheres m ais velhas do que eu, um a vid a inteira a fossar daquela m an eira para gan har pouco mais do que o salário mínimo e, aos cinquenta anos, estar a apanhar responsos do chefe de secção porque se vai mijar  vezes de m ais. M ês após m ês, ia-m e ap erceb end o do que q u e ria dizer, em concreto, uma vida de trabalhadora honesta. E não via escapatória possível. Já nessa época, ter trabalho era uma fonte de contentamento. Nunca fui sensata e tenho dificuldade em ficar contente. No com putador em que facturava os envelopes de foto gra  fias, tin h a-se acesso ao minitel, e eu entrava m uitas vezes no sistem a para falar com um amante loiro, um rapaz de Paris que trabalhava como «animadora» num servidor. Tinha o hábito de con versa r no m initel e contactava, cie pa ssage m , com m uita gente. Uma dessas conversas foi mais excitante do que as outras, com um senhor insinuante. O m eu prim eiro encontro foi com ele. Lem bro-m e de a sua voz se rtão quente e excitante que me dava ganas de ver como ele era, que o teria comido gratuitamen te e que aquilo m e assusta va a valer. A cab ei por não ir. Tinha-me preparado, estava já perto, mas, no último momento, cortei-me. Demasiado medo. Demasiado longe de m im. N ão na minha vida. As raparigas que «faziam isso» haviam certamente recebido um a espécie de instruções, um a mensagem vinda de outra dimensão. Estava convencida de que uma pessoa não se tornava prostituta de um momento para o outro, que havia um a iniciação e spe cífica cujo pro to colo m e escap ava. M as o engodo do lucro, juntam ente com a curiosidade, com o imperativo de arranjar um a m ane ira de me poder dar ao luxo de ser despedida do supermercado e tam bém com a sensação de que, se fosse ver, aprenderia algo de importante... Voltei a marcar um encontro uns dias depois,

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com ou tro hom em , que já não era tão sexy. A pe na s um cliente, um verda deiro cliente. E a primeira vez que ponho uma saia curta e saltos altos.  A revo lu ção p a s s a p o r u sar algu n s a ce ssó rio s. D ep o is d is so , a única sen saçã o semelhante que tive foi na m inha prim eira aparição n a televisão, no Can al Plus, a respeito do livro Baise-moi.  Uma pessoa não muda, mas há qualquer coisa que se

altera fora dela e nada fica como dantes. Nem as mulheres, nem os homens. Sem que tenha a certeza de apreciar esta transformação e de compreender todas as suas consequên cias. As americanas, quando relatam as suas experiências enquanto «traba lhado ras do sexo», gostam de utilizar o termo empowerment,  um aumento de poder. Apreciei logo o impacto

que isso causava na população masculina, com o seu lado exagerado, no limite da grande farsa, a notória mudança de estatuto. E ra até então um a gaja quase transparen te, de cab e los curtos e ténis sebentos, e de repente tornava-me uma criatura do vício. A grande classe. Fazia lem brar a M ulher-Maravilha, às voltas na sua cabina telefónica, saindo de lá transformada em super-heroína. Dava vontade de rir. Mas tam bém receei logo esta im portância que, justam ente, ultra passava o meu entendimento e o meu controlo. O efeito que tudo isto p rovoc ava em m uitos hom ens era quase hipnótico. Entrar n as lojas, no m etro, atravessar a rua, sen tar-m e num bar. Fosse onde fosse, atrair olhares esfomeados, estar incri  v elm en te p resen te. D eten to ra de u m teso u ro fu rio sa m e n te invejado, o meu sexo, os meus seios, o acesso ao meu corpo assum ia um a im portân cia extrema. E não era só nos tarados que isto pro du zia este efeito. Um a mu lher com ar de pu ta inte  ressa a quase toda a gente. Tinh a-m e tornado um brinquedo gigante. Em todo o caso, um a coisa era certa: eu era capaz de

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desempenhai- ata re fa. F inalmente, não tinha nece ssidade de ser uma megabomba sexual nem de conhecer segredos téc nicos estram bólicos para me tornar um a m ulher fatal... b as  tava jogar o jogo. O jogo da feminilidade. E ninguém podia dizer «cuidado, é uma impostora», pois não era isso que eu era, não m ais do que as outras. De início, este pro cess o fas cino u-m e. Eu, que me tinha sempre marim bado p ara as coisas de mulher, apaixonei-me pelos saltos agulha, a lingerie   fina e os fatos saia e casaco. Lembro-me da minha própria per plexidade, nos primeiros meses, quando via o meu reflexo nas montras. É verdade que aquela grande puta de pernas alongad as pelos saltos altos já não era apenas eu. A rapariga tím ida, m aciça e ma sculina desa parecia num abrir e fechar de olhos. Um a vez envergado o uniforme, m esm o aquilo que em mim era masculino, como a minha maneira de andar muito de pressa e segura de mim, torna va-se u m atributo de hiperfeminilidade. N os prime iros tem pos, gostava de ser esta outra rapariga. Era como se estivesse de viagem. No mesmo local, mas noutra dimensão. Imediatamente depois de ter enfiado o fato de hiperfem inilidade, havia um a alteração da autoco n fiança, como depois de um a linha de coca ína. A seguir, como com a cocaína, a situação torn ou -se m ais com plicada de gerir. Entretanto, enchera-me de coragem e fizera o meu pri meiro cliente, ao domicílio, um sujeito aí com uns ses senta anos, que fumava cigarros de tabaco negro uns atrás dos outros e falava muito durante o sexo. Parecia uma pes soa solitária, e achara-o incrivelmente simpático. Não sei se tenho um ar lorpa ou meigo, ou, pelo contrário, demasiado imponente, ou se foi simplesmente uma questão de sorte, mas posteriormente isso confirmou-se: os clientes mostra  v a m -s e afáveis p ara com ig o, aten ciosos, ternos. M uito m ais

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do que n a vid a real, para dizer a verdad e. Se as m inhas re co r da çõ es são exactas, e creio que o são, não era com a sua ag res  sividade que era difícil conviver, nem com o seu desprezo, nem com nada do que eles gostavam, mas com as suãs soli dões, as suas tristezas, as suas peles brancas, a sua timidez infeliz, as falhas que revelavam, sem artifícios, o que mos trav am dos seus pontos fracos. A sua velhice, o seu desejo de carn e fres ca contra os seus corpos de velhos. As suas grandes pan ças, pequ enas pilas, nádegas flácidas ou os dentes dem asiado am arelos. Era a sua vulnerabilidade que tornava a coisa [ com plicada. Finalmente, os que podíam os d esprezar ou odiar eram aqueles com os quais podíamos fazer o serviço perma necendo bem fechadas. Ganhar o máximo de massa num m ínim o de tempo e, depois, não pen sar ma is no assunto, nem po r um instante. M as, na m inha curta experiência, os clientes estavam repletos de humanidade, de fragilidade e de deses pero. E isso ficava-n os d epois colado com o um remo rso.  A ss im , do ponto de v ista físico : tocar a p ele do outro, p ôr a m inh a à dispo sição, abrir as pern as, o ventre, o corpo inteiro ao odor do estranho, o nojo corporal que era preciso superar não constituía para mim um problema. Era uma questão de caridade, ainda que paga. Via-se tão bem como era impor tante para o cliente que fingíssemos não ficar enojadas com os seus gostos, ou surpreendidas com as suas taras físicas, que acab ávam os por nos sentir valorizadas ao fazê-lo. D escob rir um m undo inteiram ente novo onde o dinheiro mudava de valor. O mundo das mulheres que jogam o jogo. O que receb íam os por quaren ta ho ras de trabalho ingrato era oferecido po r meno s de duas horas. É claro que é preciso con  tar a ind a o tem po de preparação , de pilação, tintura, manicura, com pra de roupa, m aquilhagem , be m com o o custo de meias,

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lingerie  e roupas de vinil, m as, mesm o assim, as co nd ições de

trabalho eram de luxo. D ei-m e con ta de que, m uitas vezes , os homens que têm meios para tal gostam de pagar para estar com mulheres. Alguns frequentam as putas cumprindo um ritual estrito, dinheiro líquido de mão p ara m ão e um roteiro exactamente igual ao da vez anterior. Outros preferem que a relação assum a mais a form a de um a ligação, cham am a isso libertinagem , e pedem que lhes levemo s facturas ou que diga  mos, em concreto, o que queremos de presentes. Na reali dade, é um a m aneira de brincar aos papás. «Sub linh em os que aquelas, ou aqueles, que ped em dinheiro em troca de serviços sexuais têm um a actividade d efinida com o “prostitutos”, um estatuto ilegítimo, e mesmo ilegal, enquanto aqueles que pagam p ara ter sexo são raramen te d istingu ido s da população masculina em geral», escreve Gail Pheterson em The Prostitudon Prism.  Dizer que «engatámos clientes» é por mo-nos numa categoria à parte e submetermo-nos às mais diversas fantasias. Nada de anodino. Não é o mesmo que dizer que se vai às putas. Isso não torna um h om em diferente dos outros, não o marca na sua sexualidade nem o prede fine em nada. Não estranh am os que os clientes das pro stitu tas con stituam um a população diversificada, no que se refere às suas motivações e maneiras de funcionar, mas também às suas categorias sociais, raciais, etárias e culturais. As mulhe res que fazem o trabalho são im ediatam ente estigm atizadas e pertencem a um a categoria única: a de vítim as. E m França, a m aioria delas recusa falar publicamen te de rosto descoberto, porque sabem que a prostituição não é coisa que se assuma. É preciso guardar silêncio. Sempre o mesmo mecanismo. Exige-se que sejam conspurcadas. E, se não andarem direitinhas quanto ao que dizem, se se q ueixarem do m al que lhes

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fazem e contarem como se viram obrigadas àquela vida, estão feitas. Não é que se tema que não sobrevivam, pelo contrá rio: o que se receia é que ve n ha m afirm ar que o trabalho n ão é assim tão terrível. E não ape nas p or todo o trabalho ser degra dante, difícil e exigente, ma s tamb ém porque mu itos hom ens nun ca são tão am áveis como quando estão com um a puta. Em do is anos, devo ter encontrado cerca de cinquenta clien tes diferentes. De cada vez que tinha necessidade de dinheiro líquido, ia ao minitel, num servidor de Lyon. Ao fim de dez minutos de estar ligada, já tinha registado vários números de telefone de ho m ens que procuravam um encontro para o próprio dia. Tratava-se muitas vezes de tipos em viagem de negócios. Em Lyon , havia m ais clientes do que mulheres, o que facilitava a selecção e tornava o trabalho mais agradável. Quando falava disso com aqueles que vinham com frequência, diziam-m e que encontravam com facilidade o que pretendiam. Se os clientes eram muitos e rapidamente servidos, era porque nós éramos m uitas a trabalhar. A p rostituição o casional n ão tem, pois, nada de esp ecial. O que faz do m eu caso u m a excepção é que eu falo disso. Esta actividade, que se pode exercer no maior segredo, nunca passa de um trabalho bem pago para uma mulher com pou cas ou nenhu m as qualificações. Quando trabalhei em salões de massagens «eróticas» e em alguns  peep-shows  parisienses, os tempos de espera entre clien tes davam azo a conversas com as outras. Encontrei aí rapa  rigas com os perfis mais diversos e mais inesperados na con sciência colectiva para «este tipo de trabalho». A prim eira  vez que fu i co n tratad a p o r u m salão de m assa g en s, v in h a de um meio de extrema-esquerda, onde sempre ouvi dizer, e eu acreditava, que as raparigas que se pro stituíam eram vítim as, inconscientes ou manipuladas, mas, de toda a maneira, que

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não tinham outra saída. A realidade no terreno é muito dife rente. A mu lher que me abriu a porta era um a negra es pa n tosa, uma das raparigas mais bonitas que vi de perto. Era difícil sentir pena de uma criatura assim. Depois, conheci-a m elhor; era um pouco m ais nova. do que eu, esta va m ais bem integrada socialmente, trabalhara já vários anos como este ticista, estava noiva de um tipo que adorava e tinha muito hum or e muito bom gosto em m úsica. Parecia-m e um a p es  soa sólida, trabalhadora e decidida. Lúcida e com os pés bem assente s na terra, com parada comigo ou com as outras rap ari gas que eu conhecia. N ada que ver com a im agem que eu tinha das profissionais. Com m uita procura, ela ganhava um a for tuna todos os dias, dinheiro líquido que economizava cons cienciosam ente. N este salão, ao mesm o tempo do que eu foi admitida uma morenita que regressava da Jugoslávia, onde passara seis meses a fazer trabalho humanitário. Tinha um diploma de uma escola de comércio e vira-se desorientada no momento de procurar um «trabalho» normal. Tentara os salões de m assage ns por mero acaso. Dizia ao nam orado que era secretária numa grande empresa. Não tencionava con tinuar a actividade durante muito tempo. Tínhamos longas conversas sobre o carácter peculiar de um trabalho que nos fascina va às duas. O único ponto em comum que detectei entre todas as raparigas com quem me cruzei era, bem entendido, a falta de dinheiro, mas sobretudo não falarem do que faziam. Segredos de mulheres. Nem aos amigos, nem à família, nem aos namorados ou aos maridos. Creio que a maior parte delas fez exactam ente com o eu: este tipo de trabalho, algumas vezes, durante algum tempo, e depois uma coisa c o m p l e ta m e n t e d i fe r en t e .

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 A s p e ss o a s g o sta m d e ex ib ir u m a ex p ressão in c réd u la quando lhes dizem os que trabalhám os como prostitutas, m as é o m e s m o q ue s e p a s s a c o m a v i o la ç ã o : u m a i m e n s a h i p o  crisia. Se fosse p ossível fazer um recenseamen to, ficáríam os muito ad m irados de conhecer o verdadeiro núm ero de m ulhe res que já venderam sexo a desconhecidos. Hipocritamente, po is, na no ssa cultura, a fronteira entre sedução e prostituição é ténue, e no fundo to da a gente está con sciente disso. Durante o prim eiro ano, gostei verdad eiramen te deste tra  balho. Po r um lado, porque o dinheiro era m ais fácil do que no s outros lado s, e, po r outro, porque m e perm itiu experim entar, s e m p r o b l e m a s d e c o n s c i ê n c i a e e v it a n d o q u a l q u er c o n s i d e  ração m oral, qu ase tudo o que m e intrigava, excitava, p ertu r b a v a o u f a s c in a v a . A s s i m c o m o o u t ra s c o i sa s n a s q u a i s n ã o t e r ia p e n s a d o e s p o n t a n e a m e n t e , e qu e n e m s e m p r e g o s t a r ia q u e m e p e d i s se m n a i n t im i d a d e , m a s q u e er a m i n t e r e s sa n t e s de fazer um a vez. Só m e dei conta de como esta po sição era confortável depo is de ter parado . Q uando, tornad a V irginie Despentes, fui a um clube de troca de casais. Percebi como t e r ia s id o m a i s f á c il f a z ê - lo e n q u a n to p u t a a a c o m p a n h a r u m cliente. Sem complicações: vou lá porque é o meu trabalho, faço aquilo que não se faz e sou pag a por isso. E  pu nk rock. S em o motivo do d inheiro, tudo se torn ava m ais con fuso: eu ia lá a acompanhar um produtor ou para o meu próprio prazer? Fazia ali coisas por já estar bem b eb ida ou por aquilo m e e xci tar de verdade? Teria a coragem p ara, quanto m ais não fosse, saber o que sentia no dia seguinte? Be név ola e lúdica, a minh a sexualidade pareceu-me infinitamente mais confusa. Sou um a mulher, o do m ínio do sexo fora do casa l não m e pertence.  A p ro stitu ição o ca sio n a l, co m a o p ção se lec ção de clie n tes e d e t ip o s d e r o te ir o , é t a m b é m u m a m a n e i r a d e u m a m u l h e r ir

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dar um a volta para os lados do sexo sem sentim entos, fazer experiencias, sem ter de pretender que o faz por puro pra zer nem esperar disso benefícios sociais colaterais. Quando se é um a puta, sab e-s e o que se veio fazer e por q uanto, e se além disso se tem gozo ou se se satisfaz a curiosidade, tanto melhor. Quando se é uma mulher com liberdade de esco lha, a situação acab a por ser muito m ais com plicada de gerir, m enos ligeira. De inicio, toda a gente à minha volta me felicitava e se congratulava por me sentir tão satisfeita, e isso fez -m e ap re ciar ainda mais o meu novo trabalho. Uma rapariga que se feminiza era caso para deixar toda a gente encantada. A s co i sas são como são. Raros foram aqueles que me perguntaram por que m e dera para ali. Com o já disse, nunca me tinha in te ressado pela «roupa de mulher», usá-la permitiu-me com preender duas ou três coisas importantes sobre os homens. Quando não estamos à espera, o efeito produzido pelos ob jectos fetiche (ligas, saltos agulha, sutiãs  push-up  ou batom ) parece uma grande brincadeira. Fingimos ignorá-lo quando lastim am os as mulheres-objecto, as sirigaitas de seios rem o delados, todas as cadelas anorécticas e recauchutadas da tele  visã o . M a s a fragili dad e en co n tra-se sobretudo do lad o dos hom ens. C om o se ninguém os tivesse prevenido de que o Pai Natal não vai chegar: sempre que vêem um casaco vermelho, correm brandindo a lista de prenda s que queriam ter na ch a m iné. Dep ois delicio-m e a ou vi-los perorar acerca da estupidez das m ulheres que adoram o poder, o dinheiro ou a fam a, como se isso fosse m ais estúpido do que adorar meias de red e... No m eu caso, a prostituição co nstituiu um a etapa crucial de reconstrução depois da violação. U m em preendim ento de indem nização , nota a nota, do que m e havia sido roubad o pela

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força bruta. D este modo, tinha guardado intacto o que pod ia  ven d er a cad a cliente: o m eu sexo. E, se o v en d ia dez vezes de segu ida, era porque não se estraga va com o uso. Ele só a m im pe rtencia, não perd ia valor à med ida que era utilizado, e pod ia ser rentável. E nco ntrava-m e de novo num a situação de ultrafem inilidade, m as desta vez tirava daí um benefício líquido. O que é difícil, aind a hoje, não é tê-lo feito. C on cen trar-m e no pa ssad o p ara escrever este capítulo confronta-m e com b oas recordações. Subidas de adrenalina, antes de tocar a cam painh a de um a porta, e subidas de adrenalina ainda m aiores quando certas sessões com eçavam. Q uanto ao sexo, gostaria de poder dizer outra coisa, dado que não vale a pena acres centar m ais nada no género rasca, mas, em term os globais, era m uito excitante. Ser um a puta era m uitas vezes o máx im o, o desejo era gratificante. Foram também as minhas primei ras idas às com pras, com o meu próprio dinheiro, com m on  tantes na mão que nunca havia sonhado possuir, derretidos num só dia. E, ao mostrar-me os homens a uma luz infantil, m ais fráge is e m ais vulneráveis, a experiência torno u-os sim  pá ticos, m eno s im pression antes, m ais agradáveis. E, ao fim e ao cabo, m ais acessíveis. Tinha descoberto um a receita para atrair m ais interesse do que aquele que eu con segu ia gerir, o que fez diminuir, mais do que imaginava, a minha agressivi dade para com eles, que, contrariamente ao que se diz, não é m uito elevada . O que m e enfurece é quererem im pe dir-m e de ser ou de fazer, e não o que eles são ou fazem . O difícil é falar destas coisas, dadas as reacçõ es que isso su s cita nas p ess oa s que vou encarar a seguir. A cond escend ência, o desp rezo, a fam iliaridad e, as conclusõ es desloc adas.

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Quando cheguei a Paris, a actividade tornou-se compli cada. Muito mais raparigas, maior quantidade de brancas,  v in d a s de L este , m uito b o n itas, e m uito m a is cli en tes p erig o  sos. H avia um controlo ap ertado dos serv idores m initel, e era difícil fazer a m esm a selecção do que anteriorm ente. C onhe cia m al os bairros aonde ia. E, se tentasse virar-m e p ara em pre gos tipo massagista ou stripper,  para ficar mais protegida, as percentagens eram ridículas, os locais demasiado pequenos e a oferta sempre superior à procura, o que tornava m erdoso o ambiente entre as raparigas. E depois já não vivia sozinha, começavam as mentiras, com a sensação de trazer a minha imu nd ície para casa. Perda de equilíbrio. E difícil parar. Voltar para trabalhos pagos normalmente, onde se é tratada normalmente, como assalariada. Levantar c e d o d e m a n h ã , t e r d e p a s s a r l á o t e m p o t o d o . D e q ua l  quer forma, bem podia procurar emprego, que não havia. Finalmente, acab ei por encontrar alguém que tinha um con he cimento na Virgin, onde pude então ficar alguns meses como  vendedora. T ra balh ar com o salá rio m ín im o to rn a ra -se um produto de luxo. O mercado estava ainda mais difícil, e eu, entretanto, estava mais velha, com lacunas suspeitas no meu CV. A readap tação não era evidente. O único trabalho estável que encontrei con sistia em fazer resenhas de filmes para ad ul tos para um editor de revistas eróticas. O que gan hav a não che  gav a para pagar um a renda em P aris. Tomei conta de crianças, e pelo menos isso era uma coisa que não me aborrecia nada, m as tam bém não era suficiente para poder viver n a capital. Há um a com paração po ssível entre as drogas duras e a pro s tituição. Ao princípio, vai tudo bem: sensação de poder (sobre os homens, sobre o dinheiro), emoções fortes, descoberta de um eu m ais interessante, livre de dúvidas. M as tra ta-se de um

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alivio traiçoeiro, os efeitos secundários são penosos, conti n u a-se com esperança de voltar a encontrar as sen sações do início, com o acontece com a droga. E, quando se tenta parar, as com plicações são semelhantes: vo lta-se um a vez, um a só, e depo is na sem an a seguinte, e, ao m ínimo problema, liga-se o m initel por um a últim a vez. E, quand o com eçam os a perceber que estamos a perder mais tranquilidade do que ganhamos, recomeçamos, apesar de tudo. O que era uma força fantás tica que dominávamos escapa ao nosso controlo e torna-se ameaçadora. E o que há de atraente naquilo dita a nossa próp ria ruína.  A ndei assim no pára-a rranca durante algum tempo, e depois tornei-m e Virginie Despentes. A parte promocional do meu o fí cio de escritora mediatizada sempre me impressionou pelas suas semelhanças com o acto da prostituição. Salvo, quando dizemos «s ou um ap uta », term os todos os salvadores do nosso lado, enquanto se disserm os «apareço na televisão» tem os os invejosos contra nós. Mas o sentimento de não pertencermos com pletam ente a nós próprios, de ven derm os o que é íntimo, de m ostra r o que é privado, é exactamente o m esm o. Continuo a não estabelecer uma diferença nítida entre a prostituição e o trabalho assalariado legal, entre a prostitui ção e a sedu ção fem inina, entre o sexo pago e o sexo inter es seiro, entre o que conheci ness es ano s e o que vi nos seguintes.  ÍÍNo fim de con tas, o que as m ulh eres fazem dos seus corpos, ¡desde o m om ento que à sua volta há hom ens que têm poder 'e dinheiro, pareceu-me muito parecido. Escapa-me sempre 7a diferença entre a feminilidade que é vendida nas revistas 1\e a da puta. E, embora elas não indiquem claramente o seu preço, tive a im pres são de ter conh ecido dep ois m uitas putas. Muitas mulheres que não estão interessadas em sexo, mas

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que sabem lucrar com ele. Que se deitam com h om ens velhos, feios, chatos, deprimentes de imb ecilidade, m as soc ialm ente pod erosos. Q ue casam com eles e lutam por obter o m áxim o de dinheiro no momento do divórcio. Que consideram nor mal ser mantidas, levadas a viajar, mimadas. Que vêem m esm o isso como um triunfo na vida. É triste ouvir m ulheres falarem de amor como de um contrato económico implícito. Esperar dos homens que paguem para irem para a cam a com elas. Parece-me tão triste para elas, que renunciam a toda a independência —pelo menos a puta, uma vez o cliente ser  vid o, pode ir dar um a volta à vontade —, com o p ara o s g ajo s que só podem ter sexo se puderem entrar com a massa. Este é o meu lado classe média, há evidências que tenho dificul dade em aceitar, e não primo propriamen te pela subtileza. No entanto, se d esse um conselho a um a m iúda disposta a fazer render os seus encantos, dir-lh e-ia para proceder com clareza e conservar a sua independência, em vez de se deixar casar, pagar, engravidar e encurralar por um tipo que ela não sup or taria se não a leva sse a viajar. Os homens costumam imaginar que as mulheres têm imensa vontade de os seduzir e de os provocar. Isto é uma pura projecção homossexual: se eles fossem do sexo femi nino, o que eles mais gostariam seria poder excitar outros homens. Bem, admito que é agradável fazer-lhes perder a cabeça à custa de decotes e de lábios vermelhos. Também podem os gostar de nos m ascara r de Rato Miclcey para d istrair as crianças, m as há quem prefira outras co isas. Por exemplo, podem os querer não trabalhar na D isney. A sedução e stá ao alcance de muitas jovens, uma vez que se trata de dar segu rança aos homens a respeito da sua virilidade jogando o  jo go da fem inilid ad e, se aceitarem fazê-lo . M as extrair daí

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ganhos pessoais exige que se tenha um certo perfil e quali dades mais raras. Nem todas somos originárias das classes sociais sup eriores, nem todas som os treinadas para tirar dos homens o máximo de dinheiro. E, mais uma vez, há quem prefira o dinheiro que ganha directamente. Ao contrário do que m uitos hom ens estão convencidos, nem todas as m ulhe res têm alm a de cortesãs. Algum as, por exemplo, apreciam o poder directo, aquele que permite justamente chegar a qual quer parte sem ter de sorrir a três velhadas à espera de que eles nos vão contratar como isto ou confiar aquilo. O poder que permite ser desagradável, exigir, ser peremptória. Que não é m ais reles quando exercido por um a mulher do que por um homem. Presume-se que, devido ao nosso sexo, devemos renunciar a esse género de prazer. É pedir-nos demais. Na  vid a real, encontram os pou cas Sharon Stone. E m u itas v ic ia  das em coca ína, deslum brantes, completamente perdidas nos seus belos vestidos. Os homens adoram as mulheres boni tas, fazer-lhes a corte e fanfarrona r quando levam um a para a cama. M as o que eles go stam m ais, verdadeiramente, é vê -las entrar em deca dên cia e fing ir que têm pe na delas, ou deliciar -se a bertam ente com isso. A prova é o gozo alarve com que  vêem envelh ecer aqu elas que não conseguiram conquistar ou que os fizeram sofrer. O que há de m ais rápido e pre visíve l do que a qued a de um a m ulher que já foi bela? N ão é prec iso um ho m em ser muito paciente p ara obter a sua vingança. «O que é inaceitável não é uma mulher ser recompensada m aterialmen te por satisfazer o desejo de um hom em , m as que ela o pe ça exp lícitam ente», escreve Pheterson. Do mesmo modo que o trabalho doméstico ou a educa: i1 ção das crianças, o serviço sexu al feminino deve ser gratuito.

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O dinheiro é a independencia. O que ofende a moral no sexo pago não é a mulher nele não ter prazer, mas o facto de ela se afastar do lar e ganh ar o seu dinheiro. A p uta é a «m ulher da rua», a que se apropria da cidade. Trabalha fora dá esfera do doméstico e da maternidade, fora da célula familiar. Os homens não precisam de lhe mentir, nem ela de os enga nar, pelo que corre o perigo de se tornar cúmplice deles. Tradicionalmente, as mulheres e os homens não foram fei tos para se compreenderem, para se entenderem e serem  verd ad eiro s no se u relacio n am en to . M an ife sta m en te , e ssa eventualidade é assustadora. Nos meios de comunicação social franceses, os artigos documentais e reportagens radiofónicas acerca da prosti tuição incidem sempre no tipo mais sórdido, a prostituição de rua que explora imigrantes clandestinas. Isto devido ao seu carácter espectacular evidente: um pouco de injustiça medieval sempre fez belas imagens. E as pessoas gostam de propa lar histórias de m ulheres abu sadas, que transm i tem a todas as outras a m ensagem de que escapa ram de boa. Por outro lado, aquelas e aqueles que trabalham na rua não podem m entir sobre a sua actividade, como acontece com os homens e as mulheres que exercem através da Internet. Vai-se à procura do mais abjecto e encontra-se sem dificuldade, pois essa é precisamente a prostituição que não tem possi bilidade de se subtrair aos olhares dos outros. Raparigas sem autorização de residência, obrigadas a trabalhar no engate, domesticadas pelas violações, viciadas em crack,  retratos de mulheres perdidas. E, quanto mais lúgubre é o quadro, mais o homem se sente forte, em comparação. Quanto mais sór dido, ma is o povo francês se julga em ancipa do . E depois, com base em imagens inaceitáveis de uma prostituição praticada

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em condições lastimosas, tiram-se conclusões sobre o sexo pago no seu conjunto. É o mesmo que falar do trabalho na indústria têxtil só a m ostrar crianç as a trabalhar ilegalmen te em caves. M as não imp orta, o que interessa é transm itir um a só ideia: nenhuma mulher deve lucrar com os seus serviços sexuais fora do casamento. Em nenhum caso é suficiente mente adulta para decidir fazer negócio com os seus encan tos. E la prefere forçosam ente exercer um a pro fissão honesta. Que é considerada honesta pelas instâncias morais. E não deg radan te. Isto porque, pa ra as. m ulheres, o sexo, sem amor, é sempre degradante. Esta imagem concreta, que se gosta tanto de apresentar, da prostituta, desprovida de direitos, privada de autonomia e do poder de decisão, tem várias funções, designadamente: mostrar aos homens que sentem vontade de ir às putas até que ponto terão de se rebaixar se quiserem fazê-lo. Assim, também eles são conduzidos para o casamento, em direcção à célula familiar: toda a gente em ca sa. É igualm ente um a maneira de lhes recordar que a sua sexualidade é forçosa m e n te m onstruosa, faz vítim as, destrói vida s. C om efeito, a sexualidade masculina deve continuar a ser criminalizada, perigosa, associai e ameaçadora. Isto não é uma verdade em si, mas um a construção cultural. Q uando se im pede as putas de trabalharem em condições decentes, é evidente que o alvo a atingir são as mulheres, mas é também a sexualidade dos homens que se está a controlar. Dar uma queca tranquila mente quando lhes apetece não deve ser uma coisa dema siado agradável e fácil. A sua sexu alidade tem de perm anec er um problema. Duplo vínculo, tam bém aqui: na cidade, todas as imag ens excitam o desejo, m as a sua satisfação deve m an  te r-s e problemática, culpabilizante.

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 A d ecis ão p o lític a que co n sis te em v itim iza r as p r o s titu  tas desempenha também a função de estigmatizar o desejo masculino, de o confinar na sua ignominia. Que ele goze pagan do, se quiser, ma s então que conviva com a pod ridão, a vergo nh a e a m iséria. O pacto de prostituição «eu pago -te, tu satisfaze s-m e» é a bas e da relação heterossexual. A firm ar, como se vê fazer, que esta relação é estranha à nossa cultura constitui uma hipocrisia. Pelo contrário, a relação entre o cliente m asculino hetero ssexual e a puta é um contrato inter sexos são e claro. E por isso é preciso co m plicá-lo de m an eira artificial. Quando as leis Sark ozy expulsam as prostitutas de rua para fora das cidades, obrigando-as a trabalhar nos bosques no exterior dos bulevares periféricos, sujeitas aos caprichos d ab ófia e dos clientes (o simb olism o da floresta é interessante: a sexu a lidade deve sair fisicam ente dos dom ínios do visível, do co ns  ciente e do iluminado), não se trata de uma decisão política destinada a proteger a m oral. A questão não é só a de esco n der essa população pobre a o s o l h o s d o s h a b i t a n t e s d o s  centros das cidades, os mais ricos. Servindo-se do corpo da mulher, utensílio decididamente essencial para a elaboração po lítica da mística viril, o governo decide deportar para fora das cidades o desejo bruto dos hom ens. Até então, as putas instalav am -se nos ba irros ab astados, dado que era lá que estavam os clientes, que para vam para um broche rápido antes de voltar pa ra casa. No seu livro, Pheterson cita Freud: «A corrente de afeição e a corrente sensua l só se fundiram ad equadam ente num peq ueno núm ero de seres civilizados; o ho m em se n te-se q uase sempre lim itado na sua actividade sexual pelo respeito pela m ulher e só desenvolve toda a sua potência sexual quando em presen ça

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de um objecto sexual rebaixado, o que, por outro lado, tem origem no facto de, nos seus fins sexua is, intervirem com po nentes perversas que ele não se permite satisfazer com uma m ulher que respeite.»  A d ico tom ia m ã e-p u ta está traçad a a régua e esquadro no corpo das mulheres, como as fronteiras na África colo nial: n ão tendo em n enhum a conta as realidades do terreno, mas apenas os interesses dos ocupantes. Não decorre de um processo «natural», m as de um a vontade política. As m ulhe res estão condenadas a ficarem divididas entre duas opções incompatíveis. E os homens vêem-se enredados numa outra dicotomia: o que lhes dá tesão deve continuar a constituir um problema. Sobretudo, é absolutamente imperativo que não haja um a reconciliação. C om efeito, os homens po ssuem um a carac terística particular, que consiste em terem ten dên  cia para desprezar aquilo que desejam, assim como para se desprezarem p ela m anifestação física desse desejo. Em d esa  cordo fund am ental consigo próprios, sentem tesão por aquilo que os envergon ha. A o deportar a prostituição de rua, aquela que prop orcion a a satisfação m ais rápida, o corpo social com plica a satisfação dos homens. Houve uma frase que me marcou, repetida várias vezes por clientes diferentes, após sessões diferentes umas das outras. D iziam -m e, num tom suave e um pouco triste, mas, em todo o caso, resignado, o seguinte: «E por causa de tipos como eu que as raparigas como tu fazem o que fazem.» Era uma m aneira de m e rem eter para o m eu lugar de m ulher perdida, provavelmente por eu não ter ar de sofrer muito com o que fazia. Esta frase exprimia também como é dolorosa a inti midade do desejo masculino: o que gosto de fazer contigo

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produz nece ssariam ente infelicidade. A sós com a sua cul pabilidade. N ecessida de da vergonh a do seu próprio prazer, inclusivam ente se ele encontrasse satisfaçã o num quadro que não cau sasse dor e igualmente co m pensatório para am bas as partes. O desejo dos homens tem de magoar as mulheres, tem de as estigm atizar, e, por con sequê ncia, cu lpabilizá-los. Não se trata de um a fatalidade, diga -se m ais um a vez, m as de um a construção política. Actualmente, os hom ens não p are cem ter a intenção de se libertarem deste género de cadeias. Pelo contrário. Nã o e stou aqui a afirma r que este tipo de trabalho é anodino em q uaisquer condições e para qualquer mulher. M as, dad a a realidade do m undo económico actual, onde reina um a guerra fria e cruel, proibir o exercício da prostituição num quadro legal adequado é proibir especificam ente a classe fem inina de enriquecer, de lucrar com a sua própria estigm atização . Penso que não guardaria uma recordação tão positiva des ses anos de prostituição ocasional se não tivesse lido femi nistas americanas pró-sexo, como Norma Jane Almodovar, Carole Queen, Scarlot Harlot e Margot St. James. Não é por acaso que nenhum dos seus textos está traduzido em fran cês, que The Prostitution Prism, de Pheterson, tem u m a difusão mu ito lim itada, em bora seja um a obra incontornável, e que o livro de Claire Carth on net , J ’ai des choses àvo us dire, qu ase não é lido, tendo sido reduzido ao e statuto de sim ples testemun ho. O deserto teórico a que França se condena é uma estratégia: é preciso manter a prostituição na obscuridade e como algo de vergonhoso, para proteger tanto quanto possível a célula fam iliar clássica.

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Com eço a fazer engates nos finais de 199 1, e escrevo Baise-moi  em Abril de 1992. Penso que não é por acaso. Há uma relação efectiva entre a escrita e a prostituição. Em an ciparm o-no s, fazerm os o que não se faz, desven darm os a intim idade, expormo-nos aos perigos do julgamento de todos, aceitar a nossa exclusão do grupo. Mais especificamente, enquanto mulheres: tornarmo-nos uma mulher pública. Sermos lidas por toda a gente, falarmos daquilo que deve permanecer secreto, serm os exibidas nos jorn ais... E m oposição evidente com o lugar que nos está tradicionalm ente destinado: m ulher privada, propriedade, cara-metade, sombra do homem. To rnarm o-no s rom ancistas, ganha r dinheiro com facilidade, provocar tanta repulsa como fascínio: a vergonha pública é comparável à da puta. Satisfazer, fazer companhia àque les que ninguém quer, partilhar a intimidade de desconheci dos, aceitar sem fazer julgamentos diversos tipos de desejo. Encon tramo s m uitas prostitutas nos rom ances: Bo la de Sebo, Nana, Sofia Semionovna, Margarida, Fantine... São figuras populares, antimães, no sentido religioso do termo, mulhe res que não fazem julgam entos, com preensivas, adaptadas ao desejo dos hom ens, condenad as e livres. Q uando os hom ens se imaginam mulheres, vêem-se mais como putas, excluídas e com liberdade de m ovim entos, do que mãe s de fam ília cio sas do asseio do lar. É frequente as co isas sere m exactam ente o contrário da qu ilo que nos d izem, e é justa m en te por isso que no -las repetem com tanta insistênc ia e brutalidade. A figura da puta é disso um bom exemplo: quando se afirma que a prostituição é um a « violência exercida contra as m ulheres», é pa ra que esque çam os que é o casame nto e, de um a m aneira geral, tudo o que su portam os que constitui um a violência co n tra as mulheres. E preciso continuar a dizer àquelas que são

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fodidas g ratuitamente que não têm outra opção, senão como se pod eria ter mão n elas? A sexualidade m asculina, em si pró pria, não constitui um a violência contra as m ulheres se estas consentirem e forem bem remuneradas. O que é violento é o controlo exercido sobre nós, essa faculdade de decidir em no sso nom e o que é ou não é digno.

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 A pornografia é como um espelho no qual no s pode mos olhar. Por vezes, o que descobrimos nele não é muito bonito de se ver, e pode deixar-nos pouco à  vontade. M as que oportunidade maravilhosa de nos conhecermos, de chegarmos mais perto da verdade e de aprendermos.  A resposta à má pornografia não é proibir a porn o grafia, m as fazer melhores filmes pornográficos!  a n n i e s p r i n k l e

, Hardcorefiom

theHeart, 2001

PORNOBRUXAS

Mas, finalmente, o que há de tão importante na pornogra fia que confira aos filmes para adultos um tal poder blasfe matorio? Mostrem-nos urna rata depilada a ser penetrada por um grande mangalho, e muitos dos nossos contempo râneos ficam com o rabo apertado e só lhes falta benzerem-se. Alguns repetem, com ar de superioridade, que «isto já não tem interesse nenhum», m as basta andar cem m etros na cidade ao lado de um a estrela da pornografia para no s con   v en ce rm o s do contrário . O u ir à In tern et p ara le r a p r o sa an tipornografia. Aqueles que ficam chocados quando se trata de proibir um a caricatura religiosa - «E o cúmulo, já não esta  m os na Idade M édia» —já não têm ideias tão claras quando o caso se refere a clítoris e colhões. Parado xos surp reend entes da pornog rafia.  A s a firm açõ es cir cula m e são tan to m a is p erem p tó rias quanto perm anecem inverifícáveis. A ssim , respo nsa biliza-se a porno grafia por tudo e mais algum a coisa, seja pe las vio la ções colectivas, pela violên cia entre os sexos ou pelas violaçõe s no Ruan da e na Bósnia. C hega a ser comp arada às câm aras de g á s... M as um a coisa é certa: film ar o sexo não é anod ino. Os artigos e obras consag rado s ao assunto são inúm eros, m as os estudos sérios já são m enos. R aram ente alguém se dá ao tra balho de investigar as reacções dos homens que consomem

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pornografia. Prefere-se imaginar o que eles têm na cabeça, em vez de fazer directam ente a pergunta. D a v i d L o f t u s , e m Watching Sex, How Men Really Respond  to Pornography,  i n t e r r o g a ju s t a m e n t e c e m p e s s o a s d o se x o masculino, de perfis diversos, acerca das suas reacções p e r a n t e a p o r n o g r a f ia . T o d o s a f ir m a m t er d e sc o b e r to a p o r  n o g r a f i a a n t es d a id a d e l e g a l . N a a m o s t r a re f er id a , n e n h u m dos homens revela ter ficado mortificado. Pelo contrário, a descoberta do material pornográfico associa-se neles a  j u m a r e c o r d a ç ã o a g r a d á v e l, c o n s t r u t iv a d a m a s c u l in i d a d e d e d i v e r s a s m a n e i r a s , s e j a l ú d i c a o u e x c it a n t e. H o u v e d u a s e x c e p ç õ e s : d o i s h o m o s s e x u a i s , qu e re f er e m q u e a c o i s a na altura foi difícil, pois sabiam, confusamente, sentir-se atraídos por homens, mas sem que tivessem plena cons ciência disso. Nestes dois casos, a visão do material por nográfico obrigou-os a identificarem claramente os seus t i p o s d e a t ra c ç ã o . N a m inha opinião, esta experiência proporciona um a pista interessante para compreender a violência da rejeição nor m alm en te fanática, à beira do pân ico, de que a po rno grafia é objecto. A sua censura e proibição são e xigidas em altos b ra  dos por m ilitantes espav orido s, como se a sua vid a estivesse em jogo. Esta atitude é objectivamente surpreendente: será que uma queca à canzana em grande plano ameaça a segu rança do Estado? Os sítios da Internet antipornografia são m ais nu m eroso s e veem entes do que os sítios contra a guerra no Iraque, por exemplo. Um vigor espantoso a propósito de um sim ples cinem a de género. O problem a da porn og rafia é sobretudo o facto de bater no ângulo morto da razão. Ela dirige-se directamente aos cen tros de fantasias, sem p assar p ela palavra nem pela reflexão.

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Primeiro eles entesam-se ou elas ficam húmidas, a seguir podem p erg un tar-se porquê. Os reflexos de autocensura são subvertidos. A im agem porno gráfica não nos d eixa escolha: eis o que te excita, eis o que te faz reagir. Ela in d ica -n o s ond e é preciso carregar para no s estim ular. E e ssa a sua principal força, a sua dim ensã o q uase m ística. E é isso que faz crispar e gritar m uitos dos m ilitan tes an tipornografia. Eles recu sam que lhes falemos directamente do seu próprio desejo, que os obriguemos a saber coisas deles próprios que decidiram calar e ignorar.  A p orn o g rafia p õe u m verd ad eir o proble m a: produz a d e s  carga do desejo e propõ e-lhe um alívio com de m asiada rap i dez para permitir uma sublimação. Nesta medida, tem uma função: atenuar a tensão existente na nossa cultura entre delírio sexual abusivo (na cidade, os sinais que apelam ao sexo invadem-nos literalmente o cérebro) e rejeição exage rada da realidade sexual (não vivem os num g igantesco ba ca  nal perpétuo; as coisas permitidas ou possíveis são mesmo relativam ente lim itada s). A pornografia intervém aqui como desc arga psíquica p ara equilibrar a diferença de pressão . M as o que é excitante é muitas vezes socialmente embaraçante. Raros são aqueles e aquelas que têm vontade de assumir em público o que os faz subir ao sétimo céu em privado. Nem sequer estam os forçosamente dispostos a falar disso com os no ssos p arceiros sexuais. O que me dá tesão é do dom ínio do privado. Com efeito, a im agem que isso dá de mim é incom  patível com a minh a identidade social quotidiana.  A s n o ssa s fan ta sia s sexu ais fa la m de nós, p ela v ia in dir ecta dos sonhos. N ão dizem nada sobre o que dese jam os que acon teça de facto.

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É evidente que muitos hom ens he terossexuais ficam exci tados com a ideia de serem penetrados por outros homens, ou de se deixarem humilhar ou sodomizar por uma mulher, da mesma maneira que é sabido que muitas mulheres ficam húmidas com a ideia de serem violadas, participarem num bacanal ou serem fodidas por outras mulheres. Podem os tam  bém ficar constrangidas perante a pornografia justamente porque ela revela que som os inexcitáveis, emb ora nos im ag i náss em os um as taradas insa ciáveis. O que nos excita, ou não, provém de zonas incontroladas e obscuras, e raramente está de acordo com o que dese jam os ser conscientem ente. E aqui que reside todo o interesse deste cinem a de género, se g o sta  m os de nos d eixar ir e perde r no d escon hecido , e todo o perigo desse m esmo cinema, se justam ente tem os medo de não co n trolar tudo. Pede-se demasiadas vezes à pornografia que seja a imagem do real. Com o se já não fosse cinem a. C ensu ra-se, por exem  plo, as actrizes po r sim ular em o prazer. Elas estão lá para isso, foi o que aprenderam a fazer. N ão se vai pedir à Britne y Spe ars que tenha vontade de dançar de cada vez que sobe ao palco. Ela veio para dançar e nós pagám os p ara ver, cada um dese m  penho u o seu pape l e ningu ém sai a resm ung ar «acho que ela estava a fingir». Qu eremos que a porn ografia diga a verdade, coisa que nunca exigimos ao cinema, que, por essência, é a técn ica da ilusão. Esperamos dos film es porno precisamen te o que tem em os deles: que digam a verdade sobre os no ssos desejos. N ão faço ideia por que mo tivo é tão excitante ver outras p esso as a foder debitando palavras porcas à mistura. O facto é que funciona. E automático. A porn ografia revela cruam ente outro aspecto

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de nós: o desejo sexua l é um meca nismo , e nad a com plicado de pôr a funcionar. Porém, a m inha libido é complexa, o que ela diz de mim pod e não me agradar, nem sem pre coincide com o que eu go staria de ser. M as po sso preferir sabê-lo, em vez de  vir a r a cara e diz er o contr ario do que se i de m im p a ra p r e s e r   va r u m a im agem social tran quiliz adora. Os detractores dos filmes para adultos queixam-se d e que a pornog rafia é sempre a mesm a coisa. Go stam de esp alhar a ideia de que o sector é falho de imaginação. O que é falso. O s e c to r d i v i d e - s e e m d o i s s u b g é n e r o s d i s ti n t o s : o s f i lm e s d e 35 m m d o s a n o s s e te n t a s ã o d i fe r e n t e s d o s fi lm e s a m a  dores trazidos pelo vídeo, que é diferente dos víde os de telem ó v e i s , d a s wehcams  e d a s d i v e r s a s p r e s t a ç õ e s a o v i v o n a Internet. Porno-chique, alt-porn, post-porn, gangbang, gonzo, s a d o m a s o q u i s m o , fe t ic h i s ta s , bondage, c h u va d o u r a d a e scat, film es para gosto s espe cíficos —m ulheres ma du ras, de seios avantajados, com pés bonitos, com nádegas espectacula r e s , f il m e s c o m t r a n s e x u a i s , f il m e s gay, f il m e s l é s b i c o s : c a d a género de porn ogra fia tem o seu caderno de encargos, a sua história, a sua estética. De igual mod o, o cinem a porn o a le m ã o n ã o te m a s m e s m a s o b s e s s õ e s q u e o c in e m a ja p o n ê s , italiano ou americano. Cada parte do mundo tem as suas e s p e c i f ic i d a d e s p o r n o g r á fi c a s . O que escreve realmente a história dos film es p ara adultos, o que a inven ta, o que a define, é a censu ra. E o que é proib ido m ostrar va i m arcar cada tipo de cinem a porno e fazer dele um exercício intere ssan te de como con tornar o proibido. Com as ab errações e os efeitos contraproducentes m ais ou menos alienantes que isso implica: em França, os canais de cabo definem o que é ou não po ssível m ostrar. N ada de cenas

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de vio lên cia, nad a de cenas de sub m issão, por exem plo. Fazer po rno grafia abdicando da coacção é um pouco como patinar no gelo sem láminas nos patins. Boa sorte... É igualmente proibida a utilização de objectos: pénis de borracha, cintos com pénis de borracha. Nada de pornografia lésbica, nada de ho m en s a serem pe ne trado s... A pretexto da protecção da dignidad e das mulheres. Não estamos bem a ver de que maneira a dignidade das mulheres seria especialmente atacada pelo uso de um cinto com pénis de borracha. Sabemo-las suficientemente aguer ridas para perceber que uma encenação sadomasoquista não sign ifica que elas gostem de se deixar chicotear quando chegam ao escritorio ou amordaçar quando estão a lavar a louça. N o entanto, ba sta ligar a televisão p ara ver m ulheres em p os içõ es hum ilhantes. Os interditos são o que são e têm a sua justificaçã o política (o sado m asoquism o deve continuar a ser um desporto de elite, o povo não tem capacidade para captar a sua complexidade, ia magoar-se). Quando se trata de limitar a expressão sexual, a «dignidade» da mulher tem as costas larg as...  A s co n d içõ es em que trabalham as actriz es, os contratos abe rrantes que assinam , a imp ossibilidade que têm de con tro lar a sua im agem quando aband onam a profissão ou de serem retribu ídas cada vez que ela é utilizada, essa dim en são da sua dignidade não interessa aos censores. O facto de não existir nenh um centro de cuidados especializado s aonde elas se p o s sam deslocar para obter informações sobre as especificida des m uito p articulares da sua pro fissão é algo que está longe de inco m od ar os poderes públicos. Há um a dignidade que os preocu pa e outra de que ninguém quer saber. M as a porno gra fia faz -se com carne human a, com a carne das actrizes. E, no

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fim de contas, levan ta um único problema m oral: a agre ssivi dade co m que elas sã o tratadas. Falam os aqui de mulheres que decidem exercer esta pro  fissão quando têm entre dezoito e vinte anos, ou seja, nesse período absolutamente particular em que a expressão «con sequências a longo prazo» tem tanto sentido como grego antigo. Os homens maduros não têm vergonha de querer seduzir miúdas que mal saíram da infância, considera m n or m al m asturb ar-se a olhar para rabos de rapariguinha s ac ab a das de chegar à puberdad e. E um problem a deles, são ad ultos, deviam assu m ir as consequênc ias. Por exemplo, pod iam m ostrar- se particularmente solícitos e bon doso s com as m eninas m uito jovens que aceitam satisfaze r-lhes os ape tites. Ora, não é isso que acontece: enfurecem-se por elas terem tomado a liberdad e de fazer exactam ente aquilo que eles d ese java m ver. Toda a elegância e coerência masculinas, resumidas numa atitude: «Dá-me o que eu quero, peço-te por tudo, para que p oss a a seguir cuspir-te na cara.»  A rap arig a que fa z p orn ografia fica a saber, lo go que entr a na profissão - repetem-lho constantem ente - que não deve ter ilusões: não haverá caminho de retorno. Decididamente, as mulheres são sobretudo apreciadas quando se encontram  vu ln eráveis . M arcad as, o c ole ctivo zela p o r que p agu em fo rte  mente o preço de se terem desviado do bom caminho e por o terem feito publicam ente.  V i isso de perto quando c o -re a liz ei Baise-moi   com Coralie Trinh Thi. Que a sua plástica faça os ho m ens sonhar, que con  servem dela um a grata recordação, ainda vá. M as a obstina ção com que depois lhe recusavam o direito de ser capaz de outra coisa era incomodativa. O facto de ela ser co-realizadora do film e só pod ia ser um capricho da m inha parte. Pouco

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im po rta o argum ento, o que interessa é que, em trinta segu n dos, o seu caso p os sa ser classificado: ilegítim o. E la não podia ter sido um a criatura dem oníaca e depois dar provas de im a ginação, de inteligencia e de criatividade. Os homens não queriam ver o objecto das suas fantasias sair do quadro par ticular em que o haviam confinado, e as mulheres sentiam-se ameaçadas pela sua simples presença, inquietas pelo efeito que o seu estatuto provocava neles. Uns e outras con cordavam num ponto essencial: era preciso cortar-lhe a pa la  v ra, im p e d i-la de falar. In clu siv am en te n as en trevis tas, onde era frequente as suas resposta s serem atribuídas a m im. Não estou aqui a destacar casos isolados, mas a referir reacções quase sistem áticas. Era preciso fazê-la d esaparecer do espaço púb lico. Pa ra proteger a libido do s hom ens, que gostam que o objecto do de sejo perm aneça no seu lugar, ou seja, de sen car nad o e, sobretudo, mudo. Do mesmo modo que, politicamente, é muito importante ence rrar a representação visual do sexo em guetos delim itados, claramente separado do resto da indústria a fim de acanto nar o porno num lumpemproletariado do espectáculo, é cru cial encerrar as actrizes dos filmes p orno gráficos num quadro de reprovação, vergonh a e estigmatização. N ão é que elas não sejam capazes de fazer outra coisa, nem tenham v ontade de o fazer, mas a sociedade tem de se organizar para garantir que isso não lhes seja possível.  A s rap a rig a s que g an h am a vid a com sexo pago, que obtê m , permanecendo autónomas, uma vantagem concreta da sua condição de fêmeas, devem ser punidas publicamente. Elas transgrediram, não desempenharam o papel de boa mãe nem de bo a esposa, e ainda m enos o de m ulher respeitável — é difícil uma libertação mais radical desses estereótipos do

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que fazer um filme pornográfico pelo que devem se r so cial mente m arginalizadas. É a luta de classes. A classe dirigente visa aquelas que q ui seram subir na vida, tomar de assalto o ascen sor so cial e for çá-lo a pôr-se em m ovimento. A m ensagem é política, de um a classe para outra. A mulher tem de se compenetrar de que a sua única perspectiva de elevação social é por via do casa mento. O equivalente do pomo para os homens é o boxe. Eles têm de mostrar agressividade e correr o risco de arrui nar o corpo para divertir um po uco os ricos. M as os p ug ilistas, m esmo os negros, são homen s. Têm direito a essa minú scula m argem de m obilidade social. Ao contrário das m ulheres. Quando Valéry Giscard d’Estaing, nos anos setenta, proíbe a pornografia no cinema, não o faz na sequência de um cla m or popu lar de protesto — as pessoa s não saíram à rua a gritar «basta!» - , nem em resposta a um aumento dos proble m as sexu ais. Fá-lo porque os film es têm dem asiado sucesso: o público en che a s sa las e desc ob re b conceito de prazer.' O pre  sidente protege o povo francês da sua vontade de ir ao cinem a  ver b ons film es de se xo. A partir de entã o, o p om o será objecto de um a censura económica assassina. Deixará de ser po ssí  vel realiz ar pelí culas am biciosas, film ar o sexo com o se film a a guerra, o amor romântico ou os gángsteres. As fronteiras do gueto estão traçadas, sem nenhuma justificação política.  A m oral protegida é aquela que quer que só a classe dirig ente tenha a experiência de uma sexualidade lúdica. O povo, pela sua parte, que fique sossegadinho, já que demasiada luxúria iria certamente p rejudicar a sua ap licação no trabalho. Não é a porn ografia que choca as elites, m as a su a dem o cratização. Q uando o LeN ou vel Observateur titula —em 200 0, a prop ósito da proibição de Baise-moi   - «Po rnog rafia, o direito

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de dizer não», não se trata de impedir às pessoas de letras o acesso aos textos de Sade, nem de retirar das colunas da revista os pequeno s anún cios de leitores generosos e lúbricos, e ninguém se esp antaria de ver esses paladinos virulentos da antipornografia na co m panhia de jovens putas ou em clubes de trocas de casais. É ao livre acesso ao que deve permane cer um domínio dos privilegiados que o Le Nouv el Observateur  reclama o direito de dizer não. A pornografia é o sexo ence nado, cerim on ial. Ora, por um truque de prestidigitação con  ceptual que continua a ser obscuro, o que é bom para alguns, a que aqui cham am os libertinagem , constituiria para as m assas um perigo de que era absolutamen te necessário pro tegê-las. No discurso antipornográfico, perdem o-nos rapidam ente: afinal quem é a vítim a? A s m ulheres, que perdem toda a dig nidade a partir do mom ento em que são vistas a chupar um a pila, ou os hom ens, d em asiado fracos e incapazes de controlar a sua vo ntad e de ver sexo e de com preender que se trata ap e nas de um a representação?  A id eia de que a p o rn o g rafia se articula u n icam en te em  A o rno do p én is é su rpreen d en te. O que vem o s são corpos de mulheres. E, muitas vezes, corpos de mulheres sublimados. O que há de mais perturbador do que uma actriz pornográ fica? Aqui já não estamos no domínio da «coelhinha», da m iúda do lado, que não m ete m edo, que é acess ível. A actriz po rno gráfica é a m ulher em anc ipada, a mulher fatal, aquela que atrai todos os olhares e provoca forçosamente uma perturbação, quer se trate de desejo ou de repúdio. Então, porque se lamenta tanto essas mulheres que têm todos os atributos d a bom ba sexual? Tabatha Cash, Co ralieT rinhT hi, Ka renLancaum e, Raffaêla  A nderson, N in a R oberts: o que m e chocou quando estava com

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elas não foi os homens tratarem-nas como nulidades, nem que eles dominassem a situação. Pelo contrário, nunca vi os hom ens tão imp ressionad os. Se é verdade, como proclamam alto e bom som, que nada é mais sublime para uma mulher do que fazer os homens sonhar, porquê essa obstinação em lamentar as actrizes pornográficas? Por que razão o corpo social teima em torná-las vítimas, quando têm tudo para serem as mulheres mais realizadas em matéria de sedução? Que tabu é aqui violad o que justifique es sa m ob ilização febril?  A resp o sta, depois de ter vis to centenas de film es p o rn o  gráficos, parece-me simples: nos filmes, a actriz tem uma sexualidade de homem . Para ser m ais concreta: ela com po rta-se exactamente como um homossexual num quarto escuro. Tal como é encenado no s film es, ela quer sexo, com qualquer um, ela quer sexo por todos os buracos e ela tem sem pre p ra  zer. Co m o um hom em , se tivesse um corpo de mulher. Se virmos bem, num filme pornográfico heterossexual é sempre o corpo feminino que é valorizado, mostrado, com o qual se conta produzir o efeito. Não se pede ao actor o mesmo desem penh o, pe d e-s e-lh e que se entese, que se agite, que m o s tre o esperma. O trabalho é feito pela mulher. O espectador do filme porno identifica-se sobretudo com ela, e não com o pro tagonista masculino, do mesmo modo que nos identificamos espontaneamente, num filme qualquer, com quem é posto em destaque. O porno é tam bém a m aneira que os hom ens têm de im aginar o que fariam se fossem mu lheres, como procederiam para satisfazerem outros homens, serem umas depravadas, um as criaturas pap a-p ilas. Evo ca-s e m uitas vezes a frustração que constitui a realidade, comparada com a encenação por nográfica, esse real onde os hom ens devem foder com m ulhe res que efectivamente não se parecem com eles, pelo menos

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com frequência. É interessante notar, a este propósito, que as mulheres «re ais» que acumulam em excesso os sinais de fem i nilidade, aquelas que repetem doze vezes num a conve rsa que se sentem «tão m ulheres» e que têm um a sexualidade com patível com a dos hom ens, são m uitas vezes as m ais viris. A frustra ção do real é o adeu s que os hom ens têm de dizer, se q uiserem entrar na heterosse xua lidade, à ideia de foder com ho m ens que tivessem atributos e xteriores de mu lheres.  A pornografia, que costum a ser acu sad a de pôr as p esso as pouco à vontade no que respeita ao sexo, é na realidade um ansiolítico. D aí ser ataca da com virulência. E im portante que a sexualidade assu ste. No film e pornográfico sa be -se que as pessoa s vão « fazê -lo» , não há receios quanto a isso, o que já não acontece n a vid a real. Foder com um (a) descon hecido/a faz sempre um p ouco de m edo, a m enos que se esteja com ple tamente com os copos. E mesmo nisso, em grande medida, que reside o interesse da coisa. Na pornografia, sabe-se que os hom ens se entesam e que as m ulheres têm orgasm os. Não podemos viver numa sociedade espectacular, invadida pelas representações da sedução, do  flirt,   do sexo, e não perceber que a pornografia é um local em que nos encontramos em segurança. Não estamos na acção, podemos olhar os outros a fazê-lo, saber fazê-lo, com toda a tranquilidade. Aqui, as m ulheres ficam satisfeitas com o serviço que lhes é prestado, os homens têm bo as erecções e ejaculam , toda a gente fala a m esm a língua, p or um a vez tudo corre bem . Por que razão o po m o é o apanágio dos ho m ens? Tendo a po r nografia, enquanto indústria, trinta anos, por que razão são eles os principais beneficiários econ óm icos? A respo sta é-a

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m esm a em todos os domínios: o poder e o dinheiro são de s  valo riz ad os quando toca-às m ulh eres. Só se devem exercer e obter graças à cooptação m asculina: sê escolhida como con sorte e bene ficiarás das vantage ns do teu com panheiro. Só os hom ens imaginam¡a pornografia! a encenam, a veem e lucram com ela, e o desejo feminino é subm etido à m esm a distorção:i tem de passar pelo olhar m asculino. A ideia de p ra zer fem inino tem vindo a afirm ar-se lentam ente. Tendo per m anecido até há pouco tempo um tabu e algo de im pensável, o orgasm o feminino faz a sua irrupção na linguag em corrente a partir dos anos setenta, m as para ser ime diatam ente virado duas vezes contra as mulheres. Uma primeira, fazendo-nos com preender que não atingir o orgasmo é um a falha da n ossa parte. A frigidez torno u-se quase um sinal de imp otência. Ora, a anorgasmia feminina não é comparável à impotên cia masculina: uma mulher frígida não é uma mulher esté ril, nem u m a m ulher amputada da sua sensualidade . M as, em  vez de se r u m a p o ssib ilid a d e , o o rg a sm o é tra n sfo rm a d o em imperativo. E sempre preciso que nos sintam os incapazes de qualquer co isa... E um a segunda vez, porque os hom ens se apoderaram imediatamente deste orgasmo feminino: é atra  vés dele s que a m ulh er deve gozar. A m astu rb ação fem in in a continua a ser desprezável, acessória. O orgasmo que deve mos atingir é o orgasmo proporcionado pelo homem. Este deve saber «com o agir». Como na B ela A dorm ecida, ele inc li na -se sobre a sua amad a e leva -a ao sétim o céu.  A s m u lh e res ou vem a m e n sa g e m e, com o de costum e, levam muito a peito não ofender o sexo susceptível. É assim que, em 2006, se ouve raparigas muito novas dizerem que esperam até um hom em as fazer ter um orgasm o. D este modo, toda a gente está pouco à vontade: os rapazes que hesitam

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sem saber como deverão agir, e as raparigas, frustradas por eles não conhecerem melhor do que elas as suas próprias anatom ias e os seus dom ínios fantasm áticos. Qu anto à m asturbação fem inina, basta falar nisso com as mulheres à no ssa volta: «eu sozinha não me intere ssa», «só o f aç o q u a n d o n ã o t en h o g a j o d u r an t e m u i to t e m p o » , « p r e  firo que se o cupem de m im», « não pratico, não gosto». Não sei o que fazem nos tem pos livres, m as, em todo o caso, se não se masturbam, compreende-se que não sintam interesse pelos filmes p ornog ráficos, cuja m issão é só uma: que as pesso as se masturbem. Se i m uito bem que o que as raparigas sozinhas fazem com o seu clítoris não m e diz respeito, m as, ainda assim , esta ind i ferença para com a masturbação incomoda-me um pouco: quando é que as mulheres se ligam com as suas próprias fan  tasias se não se masturbam quando estão sozinhas? O que sabem do que verdadeiramente as excita? E, se não sabemos isso, o que conhecemos de nós com exactidão? Que contacto estabelecemos connosco quando o nosso próprio sexo é sis tem aticam ente anexado por outro? Queremos ser mulheres decentes. Se a fantasia aparece como perturbação, ou como algo de impuro ou desprezível, recalcam o-la. M eninas modelo, anjos do lar ebo as m ães, feitas para o be m -es tar de outros, não para sondar o no sso íntim o. Somos formatadas para evitar o contacto com o nosso lado selvagem. Sobretudo agradar, sobretudo pensar na satisfa ção do outro. Tanto pior pa ra tudo o que é preciso reprim ir em nós. As nossas sexualidades põem-nos em perigo; reconhe cê -las é talvez fazer a experiência delas, e, para u m a mulher, toda a exp eriênc ia sexual leva à sua exclusão do grupo.

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O desejo feminino foi silenciado até aos anos cinquenta.  A p rim e ira vez que m u lh eres se reú n em p a ra afirm ar qu e «tem os desejo, som os percorridas por pu lsões brutais, inex plicáveis, os nossos clítoris são como pilas, reclamam ser satisfeitos» foi por ocasião dos primeiros conce rtos de

rock.

Os Beatles vêem -se o brigados a desistir dos concertos ao  v iv o : as m u lh eres n a sa la u rram a cad a n o ta que ele s to cam , as suas vozes cobrem o som da m úsica. E logo a segu ir vem o desprezo. H isteria da fã. N inguém quer ouvir aquilo que elas  v ie ra m dizer, que são m u lh eres ardentes e sen tem d e sejo . Esse fenómeno fundamental é ocultado. Os homens não querem ouvir falar disso. O desejo é o seu domínio exclu sivo. E extraordinário pensar que se despreza uma rapariga que grita o seu desejo quando John Lennon toca uma gui tarra, m as se co nside ra gaiteiro um velho que assob ia a um a adolescente de saias. Por um lado, há uma concupiscência ind iciado ra de bo a saúde, que a sociedade acha norm al, que é elogiada, pela qual se m ostra ben evolên cia e com preen são, e, por outro, um apetite necessariam ente grotesco, m on s truoso, risível, que deve ser reprimido.  A explicação p sico ló g ic a corre nte p ara a existên cia de n in fomaníacas é um exemplo claro de difamação, ao pretender que elas multiplicam os encontros sexuais por despeito de não sentirem satisfação sexual. Difunde-se assim a ideia de que m ultiplicar as conquistas é forçosam ente ind ício de frustra  ção feminina. Enquanto, na realidade, é uma teoria que se aplicaria melhor aos homens, frustrados com a pobreza da sua sensualidade e do seu prazer. São os homens que super v alo rizam e su bli m am o corp o fem in in o e qu e, in cap azes de tirar dele o prazer esperado, acum ulam as conq uistas na esp e rança de, um dia, experienciarem qualquer coisa da ordem do

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 verd adeir o orgasm o . M a is u m a vez, o que é fu n d am e n tal m ente verdadeiro para o hom em é desviado pa ra estigm atizar a sexualidade feminina. Quand o P aris Hilton ultrapassa os limites, se exibe de gatas com o rabo esp etado e aproveita a circulação da imag em para se tornar mundialmente conhecida, percebemos uma coisa imp ortante: ela pertence à sua classe social antes de perten  cer ao seu sexo. Assim, no estúdio do programa de televi são  Nulle Pa rt Ailleurs,   diante de Jamel Debbouze, ocorre uma cena interessante. O jovem cómico procura imediatamente redesigná-la, remetê-la para o seu lugar de mulher disso l u t a: « C o n h e ç o - t e m u it o b em , e u v i - t e , v i - t e n a I n t e rn e t .» Ele fala em nome do seu sexo, conta com a sua superiori dade intrínseca para a pôr num a posição delicada. M as Paris Hilton não é a actriz local de filmes pornográficos; antes de ser um a mu lher a quem se viu a rata, é a herdeira dos hotéis Hilton. Para ela, é impensável que um homem de estatuto social inferior a ponha numa situação vulnerável, nem que fosse por um segundo. Ela nem pestaneja, quase não o olha. Desestabilização nula. E não está aqui a dar mostras de um carácter especialmente notável. Faz-nos saber, a todos, que se po de perm itir foder diante de toda a gente. Pertence a um a casta que, historicamente, tem direito ao escândalo, a não se con form ar com as regras que se aplicam ao povo. A ntes de ser um a mulher, sujeita a um olhar de hom em , é um a dom inante social, capaz de escamotear o julgamento de quem é menos privilegiado. Co m preend e-se assim que a única ma neira de fazer explo dir o ritual sacrificial do pomo será levar para lá as rapari gas de boas famílias. O que explode, quando explodem as

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censuras im postas pela cam ada dirigente, é urna ordena m oral alicerçada na exploração de todos. A família, a virilidade guerreira, o pudor e todos os valore s tradiciona is v isa m atribuir a cada sexo o seu papel. A os hom ens, o de cad áveres gr atuitos para o Estado, às mulheres, o de escravas dos homens. No final, todos escravizados, as nossas sexualidades confiscadas, vigiadas, normalizadas. Há sempre uma classe social interessada em que as coisas continuem como são e que não diz a verdade acerca das suas m otivações profundas.

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Na realidade, o homem representa hoje o positivo e o neutro, ou seja, o macho e o ser humano, enquanto a mulher é apenas o negativo, a fêmea. Assim, cada vez que ela se comporta como um ser humano, declara-se que se identifica com o macho. As suas activida des desportivas, políticas, intelectuais, o seu desejo por outras mulheres, são interpretados como um "protesto  viril”. Há urna recusa em ter em conta valores em direcção aos quais ela se transcende, o que conduz evidente mente a considerar que faz a escolha inautêntica de uma atitude subjectiva. O grande mal-entendido em que se baseia este sistema de interpretações é admitirmos como natural   o ser humano fêmea fazer de si uma mulher feminina: não basta ser uma heterossexual, nem mesmo uma

mãe, para realizar esse ideal. A "verdadeira mulher” é um produto artificial que a civilização fabrica como antiga mente se fabricavam castrados. Os seus pretensos instin tos de sedução e de docilidade são-lhe insuflados como ao homem é incutido o orgulho fálico. Este nem sem pre aceita a sua “vocação viril”. Tem boas razões para aceitar ainda menos docilmente a que lhe é designada. s im o n e

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d e

b e a u v o i r  ,

O Segundo Sexo, 19491

Trad. Sérgio Milliet, rev. Carlos Pinheiro, Lisboa, Q uetzal Editores, 2009. A tradução deste excerto foi feita a par tir do texto citado no original. ( N.T .)

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K IN G K O N G G I R L

 A versão de King Kong   realizada por Peter Jackson em 2005 com eça no início do século xx . Ao m esm o tempo que se con s trói a América industrial, moderna, diz-se adeus às velhas formas de diversão, o teatro burlesco, a trupe ambulante, e p rep ara -se o advento de form as de entretenimento e de con  trolo m ode rnos: o cinem a e a porno grafia. Um encenador m egalóm ano e m entiroso, um homem do cinema, leva um a m ulher loura num a viage m de barco. Ela é a ún ica mulher a bordo. A ilha para onde se dirigem cham a-se a Ilha das Ca veiras. N ão está referenciad a nos mapas^ pois nunca ninguém de lá regressou. Tribos primitivas, criaturas fetais, raparigu inhas de cabelos negros em aranh ado s e velhas ameaçadoras e desdentadas gritam debaixo de uma chuva diluviana. Os autóctones raptam a mulher branca para a levarem como oferenda ao King Kong. Am arram -na, e um a velha põe-lhe um colar antes de a entregar ao grande gorila. O s h u m a nos que a precederam, enfeitados tam bém com estes colares, tinham sido todos devorados à laia de aperitivo. Este King Kong não tem pila, nem colhões, nem mamas. Nenhuma cena permite que se lhe atribua um sexo. Ele não é macho nem fêmea. É apenas peludo e negro. Herbívora e contem plativa, esta criatura tem sentido de humor e sabe fazer

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demonstrações do seu poder. Entre Kong e a loura, não há nenhuma cena de sedução erótica. A bela e o monstro habituam-se um ao outro e protegem-se, são sensualmente ter nos um com o outro, m as de uma man eira não sexuada.  A ilha é h a b itad a p o r cria turas que não são m ach o s n em fêm eas: laga rtas m on struosas, de tentáculos viscoso s e pe n e trantes, m as hú m idos e cor-d e-ro sa como ratas de m ulheres, larvas com cabeças de pilas, que se abrem e se transformam em vaginas com dentes que devoram as cabeças dos m em bros da equipagem... Outras recorrem a uma iconografia mais diferenciada em term os de sexo, m as inserem -se no dom ínio da sexualidade polimorfa: aranhas peludas e brontossauros cinzentos e idênticos, com paráveis a um a horda de esp erm a tozóides bro n co s... King Kong funciona aqui como a metáfora de um a sex ua  lidade anterior à distinção de géneros, tal como foi imposta politicamente por volta de finais do século xix. King Kong está para além da fêm ea e para além do macho. E nco ntra-se na charneira entre o homem e o animal, o adulto e a criança, o bom e o mau, o primitivo e o civilizado, o branco e o negro. H íbrido, anterior à obrigação do binário. A ilha deste film e é a possibilidade de uma forma de sexualidade polimorfa e hiperpotente. E isso que o cinema pretende capturar, exibir, desn aturar e dep ois exterminar. Quando o hom em a vem buscar, a mulher hesita em acom pan há-lo. Ele quer salvá -la, levá -la de novo para a cidade, para a heterossexualidade hipernormalizada. A bela sabe que, com King Kong, está em segurança. Mas sabe também que terá de deixar a sua manápula protectora para voltar ao mundo dos hom ens e aí dese nve ncilhar-se sozinha. Ela decide acom panh ar aquele que a vem procurar e libertar da segurança para a levar

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de volta à cidade, onde ficará de novo sob ameaça constante. Em câm ara lenta, grande plano dos olhos da loura quando se dá conta de que foi utilizada. Se rviu ap ena s de isco pa ra capturar o animal. A anim al. Para trair a sua aliada, a sua protectora. C om quem ela tinha afinidades. A sua escolha da heterossexualidade e da vida na cidade é a escolha de sacrificar o que nela é selva gem, pode roso, o que nela ri quando bate no peito. O que reina na ilha. Qualquer co isa tinha de ser oferecida em sa crifício. De seguida, King Kong é agrilhoada e exibida em Nova Iorque. É preciso que ela aterrorize as multidões, mas que as cadeias sejam sólidas, que, por sua vez, as massas possam também ser domadas, como na pornografia. Quer-se tocar de perto o bestial, tremer, mas sem que haja danos colate rais. Haverá danos, pois o animal escapa ao apresentador, como no espectáculo. Hoje em dia, o que causa problemas não é a recuperação do sexo ou da violência, mas, pelo con trário, a irrecuperabilidade das noções a que se recorreu no espectáculo: a violência e o sexo não são domesticáveis pela representação. N a cidade, King Kong arrasa tudo à sua passag em . A civili zação que se via em construção no início do film e é destruída num ápice. Essa força que não se quis domar, nem respeitar, nem deixar onde estava é demasiado grande para a cidade que ela esm aga pelo sim ples cam inhar. C om toda a tranqu ili dade. O m onstro procura a sua loura, para um a cen a que não é erótica, m as do dom ínio da infância: se gu rar-te -ei na mão e iremos patinar juntos, como numa valsa. E tu rirás como um a criança num carrossel encantado. Não existe aqui sedu  ção erótica, m as um a relação sen sua l evidente, lúdica, onde a força não estabelece um dom ínio. King Kong, ou o caos ante rior à sep araçã o de géneros.

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Depois, os homens de uniforme, o mundo da política, o Estado, intervêm para matar o monstro. Trepar ao cimo dos edifícios, lutar com av iões que parecem m osqu itos. Só o seu número permite abater a besta, deixando a lo ura soz inha, pronta para casar co m o herói. O realizador, de olhos franzido s diante do corpo do anim al fotografado como um troféu: «Os aviões não fizeram nada. Foi ab ela quem m atou o m on stro.» Palavra de realizador: m entirosa. A b ela não e scolheu m atar o m onstro. A b ela recu sou participar no espectáculo, foi ao seu encontro quando soube que ele se escapara, diver tiu-se na sua m ão quando deslizavam sobre as águas geladas do parque, seguiu-o até às alturas onde ele se deixou matar. Só depois a bela foi então atrás do seu príncipe. Ela não conse guiu impedir os hom ens de trazerem o mo nstro, para depois o matarem. Coloca-se sob a protecção do mais desejoso, do m ais forte, do m ais ad aptado . Fica cortada do seu pod er fun  damental. E o no sso m undo m oderno. Quando, em 1993 , chego a Paris, a minha fem inilidade estava reduzida a alguns a cessórios para uso profission al. A partir do momento em que deixo de engatar clientes, volto ao anoraque, às calças de ganga, aos sapatos rasos e a uma maqui lhagem sucinta. O  punk rock   é um exercício de destruição dos códigos estabelecidos, designadamente no que se refere aos géneros. Quanto m ais não seja porque nos afastam os fisica  m ente dos critérios da beleza clássica. Quan do sou internada, com quinze anos, o psiq uiatra pergu nta -m e por que razão me quero desfear daquela maneira. Vejo que está chateado por m e perguntar aquilo, dado que eu, com os m eus cabelos ve r melhos espetados, os lábios pintados de preto, os collants de

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renda brancos e as enormes botas militares, me sinto superchique. Ele insiste: terei medo de ser feia? E diz que tenho os olhos bonitos. Não percebo nada do que ele está para ali a dizer. Será que se acha muito atraente com aquela farpela asqu erosa e quatro pelitos no toutiço? S er um a  pu nk   é forço samen te reinventar a fem inilidade, um a vez que isso im plica estar na rua, mendigar, vomitar cerveja, snifar cola até cair para o lado, ser levada pela polícia, dançar freneticamente, aguentar o álcool, aprender guitarra, ter a cabeça rap ada, v o l tar para casa toda partida noite após noite, saltar à maluca durante os concertos, cantar a plenos pulmões, num carro com as jane las abertas, hinos hipermasculinos, interes sar-se afundo pe labola, ir a m anifestações com um a cogula enfiada e pronta para a b rig a ... E toda a gente nos deixa em paz. H averá mesmo muitos gajos que acham isso formidável e são capa zes de serem bons amigos, sem tentarem pôr-nos na linha.  A e ssên cia do  pu nk  é não fazer aquilo que nos dizem p ara fazer. Com a polícia, é como com o psiquiatra, detenção para inter rogatório, um inspector benevolente, sou m ais bon ita do que penso, p or que razão levo a vida que levo. E sta parte g aga, irão fazê-la m uitas vezes. M as não m e queixo de nada a ninguém. Ser bonita: para que me serviria isso, sabendo eu que não sou dotada para tal e que as minhas estratégias para o compen sar funcionam além das minhas expectativas? Eu era simpá tica para os rapazes, e em geral eles correspondiam na m esm a moeda. Em Lyon, uso o cabelo muito curto, tratam-me por monsieur  na pada ria, ou na tabacaria, e isso d eixa-m e in dife

rente. Os comentários são raros —«pára de fumar o cigarro como se fosse s um gajo» —, e, na m aior parte d as vezes, dei xam -m e em paz no meu mundo de cultura underground, privi legiada, à ma rgem . Deve ser evidente que a situação m e serve

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perfeitam ente. É o punkrock,  e e;r sinto -m e em casa. M as isso não iria d urar para sem pre. Em 199 3, publico Baise-moi.  A primeira crítica aparece n a revista Polar. U m a crítica de gajo. Três páginas. De red esignação. N ão é o facto de o livro não ser bom , segundo os critérios do hom em , que o incom od a. Com efeito, ele nem sequer fala do livro. O que o perturba é eu ser uma mulher a falar de mulheres. E é com todo o à-vo nt ad e —dado que, sendo home m , se acha no direito de me apontar aquilo que me é permitido segundo as conve niên cias que ele próprio definiu - que me vem dizer, aind a por cim a publicam ente, que não o devo fazer. O livro não inter essa para na da . O impo rtante é o m eu sexo. Q uem sou, de onde vim, aquilo que me convém, quem me vai ler, a cultura  punk rock, tudo coisas que não interessam para nada. O vovô intervém, de tesoura em riste, disposto a cortar a minha pila mental, a pôr na ordem as raparigas como eu. E toca de citar Ren oir: « O s fil mes deviam ser feitos por mulheres bonitas que mostram coi sas bonitas.» Isto pelo menos dá-me uma boa ideia para um título. De repente, tudo isto me parece de tal modo grotesco que de sato a rir. Ma s depois o meu humor m uda, quando tomo consciência de que sou alvo de ataques de toda a espécie, sem pre a bate rem na m esm a tecla: é um a mulher, um a mulher, uma mulher. Tenho u m a rata atravessada na cara. A ind a não con he cia bem o m undo dos adultos, e ainda m enos o dos adultos no r mais, pelo que, ao princípio, fiquei surpreendida por ver como são tan tos os que sabem distinguir o que deve ou não deve fazer um a rapariga na cidade. Quando nos tornamos uma mulher pública, apanha mos de todos os lados de uma maneira muito especial. Mas nada de nos queixarmos, que isso é mal visto. Temos de ter

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humor, distancia, os colhões no sitio, para aparar os golpes. Todas aquelas discussões para saber se eu tinha o direito de dizer o que dizia. Uma mulher. O meu sexo. O meu físico. Em todos os artigos, de urna forma em geral simpática, diga-se.  A verdade é que não se fala de u m auto r h om em da m esm a m aneira do que de um a mulher. N inguém sentiu necessidade de escrever que Houellebecq era bonito. Se ele fosse uma mulher, e se os mesmos homens tivessem apreciado os seus livros, teriam referido que ele era bonito. O u feio. M as te ría  m os sabido a sua op inião ace rca disso. E, em nove de cada dez artigos, ter-se-ia ajustado contas com ele e explicado, por m enorizadamen te, por que motivo este hom em era tão infe  liz no plano sexua l. T e r-s e -lh e- ia dito que era por culpa dele, que não sa bia fazer as coisas, que não se po dia queixar de coisíssim a nenhum a. E entretanto aind a teriam gozado com ele:  já v iste a fronh a que ten s? E teria sid o violen tam en te ata cado se, enquanto mulher, houvesse dito do sexo e do amor com os homens o que disse do sexo e do amor com as mulheres. Para talento equivalente, o tratamento não seria igual. Para um hom em, não g ostar das mulheres é um a atitude. Para um a mulher, não gostar dos hom ens é um a patologia. Um a mulher pouco atraente vir que ixar-se de os hom ens serem incapazes de a fazerem ter um orgasm o? V inh a logo à ba ila o seu físico, a sua vida fam iliar com os porm enores m ais sórdidos, e mais os seus complexos e os seus problemas. Não é por acaso que todas as mulheres, ou quase, passada uma certa idade, aspi ram sobretudo a não fazer ondas. Que não nos venham com a con versa de que é um a qu estão de carácter ou de natureza, que não go stam os de provocar e que onde nos sentimos bem é em c asa com as crianças. V eja-se as reacções quando dize m os algum a coisa. N em o louco m ais furioso do hip-hop  é tão

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m altratado como um a mulher. No entanto, sabem os o que os Branc os pen sam dos Negros. Não há na da pio r do que ser urna m ulher julgada por hom ens. Todos os golpes são p ermitidos, a começar pelos mais baixos. Nem sequer somos estrangei ras: som os con stantem ente legendadas porque não sabem os o que tem os pa ra dizer. Ou pelo m enos não tão bem como os m achos dom inantes, habituados há séculos a escrever livros sobre a qu estão da no ssa fem inilidade e do que ela im plica. E nessa época que descubro, consternada, que qualquer im bec il dotado de um a pilinha se sente no direito de falar em nom e de todos os hom ens, da virilidade, do povo dos g uer reiros, dos senhores, dos dominantes, e, por consequência, o direito de me dar lições de feminilidade. Não interessa se o tipo mede um metro e cinquenta, é mais largo do que alto, nun ca fez prova de qualquer m asculinidade, n unca por nunca, a respeito de nada. E le é um h om em , e eu sou do outro sexo. Só eu me espanto por me porem sistematicamente no meu lugar de fêm ea. Só m e com param com outras m ulheres. M arie D arrieussecq , A m élie Nothomb, Lorette Nob écourt, é indife rente, desde que tenhamos mais ou menos a mesma idade. E sobretudo que sejam os do m esm o sexo. Enquan to mulher, tenho direito a uma dose dupla de condescendência diver tida. Vexames suplementares, chamamentos à ordem. Com q u e m m e d o u e c o m q u e m n ã o m e d ou . A s m i n h a s s a í d a s . A s m inhas de spesa s. Onde moro. Vigiada. De todas as man eiras. Um a mulher. Depois vem o filme. Proibição. A verdadeira censura, e v i d e n t e m e n t e , n ã o p a s s a p e l a le t r a d a l ei . E s o b r e t u d o u m conselho que nos dão. E as pessoas zelam por que ele che gue a todo s. E preciso p roibir que três actrizes po rno gráficas e u m a e x - p u t a s e m e t a m a f a z e r u m f i lm e s o b r e a v i o la ç ã o .

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Mesmo de baixo orçamento, mesmo um filme de género, mesmo na forma de paródia. É importante. Dir-se-ia que constitui uma ameaça à segurança do Estado. Nada de fil m es sobre um a violação colectiva em que as vítim as não vão choram ingar no ombro dos hom ens que as vão vingar. N ada disso. A poio quase unânim e d a im prensa: o fam oso direito de dizer não. E eu e as ou tras do film e, sem pre repre sentad as como querendo apenas ganhar dinheiro. Evidentemente. Não é preciso ver o filme para saber o que se deve pensar dele. Quando as mulheres abordam o sexo é para roubar dinheiro aos hom ens ho nesto s. G ald érias. De outro modo, é claro, teríam os feito um filme com cãezinhos aos pulos num prado ou com mulheres que se dedicam a seduzir homens. Nem sequer teríamos feito filme nenhum, aliás, teríamos ficado quietas. Galdérias, de certeza. O corpo de Karen na prime ira página. E normal. G aldérias. E la quis exibir a ba r riga para vender papel, o que m ostra que qualquer um a tem direito a fazê -lo. G aldérias. E um a m inistra da Cultura, um a m ulher, da esquerda so fisticada, d eclara que um artista se deve sentir responsável pelo que mostra. Não cabe aos homens sentirem -se respo nsáveis quando se juntam três para violar um a rapariga. Não cabe aos hom ens sentirem -se respo ns á  veis quando vão às p u tas sem ap rovar le is que lh es p e rm i tam trabalhar em seguran ça. Não cabe à sociedade se ntir-se respon sável quando, filme após film e, se vêem m ulheres no papel de vítimas das violências mais horríveis. Somos nós que nos devemos sentir responsáveis. Por aquilo que nos acontece, por recusarmos deixarmo-nos aniquilar, por não querermos colaborar. Por abrir a boca. Conhecemos bem essa lengalenga de nos devermos sentir responsáveis pelo que acontece. Na Elle, uma imbecil qualquer, numa crítica a

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u m o u t ro l iv r o s o b re a v i o l a ç ã o , s e m a m í n i m a r e la ç ã o c o m o meu, su blinha a dignidade com que o tem a é tratado, se nt in d o - s e o b r i g a d a a c o n t r a p ô - l a a o s « v a g i d o s » q ue p ro d u z o . Parece que, enquanto vítim a, faço barulho de m ais. A coisa merece que seja assinalada numa revista feminina, consti tuindo um conselho às leitoras: a violação, não há dúvida, é um assunto triste, mas nada de exagerar com os vagidos, m inhas sen ho ras. Isso não é digno. Ora, va i para o caraças! N a Paris M atch,  o m étodo é o m esm o, quando se diz à enteada de Yves M on tan d que é prefer ível que ela se cale e outra im be cil sublinha a classe de uma Marilyn Monroe, que se soube comportar como uma boa vítima. Leia-se: meiga, sensual, de boca fechada. Sabendo ficar de bico calado enquanto a faziam exibir de gatas em bacanais sinistros. Conselhos de mulheres, entre elas. O bocado mais delicioso. Escondam as vossas chagas, minhas senhoras, não vão incomodar o torcionário. Se r um a vítim a digna. Ou seja, que sabe ficar calada. A palavra sempre confiscada. Perigosa, já percebe m os. A perturba r o repou so de quem? Que vantagem tiramos nós da nossa situação que jus tifique que colaboremos tão activamente? Por que razão as mães encorajam os rapazes a darem nas vistas, enquanto ensinam as raparigas a calarem-se? Por que razão conti n u a m o s a v a l o r i z a r u m f i lh o q u e se fa z n o t a r e e n v e r g o n h a  m o s u m a f il h a q u e s e d e s t a c a ? P o rq u ê e n s i n a r à s m e n i n a s a d o c i lid a d e , a c o q u e t e r í a e a s s o n s i c e s , q u a n d o d i z e m o s a o s rapa zes qu e têm o direito de exigir, que o m und o é feito p ara eles, que têm o direito de decidir e escolher? O que haverá de tão benéfico para as mulheres no modo como as coisas s e p a s s a m q u e j u s t if iq u e q u e s e ja m o s t ã o s u a v e s n o s g o l p e s que desferim os?

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É que as que ocupam os m elhores lug ares são as que se alia ram aos mais poderosos. As mais capazes de se calar quando são enganadas, de ficar quando são desfeiteadas, de lisonjear o ego dos hom ens. A s m ais dispostas a pactuar com o dom ínio masculino são evidentemente as que se encontram nos bons cargos, pois, mais uma vez, são eles que admitem ou excluem as mulheres das funções de poder. As mais coquetes, as mais encantadoras, as mais afectuosas com o homem. As mulhe res cujas vozes se fazem ouvir são as que sabem aco m od ar-se a eles. De preferência, as que olham para o fem inismo como um a causa secundária, uma coisa de luxo. As que não vão ocupar a cabeça com esses assuntos. E sobretudo as mulheres mais apresentáveis, dado que a no ssa qualidade prim ordial pe rm a nece a de serm os agradáveis. As m ulheres de poder são as alia das dos hom ens, aqu elas que sabem m elhor dobrar a espinha e sofrer o dom ínio com um sorriso. Fingir que isso não as magoa.  A s outras, as iradas, as fe ia s, as teim osas, são asfixia das, afas tadas, anu ladas. Personae non gratae  na n ata da sociedade. Gosto muito da Josée D ayan. R onrono de prazer cada vez que a vejo n a televisão. Porque no resto do tem po, m esm o as romancistas, as jornalistas, as desportistas, as cantoras, as pre sidentes de empresas, as produtoras, todas as mulheres que  vem os se n te m -se n a obrig ação de exib ir um pequeno decote , um par de brincos, os cabelos bem pen teados, provas de fem i nilidade , penh ores de docilidade.  A síndrom e do refém que sè id en tifica com o seu carce reiro é bem conhecido. E assim que acabam os por nos vigiar um as às ou tras, por nos julgar através d os olhos de quem nos fecha a sete chaves. Por volta dos meus trinta anos, quando deixei de beber, consultei psicanalistas, curandeiros e magos. Não tinham

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grande coisa em comum, excepto todos estes homens terem insistido num ponto: eu precisava de me reconciliar com a minha feminilidade. Espontaneamente, respondi sempre o m esm o: «Pois, não tenho filhos, m a s...» E fui interrom pida todas as vezes, não me estavam a falar de maternidade, mas, sim , de feminilidade. M as o que querem dizer com isso? N ão obtive um a resposta clara. A m inha fem inilida de... bem , não tenho espírito de contradição, sobretudo quando m e afirm am o m e s m o v á r i a s v e ze s c o m m u i ta c o n v ic ç ã o e u m a c o n d e s c en  dên cia evidente. De mod o que tentei perceber. Sinceram ente. Do que é que eu tinha falta. Tinha a impressão de que dizia tudo, que não procurava ser isto ou aquilo, que era como era sem me estar a inibir. O que era isso da feminilidade... As circunstâncias em que consultei estes terapeutas eram, em todos os casos, privilegiadas, sentia-me calma e afável. Não sou uma fera a tempo inteiro. Sou mais do género tímido e retraído, e desde que deixei de beber não se pode dizer que, de um a forma geral, faça m uito estardalha ço. E claro que, às  v ez es, não aguento m a is e d esv a iro . D e u m m od o m uit o fe m i nino, é verdade, e, por aca so, em g eral m uito eficaz. M as eles não me falavam de agitação nem de agressividade, mas de «feminilidade». Sem especificar. Dei voltas à cabeça. Tratar-se-ia porventura de ser menos intimidante, mais concilia dora, mais acessível? Bem, isso, mesmo que quisesse, seria difícil. C om o tempo, ser a m ulhe r que fez Baise-moi a c a b a p o r ser um a coisa cómica. Por vezes é simp les, tenho a imp ressão de ser o Bruce Lee. Quando ele contava nas entrevistas que lhe estava sempre a acontecer virem uns tipos provocá -lo para um duelo. Q ueriam m ostrar a todo o bairro que eram tão for tes que tinham lutado com o Bruce Lee. No m eu caso, são uns tipos de pila m inúscula que se sen tem no dever de me de safiar

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para m ostrar aos am igos como tiveram coragem de me p ôr no lugar. Nã o vou en trar em porm eno res e descrever o que acon  tece quando os tipos em questão percebem que as gajas que gostariam de comer preferem ir para a cama comigo. Isso torna -os superagressivos. Que culpa tenho eu que eles tenham tanto sex appeal   como um calham beque ferrugento? Se calhar pen sam que, se eu não existisse, as teriam m aiores. N em vale a pen a discutir esse assun to. D e qualquer modo, d esse ponto de vista, ser eu ou outra qualquer nun ca é suficiente. F aç a- se o que se fizer, para um cretino local é sempre dem ais, e ele tem de intervir para nos pôr n a ordem. Quanto mais um tipo tem falta de qualidades viris, mais ele é vigilante a respeito do que fazem as mulheres. E, inversamente, quanto mais um homem se sen te s egu ro, melhor suporta a diversidade de atitudes nas mulher es e a sua masculinidade. E por isso que nunca somos tão s evera e estritamente chamadas à ordem como no meio das cl as  ses altas: onde a m asculinidade não é de m odo nen hum evi dente nos homens, pede-se às mulheres que se compor tem de urna forma h ipersubm issa. Quando, na televisão, consternados, passam repetida mente sequências de agressões gravadas em telemóveis, em que um miúdo clá um a sov a nu m a rapariga que nem lhe chega ao ombro e tem m enos uns bon s quinze quilos, fazen do -se fil mar por um amigo para a seguir se exibir diante dos outros, mostram-nas como que para nos dizer: «Estes muçulma nos, filhos de pais polígam os, não têm respeito n enh um pelas mulheres, é demais.» O problema é que é exactamente isso que se faz num terço da literatura escrita por ho m ens bra n cos. Con tar como se aproveitam dos seus estatutos de do m i nan tes para abusar de miúdas e scolhidas entre as m ais fracas,

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contar com o as enganam, as fodem e as hu m ilham p ara serem admirados pelos amigos. Um triunfo a babeo custo. Seria muito mais divertido se o miúdo do telemóvel fosse partir a cara a um tipo muito maior do que ele; e muito mais diver tido se e les se fossem m eter com as m aiores feras do rebanho ou as mulheres mais bravias. Mas não é isso que os motiva. Triunfo a baixo custo, a força dos fraco s. B asta ver o que fazem às mulheres num terço da produção cinematográfica branca contemporânea. Triunfos de cobardes. É que é preciso dar segu rança aos homens. Tudo pass a por aí.  A o fim de vários anos de investigação com petente, le al e sincera, ac ab ei por chegar à conclusão de que a fem inilidade é pura putice. A arte do servilismo. Podemos chamar-lhe seduçã o e fazer disso um a história de glam our,  m as raramente é um desporto de alto nível. Em geral, trata-se apenas de gan ha r o hábito de se com portar como u m ser inferior. Entrar num a sa la, ver se há hom ens, querer agradar-lhes. N ão falar alto. Não se exprimir em tom categórico. Não se sentar com as pernas abertas para ficar mais confortável. Não se expri mir num tom autoritário. Não falar de dinheiro. Não querer tomar o poder. Não querer ocupar um posto de chefia. Não bu sca r prestígio. N ão rir alto. Não ser dem asiado e spirituosa.  A grad ar ao s h om ens é um a arte com plicada, que exige que se 1 apa gu e tudo o que seja do dom ínio do poder. Entretanto, os hom ens, pelo m enos os da m inha idade ou m ais velhos, não têm corpo. Nã o têm idade, não são balofos. Q ualquer palerm a todo corado pelo álcool, calvo, pançudo e com um look   deplo rável pode permitir-se emitir comentários sobre o físico das mulheres, comentários desagradáveis se não as considerar suficientemente airosas, ou obscenos se estiver desconsolado por não poder saltar-lhes para a espinha. S ão as vantage ns do

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seu sexo. Os hom ens q uerem -nos im pingir a engatatice mais patética como algo de simpático e pulsional. Mas nem todos podem ser Bulcowskis e, na maioria dos casos, não passam de uns vulga res estaferm os. Co m o se eu, pela simples razão de ter vagina, me pudesse considerar uma Greta Garbo. Ser complexada, eis o que é bem feminino. Apagada. Ouvir com atenção. N ão brilhar dem asiado intelectualm ente. Culta ape nas o bastante para compreender o que um pedante qual quer tem para dizer. Tagarelar é feminino. Tudo o que não deixa rasto. O que é doméstico, o que se refaz todos os dias, o que não tem nome. Nada de grandes discursos, nada de grandes livros, nada de grandes coisas. As pequenas coisas. Engraçadinhas. Femininas. Mas beber, isso é viril. Ter ami gos é viril. Arm ar-s e em bobo é viril. G anhar m uita m assa é  viril. T er u m carrão é vir il. C o m p o rtar-se de qualq uer m aneir a é viril. Rir sem m otivo enquan to se fum am charros é viril. Ter espírito de competição é viril. Ser agressivo é viril. Querer foder a torto e a direito é viril. Responder com brutalidade a qualquer coisa que nos ameace é viril. Não perder tempo a arra nja r-se de ma nh ã é viril. U sar roup a prática é viril. Tudo o que dá gozo fazer é viril, tudo o que nos permite sobreviver é viril, tudo o que nos faz ganhar terreno é viril. Em quarenta anos, isto não mudou muito. O único avanço significativo é que agora podemos sustentá-los. Porque o trabalho para ganhar a vida é dem asiado lim itativo pa ra os hom ens, que são artistas, pensad ores, persona gen s com plexas e terrivelm ente frágeis. O salário m ínim o é bo m p ara as m ulheres. E claro que, além d isso, é preciso com preen der que o facto de lhes darmos de comer pode torná -los violentos ou desagradáveis. Olhem que, quando se é da raça dos grandes caçadores, não é nada fácil não ser quem leva a comida para casa. Para os homens,

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a vida é bela, enquanto p assam os a no ssa a com preendê-los. E que o dese spero g rand ioso tam bém tem um sexo; nós, o que praticam os são os gem idos piegas. Não digo que, em si mesmo, ser mulher constitua uma opressão horrível. Há algumas que se saem muito bem. É a obrigação que é degradante. A s grandes sedu toras, em m até ria de divind ad es loc ais, são evidentem ente as rainhas do hip-hop.  E as patinadoras artísticas também têm classe. Porém, não é por isso que no s pedem que sejam os todas patinadoras. Ser cavaleira tam bém tem o seu encanto. M as não é por que rermos existir que nos dão um a sela e um cavalo. Reportagem n um canal de informação de cabo, um docum en tário acerca das raparigas dos subúrbios. Mais exactamente, sobre a sua inquietante perda de feminilidade. Vêem-se três miúdas com um ar simpático a praguejar como car roceiros e uma delas a tentar apanhar alguém na caixa da escada de um prédio para lhe dar uma tareia. Um bairro degradado, juventude ociosa, miúdos que sabe m que pro va   velm ente não terão m ais o po rtun id ad es do que os pais, ou seja, népias. Im agen s, sempre um pouco perturbadoras para uma pessoa da minha idade, de uma França que se tornou um país do Quarto M undo. Um a pobreza extrema, pared es-m eias com o luxo m ais indecente. O que aflige os com en ta dores, e dizem -no sem estar a brincar, é as raparigas nu nca usarem saias. E falarem m al. Isso e spa nta-o s, são sinceros. Imaginam, sem inquietações, que as m eninas nascem num a espécie de rosas v irtuais, para se tornarem m ais tarde cr ia turas doces e pacíficas. Mesmo imersas num meio hostil onde vale m ais saber dar uma cabeçada para minim am ente poder ter existência. A s m ulheres deviam ocu par-se de coi sas bonitas, a rega r as flores e a can tarolar baixinh o. N o que

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an da ram a filmar, é isso o que verd ade iram en te os inq uieta.  A q u e la s m ulh eres não são com o as dos b a irro s fin o s, n em como as miúdas das revistas ou as estudantes das un iver sidades de prestígio. O jorna lista que escreveu este co m en  tário deve considerar natural ser uma mulher como as que o rodeiam. Que essa feminilidade não tem raça, não tem classe social, não é construída politicamente. Ele pensa que, se deixarm os as m ulheres ser o que devem ser, n atu ral mente, da maneira poética mais admirável, elas se t ornam as m ulheres que trabalham e jantam à sua volta: burg uesa s, bra nc as, tod as como deve ser. Não fo i apenas a m inha natureza profunda, naqu ilo que ela tem de diferente, de brutal, de agressivo e de poderoso, que com ecei a reprimir. Foi tam bém a minh a classe socia l que apren di a renegar. Não se tratou de um a decisão con sciente, mas m ais de um cálculo de sobrevivência social. Lim itar os mov imen tos, fisi camente, preferir os gestos suave s. Tornar a dicção m ais p au  sada . Privilegiar o que não a ssusta . Pinta r os cabelos de louro. Co rrigir os dentes. Ir viver com um hom em m ais velho, m ais rico, mais conhecido. Querer ter um filho. Fazer como eles fazem. Depois do escândalo do filme. Fundir-me um pouco na pa isag em deles. O tem po de ver. Para r de beber. Tanto para preservar o meu look   como para evitar a desinibição produ zida pelo álcool. Os comportamentos viris concomitantes: ir para a cama com um qualquer, agarrar o interlocutor pelo ombro, fazer espalhafato, rir dem asiado alto. Reintegrei-me na m inha categoria, tal como é entendida no meu novo meio. Usar o cor-de-rosa e pulseiras brilhantes. Fiz verdadeira mente os possíveis por passar mais despercebida... Não foi um a coisa neutra. Fo i um a fraqueza consentida.

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Felizmente que há a Courtney Love. Em particular. E o  punk rock,  em geral. Uma tendencia para gostar do conflito.

Readq uiro a saúde m ental no meu arremedo de loira. O m on s tro que há em mim não desarma. Põem-me os patins, não tenho filho s. A ns eio por isso no dia em que faço trinta e cinco anos. S em saber bem se ainda desejo ter um a prova para bran  dir pe rante o mu ndo de que sou uma m ulher como ou tra qua l quer, depois de me terem repetido tantas vezes que odeio todos os homens. Quis provar o contrário. Que raio de ideia. Tentar provar que sou uma mulher simpática. Que inclusiva mente tem filhos. Com o o prescrito na im prensa. M as tem -se a vida p ara que se está destinado, pois nad a daquilo m e dizia grande coisa. N ão sou m eiga, não sou sim pática, não sou um a burguesa. Tenho subidas horm onais que me provocam e xplo sões de agressividade. Se não viesse do  punk rock, t er i a v e r g o  nha do que sou. Incapaz de agradar a esse ponto. M as eu venho do  punk rock   e org ulh o-m e de não o conseguir.

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O primeiro dever de uma mulher escritora é matar a fad a do lar.  V I R G I N I A W O O L F

A D E U S , R A P A R IG A S

Na Internet, dou por acaso com uma carta assinada por  A n to n in A rtaud. U m a carta de ruptura, p elo m en o s d e a fa sta  men to, dirigida a um a m ulher que ele declara não p od er amar. Percebo, nos seus porm enores, que o assunto deve s er c om  plicado. M as, no fim, a coisa dá no seguinte: « P rec iso de um a m ulher que seja só m inha e que eu po ssa en contrar em casa a toda a hora. Estou desesperado de solidão. Já não consigo  vo ltar p ara casa à noite, para ficar sozin ho num q u arto, sem nenhuma das comodidades da vida ao meu alcance. Preciso de um interior, prec iso disso urgentem ente, e de um a m ulher que se ocupe de mim nas coisas mais ínfimas. Uma artista como tu tem a sua vida, e não pode fazê -lo. Tudo o que digo é de um egoísmo feroz, m as é assim. N em sequer exijo que essa m ulher seja bonita, e tam bém não quero que tenha um a inte ligên cia excessiva, nem sobretudo que pen se m uito. Basta -m e que me seja ded icada.» D esde pequena, d esde Goldorak e Can dy1, que passa va na televisão à saída da escola, que tenho a paixão de inverter as coisas, só p ara ver o que acontece. «Preciso de um h om em só m eu e que eu po ssa encontrar em cas a a toda a ho ra.» A coisa soa logo diferente. O homem

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Desenh os animados japon eses da década de 1970. ( N.X !)

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não serve para ficar em ca sa nem para ser possuído. M esm o que eu tivesse necessidade ou desejo de um hom em que fosse unicamente meu, tudo me aconselha a que modere os meus ardore s e, pe lo contrário, que seja inteiram ente dele. A cánção  já n ão é a m e sm a . N ão h á n in gu ém , n as im ed iaçõ es, a quem se tenh a prescrito p oliticam ente a m issão de sacrificar a vida para tornar a minha melhor. Essa relação de utilidade não é recíproca. De igual modo, eu nunca poderia descrever, com toda a boa-fé egoísta, que «preciso de um interior, urgente mente, e de um hom em que se ocupe de mim nas co isas mais  ín fim a s» . S e alg u m a vez en co n trar tal h om em , é sin al de que terei os meios suficientes para lhe pagar um salário. «Nem sequer exijo que esse homem seja muito bonito, e também não quero que tenha uma inteligência excessiva, nem sobre tudo que pen se muito. Bas ta-m e que me seja dedicado.» O meu poder não assentará nunca no enfeudamento da outra m etade da hum anidade. Um ser hum ano em cada dois não veio ao m undo para me obedecer, ocup ar-se do meu inte rior, criar os meus filhos, agradar-me, distrair-me, dar-me seguran ça quanto às capacidad es da m inha inteligência, pro  porcionar-me o repouso depois da guerra, dedicar-se a alim e n t a r - m e a d e q u a d a m e n t e ... e a in d a b e m . Na literatura feminina, os exemplos de insolência ou de hostilidade para com os hom ens são raríssim os. C ensurados. Eu pertenç o a esse sexo que nem seque r tem o direito de o levar a mal. C olette, Duras, Beauvoir, Yourcenar, Sagan , toda um a história de m ulheres que têm a preocupação de serem reco mendáveis, de darem segurança aos homens, de se descul parem por escreverem, repetindo que gostam imenso deles, os respeitam , os adoram e sobretudo não querem - escrevam elas o que escreverem - criar dem asiados problemas. Porque,

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caso contrario, todas sabemos que a matilha se encarregará de nos meter na ordem. Mil novecentos e quarenta e oito. Antonin Artaud morre. Genet, Bataille, Bretón; os homens fazem explodir os limi tes do que pode ser dito. Violette Ledu c com eça a escrever o que viria a ser Teresa e Isabel \ Texto magistral. Quando o lê, Sim on e de Beau voir escreve im ediatam ente: «Quanto a publicar isso, é impossível. É uma historia de sexualidade lésbica tão crua com o as de Gen et.»  V iole tte suaviz a o texto, m as Q ueneau recu sa-o im ediatamente: «Impossível publicar isto ás claras.» Só em 1966 a obra é editada pela G allim ard. Eu sou desse sexo, aquele que tem de se calar, aquele que calam. E que deve aceitar isso com bons modos, e mais urna  vez, m o strar-se acim a de toda a su speita. Sen ão, ficam os condenadas ao apagamento. Os homens sabem melhor do que nós o que podemos dizer a nosso respeito. E as mulhe res, se q uiserem sobreviver, têm de assim ilar esta ordem. Não me venham dizer que as coisas evoluíram tanto que já esta m os noutro patamar. A m im, não. O que tenho de suportar enquanto escritora é o dobro do que um ho m em suporta. Simone de Beauvoir começa as Lettres au Castor   com esta primeira carta que lhe escreve Sartre: «Quer ter a gentileza de entregar de m anh ã a m inha roup a suja (gaveta de baixo do armário) na lavand aria? Deixo a chave na porta. A m o-a com toda a ternura, meu amor. Ontem, foi com u m a carita encan tadora que me disse: “Ah, olhou para mim, olhou para mim”, e quando penso nisso o meu coração enche-se de ternura. 2 Trad. An íba l Fernand es, Lisboa, Relógio D’Águ a Editores, 1985 . ( N.T !)

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 A té breve, m in h a q u erid a.» Se in verterm o s is to tudo, a rou p a suja e a carita encantadora, percebemos melhor de que sexo som os, o da roup a suja dos outros e das caritas enca ntado ras. Enquanto escritora, o mundo político organiza-se para me tra  var e me in capacitar, não enquanto indivíd uo, m as enquanto mulher. Não é nada que eu aceite de bom grado, com filosofia ou pragmatismo. U m a vez que me é imposto, adapto-m e. M as faço- o com raiva. Sem humor. M esm o que baixe a cabeça e ouça tudo o que não quero ouv ir e m e cale, à falta de m elhor altern a tiva. Não tenho a intençã o de m e desculpar pelo que sou obrigada a aceitar nem de pretender considerar isso algo de admirável.  A n g e la D a vis , re fe rin d o -se à escra va n eg ra n o rte -a m e r i cana, diz: «E la apren dera com o trabalho que o seu po tencial de mulher era equivalente ao de um ho m em .»  A expressão sexo fra co n u n ca p a sso u de u m a brin cad eir a. Podemos olhar as negras com condescendência quando as  vem o s a m exer o rabo com u m a eficá cia p ertu rb a d o ra nos  vid eocli p es do 50 C en t, la m e n ta n d o -a s por serem u sa d a s e aviltadas enquanto mulheres: são filhas de escravos, traba lharam como os homens, foram açoitadas como os homens.  A n g e la D avis: « M a s a s m u lh eres não eram a p e n as c h ic o te a  das e mutiladas, eram também violadas.» Engravidadas à força e abandon adas pa ra criarem os filhos sozinhas. E sob re  viv eram . A qu ilo que as m u lh eres so freram não é a p e n as a h is  tória dos hom ens, com o os hom ens, m as ainda a sua opressão específica. De uma violência inaudita. Daí a seguinte pro posta sim ples: vão todos levar no cu com a vo ssa c on desc en  dência para connosco, as v oss as exibições grotescas de força garan tida pelo colectivo e de protecçã o pontua l, ou o vo ss o ar de vítimas para quem a emancipação feminina seria difícil

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de suportar, O que é difícil é ser mulher e ter de aturar todas as vossas idiotices. As vantagens que tirana da nossa opres são estão definitivamente armadilhadas. Quando defendem as vossas prerrogativas de macho, são como os criados dos grandes hotéis que se tomam por proprietários do local... lacaios arrogan tes, m ais nada. Quando o mundo capitalista se desmorona e não conse gue satisfazer as nec essidades dos hom ens, quando n ão há trabalho nem dignidade no trabalho, mas pressões econó micas absurdas e cruéis, vexames administrativos, humi lhações burocráticas, a certeza de que se vai ser enganado quando se quer comprar alguma coisa, continuamos a ser consideradas responsáveis. É a nossa libertação que os torna infelizes. A culpa não é do sistem a po lítico instalado, m a s d a e m a n c i p a ç ão d a s m u lh e r es . Querer ser homem? Sou melhor do que isso. Estou-me a marimbar para o pénis. Não quero saber de barba nem de testosterona, tenho toda a agressividade e coragem de que nec essito. M as é claro que quero tudo, com o um h om em , num mun do de hom ens, quero desa fiar a lei. Fron talmente. N ão de um a ma neira enviesada, não a pedir desculpa. Quero con se gu ir m ais do que o que me era prometido de início. N ão quero que me obriguem a calar-me. Não quero que me expliquem o que pretendo fazer. Nã o quero que m e rasgu em a carne para me fazer aum entar o peito. N ão quero ter um corpo de rapariguinha long ilínea quando estou perto dos quarenta anos. Não quero fugir dos c onflitos para não rev elar a min ha força e me arriscar a perder a feminilidad e. U m a refém é libertada e declara na rádio : «Finalm ente pude dep ilar-m e, perfum ar-m e, recupero a m inha fem inilidade.»

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Pelo m en os fo i este excerto que decidiram transm itir. Ela não quer sair à rua , ver o s a m igos qu ler os jorn ais. Qu er dep ilar -se? E stá no seu legítimo direito. M as não me venh am dizer que isso é norm al. Monique Wittig: «Hoje caímos de novo na armadilha, no impasse m uito conhecido do é-m aravilhoso -ser-m ulher.» Os homens gostam de o afirmar. E as suas colaboradoras, semp re pron tas a defender os interesses do am o, repete m -no . É o que os ho m en s m adu ros nos gostam de dizer, omitindo o fim lógico do seu «é m aravilhoso ser m ulher»: jovem , esbelta, na m edida certa para lhes agradar. Senão , já não tem nada de m aravilhoso. E simplesm ente duas vezes ma is alienante. Os homens gostam de falar das mulheres. Isso permite-lhes evitar falar deles p róprios. Co m o exp licar que, em trinta anos, nenhum homem tivesse produzido o mais pequeno texto inovador acerca da masculinidade? Eles, que são tão loquazes e tão com petentes quando se trata de perorar sobre as mulheres, porque se calam sobre o que lhes diz respeito? Com efeito, sabemos que, quanto mais falam, menos dizem.  A cerca do essen cial, do que têm verd adeir am en te na cabeça. Se calhar querem que nós, por nossa vez, falemos deles. Por exemplo, talvez gostem de ouvir o que são, vistas de fora, as suas violações colectivas. Dir-se-ia que querem ver-se uns aos outros a foder, olhar as pilas dos outros, estar juntos com elas tesas, d ir-s e- ia m esm o que têm vontade de as meter no cu. D ir- se -ia que têm m edo de con fessar a si próp rios aquilo de que realm ente têm vontade, que é foder uns com os outros. Os homens adoram os homens. Eles estão-nos sempre a dizer quanto gostam das mulheres, mas todas sabemos que é tudo uma treta. Amam-se entre eles. Fodem-se uns aos outros através das mulheres, e muitos estão já a pensar nos

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compinchas quando estão dentro de uma rata. Olham-se a actuar no cinema, onde assumem sempre bons papéis, sentem-se poderosos, emitem fanfarronices, deleitam-se a ver como são fortes, belos e corajosos. Escreve m u ns p ara os outros, felicitam-se, apo iam-se. Têm razão. M as tanto os ouvim os qu ei xa rem -se de que as mulheres não fod em o suficiente, não gostam de sexo como deveriam e nunca percebem nada, que não nos podemos deixar de nos perguntar o que é que estão à espera para se enrabarem. Vá lá, força! Se isso vos toma mais felizes, então está tudo certo. Mas uma das coisas que está neles indelevelmente inculcada é o medo de ser paneleiro, a obrigação de gostar de mu lheres. De modo que andam direitinho s. Em bora de má vontade, obedecem. De pa ssagem, furioso s p or terem de se contentar com elas, ainda dão um par de chapadas nu m a ou duas. Houve uma revolução feminista. Pronunciaram-se palavras, apesar das conveniências, mau grado as hostilidades. E o fluxo continu a a correr em abu ndân cia. M as, por agora, no que re s peita à masculinidade, nada. Silêncio apavorado dos frágeis rapazinh os. Já ba sta o que basta. O sexo pretensam ente forte a que tem de se dar seguran ça, que é pre ciso proteger, m im ar, poup ar. Que é preciso defender da verdad e: que as m ulheres são tão patifes como eles, e os ho m ens tão putas e mã es com o elas, todos na m esm a confusão. Há hom ens que são m ais fe i tos p ara a colheita, a decoração de interiores e levar as crian ças ao parque infantil, e mulheres que nasceram para trepanar o mam ute, fazer barulho e m ontar em bosca das. Cad a qual o seu dom ínio. O eterno fem inino é um a enorme chalaça. D ir-se -ia que a vida dos hom ens depende da m anutenção da m en tira... m ulher fatal, coelhinha, enfermeira, lolita, puta, m ãe bo nd osa

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ou castradora. Tudo uma encenação. Uma coreografia com o guarda-roupa adequado. Isso tranquiliza-os a respeito de quê? Não sabemos exactamente o que temem que aconteça se os arquétipos com pletamente inventado s se desfizerem: as puta s são criaturas como as outras, as mã es não são intrin se cam ente boas, corajosas ou amantes, e o m esm o para os pais, depen de das pessoas, das situações, dos m om entos. Libe rtar-se do machismo , essa arm adilha que só tranqui liza os idiotas. Admitir que não se está disposto a respeitar as regras das repartições das qualidades. Sistem a de m asc a radas obrigatórias. De que autonomia têm os homens tanto medo para continuarem a estar em silêncio, a não inventar nada, não produzir nenhum discurso novo, crítico, imagina tivo acerca da sua própria condição? Para quando a em ancipação ma sculina? Ca be-lhes a eles, cabe-vos a vó s, tornarem-se independen tes. « Sim , m as, quando som os gentis, as m ulheres preferem os brutos», lamuriam-se os antigos favoritos. É falso. Algumas mulheres gostam do poder, não o temem nos outros. O poder não é um a brutalidade. O s dois conceitos são bem distintos. L E M M Y C A N T O N A B R E I L L A T P AM

G R I ER

H A N K B U K O W SK I

C A M I L L E P A G L I A D E N IR O T O N Y M O N T A N A J O E Y S T A R R A N G E L A   D A V IS E T TA J A M E S T I N A T U R N E R M U H A M M A D A L I C H R I S T I A N E R O C H E F OR T

HENRI

R O L LI N S

AM ELIE

MAU RESMO

MA DON NA 

C O U R T N E Y LY D I A L U N CH L O U I S E M I C H E L M A R G U E R I T E D U R A S

Questão de atitude, de coragem, de insubmissão. Há uma forma de força que não é masculina nem fem inina, que impressiona, assu sta, tranquiliza. A cap a cidade de dizer não, de impor opiniões, de não se esquivar. , E indiferente se o herói us a saias e tem gran des m am as o u se I ente se como u m garanh ão e fum e charuto. c l i n t

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 j e a n

g e n e t

...

É claro que é penoso ser mulher. Medos, co nstran gim en  tos, imperativos de silêncio, cham am entos a um a ord em que  já deu o que tin ha a dar, todo um festival de lim itaçõ es im b e cis e estéreis. Sempre como estrangeiras, obrigadas aos tra balhos mais duros e a fornecer a matéria-prima sem fazer on da s... M as, ao lado do que significa ser um ho m em , é um a brincadeira... Com efeito, acabamos por não ser nós quem está mais aterrorizado, nem mais desarmado, nem mais tolhido. O sexo da tenacidad e, da coragem e da resistên cia foi sempre o nosso. De qualquer m odo, não tivem os escolha .  A verdadeira coragem . Confronta rm o-nos com o que é novo. Possível. Melhor. Fracasso do trabalho? Fracasso da família? Boas notícias. Que põem em causa automaticamente a virili dade. Outra boa notícia. Já chega dessas im becilidade s. O fem inismo é um a revolução, e não um reajustam ento de estratégias de marketing, nem um a vaga promoção da felação ou da troca de casais, e não se trata de melhorar os salários suplem entares. O feminism o é um a aventura colectiva, para as mulheres, para os homens e para os outros. Uma revolu ção que está em marcha. Um a visão do mu ndo, um a escolha. Não se trata de opor as pequenas vantagens das m ulheres às pequen as conqu istas dos hom ens, mas de dar cabo d e tudo. Dito isto, adeus, rapariga s, e m elhor via ge m ...

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