Livro Scorsolini-comin, F., Souza, L. V., Barroso, S. M. Praticas Em Psicologia

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Página |1

Fabio Scorsolini-Comin Laura Vilela e Souza Sabrina Martins Barroso Organizadores

Práticas em Psicologia: Saúde, Família e Comunidade

Editora da UFTM Uberaba, MG 2014

Copyright © 2014 by Fabio Scorsolini-Comin Laura Vilela e Souza

Página |3 Sabrina Martins Barroso Todos os direitos reservados aos Organizadores Impresso no Brasil Printed in Brazil

Capa Paula Vilela e Souza Foto da capa Rodrigo Otávio Neri de Mattos Diagramação Andreza de Souza Revisão Organizadores Apoio Universidade Federal do Triângulo Mineiro Catalogação na fonte: Biblioteca da Universidade Federal do Triângulo Mineiro Práticas em Psicologia: Saúde, Família e Comunidade / Fabio Scorsolini-Comin, Laura Vilela e Souza, Sabrina Martins Barroso, organizadores. D52 – Uberaba: UFTM, 2014. 296p. ISBN 978-85-62599-34-7 1. Psicologia. 2. Atuação (Psicologia). 3. Prática profissional. 4. PesquisaPsicologia. I. Scorsolini-Comin, Fabio. II. Vilela e Sousa, Laura. III. Barroso, Sabrina Martins. IV. Título. CDU 1.59.9 Editora da UFTM Universidade Federal do Triângulo Mineiro Rua Capitão Domingos, 50 – Abadia 38.025-010 – Uberaba, MG.

Conselho Editorial Profa. Dra. Adriana Wagner Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Profa. Dra. Lilia Iêda Chaves Cavalcante Programa de Pós-graduação em Psicologia (Teoria e Pesquisa do Comportamento) da Universidade Federal do Pará

Prof. Dr. Murilo dos Santos Moscheta Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá

Prof. Dr. Rodrigo Sanches Peres Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia

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Sumário Prefácio Perambulações por um mundo de fronteiras fluidas, habitado por identidades plurais: Diálogos possíveis entre teoria e prática psicológicas Manoel Antônio dos Santos

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Apresentação Práticas em Psicologia: Compromisso com os movimentos de abertura, criação e compartilhamento de saberes e experiências Fabio Scorsolini-Comin

13

A vida das palavras: Discursividade, subjetividade Rafael De Tilio, Laura Vilela e Souza

poder e

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Contribuições da teoria do amadurecimento para o estudo das famílias homoparentais Conceição Aparecida Serralha

33

Pedofilia, pedófilos e pedofilização social: Apagamentos ideológicos e novas perspectivas de compreensão Rafael De Tilio

51

Humanização e cuidado em saúde: Contribuições da Psicologia para esta parceria no contexto do adoecimento grave Karin A. Casarini, Carmen Lúcia Cardoso

77

Os segredos familiares no processo clínico: A escuta a partir do psicodiagnóstico interventivo Deise Coelho de Souza, Martha Franco Diniz Hueb, Fabio Scorsolini-Comin

101

Práticas de saúde: Atendimento clínico cognitivocomportamental de um caso de Síndrome de Tourette Adriana da Silva Sena, Luciana Maria da Silva, Sabrina Martins Barroso

127

Histórias de vida e vivências familiares de jovens travestis Roberta Noronha Azevedo, Giancarlo Spizzirri, Fabio Scorsolini-Comin

153

Estágio em NASF: Interlocuções entre psicoterapia breve, plantão psicológico e grupos operativos Tamara Rodrigues Lima Zanuzzi, Tales Vilela Santeiro, Fabio Scorsolini-Comin

177

O processo de construção de um espaço grupal para equipes de profissionais da Estratégia Saúde da Família Marianna Ramos e Oliveira, Carolina Martins Pereira Alves, Joana Borges Ferreira, Neftali Beatriz Centurion, Roberta Rodrigues de Almeida, Laura Vilela e Souza

205

Grupos com agentes comunitários de saúde de Uberaba (MG): Dando voz aos cuidadores Sabrina Martins Barroso, Helena de Ornelas SivieriPereira, Izabella Lenza Crema, Juliana D’André Montandon, Mariana Tolêdo Fuzaro, Nathalia Beatriz Fontes Silva, Renata Lemos Crisóstomo, Wanderlei Abadio de Oliveira

225

Página |7

A experiência do Grupo Interinstitucional PróAdoção na cidade de Uberaba (MG): Compartilhando saberes e práticas Martha Franco Diniz Hueb, Marta Regina Farinelli, Ana Mafalda Guedes C. C. Vassalo Azôr, Eliane Gonçalves Cordeiro, André Tuma Delbim Ferreira

247

As famílias que encontramos na atenção básica: Desafios e reflexões para a prática em Psicologia Conceição Aparecida Serralha, Cibele Alves Chapadeiro

273

Sobre os autores

293

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PREFÁCIO Perambulações por um mundo de fronteiras fluidas, habitado por identidades plurais: Diálogos possíveis entre teoria e prática psicológicas Manoel Antônio dos Santos1 "Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma de nosso corpo e esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia; e se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos". Fernando Teixeira de Andrade

O livro Práticas em Psicologia: Saúde, Família e Comunidade, organizado por Fabio Scorsolini-Comin, Laura Vilela e Souza e Sabrina Martins Barroso, reúne 12 capítulos que recobrem um amplo arco de temas candentes da Psicologia contemporânea.

Psicólogo, Mestre e Doutor em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Livre Docente em Psicoterapia Psicanalítica pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universiidade de São Paulo. Professor Associado 3 do Departamento de Psicologia da FFCLRP-USP, atuando no curso de graduação em Psicologia e no Programa de Pós-graduação em Psicologia. Bolsista de Produtividade do CNPq, nível 1B. 1

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Os capítulos reunidos repercutem as inquietações de autores-pensadores que se movem no universo em expansão da contemporaneidade. Os temas abordados, com escrita refinada e densidade conceitual, refletem o vivo interesse por questões cruciais que movimentam e tensionam os debates sobre problemas de investigação atuais. São temas visitados por profissionais de distintas abordagens, que testemunham o quanto vivemos em uma era de profundas incertezas, marcada pela instabilidade de um mundo delimitado por fronteiras fluidas, habitado por identidades plurais. O futuro, que antes parecia radioso e seguro, agora muitas vezes é pintado com cores sombrias e previsões pessimistas, o que evidencia a necessidade premente de produção de um conhecimento abalizado. Nesse cenário, ganha corpo a discussão em torno das construções de si e de alteridade em um mundo em constante mutação. O(a) psicólogo(a) que se insere no atual contexto de impermanência entende a vulnerabilidade das pessoas com quem interage porque, ele(a) próprio(a), sabe que é frágil em tantos sentidos, e por isso é um(a) interlocutor(a) privilegiado e atento(a) à tentativa humana de ordenar o caos e controlar o imprevisível no mundo à sua volta. Ao buscarem difundir o conhecimento psicológico para amplas audiências, os autores oferecem generosamente seu empenho para a construção de uma Psicologia comprometida com seu tempo e com os desafios que cercam a subjetividade contemporânea. Sabemos que no mundo atual a informação é um bem público. Deve, portanto, circular, ser socializada e estar disponível para livre acesso em uma sociedade democrática. Uma obra que se disponha a discutir saberes e práticas em Psicologia, nos campos da saúde, família e comunidade, tem de provocar reflexões, e é precisamente esse mote que os textos deste livro cumprem à risca, ao beberem de tantas fontes e vertentes. Nota-se, na organização da obra, o respeito à pluralidade temática e à diversidade de abordagens teórico-metodológicas

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que caracterizam o campo da Psicologia. Os textos colocam em destaque a discursividade na ciência psicológica, seja como estratégia de delinear os fenômenos e objetos variados de que se ocupam os(as) autores(as), seja considerando que as práticas discursivas involucram relações de poder e, portanto, estabelecem hierarquias, zonas de inclusão e exclusão, limites e possibilidades. Os capítulos trazem contribuições generosas para a construção de uma Psicologia que não teme levantar a voz contra a opressão e as situações de exclusão social. Sabemos que sem respeito às diferenças e aos direitos humanos não se constrói uma sociedade democrática e pluralista, na qual a cidadania possa realmente vicejar como valor supremo. Afinal, toda pessoa tem direito a uma vida digna e a ter oportunidade de realizar seus projetos de acordo com seus modos de subjetivação. Percebemos nesta obra o investimento na divulgação do conhecimento científico de alta qualidade, o que dignifica o compromisso com uma ciência imbricada nas subjetividades, afetos e modos de perceber o outro. Esperamos que os leitores possam sair enriquecidos da aventura da leitura e que, ao final dessa empreitada, sintam-se também estimulados a empreenderem suas próprias reflexões e contribuições à ciência psicológica. Por meio desses textos, tão estimulantes quanto provocativos, a Universidade, com sua experiência e autonomia intelectual, reafirma seu papel relevante na sociedade. Ao considerarmos o relevo da produção científica enfeixada nesse livro, podemos ter esperança de que é possível criar uma cultura que tenha na produção de conhecimento seu maior valor. Ao concluirmos a leitura dessa obra, saímos com a sensação de que estamos em plena travessia.

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Apresentação Práticas em Psicologia: Compromisso com os movimentos de abertura, criação e compartilhamento de saberes e experiências Fabio Scorsolini-Comin Só nos olhos das pessoas é que eu procurava o macio interno delas; só nos onde os olhos. Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, 1974, p. 322.

Este livro nasceu a partir de um grupo de docentes envolvidos com a redação de um projeto para a abertura do mestrado acadêmico em Psicologia na Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Na ocasião da composição desse grupo havia um convite para que todos pudessem conversar, apresentar seus projetos, enfim, que cada um pudesse estabelecer parcerias a partir de suas pesquisas, interesses e práticas em andamento. Ao discutirmos as linhas de pesquisa dessa proposta a partir de nossa experiência como grupo, a questão da prática (e das práticas) emergiu como um diferencial de todos os professores que se juntavam para pensar a Pós-graduação nesta instituição. Queríamos sim nos aventurar na pesquisa sobre as práticas em Psicologia. Nossas práticas, orientadas especialmente para os campos da saúde e da comunidade e dos estudos na área de

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família, não apenas formalizavam a característica de um grupo de professores e pesquisadores, mas já apresentava um desejo de compartilhar, promover e desenvolver formas de escuta, de encontro com o outro e de atenção nos diferentes contextos de atuação profissional. As práticas em Psicologia, como uma marca do grupo, tornaram-se um mote para a construção deste livro, que reúne não apenas os docentes diretamente envolvidos nesse processo, como também outros profissionais e pesquisadores interessados nesse debate, parceiros de pesquisas e intervenções ao longo desses anos. A ideia de reunir a produção do grupo a partir dos contornos do projeto permitiu que muitos diálogos fossem iniciados e dessem origem a propostas de trabalho e à organização e sistematização de experiências profissionais sob a forma de capítulos. Nesta obra, organizada com o intuito de veicular práticas em saúde, família e comunidade desenvolvidas na UFTM e em instituições parceiras, possibilitamos o contato dos leitores e leitoras com diferentes temáticas: gênero, homoparentalidade, pedofilia, humanização e cuidado no contexto do adoecimento grave, psicodiagnóstico interventivo, psicoterapia breve, plantão psicológico, formação de agentes comunitários, grupos no contexto da saúde e na preparação de pais para a adoção, entre outras. Tais temas mostram práticas que se sustentam, principalmente, na possibilidade de diálogo com as diversidades de conteúdos, formações, cenários, desafios e demandas encontradas no contato extra-muros. Essa diversidade revela uma Psicologia em movimento, em acontecimento, de modo que os capítulos não se pretendem contribuições cristalizadas e fechadas, mas deflagradoras de necessidades que ainda devem ser preenchidas por meio de reflexões, novas intervenções e uma atenção constante às mudanças sociais, culturais e históricas. Os relatos contidos nessa obra não são modelos prontos, mas propostas que tomaram forma a partir de cenários e necessidades concretas.

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São, para além de comunicações, convites à reflexão, à crítica, à reformulação, à atuação em parceria, compartilhada, vivida. Agradecemos a todos os envolvidos neste livro, desde o seleto conselho editorial, passando por cada autor(a) que se manteve disposto(a) a dialogar tendo como norteador do processo o formato de um livro voltado à comunidadade acadêmica. Sabemos que não é uma tarefa fácil compartilhar experiências tendo em mente a proposta de um livro com uma estrutura pré-definida, mas sabíamos, desde o início, que a concretização dessa proposta poderia acenar para importantes horizontes em nosso campo de atuação. Assim, agradecemos aos profissionais ligados a diferentes instituições que participaram direta ou indiretamente deste projeto, entre elas: Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Universidade de São Paulo, Universidade Federal de Goiás, Universidade de Uberaba, Faculdade de Tecnologia e Ciências de Jequié (BA), Unidades Básicas de Saúde das cidades de Uberaba (MG) e Jataí (GO), Promotoria de Defesa da Infância e Juventude da Comarca de Uberaba, Centro de Referência Especializado da Assistência Social do município de Orlândia (SP), Núcleo de Apoio à Saúde da Família de Jataí, Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto e Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Agradecemos, ainda, aos graduandos e profissionais recém-formados que compartilharam conosco a escrita de alguns capítulos e que se dispuseram a refletir sobre suas práticas, aprendizados e formação profissional. Nossa gratidão também a Rodrigo Neri de Mattos por nos ceder a foto que ilustra a capa do livro e a Paula Vilela e Souza pela arte da capa. Esperamos que esta obra possa incentivar docentes, pesquisadores e alunos em suas pesquisas e intervenções no campo da Psicologia e em áreas multidisciplinares, tendo sempre o compromisso da escuta atenta e da abertura para o novo, para a criação e re-criação de práticas, saberes e formas de com-

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preender o humano em suas nuanças e potencialidades, em seu “macio interno” para além dos olhos. Desejamos a todos e todas uma boa e inspirada leitura do material!

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A vida das palavras: Discursividade, poder e subjetividade Rafael De Tilio Laura Vilela e Souza Propomos neste capítulo um debate sobre uma das questões mais instigantes pertinentes ao campo do saber (e do fazer) Psicologia: como, por meio da linguagem e dos discursos, nossa subjetividade é constituída? As clássicas concepções da Psicologia – resumíveis na dualidade estabelecida entre idealismo e materialismo – são suficientes para responder, isoladamente, a essa indagação? Pensamos que não e, por isso, propomos uma discussão sobre esse tema a partir das concepções da perspectiva construcionista social. A escolha por desenvolver uma argumentação partindo dessa matriz discursiva se justifica por duas razões, a saber: (1) por causa de suas potencialidades propositivas e explicativas diante dos fenômenos sociais; (2) devido às recorrentes incompreensões ainda existentes sobre seus fundamentos e principais argumentos. Em outras palavras, debater sobre esse espinhoso tema a partir da perspectiva construcionista social é tanto uma oportunidade de melhor esclarecer os fundamentos e argumentos dessa proposta quanto oxigenar e reatualizar o debate sobre o tema. Assim, é necessário esclarecer que pretendemos discutir mais do que as razões pelas quais falamos, sobre o que falamos, como falamos, se já nascemos com a capacidade da linguagem ou se ela nos é incutida em específicos contextos sociais; precisamente, pretendemos nos debruçar sobre como por meio dos discursos construímos e temos construída nossa subjetividade, cuja uma das expressões é a própria linguagem. Parodiando o

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título desse texto, não apenas não preocupamos com a vida das palavras, mas como as palavras nos causam a vida. Trechos da música Uma palavra, de Chico Buarque (1989), podem servir de disparador e de belo exemplo para essa indagação: palavra viva / palavra com temperatura palavra / que se produz muda / feita de luz mais que de vento, palavra / palavra minha, matéria, minha criatura, palavra / que me conduz mudo / e que me escreve desatento, palavra. Em suma, o que nos impele a essa discussão não é a busca de uma resposta exata ao questionamento proposto, mas sim problematizar os possíveis argumentos que o balizam para que não sejamos (i.e. nossa subjetividade) escritos desatentamente – a própria produção deste texto ilustra isso, pois debruçar-se e construir uma discussão coletiva (dois autores já formam um coletivo) sobre assunto é uma estratégia pertinente para aumentar o diálogo, a crítica e a capacidade de reflexão, evitando individualismo que na realidade inexiste. Vamos ao texto. “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus (...) E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória”. Assim afirma o versículo 1 do capítulo 1 de João (Bíblia, 2013), em uma explícita alusão à força criadora da palavra de Deus diante do nada. Aforismo curioso: diante do nada (de nenhum objeto prévio, de nenhuma ação prévia, de nenhuma palavra prévia, de nenhuma precedência), a palavra cria. Mas como criar um mundo novo, repleto de ações, partindo de um princípio de inexistência? Esoterismo à parte e em outros termos, como conceber que as palavras possuam existência própria e determinar nomeações, valores, regras, constâncias e capacidade instituinte sem antes, aparentemente, haver um antecedente para tanto? Podem as palavras prescindir de palavras (significados) anteriores? – ou seja, podem prescindir de bases materiais que as limitam e possibilitam?

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Tal indagação não é nova: segundo Salih (2012), na década de 1950, J. L. Austin, em Como fazer as coisas com palavras, distinguiu entre dois tipos de enunciados: aqueles que descrevem ou relatam algo (enunciados constatativos; por exemplo, quando se relata “fui às compras”) e aqueles que ao dizer realizam efetivamente o que está sendo dito (atos perlocutórios; por exemplo, quando um médico em um nascimento clama que “é um menino” ele simplesmente não apenas nomeia um corpo ou constata um fato, ele também distingue e possibilita desde ali o que pode/deve fazer aquele corpo). A distinção é sutil, mas não menos importante: enquanto o primeiro tipo de enunciado simplesmente relata, o segundo enunciado (na própria enunciação) realiza uma ação e constitui uma realidade – às vezes, enquanto falamos fazemos (criamos) algo e, assim, as palavras são atos. Apesar das diferenças em ambos os casos, para Austin, as premissas e condicionantes desses dois enunciados são as mesmas: a constatação ou a criação parte de um arcabouço pré-existente e consolidado de palavras e significados limitados – os falantes, e suas ações não criam nem formam autonomamente as palavras e os seus sentidos, mas sim são criados e formados por elas, repetem significados, visto que a linguagem pré-existe aos sujeitos. Fica, portanto, a indagação: se as palavras e os significados (supostamente) pré-existem aos sujeitos e os formam, de que maneira podemos conceber a mudança, a criação de novos sentidos e, consequentemente, de novas ações no mundo, de transformações? Basta dizer para criar? De que maneira o discurso construcionista ou pós-construcionista poderia responder a essa questão? Como alerta Iñiguez (2003), ainda que estejamos em um momento no qual críticas têm sido feitas às ortodoxias dentro do movimento construcionista social, que tenhamos mais de 20 anos de sua entrada no campo da Psicologia e que já tenhamos autores posicionando-se a partir de um discurso pós-construcionista,

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muitas pessoas ainda não compreenderam plenamento a proposta construcionista social, avaliando-a como uma proposta que toma tudo como construção social ou como construção linguística. Gergen (1997) já avaliava os efeitos dessas críticas respondendo que o discurso construcionista social não pretende negar uma existência material, mas propor que a partir do momento em que passamos a tecer qualquer afirmação sobre esse mundo entramos no universo do discurso. O autor fala, então, em termos de ontologias relacionais, sem debater sobre sua natureza e com o foco nos efeitos pragmáticos que as diferentes descrições de mundo e de self sugerem. Para Ibánez (2001) é importante, ao tomarmos a linguagem realista como dispositivo ideológico, que façamos a distinção entre o discurso do ser e o discurso sobre a realidade. Para o autor, não há nenhum problema em se admitir que o ser antecede o conhecimento do ser, uma vez que tomemos o conhecimento como, também, um tipo de ser. Portanto, a questão é diferenciar que um discurso sobre realidade não é um discurso sobre ser, mas sobre um determinado modo de ser. No realismo ontológico, coloca o autor, a realidade (e não o ser) é tomada como uma existência independente e, no realismo epistemológico, entendemos que há a possibilidade de conhecer essa realidade independente. Bom, para muitos autores que dialogam com a crítica construcionista social em ciência, a pergunta é sobre a possibilidade de acesso a uma realidade independente dos conhecimentos que temos sobre ela. O que não é o mesmo que dizer, como afirma Ibánez, que podemos imprimir qualquer característica à realidade. Para o autor, a realidade que construímos é sempre uma realidade compatível com um critério, um conceito, que varia de cultura a cultura, ou seja, o mundo material é uma realidade linguisticamente mediada e não pode ser construído de qualquer forma, pois nossos conceitos são produtos coletivos. O que não quer dizer que a realidade é de natureza conceitual, nega-se a realidade e não o ser, a existência.

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Segundo Ibánez (2001), algumas perguntas são importantes de serem feitas quando consideramos o caráter performático da linguagem. A primeira é: (1) o que se está relativizando? É o conhecimento? Os valores e culturas? A realidade?; (2) A respeito de que se está relativizando? A linguagem? Os esquemas conceituais? A teoria?; (3) Em que grau se relativiza? Completamente? Parcialmente? Para o autor, a resposta a essas perguntas mostram os diferentes relativismos possíveis (cultural, semântico, linguístico, epistemológico, ontológico, moral). O próprio Ibánez opta por um relativismo radical, ou seja, o relativismo que relativiza tudo, incluindo a si mesmo. O que seria afirmar que nenhuma proposição é verdadeira em todos os contextos. Afirmar que um “algo” só se torna objeto a partir do processo de construção linguístico-conceitual, como mencionam Spink e Frezza (2000), não é o mesmo que afirmar que esse algo é de natureza discursiva. Como colocam as autoras: “quer dizer, apenas, que o construcionismo reconhece a centralidade da linguagem nos processos de objetivação que constituem a base da sociedade de humanos” (p. 33). Sobre a crítica ao reducionismo linguístico, Hacking (1999) nos lembra que o uso da linguagem na classificação das coisas não acontece no vácuo, mas a partir de uma matriz povoada por instituições, papéis sociais, infraestrutura material, etc. O autor menciona que podemos chamar essas matrizes de sociais, pois seu sentido é o que interessa problematizar, mas elas também são materiais, na medida em que disponibilizam diferentes elementos na construção das coisas. Assim, nenhuma ideia sobre o mundo funciona fora de uma matriz. Indivíduos e experiências são construídos nessa matriz. Latour (1994) busca avançar nessa questão ao abordar o aprisionamento que podemos sentir nos jogos de linguagem e no ceticismo da desconstrução de sentidos. Ele pontua: “o discurso não é um mundo em si, mas uma população de actantes que se misturam tanto às coisas quanto às sociedades, que sustentam

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ambas, e que as mantêm” (p. 89). O autor propõe que tomemos o conceito dos quase-objetos para sairmos das armadilhas da modernidade de querer garantir como separados natureza, discurso, sociedade e Ser. Os quase-objetos são, portanto, “reais como a natureza, narrados como o discurso, coletivos como a sociedade, existenciais como o Ser” (p. 89). Ainda para este autor, os debates sobre o relativismo nunca chegam a lugar algum, pois “é tão impossível universalizar a natureza quanto reduzi-la à perspectiva restrita do relativismo cultural” (p. 104). Ele propõe, assim, um relativismo relativista que, diferentemente dos universalistas que definem uma única hierarquia para as coisas, e dos relativistas que tornam tudo igual, são “mais modestos, porém mais empíricos, mostram os instrumentos e as cadeias que foram usadas para criar assimetrias e igualdades, hierarquias e diferenças” (p. 111). Dessa forma, teríamos, de fato, uma natureza que não criamos, e uma sociedade que podemos mudar, há fatos científicos indiscutíveis e sujeitos de direito, mas estes tornam-se consequência de uma prática continuamente visível, ao invés de serem, como para os modernos, as causas longínquas e opostas de uma prática invisível que os contradiz (p. 138).

Para Iñiguez (2003), Latour faz parte dos autores que se localizam em um “panorama pós-construcionista”, pois permite equilibrar e desfazer a dualidade natural-social, “reposicionando o material e criando uma nova hibridação conceitual longe de essencialismos culturalistas ou materialistas” (p. 9). Iñiguez (2003) toma Judith Butler como outra importante figura presente nesse panorama pós-construcionista, pela proposta dessa autora do conceito de performatividade que, segundo o autor, é uma alternativa à noção de que tudo é uma construção linguística. Para Iñiguez, Butler fala de uma noção de construção

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social que implica um processo de materialização, “que se estabiliza com o tempo, para produzir o efeito de fronteira, de permanência e de superfície que chamamos matéria” (p. 10). Segundo o autor, Butler responde à pergunta de se há algo externo ao discurso afirmando que “referir-se a algo extradiscursivo implica que se tenha de delimitar previamente qual é esse âmbito do extradiscursivo, e no caso de se poder fazer essa delimitação então, e paradoxalmente, será o discursivo que estará delimitado pelo próprio discurso do qual pretendia liberar-se” (p. 10). Portanto, é possível reformular a pergunta de se as palavras pré-existem aos sujeitos? De que forma pensar a noção de eu nesse cenário? Se partirmos, portanto, da suposição de que a realidade (a base material) não existe desconectada e exterior ao plano discursivo, isso equivale a supor que a (formação) da identidade e da subjetividade – e, nesse sentido, do eu – ocorre no interior das estruturas discursivas e de poder existentes. Considerando a argumentação de Mariano (2005), autora partidária da tradição feminista crítica, podemos concluir que ao contrário do que preconiza a tradição do pensamento liberal ou clássico sobre a formação da subjetividade (supondo um sujeito coeso e racional), se tanto as relações de poder quanto as relações discursivas operam em grande parte de maneira inconsciente ao indivíduo, a conclusão é que o eu na verdade é um efeito das relações de poder e dos discursos que formatam o indivíduo, e não sua origem ou causa. Em outras palavras, mais apropriado do que o termo eu (que remete ao âmbito consciente) seria a terminologia sujeito (parte consciente, parte inconsciente). Neste sentido, tanto para Haraway (1991, 1995) quanto para Butler (2012), aquilo que se designa como sujeito é resultado da performatividade (sua ilusão de existência e de coesão é posterior aos efeitos discursivos e às relações de poder), e não antecede nem pré-existe como entidade imanente. Como bem definem Costa (2002) e Wajcman (2008), o eu (sujeito) está em constante ação e construção, em constante transformação, em

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constante tentativa de afirmação, ao mesmo tempo em que se cria uma ilusão de concretude e estabilidade. Tais suposições estão de acordo com o pressuposto de que não haveria uma realidade “descolada” ou exterior ao âmbito discursivo, mais sim que essa realidade seria constituída a partir dele. O que é, portanto, o sujeito? É o eu? É o aspecto racional e consciente do psiquismo? É composto por elementos inconscientes e conscientes? É o self? Para Butler (2012), ao invés de supormos que as identidades (eu) são autoevidentes e fixas como fazem as perspectivas essencialistas e tradicionalistas em Psicologia que o equivalem às capacidades racionais, devemos considerar que elas são construções que ocorrem no interior dos processos de linguagem e das práticas discursivas que regulam os atos do executante – suas condições de emergência. Essa é a ideia chave para a compreensão da obra de Butler: a de que a performatividade (as condições e possibilidades discursivas que formatam os sujeitos em específicas relações de poder) antecede, delimita e possibilita o performer (aquele que executa a ação; ou seja, o executante é, na realidade, efeito e não causa das práticas discursivas) – o eu é um sujeito-em-processo. Butler (2012), portanto, sugere não que o sujeito seja totalmente livre para escolher o que fazer ou o que (e como) pensar, pois o script de suas possibilidades está sempre anteriormente determinado no interior de um quadro regulatório (discursivo) e o sujeito tem uma quantidade limitada de opções a partir das quais pode atuar. Contudo, é preciso esclarecer que Butler utiliza o termo discurso conforme proposto e compreendido por Michel Foucault (2008) ao longo de sua obra: discurso não equivale à fala ou a conversação ocorrida entre as pessoas e tampouco à linguagem, mas sim especificamente designa os grandes grupos de enunciados que governam o modo como falamos, pensamos e percebemos um momento ou momentos históricos específicos. Ou seja, o(s) discurso(s) são matrizes de inteligibilidade do mundo e

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das práticas sociais, possibilitando sentidos e significados aos sujeitos. Isso equivale a dizer que o sujeito é formatado pelos discursos (efeito) que o antecedem e, assim, não é plenamente capaz de controlá-los – sua autonomia é, portanto, condicionada e ilusória. Considerando que as relações discursivas são relações de poder, o essencial nessa discussão não é questionar se existe um eu que habita os indivíduos (e se ele é mais ou menos consciente ou inconsciente, pouco importa), mas sim quais são as condições sociais e discursivas necessárias para que haja a suposição da existência de um eu. Ou, em outras palavras, quais foram as condições que permitiram advir a ideia e supor a existência de um sujeito? Novamente Butler (1987), apoiada em Kojève, Hyppolite, Sartre, Lacan e Foucault – eminentes autores do contexto francês da década de 1960 e posteriores – conclui que as ciências psiquiátricas e psicológicas dos séculos XVIII e XIX foram essenciais na proposição da ideia de existência de um sujeito coeso, racional, estável, delimitável, autônomo e equivalente a uma instância interna do indivíduo, quando, na realidade, o sujeito está emprocesso, é instável e poroso aos discursos que o circunscrevem. Posteriormente, em seu livro Excitable Speech, Butler (1997a) melhor discorre sobre esse argumento: considerando que todo enunciado é em certo sentido um ato e que, ao dizer algo, estamos sempre fazendo algo, as práticas discursivas que formatam os sujeitos são tanto excitáveis (no sentido de serem incontroláveis pelos próprios sujeitos) quanto ex-citáveis (ex-citable, para além do sujeito; exteriores àquele que cita)2.

Aparentemente Butler alude ao Deus ex machina, recurso usual no teatro grego antigo no qual uma situação ou cena é resolvida quase que absurdamente por uma intervenção de um deus, ou seja, por um personagem externo ao ocorrido, fato incontrolável pelos partícipes da encenação e da peça. Assim, ex2

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Se o sujeito é formado pela linguagem e pelo discurso, ou seja, dependente de certos condicionantes, não haveria razão em supor (e mesmo crer em) a existência de um eu interno tal com proposto pela Psicologia tradicional. Aliás, tal suposição oriunda das ciências psicológicas e psiquiátricas seria menos uma constatação de uma real evidência e mais um artifício ideológico de controle e normatização social (Chauí, 2010), pois supor a existência uma instância interna (eu) sugere a possibilidade de melhor conhecê-la para melhor controlá-la – e a história das práticas psi bem demonstra isso. Em The psychic life of Power, Butler (1997b) reitera sua argumentação de que não existiria nenhuma identidade social nem um eu sem sujeição – não há interioridade prévia, não há essencialismo biológico ou psicológico. Há, todavia, exterioridade com efeitos de interioridade. Ninguém nasce sujeito, mas se torna sujeito – parodiando Simone de Beauvoir. Em suma, se é impossível fugir das estruturas discursivas de poder, tampouco faz sentido supor que o sujeito (ou aquilo que a ciência psicológica denomina como eu) não seja resultado dessas estruturas e relações de poder. Em outros termos, isso equivale a afirmar que a formação da psique somente ocorre no interior e devido às estruturas discursivas e de poder, ou seja, que é a exterioridade que causa a interioridade psicológica. Salin (2012), ao comentar a obra butleriana The psychic life of Power, relata que “Butler não define ‘psíquico’ ou ‘psique’, mas se concentra na emergência da consciência, mais especificamente, na sua emergência no interior do discurso e da lei” (p. 166) ou, em outras palavras, como o sujeito pode utilizar-se do fato de ser assujeitado pelo poder e poder exercer esse mesmo poder como instrumento de questionamento e de libertação. Assim: citable speech remeteria aos discursos ou falas que são exteriores e anteriores aos sujeitos, mas que são fortes o suficiente para influenciar seus destinos.

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o sujeito é efeito de um poder prévio. Contudo, o poder é também a condição do sujeito sem a qual ele não poderia existir como um agente (e, aparentemente, o sujeito é um agente, mesmo que esteja imerso nas estruturas de poder). O sujeito não exerce o poder, ele é efeito da subordinação: em outras palavras, o sujeito necessita do poder para ser um sujeito, e sem o poder não haveria possibilidade nem status de sujeito, nem para a agência. O sujeito emerge como o efeito de um poder prévio que ele também excede, mas o poder também age sobre um sujeito que parece anteceder (mas não o faz) o poder (p. 167).

Resultado: ser sujeito enquanto efeito do poder não significa um simplório fatalismo mecanicista, uma determinação insuportável ou uma impossibilidade de questionamento. Ao contrário, pois a relação do sujeito com as estruturas discursivas e de poder é ambivalente: ele depende do poder para sua existência mas, e apesar disso, ele também exerce o poder em suas relações sociais e pode exercê-las sob formas inesperadas e potencialmente subversivas. Butler (1997b) se pergunta como e em que direção é possível lidar com as relações de poder e com as práticas discursivas pelas quais os sujeitos são produzidos. Uma vez que o sujeito está em constante processo de construção (apesar de isso ser ocultado pela ideologia, tal como entendida pela tradição marxiana – Chauí, 2010), esses processos são passíveis de repetição (perfomatividade, o que cria a ilusão de coesão) e de normatização e, se são atos performáticos, por consequência, são passíveis de subversão e questionamento das mesmas normatizações às quais estão submetidos. A agência (capacidade de transformação) consiste em renunciarmos a qualquer pretensão à coerência ou a autoidentidade (tal como supõem a existência de um eu psicológico estável e coeso), submetendo-nos à interpelação e subversivamente não

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reconhecendo os termos pelos quais somos designados e mesmo intimidados – a própria linguagem e o discurso são as arenas políticas de transformação. A ideia de que o sujeito (eu) não é uma entidade preexistente, essencial, e que nossas identidades são continuamente construídas significa que as elas podem ser continuamente reconstruídas sob formas que desafiem e subvertam as estruturas de poder existentes. Respondendo diretamente às questões que iniciaram essa seção do debate temos que: é possível reformular a pergunta se as palavras pré-existem aos sujeitos? Respondemos categoricamente que não, pois os discursos pré-existem aos sujeitos. Mas a própria pergunta nos aparenta agora um pouco mal formulada, e melhor seria questionar como os sujeitos existem por causa das palavras (dos discursos e das relações de poder); e de que forma pensar a noção de eu nesse cenário? Respondemos que o eu é um efeito dos discursos (no sentido foucaultiano), e não sua origem, mais especificamente, não devemos apenas pensar o eu (enquanto categoria interna que antecede a ação e revela a verdade do sujeito), mas sim como agenciá-lo (enquanto exercício em construção que produz efeitos retroativos de compreensão, pressões exteriores que delimitam uma interioridade fluida e performativa). Isso nos leva a outras inúmeras indagações, dentre as quais ganha relevância a seguinte: não estaríamos simplesmente substituindo um radicalismo (psicologismo e suposta autonomia do pensamento e anterioridade, interioridade e coesão do eu) por outro radicalismo de cunho sociológico (sujeito enquanto produto e não como produtor dos discursos)? Como compreender as variabilidades e as particularidades individuais em uma sociedade disciplinar que nos impõem discursos, performatividades e subjetividades? Essa é uma questão que fica aberta à reflexão. Por hora, entendemos que uma possível saída para o embate entre autonomia e determinação social é o convite construcionista social da

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análise dos efeitos da produção desses diferentes modos de definição de eu, encarando essas próprias definições como discursos. Ou seja, como Gergen (2009) sugere, nos questionar quais são as implicações para nossas práticas ao pensarmos um eu coerente, racional e motivado ou ao pensarmos o eu como determinado por estruturas macrossociais? Para Gergen (2009), o primeiro modo de definição de eu fomenta o individualismo, com a valorização de competências individuais, com modelos de comparação entre as pessoas, em uma cultura que leva à competição e à busca do desenvolvimento pessoal em detrimento do cuidado com os relacionamentos. Relacionar-se, nesse modelo, é visto a partir dos benefícios trazidos para o indivíduo e, em muitos momentos, é avaliado como algo dispendioso e desnecessário. Já o eu entendido como produto de estruturas macrossociais externas a ele leva a uma sensação de impotência e submissão. Gergen (2009) nos chama a atenção para um outro modo de definição de eu que tenta escapar desse dualismo. Um eu constituído nas relações humanas, um ser relacional. Ele propõe a substituição da discussão sobre um dentro e um fora para um entendimento das ações relacionamente corporificadas. Pensar nos relacionamentos não como derivados da noção de um eu, mas como locus da própria produção da noção de um eu e das explicações para o que esse eu é ou deixa de ser. Assim, o autor propõe que tomemos agência pessoal e determinismo como resultado das próprias construções conjuntas entre as pessoas, como construções desse ser relacional. Shotter (2012) aponta que o conceito de ser relacional de Gergen é um conceito não finalizado, vivo, ganhando seu significado a partir de seu uso. Considera que pensar eu como uma confluência do relacionar-se demanda de nós a exploração desse espaço fluído no qual

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não há ‘coisas’ fixas ou finalizadas que nos conduza, mas apenas vértices de movimentos que fluem em espaços também fluidos, com estabilidades dinâmicas ocasionais aqui e ali, dependentes em sua natureza de sua incorporação relational no fluxo de atividade mais amplo constituindo nosso ao redor (s/p).

Uma definição que chama a atenção para cada uma de nossas decisões de delimitação entre um fora e um dentro, um separado e um todo, um dependente e um independente. Por exemplo, nossa decisão por tomar o eu separado das relações de poder e olhar para sua mútua influência. Ao focalizar o processo do fluxo relacional como foco para a definição de sujeito, Gergen, segundo Shotter (2012), enfatiza os limites para construção dos sentidos de eu, ao mesmo tempo em que reconhece a abertura para a evolução dos sentidos. Portanto, nossas ações não são mais explicadas em si mesmas (como frutos de intencionalidade ou determinação externa), mas como parte de um todo do qual fazem parte. Qualquer estabilidade ou estrutura é tomada, então, como dinâmica e dependente em sua própria existência das contínuas atividades relacionais das quais faz parte. O ser relacional é, portanto, uma alternativa a um eu submisso a estruturas que o oprimem e a um eu isolado dono de suas ações. Assim, ninguém pode ser livre, oprimido, diferente ou igual, sozinho. Referências Bíblia Sagrada (2013). Evangelho de João. Recuperado de http://www.bibliaonline.com.br/acf/jo/1 Butler, J. (1987). Subjects of desire: Hegelian reflections in twentieth century France. New York: Columbia University Press. Butler, J. (1997a). Excitable speech: A politics of performative. New York: Routledge.

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Contribuições da teoria do amadurecimento para o estudo das famílias homoparentais Conceição Aparecida Serralha Entre os movimentos reivindicatórios dos homossexuais está o do direito de ter filhos e de formar uma família da mesma forma que as pessoas heterossexuais. Discussões em diversas áreas têm evidenciado a legitimidade desse direito e abordado os conflitos gerados em razão dos diferentes caminhos que acabam sendo utilizados para a constituição da família. O presente capítulo, visando contribuir para o tema, tem por objetivo estudar a família homoparental no tocante aos efeitos desta na constituição psíquica da criança que nasce e cresce dentro dela, a partir da teoria do amadurecimento humano e da teoria da sexualidade de D. W. Winnicott. Propõe refletir sobre o lugar e a elaboração dos papéis de cada membro do casal parental e o desempenho desses papéis em relação à satisfação das necessidades da criança. Para tanto, são considerados os textos do próprio Winnicott e de autores estudiosos de sua obra na atualidade. A discussão evidencia a importância do ambiente facilitador para a constituição de um eu amadurecido e de como a qualidade facilitadora desse ambiente depende do bom desempenho dos papéis parentais, desempenho que pode prescindir do gênero da pessoa que o desempenha, mas não de suas características de confiabilidade e capacidade de sustentação e manejo. Família e homossexualidade

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A homossexualidade, ao ser considerada, a partir de 1973, uma orientação sexual e não mais uma patologia, ou seja, ao ser considerada uma possibilidade não patológica de atração sexual e sentimental de uma pessoa por outra do mesmo sexo, fez deslanchar movimentos reivindicatórios das pessoas com essa orientação, entre estes o direito de ter filhos e de formar uma família. As principais discussões em diversas áreas têm evidenciado a legitimidade desse direito e abordado os conflitos gerados em razão dos caminhos utilizados para a constituição da família, que podem ser por meio de adoção, inseminação artificial, barriga de aluguel ou filhos de relacionamentos heterossexuais anteriores (Palma, 2011). A proposição de contribuir para o tema a partir da teoria do amadurecimento humano de D. W. Winnicott e, dentro desta, da teoria da sexualidade sistematizada por Loparic (2005), busca estudar a composição da família homoparental no tocante aos seus efeitos na constituição psíquica da criança, que nasce e cresce dentro dela: o lugar e a elaboração dos papéis de cada membro do casal parental e o desempenho desses papéis em relação à satisfação das necessidades da criança. Antes de prosseguir, contudo, tornam-se essenciais alguns esclarecimentos. O primeiro é de que como Winnicott não escreveu sobre o tema especificamente, este trabalho delineia uma visão possível com base na teoria legada por ele. O segundo é que, da mesma forma que as pessoas consideradas heterossexuais não constituem um grupo homogêneo em termos de constituição de Eu e potencialidades, a referência às pessoas homossexuais, neste estudo, também as considera pertencentes a um grupo heterogêneo, composto por pessoas com raízes diferentes para sua identidade homossexual e constituições diferenciadas em termos de integração do Eu. Conforme evidencia Roudinesco (2003), tratam-se de pessoas com uma prática sexual marcada pela diversidade, que é referida como “homossexualidades, (...) um componente multiforme da sexualidade humana”

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(p. 185). Sendo assim, são pessoas com possibilidades diferentes também de exercício dos papéis parentais. Por fim, que a análise realizada leva em conta a homoparentalidade em relação a crianças no início da vida, ou bem próximo deste, e não a crianças adotadas com mais idade. Outrossim, independente das várias motivações para a adoção, o estudo tem por objeto o que mais se possa aproximar de casais homoafetivos que desejam ter filhos e formar uma família. A homoparentalidade O termo homoparentalidade surgiu na França em 1996, cunhado pela Associação dos Pais e Futuros Pais Gays e Lésbicas (APGL) e passou a designar a situação de conjugalidades homossexuais que possuem filhos (Roudinesco, 2003). Mesmo que haja uma crítica ao uso desse termo, por associar o cuidado oferecido aos filhos com a orientação sexual dos pais, como relatam Zambrano, Lorea, Mylius, Meinerz e Borges (2006), o seu uso evidencia uma situação que se apresenta e reclama por reconhecimento social. Além disso, por ser o termo que vem sendo mais utilizado pelos estudiosos (Jurado, 2013; Paiva & Rodriguez, 2009; Palma, 2011; Passos, 2005; Uziel, 2007; Zambrano et al., 2006), mantê-lo permite uma comunicação clara, sem grandes equívocos no que concerne à discussão que é a tônica do momento em relação à criação de filhos, ou seja, se casais compostos por pessoas do mesmo sexo conseguem oferecer o ambiente e exercer as funções ou papéis que a criança necessita para bem se desenvolver. Quando analisamos um grupo familiar constituído por pais do mesmo sexo, assim como de pais heterossexuais com problemas de infertilidade, além de todas as questões relacionadas à impossibilidade de gerar um filho de ambos, eles precisam encontrar uma forma de gerar esse filho que os ameace menos; em outras palavras, que não lhes traga uma instabilidade

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emocional e psíquica. Entretanto, qualquer que seja essa escolha, haverá sempre permeando esse desejo de ter um filho, uma incompletude, uma impossibilidade de gerar e um terceiro, uma vez que o casal depende de um outro para realizar esse projeto de ter o filho (Passos, 2005). Esse outro que permanecerá no imaginário da família, com o qual os pais precisam conviver, se interpõe na formação dos laços afetivos com os filhos de modos diferentes, dependendo de como ele é assimilado/elaborado por esses pais. Algumas vezes, o outro imaginário toma a forma de uma figura que se superpõe aos pais. Outras vezes, aparece como sombra enigmática que acompanha e perturba o reconhecimento dos filhos, podendo ainda ser assimilado como elemento sem o qual a filiação não existiria (Passos, 2005, p. 35).

Além disso, no caso de uma família formada por pais do mesmo sexo, deve-se considerar sua composição interna, que comumente apresenta ausência de papéis e lugares fixos entre os membros e inexistência de hierarquias, possibilitando diferentes referências de autoridade (Passos, 2005), o que não quer dizer ausência de conflitos. Há de se considerar, contudo, que mesmo entre pais heterossexuais essas questões podem estar presentes, uma vez que o arranjo familiar e o desempenho dos papéis parentais sofrem influência do contexto sócio-histórico-cultural e dos recursos pessoais de cada indivíduo, não sendo pré-determinados pelo gênero de cada membro. Sem menosprezar todas essas características que podem complicar a parentalidade, mas colocando-as em suspensão, questiona-se como a família homoparental pode ser pensada a partir da teoria do amadurecimento emocional de Winnicott; como pode ocorrer o amadurecimento pessoal e, dentro deste, a constituição da identidade sexual da criança que nasce e cresce em meio à homoparentalidade?

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Ao se empreender uma revisão de literatura, nota-se que o estudo da homoparentalidade imerso na teoria do amadurecimento de Winnicott (1990; Dias 2012) é um trabalho bem mais recente do que o estudo da homoparentalidade a partir de outras visões, como, por exemplo, da Psicologia Social e relações de gênero (Palma, 2011; Passos, 2005; Uziel, 2007; Zambrano et al., 2006). Dois estudos que buscaram o auxílio da teoria winnicottiana para compreender as possibilidades da homoparentalidade foram os de Rodriguez e Paiva (2009) e Jurado (2013). Rodriguez e Paiva apontaram a importância dada por Winnicott à qualidade do vínculo que deve ser estabelecido entre os membros do casal parental e a criança – que geralmente está presente no lar comum e não em um lar especializado –, ao justificarem a potencialidade, para o desenvolvimento da criança, também do casal homoparental que consegue estabelecer um bom vínculo. Jurado, por sua vez, conduz seu estudo a partir da importância dos cuidados materno e paterno proposta por Winnicott (1990), e do entendimento deste de que o bebê também pode ser bem cuidado por pessoas – que não os pais biológicos –, que exerçam esses papéis e, em especial, o papel materno suficientemente bem. Contudo, nenhum dos estudos aprofunda sobre aquilo que pode ser o fundamento do bom vínculo ou do desempenho desses papéis, como é pretendido neste texto, ou seja, nenhum dos estudos considera a teoria dos elementos feminino puro e masculino puro de Winnicott (1994a), na base do exercício dos papéis parentais e das relações que se estabelecem, quer se tratem de casais homo ou heteroafetivos. A teoria do amadurecimento e a homoparentalidade De acordo com Winnicott (1990a), para a constituição de um eu amadurecido integrado em uma unidade, o indivíduo, no início, necessita de um ambiente capaz de favorecer o desenvolvimento de suas tendências herdadas, que lhe permita

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SER, “sem ter que tomar conhecimento do ambiente” (p. 151). Nesse momento inicial, o ambiente favorecedor de uma continuidade do ser sabe que o indivíduo ainda não tem condições de perceber o ambiente e mais, que ainda não existe um self individual que consiga “discriminar entre o Eu e não-Eu” (p. 153). Na teoria do amadurecimento de Winnicott, descreve-se o ambiente integrado de vários ambientes específicos (humano, não-humano, físico, objetivo, subjetivo, interno, externo, materno, paterno, familiar e social), que não podem existir independentes uns dos outros, pois eles não são uma soma de ambientes nãointegrados, mas um inter-relacionamento fundamental de círculos maiores que se abrem gradualmente, e que fornecem ao indivíduo a possibilidade de ser. No entanto, no início da vida, o ambiente que se ressalta é o ambiente constituído pelos cuidados e pelo modo de relação da mãe com o seu bebê, que depois, com o desenvolvimento, se amplia para outras relações (Araújo, 2011). O ambiente inicial, ao ser constituído pela pessoa que exerce o papel de mãe, fornece diretamente os cuidados necessários ao bebê, em razão de sua identificação com este, possibilitada por um suficiente potencial de “elemento feminino puro”, ou seja, do elemento feminino não relacionado ao gênero feminino dessa pessoa, particularmente, não relacionado às suas funções corpóreas ou aos instintos. A identificação da mãe com o bebê promove a identificação primária do bebê com a mãe – ser a mãe-que-cuida (Loparic, 2005, p. 343) –, que, na verdade, não é ainda percebida pelo bebê como externa a ele, podendo-se dizer que o bebê se identifica primariamente consigo mesmo, uma vez que ele e a mãe são um. A partir dessa condição de unidade, o bebê resolve as tarefas relativas à constituição de uma identidade pessoal: inserir-se no tempo e no espaço, alojar-se em um corpo e passar a se relacionar com outras pessoas e com o mundo à sua volta. Desse modo, ele se torna real, no sentido de poder existir como um sujeito

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objetivo, separado do ambiente, sendo capaz de ser impulsivo e de fazer coisas (Loparic, 2005). Na teoria do amadurecimento pessoal, segundo Winnicott (1994a), deve-se aceitar a existência de “um elemento masculino e um elemento feminino tanto em meninos e homens, como em meninas e mulheres” (p. 139), que nada têm a ver com o sexo biológico desses indivíduos. Em suas palavras, (...) na saúde, há uma quantidade variável de elemento menina em uma menina, ou um menino [...] de maneira que facilmente seria possível encontrar um menino com um elemento de menina mais forte do que a menina parada ao lado dele, a qual pode possuir menos potencial de elemento feminino puro (Winnicott, 1994a, p. 142).

Se o amadurecimento segue facilitado pelo ambiente, segundo Dias (2012), os elementos masculino e feminino, por sua natureza, “não são alvo de repressão”. Entretanto, caso essa facilitação não ocorra, principalmente em razão de intrusões ambientais, pode ocorrer de eles ficarem “cindidos da personalidade total” (p. 273), como no caso FM apresentado por Winnicott, em 1966, em artigo lido perante a Sociedade Psicanalítica Britânica (Winnicott, 1994a). A presente exposição, portanto, parte do pressuposto de que, quer sejam casais heteroafetivos, quer sejam casais homoafetivos, o que vai prevalecer como fator de facilitação para o amadurecimento do bebê, inicialmente, será o potencial de elemento feminino puro que possa existir integrado no si-mesmo de um dos membros do casal, suficiente para o bom desempenho do papel materno, bem como do elemento masculino puro também integrado no si-mesmo do outro membro, que será necessário para o bom exercício do papel paterno, na sequência do desenvolvimento da criança. Ressalta-se que, mesmo que o casal homoafetivo, ou heteroafetivo, flexibilize esses

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papéis, com um membro substituindo o papel do outro quando necessário, para o bebê é muito importante que um dos membros permaneça como referência no exercício de um dos papéis, ainda que isso só possa ser percebido por ele com o decorrer do seu amadurecimento pessoal. Para Winnicott (1990a), uma das necessidades iniciais do bebê para o seu desenvolvimento é a monotonia – entendida como uma rotina adequada ao grau de amadurecimento do bebê no momento – e a continuidade do cuidado: “a simplicidade e a constância da técnica podem ser dadas apenas por uma pessoa que esteja agindo naturalmente” (p. 132; itálicos meus). Assim, pensar em situações como as referidas por Roudinesco (2003), em que “duas mães, das quais uma desempenharia o papel de pai, ou dois pais dos quais um se disfarçaria de mãe” (p. 198; itálicos meus), jamais poderia atender às necessidades de um bebê. Ser cuidado por mais de uma pessoa, cujos modos de cuidar sejam artificiais e diferentes, vai exigir muito mais do bebê. O cuidado específico de uma única pessoa com “interesse de mãe”, já traz em si a variabilidade que o bebê consegue lidar no início da vida. De acordo com Winnicott (1994a), a condição primitiva de SER do bebê, ou o desenvolvimento do potencial de elemento feminino puro deste, possibilitado pelo elemento feminino puro da mãe, é básica para que o bebê conquiste, posterior e gradativamente, a autodescoberta, o senso de existir, a capacidade de desenvolver um interior, ser capaz de utilizar os mecanismos de projeção e introjeção e se relacionar com o mundo em termos desses mecanismos, relação que já indicaria a mistura dos elementos feminino e masculino. O elemento feminino puro “relaciona-se com o seio (ou com a mãe) no sentido de o bebê tornar-se o seio (ou a mãe), no sentido de o objeto é o sujeito” (p. 140). Já o elemento masculino puro “circula em termos de um relacionamento ativo ou de um passivo deixar-se com ele relacio-

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nar, com cada uma das atitudes sendo respaldada pelo instinto” (p. 139). Winnicott se sentiu muito enriquecido quando se permitiu pensar esses conceitos de elementos femininos e masculinos pertencentes a cada menino e a cada menina. Segundo ele, Isto me fez ver que os termos ‘ativo’ e ‘passivo’ não têm validade nesta área. Ativo e passivo são duas facetas da mesma coisa em termos de algum outro tipo de consideração que vai mais fundo e que é primitiva. Em uma tentativa de formular isto, encontrei-me na posição de comparar ser com fazer. No extremo dessa comparação, descobri-me examinando um conflito essencial dos seres humanos, um conflito que já deve ser operante em data muito inicial, o conflito entre ser o objeto que tem também a propriedade de ser e, por contraste, uma confrontação com o objeto que envolve uma atividade e um relacionamento objetal respaldados pelo instinto ou pulsão (1994a, p. 149).

No âmbito da redescrição dos relacionamentos objetais por Winnicott, são encontradas relações com objetos que favorecem o amadurecimento, como as relações com objetos transicionais, que propiciam o encontro com a externalidade e o princípio da identidade pessoal, que se distinguem das relações com objetos que provêm da satisfação instintual como encontrados em Freud e Klein (Loparic, 2005, nota p. 324). Winnicott nos apresenta, assim, uma teoria “suplementar à instintualidade, baseado no estudo das propriedades de dois diferentes modos de relacionamento com outras pessoas – a identificação e a objetificação” (Loparic, 2005, p. 338). Desse modo, na identificação, embora pareça inadequado falar em “relacionamento”, já que, como dito anteriormente, nesse momento inicial bebê e objeto são um só, Winnicott mantém o termo para se referir ao “relacionamento objetal do elemento feminino puro” que estabelece a mais simples experiência, a da identi-

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dade inicial do bebê (SER), “que precisa de um seio que é”. Contrastando com esse relacionamento, Winnicott vai se referir ao “relacionamento objetal do elemento masculino com o objeto”, para o qual já deve ser pressuposto que o bebê já sente separado o Eu do Não-Eu (1994a, p. 140). Esse relacionamento tem por base os impulsos instintuais e a necessidade que o bebê tem de FAZER. “O fazer, [...] deve vir depois e sobre o ser” (Dias, 2012, p. 273). Desse modo, ser uma pessoa capaz de fornecer suficientemente bem o elemento feminino, ou seja, ser uma pessoa com suficiente potencial de elemento feminino puro integrado capaz de favorecer que o bebê possa desenvolver o seu próprio potencial de elemento feminino puro é uma questão bastante sutil de manejo é uma questão bastante sutil de manejo. Para Winnicott (1994a), Ou a mãe tem um seio que é, de maneira que o bebê também possa ser, quando bebê e mãe ainda não se acham separados na mente rudimentar daquele, ou então a mãe é incapaz de efetuar esta contribuição, caso em que o bebê tem de desenvolver-se sem a capacidade de ser ou com uma capacidade prejudicada de ser (p. 141).

Winnicott permite aos analistas compreender que, muitas vezes, estes têm que lidar, na clínica, com pessoas que, quando bebês, tiveram de se safar de uma identidade com um seio de elemento masculino, ativo, e que não foi satisfatório para uma identidade inicial que necessitava de um seio que é, e não de um seio que faz. Segundo Winnicott (1994a), “ao invés de ‘ser como’, este bebê tem que ‘fazer como’, ou deixar que lhe seja feito, o que, desse nosso ponto de vista aqui, constitui a mesma coisa”, ou seja, “fazer como” ou “deixar que lhe seja feito” evidencia, nesses casos, a presença de elemento masculino puro extemporaneamente (p. 141).

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Embora acreditando que a mãe biológica fosse a pessoa melhor preparada para a tarefa de maternagem, Winnicott (1994b) sabia que isso poderia não ocorrer: a mãe poderia faltar, ou poderia não estar com saúde suficiente para entrar em um estado em que lhe fosse possível identificar-se com o bebê e, ao mesmo tempo, fornecer a este os cuidados de que necessita. Também, em condição semelhante poderia ser incluída a mãe que, até por fatores hereditários, não tivesse suficiente potencial de elemento feminino puro para essa tarefa. Levar em consideração fatores hereditários nesse ponto, se torna importante ao se recordar três proposições do texto winnicottiano. A primeira, já citada anteriormente, diz: “Em nossa teoria, é necessário aceitar-se a existência de um elemento masculino e um elemento feminino, tanto em meninos e homens, como em meninas e mulheres” (Winnicott, 1994a, p. 139). A segunda se refere à quantidade variável desses elementos em uma menina, ou menino, sobre a qual ele disse: “Elementos de fator hereditário também ingressam nisso, (...)” (p. 142). A terceira e última, trata-se da proposta de Winnicott de ser possível que a experiência de “fracasso atormentador do seio como algo que É” produza uma criança “cujo self ‘feminino puro’ é invejoso do seio” (p. 141), indicando a existência de um potencial hereditário de elemento feminino puro no bebê que pode ser desenvolvido, bloqueado ou distorcido pelo modo como ele é cuidado. Contudo, apesar de Winnicott se referir a fatores hereditários, o hereditário para ele nem sempre estava relacionado ao biológico, como no tocante à “experiência de ser”, que é “o que é passado de uma geração para outra, por via do elemento feminino de homens e mulheres e dos bebês do sexo masculino e feminino” (p. 140). Desse modo, a convicção de Winnicott em relação ao exercício da maternagem era de que, para o bebê, é vital que outra pessoa possa exercê-la caso a mãe esteja impossibilitada. Em 1956, Winnicott escreveu que a “(...) mãe adotiva, ou qualquer mulher que possa ficar doente no sentido de apresentar uma

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‘preocupação materna primária’, pode ser capaz de se adaptar suficientemente bem, por ter alguma capacidade de se identificar com o bebê” (Winnicott, 2000, p. 404), o que, para Winnicott, quer dizer possuir elemento feminino puro integrado suficiente para ser e deixar que o bebê seja. Nesse sentido, torna-se plenamente possível que também o homem, cujo potencial de elemento feminino puro integrado seja suficiente para isso, possa exercer bem o papel materno. Conforme Dias (2012), Existem casos, [...] em que os homens são mais maternos que suas mulheres, e há relatos clínicos em que a aptidão do pai para o cuidado materno amenizou falhas ambientais, devidas a uma patologia da mãe [caso Sally], e salvou a criança de distúrbios que poderiam ter sido ainda mais graves do que os que realmente advieram (p. 135).

Entende-se que, se houver esse membro no casal homoafetivo, com suficiente integração do potencial de elemento feminino puro, permitindo que o bebê possa SER, ao outro membro será importante o fornecimento do apoio necessário nesse momento e que possa aparecer, para o bebê, posteriormente, como “o primeiro vislumbre que a criança tem da integração e da totalidade pessoal”, podendo ser usado como padrão para a própria integração do bebê, em razão do suficiente potencial de elemento masculino puro integrado dessa pessoa (Winnicott, 1994c, p. 188). Caso isto não ocorra, o bebê terá de alcançar essa integração de uma forma muito mais difícil, a menos que ele possa contar com uma relação com outra pessoa total. E isso não é diferente no caso de casais heteroafetivos em que essas necessidades do bebê não estejam sendo atendidas. Nesses casos, será muito importante que ele possa contar com uma pessoa do ambiente mais amplo como uma avó, um irmão, um tio, uma vizinha, ou vizinho, entre outros.

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No tocante à identidade sexual, Winnicott (1994a) alerta para a consideração da bissexualidade presente na fantasia e da capacidade da criança de se identificar com qualquer um dos membros do casal parental, o que será dependente da relação que se estabelecer entre eles. Para ele, o principal fator determinante dessa identidade é o sexo desta pessoa pela qual a criança esteja apaixonada no intervalo entre o desmame e o período de latência (1990, p. 66). Vale lembrar que o casal homoparental não é um casal isolado. Seus membros possuem família e amigos. Da mesma forma que o filho de pais heteroafetivos pode vir a se identificar com um tio, uma babá, um avô, entre outras pessoas, o filho de um casal homoafetivo também pode vir a se identificar com pessoas externas ao casal. De acordo com Roudinesco (2003), “todos os pais têm o desejo de que seus filhos sejam ao mesmo tempo idênticos a eles e diferentes” (p. 195). E as declarações dos homossexuais, relatadas por ela, referem os sentimentos destes quanto à necessidade de “dar aos filhos por eles criados uma representação real da diferença sexual” (p. 198). Assim, a questão da identificação sexual não pode ser simplificada e sequer garantida somente a partir do desejo apontado por Roudinesco (2003). Winnicott se referiu à dificuldade que uma criança pode vir a ter, nesse processo, caso ela constitua uma identidade sexual diferente de sua constituição anátomobiológica. O processo de elaboração imaginativa, que unifica, organiza, prepara a satisfação e permite o controle dos instintos, será muito mais dispendioso para a criança, nesses casos, do que se o desenvolvimento de sua sexualidade for predominantemente congruente com a referida constituição. Contudo, para Winnicott (1990a), qualquer que seja a identidade sexual alcançada pela criança, esta será de grande valor social se o desenvolvimento do caráter dessa criança for satisfatório em outros aspectos, que têm a ver com a forma como Winnicott define esse conceito. Ele o entende como “uma manifestação de integração bem sucedida”,

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que se estabelece sobre “a base de um desenvolvimento contínuo” (1990b, p. 185), o que será dependente do fornecimento dos elementos feminino puro e masculino puro dos membros do casal parental. Antes do desmame há todo um caminho maturacional a ser percorrido pela criança, que independe do gênero de seu cuidador, mas que é básico para a autonomia do bebê, para que o próprio bebê comece “a agir sobre os objetos externos, separados dele e constituídos devido aos impulsos efetivos de destruir objetos subjetivos (Loparic, 2005, p. 349). Como sintetiza Loparic (2005), a sexualidade humana adulta resulta de um processo de amadurecimento que parte de duas raízes diferentes: “umas instintuais, amparadas nas funções corpóreas ou no gênero (sexo biológico) e outras, relacionais, concebidas exclusivamente no contexto de relacionamentos interpessoais estabelecidos tanto pelo si-mesmo verdadeiro como pelo si-mesmo falso” (p. 341). As aquisições principais desse processo seriam a elaboração imaginativa de todos os instintos, bem como sua integração “no si-mesmo e nas relações interpessoais duais, triangulares ou múltiplas, [que terminam] por estabelecer a sexualidade como o tipo instintual dominante na fase adulta, e [...] o desenvolvimento de características sexuais não fundadas biologicamente, decorrentes de inter-relacionamentos de diferentes tipos” (p. 315-316). Nesse sentido, também pode ser compreendida a atração de uma pessoa por outra do mesmo sexo, cuja origem pode não ter a ver com uma identificação sexual com o sexo oposto, mas sim com tantos outros tipos de identificação possíveis, atração que, nos tempos atuais, denomina-se orientação sexual. Assim, a elaboração imaginativa integradora possibilitada pela capacidade de SER, que por sua vez é desenvolvida pelo apoio do elemento feminino puro integrado do membro parental, deve ser seguida pelo FAZER, possibilitado pelo elemento masculino puro integrado, que, na teoria winnicottiana da sexualidade, consiste na “execução de ações que resultam na satisfação instin-

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tual e asseguram a manutenção no contexto das relações interpessoais – e não apenas as fantasias sexuais” (Loparic, 2005, p. 335). Esse processo faz emergir conflitos, que devem ser compreendidos como um problema humano universal constituído pela oposição entre ser e fazer, pertencente à acontecencialidade da natureza humana, e: que decorre da incompatibilidade entre a tendência para integração por identificação primária, definitória da natureza humana e inerente à experiência de ser, e a tendência, igualmente presente nessa natureza, para a desintegração – perda da integração resultante da identificação primária – por objetificação, característica essencial do fazer. Muito mais do que o desmame, o que dói no ser humano é a necessidade de reconhecer que, devido à estrutura temporal do seu existir, depois de experienciar a identidade total com o real, base inicial da sua capacidade de existir, ele terá que passar, para poder continuar existindo, pela experiência da diferença total. Dito de outra maneira, o seu dilema básico é insolúvel. Não havendo meios de ser resolvido, pode ser esquecido ou, então, assumido e suportado, isto é, tolerado” (p. 450-451).

Se esse conflito essencial se exacerba, podem surgir patologias em razão da alteração brusca do ambiente que passa “do estado de ser-o-bebê ou a criança para o estado fazedor com esta” (Loparic, 2005, p. 352). A tensão inerente a esse conflito entre diferentes modos de existir que o ser humano terá que suportar durante sua vida, não pode ser creditada às diferenças entre o masculino e o feminino, mas, de acordo com Loparic, “essa tensão é decisiva para a constituição da masculinidade e da feminilidade (p. 354). Considerações Finais

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O delineamento proposto e realizado neste capítulo permite-me inferir que a homoparentalidade não é um problema em si para a constituição de um si-mesmo integrado e amadurecido em uma criança, e muito menos do desenvolvimento de sua sexualidade. Desde Freud, em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de 1905, várias reflexões vêm sendo realizadas por diversos autores, tanto dentro da psicanálise como fora dela, sobre o êxito e o fracasso desses processos, apontando principalmente os fatores que os dificultam e os distorcem, mesmo em famílias com pais heterossexuais. Assim, parece-me plausível sugerir que problemas nessa área, que possam surgir em famílias homoparentais, nem sempre vão diferir daqueles encontrados na heteroparentalidade, já que, a partir do exposto ao longo deste capítulo, esses processos são basicamente dependentes dos potenciais de elemento feminino puro e masculino puro que os membros desses casais possam apresentar desenvolvidos e integrados em seu si-mesmo, de suas características de confiabilidade e capacidade de sustentação e manejo. Embora esses potenciais e características não sejam suficientes para determinar esta ou aquela identificação ou orientação sexual, são elementos básicos para isso. Por outro lado, a preocupação específica da sociedade no tocante à orientação, ou mesmo identificação sexual, que a criança constituiria ao nascer e crescer sob os cuidados de um casal homoparental, aparece sob a égide de preconceitos acerca desse tipo de união, que tenderia a influenciar – negativamente – para a homossexualidade, como apontado por Costa (2004). Entretanto, presume-se que, se a sociedade evoluiu no sentido de aceitar a existência de diferentes formas de expressão e exercício da sexualidade, o receio e a preocupação de que a criança se torne identificada ou orientada homossexualmente não deveriam existir ou prevalecer, mas sim a preocupação de que ela possa ter dificultada a sua continuidade de ser no sentido da sua maturidade pessoal e social. Os registros oficiais de cuidados homoparen-

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tais são muito recentes e pouco numerosos, bem como o são os estudos científicos sobre estes. Assim, novos estudos com o tempo poderão corroborar delineamentos como este ou refutá-los, mas, sobretudo, fazer emergir novos questionamentos. Referências Araújo, C. S. S. (2011). O ambiente winnicottiano. In E. O. Dias, & Z. Loparic (Orgs.), Winnicott na Escola de São Paulo. São Paulo: DWW Editorial. Costa, T. M. M. L. (2004). Adoção por pares homoafetivos: Uma abordagem jurídica e psicológica. Revista Eletrônica de Direito, 1. Recuperado de . Dias, E. O. (2012). A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. São Paulo: DWW Editorial. Freud, S. (1996). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Obras completas da Standard Edition (Vol. 7, pp. 119-228). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1905) Jurado, T. (2013). Produções imaginativas sobre a homoparentalidade por meio de narrativas interativas. Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, SP. Loparic, Z. (2005). Elementos da teoria winnicottiana da sexualidade. Natureza Humana, 7(2), 311-358. Palma, Y. A. (2011). Mamãe e... Mamãe? Apresentando as famílias homomaternas. Dissertação de mestrado, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. Passos, M. C. (2005). Homoparentalidade: Uma entre outras formas de ser família. Psicologia Clínica, 17(2), 31-40. Rodriguez, B. C. & Paiva, M. L. S. C. (2009). Um estudo sobre o exercício da parentalidade em contexto homoparental. Vínculo, 6(1), 13-25. Roudinesco, E. (2003). A família em desordem. Rio de Janeiro: Zahar. Uziel, A. P. (2007). Homossexualidade e adoção. Rio de Janeiro: Garamond.

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Winnicott, D. W. (1990a). Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1988) Winnicott, D. W. (1990b). Psicoterapia dos distúrbios de caráter. In O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas. (Original publicado em 1979) Winnicott, D. W. (1994a). Sobre os elementos masculinos e femininos ex-cindidos [split-off]. In C. Winnicott, R. Shepherd, & M. Davis (Orgs.), Explorações psicanalíticas: D. W. Winnicott (pp. 133-150). Porto Alegre: Artes Médicas. (Original publicado em 1989) Winnicott, D. W. (1994b). A experiência mãe-bebê de mutualidade. In C. Winnicott, R. Shepherd, & M. Davis (Orgs.), Explorações psicanalíticas: D. W. Winnicott (pp. 195-202). Porto Alegre: Artes Médicas. (Original publicado em 1989) Winnicott, D. W. (1994c). Sobre o uso de um objeto. In C. Winnicott, R. Shepherd, & M. Davis, M. (Orgs.), Explorações psicanalíticas: D. W. Winnicott (pp. 170-191). Porto Alegre: Artes Médicas. (Original publicado em 1989) Winnicott, D. W. (2000). A preocupação materna primária. In Da pediatria à psicanálise: Obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1958) Zambrano, E., Lorea, R., Mylius, L. Meinerz, N. & Borges, P. (2006). O direito à homoparentalidade – Cartilha sobre as famílias constituídas por pais homossexuais. Porto Alegre: Venus.

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Pedofilia, pedófilos e pedofilização social: Apagamentos ideológicos e novas perspectivas de compreensão Rafael De Tilio Os monstros estão entre nós (?) Recentemente, e desde algum tempo, as diversas modalidades de mídias têm informado o público leigo sobre o (suposto) vertiginoso crescimento de um tipo de relação sexual envolvendo adultos e crianças/adolescentes considerado execrável, a pedofilia, ato sexual sempre cometido sem consentimento e a contragosto das vítimas, destacando os perigos e as consequências que tais atos ocasionam na sociedade (Landini, 2003; Todos..., 2013). Alguns desses referidos perigos são as possibilidades da destruição e traumatização (física e psicológica) da infância, a monstruosidade sem limites que esse ato representa, as múltiplas doenças ou distorções psicológicas e morais que acometem os agressores sexuais de crianças, a violência inerente ao ato, entre outros, motivos suficientes para a criação em 2013 pela Polícia Civil Paulista de um cadastro de pedófilos (Feltrin, 2013), a fim de melhor controlar os acometidos por essa “doença”. Os pedófilos parecem estar por toda a parte: nas escolas e nas igrejas (instituições antes responsáveis por proteger a infância e as crianças) e nas esquinas, sempre espreitando suas potenciais vítimas. Enfim, são múltiplas as vozes que atentam para a necessidade da extinção tanto da pedofilia quanto do pedófilo. Apesar de não existir dados estatísticos precisos, levantamentos da Organização Mundial da Saúde apontam que

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cerca de 30% das crianças no mundo já sofreram, sofrem ou sofrerão vitimações sexuais (Pfeifer & Salvagni, 2005). Mas, afinal, o que é um ato de pedofilia? O que faz um sujeito um pedófilo? Por que excessiva ênfase no agente? De que maneira – se é que isso acontece – as próprias vítimas e, de modo geral, a sociedade podem estar relacionadas e, segundo Felipe (2006), corroborar com a ocorrência desse fenômeno? Toda relação sexual envolvendo adultos e crianças/adolescentes são atos declarados de abuso ou violência sexual? São tantas as questões que podem ser levantadas que é necessário repensar a complexidade dos conceitos e práticas concernentes a esse fenômeno. Assim, o objetivo principal deste capítulo é o de investigar como ocorrem e para onde apontam as recentes investigações da literatura especializada sobre o tema acerca da figura do pedófilo e da pedofilia. Neste sentido, é proposto que a ênfase da pedofilia como ato individual e individualizado (resultado de predisposições biológicas, desordenamento das pulsões sexuais, desarranjos neuroquímicos, traumas infantis variados ou específicos – ter sido vitimado sexualmente – etc.) na realidade participa e é resultado da estratégia ideológica que, típica das sociedades modernas de cunho de produção capitalista, pretende des-historicizar e descontextualizar os fenômenos sociais. Ou seja: a individualização da pedofilia é uma explicação recorrente, mas não suficiente diante da complexidade do tema. Isso posto, o conceito de pedofilização como prática social contemporânea pode ser muito útil para reinserir, no que tange à construção da pedofilia e do pedófilo, as influências e participações do contexto social no entendimento desse fenômeno. É importante destacar que com essa contribuição não se pretende sugerir a desrresponsabilização daqueles que abusam ou vitimam sexualmente crianças/adolescentes nem também normatizar essas práticas sugerindo que as crianças em todas as situações

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podem prestar livre consentimento em participar de relações sexuais com adultos ou com outras crianças/adolescentes. Para Waites (2009), o questionamento sobre a idade de consentimento das crianças/adolescentes em relações sexuais não violentas (safe sex) pode ser objeto de apreciação social, dado que no mundo contemporâneo a existência da sexualidade infanto-juvenil e suas manifestações são dadas como certeiras, mas há inconclusões sobre a idade/momento a partir da qual se pode afirmar que a criança/adolescente passa a compreender plenamente as consequências das suas escolhas e atos, inclusive os sexuais. Assim, diante disso, na impossibilidade de estimar com precisão a inexistência de prejuízos e danos (físicos e psicológicos) quando da participação de crianças/adolescentes em relações sexuais, o mais prudente é protegê-las, garantindo-lhes direitos. Por isso, para Waites (2009), a idade de consentimento regulamentada por lei é necessária porque (...) a razão para haver uma idade de consentimento não é que os riscos são maiores quando se está abaixo de uma idade particular, ou que eles possuem um impacto uniforme ou que eles não podem ser negociados com sucesso entre os envolvidos; mas sim que é necessário estabelecer limites etários que afetem coletivamente os mais jovens, particularmente os mais vulneráveis (p. 234)3.

Assim, a intenção deste capítulo é simplesmente inserir novas perspectivas de compreensão sobre o fenômeno da pedofilia que, partindo dessa proposição, não pode ser completamente compreendido se reduzida às expressões e elementos individuais, seja do suposto agressor, seja da suposta vítima. Neste sentido, pode-se adiantar que a pedofilia e as relações sexuais envolvendo adultos e crianças/adolescentes é um campo 3

Tradução livre.

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de estudos no qual entrecruzam relações de gênero, relações etárias (relações sexuais intergeracionais), afetos, representações da sexualidade e práticas que incluem a violência. É significativa a literatura nacional e internacional sobre esses temas, e muitas são as abordagens teóricas que pretendem compreender e circunscrever esses fenômenos; sem desejar esgotar o campo de possibilidades teóricas e de investigação sobre as relações sexuais entre adultos e crianças/adolescentes, posto que estão articulados, didaticamente, pode-se restringir a três as ênfases investigativas, a saber: (i) Estudos sobre a evolução histórica do conceito e das práticas de pedofilia, pederastia, violência sexual e relações sexuais intergeracionais, naquilo que se convencionou denominar de história social da sexualidade; (ii) Estudos sobre as representações sociais dos envolvidos (principalmente das vítimas e seus familiares, agentes institucionais e organizacionais que combatem tais práticas, etc.) e agressores (em menor grau) sobre as possíveis causas, tipologias e consequências deste fenômeno – neste eixo, é importante destacar que são poucos os estudos diretamente realizados com os denominados agressores sexuais de crianças/adolescentes, os denominados pedófilos, sendo que as representações sobre pedofilia quase sempre ou são relatados pelas vítimas e seus familiares ou por profissionais da saúde; (iii) Estudos acerca da terapêutica, isto é, que pretendem tanto compreender os motivadores (psicológicos, biológicos, sociais) da pedofilia, da violência sexual e das relações sexuais intergeracionais quanto desenvolver estratégias de intervenção para diminuir ou cessar sua ocorrência. Assim, é importante apresentar, mesmo que sucintamente, os principais argumentos destes três eixos de compreensão das relações sexuais que envolvem adultos e crianças/adolescentes.

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Primeira ênfase: História social da sexualidade e a construção moderna da pedofilia Relativo aos estudos teóricos sobre a história social da sexualidade é significativo esclarecer que a argumentação sobre a sexualidade das ou envolvendo crianças e adolescentes não se desvincula da construção da ideia moderna de sexualidade e família (Flandrin, 1988; Foucault, 1997). É durante os séculos XVIII e XIX que a sexualidade foi reconfigurada em termos discursivos e práticos como sendo uma vivência restrita à esfera da domesticidade do ambiente familiar, restrita à função procriativa biológica (de novas crianças) e replicadora (de papéis sociais e de comportamentos), tendo na família nuclear seu principal emblema e guardião. Fundamental neste processo é a reordenação da vivência da sexualidade, principalmente no que se refere às figuras da mulher/mãe (que deve ser casta, bondosa, fiel, cuidadosa do marido e dos filhos advindos do casamento) e do homem/pai (provedor do lar e zeloso dos seus dependentes) que tinham no casamento a legitimação da vivência sexual. Assim, mulheres e crianças não deveriam viver suas sexualidades e manter relações sexuais até o casamento, sendo, contudo, permissível aos homens jovens manterem amantes e concubinas antes, durante e após o casamento. A dupla moral sexual (Durham, 1983) regia a relação entre os gêneros e entre as gerações e distribuía, portanto, possibilidades diferenciais de viver a sexualidade para homens, mulheres, jovens e crianças. É importante enfatizar que as relações sociais e sexuais não se limitam e se restringem às de gênero: as relações etárias (intergeracionais) também ajudam a organizar o estrato social, e no que se referem à sexualidade as crianças e adolescentes podem ser assemelhados às mulheres – sua sexualidade é de espera pela vida adulta e casamento, momento em que poderão usufruir das relações sexuais.

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Disso resulta que os que escapam deliberada ou desavisadamente deste modelo de organização da sexualidade (na vida adulta e entre adultos) e da união (casamento) devem ser excluídos da sociedade ou ser por ela corrigidos: mulheres ninfomaníacas, crianças com apetites sexuais precoces, adolescentes onanistas, homens agressivos no tocante às regras de aproximação ao sexo oposto e muitos outros devem ser alvo de sanções. Não à toa, é naquele mesmo período histórico (meados até o final do século XIX) que ocorre não apenas a catalogação, mas também a proliferação das denominadas perversões sexuais e dos desviantes da sexualidade (Lanteri-Laura, 1994; Roudinesco, 2008; Vigarello, 1998). Aqui se encaixa o perfil do pedófilo enquanto doença. Conforme explicita Ducharme (2009), o termo pedofilia (do grego paid, criança, e phileo, amor) significa o amor pelas crianças e designa, mais precisamente, a necessária atração sexual pelas crianças, qualquer que seja seu sexo. Tal fenômeno difere da pederastia (ancestral da homossexualidade; também do grego paid, criança, e érastès, amante), uma relação de instrução e de aprendizagem que na Grécia antiga ocorria de maneira consentida entre um homem adulto e um adolescente/jovem do sexo masculino sem obrigatoriamente haver (mas, por muitas vezes, englobando) relações sexuais. Essa é uma distinção essencial: a pederastia original e historicamente definida era uma relação consentida de aprendizagem e de inserção social por meio da qual o homem adulto socializava e apresentava o jovem homem à sociedade grega após um complexo jogo de trocas de presentes e de favores nas quais relações sexuais poderiam ocorrer entre o érastès (o que ama) e o éronème (o amado), relações sexuais sempre consentidas por ambos e ocorridas até um momento específico da vida do jovem homem, o início da puberdade, quando eram rompidas e tornadas proibidas. Já o pedófilo, que segundo Vigarello (1998) é termo especificamente cunhado no século XIX,

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designaria e precisaria uma personalidade (uma subjetividade e uma interioridade psicológica com características delimitadas) própria aos indivíduos que em busca de satisfações sexuais não respeitavam o livre consentimento do parceiro criança, representando a derrisão e o descontrole de uma sexualidade aproximada a animalidade, não raro utilizando de vis estratagemas e violência física para alcançar seus objetivos (Lowenkron, 2007). O conceito de pedofilia, portanto, está intimamente relacionado ao conceito moderno de (proteção da) infância e de incapacidade infantil em escolher e ser plenamente responsabilizada por seus atos. Todavia, pederastas e pedófilos partilhariam características semelhantes e diferenciais: assemelham-se no que diz respeito à possibilidade de manutenção de relações sexuais com crianças; porém, diferem quanto ao objeto elegido e agente ativo (apenas homens, na pederastia; homens e mulheres, na pedofilia) e quanto ao consentimento do parceiro sexual (consentido na pederastia grega; não consentido na pedofilia). Ademais, a pedofilia na modernidade, diferentemente da pederastia, seria uma relação não apenas sexual, mas eminentemente de violência (em todos os sentidos) entre adultos e crianças/adolescentes que não tem por finalidade a manutenção de um laço social, mas simplesmente a pura satisfação das pulsões sexuais, não raro envolvendo dominação e maus-tratos daqueles considerados incapazes de plena decisão e responsabilização pelos seus atos e escolhas (as crianças) (Lowenkron, 2007). Daí as razões pelas quais a pedofilia ser considerada pela Organização Mundial da Saúde um desvio da preferência sexual (predileção sexual de adultos por crianças e adolescentes, quando o considerado normal e adequado seria por outros adultos). Todavia, a pedofilia não é considerada um crime autônomo pelo Código Penal Brasileiro em vigor (Brasil, 2012), mas a menoridade da vítima é uma das muitas agravantes possíveis. Neste sentido, um dos parâmetros estabelecidos na Modernidade para a caracterização de um ato de pedofilia é a idade

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da vítima, ou melhor, a idade de consentimento esclarecido4 nas relações sexuais com adultos ou com outras crianças/adolescentes (Waites, 2009), ou seja, sua suposta situação de incapacidade ou capacidade relativa de escolha e responsabilidade plena que, em termos etários no Brasil, convencionou-se delimitar até os 18 anos de idade pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (criança até os 12 anos e adolescente entre os 12 e 18 anos) e 14 anos pelo Código Penal Brasileiro. Assim, um dos maiores entraves quando se discute as definições legais ou do senso comum de pedofilia e a delimitação da faixa etária da vítima é definir de maneira clara o que exatamente é uma criança/adolescente – ou, em outros termos, supor que sempre há violência ou coerção nas relações sexuais envolvendo adultos e crianças/adolescentes. Desta discussão não podem ser excluídos os apontamentos de Ariès (1981) sobre o sentimento de infância, fenômeno que na modernidade está intimamente relacionado ao ideal de família: se a família e a vivência legítima da sexualidade só podem ocorrer entre o casal heterossexual adulto constituído e legalizado pelo matrimônio (heteronormatividade ou heterossexualidade compulsória), e se o matrimônio é o processo social que por excelência visa à reprodução biológica e simbólica, a descendência deve ser tanto preservada da lassidão sexual que pode ser perpetrada por agressores quanto ser socializada segundo os ideais da família nuclear – pois segundo teorias biológicas e psicológicas do desenvolvimento humano, a sexualidade da criança maturará no tempo certo, na puberdade (entrada na vida adulta), e será vivida na vida adulta visando formar novas famílias e novos descendentes, e qualquer adiantamento (consentido ou forçado) nessa maturação sexual é considerado capaz de traumatizar a criança. Idade de consentimento, ou seja, idade abaixo da qual o indivíduo seria incapaz de compreender as responsabilidades e consequências dos seus atos, incluindo os relativos às relações sexuais. 4

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Em suma, não se espera nem que os adultos violem sexualmente as crianças nem que as crianças e adolescentes sejam coniventes com ou mesmo decidam por manter espontânea e esclarecidamente relações sexuais. A criança, figura construída na história, é o ente precioso que deverá ser tão mais amado quanto protegido porque será o portador futuro das regras de vivência social. Segunda ênfase: A constituição de perfis de agressores e vítimas na pedofilia Por sua vez, o segundo grande agrupamento é concernente aos estudos sobre as perspectivas, opiniões, impressões e representações dos envolvidos em casos suspeitos ou comprovados de ocorrência de relações sexuais entre adultos e crianças/adolescentes, tanto em casos de relações sexuais a contragosto e forçadas como em casos de consentimento. Segundo Sales (2003), a maioria desses estudos restringe-se à coleta de representações dos próprios vitimados, dos seus familiares e dos agentes institucionais responsáveis por prever e cuidar dos vitimados (tais como profissionais da educação, da saúde, da segurança pública, entre outros) em detrimento dos acusados adultos. E a maioria desses estudos destaca os danos reais e potenciais concernentes a essas situações e às opressões as quais as vítimas crianças/adolescentes necessariamente são submetidas. Raramente são investigados os adultos e crianças/adolescentes que dizem manter relações sexuais consentidas entre si e mesmo os adultos agressores que preferem crianças como parceiros sexuais, visto o tabu que essas situações representam – alguns exemplos são as investigações de Sandfort (1982), Leahy (1996) e Nelson e Oliver (1998) que, entrevistando indivíduos que na infância mantiveram relações sexuais com adultos, atestam que consentiram com esses atos e sentiram

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enorme prazer nessas relações sem que, contudo, essas experiências afetassem seu desenvolvimento psicológico posterior ou causassem sofrimentos e traumas. Essa limitação existente em relação às pesquisas que abordam diretamente os denominados agressores sexuais ou aqueles (adultos e crianças) que mantêm relações consentidas são reflexos de uma dificuldade real de acesso a esses sujeitos que receiam a exposição pública. Mesmo assim e diante dessa limitação de acesso ao campo, para Petitot (2006), dois argumentos e representações ganham destaque. O primeiro sugere que a criança, em maior ou menos grau, teria facilitado ou consentido com as relações sexuais com adultos em troca de presentes, favores e afetos, ou seja, que o consentimento foi motivado não por um evidente esclarecimento próprio das suas faculdades racionais, mas sim por outro interesse; uma possibilidade de compreensão deste argumento é a ideia generalizada (mas construída historicamente) de que se a sexualidade é um dos bens pessoais e íntimos mais preciosos que se possui e cedê-lo ou deixá-lo possuir por outrem (por aquiescência ou por descuido e falta de resistência) equivaleria a um drástico rompimento com as normas sociais (Petitot, 2006), visto que as crianças e adolescentes não devem manter em qualquer hipótese relações sexuais. O segundo argumento, também balizado pela mítica da família nuclear e os regramentos que ela distribui, seria o de que apenas um homem adulto doente, perverso, monstruoso, destituído de sua plena razão trocaria a naturalidade das relações sexuais com mulheres adultas por crianças e adolescentes (Petitot, 2006). Ou seja, há dificuldade e resistência em atribuir algum grau de aceitação àqueles que rompem com a organização não só de gênero, mas também etária da sexualidade, e as considerações são tecidas em maior volume em torno do agente adulto do que do agente/paciente criança. Para haver uma melhor compreensão dessa temática, é preciso, portanto, distinguir entre a utilização e consequência dos

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termos pedofilia (relações sexuais abusivas ou violentas ou que, mesmo quando consentidas pelas crianças, ocultaria uma impossibilidade de plena compreensão) e relações sexuais intergeracionais (que envolvem tanto as relações sexuais violentas e as consentidas entre adultos e crianças/adolescentes e entre as crianças), sendo que na Modernidade, por razões históricas, houve prevalência e destaque para a pedofilia. Assim, é preciso um debruçar mais aprofundado sobre os dois argumentos anteriormente apresentados, pois há um elemento que os une: a suposição de que a escolha (da criança/adolescente) em ceder ou (do adulto) em corromper sexualmente a infância seria somente de ordem pessoal (tanto faz se consciente ou inconsciente, visto que é a apreciação individual que toma relevância nesta perspectiva), apagando ou negando todo um complexo jogo histórico social e cultural que auxilia a compreender esse fenômeno delimitado pelas regras de contato sexual entre e para os gêneros e entre as faixas etárias. O conceito de ideologia, tal como definido por Chauí (2004), bem pode ajudar a desvelar esse movimento, pois por ele se compreende a responsabilização individual (resultante de um sistema de produção capitalista que enfatiza a meritocracia e o protagonismo individual) por fenômenos cuja gênese e organização são, na realidade, coletivos e sociais. Em outras palavras, por ideologia se compreende a tentativa de delegar toda e qualquer responsabilidade da ação e decisão apenas ao indivíduo, considerando que seus atos são frutos de escolhas racionais e conscientes (portanto, ponderadas com antecedência) ou resultados de características que lhe são naturais e imutáveis – furtando a uma discussão coletivamente organizada e aprofundada sobre as relações históricas constitutivas da sociabilidade no que tange à sexualidade entre os gêneros e intergeracionais. Mas essa estratégia (ideologia) é eficaz, e a proliferação das categorias de desvios e desviantes sexuais proposta tanto pela psicanálise quanto pela psiquiatria é extensa, e dentre a ca-

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tegoria de pedófilos e violadores de crianças/adolescentes haveria muitos tipos, subtipos e variações: pedófilo abusador, pedófilo molestador (molestador situacional ou pseudopedófilo; molestador situacional regredido; molestador situacional inescrupuloso; molestador situacional inadequado), pedófilo molestador preferencial (molestador preferencial sedutor; molestador preferencial sádico; preferencial introvertido), psicopata e doente mental (Serafim, Saff, Rigonati, Casoy, & Barros, 2009). Chama a atenção que nesta ampla categorização mesmo quem tenha apenas desejado/fantasiado relações sexuais com crianças sem nunca ter partido para o ato pode ser classificado pedófilo (APA, 2013a; APA, 2013b)5. Sob essas perspectivas, exclui-se inclusive a variabilidade das infâncias, pois as crianças são tomadas como uma categoria coesa – sempre carente de proteção por serem todas incapazes da utilização da plena razão (Lima, 2009). Tal linha de argumentação não deixa de ser interessante por promover uma possibilidade de entendimento do fenômeno, mas é uma compreensão parcial tanto por enfatizar demasiadamente as características pessoais (formato do crânio, anatomia cerebral, traumas infantis, taras e predileções sexuais delimitadas pela história de vida, entre outros) como por não considerar suficientemente os elementos culturais contemporâneos (Felipe, 2006) que ajudariam a compreender a complexidade do fenômeno das relações sexuais envolvendo adultos e crianças/adolescentes. Neste sentido, para Felipe (2006), há tanto uma evidente preocupação social em coibir relações sexuais entre adultos e crianças (por isso o governo e a sociedade civil criam inúmeros mecanismos para gerenciar, controlar e coibir o abuso e a O DSM-IV foi originalmente publicado em 1994 e, depois disso, reeditado em vários outros anos; no DSM-V, publicado em 2013, os critérios de definição diagnóstica dessa parafilia continuaram os mesmos, mas a terminologia passou de pedofilia para pedophilic disorder; em suma, é uma desordem que acomete o (e é originária do) indivíduo, furtando-se a uma discussão sobre as influências sociais, históricas e contextuais relacionadas a esse fenômeno. 5

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exploração sexual de crianças) quanto há, ao mesmo tempo, uma ampla exibição nas mass midia dos corpos infantojuvenis como objetos de desejo, sedução e consumo por parte dos adultos. Há, portanto, um processo de pedofilização enquanto prática social contemporânea que concorre com a produção dos indivíduos denominados pedófilos e crianças/adolescentes que se predispõem aos atos sexuais. Em outras palavras, pedofilização enquanto prática social contemporânea pode ser entendida como o constante “(...) oscilar entre diferentes perspectivas teóricas e políticas sobre a infância, conferindo ora um lugar assexuado e sacralizado para a criança, ora um posicionamento permissivo e sedutor, sendo ela condenada como possível inspiradora da iniciativa sexual que existe sobre si” (Nunes, 2009, p. 23), tal como se pode ver em diversas imagens de revistas, anúncios de propagandas, programas televisivos e músicas nos quais os corpos infantis são tornados desejáveis e elevados ao status de objetos de idealização, apropriação e consumo. Terceira ênfase: Terapêutica (consequência da falsificação ideológica) Não à toa, é a partir desse modelo de compreensão (individualização) que são propostas as principais intervenções terapêuticas para a pedofilia, para vitimização sexual de crianças e adolescentes e para aquelas crianças e adolescentes que dizem consentir com relações sexuais (com adultos ou com outras crianças), terceiro grande eixo de estudo deste fenômeno. A gama de possibilidades interventivas é vasta, desde a simples exclusão social por meio do encarceramento até a castração química ou física dos supostos agressores sexuais de crianças/adolescentes, cujo objetivo é limitar os atos dos que infringiram as normas sociais e legais – sem, contudo, compreender como e por quais razões funcionam determinadas

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regras sociais estruturantes da sexualidade (Scherer & Scherer, 2000). Não escapam dessa lógica inúmeros dispositivos psicoterapêuticos que pretendem (por meio de atendimentos ocorridos em ambientes controláveis e controladores) normatizar os sujeitos envolvidos neste fenômeno. Daí o interesse da literatura especializada, tal como consta em Baltieri e Andrade (2008), Chagnon (2008) e, principalmente, Drapeau e Brunet (2003), tanto em compreender o que se passou com a suposta vítima e quais serão as repercussões futuras (físicas e emocionais) das relações sexuais consentidas ou da vitimização sexual quanto compreender quais seriam as razões e motivações individuais dos agressores que explicariam a pedofilia, por vezes justificadas segundo uma cronologia de influências que remonta a própria infância do adulto agressor. Talvez a individualização das explicações e das propostas interventivas individualizadas ocultem uma questão anterior e mais significativa: a maneira pela qual estão distribuídos (e, portanto, organizam as práticas) os direitos de adultos e crianças/adolescentes na sociedade contemporânea. Waites (2009), ao comentar as clássicas formulações sobre cidadania de T. H. Marshall, acrescenta à tripartição dos direitos civis, políticos e sociais uma nova categoria, os direitos sexuais (intimate citizenship ou sexual citizenship), dado que após as décadas de 1960 e 1970 e as alterações ocorridas na sociedade no que se refere à vivência da sexualidade (revolução sexual; separação da sexualidade e reprodução biológica; liberalização dos costumes; início do desprendimento da sexualidade da conjugalidade no casamento; movimentos minoritários gays, lésbicos e queer, entre tantos outros) seria inconcebível considerar a plena assunção de direitos e cidadania desconsiderando o autodomínio sobre corpo e sobre a sexualidade. Contudo, para Waites (2009), apenas referir que cidadania envolve todas essas esferas de vivência que englobam a sexualidade é limitante, posto que há contradições nas práticas

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localizáveis na sociedade atual: mesmo que a Organização das Nações Unidas, desde 1959, com a Declaração dos Direitos das Crianças, reconhecem-nas como sujeitos portadores de plenos direitos, nem todos os direitos lhes são a segurados, o que na realidade as posiciona como detentoras de menos direitos (portanto, menos sujeitos, menos cidadãs) quando comparadas aos adultos. Isso claramente se reflete na discussão sobre a sexualidade: se os direitos protetivos das crianças e adolescentes contra vitimizações e abusos sexuais são extremamente importantes e amplamente reconhecidos e difundidos, contudo, os direitos de prestar pleno consentimento ao envolvimento em práticas sexuais (tal como reservado aos adultos) lhes são tolhidos, pois se subentende que não são capazes de pleno entendimento e autonomia até determinada idade, geralmente a mesma idade que demarca sua saída da vida infantil ou púbere, ou seja, quando não são mais crianças, mas sim jovens adultos. Somado a isso, há a questão de que quando se limita a legitimação das práticas sexuais a partir e após uma idade específica (age of consent, idade do consentimento), a capacidade de autodeterminação e escolha (justamente o que garante o status de cidadãos de direitos) dos adultos também fica comprometida, posto que determinadas escolhas tornam-se moral e legalmente proibidas (tal como manter relações sexuais consentidas com uma determinada categoria social, crianças) e os recoloca em uma perspectiva de anormalidade (não-plena capacidade de autodeterminação e assunção das responsabilidades) que deve ser corrigida. Novamente, neste ponto, os organismos internacionais não bem distinguem entre pedofilia e relações sexuais intergeracionais, reduzindo todos os fenômenos à primeira possibilidade. Esse último argumento é expresso por Alderson (1994) da seguinte maneira, sendo necessário “(...) criticar o sujeito racional autônomo da maioria dos filósofos iluministas, argumentando que a caracterização da autonomia racional está socialmente

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descontextualizada e impenetrável às emoções não reflete as características situadas das tomadas de decisões éticas”6, posto que a competência de consentir não deve ser tomada como universal e/ou abstrata, mas sim produzida em contextos sociais específicos. Como dito anteriormente, para Waites (2009), um esclarecimento se faz necessário neste ponto: não se trata de legitimar quaisquer ocorrências de relações sexuais entre adultos e crianças/adolescentes, visto que relações sexuais obtidas por meio de constrangimentos e coerções contra qualquer indivíduo são consideradas atos de violência e, portanto, passíveis e necessárias de limitações e responsabilizações. Todavia, o que se discute aqui é a premissa de que nem todas as relações sexuais ocorridas entre adultos e crianças/adolescentes podem ser classificadas de antemão como violentas e monstruosas que envolvem incapazes (as crianças/adolescentes) e algozes (adultos aliciadores) – pedofilia. Não se trata também de estimular que tais tipos de relações sexuais sejam normatizadas e incentivadas, longe disso: trata-se de compreender como os processos históricos e sociais produzem, por meio de complexas relações de poder, figuras sociais tais como crianças, adultos, homens, mulheres, vítimas, agressores, aliciadores, pedófilos, cidadãos e sujeitos de direitos, entre outros, que em situações específicas podem decidir livre e independente de suas idades por manter relações sexuais (relações sexuais intergeracionais), mas que são socialmente e legalmente designadas como desviantes – fruto de processos sociais de constituição da infância moderna e de apagamento da pedofilização social. Não se trata de uma liberalização das relações sexuais pedofílicas nem das relações sexuais intergeracionais, mas de uma tentativa de compreensão do funcionamento

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social que particulariza e individualiza e, portanto, limita o entendimento desse fenômeno. Waites (2009) condensa essas ponderações: (...) as crianças são situadas em posições estruturais de desvantagem na hierarquia social, particularmente vulneráveis em relação aos riscos concernentes ao comportamento sexual. Isso requer que sejam protegidas [...] Isso sugere que as idades legais para o consentimento que organizam formas apropriadas de cidadania envolvem um difícil equilíbrio entre a proteção dos direitos das crianças e os direitos de autodeterminação dos adultos (p. 31)7

Portanto, ao contrário do que as propostas terapêuticas mais usuais enfatizam, não podemos limitar a questão do tratamento ao indivíduo denominado pedófilo ou a criança/adolescente incapaz de consentir de maneira plena, mas devemos ampliar a questão para compreender como são socialmente produzidas as figuras do pedófilo e da criança/adolescente a serem protegidas. Reitera-se que não se trata de liberalização (ou derrocada) dos costumes, mas sim da compreensão de como construímos espaços sociais e figuras de (con)vivência. Afinal, o que é mesmo o pedófilo (e a criança vitimada)? Em suma, essas três grandes linhas de investigação sobre relações sexuais entre adultos e crianças/adolescentes (sejam elas consentidas, sejam fruto da violência) podem, por semelhança, segundo Teles e Melo (2005), serem inseridas

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naquilo que se convencionou denominar de campo de estudos das relações de gênero – estudos sobre a heteronormatividade. Todavia, a tradição acadêmica quase sempre as insere na subárea da violência de gênero, o que é um equívoco e limitação por não problematizar adequadamente as relações entre violência e consentimento dos envolvidos, quaisquer sejam suas idades – ou seja, os estudos sobre relações sexuais intergeracionais são escassos. Resgatando as importantes considerações de Felipe (2006) em seu texto Afinal, quem é mesmo o pedófilo?, podemos questionar afinal, o que é mesmo o pedófilo? Segundo o exposto até o momento, compreendemos que o pedófilo não é apenas um indivíduo possuidor de traços de personalidade (inatos ou adquiridos em sua história de vida), mas sim uma resultante de complexas relações de poder que distribuem papéis (e expectativas de cumprimentos de papéis) para adultos, jovens, crianças, homens e mulheres, enfim, para as diversas categorias sociais. Em suma, atribuir uma interioridade psicológica que por si seria suficiente para definir a personalidade do indivíduo pedófilo é negar o papel e influência que o coletivo social enquanto espaço de negociação de valores e de produção de inclusões e exclusões possui neste processo. Destarte, nesta discussão, o apagamento ideológico pretende basicamente dois objetivos: em primeiro lugar, individualizar a escolha do parceiro sexual por parte do adulto – visto que as crianças/adolescentes não são, por razões ora biológicas, ora psicológicas, ora morais, capazes de eleger racional e prudentemente objetos/parceiros sexuais; e nesta individualização, em segundo lugar, localizar e restringir as responsabilizações e consequências apenas ao indivíduo agente/agressor, obscurecendo os incentivos sociais explícitos e implícitos que corroboram com a erotização da infância e com as práticas sexuais envolvendo crianças/adolescentes, sejam elas forçadas e

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a contragosto (violência), sejam elas consentidas (e quais as condições de ocorrência desse consentimento). Tal apagamento ideológico é extensível ao papel socialmente delegado às crianças que, desde o Iluminismo, são consideradas como não-portadoras de razão suficiente para decidir sobre seus atos, inclusive os sexuais, visto que essa incapacidade os impede de consentir livremente nos momentos de tomadas de decisões. Para Waites (2009), desde o século XVII (…) consentimento implica concordância voluntária, assumida por um sujeito com suficiente grau de vontade própria e capacidade de ação. Para ser considerado válido, o consentimento deve estar baseado num critério pré-determinado relacionado ao contexto social e o status do agente [...] Quase sempre o consentimento esclarecido esteve historicamente associado às competências de decisões racionais num contexto de livrearbítrio – atribuídas aos homens adultos e brancos. Crianças, tal como mulheres, historicamente foram determinados por seus corpos, e assim incapazes de exercer ações de controle sobre esses corpos. Consequentemente, onde a família patriarcal foi a instituição central, o consentimento de mulheres e crianças não são consideradas relevantes em relação aos comportamentos sexuais (p. 19)8.

A delimitação histórica da idade (e consequente capacidade) de consentimento para relações sexuais é tão significativa para compreender a configuração moderna da figura do pedófilo e da criança/adolescente sem capacidade de consentir que até o século XVII, segundo Flandrin (1988), foi necessário estabelecer leis para coibir as práticas sexuais envolvendo não somente crianças e adultos, mas também as que ocorriam entre crianças – ou seja, elas aconteciam e participavam das práticas sociais e, até aquele momento, não eram objetos de legalização e proibição 8

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porque eram consideradas normais e aceitáveis. Além disso, Vigarello (1998) esclarece que a terminologia pedófilo passa a ser recorrente no vernáculo e na psiquiatria apenas no século XIX, anteriormente não havendo designação precisa para aqueles adultos que se relacionavam carnalmente com crianças/adolescentes. E, ademais, tal como exposto anteriormente, a figura da criança compreendida como indivíduo em situação de desenvolvimento e carente de cuidados e proteções da família nuclear e do poder público é, para Ariès (1981), construção histórica recente, sendo que nos séculos anteriores ao XVII as distinções (de responsabilidade e de capacidades) entre adultos e crianças praticamente inexistiam. Para Ricas (2006), não se pode, portanto, limitar a discussão sobre pedofilia e pedófilos à violência e aos indivíduos adultos agentes dessas relações sexuais e tampouco excluir desse debate a análise da categoria crianças/adolescentes como nãoportadores (ou portadores limitados) de racionalidade, inteligibilidade e de capacidade de consentimento informado quando de suas participações em relações sexuais com outras crianças ou com adultos. Trata-se, portanto, de investigar com profundidade o imaginário sobre a infância e os processos de pedofilização enquanto prática social contemporânea, dado que, assim, há a garantia de entrecruzamento entre as temáticas pedofilia, pederastia, violência sexual, amor e afetos destinados às crianças e adolescentes, infância, dupla moral sexual, heteronormatividade, relações sexuais intergeracionais que podem ser consentidas (mesmo que legalmente proibidas) ou frutos de violências, relações afetivas e de prazer, processos de exclusão e de normatização social. Essa é uma das contribuições que a Psicologia Social pode apresentar ao tema. Tais conhecimentos, que são históricos, socialmente localizados e coletivamente construídos, podem auxiliar a organizar novas ações e novas práticas, havendo possibilidade de compre-

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ender a estrutura ideológica de uma sociedade, ou seja, as maneiras pelas quais tanto os conhecimentos são constituídos quanto são utilizados para orientar e justificar práticas de determinados grupos sociais (Campos, 2012; Foucault, 1978; Zizek, 1992). Em suma, adultos e crianças que se engajam em relações sexuais não são somente indivíduos (com interioridades constituídas e imutáveis): são resultados de complexos processos sociais e de relações de poder – suposição que Butler (2012) define como a anterioridade da performatividade diante do (sujeito) performer – e, por isso, não podem ser simplesmente tarjados de pedófilos, monstros, aliciadores ou descuidados e incapazes. Pedofilização enquanto prática social contemporânea: Contra-ideologia como prática em saúde Todas essas considerações nos conduzem a uma última problematização: o que fazer diante de episódios de relações sexuais envolvendo crianças/adolescentes e adultos? Haveria distinção de intervenções entre as situações de evidente violência sexual (relações sexuais cometidas a contragosto das vítimas) e as situações nas quais há consentimento de ambas as partes? Como considerar que crianças – historicamente submetidas a relações de poder que condicionam e limitam suas decisões, inclusive no tocante à sexualidade – podem (e mesmo se podem), em situações específicas, consentir com relações sexuais com outras crianças, jovens e adultos sem que isso seja necessariamente danoso para seu desenvolvimento (relações sexuais intergeracionais)? Se muitas dessas questões necessitam de estudos e investigações clínicas para serem respondidas, a consideração da categoria de análise histórica pedofilização como prática social contemporânea pode ser muito útil para esclarecer a temática em questão, considerando que Felipe (2006) define esse processo como a dualidade inerente entre as práticas sociais (e legais) de

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proteção da infância e as produções (midiáticas) de desejos sobre o corpo infantil, dialetizando cuidados e instigações para com o corpo infantil; e mais, pois assim também se permite retirar do polo passivo (e alienado) tanto a sociedade (que atribui responsabilidade apenas aos adultos diretamente envolvidos) quanto as crianças/adolescentes – considerando novas esferas de compreensão do fenômeno e de responsabilização. Para concluir, a discussão que parte do indivíduo pedófilo e da necessária violência, passando pela consideração do (possível) consentimento das crianças/adolescentes até desembocar em um processo social de pedofilização não nega a evidente necessidade de proteção às crianças nem propõe sua plena autodeterminação em qualquer esfera (inclusive a sexual), mas problematiza um âmbito muito específico da vivência (podendo ser estendido para outros espaços e relações sociais): a construção da cidadania e da autonomia das crianças, dos adolescentes e dos adultos de uma sociedade, ou seja, auxilia a discutir a construção de poder em uma sociedade – isso sim, uma questão que repercute em inúmeros âmbitos sociais, tais como as políticas de saúde, de educação e as políticas sociais em geral. Referências Alderson, p. (1994). Children’s decision in health care and research: edited conference proceedings. London: institute of education, social science research unit. American psychiatric association (2013a). Dsm iv: diagnostic and statistical manual of mental disorder. Recuperado de http://virtualpsy.locaweb.com.br/dsm.php?ltr=p American psychiatric association (2013b). Dsm v: diagnostic and statistical manual of mental disorder. Recuperado de http://psychcentral.com/blog/archives/2012/12/02/final-dsm-5approved-by-american-psychiatric-association/

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Humanização e cuidado em saúde: Contribuições da Psicologia para esta parceria no contexto do adoecimento grave Karin A. Casarini Carmen Lúcia Cardoso Nas últimas décadas, o desafio de transformar a qualidade da assistência pública em saúde oferecida no país tem implicado no desenvolvimento e ampliação de conceitos e de recursos humanos de forma a promover o reconhecimento da alteridade e da importância do diálogo como facilitadores da realização de um cuidado em saúde integral. Nesta direção, as publicações científicas refletem modificações realizadas nas formas de compreender os processos de humanização e de cuidado em saúde, no sentido de ampliar a identificação da complexidade das ações de saúde e de seu potencial de auxílio (Deslandes & Mitre, 2009). Tal identificação manifesta-se pela inclusão progressiva de dimensões necessárias à humanização do cuidado, abarcando desde a organização e estrutura física das instituições até questões sociopolíticas (Oliveira & Macedo, 2008). Estas dimensões são entendidas como elementos pertencentes ao trabalho de oferecer ajuda especializada e, dependendo do modo como são articuladas, podem contribuir, ou não, para a efetivação de um cuidado humanizado. Paralelamente, a noção de cuidado em saúde também vem sendo discutida, incluindo, entre outras, as propostas de mudanças nas concepções sobre a pessoa adoecida, a legitimidade de seus desempenhos no processo de produção do cuidado e as diferentes formas de significação da realidade vivida nos ambientes de atenção à saúde (Ayres, 2007; Merhy, 2000).

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As discussões sobre os conceitos de humanização, de cuidado à saúde e sobre as formas de aplicá-los no cotidiano dos serviços de saúde se aproximam de perspectivas psicológicas, na medida em que buscam considerar a subjetividade daqueles que os frequentam e compõem. Levando em conta que a Psicologia encontrou neste âmbito um espaço para sua inserção, como prática profissional, cabe refletir sobre possíveis contribuições que tal área pode oferecer. Tomando estas considerações como cenário, o objetivo deste capítulo é refletir sobre as ações humanizadas, apresentadas em situações de adoecimento grave, a partir do instrumental teórico-técnico da Psicologia, de modo a favorecer a articulação do mesmo com as noções de humanização e cuidado em saúde. Espera-se que tais reflexões possam contribuir para a ampliação das ações psicológicas presentes no processo de humanização do cuidado, esclarecendo seu potencial de ajuda e sua vinculação ao corpo de saber psicológico. Os temas e exemplos tratados neste capítulo fazem parte do estudo realizado para a elaboração da tese de doutorado da primeira autora (Casarini, 2013), orientada pela segunda. Humanização e cuidado em saúde De acordo com Deslandes e Mitre (2009), as ideias sobre humanização do cuidado em saúde foram compreendidas e tratadas de modos diferentes ao longo das últimas décadas. Entre os anos 1950 e 1970, mencionar a necessidade de humanização de um serviço de saúde era interpretado como um julgamento negativo sobre o trabalho ali realizado, resultante da atribuição da responsabilidade dos profissionais por um cuidado permeado por maus-tratos. A partir dos anos 1980, as ideias sobre humanização foram, progressivamente, ligando-se à concepção de cuidado integral à pessoa adoecida, referindo-se à incorporação de outros elementos, que não os estritamente biológicos, nos tratamentos das doenças. Neste período, frequen-

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temente, a humanização era entendida segundo uma ótica caritativa, na qual a pessoa adoecida era vista como vulnerável e dependente, despertando a compaixão dos profissionais e requerendo ações de cunho assistencialista e paternalista. Dessa forma, o movimento dos profissionais era o de reconhecer o sofrimento das pessoas adoecidas, seja pela doença apresentada, seja pelas consequências dos tratamentos necessários, e buscar por alguma forma de alívio do mesmo. Porém, estas ações não implicavam em um questionamento sobre a hierarquização das relações em saúde e sobre a autonomia da pessoa adoecida, sendo que os profissionais permaneciam como detentores do saber e da capacidade de tomada de decisões. As ações humanizadas, assim, eram defendidas e executadas de modo pontual, sendo geradas pela mobilização emocional despertada nos atendimentos em saúde, sem contar com uma sistematização ou definição de seus objetivos e resultados (Deslandes & Mitre, 2009; Oliveira & Macedo, 2008). Nesta época, ainda, no campo da produção científica, iniciaram-se estudos que buscavam o esclarecimento de fatores responsáveis pela (des)humanização do cuidado, como a formação prioritariamente biomédica dos profissionais, as dificuldades de comunicação e de acesso às informações no processo terapêutico, as relações hierárquicas e de poder presentes na produção do cuidado e os fatores subjetivos e psicológicos envolvidos no adoecimento (Oliveira & Macedo, 2008). Este esclarecimento de fatores que interferiam no processo de humanização do cuidado contribuiu para o encaminhamento de estudos sobre ações humanizadas como recursos terapêuticos e como instrumentos de melhoria das condições de trabalho dos profissionais de saúde. No Brasil, pesquisas sobre humanização começaram a ser realizadas no período entre os anos 1970 e 1980 (Deslandes & Mitre, 2009; Oliveira & Macedo, 2008). Elas, inicialmente, tratavam da descrição dos fatores (des)humanizantes presentes nos

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serviços de saúde, das alterações emocionais apresentadas por pessoas adoecidas em contextos de saúde e dos modos de interação presentes nas equipes de saúde. Na década de 1990, as pesquisas tratavam de investigações sobre as possíveis associações entre alterações emocionais apresentadas por pessoas adoecidas e sucesso terapêutico, apontando para o potencial de ajuda oferecido pela incorporação de ações humanizadas nas rotinas de atendimento em saúde. Neste sentido, pesquisas e discussões sobre estratégias de acolhimento, comunicação e organização do ambiente hospitalar ganhavam corpo no contexto brasileiro e buscavam oferecer diretrizes de aplicação destas ações (Deslandes, 2004). Seus primeiros resultados apontaram para a necessidade de informar as pessoas adoecidas de modo eficiente, de incluir os familiares no cotidiano dos serviços, com abertura para sua permanência junto à pessoa adoecida, bem como para a importância de conhecer expectativas e dificuldades daqueles envolvidos no cuidado à saúde (Casarini, Gorayeb, & Basile Filho, 2009; Oliveira & Macedo, 2008). Estes elementos passaram a integrar a visão e as ações de um tratamento humanizado. Nos últimos anos, a tendência de compreender a humanização como um conjunto de instrumentos terapêuticos que podem auxiliar no processo de adaptação/recuperação da pessoa adoecida se fortaleceu, ganhando descrições operacionalizadas relativas à sua aplicação (Oliveira & Macedo, 2008). Em 2000, o Ministério da Saúde apresenta o Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH), com o objetivo de promover uma nova cultura de atendimento à saúde, enfocando principalmente mudanças nas relações interpessoais (Brasil, 2000). Em 2004, este Programa é substituído por uma política pública, denominada Política Nacional de Humanização, em uma perspectiva transversal, sendo inserida nas diretrizes de funcionamento do Sistema Único de Saúde (Brasil, 2004). Esta política pública propõe a valorização dos diferentes sujeitos

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implicados no processo de produção do cuidado, o estímulo à autonomia e ao protagonismo, a corresponsabilização e estabelecimento de vínculos solidários (Deslandes & Mitre, 2009). Entretanto, apesar do entendimento sobre a humanização ter se transformado a ponto de se consolidar como diretriz de trabalho em saúde, esta transformação não garantiu um aporte teórico-operacional consensual nem uma demarcação e aplicabilidade definidas e partilhadas pelos serviços de saúde (Deslandes, 2004). Neste sentido, observa-se ainda certa banalização dos desafios apontados pelo processo de humanização, correndo o risco de ser efetivado por meio de um discurso que se torna progressivamente vazio e tecnificado (Deslandes & Mitre, 2009). Destaca-se, assim, a necessidade de descrever e refletir sobre as consequências das ações humanizadas, não só do ponto de vista da melhoria da qualidade do cuidado oferecido às pessoas adoecidas, mas também do potencial de transformação das identidades e dos modos de viver daqueles envolvidos na produção de cuidados. Refletir sobre estes aspectos remete a uma leitura psicológica das ações de saúde, buscando o esclarecimento de aspectos vinculados à formação da pessoa e às repercussões do adoecimento grave sobre a organização psíquica. Psicologia, humanização e cuidado em saúde Pode-se considerar que as ações de cuidado à saúde representam formas de interação, estabelecidas entre pessoas, que não se reduzem somente a um fazer técnico (Merhy, 2000). Elas são portadoras de ideias e concepções sobre o processo de assistência, sobre as pessoas envolvidas no cuidado e sobre a natureza das relações mantidas nos serviços de saúde (Ayres, 2004). Realizar uma reflexão psicológica das ações de saúde implica no esclarecimento de qual antropologia filosófica as orientam, ou seja, de quais concepções de pessoa embasam os

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posicionamentos e atitudes dos profissionais em um serviço de saúde. Nos contextos de cuidado à saúde, influenciados fortemente pela perspectiva biomédica, a concepção sobre a pessoa adoecida tende a ligar-se a uma determinada visão de saúdedoença. De acordo com Ricoeur (1996), a visão predominante é a que entende uma pessoa saudável como detentora de capacidades e possibilidades de desenvolvimento, ou seja, esta é a pessoa que tem condições de pensar, escolher, produzir e transformar sua própria vida. Diante de um adoecimento, esta mesma pessoa passa a ser vista como incapacitada e portadora de um horizonte de possibilidades de viver restrito, determinado pelas características do adoecimento. Ela perde a condição de potência e de transformação de sua própria vida, permanecendo limitada pela configuração da doença e dependente das ações de outros para a continuidade de sua vida. Em uma situação assim configurada, os encontros entre profissionais e pessoas adoecidas são marcados pelo protagonismo do profissional, uma vez que ele é identificado como saudável, capaz e detentor de condições suficientes para direcionar as condutas da pessoa adoecida. Esta concepção de pessoa, ligada à visão de saúdedoença com orientação biomédica, perpassa o modo como ações de saúde são, em geral, apresentadas pelos profissionais. Em uma situação de adoecimento grave, a pessoa adoecida pode ser percebida como desprovida de condições para efetuar julgamentos apropriados sobre o que lhe ocorre, favorecendo a invalidação de seus desempenhos pelos profissionais. Tal configuração das relações de cuidado em saúde pode ser ilustrada pelas situações descritas a seguir. Um homem, de 45 anos, internado em uma UTI para a recuperação de traumas torácicos e secção completa da medula espinhal, resultantes de uma agressão, apresentava solicitações repetidas para ingerir água e para ser coberto com um lençol. Este homem, aqui denominado André, encontrava-se consciente e

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orientado, sem a possibilidade de movimentar seus membros superiores e inferiores, e fazendo uso de ventilação mecânica. Diante de suas solicitações, a equipe de saúde o informa sobre a impossibilidade de ingerir água em função do uso do ventilador mecânico e o “cobre”, levando o lençol estendido até o seu peito. Nesta ocasião, os profissionais consideravam ter atendido às solicitações de André e mostravam-se cansados e confusos com a manutenção da apresentação das mesmas. Esta situação desenvolveu-se ao ponto de uma queixa sobre o comportamento de André ser formulada aos profissionais da Psicologia. Nesta queixa, os profissionais de saúde descreviam suas tentativas reais de promover a satisfação dos pedidos de André e o quanto se sentiam pressionados com sua presença na unidade, uma vez que ele permanecia fazendo os mesmos pedidos, despertando sentimentos de inutilidade, raiva e impotência. Diziam “Mas, ele não entende que não pode. Ele continua pedindo” (sic), “Eu já cobri ele umas três vezes e não adianta...” (sic), e “Ele é mesmo muito custoso, difícil. Manipula a gente” (sic). A partir destas descrições, pode-se questionar o que estava acontecendo naquela situação. Os profissionais realmente apresentavam ações destinadas a cuidar de André e este, em contrapartida, continuava indicando a presença de necessidades insatisfeitas. Esta situação parecia se encaminhar para a formulação de um julgamento sobre André que o colocaria como responsável pelos fracassos das ações de saúde ditas humanizadas, uma vez que ele era custoso, difícil (sic). Ressaltase que não se trata, aqui, de apontar falhas das ações realizadas pelos profissionais, mas de destacar a dificuldade existente para apresentá-las de um modo funcional. Os profissionais realmente buscavam ajudar André diante de suas solicitações, inseridos em um contexto de possibilidades limitadas derivadas de um adoecimento grave. André não podia ingerir água e os profissionais estavam sendo honestos na informação que ofereciam, e, de fato, o tinham coberto com o lençol. Trata-se, antes, de perguntar sobre

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quais elementos podem ter contribuído para que os profissionais apresentassem tais ações diante das solicitações da pessoa adoecida e de refletir sobre os resultados alcançados. Aparentemente, os profissionais estavam orientados pela forma como puderam entender os pedidos de André, de acordo com a visão que traziam do mesmo. Assim, ao considerar que André era uma pessoa doente, incapaz de realizar diversas atividades e destinado a conformar-se àquilo que os outros poderiam autorizar e realizar por ele, a solicitação pela ingestão de água poderia ser solucionada com o oferecimento da informação sobre a natureza da sua proibição, e a solicitação para ser coberto também poderia ser satisfeita com a colocação do lençol sobre seu peito. Dessa forma, o protagonismo era do profissional, que contemplava suas concepções como suficientes para o entendimento e para a tomada de decisões relacionadas à pessoa adoecida. O que pode ter escapado nesta situação é exatamente a perspectiva de André e a potencialidade de seus desempenhos para a satisfação de seus pedidos. Ele relata ao profissional da Psicologia que gostaria de ser coberto até o pescoço, já que possuía sensibilidade somente na região superior dos ombros e pescoço, porém, não teve a oportunidade de mencionar este aspecto do seu pedido aos demais profissionais. Em relação à água, André relatou que sentia sede e queixava-se dela. Ele já havia compreendido que não podia ingerir água, mas ainda assim, sentia sede. Questionou se existiriam outras formas de obter alívio da mesma. Além disso, André relatou que sentia medo de voltar a não conseguir respirar, mesmo usando o ventilador mecânico (fato que havia ocorrido por três vezes em dias anteriores). Assim, a solicitação pela ingestão de água parecia ser uma necessidade que resultava de diferentes fontes: a sede e a insegurança em relação às suas capacidades de manter-se vivo. Neste sentido, considera-se que os profissionais poderiam responder à necessi-

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dade de ingestão de água com a apresentação de diferentes ações, que não só a informação. É o próprio André que oferece sinais daquilo que ele poderia apresentar como condutas que facilitariam a resolução dos impasses vividos em relação às suas solicitações. Quando descreve a forma como o lençol deveria ser colocado sobre seu corpo para que ele se sentisse coberto, André evidencia o quanto mantém ativa e preservada uma capacidade de percepção, discriminação e avaliação do que lhe ocorre, considerando sua condição patológica. Este mesmo movimento se repete em relação à água, quando ele questiona se haveria outras formas de aliviar a sede. Nestas situações, André demonstra a potencialidade para negociar outras formas de satisfação de suas necessidades, por meio de desempenhos próprios suficientes para buscar por uma ação compartilhada entre ele e os profissionais. Dessa forma, aponta-se que a visão do serviço de saúde sobre André diante de tais solicitações pareceu se distanciar daquilo que ele podia ser e restringiu as possibilidades de facilitação de seu desenvolvimento e de sua recuperação. Tal restrição pode ser compreendida como o afastamento dos profissionais da perspectiva da pessoa adoecida e da consideração daquilo que ela pode fazer para auxiliar na resolução de suas necessidades. Tal posição afasta-se, ainda, das concepções contemporâneas de humanização e cuidado em saúde, na medida em que a atenção oferecida aos aspectos não biológicos da pessoa é direcionada por aquilo que o profissional concebe como sendo adequado e possível, sem se ligar a uma construção compartilhada. Neste sentido, a ação de cobrir o corpo ou de oferecer uma explicação pode apresentar-se de modo automatizado e esvaziado, desvinculada da realidade da pessoa adoecida. Pode-se pensar que a superação do automatismo e do esvaziamento das ações humanizadas pode ser buscada por meio de uma postura de abertura à pessoa, seja ela adoecida ou não. Isto pode remeter ao diálogo com uma antropologia filosófica que

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conceba a pessoa como um ser em constante desenvolvimento e portadora de potencialidades que podem ser acionadas a partir de um suporte oferecido pelo ambiente (Winnicott, 1969/1994). Nesta perspectiva, a pessoa é vista como alguém que, mesmo em uma condição de adoecimento ou de suposta restrição de suas possibilidades de viver, pode realizar transformações em si mesma e em sua vida, por meio do reconhecimento daquilo que ainda apresenta como capacidades e dos recursos presentes nos ambientes que a circundam. Especificamente em relação às concepções sobre saúde, relacionadas a essa perspectiva, Ricoeur (1996) afirma que mesmo nos estados saudáveis, as pessoas são constantemente chamadas a negociar com condições limitantes e a buscarem por soluções possíveis dentro de um horizonte delimitado. Dessa forma, todos os humanos, saudáveis ou não, podem ser compreendidos como pessoas que se defrontam com limites e procuram por meios de superá-los a partir das condições que detêm. Aproximar essas concepções de pessoa e de saúdedoença dos contextos de cuidado à saúde pode favorecer o desenvolvimento de ações de ajuda segundo uma lógica em que o protagonismo seja compartilhado entre pessoa adoecida e profissional. O cuidado em saúde, então, é visto como aquilo que pode ocorrer por meio do encontro entre duas pessoas, ou seja, por meio de um contato autêntico e aberto entre ambas, enquanto tais, sem a imposição de uma perspectiva que considera o outro como objeto de intervenção. Neste contexto, cabe refletir sobre ferramentas presentes na Psicologia que auxiliem a desenvolver modos de interação que favoreçam a preservação da dimensão humana das pessoas nas situações de cuidado. Vértices de compreensão da pessoa e de seu processo de desenvolvimento: Uma proposta para o diálogo com as ações humanizadas

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Considera-se que a teoria do amadurecimento emocional de D. W. Winnicott (1988/1990) pode oferecer ferramentas teóricas que contribuam para a construção de uma prática vinculada aos princípios da humanização. Apesar do autor tratar do amadurecimento emocional principalmente em termos dos percursos possíveis do desenvolvimento de bebês, em conjunção com a qualidade de relação estabelecida com suas mães, ressalta-se que tal teoria pode aplicar-se às situações onde exista uma pessoa em situação de vulnerabilidade e um cuidador a ela ligado. Esta possibilidade afirma-se na medida em que a pessoa, na visão do autor, é concebida em constante estado de desenvolvimento, podendo, ao longo da vida, enfrentar momentos de sobrecarga psíquica e/ou física que a remetem a configurações psicológicas semelhantes àquelas vivenciadas pelos bebês (Dias, 2003). Winnicott (1969/1994), assim, apresenta uma concepção de desenvolvimento humano que enfatiza o papel dos contextos de facilitação, interessando-se pelo ambiente onde as pessoas estão e pelas relações que aí se estabelecem. O ambiente social, para ele, é constituinte da subjetividade, e tem um papel ativo no amadurecimento emocional ou no processo de constituição da sensação de ser si mesmo. Dessa forma, a constituição do si mesmo, da sensação subjetiva de ser uma pessoa, é possível a partir do encontro inter-humano e da relação viva que se estabelece com este ambiente. Tal encontro pode ser entendido como genuíno e fundamental para a transformação psíquica quando caracterizado pela disponibilidade devotada do outro àquilo que se apresenta como necessidade pela pessoa em processo de constituição do si mesmo. Dito em outras palavras, este encontro da pessoa com o ambiente social ocorre a partir da compatibilidade potencial existente entre as suas necessidades e a forma como o outro as percebe e se comporta diante delas (Mizrahi, 2010).

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Para que um encontro deste tipo seja possível, é necessário que aquele que cuida, o profissional, por exemplo, possa se adaptar às necessidades singulares da pessoa, ou da pessoa adoecida, oferecendo pouca resistência à sua força vital criativa, podendo ser percebido como agindo em sintonia com ela. Isto não significa a adoção de uma postura permissiva diante da pessoa adoecida, mas, antes, a apresentação de uma resistência necessária e resultante das condições do adoecimento que permita, ainda assim, a expressão da vitalidade da pessoa adoecida. Nesta condição, Winnicott (1945/2000) afirma que a vida, amparada pelo ambiente facilitador, pode fluir em continuidade, favorecendo a constituição de um si mesmo por meio da articulação espontânea daquilo que é vivido. Entretanto, o autor assinala que, nas situações em que esta resistência é excessiva ou nas quais o ambiente se apresenta pouco adaptado às necessidades da pessoa adoecida, impõe-se a ela a tarefa de lidar com “intrusões”, ou exigências excessivas sem relação com aquilo que é vivenciado, que a levam a reagir a este ambiente de modo pouco espontâneo e a apresentar algum grau de sofrimento (Mizrahi, 2010). Assim, de acordo com Winnicott (1962/1988), o ser humano nasce com uma tendência inata para o amadurecimento e necessita de um ambiente favorável para que esta tendência possa se realizar. Para o autor, o desenvolvimento pode ocorrer a partir do encontro entre as pessoas. A integração e a constituição de si, alcançadas por meio do desenvolvimento emocional, pressupõem uma série de conquistas, que são fundamentais para o sentido do ser, porém não são definitivas. A conquista de uma unidade psíquica não é permanente e intacta, é parte de um processo que, na relação com o meio, pode se perder ou se ganhar, de forma dinâmica. Em uma situação de adoecimento grave, pode-se considerar que a pessoa adoecida pode perder transitoriamente sua integração psíquica, além de se ver diante do desafio de

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alcançar uma nova articulação de suas experiências corpóreas e psíquicas. Dessa forma, o adoecimento grave pode implicar na necessidade de revisão do sentido de si mesmo (ou da sensação pessoal de ser uma pessoa) e de um projeto de vida. O adoecimento grave pode resultar na necessária apresentação de um esforço para agregar o que foi e é vivido em uma história inteligível e emocionalmente estável. Na linguagem de Winnicott, pode significar a necessidade de realizar uma nova integração psíquica das experiências relacionadas ao adoecimento grave. Neste sentido, uma recuperação integral se refere à recuperação do sentido de si, de uma nova articulação das experiências, incluindo os esforços para a organização das percepções, para o restabelecimento do funcionamento corporal e para permanecer ligado ao ambiente de modo ativo e coerente. Este movimento pode ser facilitado e amparado pelo ambiente, em sua dimensão física, mas principalmente em sua dimensão relacional. É neste sentido que as ações humanizadas podem se apoiar nos saberes psicológicos para tornarem-se ações facilitadoras do desenvolvimento e da recuperação da pessoa adoecida. As ações humanizadas, dessa forma, podem adquirir sentido para a pessoa adoecida quando favorecem a retomada da noção de si, promovendo a apresentação de um movimento ativo, realizado pela própria pessoa adoecida, pela sua recuperação (Casarini, 2013; Mencarelli, Bastidas, & Vaisberg, 2008; Winnicott, 1969/1994). Retomando as situações vivenciadas por André, pode-se considerar que nelas o ambiente foi pouco facilitador, na medida em que não promoveu a possibilidade do mesmo expressar sua vitalidade. Tal expressão necessita do apoio da curiosidade dos profissionais em relação ao conhecimento de suas necessidades e seus potenciais desempenhos colaborativos, antes de antecipar uma direção privilegiada de comportamento, norteada pelas rotinas de cuidado ou pelas concepções dos profissionais. Nesse sentido, o ambiente parece não ter favorecido a articulação dos

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movimentos de André com as condutas possíveis, colocando-se como pouco sintônico e promovendo uma fragmentação das experiências. Por outro lado, experiências de sintonia entre profissionais e pessoas adoecidas oferecem a oportunidade de visualizar a riqueza da realização de ações em saúde humanizadas. Uma situação bastante simples será utilizada como ilustração. Juliana, uma menina de 14 anos, foi internada pela segunda vez na UTI para tratar de graves insuficiências respiratória e renal, consequentes de uma doença autoimune recém-descoberta. Ela apresentava-se entristecida e assustada com o que lhe ocorria, referindo não compreender o motivo de ter inchado tanto e não conseguir respirar. Seus pais relataram que o breve período que passaram em casa, após a primeira internação na UTI, foi marcado por muitas dificuldades para delimitarem as necessidades do tratamento, em função de um entendimento restrito sobre a doença, e para orientarem e controlarem o comportamento de Juliana. Segundo eles, sua filha “queria continuar vivendo do mesmo jeito” (sic) e “era duro dizer que ela não podia tomar água, ou comer um salgado.” (sic). O retorno de Juliana para a UTI provocou nos profissionais da equipe da UTI sentimentos de compaixão e de preocupação com o futuro de uma pessoa tão jovem portadora de uma doença tão agressiva. De alguma forma, os profissionais se perguntavam sobre as possibilidades de Juliana dar continuidade à sua vida e realizar seus planos. Isto se tornou compartilhado quando um dos profissionais observou que um dos dias de internação na UTI correspondia ao aniversário de Juliana. A partir desta observação, os profissionais começaram a se perguntar sobre o que poderiam fazer para comemorar o aniversário de Juliana e pensaram em fazer uma pequena festa, com bolo de aniversário, velinhas e “Parabéns para você”. Estas ideias foram divididas com os profissionais da Psicologia e, então, iniciou-se um processo de negociação entre profissionais e pes-

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soa adoecida. A ideia de comemorar o aniversário foi comunicada à Juliana. Ao saber, ela disse que não gostaria que nada fosse feito porque queria comemorar o aniversário em casa. Um dos profissionais disse, então, que podia compreender que ela quisesse comemorar em casa, mas que considerava que aquele era um dia especial (ela estava fazendo 15 anos), e que poderiam pensar em algo que pudesse marcar aquele momento. Juliana respondeu, então, que gostaria de comer um pedaço de torta de frango ou pizza junto com seus pais. A equipe, a partir de então, providenciou formas possíveis de atender seus pedidos: ela comeu um pedaço de torta de frango e um pedaço de bolo de chocolate, acompanhada de seus pais e disse a eles que queria um tablete de presente. Os profissionais estiveram ao lado da família em diversos momentos, cumprimentando Juliana e fazendo observações engraçadas e positivas sobre seus pedaços de torta e bolo. Uma situação como esta demonstra a possibilidade de estabelecer uma relação com a pessoa adoecida que a considere como alguém que pode dizer sobre si mesma, fazer escolhas e participar das decisões, favorecendo que uma ação de saúde possa corresponder àquilo que ela mesma identifica como necessidade. Isto só pode acontecer se a equipe de saúde se colocar como disponível diante da pessoa adoecida, aberta àquilo que encontra como uma possível necessidade, mas curiosa e cuidadosa com a perspectiva da pessoa adoecida. Exatamente por esta equipe ter conseguido se posicionar com tal abertura e curiosidade, foi possível encontrar um formato de festa que tinha um sentido e uma congruência com o que Juliana vivia. Tais reflexões remetem à noção de cuidado em saúde relacionada à capacidade de autoadministração da própria vida que a pessoa adoecida pode apresentar preservada (Ayres, 2004). Com exceção dos casos em que a pessoa adoecida permanece inconsciente ou naqueles em que seja portadora de um grave transtorno mental, que a impeça de manter um contato

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mínimo com a realidade, esta capacidade de autoadministração parece estar presente. O reconhecimento desta condição ativa da pessoa adoecida implica na busca, pelos profissionais, pelo protagonismo da mesma em relação à sua vida e a definição de um projeto de vida (Casarini, 2013), tal como efetivado nas ações diante de Juliana. Dentro dos limites impostos pelo adoecimento, foi apresentada à Juliana uma proposta que considerava seu reconhecimento enquanto pessoa para além da doença e foi oferecida a possibilidade de escolha e de planejamento de um futuro imediato. Dessa forma, os profissionais puderam ocupar o lugar daqueles que detinham o conhecimento de recursos que podiam ser utilizados para a consecução de um objetivo, definido conjuntamente com a pessoa adoecida e que podia ser integrado ao seu projeto de vida, exatamente por manter uma correspondência com este. Ações em saúde com estas características pressupõem a existência de um fenômeno chamado de mutualidade por Winnicott (1969/1994). Este fenômeno se refere a uma qualidade da relação humana que afirma que o cuidador só pode oferecer condições de cuidado satisfatórias para a pessoa adoecida se puder, ele mesmo, alimentar-se da relação com ela. Tal concepção reconhece naquele que está em uma posição de vulnerabilidade a necessidade básica de que o outro, que se ocupa de seus cuidados, esteja bem, vivo e beneficiando-se criativamente desta relação. Dito em outras palavras, a mutualidade remete à reciprocidade das trocas subjetivas existente nas relações de cuidado e aponta que o trabalho em saúde se dá nos encontros possíveis entre pessoas adoecidas e profissionais. É neste contexto que as ações humanizadas podem adquirir significado e apresentarem-se como instrumentos vivos do cuidado em saúde. Ressalta-se que, na perspectiva dos profissionais, a realização de uma ação que produziu bem-estar para Juliana, com momentos de felicidade compartilhada com sua família, pode ter-lhes proporcionado a gratificação de testemunhar

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o resultado de seu trabalho, possibilitando que eles se sentissem alimentados. Esta é uma característica potencial das ações humanizadas: a possibilidade de constituírem-se como espaços de negociação criativa com as tarefas institucionais, favorecendo o contato com transformações e conquistas positivas vivenciadas pelas pessoas adoecidas e sustentadas pelos profissionais. Considera-se que tais ações, abertas a propostas criativas e inovadoras, são fundamentais para o desenvolvimento do profissional e para o cuidado com a pessoa que constitui este mesmo profissional. Assim, a busca pela recuperação integral que abarque o alcance das melhores condições físicas possíveis e a reconstituição de uma noção de si e de um projeto de vida remete a uma demanda de reciprocidade, na qual o reconhecimento do outro como igual, em suas potencialidades e fraquezas, permite que a estima e o respeito surjam, assim como a noção de autoria e responsabilidade (Ricoeur, 1995). Estima e respeito derivados do reconhecimento recíproco, entre pessoa adoecida e profissional, do encontro com um outro que faz um percurso semelhante para manter-se vivo, para buscar pela realização e para haver-se com os limites impostos pela vida. É neste encontro, genuíno, entre pessoas que pode residir um terreno fértil para o surgimento da solidariedade e para a construção de uma parceria respeitosa. Ayres e Anéas (2011), abordando a questão da solidariedade, apontam que esta atitude favorece a identificação das necessidades presentes por meio da formação de um vínculo disposto ao encontro. Neste sentido, a presença do profissional diante da pessoa adoecida ultrapassa a condição de aplicação de um saber “absolutizado”, abrindo espaço para o compartilhamento de responsabilidades na apropriação criativa do instrumental tecnológico. A atitude de solidariedade pode promover, desta forma, a construção de perspectivas existenciais mais autênticas, vinculadas aos projetos de vida em questão. Ricoeur (1995) fala, ainda, sobre autoria e responsabilidade, como marcas da

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relação entre pessoas, vistas como capazes de pensar e se posicionar, realizando escolhas que se encontram dentro dos limites de suas existências e possibilidades. Desse modo, cada um é responsável pelos rumos que toma em sua própria vida, mas também é responsável pelas possibilidades que apresenta ao outro para escolher, na medida em que participa da constituição do mundo do outro. Relações pautadas pela solidariedade, entendida como a abertura que permite o desenvolvimento da eficácia das pessoas a partir do fortalecimento e ajuda mútuos, podem compor uma comunidade, de acordo com Stein (1933/2003). Dessa forma, a comunidade, ou uma equipe organizada enquanto tal, implica no estabelecimento de relações que podem promover crescimento e cuidado por meio de um envolvimento com esforços para viver e criar juntos. Neste sentido, o contato com o que de fato se passa com as pessoas adoecidas e com os profissionais, com as vivências particulares de cada um, e a disponibilidade para conhecer e pensar junto podem favorecer o surgimento de uma relação entre ambos que os fortaleçam, enquanto pessoas unidas em busca de um sentido comum. Esta aproximação das pessoas, tais como são e da forma como apreendem o mundo à sua volta, pode permitir que potências singulares sejam despertadas, colocadas em ação e atualizadas. Isto remete à importância de se manter ‘em relação’, apresentando ao outro aquilo que se é e observando aquilo que o outro oferece. Considera-se que isto tem fundamental importância diante de uma realidade que se mostra instável e cercada de eventos imprevisíveis. Vale destacar que, na perspectiva de Stein (1933/2003), para manter-se ‘em relação’ é preciso que as pessoas sejam solidárias umas com as outras, ou que mantenham uma atitude de disponibilidade positiva, e que se sintam responsáveis pelo que acontece com o outro, seja em função de uma ação diretamente praticada ou não. A autora afirma, ainda, que são a solidariedade e a responsabilização recíproca que podem

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fornecer a fonte de força para enfrentar o imprevisível e para pensar o impensável. Considerações Finais A partir das reflexões realizadas, pode-se afirmar que a Psicologia oferece um arcabouço teórico e prático que se coloca a serviço de uma busca conjunta pela produção de saúde (Chiattone, 2011). Esta perspectiva do trabalho psicológico se aproxima da valorização dos sujeitos, das relações dialógicas e trocas solidárias, presentes na concepção de humanização (Oliveira & Macedo, 2008). Assim, ao pensar as ações humanizadas em diálogo com estes elementos teóricos e práticos, advindos da Psicologia, podese reconhecer que a humanização não se realiza nem se esgota com a definição e implementação de ações padronizadas, como chamar a pessoa adoecida pelo nome ou proporcionar momentos de distração no ambiente hospitalar. Ao contrário, neste caso, ela pode aparecer como mais um protocolo de condutas, executado mecanicamente, com pouca conexão com as vivências da pessoa adoecida. As reflexões derivadas da teoria de Winnicott e da visão de saúde-doença de Ricoeur permitiram compreender as ações humanizadas como o meio para estabelecer um ambiente facilitador de um cuidado ampliado nos contextos de atenção à saúde. Tal ambiente é composto pela presença constante da busca pelo entendimento das necessidades singulares da pessoa adoecida e pelas tentativas de satisfazê-las a partir de negociações legítimas entre os limites da instituição, do profissional e da perspectiva da pessoa internada. Nesta direção, a humanização figura como um potencial instrumento de promoção da recuperação integral da pessoa adoecida, abarcando a possibilidade de auxílio na reconstituição da noção de si e de um projeto de vida.

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Os saberes derivados da Psicologia podem, assim, oferecer a possibilidade de compreensão daquilo que acontece nos contextos de atenção a saúde, permitindo a discriminação de necessidades e de formas de atendê-las que correspondam aos sentidos atribuídos pela pessoa adoecida e pelo profissional. A abertura e o interesse pelas concepções de pessoa e de saúde, que orientam as ações dos profissionais, podem favorecer a ampliação da crítica sobre o trabalho em saúde, com o aparecimento da criatividade no fazer cotidiano. Isto remete à criação de espaços de reflexão sobre este fazer, espaços estes que incluam e suportem o não-saber, relacionado à pessoa adoecida e às possíveis respostas às suas necessidades. Considera-se que é neste contexto, onde as perguntas permanecem temporariamente sem respostas, que a criatividade pode se manifestar. Além disso, um espaço aberto ao novo só pode se constituir a partir da possibilidade de encontrar apoio no ambiente de trabalho, daí a importância do desenvolvimento de relações solidárias entre pessoas que estão envolvidas em uma mesma tarefa desafiadora. Neste sentido, a perspectiva humanizada, no modo aqui discutido, também pode ser aplicada aos profissionais, principalmente, em relação à forma como a tarefa de cuidar é entendida e realizada nos serviços de saúde. Ressalta-se a importância da busca pelo estabelecimento de um ambiente facilitador do trabalho, oferecendo, a quem realiza as ações, oportunidades de amparo e de trocas que favoreçam o crescimento e a segurança. Torna-se necessário incorporar às oportunidades de amparo uma ponderação sobre o que é possível ser realizado em diferentes momentos pelos profissionais. Estes também precisam ser vistos como pessoas, portadoras de uma história e de necessidades que interferem e fazem parte de seu trabalho. Construir um ambiente humanizado e facilitador também deve contemplar a realidade vivida pelos profissionais. Os serviços de saúde podem

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conter diversas deficiências que tornam o trabalho mais difícil, como o número inadequado de profissionais e a falta de materiais. Estas condições deficientes muitas vezes são ignoradas quando se avalia e se estabelece uma expectativa de desempenho dos profissionais, confrontando-os com exigências incongruentes com a realidade. O contato constante com o sofrimento do outro e com os limites humanos pode provocar desgastes físico e emocional, gerando sofrimento também para o profissional. Reconhecer este aspecto do trabalho em saúde pode favorecer o surgimento de negociações diferenciadas dentro da equipe, como na situação em que um profissional apresente necessidades pontuais e possa ser visto como alguém que pode ser poupado de algumas atividades em um determinado dia. Considera-se que esta postura de interesse e respeito pelas pessoas que realizam o cuidado em saúde corresponde a um olhar humanizado e flexível nos ambientes de saúde. É neste contexto que se afirma a fecundidade da parceria entre os profissionais, incluindo os da Psicologia, para a consecução de projetos de humanização efetivos, nos quais tanto as pessoas adoecidas, como os profissionais e cuidadores, possam se beneficiar de um olhar solidário e amparador que os estimule a permanecer em contínuo desenvolvimento. Referências Anéas, T. V., & Ayres, J. R. C. M. (2011). Significados e sentidos das práticas de saúde: A ontologia fundamental e a reconstrução do cuidado em saúde. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, 15(38), 651-662. Ayres, J. R. C. M. (2007). Uma concepção hermenêutica de saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 17(1), 43-62. Ayres, J. R. C. M. (2004). O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saúde e Sociedade, 13(3), 16-29.

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Os segredos familiares no processo clínico: A escuta a partir do psicodiagnóstico interventivo Deise Coelho de Souza Martha Franco Diniz Hueb Fabio Scorsolini-Comin Tem mais presença em mim o que me falta. Manoel de Barros, Poesia completa, 2010.

A psicanálise dos vínculos sociais proposta por Pierre Benghozi (2005, 2010) tem enfatizado o seu interesse na transmissão dos sintomas a partir dos vínculos estabelecidos na família ao longo do tempo. O foco da compreensão desse autor não estaria apenas na história de origem da criança e suas primeiras relações com os pais, mas no modo como as suas vinculações posteriores, na fase adulta, por exemplo, poderiam promover leituras menos deterministas acerca do desenvolvimento, com a possibilidade de que os vínculos considerados traumáticos pudessem ser desmalhados e remalhados por meio do estabelecimento de relacionamentos interpessoais considerados mais saudáveis, dando continuidade a processos mais adaptativos. No contexto da parentalidade adotiva, o segredo sobre a história de origem da criança pode ser um dos complicadores do desenvolvimento do casal e também do filho por adoção, haja vista que a não revelação pode dar vazão a fantasias tanto dos filhos quanto dos pais, que temem a rejeição por parte da criança, a curiosidade por conhecer os pais biológicos e mesmo a fantasia de que seus filhos lhes sejam roubados, ou que eles pais os estão roubando daqueles que os geraram (Cecílio & Scorsolini-Comin, 2013; Hueb, 2012; Otuka, Scorsolini-Comin, & Santos, 2012,

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2013; Rosa, 2008; Sólon, 2009). Essas dificuldades, tanto do casal como da criança que passou pelo processo de adoção, podem levar as famílias à busca por ajuda psicológica. O processo terapêutico é uma das estratégias desenvolvidas para o atendimento de pais e crianças neste contexto. Mas nem sempre essa demanda apresenta-se de maneira clara, podendo ser mascarada por dificuldades de adaptação da criança ao ambiente escolar, por exemplo, podendo ser investigada a partir do processo psicodiagnóstico. O objetivo deste capítulo é apresentar um estudo de caso que discute a construção do processo terapêutico com uma criança que possuía como queixa a dificuldade escolar e as constantes “mentiras” que contava. Ao longo dos atendimentos, pode-se compreender que essas fantasias se remetiam à própria história pregressa da criança, não revelada pelos pais. Assim, trata-se de um estudo de caso conduzido a partir dos pressupostos da pesquisa qualitativa. O estudo de caso foi escolhido como método investigativo por possibilitar a compreensão aprofundada de uma dada realidade – a história dos segredos familiares – , a fim de que sejam estabelecidas possibilidades interpretativas que contribuam com a prática clínica (Peres & Santos, 2005). O referencial adotado é o psicanalítico, com destaque para as proposições de Benghozi (2005, 2010) acerca dos vínculos geracionais. O psicodiagnóstico interventivo com a participação da família O processo psicodiagnóstico tradicional é de caráter científico, uma vez que utiliza levantamento prévio de hipóteses a serem investigadas por meio de caminhos predeterminados. A obtenção desse material ocorre a partir de uma entrevista inicial, aplicação de testes para confirmação ou rejeição de hipóteses e, por fim, uma entrevista devolutiva com o paciente para informar os resultados alcançados (Barbieri, 2010, 2008; Trinca, 1984). O

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psicodiagnóstico interventivo mantém o enfoque de avaliação, mas também o intuito de intervir junto ao paciente ao longo do processo. Durante a aplicação dos testes projetivos, são utilizados assinalamentos e interpretações ao longo de todos os encontros com o paciente que, apesar do tempo restrito, é impelido a se defrontar com distintas etapas de seu desenvolvimento (Barbieri, Jacquemin, & Biasoli-Alves, 2007; Mishima-Gomes, 2011). Esse processo interventivo possui elementos semelhantes às consultas terapêuticas apresentadas por Winnicott (Barbieri, Jacquemin, & Biasoli-Alves, 2004), pois servem tanto como instrumento de investigação dos mecanismos primários do desenvolvimento como elemento de diagnóstico. O processo psicodiagnóstico, tal qual as consultas terapêuticas, possibilita um tratamento breve, além de permitir uma maior segurança de resultados, que asseguram precisão e profundidade, alcançados por meio de testes psicológicos e entrevistas. A partir dessa concepção, foi construído o Estágio Supervisionado Clínico I na modalidade Psicodiagnóstico Interventivo com o intuito de realizar intervenções psicológicas, por meio de acolhimento, interpretações e holding, durante entrevistas e aplicação de técnicas projetivas. Essa metodologia foi aplicada de forma a dar maior segurança ao diagnóstico psicológico em crianças de três a 12 anos de idade e também orientar os pais ou responsáveis das crianças em intervenção. Com base nessa perspectiva o caso acompanhado foi da menina Roberta (nome fictício), de seis anos de idade, encaminhada por um profissional de Psicologia ao Centro de Estudo e Pesquisa em Psicologia Aplicada da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (CEPPA-UFTM). A queixa inicial apresentada pelos pais era dificuldade escolar e constantes mentiras, além da necessidade de dar continuidade ao atendimento que era realizado em uma Unidade Básica de Saúde. O caso de Roberta

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O atendimento foi realizado em 12 sessões, sendo quatro delas com os pais e oito com a criança. As técnicas utilizadas foram a entrevista inicial e de orientações com os pais e a hora lúdica diagnóstica e interventiva com a paciente. Para o levantamento da história de vida da criança foram realizadas duas sessões, sendo que o pai participou apenas da segunda. Ao longo do processo houve mais uma entrevista com a mãe e, no fim do atendimento, uma devolutiva com o casal. Com a criança, em todos os encontros, realizou-se a hora lúdica com o suporte da caixa lúdica e de outros jogos adequados à idade. Ocorreu o planejamento de outros procedimentos projetivos, como o Desenho Estória da Família, de Trinca (1997), e a Técnica do Rabisco de Winnicott (1994), mas que não foram aplicados, de fato, em função da negação da criança a realizá-los. De acordo com Nunes (2000), a hora lúdica possibilita que sejam criadas estruturas que permitem o aparecimento de fenômenos que não surgiriam por meio apenas da palavra, sendo que isso ocorre em função da criança projetar suas questões-chaves no jogo e na forma como utiliza os materiais propostos. Essa situação é possível em função do jogo ser a maneira de discurso da criança, o que viabiliza tanto possibilidades terapêuticas quanto diagnósticas. A chegada da família ao atendimento: encontro com os pais Na primeira entrevista realizada com a mãe de Roberta, a queixa inicial foi a respeito das mentiras da criança e sobre seu comportamento considerado “difícil”, sendo que as professoras fizeram comentários sobre as atitudes da menina. Foram ressaltadas as dificuldades na escola, principalmente para escrever, e que as professoras chegaram a indicar que a mãe procurasse auxílio de um terapeuta ocupacional. A mãe relatou que a menina é lenta para escrever e pede muita ajuda para fazer as tarefas de casa.

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Quando a mãe se recusa a ajudá-la, a menina diz: “Você não é mais minha mãe”. No segundo encontro, o pai de Roberta acrescentou que a filha tem questionado muito em relação às decisões que os pais tomam. No entanto, era possível perceber que o maior receio dos pais era que essas queixas tivessem relação com o fato de Roberta ter sido adotada, sendo que esses não lhe contaram a respeito de sua situação de forma clara, afirmando apenas em uma ocasião que a menina era sua filha do coração, que não havia saído da barriga da mãe como os outros dois irmãos (um mais velho, de 21 anos, e outro de três anos e meio). Briani (2008) afirma que por mais que o processo de abandono que leva à adoção cause danos no desenvolvimento infantil, não é plausível atribuir qualquer dificuldade que surja na vida da criança a esse fato, uma vez que, apesar de possuir particularidades, é fundamental que tanto a criança quanto seus familiares possuam recursos internos para lidar com as complexidades do processo de adoção. No entanto, o fato de não saber de sua origem, de se acobertar o processo adotivo, pode ser muito mais danoso à criança envolvida do que o fato de ter sido adotada. O “não-dito” é muito mais cruel do que aquilo que tem por se revelar. Em geral, vê-se muito mais deterioração nas relações humanas pelo “nãodito” do que por aquilo que, às vezes, se diz (Schettini, 2009). Depreendeu-se que a queixa de dificuldade escolar estaria vindo para denunciar o “não saber” sobre a adoção, e que somente o acesso ao saber poderia atuar como forma de diminuição dos sintomas, conforme pontuam Lipp, Mello e Ribeiro (2011). Ademais, o que está subjacente na difícil situação de revelar a verdade é o sentimento de acabar inferiorizando ou discriminando a criança, e com ela situação de serem pais adotivos. A literatura comprova que quando o filho adotivo levanta as primeiras dúvidas sobre sua origem, se lhe forem fornecidas imediatamente respostas compatíveis com suas perguntas, irá se acostumando a encarar a verdade com mais tranquilidade (Piccini,

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1986). Notadamente, a verdade não machuca quando vem acondicionada ao afeto, porém é preciso saber dizer. Os pais tinham receios que alguém contasse a Roberta sobre a sua origem ou que a menina passasse a questioná-los diretamente a respeito. Quando a família opta por não revelar a história da adoção, carrega-se constantemente o peso dessa omissão, o que gera medo de que a descoberta do segredo ocorra por meio de terceiros, que não o revelarão de maneira adequada. Contudo, há de se ressaltar que, em geral, os segredos que perduram por muito tempo encobrem acontecimentos carregados de marcas dolorosas e negativas. Se é algo que não se pode saber, depreende-se que se trata de algo ruim, negativo, que prejudica o desenvolvimento da intimidade entre os membros da família ao negar a realidade. Ao perceber que os pais escondem a adoção, facilmente a criança conclui que se trata de algo vergonhoso, condenável ou indigno pois, do contrário, não se justificaria para ela o silêncio sobre esta situação (Piccini, 1986). Outra questão relevante foi a maneira como se deu a adoção, já que os pais adotivos a receberam com dois dias de vida e a registraram como filha biológica, caracterizando a chamada adoção pronta ou “à brasileira”, considerada crime pela nova lei da adoção (Brasil, 2009). Esta terminologia, de acordo com Lobo (2004), trata de um processo no qual ocorre uma adoção, sem as observâncias legais, por meio da declaração de paternidade e maternidade de um casal sobre uma criança nascida de outra mulher que lhes entregou o filho. Um detalhe que surgiu nos dois encontros com os pais foi a maneira como falam de Roberta. Destacaram que a menina possui o mesmo temperamento da mãe do pai adotivo (“arrogante, implicante e exibida”), que as duas são muito parecidas e próximas, embora não sejam unidas pelo laço de sangue. Observou-se que apesar de fazerem uma comparação da filha com a avó, pelos aspectos negativos, os pais também deixaram implícito, sem o perceberem, que o amor familiar não é instintual e

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pode ser construído. Contaram, ainda, que Roberta grita muito, fica nervosa quando não fazem as coisas da forma como ela deseja, comentando que consegue “tudo que ela quer”. O encontro com a criança No primeiro encontro com Roberta, foi-lhe informado sobre a queixa inicial dos pais. A criança concordou que realmente estava sendo um pouco indisciplinada e que, às vezes, contava algumas mentiras, mas negou sua dificuldade na escola. Em função disso, ela escreveu algumas coisas e não foi possível perceber a demanda apresentada pela mãe de que a menina escrevia devagar ou que não tinha conhecimento, sendo capaz de realizar atividades que estavam de acordo com sua idade e o nível de desenvolvimento esperado. No entanto, é muito comum que crianças adotivas que não possuem informação sobre sua origem apresentem dificuldades escolares. Piccini (1986), sustentando-se em Freud (1948) e em Klein (1959/1991), argumenta que a criança, ao perceber que determinados conhecimentos lhe são proibidos, costuma reprimir estes e, por extensão, outros, o que pode acarretar graves prejuízos escolares. Ao longo da primeira sessão, a criança contou três mentiras, sendo a primeira de que o nome da professora era o mesmo da estagiária, mas em seguida disse que na realidade era o da diretora da escola. A segunda mentira foi referente a uma vivência fantasiosa sobre sair da escola e ir estudar na mesma instituição escolar de uma telenovela. A terceira mentira foi sobre já cozinhar em casa e que o fogão era de seu tamanho. A partir dessas situações, todas elas apresentadas de maneira muito teatral, foi possível perceber a reclamação da mãe de que a menina estava faltando com a verdade. Ressalta-se que fantasiar, ou alterar a realidade conforme seu desejo, é algo comum em fases iniciais do desenvolvimento infantil, quando do compor-

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tamento egocêntrico, fato pouco usual a partir dos seis anos, idade da paciente (Soifer, 1992). No segundo e terceiro encontros, Roberta mostrou que se preocupava imensamente com a sua aparência e com a organização do ambiente. Isso pode ser notado quando brincavam com um jogo da memória. Em alguns momentos, o desejo de manter as cartas organizadas foi tão intenso que não foi possível jogar, pois o alinhamento das cartas sempre se alterava, o que deixava a paciente extremamente furiosa. Roberta também demonstrou um grande desejo de brincar com as tintas, mas apenas no segundo atendimento ela foi capaz de produzir as duas primeiras letras de seu nome na folha, sendo que, em seguida, na terceira sessão, ela apenas misturou as tintas, as relacionando com “cocô”. Quando questionada sobre o que mais em sua vida estava “misturado” e confuso, Roberta apenas fitava a estagiária e, em seguida, voltava a misturar a tinta com mais força. No terceiro e quarto atendimentos, apresentou dificuldade em deixar a sala de atendimento quando findou a sessão, sendo que em ambas as sessões começou a bagunçar e a sujar a sala com tinta, após lhe ser informado que o horário havia finalizado, conseguindo o seu intento: mesmo deixando a sala, a estagiária ainda “permaneceria” com ela, pois precisava limpar a sujeira produzida pela mistura e bagunça de tintas. Nesses momentos, os comportamentos de necessidade de controle do jogo, da sessão e das atitudes da estagiária ficaram evidentes, sendo que quando frustrada Roberta se mostrava nervosa, afirmando que não voltaria mais ao atendimento, além de reclamar da estagiária nos momentos em que esta não fazia as coisas da maneira como Roberta gostaria. Maneira similar observada no relacionamento para com a mãe, quando dizia: “você não é mais minha mãe”. Outra característica percebida foi que a criança, apesar de querer que seus desejos fossem satisfeitos, não tinha paciência em explicá-los ou argumentar sobre o porquê de serem satisfeitos. Ao ser questionada sobre isso, a

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menina apenas se calava, ou voltava a dizer em voz mais alterada o que queria e como gostaria que a estagiária agisse, tentando ter um controle sobre tudo. Ao longo desses atendimentos, Roberta voltou a contar mentiras, ou então acrescentava fantasias sobre situações que de fato ocorreram. No quarto atendimento, chegou um pouco mais tranquila, comentou que tinha ficado com raiva no término da sessão anterior, mas que já havia acabado. Neste encontro a menina apresentou muito sua raiva e agressividade, isso foi observado ao jogar com muita força e bater a “mãozinha” do jogo “Tapa-certo” muitas vezes na mesa, com força, além de também bater levemente na cabeça da estagiária. Outro dado foi que a criança gritou muitas vezes na sala. Ao ser salientado que poderia atrapalhar outras pessoas em atendimento, ela riu e comentou que gritar lhe agradava muito. Em um dado momento, a menina apagou a luz da sala e disse que assim ficava melhor. Ao longo desse período em que a sala ficou apenas em meia-luz, a menina comentou baixinho que não tinha mãe, mas ao ser questionada novamente sobre o que havia pronunciado disse estar brincando. O que ela pode dizer apenas no escuro? O que não está claro para ela? O que falta iluminar? Seria a verdade dos fatos? A verdade sobre sua origem?, perguntava-se a estagiária. O terceiro encontro com a mãe: o segredo familiar Após o quarto atendimento com a criança, a mãe solicitou um encontro, que foi agendado. Mostrou grande preocupação, pois a filha havia lhe perguntado: “Mamãe, me fala a verdade, eu sou adotada?”. A mãe não foi capaz de responder de maneira clara, disse novamente que ela era filha do coração, que foi um presente de Deus e que, ao contrário dos outros dois filhos, ela foi realmente escolhida pelos pais, mas em nenhum momento disse: “sim, você foi adotada”. Levando-se em conta a idade da criança, seis anos, a qual é caracterizada pelo raciocínio concreto, acredi-

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ta-se que seria muito difícil para ela processar uma abstração, compreender o que é ser “escolhida pelos pais”. A mãe destaca que depois disso a menina não voltou a lhe perguntar diretamente, mas que tem feito constantes comentários sobre a personagem de uma novela que é adotada. Briani (2008) salienta que é grande a angústia gerada na criança por não ter um conhecimento real da verdade que lhe possibilite elaborar esse sentimento de rejeição pela família de origem e não pertencimento por laços de sangue à família adotante. Os pais já haviam conversado entre si a respeito do assunto, mas não haviam decidido a melhor forma de revelar esse fato. Briani (2008) argumenta que, ainda que se conte a verdade, muitas vezes esta nunca é revelada completamente, gerando um vazio que necessita ser preenchido nas relações. Os pais observavam que a menina já tinha indícios acerca de seu processo de adoção, inclusive comentando com os familiares sobre algumas diferenças que ela própria constatara, como a cor de sua pele, ligeiramente mais escura que a dos pais, o cabelo mais crespo que o da mãe, além do que o primo havia lhe dito certa vez ao brincarem, que ela era adotada, o que a levou a perguntar para os pais se de fato o era, ocasionando a resposta vaga e abstrata de que não havia sido gerada biologicamente pela mãe, entre outras situações. Em momento inesperado, o primo fez-lhe uma revelação, a qual a mãe não soube aproveitar para lhe apresentar a verdade. A mãe destacou que tinha medo de que Roberta quisesse conhecer sua família biológica e que intensificasse seu comportamento autoritário e controlador ao confirmar a verdade. Embora haja intensos temores dos pais em revelar a verdade sobre a história da criança que foi adotada, há de se destacar que a literatura aponta que é extremamente importante saber da sua história, além do que há de se levar em conta que é um direito da criança conhecer a sua origem (Nabinger & Chaves, 2005; Silva, 2002).

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A mãe revelou outras situações que mostram um histórico de segredo em sua família ou o modo como os “segredos familiares” são ocultados e transmitidos de uma geração a outra. O filho mais velho não é filho biológico de seu marido. Ela já se encontrava grávida quando começou a namorar com ele. A verdade só foi revelada pela mãe ao filho quando este completou 15 anos. À época, o adolescente ficou revoltado, porém pediu que o pai não fosse informado que ele havia descoberto a verdade, sendo que a mãe aceitou o conluio e hoje, passados seis anos, nunca mais se comentou sobre o assunto. Hipotetiza-se que o adolescente pudesse ter medo que o pai passasse a rejeitá-lo, ou que ele próprio viesse a rejeitar o pai – antes considerado biológico, hoje pai adotivo –, já que havia um acordo familiar entre o casal e o filho adolescente de que a irmã adotiva não poderia saber da sua história pregressa. Ou seja, se a irmã não poderia ter conhecimento de sua origem para não se sentir rejeitada, e não despertar lhe o desejo de procurar seus pais biológicos, o adolescente possivelmente deduziu que não poderia revelar ao pai que sabia de sua condição de adotado, pois também poderia querer conhecer seu pai biológico e abandonar aquele que o criou. Era preciso reprimir e criar um novo segredo familiar. A associação que se estabelece é que para esta família a verdade é compreendida como muito perigosa. Ao invés de união, indica rejeição, separação. Portanto, houve uma revelação unilateral que deslocou o lugar de terceiro excluído, antes ocupado pelo filho, agora ocupado pelo pai. Uma revelação que ficou novamente encoberta, novamente velada. Apesar de haver três casos de adoção na família, a avó paterna também o é, e inclusive já falou abertamente sobre a sua própria adoção com a neta, o casal parental apresenta dificuldades em lidar com a situação. Presume-se que, na verdade, a dificuldade não se dá propriamente com a situação da adoção, mas com o fato de haver tendências em viver em um patamar idealizado por não conseguir lidar com dados da realida-

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de, com as frustrações, com o medo do abandono, a agressividade interna de cada um. Provavelmente, a mãe não consegue lidar com a questão do abandono por não ter resolvido sua própria situação, o que faz perpetuar nesta família este fantasma. Se encontrava grávida de outro quando se vinculou ao atual companheiro, pai de seu terceiro filho. Pode ter sido “abandonada” pelo pai biológico do primeiro filho, hoje adolescente, que também evita conhecer a sua história, provavelmente por medo de abandonar ou ser abandonado, fato que faz perpetuar o segredo familiar por gerações, como apontado pela literatura (Eiguer, 1985; Falcke & Wagner, 2003; Kaës, 2001, 2005). Atualmente, não se questiona mais se deve-se revelar ou não a adoção. Hoje estão em pauta três questões: Como contar? Quando contar? E quem vai contar? Na oportunidade, a mãe foi instruída a procurar acompanhamento psicoterapêutico para si, além de discutir com o marido sobre a necessidade de se prepararem para contar a verdade a Roberta em um futuro próximo, pois quando a história não é falada, recai sobre a criança o escoamento do conflito entre o seu saber inconsciente e o seu não saber consciente (Lipp, Mello, & Ribeiro, 2011). Neste encontro com a mãe, os segredos familiares revelaram um modo de constituição familiar, haja vista que não ocorria apenas no caso de Roberta, mas também no caso de seu irmão mais velho. O segredo sobre a origem de Roberta não se justificava apenas pelo medo de que os pais perdessem o amor da filha e ela os rejeitasse, mas que também fosse descoberto o modo como se processou a sua adoção, a rejeição da mãe biológica assim que o bebê nasceu e a adoção pronta, materializada em meio à ilegalidade. Desse modo, a rotina de constantes “mentiras” por parte da menina destacava a própria mentira acerca de sua origem e de sua história. Ao não revelar à criança o fato de esta ser filha adotiva, gerava em Roberta a angústia por desconhecer o seu próprio passado. A sua revolta se manifestava, desse modo, na necessidade de controle, na

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agressividade e nas pequenas mentiras que contava com frequência. Ela também vivia em uma família que mentia constantemente, o que denota uma agressividade interna do casal parental, achando que protegê-la seria omitir-lhe a verdade. Como destacado por Benghozi (2010), a não-revelação do segredo possibilita a concepção de um sintoma que pode ser transmitido de uma geração a outra, caso o trauma não seja elaborado. A alternativa de receber um atendimento psicológico propiciava à criança rever sua origem, partindo em busca de sua adaptação e da aceitação de sua história. O conceito de transmissão psíquica intergeracional, que ocorre de uma geração a outra, pode se dar pela via do negativo, ou seja, seriam transmitidos os aspectos desadaptativos, os nãoditos, os não-representáveis, os não-elaborados, de modo que os segredos familiares funcionariam como elo de uma geração a outra. Caso uma geração não conseguisse elaborar seus traumas e fantasmas, transmitiria à próxima geração a missão de perpetuar o segredo ou mesmo tentar elaborar o aspecto negativo. Esses traumas e fantasmas familiares poderiam ser atualizados na próxima geração como sintomas em dados membros da família, de modo que o tratamento deveria evocar não apenas a história do indivíduo, mas de sua origem (Eiguer, 1985; Falcke & Wagner, 2003; Kaës, 2001, 2005; Valdanha, Scorsolini-Comin, & Santos, 2013). A continuação do atendimento de Roberta O quinto atendimento de Roberta permitiu que ela expressasse as dificuldades em lidar com frustrações. A menina estava perdendo um jogo e após constatar isso passou a roubar e a tentar mudar as regras estipuladas. A criança já havia tentado modificar as regras anteriormente, mas neste encontro ficou extremamente nervosa. Em sessão posterior, ficou com receio de perder, passando a burlar as regras. Ao ser questionada sobre

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isso, comentou que era a estagiária quem estava roubando, mas não foi capaz de argumentar de qual maneira isso estava ocorrendo. No sétimo encontro foi possível perceber que ela tinha mais facilidade em revelar algumas angústias quando a estagiária se encontrava, de certa forma, no escuro, como havia se dado na quarta sessão. Assim, ao modificar as regras de um jogo, Roberta pediu que a estagiária fechasse os olhos, o que de fato a manteria no escuro, ao ser impossibilitada de enxergar. Ao ser atendido seu desejo, ela manteve a estagiária de olhos fechados por um longo período. Esta perguntou sobre o incômodo de ficar desta maneira e se poderia abrir os olhos novamente. Com a negativa da menina, lhe foi questionado se alguém a deixava no escuro. Roberta comentou que sua mãe e também seu pai a deixavam no escuro, mas não falou mais sobre o assunto. Nesta sessão, Roberta perguntou se a estagiária havia conversado com a sua mãe. A menina então disse que a estagiária havia se encontrado secretamente com a mãe e lhe contado todos os “seus segredos”. A estagiária reafirmou a questão do sigilo, e que havia lhe pedido autorização anteriormente para falar com a sua mãe, o que lhe foi consentido, mas Roberta disse que era mentira e que a mãe havia lhe batido ao descobrir “seus segredos”. Embora a estagiária reforçasse que nada havia sido dito do conteúdo das sessões para a mãe, Roberta a culpava por ter revelado seus segredos. Associa-se que a paciente se expressou dessa maneira por “saber” que há um “terrível” segredo da mãe para com ela e transferencialmente projetou na estagiária a sombra da mãe. A estagiária, por meio da transferência, passou a ser vista como a mãe neste momento. A manutenção do segredo pode fazer com que a criança se sinta vítima de uma traição (Silva, 2002), demonstrando sentimentos de revolta. Roberta sentia-se traída pela mãe e pela estagiária. A não revelação da sua história por parte da mãe aumentava a angústia da criança, de modo que esse segredo

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passava a ser um elo traumático na família, desencadeando o sintoma (Benghozi, 2010). A história da criança, como não havia sido elaborada pelos pais, fazia com que eles se sentissem amedrontados e não revelassem o seu conteúdo para a filha. Ainda assim, esse segredo não é totalmente ocultado, de modo que a criança possui indícios conscientes e inconscientes sobre a sua história. A fantasia dos pais de roubo da criança se perpetuava nas ações da filha. Ela roubava nos jogos com a terapeuta e mentia como os pais. O sintoma representado pelas suas constantes mentiras recupera não apenas dificuldades internas, como a dificuldade da família em lidar com esse processo de adoção, que foi mascarado de todas as formas. Analisando a história da família, fica claro que essa dificuldade se remete a histórias pregressas não elaboradas, de modo que o vínculo passa a se constituir pelo viés do negativo, do não elaborado, daquilo que não encontrou uma representação psíquica (Eiguer, 1985; Kaës, 2005). O oitavo encontro foi o último atendimento de Roberta. Foi realizada a devolutiva para a criança, na qual se frisou sobre o quanto a menina era vaidosa, bonita e que admirava extremamente sua mãe, além de ser esperta, inteligente, animada e não ter receios em revelar o que pensa de maneira clara, além de ser muito organizada. Porém, que ela tem a tendência a querer que tudo seja feito de seu jeito, sendo que isso pode lhe gerar alguns problemas em seus relacionamentos. Roberta não concordou com essa afirmativa. Ao lhe ser questionado sobre o que acontecia com seus colegas de escola quando não concordavam com ela, disse que batia nesses, mas que não era por ser autoritária, apenas por desejar que tudo fosse realizado de acordo com seu desejo. Comentou-se sobre os segredos que Roberta estava percebendo e que nem todos ela foi capaz de dividir. A menina afirmou que não podia revelá-los porque eram segredos de seus pais e de seu irmão mais velho. Este fato sugere que até mesmo para Roberta a manutenção do segredo é questão de vida; no

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entanto, ela ainda não consegue perceber que se trata de um morrer em vida, uma vida falsa, sustentada na mentira. Salientouse também sobre os diversos momentos em que Roberta ficou nervosa e desejou não retornar mais ao atendimento, mas o quanto havia sido gratificante para a estagiária que ela continuasse. Por fim, foi informada de que seria encaminhada ao atendimento psicoterapêutico. Ela questionou se continuaria com a mesma estagiária e, ao lhe ser informado que não, mostrou-se desconfiada e desgostosa, com um sentimento de estar sendo trocada, mas por fim concordou em conhecer a nova estagiária, quando for chamada para o atendimento. Segundo Nabinger e Chaves (2005), é possível perceber um sentimento de persecutoriedade relacionado aos sentimentos de abandono e de dúvida da origem em crianças que foram adotadas. Contudo, o fato de ter aceitado a possibilidade de continuar com outra terapeuta, sugere um bom prognóstico. Aponta indícios de que a paciente vislumbra que, apesar de abandonos ao longo da vida, há a possibilidade de se estabelecer novas relações afetivas e sociais. Ela foi rejeitada pela mãe biológica, mas conseguiu novos pais que, embora atuando de forma inadequada quanto a revelação da origem, mostram-se atentos ao cuidado com a saúde física e mental da filha, já que procuraram pelo apoio psicológico. No encerramento do processo psicodiagnóstico interventivo, Roberta brincou um pouco com a placa da porta (que diz na sua frente e verso: Livre/Em atendimento) como que dizendo: “Encerrou-se, ou continuarei em atendimento?”, olhou para a estagiária e falou: “Ah tia, ainda tenho um segredo para te contar, depois eu vou te contar”. Em seguida, saiu da sala. Essa atitude mostra como Roberta tentou manter o controle de todo o processo, até mesmo no momento final, conseguindo triunfar sobre a estagiária. Neste instante, perversamente transferiu a angústia do desconhecido para a estagiária. Já não era a paciente que desconhecia os segredos, mas passou a ser a estagiária que ficaria sem a revelação deles. A estagiária continuaria pensando

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nela, sofrendo como ela, pois não havia conseguido de fato encerrar, não estaria livre. A devolutiva com os pais Na devolutiva com os pais lhes foram confirmadas as queixas que ambos trouxeram, com exceção da dificuldade escolar. Também foi frisada a necessidade da revelação da história de origem à Roberta e da importância de que ambos se sentissem preparados e que cuidassem de si para conseguirem oferecer à criança a estrutura que ela precisará para lidar com essa verdade, pois infelizmente não será uma situação fácil para nenhum membro da família. Por fim, informou-se aos pais a necessidade de que Roberta fosse encaminhada a um acompanhamento psicoterapêutico, com o qual ambos concordaram, e afirmaram que aguardariam para serem chamados pelo serviço de Psicologia. Também foi comentada a importância de ambos no processo de acompanhamento e da relevância de terem interagido de maneira ativa para que Roberta sempre estivesse presente às sessões agendadas. O envolvimento dos pais no processo e suas presenças constantes podem revelar não apenas o cuidado para com a filha, como também a necessidade de pedir ajuda e de mostrar suas dificuldades. A possibilidade de que ambos sejam encaminhados para atendimento surgiu como um cuidado também aos genitores para lidar com suas dificuldades e propor a construção de novas vinculações, de remalhagens que possam favorecer a assunção da resiliência familiar (Benghozi, 2010), ou seja, da constituição de vínculos mais saudáveis independentemente das primeiras vinculações estabelecidas na família de origem. Mentiras, fantasias e segredos: a transmissão pelo negativo

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Foi possível perceber a grande fantasia de Roberta a respeito de variados assuntos. Ora mostrava uma megalomania, ora uma regressão a fases anteriores do desenvolvimento de escopofilia e exibicionismo. Contava que tinha dez piscinas na casa de sua avó, que uma das meninas da escola comeu suas próprias fezes e que um de seus coleguinhas foi obrigado a ficar no corredor da escola nu por ter discordado da professora. Roberta também comentava que sua professora batia nos alunos e “dava bomba” a todos eles. As mentiras e fantasias de Roberta podem ter relação com o segredo que há em sua vida. Silva (2002) afirma que há sintomas que são gerados a partir de segredos, sendo que podem expressar de maneira simbólica as emoções conectadas a esse segredo. Dessa forma, Roberta age da mesma forma que seus pais, ela conta mentiras, uma vez que lhe omitem a verdade. Observou-se a utilização da reparação maníaca como mecanismo de defesa em grande parte das sessões. Em todos os momentos em que a menina revelou algo que demonstrava suas angústias, como falar que os pais têm mais carinho pelo irmão mais velho, era seguido da expressão “estou brincando”, porém pedia segredo, o que denota o citado mecanismo de defesa. A menina também demonstrou angústias mais intensas apenas em situações de meia-luz, como quando apagava as luzes e em dado momento afirmava “eu não tenho mãe”, porém voltava a dizer que estava brincando. Algumas vezes também afirmava que seus pais a mantinham no escuro, mas em seguida retirava o que disse, tentando reparar a expressão da angústia e não demonstrar o self verdadeiro. Apesar de ser uma fantasia, simbolicamente era uma grande verdade: a não revelação da origem de Roberta é uma forma angustiante de escuridão, que pode vir a impedir a melhor escolha de quais caminhos seguir. Importante lembrar que a história de adoção de uma pessoa é a sua história de vida. É necessário conhecer o passado para que se possa vivenciar o presente e seguir deste para o futuro. Acima de tudo, o adotado

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tem o direito de saber da sua história, pois quando sua origem é mantida em segredo gera-se uma sensação de vazio, de estranhamento e de incompletude, que pode ser traduzido em angústias impensáveis (Hueb, 2002). Roberta também apresenta grande desconfiança e curiosidade, o que pode ser percebido nos vários momentos em que pedia para ver os pertences da estagiária, além de estar constantemente tentando descobrir algo na sala que lhe fosse escondido. A menina demonstra saber do segredo dos pais, o que pode ser percebido ao afirmar que não possui mãe ou que não pode revelar o segredo que esconde porque também é um segredo dos pais e do irmão. Fato extremamente angustiante para a paciente, pois é ambivalente. Seria verdade o que imagina? Ou seria uma fantasia como as histórias que conta para a estagiária, colegas e familiares como se verdade fossem? Importante ressaltar que todo e qualquer filho, seja ele biológico ou adotivo, precisa ser antes de tudo “sonhado” por seus pais. Este sonho já define o lugar do filho no seio da família. No entanto, identifica-se como problema quando não há um destino possível para a criança e ela tem que atender a todo custo às exigências familiares. Entende-se que a falta de clareza na revelação do segredo à Roberta a mantém presa em uma emaranhada trama, o que a deixa insatisfeita consigo própria, insegura e incapaz de sentir-se boa o suficiente de forma a agradar seus pais. Por isso a constante mentira, desconfiança e extrema vigilância que mantém sobre todos à sua volta. Briani (2008) afirma que ainda que a criança não saiba sobre sua origem, é capaz de perceber internamente que há a presença de um segredo, o que pode levar a questões ansiogênicas. Essa consideração pode ser aplicada no caso de Roberta e seu constante sentimento de que algo lhe é escondido. Considerações Finais

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Em função do momento pelo qual Roberta está passando, das dificuldades dos pais em lhe informarem claramente sobre a sua história de origem, além da grande necessidade de controle da criança, esta foi encaminhada a um acompanhamento psicoterapêutico. A importância do apoio psicológico reside na possibilidade de constituir um espaço que lhe permita falar a respeito de algo que não é permitido dentro de seu contexto familiar, sendo que este segredo dificulta o processo de elaboração da rejeição e do fato de se sentir diferente dos demais membros da família. Apesar de manterem o segredo, os pais foram levados a pensar sobre a necessidade de revelá-lo, além de obterem um espaço no qual pudessem expressar seus receios sobre as consequências desta revelação. Ambos também foram convidados a lidar com o fato de que, como afirma Silva (2002), a revelação de um segredo pode ser de efeito curativo, mas também pode gerar divisões dentro da família. Foi possível perceber que, ao longo do processo, Roberta foi sentindo-se mais à vontade e que, apesar da sua necessidade de controle, suas fantasias foram diminuindo um pouco de frequência. No entanto, a necessidade de fantasiar também pode ter relação com a possibilidade de Roberta construir seu próprio mundo, de acordo com suas regras e suas verdades, no qual ela é a detentora do saber. A menina apresentou dificuldade em expressar o mundo interno, apresentando constantes resistências sobre falar da família, o que ocorria apenas em momentos esporádicos ou ao longo de pequenas frases no decorrer dos momentos de hora lúdica, acontecendo principalmente quando se brincava de “casinha”. Outro ponto relevante para o atendimento de Roberta foi a constante colaboração dos pais, sendo que sempre a levavam no horário marcado e se fizeram presentes em todos os momentos que foram solicitados, além de eles próprios se sentirem à vontade para solicitar entrevistas com a estagiária. Dessa forma, é importante recuperar a importância da participa-

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ção dos pais para a eficácia do processo interventivo, possibilitando flexibilidade e modificações no contexto familiar da criança. Importante também destacar a atuação da estagiária. Foi capaz de ser continente aos conteúdos bastante regressivos nela depositados pela paciente, assim como de manter a sua presença real, o que implica uma permanente interação de vincularidade entre paciente e terapeuta em termos psicanalíticos. Ser continente aos conteúdos nela depositados implica em assumir a função-mãe, de emprestar-lhe sua função ego, como a de perceber, conhecer, pensar, discriminar, significar, nomear aquilo que era evacuado, expulso de forma muito primitiva e agressiva (Zimerman, 1999). Conseguiu sair do campo de uma de privilegiada observadora para uma ativa participante, sem deixar de ser ela mesma, mostrando-se inteira nas outras sessões, mesmo quando a paciente tentava quebrar o vínculo, como ocorrido na quarta sessão. Esta se deu uma semana após a que a paciente havia bagunçado a sala com tinta, fazendo com que a estagiária simbolicamente ficasse mais tempo com ela ao ter de limpar toda a bagunça: Roberta chegou para a quarta sessão mais tranquila, comentou que havia ficado com raiva no final da sessão anterior, mas que já havia acabado. Tal expressão denota que, na transferência, a criança estaria dizendo que a estagiária também poderia ter ficado com raiva, mas que havia passado, já que estava ali esperando por ela como nos encontros anteriores. O psicodiagnóstico interventivo possibilitou a escuta não apenas das dificuldades da criança, mas de sua família, de modo a conter as angústias dos pais acerca do processo de revelação dos segredos familiares. A questão que se coloca não é da revelação em si como solucionadora dos traumas, mas de como a família enquanto grupo pode manejar esse processo juntamente com a criança, fortalecendo os vínculos entre pais e filhos e possibilitando a reelaboração de fantasmas que permeiam a estrutura familiar. O processo terapêutico deve estar a serviço

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dessa remalhagem, oferecendo suporte para que pais e filhos criem modos mais salutares de interação e de experiências de troca e transformação. A escuta dessas famílias por parte dos profissionais da Psicologia deve ser fomentada como recurso terapêutico voltado não apenas ao tratamento do sintoma ou ao desvelamento da queixa, mas ao desenvolvimento da resiliência familiar, tal como proposto por Benghozi (2005), o que só pode ser conduzido a partir da compreensão da família como fonte de apoio emocional para a expressão de sentimentos e para a construção de vínculos seguros. Referências Barbieri, V. (2008). Por uma ciência-profissão: O psicodiagnóstico interventivo como método de investigação científica. Psicologia em Estudo, 13(3), 575-584. Barbieri, V. (2010). Psicodiagnóstico tradicional e interventivo: Confronto de paradigmas? Psicologia: Teoria e Pesquisa, 26(3), 505-513. Barbieri, V., Jacquemin, A., & Biasoli-Alves, Z. M. M. B. (2004). Alcances e limites do psicodiagnóstico interventivo no tratamento de crianças anti-sociais. Paidéia (Ribeirão Preto), 14(28), 153-167. Barbieri, V., Jacquemin, A., & Biasoli-Alves, Z. M. M. (2007). O psicodiagnóstico interventivo como método terapêutico no tratamento infantil: Fundamentos teóricos e prática clínica. Psico (Porto Alegre), 38(2), 174-181. Barros, M. (2010). Poesia completa. São Paulo: Leya. Benghozi, P. (2005). Resiliência familiar e conjugal numa perspectiva psicanalítica dos laços. Psicologia Clínica, 17(2), 101-109. Benghozi, P. (2010). Malhagem, filiação e afiliação – Psicanálise dos vínculos: Casal, família, grupo, instituição e campo social. (E. D. Galery, Trad.). São Paulo: Vetor. Brasil (2009). Lei n. 12.010, de 3 de agosto de 2009 (2009). Dispõe sobre adoção; altera as Leis n. 8.069, de 13 de julho de 1990 Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga dispositivos da Lei no 10.406, de 10 de janeiro

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Práticas de saúde: Atendimento clínico cognitivo-comportamental de um caso de síndrome de Tourette Adriana da Silva Sena Luciana Maria da Silva Sabrina Martins Barroso O trabalho em saúde assume diversas formas, entre elas, a atuação clínica dos profissionais de Psicologia. A preparação para ser um psicólogo começa com o início da graduação e tem um importante avanço nos chamados estágios curriculares e extracurriculares. Nesse sentido, os serviços escola oferecem um local para o desenvolvimento profissional dos futuros psicólogos e, ainda, cria uma oportunidade de atendimento psicológico para pessoas da comunidade que não teriam condições de arcar financeiramente com um tratamento psicológico convencional. Nos Serviços Escola, antes chamados de Clínicas Escola, os estudantes de Psicologia realizam atividades de psicodiagnóstico, avaliação psicológica e atendimento clínico, supervisionados por um psicólogo, professor da instituição de ensino. Pode-se considerar, então, que os serviços de Psicologia são um ponto de troca entre as instituições de ensino e a comunidade. Por ser um local de formação, pode-se supor que exista uma seleção prévia dos casos, para que os estudantes não se deparem com algo para o qual não estarão prontos, todavia, essa prática não é adotada, por considerar-se que após a formatura não há esse tipo artificial de seleção. Nesse capítulo, apresentaremos um caso clínico de síndrome de Tourette atendido em um serviço escola de Psicologia sob enfoque teórico cognitivocomportamental. Para auxiliar na compreensão do caso apresentado, antes de descrever o processo clínico serão melhor

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explicados o que são a síndrome de Tourette e a abordagem cognitivo-comportamental. Síndrome de Tourette A Síndrome de Tourette foi relatada inicialmente em 1885 pelo médico francês Georges Gilles de la Tourette. Ele divulgou nove casos com características de tiques motores e vocais numerosos, em que a maioria das manifestações ocorria no rosto e nos membros superiores das pessoas acometidas (Marcelli, 1998), sendo o mais famoso caso divulgado o da marquesa de Dampierre (Teive et al., 2008). Após essa divulgação, Jean-Martin Charcot nomeou a patologia como Síndrome de Tourette (ST). Um registro anterior, presente no “Malleus Maleficarum”, famoso livro da Idade Média, que ensinava como identificar e interrogar bruxas, apresentou dois registros de pessoas que apresentavam comportamento verbal incontrolado. Esses comportamentos foram atribuídos à possessão demoníaca e foram “tratados” por meio de exorcismo (Germiniani et al., 2012). Com o passar dos anos, as explicações para a ST evoluíram da possessão demoníaca para a exacerbação de processos masturbatórios (Ferenczi, 1921), até ultrapassar essas concepções e chegar à explicação complexa da sua etiologia, marcadamente genética, adotada hoje (Germiniani et al., 2012). Esse não foi, entretanto, um processo simples. Em seu livro sobre a ST, “A Cursing Brain? The Histories of Tourette Syndrome” (“Um cérebro amaldiçoado? Histórias da Síndrome de Tourette”, tradução nossa), Kushner (1999) relata que o primeiro artigo apresentando a hipótese de origem genética da ST foi recusado por todos os periódicos norte-americanos para os quais foi enviado, sendo publicado apenas anos depois de suas primeiras tentativas de publicação, no British Journal of Psychiatry em 1968. A ST tem prevalência estimada em entre 1% e 2,9% na população geral (Teive et al., 2008), afetando pessoas de vários

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países, independentemente de classe social ou etnia e acometendo cerca de três a quatro vezes mais o sexo masculino, em relação ao sexo feminino (Teixeira et al., 2011). Segundo Santos (1998), a ST tem origem genética, ligada ao traço autossômico dominante e influenciada pelo sexo, o que explica a maior prevalência entre os homens. A ST se caracteriza como transtorno neuropsiquiátrico, diretamente associado aos núcleos basais (Guyton & Hall, 1998), com início na infância, que pode se agravar durante a adolescência e depois entrar em remissão ou pode perdurar ao longo de toda a vida, prejudicando-o no aspecto psicossocial (Pontes, 1998). Biologicamente, a desordem que favorece o aparecimento dos tiques se desenvolve a partir de anormalidades distintas envolvendo a ativação da saída inibitória dos núcleos basais, mais especificamente, nos circuitos motores, encarregados de gerar padrões de comportamento motor (Albin & Mink, 2006). Essa desordem está baseada em uma inervação dopaminérgica e serotonérgica densa no corpo estriado do encéfalo, que prejudica seu funcionamento adequado (Guyton, 1993; Albin & Mink, 2006). O funcionamento inadequado do estriado leva ao processamento também inadequado das informações motoras pelo córtex pré-frontal, responsável por selecionar os comportamentos motores que iremos emitir em dadas circunstâncias. Essa seleção pode ser guiada por informações internas (como memória e emoção) ou pelo contexto ambiental (Kolb & Whishaw, 2002). Segundo a quarta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM IV-TR), as características essenciais da ST consistem em: múltiplos tiques motores e no mínimo um tique vocal (Critério A). Os tiques podem aparecer simultaneamente ou em diferentes períodos, durante a doença. Os tiques ocorrem muitas vezes ao dia, de forma recorrente, ao longo de um período superior a 1 ano. Durante este período, jamais houve uma fase livre

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de tique superior a 3 meses consecutivos (Critério B). O início do transtorno ocorre antes dos 18 anos de idade (Critério C). Os tiques não se devem aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância (p. ex., estimulantes) ou a uma condição médica geral (p. ex., doença de Huntington ou encefalite pós-viral) (Critério D) (DSM IV-TR, 2002, p.136).

A 10ª edição do manual de Classificação Internacional das Doenças (CID 10) apresenta a ST com as seguintes características: tiques vocais frequentes e múltiplos, incluindo vocalizações, limpeza da garganta, grunhidos repetidos e explosivos. Por vezes, pode haver emissão de palavras ou frases obscenas, associadas em certos casos a uma ecopraxia gestual, que também pode manifestar componente obsceno (copropraxia) (CID 10, 2003, p. 82). Para que seja feito o diagnóstico de ST é necessário que os tiques estejam presentes há pelo menos um ano (Germiniani et al., 2012). A ST sofre influência emocional. Segundo Lambert e Kinsley (2006), os relatos dos pacientes evidenciam que os sintomas se tornam mais intensos quando as experiências se dão em momentos de ansiedade, estresse emocional ou excitação, facilitando o aparecimento das respostas de maneira excessiva. Essa exacerbação demonstra a ligação existente entre o aspecto emocional e os tiques na ST. É também importante perceber que a ST pode ser confundida com outros transtornos que também apresentam tiques e características similares, como por exemplo, a repetição compulsiva e o agravamento com o aumento da ansiedade, o que pode levar a confusões diagnósticas com o transtorno obsessivocompulsivo (Kapczinski, Quevedo, & Isquierdo, 2004) ou com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (Barlow, 2009). Uma parte importante do processo de diagnóstico diferencial consiste em verificar a presença de fator cognitivo na manutenção dos tiques e demais comportamentos. Kapczinski et

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al. (2004) salientam que na ST os tiques geralmente são precedidos por fenômenos sensoriais, incluindo sensações corporais (táteis, musculoesqueléticas e/ ou viscerais), ou sensações mentais, como sensação de tensão interna, incompletude, frustração ou desconforto, sem que haja interpretação cognitiva do tique, como geralmente ocorre no transtorno obsessivo-compulsivo. Estudos com pessoas diagnosticadas com ST indicam que os sintomas e o preconceito das pessoas com relação a eles geram dificuldades de integração social e, por vezes, inadaptação aos vários contextos (Teixeira et al., 2011). Crianças e adolescentes que sofrem com a doença são frequentemente discriminados e possuem desvantagens em termos de desenvolvimento psicossocial, pois seu comportamento pode ser considerado estranho ou desrespeitoso por colegas e professores. Essa condição pode contribuir para uma cronificação dos sintomas, assim como para o surgimento de outros transtornos de personalidade (DSM IV-TR, 2002). As formas de tratamento mais adotadas para a ST são a medicamentosa e a psicoterapia, com destaque para a abordagem psicoterapêutica cognitivocomportamental. Abordagem Cognitivo-Comportamental A Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) surgiu na década de 1950 e ganhou corpo na década seguinte, baseada nos trabalhos de Albert Ellis e Aaron T. Beck (Knapp & Beck, 2008). Em sua concepção básica encontra-se o “Modelo Cognitivo”, que explica a tríplice relação entre pensamento – emoção – comportamento, de forma interdependente e indissociável (Dattilio, 2004). Nesse modelo, entende-se que a forma de pensar sobre um contexto altera a maneira como nos sentimos e agimos nesse contexto, mas o contexto e a emoção também conseguem alterar a forma como interpretamos as situações.

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Na abordagem cognitivo-comportamental, os casos são atendidos utilizando-se uma integração de técnicas comportamentais e cognitivas, considerando que o afeto e o comportamento do indivíduo são determinados pelo modo como ele estrutura seu mundo em termos cognitivos (Rangé, 2008). Essa abordagem visa desenvolver a independência e resiliência dos clientes, por isso os terapeutas adotam uma postura de construção conjunta de soluções com os clientes, ao mesmo tempo clínica e didática/educacional. Ou seja, todos os aspectos da terapia são explicados ao cliente que, juntamente com o terapeuta, trabalham em uma relação de cooperação, na qual há o planejamento de estratégias para enfrentar os problemas que estão prejudicando a qualidade de vida do cliente (Knapp & Beck, 2008; Rangé, 2008). Em seu surgimento, a TCC adotou o modelo de psicoterapia breve, trabalhando com protocolos fechados de atendimento (Knapp & Beck, 2008). Por exemplo, o modelo proposto por Beck para o tratamento da depressão é composto por 20 sessões estruturadas, nas quais há, a priori, um planejamento do que deverá ser trabalhado junto ao cliente, mas que será adaptado segundo o ritmo e particularidades do cliente (Beck, 1997). Nas últimas décadas, a TCC tem adotado um modelo mais “aberto” de atendimento, mantendo os protocolos quando os casos têm objetivos específicos bem delineados, mas adotando um caráter de intervenção terapêutica sem prazo definido para os demais casos (Knapp, 2004). Os estudos mostram que a TCC tem modelos de tratamento para vários transtornos mentais com índices elevados de eficácia (Norte et al., 2011). As técnicas psicoterápicas na abordagem comportamental fornecem ferramentas que possibilitam a identificação de situações cotidianas, que atuam como eventos estressores e aumentam a intensidade ou gravidade de certos comportamentos (sintomas). Além disso, podem também amenizar os sintomas, nos casos de pessoas com ST, reduzindo o aparecimento dos tiques, bem como capacitando-as em estratégias a serem utiliza-

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das para autocontrole, convertendo-as em indivíduos mais preparados para lidar com ansiedade advinda das situações rotineiras. No caso de clientes com ST, o processo terapêutico foca em ensiná-lo a identificar as contingências que afloram os tiques, construindo conjuntamente os meios de enfrentamento que permitirão quebrar associações cognitivas que dificultem o funcionamento do indivíduo de maneira assertiva (Rangé, 2008). Outra característica da TCC que demonstra sua utilidade para o tratamento da ST é a demonstração que suas técnicas conseguem estabelecer modificações estruturais no cérebro. Ao trabalhar com a fala e com o desenvolvimento de padrões de pensamento e comportamento, a TCC consegue usar a plasticidade cerebral a seu favor, atuando e alterando os circuitos ligados diretamente com a percepção, emoção, memória e cognição (Landeira-Fernadez & Mello Cruz, 2007). Dessa forma, a TCC oferece uma perspectiva interessante para a integração com o campo da neurociência, uma vez que qualquer intervenção está vinculada a um suporte de pesquisa experimental e empírico (De Raedt, 2006). Baxter et al. (1992) conseguiram demonstrar, em um estudo feito com pacientes com transtorno obsessivo-compulsivo, que a TCC obteve resultados equivalentes ao da medicação antipsicótica para controlar o comportamento compulsivo. O estudo mostrou que, após 10 semanas de tratamento, 80% dos pacientes tratados com medicamentos e os tratados por psicoterapia apresentaram melhora significativa dos sintomas e voltaram a ter funcionamento adequado do núcleo caudado do hemisfério direito, que apresentava hiperfuncionamento antes do tratamento. Outros estudos comprovaram que a TCC também foi eficaz no tratamento de fobias específicas, pois restabeleceu o metabolismo dessas estruturas a padrões normais de ativação (Landeira-Fernandez & Silva, 2007). Visando exemplificar a relevância dos atendimentos em serviços escola e demonstrar a efetividade da abordagem

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cognitivo-comportamental, apresentamos a seguir um estudo de caso de síndrome de Tourette. Descrição do caso Maria Caracterização da cliente Maria (nome fictício), cliente do sexo feminino, tinha 28 anos quando iniciou o acompanhamento psicoterápico em um Serviço Escola em uma cidade de médio porte do interior da Bahia. À época, possuía segundo grau completo e trabalhava como manicure. Seus pais moravam na zona rural. Possuía dois irmãos casados, um residindo na zona rural e o outro na mesma cidade que a cliente. Maria foi residir com a tia para estudar e mantinha contato esporádico com os pais e irmãos. Antes de iniciar o acompanhamento no serviço escola já havia sido atendida por dois psiquiatras e um psicólogo, dos quais não trazia relatos de sucesso terapêutico. Pouco tempo após o início do acompanhamento relatado no presente trabalho, Maria recebeu diagnóstico de Síndrome de Tourette. Contextualização técnica dos atendimentos O acompanhamento de Maria foi iniciado em março de 2010, seguindo o referencial cognitivo-comportamental. A cliente foi atendida por uma estagiária em Psicologia, supervisionada por professor-psicólogo responsável. O acompanhamento foi feito durante 15 meses, totalizando 40 sessões de atendimento psicoterápico. Com relação aos aspectos éticos, a equipe de atendimento (supervisor e estagiária) seguiram recomendações do Conselho Federal de Psicologia e da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde sobre pesquisas com seres humanos. A equipe possui, também, a autorização de Maria para utilizar o relato e

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análise de seu atendimento para publicação, manifesto por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Ao longo dos atendimentos várias técnicas foram empregadas. Os tiques foram sistematicamente contados ao longo de todos os atendimentos e organizados em forma de tabelas, especificando tiques vocais e motores. Visando melhorar o autocontrole da cliente e minimizar sua ansiedade foram feitas sessões educativas sobre a ansiedade, ensinou-se a Maria as técnicas de respiração diafragmática e relaxamento progressivo. A respiração diafragmática consiste em treinar um tipo diferenciado de respiração, em um ritmo lento de inspiração-expiração visando ativar o diafragma, estimulando um maior controle parassimpático e possibilitando uma influência em todo o corpo, por meio do ciclo de respiratório (Rangé, 2008). Já o relaxamento progressivo consiste em tensionar e relaxar diversos grupos musculares em uma ordem pré-determinada, com objetivo de fornecer maior conforto ao corpo. Esta técnica, assim como a respiração diafragmática, está diretamente ligada à mensagem fornecida ao cérebro sobre a maneira como o mesmo deve funcionar e contribui para que os desconfortos provocados pela ansiedade diminuam. Ou seja, “o relaxamento é um processo psicofisiológico que envolve respostas somáticas e autônomas, informes verbais de tranquilidade e bem-estar, como estado de aquiescência motora” (Rangé, 2008, p. 115). A técnica “treino de assertividade” também foi utilizada e consiste em um treino de expressão verbal e emocional, de forma a conseguir manifestar expressões de afetos e opiniões de modo direto, sem impor-se sobre outras pessoas, mas conseguindo defender seus direitos e pontos de vista, conquistando um tratamento justo, igualitário e livre de demandas abusivas (Rangé, 2008; Del Prette, A., & Del Prette, Z. A., 1999). Essa técnica foi utilizada de forma associada ao relaxamento progressivo. Deste modo, após o relaxamento, o terapeuta conduz o cliente a discriminar as imagem mentais e atitudes temidas anteriormente. Isso

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permite trabalhar essas imagens durante a sessão, agregando maneiras favoráveis de lidar com esses comportamentos até que deixem de eliciar ansiedade. Com a evolução do caso e a constatação de muitos comportamentos de fuga e esquiva (fazer ou deixar de fazer algo para evitar situações geradoras de ansiedade), foi proposto um treinamento de habilidades sociais. Nesse tipo de treinamento, situações e metas são estabelecidas e o comportamento apresentado pelo cliente é analisado em conjunto com o terapeuta e propostas de comportamentos mais funcionais são discutidas, ensaiadas e testadas pelo cliente, de forma a serem incorporadas ao seu repertório comportamental (Del Prette, A., & Del Prette, Z. A., 1999). Este treinamento permite uma interação pessoa/situação implicando o indivíduo no ambiente que o rodeia e diminuindo a probabilidade de transtornos psicológicos (Caballo, 2008). Utilizou-se, também, sessões de ensaio de comportamento/dramatização (role-play). Essa técnica auxilia o cliente a colocar-se mais diretamente em contato com o comportamento e ampliar seu repertório por meio da modelagem diferencial de habilidades para resolver situações reais, trazidas pelo cliente, e situações típicas simuladas durante as sessões (Rangé, 2008). Outra técnica empregada foi a Intervenção psicoeducacional, que consiste em explicar, levar material para leitura e retirar dúvidas de clientes sobre assuntos específicos relacionados a seus sintomas. No presente caso, os temas mais abordados relacionavam-se à ansiedade, assertividade e à própria ST. Considerando as características da ST e por entender o funcionamento e a maneira com que o corpo humano reage diante dos estímulos considerados ameaçadores no cotidiano, aconselhou-se a cliente a praticar algum tipo de atividade física. Maria escolheu frequentar uma academia e fazer musculação. A história de Maria

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Maria veio ao Serviço de Psicologia em companhia da sua tia, desejando uma cura para os tiques que apresentava. Ela e a tia relataram como queixa inicial que sua fala trazia constantemente um palavrão (“Buceta”), que incomodava muito os familiares e amigos, o que a levou a se isolar socialmente mais a cada dia. A tia complementou a queixa, indicando que, além do palavrão, Maria apresentava tiques vocais e motores, incluindo levantar os olhos como se estivesse olhando para cima, pigarrear e fazer um som nasal. Maria descreveu que um dos primeiros tiques foi percebido e apontado por um dos seus primos, que estudava com ela, mas a cliente não soube precisar quando isso aconteceu. Em seu relato, Maria conta que o primo percebeu que ela virava os olhos várias vezes e, com o passar do tempo, foram aparecendo outros tiques. A cliente contou que foi acompanhada por certo tempo por dois psiquiatras e por um psicólogo, mas que nenhum sequer mencionou a possibilidade de que seus tiques fossem gerados por algum tipo de transtorno. Essa vivência a marcou negativamente, pois sofria várias queixas e críticas familiares por seus tiques e uma vez que os profissionais de saúde a percebiam como “normal”, a família acreditava que ela tinha controle sobre seu comportamento. A tia de Maria reforça essa interpretação, dizendo que sempre teve muito carinho pela sobrinha e que pedia constantemente para que ela parasse de falar palavrão “porque fica feio para uma jovem falar estas coisas”. A família não acreditava quando Maria argumentava que ela não tinha culpa, que não sabia o que acontecia com ela e que não percebia o que falava, só tomando conhecimento do tique devido aos relatos e brincadeiras que surgiam ao seu redor. Diante das características relatadas e também da observação de vários tiques durante a entrevista inicial, a estagiária buscou na literatura referências sobre transtornos ligados ao surgimento de tiques vocais e motores, chegando a ler vários trabalhos sobre ST. Com essa hipótese em mente, Maria foi

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encaminhada a um psiquiatra acompanhada do relato com a hipótese diagnóstica da estagiária e o psiquiatra confirmou o diagnóstico de ST. No início do acompanhamento, a presença dos tiques era constante e se agravava pelo momento de vida conturbado que Maria estava vivenciando. Maria havia iniciado um relacionamento com um rapaz que sua família não aprovava. Após iniciar o namoro, a relação de Maria com sua tia, antes carinhosa e estável, tornou-se conflituosa. A tia passou a se dirigir a Maria apenas em caso de necessidade e isso abalou seriamente a cliente, já que a convivência com outros tios e primos era mínima, uma vez que eles debochavam de seus tiques. O sofrimento de Maria se intensificava por sua dificuldade em se expressar para outras pessoas, tornando difícil para ela expor suas opiniões e aumentando sua angústia. A condução do caso exigiu bastante calma e cautela por parte da estagiária, pois além da delicadeza da situação e do sofrimento da cliente, existia uma referência negativa prévia aos profissionais de saúde mental, em especial de Psicologia, manifesta por comentários como “médico para doido” e por relatos de seus acompanhamentos anteriores, antes do acompanhamento no serviço escola e do diagnóstico de ST. Foi preciso que a estagiária auxiliasse a quebrar diversas construções disfuncionais e estigmatizadas da cliente sobre quem são os profissionais de saúde mental e quem os procura. A cliente comentou, diversas vezes, que não havia dito as pessoas da sua família que estava fazendo psicoterapia, pois tinha muito medo de ser rotulada como “maluca”. Somente após a quebra dessas crenças disfuncionais é que a cliente compartilhou com familiares e amigos sobre seu tratamento, desmistificando para os mesmos sobre os profissionais “psi”. Esse foi um indicativo que o processo de quebrar essas crenças disfuncionais auxiliou no fortalecimento do vínculo terapêutico, indispensável para a eficácia do tratamento.

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Logo após o início dos atendimentos Maria terminou seu relacionamento com o namorado, diminuindo a pressão e crítica familiar a que estava submetida. Após alguns atendimentos, e do uso do diagnóstico cognitivo-comportamental (flecha descendente), pode-se entender a ligação entre a manifestação dos tiques e possíveis agentes estressores ambientais, ilustrado por uma fala constante de Maria: “eu sou muito ansiosa, acho que é porque quando eu coloco alguma coisa na cabeça fica martelando o tempo todo, não sai do meu pensamento”. A ansiedade, pensamento automático disfuncional e reação de fuga/esquiva ficaram bastante evidentes quando Maria relatou um episódio em que encontrou seu ex-namorado no caminho para sua casa. Em sua descrição: eu agora tenho que mudar o horário em que vou para a academia, vou passar por outro caminho para evitar encontrar com ele. Eu tô com medo de que alguém conhecido tenha visto eu conversando e conte para a minha tia. Eu fico com medo de que ela pense que eu ainda estou me encontrando com meu ex-namorado. Eu também tenho medo de que ele me xingue e que fale coisas desagradáveis na frente de todo mundo.

Maria antecipava acontecimentos improváveis e construía crenças persecutórias, o que elevava seu nível de ansiedade, que passava a se manifestar com a perda do controle corporal e a exacerbação dos tiques. Episódios como esse mostraram a necessidade de intervenção psicoeducativas com Maria sobre a ST. Trabalhou-se com a cliente o que é a ST e o que realmente acontecia com ela, tanto em termos biológicos quanto comportamentais. Essa abordagem permitiu à cliente entender como poderia colaborar com o tratamento e mudar sua postura para uma percepção mais positiva do tratamento. Como os tiques eram claramente fonte de sofrimento para a cliente, a partir da segunda sessão de acompanhamento do

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caso, e durante todos os demais atendimentos, os tiques de Maria foram quantificados e registrados em uma tabela, dividida em categorias (Tabela 1) e em um gráfico (Figura 1). Na tabela, os tiques foram agrupados em: tiques vocais, motores e coprolalia. Esta última categoria ainda que seja um tique vocal, foi colocada separadamente por se tratar da característica que ocasionava maior incômodo para Maria e seus familiares. Os tiques apresentados por Maria ao longo das sessões foram: 1. Motores (virar os olhos, fazer uma expressão com a boca como se estivesse sorrindo e entortar as mãos); 2. Vocais (fazer sons com a garganta, pigarrear); 3. Coprolalia (repetir a palavra “Buceta” ao longo das frases). Inicialmente os tiques aconteciam em média 48 vezes por sessão, distribuídos entre os tiques motores e vocais, durante o atendimento de 50 minutos. De acordo com as características da ST, o planejamento de atividades estratégicas foi direcionado durante as sessões para a redução da ansiedade, com a consequente diminuição dos tiques. As técnicas treino de assertividade e de habilidades sociais, ensaio de comportamento/dramatização, respiração diafragmática e atividades físicas foram planejadas e executadas ao longo das sessões e como “tarefas de casa”. As tarefas de casa fazem parte das atividades estruturadas previstas pela TCC como forma de maximizar o impacto da psicoterapia, por permitir aos clientes manterem-se pensando ou executando tarefas terapêuticas direcionadas fora do horário de atendimento clínico (Knapp & Beck, 2008). Após as 10 primeiras sessões (início do tratamento), o aparecimento dos tiques foi diminuindo progressivamente, reduzindo-se até quatro tiques por sessão, a partir da 15ª sessão. Nos pressupostos teóricos da TCC entendemos que nossos comportamentos são estabelecidos por meio da relação entre o ambiente, o estímulo e a história prévia do indivíduo (Rangé, 2008). Ao que Abreu-Rodrigues e Ribeiro (2005) complementam, ao indicarem que ao interagir com um novo estí-

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mulo, tendemos a utilizar modelos de comportamento aprendidos em momentos anteriores. Portanto, ao perceber que Maria demonstrava bastante ansiedade ao conviver e se expressar para outras pessoas, foi possível perceber que existia um condicionamento prévio reforçado ao longo de sua história de vida. Tabela 1. Apresentação dos Resultados com os Dados Finais em seus Respectivos Períodos Período Quantidade Tiques Tiques Coprolalia Total de sessões motores vocais Início do 10 96 76 108 80 tratamento Remédio 10 05 00 05 00 normal Aumento do 10 37 01 05 85 remédio Apenas com 10 08 01 09 28 psicoterapia

Figura 1. Número de tiques por sessão segundo as fases de acompanhamento.

O relato de Maria indicava que, à exceção de sua tia, os familiares a ridicularizavam por seus tiques e uma vez que não tinha o respaldo de um diagnóstico e que seu comportamento era interpretado como intencional, Maria não conseguia argumentar.

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Como as críticas deixavam a cliente e sua tia muito constrangidas, Maria passou a não frequentar reuniões familiares e a se manter em seu quarto quando algum familiar ia até a casa da tia, onde morava. Ela passou a evitar conversar com parentes, para não emitir tiques enquanto falava, o que colaborou para se tornar cada vez menos assertiva. Os primeiros contatos entre a estagiária e Maria também indicavam essa dificuldade de contato social. Ao ser indagada sobre o que a trazia ao Serviço de Psicologia, a resposta de Maria foi: “fala tu tia, que sabe melhor do que eu”, demonstrando uma dificuldade de estabelecer conversações com pessoas estranhas. Esse tipo de desconforto foi observado em outros episódios ao longo dos demais atendimentos, mostrando o aumento da ansiedade e a tentativa de evitar o contato social quando possível. Rangé (2008) nos descreve teoricamente o que provavelmente ocorreu com Maria: O princípio teórico pressupõe que comportamentos de preocupação e medo são aprendidos a partir da interação com modelos autoritários durante o desenvolvimento e inibe as respostas espontâneas e naturais da pessoa, que deixa de expressar suas emoções, evita contatos visuais diretos e teme apresentar suas opiniões aos outros (Rangé, 2008, p. 120-121).

Landeira-Fernadez e Silva (2007) atentam que as experiências prévias de vida “definem as condições em que as respostas são selecionadas e passam a compor o repertório comportamental do organismo” (p. 18). A experiência aversiva prévia de convívio de Maria com seus familiares a condicionou de forma a evitar novas situações de encontro familiar, dificultando para que desenvolvesse comportamentos para um convívio familiar e social mais favorável, respeitando sua condição de portadora de portadora de ST. Aprender a colocar-se e fazer com que a respeitassem mesmo emitindo tiques fez parte do processo

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terapêutico de Maria e, por esta razão, o treinamento de habilidades sociais fez parte da intervenção com a cliente. Este treinamento visou quebrar as associações estabelecidas entre os tiques, o sentimento de desconforto e o contato com outras pessoas. O acompanhamento de Maria seguiu de maneira satisfatória até que a interação entre a intervenção medicamentosa e a psicoterápica entrou em desacerto. O acompanhamento psiquiátrico de Maria também começou em março de 2010. Assim que recebeu o diagnóstico de ST a cliente passou a fazer uso do medicamento Orap®. A administração inicialmente foi de 0,5 miligramas e posteriormente essa dose foi aumentada, durante o ano de 2010, até que Maria passou a utilizar dois miligramas diariamente. Este fármaco é um neuroléptico que se caracteriza por promover “forma extrema de lentificação ou ausência de movimentos motores” (Stahl, 2010, p. 215). É mais comumente conhecido como antipsicótico e sua utilização costumeira se dá no tratamento da esquizofrenia e também para “supressão de tiques fônicos e motores em pacientes com síndrome de Tourette” (Korolkovas & França, 2008, p. 310). Os antipsicóticos agem sobre os receptores da dopamina, impedindo sua ligação sináptica. Em janeiro de 2011, Maria retornou ao psiquiatra para o acompanhamento. Apesar da drástica redução dos tiques apresentada, o médico sugeriu o aumento do medicamento. O profissional alegou que o aumento da dosagem medicamentosa suprimiria os tiques em definitivo ou os reduziria ainda mais e ela aceitou a alteração de dosagem. O uso diário do Orap® passou de 2 mg para 4 mg. O aumento da dose coincidiu com o recesso do Serviço Escola em que Maria estava sendo acompanhada, de forma que as sessões de psicoterapia só foram retomadas no início de março de 2011. De imediato foi percebido o aumento dos tiques anteriormente observados e o surgimento de um novo tique motor, um movimento de descida do lábio inferior, que não ocorria

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anteriormente. Além do aumento dos tiques durante as sessões, Maria também passou a falar de maneira arrastada e muito mais lenta do que era seu habitual na manifestação do seu raciocínio durante os diálogos estabelecidos nas sessões. Passado o momento de retomada do acompanhamento e sem outras alterações significativas na vida da cliente além do aumento da medicação, a hipótese construída foi a de que o remédio poderia ter efeitos colaterais que estavam gerando o novo aumento dos tiques e o surgimento de novos trejeitos. Em pesquisa sobre a medicação observou-se que o Orap® pode causar efeitos colaterais referentes às áreas extrapiramidais o que propicia distúrbios motores (Rang, Dale, & Ritter, 2001). Além disso, devido aos antipsicóticos bloquearem as vias dopaminérgicas, este aumento na manifestação dos tiques e o aparecimento de outro tique, parece ter relação direta à discinesia tardia, como descrito por Stahl (2010): Os receptores D2 presentes na via dopaminérgica nigroestriada podem produzir um transtorno de movimento hipercinético denominado discinesia tardia. Isto provoca movimentos faciais e de língua, como mascar constante, protrusão da língua e caretas faciais, assim como movimentos dos membros que podem ser rápidos, espasmódicos ou coreiformes (“dança”). A discinesia tardia é, portanto, causada pela a administração prolongada de antipsicoticos convencionais e é supostamente medida por alterações, por vezes irreversíveis, nos receptores D2 na via nigroestriada. Mais especificamente, supõe-se que esses receptores se tornem supersensíveis ou “suprarregulados” (isto é, em números aumentados), talvez na tentativa inútil de sobrepujar o bloqueio induzido pela droga (Stahl, 2010, p. 222).

Neste sentido, o aumento da dose do fármaco pareceu favorecer o aparecimento dos tiques de forma crescente. Como se tratava apenas de uma hipótese, Maria foi acompanhada por um período de um mês e meio, sem que qualquer tentativa de

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intervenção na medicação fosse feita. A presença dos tiques nesse período ficou em uma média de 43 tiques por sessão. A hipótese de efeito colateral do medicamento ganhava força com a manutenção dos tiques apesar do rebaixamento da ansiedade da cliente. Por isso e por temer que o agravamento do quadro se tornasse irreversível, a estagiária incluiu na agenda de sessão9 conversar com a cliente sobre suas dúvidas com relação à medicação utilizada e propor um contato com o psiquiatra que a acompanhava. A cliente concordou que a estagiária marcasse um encontro com o seu psiquiatra e a acompanhou a esse encontro. Após explicar ao psiquiatra sobre a alteração do quadro de Maria, ilustrando com a contagem dos tiques, feita desde a segunda sessão, a estagiária propôs a retirada da medicação por um período de tempo, para melhor avaliação. O médico e Maria concordaram e o uso do medicamento foi suspenso por 10 semanas. Toda a proposta foi discutida a fim de que não ocorressem danos para a paciente e, com a anuência da mesma, para não ferir a ética no atendimento. Logo que o uso do medicamento foi suspenso, observouse uma redução na quantidade de tiques emitidos por Maria nas sessões psicoterápicas. Os tiques passaram a uma média de 28 por encontro. Após 10 sessões sem o uso do medicamento, observou-se a redução de 28 para 12 tiques. No entanto, não se alcançou o número obtido antes do aumento da dosagem do Orap®, que foi de quatro tiques por sessão. Não houve, também, o desaparecimento do tique no lábio, adquirido após a alteração da dosagem medicamentosa, embora tenha havido redução de sua manifestação.

Na abordagem cognitivo-comportamental as sessões de atendimento têm tempo e formato pré-determinado. Em toda sessão há um momento chamado de “agenda”, em que o terapeuta traz para a conversa temas que considera relevantes para o andamento do caso. 9

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Devido às características específicas de um Serviço Escola, foi indicada a necessidade de encerramento do atendimento de Maria pela estagiária. Assim, as três últimas sessões foram dedicadas a preparar o encerramento dos encontros, registrar a presença dos tiques e checar o desenvolvimento e generalização das habilidades trabalhadas com a cliente desde o início do atendimento. Ao final dos atendimentos, o número de tiques havia sido novamente reduzido, tendo sido observados seis tiques na última sessão, seguindo cliente sem medicação. Pensando práticas de saúde à luz do caso Maria A análise do caso de Maria permite algumas constatações e questionamentos importantes. Em primeiro lugar fica evidente o potencial positivo da intervenção psicoterapêutica com abordagem cognitivo-comportamental para o tratamento da ST e para a melhoria na qualidade de vida desses clientes. Permitiu também elaborar que a participação ativa do paciente é fundamental para o tratamento. No caso descrito, a participação ativa foi adotada pela cliente na definição de metas terapêuticas, na realização das tarefas de casa, na incorporação dos tópicos discutidos e papéis trabalhados em sua vida cotidiana, em sua opção por tentar ficar sem o medicamento, entre outros momentos. Isso propicia um entendimento de que as pessoas com ST, ao se entenderem em suas dificuldades e tornarem-se mais conscientes das suas escolhas, podem estabelecer maneiras mais adequadas de responder a contingências cotidianas de forma assertiva. Ao longo dos atendimentos, muitos aspectos puderam ser trabalhados com Maria, auxiliando-a a perceber-se para além da ST e a aprender a colocar-se e exigir respeito. Ao aprender a controlar-se, baixar sua ansiedade por meio da respiração diafragmática e do relaxamento progressivo e trabalhar suas habilidades sociais e assertividade, o acompanhamento terapêuti-

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co contribuiu para que Maria baixasse sua emissão de tiques. Mais do que isso, auxiliou a melhora de sua qualidade de vida. Fica igualmente evidenciada a relevância dos Serviços Escola de Psicologia, permitindo à população receber um atendimento de qualidade, sem custo e auxiliando na formação de profissionais comprometidos e éticos. É claro que esse serviço tem limites e no presente caso dois deles dificultaram a condução do atendimento. Por estar vinculado a uma universidade, os Serviços Escola de Psicologia seguem o calendário acadêmico, o que faz com que os atendimentos sejam pausados duas vezes ao ano. Essas pausas, embora necessárias para a organização acadêmica dos serviços, podem ser prejudiciais aos atendimentos, pois nem sempre ocorrem quando os clientes estão estabilizados ou em um momento em que “poderiam” ter um recesso. A segunda limitação é que os estagiários têm tempo pré-determinado para ficar nos serviços escola, o que pode levar à necessidade de troca de profissional antes do fim do processo terapêutico, o que quebra o vínculo já estabelecido e pode dificultar o acompanhamento dos casos. Apesar dessas limitações, esse tipo de serviço tem mostrado grandes benefícios para a formação dos profissionais de Psicologia e para a comunidade geral, especialmente de baixa renda. É igualmente uma boa oportunidade para mostrar como profissionais de Psicologia e Psiquiatria podem trabalhar de forma conjunta, visando o bem do cliente. No presente relato, observouse momentos de encontro e desencontro entre a Psicologia e a Psiquiatria, inicialmente as duas se uniram para descobrir o diagnóstico correto de Maria, redimindo os erros de profissionais anteriores das duas profissões. Em um segundo momento, quando o psiquiatra de Maria resolveu de forma unilateral aumentar a dosagem de sua medicação mesmo observando que o quadro estava estável e que os tiques tinham diminuído, as áreas se distanciaram.

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A Psicologia é uma ciência nova, tendo sua prática profissional regulamentada no Brasil em 1962 (Brasil, 1962) e que ainda está consolidando sua posição como prática de saúde mental. Por outro lado, a área da Psiquiatria se consolidou fazendo diagnósticos e uso de tratamentos convencionais, de base medicamentosa. Essas áreas têm muitos pontos de encontro e podem colaborar mutuamente para tratamentos de transtornos mentais. No caso de Maria foi a estagiária que encaminhou a cliente para a psiquiatria, buscando analisar a existência de ST. No início de seu acompanhamento, a medicação somou-se à intervenção psicoterapêutica, o que provavelmente contribuiu para a rápida resposta de Maria ao tratamento. A alteração da dosagem da medicação sem discussão com a estagiária representou um distanciamento entre essas áreas e não teve bons efeitos. Se havia dúvidas sobre isso, a redução dos tiques com a retirada da medicação o demonstrou. Mas esse equívoco foi retificado quando a Psicologia e a Psiquiatria voltaram a conversar. O médico que acompanhou Maria mostrou-se sensível aos dados mostrados pela estagiária e se mostrou aberto a mudar sua prescrição, reconhecendo que uma conduta alternativa poderia ser melhor para Maria. Há uma grande discussão na comunidade científica sobre a hipermedicalização da população, sobre a equivalência de efetividade da psicoterapia ao tratamento farmacológico em várias patologias psiquiátricas e sobre o uso de práticas alternativas, como arteterapia, meditação e outras como formas de tratamento. De acordo com o entendimento do modelo biomédico exposto por Capra (2007), é notória a divisão existente entre indivíduo e a compreensão da doença: O problema central da assistência contemporânea à saúde é o conceito biomédico de doença, de acordo com o qual são entidades bem definidas que envolvem mudanças estruturais em nível celular e têm raízes causais únicas. O modelo biomédico

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deixa margem a várias espécies de fatores causativos, mas a tendência dos pesquisadores é aderir à doutrina de “uma doença, uma causa” (Capra, 2007, p. 142).

Outro ponto que merece destaque no presente relato de caso é que a atuação da Psicologia pode ser considerada psicobiológica, uma vez que as intervenções psicoterapêuticas mostraram-se úteis para a regulação da química cerebral, condição necessária para a redução dos tiques. A palavra e a alteração de hábitos de vida (repertórios comportamentais) sofrem influência biológica, mas aprende-se a cada novo estudo que esses aspectos podem também alterar a química cerebral e aspectos biológicos de todo o corpo humano (princípio base de todo processo de somatização). Infelizmente, pelo presente trabalho tratar-se de um estudo de caso, não é possível estabelecer relações diretas entre as intervenções da estagiária e os aspectos biológicos, mas os resultados obtidos deixam a indicação de um relevante (e promissor) foco para estudos futuros, com metodologia mais adequada. Esperamos, ainda, que novos estudos sobre a ST e a evolução do contato da Psicologia com a Psiquiatria auxiliem na construção de práticas na área da saúde mental mais atentas, mais humanas e comprometidas com a qualidade de vida e não apenas com a eliminação dos sintomas. Referências Abreu-Rodrigues, J., & Ribeiro, M. R. (2005). Análise do comportamento: Pesquisa, teoria e aplicação. Porto Alegre: Artmed. Albin, R. L., & Mink, J. W. (2006). Recent advances in Tourette syndrome research. Trends in Neurociences, 29(3), 175-182. Barlow, D. H. (Org.) (2009). Manual clínico dos transtornos psicológicos. (4ª ed.). Porto Alegre: Artmed.

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Histórias de vida e vivências familiares de jovens travestis Roberta Noronha Azevedo Giancarlo Spizzirri Fabio Scorsolini-Comin As transformações no modo de definir e compreender a instituição familiar têm ampliado as possibilidades de discussão em torno de arranjos cada vez mais presentes na contemporaneidade. A pluralidade observada no cotidiano, representada por adjetivos como: “monoparental, homoparental, recomposta, desconstruída, clonada, gerada artificialmente, atacado do interior por pretensos negadores da diferença entre os sexos” (Roudinesco, 2003, p. 10) tem promovido debates acerca do que vem a ser, de fato, a família no início desse século. Ao pensarmos os três grandes períodos da evolução da família (tradicional, moderna e contemporânea), estaríamos, desde os anos 1960, sob a égide da chamada família contemporânea ou pós-moderna, que une duas pessoas em busca de realizações íntimas ou realização sexual, caracterizada pelas feridas íntimas, violências silenciosas e pelas lembranças recalcadas, em contraposição às ideias de transmissão do patrimônio (tradicional) e de amor romântico (moderna) (Roudinesco, 2003). Os estudos contemporâneos acerca da família pontuam, desse modo, os acelerados processos de mudança que incidem e redefinem esse objeto de investigação, o que faz com que a emergência de um campo denominado Psicologia da Família seja suficientemente amplo e possa abarcar diferentes tradições epistemológicas e formas de avaliação e de intervenção (Baptista & Teodoro, 2012). A tarefa de definir a família de hoje para o futuro, por exemplo, deve considerar a criação dos filhos do casal

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pelos avós, a adoção internacional, os filhos da homoparentalidade, dentre outras configurações e processos envolvidos na transformação da instituição familiar. Apesar da diversidade dos estudos sobre família, são pouco frequentes as investigações sobre as comunidades LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), em particular de travestis, havendo maior investimento nas discussões sobre gênero, práticas de saúde, políticas públicas e direitos humanos, em um movimento que pode ser considerado recente de inclusão das temáticas LGBT nos meios acadêmicos brasileiros (Cardoso & Ferro, 2012; Grossi, 2003; Moscheta, 2011; Peres, 2012; Zambrano, 2006). Os estudos existentes sobre família nesse contexto concentram-se tanto na figura dos pais como aqueles que podem se separar e decidir por experienciar relações homoafetivas (Campos, 2012) como nos pais frente à tarefa de educar filhos homossexuais, por exemplo (Telingator & Patterson, 2008; Vecho & Schneider, 2005). No entanto, não só o debate sobre as travestis não é abordado de modo suficiente, como são pouco expressivas as pesquisas que destacam suas vivências familiares e trajetórias desenvolvimentais. Desse modo, é mister que os estudos abarquem os processos de ruptura e de permanência que coexistem nas múltiplas configurações conjugais e familiares (Féres-Carneiro, 2009) e o modo como têm repercutido nas relações de gênero, no exercício da parentalidade (Cecílio, Scorsolini-Comin, & Santos, 2013) e na saúde emocional dos membros da família. Assim, o presente estudo destaca as travestis, ou seja, pessoas que utilizam vestimentas e adornos do sexo oposto e que podem ou não fazer uso de próteses e hormônios para a transformação de seus corpos, mas que não têm o desejo de se submeterem a cirurgias de redesignação sexual (Araújo Júnior, 2006; Peres, 2009). A partir desse panorama, o objetivo deste estudo foi investigar as relações familiares em jovens travestis que trabalham como profissionais do sexo.

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Os encontros com as histórias de vida de Patrícia e Ketlen Em função da característica qualitativa e da necessidade de se valorizar o caráter único do discurso dos participantes, foi utilizado como método de pesquisa o estudo de caso. Yin (2005) aponta que a finalidade da pesquisa que utiliza o estudo de caso é sempre sistêmica, ampla e integrada, visando a preservar e compreender o caso no seu todo e na sua unicidade. Do ponto de vista da técnica, foram utilizadas entrevistas, que são fontes essenciais de evidências para o estudo de caso. Participaram do estudo (Azevedo, 2008) duas jovens travestis do sexo masculino que viviam durante tempo integral como mulheres, identificadas como Patrícia (24 anos de idade) e Ketlen (22 anos de idade). Foi garantido às participantes que suas identidades não seriam reveladas. Seus nomes foram substituídos por nomes fictícios, a fim de preservar seu anonimato, e este cuidado também foi estendido a qualquer informação prestada que pudesse identificá-las. Antes da realização das entrevistas, foi lido e assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Foi utilizado um roteiro de entrevista semiestruturado, que contemplou como temas de interesse os seguintes núcleos: trajetória pessoal ao longo do ciclo vital, vivências afetivas na família de origem, vivências afetivas nos relacionamentos de casal, vivências sociais, sexuais, profissionais e relacionadas à identidade de gênero, práticas de saúde e perspectivas futuras de desenvolvimento. Especificamente para este capítulo, foi realizado um recorte e analisadas em profundidade apenas as questões relacionadas ao domínio familiar e às fontes de apoio das participantes. No primeiro contato com as participantes foi feita a apresentação da pesquisadora responsável e do estudo, convidando-as a participarem da pesquisa. Com uma delas este primeiro contato foi feito por telefone e com a segunda,

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pessoalmente. Ambas aceitaram participar do trabalho. Foi agendado um encontro em horário e local preferido pelas participantes, a fim de realizar as entrevistas. Ambas preferiram marcar o encontro em sua residência. Optou-se pela entrevista semiestruturada, já que esta facilita a organização dos temas a serem explorados. Prioritariamente, as perguntas foram feitas de forma aberta para dar mais liberdade de resposta às entrevistadas, facilitando a percepção de suas atitudes e valores. A entrevista com a participante Patrícia teve duração de três horas e vinte minutos e a entrevista com a participante Ketlen teve duração de três horas e cinco minutos. Ambas foram questionadas durante a entrevista se preferiam marcar outro encontro, dada a extensão do roteiro. No entanto, optaram em realizá-la nessa ocasião e mostraram-se colaborativas e motivadas. A análise foi baseada no referencial teórico e metodológico da fenomenologia. A fenomenologia, cujos principais proponentes foram Husserl e Heidegger, surgiu no campo da filosofia como uma reação ao positivismo que considerava válido somente os fenômenos pesquisados empiricamente, método apropriado assim para as ciências naturais. Husserl altera a tradição filosófica ao buscar rigor científico na investigação dos fenômenos humanos propondo que estes sejam abordados de maneira direta, exatamente como se apresentam à experiência da consciência. Apenas assim seria possível chegar à sua essência, a seus significados, ou seja, sem suposições e teorias estabelecidas a priori. O interesse da fenomenologia não é conhecer o mundo como realidade externa, mas sim o mundo como é percebido e interpretado para cada pessoa (Dartigues, 2005). Para a fenomenologia, o ser humano vivencia suas experiências de acordo com seu modo de existir, ou seja, com sua forma de compreender e significar os acontecimentos. Forguieri (1993) considera que durante o decorrer da existência humana, três formas básicas de existir se alternam de forma continua e

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inter-relacionada: a sintonizada (quando predominam sentimentos de tranquilidade e bem-estar), a preocupada (quando predominam sentimentos de intranquilidade e mal-estar) e a racional (quando predominam a análise sobre as vivências cotidianas). Dependendo da forma de existir predominante, há maior ou menor abertura para as possibilidades que se apresentam em sua existência. O escopo é “procurar o sentido ou o significado da vivência para a pessoa em determinadas situações, por ela experimentadas em seu existir cotidiano” (Forguieri, 1993, p. 59). A análise das entrevistas foi feita com base na redução fenomenológica. Suas etapas foram as seguintes: (a) Audição das fitas de ambas as entrevistadas na íntegra buscando evitar reflexões teóricas, (b) Leitura da transcrição das entrevistas na íntegra, quantas vezes necessárias; (c) Releitura das entrevistas, procurando captar as falas das participantes que contivessem relação com o objetivo desse estudo; definição de categorias temáticas e unidades de significados gerados nas entrevistas; (d) Enunciação descritiva do sentido daquelas vivências para cada uma das entrevistadas, pontuando suas semelhanças e diferenças. As categorias temáticas apreendidas na análise das entrevistas e que subsidiaram a construção dos estudos de caso foram: infância, adolescência, relacionamento com pais e familiares, percepção e reação dos familiares ao comportamento considerado como mais feminino durante a infância e adolescência, bem como o impacto das transformações corporais das participantes em suas relações familiares. A fim de preservar a narrativa das participantes e não promover rupturas de significados, tais categorias não serão abordadas em tópicos específicos, mas ao longo da apresentação dos casos, ilustrados com trechos das falas de Patrícia e Ketlen. O relato de Patrícia

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Patrícia tem 24 anos de idade, solteira, possui ensino médio completo, é cabeleireira de formação e atualmente é profissional do sexo. Seus pais se separaram quando tinha por volta de dois anos e foi criada por sua mãe, tem uma irmã, mais nova. Seu pai mudou-se para São Paulo e fazia visitas esporádicas. A presença dos avós, tios e primos maternos sempre foi grande. Patrícia afirma que a família era unida e que a ajudavam em situações de dificuldade econômica. Relata ter muitas primas e como consequência, maior convivência com o gênero feminino. Começou a travestir-se por volta dos cinco anos de idade, usando roupas, sapatos e adornos de sua mãe, irmãs e primas. Conforme foi crescendo, passou a perceber que essa conduta não era bem vista pela família e começou a preocupar-se em fazê-lo com mais cuidado para não ser surpreendida. Começou a se apaixonar pelos meninos assim como suas amigas, no entanto, diferentemente delas, não podia expressar seus sentimentos e não tinha com quem conversar. Então, no início da adolescência, por meio de brincadeiras sexuais, popularmente conhecidas como “troca-trocas”, Patrícia confirmou seu interesse sexual por meninos. Conforme foi participando dessas brincadeiras, boatos sobre sua participação foram narrados para sua mãe. Foi levada para morar em São Paulo para viver com o pai, aos 14 anos de idade, com o intuito de afastá-la dessas experiências. Patrícia relata que durante a infância sempre manteve um relacionamento afetuoso com a família. Sentia-se amada e protegida. O relacionamento com a mãe sempre foi muito bom. Diz que ela era rígida com a educação dos filhos, mas sempre estava presente de maneira carinhosa. Valoriza o esforço da mãe para educar e sustentar os filhos. Ainda em relação ao vínculo com a mãe, percebia que esta estranhava seus comportamentos, mas não a recriminava. Acredita que a mãe tinha esperanças de que deixasse de ser homossexual. O relacionamento com o pai sempre foi distante. Ele morava em São Paulo e, durante sua infância, fazia visitas nas

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datas comemorativas, trazendo presentes para ela e sua irmã. Dos 14 aos 17 anos, Patrícia foi morar com o pai e viveu situações de muita tensão emocional, pois ele não aceitava seus comportamentos considerados por ele efeminados. Ela relata que seus comportamentos o incomodavam. O pai acreditava que a afastando de companhias femininas, poderia masculinizar-se. Patrícia relata que desde sua infância seu pai estranhava seus comportamentos, mas que foi durante a época em que morou com ele que esse incômodo piorou e passou a reagir mais intensamente. Patrícia sentia-se tolhida pelo pai e percebia que este tinha vergonha dela. Aos poucos, a convivência tornou-se insustentável: ... Ele me cobrava muito... assim... Mas mais pelo meu jeito, meu jeito... eu era muito afeminado, ele falava para eu mudar. E sentia muita vergonha, assim... ele tinha muita vergonha de mim. (...) Às vezes, quando ele trazia um amigo em casa, ele apresentava meio assim, com vergonha. E antes que ele chegasse, ele chegava em mim e falava: “oh, muda esse jeito seu, muito delicado”...

Durante o tempo que esteve em São Paulo, conheceu e começou a frequentar as boates, os bares noturnos, especialmente os locais LGBT. Sentia-se muito bem e se divertia nesses ambientes. Depois da briga com o pai, voltou para a cidade em que a mãe morava, iniciou o uso de hormônios injetáveis e diz que estava ciente de que pretendia adquirir características físicas do gênero feminino. Parece sentir pesar pela forma como o relacionamento com o pai terminou quando ela se tornou uma travesti: ... Não, nunca mais (teve contato com o pai) (...) Eu não tenho consideração nenhuma por ele. Ele me pôs no mundo e só. Tentou me educar da maneira dele, mas pra mim foi uma tortura, foi terrível. (...) Eu acho que poderia ser tão diferente... poderia ter sido muito diferente, muito, muito. Sei lá, ele poderia

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ter me aceitado do jeito que eu era, hoje eu poderia estar formada, trabalhando... mesmo sendo travesti. Porque eu sempre fui muito amoroso, poderia estar cuidando dele, poderia ser um relacionamento gostoso, não precisava disso...

O relacionamento com os avós maternos sempre foi bom. Sua avó morreu quando era pequena, mas tem lembranças positivas. A relação com o avô é narrada em tom bastante afetuoso, diz que sempre foi um avô presente e carinhoso. Os tios e primos maternos também sempre foram próximos. Lembra-se muito das brincadeiras com as primas e de uma de suas tias maternas com quem mantém um vínculo forte. Esta tia, embora condene o fato de Patrícia prostituir-se, a aceita enquanto travesti. Houve uma transformação no relacionamento com a irmã da infância para a idade adulta. Quando crianças, percebia que sua irmã sentia vergonha dela, o que a fazia sofrer. Quando a entrevistada foi para São Paulo, ambas sentiram muita falta uma da outra. Quando retornou, já com o corpo alterado, aos poucos a irmã passou a aceitá-la e hoje mantém um relacionamento próximo não só com ela, mas também com seu sobrinho e seu cunhado: ... o nosso reencontro foi muito legal, porque eu já estava mais esclarecida, né, já estava assim, com o corpo mudado, com o corpo já, né... aí foi a aceitação dela, foi quando ela começou a me aceitar do jeito que eu era. Hoje em dia, nossa!... nosso relacionamento é maravilhoso, maravilhoso...

No tocante à relação com sua família após a adequação de determinadas características do seu corpo, Patrícia relata que a irmã, a tia materna e suas primas a apoiaram, pois percebiam que era como mulher que ela se sentia mais feliz. Com o pai, houve o rompimento da relação, pois ele não aceitou ver o filho homem transformar-se em travesti e a renegou, dizendo que seu

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filho morreu. Já sua mãe não aceitava sua mudança, mas não a renegou por isso. A entrevistada relata que a mãe sofria muito e pedia a Patrícia que cortasse o cabelo e que não se vestisse de mulher. Relata com pesar o episódio em que a mãe a viu pela primeira vez de vestido. Patrícia sentiu-se culpada por fazer a mãe sofrer e nesse momento desejou ser normal: ... Aí a primeira vez que a minha mãe me viu de vestido, minha mãe chorou, ela chorou. Foi bem difícil pra ela. (...) ficou decepcionada. (...) Ela falou: “Não, não... tira esse vestido. Você vai com esse vestido na festa? Vai estar cheio de parente, sabe...” e ela: “Não, põe uma calça”. (...) eu falei: “Não, eu vou assim mesmo”, sabe, fiquei batendo o pé, mas aí ela começou a chorar, daí eu fui lá e daí eu não aguentei. Aí eu tirei. (...) Mas eu me senti mal, entendeu de ver ela assim, entendeu? Eu pensei que eu poderia ser diferente, eu poderia ser normal... eu poderia dar felicidade pra ela, né. Eu poderia ser diferente, né. Deu um desconforto. (...) culpa...

Patrícia diz que tem o desejo de ser mãe, mas sabe que isso não é possível, pois jamais poderia gerar uma criança. Não pensa em adoção nem cogita a possibilidade de fazer sexo com uma mulher para engravidá-la. Além disso, diz não ter estrutura financeira nem psicológica para criar uma criança e relata que, embora ache admirável, causa-lhe estranhamento pensar em um travesti criando um filho. O relato de Ketlen Ketlen, 22 anos de idade, é solteira e trabalha como profissional do sexo. Possui ensino superior incompleto. Seu comportamento de travestir-se se iniciou na infância. Diz que sempre teve vontade de se vestir de mulher e que quando estava sozinha em casa colocava uma toalha na cabeça e passava esmalte nas unhas. Sempre desejou ir além desses comporta-

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mentos, vestindo-se e maquiando-se como mulher, mas não o fazia com medo de represálias. A primeira vez que se travestiu por completo foi no teatro da escola. Esta era uma de suas atividades preferidas, pois ali podia travestir-se sem ser criticada. Passou sua infância em uma metrópole no nordeste do Brasil. Morava com sua mãe, seu pai e seus dois irmãos, sendo um mais velho e um mais novo. A situação socioeconômica da família era precária. Nos fundos da casa morava sua avó materna. Diz que era uma criança que gostava de ficar em casa, que não tinha muitos amigos e que não gostava de brincar. Positivamente, o que marcou sua infância foram os estudos e negativamente, os problemas familiares. A entrevistada conta que seu pai era alcoólatra e quando bebia, especialmente aos finais de semana, agredia sua mãe, física e verbalmente. Relata que quando os finais de semana se aproximavam ficava apreensiva enquanto aguardava a volta do pai. Percebia-se impotente perante o problema e chamava a polícia para proteger sua mãe. Segundo a entrevistada, seu pai sempre estranhou seu comportamento, especialmente o fato de não se interessar por brincadeiras tipicamente masculinas. Com a mãe o relacionamento sempre foi muito próximo e bastante afetuoso. Depreende-se das falas da entrevistada a fragilidade de sua mãe que a procurava para enfrentar seus problemas. O movimento de proteger sua mãe parece ter se perpetuado ao longo de sua vida. Ketlen percebe o relacionamento com o pai como distante. Relata que atualmente, tem pouco contato e quando o faz é para poder resolver problemas por ele gerados, em função do abuso de bebida alcoólica. Acredita que o pai tenha medo de suas críticas. ... eu acho ele diferente comigo... ele não era pai, pai de.. .sabe? (...) Ele fazia a obrigação de pai, (...) escola, alimentação, remédio, mas... ele não conversava comigo, não saía, não

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chamava pra sair. Ele levava sempre o meu irmão, por isso que eu via certa... a indiferença, entendeu?...

Com o irmão mais velho, a relação também é distante. Segundo a entrevistada ele se parece muito com o pai e é agressivo com sua mãe. Em função disso, preferiu afastar-se. Já com o irmão mais novo, atualmente com 12 anos de idade, Ketlen tem uma relação bastante próxima e afetuosa. Com os tios e primos, Ketlen parece ter se aproximado após sua adolescência. Relata bom relacionamento com todos. Sua mãe só tem um irmão, com o qual se relaciona socialmente. Tem um vínculo mais próximo com a família do pai, especialmente uma de suas tias e suas primas e primos. Entre os 12 e os 14 anos, quando ia à casa do primo, aos finais de semana participava de brincadeiras sexuais durante dois anos seguidos. Quando questionada sobre o tipo de envolvimento Ketlen diz que não havia afetividade, que a motivação era somente sexual. Nesta fase, durante os finais de semana em que ficava na casa de sua tia, Ketlen relata que sua prima a travestia e lá se sentia mais à vontade para expressar sua feminilidade. Ketlen comenta que tem dois primos homossexuais e uma prima travesti. A entrevistada relata que se sentia bem quando estava com eles e tinha fascínio pela mudança física dessa prima, desejando ser como ela. Aos 16 anos, Ketlen sentia necessidade de adequar seu corpo ao gênero desejado e para tal iniciou a ingestão de pílulas anticoncepcionais, sem orientação médica. Neste período, aos finais de semana saía com amigas, vestida de mulher, até à porta das boates a fim de observar travestis. Mas foi após uma conversa com a prima travesti que a entrevistada abriu caminho para possíveis mudanças físicas mais permanentes. Além de temer a violência e a discriminação, Ketlen relembra que a maior dificuldade para mudar de cidade e assim, encontrar maior liberdade para as mudanças que desejava, foi a insegurança e preocupação que lhe causavam ficar distante de

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sua mãe. A despeito de seus temores, resolveu ir e retornou após um ano e meio mais adequada ao gênero feminino. Embora não tenha dito para a mãe que iria se tornar travesti e se prostituir, durante esse período, quando fazia contato telefônico, dava indícios que perpetraram desconfiança na sua mãe. Relata que a fase em que passou pelo processo de adequação física foi difícil, sentia-se sozinha, triste e estava aprendendo a trabalhar em uma profissão arriscada. Os procedimentos para colocar silicone e próteses foram realizados por colegas travestis e eram caros. Sentia medo sempre que se submetia a esses procedimentos. No que tange à atitude dos familiares após sua adequação, Ketlen diz que foi aceita. Acredita pelo fato de ter dois primos homossexuais e uma prima travesti promoveu a compreensão de todos, pois temas relacionados à orientação e identidade de gênero já haviam sido explorados pela família anteriormente. Sua maior preocupação era com a aceitação por parte de sua mãe, todavia a aceitaram: ... Porque eu tinha medo de ela não me aceitar. Eu sempre tive esse medo, de perder a confiança da minha mãe, o apoio dela. Eu tinha esse medo... mas aí ela me aceitou. E não foi tão difícil quanto eu imaginava. Ela me aceitou, o meu irmão mais novo me ama... nossa, eu adoro ele!...

A mãe, inclusive, chegou a conhecer o local onde morava, seu namorado e suas colegas de trabalho. Seus tios e primos também a acolheram e diz ter contato frequente e afetuoso com eles. O tema de suas cirurgias e de sua identidade de gênero nunca foi abordado com o pai e relata quase não ter contato com ele. Vivências familiares de Patrícia e Ketlen

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O período da infância das entrevistadas teve características bastante distintas e apresenta significados afetivos diversos. Nota-se que Patrícia tem lembranças muito positivas de suas brincadeiras, da casa onde morava e de sua família; Ketlen parece ter vivido maior apreensão e um estado afetivo de certo isolamento. Chama atenção o fato desta última não se lembrar de ter brincado durante a infância, justamente por serem as situações de brincadeira grandes marcadores da fase infantil ou aspectos frequentemente evocados pelas pessoas quando são convidadas a falar sobre sua infância. No que tange à relação das entrevistadas com seus familiares, semelhanças e diferenças são narradas. Ambas relatam o afastamento afetivo dos pais desde a infância e o vínculo estreito com as mães, característica apontada pela literatura científica em relação às famílias de indivíduos com transtornos de identidade de gênero (Green, 2007). No entanto, a qualidade desses vínculos parece ser diferente para ambas. Embora se sentissem amadas pelas mães, no caso de Patrícia a genitora também era capaz de proteger e proporcionar segurança para a criança. Já a mãe de Ketlen aparentemente possuía maior fragilidade emocional, o que levou a filha desde a infância a desenvolver uma atitude de preocupação e proteção em relação à mãe. A figura masculina de maior importância para Patrícia parece ter sido o avô, com quem tinha um vínculo estreito e afetuoso. Para Ketlen, a referência masculina era a do pai, figura sempre associada em suas memórias com a ignorância e a agressividade. O irmão mais velho de Ketlen não a aceita e mantém com ela uma relação distante, o contrário ocorre com o mais novo, com o qual tem vínculo estreito e afetuoso. A irmã de Patrícia parece ter tido dificuldade para aceitá-la durante a infância, no entanto, após a adolescência passaram a se relacionar íntima e carinhosamente. Em função das características da constituição residencial e familiar, Patrícia parece ter tido mais contato com a família es-

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tendida durante a infância: a presença dos primos, tios e avós era constante e agradável. Ketlen teve menos contato com estes inicialmente, o que foi sendo alterado durante sua adolescência, período no qual se aproximou da família do pai e passou a se relacionar constantemente com primos e tias. A reação das mães das entrevistadas sobre características comportamentais socialmente vistas como femininas durante a infância se assemelham. Ambas notavam que o comportamento do filho era diferente dos outros garotos de sua idade, mas não conversavam com a criança sobre o assunto. No que tange à reação dos pais, ambos estranhavam a ausência de comportamentos tipicamente masculinos, no entanto, têm-se a impressão de que o pai de Patrícia se incomodava e se preocupava mais com o filho. Já o pai de Ketlen apresentava maior indiferença em relação à criança. Nota-se, em ambos os casos, que tanto as mães quanto os pais apresentavam dificuldade para lidar com a identidade de gênero de seus filhos. A presente descrição corrobora os achados de Di Ceglie e Thümmel (2006), que apontam para a intensa preocupação e presença de dúvidas dos pais sobre como lidar com os comportamentos gênero-simbólicos de filhos que apresentam papel, orientação ou identidade que divirjam da norma estabelecida socialmente e para a dificuldade que têm para encontrarem profissionais preparados para ajudá-los. O período da adolescência foi marcado por um acirramento das atitudes dos pais das entrevistadas em relação à sexualidade das mesmas. Ambas nessa fase estavam cientes de que sentiam atração sexual por meninos, ao mesmo tempo em que desejavam adequar seu corpo ao gênero desejado. No entanto, parece que nem elas, nem seus pais tinham ainda clareza a respeito das diferenças entre orientação sexual e identidade de gênero. Pareciam acreditar que a necessidade de feminilização fosse parte constituinte da própria homossexualidade.

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Os rumores que surgiam sobre o relacionamento das entrevistadas com outros garotos motivaram intensas reações em seus pais. No caso de Patrícia, o genitor optou por assumir a responsabilidade de tentar alterar suas condutas, levando-a para outra cidade no intuito de aproximá-la de si, referência de figura masculina e ao mesmo tempo afastá-la de seus referenciais femininos. O pai de Ketlen age de maneira oposta, distanciandose ainda mais dela, não assumindo nenhuma responsabilidade acerca de seus cuidados e exigindo que sua esposa, mãe da entrevistada, optasse entre ele ou Ketlen. A proximidade entre Patrícia e o pai, ao contrário do que este esperava, não alterou seus comportamentos efeminados e sua orientação sexual, fazendo com que aos poucos os confrontos entre eles se intensificassem e, finalmente, chegassem a romper sua relação. Desse modo, percebe-se que o período da adolescência, em função das grandes transformações físicas e psicológicas inerentes a esta fase, precipitou momentos de crise nas participantes, nas relações com suas famílias, que precisaram refletir sobre como lidar com elas. O que se observa em ambas as histórias é que não apenas as participantes foram se adequando fisicamente ao longo do tempo, mas também suas famílias precisaram se reorganizar para acolhê-las com seus corpos modificados e novos posicionamentos diante do mundo. Durante a adaptação da família notaram-se tanto os processos de afastamento (das figuras paternas), de aproximação (de irmãs e outros familiares), de acolhimento (das mães), revelando que as estruturas familiares operam no sentido de permanência de valores e tradições, ao passo que também permitem reinvenções dessas relações (Zambrano, 2006), o que foi possibilitado nas famílias investigadas pela transformação dos filhos em travestis, processo este já anunciado nas experiências anteriores. A tarefa primordial da família de proteger e oferecer suporte emocional ao desenvolvimento dos filhos mostrou-se insuficiente diante das necessidades de Patrícia e Ketlen, muitas ve-

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zes discriminadas e agredidas em seus desejos e em seus comportamentos. A violência emocional observada nos relacionamentos entre elas e seus pais mostra que a família muitas vezes não suporta a diferença e age com preconceito, havendo a crença em determinismos biológicos (outros parentes travestis ou homossexuais) ou ambientais (a maior convivência com a mãe e com figuras femininas) e na possibilidade de modificação desse cenário em função da maior presença do pai como um balizador de comportamentos masculinos aceitáveis. A violência imposta por uma instituição que primariamente deveria acolher a criança e suas necessidades desenvolvimentais acaba se constituindo como um espaço que cerceia a liberdade de escolha e tolhe o desenvolvimento do ser, isso quando não constitui um ambiente de violência física, homofobia e discriminação (Falcke, Rosa, & Madalena, 2012; Nunan, 2004; Okita, 2007). Desse modo, a família parece ser tecida como uma borda capaz tanto de oferecer apoio e mostrar ao indivíduo que ele é possuidor de uma história e de um passado como limitar seus comportamentos e restringir suas possibilidades de mudança, oprimindo-o. Como as famílias de origem não foram ouvidas neste estudo, não se pode pré-conceber suas intenções com as atitudes em relação aos filhos, mas sim compreender de que modo essas práticas foram fonte de forte desconforto emocional nas histórias de Patrícia e Ketlen. Ainda que as relações familiares atuais apontem para mudanças e para um movimento melhor aceitação e acolhimento, as experiências negativas em famílias estão cravadas no ser-com e nas suas vivências. Em um cenário no qual os investimentos públicos são escassos em termos de políticas de assistência à população LGBT (Cardoso & Ferro, 2012), a família poderia oferecer mais recursos emocionais para os seus membros. Em uma rede social por vezes empobrecida e marcada pela discriminação (Sampaio, 2008), o espaço antes concedido à família passa a ser ocupado por colegas de trabalho e pessoas com relatos semelhantes, fazendo com que o apoio

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venha dessa rede constituída em função do ingresso na prostituição. A fenomenologia busca alcançar a essência dos fenômenos não por meio de explicação, mas sim de compreensão. Sendo assim, cumpre explicitar como o ser-no-mundo de Ketlen e de Patrícia foram compreendidos fenomenologicamente neste estudo. O ser-no-mundo é a estrutura fundamental da experiência humana, ser e mundo, consciência e objeto não podem ser olhados de forma independente, pois estão indissoluvelmente ligados. O mundo não é compreendido como um conjunto de objetos e pessoas existindo por si mesmos, pois cada um deles se torna o que é em função da significação dada por quem o percebe. Ser-no-mundo é sempre uma estrutura originária e total, no entanto, pode-se visualizá-la em termos dos diversos aspectos do mundo e das diferentes maneiras do homem existir nele. O mundo circundante é compreendido pelas condições externas (coisas, plantas, animais, leis da natureza e seus ciclos) e o próprio corpo com suas necessidades. A importância do mundo circundante na vida das entrevistadas pode ser notada especialmente observando a relação estabelecida com seus corpos. O corpo é o que proporciona ao ser humano os primeiros e imediatos contatos com o ambiente, é por meio dele que o homem existe. Ele tem uma função de síntese, unificando as sensações e percepções de si e do entorno e proporcionando a abertura para as possibilidades do mundo (Forguieri, 1993). Nos relatos de Ketlen e Patrícia, o desconforto sentido em relação a seus corpos dificultava a abertura, o olhar ampliado para as possibilidades do mundo. Não havia como se relacionar com o mundo de forma franca e aberta se seus corpos, a estrutura fundamental por meio da qual existem, as restringiam em suas potencialidades. O corpo do ser humano, diferentemente dos objetos inanimados, não se restringe aos limites físicos impostos por sua condição, indo além dos contatos concretos estabelecidos e relacionando-se também com suas recordações e imaginações

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de relações que possam vir a estabelecer. Assim, nota-se a grande dificuldade das participantes em, tendo um corpo que rejeitavam, estabelecer relações concretas e projetar ou desejar relações futuras com o mundo e com os semelhantes. Essa situação só pode ser revertida após alterarem seus corpos e passarem a senti-lo em congruência com sua percepção de si. A existência do homem é originalmente ser-com, ou seja, é por meio das relações com outros seres humanos que atualizamos, compreendemos e desenvolvemos nossas potencialidades humanas, especialmente o amor, a liberdade e a responsabilidade. Essas relações com os outros podem ser denominadas de mundo humano entre as quais incluímos as vivências familiares (Forghieri, 1993). No caso de Patrícia, nota-se que o mundo humano com o qual se relacionou desde sua infância possibilitou a ela a segurança necessária para que pudesse explorar o mundo e se desenvolver psiquicamente. A relação com a mãe, os primos, tios e especialmente os avós, tinham em comum o amor, a reciprocidade e a segurança. Isso parece ter facilitado a estruturação psicológica de Patrícia, possibilitando se desenvolver de modo existencialmente saudável, ou seja, abrir-se às possibilidades do mundo, tomar decisões conscientes e se responsabilizar por elas. Além desses, o contato com outras pessoas, como seus colegas de escola, os colegas com os quais participava de jogos sexuais, seu pai, dentre outros, possibilitaram que Patrícia se conscientizasse de suas necessidades e da liberdade que tinha para decidir sobre sua vida. O mundo humano de Ketlen parece ter se configurado de modo diferente. Socialmente viveu uma situação de isolamento desde a infância, tendo contatos sociais bastante restritos. Além disso, estabeleceu uma relação distanciada e permeada pela violência com o pai e de papéis invertidos com a mãe uma vez que esta, em função de sua fragilidade psíquica, parecia necessitar da criança para lhe proteger. Assim, nota-se que o mundo humano de Ketlen parece ter proporcionado vivências que

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dificultaram seu desenvolvimento existencial. No entanto, em seus diversos contatos posteriores, com o primo com o qual mantinha relações sexuais, com as primas que a travestiam, com a prima travesti, dentre outros, Ketlen pode entrar em contato mais franco com o mundo e consigo, proporcionando aumento da conscientização de suas necessidades e potencialidades. Vivenciando diversas situações no contato com o mundo circundante e com o mundo humano, o indivíduo vai reconhecendo a si próprio e toma consciência de si, formando o que é chamado de mundo próprio (Forghieri, 1993). Este é caracterizado pelas significações que as experiências têm para o indivíduo. Patrícia parece possuir uma consciência mais acurada de si. Temse a impressão de que reconhece quais são suas necessidades, seus pensamentos e sentimentos, desejos e fragilidades. Desse modo, tem melhores condições de desenvolver suas potencialidades, especialmente sua capacidade para amar e fazer escolhas congruentes, responsabilizando-se por elas. A entrevistada consegue fazer suas escolhas de maneira integrada, considerando inclusive a ausência de garantias e de controle que a vida oferece. Sapienza (2007) aponta que a liberdade não é algo a que o homem tem acesso ou não, mas sim, é algo constituinte de seu ser, é algo que ele é. Assim as tomadas de decisão estão sempre permeadas pela imprevisibilidade dos acontecimentos futuros que atingem a estabilidade e a certeza das decisões previamente tomadas. Para viver de maneira integrada é necessário correr riscos e responsabilizar-se por eles e parece que Patrícia assim o fez. É importante frisar que isso não significa que essas vivências impliquem em tranquilidade e segurança; muitas delas se dão com intenso sofrimento, sentimentos contraditórios e arrependimentos. Notam-se na história de ambas momentos em que se alternam as maneiras sintonizada, preocupada e racional de existir (Forghieri, 1993). No que tange ao mundo próprio de Ketlen, há indícios de que possua em grau menor essa consciência de si, apresentando

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assim, menor integração existencial de suas escolhas. Em vários momentos da entrevista, nota-se sua dificuldade em identificar sentimentos ou assumi-los. Relata que frequentemente sente-se fragilizada por problemas cotidianos e que quando não consegue resolvê-los de imediato opta por evitar refletir sobre eles para não piorar sua condição emocional. A presença de fortes e frequentes sentimentos de tristeza e ansiedade também demonstram sua maior fragilidade existencial. Considerações Finais Por meio do presente estudo foi possível identificar que as duas travestis entrevistadas possuem experiências familiares heterogêneas e, ao longo do tempo, são construídos tanto sentimentos de aceitação quanto de rejeição por parte dos familiares. Pelos relatos, pode-se compreender que a família é descrita pelas participantes tanto como impulsionadora dos percursos desenvolvimentais que se deram longe do ambiente familiar (como a transformação em travestis), como um ambiente ao qual retornaram após a mudança, ou seja, um contexto de “antes” e de “depois” da sua constituição de ser-no-mundo como travestis. Entre as limitações do presente estudo, há que se considerar que as vivências aqui discutidas não podem ser compreendidas como um padrão de comportamentos familiares em relação à presença de um membro travesti, mas são narrativas que revelam diferentes possibilidades de histórias de vida e de percursos desenvolvimentais. Como a visibilidade dos estudos com travestis é requisitada, mostra-se a importância de entrar em contato com esses estudos de caso, ainda mais tendo como norte a discussão em torno das relações familiares. Ainda que as participantes destaquem dificuldades no relacionamento com os seus pais, há que se considerar que o ambiente familiar continua a fazer parte das histórias das

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participantes mesmo quando elas deixam de morar com a família de origem. Ainda que as rupturas familiares e as crises façam parte do desenvolvimento das participantes, a família também é descrita como uma fonte de apoio, como um ambiente capaz de acolher mesmo após a transformação desses homens em travestis, em oferecer ajuda e aceitação. Mesmo com histórias familiares marcadas pelo sofrimento, estas se apresentam como um meio relativamente permanente que oferece acolhimento em momentos importantes como logo após a transformação corporal. As entrevistadas, apesar dos aspectos negativos de algumas experiências familiares, notadamente com as figuras paternas, encontram nas mães figuras importantes cuja aceitação é buscada como uma espécie de “autorização” para a vivência como travesti, para a vivência integral em seus mundos próprios. Como primeira instituição socializadora, a família continua a desempenhar um papel importante no desenvolvimento das participantes ao longo do ciclo vital, no “antes” e no “depois” da chamada transformação dessas jovens. A família não deve ser apreendida como causadora dos percursos desenvolvimentais ou dos comportamentos associados à população LGBT, como tendência expressa em algumas correntes da Psicologia, mas como cenário que pode deflagrar os processos desenvolvimentais e permitir mudanças que favoreçam a assunção de estratégias mais positivas de ser-no-mundo. Estudar essas famílias pode contribuir para que estudos sejam delineados e para que as travestis sejam melhor compreendidas como possuidoras de relacionamentos familiares que as auxiliem nas suas trajetórias de vir-a-ser. Referências Araújo Júnior J. C. (2006). A metamorfose encarnada: Travestimento em Londrina. Dissertação de Mestrado, Instituto de Filosofia e Ciên-

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Estágio em NASF: Interlocuções entre psicoterapia breve, plantão psicológico e grupos operativos Tamara Rodrigues Lima Zanuzzi Tales Vilela Santeiro Fabio Scorsolini-Comin Este capítulo tem por objetivo contextualizar, refletir sobre e debater experiências desenvolvidas em um estágio supervisionado em processos clínicos, realizado em Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) de um município de pequeno porte, localizado no interior da região Centro-Oeste. Antes de especificarmos essas experiências, faremos uma breve exposição teórica sobre a concepção do estágio. Em seguida, mais especificamente, discutiremos como atividades de estágio supervisionado podem se alinhar aos processos de formação de estagiários para atuar nas frentes de saúde pública, a partir de um enfoque clínico, de modo a integrar os campos da saúde, da família e da comunidade. Saúde Pública, NASF e Psicologia O Ministério da Saúde criou os NASF em 2008 com o objetivo de apoiar a inserção da estratégia de saúde da família (ESF) na rede de serviços. Além de ampliar a abrangência e o escopo das ações da Atenção Básica, o NASF também teve como objetivo aumentar a resolutividade, reforçando os processos de territorialização e regionalização em saúde (Brasil, 2009, 2013b). O NASF, como parte constituinte da ESF, tem o apoio matricial como princípio básico de atuação. Este apoio matricial é a constituição de uma equipe de referência, cujos integrantes têm

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uma determinada clientela sob responsabilidade, dentro de um território de abrangência, levando sempre em consideração a interdependência profissional. Visando à melhoria e a eficácia dos atendimentos, o SUS (Sistema Único de Saúde) ampliou o número de equipes de Saúde da Família que compunham a Estratégia de Saúde da Família – ESF (Brasil, 2009, 2013b). Essa estratégia realiza atendimentos comunitários, com o foco na atenção primária da saúde da família. A ESF é a porta de entrada do SUS e nessa condição procura intervir sobre os fatores de risco aos quais as comunidades estão expostas, tentando oferecer atenção integral, permanente e de qualidade (Couto, Schimith, & Dalbello-Araujo, 2013; Silva et al., 2012; Silva & Cardoso, 2013; Vasconcelos & Pasche, 2006). A constituição de um NASF está inteiramente ligada ao número de equipes de Saúde da Família existentes em um município e tem como objetivo comum à ESF a criação de espaços de discussão para gestão do cuidado, tendo como eixos a responsabilização, a gestão compartilhada e o apoio à coordenação do cuidado pretendido pela Saúde da Família. De acordo com as concepções apresentadas pelo Conselho Federal de Psicologia (2009), cabe ao psicólogo atuar em prol de usuários do NASF e de seus familiares. Essa atuação visa promover a saúde mental, intervir sobre as situações de risco psicossocial e/ou de doença mental, tendo como objetivo principal a prevenção, o tratamento e a reabilitação, por meio de um cuidado com extensão longitudinal. Nesse sentido, a prática da psicologia deve estar voltada para reflexões e intervenções de amplas magnitudes, que considerem a complexidade da sociedade brasileira e integrem as questões da subjetividade às dimensões sociais e biológicas. Desse modo, o trabalho no NASF pressupõe interdisciplinaridade e requer uma série de cuidados onde cada profissional, inclusive o psicólogo, deve atuar no momento necessário (Couto, Schimith, & Dalbello-Araujo, 2013). O Conse-

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lho Federal de Psicologia (2009) sugere uma análise profunda da demanda prioritária e depois da discussão dos casos, construir e estabelecer atendimentos em conjunto com a equipe, utilizando os recursos possíveis e necessários para um projeto terapêutico singular para os usuários ou famílias. Assim, é importante para a eficácia dos processos de intervenção terapêutica a retomada da história de vida das pessoas e das comunidades, avaliando suas variáveis, identificando os principais problemas e decidindo quais as articulações clínicas são mais apropriadas. Formação profissional e atividades de estágio em Psicologia e processos clínicos O estágio é um momento muito esperado por estudantes de cursos de psicologia, porque através dele é possível exercitar aprendizados obtidos no decorrer da formação, permitindo que conhecimentos, habilidades e atitudes se concretizem em ações profissionais (Brasil, 2011). Além disso, constitui um espaço prioritário para a formação da identidade profissional, sendo que este é o momento em que o acadêmico se depara com diferentes limites e possibilidades do fazer do psicólogo (Costa Jr. & Holanda, 1996; Scorsolini-Comin, Souza, & Santos, 2008). Nesse momento de transição profissional, o espaço de supervisão é fundamental para o aprimoramento da prática clínica de estagiários. Aguirre et al. (2000) lembram que o instrumento psicológico do terapeuta é a sua própria pessoa e por isso é importante ele estar atento às emoções e atitudes que são vivenciadas durante os atendimentos. A supervisão é, portanto, o momento de acolhimento das emoções, atitudes, significados e interpretações dos atendimentos realizados pelos estudantes. A prática supervisionada busca oferecer, simultaneamente, suporte “emocional” e “instrumental” ao estagiário, e também permite uma compreensão mais ampla do que acontece com o paciente.

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A reflexão e os estudos sobre os atendimentos psicológicos promovem uma análise mais profunda do que é relatado e vivido pelos usuários e tornam compreensíveis seus contextos de vida em um dado momento. Assim, a importância das supervisões no processo formativo é destacada, porque o estágio oportuniza a transição de identidade estudantil, a inserção em ambientes e em manifestações humanas diferenciadas e favorece a articulação e a integração teoria-prática, experiências tidas como indispensáveis para o “desenvolvimento e consolidação de diversas competências esperadas de um formando em Psicologia” (Oliveira-Monteiro & Nunes, 2008, p. 287). Esclarecida e destacada a importância das atividades supervisionadas, se faz necessário observar que elas são entendidas como insuficientes para o estagiário adentrar nas práticas de cuidados de si, o que seria condição a ser obtida em processo psicoterapêutico pessoal. Em função da diversidade de manifestações subjetivas que se apresentam no campo de atuação, – muitas das quais exorbitam o universo pessoal do estudante e interferem negativamente em sua própria subjetividade, – convém ao aprendiz aprimorar-se em estratégias e condições para estar consigo e cuidar de si tanto quanto nas que promovem o estar com e cuidar de. Apesar de esse aprimoramento do próprio instrumento de trabalho ser fundamental e ser amplamente reconhecido pela comunidade acadêmica, não tem havido discussão que o eleja seriamente como ponto de atenção e cuidados, no âmbito de políticas de formação de psicólogos em nível de graduação. Em seguida, apresentamos alguns dados e reflexões sobre o estágio específico na ênfase clínica, o qual originou esse relato. De acordo com Brasil (2011), a ênfase em processos clínicos visa orientar o estagiário a atuar “[...] de forma ética e coerente com referenciais teóricos, valendo-se de processos psicodiagnósticos, de aconselhamento, psicoterapia e outras

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estratégias clínicas, frente a questões e demandas de ordem psicológica, apresentadas por indivíduos ou grupos em distintos contextos” (p. 4). As atividades realizadas no estágio objetivam promover conhecimento e reflexão sobre questões éticas, sobre regulação e atuação profissional do psicólogo no contexto da saúde pública brasileira, articulado ao compromisso social da psicologia no cuidado à saúde mental das pessoas. Deste modo, buscamos desenvolver estratégias de atuação em equipes profissionais, por intermédio de observação e de atuações supervisionadas nos NASF. Entre os objetivos específicos do estágio está a oferta de atendimentos em diversos formatos: (a) psicoterapias breves, com o número de sessões variando entre uma e seis; (b) atendimentos psicológicos sem agendamento de horário (plantão psicológico); e (c) grupos operativos. Todas essas possibilidades consideram as demandas dos usuários e as da equipe, e elas podem ocorrer tanto em visitas domiciliares, quanto na Unidade de Saúde da Família (USF). Antes de esclarecermos os aspectos teóricos indicados, caracterizaremos, de modo geral, o ambiente no qual o estágio se desenvolveu e o público alvo das intervenções. Cenário e atendimentos psicológicos no NASF Os estágios supervisionados em psicologia no Campus de Jataí da Universidade Federal de Goiás começam no oitavo período, são denominados Básicos e são realizados a partir de três ênfases curriculares: Psicologia e Processos Clínicos, Psicologia e Processos Psicossociais e Psicologia e Processos Educativos, todos com duração semestral. Essas ênfases curriculares constam no Projeto Político-Pedagógico do Curso, orientando e designando o que o estudante precisa se apropriar, ao longo de sua formação, para atuar profissionalmente (Brasil, 2011). Os acadêmicos realizam estágios nas três ênfases, no

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oitavo período de modo obrigatório e do nono ao décimo optam por apenas uma delas, nos estágios denominados Específicos. Estes são cursados em paralelo a disciplinas que remetem a cada ênfase escolhida. As considerações apresentadas a partir de agora se valem de experiências tidas pela primeira autora em equipamento de saúde pública, acontecidas no décimo período do curso de psicologia, entre os meses de outubro de 2012 e março de 2013 em um NASF situado em bairro periférico do município de Jataí, localizado no sudoeste goiano, a 320 km da capital. O censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010) aponta que a cidade conta com uma população de 88 mil habitantes; em complemento, dados disponíveis no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) indicam a existência de 138 estabelecimentos de saúde públicos e privados no município (Brasil, 2013a); dentre os públicos, existem 11 Unidades Básicas de Saúde na zona urbana e três na rural que integram a proposta da ESF, sendo que nove psicólogos atuam nesses equipamentos e dois deles exclusivamente em NASF. A USF de inserção do NASF referido é composta pelos seguintes profissionais: dois médicos, um pediatra e um ginecologista; duas enfermeiras, sendo uma delas a coordenadora geral da Unidade; dois odontólogos; duas auxiliares de saúde bucal; duas recepcionistas; quatro técnicas em enfermagem; duas auxiliares de serviços gerais; um vigilante; e 11 agentes de saúde. Os profissionais da saúde que por sua vez compõem o NASF são: uma nutricionista; uma psicóloga; uma fisioterapeuta; e uma terapeuta ocupacional. Sendo assim, o funcionamento do NASF mantém íntima ligação com a organização e funcionamento da USF, pois são os médicos, odontólogos, enfermeiros e agentes de saúde quem geralmente fazem os encaminhamentos para atendimento psicológico, nutricional e fisioterapêutico. Os atendimentos psicológicos realizados pela estagiária foram organizados e supervisionados pela psicóloga do NASF

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(supervisora direta) e pelo segundo autor (supervisor indireto). Os atendimentos eram realizados em consultórios considerados parcialmente adequados para desenvolvimento de intervenções psicológicas, haja vista que muitos instrumentos de uso médico são visíveis (como maca, estetoscópio etc.). Entendemos que essa configuração espacial, embora comum em ambientes multiprofissionais, tende a influenciar a concepção do usuário sobre o trabalho do psicólogo, que passa a ser visto como sendo “médico”, inclusive intensificando expectativas de que poderia receber prescrição medicamentosa. Na prática da estagiária foram realizados 46 atendimentos psicológicos na USF e seis visitas domiciliares, cumpridos em uma carga horária semanal de oito horas. Entre os usuários que procuraram atendimentos ou que receberam encaminhamentos, apenas três eram homens, contrastando com número de mulheres, que foi de 20. A idade média dos atendidos foi de 35 cinco anos. A população do bairro onde o NASF se encontra demonstrou ter conhecimento e acesso aos serviços de psicologia, os quais inclusive contaram com outros estagiários nos anos de 2011 a 2013. Ao longo desse tempo, estes parecem vir auxiliando os demais integrantes da equipe a consolidarem trabalhos educativos e focados na conscientização comunitária. As principais queixas relatadas pelos usuários referiam-se a sintomas e sinais relativos a estados emocionais diversos (nervosismo, tristeza, apatia), a dificuldades de adaptação ao ambiente físico e social, a problemas de transição no ciclo vital (gestação, adolescência, velhice, paternidade), a dependência do prestador de cuidados, entre outros. Diante disso, os espaços de supervisão demonstraram a importância de se intervir a partir de uma escuta respaldada no que Aguirre et al. (2000) chamam de atitude clínica. Essas autoras descrevem essa atitude como sendo uma ação profissional, a partir da qual o terapeuta atua sob um enfoque empático, estruturado na relação de respeito e na qual se procura evitar transgressões éticas. O alcance dessa postura clí-

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nica oportuniza atendimentos psicológicos que priorizam o acolhimento e a busca de compreensão sobre a condição descrita pelo paciente. Apreciadas essas contextualizações, a proposta de atendimento psicológico nos NASF se mostra como um trabalho de extensão universitária relevante, considerando a grande demanda de parte da população que recorre a esses equipamentos e o número de profissionais psicólogos contratados/concursados para desempenhar esses serviços. O uso da psicoterapia breve e do plantão psicológico como modelos de atendimento cumpre a necessidade de se ter abordagens alternativas de atendimento para lidar com filas de espera. Ambas permitem ao usuário uma atmosfera acolhedora, que em última instância busca facilitar a abertura para novas possibilidades de compreensão de si mesmo e das problemáticas socioculturais e familiares que são apresentadas, promovendo, assim, processos de apoio psicológico. Nesse mesmo direcionamento, acreditamos que intervenções grupais, em especial inspiradas no modelo de grupo operativo proposto por Pichon-Rivière (1983/2009), possam ser integradas às linhas de atenção comunitária. A seguir, apresentamos alguns esclarecimentos sobre os “instrumentos teóricos” utilizados nos atendimentos psicológicos no NASF estudado. Buscando integrar elementos teóricos e atitudinais envolvidos no trabalho clínico A psicoterapia é um espaço favorável para o crescimento e amadurecimento daquele que busca ajuda. Nele o usuário pode construir espaço de intimidade consigo mesmo, por meio de diálogos que podem promover mudanças em padrões de funcionamento que comprometem a sua saúde mental. Para Simon (1981), os objetivos principais e essenciais de uma psicoterapia são: diminuir a angústia, ajudar a resolver problemas,

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esclarecer as obscuridades e promover o desenvolvimento da personalidade. Segundo esse autor, o paciente geralmente procura ajuda psicoterapêutica quando não consegue mais suportar suas angústias e resolver seus problemas. Seguro dos objetivos da psicoterapia, o trabalho terapêutico pode garantir resultados significativos para a melhora do paciente, o que sempre estará vinculado às variáveis próprias a cada dupla paciente-terapeuta e à instituição onde os atendimentos acontecem. Assim, entre os objetivos propostos por Simon, no tipo de trabalho enfocado nem sempre pode ser dito que todos eles serão contemplados, apesar de se poder afirmar que alguns deles o seriam, em especial os três primeiros. Resguardadas essas peculiaridades, o referencial teórico que vem sendo utilizado em atendimentos individuais tem buscado inspiração nas propostas de Psicoterapia Breve Psicodinâmica (PBP) (Enéas, 2011; Enéas & Rocha, 2011; Enéas & Yoshida, 2012). Mais recentemente, diretrizes utilizadas em atendimentos oferecidos na modalidade de plantão psicológico vêm sendo incorporadas e têm sido objeto de reflexão e estudo (Doescher & Henriques, 2012; Souza & Souza, 2011; Yehia, 2004). Em complementação, sempre que atendimentos grupais são requeridos, a proposta de Grupos Operativos tem sido contemplada (PichonRivière, 1983/2009). Yoshida (1993) define psicoterapia breve como sendo qualquer modalidade psicoterapêutica que trabalha “com problemas, ou conflitos específicos, dentro de um espaço de tempo delimitado” (p. 23). Para Enéas (2011), nessa modalidade psicoterapêutica “todo planejamento terapêutico será feito em função das condições e necessidades que a pessoa apresente” (p. 183). Desse modo, o terapeuta tem como parâmetro a definição de um foco e um objetivo – diretamente ligado ao foco – para assim se pensar em estratégias de intervenção, deixando clara a duração do processo terapêutico (Enéas, 2011).

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O psicoterapeuta orientado teoricamente pelo modelo das PBP busca, juntamente com o paciente, compreender e intervir sobre as queixas, os motivos de angústia e de sofrimento psíquico, para que haja um direcionamento focal dos atendimentos psicológicos. A busca de foco é necessária para que, no processo de ajuda, padrões repetitivos de comportamento possam ser identificados, os quais usualmente sinalizam a origem dos conflitos. Desse modo é possível tanto aperfeiçoar possibilidades de ajuda psicológica, quanto evitar processos questionáveis em sua utilidade. Além do mais, a focalização também é importante tendo em vista brevidade do processo terapêutico ser imperativa em cenários institucionais de saúde pública. Discutir as vantagens de um processo focalizado implica, ainda, em reconhecer que flexibilidade terapêutica é um dos aspectos mais importantes da PBP. Ela significa que o terapeuta deve adaptar a técnica às necessidades do paciente (Enéas, 2011). As estratégias psicoterapêuticas decorrentes da focalização e da inerente flexibilização técnica visam apoiar, esclarecer e promover mudanças duradouras, de forma que o paciente é encorajado e orientado a auto-observar e compreender suas dificuldades e seus conflitos, para buscar estratégias de melhoria para o seu bem-estar (Yoshida, 1993). No que diz respeito ao plantão psicológico, Souza e Souza (2011) afirmam que ele tem sido reconhecido, também pelo Conselho Federal de Psicologia, como uma alternativa de atenção psicológica. Este tipo de intervenção mira o atendimento emergencial da demanda do paciente, de modo que não se torna obrigatório o agendamento da sessão antecipadamente (Yehia, 2004). No Brasil, destacamos contribuições desenvolvidas por equipes de estágio na interface entre universidade e comunidade (Doescher & Henriques, 2012; Gomes, 2008; Rosenthal, 2004). O plantão psicológico tem a função de iniciar o processo de reorganização dos conflitos e queixas trazidas pelo paciente, “constituindo-se como espaço de expressão e acolhimento de

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angústia, sendo, sobretudo, ‘um processo com começo, meio e fim’” (Souza & Souza, 2011, p. 245). Para Yehia (2004), o atendimento no plantão, em vez de focalizar o sintoma do cliente, visa acolher suas experiências para tornar o encontro significativo. Nesse sentido, Souza e Souza (2011) afirmam que: “(...) as ações plantonistas são pautadas nas atitudes facilitadoras, sendo suas intervenções dependentes da necessidade e motivação interna da pessoa atendida, cujas demandas variam em complexidade, podendo ir desde a necessidade de esclarecimento de dúvida sobre assuntos simples, até assuntos técnicos” (p. 246).

Nesse tipo de trabalho, o plantonista deve proporcionar um ambiente acolhedor, permeado de afetividade e de atitudes de empatia e aceitação, facilitando o diálogo e viabilizando a escuta das experiências emocionais dos pacientes, no exato momento em que estes buscaram ajuda para solucionar seus conflitos e dificuldades. Trata-se de uma intervenção que intenta resgatar e promover autonomia e saúde (Souza & Souza, 2011) e que, portando as características elencadas, mantém estreita proximidade com as propostas de PBP. Embora o atendimento em plantão psicológico possa seguir diferentes orientações teóricas, as atitudes de facilitação e aceitação para a pessoa em sofrimento explicitar seus conflitos e seus questionamentos se avizinha, destarte, de uma atitude clínica orientada psicanaliticamente. Essa orientação tem sido exercitada no âmbito das práticas de estágio diante da crença de que, mesmo em se tratando de intervenções focais, breves e/ou emergenciais, individuais ou grupais, as produções dos usuários são dotadas de um sentido que não necessariamente encontra-se na esfera de suas consciências. Diante disto, compreendemos que a oferta de atenção à saúde das pessoas em estudo nem sempre atende a critérios do

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que se convenciona intitular como “psicoterapias breves”, entendidas como propostas de atendimento individual com duração aproximada de 12 sessões. Porém, é “psicoterapêutica” porque constitui e promove espaço de escuta e acolhimento às questões existenciais dos pacientes. Essa adoção teórica implica em lidar com uma consequente modificação nas técnicas de atendimento apresentadas pelos respectivos modelos citados (PBP e plantão), de modo que estratégias e atitudes clínicas sejam integradas como recursos no âmbito da saúde pública (Santeiro, 2012). Sobre grupos, vale lembrar que em sua acepção psicológica, a compreensão que se tem sobre eles vai além de considerá-los como um simples amontoamento de pessoas. Eles são entendidos como composições de redes nas quais ocorrem trocas sociais, simbólicas e afetivas, que por sua vez abarcam relações e comunicações entre seus integrantes (Ávila, 2010). Essas características permitem tanto entender quanto enfrentar a complexidade de um processo grupal, porque nele ocorrem tensões de ordens diversas, que abrangem todas as pessoas que o constituem. Pichon-Rivière (1983/2009) definiu um tipo específico de modalidade grupal, chamado grupo operativo. Esse tipo de grupo versa sobre um conjunto de pessoas interligadas no “tempo e no espaço, por sua mútua representação interna, que se propõe de forma explícita ou implícita, a realizar uma tarefa para qual interatuam em uma rede de papéis através de vínculos estabelecidos entre si” (p. 242). Essa tarefa poderá ser a obtenção da cura, se for um grupo terapêutico, ou a aquisição de conhecimento, se for um grupo de aprendizagem. Na concepção operativa, o objetivo da tarefa grupal é superar e resolver situações estáticas e estereotipadas e transformá-las em situações flexíveis (dialéticas). Ou seja, o direcionamento dos trabalhos ocorridos em grupos operativos seria focado na busca de ruptura de angústias relacionadas ao desconhecido, rumo à obtenção de construções aprendidas

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mutuamente entre seus membros constituintes. E no caso de trabalhos ocorridos no NASF, por toda a ambientação institucional e própria do estágio, o trabalho grupal focado na aquisição de conhecimento tem sido priorizado. A Figura 1 esquematiza os elementos teóricos discutidos e busca enquadrá-los em uma esfera maior, que é a da formação de uma atitude clínica em processos e trabalhos desenvolvidos em NASF.

Figura 1. Interlocuções possíveis entre psicoterapias breves, plantões psicológicos e grupos operativos.

Sendo assim, para ilustrar as práticas clínicas realizadas no NASF, dois casos serão apresentados. O primeiro refere-se ao atendimento individual de um homem que sofreu a amputação de parte de uma perna e o outro destaca a experiência grupal com gestantes. A brevidade das intervenções, a necessidade de elas serem focalizadas e a relativa urgência no modo como as demandas foram formuladas por integrantes da ESF são fatores que neste momento justificaram a escolha dos mesmos. Outro componente explicativo para essa seleção ter sido feita é que visitas domiciliares e trabalhos grupais, incluindo grupos operativos, permanecem como modalidades de intervenção integradas às preocupações expressas pelo Ministério da Saúde (Brasil, 2013b).

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Caso 1: Atendimento clínico em visita domiciliar Aquiles (nome fictício) possuía cerca de 20 anos quando foi atendido, e mantinha relação conjugal estável. Recebeu atendimento psicológico em seu domicílio em virtude de estar acamado, que totalizou três encontros. Ele foi encaminhado pela agente de saúde e pela enfermeira que o acompanhavam, após ter sofrido grave acidente automobilístico, no qual teve fratura exposta nos membros inferiores. Em razão da gravidade dos ferimentos, teve que amputar parte de uma perna e realizou várias cirurgias para reconstituir a bacia e outro membro, todas complexas e envolvendo risco de morte e de tornar-se tetraplégico. O paciente passou por internação prolongada (cerca de 70 dias) e foi submetido a diversos procedimentos para melhorar o seu estado de saúde. Nesses períodos, afirma ter experimentado momentos de muita reflexão, angústia e superação. Narra que os médicos se surpreenderam com a evolução do seu quadro clínico, pois não acreditavam que ele sobreviveria. A repercussão do acidente no aspecto físico de Aquiles concorda com achados de Chini e Boemer (2007), quando afirmam que as estatísticas sobre as amputações são imprecisas, mas que cerca de 85% delas ocorrem em membros inferiores. As consequências do acidente foram vivenciadas por Aquiles como uma condição que o possibilitou ser uma pessoa melhor no momento atual de sua vida. Afirmava que todos os momentos difíceis pelos quais passou foram muito importantes, revelando se considerar uma pessoa melhor após o acidente, pois conseguia ver, sentir e viver coisas sobre as quais não parava para refletir. Em seu discurso, ele relatava os momentos de dificuldades e em seguida refletia positivamente sobre tudo o que aconteceu. Nos momentos mais difíceis, angustiantes e de dores físicas muito intensas, ficava agressivo, nervoso e tinha vontade de desistir de tudo. Entretanto, percebia que suas atitudes não

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colaboravam para sua melhora e que também deixava seus familiares muito angustiados. Diante disso, ele resolveu ser mais colaborativo e assertivo com o tratamento e percebeu que podia utilizar suas experiências para ajudar as pessoas que passavam pelo hospital, durante o período em que ficou internado. Por essa via, Aquiles ressaltava firmemente os aspectos positivos envolvidos no ter sido acidentado e demonstrava aceitar muito bem a sua nova condição. Outro aspecto ressaltado por ele com constância era o fato de não querer atrapalhar e dificultar a vida de seus familiares por causa da seu estado de saúde. Afirma que, em muitos momentos, sofreu calado para não fazer os familiares sofrerem. “De certo modo, a preocupação com a família mostra-se como algo determinante para a tentativa de manutenção das aparências e do contínuo esforço para não deixar transparecer a dor vivida” (Chini & Boemer, 2007, p. 333). Esse tipo de afirmação também precisou ser constantemente ponderada, em supervisão, na medida em que a estagiária parecia ter sido inserida na cadeia de mais um outro passível de ser “poupado” por Aquiles. Devido à gravidade do seu estado de saúde, Aquiles não teve a oportunidade de saber que, nos procedimentos, ele teria que amputar parte de uma perna. De acordo com Seidel, Nagata, Almeida e Bonomo (2008), “a amputação muitas vezes se faz necessária e se mostra como procedimento decisivo para salvar a vida do doente” (p. 309). Chini e Boemer (2007) dizem que a amputação, na maioria dos casos, é conversada previamente e geralmente o paciente concorda, apesar de apresentar sentimentos de desespero, tristeza, desânimo e medo. Para estas autoras, a amputação é uma experiência que interfere nas relações biopsicossociais, marcada por sentimentos racionais sobre uma determinada necessidade e que também envolve um lado emocional que dificilmente aceita a perda. Essa situação implica em “viver uma incompletude que traz consigo uma série de alterações no existir. É ter que se adaptar/readaptar, aprender a

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viver novamente, agora assumindo outra perspectiva no mundo para si, para os outros, para os objetos” (Chini & Boemer, 2007, p. 332). Para Aquiles, o processo de amputação era descrito como aparentemente tranquilo. Ele percebia que passava por momentos de adaptação, aprendizagem e reflexões, mas parecia optar por lidar com essas situações com predomínio de racionalizações, defendendo-se, assim, de sentimentos de tristeza, desespero, medos e angústias. Conforme Galván e Amiralian (2009), em alguns casos o paciente não reconhece emocionalmente a amputação e não subjetiva a perda, vendo-se com dificuldades para se apropriar do seu corpo diferente. E na medida em que o trabalho foi desenvolvido com Aquiles, essa impressão emocional relacionada à ausência de aceitação subjetiva sobre a perda física, era presença constante na estagiária. A todo o momento a necessidade de autosuperação presenciou-se, fortemente, no modo de expressão de Aquiles, que desse modo parecia revestir o seu processo de reabilitação com atenção às suas possibilidades, ultrapassando as limitações. Sobre isso, Chini e Boemer (2007) dizem: A reabilitação deve ser considerada como mais uma etapa do tratamento, pois permite que a pessoa continue a lançar-se no mundo e a viver novas experiências. O retorno às atividades traz consigo uma sensação de plenitude, onde as possibilidades tornam-se concretas e deixam de fazer parte de um mundo desejado para um mundo vivenciado (p. 334).

Para esses autores, a amputação denota sentimentos de tristeza, dor e questionamentos, porém as dificuldades e os sofrimentos enfrentados podem ser encarados com sentimentos de necessidade de superação e novas possibilidades de viver a vida. Podemos dizer, com Aquiles, que para ele, “a expectativa de uma

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nova vida é motivo de felicidade e desejo de querer continuar vivendo” (Chini & Boemer, 2007, p. 336). Com este breve relato, buscamos ilustrar a necessidade do profissional de Psicologia estar engajado e disposto a encontrar o outro em seu sofrimento, – um sofrimento que pareceu mais visível àqueles que efetivaram o encaminhamento e atenderam Aquiles, do que para ele próprio. Os encontros em atendimento domiciliar proporcionaram expressão de parcela de suas angústias e o ensaio de novos modos de ser, a partir dos recursos desenvolvidos por ele após a amputação, puderam ser compartilhados com a estagiária. O contato com Aquiles em seu contexto também permitiu compreender de modo mais aproximado as suas relações familiares e os seus principais desafios, estabelecendo com ele um planejamento para atendimentos futuros, a partir de suas necessidades emocionais e de reinserção social e laboral. A sua adaptação à nova rotina pode ser acompanhada pelo profissional de psicologia no sentido de oferecer-lhe suporte emocional. Em um sentido, essa medida contemplaria as diretrizes esperadas de trabalhadores situados em NASF, no sentido de que ela mira o necessário acompanhamento com alcance longitudinal; contudo, em outra direção, ela dificilmente poderia estar contemplada no plano de atividades de um mesmo estagiário, haja vista as limitações envolvendo calendários acadêmicos em que este se encontra. Em âmbito de supervisão, com frequência debates e reflexões sugeriam necessidades de haver aprofundamentos nas questões subjacentes ao teor manifestado nas narrativas de Aquiles, – porque isso poderia consolidar espaços para sua expressão subjetiva e para favorecer trabalhos elaborativos acerca de seu novo momento pessoal. Todavia, muito precoce e claramente ele sinalizava não haver interesse nesse tipo de exercício que lhe foi disponibilizado, o que determinou seu processo na série de três encontros. Esse foi o modo como ele

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pode conduzir os diálogos junto à estagiária e esta, em colaboração com o grupo de supervisão, se deixou aprender sobre Aquiles nessa mesma medida, procurando respeitá-lo em seu tempo interno. Assim como houve demandas formuladas por membros da ESF para desenvolvimento de trabalhos domiciliares e individuais, outras também ocorreram, o que será exemplificado no próximo item, com ilustração de intervenção grupal. Caso 2: Processo grupal com gestantes O grupo de gestantes foi proposta formulada pela equipe de enfermagem e surgida a partir do grande fluxo de mulheres que faziam acompanhamento pré-natal na USF. Essa equipe considerou significativa a presença de profissionais de outras áreas e por isso convidou a estagiária de psicologia para integrar a condução do processo grupal, juntamente com uma estagiária de enfermagem. Esta ocupou-se de buscar e trabalhar informações médicas sobre fases e mudanças no período gestacional e a de psicologia, por sua vez, focou condições emocionais. Tendo em vista o cronograma previsto para o encerramento do estágio, as estagiárias concordaram que teriam três encontros com as gestantes e que a modalidade de funcionamento grupal seria do tipo aberta. O objetivo dos encontros era promover diálogos reflexivos que pudessem colaborar para com aprendizados sobre as vivências da gestação. Esse tipo de trabalho planejado pode constituir-se, ainda, como um meio facilitador para “tomada de consciência de aspectos importantes envolvidos no dia a dia das pessoas que normalmente passam despercebidos por elas” (Klein & Guedes, 2008, p. 864). A gravidez é um momento no qual a mulher tem experiências significativas que geralmente modificam seu cotidiano e seus relacionamentos interpessoais. Ela depara-se com a modificação do seu corpo, com as preocupações acerca do desenvolvimento

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fetal, de seus relacionamentos familiares e sociais, além de apresentar dúvidas relacionadas à experiência da maternidade (Baroni, Souza, & Scorsolini-Comin, 2013; Klein & Guedes, 2008). Por razões como essas, compreendemos e julgamos importante desenvolver trabalhos em grupo com gestantes, visando proporcionar acolhimento para as vivências inerentes à sua condição e para suscitar situações de aprendizagem mútua. Para Delfino, Patrício, Martins e Silvério (2004), a saúde da mulher tem recebido atenção nas últimas décadas, porém o objetivo de proporcionar uma assistência integral à saúde da mulher tem sido falho. No que diz respeito à saúde da gestante, esses autores afirmam que: As ações de saúde não propiciam um acolhimento às ansiedades, às queixas e temores associados culturalmente à gestação. Desta forma, a gestação é conduzida pelos profissionais de saúde de modo intervencionista, tornando a assistência e as atividades educativas fragmentadas, sem que a realidade da mulher gestante seja tratada na sua individualidade e integralidade (Delfino et al., 2004, p. 1058).

Esse tipo de ponderação teórica auxiliou no planejamento das atividades e na ampliação do olhar das estagiárias sobre o público alvo das intervenções. No primeiro encontro sete mulheres participaram, sendo quatro delas primíparas, com gestações que variavam entre quatro a nove meses. A estagiária de enfermagem apresentou informações sobre as mudanças de cada trimestre da gravidez, ilustradas por imagens de fetos, e reforçou a importância do pré-natal para a mãe e para o bebê. Em meio às surpresas provocadas pelas imagens, houve questionamentos e dúvidas puderam ser esclarecidas. Em seguida, conversou-se sobre as “alterações psicológicas” no período gestacional. As participantes demonstraram entusiasmo ao falarem sobre as questões emocionais que envolviam suas gestações, sendo que enfatizaram o

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choro excessivo e o nervosismo, alterações nem sempre compreendidas por elas. Outro aspecto muito evidente foram as dificuldades descritas em relação ao convívio familiar. No segundo encontro participaram três gestantes, das quais apenas uma integrava os trabalhos pela primeira vez. A estagiária de enfermagem conversou com as participantes sobre mitos e tabus na gravidez, o que caracterizou um momento dinâmico de partilhas, no qual as pessoas puderam participar ativamente, redimensionando concepções apresentadas sobre o período gestacional, muitas das quais eram equivocadas. Objetivando continuar debates sobre as experiências gestacionais e sobre a importância das relações sociais nesse momento, a estagiária de psicologia propôs às participantes reflexões sobre seus próprios ciclos de desenvolvimento. Como elas imaginavam que haviam sido gestadas por suas mães? Como se lembravam de suas infâncias, adolescências e juventudes? Como se viam em suas vidas atuais? Essa atividade tinha a finalidade de instigar reflexões sobre as pessoas e momentos que foram marcantes nas vidas das participantes e sobre como isso poderia afetar o período gestacional atual e as expectativas sobre a inserção dos bebês na vida delas. No último encontro três participantes compareceram, das quais uma o fazia pela primeira vez. A estagiária de enfermagem dialogou sobre a importância da amamentação e procurou demonstrar como é o modo apropriado para as mães amamentarem seus filhos. Um vídeo do Ministério da Saúde sobre a importância da amamentação foi, ainda, apresentado. Tendo em vista este tema, a estagiária de psicologia promoveu diálogo focado no significado do aleitamento para elas. O diálogo se estendeu às expectativas acerca do parto, facilitando novos esclarecimentos de dúvidas e debates sobre como seria a inserção dos bebês no ambiente familiar. Considerando o período gestacional e o parto, relacionados aos questionamentos e dúvidas apresentados pelas

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gestantes, compreende-se que a mulher fique temerosa. Esses são eventos desconhecidos em relação a outras experiências pregressas, talvez sejam dolorosos e configurem um “momento inaugural de concretude da relação mãe-filho” (Klein & Guedes, 2008, p. 864) e do próprio papel de mãe, “por este ser mitificado e conter a exigência de a mãe ser um modelo de perfeição. Com todas essas exigências, a gestante chega ao parto, muitas vezes, sem refletir sobre seus desejos, suas possibilidades e suas limitações” (p. 864). Para encerrar os encontros planejados, as estagiárias presentearam as participantes com um caderno onde poderiam registrar suas experiências gestacionais. Compreendemos que as atividades em grupo puderam proporcionar às gestantes um espaço de compartilhamento de experiências, de sentimentos e de troca de saberes. Esse conjunto de ações, ora relatadas de modo breve, procuram ressaltar o valor dos processos grupais como ferramenta apropriada de ser utilizada em NASF, em especial quando coordenado por profissionais com distintas formações. Estes devem ser planejados considerando o perfil das gestantes e o levantamento prévio de suas principais necessidades, enquanto inseridas na comunidade. A partir desse levantamento, torna-se possível convidar mulheres para a participação em grupos que tenham maiores chances de acolher suas necessidades e expectativas. Conhecer essas demandas é fundamental para o adequado planejamento, manejo e avaliação do grupo (Fernandes, 2013), o que pode contribuir para que as gestantes, neste caso específico, possam construir um espaço de escuta, troca e construção de aprendizados para enfrentar a gestação e a futura maternidade. A experiência aqui narrada constitui uma aproximação no sentido de refletir sobre as potencialidades do NASF para a oferta de atendimentos grupais focados em tarefas de aprendizagem. Neste momento, o trabalho com gestantes foi utilizado para

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ilustrar algumas das ações que vêm sendo praticadas no estágio, entretanto outros segmentos comunitários poderiam desfrutar desse tipo de trabalho. Considerações Finais A proposta de estágio em processos clínicos procurou proporcionar imersão no campo de atuação da Psicologia clínica na saúde pública, em uma prática supervisionada que busca articular teoria, produção científica e princípios éticos da profissão. Dessa forma, o que foi desenvolvido no NASF teve como objetivo promover reflexões sobre o compromisso social da psicologia no cuidado à saúde mental, levando em consideração as limitações e os potenciais dos processos clínicos inseridos no campo da saúde pública brasileira. Algumas questões puderam ser apresentadas e discutidas, como a necessidade de que a psicologia desenvolva e aprimore estratégias de atendimento que, de fato, atendam às necessidades da população que busca auxílio psicológico em NASF da cidade de Jataí. Tendo em vista os princípios norteadores do SUS, da ESF e do NASF, os atendimentos foram realizados concebendo as pessoas como membros de uma determinada comunidade, com características que precisam ser respeitadas e melhor conhecidas pelos psicólogos. Assim, a inserção do profissional nessa instituição pode gerar uma atuação firmada no conhecimento de expectativas e demandas comunitárias. Além desse preparo profissional, a disponibilidade para o encontro com o outro, com as dores inerentes ao trabalho de ofertar cuidados àqueles que sofrem, deveria permanecer no foco da atenção do psicólogo e da equipe, de modo que cuidar-se fosse uma prerrogativa institucional e política tão imprescindível quanto cuidar de. A capacidade de estar com o outro, de corresponsabilizar-se e de buscar alternativas coerentes com seu

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contexto e com as suas possibilidades, dentro de uma comunidade local, são desafios que precisam compor o repertório dos profissionais da psicologia. Entende-se que essas questões emergentes precisam atravessar a formação do estudante na graduação, bem como o espaço primordial constituído pelos estágios básicos e específicos na construção profissional. As modalidades de atendimento clínico executadas e relatadas, as visitas domiciliares e o processo grupal compuseram um repertório de atuação que pode e deve ser ponderado, mirando progressos. Quais os limites e os alcances dessas formas priorizadas no atendimento psicológico? Como essas estratégias podem atender à população que diariamente chega ao NASF estudado e a outros, situados em realidades semelhantes? Esses são alguns dos desafios que devem continuar servindo à nossa reflexão na universidade em sua interface com a extensão à comunidade e com a pesquisa. Compreender o fazer clínico como uma atividade diretamente atrelada à comunidade e ao meio social pode contribuir para a assunção de intervenções que encontrem a pessoa em sofrimento em sua realidade, buscando soluções a partir de sua rede de apoio e de seus recursos pessoais. O encontro com o outro na urgência pode ser mais uma oportunidade para que os psicólogos compreendam o saber clínico como algo dinâmico, que pode promover a abertura para a escuta e o acolhimento em situações diversas, como as retratadas neste momento. O que tem sido desenvolvido nas atividades do estágio, particularmente nos atendimentos individuais, não é algo que coincida com as propostas especificadas pelos proponentes das PBP e do plantão psicológico. Ambos os modelos são adotados como motivadores das práticas, entre os fatores já mencionados, porque consideram o fator temporal e a focalização como delimitadores das intervenções. Contudo, nem sempre é possível ser dito que os atendimentos oferecidos constituam, de fato, em psicoterapias breves, ainda que seja possível dizer que, com

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muita frequência, eles exerçam a função de plantões psicológicos. Por outro lado, nos casos de trabalhos grupais, os grupos operativos são tidos como ponto de partida teórico e prático, todavia não seria conveniente dizer que se tratam de processos espelhados em relação às proposições de Pichon-Rivière e seus colaboradores. Com este trabalho pretendemos indicar algumas possibilidades de inserção do psicólogo clínico no NASF, pela via do diálogo e da reflexão ocasionada pela presença de uma estagiária. Como ferramentas básicas, o profissional em formação deve conhecer o campo da saúde pública e suas políticas. Se sua atividade estiver suficientemente embasada em recursos disponibilizados pela Psicologia e se ela puder ser aprimorada e reinventada, estratégias e reflexões sobre saúde podem materializar de modo construtivo e progressivo, junto à equipe e à comunidade, os princípios norteadores do SUS. Esperamos, ainda, ter ressaltado a impossibilidade de execuções clínicas pautadas em modelos teórico-técnicos e práticos já estabelecidos. Acreditamos na necessidade de existirem pesquisas para aprimoramento de vertentes mais adequadas à realidade da saúde pública nacional, o que se mostra exequível a partir de atividades extensionistas como as relatadas neste capítulo. Referências Aguirre, A. M. B., Herzberg, E., Pinto, E. B., Becker, E., Carmo, H. M. S., & Santiago, M. D. E. (2000). A formação da atitude clínica no estagiário de Psicologia. Psicologia USP, 11(1), 49-62. Ávila, L. A. (2010). As tensões entre a individualidade e a grupalidade. Revista da SPAGESP, 11(2), 4-9. Baroni, F., Souza, L. V., & Scorsolini-Comin, F. (2013). Significados da gravidez e da maternidade: Discursos de primíparas e multíparas. Psicologia: Teoria e Prática, 15(1), 19-34.

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O processo de construção de um espaço grupal para equipes de profissionais da Estratégia Saúde da Família Marianna Ramos e Oliveira Carolina Martins Pereira Alves Joana Borges Ferreira Neftali Beatriz Centurion Roberta Rodrigues de Almeida Laura Vilela e Souza Neste capítulo, objetivamos a apresentação e análise da proposta de intervenção grupal com profissionais de equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF), desenvolvida no estágio no curso de graduação em Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, na cidade de Uberaba (MG). Iniciamos o capítulo resgatando a proposta do SUS e da ESF e a literatura sobre prática grupal nesse contexto e, em seguida, apresentamos a intervenção grupal desenvolvida nesse estágio. Por fim, tecemos uma discussão dessa prática a partir dos desafios por nós vivenciados. Estratégia Saúde da Família, profissionais e espaços grupais

equipes

de

Desde a conquista legal de um Sistema Único de Saúde (SUS) para o Brasil, um processo dinâmico e complexo tem se estabelecido, com especial atenção à produção do cuidado à saúde e ênfase em dois aspectos principais: o processo de trabalho em saúde e a integralidade (Merhy, 2002). Após as propostas da VIII Conferência, em 1988, foi incluída na Constituição Brasileira a saúde como um direito de todos e dever do Estado (Cordeiro,

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1991). A conferência, ao propor um novo entendimento de saúde, teve como efeito a garantia do direito à cidadania com relação às condições do cuidado em saúde, rompendo com a concepção medicalizada de que saúde é apenas ausência de doenças (Escorel & Bloch, 2005). Os princípios do então novo sistema de saúde são: universalidade, equidade, integralidade, descentralização, regionalização, hierarquização e participação popular. Esse sistema foi, após sucessivos movimentos e tentativas, a primeira ferramenta legitimada e garantida em lei para a construção de um sistema de saúde digno, humano e universal (Camargo-Borges & Japur, 2005). Com a Declaração de Alma-Ata, houve uma aproximação dos serviços de saúde com as necessidades da população com sua participação na tomada de decisões e reorientação dos serviços. Nesse contexto, ficou definido que a atenção primária à saúde (APS) seria a porta de entrada da população ao sistema nacional de saúde, responsável pela coordenação e integração dos cuidados em saúde (Heimann & Mendonça, 2005). A Estratégia de Saúde da Família (ESF), considerando-se a hierarquização do modelo SUS, faz parte das estratégias do primeiro nível de atenção em saúde. Segundo o Ministério da Saúde (Brasil, 1998), a ESF deve garantir o acompanhamento dos indivíduos e famílias no acesso a outros níveis de maior complexidade, como hospitais e unidades de pronto atendimento. A ESF se apresenta como uma resposta à crise do sistema de saúde provocada pela assistência centrada no modelo biomédico medicalizante, verticalizado e centrado na produtividade, propondo parcerias com as famílias no local onde atua e privilegiando um trabalho baseado na promoção de saúde, no vínculo e na responsabilidade das ações coletivas e individuais (Brasil, 2005; Matumoto, 2003). O bom trabalho em equipe é uma das principais características do SUS. Para tanto, é preciso uma atuação harmônica, onde haja a homogeneização de práticas e saberes. É preciso, porém, garantir, ao mesmo tempo, a presença de diversidades

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relativas aos campos de cada saber profissional. A equipe precisa trabalhar em harmonia, mesmo que em alguns momentos o trabalho de um ou outro profissional se sobressaia (Gomes, Pinheiro, & Guizardi, 2005). Camargo-Borges e Cardoso (2005) apontam para a necessidade da criação de espaços nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) onde haja apoio mútuo dos profissionais e possibilidade de expressar as dificuldades encontradas no trabalho pela a equipe. Peduzzi (2001) afirma que a equipe de saúde, muitas vezes, organiza-se agindo sem comunicação, fortalecendo as hierarquias de subordinação previamente estabelecidas pelo modelo biomédico tradicional de saúde. A constituição de uma equipe multidisciplinar deve basear-se no diálogo e troca de saberes, na qual o cooperativismo e os diferentes conhecimentos ajudariam a equipe a se tornar mais integrada e eficiente para lidar com os usuários. Por esses motivos, embora a ESF tenha crescido e facilitado importantes processos de mudança, ainda são necessárias transformações significativas na prática desse tipo de serviço (Gil, 2006). A Psicologia tem tido o desafio de rever suas práticas no campo da saúde de forma a responder às demandas de implantação desse novo modelo de cuidado. Nas últimas décadas, os psicólogos passaram a compor as diferentes equipes de saúde. Todavia, essa inserção aconteceu, em um primeiro momento, com a ausência de um arcabouço teórico e prático para sua atuação nesse âmbito (Camargo-Borges & Cardoso, 2005). Andrade e Simon (2009) apontam que a falta de formação específica durante a graduação pode prejudicar a prática profissional na saúde pública. Um estudo conduzido pelo Conselho Federal de Psicologia (2010) mostra que profissionais que atuam em Unidades Básicas de Saúde (UBS) encontram dificuldades em realizar um trabalho inovador devido às más condições de trabalho, falta de capacitação, recursos materiais e espaço físico, que não permitem a realização de um atendimento em grupo adequado. Além disso, os profissionais afirmam haver uma desvalorização de seu

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trabalho nas unidades, ainda muito voltadas à tradição medicalizante. Apesar destes fatores, os profissionais que participaram da pesquisa acreditam que práticas grupais nesse contexto podem ser positivas, promovendo um envolvimento entre profissionais e usuários. A respeito do trabalho com grupos, Souza e Carvalho (2003) também consideram uma intervenção consagrada no âmbito da saúde pela Psicologia. Segundo Ferreira Neto e Kind (2011), a atuação com grupos nas UBS tem sido uma ferramenta muito útil que atende aos princípios do SUS e proporciona um trabalho de transformação das práticas de saúde. Alguns profissionais também consideram grupos uma estratégia para a reorganização do excesso de demanda. Além das razões práticas para o incentivo da formação de grupos, há também a de promoção de saúde. A construção de grupos pode ser elaborada tanto com os usuários do serviço quanto com os profissionais, trazendo diferentes benefícios (Ferreira Neto & Kind, 2011). O grupo inserido na realidade dos profissionais pode auxiliar na criação de um espaço de colaboração, apoio, interação dos saberes e sociabilidade (Nascimento, Brigadão, Silva, & Spink, 2010). McNamee (2010) afirma que a constituição de uma equipe multidisciplinar deve basear-se na dialogia e troca de saberes, na qual o cooperativismo e os diferentes conhecimentos ajudariam a equipe a se tornar mais integrada e eficiente para lidar com os usuários. Um espaço que, como colocado anteriormente, mostra-se necessário na realidade das unidades de saúde. Considerando-se a importância de se pensar a forma como esses espaços de trocas entre os profissionais têm sido propostos em diferentes UBS, apresentamos o relato de nossa experiência, com especial foco nos momentos iniciais de construção desse trabalho. Como a experiência de intervenção foi delineada

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A proposta de intervenção aqui discutida surgiu com a solicitação de que assumíssemos a coordenação do espaço institucionalizado em uma UBS como “Grupo de Integração” das equipes de profissionais da ESF. O convite foi feito pela psicóloga da UBS que vinha desempenhando o papel de coordenadora deste grupo há alguns anos e estava interessada em promover uma nova construção do grupo, com um movimento de co-responsabilização dos participantes. O convite foi aceito e operacionalizado em forma de estágio curricular ligado ao curso de Psicologia da UFTM. A realização dessa atividade foi entendida por nós como uma excelente possibilidade de aprendizagem, visto que as estagiárias não tinham, até então, experiência prática na área de saúde coletiva. No início, refletimos sobre a importância em realizar visitas na unidade anteriores à realização do grupo, a fim de conhecermos um pouco a equipe e também começar a construir um entendimento compartilhado sobre o grupo a partir de entrevistas iniciais com os profissionais que desejassem participar. Essas conversas iniciais eram vistas por nós como fundamentais para o processo, uma vez que preparariam os participantes para o grupo e possibilitariam esclarecimento das regras do contrato grupal. Como colocam Rasera e Japur (2007), essas conversas iniciais, que podem ser chamadas de sessões de preparação, promovem uma participação mais produtiva dos participantes, uma vez que tendem a diminuir expectativas irrealistas, o nível de atrito, ansiedade grupal e a taxa de abandono dos participantes. Contudo, escutávamos da equipe a importância de iniciarmos o trabalho o mais rápido possível e o receio de que as pessoas não aceitassem ser entrevistadas individualmente antes de nos conhecerem. Ficamos atentas ao receio de uma das profissionais de que a demora no início do grupo aumentasse o desestímulo na participação das pessoas, algo que ela avaliava como estando acontecendo. Pensamos, desde o início, que essas

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entrevistas seriam fundamentais para que o grupo se organizasse da forma mais confortável possível para a maioria dos participantes. No entanto, sentimos que diante do que essas narrativas nos traziam, o melhor a ser feito era começar o grupo naquela semana e que no primeiro encontro pudéssemos conversar sobre o contrato grupal. Desta forma, uma equipe de trabalho com cinco estagiárias foi composta, com duas na função de coordenadoras e três na equipe reflexiva. A equipe reflexiva propõe uma escuta diferenciada sobre o processo de conversa e colabora com múltiplas compreensões possíveis de realidades co-construídas (Andersen, 2002). Segundo Rasera e Japur (2007), a equipe reflexiva não é um método, mas uma maneira de pensar. Trata-se de uma prática clínica, na qual as pessoas que fazem parte da equipe reflexiva são chamadas a participar, a fim de criar condições para que novas descrições e entendimentos das situações sejam produzidos, utilizando de processos reflexivos. Explica-se inicialmente aos participantes do grupo como esta experiência se dá e combina-se que em alguns momentos ocorrerão pausas, nas quais os membros da equipe reflexiva falarão e os participantes ficarão na posição de escuta. Além disso, as pessoas que compõem a equipe reflexiva buscam identificar aberturas, tentam fazer conexões entre assuntos aparentemente contraditórios, pensam em transformações possíveis e suas consequências para o sistema e também refletem sobre as consequências de partilhar as reflexões que lhes veem à cabeça. O que se busca quando a equipe reflexiva se expressa é a multiplicidade de diálogos, não com o intuito de impor algum sentido específico, mas de construir novas potencialidades baseadas nas múltiplas possibilidades (Rasera & Japur, 2007). Os profissionais das equipes da ESF foram convidados a participar dos encontros grupais, tendo a adesão de cerca de 15 pessoas por encontro, ao longo de um processo que durou sete

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encontros. A equipe participante do grupo era composta, em sua maioria, por agentes comunitários de saúde. Contava também com a presença esporádica de uma profissional de odontologia, dois profissionais de medicina, alguns membros da residência multiprofissional da UFTM e uma profissional de enfermagem. A presença no grupo não foi constante, variando conforme as possibilidades da equipe. No primeiro encontro explicamos quem nós éramos e propusemos que pensássemos sobre o contrato grupal, uma vez que não foi possível fazer as sessões de preparação, que teriam nos auxiliado bastante neste primeiro contato. Perguntamos para as pessoas que estavam presentes o que precisaria existir no grupo para que cada um ficasse mais à vontade e para que ficássemos bem juntos, baseando-nos na proposta de “Construção de Contexto Conversacional” proposta por Japur, Ruffino e Costa (2011), que visa à definição conjunta sobre o “para que” se quer estar junto, “como” se quer estar junto, “o que” se quer fazer junto e “quem” estará junto. Os pedidos dos participantes para se sentirem confortáveis no grupo e considerarem que a experiência tinha valido a pena foram: respeito, comunicação, saber ouvir o outro, união, respeitar opiniões, ter opiniões próprias, aceitar críticas, amizade, ter lanche durante o grupo, compreensão, pontualidade, comprometimento, boa vontade, descrição, prudência, ter orientações, ser atencioso e ser um grupo descontraído. Percebemos que algumas pessoas não sabiam o que dizer e seguiam a resposta de quem já havia se manifestado e também sentimos que eles não davam detalhes de como o grupo poderia atendê-los. A palavra "respeito" foi muitas vezes citada, mas não eram feitos pedidos práticos para que se sentissem confortáveis no grupo. Ao final deste encontro, a coordenação pediu que os participantes falassem uma palavra que resumisse como eles estavam saindo daquele encontro ou o que tinham pensado sobre o que foi feito naquele dia. Eles responderam: equipe, mudança,

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novo, diferença, curioso, respeito, expectativa, diferente, interessante, bom, realidade, medo. Percebemos pelas respostas dadas que havia algo de muito novo e diferente no que estávamos propondo ou na forma que eles viam o que estávamos propondo. Foi possível perceber, também, que inicialmente a equipe se caracterizava pelo que os próprios participantes denominavam “o medo do desconhecido”. No entanto, mostraram-se também curiosos a respeito do que seria realizado nos encontros grupais, visto que apesar de se mostrarem receosos no primeiro momento, grande parte dos profissionais estiveram presentes no segundo e terceiro encontros, principalmente os agentes comunitários da UBS. Devido a algumas questões burocráticas na instituição não pudemos estar presentes na semana seguinte, e o encontro grupo foi realizado sem a nossa coordenação. Neste dia, toda a equipe se sentiu à vontade para fazer críticas sobre o nosso primeiro encontro, e a psicóloga da instituição sugeriu que confeccionassem uma carta para ser enviada para a equipe de estágio. A ideia da carta surgiu como uma saída para nos incluir nesse diálogo e sistematizar as queixas e os pedidos que surgiram a partir de uma impressão bastante negativa do primeiro dia do grupo. Foi importante que, neste momento, a psicóloga estivesse presente como mediadora do grupo que já existia e de sua nova coordenação, criando a possibilidade de que os dois lados pudessem ser ouvidos, ainda que não estivessem todos presentes. Foi esta carta que, a princípio, nos ajudou a entender melhor os pedidos da equipe e repensar o estilo da coordenação. O conteúdo da carta dizia que eles não entenderam o porquê de nós estarmos lá e se sentiram perdidos. Afirmava que a coordenação dificultou os diálogos e chegou com muitas imposições, dando a impressão de querer sujeitar aquele espaço às suas vontades. Alguns participantes que não gostaram do modo como falamos estavam preocupados com aquele espaço deixar de ser agradável com a nossa coordenação. Também demonstra-

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ram confusão quanto aos nossos objetivos e à finalidade do grupo, e perguntaram se não faltou um pouco de “freio” da nossa parte. A carta dizia que nós deveríamos ter conversado melhor com a psicóloga da instituição, até então coordenadora desse grupo, e que eles sentiram que os beneficiados seríamos nós, pela nossa aprendizagem no estágio e não mais eles. A carta demostrava que estavam com medo de perder o espaço do grupo e de nós tomarmos esse espaço deles. A impressão que eles tiveram da equipe reflexiva também foi bastante negativa. Eles apontaram terem ficado com a sensação de que não podiam responder ao que a equipe reflexiva falava. Não foi fácil ler todas essas críticas, especialmente porque achávamos que estávamos oferecendo uma forma de conversa exatamente na contramão das impressões que ficaram para os participantes. Entendemos que negociar “o como” e “para que” queremos estar juntos é justamente a oportunidade para não impormos um modo de ser do grupo, mas co-construir o próprio espaço e seus objetivos com a participação de seus membros. Ou seja, os efeitos produzidos não foram os que imaginamos produzir e fomos convidadas a entender os diversos elementos que poderiam ter levado a esses mal entendidos. Sabíamos que a forma como interpretássemos a carta faria toda a diferença no futuro do nosso trabalho na UBS. Assim, delineamos a nossa resposta baseada em uma perspectiva construcionista, de coresponsabilização pelo desencontro inicial, e entendemos a carta como um voto de confiança do grupo de que poderíamos construir um novo encontro melhor. Como responder a esse desafio A perspectiva construcionista social toma os relacionamentos como locus da produção de sentidos, sendo que as descrições sobre o mundo e sobre nós mesmos são tomadas nessa perspectiva como construções histórico-culturais. Na

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proposta construcionista, linguagem é tomada como uma atividade compartilhada socialmente e não como representação da realidade (Gergen, 1997). Nessa perspectiva, os entendimentos e desentendimentos entre as pessoas são compreendidos como tendo origem nos processos culturais de interação, estando relacionados à criação do que Rasera e Japur (2001) descrevem como ontologias relacionais. Estas ontologias estão ligadas a certos contextos específicos, que não necessariamente se estendem a outros relacionamentos, o que pode gerar o desentendimento (Gergen, 1999). Quando pensamos uma intervenção no campo da atenção em saúde estamos falando de um campo em constante ressignificação decorrente do momento histórico e cultural no qual profissionais e comunidade atendida se encontram e pelo relacionamento estabelecido entre eles (Camargo-Borges & Japur, 2005). Pensar uma prática grupal nesse contexto é estar aberto aos múltiplos entendimentos sobre o que é grupo, qual sua utilidade como espaço de atendimento da equipe de profissionais e qual o papel da Psicologia nessa proposta. Quando delineamos nossa proposta de conversa inicial com os profissionais da ESF no estágio aqui apresentado, partimos da ideia construcionista social da prática grupal como discursiva e negociada com a implicação e co-responsabilização dos participantes e coordenadores em seu delineamento. Assim, o contrato grupal é entendido como oportunidade de delimitar condições para esta produção de sentido, a partir de uma negociação entre coordenadores e participantes; tendo o coordenador como parceiro nestas construções, estabelecendo, assim, um relacionamento não hierárquico e com todas as descrições do grupo definidas em um processo relacional entre os participantes (Rasera & Japur, 2001). Dessa forma, as conversas iniciais levam à construção da realidade grupal e a prática grupal não precisa ser definida a priori, mas constituída pelas negociações e demandas de coordenadores e participantes (Ra-

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sera & Japur, 2007). Portanto, nosso convite aos participantes do grupo da UBS para uma negociação inicial sobre o propósito e formato do grupo era, para nós, uma oportunidade para se falar sobre de que forma os participantes sentiam-se confortáveis nesses encontros, quais atividades valorizavam, quais expectativas tinham e quais conquistas almejavam com sua participação. Observamos que em relações constituídas com conflitos e desacordos, podemos promover uma mudança para padrões mais construtivos se nos orientarmos por uma perspectiva relacional (McNamee & Shotter, 2004). Recebemos as críticas como um apontamento do que construímos com o grupo naquele primeiro momento, interpretando aquele mal-estar como algo produzido na nossa relação com a equipe. Em seguida, tentamos abordar a situação com uma disposição de curiosidade para entender como havia acontecido e de que forma poderíamos utilizar as críticas para começar a construir um novo momento com o grupo. Baseamo-nos em um pensamento construcionista, compreendendo que a realidade da relação é co-construída, e que a forma como respondemos e entendemos as críticas que nos foram feitas era o que iria possibilitar a construção de uma nova realidade relacional com o grupo. Foi no processo de conversa e supervisão que pudemos começar a entender que não éramos culpadas do grupo ter se configurado de forma negativa, mas que talvez tivéssemos nos precipitado tentando antecipar o que a equipe da UBS poderia querer de nós. Fomos à UBS com uma ideia prévia sobre como um bom diálogo deveria acontecer e esperamos que as nossas boas intenções fossem bem recebidas. Com as críticas da equipe é que pudemos verificar que existe um elemento de novidade no diálogo, algo que vai além do que podemos prever e que é construído no momento da comunicação (McNamee & Shotter, 2004). É justamente este elemento novo e inesperado que torna cada encontro do grupo algo precioso, e que faz com que possamos promover uma verdadeira construção da nossa relação

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com eles. Com a possibilidade de pensar a sensibilidade necessária para o diálogo e de compreender esses elementos que não poderiam ser ensaiados, voltamos ao grupo de uma forma completamente diferente daquela com que começamos. Ao nos prepararmos para responder às críticas que recebemos fizemos uma reflexão sobre tudo o que ouvimos e da forma como nos posicionamos na coordenação daquele grupo. Utilizamos algumas estratégias de McNamee e Shotter (2004), como parar por um momento e pensar de que outra forma o grupo poderia acontecer e se havia um jeito diferente de entender os comentários da equipe. Tivemos que questionar a nossa concepção do que era o melhor para o grupo e nos abrir para ouvir que o nosso melhor poderia ser diferente do deles. Decidimos voltar ao grupo evitando o sentimento de certeza. Observamos que a certeza poderia inibir a nossa habilidade de superar aquele desacordo com a equipe, que gostaríamos de transformar em novas possibilidades dialógicas. Assim, propusemos no segundo encontro uma conversa entre estagiárias e participantes sobre os incômodos apontados. Neste segundo momento, tentamos instituir um espaço democrático de conversa e nos esforçamos em nos posicionar a partir de um de não saber e de uma disposição questionadora (Anderson, 2009). Agradecemos a confiança que eles tiveram em nos fazer críticas e procuramos entender como poderíamos transformar essas queixas em pedidos. Começamos a conversar sobre como seria mais confortável para o grupo funcionar e de que forma cada um entendia que poderíamos cuidar daquele espaço. Com relação ao incômodo causado pela postura das estagiárias e o uso da equipe reflexiva, entendemos que essa postura foi inadequadamente incomum naquele contexto conversacional (Andersen, 2002), precisando que recuperássemos com os participantes seu modo confortável de funcionar. Foi possível entender, também, que muitos profissionais não

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haviam participado da decisão de inclusão das estagiárias nesse trabalho, o que se considerou importante de ser renegociado. Esclarecemos, então, que a nossa ida para coordenar o grupo veio com um convite da psicóloga da instituição, e a possibilidade de falar sobre isso ajudou a mudar a configuração inicial do grupo. Deixamos de ocupar um papel de estar invadindo o espaço deles para começar a fazer parte de uma forma alternativa para o grupo se reorganizar e reconstruir de forma positiva. Conversamos sobre o nosso sentimento perante a “carta” e colocamos que o que despertamos neles estava em desacordo com a nossa proposta de cuidado. Observamos que a possibilidade deles compartilharem coisas difíceis de serem ditas foi importante para nós e condizente com o nosso modo de trabalhar, no sentido de estarmos ali para ouvir e para constituir um ambiente de transparência. Retomamos a pergunta do que precisamos para estarmos juntos, enfatizando a necessidade de não darmos respostas abstratas, como no primeiro encontro. Colocamos que o que é confortável para eles não havia ficado claro, e que gostaríamos de ren egociar esses elementos. Afirmamos que a nossa intenção para o segundo encontro era recomeçar a configuração do nosso grupo, usando recursos que fizessem sentido para todos nós. Tínhamos intenção de implicálos no processo e de criar um clima de co-responsabilização pelos resultados do grupo. Neste segundo momento, surgiram falas mais concretas sobre a forma como o grupo gostaria de se organizar: não ter que estar no grupo obrigatoriamente; não criticar as falas uns dos outros, para que não houvesse receio na hora de se expressar; sentir-se à vontade de forma unida, sem críticas ofensivas; evitar risadas maldosas; não fazer nada apenas para agradar, sendo abertos para falar com sinceridade sobre aquilo de que não gostam; serem representativos no caso de exemplos, falando de um lugar de pessoalidade; ter cuidado com as conversas paralelas, por educação; construir um grupo alegre e

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descontraído, que possa proporcionar um momento de qualidade de vida; não exigir uma estrutura severa, com muitas regras; e tentar a equipe reflexiva mais uma vez. Ao ouvirmos os novos pedidos tivemos a oportunidade de nos organizar melhor para atender às necessidades apresentadas. Passamos a entender que a ideia de cuidado do grupo não era compatível com muitas regras e com uma estrutura estabelecida. Passamos a pensar na configuração do grupo encontro a encontro, tentando sempre promover uma coconstrução dos acontecimentos de cada semana. Ouvimos também o pedido por um grupo descontraído, entendendo que não era preciso evitar assuntos de maior tensão, mas trabalhá-los com recursos interessantes, como filmes, atividades e textos. O grupo demonstrou interesse por ter a liberdade de falar sem sofrer críticas e julgamentos e conversamos sobre como poderíamos ouvir uns aos outros para promover este respeito. Ficamos satisfeitas pela oportunidade de renegociar a utilização da equipe reflexiva e entendemos que, agora que os contratos haviam sido melhor conversados, a possibilidade de ter bons resultados com este formato do grupo havia aumentado. Por fim, procuramos ser consistentes com o pedido de sinceridade e transparência, e fomos abertas ao dizer como nos sentimos ao receber as críticas iniciais, agradecendo a confiança de termos uma nova oportunidade de começar o grupo. Entendemos que o desencontro do começo, ainda que tenha gerado desconforto e ansiedade nas estagiárias, foi um momento valioso para o nosso trabalho com o grupo. As críticas nos permitiram rever a forma como nos apresentamos e nos ajudaram a pensar em uma resposta alternativa que ajudasse a criar uma atmosfera de colaboração e diálogo. O que fizemos neste segundo encontro foi nos engajar em uma conversa sobre o futuro do grupo, delimitando as nossas intenções de que ele fosse construído conjuntamente. Assim, mudamos o nosso foco das nossas próprias visões e certezas para os recursos que podería-

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mos usar para promover e incentivar o diálogo (McNamee & Shotter, 2004). Considerações Finais Entrar em contato com a opinião do outro sem dúvida é um desafio, e este é ainda maior quando a realidade ou a visão do outro difere da nossa construção ideativa de como o grupo é ou deveria ser. E foi perante essa fronteira entre a visão do outro e o imaginário que a equipe de trabalho desse estágio havia construído que se manifestou o desafio de coordenar este grupo de profissionais. Para a equipe que aceitou o convite de coordenação desse grupo, a possibilidade de construção conjunta do contexto conversacional seria a forma de promover um grupo mais compartilhado e menos impositivo no início de sua atuação. Porém, a ideia levada ao grupo de algo construído em conjunto – em que os pareceres e possibilidades viessem de todos – não foi bem recebida, despertando nos organizadores a necessidade de promover novas formas de conversa e de estruturação das atividades que seriam propostas ao grupo. Para que esse grupo se sustentasse em um princípio estrutural mais homogêneo, entre as expectativas da coordenação e dos participantes do grupo, foi necessário trazer um diálogo aberto e, ao mesmo tempo, cuidadoso, em que houvesse uma aproximação do que era almejado pelos participantes. Estes buscavam um grupo descontraído em que houvesse momentos de diversão, ao mesmo tempo em que surgia a necessidade de promover o diálogo referente a temas sérios e realistas que entrassem em contato tanto com as vivências dos participantes quanto daqueles que usufruíam de suas práticas profissionais. Como define a perspectiva construcionista social, é apenas na suplementação do outro em conversa que se vai delineando a possibilidade de diálogo. Esse diálogo possibilitou fomentar a construção de um grupo sustentado em reflexões e

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vivências apresentadas nos encontros por meio de diversas atividades, como dinâmicas, filmes, debates que buscaram uma interação que possibilitasse uma identidade enquanto grupo, incluindo neste os seus coordenadores. Perante a nova dinâmica que se construiu, foram surgindo novos desafios. Um deles se tratava de os participantes considerarem os coordenadores como sendo igualmente integrantes do grupo. Este ponto trouxe à tona diversas conversas sobre isso, além de encorajar os coordenadores a participarem do dia-a-dia dos profissionais, crendo que, por meio disso, o grupo não se limitava a um dia e horário específicos, o que ressaltava a importância em compreender e perceber a prática do outro como sendo relevante para a união do grupo, ao mesmo tempo em que os participantes poderiam perceber os coordenadores como não sendo totalmente alheios à realidade apresentada pela UBS. Outro desafio referia-se aos participantes ansiarem receber atividades e propostas de atuação prontas, ou seja, já planificadas, em que não fossem necessários esforços para serem concretizadas, além daqueles requeridos no próprio espaço do grupo. Essa característica do grupo precisou ser igualmente objetivada pelos coordenadores no planejamento das atividades, visto que se tornou uma espécie condição para o bom funcionamento do grupo. Essa estrutura rígida de atuação aparenta ser uma reprodução da vivência da maioria dos profissionais na unidade, o que suplementa ainda mais essa necessidade ou exigência do grupo. Contribui com essa suplementação a consideração das tradições das práticas em saúde pública que, muitas vezes, não permitem o ativo envolvimento dos profissionais nas decisões sobre quais espaços participam e sobre o porquê dessas participações, com decisões unilaterais e hierarquizadas. A partir de nossa experiência de construção desse espaço grupal com a equipe da ESF, entendemos que o incentivo a esse envolvimento deve ser buscado sem se desconsiderar as práticas sociais insti-

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tucionalizadas, cuidando para que a diferença apresentada possa até ser causadora de incômodos, mas que seja também uma oportunidade para a transformação e questionamento do status quo. Referências Andersen, T. (2002). Conceitos básicos e construções práticas: Processos reflexivos (2ª ed). Rio de Janeiro: Instituto NOSS. Anderson, H. (2009). Conversação, linguagem e possibilidades: Um enfoque pós-moderno da terapia. São Paulo: Roca. Andrade, J. F. S. M., & Simon, C. P. (2009). Psicologia na atençãoprimária à saúde. Paidéia (RibeirãoPreto), 19(43), 167-175. Brasil. (1998). Saúde da Família: Uma estratégia para a reorientação do modelo assistencial. Brasília: DF. Brasil. (2005). Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Participativa. Saúde da Família: Panorama, avaliação e desafios. Brasília: Ministério da Saúde. Camargo-Borges, C., & Cardoso, C. L. (2005). A Psicologia e a estratégia saúde da família: Compondo saberes e fazeres. Psicologia & Sociedade, 17(2), 26-32. Camargo-Borges, C., & Japur, M. (2005). Promover e recuperar saúde: Sentidos produzidos em grupos comunitários no contexto do Programa de Saúde da Família. Interface: Comunicação, Saúde, Educação (Botucatu), 9(18), 507-19. Conselho Federal de Psicologia [CFP]. (2010). Práticas profissionais de psicólogos e psicólogas na atenção básica à saúde. Brasília: Autor. Cordeiro, H. (1991). Sistema Único de Saúde. Rio de Janeiro: Ayuri Editorial. Escorel, S., & Bloch, R. A. (2005). As conferências nacionais de saúde na construção do SUS. In N. T. Lima, S. Gerschman, F. C. Edler, & J. M. Suárez. Saúde e democracia: História e perspectivas do SUS (pp. 83-119). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.

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Grupos com agentes comunitários de saúde de Uberaba (MG): Dando voz aos cuidadores Sabrina Martins Barroso Helena de Ornelas Sivieri-Pereira Izabella Lenza Crema Juliana D’André Montandon Mariana Tolêdo Fuzaro Nathalia Beatriz Fontes Silva Renata Lemos Crisóstomo Wanderlei Abadio de Oliveira As mudanças sociais e políticas ocorridas no Brasil nas últimas décadas contribuíram para que se repensassem o conceito de saúde e as práticas em saúde pública, incluindo a aproximação dos profissionais que atuam nessa área com a comunidade atendida. Assim, a saúde não seria mais compreendida apenas como ausência de doenças ou enfermidades, mas sim de uma forma integral, incluindo ausência de sofrimento físico, mental, o direito ao bem-estar social e à qualidade de vida (Bock, 2002; Mattos, 2001; Ministério da Saúde, 2000; Spink, 2007). Seguindo o referencial dessa nova concepção de saúde, vista como coletivamente construída e um direito de todos, adotou-se a descentralização dos atendimentos médicos e odontológicos como parte da nova política pública para saúde (Sisson, 2007). Em 1994, o Ministério da Saúde criou o Programa de Saúde da Família (PSF) como forma de oferecer à população um ponto de acesso inicial e regionalizado ao atendimento, consolidando as propostas de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS). Os princípios básicos desse programa, posteriormente denominado Estratégia de Saúde da Família (ESF), são a atuação

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em caráter comunitário, servindo como porta de entrada para atendimentos mais complexos e especializados, atuação interprofissional, territorialização e adscrição da clientela atendida, o que contribui para o estabelecimento da corresponsabilização entre equipe de saúde e comunidade (Feliciano, Kovacs, & Sarinho, 2005; Kluthcovsky, Takayanagui, Santos, & Kluthcovsky, 2007; Ministério da Saúde, 2000). Segundo Bornstein e Stotz (2008), os trabalhadores que atuam na Estratégia de Saúde da Família (ESF) são profissionais da área da saúde com diferentes formações, havendo sempre a presença de um médico generalista, um enfermeiro, um odontólogo e de agentes comunitários de saúde (ACS). A essa equipe mínima prevista em lei podem ser acrescidos assistentes sociais, psicólogos, fisioterapeutas e outros profissionais, de acordo com as necessidades apresentadas pela comunidade em que a equipe atua, a disponibilidade de profissionais na região e acordos com as prefeituras municipais (Campos & Belisario, 2001; Gil, 2006; Ministério da Saúde, 2000; Starfild, 2002; Telles & Pimenta, 2009). Na ESF, o atendimento na atenção primária à saúde passou a ser mediado pelos ACS, profissionais que estão na “ponta” do sistema de saúde e estão mais próximos às famílias, conhecem as realidades locais e são responsáveis pelas ações de educação em saúde e pelo mapeamento dos seus territórios de atuação (Levy, Matos, & Tomita, 2004). Os agentes comunitários são moradores da própria região atendida pelo serviço de saúde em que atuam. Essas pessoas recebem treinamento e passam a trabalhar informando à comunidade sobre os tipos de atendimento disponíveis nas Unidades Básicas de Saúde, mediando a relação entre a comunidade e os profissionais, marcando consultas, verificando vacinas, informando sobre grupos de acompanhamento e sensibilizando os profissionais da ESF sobre a necessidade de desenvolver programas para demandas específicas da comunidade (Borges & Cardoso, 2005; Gomes, Cotta, Cherchiglia, Mitre, & Batista, 2009).

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No Brasil, a tarefa dos ACS como mediadores entre a comunidade e os serviços de saúde teve início em 1987, no Ceará, sendo posteriormente incorporada às práticas do SUS e suas atribuições foram regulamentadas pelo Governo Federal no ano de 2000. Seguindo o princípio da territorialização proposto pelo SUS, cada equipe da ESF torna-se responsável por uma área em que residem de 2.500 a 4.500 pessoas (ou famílias) e o acompanhamento domiciliar é feito pelos agentes comunitários de saúde. Pela definição do Ministério da Saúde, cada ACS acompanha entre 450 e 750 famílias por microárea (Jardim & Lancman, 2009; Kluthcovsky et al., 2007; Levy et al., 2004). A atuação dos ACS visa promover uma maior identificação da comunidade com o serviço de saúde, já que os agentes são escolhidos entre membros da própria comunidade (Kluthcovsky et al., 2007). Residir na comunidade em que deve atuar é uma das características exigidas para que uma pessoa se torne um agente comunitário de saúde. Essa medida visa auxiliar na identificação desse profissional com as pessoas que precisa acompanhar, facilitando o trabalho de tradutor das demandas comunitárias previsto para os ACS, uma vez que, ao residir na mesma região, os agentes comungariam de referenciais culturais e vivenciariam os mesmos problemas que as pessoas que eles atendem (Kluthcovsky et al., 2007; Pupin & Cardoso, 2008; Silva & Dalmaso, 2002). De acordo com o Ministério da Saúde, as atribuições do ACS são estruturantes, quando se considera sua atuação como educadores em saúde e promotores de mudanças. Mas essa atuação também remete à condição de anteparo da equipe de saúde, informando-a sobre a comunidade, suas necessidades e disponibilidades (Lunardelo, 2004; Ministério da Saúde, 2006; Nunes, Trad, Almeida, Homem, & Melo, 2002; Silva & Dalmaso, 2002; Tomaz, 2002). Desde seu surgimento, o papel de mediar o acesso aos serviços públicos de saúde para a comunidade mostrou-se impor-

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tante. Com o tempo, os ACS passaram a ocupar uma posição central para a efetivação da proposta de acesso universal à saúde do Sistema único de Saúde e no funcionamento da ESF (Silva, 1997; Spiri, 2006). De acordo com Nunes et al. (2002), os ACS atuam na organização da comunidade, na mediação do contato com o sistema de saúde e na prevenção de problemas ou na prevenção do agravamento dos problemas de saúde, especialmente nos chamados grupos de risco. O lugar de mediador inerente ao trabalho dos ACS faz com que sua atuação seja tanto política quanto técnica, levando-os a ocupar uma posição chave para o sucesso do atendimento comunitário de saúde. As atividades desenvolvidas pelos ACS os colocam em uma posição fundamental na política nacional da atenção básica, pois são protagonistas na identificação dos principais problemas que afetam a saúde da comunidade. O protagonismo na atenção primária exercido por esses profissionais também os coloca diante de situações e contextos para os quais não receberam formação ou ainda não estão preparados (Campos & Belisário, 2001). De acordo com Hirchzon e Ditolvo (2004), no âmbito da assistência, o trabalhador produz o cuidado dentro de uma experiência de relação, vivência ainda mais presente no caso dos ACS. Mas a relação estabelecida é permeada por regras institucionais, aspectos da história pessoal e profissional dos trabalhadores e da própria instituição de saúde. Além disso, Kluthcovsky et al. (2007) chamam a atenção para a necessidade de considerarmos outros aspectos da vida dos agentes, seus dilemas, dificuldades e realizações, pois tais fatores podem interferir na natureza peculiar de seu trabalho e em sua qualidade de vida. Lunardelo (2004) e Nunes et al. (2002) pontuam que o contato com a população gera intenso envolvimento pessoal, com possibilidade de desgaste emocional para o agente. Faz parte das funções do ACS entrar nas casas dos integrantes da comunidade, ouvir suas histórias e queixas, questionar sobre questões de saúde e higiene. Essas tarefas geram uma relação de maior

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intimidade entre os agentes e a comunidade. Se por um lado essa aproximação foi planejada e desejada pelos criadores da ESF, por outra vertente acarreta algumas complicações para a vida dos agentes. Eles precisam lidar com uma variedade de contextos, com a necessidade de adequar sua forma de abordar e trabalhar as questões de saúde, o que os conduz a uma postura que se alterna entre assistencialismo e promoção de saúde. Além disso, os leva a ter que ressignificar seu papel como agente de saúde e seu local de inclusão tanto nas equipes de saúde quanto na comunidade (Nunes et al., 2002). Outro ponto de diferenciação do trabalho dos ACS referese a sua relação com os demais integrantes da equipe da ESF. Por não haver formação técnica específica para a profissão de ACS, a remuneração destes profissionais difere dos demais envolvidos na equipe de saúde. Nunes et al. (2002) apontam que a inserção do agente comunitário de saúde na equipe da ESF representou um aumento significativo de trabalho e responsabilidade para os ACS, sem que isso tenha sido acompanhado por um aumento salarial correspondente. Os profissionais das equipes de saúde melhor remunerados são aqueles que detêm formação técnica (médicos, enfermeiros, entre outros), o que gera nos agentes uma associação entre a atuação técnica e o retorno financeiro, levando-os a desqualificar sua atuação política na comunidade, sua própria profissão e a almejar poder desempenhar práticas pautadas no modelo biomédico de cura de enfermidades (Gomes et al., 2009; Nunes et al., 2002). Segundo Telles e Pimenta (2009), a formação dos agentes pode interferir não apenas em seu trabalho, mas também em seu relacionamento com os demais profissionais. O treinamento que recebem para se tornar ACS gera nesses profissionais um sentimento de orgulho e a percepção que tal saber é diferente dos conhecimentos oriundos dos conhecimentos do senso comum que possuíam antes. Segundo Nunes et al. (2002), os agentes reportam um aumento na percepção de sua

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própria resolutividade e em seu prestígio social ao serem incorporados à estratégia saúde da família, pelo estabelecimento de um contato privilegiado com profissionais da área da saúde. Contudo, o estudo de Telles e Pimenta (2009) mostrou que o mesmo treinamento que aumenta a percepção de qualificação dos ACS gera ansiedade neles, pois os ACS comparam seu conhecimento com o dos demais integrantes da equipe da ESF e sentem-se despreparados, ou até mesmo insatisfeitos com a educação que receberam. Conhecendo esses aspectos da realidade dos ACS, o presente capítulo teve por objetivo construir juntamente com eles sentidos para suas experiências, identificando suas potencialidades, dificuldades e a relação que estabelecem entre as atividades que desempenham e seu estado de saúde (física e emocional). Percurso Metodológico O presente estudo relata o desenvolvimento de um projeto de extensão/pesquisa da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) junto a três Unidades Básicas de Saúde de Uberaba/MG, pertencentes ao Distrito Sanitário I desse município. Adotou-se como metodologia a intervenção por grupos de educação em saúde e saúde do trabalhador, focando na construção da identidade profissional, avaliação emocional e capacitação. O trabalho foi dividido em duas fases, sendo a primeira a avaliação do perfil e de aspectos emocionais dos ACS e o segundo a realização dos grupos educativos e aconteceram no segundo semestre de 2011. Todos os grupos foram coordenados por acadêmicas dos cursos de Psicologia e Terapia Ocupacional e foram supervisionadas por docentes e por um psicólogo ligados à UFTM. As acadêmicas trabalharam em duplas, sendo cada dupla acompanhada por um profissional de Psicologia (professor ou psicólogo). Participaram das atividades

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35 agentes comunitários de saúde (ACS), entre os 60 que trabalhavam nas três Unidades Básicas de Saúde (UBS) participantes. Ao longo do projeto foram realizados oito encontros com os ACS em cada UBS, com média de uma hora e meia de duração cada. No primeiro encontro em cada UBS apresentou-se a proposta de trabalho e realizou-se um levantamento das expectativas dos ACS sobre projetos voltados para a saúde do trabalhador. Na primeira etapa, de levantamento do perfil dos ACS, realizada no segundo e terceiro encontros com os ACS, foram aplicados quatro instrumentos: (a) Critério Brasil para definição de nível socioeconômico; (b) WHOQOL-breve, para avaliação da qualidade de vida; (c) Inventário de Sintomas de Stress para Adultos de Lipp (ISSL) e (d) Inventário Síndrome de Burnout de Maslach (MBI). Os resultados observados por meio desses instrumentos encontram-se discutidos em outro estudo. Na presente proposta, esses resultados serão apresentados brevemente e o foco será mantido nas atividades em grupo desenvolvidas durante a segunda etapa do trabalho. Durante a segunda etapa foram realizados cinco encontros com os ACS em cada UBS, também com média de uma hora e meia de duração cada. Os encontros foram estruturados a partir de temas propostos pela equipe condutora do projeto, definidos previamente ou trazidos como foco de interesse pelos ACS ao longo dos encontros. Todo o trabalho de intervenção adotou um referencial de construção coletiva de cada passo, visando facilitar a emergência dos conteúdos relacionados ao mundo do trabalho, relacionamento interpessoal, saúde mental e saúde do trabalhador. Destaca-se que os procedimentos propostos se adequaram à intervenção, enfocando a saúde dos profissionais que se dedicam, na atenção básica, ao cuidado domiciliar nas comunidades. A opção por grupos de educação em saúde baseou-se na perspectiva dos grupos operativos, definidos sumariamente como um conjunto de pessoas com características que as interligam (como o tempo e espaço, por exemplo) e que se propõe à

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realização de uma tarefa cuja tônica pode ser terapêutica ou de aprendizagem (Santeiro, Souza, Santeiro, & Zanini, 2012; Zimerman, 2008; Pichon-Rivière, 1998). Os grupos realizados com esta concepção operativa pretenderam auxiliar os ACS a incluírem em seu cotidiano o debate sobre questões de saúde que influenciam no processo saúde-doença, sobre o trabalhador como cuidador/que necessita de cuidado, sobre situações estáticas e/ou estereotipadas que possam ser transformadas ou flexibilizadas nas equipes, nas práticas profissionais e nas relações interequipes. As informações e discussões realizadas foram tanto fonte de dados quanto parte do processo interventivo. Foram valorizadas ações que problematizaram as situações de trabalho dos ACS e a necessidade de ampliar o alcance das iniciativas de promoção em saúde e controle de riscos funcionais. As discussões mostraram-se momentos fecundos e permitiram a formação de processos de aprendizagem capazes de gerar mudanças e transformações na realidade dos profissionais, atingindo de forma indireta os usuários assistidos na atenção básica por estes profissionais. Todas as fases do trabalho foram precedidas por aprovação do projeto em Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (CEP 2090/2011). Desenvolvimento dos encontros Ao analisar a composição do grupo de ACS, observou-se que a maioria dos participantes era do sexo feminino (85%) e pertencia à classe socioeconômica “B”. Segundo o Critério Brasil, referente ao ano de 2011, essa classificação equivale a dizer que os ACS apresentavam renda familiar entre R$ 2.327,00 e 4.588,00. Os resultados sobre os aspectos emocionais possibilitaram verificar que a maioria dos ACS percebiam sua qualidade de vida como boa e apresentavam um bom nível de bem-estar subjetivo. Apesar desses achados positivos, observou-se que 47% dos

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ACS possuíam sintomas da síndrome de Burnout e que 42,4% apresentavam estresse na fase de resistência, com sintomas psicológicos predominantemente. O estresse se divide em quatro fases: alerta, resistência, quase-exaustão e exaustão (Lipp, 2000). Na primeira fase, de alerta, o organismo se prepara para reação de luta ou fuga, que é essencial para a preservação da vida. Na fase de resistência, o organismo tenta uma adaptação devido a sua tendência para buscar o equilíbrio interno e aparecem sensações de desgaste e cansaço devidas a essa tentativa de adaptação. A próxima fase, de quase-exaustão, caracterizada por um enfraquecimento da pessoa que não mais consegue adaptar-se ou resistir ao estressor. Na última fase, exaustão, aparecem doenças potencialmente graves e a pessoa não consegue funcionar adequadamente, nem se concentrar e trabalhar como costumava fazer. Assim, por meio dos instrumentos utilizados, observamos que os ACS com quem estávamos trabalhando estavam em seu limite de resistência, caminhando para o adoecimento, se nenhuma medida fosse adotada. A análise da situação de estresse e burnout evidenciada pela aplicação dos instrumentos embasou a escolha de dinâmicas e das temáticas de discussão adotadas durante os grupos. Em alguns desses encontros os ACS direcionavam as atividades propondo temas e esclarecendo dúvidas trazidas pela população que atendiam, mas que não conseguiam responder sozinhos. Foram realizadas cerca de dez dinâmicas, divididas ao longo dos encontros e na finalização houve uma confraternização, na qual foram retomados todos os pontos trabalhados e a troca de feedback entre ACS e equipe de extensão/pesquisa sobre o tempo passado juntos. Para melhor compreensão do trabalho realizado, sintetizamos as atividades desenvolvidas em cada UBS, focando nos temas trabalhados e na forma como os abordamos nessa população. Os nomes das UBS foram omitidos, para garantir o anonimato dos participantes.

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UBS A O primeiro encontro foi realizado pelas alunas e uma das professoras responsáveis pelo grupo. Pediu-se aos ACS que assinassem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e que respondessem aos instrumentos para confecção do perfil e checagem da saúde emocional dos profissionais. Nesse dia o encontro foi realizado com oito ACS e depois da aplicação dos instrumentos houve uma conversa sobre o tempo de trabalho e as dificuldades presentes. A partir do segundo encontro, todo o processo foi conduzido pelas estagiárias. No segundo encontro compareceram 11 participantes. Buscou-se conhecer como os integrantes do grupo se tornaram ACS, o que esperavam dessa profissão e com o auxílio de um mapa, os ACS marcaram suas áreas de atuação. Cada ACS indicou as facilidades e dificuldades de sua atuação e as interferências do trabalho percebidas no meio familiar. Todos os ACS pontuaram a falta de resolutividade como a principal dificuldade de seu trabalho e que deixavam de fazer algumas coisas na comunidade fora do horário de trabalho, porque era difícil separar trabalho e lazer. No terceiro encontro foi feita a devolutiva do resultado dos testes para os ACS e seguiu-se uma discussão sobre o impacto desses resultados na saúde e na profissão. Em seguida, a discussão voltou-se para dificuldades de relacionamento dentro da equipe e com os demais profissionais da Unidade Básica de Saúde. Os ACS também trouxeram para a conversa medos referentes à sua segurança, por trabalharem em áreas marcadas pela venda de drogas e com elevado índice de assaltos. Para pontuar outro aspecto, pediu-se aos ACS que compartilhassem um momento em que se sentiram satisfeitos e perceberam a relevância do trabalho que desenvolvem. Esse tema gerou muitas histórias entre os dez ACS que participaram do encontro.

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No encontro seguinte, a equipe do projeto levou três casos fictícios, baseados em atividades cotidianas, para que os dez ACS presentes discutissem e propusessem soluções para as situações-problema apresentadas. A primeira situação apresentava um membro de uma casa atendida pelos ACS que apresentava comportamentos agressivos. O segundo caso representava um possível abuso sexual envolvendo membros da comunidade e o terceiro dizia sobre uma moradora de uma área não atendida pelos ACS que exigia ser atendida e terminava sendo maleducada e desagradável com os agentes. O objetivo desta atividade era trabalhar a tomada de decisões e os limites da profissão, mas o principal aspecto trabalhado foi o relato dos ACS de que se sentiram humilhados, desprotegidos e invadidos pela profissão em diversas ocasiões. No quinto encontro foi organizado um jogo de perguntas ou tarefas, entre elas: “Conte uma história boa de sua vida”, “Fale uma coisa que te faz bem”, “Fale uma qualidade sua”, “Sente que algo está em excesso, o quê?”, “Conte algo que te incomoda (no trabalho/vida pessoal)”, “Conte uma atividade que sente falta nos dias de hoje”, “Se seu chefe está implicando com você, o que você faz?”. Todos os integrantes foram bastante participativos, mas o discurso repetiu-se ao falar sobre o trabalho, mostrando que a má remuneração, o excesso de trabalho e as fofocas entre os ACS eram os assuntos mais difíceis. Nesse encontro, a pedido dos ACS, a equipe do projeto preparou e discutiu duas patologias com que eles se deparavam na comunidade, mas que não conheciam bem: Depressão e Mal de Alzheimer. Nessa UBS o sexto encontro foi o último e realizou-se a dinâmica do “presente”. A equipe preparou um texto contendo várias características e os ACS escolhiam para quem passar os presentes de acordo com as características descritas. No final do encontro o presente foi aberto e os chocolates foram divididos entre todos. Encerrada essa dinâmica, pediu-se a todos os ACS que externalizassem sua opinião sobre o trabalho realizado e

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sugerissem alterações para melhorá-lo. A maioria dos presentes relatou ter gostado da oportunidade de compartilhar seus medos e ter visto mais possibilidades de resolutividade com os encontros. UBS B Nessa UBS o primeiro encontro também foi realizado pelas alunas com o auxílio de uma professora e foram aplicados os instrumentos já apresentados. Estavam presentes nove ACS e durante o encontro eles expuseram seu desconforto com a profissão. Os ACS relataram sentirem-se usados e não receber nada em troca do trabalho que desenvolvem, nem o reconhecimento da comunidade. No encontro seguinte compareceram 13 pessoas. Aplicou-se os instrumentos de checagem para os novos integrantes e retomou-se a discussão sobre o sentimento de menos valia dos ACS, buscando ressignificar seu trabalho e a forma como poderiam ser reconhecidos. No terceiro encontro realizou-se a dinâmica de encontrar soluções para situações cotidianas propostas pela equipe do projeto. Apesar do grupo contar com apenas cinco pessoas surgiu uma discussão rica, envolvendo vivências de humilhação por parte de usuários, mas também do sentimento de conquista ao conseguir que moradores considerados “fechados” e “difíceis” abrissem as portas de suas casas aos ACS e buscarem os serviços de saúde. Nesse encontro foi feita a devolutiva dos resultados dos testes aplicados. Ao longo do quarto encontro realizou-se uma dinâmica sobre comunicação (dinâmica dos rótulos), contando com a participação de 11 ACS. Nessa dinâmica a equipe do projeto atribuiu papéis solicitando um posicionamento (por exemplo: defenda seu ponto de vista, discorde de tudo, concorde com tudo). Para melhor encaminhamento, foi proposto que esses papéis fossem executados ao longo de uma discussão sobre o sistema de saúde pública. Observou-se que os ACS não conseguiam manter-se nos respec-

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tivos papéis. Após esse momento discutiu-se sobre a importância da comunicação, das dificuldades de entender e se fazer entender e sobre o impacto negativo sobre um grupo de trabalho. A discussão evoluiu para formas alternativas de conversar e transmitir pedidos e ordens e sobre o impacto de morar e trabalhar na mesma região. Sobre este assunto, o discurso dos ACS foi confuso, pois ao mesmo tempo em que diziam que compartilhar esses espaços não atrapalhava em nada, relatavam histórias em que a profissão e a sua vida pessoal estavam fundidas de forma negativa. No quinto encontro a equipe decidiu retomar o assunto da comunicação e da mescla entre vida pessoal e profissional por meio de uma dinâmica (Bandeiras). Nessa dinâmica algumas perguntas (por exemplo: Qual o seu maior sucesso individual? O que gostaria de mudar em você? Em que atividade você se considera muito bom? Quais as dificuldades ou facilidades para se trabalhar em grupo?) são feitas aos participantes, mas esses só podem responder por meio de desenhos, símbolos ou mímica. Desse encontro participaram 12 ACS. Depois de algumas rodadas de perguntas e respostas cada participante comentou sobre a dificuldade de se expressar sem palavras, seguindo um tom bastante descontraído. Ao final desse encontro pediu-se aos ACS que indicassem assuntos que eles gostariam que fossem abordados. Foram elencados: usuários resistentes ao tratamento e cuidadores que adoecem. No encontro seguinte a equipe levou o material preparado para abordar os temas escolhidos pelos ACS, mas como apenas dois ACS compareceram, optou-se por mudar o tema. Realizou-se uma atividade com papel amassado. O papel representava a situação atual e as opções pensadas para ele, inicialmente jogá-lo fora, depois fazer flores, anotar recados, entre outros, representaram uma metáfora para as possibilidades de alteração das situações indesejáveis. Seguindo com o planejamento, no último encontro realizou-se a dinâmica do “presente”. Os ACS agradeceram o trabalho

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e justificaram suas ausências pela mudança no calendário de reuniões da equipe. Cabe destacar que havia o planejamento de oito encontros para essa UBS, mas três não foram realizados por não haver ACS no local e horários combinados. UBS C O primeiro encontro foi realizado por duas alunas, com o auxílio do psicólogo que colaborava com o projeto. Neste encontro, os sete ACS presentes responderam aos instrumentos e depois houve uma conversa sobre as características do trabalho e as principais insatisfações dos profissionais. Os ACS relataram que seu trabalho é dificultado pelas condições que vivenciam, as longas distâncias que percorrem diariamente e o número insuficiente de profissionais para a regional. O segundo encontro contou com a participação de nove ACS na dinâmica das Bandeiras. Por meio dessa técnica foi possível conhecer algumas dificuldades, conflitos e também vários pontos positivos da rotina dos ACS. O terceiro encontro serviu para a discussão dos casos cotidianos levados pela equipe do projeto e contou com a presença de sete ACS. Foi proposto que os agentes se posicionassem sobre como agiriam diante de cada situação e outras vivências cotidianas foram discutidas. A discussão dos casos proporcionou um espaço de diálogo, informações sobre a rotina dos agentes foram compartilhadas, assim como seus medos, inseguranças e satisfações. Essa conversa mostrou como os ACS se ressentem da má qualidade do treinamento profissional que recebem (quando recebem). Os ACS relataram que receberam apenas uma semana de treinamento, embora a legislação preveja um mês de capacitação e que muitos não receberam sequer esse treinamento precário. No encontro seguinte estiveram presentes quatro ACS. Os outros agentes estiveram com a equipe no início do horário do

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trabalho e justificaram que não participariam devido a uma reunião de fechamento de mês. Apesar do reduzido número de participantes, conduziu-se um jogo de perguntas (por exemplo: Quais situações te geram dúvidas no seu dia a dia?, Se não fosse agente comunitário de saúde, gostaria de atuar em qual profissão?, Como você definiria seu trabalho em uma palavra?). Os ACS participaram bem da dinâmica, mostrando-se bastante interessados. O quinto encontro contou novamente com apenas quatro ACS. Foram realizadas duas dinâmicas, a primeira denominada "A vida é uma novidade vibrante!", na qual se pedia a cada participante um desenho livre com uma cor de caneta a sua escolha e posteriormente trocasse seus desenhos com a pessoa que estava a sua direita, completando o novo desenho com algo importante para si. Essa troca persistia até que todos os desenhos tivessem passado por todos os ACS. A dinâmica proporcionou um momento de descontração e diálogo. Os ACS comentaram que os desenhos serviram para compartilhar ideias e sonhos, conhecerem melhor o que pensam os colegas e trabalhar formas de auxiliar um ao outro. Os desenhos produzidos apresentaram ideias sobre a necessidade de melhorias no sistema de saúde e educação, ausência de um líder competente na UBS, representaram o grupo que estávamos conduzindo, representaram a motivação e o estresse do trabalho, entre outros temas mais pessoais. Ao final todos os desenhos estavam transformados pela colaboração dos colegas e foram para o mural dos ACS em sua sala de trabalho. Além dessa atividade, realizou-se a dinâmica "O feitiço virou contra o feiticeiro", em que o grupo foi dividido em duplas e cada participante escolheu algo para seu parceiro fazer. Assim que todos escolheram, revelou-se o nome da dinâmica e pediu-se a cada um que cumprisse a tarefa que escolheu para o parceiro. Ao discutirem sobre a dinâmica os ACS, relataram que consideravam a vida muito semelhante à dinâmica, pois, segundo eles, em di-

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versos momentos o que desejamos a outros recai sobre nós mesmos. No sexto encontro trabalhou-se a comunicação da equipe por meio da troca de desenhos e identificação de qualidades e defeitos entre os participantes. Participaram apenas cinco ACS, mas a interação entre eles mostrou que o grupo se conhecia bem e que mantinham um bom relacionamento. Depois desse momento foi feita a devolutiva dos testes aplicados. O sétimo encontro focou em dois temas escolhidos pelos ACS: envelhecimento e qualidade de vida para idosos. Os agentes comentaram sobre os idosos atendidos por eles na região e da indicação que sempre realizavam que os idosos passassem a frequentar os programas criados para eles no município. Enfocaram que veem retorno de suas indicações e que o trabalho de promoção e prevenção de saúde que desenvolvem auxilia de maneira significativa aos idosos, pois oferecem indicações, conversas e carinho para os idosos. O último encontro teve o propósito de um fechamento e confraternização. Ouviu-se a opinião de todos os agentes sobre o trabalho feito naquela instituição e eles enfatizaram que desejavam a continuidade do projeto ou o desenvolvimento de novos trabalhos no futuro. Considerações Finais O Ministério da Saúde atribuiu aos ACS um papel base na nova forma de pensar saúde pública adotada no Brasil. Criou-se um perfil desejado para esses profissionais, pedindo que trabalhem e residam na mesma área, o que os coloca mediando a relação entre sua comunidade e os profissionais de saúde com quem trabalham (Jardim & Lancman, 2009; Lunardelo, 2004; Silva, 1997). Como uma medida política recente, ainda não se construiu conhecimento suficiente sobre o impacto dessas posturas para os ACS, o que foi um dos motivadores do presente estudo.

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Com o desenvolvimento dos grupos, buscou-se auxiliar na construção de uma identidade profissional ainda em formação, marcada pela flexibilidade do trabalho como ACS e pela proximidade com a comunidade. O trabalho desenvolvido mostrou a relevância da atuação dos ACS na comunidade. Eles acompanham casos crônicos, fornecem às famílias amparo e orientação, medeiam o contato com a UBS e sondam os principais problemas da comunidade. Contudo, os grupos também revelaram a deficiência de capacitação dos ACS para as tarefas que desenvolvem. Em muitas falas, esses profissionais se queixam de não saberem como orientar os usuários que precisam acompanhar, da ausência de resolutividade de seu trabalho, de sua vontade de receitar (ou de haver receitado) medicação para os casos que acompanham e de não entender das patologias que observam na região em que trabalham. Os ACS falaram sobre a precariedade do curso de capacitação, da relação conturbada com a comunidade e com os demais profissionais da UBS. A relação estabelecida com a comunidade torna-se assistencial. Os relatos indicam que quando os ACS conseguem agendar atendimentos médicos ou facilitam o acesso à medicação, a comunidade mostra-se grata, mas quando não conseguem, passam a ser hostilizados e maltratados. Apontam, ainda, que apesar dos ACS considerarem-se profissionais de saúde, não são percebidos dessa forma pelos outros integrantes da equipe da UBS. Uma das queixas dos ACS que participaram do presente trabalho é não ter acesso aos prontuários dos pacientes da UBS, negado como norma institucional. O sentimento de menos valia e a crença de que esse é um trabalho temporário estiveram presentes em várias das discussões conduzidas com os ACS dos três grupos. Ao problematizar sobre as principais dificuldades e os momentos de maior orgulho relacionados ao trabalho, os ACS pensaram sobre sua atuação real e o que desejam para seu trabalho. As discussões também permitiram compartilhar situações de conflito com os colegas e

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com a comunidade, criando um espaço para que vivências não elaboradas fossem explicitadas e ressignificadas pelos envolvidos, criando a possibilidade de propostas de resolução. As dinâmicas coordenadas pela equipe do projeto colaboraram com esse processo, criando um “clima” lúdico e descontraído para que assuntos difíceis emergissem e fossem trabalhados. Essa percepção foi ratificada presença dos ACS nos encontros e por seu feedback, com pedidos para que os grupos continuassem acontecendo das UBS. Para a equipe envolvida nessa experiência fica a riqueza do encontro com pessoas que dedicam suas vidas ao cuidado a outros e que, mesmo ainda estando em um “limbo” de identidade profissional, sabem da importância de sua atuação para a comunidade e mostram-se abertos para a construção conjunta de um novo caminho, em que a saúde seja vivenciada de forma integral, tanto pelos usuários quanto pelos profissionais de saúde. Referências Bock, A. M. B. M. (Org.) (2002). Psicologias: Uma introdução ao estudo de Psicologia. São Paulo: Saraiva. Borges, C. C., & Cardoso, C. L. (2005). A Psicologia e a estratégia saúde da família: Compondo saberes e fazeres. Psicologia & Sociedade, 17(Supl 2), 26-32. Bornstein, V. J., Stotz, E. N. (2008). Concepções que integram a formação e o processo de trabalho dos agentes comunitários de saúde: Uma revisão da literatura. Ciência & Saúde Coletiva, 13(Supl 1), 259-268. Campos, F. E., & Belisario, S. A. (2001). A Estratégia de Saúde da Família e os desafios para uma formação profissional e a educação continuada. Revista Interface, 9(5), 133-142. Feliciano, K. V. O., Kovacs, M. H., & Sarinho, S. W. (2005). Sentimentos de profissionais dos serviços de pronto-socorro pediátrico:

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A experiência do Grupo Interinstitucional Pró-Adoção na cidade de Uberaba (MG): Compartilhando saberes e práticas Martha Franco Diniz Hueb Marta Regina Farinelli Ana Mafalda Guedes C. C. Vassalo Azôr Eliane Gonçalves Cordeiro André Tuma Delbim Ferreira O que as pessoas mais desejam é alguém que as escute de maneira calma e tranquila. Em silêncio [...] A fala só é bonita quando ela nasce de uma longa e silenciosa escuta. É na escuta que o amor começa. E é na nãoescuta que ele termina.(Rubem Alves, 1999).

A adoção é um ato jurídico em que se estabelece um novo vínculo parental entre pessoas que não apresentam laços biológicos, sendo que os adotantes possuem os mesmos direitos e responsabilidades da família de origem, assim como as crianças e adolescentes adotados também possuem iguais direitos e deveres dos filhos naturais, rompendo, dessa forma, qualquer vínculo parental anterior. Importante ressaltar que foi a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança de 1989 e do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) em 1990 que modificações significativas na legislação foram efetivadas na forma de se encarar, tratar e conviver com crianças e adolescentes na nossa sociedade. A importância do reconhecimento dos direitos do cidadão na Constituição Federal revela a grande dimensão que esses atin-

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gem no sentido de determinar as linhas interpretativas do texto constitucional (Canotilho, 2002). Atualmente é garantida a proteção integral tanto à infância quanto à adolescência, bem como lhes são conferidos o devido respeito enquanto sujeitos de direitos. Dentre estes se destaca, em especial, a convivência familiar e comunitária, como consta do artigo 227 da Constituição Federal: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (Constituição Federal, 1988, itálico nosso)

Nesse sentido, compreende-se que, a despeito da Lei, esforços coletivos devem ser cultivados para a efetivação da convivência familiar, fator imprescindível para que se consolide o pleno desenvolvimento, proteção e crescimento de crianças e adolescentes, para que se possam materializar suas potencialidades. Nesta perspectiva, a concretude do direito da convivência familiar se dá primeiramente por meio da família biológica ou extensa que é aquela “formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade” como determina o Artigo 25 do ECA (Lei n. 8069,1990). Diante de situações que violem os direitos da criança e do adolescente surge, então, a necessidade de tomar medidas protetivas que assegurem o melhor interesse deste grupo de cidadãos. Entre as diversas formas de proteção destaca-se a colocação em família substituta, que advém quando a família biológica da criança ou adolescente, por algum motivo, não consegue dar

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continuidade à relação familiar. A colocação em família substituta comporta três categorias, a saber: a de guarda, a de tutela e a de adoção, sendo que aquela que mais se verifica em nosso país é a inserção da criança ou adolescente em família substituta por meio da adoção (Lei n. 8069,1990). O objetivo principal dessa ultima inserção é encontrar uma família que garanta a nova convivência familiar e comunitária, oferecendo condições para que as crianças e os adolescentes se desenvolvam e possam ser protagonistas de suas histórias. No entanto, é importante destacar que a adoção é um processo sociologicamente complexo e que muito depende da construção das relações de afeto e da compreensão das dificuldades inatas a esse processo. Porém, adotar pode trazer retornos tão suficientes e prazerosos quanto o da filiação biológica. Nesses encontros humanos que se processam, a fertilidade afetiva prevalece ao invés da esterilidade emocional, possibilitando que pais e filhos possam se reconhecer na filiação simbólica ao oferecer um lugar afetivo em uma árvore genealógica (Lisondo, 1999). Portanto, construir uma relação saudável entre pessoas, em especial entre pais e filhos, que favoreça o estabelecimento de vínculos afetivos, acolhimento, aceitação do outro com suas potencialidades, dificuldades e limitações, são desafios, conquistas mútuas permeadas tanto por momentos prazerosos quanto por momentos difíceis. Por isso a legislação assegura o estágio de convivência familiar, com vistas a evitar a permanência de crianças e adolescentes em situações sustentadas na hostilidade, rejeição, abuso ou mesmo na humilhação. Porém, muito mais do que atender ao aspecto jurídico, para que seja de fato construída uma nova relação parental-filial, tendo assegurados todos os direitos à condição de filho, sem qualquer tipo de distinção, é imprescindível que os envolvidos possam fazer a elaboração psíquica de fantasias e temores que engendram o processo de adoção, questões essas muitas vezes de difícil resolução. Acrescidos à complexidade do fenômeno psi-

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cológico, situações socioculturais que variam conforme a época e a região podem interferir no processo em construção. Não por acaso, no vasto território nacional ainda é muito comum a utilização da expressão “mãe de criação” como forma de designar uma maternidade que não é biológica, mas que ostenta outros contornos socioafetivos. Também é significativa a utilização da expressão “adoção à brasileira”, deflagrando o crime de registrar filho alheio como se fosse próprio, ignorando-se a necessidade de cumprir o percurso jurídico da adoção que regulariza a constituição do vínculo parental e de considerar a criança ou adolescente como ser de direitos (Azôr, Julião, Cordeiro, & Hueb, 2011). Profundas transformações sociais ocorridas no último século, tais como a explosão tecnológica e dos meios de comunicação, além do surgimento de novos arranjos familiares, deflagraram a necessidade de uma resposta jurídica mais atualizada que atendesse aos anseios sociais vigentes. A lei n. 12010/09, conhecida como “A Nova Lei da Adoção”, e que, no nosso entender, seria melhor nominada de “Nova Lei de Convivência Familiar”, contempla importantes diretrizes no que se refere ao procedimento de colocação de crianças e adolescentes para adoção. Estudo recente de Silva e Arpini (2013) aponta que psicólogos e assistentes sociais vinculados a instituições de acolhimento, respaldando-se na Nova Lei, procuram esgotar as possibilidades de reintegração na família de origem para, posteriormente buscar a família extensa. No entanto, mesmo com a soma de esforços para reintegração familiar, há situações em que nem a família de origem, nem a família extensa, encontramse aptas para receber a criança de volta, cabendo a alternativa da adoção. Legisladores brasileiros, reconhecendo as inadequações estruturais dos procedimentos utilizados anteriormente respaldaram, dentre outros aspectos, a necessidade de se realizar cursos preparatórios para pais que pretendem adotar visando otimizar as relações entre adotantes e adotandos, na construção de laços

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familiares duradouros (Scorsolini-Comin & Santos, 2008; Huber & Siqueira, 2010; Azôr et al., 2011; Hueb, 2012; Contente, Cavalcante, Chaves, & Silva, 2013). Nesse sentido, o objetivo do presente capítulo é relatar como foi gestado e como tem sido desenvolvido desde 2009 o Curso Preparatório para a Adoção na cidade de Uberaba, Estado de Minas Gerais. A trajetória percorrida será a de caracterizar e discutir a proposta do referido curso e o papel de seus coordenadores, utilizando como ilustração recortes de falas dos postulantes à adoção, participantes dos grupos de reflexão. O nascimento do Curso Preparatório para a Adoção Na Comarca de Uberaba, por iniciativa da Promotoria da Infância e Juventude, foram convidados docentes de duas instituições de ensino superior para pensarem e gestarem o Curso Preparatório. Tais docentes, vinculados ao curso de Psicologia da Universidade de Uberaba (UNIUBE), e aos cursos de Psicologia, Serviço Social e Terapia Ocupacional da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), associaram-se a integrantes de uma instituição civil de apoio à adoção, o Grupo de Apoio à Adoção de Uberaba (GRAAU) e elaboraram um projeto para ser desenvolvido com pais adotantes, de forma que respondesse às exigências da Nova Lei da Adoção, mas que também superasse o formato de curso convencional, aquele que em geral utiliza apenas de palestras motivacionais. Durante seis meses, profissionais representantes dessas instituições, sensíveis ao fenômeno da adoção, reuniram-se para estudar e compartilhar experiências que favorecessem a configuração de um projeto de intervenção no qual aspectos, manifestos ou latentes, tabus e preconceitos, pudessem ser desocultados e ressignificados, contribuindo para a possibilidade de aumentar as chances de que mais crianças/adolescentes consolidassem o direito de conviver e ter uma família. Conforme a evolução dos

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encontros constatou-se que, por meio do diálogo franco, os integrantes, superando as diferenças, criaram uma unidade grupal, onde pessoas e instituições não se apresentavam mais isoladamente, mas com uma identidade coletiva. Essa configuração fundamentou a nomeação do grupo como GIPA – Grupo Interinstitucional Pró-Adoção, que gestou e executou o curso vivencial para pais adotantes (Azôr et al., 2011; Hueb, 2012; Hueb, Campeiz, Souza, & Galego, 2013). Planejou-se que o referido Curso seria realizado em oito encontros quinzenais de duas horas cada e, em função de agilizar o atendimento à demanda existente, assim como favorecer duas opções de escolha de horário, possibilitando a participação de um maior número de postulantes à adoção, projetou-se o atendimento de duas turmas organizadas em dias e horários diferentes da semana (GIPA, 2010). Estabeleceu-se junto à Promotoria da Infância e da Juventude que o curso não teria caráter avaliativo, tendo como principal função a de contribuir para a reflexão e conscientização das implicações psicológicas, sociais e legais que norteiam o processo de adoção. O caráter de avaliação continuaria sob a responsabilidade da equipe psicossocial do judiciário, acreditando que, dessa forma, os participantes se sentiriam mais livres e conseguiriam manifestar as verdadeiras motivações e sentimentos em relação ao ato de adotar, durante o Curso Preparatório, tendo como coordenadores profissionais não vinculados à equipe avaliadora do judiciário. Os objetivos do curso foram: (a) proporcionar um espaço de acolhimento e compartilhamento de dúvidas, emoções e expectativas para postulantes à adoção de crianças e adolescentes; (b) estimular a identificação e a reflexão dos participantes sobre as motivações para adoção e fatores relacionados a estas; (c) identificar e estimular a desconstrução das idealizações relacionadas ao filho desejado no processo de adoção; (d) favorecer a reflexão sobre as características e história da criança/adolescente que influenciam no processo de adoção; (e)

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favorecer o conhecimento e a reflexão das fases de adaptação na convivência entre pais e filhos vinculados pela adoção; (f) colaborar para a instrumentalização dos participantes no sentido de melhor lidar com os desafios cotidianos nas relações entre pais e filhos; (g) colaborar para a diminuição de experiências frustrantes e frustradoras tanto para postulantes quanto para as crianças/adolescentes; (h) sensibilizar os participantes às adoções necessárias; (i) sensibilizar os sujeitos quanto à importância da continuidade da participação em grupos de apoio à adoção; (j) contribuir para a formação de profissionais sensíveis à complexidade do processo de adoção e que futuramente venham a desenvolver estratégias efetivas relacionadas a esta experiência (GIPA, 2010). Sustentação da metodológica

prática:

abordagem

teórico-

A metodologia pensada e utilizada no Curso é a participativa, que se sustenta em técnicas e recursos da dinâmica grupal, assim como em jogos, dramatizações, expressões gráficas e discussões. Os temas trabalhados obedecem a uma ordem definida enquanto aproximação sucessiva dos pontos pertinentes e significativos no processo de adoção, sendo a coordenação das turmas realizada por duplas de profissionais/docentes das citadas instituições de ensino e do GRAAU, a qual será melhor detalhada ao final deste tópico. Buscando contribuir com a formação de profissionais para atuação neste campo, dois discentes dos cursos envolvidos acompanham o processo em cada turma. Ainda, quinzenalmente, a equipe de integrantes do GIPA se reúne para discutir e compartilhar as experiências vividas nas duas turmas em formação e para estudar sobre as temáticas: adoção, família e institucionalização. No primeiro encontro do grupo de candidatos a pais, após atividade de apresentação dos integrantes, faz-se a exposição da

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proposta do curso e do cronograma previsto, além do levantamento das expectativas dos participantes, aprofundando a temática da adoção propriamente dita. No segundo encontro, discute-se a visão do amor enquanto construção. Para os terceiro e quarto encontros foram projetadas situações que envolvem o aprofundamento das questões ligadas às motivações para a adoção. A fantasia do filho idealizado versus o filho real, aquele comumente disponibilizado para adoção, é o tema do quinto encontro. E é no sexto encontro que o tema sobre a família de origem e as visões que se tem dela é discutido. No sétimo encontro, último sob a coordenação da dupla, trabalham-se as cenas temidas após a adoção consumada e ao final é realizada a avaliação da percepção da vivência no curso, por meio de questionário preenchido de forma individual pelos participantes, os quais tem a opção de não se identificarem. O oitavo encontro é reservado para a participação da promotoria e da coordenadoria da Regional da Infância e Juventude do Triângulo Mineiro e equipe de assistentes sociais judiciários para esclarecerem dúvidas quanto ao processo legal de adoção. É quando são entregues os certificados de conclusão de curso aos participantes (GIPA, 2010). Importante destacar que os temas foram arrolados de forma a contemplar a possibilidade de entrar em contato com aspectos latentes do mundo interno dos participantes, em interlocução com o contexto social e cultural. Quanto à coordenação das turmas de preparação para a adoção, definiu-se que seria composta por um assistente social e psicólogo ou terapeuta ocupacional e psicólogo, ou, ainda, uma dupla de psicólogos. Depreendeu-se a necessidade da presença permanente do psicólogo, haja vista que, devido à sua formação clínica, apresentaria uma condição mais favorável para compreender e intervir sobre fenômenos psicológicos emergidos da dinâmica grupal, principalmente quando se dá o uso excessivo das identificações projetivas nas relações interpessoais. A estratégia utilizada é a de grupos de reflexão. Considerando a própria etimologia da palavra, em tais agrupamentos

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possibilita-se que cada participante faça uma continuada e renovada flexão sobre si mesmo, assumindo as responsabilidades pelas próprias escolhas, pelas próprias ações. Fato que favorece a todos os membros atuarem como se estivessem em uma galeria de espelhos, “onde cada um pode refletir-se de maneira especular, nos demais e vice-versa” (Zimerman, 2000, p. 92). Esclarece-se que os Cursos Preparatórios na modalidade em que foram gestados não apresentam como proposta a interpretação sistemática, todavia, compreende-se que quando aspectos tais como rivalidades, ansiedades, identificações projetivas, dentre outros, emergem na dinâmica grupal, apresenta-se necessária a interpretação, a fim de não dificultar o desenvolvimento dos encontros (Zimerman, 2000), como ocorreu em um determinado grupo. Neste, após dois ou três encontros, os componentes ainda demonstravam não conseguirem se envolver com os temas propostos, desviando a atenção dos coordenadores para questões legais, denunciando bastante rivalidade com os integrantes do judiciário. Dentro deste contexto, o coordenador psicólogo interviu: “Por que será que nos ocupamos tanto deste outro assunto [questões da legalidade] e não nos ocupamos do nosso assunto aqui [adoção]? O que será que está difícil?”. Após um longo e significativo silêncio, o grupo conseguiu retomar a tarefa proposta, viabilizando a continuidade da dinâmica pretendida, indicando que a interpretação neste momento foi um divisor de águas, produzindo uma mudança de atitude nos participantes necessária para a condução grupal. Tendo em mente que mudanças de atitudes estão alicerçadas em aspectos emocionais que por vezes necessitam ser identificados ou apontados, visando à conscientização e elaboração dos mesmos, de modo a favorecer o desenvolvimento do trabalho, compreende-se que tal modalidade de grupo também possui uma ação terapêutica, visto que implica em transformações, na ordem de pensamento, atitude e conduta (Zimerman, 2000).

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Nesse sentido, um possivel diálogo travado entre dois profissionais da área de saúde mental foi pensado por Zimerman (2000): [...] alguém poderia objetar: “mas uma mudança de atitudes implica em modificações emocionais de certa profundidade, que por sua vez, implicam em um processamento psicoterápico. Isso é da competência dos grupos de reflexão?” Minha resposta seria esta: ainda que o grupo de reflexão não seja uma forma de psicoterapia analítica e não siga as regras básicas desta, e nem sequer seja esta a sua finalidade, é inegável que por seus mecanismos específicos, ele exerce uma definida ação terapêutica, que se traduz em modificações na atitude e na conduta (p. 92).

A questão técnica que se depreende é que o Curso Preparatório, concebido na estratégia de um grupo de reflexão, não tem como objetivo interpretar de forma sistemática os aspectos inconscientes grupais, mas o faz quando aspectos psicológicos emergem de forma a interferir no livre curso da tarefa planejada para o grupo. De um modo geral, a atitude a ser desenvolvida por meio de tal estratégia é a de ajudar os participantes a aprenderem a aprender sobre a adoção, viabilizando-lhes o desenvolvimento da percepção, pensamento, conhecimento e principalmente da comunicação, funções altamente significativas para o estabelecimento de qualquer relação humana, conforme entendimento de Bion (1963/1966). Importante ressaltar que os componentes do GIPA, ao projetarem trabalhar com tal metodologia, compreenderam que a proposta era desafiadora e inovadora, porém perceberam que seria necessário inovar e arriscar para verdadeiramente contribuir com as relações sociais e afetivas de pais e filhos adotados. Desafiadora porque tudo que é novo suscita dúvidas, medos e receios quanto a atingir aos objetivos propostos. Os membros do

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GIPA constantemente se perguntam nas reuniões de discussão e de aprimoramento, que são realizadas quinzenalmente após os encontros grupais: “As dinâmicas planejadas estão atendendo aos objetivos de maneira que os pais se conscientizem das questões internas mobilizadoras da opção pela filiação adotiva?” Ainda não se tem esta resposta de forma firme e concisa, mas no decorrer de quatro anos de curso algumas dinâmicas sofreram pequenas alterações no sentido de maior adequação à proposta do curso. Também se trata de uma experiência inovadora, porque a Lei 12.010/09 acabava de ser instituída e nem todas as comarcas no Brasil haviam implantado o curso preparatório. As que já o faziam, em sua maioria, utilizavam palestras esporádicas, o que no entender do GIPA não atenderia ao objetivo por possivelmente não atingir em profundidade as reais motivações para a adoção. Realizar uma preparação para a adoção com oito encontros distribuídos ao longo de quatro meses seria realmente bastante distinta de outras iniciativas de diferentes partes do país, compostas na maioria das vezes em uma única palestra de duas horas. Os coordenadores grupais, em especial, teriam ainda que disporem-se internamente a enfrentar a ira dos próprios participantes, os quais, informados sobre outras possibilidades de preparação em diferentes comarcas, costumam apresentar resistências em participar de preparação mais extensa e intensa. A construção criativa que se efetivou objetiva contribuir com a possibilidade do fenômeno da adoção ser melhor sucedido e ampliado, de maneira a atender a uma demanda social na qual se encontra envolvidos cidadãos e instituições de âmbito público e privado. Neste contexto, ressalta-se que os integrantes do GIPA perceberam que um trabalho desta envergadura não se desenvolveria sem paixão, conflitos e condição de lidar com as diferenças e com o próprio desconhecido. Que algumas respostas para inúmeras perguntas que surgiriam seriam possíveis somente no decorrer do próprio trabalho, e que outras somente poderiam ser respondidas após alguns anos transcorridos da preparação dos

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pais, como a de verificar se a metodologia participativa utilizada realmente teria ajudado aos postulantes a se prepararem para o desafio de serem pais por meio da adoção. Constataram também que as reuniões quinzenais dos integrantes do GIPA, nas quais se incluíam os coordenadores grupais, eram imprescindíveis principalmente porque havia diferentes profissionais com distintas sustentações teóricas: promotores, assistentes sociais, psicólogos e terapeutas ocupacionais. Do mesmo modo, havia diferentes instituições envolvidas: Ministério Público, Vara da Infância e Juventude e duas universidades, o que tornava mais premente que se estabelecesse a comunicação efetiva entre seus membros. A despeito da importância da função desempenhada pelos vários membros do GIPA, este capítulo relata o papel catalizador do coordenador dos Cursos Preparatórios realizados. Apresenta, ainda, os referenciais teóricos, trazendo como ilustração fragmentos de intervenções e de diálogos estabelecidos entre os coordenadores e os participantes. O pensar, o sentir e o sonhar: Reflexões sobre as habilidades dos coordenadores do Curso Preparatório para a Adoção A vivência da coordenação tem deflagrado e confirmado a necessidade de aprofundar os conhecimentos sobre adoção, assim como o da análise da realidade social. É importante no desenvolvimento dos vários encontros que os coordenadores compreendam os participantes como sujeitos históricos e autores tanto do seu percurso individual quanto do coletivo (Andaló, 2006). Nesse sentido, faz-se imprescindível a leitura clínica do fenômeno psicológico emergido na vivência das dinâmicas grupais. Tais leituras se apresentam como instrumentos valiosos, favorecendo virem à tona aspectos latentes referentes à subjetividade dos integrantes do grupo. Neste momento, é necessário agilidade e sensibilidade dos coordenadores no que tange à

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condução dos desdobramentos surgidos no interior grupal. Algumas vezes emergem aspectos, ora idealizados, ora hostis, ora cindidos, ora camuflados por meio de um discurso intelectual, que aparentemente se apresenta apropriado, já que racionalizado e advindo do mundo social, porém não contemplativo do mundo interno. Nesse momento, intervenções verbais, às vezes de cunho interpretativo, fazem-se necessárias com a finalidade de provocar atitude reflexiva nos membros do grupo, que tanto podem devolver de forma verbal quanto pensar silenciosamente sobre seus sentimentos e anseios. Já em um primeiro encontro, pode ser observada através do mecanismo de defesa do deslocamento, a hostilidade camuflada e a racionalização expressa por uma participante. Com o objetivo de conhecer as expectativas dos adotantes em relação ao Curso Preparatório e a adoção propriamente dita são disponibilizados no chão variados objetos, dentre eles materiais de escritório e pequenos e diferentes brinquedos. É então solicitado aos participantes que escolham um objeto qualquer e que façam uma associação entre o objeto escolhido e seus sentimentos e expectativas naquele momento. Uma das integrantes, escolhendo um pequeno burrinho de borracha disse: “Eu o escolhi porque sabia que ninguém iria lhe querer, porque [...] acham que é de segunda categoria, mas eu acho que é fantástico! Escolhi só por isto, mas não vejo nada relacionado com a adoção”. Com cuidado a coordenadora intervém: Será que não poderíamos estar pensando que a filiação adotiva não seria uma filiação de segunda categoria, e por isto mesmo menos valiosa? Ou será que a estamos idealizando, a ponto de querermos ser reconhecidos pelos demais como um benfeitor que consegue cuidar daquele que ninguém quis?

O grupo ficou reflexivo. Alguém disse em seguida: “É... Nós estamos aqui para pensar o que de fato nos faz querer ado-

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tar, e como vamos enxergar e tratar este nosso filho...”. Dessa forma, nos parece claro que a verdade psíquica não pode ser alcançada somente por meio da informação racional, sem a elaboração interna, que pode ser facilitada por meio das intervenções. Para que os pais possam revelar a si próprios a possível verdade sobre a adoção que querem processar é preciso que consigam “elaborar” a sua própria história de vida (Lisondo, 1999). A referida dinâmica grupal exige habilidade dos coordenadores para desconstruir a racionalização apresentada pelo grupo, enquanto mecanismo de defesa, favorecendo a compreensão de aspectos internos ameaçadores como, por exemplo, a insegurança da possibilidade ou impossibilidade de ser mãe ou pai de alguém com uma história própria e que não pode ser negada. O filho adotivo pode abandonar os pais que o adotam? Esta é uma pergunta que não se cala no universo psíquico dos pais, todavia apresenta-se silenciada na constituição grupal na maioria das vezes. A família de origem, de forma estereotipada, é com frequência compreendida pelos postulantes à adoção como ineficaz e incompetente, e não raras vezes se observa um movimento de ataque grupal bastante hostil. Nesses momentos, é necessário que o coordenador se posicione ativamente. Em uma das turmas do Curso Preparatório em que se trabalhava a temática “Convivência entre pais e filhos na adoção”, o coordenador apontou: “Será que essa família tão temida pela sua ineficiência não está aqui, nos receios internos de cada um?” O grupo silenciou. Os coordenadores, respeitando o silêncio do grupo também silenciaram, esperando que a reflexão provocada pudesse se constituir em uma nova concepção do processo adotivo, na subjetividade de cada um. Importante destacar que alguns elementos do grupo conseguem desenvolver um movimento mais elaborado e entrar em contato com os próprios medos, podendo falar de si próprios. Uma participante relatou:

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Crianças vão mesmo dar trabalho, é normal! Se existe lua de mel o tempo todo, isso demonstra que algo está errado, mas eu tenho medo de como vou reagir. Tenho medo de pensar que a criança é feia e medo de depois ficar com remorso.

Outros componentes se sentem atacados, canalizando a hostilidade para os coordenadores e dando vazão às defesas maníacas necessárias para lidar com a própria angústia. Compartilha-se com Klein (1960/1991) que cada movimento em direção à compreensão de mundo interno, portanto em direção à integração, mobiliza ansiedades, podendo favorecer o surgimento de intensas defesas maníacas como se vê no exemplo a seguir. Durante o sexto encontro, que busca refletir com os pais a importância de se respeitar que a criança/adolescente tenha acesso à sua história de origem se assim o desejar, é realizada uma dramatização na qual uma criança (representada por uma estagiária/extensionista) pergunta para a mãe adotiva (representada por outra estagiária/extensionista) sobre onde estaria sua mãe biológica. Na encenação, a mãe adotiva ignora a pergunta da filha e desvia a atenção da criança para outra tarefa, demonstrando, por meio da representação, muita dificuldade para lidar com a situação. Em uma das turmas, no final da dramatização o coordenador perguntou: “Quem quer comentar?”. Um integrante do grupo, de maneira agitada e elevando a voz gradativamente, disse: “Essa mãe não está preparada, ela fez tudo errado, é uma mãe despreparada, não devia nem adotar, se fosse comigo eu sentaria com o meu filho e falaria tudo do jeito que precisa ser falado (...)”. O coordenador, diante do discurso longo e ininterrupto desse integrante, interrompeu a fala, aproximou-se da mãe (representada pela estagiaria) e, colocando a mão em seu ombro, disse: “Parece que esta mãe precisa de ajuda, ela não faz melhor porque não sabe como fazer”. O grupo silenciou. O coordenador, respeitando o silêncio grupal por alguns segundos, posteriormente comentou: “Essa mãe não pode ser qualquer um de vocês tam-

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bém necessitando de ajuda?”. Alguns elementos concordaram, balançando afirmativamente a cabeça. O funcionamento mental compreendido sob a ótica de Klein (1960/1991) esclarece o surgimento da inevitável tensão no campo grupal como parte de um processo que favorece o pensar, o sentir e o enfrentamento de fantasias inconscientes, necessários para a possibilidade de vivenciar a paternidade e maternidade de maneira mais livre. É preciso acolher as fantasias como um lugar privilegiado do prazer, promovendo uma ancoragem possível à dor emergente (Miranda & Cohen, 2012). Em um contexto em que a instituição judiciária, em geral, apresenta-se como alvo de ataques, críticas e frustrações, é necessária a compreensão de que ela representa de forma ilusória no imaginário de cada um o poder de dar e tirar filhos e, em decorrência de tal fato, é vista como amiga ou inimiga de um sonho. A ideia de sonho pode abrir canais de compreensão e comunicação importantes na relação dos profissionais com os postulantes à adoção. Bion (1975/1989) ampliou a função e a compreensão de sonhar, sugerindo que o mesmo ocorre não só à noite, mas também durante o dia. O ato de sonhar consiste em acrescentar algo às impressões sensoriais vivenciadas na experiência da pessoa com os objetos, implicando em utilizar o pensamento, percepção, observação, atenção, memória, associações livres e interpretação. Grotstein (2011) esclarece que, segundo Bion, sonhar é um pensar emocional que facilita o pensar cognitivo. No desenvolvimento de uma dinâmica, no quinto encontro, no qual se trabalha a temática “Filhos Idealizados versus Filhos Reais”, os participantes devem escolher de forma bastante lúdica características sonhadas, escritas em fichas que representem os filhos. Depois de pensada e processada a escolha, estas são relatadas por cada elemento ao grupo. Alguns dizem de forma bastante idealizada: “Será uma menina branca, de dois anos, com os cabelos lisos, olhos vivos, obediente,

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inteligente, amorosa e carinhosa”. Após a exposição, cabe aos coordenadores modificarem as características de forma a apontar àquele que escolheu que a criança real que espera ser adotada, na maioria das vezes é bastante diferente daquela criança sonhada, o que causa distintas reações nos participantes. Em um dos grupos, após o coordenador fazer alterações nas características apontadas por uma integrante, esta disse que gostaria de devolver à coordenadora aquelas que anteriormente havia escolhido, e em seguida disse: “Me senti mal porque não cabe a mim escolher como meu filho será... Quando esperamos os nove meses de gestação, não escolhemos as qualidades ou os defeitos do filho [biológico], apenas aceitamos como ele é”. Ainda no decorrer dessa mesma dinâmica, o coordenador trocou as características sonhadas acerca do filho de uma integrante por outra, aleatoriamente, o que resultou na representação de um filho completamente diferente do sonhado. Após uns minutos de silêncio o coordenador perguntou: “Foi retirado o sonho ou o filho de vocês?”. O participante respondeu: Essa pergunta me fez pensar que não é somente os pais que têm que aceitar o filho, mas o filho também passa por um processo de aceitação dos pais e o medo do filho não aceitar é um sentimento presente.

Essa fala deflagra o sonhar emocional facilitando o pensar cognitivo, apontado por Grotstein (2011), levando-nos a compreender que um sonho sempre necessita do encontro com outro sonho, aguardando ser sonhado. “Será que os profissionais envolvidos, seja do judiciário, seja da instituição de acolhimento, estão podendo compreender o sonho dos pais, aguardando ser sonhado? Ou o sonho do outro está longe ou invisível, e, por tal, impedido de se compreender a vulnerabilidade do sonhador?”. São reflexões instigadoras como essas que os membros do GIPA

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procuram realizar nas reuniões quinzenais, mas que nem sempre encontram ressonância em uma grupalidade maior. A questão do sonho, tratado nesta perspectiva, também abre importantes canais de comunicação entre pais e filhos. A expressão da subjetividade, por meio das dinâmicas grupais, aponta que os pais candidatos à adoção apresentam-se envolvidos de maneira muito intensa com o sonho da paternidade e maternidade, mas contraditoriamente distantes do sonho das crianças e adolescentes institucionalizados à espera de se tornarem filhos. Quanto mais idealizado e intenso for o sonho de serem pais ou mães, frustrações podem ser geradas nos candidatos a adoção chegando mesmo a redundar em “devolução” da criança ou adolescente pelos adotantes, criando traumas significativos em ambas as partes, com a respectiva revitimização das crianças e adolescentes que, em alguma oportunidade anterior, foram vítimas de situações de abandono, maus tratos e negligência. Constata-se que talvez esse seja um aspecto importante que aponta a diferença e a semelhança de ter filhos biológicos ou adotivos. A diferença se encontra na origem da criança, que muitas vezes chega bastante sofrida com a vivência de experiências angustiantes do abandono, enquanto a semelhança se dá na necessidade de se adotar aquele que nos é dado enquanto pais, independentemente de ser biológico ou adotivo. Todos os seres humanos necessitam se sentirem filhos, portanto serem adotados com as características que vierem. Esta se apresenta uma condição essencial para a construção da subjetividade decorrente do sentimento da necessidade de pertença que permeia a humanidade. Abrir canais para uma comunicação autêntica entre todos os envolvidos, pais, filhos biológicos e filhos adotivos, pode contribuir para um vínculo parental-filial baseado na confiança (Otuka, Scorsolini-Comin, & Santos, 2012).

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Segundo Winnicott (1963/1983), o bebê humano, diante de sua total dependência, vivencia uma fragilidade, deflagradora da necessidade do cuidado de um outro que lhe garanta condições de sobrevivência. Esta relação de cuidado marcará todo seu desenvolvimento posterior, contribuindo significativamente com a constituição da identidade que necessariamente contém o registro das primeiras relações. Dessa forma, a criança ou o adolescente adotivo, no desenvolvimento da sua ontogênese, apresenta o desejo de poder ser filho. No entanto, é importante destacar que a relação construída com os pais adotivos envolve um encontro permeado de uma história de medo e desamparo em função de um registro psíquico de ausência no que se refere aos primeiros cuidados, fato que aponta a necessidade de maior sensibilidade no acolhimento por parte dos cuidadores. O desenrolar do trabalho grupal tem sinalizado a importância de apresentar aos pretendentes da adoção a criança ou o adolescente desejante de ser filho que, todavia, mostrar-se-á aos pais adotivos do jeito que lhe for possível, necessitando de um dado tempo que não é da ordem do cronológico, mas da ordem do psíquico, a fim de que possa processar construções e desconstruções, favorecendo a compreensão de uma subjetividade, por vezes, diferente da idealizada pelos pais adotivos. Em uma das turmas, quando foi solicitado aos postulantes que fizessem por escrito uma reflexão de como tinha sido vivenciada a experiência daquele dia, o quinto encontro, no qual havia sido trabalhado a temática “Filhos Idealizados versus Filhos Reais”, um integrante escreveu: “O encontro de hoje nos ajudou a perceber a vida imaginária e a vida real, e que a nossa vontade nem sempre acontece”. Outra participante apontou que: Na vida real, qualquer filho é difícil de educar, não é só o adotivo que e difícil, todos os presentes nesse encontro são filhos também e não são iguais, mas que o sucesso enquanto pais depende do seu amor e sua dedicação, isso depende.

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Ao que outra participante completa: “quem garante que a criança não vai fazer nada de errado por ser filho biológico? Filho biológico também não tem garantia, de não ser ‘probleminha’”. Em outro momento de intervenção, o coordenador perguntou: “Onde existe a criança ou o adolescente que vocês pretendem adotar?” O grupo silenciou. Alguém respondeu: “No abrigo”. O silêncio continuou. Alguém murmurou, timidamente: “Parece que só dentro de nós”, fato que denota a apropriação da idealização. Se para alguns participantes os coordenadores, por meio de suas intervenções, estão destruindo o sonho, para outros estes estão auxiliando que o sonho possa ser sonhado. Portanto, a percepção de cada elemento, com suas vicissitudes, necessitam de tempo, de interação grupal e sensibilidade por parte dos coordenadores para que intervenções adequadas sejam realizadas pontualmente. Os coordenadores exercem a mediação entre conteúdos, visões, sentimentos, experiências cotidianas, trazidos pelos participantes, e as informações, reflexões e conteúdos da realidade acerca da adoção colocados de forma interventiva como possibilidade de revisão ou reafirmação de conceitos e decisões. Em alguns momentos, os encontros grupais apresentamse difíceis, todavia, no que se refere à condução da coordenação, esclarece-se a importância dos profissionais aguardarem para que os próprios componentes do grupo se encarreguem da possibilidade de pensar e sentir, apontando que os condutores grupais necessitam lidar com a própria ansiedade e a ansiedade grupal frente à possibilidade ou impossibilidade de se construir respostas ou até de que não há respostas certas ou erradas. O que existe é o sonho do adotando e o sonho do adotante, fatores norteadores de que o desafio de quem se encontra na condução grupal é facilitar ao adotante o alcance do significado latente de seu sonho que necessita ir ao encontro do sonho do adotado. Nesse sentido, o tempo apresenta-se como um elemento valioso no processo da adoção. Pais adotivos demonstram ter

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pressa. “Têm pressa porque esperaram muito? Por que estão extremamente desejosos e receosos diante da expectativa de serem pais de crianças e adolescentes com histórias assustadoras de desamparo e frustração?”, perguntam-se os coordenadores. Ou, ainda, vislumbrando de outro ângulo: “Têm pressa porque necessariamente irão se encontrar com as suas próprias histórias de desamparo e frustração apontando que é melhor ter pressa para não sentir?”. Compreende-se que lidar com o tempo interno, referente a uma subjetividade permeada de emoções a serem (des)cortinadas para uma compreensão consciente, apresenta-se na contramão do paradigma social vigente. Neste, o tempo apresenta-se restrito à necessidade de ter e a um imediatismo, ancorado na própria tecnologia fomentadora da cultura descartável. “Sentir implica em tempo, mas como sentir diante do tempo inexistente do paradigma vigente?”, questionam-se bastante angustiados os integrantes do GIPA. Nesse sentido, compartilha-se com Zimerman (2000) a importância dos coordenadores de grupo serem continentes, visto que tal função permite acolher as intensas emoções emergidas do campo grupal que lhe são frequentemente depositadas. Nestes momentos é preciso que contenham suas próprias angústias desencadeadas pelas dúvidas, de forma a conseguir favorecer o acolhimento das emoções emergidas, compartilhá-las, e ressignificá-las para o grupo conforme se apresente a condição deste. Paradoxalmente, alguns postulantes à adoção assustam-se com a proposição dos oito encontros, muitas vezes protestando de forma silenciosa ou enfaticamente sobre o tempo destinado aos encontros grupais, os quais imaginam inicialmente ser tempo perdido. Outros, com frequência, associam a participação do grupo com a possibilidade rápida de terem seus filhos. “Se eu estou fazendo o curso é porque minha criança esta chegando”, verbaliza alguém. Dessa forma, compreende-se ser este um aspecto importante a ser identificado na dinâmica

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grupal e trabalhado de maneira que se esclareça com transparência que a participação no grupo não garante a agilidade do processo da adoção, até porque, muitas vezes, as características desejadas pelos adotantes não são aquelas de crianças disponíveis a serem adotadas naquele momento. Seja pela questão do tempo ou por todos os conteúdos psíquicos emergidos no campo grupal, compartilha-se com Zimerman (2000) a necessidade da escuta atenta dos coordenadores e da realização de intervenções que busquem integrar aspectos dissociados e dispersos em uma fala acrescida de significados. Considerações Finais A proposta de trabalho aqui relatada foi respaldada pela referida Lei da Adoção, visando a contribuir com a preparação de pais adotivos. Todavia, para além da contribuição, os encontros estão favorecendo a constatação de que embora exista muito ainda a aprender, o Curso Preparatório para a Adoção tem sido um campo fértil de valiosa construção de conhecimentos. Esses tem tornado os profissionais mais sensíveis à complexidade do processo de adoção, além de possibilitar-lhes o desenvolvimento de habilidades e competências na condução grupal que, reflexiva, tem viabilizado aos participantes poder (re)significar conceitos, avaliar pré-conceitos, atitudes e mesmo direcionar um outro olhar sobre os filhos que desejam. No entanto, é importante ressaltar que o GIPA verificou que os conteúdos desenvolvidos nos oito encontros não foram suficientes para trabalhar plenamente as fases de adaptação que permeiam as relações sociais e emocionais entre adotante e adotado. Adaptação esta que se relaciona a negar que a criança e o adolescente possuem um passado que precisa ser resgatado para a construção coletiva de um novo espaço, de uma nova vida, de novos costumes, ou seja, permitir o florescimento de uma nova família.

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Desta forma, o GIPA constatou a necessidade de outras importantes frentes de trabalho, tais como incentivo de grupos de apoio aos pais que já estão com os filhos adotados, do trabalho direto e contínuo com instituições de acolhimento, além da necessidade de estabelecimento de comunicação real entre os vários profissionais e instituições envolvidas. Parafraseando São Francisco de Assis, o GIPA acredita que se deve começar fazendo o que é possível, depois o que é necessário e, de repente, estar-se-á fazendo o impossível. Referências Alves, R. (1999). O amor que acende a lua. Campinas, SP: Papirus. Andaló, C. (2006). Mediação grupal: Uma leitura histórico-cultural. São Paulo: Ágora. Assis, F. (2013). Pensador. Info. Recuperado de . Azôr, A. M. G. C. V., Cordeiro, E. G., Julião, C. H., & Hueb, M. F. D. (2011). Adoção em Uberaba: Espaço para saberes e fazeres interdisciplinares. Anais do 19º Encontro de Serviços-escola de Psicologia do Estado de São Paulo: O papel da formação em psicologia frente às demandas de saúde pública (pp. 255-263). Guarulhos, SP. Bion, W. R. (1966). O aprender com a experiência. In Elementos de Psicanálise (J. Salomão & P. D. Correa, Trads.). Rio de Janeiro: Zahar. Original publicado em 1963. Bion, W. R. (1989). Uma memória do futuro I: O sonho. (P. Sandler, Trad.) São Paulo: Martins Fontes. Original publicado em 1975. Canotilho, J. J. G. (2002). Direito constitucional e teoria da constituição. (6ª ed.). Coimbra: Almedina. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (1988, 5 de outubro). Recuperado de .

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As famílias que encontramos na atenção básica: Desafios e reflexões para a prática em Psicologia Cibele Alves Chapadeiro Conceição Aparecida Serralha Ao estudarmos a família no século XXI, não podemos pensar em um único modelo de configuração e de relações dentro dela. Cientes disso, neste capítulo, nós, que compomos uma equipe de tutoria da Residência Integrada Multiprofissional em Saúde (RIMS), da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), pretendemos refletir sobre as relações que encontramos nas várias configurações familiares e discutir a atuação do profissional da atenção básica junto a elas. Essa reflexão será feita a partir de dois referenciais teóricos distintos, que embasam os trabalhos de cada tutora e que se somam na tentativa de encontrar ações mais efetivas para cada contexto. Os dois referenciais utilizados serão a teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott e a Teoria Familiar Sistêmica, com os quais pretendemos discutir as dificuldades na comunicação, o estabelecimento de regras e limites, assim como a falta de afeto, que permeiam os problemas encontrados nas famílias atendidas pelo programa da RIMS em atenção primária. Ainda, serão considerados, nessa reflexão, a segurança emocional dos membros destas famílias, assim como sua estrutura hierárquica, e ferramentas importantes para compreender suas dificuldades, como as etapas do Ciclo de Vida e o Genograma. Respaldados por essas teorias, partiremos do princípio de que, por um lado, os pais não podem abdicar da responsabilidade de dar aos filhos a contenção que estes necessitam para se organizarem interna e socialmente. Por outro lado, os profissionais da

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atenção básica precisam trabalhar com todos os membros da família, inclusive transgeracionalmente, para que possam conseguir as mudanças que sejam percebidas como necessárias ao alcance da saúde. Transgeracionalmente, porque muitas vezes não se trata apenas de orientar, ensinar os pais como agir com os seus filhos. Mas, trata-se de verificar como foram as práticas educativas dos avós para com estes pais, a fim de conhecer quais são os modelos e as crenças que eles têm. E também que ansiedades estes pais têm na relação com seus filhos e cônjuges, que provavelmente foram transmitidas transgeracionalmente. Daí surge a necessidade de se trabalhar em uma perspectiva transgeracional e com quantos membros for possível, de forma presencial. Compreendendo a família Minuchin (1990) compreende a família como um sistema, um grupo natural que tem desenvolvido padrões de interação que constituem a estrutura da família, que por sua vez governa o funcionamento dos seus membros. Já o Ministério da Saúde (Brasil, 2014) compreende família como o conjunto de pessoas ligadas por laços de parentesco, dependência doméstica ou normas de convivência, que reside na mesma unidade domiciliar. Nesse conjunto se incluem empregado(a) doméstico(a) que reside no domicílio, pensionista e agregados. A família é uma invenção, uma construção humana. Ao longo da história, vem se mantendo como uma instituição passível de adaptações e mudanças. Na idade média, a família não era um grupo social significativo, tudo era partilhado pela aldeia, em um ambiente rural. Com a Revolução Industrial, o ambiente passa a ser urbano. O homem vai trabalhar fora e a mulher fica em casa, como guardiã do afeto. O pai passa a ser o chefe de uma família nuclear: pai, mãe e filhos (Acosta & Vitale, 2005). No século XX, as mudanças continuaram, até chegar à concepção de família de hoje, que é bastante diversa, com novas configurações familiares,

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decorrentes especialmente da mudança do papel da mulher, da alta taxa de divórcio (Brasil, 2012) e da possibilidade de recasamento. Assim, algumas configurações familiares que aparecem são: mãe divorciada ou solteira morando com seus filhos e, às vezes, com os avós também; casal recasado com os filhos de um dos cônjuges, dos dois e/ou de ambos; casais do mesmo sexo; membros da família morando sozinhos, entre outras. De acordo com Winnicott (1980a), a família fornece o ambiente que uma pessoa, desde o nascimento, precisa para ter suas necessidades atendidas. Trata-se do que este autor chamou “lar primário”. Com essa expressão, ele se referiu à “experiência de um ambiente adaptado às necessidades especiais da criança, sem o que não podem ser estabelecidos os alicerces da saúde mental” (Winnicott, 1999a, p. 63). Estes diferentes entendimentos têm em comum que a família é o ambiente em que relações podem ser saudáveis ou prejudiciais aos seus membros. Desse modo, torna-se essencial uma atenção a essas relações e às experiências de todo tipo que nela são vividas, uma vez que essas experiências tendem a se repetir e acabam formando padrões que, queiram ou não, são importantes para o reconhecimento desse lugar como um lugar ao qual se pertence. Durante o desenvolvimento da criança no interior do grupo familiar, ela vai se dando conta do crescimento gradual do próprio grupo, assim como dos problemas que surgem dos relacionamentos dentro dele. A criança começa a perceber que, apesar de a família protegê-la, o mundo penetra gradualmente, por meio dos tios, vizinhos, primos, amigos, escola etc. Para Winnicott, “esta penetração gradual do ambiente é o modo pelo qual a criança pode chegar ao melhor acordo possível com o mundo mais vasto e seguir, exatamente, o padrão de sua apresentação à realidade externa pela mãe” (1980b, p. 56). Desse modo, a criança, com a ajuda do ambiente, chega a esse acordo nem que seja minimamente, caso algo da própria

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constituição biológica da criança dificulte o processo. Mas, se a criança não consegue se ajustar, no entender de Winnicott, existe sempre “uma falha do ambiente a se ajustar às necessidades absolutas do tempo da dependência relativa” e a falha da família em reparar as falhas dos pais e, na sequência, a falha da sociedade nesse mesmo sentido, uma vez que é responsabilidade desta uma provisão à família, ou uma substituição ao papel desta quando de sua falta (1990, p. 188). No Brasil, esta falha pode ser pensada quando 27,1 pessoas em 100 mil habitantes são assassinadas, e 5,1 cometem suicídio (Waiselfisz, 2013). No ano de 2010, 4.465 mulheres foram assassinadas no Brasil, preponderantemente na faixa de 15 a 29 anos, mas 274 mortes foram de crianças e adolescentes entre 0 e 14 anos. Na última década, o número de homicídios correspondeu à metade dos últimos 30 anos: 43.654 mortes. Estes dados colocam o Brasil em 7º lugar no ranking mundial de homicídios de mulheres. Em termos de violência doméstica, sexual e outras, foram registrados 70.285 casos contra a mulher e 37.213 contra o homem no mesmo ano (Waiselfisz, 2012). Ao estudarmos os pontos mais propensos à disfunção na família, segundo o axioma em que toda comunicação é uma troca de informações e uma definição do tipo de relação (Watzlawick, Beavin, & Jackson, 1967), a comunicação pode ou não ser uma confirmação da própria pessoa, do outro como parceiro relacional e das regras da relação. Assim, no que se refere à comunicação, é mais importante conhecer o padrão redundante ou repetido, do que o conteúdo das mensagens propriamente dito (Alarcão, 2000). Os desacordos relacionais podem estar no nível do conteúdo, que são mais facilmente resolvidos. É um complicador maior para a saúde mental do indivíduo, quando há uma rejeição ou desconfirmação do outro, isto é, quando o problema da comunicação está na definição da relação, em que um não reconhece o outro. No caso da criança, se a mãe não conseguiu

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estabelecer uma relação de apego seguro, como Bowlby (1958) propõe, a mensagem é de desconfirmação do outro. A mãe tem que atender as necessidades da criança, de forma que a mensagem da mãe é de sua confirmação como ser humano importante. Por extensão, a criança tenderá a acreditar que as outras pessoas do mundo também a reconhecerão. O apego seguro se estabelece por meio da comunicação mãe-filho e está na base da autoestima (Nichols & Shcwartz, 2007). O estabelecimento de limites e a afetividade estão na base do estilo parental autoritativo. Neste estilo, a exigência e responsividade são altas. Exigência se refere ao controle do comportamento através do estabelecimento de metas e padrões de conduta pelos pais (Teixeira et al., 2004). Responsividade se relaciona com a capacidade dos pais de serem contingentes ao atender as necessidades de seus filhos, dar apoio emocional, afetividade, ter reciprocidade e comunicação clara (Darling & Steinberg, 1993; Rinhel-Silva et al., 2012; Teixeira et al., 2004). Assim, no estilo autoritativo, os pais impõem restrições, mas favorecem o diálogo e a autonomia, e são responsivos (Hutz & Bardagi, 2006). Crianças educadas no estilo autoritativo tendem a ter maior auto-estima (Jackson, Pratt, Hunsberger, & Pancer, 2005), motivação, competência social e cognitiva e poucos problemas com internalização e comportamento (Aunola, Sttatin, & Nurmi, 2000; Lamborn, Mounts, Steinberg, & Dornbusch 1991; Wolfradt, Hempel, & Miles, 2003), características que começaram a ser conhecidas pelos estudos de estilos parentais na década de 1990. As disfunções podem aparecer também mediante a falta de segurança física no ambiente, a presença de tráfico, roubos, assaltos e assassinatos, aliada à escassez de recursos financeiros das famílias e ao seu baixo nível de instrução [que] limita suas oportunidades de desenvolvimento, afetando a qualidade dos processos proximais estabelecidos entre seus membros (Cecconello & Koller, 2003, p. 517).

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Ainda segundo Cecconello e Koller (2003), o estresse gerado nessas situações interfere na responsividade dos pais para com os filhos. Da mesma forma, o baixo nível de instrução dos pais interfere na capacidade deles transmitirem os conhecimentos e as habilidades que os filhos precisam para resolver problemas, uma vez que eles próprios não os têm desenvolvidos. Entretanto, na família em que há uma cooperação mútua entre seus membros, o fato de ser o lar específico de uma pessoa e, portanto, não lhe causar estranhamentos, permite a esta uma liberdade interior de conhecer, experimentar e até apreciar excitações inerentes a vários tipos de conflitos que ali surgem. Segundo Winnicott, “é na família que podemos encontrar tolerância em relação ao que parece deslealdade, mas que talvez seja apenas uma parte do processo de crescimento” (1996a, p. 108). Nos jogos familiares, viver tensões, ciúmes, amores, ódios, lealdades e deslealdades, é perfeitamente saudável, uma vez que a família fornece tolerância e exasperação, além de oferecer os limites que permitem conter todos esses afetos. “A unidade familiar é mais do que uma questão de conforto e conveniência” (Winnicott, 1999b, p. 18). A criança, que não pode viver experiências assim, encontrará dificuldades ao viver experiências no mundo lá fora. Pode acontecer, por exemplo, que, se ela perde um dos pais quando bem pequena e não tem oportunidade de presenciar momentos estressantes de irritação e ódio entre os adultos, que, logo depois, conseguem solucionar seus problemas – encontrando novamente o amor e o carinho um do outro –, pode idealizar relações, nas quais só existem amor, carinho e cuidado. Segundo Winnicott, “num período de separação, registra-se uma considerável dose de idealização, e isso é tanto mais verdadeiro quanto mais radical for o afastamento” (1999c, p. 51). Com isso, ela poderá ficar tremendamente angustiada diante de pequenos conflitos em suas próprias rela-

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ções conjugais, no futuro, acreditando que o mínimo estresse levará ao fim do relacionamento. Esse tipo de pessoa se torna extremamente ansiosa, não concede tempo para que tudo se resolva da melhor forma possível e acaba destruindo um relacionamento atrás do outro. De acordo com Winnicott, na realidade do mundo em que as crianças talvez precisem viver enquanto adultos, toda lealdade envolve alguma coisa de natureza oposta, que poderia ser chamada de deslealdade, e a criança que teve a oportunidade de alcançar todas essas coisas durante seu crescimento está em melhores condições de assumir um lugar neste mundo (1996a, p. 110).

Winnicott também confirma a importância da hierarquia de papéis para o bom desenvolvimento da criança. Para os adolescentes, em especial, a família tem papel essencial na promoção da segurança necessária ao turbilhão de acontecimentos desse período, uma vez que, além de reaparecerem todas as excitações advindas dos medos de experiências semelhantes às da infância, agora as excitações advêm também das experiências libidinais próprias da adolescência. A intensidade do amor e do ódio vividos aterroriza o adolescente e, se a família persiste, ele “pode atuar sobre seus pais”, desafiando-os, ao que os pais precisam confrontar sem vinganças e retaliações (1996a, p. 109). Entretanto, segundo Minuchin, Nichols e Lee (2009), a posição hierárquica antes ocupada pelos pais tem se alterado e as crianças têm sido “elevadas a um status tão exaltado que na família atual, os pais orbitam em torno dos filhos como planetas girando em torno do sol" (p. 33). A importância dada aos filhos, muitas vezes em detrimento da relação conjugal e até mesmo do papel dos pais, não é boa nem para os filhos, que sentem o peso da responsabilidade pela vida dos pais, além das consequências para o seu desenvolvimento. Para Winnicott (1996d), torna-se

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necessário que a sociedade acolha a passagem do tempo e não permita que as crianças e, principalmente, os adolescentes, queimem etapas e adquiram uma falsa maturidade por meio da “transferência de responsabilidades que não são deles, ainda que eles lutem por elas” (p. 126). Winnicott ficava impressionado com a necessidade que o adolescente tem da ampliação do círculo de pessoas para seus cuidados e afirmava que “todos estes círculos cada vez maiores representam o colo da mãe, seus braços e sua preocupação” (1980c, p. 108). Dessa maneira, a vida em família é a base para os grupos com os quais o adolescente vai ter a necessidade de conviver. Torna-se essencial que a família continue existindo para que o jovem possa rebelar-se contra ela, ou mesmo, utilizá-la quando precisar se reassegurar. Segundo Winnicott, “a família tem uma posição claramente definida no ponto em que a criança em desenvolvimento defronta-se com as forças que atuam na sociedade” (1980d, p. 9). Em famílias saudáveis, efetivas, os pais são capazes de lidar de forma equilibrada com os filhos. No entanto, parece que a maioria das famílias não tem funcionamento adequado. Os pais tendem a polarizar entre si, um assumindo posição extrema, enquanto o outro tende a se retrair. Casais que têm conflitos conjugais têm maior probabilidade de discordar a respeito da criação dos filhos. Muitas vezes, estes conflitos levam à proximidade de um dos pais com o filho e distanciamento do cônjuge, situação conhecida como triangulação. O problema do filho aproxima os pais pela preocupação ou faz com que eles entrem em conflito sobre como lidar com o filho (Minuchin, Nichols, & Lee, 2009). O que parece ser consensual entre os autores trazidos neste texto é que os pais não podem abdicar de suas responsabilidades e, ao confrontar os filhos, darão a eles a contenção que estes necessitam para se organizarem interna e socialmente. O sentimento de “estar em família” faz com que, em

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meio a desentendimentos entre a criança, o adolescente e os adultos, todos sobrevivam. Caso contrário, “se a família não estiver mais à disposição, nem que seja para ser posta de lado (uso negativo), então é necessário prover pequenas unidades sociais para conter o processo de crescimento do adolescente” (Winnicott, 1996d, p. 123). A família na atenção básica No tocante à responsabilidade social de provisão à família, particularmente no desenvolvimento de atividades de promoção, proteção e recuperação da saúde, a Estratégia de Saúde da Família (ESF), proposta pelo Governo Federal para reorganizar a forma de atenção à saúde, tem sido desenvolvida por equipes multiprofissionais nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) e nas Unidades Matriciais de Saúde (UMS) (Figueiredo, 2006). Junto às ESF, a equipe da Residência Integrada Multiprofissional em Saúde (RIMS) da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) tem se apresentado visando à atenção básica aos usuários do sistema, que residem na zona de abrangência pactuada pela UFTM com a Secretaria Municipal de Saúde de Uberaba-MG. A referência à atenção básica abarca o “conjunto de ações de caráter individual ou coletivo, situadas no primeiro nível de atenção do sistema de saúde e voltadas para a promoção da saúde, a prevenção dos agravos, o tratamento e a reabilitação” (Zoboli & Fortes, 2004, p. 1690). Assim, pensando nas famílias que as equipes da ESF têm encontrado nessas unidades, os desafios aparecem de imediato não pelas novas configurações familiares que os tempos pósmodernos fizeram surgir, mas, exatamente pela disfunção nessas famílias, que acabam servindo de base para as doenças e comportamentos antissociais. Isso porque, nessas famílias, costuma-se encontrar “um funcionamento patológico com relação à comunicação, estabelecimento de regras e limites, e falta de

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afeto” (Guimarães, Hochgraf, Brasiliano, & Ingberman, 2009, p. 71). Asen, Tomson, Young e Tomson (2012) propõem que, nos trabalhos em atenção básica, é preciso utilizar pelo menos dez minutos para se trabalhar com a família. Conversar com todos os membros da família, ou com os membros disponíveis, trará para o caso uma nova perspectiva ao observar as interações familiares in loco e conhecer o ponto de vista dos outros familiares. Segundo os autores, trabalhar com todo o sistema familiar é como ter uma série de lentes fotográficas, que dá a possibilidade de visualizar a situação de diferentes ângulos. A presença da família esclarece o contexto em que o sintoma está ocorrendo. Ainda, Asen et al. (2012) referem que se deve buscar o entendimento das relações que as pessoas possuem dentro dos diferentes contextos, principalmente o familiar, além da relação dos sintomas com as experiências, crenças e histórias da família. O foco está na interação interpessoal concreta, mais do que na intrapessoal, que, por outro lado, não deve ser menosprezada. Quando se observam pessoas com a “síndrome do prontuário gordo” (O’Dowd, 1988), ou seja, pessoas que vêm repetidamente à unidade de saúde, com o mesmo ou diversos problemas não solucionados, e crianças que são continuamente apresentadas como “o problema” da família, verifica-se a necessidade de realizar uma abordagem ampliada: conversar com todos os membros da família ou mesmo com o casal. Especialmente em relação às crianças e filhos mais jovens, a relação conjugal de seus pais ou a relação parental pode ser a origem de muitos de seus males. Contudo, torna-se importante deixar claro que isso deve ser feito sem perder o foco de que não só a família imediata (pais e filhos), mas também a família extensa (tios, primos, avós, etc.) têm influência na vida de cada um, ressaltando-se a transgeracionalidade. Muitas vezes, a própria pessoa aponta a dimensão interpessoal de seus problemas. Mas, por outro lado, ela pode

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ignorar por completo a interpessoalidade de suas dificuldades. A família de origem pode influenciar a todos por meio de suas crenças, mitos, regras, implícitas ou explícitas, entre outras. Segundo Framo (2002), as dificuldades atuais das pessoas, do casal ou dos pais, são tentativas de reparar ou defender-se de problemas relacionais na família de origem. A maioria das pessoas vê os filhos, não pelo que são, mas como representantes familiares do passado. É importante trabalhar em colaboração com a família, seja no tratamento, seja na promoção à saúde e prevenção de doenças. É na transição das etapas do ciclo de vida das famílias que mais frequentemente aparecem dificuldades, que se tornam problemas (Carter & McGoldrick, 1989). Assim, o conhecimento pelo profissional das etapas do ciclo de vida das famílias é muito importante para que ele possa entender quais as tarefas de desenvolvimento que a família tem naquele momento e se ela está sendo capaz de cumpri-las. Este conhecimento deve subsidiar ações de prevenção de problemas com a família, assim como ações terapêuticas para as dificuldades que já estão ocorrendo. Outra ferramenta produzida para o trabalho com famílias que tem se destacado é o Genograma ou Genetograma, que tem sido utilizado pelas equipes de saúde da família, nas unidades de atenção básica. É uma ferramenta diagnóstica, mas que pode ser também terapêutica, que possibilita a identificação dos membros da família e a relação entre eles em um período de pelo menos três gerações, de forma gráfica, possibilitando uma rápida Gestalt dos padrões familiares. O genograma é uma fonte rica de hipóteses sobre como os problemas clínicos se desenvolvem na família ao longo do tempo (McGoldrick, Gerson, & Petry, 2012). As oportunidades que os residentes tiveram de utilizar o genograma confirmaram os achados da pesquisa de Athayde e Gil (2005), tanto no que se refere aos pontos positivos de sua aplicação, quanto no tocante às dificuldades para esta. Segundo esses

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pesquisadores, o uso do genograma melhora a compreensão da situação da família, visualizando mais claramente todo o contexto familiar. Além disso, na anamnese, obtém informações sobre datas e patologias hereditárias, auxiliando principalmente no caso de patologias múltiplas. As maiores dificuldades apontadas para a aplicação desse instrumento foram: a brevidade do tempo destinado às consultas, principalmente, em razão do elevado número destas; a falta de estrutura física nas UBS que impedem o sigilo aos pacientes; a não informatização nos serviços; entre outras. Da parte dos usuários, foi notada a dificuldade de se lembrarem de muitos dados e informações de suas histórias de vida, como também de suas situações familiares. Já para os pesquisadores Pereira, Teixeira, Bressan e Martini (2009), o genograma acaba se restringindo ao uso acadêmico, uma vez que, para o trabalho das equipes de saúde da família, esse instrumento despende muito tempo para sua construção adequada, “para sua análise e atuação frente às exigências de cuidados encontradas, e ainda para sua atualização, visto que é o retrato de um momento do ciclo vital da família, e desta forma, sofre modificações ao longo do processo de viver humano” (p. 411). Mas, em nossa experiência, quando o genograma é realizado nas visitas domiciliares pelos agentes comunitários e residentes multiprofissionais da UFTM, a oportunidade de realizá-lo tem sido mais frutífera. Um desses frutos é a discussão sobre as famílias, a partir do genograma, que é realizada na reunião de Educação Continuada da equipe. Nesta reunião, os dados colhidos junto à família são acrescidos pelo conhecimento que outros membros da equipe de ESF têm sobre a mesma. Isto ocorre principalmente por parte dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), que mais frequentemente residem na área de abrangência da unidade de saúde e têm a possibilidade de conhecerem mais de perto as famílias da comunidade. No momento da discussão, participam o maior número de membros da equipe e dos integrantes da residência multiprofissional e a

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busca por elementos, que possam levar a uma maior compreensão da situação daquela família e a indicação de possíveis estratégias de enfrentamento de seus problemas, se intensificam. A partir da reunião, os profissionais, que estavam em contato com a família, retornam a ela para discutir possibilidades de enfrentar suas dificuldades. Se a ESF é recente, mais novas ainda são as estratégias e ferramentas para lidar com os problemas que aparecem. Assim é o genograma, uma ferramenta utilizada há pouco tempo e que muitos ainda não conseguiram incorporá-la de forma a ser um facilitador e não um complicador. Ao ser incluído na prática rotineira, os aplicadores passarão a ter um domínio sobre essa ferramenta para aproveitá-la bem. Em relação à adesão das famílias às atividades propostas pelos residentes em conjunto com as ESF, entendemos que há ainda muito trabalho a ser feito. A percepção da participação de todos os membros da família na constituição tanto da saúde quanto da doença é ainda incipiente em muitos casos. Entender que se pode atingir um equilíbrio mesmo em meio à doença é difícil e a mudança parece ser mais ameaçadora. Entender que mesmo o bom potencial hereditário necessita de um ambiente facilitador das tendências presentes nesse potencial para bem se desenvolver traz responsabilidades que nem sempre as pessoas querem assumir. Dessa maneira, estudos como o de Ronzani e Silva (2008) apontam que os usuários dificilmente participam de atividades propostas que não sejam atividades de assistência médica, justificando essa não participação por elas não corresponderem às suas necessidades. A visão medicalizante dos problemas de saúde ainda é muito presente entre os usuários e é um obstáculo difícil de ser vencido, uma vez que os próprios membros da ESF parecem ter dificuldades de se convencerem disso, diante da dificuldade de encontrar estratégias que mudem o funcionamento produtor e mantenedor das doenças.

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Assim, o entendimento sistêmico das relações interpessoais não se restringe ao trabalho com as famílias atendidas pelas ESF, mas também pode ser utilizado para trabalhar as relações dentro das próprias equipes que atuam na atenção básica. Qualquer grupo de pessoas, em contínua interação, pode ter dificuldades que seriam melhor solucionadas em conjunto. Metaforicamente, os passos da dança que as pessoas realizam em seus contextos podem estar em desarmonia. O profissional, ao fazer contato com o grupo em questão, pode identificar quais passos poderiam ser modificados, a fim de que a dança possa se tornar harmônica. A RIMS tem trabalhado neste sentido. Apesar de também pertencerem à equipe, os residentes, em razão da origem de sua inserção nesta e por terem um tempo de permanência prédeterminado nela, são sentidos mais como colaboradores externos, ou seja, tendo uma natureza diferente de seus colegas de equipe e, sendo assim, em algumas unidades, têm sido chamados pelos ACS para um trabalho que os auxiliem a lidar melhor com os enfrentamentos diários no trabalho junto à comunidade. Até o momento, nessas experiências, foram trabalhadas as relações com os usuários durante alguns encontros, mas também intraequipe, uma vez que estas relações acabam sendo afetadas pelo fato de os ACS se sentirem sobrecarregados com as demandas das famílias da comunidade tanto no período do trabalho como fora deste período. Considerações Finais Na atenção básica e em outros settings, trabalhar com a família é desafiante. O modo de funcionar de uma família, em homeostase há muito tempo, tende a minar as tentativas de mudanças que uma equipe Estratégia Saúde da Família busca produzir. Como exposto no desenvolvimento deste capítulo, as dificuldades aparecem a partir da relação entre as pessoas, daí a

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importância de os profissionais conhecerem não só o paciente identificado pela família, mas todos os membros conviventes em uma moradia, além da história da família extensa: irmãos, tios, primos, avós, entre outros que se tenha acesso. Na Residência Integrada Multiprofissional em Saúde, a oportunidade de receber graduados em diferentes universidades, identificados com aportes teóricos diversos, bem como contar com tutores e preceptores também com diferentes perspectivas teóricas enriquece a formação tanto prática quanto teórica, a partir das estratégias empreendidas com a população. A discussão aqui realizada mostra um duplo movimento. De um lado, como uma teoria psicanalítica, que considera as questões ambientais também relevantes ao nos apontar a importância de cuidados efetivos, bem como do modo e do tempo em que são realizados esses cuidados pelos pais, familiares e sociedade para o amadurecimento emocional do indivíduo. De outro lado, a teoria sistêmica, que se preocupa com a forma como ocorre a comunicação entre as pessoas dentro de um sistema (ambiente), como elas se estabelecem com suas regras e limites e, sendo assim, como elas se afetam mutuamente. Esses dois movimentos não são isolados, mas integrados, de modo que se faz necessário encontrar os pontos complementares e consensuais entre tais abordagens, que nos permitem enfrentar os desafios surgidos no trabalho junto aos vários arranjos familiares. Entre os pontos complementares podemos destacar, na teoria do amadurecimento, as questões inconscientes da ambivalência presente nos sentimentos e ações, às vezes inconscientes, dos membros de uma família e da equipe, como lealdade e deslealdade, proteção e desproteção, amor e ódio. Essa teoria traz a importância de se sobreviver sem retaliações ou vinganças às inúmeras tentativas frustradas de cuidado que podem ser realizadas tanto pelos familiares como pelos membros de uma equipe ESF e residentes. Um exemplo de não retaliação é

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permanecer atento e presente junto a um usuário que insiste em não atender ao que é necessário para o alcance e manutenção de sua saúde. Nos casos em que essa sobrevivência não ocorre, percebe-se o afastamento dos membros das equipes, que passam a colocar empecilhos às visitas domiciliares ou outras ações, para justificar o distanciamento que se efetiva. Na teoria sistêmica, a identificação de padrões de funcionamento e as estratégias interventivas de alteração desses padrões complementam o enfrentamento do desafio que existe não só pela diversidade de seus arranjos familiares, mas também pela complexidade de suas relações; pela intersubjetividade na relação profissional-família; pela homeostase familiar que dificulta a mudança; pela falta de conhecimento destes processos pelos profissionais; pela falta de habilidade técnica dos profissionais, especialmente os não psi; pela falta de habilidade instrumental do profissional, por exemplo, com o genograma e, ainda, pelas próprias dificuldades de apego e diferenciação que o próprio profissional pode ter. Assim, em termos consensuais, temos a visão de que o que se apresenta para ser cuidado pela ESF e a RIMS tem como origem as relações que se estabelecem nas famílias. Ambos os conhecimentos são importantes no trabalho na ESF, uma vez que este exige intervenções que contem com a colaboração da família, o que envolve também saber lidar com os afetos e sentimentos advindos de fantasias, ou da ambivalência inerente ao amadurecimento do indivíduo. Além disso, ambas as teorias comungam o saber de que os pais e/ou outros cuidadores não podem abdicar de suas responsabilidades e de dar aos filhos a contenção que estes necessitam para se organizarem pessoal e internamente, para o alcance da saúde e de sua parte de contribuição social. A atenção básica priorizou o trabalho em Estratégia Saúde da Família. O foco principal não é o indivíduo, mas a família, que, se por um lado se constitui de indivíduos, por outro,

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estes dependem dela para sua integração individual e saúde psicossomática. Entendemos que a atuação com as famílias na atenção básica está só começando, assim como é nova a inserção da RIMS neste contexto. E as teorias, tanto sistêmicas quanto do amadurecimento, estão apontando questões a serem pensadas e caminhos a serem doravante trabalhados. Referências Acosta, A. R., & Vitale, M. A. A. F. (Orgs). (2011). Família: Redes, laços e políticas públicas (5ª ed.). São Paulo: Cortez Editora. Alarcão, M. (2000). (des) Equilíbrios familiares. Coimbra: Quarteto Editora. Asen, E., Tomson, D., Young, V., & Tomson, P. (2012). 10 minutos para a família: Intervenções sistêmicas em atenção primária à saúde. Porto Alegre: Artmed. Athayde, E. S, & Gil, C. R. R. (2005). Possibilidades do uso do genograma no trabalho cotidiano dos médicos das equipes de saúde da família de Londrina. Revista Espaço para a Saúde, 6(2), 13-22. Aunola, K., Sttatin, H., & Nurmi, J. (2000). Parenting styles and adolescents’ achievement strategies. Journal of Adolescence, 23(2), 205-222. Bowlby, J. (2002). Apego, a natureza do vínculo (3ª ed.). São Paulo: Martins Fontes. Brasil. Ministério da Saúde. Departamento de Atenção Básica. (2001). Guia prático do Programa Saúde da Família. Brasília: Ministério da Saúde. Cecconello, A. M. & Koller, S. H. (2003). Inserção Ecológica na Comunidade: Uma Proposta Metodológica para o Estudo de Famílias em Situação de Risco. Psicologia: Reflexão e Crítica, 16(3), 515-524. Carter, B., & McGoldrick, M. (2001). As mudanças no ciclo de vida familiar: uma estrutura para a terapia familiar. Porto Alegre: Artmed.

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Sobre os Autores Adriana da Silva Sena é psicóloga pela Faculdade de Tecnologia e Ciências de Jequié, na Bahia. Especialista em Neuropsicologia pela mesma instituição. Ana Mafalda Guedes C. C. Vassalo Azôr é psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas e mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia. Atua como consultora de instituição de acolhimento e é professora do curso de Psicologia da Universidade de Uberaba. André Tuma Delbim Ferreira é bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo e atua como promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Titular da Promotoria de Defesa da Infância e Juventude da Comarca de Uberaba (MG). Coordenador Regional das Promotorias de Infância, Juventude e Educação do Triângulo Mineiro. Membro da Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e Adolescência – ABMP. Carmen Lúcia Cardoso é psicóloga pela Universidade de São Paulo, mestre em Saúde Mental pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo e doutora em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Professora Associada do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Pesquisadora do Centro de Pesquisa em Psicodiagnóstico (FFCLRP-USP/CNPq).

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Carolina Martins Pereira Alves é psicóloga pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Cibele Alves Chapadeiro é psicóloga, mestre e doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Professora Associada do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Pesquisadora do HUBRIS – Laboratório de Estudos e Pesquisa em Sexualidade e Violência de Gênero (UFTM-CNPq). Conceição Aparecida Serralha é psicóloga pela Universidade Federal de Uberlândia, mestre e doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Coordenadora do GEPPSE – Grupo de Estudo e Pesquisa em Psicanálise da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (CNPq). Deise Coelho de Souza é psicóloga pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro e aluna do Programa de Residência Integrada Multiprofissional em Saúde da mesma instituição. Eliane Gonçalves Cordeiro é psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e mestre em Educação pela Universidade de Uberaba. Professora do curso de Psicologia da Universidade de Uberaba. Fabio Scorsolini-Comin (Organizador) é psicólogo, mestre e doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Pós-doutorado em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Professor adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Coordenador do PROSA – Laboratório de Investigações sobre Práticas Dialógicas e Relacionamentos Interpessoais (UFTM/CNPq) e pesquisador do LEPPS – Labo-

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ratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP/CNPq). Giancarlo Spizzirri é psiquiatra pela Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Mestre e doutorando em Ciências da Saúde pelo Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Médico do Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e do grupo multidisciplinar de atendimentos aos portadores de Transtornos de Identidade de Gênero desta instituição. Professor do Curso de Especialização em Sexualidade Humana da USP. Helena de Ornellas Sivieri Pereira é mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas e doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Professora adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro e do Programa de Pós-graduação em Educação da mesma instituição. Izabella Lenza Crema é graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Joana Borges Ferreira é psicóloga pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Juliana D’André Montandon é Universidade Federal do Triângulo Mineiro.

psicóloga

pela

Karin A. Casarini é psicóloga pela Universidade Federal de São Carlos, mestre e doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Professora adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Pesquisadora do

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PROSA – Laboratório de Investigações sobre Práticas Dialógicas e Relacionamentos Interpessoais (UFTM/CNPq). Laura Vilela e Souza (Organizadora) é psicóloga, mestre e doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Professora adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Coordenadora do PROSA – Laboratório de Investigações sobre Práticas Dialógicas e Relacionamentos Interpessoais (UFTM/CNPq). Luciana Maria da Silva é psicóloga, mestre e doutora em Psicobiologia pela Universidade de São Paulo. Professora adjunta do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Mariana Tolêdo Fuzaro é graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Marianna Ramos e Oliveira é graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Marta Regina Farinelli é assistente social, mestre e doutora em Serviço Social pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Professora adjunta do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Martha Franco Diniz Hueb é mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e doutora em Saúde Mental pela Universidade de São Paulo. Professora adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Pesquisadora do GEPPSE – Grupo de Estudo e Pesquisa em Psicanálise da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (CNPq).

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Nathalia Beatriz Fontes Silva é graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Neftali Beatriz Centurion é graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Rafael De Tilio é psicólogo, mestre e doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Professor adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Coordenador do HUBRIS – Laboratório de Estudos e Pesquisa em Sexualidade e Violência de Gênero (UFTM-CNPq). Renata Lemos Crisóstomo é graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Roberta Noronha Azevedo é psicóloga pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo e especialista em Sexualidade Humana pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Psicóloga do CREAS (Centro de Referência Especializado da Assistência Social) do município de Orlândia, Estado de São Paulo. Roberta Rodrigues de Almeida é psicóloga pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Sabrina Martins Barroso (Organizadora) é psicóloga pela Universidade Federal de São João del Rei, mestre em Psicologia e doutora em Saúde Pública pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Coordenadora do Laboratório de Avaliação das Diferenças Individuais (LADI-UFTM-CNPq).

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Tales Vilela Santeiro é psicólogo pela Universidade de Franca, mestre e doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Professor adjunto do curso de Psicologia da Universidade Federal de Goiás, campus Jataí. Tamara Rodrigues Lima Zanuzzi é psicóloga pela Universidade Federal de Goiás, campus Jataí. Wanderlei Abadio de Oliveira é psicólogo pela Universidade de Uberaba e doutorando no Programa de Enfermagem em Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Membro do Grupo de Estudos, Ensino e Pesquisa do Programa de Atenção Primária de Saúde do Escolar (PROASE) da EERP-USP.

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