Louis Althusser - Posicoes I Pes

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Traduzido da edição francesa: 1. Réponse a John Lewis © Copyright by François Maspero, Editeur - Paris 2. Elemenis d’Autocritique © Copyright by Hachette - Paris 3. Sòuíenançe d’Amiens © Copyright by Louis Althusser Biblioteca de Estudos Humanos Série: Posições Ideológicas Editor: Max da Costa Santos

Conselho editorial da Biblioteca: Braz Araújo Carlos Estevam Martins Carlos Gentüle de Melo Carlos Guilherme Mota Carlos Nelson Coutinho Eduardo Azeredo Costa Eurico de Lima Figueiredo Hesio Cordeiro Jetter Ram alho Joel Birman José Augusto Guillion de Albuquerque

José Luiz de Fiori José Nilo Tavares Leandro Konder" Luiz Pereira L uís Werneck Viana Miriam Limoeiro Reginaido di Piero Reinaldo Guimarães Roberto Machado' Sérgio Arouca Vaniida Paiva

Direitos adquiridos para a língua portuguesa por EDIÇÕES GRAAL Rua Hermenegildo de Barros, 3I-A - Glória Rio dc janeiro - 20000 - RJ - Brasil Impresso no üràsiljPrinted in Brazil

LOUIS ALTHUSSEIÍ

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POSIÇÕES I

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Capa: Sônia Maricríioulart

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CIP - Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

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Althusser, Louis, Posições I / Louis Althusser. - RÍo de Janeiro: Edi­ ções Graal, 1978. (Biblioteca de Estudos humanos: Série Posições ideológicas) Tradução de: Réponse a John Lewis. Élemcnts d’autocritique. Soutenancc d’amiens. 1. Marx, Karl, 1818-1883 - Filosofia - Crítica e inX terpretação I. Título II. Série

, 78-0Í22

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APRESENTAÇÃO

Pouco mais de dez anos transcorreram desde o lançamento do "Pour Marx” e do “ Lire le Capital” de Louis Althusser. Com esses livros 0 filósofo francês desencadeou uma viva polêmica, de fundo ^teórico-político, cuja irradiação mundial traçou novos rumos ao sistema de pensamento contemporâneo. ;I Analisando, de modo priginal e revolucionário, o conjunto teórico constituído pela herança dos clássicos do marxismoleninismo, Althusser despertou do seu sono dogmático uma gera­ ção inteira de filósofos e militantes políticos. No debate teórico e político aberto pelo acontecimento do XX^' congresso e da cisão do movimento operário internacional, Althusser interveio de maneira crítica e polêmica contra a versão dogmática, apologética c vulgar da teoria marxista, dominante sob a égide do stanilismo, e, num mesmo movimento, contra a diluição iüeológica do que havia de es­ pecífico, objetivo e revolueionário na versão do marxismo, operada pela vertente humanista do marxismo ocidental. J ^ r a tanto foijou _ujn dispositivo teórico inusitado nos termos da tradição marxista,cujo alcance crítico pôs à prova a vitalidade e originalidade da em*^esa teórica clássica. Corte epistemológico, problemática ideológica c/ou científica, contradição e superdeterminação, dcterminaçãó em última instân-

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l

cia pelo econômico e estrutura-com-dominante, anti-humanismo teórico, etc, são alguns dos conceitos e noções polêmicas que desde o primeiro momento deslocaram as condições correntes do debate teórico, intra c extra universitário, e concorreram para ^dissolução (pmbora parcial) da versão ontológico-burguesa do marxismo. Es■sas'teses despertaram contra Althusser reações cm cadeia de difejentcs críticas vindas dos quatro cantos do universo ideológico marxista, para-marxista e não marxista. Em que pesem as fortes reações despertadas, a intervenção althusseriana modificou o panorama do pensamento filosófico marxista, estabelecendo algumas posições incontornáveis na atüal conjuntura teófico-política. A crítica ao economidsmo e ao huma­ nismo, levada a cabo por Aíthusser de forma radical, desestabilizou os aparatos ideológicos do revisionismo e do stalinismo, abrindo brechas por onde escoaram os mananciais da critica mais recente à pesada herança dos socialismos reinantes. Se a questão dos poderes se tornou o centro de gravidade dos mais ousados empreendimentos críticos teóricos de nossa época (de que é exemplo maior a análise de Michel Foucault dos aparelhos de disciplinarização - do hospital à prisão, da escola ao partido), em parte isso se deve à liberação da pesada hipoteca que dominava o pensamento teórico como resultado da hegemonia exercida pela “ doxa marxista” para cuja dissolução contribuiu, a seu tempo, a empresa teórico-crítica althusseriana. Situando a posição teórica de Marx como um dos fundadores de um continente científico novo - o continente história o materialismo histórico surge como o legítimo fundador da cientificidade dos terrenos ocupados pela economia, pela política e pelas chama­ das “ciências humanas” . A ruptura com o humanismo especificada por Althusser - e cujo solo epistemológico foi definido de forma ampla e enigmática por M. Foucault - não é apenas a crise de uma filosofia, de um discurso sobre a idealidade, mas a de um conjunto ^ saberes e práticas que, da psicologia à sociologia, dqs teorias da administração à antropologia, organizam as form~ãs de dorninãçâo so sõb'o capitalismo. Çassada a tempestade dos debates acalorados e cessados os úl­ timos ecos das polêmicas travadas, eis que o próprio Althusser se propõe a analisar os seus ensaios e as críticas que suscitaram. Em "Resposta a John Lipwis" e “Eiementosi-de auto-crítica”, o autor aborda as espinhosas questões político-teóricãs suscitadas por suas críticas ao humanismo e historicismo, como também enfrenta as questões geradas pelp seu soi-disani “desvio teoricista” acerca das

rejações entre ciência e ideologia_na obra de Marx, ou sobre a natu­ reza da filosofia marxista. A opinião do autor sobre os desvios e imipasses de sua própria posição, c as retificações que empreendeu buscando superá-las, é uma peça indispensável à análise'' objetiva e critica ao contexto teórico produzido por sua intervenção. A esses dois textos se acrescentou a apresentação de sua obra dinate dc um júri universitário em Amiens, onde, pela primeira vez, realiza um balanço positivo de suas teses polêmicas, estabelecendo um roteiro para a apropriação pelo leitor de seus aspectos mais agudos e críti­ cos. Esses textos de auto-crítica dispersos nas edições originais são reunidas em um só volume e numa importante iniciativa editorial colocados ao alcance do público leitor brasileiro, pondo-o diante das teses de uma das,mais discutidas e instigantes figuras teóricofilosóílca do Ocidente. • beverino Bezerra Cabral Filho e Manoel Barros da Motta.

SUMÁRIO

í - RESPOSTA A JOHN LEWIS Advertência Rexposta a John Lewis Nota sobre a "crítica do culto de personalidade" Observação sobre uma categoria: "Processo sem Sujeito nem Fim{s}”

13 15 52 66

II - ELEMENTOS DE AUTOCRÍTICA Advertência Elementos de Autocrítica O Cone Ciência e Ideologia Estruturalismo? Sobre Spinoza Tendências em Filosofia Sobre a Evolução do Jovem Marx

75 79 SI 91 97 102

íl) 119

III ~ SUSTENTAÇÃO DE TESE EM AMIENS Introdução A Última Instância Sobre o Processo de Conhecimento Marx e o Humanismo Teórico

131 140 151 158

I RESPOSTA A JOHN LEWIS Tradução de CARLOS NELSON COUTINHO

ADVERTÊNCIA

E sta '"Resposta a John Lewis'" apareceu ~ numa tradução de Grahame Lock - em dois números da revista teórica e política do Partido Comunista da Grã-Bretanha, Marxism Today, cm outubro c novembro dc 1972. “ Resposta” : pois, alguns meses antes (em seus números de ja­ neiro e fevereiro de 1972), a mesma revista havia publicado um lon­ go artigo critico de John Lewis (filósofo comunista inglês conheci­ do por suas intervenções nas questões político-ideoiógicas), sob o título “The Case Althusser". O presente texto da Resposta a John Lewis retoma a versão in­ glesa do artigo. Fiz algumas correções, acrescentei alguns parágra­ fos de esclarecimento e uma Observação. Acrescentei a esse texto uma Nota inédita, que deveria originariamente fazer parte da minha Resposta, mas que tive de cortar para não exceder os limites de um artigo já bastante longo. Paris, 1^ de maio dc 1973 L, A. 13

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RESPOSTA A JOHN LEWIS

1

A gradcço a Marxism Today por ler publicado o artigo de John Lewis sobre meus ensaios de filosofia marxista, Pour Marx, e Lire le Capital (1965). Diante de todos os membros da família imobilizados e de seus confrades silenciosos, o Doutor John Lewis incIinou-se sobre “o caso Althusser” Longamente. E apresentou seu diagnóstico: o doente sofre de “dogmatismo” agudo - uma variedade “medieval” . I O prognóstico é sombrio: o doente não irá longe. É uma honra para mim, mas é também a ocasião de me expli­ car, 12 anos depois. Meu primeiro artigo, que falava dp-“Jovem | Marx” , data com efeito de 1960. Estamos agora eni, Í972\ Desde 1960, muita água correu sob a ponte da História. O Mo­ vimento operário viveu eventos da maior importância, como estes; 0 prosseguimento da heróica e vitoriosa resistência do povo vietna-1 ITítulo do artigo de John Lewis: The Case Alihvsser, Nada de espantoso: em sua conclusão, John Lcwi.s põe os pomos nos /'/, comparando o marxismo à ... medicina!

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mita contra o mais poderoso imperialismo do mundo; a revolução cultural proletária na China (1966-69); a mais poderosa greve ope­ rária da história mundial (10 milhões de grevistas durante um mês), em maio de 1968, na França, greve “ precedida” e “duplicada” por uma profunda revolta ideológica nos meios estudantis e intelectuais pequeno-burgueses da França; a ocupação da Tchecoslováquia pe­ las tropas de outros países do Pacto de Varsóvia; a guerra da Irlan­ da, etc. A revolução cultural, maio de 1968 e a ocupação da Tche­ coslováquia tiveram repercussões políticas e ideológicas em todo o mundo capitalista. Com o recuo do tempo, pode-se julgar melhor. Lênin dizia: o critério da prática só é verdadeiramente válido se incide sobre um “ processo” de longa duração. Com o recuo de um “experimento prático” que durou 12 anos, 10, ou mesmo 7 anos, pode-se julgar melhor, e ver se se estava certo ou errado e em quê: inclusive em meu nível bastante modesto. Na verdade, éum a excelente ocasião. Noto simplesmente um detalhe: não se fala no artigo de J. Lewis da história política do Movimento operário, Em Pour Marx (1965), falei de Stalin, do XX Congresso e da cisão do Movimento Comunista Internacional. Para J. Lewis, aparentemente, Stalin não existiu; tampouco o XX Congresso, a cisão do Movimento Co­ munista Internacional; ou Maio de 1968; a ocupação da Tchecoslo­ váquia não ocorreu, nem a guerra da Irlanda se verificou. J. Lewis é , um espírito puro; não se rebaixa a falar de política. Quando ele fala de filosofia, fala de filosofia. E mais nada. É preciso dizer que assim procede a maioria dos “ professores de filosofia” em nossa sociedade burguesa. Sobretudo, eles não fa­ lam de política! Não, falam é de filosofia. E mais nada. Por isso, Lênin os tratava, citando Dietzgen, de “ lacaios diplomados” do Es­ tado burguês. Que miséria!_Pois afinal, desde Platão, todos os gran­ des filósofos falaram de política; e também todos os grandes filóso­ fos burgueses, não apenas os materialistas, mas também os idealis­ tas: por exemplo, Hcgel, Eles não o diziam, porém todos desconJíavam, mais ou menos que fazer filosofia c fazer política na teoria; e também tinham coragem de fazer política abcrtamente,/fl/cr/Jí/í? política. Graças a Deus, J. Lewis mudou tudo isso. J. Lewis é marxista e estamos cm 1972: não há mais necessidade de falar de política. Entenda quem puder . _ Agradeço ainda a Marxism Today por conceder amplo espaço à filosofia. É justo conceder-lhe esse espaço. Engels, Lênin, por cer­ to 0 próprio Stalin, e, naturalmente, Gramsci e Mao o disseram: a 16

iuta da classe proletária tem necessidade de fdosofia. Tem necessida­ de não apenas da ciência marxista da história (do materialismo his­ tórico), mas também da fdosojia marxista (do materialismo dialéti­ co). Por qu.ê? Que me seja permitido responder por meio de uma fórmula, cujo fisco (pessoal) por escrevê-la eu assumo; porque a filosofia é. em última instância luta de classe na teoria ^ Tudo isso, como o diria J. Lewis, é perfeitamente “ortodoxo” . Engels, citado por Lênin no Que Fazer?, escrevia em 1874, no prefá­ cio à Guerras Camponesas: há três formas da luta de classe. A forma econômica, a forma política e a forma teórica da luta de classe. Ou, se se prefere: a mesma luta de classe existe e, portanto, deve ser con­ duzida pelo proletariado, sob a direção de seu Partido, na econo­ mia, na política e na teoria. Na teoria, o condensado da luta de clas.sc se chama filosofia. Tudo isso, dir-se-á, são ainda e sempre palavras. Pois bem:tnão o são. Essas palavras são justamente armas para a luta de classe na teoria; e, como a luta de classe na teoria é uma “parte” da luta de classe pura e simples, e como a forma mais alta da luta de classe é a luta^e classe política, as palavras da filosofia são arníãs no comba­ te pofitico. Lênin escreveu que “a política é o condensado da economia” . Poder-se-ia escrever; a filosofia é, em última instância ^ o conden2 Quero precisar bastante: em última instância: para que não me façam dizer o que eu não disse. Eu digo; a filosofia é, çm última instância, luta de classes na teoria - e não; a filosofia é, pura e simplesniénte, luta de elasses na teoria. 3 Para orientar o leitor que poderia ficar desconcertado com essa fórmula, extrema­ mente condensada, dou aqui três indicações: I'') por sua abstração, sua racionalida­ de c sua sistematicidade, a filosodia certamente figura “na” teoria, na vizinhança das ciências, com as quais mantem relações e.spccíficas: mas a filosofia não é (uma) ciên­ cia; .2') ao contrário das ciências, a filosofia mantém uma relação intima com a ten­ dência de classe das ideologias que, em última instância, são práticas e não perten­ cem à teoria ( ^ “ideologias teóricas” seriam, em última instância, destacamentos das ideologias práticas na teoria); 3') em todas essas formulações, a expressão “em última instância” designa “a determinação em última instância”, o aspecto princiipal, 0 “elo decisivo" da determinação: implica, portanto, a existência de um ou vá­ rios aspectos secundários, subordinados, superdeterminados, e superdeterminantes ja que há outros, As.sim, a filosofia não é apenas luta de classes na teoria, nem as ideolo­ gias sáo apenas práticas: mas o são “em última instância” . Talvez nem sempre se tc>< nha apreendido o alcance teórico da tese política de Lênin sobre o “elo decisivo” . Não se trata apenas de escolher, entre os elos preexistentes e já identificados, o “elo decisivo”: a cadeia é feita de tal modo que é preciso inverter a fórmula. Para poder reconhecer c identificar os demais elos da cadeia, em seu devido posto, ê preciso preliminarmente apreendê-la através do elo decisivo. 4 Veja a nota 2.

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sado teórico da política. É uma fórmula esquemática, Que seja! Ela diz muito bem, em três palavras, o que pretende dizer. Tudo o que se passa na filosofia tem, em última instância, não apenas conseqüèncias políticas na teoria, mas também conseqüências políticas na política: na luta de classe política. É o que se vai mostrar logo mais. Decerto, já que cito Engels e Lênin, J. Lewis vai seguramente dizer, mais uma vez, que falo como “o último defensor de uma or­ todoxia ameaçada por graves perigo.s” ^ O.K.! Tento defender essa “ortodoxia” , que se chama a teoria de Marx e de Lênin. Essa orto­ doxia está ameaçada, desde seu nascimento, por “graves perigos”? Perfeitamente: os que provêm da ideologia burguesa. J. Lewis dirá que eu “ prego no deserto”? Não! Os comunistas, quando são marxistas, assim como os marxis­ tas quando são comunistas, jamais pregam no deserto. Todavia,, podem estar relativamente sós. Por quê? Veremos. Assim, é sobre essa base teórica marxista, “ortodoxa” porque conforme á teoria dc Marx e de Lênin, que pretendo discutir tanto •com J, Lewis quanto com meus próprios erros. Sobre a base da ne­ cessidade da luta de classe na teoria, proclamada por Engels e Lê­ nin, e sobre a base da definição da filosofia que proponho hoje (1972): a f i l o s o f i a e m última instância, luta de classe na teoria. Portanto, deixarei de lado todas as observações “psicológicas” que J. Lewis acreditou por bem, na conclusão de seu artigo, consa­ grar ao "estilo de vida e de escrita dc L, Althusser, em -leu conjunto". J. Lewis, por exemplo, como bom “humanista” , está muito alarma­ do, afetado, transtornado, pelo fato de que “L. Althusser argumen­ ta de modo minucioso com um extremo dogmatismo"; e isso lhe faz pensar não nos escolásticos, que eram grandes filósofos da Idade [. Média, mas nos “escoliastas” , nos comentadores dos comentado­ res, nos eruditos, extremamente meticulosos estupidificados por ci­ tações... Muito bem! Essa sutil “psicologia"” não tem lugar num de­ bate entre comunistas. Não seguirei J. Lewis nesse terreno. I Tratarei J, Lewis como camarada, militante de um partido ir­ mão: o Partido Comunista da Grã-Bretanha. Tentarei usar uma linguagem simples, clara, acessível a todos os nossos camaradas. Para não alongar minha resposta^ abordarei^omente as ques­ tões teóricas mais importantes para nós7'politicamenLe falando, ho­ je, em 1972. 5

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Cito expressões do próprio J, Lewis.

Para' compreender minha resposta, é preciso evidentemeníe que o leitor conheça o essencial da crítica “ radical” dc meus “en­ saios filosóficos” por J. Lcwís, i Para resumir essa critica em duas palavras, pode-se dizer o se­ guinte: J^Lewis me reprova: 1'^) por não conhecer a filosofia de Marx; e 2í') por não conhecer a história da formação do pensamento deMarx. Em suma, ele me reprova por não conhecer a teoria marxista. ~É dc seu direito. Portanto, vou responder a esses dois pontos um após o outro.

Primeiro ponto: “L. Althus.ser" não conhece a filosofia de Marx: Para demonstrá-lo, J. Lewis emprega um método simples. Ex­ põe “ a” filosofia de Marx tal como ele a compreende. Põe ao lado a lilosofia de Marx tal como “L. Althusser” a compreende. Basta comparar para logo se ver a diferença! Pois bem; vamos segui^nosso guia em filosofiajnarxista e vejamo.s como J. Lewis resume, em sua”õpinião, a’filosofia de Marx. Para ele, essa filosofia consiste em três fórmulas, que chamarei de três Teses 1. Tese /í“ /. “É o homem que faz a história” . Justificação de J. Lewis: hão há necessidade de justificação, pois isso salta à vista, é evidente, todo mundo pode vê-lo muito hem. Exemplo de J. Lewis: a revolução. Ê o homem que faz a revo­ lução.

6 Propus essa “definiç.ãü" cm um “Curso de filo.soria para cieruislas’’ (19Ú7, :i apa­ recer): "A niosona enuncia proposições ejue são Te.';es" (ao contrário d.is ciências; "iJina ciência enuncia proposições que são demon.straçÕes’’} Nota do editor: o curso de fílosoria p.ira cientistas, aqui citado, foi editado na Fran­ ça em 1974 com o titulo de “ Philosophie et Pliilosophie Spontanée des Savants”

(lv6t)

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2. Tese 2. “O homem faz a história refazendo a história já feita, ‘transcendendo’, por meio da ‘negação da negação’, a história já feita” . Justificação de J. Lewis: já que é o homem que faz a história, para fazer a história o homem deve transformar a história que ele já fez (pois é o homem que faz a história); transformar o que já se fez é “ transcendê-!o” , é negar o que existe; e, como o que existe é a histó­ ria que o homem fez, c negar a história já n eg ^ a. Fazer a história, portanto, é “ negar a negação” da negação da negação; e assim at^o infinito. Exemplo de J. Lewis; a revolução. Para fazer a revolução, o homem “ transcende” (“ nega”) a história existente, que é por sua vez “negação” da história precedente, etc,, 3. Tese rí> i. “O homem eonhece apenas o que ele faz” . Justificação de J. Lewis: nãcL há justificação. Falta de espaço no artigo? Defendamos a causa de J. Lewis. J. Lewis poderia invo­ car a prática cientítica e dizer que o pesquisador “só conhece o que faz” , pois é ele quem '“'faz'' tanto as demonstrações (matemáticas) quanto as provas (experimentais). Exemplo de J. Lewis: não há exemplo. Tentemos ilustrar sua tese. J. Lewis poderia justaraente tomar a história como exemplo: o homenq conhece a história por­ que foi ele que a fez (tese de J. B. Vico = “verum factum”) ’. São essas as três teses que, na opinião de J. Lewis, resumem a filosofia de Marx: Tese I: É o homem que faz a história. Tese 2: O homem faz a história transcendendo a história. Tese n- 3: O homem conhece apenas o que ele faz. Tudo isso é muito simples. Todo o mundo “ compreende” as palavras; homem, fazer, história, conhecer. Há apenas uma palavra um pouco complicada, uma palavra de "filósofos” : a “ transcendên­ cia”, ou “negação da negação” . Se quisesse, porém, LXewis pode­ ria talvez dizer ã~coisa com mais simplicidade. Em vez de dizer “o homem faz a história transcendendo-a por meio da ‘negação da ne­ gação’ ”, poderia dizer: o homem faz a história transformando-a, etc. Será que assim não seria mais simples? Todavia, resta uma pequena dificuldade. Quando J. Lewis diz que é o homem que “ faz” a história, todo mundo o compreende; ou, melhor, todo mundo pensa que compreende, Mas, quando se 7 “É verdajeiro o que foi feilo” , Marx cila Vico numa linha de O Capital (ed. brasi­ leira, Rio, Civilização Brasileira, 1968, Livro I, v. 1, p, 425, noLa), dc passagem, a propósiio da iií.siória da Iccnologia.

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trata de ir um pouco mais longe na explicação, quando J, Lewis se coloca de modo honesto (interiormente), a questão “ cown é que o homem faz para fazer a história?” , então percebemos que havia um problema delicado naquele ponto onde tudo parecia simples, uma certa obscuridade onde"tudo parecia claro. O que era obscuro? A pequena palavra;,/azer(na tese: "é o ho­ mem que füz a história”). Com efeito, que pode querer dizer essa pequena palavra - fazer - quando o que está em jogo, naturalmen­ te, é a hUtória? Pois quando dizemos “ fiz uma tolice” ou “fiz a voI-_ la ao mTíndo” ; ou quando um marceneiro diz “fiz uma mesa", etc., todo mundo sabe bem o que significa fazer. O sentido da palavra muda segundo as expressões: mas, em cada expressão, é possível ex­ plicar o que significa fazer. Por exemplo, quando um marceneiro “faz” uma mesa, isso quer dizer que ele a fabrica. Mas fazer a história? O que poderá ísso querer dizer? Quanto ao marceneiro, nós o conhecemos, Mas o ho­ mem que faz a história, quem é? Você conhece essa “espécie de in­ divíduo” , como dizia Hegel? Então, J. Lewis põe-se a trabalhar. Não foge da dificuldade: enfrenta-a. E nos explica a coisa. Diz-nos: “fazer”, no caso da his­ tória, quer dizer “transcender” (negação da negação), quer dizer transformar a matéria-prima da história existente, superando-a. Pois bem.

V.

Mas o marceneiro que “ faz” uma mesa tem tamhém, diante dele, uma “matéria-prima existente” : a madeira. E transforma a madeira em mesa. Mas J, Lewis jamais diria que o marceneiro “transcende” a madeira para dela “ fazer” uma mesa. E tem razão. Pois, se 0 dissesse, o primeiro marceneiro que aparecesse, assim como todos os marceneiros e trabalhadores do mundo mandariam que ele fosse passear com sua “transcendência” . J. Lewis emprega a “ transcendência” (negação da negação) apenas para a história. Por quê? Em seu artigo, J. Lewis não explica isto. Em minha opinião, J. Lewis se atém à sua “transcendência” pela seguinte razão; é que a “ matéria-prima” da história já é histó­ ria. No caso do marceneiro, sua matéria-prima é madeira. Mas ja ­ mais o marceneiro que “faz” a mesa diria que é ele quem “ faz” a madeira, pois sabe muito bem que a madeira é “produzida pela na­ tureza” ; para que uma árvore possa ser convertida em tábuas, é preciso que tenha inicialmcnte crescido nas florestas, no país ou a milhares de quilômetros abaixo do equador. Ora, para J. Lewis, é o homem quem ,/á fez a história com a qual ele fa z a história; Na história, portanto,' o homem produz tu21

1 I

do: não apenas o resultado, o produto do seu “ trabalho” (a histó­ ria), nias, anteriormente, a matéria-prima que ele transforma (a his­ tória) em história. Aristóteles dizia que o homem é um animal bípe­ de, racional, falante e político. Franklin, citado por marx (em O Capital), dizia que o homem é um íoolmaking animal. J. Lewis é um filósofo de outro tipo. J. Lewis pensa que o homem não é apenas um “ animal que fabrica instrumentos” , mas um animal criador de história, no séntido forte, já que ele faz tudo: “ faz” a matéria-prima (a história), os instrumentos de produção (J. Lewis silencia sobre esse ponto!, o que não é casual, pois do contrário seria obrigado a falar da luta das classes e seu “homem” perderia o peso) e, natural­ mente, o produto final; a história. Você conhece sob~o céu um ser de tal poder? Sim: ele existe na tradição da cultura. É Deus. Só Deus “ faz” a matéria cora a qual “ faz” 0 mundo. Mas há uma diferença muito importante: o Deus.de J. Lewis não está fora do mundo, o homem-deus criador da his­ tória não está fora da história; está dentro. É infinitamente mais complicado. E é porque o pequeno deus humano onipotente de J. Lewis, isto é, o “homem” , está na história (“em situação” , como difia J.-P. Sartre) que J. Lewis lhe atribui não um poder de criação absoluto (quando se cria tudo, é relativamente fácil: nenhuma servi­ dão!), mas algo ainda mais espantoso: o poder de “transcendên­ cia” , a capacidade de negar-superar indefinidamenté para o alto a história constrangedora na qual ele vive, o poder de transcender a história por meio da liberdade humana. ® | O homem comum de J. Lewis é um pequeno deus laico, que como todo mundo (quero dizer, como todos os seres vivos) está “ no banho” , mas que é dotado do prodigioso poder de liberdade de pôr a cada instante a cabeça sempre “em situação” na história, dotado do inusitado poder de “ superar” qualquer situação e de dominar qualquer “situação” , qualquer servidão, de resolver todas as difi­ culdades da história e de dirigir-se para o futuro cantado pela Re­ volução humana e socialista; o homem é, por essência, um animal revolucionário porque é um animal livre. Desculpem-nos, leitores não-filósofos. Nós, filósofos, conhece­ mos essa velha música idealista, Nós, filósofos comunistas, sabe­ mos que essa velha música filosófica sempre teve efeitos políticos.

I 8 Ignoro a história filosófica pessoal de J. Lewis. Mas não arrisco muito se apostar que ele deve sentir um fraco por J.-P, Sartre. A “filosofia marxista’’ de J.L., com efeito,’parece se confundir com uma cópia do cxistencialismo sartriano, levemente hegelianizado, sem dúvida para que possa ser aceito peios leitores comunistas.

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Os primeiros a falar de “ transcendência” em fiiosofia foram os filósofos idealistas-religiosos da Escola de Platão; platônicos e neopiatônicos, Eles tinham uma necessidade vital da “ transcendência” para construírem sua teologia filosófica ou religiosa; e essa teologia era, na época, a filosofia oficial do Estado escravista. Mais tarde, na Idade Média, os teólogos agostinianos c tomistas retomaram a categoria da “ transcendência” , em sistemas que serviam aos inte­ resses da Igreja e do Estado feudal (Igreja; aparelho de Estado e aparelho ideológico de Estado número um do Estado feudal). É preciso dizer algo mais? Muito mais tarde, com a asc.ensào-da burguesia, a “ transcen­ dência” , recebéúT na filosofia hegeliana, uma nova função: sempre a mèsma categoria, mas “envolvida” na-tela de Penèlope da “nega­ ção da negação” i servia dessa feita ao Estado bufguês. Era, sim­ plesmente, 0 nome filosófico da liberdade burguesa. Na época, era revolucionária em relação aos sistemas filosóficos da “transcendên­ cia” feudal: mas era cem por cento burguesa e assim continuou a Desde então, para citar apenas ele (pois a “transcendência” autoritária ou escatológica floresceu depois dele, em nossos dias, em inúmeros teólogos, uns reacionários, outros progressistas, da Alemanha e da Holanda à América Latina, passando pela Espa­ nha), "Jean-Paul Sarlre retomou a coisa, em sua teoria do “homemem-situação” : versão pequeno-burguesa da liberdade burguesa. O burguês já.não tem a mesma necessidade de crer, nem pode mais fa­ zer com que se creia, em 1940-1970, que a liberdade é todopoderosa. Mas o intelectual pequeno-burguês experimenta tal ne­ cessidade! Exalta tanto mais o poder da sua liberdade (“transcen­ dência” , “ negação da negação”) quanto mais ela é esmagada e ne­ gada pelo desenvolvimento do imperialismo, Um pequeno-burguês isolado pode protestar; a coisa não vai muito longe, Quando massas pequeno-burguesas se revpltam, então pode-se ir bem mais longe: mas sua revolta se mede, sé liga ou se choca com as condições obje­ tivas da luta de ciassefe. A liberdade pequeno-burguesa reencontra então a necessidade. J. Lewis retoma por sua conta a velha canção, em 1972, na re­ vista dò Partido Comunista britânico. Que fique tranqililo, se me permite dizer: ele não grita “ no deserto” ! Não é ó único, está em muito numerosa companhia comunista. Todo mundo sabe disso. Mas por que comunistas entóam abertamente, depois dos anos 60, 23

essa filosofia da liberdade pequeno-biirgiiesa declarando-a marxis^ ta? Veremos.

Antes disso, vou por minha vez proceder como J. Lewis. Vou colocar as Teses da filosofia marxista-leninista ao lado das Teses da “filosofia marxista” de J. Lewis. E todo mundo poderá comparar e julgar. Retomarei, pela ordem, as Teses dc J. Lewis. As coisas, desse modo, ficarão mais claras. Faço uma grande concessão a J, Lewis ao repetir a ordem de suas Teses, pois sua ordem é idealista. Mas podemos fazer-lHc esse favor. Para compreender o que segue, vamos estabelecer uma con­ venção: para cada Tese (I, 2, 3), começarei lembrando a Tese de J. Lewis; depois, passarei à Tese do marxismo-lfeninismo. Designarei o marxismo-lcninismo pela sigla M.L. ! I. TESE Ní- 1 J. L.; “É o homem que faz a história” . M.L.: “ São as massas que fazem a história” . -------O que é o “ homem” que “ faz” a história? Mistério O que são as “massas” que “ fazem a história”? Numa socieda­ de de classes, são as massas exploradas, isto é, as ciasses, camadas e categorias sociais exploradas, agrupadas em torno da clksse explo­ rada capaz dc unj-las e de movimentá-las contra as classes domi­ nantes detentoras do poder de Estado. A classe explorada “capaz de não é sempre a classe mais explorada, ou a “camada” social mais miserável.

9 Para nós, que lutamos sob a dominação da burguesia, o “ homem” que faz a his­ tória é um mistério. Ma.s esse "mistério” tinha um sentido quando a burguesia revo­ lucionária lutava contra o feudalismo que a domiiiava, Natjuele momento, proclamar - como o fizeram os grandes Humanistas burgueses - que 9 o homem que faz a histó­ ria era lutar, do ponto dc vista burguês, então revolucionário, contra a Tese religiosa da ideologia feudal: é Deus que faz a história. Mas não estamos mais nessa situação: c 0 ponto de vista burguSs foi sempre idealista em história.

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Assim, na Antiguidade, não foram os escravos, exceto em al­ guns períodos (Espartaco), que “fizeram” a história no sentido for­ te, social e político, do termo; foram, sim, as classes mais,explora­ das entre os homens “livres” (em Roma, a “plebe” urbana ou agrá­ ria) Assim, sob o capitalisríto, o que Marx chamou de “ Lumpenproletariado” agrupa os homens mais miseráveis, os “ Lázaros,da classe assalariada” Mas é em volta do proletariado (a classe ex- ' ' pio rada na produção capitalista) que se agrupam as massas que “fa­ zem a história” e que vão “ fazer a história”; no caso concreto, a re­ volução que irá explodir no “elo mais fraco” da cadeia imperialista mundial, À Tese de J. Lewis (é o homem que faz a história), o M.L. sem­ pre opôs a Tese: são as massas que fazem a história. E, sob o capita­ lismo, as massas não são "a massa” dos aristocratas da “inteligên­ cia” ou dos ideólogos do fascismo, mas o conjunto das classes, ca­ madas, categorias exploradas, agrupadas em torno da ciasse explo­ rada na grande produção, única capaz de uni-las e de conduzir a ação delas ao assalto do Estado burguês: o proletariado. Façam a comparação. 2. TESE Ní- 2 J. Lewis: “O homem faz a história ‘transcendendo’ a história” . M.L.: “A luta das classes é o motor da história” (Tese do Manifesto' Comunista, 1847). Aqui as coisas se tornam extremamente interessantes, pois o M.L. põe em pedaços o sistema filosófico de J. Lewis. Como? J. Lewis dizia: “É o homem que faz a história” . O M.L. acaba de responder: “São as massas”. Se nos detivermos nesse ponto, teremos a impressão de que o M.L. dá uma resposta diferente, mas a uma mesma questão. Essa mesma questão é a seguinte; quem é que faz a história? Essa ques­ tão pressupõe, portanto, que a história é o resultado da ação (fazer) 10 Não c seguro - aqui remeto aos historiadores marxistas que fazem seu trabalho que a clas.se dos escravos não tenha, apesar de tudo, ocultamcnte, “feito a história”. A passagem da escravidão da pequena burguesia à escravidão da grande proprieda­ de, cm Roma, talvez possa testemunhar esse fato. 11 O Capital, ed. brasileira, cit. Livro 1, v, 2, p, 747, Rechaçados da produção, sem trabalho fixo.ou sem trabalho, frcqiientemente na rua, os subproletários fazem parte do éxército de reserva e dc desempregados que o Capital lança contra os trabaihado-

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t de um sujeito (quem?). Para J. Lewis, esse sujeito é o “ homem” . Para o M.L., css^e sujeito são as ma.ssas. Sim e não. Quando demos um breve esboço da definição de massas, quando giramos em volta dessa idéia de massas, percebe­ mos que era mais complicado; com efeito, as massas são várias clas­ ses, camadas e categorias sociais agrupadas num conjunto ao mes­ mo tempo complexo e móvel (as posições de diferentes classes e ca­ madas, bem como de frações de classes no interior das classes, mu­ dam no curso de um mesmo processo histórico ou revolucionário). E trata-se, em nossos paíseS, de dezenas de milhões de homens, ou de centenas de milhões na China! Para limitarmo-nos a este simples argumento, pode-se ainda considerar que estamos tratando de um “sujeito” , identificável pela unidade de sua “personalidade”?. Ao lado do “sujeito” de J. Lewis, o “ homem” , simples e frágil como um belo caniço de pesca ou uma gravura de moda, que se pode se­ gurar pela mão ou apontar com o dedo, o " sujei to” /moí-íos- põe sa­ grados problemas de identidade, de identificação. Qm sujeito é também um ser do qual se pode dizer: “ é ele!” . Diante do “sujei'io"jmassas, como poderemos dizer “é e/e” ? Justamente a Tese do Manifesto (a lula_de.dasses é o motor da história) desloca a questão: põe-nos diante do problema, do princí­ pio’'ddSua justa posição e, portanto, de sua_solução, São as massas que “fazem” a história, mas “ é a luta dê classes que c o moromda história” , À questão de J. Lewis (como é que o homem faz para fa­ zer a história?), o M.L. responde fazendo desaparecer as categorias filosóficas idealistas deli. Lewis para impor outras em seu lugar. Não mais está em jogo o “homem". Sabe-se disso. Porém, em “ a luta de classes é o motor da história” , também não mais está em jogo “ fazer” a história. Não mais está em jogo “ fazer” , ou_seja,jtâo mais está em jogo a questão do sujeita da Tiistófrã: quem c que faz a história?

rclasseso {concQito M.L. nos diz uma coisa inteiramente diversa: é a lula das novo) que é o motor (conceito novo) da história;

que move, que faz avançar, que “ mexe” a história; e realiza as Re- i voluções. Essa Tese é de grande importância: p o rq ^p õ e em primei- j ro plano a luta das ciasses. Na Tese precedente, “são as massas que fazem a história” , acentuavam-se: D) as classes exploradãí^agrupadas em torno da classe etc.; é 2’) seu poder de transformação revolucionária das re­ lações sociais. Portanto, eram as massas que estavam'em primeiro plano. 26

Na Tese do Manifesto, o que aparece em primeiro plano não são apenas as classes exploradas, etc,, mas a luta de classes^ É preci­ so compreender que essa Tese éTJêcisíva para o marxismoleninismo, pois ela traça uma linha de dernarcaçãq radical entre os revolucionano"? e~õsTefcirmistas, Vou simplificar as coisas ao extre­ mo, mas sem trair o essencial. Para os reformistas (mesmo que se declarem marxistas, não é a luta de classes que está em primeiro plano: são_as classes. Tome­ mos um exemplo simples, supondo que não haja senão duas classes em jogo. Para o reformista, as classes existem ames da luta de clas­ ses, um pouco como dois times de futebol existem, cada um de seu lado, antes da partida. Cada classe existe em seu próprio campo, vive em suas próprias condições de existência; uma classe pode até mesmo explorar a outra, mas não se trata ainda da luta de classes. Um dia, as duas classes se encontram cse enfrentam; somente então começa a luta de classe. Trocam socos, o combate se faz agudo c, fi­ nalmente, a classe explorada derrota a outra (é a revolução) ou su­ cumbe na luta (é a contra-revolução). Que sc vire e revire a coisa à vontade, sempre se encontrará a mesma idéia: as classes existem an­ tes da luta de classes, independenlfijriente da luta de classes e a luta de classes existe somente depois ’U' Para os revolucionários, ao contrário, é impossível separar as classes da luta de classes. A luta de classes e a existência das classes são uma só e mesma coisa. Para que haja classes numa “sociedade”, é preciso que a sociedade seja dividida em classes; essa divisão não se faz post fesíum; é a exploração de uma classe por outra e, portan­ to, a luta de classes que constitui a divisão em classes. Pois a explo­ ração já é luta de classes. Assim, é preciso partir da luta das classes 12 Piiru csclHrecê-líi, t preciso iiproximar cssli “ posição” retormista tlc suas origen.s burguesas. Em sua carta a Weydemeyer, cie 5 do março cie 1852, Marx escrevia: "I ... I não me cabe o mérito de haver descoberto, nem a exisiênciq das classes, na .sociedade moderna, nem a lula entre elas. Muito antes de mim. historiadores bur­ gueses já haviam descoberto o desenvolvimento histórico dessa luta entre as ciasses e economistas burgueses haviam descrito sua anatonomia econômica” (Marx-Engels, Obras Escolhidas, Rio Ed. Vitória, 1963, v. 3, p. 253-4). A tese do reconhecimento da exislênda das classes sociais e das lutas de ciasses não é particular ao marxismoleninismo: pois essa tese põe as classes em primeiro plano e a luta dc classes em se­ gundo. Sob^^essa forma, é uma tese burguesa, que naturalmenle alimenta o reformismo. A tese marxista-leninista, ao contrário, põe a iuia de ciasses em primeiro plano. Filosoficamente, isso quer dizer: elc afirma o primado da contradição sobre os contrá­ rios que se enfrentam, que .se opõem. A luta dc classes não é o efeito derivado da existência das classes, que existiríam antes (de direito e de fato) de sua luta; a luta de classes é a forma histórica da contradição (interna a um modo de produção) qucííiVide as classes em classes,

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para compreender a existência e a natureza das classes. Portanto, ê preciso p ô r^ luta de classes em primeiro plano. Mas, então, é preciso submeter a Tese 1 {são as massas qucTazem a história) à Tese 2 (a luta de classes é o motor .daJiistória). Isso signiíica que o poder revolucionário das massas só é poder em fun­ ção da luta de classes. Mas, então, não basta considerar o que sc passa do lado das classes exploradas: é preciso também, e ao mesmo tempo considerar o que se passa ao lado das classes exploradoras. Melhor; é preciso superar a imagem do campo de futebol e, portan­ to, de dois grupos de ciasses que trocam socos, para considerar o que delas faz tanto classes quanto classes antagônicas, a saber, a luta de classes. Primado absoluto da luta de classes (Marx, Lêtiinl, Ja­ mais esquecer a luta de classes (Mao), Mas cuidado com o idealismo! A lu ^ ^ classes não se trava no ar, nem num campo de futebol convencional; está cnrmzada no jnodo de produção e, portanto, no modo de exploração de uma so­ ciedade de classes. É preciso, por conseguinte, considerar a maíçria-^ iidade da luta de classes, sTíã existência materj-al. Essa materialida­ de, em última instância, é a unidade daã Relações de Produção e das Forças Produtivas sob as Relações de Produção de um dado modo dc produção, numa formação social histórica concreta. Essa materialidade é, ao mesmo tempo, a “base” {Basis: Marx) da luta dc classes; c, simultaneamente, é sua existência material, já que é na produção que tem lugar a exploração, é nas condições materiais da exploração que se funda o antagonismo das classes, a luta <;ie clas­ ses. É essa verdade profunda que foi expressa pelo M.L. na conheci­ da Tese da luta de classes na infra-estrutura, ná “ economia”, na ex­ ploração de ciasse; e na Tese do enraizamento de todas as formas da luta de classes na luta de classes econômica. Ê sob essa condição que a tese revolucionária do primado da luta de classes é materialista. Quando isso se torna claro, desaparece a questão do “ sujeito” da história, A história é um imenso sistema “natural-bumano" era movimento, cujo motor é a luta de classes, A história é um proces­ so; e um processo sem sujeito 'b A questão dé sabeTcomó "o homem "faz aJ i i ^ r i a ” desaparece completamentej a teoria marxista rejeita­ rá definili^mente em seu lugar de nascimento; a ideologia burgue­ sa.

!3 Wopus essa categoria em um estudo, Mar.x el Lénine devam Hegel (fevereiro de iy6S), publicado como apêndice a Lénine et Ia Phitosophie, Parts, Maspero, 1972. Para maiores detalhes, ver adiante o texto Observação sobre uma categoria: “Proces.ra .tem Sujeito nem Fim (s)".

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E, com ela, desaparece a “ necessidade” do conceito de ".trans­ cendência” , da qual o homem seria o sujeito. Isso não quer dizer que o M.L, perca de vista um só instante os homens reais., pelo contrário! Porque é para vê~Íos tais como sao e para iihçrtá-los da exploração de classe que o M.L. realiza esta re- ■ volução: desembaraçar-se-vda ideologia burguesa do “ homem” como sujeito da história, desembaraçar-se do fetíchismo do "hor mem". Alguns ficarão indignados porque ouso falar do fetichismo do “homem” . Certamente aqueles que retiram, do capítulo de Marx sobre “o fetichismo da mercadoria” , duas conclusões idealistas ne­ cessariamente complementares: a condenação da “reificação” e a exaltação da pessoa (mas o par p.essga/çpis^ está na base de toda a ideologia burguesa! Mas as relações sociais não são, exceto para o direito e a ideologia jurídica burguesa, “relações entre pessoasll!). Todavia, é o próprio mecanismo da ilusão social que está em jogo, quando se considera que uma relação social é a qualidade natural, o atributo natural de uma substância ou de um sujeito. Ê o caso do va­ lor: essa relação social "aparece” , na ideologia burguesa, como a qualidade natural, o atributo natural da mercadoria ou da moeda. É 0 caso da luta de classes: essa relação social “aparece”, na ideolo­ gia burguesa, como a qualidade natural, o atributo natural do “ ho­ mem” (liberdade, transcendência). Nos dois casos, a relação social é “escamoteada” : a mercadoria ou ò olTro passam a ter valor por natureza; o “ homem” é livre e faz a história por natureza. Se o “homem” de J. Lewis-desaparece, isso não significa que os homens reais desapareçam. Só que cies são, para o M.L., algo intei­ ramente diverso dos exemplares - multiplicados a bel-prazer - da imagem burguesa originária do “homem” , sujeito livre por nature­ za. Será que se prestou atenção às advertências de Marx? “ Meu mé­ todo analítico não parte do homem, mas do período social economi­ camente dado” (“ Sobre Wagner”, Le Capital, Ed. Sociales, t. III, p ., 249). “A sociedade não é composta de indivíduos" {Grundrisse). Uma coisa é certa: não se pode partir do homem, porque isso seria partir de uma idéia burguesa do “ homem”; e porque a idéia de partir do homem, em outras palavras,_aj^d^éia de um ponto de parti­ da _absoluio (= de uma "essência”) pertence à filosofia burguesa? Essa idéia do “ homem”, do qual se deve “partir” como de um pon­ to de partida absoluto, é o pano de fundo de toda ideologia burgue14 Transformação cm coisa {res) de tudo o que c humano, isto é, não-coisa (o homem = não-coisa = Pessoa).

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sa, é a alma inclusive da grande Economia Política clássica. “ O ho­ mem” é um mito da ideologia burguesa; o M.L, não pode partir do “homem” . Ele “parte do período social economicamente dado” : e, no linal de sua análise, pode “chegar" aos homens reais. Esses hoI mens são então o ponto de chegada de uma análise que parte das re­ lações sociais do modo de produção existente, das relações de classe e da luta de classe. Esses homens são homens inteiramente diferen­ tes do “ homem” da ideologia burguesa. , ' ' “A sociedade não é composta de indivíduos”, diz Marx. Com efeito, a .sociedade não é uma “ composição” , uma “adição” de injdivíduos; o que a constitui é o sistema de suas relações sociais, onde vivem, trabalham e lutam seus indivíduos. A sociedade não é com­ posta de indivíduos em geral, de indivíduos quaisquer, que seriam outros tantos exemplares do “homem” ; pois cada sociedade tem seus indivíduos, histórica e socialmente determinados. O indivíduoescravo não é o indivíduo-servo nem o indivíduo-proletário; e o mesmo ocorre com o indivíduo de cada classe dominante corres­ pondente. No mesmo sentido, tampouco uma classe é “ composta” pôr indivíduos quaisquer; cada clas.se tem seus indivíduos, modela­ dos em sua individualidade pelas suas condições de vida, de traba­ lho, de exploração e de luta: pelas relações da luta de classes. Em sua massa, os homens reais são aquilo que deles fazem as condições de classe. E,ssas condições não dependem da “ natureza” burguesa ^ “ homem” : a liberdade. Ao contrário, suas liberdades incluindo as formas e os limites dessas liberdades, incluindo sua vontade de luta, dependem de tais condições. Se a questão do “ homem sujeito da história” desaparece, isso não quer dizer que desapareça a questão da ação política. Muito pelo contrário! A crítica do fetichismo burguês do “ homem” dá a tai questão toda a sua força, submetendo-a ás condições da luta de classes, que não é uma luta individual, mas se torna uma luta dc massas organizada visando a conquista e a transformação revolu­ cionárias do poder de Estado e das relações sociais. Isso não signifi­ ca que a questão do Partido revolucionário desapareça, pois, sem ele, a conquista do poder de Estado pelas massas exploradas, con­ duzidas pelo proletariado, é impossível. Mas isso quer dizer que “ o , papel do indivíduo na história” , a existência, a natureza, a prática e os objetivos do Partido revolucionário não são determinados pela onipotência da “transcendência” , ou seja, pela liberdade do “ hoLS A píitivra “homem” iiâü passa de uma palavra. E o lugar que ocupa e a fuução C|Lic c.serce na ideologia c na filosolia burguesas que lhe conferem seu sentido.

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mcm” , mas por outras condições: pelo estado da luta de classes, pelo estado do Movimento operário, pela ideologia do Movimento operário (pequeno-burgucsa ou proletária), assim como por sua re­ lação com a teoria marxista, por sua linha dc massa e por suas prá­ ticas de massa.

3. TESE N? 3 ■ J. Levis: “O homem conhece apenas o que ele faz". M.L.: “Conhece-se apenas o que é". É intenciònaimente que oponho os termos cm toda a sua vio­ lência: para que se meça a diferença. Para J. Lewis, o “ homem” conhece apenas o que “ faz". Para o materialismo dialético, filosofia do M.L., pode-se conhecer apenas o que é. É a Tese materialista fundamental: “ o primado do ser ■sobre o pensamento” . Essa Tese é ao mesmo tempo Tese de existência, Tese de mate­ rialidade e Tese dc objetividade, Ela afirma que se pode conhecer apenas O que existe; que o princípio de toda existência é a materiali­ dade; e que toda existência é objetiva, isto é, “ anterior” à “subjetivi­ dade” que a conhece e independente dela. _ Conhece-se apenas o que é. Essa Tese, difícil de entender e cujo sentido pode ser facilmente deformado, sustenta todas a,s Teses marxistas sobre o conhecimento. Jamais Marx e Lênin negaram a “atividade” do pensamento, o trabalho de experimentação científi­ ca, desde as ciências da Natnreza até a ciência da História, cujo “la­ boratório” é a luta de clâises. Muito pelo contrário! Marx c Lênin insistiram sòbrc essa atividade.^Chegaram mesmo, quando necessá­ rio, a dizer e repetir que alguns filósofo.s idealistas (por exemplo, Hegel) haviam compreendido melhor, ainda que sob formas “mistificadas”, essa “ atividade” do que alguns filósofos materialistas não ‘dialéticõsTIAtravés desse ponto, atingimos as Teses dialéticas da fi­ losofia marxista. Mas - e é isso o que as separa para sempre de J. Lewis - o M.L. sempre submeteu as Teses dialéticas ao primado das Teses materialistas. Assim, a célebre Tese do primado da prática sobra a teoria: ela só tem sentido submetida à Tese do primado ser sobre o pensamento. Caso contrário, leva ao subjetivismo, ao pragmatismo e ao historicismo. É certamente graças à prática (da qua! a prática científica 6 a forma mais elaborada) que se pode co­ nhecer o que é: primado da prática sobre a teoria. Mas, pa prática, jamais se conhece algo que não seja aquilò que é: primado do ser sobre o pensamento. 31.

“ Conhcce-se apenas o que é” . No caso da natureza, essa afir­ mação não deveria comportar problema: quem pode pretender que o 'iiomem” “ fez” a natureza que ele conhece? Só idealistas; e, mes­ mo assim, uma raça de idealistas delirantes, que atribuiria ao ho­ mem a onipotência de Deus. Mas os próprios idealistas não são tão tolos. E a história? Sabemos que a Tese “ é o homem que faz a histó­ ria” não tem mais sentido; todavia, resta um traço de sua ilusão na idéia de que a história seria mais fácil de conhecer do que a natureza ^__porque nela tudo seria “ humano” , Ê a idéia de J, B. Vico. ’ Nesse ponto, porém, a posição do M.L, è categórica: a história é tào difícil de conhecer quanto a natureza, talvez até mesmo mais difícil. Por quê? Porque “ as massas” não têm com a história a mes­ ma relação prática direta que têm com a natureza (no trabalho da pírodução); porque elas são sempre separadas da história pela ilusão de conhecê-la, já que cada classe exploradora dominante lhes ofere­ ce a explicação da história “ dela” : sob a forma de sua ideologia, que é dominante, que serve a seus interesses de classe, ela cimenta j sua unidade e mantém as massas sob sua exploração. — ■ Vejamos a Idade Média: a Igreja e seus ideólogos ofereciam a todos os fiéis, isto é, em primeiro lugar, a todos os explorados, mas também aos feudais e a si mesmos, uma explicação muito simples e muito clara da história; a história seria feita por Deus e obedeceria às leis, ou seja, aos desígnios da Providência. Uma “ explicação" de massa. v Vejamos o século XVIII na França: a situação é diferente, a burguesia ainda não está no poder, ela é crítica c revolucionária. E oferece a todos os homens (sem distinção de classe! aos burgueses e a seus aliados, mas também a seus próprios explorados) uma expli­ cação “ iluminada” da história: a história é movida pela Razão e obedece às leis, isto é, aos desígnios da Verdade, da Razão-e da Li­ berdade. Uma “ explicação” de massa. Se a história é difícil de conhecer cientificamente, é que entre a história real c as massas há sempre uma cortina, ^ma separação: uma ideologia de classe da história, uma fiiosojia de classe da histó­ ria, na qual as massas humanas crêem “espontaneamente” , já que essa ideologia lhes é inculcada pela classe dominante ou ascendente "' e serve à unidade dessa classe e assegura a sua exploração. Assim, a própria burguesia já é no século XVIII uma classe exploradora. Para chegar a romper essa “cortina” de fumaça ideológica idealista das classes dominantes, foram necessárias as circunstân­ cias excepcionais da primeira metade do século XÍN: a experiência 32

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dasjutas de classe das revoluções na_França (1789, 1830) e das prifneifãs"lu^s de dassè proletárias, mais a Ecolíomia polí^cã inglesã, mais o Socialismo francês. O resultado ddconcursõ”dessas cirEuní' tancialFdra descoberíãde Marx, o qual, pela primeira vez, abriu ao conhecimento científico o “Continente-História” , í Mas, na história cbmo na natureza, o homem conhece apenas o que é e não o que ele “ faz” . Que seja preciso um enorme trabalho científico e gigantescas lutas práticas para chegar a conhecer o que e, em nada altera o fundo das coisas. Conhece-se apenas o que é, mesmo se o que é muda sob o efeito da dialética material da luta de classes, mesmo se o que é só é conhecido na condição de ser transfarmado. 'M a s é preciso ir mais longe. Observou-se que a Tese do M. L. não é “o homem conhece apenas o que é” , mas sim ‘‘'conhecesse ape­ nas o que é” Também aqui o “homem” desapareceu. Deve.^eiijzer, com efeito, que a história da “ produção” dos conhecimentos, assim como a história, é também um p fo c ê ^ s e m sujeito', e que os conhecimentos científicos surgem (na descoberta de um indivíduo determinado, cientista, etc.) como o resultado histórico de unTprocesso dialético, sem Sujeito nem Fim (s), Ê o caso da ciência marxis­ ta: ela surgiu na “ descoberta” de Marx, mas como o resultado de um processo dialético onde se combinaram, contra o pano de fundo das lutas de ciasse burguesa c proletária, a filosofia alemã, a econo­ mia política inglesa e o socialismo francês. Os comunistas sabem disso, Mas 05 cientistas, em geral, não o sabem. Porém, se os comunistas^qüiserempe se forem bastante instruídos em história das ciên­ cias, podem ajudar os cientistas (inclusive os cientistas das ciências da natureza, inclusive os matemáticos) a compreenderem isso, pois todos os conhecimentos científicos, em todos os domínios, são o re­ sultado de um processo sem Sujeito nem Fim (s). Tese abrupta, cer­ tamente difícil de ser compreendida. Mas que pode fornecer “pon­ tos de vista” de uma certa imporlância, não apenas para o trabalho científico, mas também para a luta política.

16 Escrevi “tonhece-se apenas o que é” para não complicar as coisas. Mas pode-seia objetar que csse "sc” impessoal traz a marca do “ homem". Com todo o rigor, se­ ria preciso escrever: “só é conhecido o que é".

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....... Todas essas Teses-filosóficas, essas posições filosóficas (Tese = posição) provocam efeitos nas práticas sociais, e, entre elas, na prática política e na prática científica. íJ Mas é preciso generalizar; não são apenas as Teses filosóficas que acabamos de evocar que provocam tais efeitos, mas todas as Teses filosóficas. Pois se há uma idéia corren tem ente admitida, in­ clusive por marxistas, é ceftamente aquela de uma filosofia que se­ ria pura contemplação, pura especulação desinteressada. Ora, essa idéia dominante é a representação mais interessada que o idealismo dá de si mesmo. Consiste numa mistificação do idealismo, que lhe é necessária, representar a filosofia como puramente especulativa, ^mcTdesvclamentõ puro do Ser, da Origem e do Sentido. Até mes­ mo as filosofias especulativas, até mesmo as filosofias que se con­ tentam em “interpretar o mundo" são ativas e práticas: têm como fi­ nalidade (dissimulada) agir sobre o mundo, sobre o conjunto das práticas sociais, sobre seus domínios e sua “hierarquia” , não fosse senão para “encantá-las” , consagrá-las ou inflecti-las, a fim de pre­ servar ou reformar o “estadõTJe coisas existente” contra as revolu­ ções sociais, políticas, ideológicas, ou contra os contragolpes idéõ^ lógicos das grandes descobertas científicas. As filosofias “especula­ tivas” têm interesse político em fázer crer que são desinteressadas ou são apenas “ morais” , mas não são realmente práticas e políticas, para atingir assim suas finalidades práticas à sombra do poder esta­ belecido, que elas apóiam com seus argumentos. Pouco^mporta sa-' ber se essa estratégia é “consciente” e deliberada ou “ inconsciente” : sabemos que, mesmo em filosofia, não é a consciência que é o mo­ tor da história, Vocês recordam a definição de filosofia que propus, Podemos, portanto, estendê-la a toda filosofia; a filosofia é, em última instân­ cia, luta de classes na teoria. l Se a filosofia é luta de classes na teoria, se depende em última jinstânda da política, ela tem - enquanto filosofia - efeitos políticos: jna prática política, no modo de conduzir “ a análise concreta da si­ tuação concreta” , de definir a linha de massa e as práticas de massa. Mas, se ela é luta de classes na teoria, tem efeitos teóricos: ciên­ cias e também nas ideologip. Se ela é füta de classes na teoria, XettXí efeitos sobre a união da teoria e da prática: sobre q modo de conce­ bê-la e realizá-la. Bem entendido, precisamente por^ausa disso, ela tem efeitos não apenas na prática política e na prática científica, 34

mas também em loãas as práticas sociais ”, quer se trate da “luta pela produção” (Mao), da arte, etc. “ Mas devo me limitar. Contentar-me-ei simplesmente em dizer: como luta de classes na teoria, a filosofia tem dois efeitos princi­ pais: na política e nas ciências, na prática política e na prática cientifica. Isso é algo sabido por todos os comunistas, pois o M, L, não deixou de,repeti-lo e justificá-lo. Pois bem: vamos apresentar, esquematicamente, uma “prova” dessa afirmação opondo as Teses de J. Lewis às Teses do M. L. Isso nos vai permitir representar urn pouco melhor o modo pelo qual “ funciona” a filosofia. Tese de J. Lewis; “ Ê o homem que faz a história” . Tese do M, L.: “ São as massas que fazem a história, a luta de classes é o motor da história” . Vejamos, portanto, os efeitos. I, Efeitos científicos Quando se defende, errt 1972, a Tese idealista segundo a qual “é o homem que faz a história” , que efeitos se produz ou induz com isso na ciência da história? Mais precisamente; pode-se esperar algo dessa Tese no sentido de com ela fazer descobertas científicas? É certarpente lamentável, mas se vê claramente que não é possível retirar da Tese nada de positivo. O próprio J. Lewis nada retira que nos esclareça sobre os mecanismos da luta de classes. 17 J. Lewis tem raz3o ao me criticar nesse ponjo; a filosofia nSo “diz respeito’’ ape­ nas â política e às ciências, mas a todas as práticas sociais. 18 Como esses efeitos se exercem? Essa questào é muito importante. Digamos so­ mente o seguinte: I) a filosofia não é o Saber absoluto, nem a Ciência das Ciências, nem a Ciência das Práticas. O que significa; não detém a Verdade absoluta, nem sobre nenhuma ciência, nem sobre nenhuma prática. Em particular, nào detém nem a Verdade absoluta nem o poder sobre a prática política. O marxismo, ao contrário, afirma o primado da poHdca sobre a filosofia. 2») mas a filosofia não passa a ser, por isso, a "serva da política”, como outrora a filosofia era a "serva da teologia”: e isso por causa de sua posição na teoria e de sua “autonomia relativa”: 3^) a filosofia tem como meta os problemas reais das práticas sociais. Já que não é (uma) ciência, a rela­ ção da filosofia com esses problemas'não é uma relação técnica de aplicação-, A filo­ sofia não fornece fórmulas que seria preciso “aplicar" a problemas: a filosofia não se aplica. A filosofia atua de modo inteira mente diverso. Digamos: modificando a posô ção dos problemas, modificando a relação entre as práticas e seus objetos. Não faço mais que enunciar o princípio, que demandaria longas justificações,

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Dir-se-ía que ele não teve tempo de fazê-lo num artigo. Está bem. Mas nos voltemos para seu Mestre inconfessado, Jean-Paul Sartre, para o filósofo da “ liberdade-humana” , do homem-que-se-projetapara-o-futuro (a transcendência de J. Lcwis), do homem-emsituação que "supera” sua situação pela liberdade do “projeto” . Esse filósofo (que merece o elogio que Marx dirigia a Rousseau: de jamais ter transigido com o poder estabelecido) escreveu duas obras cdrTrideráveis, L ‘Etre et le Nêant (1939) e Critique de la Raison Dialeciique (1960), essa última consagrada a propor uma-filosofia para 0 maxismo. Mais de duas mil páginas. Ora, que retirou J. - P. Sartrê de sua Tese "£ o homem que faz a história” ’’ para a ciência da história? Os engenhosos desenvolvimentos das posições sartrianas permitiram, no final das contas, produzir alguns conhecimentos científicos sobre a economia, a luta de classes, o Estado, o proleta­ riado, as ideologias, etc. - para compreender a história e agir na his­ tória? Infelizmente, temos motivos para desconfiar que não. Mas, nesse caso, dirão: esse é precisamente um exemplo que prova o contrário de sua Tese sobre os efeitos da filosofia, já que você reconhece que essa filosofia “humanista” não teve nenhum efeito sobre o conhecimento científico. Perdão! Eu creio que Teses como as de J. Lewis e de Sartre têm certamente um efeito,.mas ne­ g a d o , pois elas "entravam” - como dizia Lênin das filosofias idea­ listas do 50*^ tempo - o desenvolvimento do conhecimento científico existerite.Jssas Teses obstacuiizam o desenvolvimento do conhecithènto, Êm vez de fazê-lo avançar, fazem antes com que recue: mais precisamente, fazem com que recue aquém das descobertas e das aquisições científicas de Marx e de Lênin, Fázem-nos recuar a uma "filosofia da história” pré-científica, Não é a primeira' vez que algo desse tipo se produz na história da humanidade. Por exemplo: 50 anos após Galileu, 50 anos após a fundação da ciência fisica, havia filósofos que defendiam ainda a “física” aristotéiica! Lutavam contra as descobertas de Galileu c ‘^eriaín_fazerTegredir o~cõnhccim‘ênto da natureza a seu estágio aristotélicq pré-científico, Agora, não mais existe “físico” aristotélico, mas as coisas continuam em outros terrenos; por exemplo, há “ psicójogos” aníifreudianos; e há filósofos da história antimarxistas, que fazem como se Marx não tivesse jamais existido ou não ti­ vesse jamais fundado uma ciência. Podem ser pessoalmente espíri­ tos honestos, podem ihcliísívê~(como é o caso de Sartre) querer 19 As Teses de Sartre são evidente mente mais sutis. PorÉm, a versão delas apresenta­ da por J. Lcwis, por mais esquemática e pobre que seja, não lhes é infiel em essência.

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“prestar serviços” ao marxismo e à psicanálise. Não está emjogo as suas intenções, mas sim os efeiws reais de sua filosofia nessas ciên­ c ia s ^ fato é este: embora ele p"ênse depois de Marx e de Frêüd, SarIre é paradoxaírfíente, sob muitos aspectos, filosoficamente falan­ do, um ideólogo pré-marxjsta e pré-freudiano. Em vez de ajudar a desenvolver as, descobertas'científicas de Marx e de Freud7~ele se empenhá com brilho em seguir pistas que desviam a pesquisa mar­ xista mais do que a servem, É assim que a filosofia “age” sobre as ciências; no limite, ou ajuda-as a produzirem novos conhecimentos científicos, ou tenta riscá-las da existência para levar a humanidade a um estágio no qual essa ou aquela ciência ainda nâo existia. Portanto, a filosofia | atua sobre as ciências ou de maneira progressista, ou de maneira re­ trógrada. No limite: tendenciaimente - pois toda filosofia é sempre contraditória ' Pode-se ver o que está em jogo. Não basta dizer que nada se pode retirar da Tese de.J. Lewis para o conhecimento científico da história. Tampouco basta dizer que essa Tese é um “ obstáculo epistemológico” (Bachelard). É preciso dizer que essa Tese produz, ou pode produzir, efeitos nefastos sobre o conhecimento científico, efeitos retrógrados, já que - em vez de nos permitir em 1972 com-1 preender que possuímos um prodigioso estoque científico, os co­ nhecimentos que Marx nos legou, e desenvolvê-los - cia volta fi­ losoficamente a zero, fazendo-nos retroagir aos bons tempos de Descartes ou Kant e Fichte, de Hegel e de Feuerbach, antes da des­ coberta de Marx, antes do “corte epistemológico” . Essa Tese idea­ lista embaralha as cartas, desvia de seu rumo os filósofosTos cientis-~ tas e os militantes revolucionários. Desama-os, já que os priva des­ sa arma insubstitúíverque é o conhecimento objetivo da^condições7 dos mecanismos c das formas da luta de dasses. —

Se considerarmos agora as Teses do M. L., “ são as massas que fazem a história” , “ a luta de dasses é o motor da história” , o con­ traste é chocante. Essas Teses filosóficas nâo desviam a pesquisa: são Teses para o conhecimento científico da história. Não riscam

\\ 5o,Nâo há nem filosofia idealista nera filosofia materialista absolutamepte puras, porque cada filosofia deve - para ocupar suas próprias posições dê clãsse teóricãs"atacar aquelas de seu principal adversário. Em toda filosofia, é preciso reconhecer a tendência dominante, que resulta de suas contradições e as disfarça. 21 Lênin: Marx nos deu as “ pedras angulares” denjma teoria que devemos “ desen­ volver em todos os sentidos” .

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do ,mapa a ciência da história fundada por Marx, pois essas duas Teses filosóficas são, ao mesmo tempo, proposições demonstradas da ciência da história, do materialismo histórico Elas se relacionam, portanto, com a existência da ciência da história; mas, ao mesjno tempo, sâo Teses para a. produção de no­ vos conceitos, de noVas descobertas científicasj Por exemplo; convi­ dam a definir as massas que fazem a história, em termos de classe. Por exemplo: conduzem a definir a forma de união das classes que 'constituem as massas; colocam - para a luta de classes sob o capitailismo, para a tomada do poder de Estado e para a longa “ transi-^ ção” (no sentido do comunismo) - o proletariado em primeiro pla-_ no. Por exemplo; convidara a pensar a unidade da luta de classes,e da divisão em classes,, bêm como todãsas suãs consequências, nas formas materiais da exploração, da divisão e da organização do tra­ balho, e, por conseguinte, convidam a pesquisar e conhecer essas formas. Por exemplo: levam a definir o proletariado como a classe ,capacitada por suas condições de exploração a dirigir a luta de toidas as ciasses exploradas, bem como a compreender a luta de clas' ses proletária como uma forma de luta sem precedentes na história, inaugurando uma “ nova prática da política” que é o segredo de numerosas questões ainda enigmáticas ou elididas. -;j As consequências teóricas dessas proposições são evidentes. Obrigam, antes de mais nada, a romper com a concepção burguesa, isto é, economicista, da Economia política (“ criticada” enquanto tal "por Marx em O Capital), com a concepção burguesa do E.stado, da política, da ideologia, da cultura, etc. Preparam o terreno para novaVpesquisas e novas descobertas, algumas das quais ameaçam ser surpreendentes. , í( Por um lado, desse modo. Teses filosóficas idealistas que têm efeitos teoricamente retrógrados sobre a ciência da história; por ou,'tro. Teses filosóficas materialistas que têm efeitos teóricos progres­ sistas nos domínios existentes da ciência marxista da história e que. podem ter efeitos revolucionários nos domínios não ainda verda­ deiramente abordados pela ciência da história (por exemplo, na his­ tória das ciências, da arte, da filosofia, etc.). Esse é 0 desafio da luta de classes na teoria. '

22 o fato de que proposições cientificas possaniVãíníiem, no contexto de um debate lllosófico, “funcionar filosoficamente” é algo que mereCe reflexão. 23 Cf. E. Balibar, íia Rectification áiÀ, Manifeste communiste. La Pensée, agosto de 1972. Nota do editor: publicado em livro sob o titulo “Cinq études du materialisme historique”, Maspero, 1974, Paris.

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5, Efeitos políticos _ Penso. que^. nesse domínio,-as coisas são bastante claras, , Como é possível conduzir a luta de classes proletária inspiran­ do-se na Tese filosófica segundo a qual “é o homem que faz a histó­ ria”? Dir-se-á que essa Tese combate a ideologia religiosa de uma história submetida aos decretos de Deus ou aos Fins da Providên­ cia: falando seriamente, não estamos mais nesse nível! Dir-se-á que essa tese serve a todo mundo, indiferentemente: aos capitalistas, aos pequeno-burgueses e aos proletários, já que são todos “ homens” . Não é verdade. Serve àqueles que têm interesse em que se fale do “homem” , e não das riTãss^asfÜo “homem” , e não das classes e da luta de classes". Serve, antes de mais nada, aos bur~ gueses e, acessoriamente, aos peqTTenõ-burgueses. Na Crítiea^^do Programa de Goiha, Marx escrevia; “ Os burgueses têm excelentes razões para atribuirem ao trabalho humano esse poder sobrenatu­ ral de criarão” Por quê? Porque, fazendo Com que os “ homens” creiam que “ fazem a história” , que “ o trabalho é a fonte de toda a riqueza e de toda a cultura” , os burgueses silenciam sobre o poder da " natureza”', em outras palavras, sobre a importância decisiva á&^cõndições naturais, materiais do trabalho humano. E por que os burgueses silenciam sobre essas condições naturais-materiais do trabalho? Simplesmente porque são eles quem as detém. Os burgue­ ses hãõ~sãõ tolos. "Quando se diz aos pholetários que “são os homens que fazem a história”, não há necessidade de ser um grande sábio para com­ preender que, a prazo mais ou menos longo, está-se contribuindo para desorientá-los e desarmá-los. Levam-nos a crer que são onipo­ tentes enquanto “ homens” , quando na verdade estão desarmados enquanto proletários diante da verdadeira onipotência, aquela da burguesia que detém as condições materiais (os n\cios de produção) e políticas (o Estado) que comandam a história. Quando cantam para eles a canção humanista, desviam-nos da luta de classes, impe­ dem que obtenham e exerçam o único poder de que dispõem: o da organização em classe c da organização de cla.fse, os sindicatos e o Partido, que têm por meta conduzir a luta de classes deles e por eles. i

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24 Sublinhado por Marx. Marx criticava então a fórmula dos J Lewis socialistas da época, inscrita no programa de unificação entre o Partido Social democrata alemão e o Partido de Lassalle: “ O trabalho é a fonte de ioda a ricjuezá e (Irt-ioclà a aillura". Ed. brasileira da Crílíco cio Progrãma de Goiha. In; Marx-Engels, Ohras Kccojhida.t. Rio, Editorial Vitória, 1961, v. 2, p. 205-35. |

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Por um lado, portanto, uma Tese filosófica que, direta ou indirctamentc, serve aos interesses políticos da burguesia, inclusive no interior do movimento operário (isso se chama reformismo), inclu­ sive no interior da concepção da teoria marxista (isso se chama revisionismo), com todos os efeitos políticos subseqüentes. Por outro. Teses que ajudam diretameníe os proletários a to­ marem consciência do seu papel, de suas condições de existência, de exploração e de luta: que ajuda a criar organizações de luta de cias­ ses, que tomarão a frente do combate de todos os explorados para arrancar o poder de Estado à biirguesia. Ê necessário algum comentário? .. 'Pouco importa que essas Teses burguesas ou pequenoburguesas sejam defendidas, em 1972, por um militante de um Par­ tido Comunista, Leiam o capítulo III do Manifesto Comunista. E vocês verão que, em 1847, Marx distinguia três espécies de socialis­ mo: o sociafismo reacionário (feudal, pequeno-burguês, humanis­ ta "j, 0 socialismo conservador ou burguês, o socialismo e o comu­ nismo crítico-utópicos. Pode-se escolher! Leiam as grandes polêmi­ cas de Engels e de Lênin sobre a influência da ideologia burguesa nos Partidos operários (reformismo, revisionismo). Pode-se esco­ lher! Resta saber por que, após tantas advertências solenes e tantas experiências com^rovadoras, um comunista, J. Lewis, pôde em 1972 apresentar suas “Teses” como marxistas. Veremos,

Para não reter o leitor, serei breve sobre a segunda crítica de J. Lewis: "L. Althusser” nada compreende da história da formação-dopensamenío de Marx. Aqui devo fazer minha autocrítica e dar razão a J. Lewis num ponto preciso e importante, Com efeito, deixei entender, cm meus primeiros ensaios, que após 0 “ corte epistemológico” de 1845 (após a descoberta através da qual Marx funda a ciência da história) categorias filosóficas como as de alienação e negação da negação (entre outras) teriam de­ saparecido. J. Lewis me responde que não c verdade. E tem razão, Esses conceitos são cerlamente encontrados (direta ouindiretamen40

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te) em A Ideologia Alemã, nos Gnmdrisse (dois textos gue.Marx_não publicou) e também, embora mais raramente (a alienação) e"muito mais raramente (a negação da negação: explicitamente, uma vez), “em 0 C apital^''' J. Lcwis teria maior„embaraço para encontrar esses conceitos no Manifesto, na Miséria "dà Filosofia, em Trabalho Assalariado e Capital, na Contribuição à Crítica da Economia Política, na Crítica do Programa de Gotha, nas Notas sobre Wagner, para citar apenas textos de Marx, já que nos textos políticos ele pode procurar à von­ tade; e, naturaimente, cm Lênin Gramscí e Mao, ele também pode procurar à vontade! Mas, de qualquer modo, formalmente, J, Lewis tem razão. Portanto, é preciso responder-lhe, ainda que ele só tenha razão na condição de deixar de lado os textos que possam embaraçá-lo, Em algumas palavras, minha resposta c a.seguinte: 1. Se considerarmos o conjunto da obra de Marx, é indubitável que existe uma “ruptura” ou um “corte” a partir de 1845. O pró­ prio Marx é quem o diz, Mas não se deve acreditar na palavra de ninguém, nem mesmo de Marx. É preciso julgar sobre os fatos, Orá, toda a_qbra de Marx o demonstra. Em'1845, Marx começa a lançar os fundamentos de uma ciência que não existia antes deie: a ciência ^ a história. E, para tanto, antecipa um certo número de conceitos novos, que“se prêcisãrh"e sêãjustãm ^õucp_a pouco num sistema teóricorconceitos“qüe não eram anteriormente encontrados ern suaãobras juvenis humanistas: liTodo de produção, forças pro­ dutivas, relações de produção, infra-estrutura/superestrutura, ideo-_ logias, etc. Ninguém pode negar esse fato. Se J, Lcwis ainda duvida da realidade desse “ corte” , ou me­ lhor, já que o “corte” é apenas um seu efeito, dessa irrupção de uma ciência nova num universo ainda “ ideológico” ou pré-cÍentífico, en­ tão que compare dois julgamentos de Marx, sobre Feuerbach e sobre Proudhon, Feuerbach é posto nas nuvens nos Manuscritos de 1844, como o filósofo que fez descobertas extraordinárias e que forneceu ao mesmo tempo o fundamento e o princípio da Crítica da economia polífical Ora, um ano mais tarde, nas Teses e na Ideologia Alemã, 26 Pode-se certamente citar a defesa do uso da negação da negação por Engels no Ami-Düheing - que se encontra cm O que são os amigar do povo, dç Lènin. Ma.s c uma defesa bastante particular: anti-hegeliana.

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Feuerbach è criticado sem nenhuma complacência. E de deixa de ter interesse. ' Proudhon é posto nas nuvens em A Sagrada Família (Hns de 1844), como alguém que “não só escreve no interesse dos proletá­ rios, mas é ele próprio um proletário, opçrário. Sua obra é um manifesío' científico do proletariado francês" Em 1847, em Misér^ia da Filosofia, recebe uma surra de vara verde dã qual jamais se recupe^ ra rá r E ele deixa de ter interesse. —’“^ S e é verdade, como diz J. Lewis, que nada se passa a partir de I 1845, se é verdade que tudo isso que eu “conto” sobre o “ corte epis[ temolígico” é uma “ pura e simples história” {a whole siory), dou meu pescoço à força. ,ir>-1

I \ |. 2. Por conseguinte, algo irreversível começa em 1845; o “corte I epistemológico" é um ponto de não-retorno. Começa algo que ja­ mais terá tim Um “corte continuado” , escrevi, o início de um íongo trabalho, e, como em toda ciência, um trabalho aberto porém rude, dramático às vezes, interiormente marcado por eventos teóril'Cos (extensão, retificações, refundições) que dizem respeito'ao co­ nhecimento científico de um objeto definido: as condições, os meca­ nismos e as formas da luta de ciasses. Em termos mais simples, a ciência da história. Pode-se então dizer; essa ciência não sai pronta c acabada da I cabeça de Marx. Ela apenas começa em 1845; e, quando começa, ainda não está liberta de lodo o seu passado, de toda a pré-história ideológica e filosófica de onde surgiu. Não é de surpreender que ela veicule durante um certo tempo noções ideológicas ou categorias fi­ losóficas das quais se libertará mais tarde. Pode-se então dizer: observem os textos de Marx, vejam nas­ cer, retificar-se e desenvolver-se seus conceitos científico.s; e, já que J. Lewis fala disso, vocês verão desaparecer pouco a pouco, parale­ lamente, essas duas categorias filosóficas herdadas do passado e que subsistem como sobrevivências: a alienação e a negação da ne­ gação. Com efeito, tanto mais se avança no tempo, mais essas cate­ gorias se esfumam. O Capital fala apenas uma vez explicitamente da negação da negação; é verdade que utiliza em diversas oportuni27 !,a Sainte Famille, td. Costes, 1, 2, p. 71. 2S I.ínín, falando do estudo do imperialismo: “Esse estudo apenas começou e nâo Inii p!i}, por 5im própria naturCM, çomo é o caso da ciência em geral" M Bancanola

ilii II htli-rnacirmu!). 42

dades o termo alienação, mas tudo isso desaparece complctamente nos últimos textos de Marx e em Lênin, completamcnte Bastaria então dizer; o que serve de prova é a tendência. Tendencialmente, o trabalho científico de Marx o liberta das categorias filosóficas em questão.

3. Todavia, isso não è suficiente. E minha autocrítica é a se­ guinte: Se eu não atentei para o fato assinalado por J. Lewis, para a presença das referidas categorias filosóficas apôs o “corte epistemológíco” , foi por uma razão de fundo teórico: porque identifiquei o “corte epistemológico” (= científico) e a revolução filosófica_úfi Marx. Mais precisamente: eu pensei a revolução filosófica de Marx como idêntica ao “corte epistemológico” . Por conseguinte, pensei a filosofia à luz do modelo de “ a” ciência e, logicamente, escrevi que em 1845 Marx operou um duplo “corte” , científico e filosófico. É um erro. É um exemplo do desvio teoricisía {racionalistaespecuíativo) que denunciei em minha breve autocrítica à edição italiana do Lire le Capital (1967), reproduzido na edição inglesa Muito esquematicamenle, esse erro consiste em crer que a filosofia é uma ciência e que, como toda ciência, tem l*?) um objeto', 2») um começo (o “corte epistemológico” no momento em que surge no universo cultural pré-dentífico, ideológico); e 3v) uma história (comparável á história de uma ciência). Esse erro teoricista encontrou sua expressão mais nítida e mais pura na fórmula; a Filosofia é "Teo­ ria da prática teórica" A partir de então, comecei a “ retificar” as coisas. Hm um curso de filosofia para cientistas que data de 1967, depois cm Lénine et la Philosophie (fevereiro de 1968), avancei outras proposições: Iv) a fiiosofia não é (uma) ciência; 2v) não tem um objeto, no sentido em quê a ciência tem um objeto; 3^) a filosofia não tem história (no sen29 £ predso, tia verdade, não ler mai.s nenhum argumento no bolso para apresentar, como prova da “filosofia humanista" de t.cnin, algumas linhas de A Sagraciu Famí­ lia (1844) que Lênin copiou em seus Cadernos de teituraí J. Lewis não recua diante desse ridículo de “cscoliastu” . 30 E na edição de Ure le Capitai Petite Collection Maspero, 1968, 1. 31 Todas as correções que fiz nessa fórmula (por exemplo: “Teoria da pratica teórica em sua diferença com outras práticas", “Teorias dos processos de produção dos co­ nhecimentos", ' j ... I das condições materiais e sociais dos preessos de produção dos conhecimentos", etc., em Pour Marx c em Z,;>e le.Capilaí) não tocavam no funda­ mento do erro.--------■

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tido em ^ue a ciência tem uma hj^lória); 4?) a filosofia é a política Ita^tcoria. Agora, digo com mais precisão: a filosofia é, em última instância, luta de classes na teoria. Consequências para nossos propósitos: 1. É impossível reduzir a filosofia à ciência, a revolução filosó­ fica de Marx ao "corte epistemológico” . 2. A revolução filosófica de Marx comandou o '“ corte episte­ mológico” de Marx, como uma de suas condições de possibilidade. Certamente, pode-se sustentar com argumentos sérios que, sob todo um aspecto, a filosofia - como disse Hegel e como eu repeti em Lénine ei ia Philosophie - está sempre “em atraso” com relação à ciência ou às ciências. M as,^b_um outro ponto de vista, que aqui é 0 essencial, é preciso dizer o contrário^ e sustentar a idéia de que, na história do pensamento de Marx, a revolução filosófica comandou necessariamente a descoberta científica e forneceu sua forma: a for­ ma de uma ciência revolucionária. No caso de outras ciências, carecemos no mais das vezes de es­ tudos e de demonstrações; mas, no caso de Marx, podemos dizer que tudo se passa “ ao mesmo tempo” : revolução filosófica, corte epistemológico. Mas é a revolução filosófica que comanda o “cortc” científíco. Cõrícretamcnte, isso quer dizer: o jovem Marx, nascido de uma boa família burguesa na Rcnânia, entra na vida ativa como redatorchefe de um jornal da burguesia liberal renana. Estamos em 1841. Ora, esse jovem brilhante e intelectual irá experimentar, em trêsquatro anos, uma revolução fulgurante em política. Irá passar do li­ beralismo radical burguês (1841-42) ao comunismo pequenoburgues (1843-44) e, depois, ao comunismo proletário (1844-45). São fatos incontestáveis. Ora, podemos observar que essa evolução política tem seu duplo quase exatamente numa evolução filosófica. Portanto, em filosofia, e ao mesmo tempo, o jovem Marx irá passar de um neo-hegelianismo subjetivo (de tipo kantiano-fichtiano) ao humanismo teórico (Feuerbach), antes de rechaçá-lo para passar a uma filosofia que não mais se fixa na “ interpretação do mundo” : uma filosofia inédita, materialista-revolucionária. Se aproximarmos a evolução política do jovem Marx de sua evolução filosófica, veremos l^*) que sua evolução filosófica é co­ mandada por sua evolução política; e 2^) que sua_des coberta cientí­ fica (o “ corte”) é comandada por sua cv o l^ão filosófica. Na prática, isso quer dizer: foi porque o jovem Marx'“ acertou contas com sua consciêneia filosófica anterior” (1845), abandonan­ do definitivamente suas posições teóricas de classe burguesa liberal 44

e pequcno-bLrguesa revolucionária a fim de adotar (ainda que so­ mente no princípio, no momento em que ele larga as velhas amar­ ras) novas posições teóricas de classe, rcvolucionário-proletárias, íbi por isso que ele pôde lançar as bases da teoria científica da histó­ ria enquanto história da luta de classes..^6i princípio: pois será pre­ ciso tempo para reconhecèfíe ocupar essas novas posições teóricas de classe, ^ r á preci^ tempo, numa luta incessante para conter a pressão da filosofia burguesa. ^ ~ 4. Partindo disso, torna-se possível explicar a sobrevivência intermitente-de categorias como as de alienação e de negação da ne­ gação, Quero sublinhar: sobrevivência injermitente, Pois além de seu desaparecimento tenSêncíãrna obra de Marx considerada em seu conjunto, é preciso também dar-se conta de um fenômeno estra­ nho: seu desaparecimento em certas obras e seu reaparecimento uííerior. Por exemplo: as duas categorias em questão estão ausentes no Manifesto e na Miséria da filosofia (publicado por Marx em 1847); estão como que dissimuladas na Contribuição à crítica da economia política (publicada por Marx era. 1859); mas, nos Gmndrisse, eshoços de notas de Marx dos anos 1857-58 {não publicados por Marx), trata-se freqCen tem ente da alienação. Sabe-se, através de uma carta a Engels, que Marx tinha “por acaso” relido a Grande Lógica de Hegei em 1858 e ficara fascinado. Em O Capitai, de 1867, ainda se fala de alienação, mas muito menos; da nêg^ação da negação, ape­ nas uma vez. Etc, ”

32 í; necessário ser pruriente com as categorias filosóficas wmadas uma a uina\ pois c menos seu nome que sua fimç.áo no dispositivo teórico onde estão em jogo que deci­ de sobre sua "naturciia”. Uma categoria c idealista ou materialista? Em muitos ca­ sos, É preciso responder com a frase dc Marx; “ dependo” . Todavia, existem como que casos-limites: assim, não consigo ver o que se pode esperar de positivo da cate­ goria de negação da negação, que traz consigo uma carga idealista irremediável. Em troca, a categoria de alienação pode prestar, ao que mc parece, algãns serviçospTOvfsórios, sob uma_dupla condição absoluta; PEde “cortá-la” de qualquer filosofiadaT^Teiflcação" (ou do fctichismo, ou da auto-objetivaçãd), qué^So passa dc uma variante antropológica do idealismo; de pensar a alienação sob o conceito de ex­ ploração. Sob essa dupla condição, a categoria da alienação pode - num primeiro momenio, pois ela desaparece no resultado obtido - desviar dc uma concepção pura­ mente maiemátka, ou seja, economicista, da mais-vaíia-. para introduzir a idéia de que, na exploração, a a mais-valia é inseparável das formas concretas e materiais de sua extorsão. Parece-me que numerosos textos dos Grundrisse e de O Capital têm esse sentido. Mas sei que alguns orientam-se também em outro sentido, muito mais ambíguo.

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!>(; qualquer modo, e sem antecipar os estudos que se deverão reiili/ar a fim ddcompreender a dialética contraditória da formação de Maix c da elaboração de sua obra, resta o seguinte fato: a ciên­ cias marxista da história não progrediu em linha reta, conforme oesquema racionaüsia clássico, isto é, sem males ou conflitos interiu)s, e por si mesma, a partir do “ponto de não-retorno” do “corte epistemológico” . Houve ceríamente um “ponto de não-retorno” ; nuts, para não voltar atrás, é preciso avançar, e, para avançar, tjuantas dificuldades e lutas! Pois, se é verdade que Marx teve de passar para as posições teóricas de classe proletária para poder fun­ dar a ciência da história, ele jamais efetuou essa passagem de um só golpe, nem de uma vez por todas, nem para sempre, Foi preciso eláborar essas posições, conquistando-as sobre e contra o adversário. A batalha filosófica travada, portanto,. prosseguiu no próprio Marx, em sua obra: em torno dos princípios e sob a espécie dos conceitos da ciência revolucionária nova, que era uma de suas me­ las. A ciência marxista conquistou seu terreno tão-somente pouco a \j f pouco, na luta teórica (luta de classe na teoria), em relação estreita '■ “ e constante com a luta de classes propriamente dita. Essa luta du­ rou por toda a vida de Marx, continuou depois dele no Movimento operário, onde dura ainda em nossos dias; luta sem fim. Eode-se então compreender, pelo menos em princípio, a razão dos desaparecimentos e reaparecimentos ulteriores parciais de cer­ tas categorias na obra de Marx: são sobrevivências e tentativas, avanços e recuos na longa luta conjunta para ocupar posições teórica.s de classe c constituir a ciência da história. Portanto, ao dizer que “o corte epistemológico” era primacial c que era ao mesmo tempo ‘‘conc" filosófico, eu enunciava dois er­ ros. Pois, no caso de Marx, é a revolução filosófica que é primacial; e essa revolução não é um “coríe”X: A simples terminologia teórica tem aqui sua importâncTã: se se pode Icgítímamente conservar o ter­ mo “coi te”para designar o começo da ciência da história, o efeito marcante que teve sua irrupção na cultura, aquele ponto de nâoretofno, nãõ~é possível empregar pafã a- filosofia o mesmo termo “corte” . Na história da filosofia, como em muitos longos episódiol^ da lula de classes, não se pode falar verdadeiramente de ponto de não-retorno. Poder-se-á falar, portanto, de “ revolução” filosófica (no cirso de Marx, em sentido forte). Essa expressão é inalsjusta pois, para voltar a evocar aqui as experieficias ,e as ressonâncias da luta de classes, todos sabemos que uma revolução..está sempre ex­ posta a ataques, a recuos e retornos, e até mesmo ao risco da con­ tia-revolução. “ I « •Ui / / ))

Em filosofia, nada_é radkalmenta novq^ já que Teses antigas, retomadas e dêslocádas, sobrevivem e revivem numa nova filosofia, Mas riada é tampouco definitivamente decidido-, há sempre o vai­ vém das tendências antagônicas, “ o reavivar das chamas” ; e as mai! velhas filosofias estão serripre prontas pa^retomar o assalto, disfar ça'das sob novas formas, até mesmo as formas m^is revolucionárias Por que isso acontece? Porque a filosofia é, em última instância luta de classes na teo­ ria; frente ^ classes revolucionárias, há sempre as classes no poder, conservadores e reacionárias; e, mesmo quando não mais detêm o poder dé EstãdOj êssas classes não abdicam de sua ambição de des­ fe ra . De acordo com a conjuntura, defendem seu poder ou vãõ^õ' assalto-do novo poder sob a cobertura dessa ou daquela filosofia; da filosofia que melhor lhesjerve política e ideologicamente mesmo que vêhhã cías profundezas da história; basta “ bricolá-Ias” para que ganhem um verniz de modernidade. No limite, as Tesesjjjo^fi­ cas “ não têm idade” . Foi nesse sentido que eu pude, surpreendentemente, retomar - inflectindo-a - a frase de Marx em Ideologia Ale~mã: “ a filosofia não tem história” . Praticamente, com efeito, basta que - valendo-se do estado da luta de classes - a ideologia burguesa faça uma maior pressão e eis que a filosofia burguesa penetra no marxismo. A luta de ciasses na teoria não é uma simples palavra: é uma realidade, uma terrível rea­ lidade. E, sem ela, não se pode compreender nem a dramática histó­ ria da formação do pensamento de Marx, nem as “graves ameaças” que pesam ainda hoje, em 1972, sobre a ‘hirtodoxia” defendida por um certo número de comunistas, A dramática história de Marx e de seu pensamento quase que .se reduziriam, se fôssemos crer em J. Lewis, a uma ttaqüila carreria universitárialJJm certo Marx teria aparecido no cenário literário e filosófico; com toda naturalidade, ter-se-ia posto a falar de política no Manifesto, depois a falar de economia em O Capital, a fundar e dirigir a 1 Internacional, a advertir contra a in.surreiçâo parisiense e, ‘ depois, no espaço de dois meses, a assumir resolutamente o partido da Comuna de Paris, a lutar cõntra os anarquistas e os proudhorjia-' nos, etc. Tudo isso sem a sombra do menor problema, de um só drama, fora de todos os assaltos da luta, de todas as ameaças e de todas as interrogações, de todos os tormentos da pesquisa da “ ver­ dade” no próprio combate. Como um bom intelectual burguês, ins­ talado em seu pensamento como o era no conforto da sua existên­ cia, Marx teria sempre pensado a mesma coisa, sem revolução nem “ corte” : pensado que "o homem faz a história” , através da “nega47

ção da negação” , etc. Creio poder dizer: é preciso não ter nenhuma experiência ou recusar qualquer espcriência da luta de classes pro­ priamente dita, assim como a luta na teoria, ou mesmo da simples pesquisa científica, para autorizar uma semelhante infantilidade, insultando assim a vida e os sofrimentos de Marx, de todos os co­ munistas (e também de todos os cientistas que descobrem alguma coisa). Ora, não apenas Marx “ descobriu” algo (e com que riscos, e de que importância!), mas foi também um dirigente do Movimento operário durante 35 anos, sempre “ pensou” em meio à luta, pensou e “ descobriu” tão-somente em meio à luta do Movimento operário e através dela. Toda a história do Movimento operário é marcada por crises, dramas e lutas sem fim, Não tenho necessidade de recordar aqui as lutas e os dramas políticos desse Movimento. Mas, no que sc refere apenas à filosofia, é preciso de qualquer modo recordar as grandes iutas de Engels e de Lênin contra a invasão da filosofia burguesa no marxismo e nos partidos operários e a luta contra a invasão do idealismo de Dührlng c de Bernstein, ambos neokantianos e huma­ nistas declarados, cujo revisionismo teórico cobria o reformismo político e o revisionismo político, J. Lewis deve reler as primeiras páginas do Que fazer? Um pequepo intelectual chamado Lênin defendia nelas “ com um extremo dogmatismo... a ortodoxia” de Marx, “ ameaçada por graves peri­ gos” {cito J. Lewis). Sim, Lênin declarava-se orgulhoso por ser ata­ cado como “ dogmático” pela coalizão internacional dos revisionis­ tas “ críticos” , "fabianos ingleses" e "ministerialistas francese.s" à frente! (cito Lênin)rSim Lênin dcclaravã^^orgulhoso por defender a velha “ortodoxia” ameaçada, aquela de Marx. Sim, ele pensava que ela estava còrrendo “graves perigos” : o reformismo c o revisio­ nismo. Comunistas, hoje pensam e fazem o me,smo. Não são certa­ mente muito numerosos, É assim. Por quê? Iremos ver.

7 Temos de responder a duas questões: 48

1, Por que comunistas como J. Lewis (e eles são muito numero­ sos) podem, em 1972, desenvolver abertamente em revistas comu­ nistas uma filosofia que declaram ser marxista, mas que é simples­ mente uma variante da filosofia idealista burguesa? 2. Por que os filósofoVcoraunistas que tentam defender a filo­ sofia de Marx são poucos numerosos? Para responder a essas duas questões, que são uma só e mesma questão, é preciso - sem querer desagradar a J. Lewis ~ fazer um pouco dè história política. Apresentei os princípios de tal resposta em Pour Marx. Mas J, Lewis não deu atenção às páginas políticas de Pour Marx. J. Lewis é um espírito puro. Não obstante, qualifiquei muito claramente os artigos recolhi­ dos em Pour Marx como intervenções filosóficas numa conjuntura política e ideológica dominada pelo XX Congresso e pela “ cisão” do Movimento Comunista Internacional Se me foi possível in­ tervir daquela maneira, foi porque o fiz depois do XX Congresso. Com efeito, antes do XX Congresso, não era absolutamente possível a um filósofo comunista, pelo menos na França, publicar textos filosóficos (um pouco) próximos da política, a não ser que fossem comentários pragmatislas das fórmulas consagradas. Va­ mos dar ao XX Congresso o que lhe pertence: doravante é possí­ vel; e, para falar apenas do Partido francês, ele reconheceu no curso, da sessão do Comitê Centrai em Argenteuil (1966) o direito à pes­ quisa e à expressão filosófica para seus aderentes. _Mas “a crítica dos erros” de Stalin foi formulada, no XX Congresso, em termos tais que inevitavelmente conduziu ao que se deve denunciar como um descncadeamenlo de temas ideológicos e filosóficos burgue.se.s nos próprios partidos comunistas: entre os in­ telectuais comunistas, em primeiro lugar; mas também, fora dos in­ telectuais, entre certos dirigentes e também em certas direções. Por que? Porque a “crítica dos erros” de Stalin (alguns_d^ quais - e em que número! - revelaram-se como crimes) foÍ conduzida de uma maneira estranha ao marxismo.

33Cf. ü prefácio de Pour .Wtyr.vj ed. brasileira: Análise Crítica da Teoria Marxista, Rio, Zahar Editores, Ib&S, p.7 e Segsj.

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o XX Congresso criticou e denunciou “ o culto da personalidade”(o culto em geral, a personalidade em geral,..); e resumiu os er­ ros de Stalin no conceito de “violação da legalidade socialista” . Q XX Congresso, portanto, contentou-se em denunciar os fatos resul­ tantes das práticas da superestruíura jurídica, mas sem relacioná-los, como deve fazer a análise marxista para qualífica'-los, í) com o res­ tante da superestrutura soviética, isto é, antes de tudo o Estado e o Partido; e 2) com a infra-estrutura, a saber, com as relações de pro­ dução, as relações de classe e as formas da luta de classes na URSS Em vez de relacionar as "violações da legalidade socialista” com 1) o Estado, mais o Partido, e 2) as relações de ciasse e as lutas de classe, o XX Congresso relacionou-as com... “o culto da perso­ nalidade” , óu" seja, com um conceito do qual já disse - em Pour Marx - que “ não é encontrável” na teoria marxista e do qual podese dizer agora que é perfcitamenle “encontrável” em outro lugar: na filosofia e na ideologia psico-sociologista burguesas. Quando, desse modo, coloca-se oficialmente os filósofos coI munistas e outros “ intelectuais” comunistas na “ órbita” da ideolo­ gia e da fiosofia burguesas, para “ criticar” os “erros” de um regime com o qual eles (também) sofreram profundamente, não é de se es­ pantar que os próprios filósofos e intelectuais comunistas se angajem com a maior naturalidade no caminho da filosofia burguesa, já que esse caminho foi inteiramente aberto diante deles! Não c de surpreender que eles fabriquem suii^pequena filOsofia marxista bflrguesa dos Direitos do Homem exaltando o Homem e seus Direitos, 0 primeiro dos guais é a liberdade e seu reverso: a alienação. Bem entendido, encontra-se apoio nas obras da juventude de Marx, que estão aí para isso; e segue-se em frente rumo ao humanismo em to­ das as suas formas - o humanismo “integral” à Garaudy, o huma­ nismo puro e simples à J. Lewis, o humanismo “verdadeiro” , o hu34 Lênin; “Em teoria, é fora dc dúvida que um certo período de transição se situa en­ tre o capitalismo e o comuni.smo. Ele deve forçosamenle reunir os traço.? ou as parti­ cularidades próprias a essas duas estruturas econômicas da sociedade, Esse período de transição não pode deixar de ser uma fase de luta entre a agonia do capitalismo e 0 na.seimento do comunismo; ou, em. outras palavras; entre o capitalismo-vcncido, mas não aniquilado, e 0 comunismo já nascido, mas ainda muito fraco, | ... | As clas­ ses permanecem e permanecerão na época da ditadura do proletariado. ]... | As clas­ se.? permanecera, mas cada uma delas se modificqu^na época da ditadura do proleta­ riado; as relações entre elas também se modificaram. A luta dc cia.sses não desapare­ ce sob a ditadura do proletariado; simplesmente assume novas formas” (Uéconomie í’l Ia púUtique à iápaque de Ia dictadurc du prolélaríat. In: OEuvres Complèles. ed. fr!ince,sa, Pari.s-Moscou, 30, p. 103, III). 50

manismo “ real” de alguns outros e, por que não? o último a surgir,, òjíróprio humanismo “científico” , ^ n tre as variantes da íllosofla da Liberdade humana, cada filósofo tem evidentemente o direito 33 escolher livremente sua variedade de humanismo! Todavia,' deve-se ter cuidado para não confundir o que, politi­ camente, não pode ser confundido, quando os fatos não tem uma medida comum. As reações teóricas humanistas de intelectuais filó­ sofos-comunistas no Ocidente, e mesmo nos países do Leste, são uma coisa. Mas seria politicamente grave pretender julgar e conde­ nar, por causa de um adjetivo (“humano”) algo como ''osocialismo de rosto humano'’, no qual as massas tchecas expressaram, embora a forma fosse por vezes confusa, seus protestos e aspirações classistas e nacionais. Seria politicamente grave confundir esse movimento nacional de massa com as elucubrações humanistas de nossos filó­ sofos ocidentais, inclusive os comunistas (ou com a desse ou daque­ le filósofo do Leste). Havia numerosos intelectuais no movimento nacional de massa tcheco, mas no fundo esse movimento não era um "movimento de intelectuais” , e sim um movimento popular. O que o povo tcheco queria era o socialismo na independência nacio­ nal, não o humanismo; queria um socialismo cujo rosto (e não cujo corpo: não se fala de corpo na fórmula) não fosse desfigurado por práticas indignas, tanto dele (do povo tcheco - povo de alta cultura política) quanto do socialismo. O movimento nacional de massa do povo tcheco, embora tenha sido reduzido ao silêncio (a resistência prossegue em silencio), merece o respeito e o apoio de todos os co­ munistas. Exatamente do mesmo modo como das filosofias “ huma­ nistas” ou as filosofias do “ humanismo marxista” , quer seja ele “verdadeiro” ou “científico” , dos intelectuais ocidentais (bem ins­ talados em suas cátedras ou em outros lugares) merecem a crítica de todos os comunistas. Ê por isso que existem os J. Lewis nos Partidos Comunistas ocidentais (e não só nos ocidentais). E é por isso que eles são tão numerosos. E é por isso que há nesses Partidos filósofos comunistas que marcham contra uma certa corrente. E é por isso que eles são pou­ cos numerosos. E é por isso ainda que eu afirmo, mais uma vez, e por razões diretamente políticas: obrigado a Marxism Today, revista do Par­ tido Comunista da Grã-Bretanha, que aceita publicar minha res­ posta. ____ ____ Paris, 4 de julho de 1972 5)

Nota sobre “A CRÍTICA DO CULTO DA PERSONALIDADE”^

Nem por um instante aparece em J. Lewis a idéia de que “ a filosofia está unida à política como os dentes aos lábios” , que em “ última instância” o objetivo, longínquo mas muito próximo, das Teses filosóficas são problemas ou debates políticos da história real, e que todo texto filosófico (inclusive o dele) é “em última instância” lambêm uma intervenção política na conjuntura teórica c, por um de seus efeitos, hoje o principal, também uma intervenção teórica na conjuntura política. Nem por um instante lhe devem a idéia de in­ dagar sobre a conjuntura política na qual foram escritos os meus textos (e 0 ddc), nem em vista de que “efeitos” teórico-políticos fo­ ram concebidos e publicados, no quadro de que debates teóricos e de que conflitos políticos esse empreendimento foi conduzido e quais foram os seus ecos, J. Lewis não é obrigado a conhecer detalhadamente a história política e filosófica francesa, os detalhes da luta de idéias, até mes­ mo minúsculos, até mesmo errados, no interior do Partido Comu­ nista Francês após a guerra e entre 1960 e 1965, Mas mesmo assim! Todos nós, comunistas, temos uma história comum: uma longa, ru­ de, exaltante e dolorosa história comum, aquela que dependia em grande parte da IIP Internacional, dominada após os anos 30 pela “ linha” c pela direção políticas de Stalin. Todos nós comunistas, ti52

vemos em comum íis Frentes Populares, a Guerra da Espanha, a guerra e a resistência antifascista, a Revolução Chinesa - mas tam­ bém a “ciência” de Lissenko, que não passava de ideologia, e algu­ mas fórmulas ,e palavras de ordem declaradas “cienlificas” , que eram apenas "ideológicas” mas cobriam práticas bastante particu­ lares'h Todos nós, comunistas, tivemós em comum a "crítica do culto da personalidade” realizada por Kruschev no XX? Congres­ so, assim como a experiência da cisão do Movimento comunista in­ ternacional. Todos nós, comunistas, tivemos em comum o que quer que pensemos disso a Revolução cultural chinesa e o Maio de 1968 na França, Em suma, peripécias, das quais seria possível abstrair totalniente, em 1972, para “filosofar” entre comunistas... N ãoé um procedimento sério. Pois, finaimentc, haverá um dia em que será preciso que se tente e se aceite chamar as coisas por seu nome', e, para isso, pesquisar cuidadosamente, como marxistas ainda que seja necessário precisá-lo enquanto se avança - o nome, ou melhor, o conceito que elas merecem, a fim de que nossa história se nos torne inteligivel. Com efeito, não mais que a história de Marx, não mais que a história trágica e gloriosa dos 20 primeiros anos do século, tampouco nossa história é um rio tranquilo, corren­ do entre margens seguras c traçadas previamente, Para não remon­ tar às origens, para falar apenas dc um passado próximo, do qual não somente a lembrança, mas também a sombra que trouxe ainda' cobre nosso presente, ninguém pode negar que vivemos durante 30 anos - anos cujas experiências, cujo heroísmo e cujos dramas ainda estão conosco, - sob a dominação de uma política inspirada e mar­ cada por uma linha e por práticas que, na ausência de um conceito, devemos designar com um nome próprio; “stalinistas” , E será que as deixamos para trás, com toda naturalidade, com a morte de Stalin e graças à virtude (e às conscqüências) de uma simples palavra, “oulto da personalidade” , pronunciada no XX Congresso do P.C, da URSS como a “ última palavra” (em todos os sentidos) da ques­ tão? Escrevi nos anos 60, num texto filosófico que J. Lewis tem sob a vista, que o conceito do “culto da personalidade” era um "concei­ to não encentrável na teoria marxista", que não tinha o menor valor de conhecimento, que não explicava nada e nos deixava na escuri­ dão. Era e continua a ser bastante claro. 35 Apenas alguns exemplos para continuarmos no plano teórico. O evolucionismo economicista de Maieriatis/no dialético e Materialismo histórico, de Stalin O eseamoteamento do papel histórico de Trotski e de outros na Revolução Boichevique {História do P:C:\b\ da URSS. A tese do agravamento da lula de classes sob o socia­ lismo. A fórmula: "tudo depende dos quadros”, etc. Entre nós: a tese “ciência burguesa/ciência proletária” , a tese da “pauperização absoluta", etc.

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“ Um conceito encontrável na teoria marxista” . De qualquer modo, isso tem de ser reconhecido. Tal como foi apresentado e uti­ lizado, tanto teórica quanto politicamente, o conceito de “ culto da personalidade” não era um simples nome para uma coisa: não se contentava cm designar fatos (os "abusos” , as “ violações da legali­ dade socialista” ). Continha ao mesmo tempo - pois isso lhe era abertamente atribuído - pretensões teóricas (explicativas): era en­ carregado de explicar a “essência” dos fatos que designava. Foi cer­ tamente desse modo que tal expressão foi politicamente utilizada. Ora, esse pseudoconceito - pronunciado na solenidade dramá­ tica que todos conhecem - denunciava determinadas práticas; “ abusos” , “erros” e em certos casos, “crimes” . Nada explicava acerca de suas condições, de suas causas; em suma, de sua determinação interna e, consequentemente, de suas formas Mas, em troca, como tinha a pretensão de explicar o que na verdade não explicava, esse conceito não podia senão desencaminhar aqueles a quem deve­ ria edificar. É preciso falar ainda mais claramente? Reduzir os gra­ ves eventos de 30 anos de história soviética e comunista a essa pseudo-explicação mediante o “culto” , não podia ser o erro ou o lapso de um intelectual anti-religioso: era, como todos sabemos, um ate político de dirigentes responsáveis, um certo modo unilateral de co­ locar os problemas, não do que vulgarmente se chama de “ stalinismo” , mas do que me parece necessário designar - a não ser que nos recusemos a pensar - com um conceito, ainda que provisório: o des­ vio "stalinista" ” , E, por isso mesmo, era também um certo modo JfiPara o marxismo, a explicação de todo feniímeno é, em última instância, iníertm: É a “contradição" iníenta que é “ motriz’’. As circunstâncias externas agem: mas através do “relê’ da contradição interna, que elas superdeterrninam. Por que essa precisão'; Porque ccrlos comunistas, considerando a “explicação” pelo “ culto” mui­ to pobre, imaginaram acrescentar-1 lies um suplemento, que só podia ser externo', por ' exemplo, a explicação mediante o cerco capitalista, cuja realidade ninguém pode ne­ gar, O marxismo não gosta dos suplementos: quando se tem necessidade de um su­ plemento, há o risüo de que não se tenha captado a causa interna. 37 A designação “o stalinismo” , que foi evitada pelos dirigentes soviéticos, mas que era amplamente divulgada entre os ideólogos burgueses e os tròtskistas, antes de conquistar também os meios comunistas, apresenta grosso modo os mesmos “ incon­ venientes" que o termo “culto da personalidade” . Designa uma realidade, cuja expe­ riência direta e trágica, ou indireta e mais ou menos grave, foi feita em primeiro lu­ gar por inúmeros comunistas. Ora, essa designação apresenta também pretensões teóricas: entre os ideólogos burgueses c entre numerosos tròtskistas. Mas ela não ex­ plica nada. Para pôr-se na via dc uma explicaçâo^marxista, para poder colocar o problema da explicação desses fatos, a menor coisa que se exige é apresentar concei­ tos marxistas e ver se são convenientes. É por isso que proponho.o conceito de "des­ vio", perfeitamente "encontrãver na teoria marxista-leninista. Poder-se-ia também falar, num primeiro momento, de desvio "stalinista"'. num primeiro momento, já que

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de não colocar os problemas. Müis, precisamente: era ( e continira a ser) um modo de buscar as causas de eventos graves e de suas for­ mas em certos- defeitos das práticas da superestrutura jurídica (“ as violações da legalidade socialista”), mas sem pôr em questão - e para fatos de certa gravidade e dc certa duração (ainda que fosse a título de hipótese!) - o conjunto dos Aparelhos de Estado que for­ mam a Superestrutura (o Aparelho repressivo, os Aparelhos ideoló­ gicos e, portanto, o Partido), e, sobretudo, sèm tocar na raizrnás contradições da construção do socialismo e de sua linha, isto é, nas formas existentes das relações de produção, nas relações de classe e na luta de. classes, a qual foi então declarada, segundo uma fórmula não desmentida, como já “superada” na URSS. É nesse ponto, contudo, que é preciso investigar, para encontrá-las, as causas mternas dos fatos do “ culto” , correndo-se o risco de descobrir outros fa—tas7'~~' Decerto, nem tudo está em tudo a todo momento - essa tese não é marxista - e não é necessário convocar toda a infra-estrutura e toda a superestrutura para ajustar um simples detalhe jurídico, se se trata apenas de um detalhe, e um detalhe Jurídico. Mas o desvio “stalinista" será um detalhe, e um simples detalhe jurídico!? Certa­ mente não se pode a qualquer momento e num instante refazer o que foi desfeito em anos - essa tese não é marxista. Por certo,,há edifícios históricos de tal modo imbricados e apoiados nas paredes das casas vizinhas, que os cercam e sustentam, que não se pode sim­ ples e brutalmente “ demoií-los” se se quer libertá-lqs e separá-los; é preciso às vezes proceder “ com precaução” . Mas ás precauções do XX Congresso! Tal co.mo nos foi revelado, nos termos de declarações oficiais, que assinalavam certos fatos, mas sem chegar, na ausência de expli; cações marxistas, a diferenciar-se de denúncias bem anteriores, as da ideologia burguesa mais anticomunista e as da teoria trotskista "anti-staiinista” ; tal como nos foi revelado, circunscrito simf)lesmente às “violações da legalidade socialista” , quando na Verdade os comunistas da URSS e do mundo tinham dele uma experiência infi­ nitamente mais “ampla” - nesses termos, o desvio “ stalinista” po-

falar de desvio obriga inevitavelmente, num segundo momento, a quaUfcà-h. a dizer em que ele consistiu; e sempre em termos marxistas. Uma coisa, no estágio dessas in­ dicações, deve ficar claro; falar de um desyio “stalinista" não é expücá-lo por um in­ divíduo que seria stia “causa” . O adjetivo designa certamente um homem histórico; mas, antes de mais nada, todo um período determinado do Movimento operário in­ ternacional .

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dia, em seu limite, provocar, além de sua exploração “ clássica” pe­ los anticomunistas e anti-sovicticos, tão-somente duas atitudes possNeis. Uma crítica de esquerda, que aceitando falar de desvio, ainda que muito contraditoriamente, se lança, para qualificá-lo, à pesquisa séria de suas causas históricas fundamentais, - ou seja, com o perdão de J. Lewis, não ao Homem (ou à Personalidade), mas à Superestrutura, às relações de produção, e, portanto, ao esta­ do das relações de classe e das lutas de classe na URSS - uma crítica que pode então, mas somente então, falar com conhecimento de causa não apenas do Direito violado, mas das razões de sua viola­ ção. Ou uma crítica de direita, que se atém e se limita a certos aspec­ tos da superestrutura jurídica, podendo então, certamente, invocar o Homem c seus Direitos, e opor o Homem à violação de seus Di­ reitos (ou os simples “conselhos operários” à “ burocracia”). O fato é que, praticamente, sempre se escutou apenas uma úni­ ca crítica, a segunda. E a fórmula oficial da crítica do “ culto” , das “violações da legalidade socialista” , longe de rechaçar o anticomu­ nismo burguês mais violento, longe de manter à distância o antistalinismo trotskista, fornece-lhes um argumento histórico inespe­ rado: um argumento no qual ambos encontram uma justificação, um segundo alento e uma segunda vida. O que explica, diga-se de passagem, não poucos fenômenos de aparência paradoxal como, por exemplo, 50 anos depois da Revolução de Outubro e 20 anos depois da Revolução Chinesa, o fortalecimento de Organizações que subsistèm há 40 anos sem terem obtido nenhuma vitória histórica (pois,l ao contrário dos “esquerdismos” atuais, elas são organiza­ ções e têm uma teoria); as Organizações trotskistas. Sem falar da “eficácia” do anti-sovietismo burguês, 30 anos depois de Stalingrado! Quaisquer que fossem, não tivemos de esperar muito tempo para ver a crítica ^oficial do desvio “ stalinista” pelo “culto da perso­ nalidade” produzir, nessa conjuntura, seus inevitáveis efeitos ideo­ lógicos. Após 0 XX Congresso, uma onda abertamente direitista se espalhou entre os “ intelectuais” marxistas e comunistas (para falar­ mos apenas deles); e não apenas nos países capitalistas: também nos países socialistas. Não .se trata apenas de fazer,um amálgama sumá­ rio entre os intelectuais dos países socialistas cos marxistas ociden­ tais; e, com mais forte razão, entre o protesto político de massa do “socialismo com rosto humano" de nossos camaradas de Praga e o “ humanismo integral" de Garaudy ou de outro qualquer. Lá, não se tinha a mesma escolha das palavras (as palavras não tinham o mesmo sentido), nem a escolha dos caminhos. Mas aqui! Retoma.- _ 56

se dos socialdemocratas e dos religiosos (que, até então, tinham um monopólio pralicamente garantido) a exploração das obras da ju­ ventude de Marx, para delas extrair uma ideologia do Homem, da Liberdade, da Alienação, da Transcendência, etc., sem investigar, se 0 sistema dessas noções' idealista ou materialista, se essa ideo­ logia era pequeno-burguesa ou proletária. A "ortodoxia’, como diz J. Lewis, foi quase submergida por tais noções: não o “pensamen­ to” de Stalin (que continuou e continua a se manter muito bem lon­ ge dessa algazarra, em suas bases, sua “linha” e algumas de suas práticas), mas pura e simplesmente a teoria de Marx e de Lênin. Foi em tais condições que me coube intervir, graças ao “aca­ so” (digamos assim) de uma resenha sobre artigos soviéticos e ale­ mães orientais traduzidos em francês intitulada “Sur le Jeune Marx” , na revista La Pensée, em 1960: para tentar combater, à mi­ nha maneira e com os meios disponíveis, ao criticar algumas idéias recebidas e ao colocar alguns problemas, o contágio que “ ameaça­ va” . É verdade. No início, éramos pouco numerosos, e J. Lewis tem razão: “nós” falávamos “no deserto” , ou naquilo que alguns po­ dem crer ser “o deserto” . Mas c preciso desconfiar desse tipo de “ deserto” : ou, melhor, saber confiar nele. Na realidade, jamais “nós” estivemos sós. Os comunistas nunca estão sós. Então, contra as interpretações idealistas-direitistas da teoria marxista como “filosofia do homem” , do marxismo como huma­ nismo teórico; contra a confusão tendenciosa, ora positivista ora subjetivista, da ciência e da “ filosofia” marxista; contra o historieis-' mo rclativista, oportunista de direita ou de esquerda; contra a redu­ ção cvolucionista da dialética materialista à dialética “ hegeliana” ; e, de modo geral, contra as posições burguesas e pequenoburguesas, tentei defender - nós tentamos defender - a todo custo, ao preço de imprudências e de erros, algumas idéias vitais que po­ dem todas resumir-se numa só: a especificidade radical de Marx, sua novidade revolucionária, ao mesmo tempo teórica e política, em face da ideologia burguesa e pequeno-burguesa, aquela com a qual ele teve de romper para tornar-se comunista e fundar a ciência da história, aquela com a qual, ainda hoje, e sempre, devemos, rom­ per para nos tornarmos, nos mantermos ou voltarmos a ser marxis­ tas. As formas podem ter mudado, mas o essencial se mantém, há 150 anos ou mais, substancialmente o mesmo. Essa ideologia bur­ guesa - que é a ideologia dominante e que recai com todo o seu p.eso sobre o Movimento operário e o ameaça em suas obras vivas, no caso dele não lutar resolutamente contra ela a partir de suas pró­ 57

prias posições, exteriores e estranhas a ela, já que proletárias - essa ideologia burguesa é constituída, em sua essência mais intima, pelo par economicismo/humanismo. Por trás das categorias abstratas da, filosofia que lhe servia de título e de adorno, era contra esse par que eu me voltava, atacando conjuntamente tanto o humanismo teórico (digo bem, teórico, não uma palavra ou algumas frases, ou mesmo perspectivas generosas, mas um discurso filosófico no qual o “ ho­ mem” é uma categoria com função teórica) quanto, através das for­ mas vulgares do hegelianismo ou do evolucionismo, que com ele fa­ zem o corpo, 0 economicismo. I Pois ninguém (pelo menos nenhum marxista revolucionário) pode enganar-se a esse respeito depois de Marx; quando as litanias humanistas ocupam, em plena luta dc classes, o primeiro plano do palco teórico e ideológico, no fundo da cena é sempre o eccnomicismo que triunfa. Mesmo quando, sob o feudalismo, a ideologia hu­ manista era revolucionária, não deixou nunca de ser profundamen­ te burguesa. Numa sociedade de classes burguesa, essa ideologia sempre encobriu - e-continua a encobrir - práticas econômicas e economici.stas de clase, comandadas pelas relações de produção, de exploração e de troca, bem como pelo direito burguês. Numa socie­ dade de classes burguesa, a ideologia humanista - quando não é um acidente da escrita ou uma flor de retórica política, quando é dura­ doura e orgânica - corre sempre o risco de encobrir, nas organiza­ ções operárias, que não escapam ao contágio da ideologia domi­ nante, uma tendência economici.sía, contrária em seu próprio principio às posições de classe proletárias. Toda a história dos Di­ reitos do Homem, denunciada em O Capital, testemunha isto: por trás do Homem, é Bentham quem triunfa ” , Toda uma parte da his­ tória da II Internacional, cuja tendência dominante foi denunciada por Lênin, testemunha isto: por trás do idealismo neokantiano de Bernstein, é a corrente economicista que triunfa. Quem nos pode dizer seríamente que toda essa longa história, todos esses conflitos, todas essas ameaças foram deixadas para trás e que já escapamos para sempre (que já estamos protegidos para sempre) de seus perigos? Falo do par economicista/humanismo. É certamente um par, onde os dois termos são complementares; e não se trata de um par casual, mas de um par orgânico e consubstanciai. Nasce esponta­ neamente, ou seja, necessariamente, baseado nas práticas burguesas de produção e de exploração: e, ao mesrh-o .tempo, baseado nas prá-Marx, Karl, O Capiicil. ed. brasileira, cit.. Livro I, v, 1, p, 196.

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ticas jurídicas do Direito burguês e de sua ideologia, que sancionam as relações de produção e de exploração capitalistas e sua reprodu­ ção, E é certamentc verdade que a-ideologia burguesa é fundamen­ talmente economicista, que o capitalista enxerga tudo do ponto de vista das relações mercantis e do ponto de vista das condições mate­ riais (das mercadorias que são os meios de produção) que lhe per­ mitem explorar es.ia “ mercadoria” bastarite particular que é a força-de-trabalho operária, e, portanto, do ponto de vista das técnicas de extorsão da mais-valia {que fazem corpo com a organização e a divisão capitalistas do trabalho), do ponto de vista da tecnologia da exploração, de sua “rentabilidade” e da sua extensão econômicas: do ponto de vista da acumulação capitalista. E que faz o Economis­ ta burguês? Marx mostrou que, mesmo quando ele se elevava à al­ tura do capitalismo, não fazia mais do que teorizar o ponto de vista economicista no próprio projeto da “Economia política” , que Marx "criticou" enquanto tal, enquanto economicista. Mas é bem verdade, ao mesmo tempo, que o reverso orgânico, a “ cobertura", o álibi e o “ponto de honra” obrigatórios desse economicismo são o humanismo ou liberalismo burguês, Já que encon­ tram suas bases nas categorias do Direito burguês e da ideologia jurídica, materialmente indispensáveis ao funcionamento do Direi­ to burguês; a liberdade da Pessoa, isto é, em princípio, a livre dispo­ sição de si, a propriedade de si, de sua vontade e de seu corpo (o proletário: Pessoa “ livre” de se vender!), bem cOmo de seus bens (a propriedade privada: a verdadeira, que abole as outras - a dos meios de produção). Essa c a terra natal do par economicismo/humanismo: o modo de produção e de exploração capitalistas, E o liame e o local preciso onde essas duas ideologias se articulam num par é o seguinte: o Di­ reito burguês, que, ao mesmo tempo, sanciona realmente as relações de produção capitalista e abastece com suas categorias a ideologia libera! e humanista, inclusive à filosofia burguesa. Dir-se-á; mas quando esse par ideológico burguês penetra no marxismo, “quando prossegue a luta, não mais no próprio terreno, mas no terreno geral do marxismo, enquanto revisionismo” (Lênin), o que ele se torna? Continua a ser o que era antes: um ponto de vista burguês^-mas agora “ functoháhdo” no seio do marxismo. Por mais espantoso que possa parecer, toda a história do Movimen­ to operário e as teses de Lênin o atestam o próprio marxismo po39 Cf. Marxismo e Ri;vi.':innismo, A BüàcarroUi cia II hitemadorta!, O Renegada Kautsky, etc.

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dc, cm certas circunstâncias, ser considerado, ser tratado, ser mes­ mo pratifado de um ponto de vista burguês. apenas por "marxis­ tas de cátedra”, que o reduzem a um discurso universitário de sociologia burguesa, e que nunca passam dc “ funcionários da ideolo­ gia" dominante; mas também por frações do Movimento operário c seus dirigentes. Ê ura problema de correlação de forças na luta de cíasses; mas é também, c ao mesmo tempo, um problema de posição de classe na luta de classes, na “linha”, na organização e nas “práticas” da luta debelasses do Movimento operário. É o mesmo que dizer que é uma forma histórica na qual ílfusão entre o Movimento operário e a teo­ ria marxista, somente através da qual “o movimento” pode-se tor­ nar objetivamente “revolucionário” (Lênin), marca ou cede o passo diante daquilo que talvez seja preciso, para ser compreendido, cha­ mar também de “ fusão” : raas uma “ fusão” inteirameilte diversa, a fusão do Movimento operário c da ideologia burguesa. Introduzido no marxismo, o par economicismo/humanismo mal muda de forma, embora seja necessário mudar parcialmente (só parcialmente) de vocabulário. O humanismo continua humanis­ mo: com os acentos socialdcraoçralas postos nz: luta-de-classes e em sua abolição, pela libertação da classe operária, mas na defesa dos Direitos do Homem, da liberdade e da justiça, até mesmo na liber­ tação ou no florescimento da “ personalidade” pura e simples, ou “integral”. O economicisrao continua economiclsmo: por exemplo, sob a exaltação do desenvolvimento das Forças Produtivas, de sua “socialização” (qual?), da “ revolução científica e técnica” , da “pro­ dutividade” , etc. Mas, então, é possível comparar? Sim. E descobrir aquilo que, antes como depois, permite identificar como burguês o par ideoló­ gico economicismo/humanismo e suas práticas: é o escamoteamento daquilo que não está em questão nem no cconomicismo nem no hu­ manismo, o escamoteamento das relações de produção e da luta de classes. V. Que a tlirguesia, cm sua ideologia, sí/encie sobre as relações dc produção e ^ u ta de classes, para exaltar a “expansão” e a “produ­ tividade”, ao mesmo tempo que o Homem e a liberdade, é um problema dela e está na ordem das coisas, na ordem dela: pois esse silencio lhe serve, e permite ao par economicismo/humanismo, que expressa o ponto de vhta burguês, trabalhar com o fim de dissimu­ lar, garantir e reproduzir as relações de exploração. Mas que parti­ dos operários, antes (ou mesmo depois) da Revolução, também ,nlenciemlou silenciem pela metade) sobre as relações de produção e a 60

luta de çlasses e suas formas concretas para exaltar conjuntamente tanlo as Forças Produtivas quanto o Homem, é uma outra ques­ tão! Pois, se não se trata somente de palavras ou de alguns discur­ sos, mas de uma'linha e dc práticas coerentes, pode-se falar - como Lênin o fez da II Internacional antes da guerra de 1914 - que o pon­ to de vista burguês contamííiá, pode ameaçar ou mesmo dominar o ponto de vista proletário no próprio marxismo, E, já que falamos da II Internacional, digamos apenas uma pa­ lavra sobre^a IIP sobre os 10 últimos anos de sua existência. No fi­ na) das contas, por que calar o que nos queima a língua? Por que sancionar com um outro silêncio o silêncio oficial que reina, cober­ to dc “ explicações” de encomenda ou de embaraços, sobre um período do qual vivemos ou conhecemos o heroísmo, a grandeza e os dramas? Por que não tentar compreender, quaisquer que sejam os riscos das palavras pronunciadas, não apenas os méritos da Organi­ zação Comunista Internacional, mas também as inevitáveis contra­ dições de suas posições e de sua linha (e como podería ela ter esca­ pado de tais contradições, ainda mais numa época tão trágica)? Com efeito, temo que um dia sejamos obrigados a reconhecer nela a existência de uma certa tendência que, mantida à distância pelos combates de Lênin, não pôde ser dominada no momento oportuno, terminando por desempenhar em silêncio um papel dominante em seu seio. Com efeito, temo que ainda se adie por mais tempo, por motivos aparentemente pragmáticos, mas sem dúvida mais profun­ dos, o ato de escrever preto no branco, para pô-la à prova de uma au-, lêntica análise marxista, a “ hipótese” que hoje assumo o risco pes­ soal de apresentar, sob a forma de proposições necessariamente esquemáticas; 1. O Movimento comunista internacional foi afetado, em níveis e sob formas bastante diversos, de acordo com o país e as or­ ganizações, a partir dos anos 30, pelos efeitos de um mesmo desvio, i que .se pode provisoriamente chamar de ^'desvio stalinista". 2. Bem guardadas todas as proporções, ou seja,^espeitando-se diferenças essenciais, mas indo além dos fenômenos mais visíveis, que malgrado sua extrema gravidade são historicamente secundá-

40 Lênin; na ‘transição** entre o eapitalismo e o comunismo, subsistem as classes, a luta dc classes, mas sob formas novos. 61

rios, e que são agrupados de modo geral, nos partidos comunistas, sob os termos de “culto da personalidade” e “ dograatismo” - o desvio stalinista pode ser considerado sob suas formas transforma­ das (levando-se em conta o estado da luta de classes mundial, a exis­ tência de um único Estado socialista e o exercício do poder de Esta­ do pelo Partido bolchevique) como uma forma de desforra póstuma da !I Internacional: como uma ressurgência de sua tendência princi­ pal. 3. Ora, essa tendência principal era, essencialmcnte, como o sa­ bemos, economicisia. É somente uma hipótese, da qual indico apenas as linhas ge­ rais. Essa hipótese coloca naturalmente importantes problemas, os mais evidentes dentre os quais podem ser assim enunciados: como uma tendência de dominante economicista pôde se combinar, pro­ duzindo-os enquanto suas formas transformadas, com os efeitos seperestruturais que conhecemos? Quais foram, portanto, as formas de existência materiais dessa tendência para que se produzissem es­ ses efeitos na conjuntura existente? Como essa tendência, da qual a URSS foi o centro a partir de um dado momento, pôde se difundir no corpo do Movimento comunista internacional, c sob que formas próprias c, circunstancialmente, diferentes? Ao leitor que ficasse desconcertado com a aproximação que sugiro entre o economicismo da II Internacional e o economicismo do desvio “stalinista”, respondería em primeiro lugar: observe quál é o primeiro princípio de análise que Lênin recomenda e emprega, no início do capítulo VII de A Bancarrota da II Internacional, para compreender um desvio na história do Movimento operário. A pri­ meira coi.sa a fazer é ver se tal desvio não “se relaciona com alguma antiga corrente do socialismo". Não por causa de um vulgar “historicisnio” , mas porque existe uma continuidade, na história do Mo­ vimento operário, de suas dificuldades, de seus problemas, de suas contradições, de suas justas soluções, e, portanto, também de seus desvios, cm função da continuidade de uma mesma luta de classes contra a burguesia e de uma mesma luta de classes (econômica, política e - ideológica-teórica o da burguesia contra o Movimento operário. É nessa cohfinuidade que se baseiam as “ desforras póstu-' ma,s” ou as “ res.surgências” . E eu diria ainda: certamente, há nas hipóteses sumárias e esquemáticas que proponho graves desafios políticos^mas, antes de mais nada, há graves equívocos possíveis contra os quais é preciso 62

estar atento á qualquer preço. Vejam como Lênin, que denunciou com a máxima intransigência a tendência idealista-economicista da n Internacional, tratou essa organização: ele jamais reduziu a II In­ ternacional ao seu desvio. Reconheceu períodos em sua história, distinguiu o principal do secundário - e sempre lhe atribuiu, por exemplo, diante do Movimento operário, o mérito de haver desen­ volvido as organizações da luta de classe proletária, os sindicatos e os partidos operários; jamais se recusou a citar Kautsky e a defen­ der a obra filosófica de Plekhânov. Do mesmo modo, Stalin não pode - por razões infmitamente mais evidentes e mais fortes - ser reduzido ao desvio que Hgamos a seu nome; nem tampouco o pode, por razões ainda mais fortes, a III Internacional, que Stalin termi“nou por dominar após os anos 30. Ele teve outros méritos diante da história, Compreendeu que era preciso renunciar ao milagre imi­ nente da “revolução mundial” e, desse modo, empreender a “ cons­ trução do socialismo” em um só país; e tirou as consequências des­ sa deci.são: defendê-lo a quálquer preço como a base e a retaguarda de todo o socialismo no: mundo, fazer dele - sob o assédio do impe­ rialismo - uma fortaleza inexpugnável e, com essa finalidade, dotálo. prioritariamente de uma indústria pesada, da qual saíram os tan­ ques de Stalingrado, que serviram ao heroísmo do povo soviético na luta de vida ou morte para libertar o mundo do nazismo. Nossa história passa também por isso, E, através inclusive das deforma­ ções, das caricaturas e das tragédias dessa história, milhões de co­ munistas aprenderam - ainda que Stalin os “ensinasse” como dog­ mas - que existiam princípios do leninismo. Assim, se é possível pensar cm falar - bem guardadas todas as proporções - de uma desforra póstuma da II Internacional, é preci- ^ ' sü certamente ver que se trata de uma desforra em tempos inteira­ mente diversos, em circunstâncias inteiramente modificadas, e, naturalmcníe, sob formas completamente diferentes, que não podem evidentemente scr comparadas ao pé da letra. Mas, através dessas diferenças consideráveis e de formas paradoxais, pode-se falar da desforra, ou da retomada, ou da ressurgência de uma mesma ten­ dência essencialmente: a tendência a uma concepção e a uma “li­ nha" economicistas, inclusive sob o disfarce obrigatório de declara­ ções cruelmente “humanistas” à sua maneira (“ o homem é o capital mais precioso” , bem como as previsões e disposições, que se conser­ varam letra morta, da Constituição soviética de 1936). Se é assim, se o desvio stalinista não se reduz apenas ás “viola­ ções da legalidade socialista” ; .se depende de causas mais profundas na história e na concepção da luta de classes e da posição de classe; e 63

supondo-se que os soviéticos estejam doravante preservados de qualquer atentado ao direito - nem por isso saímos, nem nós nem eles, do desvio "stalinista” (cujas causas, mecanismos e efeitos não foram objeto de uma “análise concreta” no sentido ieninista, ou se­ ja, de uma análise marxista e cientifica) pelo simples milagre da de~ núncio do “culto da personalidade" ou pela paciência de uma retifi­ cação que não teria esclarecido nenhuma análise. Nessas condições, partindo de todos os eiementos de que dispomos, antigos e presen­ tes, incluindo o silêncio oficial que os sanciona, pode-se apostar que a “Hnha" stalinista, desembaraçada das “violações” do “ direito” e, portanto, “liberalizada” - economicismo e humanismo marchando juntos - sobrevive de.todo modo a Stalin e, certamente, ao XX Congresso, Pode-se até mesmo presumir que, sob o palavrório das diferentes variedades de “ humanismo” controlado ou não, essa "li­ nha” prossegue uma honrada carreira, num silêncio ora indiscreto ora indiferente, quebrado, por vezes pelo estupor de uma explosão, ou de uma cisão. E, para nada omitir, apresentaria ainda uma hipótese arrisca­ da, que certamente “ dirá algo” ao especialista em política chinesa que é J. Lewis. Se considerarmos toda nossa história há 40 anos ou mais, parece-me que, no final das contas (contas que não são fáceis de fazer), a única “crítica” histórica (de esquerda) ao essencial do “desvio stalinista” que se pode encontrar - e que, além do mais, é também contemporâneo desse mesmo desvio e, consequentemente, em sua maior parte, anterior ao XX Congresso ~ é uma crítica con­ creta, nos fatos, na luta, na ünha, nas práticas, em seus princípios e formas: a^crííica silenciosa, mas nos atos, realizada pela Revolução Chipesa nos combates políticos e ideológicos de sua história, desde a Longa Marcha até a Revolução Cultural e seus resultados. Crítica de longe. Crítica “ por trás dos bastidores” . Para ser examinada de perto, para ser decifrada. Crítica também contraditória - não fosse senão pela desproporção entre os atos e os textos. Tudo o que se queira: mas crítica, da qual se pode aprender, para comprovar ou não nossas hipóteses, ou seja, para tentar ver claro em nossa pró­ pria história. M'as também aqui é preciso falar, certamente, cm ter­ mos de tendência e de formas específicas, sem deixar que as formas que a realizam nos mascarem a tendência e suas contradições. Se mc foi possível, com meus próprios meios, de muito longe, inclusive muito debilmente, fazer eco a essas lutas históricas, e indi­ car, por trás de seus efeitos ideológicos, a existência de alguns problemas reais, não fiz mais - enquanío filósofo comunista - do que cumprir minha simples tarefa. 64

São essas, para não ir muito longe, algumas das “ questões muito concretas - onde a política entra pelos olhos - que rondam o exterior de um simples discurso filosófico, empreendido, a todo custo há mais dé 10 anos. J. -Lewis, no entanto,.umm desconfiou disso! Eu o lamento por nós. Mas fico satisfeito por éíè, pois seria bem mais grave se, saben­ do disso, tivesse ficado calado; para não sujar as mãos. Paris, junho de 1972

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Observação sobre uma categoria; “PROCESSO SEM SUJEITO NEM FIM (S)“

I Essa fórmula (“ processo sem Sujeito” , “ processo sem Sujeito nem Fim (s)”) tem tudo o que é preciso para chocar-se com as “evi­ dências” do senso, comum, ou seja (Gramsci), da ideologia domi­ nante, e, portanto, tudo o que é preciso para ganhar adversários sem dificuldades. Por exemplo, irão objetar-se; mas “as massas” e “as classes” ■são de qualquer modo “ compostas” por homens! Mas, se não é o Homem (declarado simplesmente como uma... "abstração” , ou, para acentuar as coisas, como uma “abstração especulativa”) que fii/ a história, são de qualquer modo os homens, concretos, vivos, são os sujeitos humanos que fazem a história! E, para edificação, citar-se-á o “testemunho” do próprio Marx, o início de uma pequena frase do J8 Bntmúrío: “ Os homens fazem sua própria história.,.” . R, com o peso da Evidência e de uma Citação, concluir-se-á subita­ mente; a história, portanto, tem “sujeitos”; esses sujeitos são evi­ dentemente “os homens”; “ os homens” são assim, se não-0 Sujeito da história, pelo menos oí. sujeitos da história... Infclizmcnte, esse tipo de “raciocínio” só se mantêm de pé ao preço de confusões, de alterações de séhtido, assim como de jogos de palavra ideológicos: sobre Homem-homens, Sujeito-sujeitos, etc. Evitemos, portanto, jogar com as palavras e Vejamos a coisa um pouco mais perto. 66

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Quanto a mim, eu diría: os homens (no plural) concretos são necessariamente sujeitos (no plural) na história, pois atuam na his­ tória enquanto sujeitos (no plural). Mas não há Sujeito (no singu­ lar) da história. Iria até mais longe: “ os homens” não são “ os sujei­ tos” da história. Explico-me. Para compreender essas distinções, é necessário precisar a na­ tureza das questões em causa. A questão da constituição dos indiví­ duos em sujeitos históricos, ativos na história, nada tem a ver, em princípio, com a questão.í/o “Sujeito da história” ou mesmo dos “sujeitos da história” . A primeira questão é de natureza científica: relaciona-se com o materialismo histórico. A segunda questão é de natureza filosófica: diz respeito ao materialismo dialético. Primeira questão: científica.. Que os indivíduos humanos, ou seja, sociais, são ativos na his­ tória - como agentes das diferentes práticas sociais do processo his­ tórico de produção e de reprodução - é um fato. Mas, considerados como agentes, os indivíduos humanos não são sujeitos “ livres” e “ constituintes” no sentido filosófico desses termos. Eles atuam em e sob as determinações das formas de existência histórica das rela­ ções sociais de produção e de reprodução (processo de trabalho, di­ visão e organização do trabalho, processo de produção e de repro­ dução. luta de classes, etc.). Mas é preciso ir mais longe, Esses agen­ tes não podem ser agentes a não ser que sejam sujeitos. Creio ter mostrado isso (em “Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado”, La Penseé, junho de 1970). Todo indivíduo humano, isto é, social, só pode ser agente de uma prática se se revestir da forma de sujeito. A “forma-sujeito”, de fato, é a forma de existência histórica de qualquer indivíduo, agente das práticas sociais; pois as relações so­ ciais de produção e de reprodução-compreendem necessariamente, como parte intêgfànte, aquilo que Lênin chama de "relações sociais 1jurídico-1 ideológicas", as quais, para funcionar, impõem a todo indivíduo-agente a forma de sujeito. Os indívíduos-agentes, portan­ to, agem sempre na forma de sujeitos, enquanto sujeitos, Mas o fato de que sejam necessariamente sujeitos não faz dos agentes das práticas sociaisdiistóricas o nem oj sujeitos(s) da história (no senti­ do/;7oió/ira do termo; sujeito de). Os agentes-sujeitos só são ativos na história sob a determinação das relações de.produção e de repro­ dução, e em suas formas. 67

Segunda questão: filosófica.

Foi com finalidades ideológicas precisas que a filosofia bur­ guesa apoderou-se da noção jurídico-ideológica de sujeito, para dela fazer uma categoria filosófica, sua categoria filosófica-n^-fT-epara pôr a questão do Sujeito do conhecimento {o ego cogito, o su­ jeito transccnnndental kantiano ou husserliano, etc.), da moral, etc., c do Sujeito da história. Essa questão ilusória, certartiente, im­ plica determinados objefivos; mas, em sua posição e erh sua forma, ela não tem nenhum sentido para o materialismo dialético, que pura e simplesmente a rejeita, como rejeita (por exemplo) a questão da existência de Deus. Expondo a Tese de um “processo sem Sujeito nem Fim(s)” , quero simplesmente dizer de modo mais claro o se­ guinte: para ser materialista-dialética, a filosofia marxista deve romper com a categoria idealista do “Sujeito” como Origem, Es­ sência e Causa, responsável cm sua interioridade por todas as deter­ minações do "Objeto” exterior do qual se diz que ela é o “Sujei­ to” interior. Para a filosofia marxista, não pode haver Sujeito como Centro absoluto, como Origem radical, como Causa única, E não se pode, para escapar do problema, contentar-se com uma catego­ ria como aquela da “ex-Centração da Essência” (L, $ève), pois se trata de um compromisso ilusório que, sob a falsa-dlaudácia” de uma palavra perfeitamente conformista em sua raiz {QTí-centração}, salvaguarda a ligação umbilical entre a Essência e o Centro e, por­ tanto, continua a ser prisioneira da filosofia idealista: como não há Centro, toda c.x-centração é supérflua ou aparência enganosa. Na realidade, a filosofia marxista pensa cm e sob categorias inteira­ mente diversas: determinação em última instância {que é algo intei­ ramente diferente da Origem, Essência ou Causa unas), determina­ ção por Relações (idemj, contradição, processo, “pontos modais” (Lênin), etc. Bm suma: numa configuração inteiramente diferente e sob categorias inteiramente diversas que as da filosofia idealista clássica. Decerto, essas categorias filosóficas não se referem apenas à história. Mas, se considerarmos apenas a história (como é nosso objeti­ vo), a questão filosófica coloca-se nos seguintes termos, Não se tra­ ia de contestar as conquistas do materialismo histórico: que os in54. A categoria dc "processo sem Sujeito nem Fim(s)” pode assim assumir a. seguin­ te 1'ornia: "proresao sem Sujeilo nem Objeto".

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divíduos são agentes-sujcitos na história e, portanto, ativos na his­ tória sob a determinação das formas de existência das relações de produção e de_ reprodução. Trata-se de coisa inteiramente diversa: de saber se a história pode ser fíloso ficam ente pensada, em seus mo­ dos de determinação, sohu^ categoria idealista de Sujeito. A posição do materialismo dialético me parece clara. Não se pode compreen­ der (begreifen: conceber), ou seja, pe/jjnr a história real (processo de reprodução e de revolução de formações sociais) como capaz de ser reduzida a uma Origem, uma Essência ou uma Causa (ainda que fosse o Homem), que seria o seu Sujeito - o Sujeito, esse “ser” ou “essência” posto como identificável, ou seja, como existente sob a forma da unidade de uma interioridade. c (teórica e praticamente) responsável (a identidade, a interioridade e a responsabilidade são constitutivas, entre outras determinações, de todo sujeito), capaz portanto de prestar contas do conjunto dos “ fenômenos” da histó­ ria. A coisa é bastante clara quando se enfrenta o idealismo clássi­ co, no qual, sob as espécies francamente reconhecidas da Liberda­ de, é o Homem ( = o Gênero Humano = a Humanidade) que é o Sujeito e..o Fim da história. Cf. o Aufklãrung, assim como Kant, o filósofo mais“ puro” da ideologia burguesa. A coisa é também clara quando se enfrenta a antropologia comunitária pequeno-burguesa filosófica de Feuerbach (ainda respeitada por Marx nos ManuscrU tos de 1844j. na qual a Essência do Homem é a Origem, a Causa é o Fim da história. Mas a rhesma posição assume evidentemente uma forma mais enganadora nas interpretações fenomenológicas pós-husserlianas e pré-kantianas (cartesianas), como as de Sartre, onde as Teses kantianas do .Swyeiío Transcendental, único porque uno, e aquela da Li­ berdade da Humanidade são confundidas, “ esmagadas” e fragmen­ tadas numa teoria da Liberdade originária de uma infinidade de su­ jeitos transcendentais “concretos” (Tran-Duc-Thao disse certa oca­ sião, tentando explicar Husscrl: somos todos, você e eu, cada um de nós, “egos transcendentais” , iguais transcendentais”), teoria que desemboca efetivamente na Tese segundo a qual “ os homens” (os indivíduos concretos) são os sujeitos (transcendentais, constituin­ tes) da história. Daí o vivo interesse que Sartre manifesta pela “pe­ quena frase” do 18 Brumário e por uma frase dc Engels do mesmo matiz, que lhe servem como uma luva. Ora, essa posição, que rebai­ xa as categorias kantianas ao nível não mais de uma filosofia antro­ pológica (Feuerbach), mas de uma vulgar psico-sociologia filosófica, não apenas nada tem a ver com o marxismo, mas também constitui 69

I:

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uma verdadeira porfia leõrica, praticamente impossível de ser pen­ sada e retida. Basta ler a Critique de la Raison Dialectique, anun­ ciando uma Ética que nunca apareceu, para convencer-se disso. Propondo a categoria de “processo sem Sujeito nem Fim(s)” , portanto, traçamos uma “ linha de demarcação” (Lênin) entre as posições materialista-dialéticas e as posições idealistas burguesas e pequeno-burguesas. Naíuraímeníe, não se pode esperar tudo de uma primeira intervenção. Será preciso “ trabalhar” sobre o traça­ do dessa “ linha de demarcação” . Mas, como Lênin dizia, uma linha de demarcação - tal como ela é, se for Justa - já é suficiente, em princípio, para nos livrar do idealismo; e abre um espaço por onde se deve avançar. Decerto, essas posições filosóficas implicam conseqüências. Não somente, por exemplo, levam a dizer que o marxismo nada tem a ver cora a “ questão antropológica” (“O que é o homem?”); ou com uraa teoria da realização-objetivação-alienaçâodesalienação da Essência Humana (como em Feuerbach e seus her­ deiros; teóricos da reificação e do fetichismo filosóficos), ou mesmo com a teoria da “ excentração da Essência Humana” que critica o idealismo do Sujeito tão-somente nos limites do idealismo do Sujei­ to, vestido com os atributos do “conjunto das relações sociais” da VI? Tese; mas permitem (entre outras coisas!) compreender o senti­ do da famosa “ pequena frase” de Marx no 18 Brumário. Pois a frase completa diz: “Os homens fazem sua própria histó­ ria, mas não a fazem a partir de elementos livremente escolhidos (ausfrein Stücken), em circunstâncias escolhidas por eles, mas em circunstâncias (Umstünde) que eles encontram imediatamente dian­ te de si (vorgefundene), dadas e herdadas do passado” . E, como se tivesse previsto que algum dia haveriam de explorar suas seis pri­ meiras palavras, e até mesmo essas “circunstâncias” das quais Sartre extrai brilhantes efeitos de “ prático-inerte” , ou seja, de liberda­ de, Marx - no prefácio ao mesmo 18 Brumário, redigido 17 anos mais tarde (em 1869, dois anos após O Capital) - escreveu estas li­ nhas; Quanto a mim, mostro ao contrário [ istoé, contra a ideologia de Hugo e de Proudhon, que consideram ambos o indivíduo Napoleâo IIÍ como a causa "responsável” (Marx), detestável ou gloriosa, do golpe de Estado \ como a a luta de classe j sublinhado por Marx| na França criou as círcnní/nncioxI Umstãnde\ c ks relações Verhãltnisse\ que permitiram | ermõglicht\ a um personagem um sujeiro | medíocre e grotesco desempenhar o papel de herói” . Portanto, é preciso ler os autores de perto. A história é certa­ mente um “ processo sem Sujeito nem Fim(s)” , cujas circunstâncias 7Ó

dadas, nas quais “os homens” agem como sujeitos sob a determina­ ção de relações sociais, são o produto da luta de classes. Portanto, a história não tem, no sentido filosófico do termo, um Sujeito, m-as um motor: a luta de classes, lí de maio de 1973

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ÍI

ELEMENTOS DE AUTOCRÍTICA 7'raí/tít’£Ío de

A N T Ô N IO R O BE R T O N E IV A B L U N D Í

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ADVERTÊNCIA

E ste pequeno volume compõe-se de dois ensaios inéditos. O primeiro data de juniio de 1972 e deveria figurar na Réponse á John Lewis, desenvolvendo os elementos de autocrítica que aí fi­ guram, e que, talvez nos lembremos, limitam-se a uma retificação da definição da Filosofia, No entanto, tive que desistir dc inseri-lo nes­ se texto para não exceder, de um lado, os limites dc um simples arti­ go de revista, e, de outro, para conservar a unidade do texto em francês. Encontraremos pela primeira vez neste ensaio um exame críti­ co das posições de Pour Marx e de Lire le Capital, as quais, dois anos depois de seu aparecimento, eu declarei, no prefácio da edi­ ção italiana dc Ure le Capital, terem sido influenciadas por uma “ tendência teondsia". Acreditei poder anexar a esses Elementos de A utocrílica um en­ saio anterior (julho de 1970) que, tratando da evolução do jovem Marx, indicava cm que sentido eu me orientava então. Evidentemente, esta autocrítica, cuja “ lógica” e argumentos internos desenvolvo aqui, da forma como surpreenderam nossa re­ flexão, não é um fenômeno puramente interno. Ela só pode ser compreendida como efeito de outra “ lógica” , externa, ou ,seja, aquela dos acontecimcnto.s políticos de que tratei na Réponse à John _ Lewis. 7.S

o ieitor estabelecerá, por si mesmo, a relação necessária entre essas Uuas “ lógicas” , sem perder de vista o primado da prática sobre a teoria, isto é, o primado da luta de classes na economia e na política sobre a'luta de ciasses na teoria. 20 de maio de 1974

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A Waldeck Rochei, que admirava Spinoza e sobre ele me falou íongamente num dia de junho de 1966.

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ELEMENTOS DE AUTOCRÍTiCA {Junho de 1972}

Á'

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Acredito ser necessário que, depois de John Lewis e tantos ou­ tros críticos terem se pronunciado, dar também meu ponto de vista acerca de meus ensaios, que têm agora de sete a doze anos, uma vez que 0 primeiro artigo copilado no Pour Marx data de 1960. Nunca reneguei meus ensaios; não tive motivos para fazê-lo. Mas em 1967, portanto dois anos depois de seu aparecimento em uma edição italiana de Lire le Capital (assim como em outras edi­ ções estrangeiras), reconhecí que eles estavam afetados por uma tendência errônea,Tridiquei a existência desse erro e lhe dei um no­ me: teoricLuno. Hoje, creio poder ir mais além; precisar o “ objeto” de éleí^o desse erro, suas formas essenciais e seus efeitos de resso­ nância. E acrescento:jnais que_dc erro, é preciso falar de desvio. Des­ vio teoricista. Verernos ainda-por que sinto-me induzido a mudar de termo - isto é, em espécie de categoria - e qual a jogada filosófi­ ca e política dessa nuança. Tudo pode-se resumir em poucas palavras. Eu queria defender o marxismo contra as ameaças reais da ideoTogja UTirguesa'. seria necessário mostrar sua novidade revolu­ cionaria; seria portanto necessário “provar” que o marxismo j,aixtR^njeõ' à ideolqgia burguesa, que só pôde-se desenvolvergem Márx e no movimento operárjo sob a condição de uma ruptura ra79

dical e continuada com a ideologia burguesa, e de uma luta inces­ sante contra os assaltos dessa ideologia. Esta tcsc erã certa: elat£^ certa. ^Mas, era lugar de dar a esse fato histórico toda a sua djmensão social, política^ ideológica e teórica, eu o reduzi à medida de um fato feónçí)„ limitado; o “corto” epistemológico, observável nas jobras de Marx a partir de 1845. Assim, fui conduzido a uma inter­ pretação racionalista do “corte” opondo a verdade ao erro sob as formas dá oposição especulativa “da” ciência c "da” ideologia em gerai, cujo antagonismo do marxismo e da ideologia burguesa tor­ nava-se então um caso particular. Redução + interpretação; dessa, "'íena racionalista-cspcculativa, a luta de classes estava praticamente ausente. Todos os efeitos de meu teoricismo resultam dessa redução e dessa interpretação racionalista-especulativa. Também, para me explicar sobre isso, devo recuar a toda críti­ ca: não para falar de outra coisa (que seria um desvio), mas para voltar a esse ponto de partida, a esse “ objeto” privilegiado, em que minha tendência teoricista se fixou, enfim ao "corte” , a essa ex­ traordinária experimentação ppiítico-tcórica que se esboça e se de­ sempenha, a partir de 1845, na obra de Marx, para mostrar como o interpretei,, reduzindò-a,. ,

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o “Corte” ,-Ql'çorte” não é uma ilusão nem uma “ invenção pura e sim­ ples” , como afirma John Lewis. Lamento, mas não cederei sobre esse ponto. Já disse que há necessidade dej^nlerpretar o “cortei’ ®prn reduzi-lo, mas vejamos como as coisas se passam; eu“o reduzia a uma simples oposição racionalista-especulativa; porém, a maioria de meus críticoj p reduzem a nada!, engomado, apagado, rasurado, ne­ gado. E que paixão nesse trabalho de proscrição e de destruição! ^Sejamos claros: existe reaimente, na história do pensamento teórico de Marx, alguma coisa como um “ corte” , que não é nada, mas é ú"til à história inteira do M ovimento operário. E entre aqueles que re­ conhecem o fato do “ corte” e aqueles que querem reduzi-lo a nada existe uma oposição, que se torna necessário confessar qual seja, no final das contas, uma oposição política. Vejamos i.sso um”pouco mais de perto. E evidente, para todo leitor um pouco instruído sobre as obras teóricas que precederam aquelas de Marx, e que se podem ordenar, após Lênin, sob os títulos de: Filosofia alemã (a Filosofia do Direi­ to e da História); Economia Política inglesa; e Socialismo francês (utópico ou proletário), é claro e incontestável, pois é verificável cm pi ri cam ente, comparativamente (com a condição de analisar não 81

l^íSíOCyf^ esta ou aquela fórmula isoladamente, mas a estrutura e o modo de funcionamento dos textos), que a partir da Ideologia AiemasuTgivx algo como um acontecimento sem precedente, e que será sem retor‘"no, Um acontecimento histórico no sentido forte, mas que se refere â teoria, e na teoria, o que, com uma metáfora, chamei de “ a abertura do Continente-História” . Segundo as metáforas que guardare"triõs (e è precTso guardar as duas, e atuar sobre sua diferença '), va­ mos falar desse acontecimento como da “ abertura do ContinenteHistória para o conhecimento científico” e/dü da irrupçáo, dô sjír'gimento "do C*dhtinente-História na teoria c^ntífica." ~ ■ De fato, sob uma forma frequentemente muito indecisa c iná­ bil na procura de seu novo objeto e de sua terminologia ^ ou mes­ mo mergulhada profundamente nas antigas categorias filosóficas \ e como temendo em vir ao mundo, alguma coisa radicalmente nova surgiu na teoria: pela primeim vez, sem precedente, e, podemos dizê-!o com 0 recuÕ^dcTtempo, sem retorno. Esta tese, que não foÍ poupada pelas críticas, cu a mantenho, Evidentem-ente, tal como tive que apresentá-la, e tal como a reto­ mo, é muito esquemática, e exigiría longas pesquisas e análises, das quais ela só é a hipótese. Nenhuma das objeções a ela opostas, ain­ da que pouco sérias, me parecEter sido enfraquecida em seu princí­ pio, pois que, em sua nudez, ela nada mais fazia que registrar um fato. Conforme afirmei, pode-se verificar, mesmo nas ambiguidades e hesitações da Ideologia Alemã, a existência de um agencíamento de conceitos teóricos de .base, que procuraríamos em vao nos textos anteriores de Marx e que apresentam essa particularidade de poder funcionar sobre ura modo inteiramente diferente em sua préTiistória. Não entrarei aqui no estudo desses novos conceitos, cujo dispositivo original lhes confere um sentido e uma função então inéditos; modo de produção, relações de produção, forças produti­ vas, classes sociais enraizadas na unidade das forças produtivas e 1 rím seguida, forjar as mais “certas” , não cessando de atuar sobre sua diferença, e de sua diferença, pois em Filosofia somente se pode pensar, isto é, ajustar as catego­ rias existentes emprestadas e então produzir outras, novas, no dispositivo requerido pela posição ocupada na teoria, soh metáforas. 2 Cf. 0 termo Verkehrsverhãlínisse, que, na Ideologia Alemã, i n centro teórico em torno do qual gravitam todos os novos conceitos: no entanto, eie próprio “ roda em torno" de um cbneeito ainda ausente, que não foi produ/ido na sua fonTia dermitiva: o conceito de relações de proihição. .1 Cf. a "divisão do trabalho” que, na Ideologia Alemã, funciona também de fato corro substituto do conceito de alienação. Dai a teoria do indivíduo, da “ personali­ dade'’ e do comunismo, que se encontra nesse texto.

rias relações de produção, classe dominante/classe dominada, ideo­ logia dominante/ideologia dominada, luta de classes, etc. Para re­ tomar somente este exemplo, que permite uma comparação incon­ testável, lembro que o sistema teórico dos Manuscritos de 44 repou­ sava em três conceitos de base: Essência Humana/Alienação/TraKálho Alienado O “modo de runcionamento” desse novo sistema ou dispositi­ vo conceituai verificou-se simplesmente diferente (sem relação de “natureza” , continuidade ou mesmo “modificação”) do “modo de funcionamento” dos sistemas precedentes. Pois assiste-se a uma “mudança de terreno" (propus logo esta metáfora importante), ■pãrã um “novo terreno” sobre o qual os novos conceitos vão, com o preço de uma longa elaboração, jogar as bases de uma teoria cieniífica, ou (outra metáfora) “ abrir o caminho” ao desenvolvi4 John I.cwU, como tantos outros críticos, pode muito bem me objetar que se encon­ tra nos Mantixcrilos de 44 a maioria dos conceitos clássicos da Economia Política clássica, como os conceitos de: capital, acumulação, concorrência, divisão do traba­ lho, salário, lucro, etc. Justamente: são os conceitos da Economia Política clássica que Marx empresta à-Economia Política ír/i.rcomo ele os encontra, sem mudar nada, sem acrescentar nenhum aspecto novo, e sem modificar em nada seu dispositivo teó­ rico. Nos MariuscTitox de 44, Marx cita realmente os Economistas como dizendo a útthm palavra sobre a Economia. Ele_não toca em seus conceitos, e se os critica, é “filosbricámentc’*, de fora, e em nOme do filósofo que não esconde seu nome; 'VI _crtUca positiva da Economia Política deve seu verdadeiro fundamento âs descobertas de Feuerhaclí\ autor de uma '‘revolução teórica real" que Marx considera então como decisiva (ci'. Manuscritos de 44, Ed. .Soeiales, p. 2-3). Para medir, digamos, a diferença, é suficiente pensar na ruptura com Feuerbadi, alguns meses mais tarde, nas Teses - e tomar nota deste fato; está fora de ques­ tão, nos .WawKvWro.?, a^tríade conceituai inteiramente nova, que constitui a base do dispositivo teórico inédito que começa a surgir na Ideaiagia Aieinã'. Modo de produção/RcIações de produção/Eorças produtivas, O surgimento desse novo dispositivo "vai provocar, desde a ideologia Alemã, uma nova distribuição dos conceitos da Eco­ nomia Política clássica, Eles vão mudar dc kigar, de sentido e de papel. Rapidamen­ te,_a “descoberta” (Engels) da mais-valia, colocada no centro da teoria do modo de proíluçâo capitalista (mais-valia = exploração capitalista = luta de classes), vai preci­ pitar sua reviravolta. Então, surge toda uma outra forma dé crítica da Economia Política, sem senhtima relação com a “critica íilosófica” (feuerbachiana) dos Sdamiscríios, uma crítica fundamentada não mais sobre “as grandes descobertas de Feuerbadi’*, mas sobre a realidade do processo contraditório do modo de produção capi­ talista, e da luta antagônica das classes, da qual é a razão, isto é, a causa e o efeito. A crítica da Economia Política (subtítulo do Capital) torna-se então a denúncia do economisma da Economia Política clássica, da Economia Política como tal (considerada fora das relaçiãe.s de exploração e de luta de cliisse.s) - e, ao mesmo tempo, eia torna-se u elucidação interna das conlradiçSe.s do modo dc produção capitalista, a critica do modo de produção capilaiista por si próprio, por suas própria.s leia tendcnciais, que anunciam seu desaparecimento sob os golpes da luta das classes proletárias. Tudo isso pode-se provar por meio dc ic.slos.

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mento daquilo que vai, irresistivelmente, se tornar uma ciência fora do comum, uma ciência revolucionária, e uma teoria que se prende àquilo que reconhecemos nas ciências, pois ela fornece conhecimen­ tos objetivos. De fato, sobre esse novo terreno, 6 possível colocar, ~po'uco a pouco, pela primeira vez, nos novos conceitos, os problemas reais da história concreta, sob a forma de problemas científicos e concluir (como o faz Marx em O Capital) resultados teóricos de­ monstrados, isto é, verificáveis pela prática científica e política ^ e abertos sobre sua retificação regulamentada. Ora, o surgimento histórico ‘ desse novo Continente científico, desse novo dispositivo de conceitos teóricos de base, foi paralelo, como se pode ver empiricamente em Marx, mesmo se o processo é aí manifestamente contraditório, com a rejeição teórica das antigas noções de base e/ou de seu dispositivo, reconhecidos e rejeitados Como errôneos. .'\tcnção; tocamos aqui em um primeiro ponto de grande sensi­ bilidade teórica e política. ^----- , Desde 1845, esse processo dcjic/e/cõâ.explícito começaria Ideo­ logia Alemã mas sob uma forma geral e.abstrata, quc_opõe “a c/én~~cia positiva” das realidades empíricas, às desconfianças, às ilusões c ~áo delírio da ideologia, c muito expressamente da Filosofia, que é então concebida como simples ideologia: melhor, como ideólogia por excelência.‘'M as desdé 1847, em Miséria da Filosofia, é direta­ mente sobre o novo “ terreno” científico que o “ajuste de contas” tem lugar, e são os pseudoconccitos científicos de Proudhoii, ce­ lebrado três anos antes como o teórico científico do proletariado francês em A Santa Família, que aí se sobressaem. ~ OTa, o”^'que é decisivo c ò modo desse ajuste de contas. Não é mais uma "crítica” filosófica, que procede, ao menos em parte, ou

5 Uslc pequeno “e” (a prática cicntínca e política) coloca naturalmciUc problemas consideráveis, não questionáveis aqui. Sua posição e sua solução dependem do que chamamos '^a união" ou a “ lusão” do Movimento operário c da teoria marxista; Lènin, Gramsci e Mao escreveram textos decisivos sobre essas questões. 6 Eu opunha, há pouco, para bem fazer sentir a “ redução” que havia operado, o simples “fato teórico” do “corte” ao "fato histórico” da ruptura entre o marxismo e a ideologia burguesa. Mas, considerado em si, o “fato teórico" do corte c também um fato histórico. Histórico: pois tem-se o direito de falar de acontecimentos históri­ cos teóricos. Histórico; pois tr;ita-se dc um acontecimento de envergadura histórica, ao ponto cm que se poderia, supondo que esse gênero dc comparação tenha um sen­ tido, falar da descoberta de Marx como do maior acontecimento da histórica do co­ nhecimento, desde o "surgimento da Matemática, epi alguma parte da Grécia, cm torno do nome de i .-.ics. ü estamos longe de ter apreendido a medida desse acontcci■ffiento teórico c dc suas consequências políticas.

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pode na ocasião proceder por “ modificação” \ e que significa a de­ núncia científica de erros como erros, e sua eliminação pura e sim­ ples: Marx coloca um fim no reino de erros conceituais, que pode qualificar de erros, porque ele adianta “verdades’^, conceitos cientificos. Esse modo de “ ajuste de contas” muito particular não cessará mais. Segue-se ao longo da obra de Marx, em O Capital, e além dele “[^cr^ agressão violenta administrada aos dirigentes socialdemocra™ J a s pelos erros teóricos contidos no Programa de Gotha, e a Wagne'r peíás bobagens hegelianas sobre o oonceito de “valor” e sua “cisão” em valor de troca e valor de uso). Prossegue em Lênin (poJeinica com os populistas, os “ românticos” , com^Rosá Luxemburgo “sò^rc O Capital, com Kautsky sobre o Estado e o Imperialismo, etc.), cm Gramsci (polêmica com Bukharin sobre o materialismo Ifistóricü) c em Não se deterá jamais. Uma ciência (Lênin nãõ " ^ s a de lembrá-lo a propósito do próprio materialismo histórico) jamais pára. Mas toda ciência* começa. Certamente, ela sempre tem uma pré-história, c daí ela se liberta. Mas se liberta em dois sentidos: nó ^entido comum e em outro, que Ihiêpertence propriamente, e a distírigUê'antes dc tudo da Filosofia que a acompanha na teoria, m'âs também dc outras realidades, como as ideologias práticas e teóri­ cas. Ela se liberta no sentido comum: entendamos que ela não nas­ ce do nada, mas de todo um trabalho de gestação, complexo, múlti“pTórãíTngido às vezes por clarões, mas ainda a.ssim obscuro e cego, pois “ele" não sabe para onde tende, nem se jamais atingirá a saída.

7 .-Xutocrílica .sobre u questão da "transformação” . lim meus primeiros ensaios, pre­ teri a l ilosofia pela ciência, c, cm con.scqüência, rccu.sei reconhecer que a figura da “ transformação” tinha seu lugar na história das relações filosóficas. Comecei por re­ tificar minha posição cm uma conferência cm fevereiro dc 1968: “Sobre a relação dc Marx e Heget”. É.necessário admitir que a Filosofia não c (uma) ciência, c que a reJação da.s posições filosóficas na “história” da Filosofia não reproduz a relação entre um corpo de proposições científicas e sua prc-fiistória (prc-cicntífica). A “transfoft mação” c uma das figuras necessárias da dialética interna entre as posições filosófi­ cas: somente em certas condições bem definidas, pois existem figuras da mesma rela­ ção, em outras condições. J^conhcccr somente uma figura (a “transformação”) en­ gaja no idealismo especulativo, O materiali.smo toma a sério a pluralidade das figu­ ras dc relação, sob suas condições determinadas. 8 Que não seja tomado o que se segue como uma recaída numa “ teoria da ciência” , que seria especulativa, mas como o mínimo dc generalidade necessária para poder re­ fletir sobre um objeto concreto. “A” ciência não existei Mas “a produção em geral não existe” lambem; no entantoV IVTãrx fala da “produção cin geral”, c deliberada c 'CõniCfctiiemcritc, para poder analisar os modos dc produção concretos.

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Ela nasce do concurso imprevisível, incrivelmente complexo e para­ doxal, mas necessário em sua contingência, de "elementos" ideoló­ gicos, políticos, científicos (dependendo de outras ciências), filosó­ ficos, etc., que em um momento ’ "descobrem", mas demasiedo tar­ de, que se procuravam, pois se encontram sem se reconhecer na figu­ ra teórica de uma ciência nascente. É neste primeiro sentido que uma ciência se liberta de sua prê-história, como tudo o que vem ao mundo, dos átomos aos seres vivos e aos homens, inclusive o códi­ go de sua reprodução genética. Mas uma ciência se liberta também de sua pré-história por si mesma: de ümá forma totalmente diversa daquela que, pelo menos ná téoriã, lhe pertence propriamente, pois ela a distingue, entre ou­ tras, da maneira como^ Filosofia “ se liberta” de sua história. Neste segundo sentido, pode-se quase dizer que uma ciência se liberta de sua pré-história, como Marx, que saiu do quarto do comunista Weitling, batendo a porta, com a célebre apóstrofe:_^‘A ignorância jamais será um argumento!” Rejeitando toda ou parte de sua préhistória, qualificando-a de erro. E, no primeiro instante, ao menos, não lhe passa pela cabeça “entrar em detalhes” . E pouco importa que seu julgamento seja até o limite ‘^ ju s tò ” , pojs não se.trata aqui de moral. E pouco importa - ao contrário! - que ideólogos ve­ nham tardiamehte, muito tempo depois, quando não podem mais ignorar essa criança sem pai, forjar-lhe uma genealogia oficial que, para escamotear a criança lhe determine em sua pré-história e lhe imponha O pai que devería ter essa criança (para que se mantenha um pouco tranqüiía). Pouco importa - ao contrário, importa mui­ to! - que autênticos pesquisadores, e de passagem heréticos, ve­ nham, naturalmente, bem mais tarde, restabelecer a existência de fi­ liações tão complexas c tão contingentes em sua necessidade, que elas imponham a conclusão do nascimento de uma criança sem pai (único-identificável); de toda maneira é necessário se curvar à evi9 Por não ser imi dia determinado - se bem que no limite, também, em circunstân­ cias excepcionais, ele o possa ser o que certos sábios chamam, a partir de Pascal, sua “noite”, isto é, ‘‘o dia” da evidência repentina, quando eles “vêem” - este "momen­ to” não é por isso menos deíerminável no tempo histórico e seus prazos. 10 Assim, os ideólogos burgueses descobriram que Marx não é outro senão Ricardo, que O Capital não é outro senão o capitulo da Filosofia do Direito de Hegel sobre a SitíHehkeit (família à parte): Sociedade civil + Estado, modificado (evidentemente). “Procure a mulher”, diz a>Sabedoria dos romances policiais. Quando se procura en­ tão “O pai” , é evidente que se quer bem à criança: suprimi-ló, Eênin, ao menos, que não tinha entrado nesses detíilhes, dizia, de passagem, que o marxismo tinha nada menos que três ‘Tontes” ,. forma que quase não foi entendida de mandar ãs favas a questão DO pai.

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\r r' c » ''^ ciência e tentar se inteirar desse fato. Uma ciência reconhecida está sempre liberta de sua pré-história e contínua (s.ua prc-histónajhe permanece sempre contemporânea: como seu Outro) interminávelmente se libertando do modo de sua rejeição como errS, do modo daquilo que Bachelard chamou “a ruptura epistemológica” . Eu lhe devo essa idéia e para lhe dar, no jogo de palavras, todo o seu sentido, o chamei de '"corte epistemojógicp” . E disso fiz a caytegoria central de meus primeiros ensaios. O que não disse eu! Esta expressão selou justamente contra mim o pacto de uma verdadeira União sagrada; daqueles que, bur­ gueses, se atêm à vida até a morte, à Continuidade da História que eles dominam, e à cultura que lhes traz de volta a aparência que lhes é necessária para crer em seu império e em seu futuro ininterruptos; àqueles que, comunistas, sabem por intermédio de Lênin que são ne­ cessários todos os recursos dos conhecimentos Kumanos para, feita a revolução, construir o socialismo, mas temem, como os marxistas do Programa de (jotha, perder seus aliados políticos por alguns conceitos cientifeos “deslocados” na plataforma de união - até aqueles que, anarquizantes, acusaram-me não com os mesmos ar­ gumentos político.s, mas freqüentemenle com os mesmos argumen­ tos filosóficos, do crime de ter introduzido no marxismo conceitos ‘‘burgueses” , porque eu me referia a “ciência” a respeito dele, e a “corte” a propósito de seu inicio. Pois bem, até que sejam propostos não somente outros, mas melhor ajustados, e conseqOentemente mais justos, retificando meus erros, manterei minhas teses. E afirmo; mantê-las-ei ao mes­ mo tempo por razões políticas, que são cegantes, c por razões teóri­ cas, que são constrangedoras. N<ão tenhamos ilusões; trata-se cm última análise de um debate e um confronto políticos, não apenas com minhas críticas à boa burguesia declarada, mas também com as outras. Quem terià com efeito a ingenuidade de acreditar que as expressões teoria marxista, ciência marxista, não obstante mil e mil vezes consagradas pela his­ tória do Movimento operário, pelas formulações de Marx, Engeis, Lênin e Mao, teriam provocado as tempestades, as condenações e as paixões que conhecemos ", como se .se trata.sse de uma simples

11 É preciso lembrar que elas não dalam de onfem... que bem antes de Aron, B. Cro-. ce, que não era o primeiro a fazè-lo, negava a O Capital qualquer v.alor científico? Que, sem remontar às reações “antiteóricas” de Stirner, a crítica "de esquerda" da idéia de uma ciência marxista remonta ao jovem Lukacs, a Korsch, Patinekoek, en­ tre outros?

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qucrela dc palavras! Não é um debate de filólogos! A manutenção ou o desaparecimento dessãs^põfóvraírsüu'defesa'ou seu aniquila­ mento são 0 risco de verdadeiras lutas cujo caráter ideológico e politico está manifesto. Não c exagero afirmar que o que está hoje em questão por trás da querela dessas palavras é o leninismo puro e simples. Não somente o reconhecimento da existência e do papel da teoria e da ciência marxista, mas as formas concretas da fusão do Movimento operário e da teoria marxista, e a concepção do matcrialismo e da dialética. Sei que nem sempre é fácil ser imparcial. Admito que a batalha ideológica seja freqüentcmente confusa, os campos em parte desor­ denados, e que argumentos se cruzem sobre a cabeça dos comba­ tentes. Reconheço que todos aqueles que se declaram a favor de um partido nem sempre ocupam realmcnte suas posições, ou podem atingir um objetivo visando outro; que ataques contra a idéia de uma ciência marxista podem mesmo, através de alguns dc seus ar­ gumentos, atingir indiretamente certos erros incontestáveis. Conve­ nhamos que é sempre necessário julgar posições declaradas pelo sis­ tema como posições detidas e efeitos provocados. Por exemplo, para permanecer somente de um lado, podemos nos declarar a fa-, vor da teoria marxista, mas defendê-la em posições especulativas, portanto não-marxistas; da mesma forma podemos nos declarar a favor da ciência marxista, mas defendê-la cm posições positivistas, portanto não-marxistas - com todos os efeitos subseqüenlés. Ora, só podemos defender a teoria e a ciência marxista em posições matcrialista-dialéticas, portanto não-espcculativas e não-positivistas, tentando pensar essa realidade propriamente inaudita, porque sem exemplo: a teoria marxista como teoria revolucionária, a ciência marxista como ciência revolucionária. O que é propriamente inaudito nessas expressões é aliar teoria^ a revolucionária (“sem teoria/objetivamente/ revolucionária, não há Movimento/objetivamentc/revolucionário” . Lênin)j_e porquê ciência é o indício da objetividade da teoria, aliar ciência a revolu'cionárjg. Mas nesses binômios, que, tomados a sério, perturbam a idéia recebida da teoria e da ciência, figuram ainda os termos: teo­ ria, ciência. Não é nem “ fetichismo” , nem “reificação” burguesa, nem jogo de"escrita. Política e teoricamente, não podemos passar sem essas palavras, pois, até provar o contrário, no horizonte das práticas existentes, não temos outras, e não temos melhores.. E se Marx, Engels e Lênin não cessaram, ao longo de seu combate polí­ tico e de sua obra teórica, dc empregá-las como referências e armas, é j^ue eles julgavam-nas indispensáveis à sua luta política e teórica, à libertação revolucionária do proletariado. 88

Temos então o direito e o dever, como o fizeram todos os Clás­ sicos, de falar de teoria marxista, e, no seio da teoria marxista, de uma ciência c de uma filosofia, sob reserva de não cair no teoricismo, na especulação, ou no positivismo. E para ir diretamente ao ponto mais sensível: sim, temos teoricamente o direito e politica­ mente 0 dever de retomar c de defender, a propósito do marxismoleninismo, na trincheira da palavra, a categoria filosófica de “ciên­ cia” , c de falar da fundação por Marx de uma ciência revolucioná­ ria, encarregada absoluta de nos explicar as condições, a razão e o sentido desse binômio inaudito, que faz “mexer” algo'de decisivo na nossa idéia da ciência. Retomar e defender, nesse contexto e nes­ se programa, a palavra “ciência” .^Nó's o devemos contra todos os idealistas subjetivos burgueses, e contra os pequeno-burgueses mar­ xistas, que, uns c outros, se insurgem, a seu simples enunciado, ao “positivismo” , sem dúvida porque a única representação que po­ dem ou querem fazer da prática c da história de uma ciência, c a fortiori da ciência marxista, é a representação positivista clássica ou vulgar, burguesa; nós o devemos contra os ideólogos pequenoburgueses, marxistas ou não, que se insurgem contra a “ reificação” e “ a alienação” da objetividade (como outrora Stirner se insurgia contra o “ Santo”.), sem dúvida porque eles se associam sem ne­ nhum constrangimento à própria oposição que constitui a base da ideologia jurídica e filosófica burguesa, a oposição da Pessoa (Li-, berdade = Vontade = Direito) c da Coisa Sim, temos razão de fa­ lar de um núcleo cientifico irrecusável e incontornável no marxis-

12 íi sullcicntc abrir simpic.s manuais dc Direiio ou Jurisprudência, para ver claramente que o Direito, que, caso único, 6 idêntico à sua ideologia, pois dela tem neces­ sidade para poder “ luncionar”, portanto a ideologia jurídica é, cm última instância, e mais frequentemente, sob formas de uma surpreendente transparência, a base de toda a ideologia burguesa. E suficiente, para um Jurista que seja marxista, mostrá-lo; que seja um filósofo, para compreendê-lo. Quanto aos filósofos, ainda não atraves­ saram o nevoeiro em que se envolvem e quase não suspeitam da presença do.Dircito e da ideologia jurídica em suas meditações: na própria Filosofia. No entanto, devere­ mos nos curvar ã simples evidencia: a Filosofia clássica burguesa dominante (c seus subprodutos mesmo modernos) está edificada sobre a ideologia jurídica, cscus “ ob­ jetos filósofos” (a Filosofia não tem objeto, ela tem scu.i objetos) são categorias ou entidades juridicas: o Sujeito, o Objeto, a Liberdade, a Vontade, a (s) Propriedade (s), a Representação, a Pessoa, a Coisa, etc. Mas para aqueles, marxistas, que senti­ ram 0 caráter jurídico burguês dessas categorias', c as críticas, resta-lhes ainda se se­ pararem da armadilha das armadilhas: a idéia e o programa de uma “teoria do co­ nhecimento”. É a peça-mestra da Filosofia burguesa clássica, ainda dominante. En­ tão ao menos que se utilixe essa expressão em um contexto que indique por onde en- . tão sair, do modo filosófico e não do modo científico dc “sair” (como o fazem Lênin

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mo, aquele do Materialismo histórico, a fím de traçar uma linha vi­ tal de demarcação, nítida, sem equívoco {mesmo se for preciso - e é preciso - “trabalhar” até o infinito, no seu traçado, para evitar a queda no positivismo e na especulação), entre; de um lado, os prole­ tários que têm necessidade de conhecimentos objetivos, verificados c verificáveis, enfim científicos, para triunfar, não em frases, mas nos fatos, de seus adversários de classe; e, de outro lado, não somen­ te os burgueses que, evidentemente, recusam ao marxismo qualquer título científico, mas também aqueles que se contentam com uma “ teoria” pessoal ou presumível, fabricada por sua imaginação ou seu “ desejo” pequeno-burguês, ou que repudiam toda idéia de teo­ ria científica, e até a palavra ciência, e mesmo teoria, sob o pretexto de que toda ciência ou mesmo toda teoria seriam na essência “rcificantes” , alienantes, e portanto burguesas E acrescentaria: temos o direito de falar também em “corte epistemológico” e dc utilizar essa categoria filosófica para designar" 0 fato histórico-teórico do nascimento de uma ciência, inclusive, e apesar de toda a sua singularidade, da ciência revolucionária mar­ xista, pelo sintoma visível dc sua libertação de sua pré-história, que é sua rejeição dos erros de sua pré-história, Com a condiçâo, natu­ ralmente, de não tomar simples efeitos pela causa - mas de pensar nos sinais e efeitos do “ corte” como o fenômeno teórico do surgir ^mento tíe uma ciência na história da teoria, que remonta ás condi­ ções sociais, políticas, ideológicas^e filosóficas dessa irrupção.

c Mao), toma-se essa idéia como constitutiva da lalosofla, inclusive de uma “ Filoso­ fia marxista” , e permanecemos presos na armadilha das armadilhas filosòricas da ideologia burguesa. Pois a simples questão sl qual responde a “teoria do conhecimen­ to” é ainda uma questão de Direito colocada nos títulos da validade do conhecimen­ to. 13 Nós nos explicaremos um dia sohre a teoria que serve de ãlíbi filosófico a toda essa literatura da “reiíicaqiio”: sobre a teoria do fetichismo da mercadoria na secão 1 do livro 1 do Capital. Esperando, podemos desejar que todos aqueles que, apesar de sua repulsa peia idéia de uma ciência e mesmo de uma teoria marxista, fa/.em esfonjo para se declarar assim mesmo marxistas, no lugarde.se contentar com as passagens ruins de Reich (que teve boas) e de Marcu.se (que não teve boas) ou outros, lamen­ tam ler Stirner, homem de singular atualidade (parisiense), e a replica que Marx lhe dirigiu na Ideologia Alemã. Sobre a “ teoria” , são lexlo.s em que não falta certa malí­ cia.

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‘Ciência e Ideologia”

Eis justamente o ponto preciso onde devo denunciar, pois nin­ guém o fez por rniiTi meu erro teoricisia'. a propósito do “corte‘’. Ora, esse “corte’"^, finalmente, e apesar de todas as minhas pre­ cauções, eiTo’ concebi e defini nos termos racionalistas Üa ciência ç 'da não-ciência, Não abertamente nos termos “ clássicos” da oposi­ ção entre -àjerdade.^e o .erro (aquela do cartesianismo, retomando uma posição “ fixada” desde as origens, deste o platonismo). Não nos termos de uma oposição entre o conhecim ento e a ignorância (aquehrda Filosofia das Luzes). Mas, ouso dizer o pior: nos termos de uma oposição entreM ciência e A ideologia. Por que foi pior? Porque tratava-se aí, em face da ciência, de colocar em cena uma noção marxista muito importante, nfas muito equívoca, c Justamentê“nõ"^u equívoco enganador da Ideologia A le m ã , onde ela 1 Pode íer que idgucm o tenha feito, eu o ignoro. Que, por isso, me perdoe. .Sobre o que pude ler, tenho notado muito frcqueníemente condenações definitivas, retieêneias muito vivas, e também observações severas, mas justas; no entanto, nenhuma critiea indo ao fundo, coerente, e portanto realmcntc eselarcccdora e eonvineente. Mas eu t[imbém podia estar çego e surdo...

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A-l

I

desempenha, sob uma única apelação indiferenciada, dois papéis diferentes, aquele de uma^ategoria filosófica de umjado (ilusão, erro) c aquele de um conceito científico de ouíro (formação da superestrutura): a noção de ideologia, E pouco importa que a Ideolo­ gia Alemã autorize bem essa confusão: pois Marx dela se libertou, o que nos permite evitar a armadilha. Tratava-se, de fato, de colocar no lugar essa noção equívoca de ideologia sobre a cena racionalista da oposição entre o erro e a verdade. E assim, reduzindo a ideologia ao erro, e na volta, batizando o erro ideologia, dar a esse teatro ra­ cionalista portes marxista usufpados. Não tenho necessidade de dizer a que isso, ideológica e pratica­ mente, nos servia ^ E, efetivamente, esse disfarce, que não disfarça­ va nada, serviu. Mas o marxismo, se é racionai, não é o Racionalismo, nem mesmo o Racionalismo “moderno” (com o qual alguns de nossos antepassados sonharam, antes da guerra, no fogo da luta contra o irracionalismo nazista). E, apesar de tudo o que eu dizia por outro lado sobre a função antes de tudo prática, social e políti­ ca, da ideologia, como utilizava (sob a caução da Ideologia Alemã) um único e mesmo termo, a importância que esperava de seu pri­ meiro emprego, filosófica e incontestavelmente racionalista (= de­ nunciar ilusões, erros), fazia objetivamente oscilar, nesse ponto, mi­ nha interpretação no teoricismo. No entanto, e mesmo nos equívocos da Ideologia Alemã, esse disfarce do erro em ideologia podia ter, e tinha de fato, outro senti­ do. A ideologia nãb era mais do que o “nome” marxista do erro. Mas, desde a Ideologia Alemã, que praticava ela própria essa redu­ ção, sentia-se bem que por trás da oposição da “verdade positiva”, à ilusão ideológica, qualquer outra ruptura, não somente teórica, mas política c ideológica, e de outra envergadura, estava prestes a se anunciar e a se consumar. Essa ruptura era a ruptura de Marx não com a ideologia em geral e não somente com as concepções ideológicas da história existentes, mas com a ideologia burguesa, com a concepção do mundo burguês dominante no poder, e que rei-

2 Mencionarei sorncnle, a titulo de exemplo, uni nome: o de Lysscnko. E a impostu­ ra "ciência burguesa/ciência proletária” . Em suma, duas lembranças de um certo período: para não ir mais além. Grande número de meus críticos, comunistas ou ou­ tros, compreenderam enião (1960-1965) muito bem, no muito modesto nível deintervenção de meus “ensaios” , que se tratava também de política. Alguns não a despre­ zaram, ao menos no momento. Pois esquecemos que a “conjuntura”, ao menos em alguns de seus aspectos aparentes, tem mudado depois de 10 anos e, cm scus aciden­ tes, a face da luta teórica se desloca, como a face da nossa luta política. base, no entanto, permaneceu sensivelmente a mesma.

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nava não somente sobre as práticas sociais, mas também nas ideo­ logias práticas e teóricas, na Filosofia e até nas obras da Economia Política e do socialismo utópico. É também um falo decisivo para compreender a posição de Marx que esse reino não fosse sem divi­ são, mas o resultado de uma luta contra as sobrevivências da con­ cepção do mundo feudal, e contra as premissas frágeis de uma nova concepção proletária do mundo. Porque ele só podia romper com a ideologia burguesa no seu conjunto, com a condição de se inspirar em premissas da ideologia proletária, e nas primeiras lutas de classes do proletariado, onde essa ideologia tomava corpo e consistência. Eis o “acontecimento'’ que, por trás da cena racionalista da oposição en­ tre a “verdade positiva” e a ilíisão ideológica, dava a essa oposição sua verdadeira dimensão histórica. “ Senti” bem que o risco desse debate era a ruptura com a ideologia burguesa, pois empenhei-me em identificar e caracterizar essa ideologia (no humanismo, no historicismo, no evolucionismo, no economismo, no idealismo, etc.). Mas, na falta de compreender então os mecanismos da ideologia, suas formas, suas funções, suas tendências de classe, e suas relações necessárias com a Filosofia e as ciências, não pude tornar verdadei­ ramente inteligível o elo existente entre, de um lado, a ruptura de Marx com a ideologia burguesa, e, de outro, o “ corte” O “ corte” , com efeito, não é uma ilusão. Por trás desse disfarce do erro em ideologia, restava um falo: a declaração da qposição entre a verdade e o erro, que é objetivament( um dos sintomas do nascimento, do surgimento de uma ciência (quando é realmente o caso). Sem dúvida, seja o que for que se te­ nha pretendido, não mc prendi a uma oposição “ não-dialética” da ciência e da ideologia; pois mostrava que essa oposição era recor­ rente, c então histórica e dialética, pois é somente sob a condição de ter “descoberto” e “adquirido” a “verdade” que o sábio pode en­ tão, c somente então, a partir dessa posição conquistada, voltar-se para a pré-história de sua ciência, c qualificá-la, no todo ou cm par­ te, de erro, de “ tecido de erros” (Bachelard), mesmo que dela exce­ tue verdades parciais por ele reconhecidas ou antecipações que dela recolhe (ex.: a Economia clássica, o Socialismo utópico); mas essa própria exceção só é possível porque as verdades parciais e as ante­ cipações dc sua pré-história são então reconhecidas c identificadas como tais, a partir da verdade enfim descoberta e detida. “Habemiis enit)t ideam veram...” (Spinoza). É realmcnte porque (enim) nós detemos (habemus) uma idéia verdadeira que... que podemos também enunciar: “Verum index sui et falsi”, o verdadeiro se indica 93

;i si jiróprio e indica o falso; que portanto o reconhecimento do erro (como verdades parciais) é a recorrência do verdadeiro. Isso não é menos do que reduzir e elevar o “ corte” a essa única posição, mesmo recorrente, mesmo “continuada” , mesmo “sem fim’’ entre a ciência c a ideologia, eu adotava sem critica o ponto de vista “ da” ciência sobre si mesma (e não somente sobre ela, eviden­ temente!), ou antes - pois essa fórmula é ainda idealista - o ponto de vista dos “ agentes” da prática científica sobre sua própria práti­ ca e a história de seus resultados; ou antes - porque essa fórmula é ainda idealista ^ é o ponto de vista da “ filosofia espontânea dos sá­ bios” (Lênin), que só vêm, no começo de uma ciência, o contraste cortado entre o depois e o antes, entre a (ou mesmo as) verdade(s) descobertafs) e os erros rejeitados. Ora, justamente tentei mostrar, depois (em um curso de Filosofia para cientistas, 1967), que essa “ filosofia espontânea dos sábios” não era espontânea, e não depen­ de absolutamente da imaginação filosófica dos sábios como tais; ela é simplesmente a retomada, pelos sábios e “ cientistas” , de Teses de tendências contraditórias desenvolvidas claramente pela Filosofia pura e simples, isto é, até o limite, pela “ Filosofia dos filósofos” . Jiu havia, pois, percebido bem a existência do “ corte” , mas como o vislumbrava sob o disfarce marxista do erro em ideologia, e apesar de toda a história e a dialética que nele tentava “injetar” “ em categorias que eram, em última análise, racionalistas, eu não

3 Ver sobre este assunto todos os equívocos que se erguem, como a perdí?, sob os passos do caçador, no simples enunciado da fórmula de Eachelard: “ os trabalhado­ res da prova", sobretudo quando estão reunidos na “cidade dos sábios” . .Somente exisle “cidade dos sábios” na divi.sáo burguesa do trabalho manual e intelectual, e na ideologia burguesa da “ciência e da técnica” que faz funcionar essa divisão, sancionaiido-a e justificando-a somente do ponto de vista burguês. O ponto de vista prole­ tário sobre a questão é outro: a supressão da “cidade dos sábios” , sua “ união” com os trabalhadores e os militantes, em direção às formas comunistas, totalmente inédi­ tas e inimagináveis do ponto de vista burguês, da divisão do trabalho. 4 Sobre os resultados inevitáveis, e inevitavelmente negativos de toda “ injeção” de dialética, em uma tese ou uma teoria qualquer, ver a experiência decisiva de Marx com Proudhon: “Tentei injetar-lhe a dialética hegeliana...” Sem sucesso. Acreditan­ do na Mírériíi da filosofia, julgando .4 !'üosofitt da Miséria, é talvez mesmo necessá­ rio falar de uma catástrofe! A dialética não se “ injeta”, nem tampouco, para usar litcralmente a metáfora técnica, "se aplica". Hegel já o dissera de forma enfática. Sobre esse ponto, devemos sser ao menos hegelianos. Sobre esse ponto - que não ex­ clui outros “ Marx e Lênin são hegelianos, Não se pode falar de injeção nem de apli­ cação da dialética. Tocamos aqui em um ponto (assinalado por duas simples pala­ vras) de alta sensibilidade filosófica. Em Filosofia as "linhas de demarcação” se re­ cortam e se cortam em ponios que se tornam então pontos sensíveis; encontro na bifu reação.

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podia explicar o que comandava csss corte, e, se apesar de tudo eu o senti, estava incapaz de pensá-lo” * e de expressá-lo. Por ai,'eu reduzia de fato a ruptura do marxismo com a ideolo­ gia burguesa ao “ corte” , e o antagonismo do marxismo à ideologia burguesa ao antagonismo da ciência c da ideologia. Sendo assim, essa posição errônea não foi sem conseqüências. Poderia ter sido, se eu me tivesse apenas contentado em fazer uma frase ou frasçs. Mas tive a ingenuidade (ou a lógica) de fazer um ar­ gumento teórico, e de inscrevê-lo em um raciocínio bastante rigoro­ so que me faz pagar o preço. Esse “erro” da oposição racionalista entre a ciência (as verda­ des) e a ideologia (os erros) foi por mim teorizado, apesar de todas “as'formas de reservas necessariamente inoperantes, sob três figuras que encarnaram e rçsumiram minha tendência teoricista (isto é, racionaiista-especulativa): 1. Um esboço (especulativo) de teoria da diferença entre a ciên­ cia e a ideologia em geral. 2. A categoria de “ prática teórica” {na medida em que ela pre­ teria, no contexto existente, a prática filosófica pela prática científi­ ca). 3. A tese (especulativa) da Filosofia como "Teoria da prática teórica” - que representa o ponto culminante dessa tendência teori­ cista

5 Eu digo: incapaz ds pensá-lo. Pois não se trata, quando nos propomos a fazer um trabalho sério, de nos contentarmos com fórmulas gerais e consagradas, que dão aos outros a responsabilidade, o sentimento e a convicção de ser e de deter o motivo se­ creto da coisa. É necessário não incorrer em erro: aqueles que, ao enunciar os problemas, pensam tê-los resolvido sem jamais tê-los colocado, n ío servem muito ao Movimento operário, mesmo se a ele pertencem. Dia virá em que estaremos prontos a pensar nos problemas que tentamos somente colocar. Há pouca chance de serem encontrados, dentre os autores das Grandes Indignações, burgueses, sociaidemocratas ou outros que inspiram nossos ensaios, 6 É suficiente aproximar essas três teses para compreender o termo com que qualifiquei meu desvio: teoricismo, Teoricismo quer dizer, na espécie, prioridade da teoria sobre a prática; insistência unilateral sobre a teoria; porém mais precisamente, racionalismo espeailatívo. Pode-se então explicar-lhe simplesmente a forma pura. Pensar na oposição verdade/erro era de fato racionalismo, Mas era especulação querer pen­ sar na oposição verdades detidas/erros rejeitados em uma Teoria geral da Ciência c da Ideologia, c de íjua diferença. Eviden tem ente, simplifico e forço as coisas ao extre­ mo, raciocinando “até o limite”, pois nossas análises estão longe de ter sempre segui­ do esse caminho, sobretudo até o fim. Mas esse movimento é inegável. Ele fixou-se, como acontece com freqüência, sob a forma manifesta de uma pa­ lavra, cujos títulos pareciam fora de questão: Epistemologia. Ele nos remetia a Bachelard. que o emprega constantemente, e a Canguilhem, que, não o havíamos nota-

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Naturalmente, esta última tese sobre a Filosofia não deixou de ter efeitos derivados sobre a concepção da ciência marxista, do materialismo histórico, não tanto devido ao papel que cu atribuía à distinção (apenas em princípio) entre a ciência c a “ Filosofia” mar­ xista, como devido à forma em que cu situava essa relação (a Filo­ sofia sendo, no fmi das contas, teoria como a ciência, dimensionada no mesmo assunto, a própria maiuscula; Teoria). Disso resultaram conseqiiências nefastas sobre a apresentação da modalidade da ciên­ cia marxista, do Materialismo histórico: sobretudo em Lite le Capi­ tal. E é sem dúvida nessa ocasião, que o subproduto circunstancial de minha tendência teoridsta, o “jovem cachorro” do esíruturaÜsmo, nos fugiu entre as pernas,,.

do, dclc .se serve muito pouco. N ós o usamos e dele abusamos (eu sobretudo) c não soubemos controlá-io. Insisto aí porque é a ele que toda uma parte de nossos leitores SC ligou reforçando neles, com suas próprias inclinações filo.sóficas, a tendência teo­ ridsta de nossos ensaios. Que entendíamos por Episteniohgia? Literaimente, a teoria das condições e das formas da prática científica e de sua história nas diferentes ciêndas concretas. Mas essa defuiição.podia ser compreendida em dois sentidos. Em um sentido maícriaíisía, podia nos condudr a estudar as condições materiais, sociais, políticas, ideológicas e filosóficas dos “modos de produção” e dos "processos de produção” teóricos dos conhecimentos existentes; mas então seu domínio dependia do Materialismo históri­ co! Em um sentido especuialim, ao contrário, a Episteniologia podia nos conduzir a formar c desenvolver a teoria da prática cienülica na sua diferença das outras práti­ cas; inas qual a diferença com a Filosofia, defnida tam bém como “Teoria da prática teúnca” ) Estávamos entâO nu terreno do “ Materialismo dialético”, pois a Filosofa era e só cra Epislemologia. Era o cruzamento dos caminhos. Se a Epistemologia c a própria Filosofia, sua unidade especulativa só pode reforçar o teoricismo. Mas se a Epistemologia depende (sob a reserva do mínimo de conceitos próprios queespecifciim seu objeto) do Materialismo histórico, é necessário então ai inscreve-ia, e ao mesmo tempo, reconhecer a ilusão e a impostura dc seu projeto, £ preciso (como nós 0 indicamos depois) renunciar e criticar o idealismo ou os mofos idealistas de toda Epistemologia. 96

Estruturalismo?

E necessário dizer, então, que Ibi tentando representar (Kokettieren), não na estrutura e nos elementos (pois todos esses conceitos estão em Marx), mas, poT exemplo, na “elicácia da causa ausente”, que é aliás infinitameníe mais spinozista do que estruturalista, para SC dar conta ao mesmo tempo dos “disparates” da Economia clássi­ ca, das relações de produção, e mesmo (o que não afirmei; a teoria do fetichismo sempre me pareceu ideológica) do fctichismo - e de anunciar sob o termo de causalidade estrutural (cf. Spinoza) aluguraa coisa que é bem “ a imensa descoberta teórica de Marx” , mas que se pode também chamar, na tradição marxista, a causalidade dialética materialista. Com a condição de reter os efeitos críticos, tudo nessas noções não é vão, como por exemplo na categoria de “causa ausente” Mas não soubemos sempre nos ater a certas pá­ ginas de Lire Ic Capital, nessa primavera de 1963, e nosso flerte com a terminologia estruturalista certamente ultrapassou a medida perI F,m três sentidos: i PolUim. Por exemplo, a dificuldade cm “colocar a mão” sobre “a" causa do que foi chamado por uns “o slalinismo", e por outros “ o culto da personalidade” . Os eleitos estavam bem presentes: a causa, ausente;

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mitida, pois nossos críticos, com algumas exceções, não perceberam a ironia ou a paródia. Pois tínhamos em mente uma Personagem bem diferente do autor anônimo dos temas estruluraüstas c seu mo­ do! Veremos em breve quem. Havia, no entanto, em nossos ensaios certos indícios que per­ mitiam a reflexão. Sempre me perguntei como, por exemplo, o estruturalismo podia engolir e digerir categorias como; “ determina­ ção em última análise” , “ dominação/subordinação” , “supradeterminação”, para citar somente algumas. O que importa, foi-nos de­ cretado, por razões de comodidade flagrantes, “estruturalista.s”, e é no esquife do “ estruturalismo” que a grande família dos socialdcmocratas de todos os partidos e países nos jogou solenementc por terra, e amortalhados, em nome do marxismo, isto c, do marxismo deles. As pás cheias de terra da “ história” , da “prática” , da “ dialé­ tica” , do “concreto” , da “vida”, e naturalmente do “ Homem” e do “ Humanismo” não faltaram. Para um enterro, foi um belo enterro, com essa circunstância bastante particular; os anos passaram mas a cerimônia permanece a mesma. Deixo esses episódios aos quais não falta intere.sse (é preciso ainda saber qual), mas que podem nos desviar do essencial, e por uma razão muito simples. É que as críticas que foram então dirigi­ das modificaram a ordem das coi.sas: elas nos tratavam de estruturalistas, mas permaneciam na sombra do tcoricismo. De certa maII Científico. Suposto que se atinja, por uma análise cientifica, “a” causa, c mesmo se a designamos como “o desvio stulinista” (com o risco de qualificá-la), essa "causa” é cia mesma somente um elo na dialcncu Í Ú l ú L Í l V Í t s ,':lasscs do Movimento operário dominado pela construçáo do socialismo em um único pafs, ela mesma um momento da história do Movimento Operário Internacional, nas lutas de classes mundiais do e.stágio imperialista do capitalismo, sendo o todo determinado “cm última instân­ cia” pela "contradição” entre as relações de produção e as forcas produtivas. .Mas não se pode também “ colocar a mão” nessa contradição “em última ins­ tância" como sendo a causa. Só se pode appcndê-Ia c fazer que ela se submeu às formas da luta das classes que, no sentido enfático, é sua existência histórica. Dizer que "a causa é ausente" significa portanto, rtb materialismo histórico, que a "contra­ dição em última in.stância” rtão está nunca pessoalmenle presente na cena da história (“a hora da determinação em última instância não soa jamais") c não se pode sub­ metê-la diretamente a “ uma pessoa presente". Ela é "causa", mas no sentido dialéti­ co, que determina qual é, na cena da luta das classes, “o elo decisivo” ao qual foi submetida; III. Filosófico. É verdade que a dialética é bem a tese da causa “ausente”, mas entendi­ da de forma contrária ao pretenso raciocínio estruturalista do termo. A dialética tor­ na ausente a causa reinante, pois apaga, eclipsa e "ultrapassa” a categoria mecanicisla, pré-hegeliana, de causa, concebida como a própria bola de bilhar, e que se pode apreender como a causa identificada com a substância, o sujeito, etc. A dialética tor­ na ausente a causalidade raecanicista, apresentando a tese de outra "causalidade” . l

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neira, elas enterravarrr alguma coisa: o desvio principal, o teoricismo, mas sob um desvio secundário (e problemático), o estrutural]smo. E SCentende por quÈ; é que a tese marxista do anti-humanismo teórico, cuja formulação pôde “ cruzar” bons reflexos “estni turalistas” (antipsicologistas, anti-historicistas) de alguns pesquisa­ dores importantes (Saussure e sua escola), aliás estranhos ao mar­ xismo, chocava-se diretamente com sua ideologia humanista. Que certas linhas de demarcação possam assim se cruzar e se recortar em certos pontos sensíveis, que na batalha filosófica seja necessário retomar tal ponto de apoio ocupado por outros (que podem tam­ bém ser adversários) para integrá-lo às posições que lhe proibimos (o que pode então mudar seu sentido, pois inscrevemo-lo então em um dispositivo inteiramente diverso), e que esse investimento não .seja garantido previamente por ninguém e comporte riscos, aqueles mesmos assinalados por Marx quando reconhecer que flertou com Hegel e sua terminologia na seção I de O Capital - nossos críticos, fascinados pelo pscudo-antagonismo do estruturalismo e do huma­ nismo, e fixados numa posição organizada não viram nem reconhe­ ceram. Eis por que é necessário restabelecer a ordem das coisas. Com o recuo do tempo, a experiência das críticas recebidas (não as negligenciei: algumas eram muito pertinentes) e a refiexão que se se­ guiu, acredito poder, seis anos depois, manter os termos de minha breve, mas precisa autocrítica de 1967, e identificar em meus pri­ meiros ensaios [Pour Marx, Lirele Capiiaf) um desvio principal íeoricista racionalista-especulativo), e, em Lire le Capital, seu sub­ produto circunstancial, um flerte muito ambíguo com a terminolo­ gia estruturalista. Mas, como o estruturalismo está em causa, eu gostaria de dizer uma palavra. Esta especialidade bem francesa não é uma “ Filosofia de filó­ sofos”: nenhum filósofo lhe deu seu nome, nem lhe imprimiu sua marca, nem retomou esses temas flutuantes e difusos para lhes con­ ferir a unidade de um pensamento sistemático. Não é um acaso. O estruturalismo, nascido de problemas teóricos encontrados por cientistas em sua prática (em Linguística, depois de Saussure, em Etnologia, depois de Boas e Lévi-Slrauss, em Psicanálise, etc,), não é uma “ Filosofia de filósofos” , mas uma “ Filosofia” , ou uma “ideologia filosófica de cientistas” . O fato de seus temas serem difu­ sos e flutuantes, e seu limite mal definido, não impede, no entanto, de caracterizar a sua tendência gera!: racionalista, mccanicista, mas, acima de \\iáo,forma!isía. Até ao limite (e isso pode-se ler em certos textos de Levi-Strauss e nos linguistas ou outros lógicos filosofan99

tcs), 0 eslruturalismo (seria melhor dizer: certos eslruturalistas) ten­ de para o ideal da produção do real sob o efeito de uma combinação qualquer de elementos. Mas, naturalmente, como “ ele” manipula todo um lote de conceitos emprestados de disciplinas existentes, não seria honesto acusar de eslruturalismo o primeiro que se serve do conceito de estrutura! É aqui que importa ter em mente que o eslruturalismo não é uma Filosofia terminada, mas um conjunto de temas difusos, que só realiza sua tendência-limite em certas condiçôês definidas. No que diz respeito ao que se “entende” por eslruturalismo (cx. o antipsicologismo), segundo o que lhe parece ser emprestado quando se cruzam simplc-smente conceitos que ele próprio tomou empresta­ do, conforme penetramos na lógica extrema de sua inspiração, não somos mais eslruturalistas, somo-lo mais ou menos, ou somos ver­ dadeiramente. Ora, ninguém poÜe pretender que tenhamos jamais cedido ao idealismo formalista delirante de uma produção do real pelo combinatório de elementos quaisquer. Marx fala bem da “combinação” de elementos na estrutura de um modo de produ­ ção. Mas essa combinação {Verhindung) não é um “combinatório” formal; nós a observamos expressamente. De propósito. De fato, a mais importante linha de demarcação passa aqui mesmo. Por exemplo, não é o caso de deduzir (portanto prever) os dife­ rentes modos de produção “possíveis”, pelo jogo formal das dife­ rentes combinações possíveis dos elementos, e em particular não é possível construir então, a priori... o modo de produção comunista! Marx emprega constantemente os conceitos de lugar e de função, e o conceito de 'rmger (“ portadores”), como suporte de relações, mas isso não c para esvaziar as realidades concretas, reduzir os homens reais a puras funções de suportes - é para tornar inteligíveis os me­ canismos, apreendendo-os em seu conceito, e, partindo deles (pois c 0 único caminho possível), tornar inteligíveis as realidades concre­ tas que só podem ser apreendidas por esse desvio da abstração. Não é por isso que Marx é - a pretexto de utilizar os conceitos de estru­ tura, elementos, lugar, função, Trãger, relações, determinação por relações, formas e formas transformadas, deslocamento, etc. - um estruturalista, pois ele não c um formalista. Aqui passa a segunda li­ nha de demarcação. Com efeito, os conceitos de Marx são utilizados e confinados em limites precisos; c eles são submetidos a outros conceitos que de­ finem seus limites de validade, os conceitos de processo, de contradi­ ção, de tendência, de limite, de dominação, de subordinação, etc. .^qui passa a terceira linha de demarcação. 100

Alguns puderam dizer, ou dirão um dia, que o marxismo se distingue do estruturaiismo pela prioridude do processo sobre a esíniiura. Formalmcntc isso não c 1‘also, mas é também verdade em Hegel! Se quisermos atingir o âmago da questão, é necessário ir muito mais além. Pois pode-se conceber também um formalismo do processo (de que os economistas burgueses nos oferecem, cada dia, a caricatura), e então um estruturaiismo... do processo! Em verda­ de, é necessário colocar a pergunta do estatuto estranho desse con­ ceito decisivo na teoria marxista que é o conceito de tendência (lei tcndcncial, lei de um processo tendencial, etc.). No conceito de ten­ dência, allora de fato não somente a contradição interna ao proces­ so (o marxismo não é um estruturaiismo, não porque ele afirma o primado do processo sobre a estrutura, mas porque afirma o prima­ do da contradição sobre o processo; no entanto, isso não é suficien­ te), mas ainda outra coisa, que política c filosoficamente é muito mais importante, a saber o estatuto singular, c sem exemplo que faz da ciência' marxista uma ciência revolucionária.. Não somente uma ciência de que os revolucionários podem se servir para a revolução, mas uma ciência de que eles podem se servir porque ela está, no dis­ positivo teórico de seus conceitos, sobre posições teóricas de classe revolucionárias. Evidentemente, não soubemos ver claro, em 1965, nesta última questão. Isso quer dizer que não apreendemos a medida, excepcio­ nal, do papel da lula das classes na Filosofia de Marx e no dispositi­ vo conceituai do próprio Capital. É exato: suspeitando que a ciên­ cia marxista não era “ uma ciência como as outras” , sem que pudés­ semos dizer em que, tratamo-la finalmente como "ciência como as outras”, recaindo assim nos perigos do teoricismo. Mas não somos estruturalistas.

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Sobre Spinoza Se não fomos estruturalistas, podemos agora confessar por quê: por que parecemos sê-lo, mas não o fomos, por que então este singular mal-entendido, que ocasionou o surgimento de livros. Por outro lado, fomos culpados de uma paixão forte e comprometedo­ ra: fomos spínazistas. Evidentemenle, a nosso modo, que não foi aquele de Brunschvicg, atribuindo ao autor do Tratado TeológicoPolitico e da Ética teses que ele, seguramente, jamais confessara, se bem que as autorizasse. Mas ser um spinozista herético faz quase parte do spinozismo, se considerarmos o spinozismo uma das maio­ res lições de heresia da história! Em todo caso, com muito raras e recentes exceções, nossos santos críticos, imbuídos de sua convic­ ção e roídos pela moda, não são então postos em dúvida. A facili­ dade os perdeu: foi tão simples fazer coro e gritar ao estruturalismo! O estruturalismo está na boca de todos, e como não é encon­ trado em nenhum livro, cada qual pode falar sobre ele. Mas Spinoza, c preciso lê-lo e saber que ele existe ainda hoje. Para reconhecêlo, é necessário ao menos conhecê-lo um pouco, Expliquemo-nos portanto sobre este assunto em algumas pala­ vras. Casar o estruturalismo com o teoricismo proporciona muito pouca satisfação e luzes, pois permanecerá sempre ao menos algu102

ma coisa “enraizada” nessa aüança; o formalismo, que, como por acaso, é o essencial do estruturalismo! Ém contrapartida, unir o estruturalismo e o spinozismo pode esclarecer certos pontos e certos limites, no desvio teoricisla, o que é a questão. Mas, então, eis a grande objeção: por que, pois, referir-se a Spinoza, quando se tratava simplesmente de scr marxista? Por que esse devio? Foi necessário, e qual o preço pago? O fato é; fizemos, nos anos 1960-65, esse desvio, e por ele pagamos muito caro. Mas a questão não está aí. questão é; o que pode então significar essa questão? O que pode bem significar ser simplesmente marxista (em Filosofia)? Justamente, cu fizera (e não era o único, mas as razões que então invocava são ainda quase todas atuais) a prova muito concreta que não era absolutamente simples ser marxista em Filo­ sofia, Depois de me ter obstinado durante anos em textos enigmáti­ cos e seus tristes comentários, foi necessário ser partidário de um recuo e de um desvio. Em si, nada de escandaloso, E que não sejam somente invoca­ das as contingências da autobiografia intelectual: partimos todos de um determinado ponto que, não escolhemos; e, para reconhecê-lo e conhecê-lo, é necessário tê-lo abandonado à custa dc alguns esfor­ ços. É o próprio trabalho filosófico que está em causa pois ele pró­ prio requer recuo e desvio. O que fez, então, Marx dc extraordinário, em todo o caminho de sua interminável procura, senão voltar a Hegel para dele se desfazer e apreender, do que reencontrá-lo, para en­ tão se distinguir e se definir? Acredita-se que isso tenha sido um as­ sunto meramcnie pessoal, fascinação, liquidação e retorno a uma paixão de juventude? Em Marx, alguma coisa se passou, que trans­ cende o indivíduo: a necessidade, para toda Filosofia, de passar pelo desvio dc outras Filosofas para se defnir e se apreender ela própria em sua diferença, cm sua divisão. Na realidade (c sejam quais forem suas pretensões), nenhuma Filosofia se dá no simples absoluto de sua presença - c ainda menos a Filosofa marxista (que jamais anunciou essa pretensão). Ela só existe ao “ trabalhar” sua diferença sobre as outras Filosofias, sobre aquelas que podem, por proximidade ou contraste, fazê-la sentir, perceber, e apreender, a fim de ocupar suas próprias posições. Assim Lênin diante de Hegei: trabalhando para isolar dos “restos” e “amontoados” inutilizáveis os “elementos” que podem sustentar seu esforço de definição dife­ rencia). Começamos somente a ver um pouco claro nessa prática necessária '. Como negar que esse procedimento seja indispensável t Cl', o . Lecourl: Um e m e eí son enjeu, Maspero éd., 1973.

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íi toda Filosofia, e o seja à própria Filosofia marxista? Marx, obser­ vou-se bastante, não se contenta com um único desvio de Hegcl, mas se reíerc também, constantemente, com sua confissão explícita, pda insistência de certas categorias, a Aristóteles, “esse grande pen­ sador das Formas” . E quem pode negar que esses desvios indispen­ sáveis luio tenham também pago um preço teórico cuja medida, ainda que a suspeitá.ssemos, não poderia ser estabelecida, c só po­ deriamos cstabelccê-la com a condição de trabalhar por nossa vez nesses desvias? Guardadas todas as proporções (evidentemente), deies usamos assim em nossa audácia ou imprudência {como sc quiser) com Spiuoza. Na nossa história subjetiva, e na conjuntura ideológica e teó­ rica existente, esse desvio se impôs como uma necessidade Por quê? Se for necessário dar uma razão c uma só, então a razão das ra­ zoes é: fizemos o desvio por Spinoza para ver um pouco mais claro na Filosofia de Marx. Precisemos; o maleriaüsmo dc Marx nos obrigando a pensar seu desvio necessário por Hegel./izemoj o des­ vio por Spinoza para ver um pouco mais claro no desvio de Marx por Hegei. Um desvio, pois, mas sobre um desvio. Com este prodigioso risco: compreender um pouco melhor em que e sob quais condições pode ser materialista e critica uma dialética tomada de empréstimo aos capítulos “mais especulativos” da Grande Lógica do Idealismo Absoluto (com reservas, para compreender, também, a “reviravol­ ta” e a “desmistificação”). Ora, essa espantosa e er.igmática contra­ dança de idealismo e de materialismo já se produziu uma vez na his­ tória, sob outras formas (onde Hegei era por excelência reconheci­ do), dois séculos mais cedo, em condições assombrosas: em que po­ dería ter sido materialista c crítica essa filosofia de Spinoza, terrificante em seu tempo e que começava “não pelo espírito, não pelo mundo, mas por Deus”, c não sc libertava jamais, sob todas as es­ pécies e aparências do idealismo e do "dogmalismo”? Na repetição antecipada de Hegei por Spinoza, procuramos e acreditamos dis­ cernir cm que condições uma Filosofia podia, sob suas proclama­ ções e seu silêncio, a despeito de sua forma - ao contrário, pela sua própria forma, isto é, pelo dispositivo teórico de suas teses, enfim, por suas posições - produzir efeitos próprios para servir o materia­ lismo. Daí, percebe-se algumas luzes sobre o que podem bem ser a Filosofia, portanto uma Filosofia, e sobre o materialismo. Daí ou­ tros vislumbres. Eu falava de Hegei e da Grande Lógica. Jusíamente. Hegei co­ meça pela Lógica: “Deus antes da criação do mundo” . Mas como a 104

Lógica se aliena na Natureza, que se aliena no Espírito, que se finda na Lógica, é um círculo que dá voltas sobre si mesmo até ao infini­ to, sem começo. As primeiras palavras do começo da Lógica o afír111 um; o Ser é o Nada. O começo proposto 6 negado; não há come­ ço, logo não há Origem. Spinoza começa por Deus, mas é para ne­ gá-lo como Ser (Sujeito) na universalidade dc seu mico poder infi­ nito (Deus = Natura). E por isso, Spinoza, como Hcgel, rejeita toda te,se de Origem, de Transcendência, de Mundo Passado, e que foi disfarçada na interioridade absoluta da Essência. Mas com essa di­ ferença (pois a negação spinozista não é a negação hegeliana) que se medita no vazio do Ser hegeliano, pela negação da negação, a dialé­ tica dc um Tclos (Telos = Fim), que chega na História aos seus fins: aqueles do Espirito, subjetivo, objetivo e absoluto. Presença abso­ luta na transparência. Enquanto ter “começado por Deus” (e não pelo Scr vazio) protege mais do que nunca Spinoza de todo Fim, que, mesmo quando elc “ abre seu caminho” na imanência, é ainda figura e tese de Transcendência. O desvio por Spinoza nos deixava enircver então pela diferença uma radicalidade que falta a Hegei. Na negação da negação, no Aujhehung (= excesso que conserva aquilo que ultrapassa), nos permita conhecer o Fim: forma e local privilegiados da “mistificação” da dialética hegeliana. E necessário acrescentar que, se Spinoza se proíbe de usar o l- nn, faz a teoria de uma ilusão necessária e então fundamentada? No Apêndice ao Livro I da Éíica c no Tratado Teológico-Polítien, encontrávamos com efeito o que é sem dúvida a primeira teoria da ideologia, que nunca havia sido pensada com suas três característi­ cas; 1) sua “realidade” imaginária; 2) sua inversão interna; 3) seu “centro” : a ilusão do sujeito. Poder-se-ia dizer teqria abstrata da ideologia! Eu gostaria, mas encontrei melhor antes de Marx, qnç quase não falou sobre a questão, salvo na ideologia Alemã, onde ele o fez e muito. E, sobretudo, não é suficiente soletrar a letra de uma teoria, é necessário ainda ver como ela .se desempenha, isto é, pois da é ainda um dispositivo de teses, o que ela recusa e o que autori­ za. A “ teoria” de Spinoza recusava toda ilusão sobre a ideologia, e sobre a primeira ideologia desse tempo, a religião, identificando-a eomü imaginária. Mas ao mesmo tempo recusava a ideologia por simples erro, ou ignorância nua, pois que fundamentava o sistema desse imaginário na relação dos homens no mundo “expresso” pelo estado dc seus corpos. Esse materialismo do imaginário abria o ca­ minho a uma concepção surpreendente do Primeiro Gênero de Co­ nhecimento; qualquer coisa viifercnte de um “conhecimento”, mas o mundo material dos homens tal como vivem, aquele de sua exis105

tência concreta e histórica. Ê isso abusivo? De certas formas, talvez, porém pode-se ler assim Spinoza. De fato é bem assim qüe suas ca­ tegorias funcionam audaciosamente na história do povo hebreu, de seus profetas, de sua religião c de sua política, onde se esboça claramente o primado da política sobre a religião, na primeira obra que, depois de Maquiavel, tenha oferecido uma teoria da história. Mas essa teoria do imaginário ia ainda mais além. Criticando radical mente no Sujeita a categoria central da ilusão imaginária, ela atingia o coração da Filosofia burguesa, que se construía desde o século XIV sobre a base da ideologia jurídica do Sujeito. O anticartesianismo resoluto de Spinoza desempenha-se conscientemente nesse ponto, e a famosa tradição “crítica” aí não se enganou. Ainda sobre esse ponto, Spinoza antecipava Hegel, mas ia mais além. Pois Hegcl, que criticou todas as teses de subjetividade, não reservou seu lugar ao Sujeito, não somente ao “ tornar-Sujeito da Substância" (pelo que ele “ reprovava” em Spinoza o “ erro” de permanecer na Substância), mas na iníeriorizaçÕo do Telos do processo sem, Sujei­ to, que realiza, pela virtude da negação da negação, os esboços e o destino da Idéia. Daí, Spinoza nos descobria, entre o Sujeito e o Fim, a aliança secreta que “mistifica” a dialética hegeliana. Poderiamos prosseguir. Vou me contentar com um último te­ ma: o do famoso Verum index sui et falsi. Eu disse que ele nos pare­ ceu autorizar uma concepção recorrente do “ corte” . Mas só havia este sentido. Afirmando que “o verdadeiro sc indica a si próprio e indica o falso”, Spinoza afastava a problemática do “critério da ver­ dade". Se pretendemos julgar a verdade que se detém por um “ crité­ rio” qualquer, nos expomos à questão do critério deste critério, posto que ele deve ser verdadeiro e até ao infinito. Que o critério seja externo (a adequação do espírito e da coisa, na tradição aristotélica), ou interna (a evidência cartesiana) em todos os casos, o cri­ tério é para ser rejeitado; porque ele só é a figura dc uma Jurisdição ou de um Juiz que deve autenticar e garantir a validade do verda­ deiro. E, do mesmo movimento, Spinoza afasta a tentação da Ver­ dade: como bom nominalista (o nominalismo então podia ser, Marx 0 reconheceu, a antecâmara do materialismo), Spinoza faia somente do “verdadeiro”'. De fato, a Verdade e a Jurisdição do cri­ tério vão sempre lado a lado, pois o critério tem por função autenti­ car a Verdade do verdadeiro. Afastadas as instâncias (idealistas) de uma teoria do conhecimento, Spinoza sugeria então que “o verda­ deiro se indica a si mesmo” , não como Presença, mas como Produ­ to, na dupla acepção do termo “produto” {resultado do trabalho de um processo que o “descobre"), como se verificando em sua própria 106

produção. Ora, essa posição não tem afinidade com o “ critério da prática” , tese maior da Filosofia marxista, pois esse “critério” mar­ xista não é exterior, mas interior, à prática, e como essa prática é um processo (Lênin o disse com insistência: a prática não é um "cri­ tério” absoluto, somente seu processo é convincente), o critério não é uma Jurisdição, é no processo de sua produção que os conheci­ mentos se confirmam. Aí ainda, por sua diferença, Spinoza nos fazia perceber o defei­ to de Hegel. Hegel havia bem proscrito todo critério de verdade, re­ fletindo no verdadeiro como interior a seu processo, mas ele restau­ rava a virtude da Verdade como Telos ao interior do próprio pro­ cesso, pois todo momento aí é mais do que nlinca a "verdade do” momento que o precede. Quando em uma fórmula provocante, re­ tomando a palavra de Lênin (“ a doutrina de Marx é todo-poderosa porque é verdade”), contra o pragmatismo reinante e contra toda Jurisdição (idealista), eu “ definia” o conhecimento como "produ­ ção” e afirmava a interiorização das formas da Cientificidade à “prática teórica” , apoiava-me em Spinoza: não para fornecer ^4 res­ posta, mas para desviar do idealismo reinante, e abrir, pelo desvio de Spinoza, um caminho onde o materialismo pode, se correr o ris­ co, encontrar outra coisa além de palavras, Compreender-se-á que, por trás dessas razões, tenhamos des­ coberto em Spinoza outras teses, que as sustentam, e que as tenha­ mos colocado, também, mesmo que com isso tenhamos forçado o preço, em nosso jogo. Spinoza nos ajudou a ver que o binômio Sujeito/Fim consti­ tui a “mistificação” da dialética hegeliana, mas é isso suficiente para desembaraçá-la, para instaurar a dialética materialista do marxismo, pela simples subtração e reviravolta? Isso não é seguro, pois, libertada desses entraves, a nova dialética pode voltar ao vazio do idealismo, se não está carregada de formas novas, desconheci­ das de Hegel c que lhe conferem a marca do materialismo. Ora, justamente, o que nos mostrava Marx na Miséria da Fiiosofia, na Contribuição e no Capitai? Que o jogo da dialética mcíemlista é dependente do dispositivo de um Tópico. Faço alusão à cé­ lebre metáfora do edifício, onde, para pensar na realidade de uma formação social, Marx coloca no lugar uma infra-estrutura (a “es­ trutura” ou “ base” econômica) e, acima dela, uma supereslrutura. Faço alusão aos problemas teóricos colocados por esse dispositivo: “ a determinação em última instância (da supereslrutura) pela eco­ nomia (a infra-estrutura)” , a “ autonomia relativa (dos elementos) da superestrutura” , sua “ ação de retorno sobre a infra-estrutura”, a 107

EbV/Ã'-;ÍÁ

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diferença e a unidade entre determinação e dominação, etc. Faço enfim alusão ao problema decisivo, interior à infra-estrutura, por exemplo, da unidade das relações de produção e das forças produti­ vas sob as relações de produção, e então ao problema da determina­ ção pelas relações de um lado (o sinal é constante em Marx: cf. os conceitos de estrutura/dementos, de lugar, função, suporte, etc), e de outro, ao problema da dominação. Ora, não se trata em Marx de algumas fórmulas que teriam es­ capado à sua pena ou à sua ^tenção, mas de uma exigência que ex­ prime uma posição essencial ao materialismo e que é necessário le­ var a sério. Pois em nenhum lugar se vê Hegel pensar na figura de um Tópico. Não é que Hegel não proponha distinções tópicas, pois, para só tomar este exemplo, ele fala bem do direito abstrato, do di­ reito subjetivo (a moralidade), e do direito objetivo (a família, a so­ ciedade civil, 0 Estado), e fala também de esferas. Mas Hegel só fala de esferas para di^er “esferas de esferas” , de círculos, para dizer “ círculos de círculos” , ele só adianta distinções tópicas para suspcndê-las, rasurá-las e ultrapassá-las (Aufhebung), pois “ sua verda­ de” está sempre, para cada uma fora dela, além dela. Conheí»-se o resultado dessa denegação idealista: c o direito abstrato que vem primeiro! A moralidade é “a verdade” do direito! A família, a so­ ciedade civil é o Estado são “ a verdade” da moralidade!, e, no inte­ rior desta última esfera (Sittlichkeit), a sociedade civil (digamos: a infra-estrutura de Marx) é “a verdade da” família!, e o Estado “ a verdade da” sociedade civil! O Aufhebung está aí a seu serviço: Aujhebung de todo Tópico. Mas há pior: as “esferas” colocadas no lugar estão dispostas na ordem que dá mais chances possíveis a essa denegação. Todas as esferas da Filosofia do Direito são somente fi­ guras do Direito, existência da Liberdade. E, para fazer a sua “ de­ monstração” , Hegel dissimula a economia entre a família c o Esta­ do, depois do direito abstrato e da moralidade. Eis que deixa sus­ peitar 0 que pode advir de uma dialética abandonada ao delírio ab­ soluto da negação da negação: é uma dialética que, “partindo” do Ser = Nada, produz ela mesma, pela negação da negação, todas as figuras onde ela desempenha, aquilo em que ela é dialética, uma dialética que produz suas próprias “esferas” de existência, é, para dizê-lo brutalmente, uma dialética que produz sua própria matéria. Tese que transpõe e traduz fielmente a tese fundamental da ideolo­ gia burguesa: é o trabalho (do capitalista) que produz o capital. Compreende-se então a marca materialista do Tópico marxis­ ta. Que a metáfora do edifício seja uma metáfora, pouco importa só se pensa em Filosofia sob metáforas. Mas sob essa metáfora, en108

contram-se problemas teóricos que nada têm de metafóricos. Por seu Tópico, Marx coloca no lugar esferas reais, distintas, e que não se referem nem a uma nem a outra pela reconciliação do Aujhebung: “ embaixo” a infra-estrutura econômica, ‘‘no alto” a superestrutura, com-suas.diferentes determinações. A ordem hegeliana está modificada: o Estado está sempre ‘‘por cima” , mas o direito não é mais 0 principal nem está em toda parte, e a economia não está mais presa entre a família e o Estado, sua “verdade” . O lugar da iníra-estrutura designa uma realidade incontornável: a determinação pelo econômico em última instância. Por isso, a relação entre a in­ fra-estrutura e a superestrutura não tem nada a ver com a relação hegeliana: “verdade de...” . O Estado está sempre “por cima” , mas não como “ a verdade da” economia: ao contrário de uma relação de “verdade” ele exerce uma relação de mistificação, fundamentada na exploração, garantida pela força e pela ideologia. A conclusão é clara: a posição do Tópico marxista proíbe à dia­ lética 0 delírio idealista de produzir sua própria matéria; ela lhe im-, põe ao contrário o reconhecimento forçado das condições materiais de sua eficácia. Essas condições prendem-se à definição dos lugares (“esferas” ), a seus limites e a seus modos de determinação na “ tota­ lidade” de uma formação social. Para pensar nessas realidades, a dialética materialista não pode se contentar com formas únicas resi­ duais da dialética hegeliana. Outras formas lhe são necessárias, não-encontráveis na dialética hegeliana. É aí que a referência (por vezes próxima, por vezes muito longínqua) de Spinoza nos servia de referencia: em seu esforço para pensar numa causalidade “ nãoeminente” (isto é, não-transcendente), não simplesmente transitiva (como Descartes), mas também não-expressiva (como Leibniz), uma causalidade que dava conta da eficácia do Todo sobre suas partes, e da ação das partes no Todo - um Todo sem fecho, que só seja a relação ativa de suas partes, Spinoza nos servia de longe, mas corno primeira e quase única testemunha. Seguramente, um marxista não pode .fazer o desvio pór Spino­ za sem pagar o tributo. Pois a aventura é perigosa e, não importa o que se faça, faltará sempre a Spinoza o que Hegel deu a Marx: a contradição. Para só tomar um exemplo, essa “teoria da ideologia” e essa interpretação do “ Primeiro Gênero” como mundo concreto e histórico de homens vivendo em a materialidade do imaginário me conduziam diretamente a uma concepção (que se encontra nos títu­ los da Ideologia Alemã): m aterialid ad e/im ag in ário /in versão/sujeito. Porém, eu via a ideologia como o elemento univer­ sal da existência histórica, e não ia então muito além. Deixei assim 109

por conta a diferença das regiões da ideologia, e as tendências de classe antagônicas que as atravessapi, as dividem, as reagrupam e as opõem, A atiíéncía da "contradição” fazia seu trabalho; não era ■questão.da iuta das classes na ideologia. Pela brecha dessa “Teoria" da ideologia podia então o teoricismo ser tragado: ciência/ideologia. Assim sucessivamente. Mas, a despeito de tudo, parece-me que o resultado não foi nu­ lo, Queríamos compreender o desvio de Marx por Hege], Fizemos o desvio por Spinoza, na procura de argumentos para o materialismo. Encontramos alguns. E, por esse desvio, inesperado senão mui­ to insuspeito, pudemos, senão colocar ou enunciar, ao menos “le­ vantar” (como se levantam lebres em repouso), algumas questões que continuavam talvez a dormir o sono calmo das evidencias eter­ nas, nas páginas fechadas do Capital. Esperando que outros ou de­ monstrem a sua validade, ou lhes dêém uma resposta mais justa, apostamos que continuaremos a ser acusados de estruturalismo...

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Tendências em Filosofia Falei acerca de erro teoricista. Falo agora de tendência teoricista. Emprcguei o primeiro termo para não me esconder nem me poupar em nada, mas o segundo é, se ouso dizer, mais grave, por­ que é justo: tendências errônea, ou, mais certamente ainda, tendên­ cia mal orientada, e então desviante. Desvio. Pois não se pode, a ri­ gor, falar de erro em Filosofia, do ponto de vista marxista, a menos que se pense na própria Filosofia sob as categorias do racionalismo (verdade/erro), isto é, sob teses filosóficas não-marxista. Se eu fa­ lasse simplesmente de meu “erro” filosófico sem retificar esse termo nos termos de tendência e de desvio, cairía sob o golpe da oposição racionalista da verdade e do erro, e denunciaria então meu “erro” passado, em nome de uma “ verdade” que agora podería deter: sem saber por que eu teria recebido o presente, e sem atenção à dialética muito particular que está no trabalho da prática da Filosofia, a qual não é (uma) ciência, mas luta de classes na teoria Adiante­ mos uma tese: só há, literalmentc, erros teóricos científicos, que na relação recorrente uma ciência entretém com sua própria pré-

'I Fórmula proposta na Réponse à .lohtt Lewis. 111

história (que lhe permanece contemporânea, e a acompanha sem cessar como a Outra de sua história). Em Eilosolia deve-se lidar com tendências que se defrontam no “ campo de batalha” teórico existente. Essas tendências se reagrupam em última instância cm torno do antagonismo do idealismo e do materialismo, e eias “exis­ tem” sob forma de “ Filosofias” , que realizam essas tendências, suas variações e suas combinações, em função de posições teóricas de classe cujos riscos são as práticas sociais (política, ideológica, científica, etc.). As Filosofias retomam ou enunciam teses: proposições que não possuem a modalidade das proposiçõs científicas, puramente teóricas, mas são icónco-prálicas, destinadas a produzir efeitos na relação das forças engajadas na batalha teórica de classe para riscos sociais, e, em última instância, nas práticas sociais de classe que constituem esses riscos. Também é necessário, para bem marcar essa diferença, fazer intervir, a propósito das teses e tendências filo­ sóficas, uma categoria que desempenha um papel capital na prática política e na reflexão teórica marxistas: a categoria de exatidão. Eis por que propus {Coiirs de pbilosophie pour scientijiques, 1967) recor­ rer expressamente a essa categoria para qualificar a própria “ natu­ reza” das proposições filosóficas, as teses (ou posições: uma posição que é colocada, toma então posição, ocupando uma posição sobre e contra outras posições), dizendo: “ a Filosofia enuncia proposições que são teses: uma tese;é dita certa ou não". Pode-se dizer outro tan­ to das tendências, resultado de um dispositivo de teses. L'ma ten­ dência c certa ou desviante (ela esboça uma linha certa ou se afasta menos ou mais da linha certa, até lhe ser antagônica). A exatidão não cai do céu, é o resultado de um trabalho, que pode sempre ser considerável, e que é sempre retomado: o ajustamento. Que a Filo­ sofia tenha também uma função teórica, isso não há dúvida, inas a questão é sobre que modo e sob quais condições. Seriam necessá­ rios longos desenvolvimentos para demonstrá-lo. O que eu quis fa­ zer sentir, e que me parecia, no estado das coisas, nos tempos em que vivemos, decisivo para o marxismo, é não somente “ intricar” a função térica c a função prática da Filosofia mas o primado da fun­ ção prática sobra a Junção teórica na própria Filosofia. É para mar­ car a importância decisiva dessa posição (Tese), e para que .seja bem claro o primado da função prática, que adiantei a tese: “a Filosofia é, em última instância, luta de classes na teoria” . Teses certas, tendência certa, desvio...Essas categorias nos per­ mitem dar uma representação bem diversa da representação racionalista do que se passa numa “ Filosofia” . Ela não c um Todo de 112

proposições homogêneas submetidas ao veredicto do binômio verdade/erro. Ela é um sistema de posições (teses), e ela própria ocupa, por essas posições, posições na luta teórica de classes, no combate, sobre o adversário e contra o adversário. Mas o adversário não é também um corpo unido: o campo dé batalha filosófico não é então a reprodução, sob a forma de “sistemas” opostos, da simples oposi­ ção racionalista da verdade e do erro. Não há, de um lado, o campo homogêneo dos bons, e, do outro, aquele dos maus. As posições dos adversários são mais freqüentcmente intricadas umas nas ou­ tras - todos os adversários não o são na mesma dose, e na mistura, não c sempre fácil identificar dentre a multidão o adversário princi­ pal, c reconhecer que existem, abaixo dele, adversários secundários, que se batem seja sobre antigas posições (como se a frente de bata­ lha não tivesse mudado), seja por riscos “parciais” ou deslocados. É necessário então se bater, senão por todos os lados ao mesmo tempo, ao menos em várias frentes, levando-se em conta a tendên­ cia principal, as tendências secundárias, o risco principal e os riscos secundários, “trabalhando” para ocupar posições certas. Tudo isso não pode evidentemente se regulamentar pelo milagre dc uma cons­ ciência assegurada de tudo dominar na evidência. Não há milagre. Um filósofo marxista, que pode intervir na luta de classes teórica, deve partir das posições)à reconhecidas e asseguradas pelos comba­ tes teóricos da história do Movimento operário - mas só pode co­ nhecer o estado atual do “ terreno” teórico e ideológico com a con­ dição de rcconhecê-lo, ao mesmo tempo teórica e praticamente: na luta e pela luta. Que em sua tentativa ele possa chegar a ocupar, mesmo partindo de posições já asseguradas, e para atingir adversá­ rios declarados ou ocultos, certas posições, que, no processo da prática, demonstrarão ser posições desvianíes, deslocadas em rela­ ção à linha certa qUe ele visa: nada de espantar. O essencial c que cie reconheça então seu desvio, c retifique suas posições, para torná-las mais justas. Mas vamos mais além. Se é verdade que a Filosofia, “ luta de casses na teoria” , é cm última instância essa confrontação interpos­ ta de tendências (idealismo e materialismo) de que falam Engels, Lênin c Mao, como essa luta não se desenvolve no ar, mas sobre o terreno teórico, e como esse terreno muda de acidentes no curso da história, e ao mesmo tempo, os riscos tornam também novas for­ mas, pode-se dizer que as tendências idealistas e materialistas que se confrontam através de todos os combates dos filósofos, sobre o campo de batalha, não se realizam jamais em estado puro cm nenhu­ ma “Filosojia". Em toda “ Filosofia” , mesmo quando ela representa de forma, declarada e tão “consequente” quanto possível uma das 113

(Iims grandes letidências antagônicas, existem êíementos notáveis, oii elementos virtuais da ouíra tendência. E, como evitá-lo, se a es­ sência dc toda Filosofia é tentar investir as posições do adversário, e então interiorizar o conflito para assim assegurar o domínio: enlão, esse domínio pode escapar àquele mesmo que quer instaurá-lo. for uma simples razão: o destino das teses filosóficas não depende dc sua simples posição - porque a luta de classes na teoria c somen­ te secundária em relação à luta de classes pura e simples, porque há uma aparência na Filosofia que a faz aparecer como Filosofia, mes­ mo e sobretudo quando d a não quer ouvir falar dela. Eis por que, para falar e julgar uma Filosofia, deve-se partir d:ts categorias de Mao sobre a contradição. Ele, que fala antes de tudo de política, mesmo em seus textos filosóficos - e tem razão em nm ponto insuspeito - nos dá elementos para sua afirmação, o que concorda com o que Engels e Lênin escreveram, e que permanece cm teoria a “ leitura materialista” leninista, não somente de Hegel, o absoluto do idealismo, mas de todos os filósofos sem exceção (in­ clusive os próprios Engels, Lênin e Mao): em toda Filosofia, em toda posição filosófica, é necessário considerar a tendência em sua contradição, e nessa contradição a tendência principal e a tendência secundária da'contradição, e em cada tendência o aspecto principal c o aspecto secundário, e assim sucessivamente. Mas não se trata de uma divisão platônica infinita e formal. É necessário ver como essa divisão se fixa em uma série de nós, onde a conjuntura políticoteórica define o nó central (“ o elo decisivo”) e os nós secundários. Mudemos de metáfora: a “ frente” principal e as “ frentes” secundá­ rias, o ponto dc ataque e de defesa principal, os pontos de ataque e dc defe.sa secundários. Certamente, é, nessa ibrma, muito esquemática, c diremos mesmo escolástica: eu distingo, diz o fikisofo de M olière, que caricatura assim a divisão (operação maior da prática filo­ sófica que realiza por suas demarcações uma tendência da luta) transformando-a em simples distinções, que instituem objetos e es­ sências. No entanto, as “ distinções” de Lênin e Mao não são distin­ ções, que fixam um resultado: mas divisões cujo traçado abre um caminho. Partindo daí, pode-se trabalhar ~ melhorando até o infi­ nito os instrumentos de trabalho - para compreender um pouco melhor o que se passa “ na” Filosofia e em “ uma” Filosofia. Por que essas observações gerais? Para poder qualificar me­ lhor uiu pouco mais por cima, a “ tendência” de meus primeiros en­ saios. Por sua tendência principal, e apesar da severa crítica que lhes dirijo, acredito que eles defendiam, á sua maneira, com seus “ in.sLrumentais” , e em uma conjuntura precisa, posições úteis para a teoria marxi.sta e para a luta de classes proletária: contra as mais 114

ameaçadoras formas da ideologia burguesa, humanismo, historicismo, pragmatismo, evolucionismo, economismo, idealismo filosófi­ co, etc. Mas, por sua tendência secundária, teoricista, esses mesmos ensaios exprimiam um desvio, nocivo às posições e à luta de classes marxistas. Mas não nos podemos contentar com um simples desconto; de um lado/do outro. É necessário, ao mesmo tempo, reconsiderar o conjunto, isto é, os efeitos de cada tendência sobre a outra e o resul­ tado global. Pode-se então falar de uma unidade contraditória (en­ tre a tendência principal, no conjunto certo, e a tendência secundá­ ria, desviante). Nessa unidade, a tendência teoricista não teve efeito sobre as teses da tendência principal.^Os mais políticos de meus críticos realçaram-na bastante: não é quase a questão da luta de classes por si mesma em Pour Marx e Lire e Capital,' não é então o caso quando falo da função prática e social da ideologia; e natural­ mente (é sem dúvida o defeito mais grave em ensaios dc filosofia marxista) não é também o caso de posição de classe na teoria. Mas por outro lado, não se podem também omitir, no seio de sua con­ tradição, os efeitos da tendência principal (justa) sobre a tendência secundária (desviante). Influenciada pela tendência principal, algu­ mas de minhas teses teoricistas, sobretudo apoiadas em Spinoza, têm, elas também, desempenhado um papel no combate. Não me ocorre dizer qual foi o resultado dessa empresa, que problemas foram postos em evidência, que outros esclarecimentos, que categorias e conceitos foram propostos, que permitiram talvez melhor compreender o que nos oferece e nos reserva a extraordiná­ ria teoria que traz o nome de Marx. Mas acredito poder dizer que uma "frente” foi aberta; e que se não foi de todo apreendida c de­ fendida da mesma maneira, com argumentos igualmente certos, ao menos no essencial (a tendência principal), ela foi apreendida em posições materialista-dialcticas. Aqueles que eu visava reconhece­ ram então os pontos fracos. Se não souberam ter uma “visão de conjunto” (para alguns, essa exigência pouco importava), eles tira­ ram partido dos detalhes como podiam, e inventaram o resto. É uma luta leal. Mas, o que por outro lado é importante, algumas das teses que atacavamos tiveram que recuar, tais como as teses huma­ nistas, historicistas, etc. Mas agora que aprendi a lição da “ prática” , sabendo através de Lênin que é “mais grave não reconhecer o erro do qne cometêlo” , posso, retornando a esse passado, e reconsiderando minhas te­ ses à luz da contradição que as perseguia, “ fazer a triagem” . 115

É necessário, evidentemente, se desvencilhar de teses existen­ tes, porque cm seu estado atutil elas são falhas (mal orientadas) e portanto nocivas. Por exemplo, a definição da Filosofia como “Teoria da prática teórica” parece-me propriamente indefensável e rejeitávcl. E não é suficiente suprimir uma fórmula; mas retificar, em seu dispositivo teórico, todos os efeitos e os ecos provocados por sua ressonância. Da mesma forma, a categoria da “prática teó­ rica”, que foi muito útil em seu outro contexto, c no entanto perigo­ sa pelo equivoco, que une sob um único e mesmo vocábulo a práti­ ca cientítica e a prática filosófica, e por isso induz a idéia de que a Filosofia possa ser (uma) ciência; mas, numa configuração que nãó precipita esse equivoco em confusão especulativa, essa categoria pode ainda, na ocasião, servir, pois ela indica a “ teoria” do apelo materialista da prática. Quanto à oposição ciència/ideologia, disse 0 bastante para que se compreenda que é necessário renunciar sem olhar para a figura racionalista-especulativa de sua generalidade, para “ retrabalhá-la” sob outro ponto de vista, o que não pode im­ pedi-la de eclodir nos elementos do processo complexo da “produ­ ção” dos conhecimentos, onde se combinam os conflitos de classe das ideologias práticas, das ideologias teóricas, das ciências existen­ tes e da Filosofia. Mas há outras teses e categorias que podem, mesmo cm sua antiga forma, pre.star serviços teóricos e políticos na batalha e na pesquisa, com a condição talvez de deslocá-las, mesmo insensivel­ mente (as “nuanças” de Lênin), c de concentrá-las em um dispositi­ vo teórico mais justo, melhor ajustado. Não passarei isso em revista, cada um pode formár sua própria convicção. No todo, é preciso le­ var a sério as referências da luta de classes teórica, para melhor re­ conhecer e conhecer o adversário de classe, isto é, sobre o terreno teórico existente (para melhor conhecê-lo também), os adversários filosóficos, c ocupar posições teóricas de classe mais justas, para de­ ter c defender uma frente mais bem ajustada. O que faltava de essencial em seus primeiros ensaios: a luta de classes e seus efeitos na teoria - eis o que permite deslocar de seu (mais) justo lugar certas categorias das quais eu partira. Portanto, para retornar a elas, o famoso “corte” . Mantenho-o então, com seu próprio título, mas deslocando-o, ou melhor, assinalando seu lugar sobre a terra firme da frente do materialismo dialético, em lugar de deixá-lo perigosamente flutuar na atmosfera de um racionalismo perigosamente idealista. Mas que quer dizer colocá-lo em seu devi­ do lugar, em um dispositivo mais bem ajustado? Antes de tudo re­ conhecer, o que eu não soube fazer, uma vez que ele detém um risco 116

real, por ocasião de Calos específicos c inconlcslávcis dos quais ele é o indício, e não c a úilimu palavra nesse assunto. Pois não somente é necessário dizer que o.corte não é para ele mesmo sua própria luz, pois ele se contenta em registrar o simples fato de sintomas e de efeitos produzidos por um acontecimento teórico, o surgimento his­ tórico de uma nova ciência. Mas ainda esse acontecimento da histó­ ria teórica deve ser explicado pelo concurso das condições mate­ riais, técnicas, sociais, políticas e ideológicas que o comandam. E, dentre essas condições, é necessário, cm certos casos, e de uma for­ ma incontestável no caso dc Marx, reter em primeiro plano a inter­ venção das posições teóricas de classe, ou o que se pode chamar a in­ tervenção da “ instância” filosófica ^ No caso da teoria marxista, o acontecimento denominado “corte” , tal como o defini, encontra-se com efeito produzido como uma “criança sem pai” , pela confluência do que Lênin chamou as Três fontes principais, ou seja, por uma palavra mais próxima, pela interferência, ou conjunção, sobre a base da luta das classes dos anos 1840-48 (onde a luta de classes burguesia/proletariado predomina sobre a luta dc classe histórica feudalismo/burguesia), dc linhas de demarcação c de linhagens teóricas e ideológicas extremamente complexas, que, sem objetivo c cada um por si, se repartem no re­ sultado de sua interferência. Ent.'>o, é possível e necessário isolar, como dominante, nesse processo contraditório, o que podemos chamar a mudança de posi­ ção teórica de classe do “ indivíduo” histórico Marx-Engels. Essa mudança de posição teórica de classe tem lugar na Filosojia, sob o efeito das lulas de classes políticas e de sua experiência. Essa cons­ tatação não tem nada de estranho, se, como o sugiro, a Filosofia é, em última instância, lula de classe na teoria. Insisto neste ponto: remonta, com efeito, diretamente a meus primeiros ensaios. Dizia eu então; a questão essencial é aquela da Filosofia marxista. Eu o tenho sempre em mente. Mas, se tivesse ob2 Ainda um exemplo preciso. Duvida-se que eu rciome como esboço esle termo: instância. Ainda uma categoria, que na c.spera dc outra, mais bem ajustada, deve ser conservada, mas colocada em seu próprio lugar. Ora, soprou nesses tempos, com os riló.sofos comunistas, um vento para derrubar todas as instâncias... Não é porque al­ guns ,se servem da “ instância” em todos os cardápios, a propósito e fora de propósi­ to, em pequenas combinações que fazem .seus negócios que haja necessidade de se conduzir assim. De acordo com a parte que mc cabe, onde certamente abusei das “instâncias” , então, na falta dc melhor termo, não falarei mais de “instância econô­ mica”, mas manterei o precioso termo instância para a superestrutura: o listado, o Direito e a /■ilosojia.

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scrvado bem, em 1960-65, qual era a questão essencial, vejo agora que não a vi-clarameníe... Eu a definia como “ Teoria da prática teórica” , contcrindo-lhe, apenas sob o termo “ teoria” , o mesmo es­ tatuto de uma ciência. Superestimando teoricamente a Filosofia, ti­ nha catão, como não podia deixar de ser, de destacar aqueles que me reprovavam justamente por não “ fazer intervir” a luta das clas­ ses, politicamente subestimada. Testemunha ainda, em Lénine et ia Philosophie, onde, no entanto, retifico o essencial de meu desvio, em uma nova definição da Filosofia (“ a política na teoria” ), o siste­ ma da “ dupla representação” , igualitária, ao lado das Ciências e da Política, e da Tese, retomada, não por acaso, por Hegel: a Filosofia ergue-se sempre ao entardecer no sem-retornò histórico de um úni­ co acontecimento, não o acontecimento de uma revolução politicoideológica, mas o acontecimento do nascimento ou da recomposi­ ção das únicas Ciências. Era ainda uma solução de destino, isto é, dc semicompromisso, que, desempenhando seu papel nos aconteci­ mentos da história das ciências e nos seus contragolpes filosóficos, não lhes correspondia no entanto à sua parte correta, mas lhes cor­ respondia a priori à parte ntais bela. Se proponho hoje uma nova fórmula: "a Filosofia ê. em última instância, luta de classes na teo­ ria” , é justamente para colocar em seu justo lugar ndu só a luta das classes (última instância), mas também as outras práticas sociais (então a prática científica) cm sua “ relação” com a Filosofia. A partir daí, novas pesquisas são possíveis.

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SOBRE A EVOLUÇÃO DO JOVEM MARX íJulho de 1970}

I Se me pedissem para resumir em algumas palavras a Tese es­ sencial que eu quis defender em meus ensaios filosóficos, cu diria; Marx fundou uma nova ciência: a ciência da História. Acrescenta­ ria; essa descoberta científica é um acontecimento teórico e político sem precedente na história humana, E precisaria: esse acontecimen­ to é irreversível. -i■ Um acontecimento teórico: antes dê Marx, o que se pode chamar'õ'“Contincnle-História’‘ estava Ocupado por concepções ideo­ lógicas, de inspiração seja religiosa, seja morai, seja juridicopolitica, enfim por Filosofias da História. Elas pretendiam repre­ sentar aquilo que se passa nas sociedades e na história. De fato, elas só faziam disfarçar sob noções defqr^antcs e enganadoras os meca­ nismos que governam as sociedades c a história. Essa mistificação nao foi um acaso: ela se corporificáva junto a sua função. Essas concepções só eram de fato osid^sjigamentos teóricos de ideologias práticas (religião, moral, ideologia jurídica, política, etc.) cuja fun­ ção essencial consiste em reproduzir as relações de produção (= de exploração) das sociedades de classe. Foi rompendo com essas con­ cepções ideológica.s que Marx “ abriu” o “Continente-História” . Abriu: pelos princípios do materiali.smo histórico, pelo Capital e suas outras obras. Abriu: pois, como diz Lcnin, Marx só fez colocar as “ pedras angulares” de um imenso domínio, que seus sucessores 119

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continuaram a explorar, mas cuja vasta extensão e os problemas novos exigem esforços incessantes. Um acontecimento p^litico: pois a descoberta científica de Marx foi desde o princípio, e tornou-se cada vez mais o objeto e o risco de uma luta de classes acirrada e implacável. Demons^ando que a História humana é a história de sociedades de cíasses,_da ex­ ploração e da dominação de classe, e definitivamente da luta dê^ classes, desmontando os mecanismos da exploração c_da ^m inação capitalisfã7 Marx se chocavã~dè frente com os interesses das “clãsse^domrmmte.s. Seus ideólogos se rebelaram e se rebelam cada ‘vez mais contra ele, Em contrapartida, os explorados - e no primei­ ro piano os proletários - reconheceram na teoria científica de Marx “sua” própria verdade: eles adotaram-na e fizeram dela uma arma em sua luta de classes revolucionária, E.sse reconhecimento leva um nome na História: é a União (ou, ainda, como dizia Lcnin, a Fusão) do Movimento operário e da Teoria marxista. Esse Encontro, essa União, essa Fusão não ocorreram nem espontânea nem facilmente. Pois o Movimento operário, que existia antes dajormação e da dit’nsãõ~da Teoria marxista, estava submetido à influência de concepçõe.s ideológicas pequeno-burguesas, como o so cializo utópico, o anarquismo, etc. Foi necessário um grande trabalho e uma grande luta ideológica e política para que essa União tomasse forma e ad­ quirisse uma existência histórica. As próprias condições de sua rea­ lização e de sua existência fazem com que esta União não possa ser um resultado adquirido de uma vez por todas. Submetida à luta de classes, ela deve sempre scr defendida, no curso de uma áspera luta de classes, contra os desvios e as crise^que a ameaçam: testemu­ nham isso, ontem a traição da II Internacional, hoje, a ci.são do Movimento Comunista Internacional, Um fato é incontestável: depois de cem anos, toda a história da humanidade ficou despertada pela União do Movimento operário (e dos povos oprimidos) e da Teoria marxista (transformada em Teoria rnarxista-leninista), Foi suficiente com um pouco de reflexão ver que, sob formas diferentes mas convergentes, essa realidade do­ mina doravante do alto a cena da história mundial: a luta do prole­ tariado e dos povos oprimidos contra o Imperialismo. Esse fato é irreversível. II Poderiamos contentar-nos com essas constatações. No entan­ to, se quisermos (seja qual for o lugar que ocupavamos nessa luta) 120

adiantar na exploração do “ Continenle-História", ou (o que, sob uma relação precisa, vem a ser a mesma coisa) compreender ativamente as Ibrmas contemporâneas da luta de classe proletária, deve­ mos ir raals além. Devemos então perguntar-nos: em que condições íbi possível a descoberta científica de Marx? ~ ~ Esta questão tem todas as aparências de um desvio, mas nem por isso é um. Ela tem todas as aparências de uma questão teórica, Dc fato, tem implicações políticas de uma atualidade evidente.

111 Quando mostramos, em nossos ensaios anteriores, que a des­ coberta científica de Mai^ representava um “corte” ou “ ruptura” com as concepções ideológicas anteriores da história, o que fize­ mos? Que fizemos falando de “corte” ou “ruptura” entre a ciência e a ideologia? Que fizemos falando de ideologia? Desenvolvemos uma análise formal, de que é necessário agora indicar o sentido e traçar os limites. Antes de tudo, procedemos a uma constatação. Tomamos nota de um fato, de um aconfecimento,teórico: ajiscensão de_uma teoria científica da História cm um domínio ocupado até então por con-' cepçücs que qualificamos dc ideológicas. Deixemos de lado, no mo­ mento, esta última qualificação: ideológicas. Mostramos que existia uma diferença irredutível entre a teoria de Marx e essas concepções, Para demonstrá-lo, comparamos seu conteúdo conceituai, e seu modo de funcionamento. Seu,conteúdo conceituai: mostramos que Marx havia substi­ tuído os velhos conceitos (quê chamamos de noções) de base das Fi­ losofias da História por conceitos absolutamente novos, inéditos, “não-encontráveis” nas antigas concepções. Aí, onde as Filosofias da História falavam do homem, de assunto econômico, de necessi­ dade, de sistema das necessidades, de sociedade civil, de alienação, de roubo, dc injustiça, de espírito, de liberdade - onde falavam mes­ mo de “sociedade” - Marx se pôs a falar de modo de produção, de forças produtivas, de relações de produção, de formação social, de infra-estrutura, de superestrutura, de ideologias, de classes, de luta de classes, ctc._Cojicluímos então que não havia relação de conti­ nuidade {niesmo no nesde Economia Política clássica) entre o siste­ ma dos conceitos marxistas e o sistema das noções pré-marxistas. Essa ausência de relação de continuidade, essa diferença teórica, esse “ salto” dialético, nós o chamamos de um “ corte episíemológico” , uma “ ruptura” , “ “ 121

Seu modo de funcionamento: mostramos que na prática ^teo­ ria marxistó funcionava de forma totalmente diversa das antigas concepções pré-marxistas. Pareceu-nos que o sistema dos conceitos de base da teoria marxista funcionava sobre o modo da "teoria” de uma ciência, como um dispositivo conceituai “ de base” aberto sobre a ‘‘infinidade” (Lênin) de seu objeto, isto é, destinado a colo­ car e defrontar sem cessar novos conhecimentos. Digamos, como uma verdade (provisória) para a conquista (infinita) de conhecimen­ tos novos, eles mesmos capazes (em certas conjunturas) de renovar essa primeira verdade. Por comparação, pareceu-nos que a teoria de base das antigas concepções, longe de funcionar como uma verdade (provisória) para produzir novos conhecimentos, se deva, ao contrário, praticamente como a verdade da História, como seu sa­ ber exaustivo, definitivo e absoluto, enfim, como um sistema fecha­ do em si, sem desenvolvimento pois sem objeto no sentido científico do termo, e não encontrando portanto jamais no real senão próprio reflexo espelhado. Aí também, chegamos à conclusão de uma dife­ rença radical entre a teoria de Marx e as concepções anteriores, e falamos de “corte epistemológico” e de “ruptura” . Uma vez que foram por nós qualificadas essas concepções an­ teriores de ideológicas, e que pensamos no “corte epistemológico” ou na “ruptura” da qual havíamos estabelecido ser a constatação uma descontinuidade teórica entre a ciência marxista de um lado e sua pré-história ideológica de outro. Precisemos; não entre a ciênciaem geral e a ideologia em geral, mas entre a ciência marxista e sua própria pré-história ideológica. No entanto, o que nos permitiu dizer que as concepções mar­ xistas eram ideológicas? Ou, o que é a mesma coisa, qual o sentido que demos ao termo ideologia^ ”” ^ Umajzoncepçâo ideológica não traz na testa nem no coração a marca do ideológico, seja qual for o sentido que se dê a essa pala­ vra. Ela SC apresenta ao contrário como a Verdade. Ela ^ pode ser qualificada externa c tardiamente: do ponto de vista da existência da ciência marxista da História. E afirmo: não somente do ponto de vista da existência da ciência marxista como ciência, mas do ponto de vista da ciência marxista como ciência da História. De fato, toda ciência, desde que surgiu na história das teorias e .se verificou cõmo ciência, faz aparecer sua própria pré-história teó­ rica, com a qual ela rompe, como errônea, falsa, não verdadeira. É assim que ela a trata praticamente; esse tratamento é um momento de sua história. .Mas encontram-se sempre filósofos para dela tirar conslusões edificantes; para fundamentar essa prática recorrente 122

(retrospectiva) uma teoria idealista da oposição entre a Verdade e o Erro, entre o Conhecimento e a Ignorância, e mesmo (com a condi“çâcTde tomar o termo ideologia em um sentido não-m arxista)~êntre a Ciência e a Ideologia, em geral. Esse efeito de recorrência (retrospecção) exerce-se também no caso da ciência marxista: quando ela surge, faz necessariamente aparecer sua própria pré-história como errônea, mas ela a faz apare­ cer ao mesmo tempo e cada vez mais como ideológica no sentido marxista do termo. Melhor, ela faz aparecer sua própria préhistória como errônea porque ideológica, e a trata praticamente, como tal. Não somente ela designa o erro, m.as fornece a razão his­ tórica do erro. Ela proíbe então a exploração do “corte” entre a ciência e sua pré-história, como a 'oposição idealista entre a Verda­ de e o Erro, entre o Conhecimento e a Ignorância. Sobre qual princípio repousam essa diferença e essa vantagem sem precedente? No fato de que a ciência fundada por Marx é a ciência da história das formações sociais. Sob esse título, ela dá, pela primeira vez, um conteúdo cientifico ao conceito da ideologia. As ideologias não são puras ilusões (o Erro), mas corpos de repre­ sentações existentes nas instituições e nas práticas; cias figuram na s'uperesírutura, e são fundamentadas na luta das classes. Se a ciên­ cia fundada por Marx faz aparecer como ideológic^as concepções teóricas inscritas na sua própria pré-história, não é somente para denunciá-las como falsas, é também para dizer que eias eram e con­ tinuam a ser recebidas como verdadeiras - e para fornecer a razão dessa “nccéssidáde. Se as concepções teóricas com as quais Marx rompeu (digamos para simplificar; as Filosofias da História) mere­ cem a qualificação de ideológicas, é porque elas eram os^esligsr ‘'"rneníos- íeârico.s de ideologias práticas, assumindo funções necessá­ rias na reprodução das relações de produçãc^de uma sociedade de_ fiasse determinada. Se assim for, o “ corte” entre a ciência marxista e_sua préhistória ideológica nos remete a uma coisa bem diversa de uma teo­ ria da diferença entre a ciência e a ideologia, a uma coisa bem diver­ sa de uma epistemologia. Ela nos remete, de um lado, ajima teoria da superestrutura, onde figuram o Estad£e as ídeologrãs'(fehtéi ctízeFsobre isso algumas palavras no artigo sobre os apafêlhõFidcõlógicos de Estado); de outro lado, a uma teoria das condições mate^ riais (produção), sociais' (divisão do trabalho, luta das classes), "ideológicas e filosóficas dos processos de produção dos conheci­ mentos. Essas duas teorias dependem em última análise do matérialismo histórico. 123 ■

J

Mas, se assim for, é necessário interrogar a própria teoria científica de Marx sobre as condições de sua própria “irrupção” no campo das concepções ideológicas com as quais eia rompeu.

IV Os mestres do marxismo (Marx primcirainenlc, Engels e de­ pois Lênin) sentiram bem que não era suficiente constatar o surgi­ mento de uma ciência nova, mas que era necessário fornecer uma análise, de acordo com os princípios da ciência marxista, das condi­ ções desse surgimento. Encontram-se os primeiros elementos dessa análise em Engels e Lênin, sob a forma da teoria das “Três fontes” do marxi.smo: a Filosofia alemã, a Economia Política inglesa c o Socialismo francês. A antiga metáfora das “ fontes”, aquda que tr:v em si noções idealistas (a origem, a interioridade da corrente, etc.), não nos induz cm erro. O que é inteiramente observável nessa teoria “clássi­ ca” é em primeiro lugar que ela refiete sobre a descoberta de Marx não em termos de gênio individual ou de autor, mas era termos de conjunção de elementos teóricos diferentes e independentes {Três fontes). Em seguida ela apresenta essa conjunção como tendo pro­ duzido um efeito fundamcntalmenle novo cm relação aos elemen­ tos qiiç entravam nessa conjunção: exemplo de “salto” óu “salto qualitativo” , categoria essencial da dialética materialista. Tno entanto, Engels e Lênin não se atêm a isso. Não defendem uma concepção puramente interna, puramenle “epislcmológica” 'do surgimento dá ciência marxista. Lembram que esses três elemen­ tos teóricos remetem a uma fundamentação anterior prática; a uma história material, social e política, dominada por transformações decisivas nas forças e nas relações de produção, por séculos de luta de classes da burguesia ascendente contra a aristocracia feudal, do­ minada enfim pelas primeiras grandes ações-da luta de classes pro­ letária. Em uma palavra, eles lembram que são realidades práticas (econômicas, políticas, ideológicas) que são representadas teorica­ mente, sob formas mais ou menos abstratas, na Filosofia alemã, na Economia inglesa e no Socialismo francês. _ Elas estão aí representadas, mas ao mesmo tempo estão tam­ bém deformadas, mistificadas e mascaradas, pois esses elementos teóricos são de natureza profundamente ideológica. É então que se coloca a questão decisiva. Não c de falo suficienlc comprovar que a conjunção desses três elementos teóricos produziu o surgimento da ciência marxista. É 124

ainda necessário se perguntar camu essa conjunção ideológica pôde produzir uma conjunção científica, e esse encontro uma “ruptura” . Em outros termos, é necessário se perguntar como c por que, na ocasião’dessa conjunção, o pensamento marxista pôde í «í/ - ideo­ logia; ou ainda qual é o deslocamenlo que produziu essa prodigiosa transformação, qual é a mudança cc ponto de vista que colocou em dia c que estava mascarado, transformou o sentido do que fora ad­ quirido, e descobriu nos fatos uma necessidade desconhecida. Eu gostaria de propor a essa questão os primeiros elementos de uma resposta, adiantando a seguinte tese: foi deslocando-se sohçe. as posições de classe absoiutamcnte inéditas, proletárias, que Marx desencadeou a eficácia da conjunção teórica de onde saiu a ciência da História.

Pode-sc mostrá-lo retomando em grandes traços os “momen­ tos” da “evolução” do pensamento do jovem Marx. Quatro anos separam os artigos liberal-radicais da Gazeta Renana (1841) da rup­ tura revolucionária dc 1845, registrada nas Teses sobre Feuerbach e na Ideologia Alemã pelas célebres fórmulas que proclamam “a li­ quidação de nossa consciência filosófica anterior” , c a ascensão de uma nova f ilosofia que cessa de “ interpretar o mundo” para “transformá-lo” . Durante esses quatro anos, observamos um jo­ vem filho da burguesia renana passar dc posições políticas e filosó­ ficas burgucsas-radicais para posições pequeno-burguesahumanistas, depois para posições comunista-materialistas (um raaterialismo revolucionário inédito). Precisemos os aspectos dessa “evolução” . Observamos o jovem Marx mudar ao mesmo tempo dc objeto de reflexão (cie passa, no lodo, do Direito ao Estado c depois à Economia Política); mudar de posição fdosófica (passa de Hegel a Feuerbach e depois ao materialismo revolucionário); c mudar de posição política (passa do liberalismo radical burguês para o huma­ nismo pequeno-burguês e depois para o comunismo). Em suas pró­ prias defasagens, essas mudanças estão profundamente ligadas en­ tre si. Não se deve, no entanto, confundi-las, pois elas intervém, em níveis diferentes, e desempenham, cada uma, um papel distinto no processo de transformação do pensamento do jovem Marx. Podemos dizer que, nesse processo, onde o objeto domina a ce­ na, é a posição política (de classe) que ocupa o lugar determinante, mas é a posição filosófica que ocupa o lugar central, pois é ela que 125

:i,ssüt;iir;i ;i rdagão teórica entre a posição política e o objeto da rcIk-xão. 1’ode-se veriílcá-lo empiricamente na história do jovem Marx, É então a política que o faz passar de um objeto a outro {esqucinaticamente; das leis sobre a Imprensa ao Estado c depois à Economia Política), mas essa passagem realiza-se e exprime-se cada vez sob a forma de uma nova posição filosófica. De umjado, a po­ sição filosófica aparece como a expressão teórica da posição políti­ ca (e ideológica) de classe; de outro lado, essa tradução da posição política na teoria (sob a forma de posição filosófica) aparece como a condição da relação teórica ao objeto da reflexão. Se é assim, e se a Filosofia representa então a política na teoria, pode-se dizer que a posição filosófica do jovem Marx representa, em suas variações, as condições teóricas de classe de sua reflexão, Se for assim, não nos surpreendamos que a ruptura de 1845, que inau­ gura a fundação de uma nova ciência, se exprima primeiramente iob a forma de uma ruptura filosófica, de uma “ liquidação” da consciência filosófica anterior, e sob o anúncio de uma posição filo­ sófica sem precedente. Pode-se observar essa surpreendente dialética em ação nos Manuscritos de 1844. Examinando-os de .perto, pode-se aferir a me­ dida do drama teórico que Marx teve de viver nesse texto (ele ja­ mais o publicou e dele nunca falou), A crise dos Manuscritos se re­ sume na contradição insustentável entre a posição política e a posi­ ção filosófica que se defrontam na reflexão sobre o objeto: Econo­ mia Política. Politicamente, Marx escreve os Manuscritos como co­ munista, tentando a impossível aposta teórica de colocar a serviço de suas convicções as noções, análises e contradições dos economis­ tas burgueses, tr^ en d o no primeiro plano o que ele não pode então exprimir como exploração capitalista: o que ele chama “ o trabalho alienado” . Teoricamente, ele os_escreveu baseado em posições filo­ sóficas pequeno-burguesas, tentando a impossível aposta política de introduzir Hegel em Feuerbach para poder falar do trabalho na alienação, e da História no Homem, Os Manuscritos são o protoco­ lo emocionante porém implacável de uma criseHnsustentável: aque­ la que confronta com um objeto encerrado em seus limites ideológi­ cos, posições políticas e posições teóricas de classe incompatíveis. Encontramos o desenlace dessa crise nas Teses sobre Feuerbach e na Ideologia Alemã: ao menos o anúncio de seu desenlyçc, o “ger­ me” de uma “nova concepção do mundo” (Engels).^ O que^ muda, no esclarecimento das Teses, não é a posição política, mas”!!"posição filosófica de Marx. Marx abandona definitivamente Feuerbach, rompe com toda adradição filosófica da “ interpretação do mundo” e se adianta nas terras desconhecidas de um materialismo revolu126

cionário. _Es^a nova posição exprime então na Filosofia a posição política de Marx. Eu diriai Marx deu um primeiro passo, mas um passo decisivo e sem retorno, em direção a posições teóricas (filosó­ ficas) de classe proletárias. Aqui a política ainda foi o elemento determinante: o engaja­ mento cada vez mais profundo ao lado das iutas políticas do prole­ tariado. Aqui ainda é, sob o ponto dc vista teórico, a Filosofia que ocupa o lugar central. Pois é a partir dessa posição teórica de classe que a reflexão de Marx sobre seu objeto, a Economia Política'", vãi tomar um sentido radicalmente novo, romper com todas as concep­ ções ideológicas para jogar c desenvolver os princípios da ciência da História. Dessa forma, tomarei a liberdade de interpretar a teoria das “Três fontes” . A conjunção dos três elementos teóricos (Filosofia alemã. Economia Política inglesa, Socialismo francês) só pode pro­ duzir seu efeito (a descoberta científica de Marx) por ^sheamento que conduziu o jovem Marx não somente a posições pofíticàsrmas também a posições teóricas debelasse proletárias. Sem a política nada se teriã passado, mas sem a Filosofia, a política não teria encontrado sua expressão teórica, indispensável para o conhe­ cimento cicnlífico de seu objeto. Acrescentarei somente algumas palavras. Primeiramente, para fazer observar que a nova posição filosó­ fica anunciada pelas Teses só é aqui anunciada; que não é apresen­ tada de um só golpe nem totalmente realizada; que ela não cessa dc se elaborar silenciosa ou explicita mente nas obras ulteriores, teóri­ cas e políticas, dc Marx e seus sucessores, mais geralmente na histó­ ria da União do Movimento operário e da Teoria marxista; que essa elaboração tem duplo efeito sobre aquela da ciência e da práti­ ca política marxi.sta-leninista. Em seguida, para fazer observar que não é surpreendente que Lima tomada de posição filosófica proletária (mesmo “ no germe” ) seja indispensável para a fundação da ciência da História, isto é, para a análise do.s mecanismos da exploração e da dominação de classe. Em toda sociedade de classe, esses mecanismos sãoTecobertos - mascarados - mistificados por uma enorme camada de repre.senlações ideológicas, de que as Eiiosofias da História, etc. são a forma teórica. Para que esses mecanismos se tornem visíveis, é ne­ cessário sair dessas ideologias, isto é, “liquidar” a consciência filo­ sófica que c a expressão teórica de base dessas ideologias. E neces­ sário, pois, abandonar a posição teórica das ciasses dominantes, e se colocar sob o ponto de vista onde esses mecanjsmos podem-sc tornar visíveis, isto é, do ponto de vista da^clãsse que sofre a expio~

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jação e a domÍnaçâci_;_dc ponto de vista do proletariado. Não é sufi­ ciente adotar uma posição política proletária. É necessário que essã” política seja elaborada como posição teórica (filosófica) para que o que é visível do ponto de vista do proletariado seja concebido e pen­ sado em suas causas e seus mecanismos. Sem tal deslocamento, a ciência da História é impensável e impossívêr " '

VI Acrescentarei, por fim, para retornar a meu princípio, que esse desvio pelas condições do surgimento da ciência da História não é um desvio de erudição. Muito ao contrário, ele nos conduz â atuali­ dade, pois o que foi exigido do jovem Marx 6 sempre, e mais do que nunca, exigido dc nós. Mais do que nunca, para “ desenvolver” a teoria marxista, isto é, para analisar as novas formas da exploração e da dominação capitalista-imperialista, mais do que nunca para as­ segurar uma justa União entre o Movimento operário e a Teoria marxista-leninista, devemos nos colocar em posições teóricas (filo­ sóficas) proletárias: colocarmo-nos aí, isto é, elaborá-las, a partir de posições políticas proletárias por uma crítica radical de todas as ■ideologias da classe dominante. Sem teoria revolucionária, dizia Lênin, não há movimento revolucionário. Podemos escrever: sem posição teórica (filosófica) proletária, não há “ desenvolvimento” da teoria marxista, e não há uma justa União do Movimento operá­ rio e da Teoria marxista,

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IIÍ s u s t e n t a ç Ao d e t e s e e m

ÁMÍENS

“A forma dialética da e;!íposição só é justa quando reco­ nhece seus limites.” MARX: Contrihuition à la critique de feconomie poliiique, Ed. Sociales, 1972, p. 253. l'radiiçào

de RITA LIMA

Apresentação dc Moniesquieu, la politique et l'histoire, dos Manifes­ tes philosophiques de Feuerbach, de Pour Marx e Lire le Capital diante de um juri da universidade de Picardie, era junho de 1975. 129

Introdução

Não penso espantar nem chocar ninguém, ao confessar qiie nunca escrevi nenhum desses textos, nem o pequeno Moníesquieu, nem os artigos de Pour Marx, tampouco os dois capítulos de Lirele Capital, tendo em vista uma tese. Há vinte e seis anos, no entanto, em 1949-1950, coloquei nas mãos dos senhores Hyppolite e Jankélévitch, os projetos de uma grande tese (como se dizia então) sobre “ Política e filosofia no século XVIII na França", e de uma pequena tese sobre o “Segundo Discurso” de J.-J. Rousseau, Na realidade jamais abandonei esses projetos, como o testemunha meu ensaio sobre Montcsquieu. Mas por que essa recordação? Porque ela diz respeito aos textos que lhes serão submetidos. Eu já era comunista, e, sendo-o, tentava também ser marxista, isto é, me esforçava como podia, para compreender o que o marxismo quer dizer. Assim, esse trabalho sobre filosofia e política no século XVIII, eu o entendia " omo uma propedêutica necessária à inteligência do pensamento de Marx. Na realidadejá começava então a praticar a filosofia de uma manêíra que nunca mais^foi por mim abandonada. ^ De início, comecei a praticar com autores do século XVIII, es­ tratagema teórico que me parecia indispensável não só à inteligência de uma filosofia mas à sua existência, Pois uma filosofia não vem ao mundo como Minerva na sociedade dos deuses e dos homens. Ela existe pela posição que ocupa, e ocupa esta posição quando con131

quista o espaço já ocupado por uma outra. Portanto ela só existe por sua diferença conflitual, e essa diferença só pode conquistar e impor mediante um trabalho incessante sobre as outras posições existentes. Essa manobra é a forma do conflito que constitui cada filosofia ao tomar parte na batalha e neste “Kampfplatz” (Kant) que é a filosofia. Pois se a filosofia dos filósofos é essa guerra perpé­ tua (que K.ant pretendeu acabar, impondo a paz perpétua da sua própria filosofia), nenhuma filosofia existe nessa relação de força teórica senão ao se demarcar de seus adversários, e ao atacar a par­ te das posições que estes deveríam ocupar, para assegurar seu poder sobre os adversários que então tem pela frente. Se, de acordo com a extraordinária concepção de Hobbes que falava talvez, elipticamente, tanto da filosofia quanto da sociedade dos homens, a guerra é um estado generalizado, da qual ninguém no mundo está a salvo, e se ela produz como resultado sua própria condição, ao pretender qiie toda guerra seja por essência preventiva, podemos compreender que a guerra filosófica, onde se defrontam sistemas de idéias, supo­ nha esse assalto preventivo de umas posições sobre outras, e por­ tanto a passagem obrigatória de uma filosofia por outras, para defi­ nir e defender suas próprias posições. Se a filosofia 6, em última ins­ tância, luta dc classe na teoria, como mais tarde afirmei, essa luta toma a forma, específica na filosofia, da demarcação, do estratage­ ma e do trabalho teórico sobre sua diferença. E tomo como prova disso, segundo a história da filosofia, o próprio Marx, que só se de­ finiu apoiando-se em Hcgel, para dele demarcar-se. E penso ter lon­ ginquamente seguido seu exemplo', ao me permitir passar por Spinoza para compreender por que Marx passara por Hegei. Porém é bastante evidente que esta concepção da filosofia como luta, é, em última instância, luta de classe na teoria, implicava que se rompesse a tradicional relação entre a filosofia e a política. IJtilizei-mc então, a propósito de filósofos políticos e filósofos sim­ plesmente, dc Maquiavel a Hcgel, passando por Hobbes, Spinoza, Locke, Montesquieu, Rousseau e Kant. Afirmava que era preciso acabar com essa divisão suspeita que, ao mesmo tempo, tratava os políticos como subalternos, isto é, como não-lilósofos ou filósofos dc fim de semana, e investigava a política dos filósofos apenas nos textos em que eles discorrem sobre política. Por um lado considera­ va que todo político, mesmo que não diga quase nada sobre filoso­ fia, como Maquiavel, pode ser filósofo no sentido maior, c por ou­ tro lado que todo filósofo, mesmo que não fale quase nada sobre política, como Descartes, pode ser político no sentido maior, já que a política dos filósofos, isto é, a política que constitue as filosofias 132

como filosofias, é uma coisa bem diferente da concepção política de seus autores. Pois se a filosofia é em última instância luta de classe na teoria, a política que conslitue a filosofia, (assim como a filoso­ fia que sustenta o pensamento dos políticos) não se identifica coni Tâl-õú qual episódio da luta política nem mesmo com as tomadas de partido político dos autores. A política que constitui a filosofia sê apoia sobre uma questão inteiramente diferente e gira em torno de toda uma outra questão; a da hegemonia ideológica da classe domi­ nante, quer se trate de constituiría, rcforçá-la, defendê-la, ou combatêrla. Utilizo-me aqui de fórmulas que não estava então em con­ dições de antecipar. Mas o que posso dizer é que descobri, passo a passo, ao abalar idéias estabelecidas, alguma coisa que se asseme­ lhava ao que chamei mais tarde de “ uma nova prática da filosofia” , e descobrindo a necessidade desta nova prática, praticava-a, por isso mesmo, de todas as maneiras, conquanto que, assim, ela mc propiciasse, mais tarde, uma via de acesso privilegiado a Marx. Sc pareci abandonar esta propedêutica teórica do século XVIII que na realidade não cessou de me inspirar; isso não foi, embora haja quem duvide di.sso, exclusivamente meu caso pessoal. As cha­ madas circunstâncias, que evoco no prefácio de Pour Marx, aquilo que foi batizado com uma palavra sem conceito no XX Congresso “culto da personalidade” -, e as interpretações direitistas que se lançaram ejitão sobre o marxismo, celebrando ou explorando a li­ beração ou a esperança de seu futuro nas filosofias do homem, da liberdade, do projeto, da transcendência, etc., me precipitaram na batalha. Guardadas as devidas proporções, bem entendido, assim como 0 jovem Marx da Gazela Renana “ forçado a opinar sobre questões práticas” , como o roubo de madeiras, ou a censura prus­ siana, fui forçado rapidamente, a menos que renegasse com meu si­ lêncio o que eu pensava, a “ opinar” sobre algumas questões candentes da teoria marxista. Isso me aconteceu por acaso, isto é, pela necessidade banal de uma recensão, editada em 1960 no La Pensée, de uma obra internacional consagrada ao jovem Marx. Essa recen­ são tornou-se um contra-ataque, que tencionava antes inverter que atacar as teses dominantes, deslocando portanto o terreno do deba­ te, e propondo para tanto um determinado número de teses que não deixei de retomar c trabalhar, e depois, retificar. Se evoco essas circunstâncias é para introduzir uma segunda observação sobre o caráter polêmico, essa é a palavra, político de meus ensaios filosóficos. Os ensaios que submeto a vocês deviam tomar o partido de reconhecer abertamente que a luta está no cerne de toda filosofia. Certamente o que acabo de dizer permite com­ preender que eles não são políticos em estado bruto, posto que são 133

filosóficos, nem tampouco polêmicos em estado bruto, posto que sâo o resultado de uma reflexão argumentada, porque todo o senti­ do de seu esforço é avançar e defender a simples idéia de que um marxista não pode se bater, tanto no que ele escreve como no que faz, sem pensar seu combate, sem pensar as co|ndições, os mecanis­ mos e os lances da batalha em que se engaja 0 que o engaja. Esses textos são portanto, intervenções declaradas tm uma conjuntura definida: intervenções políticas na filosofia marxista reinante, ao mesmo tempo contra o dogmatismo c sua crítica direitista, e inter­ venções filosóficas na política, contra o economicismo e seu “ suple­ mento” humanista. Mas como remetiam à história do Movimento operário e a Marx, eles não podiam reduzir-se ao simples comentá­ rio da conjuntura. E tenho a declarar que, o que quer que se pense de suas fraquezas, e de seus limites, esta intervenção filosóficcpolítica foi o ato de um membro do Partido comunista, agindo no seio do movimento operário e por ele, mesmo que de início tenha sido isolado, mesmo que não tenha sempre sido entendido, mesmo que tenha sido e ainda continue a ser criticado no seio do Movi­ mento operário e por ele; é portanto o ato de um militante tentando tomar a sério a política para pensar suas condições, suas pressões e seus efeitos na própria teoria, tentando em conseqiiência disso defi­ nir a linha c as formas de sua intervenção. Se há de convir que uma tal iniciativa não se tenha efetuado sem exigências e sem riscos. E já que falo de riscos, qu&me seja permitido, silenciando todos os ou­ tros, deter-me apenas sobre um deles que tem interesse para a posi~ ção teórica de meus ensaios. Ei-lo. No debate em que me encontro engajado, tenho, sobre determinados pontos políticos e teoricamente estratégicos, tomados conscientemente o partido de sustentar teses radicais, enjo enuncia­ do podia por vezes beirar ao paradoxo, ou seja a provocação teóri­ ca. Dois ou três exemplos podem ilustrar essa tomada de posição. Assim, sustentei e escrevi que teoria é uma prática” , c anun­ ciei a categoria de prática teórica, para escândálo de muitos. Ora, esta tese, seria necessário, como qualquer outra, considerá-la em ^seus efeitos de demarcação, isto é, de posição na oposição. De ini­ cio ela tinha por efeito, contra todo pragmatismo, autorizar a tese da autonomia relativa da teõriãjiogo o'direito para a teoria marxista 3e não sçr tratadj^ como a criada-para-todo-serviço das decisões políticas do dia, mas de desenvolver-se, em união com a prática política e outras práticas, sem abdicar de suas próprias exigências. 134

Mas ao mesmo tempo tinha por efeito, contra o idealismo da teoria pura, distinguir a teoria do materialismo com o selo da prática. Oiitra formulação radical; o caráter interno à prática teórica de seus critérios de validação. Poderia citar Lênin, formulando ele mesmo, entre tantas outras, uma tese provocadora; “A teoria de Marx é todo-poderosa porque é verdadeira” (não é por ser verifica­ da por seus sucessos e insucessos que é verdadeira, mas sim porque, verdadeira, é verificável por seus sucessos e insucessos). Mas recorrí a outros argumenlos;_que as matemáticas não têm necessidade da aplicação física ou química de seus teoremas para demonstrá-los; que as ciências experimentais não necessitam da aplicação técnica de seus resultados para comprová-los. Assim, demonstração e pro­ va- são o produto de dispositivos de procedimentos materiais e teó­ ricos definidos e específicos, internos a cada ciência. Outrossirn era a autonomia relativa da teoria que estava em jogo, desta vez não mais contra o idealismo da teoria, mas contra o pragmatismo e o empirismo de uma indistinção, onde, como as vacas da noite hegeliana, todas as práticas eram pardas.

Finalmente o ultimo exemplo; defendi a tese do antihumanismo teórico de Marx, Tese precisa, a qual não se quis enten­ der em sua precisão e que provocou contra mim a Sanía-Aüança de tudo o que possa existir de ideologia burguesa e socialdemocrata no mundo, e até no seio do Movimento operário internacional. Por que tomei desse modo posições tão radicais? Não me abrigarei com o argumento das‘minhas ignorâncias manifestas, o que sempre pode servir, mas a seu tempo, Quero de início defender a prática dessas posições radicais cm seu próprio princípio. Então, naturalmente, berrou-se contra o dogmatismo, contra a especulação, o desprezo da prática, do concreto, do homem, etc. Ora, nesta indig­ nação havia algo de curioso. Veio-me à lembrança, instigado pela relação que apontei entre filosofia e política, Maquiável, cuja regra de método, raramente enunciada, embora sempre praticada, é de que é in^ispen^vel pen­ sar em extremos, ou melhor em uma posição”õnde se enuncie teselimites, cm que, para tornar o pensamento possível, se ocupe o lu­ gar do impossível. Que faz Maquiável? Para modificar alguma coi­ sa na história de seu país, logo no espírito dos leitores que pretende incitar a pensar para querer, Maquiável explica dipticamente que é preciso se apoiar em suas próprias forças, o que nesse caso quer di-, 135

zcr não contai' com nada, nem com o ícsiado ou o Príncipe existenles, mas_com oJm_ppM_sivcl inexistente: uni Príncipe novo cm um novo” Principado. — ------- ------D7ã~,lxcncontr^i o eco e a razão desse paradoxo provocante em Lênin. Sabemos que alguns anos após O que fazer? e para responder à crítica das fórmulas, Lênin replicava pela teoria da curvatura do bastão. Quando um bastão éstá curvado num mau sentido, dizia Lênin, para corrigi-lo, isto é, para que ele volte e se mantenha reto, é preciso inicialmente curvá-lo no sentido oposto, impor-lhe com a força do punho uma contra curvatura durável. Esta simples fórmu­ la me parecia conter toda uma teoria da eficácia do verdadeiro, pro­ fundamente ancorada na prática marxista. Contrariamente à toda tradição racionalista, que não necessita de uma idéia reta para reti­ ficar uma idéia curva, o marxismo considera que as ii^ias não .têm existência histórica a não ser_qnand^ lo m a d ^ e incorporadas jia 'nTãíerialíüadê das relações sociais^ Por trá.s das relações entre as~ idéias simples, existem relações de força que fazem cont_ que_tais idéias pêrnianeçain iio poder (é o que se chama, em suma, ideologia dominante) e que outrasXdélas lhe sejam submissas (o que se cham^a ideologia dominada) até a mudança da relação de força. O que re­ sulta disXo é~que quando se trata, mesmo nesse domínio aparente­ mente abstrato que tóma o nome de filosofia, de mudar as idéias históricamente existentes, não podemos nos contentar cm enunciar a verdade nua e crua, c esperar que sua evidência anatômica “ ilumi­ ne” como diziam nossos ancestrais do século XVIII, os espíritos; somos efetivamente forçados, já que é imprescindível forçar as idéias a mudar, a reconhecer a força que as mantém curvas, ao lhes impor, por uma contra-força que anula a primeira, a contra-curva necessária para corrigi-las. Tudo isso esboça a lógica de um processo social de luta que su­ pera evidentemente todo texto escrito. Mas em um texto como O que fazer? a única forma que pode tomar essa relação de forças, é a sua presença, sua consideração e sua antecipação em certas fórmu­ las radicais, que fazem sentir no próprio enunciado das teses rela­ ções de força que nele se encontram engajadas entre as idéias novas e as idéias-dominantes. Se posso, modestamente, me inspirar e me autorizar nesses exemplos, eu diría; sim, conscientemente afrontei e tratei a relação entre as idéias como uma relação de força, sim, conscientemente, sobre alguns pontos que considerava importantes “pen.sei em extremos” , e curvei o bastão em outro sentido. Não pelo prazer da provocação mas para alertar os leitores sobre essa relação de forças, para incitá-los-a isso, e para produzir efeitos defi­ nidos, não em função de não sei qual crença idealista na onipoten136

cia tia icoria, que alguns inspetores da teoria mc acusaram, mas, muito antes pelo contrário, na consciência materialista.da fraqueza da teoria entregue a si mesma, isto é na consciência das condições de força que ;t teoria deve reconhecer e às quais deve se submeter para ter uma chance de se transformar em força. E como prova disso que então disse, defenderia naturalmente, numa ocasião, a idéia de que essa relação de força da contracurvatura na curvatura, ou seja que o excesso da formulação de te­ ses c da competência específica da filosofia, e que, mesmo que não tenham enunciado essa lei, como Lênin o tez de passagem, ao valerse de um provérbio, os grandes filósofos sempre a praticaram sob sua denegação idealista, ou sob a notoriedade do “ escândalo" ma­ terialista. Quanto a curvar o bastão em outro sentido, corre-se um risco; de curvá-lo pouco, ou em demasia, risco de toda filosofia. Pois nes­ sa situação,' em que forças e alvos sociais estão em causa, nvas não podem absolutamente ser avaliadas de maneira infalível, não existe instância decisiva. Aquele que intervém desse modo corre o risco de não encontrar de início a medida justa: ao forçar pouco a curva, ou em demasia, corre-se o risco de incorrer num desvio. É, talvez se re­ cordem, o que publicamente reconhecí Ler me acontecido em parte, ao reconhecer desde 1967, e ao explicar ainda recentemente nos Ele­ mentos de auio-crííica, que meus trabalhos de 1965 que submeto a vocês, ao menos Lire le capital, estavam marcados por uma tendên­ cia teoricista e, por pouco que seja, comprometidos em um flerte com a terminologia estruturallsta. Mas, para me explicar sobre es­ sas irregularidades, seria preciso recuar no tempo, não à simples distância de um decurso de 10 anos, mas à experiência dos efeitos provocados, do trabalho e da crítica acerca disso. Dizem que é pre­ ciso dar tempo ao tempo para o entendimento. Eu acrescentaria; principalmcnte do que se diz. Antes de entrar na argumentação, uma palavra sobre o objeti­ vo mais geral de meus ensaios. Esse objetivo se lê nos títulos dc meus livros; Pour Marx, Lire le Capital. Portanto, esses títulos são igualmente palavras de or­ dem. Acredito poder falar aqui aos homens de minha geração, que conheceram os tempos do nazismo e do facismo, da Frente Popu­ lar, da Guerra na Espanha, da guerra e da Resistência, e de Síalin, No bojo das grandes lutas de classe da história contemporânea, es­ távamos engajados nos combates do Movimento operário e pre­ tendíamos ser marxistas. Ora, não era fácil ser marxista e reconhe137

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ccr-sc !ia teoria marxista, mesmo após o XX Congresso, pois, o clügmatismo anterior subsistia com o contra-ponto de tagarelices fi­ losóficas “marxistas” sobre o homem. E como essas tagarelices se apoiavam lileralmcnte nas obras de juventude de Marx, era preciso voltar a Marx para ver mais claramente um pensamento obnubilado pelos testemunhos da história. Não insisto quanto ao sentido político de meu procedimento; ele apresentava a originalidade, que não perdoaram, de criticar o dogmatismo não a partir das posições de direita da ideologia humanista, mas a partir das posições de es­ querda do anti-humanismo teórico, do anti-empirismo e do anticconomicismo. Esse procedimento não foi um ato unicamente meu: como teria conhecimento mais tarde, outros além de mim - e não só Delia Volpe na Itália, mas também jovens pesquisadores soviéticos cujas obras não foram divulgadas - , assim estavam, cada a sua maneira, engajados nâ mesma via. Nossa preocupação era recupe­ rar para a teoria marxista, tratada pelo dogmatismo e pelo huma­ nismo marxista como uma ideologia qualquer, um pouco de seus títulos de teoria e de teoria revolucionária. Marx desejou, no prefá­ cio de O Capital, "leitores que pensem por si mesmos” , Para tentar pensar o que Marx pensou, o mínimo que se podia fazer era retor­ nar a ele, e sem solução de continuidade, “ pensar por nós mesmos” o que ele tinha pensado. Então,' contra as subversões a que o pensamento de Marx fora submetido, pareceu-me indispensável insistir em uma simples idéia; o caráter inédito e revolucionário do pensamento de Marx. Inédito, pois Marx fundara, em um trabalho de elaboração conceituai que se inicia com a Ideologia alemã, e que culmina em O Capital, o que se pode chamar numa primeira abordagem a ciência da história. Revolucionária, pois esta descoberta científica, que armava o prole­ tariado em sua luta, provocava uma reviravolta na filosofia; não apenas ao incitar a filosofia a remanejar suas categorias para tornátorná-las apropriadas à ciência nova e a seus efeitos, mais ainda, sobretudo, ao oferecer à filosofia, pelo conhecimento de sua relação real com a luta de classes, os meios para assumir e transformar sua prática. É esta novidade, esta diferença radical de Marx, revolucionária na teoria e na prática, que pretendí não apenas fazer sentir, como também fazer perceber, e se possível, fazer conceber, já que consi­ derava, e continuo a considerar, política e teóricamente vital para o Movimento operário e seus aliados, que esta diferença fosse pensa­ da. Para isso eu podia apenas colocar-me ao nível da nova filosofia produzida por Marx em sua revolução científica c, - em uma varia138

ção de pensamento - próximo de Spinoza e autorizado por Marx, tentar pensar esta diferença a partir da' nova verdade conquistada. Mas para tanto era necessário que fosse concebida esta filosofia apropriada a pensar esta diferença. Isto é, era necessário ser perspi­ caz na própria filosofia de Marx. Ora, todos sabem que Marx ma­ duro só nos deixou a extraordinária Introdução de 1857, e a inten­ ção não realizada de escrever dez páginas sobre a dialética. Sem dú­ vida a filosofia de Marx está contida (como pretendia Lênin) em O Capital, da mesma maneira que, embora em estado prático, está contida nas grandes lutas do Movimento operário, Eníendi que era preciso seguir nessa direção e, apoiando-me nos fragmentos e exem­ plos disponíveis, tentar lhe dar uma forma merecedora de seu con­ ceito, Por isso a questão da filosofia marxista encontra-se muito na­ turalmente no centro de minha reflexão. Não que eu fizesse dela o centro do mundo, não que eu colocasse a filosofia no poder, mas porque era preciso esse estratagema filosófico para abordar a radicaiidade de Marx. Esta convicção, que continua a manter, não a formularia da maneira que fiz em Pour Marx e em Lite le Capital, embora consi­ dere que não me enganei ao designar sua filosofia como o lugar onde Marx pode ser compreendido, visto que sua posição nela se re­ sume.

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A “ ÚLTIMA INSTÂNCIA...’

Sugiro-lhes agora entrar nos meus ensaios por três vias selva­ gens que os atravessam e se cruzam. Sabe-se que Marx e Engels sustentaram a lese da determinação pela economia em última instância. Esta palavrinha despretensiosa subverte de fato toda a concepção da sociedade e da história reinan­ tes. Não se deu suficiente atenção à figura ou à metáfora na qual Marx representa sua concepção de uma sociedade no Prefácio à Contribuição de 59. Esta figura é a de uma tópica, isto é, de um dis­ positivo especial que assinala em determinadas realidades seus lu­ gares no espaço. A tópica marxista apresenta a sociedade na metáfora de um edifício, cujos andares repousam, na coerência lógica do edifício, sobre sua base. A base é die Basis ou die Struktur, que .se traduz tradicionalmcnte por base e, mais frequentemente, por infraestrutura; é a economia, a unidade das forças produtivas e das rela­ ções de produção sob as relaçõe.s de produção. Sobre o andar térreo da base se ergue o andar ou os andares do Uberbau, era francês, a superestrutura jurídico-política e ideológica. Podemos dizer que é uma simples imagem, simbolizando reali­ dades. Certamente; porém distingidndo-as, o que é importante, e co­ locando o direito positivo, por exemplo, que em Hegel se situa na sociedade çivil, ao lado da superestrutura, c distinguindo muitas outras coisas além das realidades: sua eficácia e sua dialética. 140

Quando Marx diz que a base, ou infra-estrutura, c determinan­ te em última.instância, entende que o que ela determina, é a superestrutura. Por cxeniplo; “A forma econômica específica na qual o sobretrabalho não pago è extorquido dos produtores imediatos, deter­ mina a relação de dominação da produção propriamente dita, e re­ percute por sua vez nela de maneira determinante. ‘ Porém a determinação que Marx pensa é determinação apenas em última instância. Como o disse Engels (Carta a Blocli); “ Segun­ do a concepção materialista da história o fator determinante na his­ tória é, em última instância, a produção c a reprodução da vida real. Nem Marx nem eu afirmamos nada além disso. Se alguém em seguida distorce essa proposição pretendendo que ele signifique que o fator econômica é o único determinante, ele a transforma em uma frase va­ zia, abstrata, absurda". ^ Na determinação da tópica, a última instância é exatamente a última instância. Se ela é a última, como na imagem jurídica que a sustenta, é porque há outras que se figuram na superestrutura jurídico-política e ideológica. A menção da última instância na deter­ minação tem por conseguinte uma dupla função: cia demarca radi­ calmente Marx de todo mecanicismo, e inaugura na determinação o papel das diferentes instâncias, o lugar de uma diferença real onde se inscreve a dialética. A tópica significa então que a determinação em última instância pela base econômica só pode ser pensada cm um todo diferenciado, logo complexo e articulado (a “ Gliederung”), onde a determinação em última instância fixa a diferença real das outras instâncias, sua autonomia relativa e seu próprio modo de eficácia sobre a base. ! Marx prossügue: “Aí sí; fundamenta ioda a estrutura da comunidade econômica oriunda das próprias relações de produção - e, por conseguinte, a estrutura política C]ue llic é própria, E sempre na relação direta entre os proprietários dos meios do produção e os produtores imediatos (a forma dessa relação sempre corresponde tialuralraente a dado niveí de desenvolvimento dos métodos de trabalho e da produtivi­ dade social do trabalho) que encontramos o recôndito segredo, a base oculta da con.slrução .social toda c, por isso, da forma política das relações de soberania e depêndeneia, cm suma, da forma específica do Estado numa ópoca dada." {Capitai, VI, p. Ó07, Civilização Brasileira). 2 Engels prossegue; “A situação econômica é a base, porém as diversas partes da superestrutura - as formas políticas da luta dc classes e suas consequências, as consti­ tuições estabelecidas pela classe vitoriosa, uma vez ganha a batalha, etc. - as formas jurídicas - e em consequência inclusive os reflexos de todas essas lutas reais nos cé­ rebros dos combatentes: teorias políticas, Jurídicas, filosóficas, idéias religiosas e seu descnvolvinícnto posterior até converter-sc em sistemas dc dogma.s - também exer­ cem sua influencia sobre o curso das lutas hi.sióricas e em muitos casos preponderam na determinação dc sua forma.

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Antes de deduzir as conseqüências disso, gostaria de assinalar a importância teórica capital desta categoria “ última instância” , considerada frequentemente como uma aproximação ou uma recu­ peração filosófica. Afirmar a determinação em Ultima instância pelo econômico, é se demarcar de todas as filosofias idealistas da histó­ ria, é adotar uma posição materialista. Porém falar de determina­ ção pela economia em última instância, é igualmente se demarcar de toda a concepção mecanicista do determinismo e é adotar uma po­ sição dialética. No entanto quando se pensa à sombra de Hegel, é preciso se precaver da tentação idealista da dialética. Exatamente quando Marx inscreve a dialética entre as instâncias de uma tópica, ele se demarca da ilusão de uma dialética que seria capaz de produ­ zir, pelo movimento espontâneo de seu auto-desenvolvimento, sua própria matéria. Ao submeter a dialética à sujeição da tópica, Marx a submete a suas condições reais de exercício, protege-a da loucura especulativa, prescreve-lhe ser materialista, portanto reconhecer que suas próprias figuras são prescritas pela materialidade de suas condições. Que esta inscrição e esta prescrição não sejam suficientes para nos permitir aceder à dialética materialista em pessoa, concor­ do com isso, porém nos preservam ao menos de uma tentação; de ir tomá-las dc empréstimo em Hegel, Nessa perspectiva temos de volta temas desenvolvidos cm meus ensaios, e que tem por objeto demarcar Marx de Hegel, Neles reconheço, aliás, que dívida podia Marx ter com relação a Hegel, e também porque teve que se servir constantemente do estratagema para traçar seu próprio caminho. Sim, Marx esteve perto de Hegel, embora de início por razões não enunciadas, razões anteriores à dialética, razões provenientes da posição crítica de Hegel frente aos pressupostos teóricos da filoso­ fia burguesa clássica, de Descartes a Kant, Resumindo, Marx esta­ va próximo de Hegel por sua insistência em recusar toda filosofia da Origem e do Sujeito, quer fosse ela racionalista, empirista ou transcendental: por sua crítica do cogito, do sujeito sensualista em­ pirista, e do sujeito transcendental, logo por sua critica da idéia de uma teoria de conhecimento. Marx estava perto de Hegel por sua crítica do sujeito jurídico e do contrato social, por sua crítica do su­ jeito moral, em suma de toda ideologia filosófica do Sujeito, que, quaisquer que fossem suas variações, permitia à filosofia burguesa clássica o meio de garantir seus conhecimento.s, suas práticas c seus fins, não simplesmente ao reproduzi-las, mas ao elaborar filosófica­ mente as noções da ideologia jurídica dominante. E se considerar­ mos o rcagrupamento desses temas críticos, é forçoso constatar que 142

Marx accrcava-se de Kegel pelo que Hegel tinha abertamente her­ dado de Spinoza, o que se pode depreender da leitura da Ética e do Tratado Teolôgico-político. Geralmcnte se encobre de um silêncio religioso essas profundas afinidades que no entanto constituem, de Epicuro a Spinoza e Hegel, as premissas do materialismo de Marx. Não se fala nunca disso pela razão desarmante de que Marx não fa­ lou, e se joga todo o peso da relação Marx-Hegel sobre a dialética porque Marx disso falou! Como sc Marx não fosse o primeiro anos ensinar que não sc deve julgar quem quer que seja a partir da cons­ ciência de si, mas a pártir do -conjunto do processo que, na reta­ guarda, produz essa consciência. Que me desculpem insistir sobre esse ponto, mas ele é a chave para a solução de muitos problemas, reais ou imaginários, que con­ cernem à relação entre Marx e Hegel, e em Marx à relação da dialé­ tica com 0 materialismo. Considero que a questão da dialética mar­ xista só pode ser colocada sob a condição de se submeter a dialética ao primado do materialismo, e de se ver que formas ela deve tomar para ser a dialética deste materialismo. Deste ponto-de-vista, podese compreender então como a idéia da dialética tenha podido se im­ por a uma filosofia como a de Hegel, não apenas porque as dramá­ ticas transformações da revolução francesa c suas consequências lhe deram uma dura lição, m.as porque a dialética era o único mieio de pensar em uma filosofia que, mesmo que os restaure quando os transfigura, tinha fortes razões para recusar de início o recurso e a garantia da Origem e do Sujeito. Certameníc, Hegel não se pôs à procura da dialética uma vez rejeitados a Origem e o Sujeito. Em um mesmo movimento, ele forjou a dialética que se fazia necessária para se demarcar dos filósofos clássicos, e para subordiná-la a seus fins, de, como diz Marx, “ mistificou a dialética” . Mas o que não impede que a própria mistificação hegeliana testemunhe uma rela­ ção constante desde Epicuro, e talvez de outros antes dele, entre o materialismo - que só pode se colocar demarcando-se de toda filo­ sofia da Origem, seja ela do Ser, do Sujeito, ou do Sentido - e a dia­ lética. Para tornar a coisa mais clara êm poucas palavras, quando se rejeita a origem radical das coisas, qualquer que seja sua forma, fazse indispensável forjar categorias inteiramente diferentes das cate­ gorias ciássica.s para pensar essas delegações de origem que são a es­ sência, a causa ou a liberdade. Quando se recusa a origem como Instituto dc emissão filosófica, se é obrigado a recusar a sua moeda, e faz-se necessário colocar outras categorias em circulação: as da dialética. Em grandes linhas essa é a relação profunda que reune as premissas de materialismo que se encontra em Epicuro, Spinoza e 143

Hegel, que comanda tudo que é da dialética, c que comanda a pró­ pria dialética. É isso que me parecia importante, muito mais que as “conclu­ sões sem prcjnissa.s” que são alguns dos juízos pelos quais Marx fa­ lou dc Hegel ao sublinhar única epredsanieníe para ela a questão da dialética. Sabemos que de o fez por reconhecer em Hegel o mérito de ter sido, cito-o, “o primeiro a exprimir o movimento de conjunto da dialética” , o que é justo e pelo menos e.xtrcmaraente reservado, e por afirmar, sem reserva desta vez. que Hegel a tinha “misíirrcado”, e que a dialética dele, Marx, não apenas não era a dialética de Hegel mas “seu exato oposto” . Contudo sabemos também que Marx afir­ ma que para desmistificar a dialética hegeliana, bastava invcrtc-la. Já discuti bastante para mostrar que esta inversão não dava conta e não passava da metáfora de uma vcitladeira transformação mate­ rialista das figuras da dialética, sobre a qual Marx nos prometeu vinte páginas que jamais foram escritas. Esse silêncio certamente não foi por acaso. É que era preciso, sem dúvida, remontar as con­ clusões às premissas materialistas da dialética, e, a partir delas, pen­ sar, com todo rigor, as novas categorias que das suscitam, cujo re­ sultado encontramos em O Capita! c em Lênin, embora não usem sempre seu nome, ou não o usem ainda. Tentava colocar isso em prova, ao buscar por sua proximida­ de, qual podia ser a diferença entre Marx e Hegel. Pois, c mais do que evidente, se Marx tomou emprestado de Hegel a palavra e a idéia da dialética, não podia ter mantido esta dialética duplamente mislificada, não apenas em seu estatuto idealista, quando ela pro­ duz sua própria matéria, mas também e sobretudo nas figuras que realizam o milagre de sua auto-incarnação; a negação e a negação da negação ou Aujhehiwg. Pois sc a dialética hegeliana recusa toda Origem ~ o que pode se ier nn início da Lógica, onde o Ser é imedia­ tamente idêntico ao N ada-, projeta-a no Fim de um Tclos que, em compensação, faz de seu próprio processo, sua própria Origem, seu próprio Sujeito. Sc não há Origem considerável em Hegel, é porque 0 processo por inteiro, consumado na totalidade fmal, é por si mes­ mo, indefinidamente, em todos os momentos que antecipam seu fini, sua própria Origem. Não há sujeito cm Hegel, por que o devenir-Sujeito da .substância, como processo dc negação.da negação realizado, é o Sujeito do próprio processo. Portanto, se Marx reto­ mou de Hegel a idéia da dialética, não sómente “inverteu-a” para dcsembaraçá-la da pretensão ou do fantasma idealista da autoprodução, corno teve também de transformar as figuras para que não produzissem mais esses efeitos, Lênine não cansou de repetir 144

nos anos 18-23; se o socialismo não conseguir transformar a peque­ na propriedade mercantil, enquanto ela existir, a pequena proprie­ dade mercantil reproduzirá o capitalismo. Poderiamos dizer o mes­ mo: enquanto o marxismo não conseguir transformar as figuras da dialética mistificada por Hegel, enquanto existirem, essas figuras reproduzirão os efeitos da mistificação hegeliana. Ora, esta trans~ formação não saiu da minha cabeça, nc.m sairia, mas sim nitidamen­ te dos textos de Marx e Lênin e da prática da luta de classe proletá­ ria. O que existia então cm estado prático, eu me contentei em for­ mular conceitualraente. E assim, tomando a coisa por esse ângulo, c que sustentei que Marx não tinha a mesma idéia que Hegel da natureza de uma for­ mação social, e acreditei poder manifestar essa diferença dizendo que Hegel pensa uma sociedade como uma totalidade, enquanto Marx a pensa como um todo complexo, estruturado com dominan­ te. Se posso me permitir ser um pouco provocante, me parece que se pode deixar para Hegel a categoria de totalidade, e reivindicar para Marx a categoria dc lado. Podem dizer que é apenas uma nuance verbal, o que não creio absolutamente. Se preferi para Marx a cate­ goria dc todo à de totalidade, é porque no interior da totalidade se corre sempre um duplo risco; o de considerá-la como uma essência atual que abarca exaustivamente todas suas manifestações, e, o que vem a dar no mesmo, o de descobrir nela como um círculo ou em uma esfera, cujas metáforas nos remetem a Hegel, um centro que é sua essência. Sobre esse ponto, acreditei poder encontrar uma diferença sig­ nificativa entre Marx c Hegel. Para Hegel, a sociedade como a his­ tória são círculos de drculos, esferas de csleras. Sobre toda essa concepção reina uma idéia da totalidade expressiva, onde todns os elementos são parts totalis, exprimindo cada um a unidade interna da totalidade que é sempre, em toda sua complexidade, apenas a objetivação-alienação de um princípio simples. E de fato, quando se lê a Rechtaphilosophie, nela vê-se desenvolverem, na dialética do Espírito objetivo que a.s produz, as esferas do direito abstrato, da Moralitaet e da Siítlichkeit. e cada uma produzir a outra pela nega­ ção da negação para encontrar sua verdade no Estado. Existem di­ ferenças, mas sendo sempre sua relação de “verdade” , as diferenças só se afirmam para se negar e superar em outras diferenças, c isso é pos.síveI porque cada diferença já encobre o em-si de uma para-si futuro. E quando se lê a introdução à Filosofia da História, é o mes­ mo processo, poderiamos dizer o mesmo procedimento; cada mo145

mento do descnvoivnmento da idéia está presente nos Estados, per­ fazendo um princípio simples; a bela ir.di%iduaL'dadc para a Grécia. 0 espirito jurídico-para Roma, etc. £ retomando em Montesquieu a idéia de que em uma totalidade histórica todas as determinações concretas, sejam elas econômicas, políticas, morais, c mesmo mililares, exprimem um único e me.smo princípio, Hegel pensa a histó­ ria sob a categoria de totalidade expressiva. Para Marx, as diferenças são reais, c não apenas diferenças de esferas de atividade, de práticas, de objetos: sãò diferenças dc eficá­ cia. A última instância funciona aqui para fazer explodir a tranqüila figura do. círculo ou da esfera. Não é por acaso que Marx abanlinna a matéria do círculo pela do edifício. Um circulo é fechado, e a noção de totalidade que lhe convém supõe que se possa açambar­ car cxaiistivamcnte todos os fenômenos, para reuní-los na unidade ‘ imples de seu centro. Marx nos mostra ao invés disso um edifício, uma base, um andar ou dois (isso não foi determinado). E também mio nos di.s.se que tudo deva estar contido nele, e que tudo seja ou mlra-cstruUira ou superestrutura. Poderiamos até sustentar a idéia, rssetici;»! ao Capital, dc que a teoria marxista das sociedades e da liiMória implica toda uma teoria de suas perdas e danos. Ele disse .inciKis que é necessário distinguir, que as distinções são reais, irrediiiíveis, que na ordem da determinação, a parte não é igual entre a base c a superestrutura, e que esta desigualdade com doióinante c 1om.iiiniiva da unidade do todo, que não pode mais então ser a unicl.nlr expressiva dc um princípio simples, cujos elementos seriam os ll• ln llm • ílO s.

1m, pon|ue falei de um todo. para acentuar que na concepção inai Kisla de uma fomiação .social tudo se articula, que a independência dc nni cinnento é sempre apenas a forma de sua dependência, e que II |ii|'ii das itirercnças é regulado pela unidade de uma determinação I m iilimia iiisirmcia; e não falei de uma totalidade porque o todo luiii.siMa (■compicxoe de.sigual, emarcado de desigualdade peladeici nim.u.ai) cin última instância. É esse jogo, essa desigualdade, que pi I iiiiiciii pciis.ir que po.ssa acontecer alguma coisa de real em uma IniiiiiiçiH) •,oci;i!, c apreender, pela luta de classe sobre a história II :il 1>r,'.r dc passagem; jamais se viu no mundo política que se in.spiic nii I ic;'cl rnis onde está a apreensão do círculo quando se está apii 1 iidiilii iiii circulo? Eormalmentc a tópica marxista dá uma respii'.i,i ao i|cM(Miai: c;.v o que é determinante em última instância, a >' .......... lo|’o a l ul a de classes econômica, prolongada na luta de I liis .1 ■■pnliiic.i para a (ornada de poder dc Estado, e eis como a luta li í l.i ,c , dl lia-.c se arlietila (ou não sc articula) com a luta de clasl - Ki

ses da supereslrutura, Mas isto não é tudo. Ao indicar isso a tópica marxista remete a quem a interroga a indicação de seu lugar no pro­ cesso histórico: e:s o iugar que ocupas, e eis até onde deves te deslo­ car para mudar as coisas. Arquimedes não desejava mais do que um ponto fixo para levantar o mundo. A tópica marxista designa o lu­ gar onde lutar, porque é nele que se luta, para transformar o mun­ do. Porém este lugar não é mais um ponto e não é fixo; é um siste­ ma articulado de posições comandadas pela determinação em últi­ ma instância, Tudo isso é formal, ninguém pode negar, no prefácio da Contrihuição ao qual faço alusão. Mas O Manifesto jà chamava as coi­ sas pelo seu nome e O Capital continuou a reafirmá-lo. O Capital continua a pensar na figura da tópica. Por intermédio dela, a deter­ minação teórica pode se convertei' em decisão prática, porque dis­ põe as coisas para que os trabalhadores, a quem Marx se dirigia, se apossem delas. O conceito que é apreendido (Begriff) torna-se em Marx um dispositivo teórico-prático de uma tópica, o meio de uma apreensão prática do mundo. Compreende-se sem dificuldade que, neste novo todo, a dialé­ tica que opera não seja mais hegeliana. Acredito ter podido mostrálo a propósito da Contradição, ao assinalar que se fosse levado a sé­ rio a nalurezado todo marxista e sua desigualdade, se chegaria à idéia de que esta desigualdade se refletia necessariamente na forma da suhileierminação ou úa. superdeterminação da contradição. Certa­ mente, não se trata de conceber a superdeterminação ou a subdeterminação em termos de adição ou de subtração de um quanlum de determinação acrescentado ou retirado de uma contradição préexistente, que teria em alguma parte uma existência de direito, A superdeterminação ou a subdeterminação não são exceçõe.s diante de uma contradição pura. Assim como Marx diz que o homem só pode se isolar na .sociedade, as.sim como Marx diz que a existência das categorias é o resultado e.Kcepcional da história, dq mesmo modo uma contradição em estado puro só existe como produto de­ terminado da contradição impura. Esta tese não faz mais do que mudar as referências nas quais se pensa a contradição. Particularmente, ela se distancia do que cha­ mei a contradição simples, digamos, para precisar, a contradição no sentido lógico do termo, que opõe duas entidades iguais, sim­ plesmente anexadas do signo contrário, + ou A ou não - A, Ora, se posso superar aqui o que defendi em meus primeiros ensaios, em­ bora na mesma linha, diría que a contradição, tal como se encontra em O Capital, apresenta a surpreendente particularidade de ser de­ sigual. de.colocar em jogo contrários que se obtém marcando o ou147

tro como signo oposto ao primeiro, porque eies são apreendidos em uma relação de desigualdade que reproduz Ínccssantemcníe suas condições a partir da existência desta contradição. Falo por exem­ plo da contradição que determina o modo de produção capitalista e o condena tendencialmente, a contradição da relação de produção capitali.sta, a contradição que divide as classes como classes, cm que SC defrontam duas ciasses inteiramente desiguais: a classe capitalis­ ta c a classe operária. Pois a classe operária não é o negativo da classe capitalista anexada do sinal menos, privada de seus capitais c seus poderes, - e a classe capitalista não é a classe operária anexada do sinal mais, o da riqueza e do poder, Elas não têm a mesma histó­ ria, não têm o mesmo mundo, não têm os mesmos meios, nem le­ vam a cabo a mesma luta de classes; c no entanto se defrontam e isto é cabalmente uma contradição, visto que a relação de seu de~ froniamenio reproduz as condições de seu defroniamenío, ao invés de superá-las na sublime elevação e reconciliação hegeliana. Creio que se considerássemos esse caráter singular da contra­ dição marxista de ser desigual, tiraríamos conclusões interessantes não apenas acerca de O Capical, mas também acerca da luta da classe operária, ^das contradições por vezes dramáticas do Movi­ mento operário.^e acerca das contradições do socialismo. Pois para compreender esta desigualdade, seríamos obrigados, segundo Marx e Lênin, a levar a sério as condições que tornam esta contradição desigual, ou seja, as condições materiais e estruturais que defini­ ríam o que chamei o todo complexo cora dominante, e aí se perceberia as bases teóricas da base leninista do desenvolvimento desi­ gual. Pois em Marx todo desenvolvimento é desigual, e aí não se irata mais nem de adição nem de subtração afetando um desenvol­ vimento dito igual, Irata-se de um caráter essencial. Todo desenvol­ vimento é desigual porque é a contradição que move o desenvolvi­ mento, e a contradição é desigual. É por isso que, em alusão ao dis­ curso sobre a origem da desigualdade em Rousscau (que é o primei­ ro teórico da alienação antes de Hcgcl), reccntcmcntç inscreví, como sub-título para meu artigo sobre a dialética materialista, essa citação; da desigualdade das origens, o que significa, pelo pluraiorigens, - que não existe, no sentido filosófico do termo, Origem, e que todo começo c marcado pela desigualdade. Eu só fiz esboçar alguns temas: queria simplesmente indicar a importância capital da tese da última instância para a compreensão dc Marx. E não se tenha dúvida de que toda interpretação da teoria marxista encerra, além de questões teóricas, questões políticas e his148

tóricas. Hssas teses sobre a última instância, sobre o todo estrutura­ do com dominante, sobre a superdeterminação, sobre a desigualda­ de da contradição tinbam inicialmcnte um primeiro objetivo ime­ diato, que comandava seu enunciado: o de reconhecer e marcar o lugar e o papel da teoria no Movimento operário marxista, nâo apenas ao levar cm conta a célebre frase de Lènin, “ sem teoria revo­ lucionária não há movimento revolucionário” , mas ao ir até o deta­ lhe para demarcar a teoria de suas confusões, mistificações e mani­ pulações. Porém, além deste primeiro objetivo, essas teses tinham outros, mais importantes, pois cla's iam de encontro à tentações que cercam o Movimento operário. A tentação de um idealismo messiâ­ nico on crítico da dialética qne obceca os intelectuais revoltados desde o jovem Lukacs e mesmo os jovens hegelianos, antigos e mo­ dernos, c a tentação do que chamei o hegclíanismo do pobre, o evolucionismo que tomou sempre, no Movimento operário, a forma do economicismo. "Nesses dois casos a dialética funciona, ao velho modo da filosofia pré-marxista, como a garantia filosófica do acon­ tecimento da revolução e do socialismo. Nos dois casos, o materiaüsmo ou bem é escamoteado (na primeira hipótese), ou então é re­ duzido ã materialidade mecânica e abstrata das forças produtivas (na segunda). Hm todos’ os casos, a prática desta diaiética se cíioca com a sanção implacável dos fatos; não é na Inglaterra do século XIX, nem na Alemanha do início do século XX que a revolução leve lugar, nem nos países mais adiantados, mas em outra parte, na Rússia, mais tarde na China, em Cuba, etc. Como pensar esse des­ locamento da contradição principal do imperialismo sobre o eío mais fraco, c correlaiivamente como pensar a estagnação da luta de classes nos países onde eia parecia triunfar, sem a categoria leninista do desenvolvimento desigual, que remete a desigualdade da con­ tradição, à sua super e sua sub-determinação? Insiste proposital­ mente acerca da sub-determinação, pois alguns se acomodam facil­ mente quando se acrescenta um suplemento propício à determina­ ção, mas não podem suportar a idéia da sub-determinação, ou seja, de um limiar da determinação que, quando não franqueado, í^az com que as revoluções abortem, os movimentos revolucionários es­ tagnem ou desapareçam, faz com que o imperialismo apodreça en­ quanto se desenvolve, etc. Se o marxismo é capaz de registrar esses fatos, mas não é capaz de pensá-ios, sc não pode conceber, no senti­ do exato, esta verdade da evidência de que as revoluções conhecidas são ou prematuras ou abortadas, em uma teoria que abra mão de noções normativas da prematuração c do aborto, isto é, da norma­ lidade, então c daro que alguma coisa não vai bem no que diz res­ peito à sua diaiética, e que o marxismo ainda continua fixado na 149

idéia de que não ajustou definiti vam ente suas contas cora Hegel. Eis porque penso que, para ver mais claro essa diferença, é ne­ cessário tomar um pouco de distância com relação aos termos ime-; diatos pelos quais Marx expressou sua relação com a dialética hegeliana, Para fazer isso é preciso considerar de início como se exprime o materialismo de Marx, do qual depende a questão da dialética. E para tanto, existe um excelente caminho, que venho experimentan­ do a seguir; o da determinação em última instância.

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SOBRE O PROCESSO DE CONHECIMENTO SOBRE O PROCESSO DE CONHECIMENTO

Gostaria agora de seguír brevemente por um outro atalho, para observar um outro grupo de teses desenvolvidas em meus en­ saios a propósito de “conhecimento” . Não escondo que mc apoiei fortemente em_^Spinoza a esse res­ peito.J^zia, há pouco, que Marx estava próximo de Hegel por sua crítica da idéia de uma teoria do conhecimento. Mas esta crítica de Hegeí já existe em Spinoza. Que quer dizer, substancíalmente Spfhozâ, quando escr"cve a célebre frase: “ Habemus cnin ideam veram?” _Que temos uma idéia verdjdeira? Não: toda a frase prendese ao “enim” . Com efeito é porque, tão somente, retemos uma idéia verdadeira, que podemos produzir outras, segundo sua norma. E é com efeito porque tão somente retemos uma idéia verdadeira, que podemos saber que ela é verdadeira, posto que é “ index sui” , De onde nos vem esta idéia verdadeira? Es^a^ uma outra questão, Pò"rém, é um fato que nós a detemos (haBemus), e o que quer que seja isto cujo resultado é esse fato, ele domina tudo o que dele, e a partir dele, possa ser dito. Por isso Spinoza inscreve de antemão toda teo­ ria do conhecimento, que raciocina sobre o direito de conhecer, na dependência de fato do conhecimento retido. Por isso todas as questões de Qrigem, Sujeito e Direito do conhecimento, que susten"tam as teorias dp conheçIrhêhtcQsãõ recusadas. Porém isso não im­ pede Spinoza de falar do conhecimento; não mais para pensar a 151

Origem, o Sujeito e o Direito, mas sim para fixar o processo e seus momentos, os célebres “ três gêneros” , ^que são muito estranhos aliás quando examinados de perto, uma vez que o primeiro é exata­ mente o mundo vivido, e o último feito especialmente para pensar “ a essência singular” , como diría Hegel em sua linguagem “o uni­ versal concreto” , do povo judeu, que está heroicamente em questão no Tratado Teológico-político. Estou desolado por me comprometer no que alguns conside­ ram, evidentemente por oportunismo teórico, como heresia, mas eu diria que Marx, não apenas o Marx da Introdução de 57, que de fato combate Hege! por meio de ^ m o z a , m af q"Marx do Capital e tamHêihXêhih, não firrhãm suas posições, sem estabelecer uma profun^ "daTelação com as posições de Spihoza. Pois se,eics recusam toda “teoria que queira pensar a Origení, o Sujeito e o Direiro do conhecí-, 'mentõ7t'/es falam também do conhecimento. E o fato de que Lênin reivindique para o marxis"!!!!) a expressão “ teoria do conhecimento” não é muito embaraçoso, quando vemos quede a define pela... dia­ lética. De fato Marx e Lênin falam do conhecimento em termos muito gerais, para descrever o sistema geral de seu processo. É pre­ ciso por conseguinte desconfiar das passagens em que Marx enun­ cia generalidades. Existe pelo menos uma delas, entre outras, onde ele se explica: a da “produção". É ao mesmo tempo para indicar os caracteres gerais da produção, e para dizer que a produção geral e ã fortiori a produção cni geral não existem, pois só existem modos de­ finidos dc produção e em formações sociais concretas. É um modo de dizer que tudo se passa na estrutura concreta dc processos singu­ lares, e que no entanto, para ter acesso a ela, é preciso socorrer-se de um mínimo de generalidade inexistente, sera o que o discerni­ mento e 0 conhecimento do existente seriam impossíveis. Pois bem, acredito que a Introdução de 57 é deste filão. Acredito que ela não propõe nem uma “ teoria do conhecimento” ,~nem seu sucedâneo que é uma cpisLemologia; creio que ela enuncia apenas o mínimo de ■generalidade sem a qual o discernimentõ e o conhecimento de pro­ cessos concretos de conhecimento seriam impossíveis. Mas assim como o conceito geral da produção, o conceito geral do conheci­ mento está aí apenas para desaparecer na análise concreta de pro­ cessos concretos: nu história complexa dos processos dc conheci­ mento. Em toda esta questão, apoici-me tanto quanto possível na In­ trodução de Marx de 57 e se tirei alguns efeitos necessários de pro­ vocação teórica, acredito que lhe permanecí fiei. Inspirei-me diretamenle na forma que Marx escreve, que utili­ za em diversas oportunidades o conceito de "produção" de conheci152

nientos, por antecipar minha tese central; a idéia do conhecimento como produção. Evidentemenle, eu também tinha na cabeça o eco da produção spinozista, e tirei vantagem do duplo sentido de uma palavra, que ao mesmo tempo era o signo do trabalho, de prática, e da exibição do verdadeiro. Mas no essencial, e para provocar o lei­ tor, eu me ative o mais próximo possível, e diria mecanicamente, do conceito marxista de produção, que, ao pé da letra, sugere um pro­ cesso, e o trabalho de instrumentos com uma matéria prima. Fui mesmo além da generalidade de Marx ao expor um conceito geral da “ prática” , que reproduzia o conceito de processo de trabalho do Capital. Retornando à prática teórica, utilizei e, sem dúvida, forçei um pouco o texto dc Marx, para chegar à distinção das 3 generali­ dades, em que a primeira desempenha o papel da matéria prima teórica, a segunda o de instrumentos de trabalho teórico, e a tercei­ ra o do concreto-de-pensamento ou conhecimento. Confesso que Spinoza também estava implicado nessa questão, por causa dc seus “três gêneros” , e do papel central do segundo; as abstrações cienti­ ficas. O que mais me interessava no texto dc Marx, era a sua dupla oposição radical ao empirismo e a Hegcl. Contra o empirisrao, Marx sustentava que o conhecimento não vai do concreto ao abs­ trato, mas do abstrato ao concreto, e, citando-o, tudo isso se passa “no pensamento" enquanto que o objeto real, que dá lugar a todo esse processo, existe fora do pensamento. Contra Hegel, Marx sus­ tentava que o processo do abstrato ao concreto não era produção do real, mas apenas do conhecimento do real. E cm toda esta expo­ sição, o que me fascinava, era o fato de se começar pelo abstrato. Ora, como escrevia Marx, “O conhecimento é... "um produto do pensar, do conceber... é wri produto da elaboração (ein Produkt der Verarbeitung) de conceitos a partir da intuição c da representação” . E como ele escrevera por outro lado “parece-me que o bora método seja o de começar pelo real e o concreto... por exemplo; em econo­ mia política pela população... No entanto, examinando com mais atenção, percebemos que aí há um erro. A população ê uma abstra­ ção", conluí então que a intuição e a representação eram tratadas por Marx como abstrações. Dei a esta abstração o estatuto dü con­ creto ou do vivido o que se encontra no primeiro gênero de conheci­ mento spinozista, ou seja, de acordo com minha linguagem, o esta­ tuto do ideológico. Certamente, não disse que as Generalidades II, operadas sobre as Generalidades I, só funcionavam sobre o ideoló­ gico, visto que podiam trabalhar também sobre abstraçõesjá elabo­ radas cientificamente, ou sobre as duas. Porém restava, de qualquer 153

miuicira, o caso-limite de uraa matéria-prinia puramente ideológi­ ca, cuja hipótese rae permitiu colocar em cena o par ciência/ideología, e o corte epistemológico (que Spinoza assinalava entre o pri­ meiro gênero e o segundo, muito antes de Bachelard) e tirar daí um certo número de efeitos ideológicos, que não estavam, como indiquei nos Elementos de auto-crítica, isentos de todo teoricismo. Naturalmente, porém, tendo (como disse Rousseau), “a fra­ queza de acreditar na força das conseqilêndas”, não fiquei por aí, e apoiando-me sempre no texto de Marx, inferi uma importante dis­ tinção; a de objeto real e objeto de conhecimento. Esta distinção se inscreve nas próprias frases em que Marx trata do processo do co­ nhecimento. Como materialista, ele sustenta que o conhecimento é o conhecimento de um objeto real (Marx diz; sujeito real), que, ci­ tando-o, “antes e depois subsiste em sua dependência fora do espí­ rito” . E', mais adiante, a respeito da sociedade que se estuda, ele es­ creve “ que ela permanece constantemente presente no espírito como pressuposição” . Marx estabelece então, como pressuposição de todo processo de conhecimento de um objeto real, a existência desse objeto real, fora do pensamento. Mas esta exterioridade do objeto real é afirmada ao mesmo tempo que é afirmado o caráter próprio do processo de conhecimento, que “produz por um traba­ lho de elaboração” conceitos a partir da intuição e da representa­ ção. E no fim do processo, o concreto-de-pensamento, a totalidadcde pensamento, que dele é o resultado, se apresenta como o conhe­ cimento do concreto-real, do objeto real. A distinção entr^o objeto real e o processo de conhecimento é incontestável no texto de Marx, como é incontestável a menção do trabalho de elaboração, e a di--* versidade de seus momentos, como é incontestável a distinção do concreto-de-pensamento e do objeto real, do qual resulta o conheci­ mento. Daí inferí um argumento não para fabricar uma “teoria do co­ nhecimento” , mas para fazer alguma coisa se deslocar nas evidên­ cias cegas com que tantas vezes uma certa filosofia marxista acredi­ ta se proteger de seus adversários. Sugerí que, se tod^ conhecimen­ to, quando adquirido, é certameríte o conhecimento de um objeto real, que continua "antes como depois" independente do espírito, tal­ vez não fos.se inútil interrogar sobre a intervalo que separa esse "an­ tes" do “depois” , que é o próprio processo de conhecimento, e rc; conhecer que esse processo, definido pelo “trabalho de elaboração” de formas sucessivas, se inscrevera justamente, de início ao fim, qm .1 Cf. “Miirx devant Hegel’’, in Lemneei !a phUosophie. Cf. Etements d‘autocriíitjue.

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uma transformação que não se apoia sobre o objeto real *, mas em "^êus substitutos, sobre as intuições e as representações iniciais, de­ pois em conceitos ulteriores. Daí minha tese; se o processo de co­ nhecimento não transforma o objeto real, mas somente sua intuição em conceitos, depois concreto-de-pensamento, c se todo esse pro­ cesso se passa, como repisa Marx, "no pensamento”, e não no objeto real, é portanto em função do objeto real, e para conhecê-lo, que o “ pensamento" trabalha sobre uma outra "matéria” que não é o ob­ jeto real. Ele trabalha sobre as formas transitórias que o designam no processo de transformação, para produzir finalmente seu con­ ceito; o concreto-de-pensamento. Indiquei o conjunto dessas for­ mas, (inclusive a última) produzidas por esse trabalho, para a cate­ goria objeto de conhecimento. No movimento que leva o pensam.ento da intuição e representação espontâneas ao conceito de obje­ to real, cada forma visa certamente o objeto real, mas sem confun­ dir-se com ele, tampouco, afinal, o concreto-de-pensamento'não se confunde, como pretendia Hegel, (que Marx denuncia por essa ra­ zão) com o concreto real. Isso era evidentemente uma vez mais re­ cordar Spinoza, cujas palavras assediavam a memória: a idéia do círculo não é o círculo, o conceito de cão não ladra, em suma, não confundir o real c seu conceito. Seguramente, se esta distinção necessária não é solidamente es­ tabelecida, pode conduzir ao nominalismo, e mesmo ao idealismo. Geralmente se julga que Spinoza sucumbiu ao idealismo; cm todo caso ele tomou medidas para se defender do idealismo, por sua teo­ ria de uma substância com atributos infinitos, e pelo paralelismo de dois atributos; extensão e pensamento. Marx dele se defende de ou­ tra forma e mais exatamente pelo primado do objeto real sobre o ob­ jeto de conhecimento, e pelo primado dessa primeira tese sobre a se­ gunda: a distinção entre objeto real e objeto de conhecimento. Por isso ficamos nesse mínimo de generalidade, ou o que seja, teses materia­ listas que, ao se demarcarem do idealismo, abrem um espaço livre para a investigação dos processos concretos da produção de conhe­ cimentos. E finaimente, para quem quiser fazer efetivamente a com­ paração, esta tese da distinção entre objeto real c objeto de conheci­ mento “funciona" mais ou menos como a distinção de Lênin entre verdade absoluta e verdade relativa, e com fins muito pró.ximos.

4 "Desrie há muito tempo que o e.tpírito tem uma atitude purameme especulativa, puramenle teórico" (Marx), Marx distingue a atitude teórica {conhecimento do objeto real) da atitude prática (transformação do objeto reai).

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Lêniii escreveu: “A distinção çntrc verdade absoluta c verdade relativa é vaga, diriani vocês. Ao que eu respouderia: é precisanicnte bastante “vaga” para impedir a ciência de tornar-se um dogma no pior sentido dessa palavra, uma coisa morta, fossilizada, enrigectda; mas também é bastante precisa para traçar entre nós e o fideísrno, 0 agnosticismo, o idealismo filosófico, a sofistica dos discípulos de Hume e Kant, uma Unha de demarcação decisiva e indestrutível". O que claramcnte significa: nossa tese é bastante precisa para não tombar no idealismo, bastante precisa para se demarcar do idealis­ mo, porém bastante “vaga” , isto é, bastante justa em sua generali­ dade, para defender a liberdade ativa da ciência contra o seu isola­ mento nos resultados. Guardadas as devidas proporções, ocorre o mesmo com a mi­ nha tese sobre a diferença entre objeto real e objeto de conhecimen­ to, Seus resultados não eram desdenháveis. Tratava-se de impedir que procedessem com a ciência produzida por Marx “ como um dogma no pior sentido desse palavra” , tratava-se de tornar ativo o prodigioso trabalho de crítica e elaboração efetuado por Marx, sem 0 qual não teria podido - e falo aqui sua linguagem que continua clássica - descobrir sob a aparência das coisas, e em seus antípodas, a essência desconhecida de suas “ relações íntimas” . Tratava-se de fazer compreender e sentir que ruptura inaudita Marx teve que efe­ tuar com essas aparências admitidas, ou seja, com as evidências ma­ ciças da ideologia burguesa dominante. E uma vez que nós mesmos estávamos em causa, tratava-se de tornar viva e ativa para nós esta verdade; tínhamos que romper com outras evidências, por vezes en­ cobertas pelo próprio vocabulário de Marx, que a ideologia domi­ nante ou os desvios do Movimento operário, pudessem afastar de seu sentido. Tratava-se de lembrar que se “a alma viva do marxis­ mo é a análise concreta de uma situação concreta” , como diz Lênin, 0 conhecimento do concreto não está no início, mas no término da análise, e a análise só e possível à base dos conceitos de Marx, - e não de evidências imediatas do concreto, as quais não se pode dei­ xar de lado -- embora não se façam conhecer de imediato. Tratava-sc finalmente, e essa não era a menor vantagem, de lembrar com Marx que o conhecimento do real “modifica” alguma coisa no real, uma vez que ihe acrescenta jusíamente seu conheci­ mento, embora tudo se passe como se esta edição se anulasse no re­ sultado. Como seu conhecimento pertence de antemão ao real, já que não é mais que seu conhecimento, ele só ihe acrescenta alguma 156

coisa sob a condição paradoxal de nada lhe acrescentar %e uma vez produzido é da inteira competência do real e desaparece nele. O processo de conhecimento acrescenta a cada passo do real seu pro-' prio conhecimento, mas a cada passo o real dele se apropria já que cie lhe pertence./l distinção entre objeto de conhecimento e objeto real apresenta deste modo o paradoxo de ser estabelecida apenas para ser anulada. Mas ela não ê nula: pois para ser anulada, deve ser consíantemente estabelecida. Isso é normal, é o ciclo infinito de lodo conhecimento, que só acrescenta seu conhecimento ao real para reproduzí-lo, e o ciclo só é cíclico, e portanto-ativo, quando se reproduz, porque só a produção de novos conhecimentos mantém os antigos com vida. Tudo se passa mais ou menos como em Marx, que diz: é preciso que o trabalho ativo “ acrescente um valor novo às matérias” , para que o valor do “ trabalho morto” , contido nos meios de produção, seja conservado e transmitido ao produto, c ci­ tando-o, “ é pela simples adição de um valor novo que sc mantem o antigo” (Le Capital, Editions Soeiales, 1, p. 199). Os motivos dessas teses? Tomemos a ciência marxista c supo­ nhamos que as condições políticas sejam tais que não se trabalhe mais, que não se acrescente mais um conhecimento novo. Então os antigos, que o real subtraiu, estão presentes.nele sob a forma de evi­ dências enormes e mortas, como máquinas sera trabalhadores, e ainda mais do que máquinas, coisas. Então não estamos mais certos de poder “impedir” , como diz Lênin, “a ciência dc se tornar um dogma no pior sentido dessa palavra, uma coisa morta, fossilizada, enrigeeida” . O que é uma maneira de dizer que o próprio marxismo corre o risco de repetir verdades que não são mais do que o nome das coisas, quando o mundo exige novos conhecimentos; um sobre o imperialismo, outro sobre o Estado, outro sobre as ideologias, ou­ tro sobre o socialismo é um outro sobre o Movimento operário. É uma maneira dc evocar a esppantosa expressão de Lênin:-Mzirx fez colocar as pedras angulares de uma teoria que devemos a todo preço desenvolver em todos os sentidos. Maneira de dizer: a teoria marxista pode se atrasar em relação à história, e atrasar-se cia mes­ ma, se não acreditar que eia c consequente.

5 cr. Itngels; “O conhecimcnlo da natureza lal como ela é, .re/n adição estranha.” cr, A tc.se ieninista do rí^Jle.vo.

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MARX E O HUMANISMO TEÓRICO

Um último, brevíssimo, atalho para provar uma outra tese provocante: a do anti-humanismo teórico de Marx. Para o singular prazer dos que cotejam gabolices ideológicas {das quais Já me dei por satisfeito) eu poderia dizer que se não tivesse defendido esta te­ se, teria que inventá-la, É uma tese séria, contanto que a leiam sériamente-, e antes de tudo que levem em consideração uma das palavras que ela encerra, o que não representa, do mesmo modo, problema: a palavra teóri­ co. Disse e repito que o conceito ou a categoria de homem não de­ sempenhava para Marx um papel teórico. Mas c necessário pensar que teórico não significa nada para os que não querem entendê-la. Tentemos entendê-la. E para tanto, iniciaímente, uma palavra acerca de Feuerbach, de quem já traduzi alguns textos. Ninguém pode dizer que a filoso­ fia de Feuerbach seja abertamente humanista teórica. Feuerbach disse: toda filosofia nova se anuncia por uma palavra nova. A filo­ sofia dos tempos "modernos, minha filosofia, se anuncia peta pala­ vra Homem. De fato o Homem, a essência humana, é o princípio central de toda a filosofia de Feuerbach. Não é que Feuerbach não se interesse pela natureza, uma vez que fala do sol, e dos planetas, e também das plantas, das libélulas e cães, e até de elefantes, para afirmar que eles não tem religião. Mas se ele o faz, se me permitem 158

dizer, se aproveita da natureza, ao serenamente dizer que cada espé­ cie tem um mundo para si, que é apenas a manifestação de sua es­ sência. Esse mundo c constituído de objetos, e entre eles há um ob­ jeto por excelência em que se consuma ese satisfaz a essência da es­ pécie; seu objeto essencial. Assim, cada planeta tem por objeto es­ sencial o sol, que é igualmente objeto essencial da planta, etc. Sob essas circunstâncias podemos passar ao homem, Ele é o centro de seu mundo como no centro de seu horizonte absoluto, de seu JJmwelt. Não existe nada em seu mundo que não seja dele, ou antes, nada em seu mundo que não seja ele, pois todos os objetos de seu mundo só são objetos na medida em que são a realização e a projeção dc sua es.sência. Os objetos de sua percepção são apenas seu modo de perceber, os objetos de seu pensamento seu modo de pensar, os de sua afeição apenas seu modo de afeiçoar-se. Todos os seus objetos são essenciais na medida em que o que eles lhe dão não é mais do que a sua própria essência, projetada neles, O homem es­ tá sempre no homem, o homem nunca deixa o homem, porque - pe­ quena frase sem mistério que o jovem Marx recopiou de Feuerbach, e acerca da qual os participantes do Congresso Hegel, no último ve­ rão em Moscou doutamente discutiram o mundo é o mundo do homem e o homem é o mundo do homem, O sol e as estrelas, as borboletas, a percepção, a inteligência, a paixão só estão presentes ai como transições para nos conduzir ao limiar das verdades decisi­ vas; a especificidade do homem, diferentemente das estrelas e das bestas é ter sua própria espécie, a essência de sua espécie, sua essên­ cia genérica por inteiro como objeto, e cm um objeto que não deve nada à natureza, a religião. Pelo mecanismo de objetívação e da in­ versão, a es.sência genérica do homem se apresenta para o homem, irreconhecível como pe.ssoa, sob a forma dc objeto exterior, de um outro mundo: na religião. Na religião o homem contempla seus próprios poderes, sua forças produtivas, como poderes de um outro absoluto, diante do qual ele treme e se ajoelha para implorar pieda­ de. E isso é perfeitamente prático, uma vez que daí resulta todos os rituais do culto, e até a existência objetiva de milagres, que se pas­ sam inteiramente nesse mundo imaginário já que são somente, se­ gundo a expressão de Feuerbach, “a realização de um desejo” (Wunscherfuellung), O Sujeito absoluto que é o homem encontra desse modo o absoluto em Deus, mas não sabe que o que ele encon­ tra é ele. Toda esta filosofia, que não se limita à religião, mas se es­ tende à arte, à ideologia, à filosofia, e também, como se sabe, à polí­ tica, à sociedade e até mesmo à história, repousa assim sobre a iden­ tidade dc essência entre o sujeito e o objeto, e esta identidade se ex15 9

plica pelo inteiro poder da essência do homem em se projetar na realização de si que são seus objetos, e na alienação que separa o objeto do sujeito, torna o objeto exterior ao sujeito, o reifica, e in­ verte a relação de essência, uma vez que, escandalosamente o Sujei­ to se vê dominado por si mesmo, sob a forma de um Objeto, Deus ou o Estado, etc. que no entanto é apenas ele. É preciso não esquecer que esse discurso, do qual forneço aqui as premissas, linha sua grandeza, já que ele conclamava a inverter a inversão produzida pela alienação religiosa ou política; ou melhor dizendo, ele conclamava a inverter a dominação imaginária dos atributos do sujeito humano sobre o sujeito humano; ele conclama­ va 0 homem a retomar afinal a posse de sua essência, alienada na dominação de Deus ou do Estado; conclamava o homem à realiza­ ção afinal, não mais no imaginário da religião, no “ céu do Estado” , ou na abstração alienada da filosofia hegeliana, mas sobre a terra, aqui e agora, na sociedade real, sua essência humana verdadeira que é a comunidade humana, o “comunismo” . O homem centro do mundo - no sentido filosófico do termo essência originária e fim de seu mundo, eis o que se pode chamar um humanismo teórico, no pleno sentido da palavra. Se haverá de convir que, após ter abraçado sua problemática da essência genérica do homem e da alienação, Marx rompeu com Feuerbach e que esta ruptura com o humanismo teórico de Feuerbach marca de maneira radical a história do pensamento de Marx. Mas gostaria de ir mais longe. Pois Feuerbach é um estranho personagem filosófico, que apresenta a particularidade de, perdoem-me a expressão, “abrir o jogo” . Feuerbach c um humanista teórico declarado. Porém tem atrás de si uma longa herança de filó­ sofos que, sem se declararem como ele, não fizeram por isso menos filosofia sobre o homem, mesmo que trabalhassem de maneira me­ nos aberta. E longe de mim a idéia de denegrir esta grande tradição humanista cujo mérito histórico é ter lutado contra a feudalidade, contra a Igreja e seus ideólogos, e ter dado ao homem títulos e uma dignidade. Mas longe de nós, acredito, a idéia de contestar que esta ideologia humanista, que produziu grandes pensadores, seja sepa­ rável da burguesia em ascensão de quem ela exjirimia as aspirações, ao traduzir c transpor as exigências de uma economia mercantil c capitalista sancionada por um direito - o antigo direito romano corrigido para direito mercantil burguês. O homem sujeito livre, o homem livre sujeito de seus atos e pensamentos, c de inicio o ho­ mem livre para possuir, vender e comprar,‘O sujeito de direito. 160

Vou mais além, e afirmo que, sàlvo certas excessões intempes­ tivas, a grande tradição da filosofia clássica retomou nas categorias de seus sistemas o direito do homem conhecer, do qual ela fez o su­ jeito de suas teorias do conhecimento, do cogito ao sujeito empirista e ao sujeito transcendental; e o direito do homem agir, do qual ele fez o sujeito econômico, moral e político. Acredito, o que evi­ dentemente não posso mostrar aqui, ter o direito de sustentar que, sob as diferentes espécies de sujeitos em que se distribui e se dissi- ‘ mula ao mesmo tempo, a categoria de homem, de essência hurpana, desempenha um papel teórico essencial nas filosofias clássicas prémarxistas. E quando falo do papel teórico desempenhado por uma categoria, entendo que ela faz corpo com outras, que não pode ser suprimida do conjunto sem alterar o funcionamento do todo. Por­ tanto, creio poder dizer-que, salvo exceções, a grande filosofia clás­ sica representa, mediante formas não abertamente declaradas, a tradição de um humanismo clássico incontestável. E se, à sua ma­ neira, Feuerbach “abre o jogo” , se ele coloca decididamente a es­ sência humana no centro de tudo, é porque acredita poder enfim es­ capar á razão que fazia com que os filósofos clássicos dissimulas­ sem o homem, distribuindo-o em vários sujeitos, Esta divisão do homem (digamos para simplificar) em dois sujeitos, o sujeito do co­ nhecimento e 0 sujeito da ação, que marca a filosofia clássica, impe­ dindo-lhe a declaração fantástica de Feuerbach, que acredita poder reduzi-la; ele substitue a pluralidade dos sujeitos pela pluralidade de atributos no sujeito humano. E ele acredita poder resolver um outro problema politicamente importante, a distinção entre o in­ divíduo e a espécie, pela sexualidade que suprime o indivíduo uma vez que necessita de pelo menos dois deles, o que já é uma espécie, O que quero dizer é que, pela maneira de agir de Feuerbach, vê-se o que estava em questão antes dele: já era o homem, embora dividido entre vários sujeitos, c dividido entre indivíduo e espécie. Consequentemente o anti-humanismo teórico de Marx vai muito mais longe que um simples acerto de contas com Feuerbach; coloca em questão, ao mesmo tempo, as filosofias da sociedade e da história existentes, e a tradição filosófica, e portanto, através delas, toda a ideologia burguesa. Diria então que o anti-humanismo teórico de Mafx éde início um anti-humanismo filosófico. Se o que acabo de dizer é verossímil, basta comparar o que adiantei há pouco acerca das afinidades de Marx e Spinoza com as filosofias da Origem e do sujeito, para que a conclusão se imponha. E de fato, se examinamos os textos que se pode ter como comprobatórios da filosofia marxista, observamos 161

que a categoria homem, ou qualquer que sejam seus disfarces pas­ sados ou possíveis, não se encontra, neles. As teses materialistas e dialéticas que constituem, decisivamente, toda a filosofia marxista, podem dãr lugar a todo tipo de comentários. Não vejo como elas possam se prestar à menor interpretação humanista; muito pelo contrário, elas se produziram para interditá-la, como uma varieda­ de do idealismo entre outras, e para convidar a pensar de uma ma­ neira inteiramente diferente. Mas mesmo assim não a esgotamos, pois resta se estender acer­ ca do anti-humanismo teórico do materialismo histórico, ou seja acerca da eliminação do conceito de homem como conceito central pela teoria marxista das formações sociais e da história. É preciso antes de tudo afastar duas objeções? Sem dúvida, uma vez que elas renascem incessantemente. A primeira, parte da conclusão de que uma teoria marxista assim concebida leva a des­ prezar os homens e a paralisar sua luta revolucionária. Mas O Capi­ tal está repleto de sofrimento dos explorados, desde os horrores da acumulação primitiva até o capitalismo triunfante, c foi escrito para sua libertação da servidão de classe. Isso não só não impede Marx, mas ohriga-o a, no próprio Capita! - que analisa os mecanis­ mos de sua exploração -, fazer abstração dos indivíduos concretos, e tratá-los teóricamente como simples “ suportes” de relações. A se­ gunda objeção opõe ao anti-humanismo teórico de Marx a existên­ cia de ideologias humanistas, que, se servem como regra geral da hegemonia burguesa, podem também, em determinadas circunstân­ cias e em determinadas camadas sociais, e até sob uma forma reli­ giosa, exprimir a revolta das massas contra a exploração e a opres­ são. Mas isso não representa dificuldade, desde que se saiba que o marxismo reconhece a existência das ideologias e julga-as de acordo com 0 papel que elas representam na luta de classes. O que está em questão é uma coisa completamente diferente; a pretensão teórica de uma Concepção humanista de explicar a socie­ dade e a história, a partir da essência humana, do sujeito humano livre, sujeito das necessidades, do trabalho, do desejo, sujeito da ação moral e política, Eu afirmo que Marx só pôde fundar a ciência da história e escrever O Capital sob a condição de romper com a pretensão teórica de todo humanismo desse gênero. Contra toda a ideologia burguesa, imbuída de humanismo, Marx declara: “Uma sociedade não é composta de indivíduos” (Grundrisse), “ Meu método analítico não parte do homem, mas do período econômico dado” {Notas sohre tVagner), e contra os socia­ listas humanistas e marxistas que tinham proclamado no Programa 162

Q2 Goíba “ o trabalho é a loriU ca icco valor s ca toca r.queza'’, ele afirma: “ Os burgueses tem excelentes razões para atribuir ao trabalho esta onipotência de"criaçâo.” Podemos conceber uma ruptura mais nítida? Podemos ler seus efeitos em O Capital. Marx mostra que o que determina em última instância o conhecimento, não é o fantasma de uma essência ou natureza humana, não é o homem, e nem mes­ mo “ os homens", mas uma relação, a relação de produção, que es­ tabelece uma outra relação com a Base, a infra-estrutura. E, contra todo idealismo humanista, Marx mostra que essa relação não é uma relação entre os homens, uma relação entre pessoas, nem intersubjetiva, nem psicológica, nem antrojjológica, mas uma dupla re­ lação; uma relação entre grupos de homens que diz respeito à rela­ ção entre esses grupos de homens e as coisas, os meios de produção, É uma das maiores mistificações teóricas pensar que as relações so­ ciais são redutíveis às relações entre os homens, ou mesmo grupos de homens; isso é supor que as relações sociais são relações que só colocam em questão homens, quando elas colocam igualracnte em questão as coisa.s, os meios de produção, vindos da natureza mate­ rial. A relação de produção é, como Marx diz, uma relação de dis­ tribuição: distribue os homens em ciasses ao mesmo tempo que atri­ bui os meios de produção a uma classe. As classes nascem do anta­ gonismo desta distribuição que é ao mesmo tempo uma atribuição. Naturalmente, os indivíduos são partes interessadas, portanto ati­ vas, nessa relação, desde que, de início, tenham interesses nela. E não é por serem partes interessadas que, como num contrato livre, se interessam por ela, mas por que se encarregam delas é que são partes interessadas. É muito importante observar por que Marx considera então os homens unicamente como “ suportes” de uma relação, ou “portadores" de uma função no processo de produção, determinada pelo processo de produção. Isso não acontece absolu­ tamente porque ele reduz os homens em sua vida concreta a simples portadores de funções: ele os considera como tais em função da re­ lação de produção capitalista reduzí-lòs a e.sta simples função na in­ fra-estrutura, na produção, ou seja na exploração. Efetivamente, o homem da produção, considerado como agente da produção, o ê apenas para o modo de produção capitalista, determinado como simples “ suporte" de relação, simples “portador de funções” , com­ pletamente anônimo, permutável, uma vez que pode ser jogado na rua se é operário, ou fazer fortuna ou falir se é capitalista. Em todos os casos, está submetido â lei de uma relação de produção, que é uma relação de exploração, portanto relação antagonista de classe; está submetido à lei dessa relação e seus efeitos. Se não se submete a 163

uma “ epochc” teórica as determinações individuais concretas dos proletários e dos capitalistas, sua “ lidcrdade” òu sua personalida­ de, não se compreende nada da terrível “epoché” prática à qual a relação de produção capitalista submete os indivíduos, tratando-os apenas como suportes de funções econômicas, e nada mais. Mas tratar os indivíduos como simples suportes de funções econômicas, traz consequências para os indivíduos, Pois não é o teórico Marx que os trata assim, é a relação de produção capitalisla! Tratar os indivíduos como portadores de funções permutáveis é, na exploração capitalista que é a luta dc classe capitalista funda­ mental, deícrminá-ios, marcá-los de uma maneira irremediável na sua carne e na sua vida; é rcduzí-loos a ser apenas apêndices da má­ quina, atirar suas mulheres e filhos no inferno da usina, é prolongar sua jornada de trabalho ao máximo, e permitir-lhes apenas exata­ mente o mínimo para se reproduzirem. E é, igualmentc, constituir o gigantesco exército de reserva onde se vai tirar outros suportes anô­ nimos para fazer pressão sobre os suportes, que têm a chance de ter trabalho. Mas é ao mesmo tempo criar igualmente as condições de uma organização da luta de classe operária. Portanto é p desenvolvimen­ to da luta de classe capitalista, ou seja da exploração capitalista, que cria, ela mesma, essas condições. Quantas vezes Marx insistiu no fato dc que era a organização capitalista da produção, ou seja, de exploração, que educava pela violência a classe operária com a luta de classe, não apenas ao concentrar massas operárias no lugar de trabalho, não somente agregando-as aí, mas também, e sobretudo, ao lhes impor uma terrível disciplina de trabalho e de vida comum, que os operários suportarão para convertê-la cm ações comuns contra seus senhores. Mas para isso é preciso que sejam ao mesmo tempo partes en­ volvidas e interessadas em outras relações. Assim, a formação social capitalista não se reduz unicamente à relação de produção capitalista, logo à sua infra-estrutura. A explo­ ração de classe não pode durar, isto é, reproduzir suas condições sem 0 socorro da superestrutura, sem as relações jurídico-políticas e as relações ideológicas, que são determinadas em última instância pela relação de produção. Marx não entrou nessa análise, salvo por algumas breves indicações, Mas tudo o que ele disse nos põe a ca­ minho de conceber que essa.s relações tratam, elas também, os in­ divíduos humanos concretos como “portadores” de relações, “ su­ portes" de funções, onde os homens s6 são partes interessadas por­ que são partes envolvidas. Assim, as relações jurídicas abstraem o 164

homem concreto para tratá-lo como simples "suporte” da relação” jurídica, como simples sujeilo dc direito, capaz de propriedade, mesmo que ele só detenha a propriedade de sua miserável força de trabalho. Dessa maneira as relações políticas abstraem o homem vi­ vo, para tratá-lo como simples “ suporte” de relação política, como cidadão livre, mesmo se sua voz reforça sua servidão. Dessa manei­ ra as relações ideológicas abstraem o homem vivo para tratá-lo como um simples sujeito submisso ou rebelde às idéias dominantes. Mas todas essas relações qúe fazxm, cada Imia, do homem concreto o seu suporte, nem por isso deixam de marcar c, determinar, assim como a relação de produção, os homens em sua carne e em sua vi­ da. E como a relação de produção c uma relação de luta de classe, é a luta de classe que determina em última instância as relações da superestrutura, suas contradições, e a superdeterminação com a qual elas marcam a infra-estrutura, E do mesmo modo que a luta capitalista cria, na produção, as condições da luta de classe operária, da mesma maneira vemos as relações jurídicas, políticas e ideológicos contribuírem para sua orga­ nização e sua consciência, por sua própria domin^àção. Eois a luta dc classe operária foi completamente adestrada para a política nas relações burguesas, e pela própria luta de classe burguesa. Todos bem sabem que a burguesia não poderia derrubar o Antigo Regime, sua relação de produção e seu Estado, sem engajar em sua luta as massas populares; todos sabem que a burguesia não poderia alcan­ çar a vitória sobre a grande propriedade rural se não mobilizasse os proletários em sua batalha política, deixando para massacrá-los de­ pois. Com seu direito e sua ideologia, assim como com suas armas e suas prisões, a classe burguesa adestrou-os também na luta de clas­ se política e ideológica, forçando-os inclusive a compreender que a luta de classe proletária não tinha nada a ver com a luta de classe burguesa, e a abalar o jugo de sua ideologia. É aí que a última instância, e o papel contraditório que desem­ penha no “edifício”, intervém para dar conta da dialética desses fe­ nômenos paradoxais, que Marx pensa não com a ajuda do derrisório conceito do homem, mas com outros tantos conceitos; relação dc produção, luta dc classe, relações jurídicas, políticas, ideológi­ cas. Teoricamente, o papel da última instância permite dar conta da diferença e da desigualdade das formas da luta de classe, desde a luta de classe econômica até a luta política e ideológica, portanto do pape! que desempenha entre essas lutas, e das contradições que existem nessa luta. ... O anti-humanismo teórico de Marx no materialismo histórico é portanto a recusa de fundar em um conceito do homem com pre165

tensão teórica (ou seja, como sujeilo originário de suas necessidades homo oeconomicus de seus pensamentos - homo rationalis dc seus a'tos e lutas - homo moraiis, juridicus et politicus- -), a explica­ ção das formações sociais e da sua história. Pois quando se parte do homem, não se pode evitar a tentação idealista da onipotência da li­ berdade ou do trabalho criador, ou seja, não se faz mais que supor­ tar, com toda “ liberdade” , a onipotência da ideologia burguesa do­ minante, que terti por função mascarar e impor, sob a forma ilusó­ ria do livre poder do homem, uni outro poder, muito mais real e po­ deroso, o do capÍíalis,mo. Se Marx não parte do homem, se ele recu­ sa engendrar teoricamente a sociedade e a história a partir do con­ ceito de homem, é para romper com esta mistificação que só expri­ me uma relação de força ideológica, fundada na relação de produ­ ção capitalista. Marx parte então da causa estruturai que produz e.ste efeito ideológico burguês que sustenta a ilusão de que se deve­ ria partir do homem: Marx parte da formação econômica dada, es­ pecificamente em O Capital, da relação de produção capitalista, c das relações que esta determina em última instância na superestrutnra, E a todo momento ele mostra que essas relações determinam e marcam os homens, e como elas os marcarri em sua vida concreta, e como através do sistema da luta de classes, os homens concretos são determinados pelo sistema dessas relações. Na Introdução de 57, Marx dizia: o concreto é a síntese de múltiplas determinações. Podemos retomar sua afirmação e dizer; os homens concretos são determinados pela síntese de múltiplas determinações de relações nas quais são partes interessadas e envolvidas. Se Marx não parte, portanto, do homem, que é uma idéia vazia, ou seja, sobrecarrega­ da de ideologia burguesa, é para chegar ao.s homens concretos; se ele recorre o estratagema de.ssas relações das quais os homens con­ cretos são os “ portadores” , é para chegar ao conhecimento das leis que comandam sua vida e suas lutas concretas. Podemos observar que em nenhum momento esse estratagema afastou Marx dos homens concretos, uma vez que a cada momento do processo de conhecimento, ou seja dc sua análise, Marx demons­ tra como cada relação, desde a relação de produção capitalista, de­ terminante em última instância, até as relações jurídíco-políticas e ideológicas, marca os homens em sua vida concreta, comandada pelas formas e efeitos da luta de classe. Cada abstração de Marx corresponde à “abstração” que impõe aos homens estas relações, c esta “ abstração” terrivelmente concreta é qnc faz dos homens ope­ rários explorados on capitalistas exploradores. Poderemos observar lambem que o termo final desse processo de pensamento, o “ con166

creto-de-pensamento” ao qual de chegou, é esta síntese de múlti­ plas determinações que define o concreto real. Marx se situava dessa maneira acerca das posições de classe, e tinha em vista os fenômenos de_ massa da luta de classes. Ele queria dar à classe operária a compreensão dos mecanismos da sociedade capitalista, lhe desvendar as relações e leis sob as quais ela vivia, para reforçar e orientar, sua luta. Ele tinha por objeto somente a luta de classes, para ajudar a classe operária a fazer a revolução, c suprimir em seguida,"ao termo do comunismo, a luta de classe e as ciasses. Tudo o que se pode objetar como pouco sério neste antihumanismo teórico de Marx, se refere, e reconheço isso honestamente, aos textos que retomam, no Capital, o tema da alienação, E digo de propósito tema, porque não acredito que as passagens onde esse tema é retomado tenham um alcance teórico. Sugiro com isso que a alienação não figura aí como um conceito verdadeiramente pensado, mas como o substituto de realidades que não estão ainda bastante elaboradas pra que Marx possa recorrer a elas: na perspec­ tiva das formas de organização e da luta de classe operária. O tema da alienação em O Capital ocuparia assim o lugar de um conceito ou ainda de conceitos que não estão ainda formados, porque as condições históricas objetivas não produziram ainda sen objeto. Se esta hipótese é fundada, poderiamos compreender que a Comuna, ao responder â expectativa de Marx, tenha tornado esse tema su­ pérfluo, assim como tornou-o supérfluo toda a prática política de Lênin. De fato, após a Comuna, em Marx, assim como na imensa obra de Lênin, não está mais em questão a alienação. Ora esse é um problema que não engaja apenas a teoria mar­ xista, mas as formas históricas de sua fusão com o Movimento ope­ rário. Esse problema está hoje abertamente colocado: é necessário examiná-lo detidamente.

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