Louis Althusser - Posicoes Ii

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louis Ithusser •

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posições-2

BIBLIOTECA DE CIÊNCIAS SOCIAIS Vol. N.“ 17

Série;

POLÍTICA

Coordenadores:

Brás Josó de Araüjo Eurlco de Lima Figueiredo

Conselho Editorial: Antonio Celso Alves Pereira Carlos Estevam Martins Carlos Nelson Coutinho Charles Pessanha Edson de Oliveira Nunes Hélgio Trindade José Álvaro Moisés J. A. Guilhon Albuquerque José Nilo Tavares Leandro Konder Luís Werneck Vianna Reginaldo di Piero

Traduzido do original francês. Direitos adquiridos para o Brasil por EDIÇÕES GRAAL Ltda. Rua Hermenegildo de Barros, 31-A Glória — Rio de Janeiro — RJ — C.E.P.: 20.241

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

LOUlS ALTHUSSER

P OS I ÇÕE S - 2 Textos traduzidos por M a n o e l B aer o s d a M o t t a M a r ia L a u r a V iv e ir o s de C astr o R it a L i m a

graa Fundador: M AX DA COSTA SANTOS

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

A469p

Althusser, Louis, 1918Rio Posições I I / Louis Althusser. de Janeiro : Edições Graal, 1980. (Biblioteca de Ciências sociais; v. 17)

1. Althusser, Louis, 1918- — Filosofia 2. Marx, Karl, 1818-1883 — Filosofia — Crí­ tica e interpretação I. Título II. Série

80-0500

CDD — 335.411 194 CDU — 330.85:1 Althusser

ÍNDICE

Apresentação: ALTHUSSER: Pedagogo político e estratega da Teoria ......................................................

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APARELHOS IDEOLÓGICOS DE ESTADO Hobre a reprodução das condições de produção .. A reprodução dos meios de produção................... Reprodução da força de trabalho ........................ Infra-estrutura e Superestrutura .......................... (> Estado ............................................................... I >a teoria descritiva à teoria propriamente dita ... <) (íHsencial da teoria marxista do E s ta d o ............ <)M aparelhos ideológicos do Estado ................... <> (lue são os aparelhos ideológicos do Estado ‘ AIE)? .................................................... Mnbre a reprodução das relações de produ ção___ Arnrea da Ideologia .............................................. A Ideologia não tem h is tó ria ................................ A Ideologia é uma “ representação” ...................... A Ideologia interpela os indivíduos enquanto su|«»lloH .................................................................... Uin exemplo: A Ideologia Religiosa C ris tã ............

,47 48 50 53 56 57 59 60 61 67 75 76 79 87 93

FREÜD E LACAN Nota do Editor francês .................................. Freud e Lacan ................................................ MARXISMO E LUTA DE CLASSES ............... COMO LER “ O C A P I T A L ^ ............................. Duas Dificuldades ............................................ Mais-valia e horas suplementares.................... Produtividade e luta de classes........................ “ Bola de neve'’ e m assacres............................. Esta reera de ouro .......................................... A FILOSOFIA COMO ARMA DA REVOLUÇÃO

103 105 132 139 140 142 144 147 148 152

APRESENTAÇAO M a n o e l B arros da M o t t a S e v e r in o B e z e r r a C a b r a l F il h o

ALTHUSSER: Pedagogo político e estratega da Teoria^ I Em Posições II, recolhem-se em ordem cronológica iilgiimas intervenções que acompanharam a produção iníirica, as análises históricas sobre a formação da teoi lii marxista e a prática militante de Althusser. São enmiloH, prefácios e entrevistas que têm como ponto de upolo revistas e jornais políticos da esquerda francesa n rmropóia. Essas intervenções não têm a função de uma verdade acabada, mas, pelo contrário, abremHn h retificação e à crítica, ao trabalho paciente e ponIMvo do conceito. () (jonhecimento dos trabalhos de Althusser é vital lim tiue ele nos coloca diante da tarefa ainda inacabada I

Ml.nlo foi-nos sugerido pela leitura do interessantíssimo «obro o desenvolvimento do marxismo no ocidente euroilu Wovolução de 17 até os nossos dias, de autoria do filó«tifii fiiuKíéH André Tosei. Esse estudo de natureza históricoMlnmUlfu fivz parte do tomo I II da Histoire Générale de la fhlhmiifi/ihf, da Encyclopéãie de La Pleiâde, publicada sob a I •Miiilnimvno do Yvon Belaval.

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de libertar o marxismo do stalinismo pós-stalinista — este aparelho implacável de controle, bloqueio e denegação que não permite espaço algum para a produção de novos problemas e a busca de novas soluções teó­ ricas e políticas. Esses trabalhos nos colocam na verdade diante do problema da construção de uma relação positiva da prá­ tica política e da produção teórica. A ausência de relação orgânica entre as duas, que é uma das características centrais do dogmatismo stalinista, leva a considerar todo trabalho teórico não pelo seu valor de verdade, mas porque legitima a linha política oficial. O dogmatismo não é, no entanto, privilégio dos grandes partidos de esquerda. Nos pequenos partidos e nos grupos esquer­ distas impera também uma fidelidade formal à ciência de Marx e Lênin (e mesmo Stálin). É a relação com a linha predominante que dá a sanção da verdade a qualquer trabalho intelectual, mobilizando uma panóplia de citações para sua validação, de acordo com as exigências da ordem. Essas práticas têm uma vigência internacional. No Brasil trata-se de um problema grave. E, com efeito, a adaptação da problemática marxista ao con­ texto político-cultural brasileiro defrontou-se com dois sérios obstáculos: de um lado, a censura efetuada pe­ los aparelhos políticos-administrativos e ideológicos da direita; de outro, as características particulares da ^his­ tória da formação ideológica marxista brasileira, sub­ metida a uma singular e tenaz fusão do economicismo, do historicismo e do humanismo. Essa matriz teóricopolítica remonta à sólida dominação da vertente estalinista e pós-estalinista do marxismo da I I I Internacio­ nal. Até mesmo os que, através da vertente ocidental do marxismo, tentaram escapar do dogmatismo estalinista, permaneceram em larga medida no campo do his­ toricismo e do economicismo .2

2 Na defesa do historicismo estão por exemplo: Caio Prado Jú­ nior, Jacob Gorender (em seu importante trabalho O Escravismo Colonial), Nelson W. Sodré {Formação Histórica do Brasil) e

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Contudo, é preciso não esquecer como condicionante importantíssima da situação político-ideológica brasileira, o fato de que o movimento popular sofreu em 1964 uma grande derrota política. E o preço pago por isto foi Imenso. Traduziu-se no atrelamento da na­ ção e do Estado brasileiro à política imperialista na América Latina, na África e no conjunto do Terceiro Mundo, na perda de um grande número de vidas de mili­ tantes revolucionários, nas prisões superlotadas, no uso sistemático da tortura visando o destroçamento do movimento popular e sindical, no exílio de alguns mi­ lhares de brasileiros, na imposição de uma política de exploração maciça e implacável do proletariado, do campesinato e do povo brasileiro, em que até mesmo setores da burguesia nacional foram duramente atin­ gidos. Um quadro geral de que, hoje, estamos apenas emergindo. Não há como negar o impacto paralisante desse quadro político geral, que resultou na perseguição e destruição dos centros de pensamento de esquerda, ou mesmo nacionalista e independente, na universidade brasileira. Desta forma, as condições para o trabalho teórico tornaram-se extremamente difíceis e não pode­ mos esquecer, por um único momento, a bravura e a (joragem com que, dentro e fora das universidades, mui­ tos continuaram sua reflexão e estudo mesmo quando submetidos aos impasses e limitações de uma situação adversa e temporariamente incontomável. Cabe reconhecer, porém, o fato inelutável de que, quanto a certos problemas, coube-nos uma pesada he­ rança, a dos erros e desvios da luta anti-imperialista e

Fornando H. Cardoso {Capitalismo e escravidão no Brasil me-

rUUonal Empresário industrial e desenvolvimento econômico, "O Modelo Político Brasileiro” ). Alberto P. Guimarães {Quatro HiUnilos de latifúndio). Os trabalhos que definem este campo são (lo valor teórico desigual e resultam em políticas anti-imperialisl.as, revolucionárias ou reformistas diversas, que vão da defesa (Io nacionalismo e da burguesia nacionaPà crítica do naciona­ lismo ou do economicismo, até a defesa da autonomia da socie­ dade civil frente ao Estado, numa posição mais ou menos socialdomocrata.

Id

do movimento operário entre nós. Daí encontrarmo*nos em larga medida diante da tarefa mal esboçada de tra­ balhar para a liquidação teórica e política do d o ^ a tismo, do qual não estamos ainda completamente liber­ tos. Do stalinismo e seu implacável sistema político res­ tam ainda algumas seqüelas: o diktat dominante em certas formações políticas, para as quais o trabalho teó­ rico tem como opções exclusivas o comentário ou o si­ lêncio diante da linha oficial. É, pois, de uma efetiva liberdade de pesquisa e' de um amplo debate que se necessita. Debate que cubra tanto a conjuntura filosófica e política no plano inter­ nacional, quanto os problemas do movimento popular e da luta antimperialista e anti - hegemônica no Brasil Esta dupla frente exige que se trabalhe duramente e sem concessões para se definir com clareza ,certas ques­ tões candentes do momento atual, e para dar um mí­ nimo de consistência teórica e prática às soluções dos problemas com que nos defrontamos: da transformação socialista e democrática do Estado, da ampliação do movimento e da política de massas e, finalmente, de uma nova etapa no desenvolvimento da ideologia e da política do movimento operário brasileiro. E para isto é indispensável ampliar o conhecimento do estado atual da teoria e da prática do marxismo, como também da crise porque passa o sistema imperialista e a não me­ nos grave crise do socialismo nas sociedades pós-revolucionárias.3 Não há como duvidar que o estado da formação teórico-político-ideológica brasileira tenha contribuído de modo decisivo para que os ensaios de Althusser, A

3 Alguns sociólogos brasileiros tentaram trabalhar com Marx, combinando-o com Durkheim e Weber, aceitando desse modo, implicitamente, não apenas as críticas dos adversários, mas suas teses. Com um quase nada de estratégia reflexiva, acabaram ‘ to­ mando as máscaras pelo rosto”. Um exemplo: graças a_ weberianização de Marx, chegou-se à conclusão de que nao ha classes no escravismo brasileiro. A sociedade brasileira é estamental. Nela há ordens, estamentos; classes, só no capitalismo, Tese de Plorestan Fernandes, P. H. Cardoso, H. Safiotti, Gui­ lherme Motta etc.

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favor de Marx, Ler o Capital e Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado (onde estão alguns dos seus mais importantes aportes à elucidação epistemológica e polí­ tica do sistema de pensamento marxista contemporâ­ neo),4 despertassem a hostilidade aberta, apoiada em argumentos falaciosos, de adversários vindos de dife­ rentes regiões do espectro ideológico, na medida mes­ ma em que, por outro lado, ocorria uma apropriação ampla e envergonhâda de conceitos e noções pinçados dessas obras. Em sua maioria eram posturas críticas que Ignoravam os problemas, a história e a tendência principal da intervenção teórica e política de Althusser 0 fabricavam argumentos para supostamente demolir 0 autor. O resultado foi uma denegação teórica e uma hostilidade fundadas até certo ponto na ignorância. Si­ nal dessa hostilidade filosófica é o rótulo sempre renoVíido de Althusser ora como estruturalista ora como l)()sitivista.5 No livro que ora chega às mãos do público leitor brasileiro, uma coletânea de textos sob o título geral «Io Posições II, podemos encontrar algumas das mais Importantes intervenções de Althusser sobre os aspec(oH problemáticos (e chaves) da teoria marxista acerca iloM (ifeitos superestruturais da luta de classes na deter­ minação causai dos mecanismos e das formas de exislônola histórica da ideologia, dó poder e do Estado: 1

HO podería entender as análises renovadoras das históiliiH (In revolução russa e chinesa efetuados por Bettelheim sem •t« liiilmlhos de Althusser? Ou os estudos sobre a estrutura do |! «ln(l() e do aparelho político sob o capitalismo efetuado por l ‘ t i i i l i m l z u H ? E ainda a extensão e a retomada dos estudos mar* (lnM Hociedades chamadas primitivas efetuadas por Terray. Mem fiiliirmos dos estudos de estética de Macherey, sobre a Ii ImiiIouIu jurídica de Edelman, e Miaille, de epistemologia e his-iihhi (liiH clôncias de Raymond, Pêcheux, Pichant, Badiou, LeMtuii JnI.o pnra nos atermos a apenas alguns nomes mais coiilinoliliiH (In cena teórica francesa. É necessário não esquecer •|UM (I Impacto teórico dos trabalhos de Althusser não foi pe......... iiii Inglaterra, na Itália, na Espanha, na Alemanha, na AiKMiilliia, noH Estados Unidos, no Chile e mesmo no Brasil. H l‘tnatllKmiUlcós neste sentido são os trabalhos de J. A. Gia(••<111 « I'' II. Cardoso contra Althusser, nome aliás de um ma(Io primeiro.

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desde o ensaio “Freud e Lacan” , o estudo Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado, passando pelo comen­ tário sobre o tomo I de O Captai, à apresentação do livro de Marta Hannecker sobre os conceitos do Materialismo Histórico ou a sua ecoante entrevista publi­ cada no L ’Unitá e recolhida por M-A Macciochi, sob o título de “ Filosofia como arma da revolução” . Em to­ dos estes textos, vemos se delinear um complexo dis­ positivo de conceitos e noções voltado estrategicamente para a elucidação teórico-crítica dos mecanismos de dominação e poder nas formações sociais capitalistas, como também nessas formações sociais inéditas (URSS, China e outras) produzidas pelas revoluções do nosso tempo. Para balizar o campo teórico delimitado por estes problemas vejamos algumas das questões que orien­ tam o seu posicionamento. Primeira pergunta: em que medida as posições de Althusser estão em continuidade com a posição marxista clássica, ou pelo contrário des­ locaram, retificaram e transformaram essas posições? Questão a ser respondida com um confronto das teses de Althusser e as problemáticas da ideologia em Marx e por uma periodização dos trabalhos do primeiro. Se­ gunda pergunta: existe uma teoria marxista das ideo­ logias a partir de Althusser? Responderá a esta per­ gunta a análise teórica da fusão da tópica marxista com a teoria lacaniana do sujeito e do imaginário. E, por fim, uma última questão que delimita o campo das con­ vergências das posições de Althusser com outros traba­ lhos atuais: até que ponto estas novas formulações teó­ ricas de Althusser sobre a problemática da ideologia e do poder reencontram certas formulações — igualmen­ te revolucionárias como as de Michel Foucault — no espaço do saber teórico contemporâneo. A solução do problema da ideologia, ou pelo me­ nos o seu encaminhamento positivo, tem o seu começo niun reexame crítico da teoria marxista da superestriitura. Essa teoria foi apresentada em sua forma clássica como uma tópica. Na clássica imagem de um edifício, um modelo arquitetônico, temos uma base ou infraestrutura sobre a qual se elevam os elementos que com

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põem a superestrutura: o sistema jurídico-político e as dormas da consciência social (as ideologias práticas, a religião, as artes e as ciências). Eis a concepção tradi­ cional dominante, centrada no conceito de modo de produção, cuja estrutura é concebida mais ou menos nos termos em que a economia marxista pensava o eco­ nômico; isto é, por modo de produção se entendia a articulação das forças produtivas e das relações de pro­ dução: para definir a relação entre a base e a superesl.rutura, entra em cena o conceito de formação social (cuja definição teórica mais precisa se encontra nas análises de Lênin sobre o desenvolvimento do capita­ lismo na Rússia). Ela se Incumbirá de dar conta das i'(dnções entre a base econômica (o modo de produção) a a superestrutura político-ideológica. Qual era no entanto o tipo de eficácia da base sobre a superestrutura e desta sobre a base, segundo este mo­ delo? Entre a base e a superestrutura a relação seria de “expressão” . A política seria, por exemplo, a expressão •'oncontrada da economia.6 Portanto, determinação unívoííH do qualquer acontecimento de um outro nível pela wMuiomía, negação da eficácia de outras relações.7 Polílleii e Ideologia são, nesta versão, meras expressões ou leflexos do econômico. Não se encontra aí a definição •1« uma teoria materialista da ideologia que abarcasse ttn fnrrnas de eficácia da superestrutura. Cabe pergunIwr «nrá esta lacuna presente na obra de Marx ou será M rtiNullíido da presença em seus textos de mais de uma n l''iUmnlK do Lênin. Bettelheim, numa retificação que não se •'iiMiiiim no texto, diz: “sim mas com autonomia relativa da M rniiKindo por sua vez sobre a base”. O enunciado anImiIii i , im Hua eloquência expressiva, não autoriza, no entanto, MlH Inltiim, f que se traduzia no plano político, ^ t r e os teóricos tln II liitniniudonul, na expectativa de que a expansão econômica • MlilittliMlii Invurlfi inevitavelmente ao crescimento da classe ope•4tiM iin miiiKmto de seu peso eleitoral e naturalmente ao Uillhiiio Mas o economicismo não era propriedade exclusiva '*'* II Inlnmaelonul. A formação ideológica bolchevique, que I. dítlormlnunte na formação da III Internacional (e de qttH II MliilliilNino ó uma forma, porém não única), também será mxldiiiiii iiiiN quadros do mesmo esquema.

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problemática da ideologia? Vimos que a formação da tópica pela leitura economista torna impossível uma colocação do problema. O ponto de partida de Althusser é uma leitura da tópica, que propõe nova definição do caráter específico da totalidade marxista, isto é, do conceito da estru­ tura de um modo de produção. Este é constituído por níveis ou instâncias complexamente articulados por for­ mas de determinação específica, segundo uma causa­ lidade dialética.8 Para Althusser, existe uma complexi­ dade da base 9 e da superestrutura, e formas de ação específicas da base e da superestrutura. Com essa tor­ ção, ao pensar o lugar da ideologia no interior de uma tópica, Althusser liberou-a dos quadros da antropolo­ gia, em que a problemática filosófica da alienação e do sujeito a aprisionara. Entretanto, o seu trabalho foi ain­ da mais longe, não se limitando a uma crítica negativa da problemática humanista dos Manuscritos econômicosfüosóficos. Em Marxismo e Humanismo, ele apresenta alguns elementos para uma definição positiva do pro­ blema da ideologia. Nessa primeira formulação, a ideo­ logia é definida como estrutura, com sistematicidade e rigor próprios, composta por imagens, mitos, idéias e conceitos, dotados de existência e papéis históricos nu­ ma sociedade determinada. Ela se inscreve como uma parte orgânica numa totalidade histórica específica com função própria. Esta é a primeira posição do problema da ideologia: para Althusser a ideologia constitui um sistema de representação sem os quais nenhuma socie­ dade pode viver. Metáfora biológica: é um ar indispen­ sável à respiração da sociedade, porque é historicamen­ te sua vida. Nessa formulação de Althusser, porém, pode-se de­ parar com um distanciamento crítico frente à posição 8 Causalidade que ele em certos textos chamou de estrutural. 9 Sobre a natureza complexa da dupla articulação das forças produtivas com as relações de produção, Balibar produziu im­ portante elucidação epistemológica em seu ensaio publicado em /,er o Capital II.

III

tradicional do problema da ideologia. Sabe-se que em boa parte da tradição marxista, a ideologia é pensada no interior da problemática da consciência do sujeito. Para Althusser a ideologia é inconsciente, mesmo que refletida. É um sistema de representação que nada tem a ver com a concepção clássica do idealismo da cons­ ciência. Agindo através de imagens ou conceitos, ela se Impõe como estrutura. Por estrutura ideológica Althusser pensa um sis­ tema de representação do mundo que une os homens ãs suas condições de existência e os homens entre si. Esta união ou esse laço que prende os homens entre si ó uma relação vivida, duplicada por uma relação imagi­ nária. A ideologia é, pois, pensada como uma relação Ruperdeterminada de uma relação real e de sua rela­ ção imaginária com suas condições de existência. Esta superdeterminação determina estrategicamente as rela­ ções entre o imaginário e o real, através de que a ideo­ logia se faz ativa, reforçando ou modificando as rela­ ções dos homens com suas condições de existência,lo Althusser opera aqui um deslocamento, apoiado em larga medida no trabalho de elucidação epistemológica dos conceitos da psicanálise efetuado na França por Jacques Lacan. Porém, o que de essencial Althusser de­ preende da leitura lacaniana das obras de Freud é o que define a natureza da ruptura radical da teoria do Inconsciente com todo o idealismo do sujeito: a tese de que a consciência ou o ego é o lugar do imaginário, lugar de identificações alienantes, o que nada tem a ver com a concepção clássica, que a situa como uma estrutura central do sujeito, dotado de autonomia, autoreflexão e com uma função eminentemente sintética. Este acontecimento teórico revolucionário subverte todo o edifício filosófico ocidental, até então centrado

10 Essa primeira concepção de Althusser da ideologia está diri­ gida por uma crítica filosófica de uma família político-ideológica: a do humanismo burguês centrada na problemática da alienação feuerbachiana.

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na figura teórica do par sujeito/objeto. Todas as teo­ rias do conhecimento pré e pós-crítica — de Descartes e Locke a Kant, Hegel e Husserl — giravam em torno de um mito teórico: o de que o conhecimento opõe o sujeito ao objeto, sujeito este centrado no eu, na cons­ ciência. A empresa teórica de Freud dissolve o mito ideológico do homo psicologicus, pois revela que, na sua estrutura real, o sujeito humano não tem centro, a não ser nas formações ideológicas em que se reconhece. Para além de uma teoria do conhecimento, é uma teo­ ria do desconhecimento-reconhecimento, que emerge da revolução teórica de Freud. E ao fazê-lo, reencontra, no espaço ainda não demarcado, os princípios de uma teo­ ria da ideologia, ausentes largamente no marxismo. Em seu ensaio, “ Freud e Lacan” , Althusser reconhecerá es­ sa dívida numa intervenção que tentará dar conta do estatuto teórico-político da psicanálise.^^ Trata-se de uma intervenção que tem um duplo efeito e objetivo: primeiro reconhecer que se tratar de uma ciência, ou melhor, de uma teoria revolucioná­ ria cuja apropriação exige um enorme esforço crítico e teórico. Este reconhecimento se dá em cima dos re­ sultados de um trabalho em larga medida já efetuado isto é, a leitura dos textos freudianos por Jacques Lacan, em seu Seminário e seus escritos. Este trabalho crítico diz respeito à luta contra a apropriação da teo­ ria analítica e sua redução à biologia, à psicologia e à filosofia idealista isto é, a disciplinas que reinscrevem a teoria analítica num campo que lhe é antagônico, onde ela perde seu sentido teórico e sua eficácia terapêutica. Este é o reconhecimento primeiro de Althusser, do que se poderia chamar a política da psicanálise lacaniana: sua crítica implacável à transformação da teoria e da técnica psicanalítica numa tecnologia de normali­ zação dos comportamentos, numa variante política da 11 Dívida que o leva a render tributo em uma nota de Ler o Capital: "a esso esforço teórico, durante longos anos solitário, intransigente e lúcido de J. Lacan, é que devemos, hoje, esse resultado que «uhverteu nossa leitura de Freud” (Ler o Capital, p. 14).

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engenharia social capitalista, das técnicas de adaptação e produção de indivíduos dóceis e úteis, de que as cor­ rentes americanas são a mais acabada versão. Efeito primeiro, portanto, que se traduz numa demarcação da especificidade da teoria analítica frente ao revisionismo imperante em seu próprio campo. Em segundo lugar, esclarecer a natureza da relação Marx/Freud e marxismo e psicanálise; e definir, de maneira nova, as possibilidades e problemas desta ar­ ticulação. Lembra Althusser que o efeito do revisionismo psicanalítico sobre os trabalhos dos marxistas levaram estes a situar-se no terreno do adversário, confundindo a descoberta freudiana com os produtos do revisionis­ mo psicanalítico. O trabalho de elucidação epistemológica efetuado por Lacan não significa, no entanto, ape­ nas uma defesa do campo freudiano contra seus inimigos externos (ou invasores). Representa uma pesquisa so­ bre a validade, a extensão, o rigor e o espaço de apli­ cação dos próprios conceitos freudianos, para torná-los adequados a seu campo de objetos e libertá-los da he­ rança da física energética, no qual, numa relação de Inadequação, eles foram pensados. 12 o trabalho de La­ can permitiu, sem dúvida, romper o equívoco de certas fórmulas de Freud e reabrir o campo efetivo da teoria das formações do inconsciente à pesquisa teórica, ocu­ pado até então por uma verdadeira babel de concep­ ções de caráter quase sempre pré-teórico e de escassa eficácia clínica. e é esta crítica de Lacan à antropologização da psicanálise que será retomada por Althus­ ser em sua leitura de Marx. No tocante à relação marxismo/psicanálise é des­ necessário lembrar que ela não foi descoberta por Al­ thusser; ela tem uma longa história. Uma história toda

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Lacan recorre à história das Ciências para definir esse pro­ blema. A relação de adequação ou inadequação dos conceitos 0 noções que delimitam um campo simbólico qualquer está con­ dicionado por essà dialética selvagem da irrupção de um saber ou de uma ciência no campo teórico existente. 13 Do ponto de vista da terapêutica, Lacan desbarata o liltimo bastião da psiquiatria: o tratamento das psicoses. Freud iniciou esta análise com um texto psicótico. iUm psicótico: Schreber).

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ela marcada pela presença dominante do marxismo ontoldgico, envolvido sempre no halo espiritual da filo­ sofia da consciência, que, em suas diversas tendências, de gaúche ou social-democratas (W. Reich, Marcuse, From), reinscreveu no espaço da ideologia humanista os conceitos e noções da teoria freudiana. Ao reconhe­ cer na obra de Lacan uma importante ruptura com essas tendências, Althusser a incorpora ao seu dispositi­ vo teórico, voltado contra as diversas variantes do humanismo filosófico. Uma tomada de posição estraté­ gica que se inscreve num acontecimento — uma crítica radical do humanismo, que constitui, como assinala Foucault em As palavras e as Coisas, a mais importante empresa filosófica do nosso tempo. Essa problemática — crítica da antropologia huma­ nista do jovem Marx — foi conservada, embora larga­ mente ampliada, no que se pode chamar de segunda etapa do pensamento de Althusser; etapa que se inicia com uma breve mas significativa autocrítica das ten­ dências teoricistas presentes no Ler o Capital e se desdobra numa seqüência de novas teses e posições sobre a relação entre ciência, ideologia e filosofia. No “ Curso de Filosofia para Cientistas” , algumas noções e desenvolvimentos novos repontam. Particularmente no domínio da ideologia, se introduzirá, para além do sis­ tema de representação, os sistemas de gestos e com­ portamentos como uma parte do dispositivo material da ideologia. Nessa obra, entre outras distinções, Al­ thusser definirá as ideologias práticas como formações complexas de montagens de noções — representações — imagens — comportamentos — atividades — gestos. O conjunto funciona como normas práticas que gover­ nam a atitude e a tomada de posição concreta dos homens frente aos objetos reais de sua existência social e de sua história. Entretanto, o pensamento de Althusser sobre o problema da ideologia conhecerá ainda uma terceira etapa, na qual ele tratará de enfrentar, e abrir para as análises marxistas, o campo problemático das relações de dominação e o difícil problema da relação base e superestrutura. Num ensaio seminal, intitulado Ideo-

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Ingla e Aparelhos Ideológicos de Estado, Althusser ao wHUidar — de acordo com uma indicação fundamental, oinbora recalcada na análise de Marx — a sociedade (’ii))italista sob o ponto de vista de sua reprodução, mnpllará e dará novos contornos à sua intervenção teóI Ico-política. Nesse novo dispositivo teórico encontrará Hol) novo ângulo dois velhos problemas: o Estado e a Idííologia. Essas análises introduzirão retificações importanI iHHlmas nas teses clássicas sobre o aparelho de Estado. Trata-se, preliminarmente, de retomar a definição do Kstado, proposta pelos clássicos marxistas como uma máquina de dominação capaz de assegurar às classes liíígemônicas o controle da grande massa dos dominados n explorados; máquina esta cujo esqueleto básico compõe-se de governo, administração, forças armadas, polí(áii, prisão etc., formando o Aparelho Repressivo de l'!.stado. E Aparelho de Estado que não se confunde com n poder do Estado, pois, para esta definição, o poder (Io Estado é o poder de que dispõem classes e frações (Io classes para utilizá-la como uma máquina de do­ minação. Ora, Althusser considera insuficiente e lacunar uma tal concepção do Estado. A partir da interrogação ini(ílul sobre a reprodução da força do trabalho que se dá fora da empresa, por intermédio de toda uma rede (lo organizações (escolas, igrejas, sindicatos, partidos (ítc.) com papel dominante na reprodução nas relações sociais, pensará a necessidade de uma ampliação do conceito de Aparelhos de Estado. Ele proporá um con­ ceito novo — Aparelho Ideológico de Estado — para pensar em novas bases as relações sociais estatais. O conceito de Aparelho Ideológico de Estado permite pen­ sar o campo de ideologização constituído pelas diferen­ tes igrejas, o sistema escolar, os partidos, a imprensa, os sindicatos, o mundo cultural e esportivo. Ou seja, todo um conjunto de organizações que formam o sisl;ema das ideologias, articuladas sobre práticas materiais onde se produzem os mecanismos de inculcação e de

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assujeitamento ideológico. 14 Este sistema de práticas reproduz, assim, relações de classe na estrutura eco» nômica, política e nos Aparelhos Ideológicos de Estado; práticas diferenciais sejam burguesas, pequeno-burgue* sas ou proletárias. Em suma, o aporte de Althusser à teoria marxista da ideologia se cifra em alguns pontos básicos entre os quais podemos ressaltar: primeiro, ele se opõe à concepção filosófica tradicional, que entende o fenômeno ideológico centrado na figura da consciên­ cia, ainda que ilusória; segundo, ele se distancia de todos os que concebem a ideologia como algo imaterial, determinando ou exprimindo uma realidade que lhe é exterior, como a economia. Por fim, tenta investir con­ tra o pressuposto racionalista-formalista que coloca o problema da ideologia calcado no par verdade-erro. Entretanto, nesse primeiro momento a formulação althusseriana ainda se ressente do peso da herança clás­ sica. Os clássicos, e entre eles se inclue Gramsci com sua tese sobre a distinção entre sociedade civil e so­ ciedade política, não especificaram as formas 'de domi­ nação e, com isto, chocaram-se com os obstáculos teó­ ricos insanáveis apresentados por uma concepção do Estado baseada no par violência-ideologia. Ou seja, não escaparam de todo ao círculo da concepção contratualista burguesa do Estado e da política. Não é por acaso que, em suas últimas intervenções, Althusser reconhe­ cerá abertamente o caráter insuficiente e, mesmo, ine­ xistente da teoria marxista do Estado. Ao colocar em discussão a célebre fórmula gramsciana da divisão entre sociedade política e sociedade civil ou o esquema Es­ tado = coerção + hegemonia, Althusser toca num pon­ to sensível em que são lançadas todas essas questões: os da natureza das relações de poder e sua integração no corpo da teoria marxista. Pois a ausência de uma 14 Ao definir certas instituições como a escola, a família, as igrejas, a edição como estatais, Althusser poderá ser acusado de estatismo. Cabe no entanto lembrar que Althusser retoma a tese de Gramsci, para o qual é uma ilusão, produzida pela ideologia jurídica burguesa, a distinção do público e do privado, Não é o fato de serem privadas que retira a essas instituições seu caráter estatal.

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i'niu!opção teórica mais profunda sobre a natureza do niKtiido, da Ideologia e de suas formas tendenclais, conslll,ui-se num obstáculo — um ponto cego da teoria — no desenvolvimento e/ou renovação política do marxis­ mo om meio à crise em que se debate. Diz Althusser: "ifi um ponto cego que demonstra indubitavelmente alHtiMH dos limites teóricos com os quais Marx se chocou, iMuno se fora paralizado pela representação burguesa (Io Estado, da política etc., ao ponto de só reproduzi-la iiol) uma forma negativa (crítica do caráter jurídico). l’oiit() cego, ou zona proibida, o resultado é o mesmo.” ( Althusser et allii in Discutere lo Stato. — De Donato.) 12 preciso ressaltar que as intervenções teóricas de Allliusser têm um caráter político. Elas retomam e va­ lorizam positivamente as grandes lições históricas pro­ piciadas pelos movimentos revolucionários mundiais e P('los grandes acontecimentos revolucionários (Comuna tic Paris, Soviets em 1917, Revolução Chinesa, Revolução (Miltural, a luta do povo vietnamita contra o imperialis­ mo francês e norte-americano etc.). Todas as grandes Invenções políticas do proletariado e seus aliados — as formas de mobilização para a luta de classes Econômi­ ca, Política e Ideológica, as Organizações Políticas e a l''rente Única, foram desta ou daquela forma comentadas por Althusser, ao mesmo tempo em que cuidava de denunciar os grandes erros e desvios que ocorreram ao longo dessa história: o economicismo da II Internacio­ nal e sua ressurreição no stalinismo e variantes. Por outro lado, e com toda a conseqüência, tem analizado e respondido à crise do movimento operário internacio­ nal. Atento às transformações ocorridas após o X X Congresso, a ruptura sino-soviética, a Revolução Cultural 0 a Guerra do Vietnam. Na verdade é também a crise do chamado bloco socialista que se encontra refletida nas posições críticas de Althusser, frente à questão do monopólio do partido, moldado segundo o modelo esta­ is Sobre a revolução cultural, de extrema significação é o es­ tudo positivo, crítico e polêmico de K. S. Karol: A Segunda Revolução Chinesa. Karol é também autor de um outro livro extremamente rico e polêmico sobre a revolução cubana, muito criticado e pouco conhecido.

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tal. Pois é esta forma política que bloqueia hoje as trans­ formações no interior das sociedades pós-revolucionárias. Trata-se de uma questão vital para o presente e para o futuro da revolução, uma vez que os descaminhos e mesmo a lógica dos socialismos existentes apoiam-se no acoplamento do partido com o Aparelho Político do Estado. Este, a partir de um dado momento, passa a funcionar como uma gigantesca máquina de dominação que bloqueia as transformações revolucionárias em noIhe de uma ideologia “ marxista” do estado. O último avatar desse gigantesco drama, pode-se dizer que teve uma solução negativa segundo Althusser: o esforço de Mao Zedong para arrancar o partido de sua ligação com o Aparelho Político de Estado e torná-lo um instrumento da revolução, através da Primeira Revolução Cultural, soldou-se por um fracasso. Para todos os stalinistas e neo-stalinistas, a questão da crise da forma-partido se resolve pela fundação de um novo Aparelho Partidário. Organizações partidá­ rias ou grupúsculos — que até pretendem nessa altura da história reinventar uma teoria marxista por fim pu­ rificada — lançam-se muitas vezes com excesso de ener­ gia generosa à tarefa febril de reconstruírem, como Sísifos modernos, o partido puro e incontrastável, dirigente da Revolução. Ora, não há dúvida de que as transforma­ ções revolucionárias estejam fortemente ligadas à ques­ tão do partido. Mas esse dispositivo partidário não pode desconhecer o seu enraizamento no seio das classes e frações de classe, que formam em dado momento his­ tórico o povo. Desconhecer, em nome de uma idealização mítica da universalidade da classe operária, o necessário condicionamento histórico — dentro do quadro nacional de uma formação social específica — do proletariado, da pequena burguesia, do conjunto das forças sociais interessadas na revolução (inclusive uma parcela signifi­ cativa das classes dominantes), conduz inelutavelmente à cegueira ideológica e ao puro dogmatismo. , A questão do Estado no processo revolucionário desborda amplamente a existência do aparelho partidá­ rio. E, principalmente nas formas que poderá tomar a

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Imnsição revolucionária, o Partido mais do que nunca (love estar fora do Estado. Todo o problema gigantesco fMii que se constitui hoje a possibilidade mesma de mutações nas sóciedades pós-revolucionárias tem, como ponto nodal estratégico, essa questão: como o partido, rvo invés de se identificar com o Estado, pode vir a contribuir para o seu desaparecimento. A Revolução (Miltural foi uma primeira tentativa, sob o socialismo, (Ui começar a encaminhar essa questão. É muito sinto­ mático que esse problema não tenha sido assimilado ou discutido pelos partidos stalinistas pós-stalinianos. Eloqüente também é o fato de que um ponto de luptura fundamental no contencioso sino-albanês tenhaMo cifrado na questão das contradições no seio do povo c Hua relação com o Aparelho Partidário, considerado numa ótica dogmática mais ou menos religiosa, como n que não pode ser criticado. Como os demais meml)i’()s da grande família filosófica stalinista e social-democrata (que guardam um mesmo apego ao evolucionlsmo e ao mecanicismo), os teóricos albaneses rejeitiimm a concepção de Mao acerca da diferença entre contradição principal e secundária, ou seja, a tese da superdeterminação. O obstáculo teórico que resulta de uma concepção finalista e reducionista aparece como um efeito cegante nas análises do capitalismo contem­ porâneo, do imperialismo e dessas novas formas de sociedade que são os países do leste. Sem poder ques­ tionar a teoria clássica, esses setores são levados a uma visão apologética e defensiva do partido, limitando o alcance teórico do marxismo e rebaixando-o a sim))les ideologia de Estado ou então colocando-o sempre u reboque de um Partido-Guia, que, menos do que um ])artido revolucionário, é o partido de um Estado-Guia. V6-se por aí como são sacrificados no altar dos inte­ resses nacionais-chauvinos o verdadeiro internacionalisrno. Uma boa parte da história dos pequenos partidos 0 mesmo das pequenas nações que conheceram revo­ luções nacionais ou, sob o impacto da segunda guerra mundial, foram levados à construção do socialismo es­ tiveram e estão assujeitados à lógica implacável desta história: Europa Oriental, Cuba, Vietnam, Camboja etc.. Em larga medida, a ruptura sino-soviética, o distancia­

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mento dos partidos europeus frente ao PCUS, estfto longe de reduzlr-se a divergências de estratégias nacio­ nais. Nos partidos comunistas do Ocidente, desde ii realização do X X Congresso do PCUS, a questão do stalinismo e sua herança têm dividido as liderança! desses movimentos ao ponto de terem de escolher entro a ruptura com o stalinismo e/ou a reintegração no seio da social-democracia. Esses acontecimentos e os impasses por eles gera­ dos estão presentes como resultantes e também como condicionantes da crise geral do marxismo (crise politica, ideológica e teórica).

O que ressalta desses conflitos é a permanência d questão por muito tempo recalcada do partido, sua for­ ma e tendências básicas. % no centro da crise que se constata o fato de que a “ forma-partido não é a forma da unidade do movimento, é a forma da sua divisão e da sua crise” (Balibar, in Discutere lo Stato). É Balibar quem observa ainda que o que antes de tudo interessa a Marx e a Engels, no mais importante de seus conceitos de Estado, e mais ainda, a Lênin (e sem dúvida a Mao), não são meramente as idéias de çg^ntral^acão e organização. A função ^Principal do Estádo é'^‘^>é*crTilTeçãt3
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A tese de que o Partido na fase de transição transfiimuiHo em Estado é o ponto crítico número um, •iinunido na ideologia e na prática burguesa da política Itívou ao triunfo da contra-revolução em alguns chamados socialistas. Althusser opõe-se aqui a ilrwmHci, que, na sua teoria do moderno príncipe, deesta identificação. Diz Althusser: “ se o partido M t«)nia Estado, temos a URSS” . Surge aqui uma queslln Importante: qual a alternativa para a política prolnirtrlii? Esta questão é respondida pela tentativa euroMiiiminista, que procura retificar os efeitos da linha •Inllnlsta no Ocidente, com as teses do PCI (partido iln luta e do governo) e do PCF (partido de governo). i‘rtm alguns, estas fórmulas não passam de puro e simpleN revisionismo. Para Althusser, tanto a tese do parllilo de oposição, quanto a do partido do governo levam H um impasse. Para ele o partido deve estar fundamenIttlmonte fora do Estado: “ são graves questões históricas • i)()lítlcas que exigem que o partido esteja fora do ninliido, não apenas sob o Estado burguês, mas também mil) 0 Estado proletário. Esta é a condição sine qua mm para escapar da forma burguesa do Estado” . Esta tese implica na necessidade (e não apenas na purtHlbilidade) do chamado pluralismo. Em Discutere lo Stato, a intervenção de Althusser tocou em alguns temas políticos que retomaram pontos de uma discussão anlorlor, prppostá por Norberto Bobbioie, acerca das «iirantias formais (as regras do jogo), que um progra­ ma de transição democrática para o socialismo teria «|uo observar para assegurar à maioria dos cidadãos a participação nas decisões do governo, evitando desse modo o destino trágico dos países do leste europeu. Althusser inverte a questão ao se interrogar sobre o Hontido mesmo do jogo em disputa. Kl Os artigos de N. Bobbio ( “Existe uma doutrina marxista do i'lNtado?“ e "Quais as alternativas para a democracia represenliitlva") foram publicados no Mondo peraio em 1975, dando lugar a uma ampla discussão de que participaram nomes como lugrao, Gerratana, Cerroni e outros, O conjunto dessas intervtaições apareceu no Quaderni di Mondoperaio, n,“ 4, e foi pulillcado no Brasil pela Graal sob o título O marxismo e o Estado.

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Ora, se se trata, diz Althusser, de pensar as condi­ ções políticas que favoreçam a emergência de forças sociais novas, geradas no interior das sociedades capi­ talistas, e que apontam para a sua radical transforma­ ção, é fundamental que se coloque a questão da neces­ sária revolucionarização das relações estatais existentes. Nesse caso, ò decisivo é a transformação do Estado burguês, o que não implica, simplesmente, na supressão de toda regra do jogo^^as, isto sim, na mudança pro­ funda do aparelho de^stado, pela suT3Ji6ssãt)*de-vá3dos ^e seus ramos, a nfodlfíca<^aoa^''*oí^ tendg.,cq2iio ob ieiáve^ su a rev^ c i o n ã^ z ã ç a & ~ e r ^ ^ y tH ê m e ^ tégiea,_a-sua-extirrÇaò. Se isto se cumprê^lZ ^ E i S ^ o , nesse processo, não se Jjdentifit:;srcòn:i'~oEstado e se m a i^ m integrado às m^sas, ele não só se empenhará nS^BfêSard^n^egras^-do-jogo-demonrátrcoT^^õôm&^estará na OTSiçãÓ^ê^ãféniiesmQ-pxopor-novãsTB^as-qiig^permitftm uma maior participação das massas no processo (íê^a'^ilTéH3ção^daS"fOTmas'--de-*Bxploraçãcr^e^dorHina^ção i^einantesjm nossas s o ^ d ^ e s . Complementando e 'ã fliS tific a n d o ^ t^ ^ g n ln e n to , Balibar no seu co­ mentário a essa intervenção, dirá que, na URSS, não se assistiu à supressão das regras do jogo, mas à cria­ ção de regras constitucionais e político-administrativas que deram ao Estado novas e maiores formas de constrição e controle sobre as massas. (Vide o episódio da constituição de Stálin, em 36, e sua reafirmação quase 40 anos depois,, na nova constituição de 77.) Continuando a sua argumentação, dirá Althusser: “ A existência de vários partidos na transição não é um obstáculo, é uma vantagem. Sob estas condições, o partido do operariado não poderá ser apenas um apên­ dice do aparelho ideológico e político do Estado (o regime parlamentar) mas deverá, através de sua ativi­ dade no interior das massas fora do Estado, trabalhar para transformar os aparelhos de Estado burguês e preparar sua extinção, além de favorecer, também — onde já existe — , a desmontagem do novo Estado re­ volucionário. O alvo número um é o Estado: as políticas de colaboração de classe ou a gestão da ordem atual estão aí para mostrá-lo, sem falarmos — do que é muito

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mais grave, dos partidos que se tornaram Estado na Europa Oriental e alhures” . Na verdade, trata-se de arrancar as massas à sua profunda, penetrante imersão no Estado. No Manifesto, por exemplo, diz-se que o proletariado está fora da ideo­ logia familiar, das relações ideológicas criadas pela re­ ligião patriótica, pela moral e pelo poder das Igrejas, Esta tese na verdade deve ser retificada, pois as massas já estão no Estado, submetidas na sua constituição mes­ ma à lógica das relações estatais, is n “ Uma grande confusão reina sob o céu” , dizem os chineses, se referindo ao quadro de mutações e de rup­ turas, até há pouco inimaginado, que constitui o sistema internacional em que vivemos. Os marxistas no Ocidente e alhures, de há muito habituados com a “ crise geral do capitalismo” , observam com inegável desconforto que o acontecimento do X X Congresso do PCUS expôs, como um abcesso supurado, a crise das sociedades pós-revolucionárias. Algumas das questões filosóficas, político-teóricas que emergem dessa crise, e da profunda mutação ideo17 Uma questão que ilustra bem esse problema é o da ideologia religiosa. Como se poderia compreender toda a complexa rela­ ção das ideologias religiosas e seus aparelhos com as classes exploradas, com os pobres e com a pobreza, se estes estivessem fora da ideologia? Todo esforço de debate, aliança e crítica entre marxistas e cristãos se dá neste espaço. Em formações sociais diferentes, parte das comunidades religiosas cristãs, com divi­ sões internas, aliaram-se às massas e setores da esquerda para combater as formas de dominação e exploração tanto no Ter­ ceiro Mundo quanto na Europa Ocidental e Oriental. Este fe­ nômeno não se restringe ao cristianismo. Com efeito, no Islamismo, que foi submetido à dominação ideológica ocidental, este fenômeno apresenta um caráter eminentemente revolucio­ nário. O acontecimento da revolução islâmica no Irã é um exem­ plo notável da fusão da religião e da política como instrumentos de libertação política dos povos da dominação imperialista. 18 Um exemplo da inserção das massas no Estado: o modelo criado pela vertente de direita da ideologia trabalhista. Trata-se

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lógica que desencadeou, podem ser entrevistas na obra de certos pensadores como Althusser e Foucault que en­ frentaram o desafio de pensar com grandeza (com cinis­ mo e inocência, diria Nietzsche) uma época de “ trans­ mutação de todos os valores” . A conjuntura filosófica e política atual está, porém, marcada por uma vigorosa ofensiva neo-humanista e espiritualista com a qual estão em ruptura Althusser e Foucault e também, em outro veio, Lacan. Assistiu-se ao surgimento de uma série de temas orqueátrados pe­ los clowns da “ nova filosofia” , do marxismo historicista e alguns velhos corifeus do finalismo ontológico, que se cifram basicamente num uso contra-revolucionário do marxismo. Em meio ao barulho de uma batalha sem princípios, as posições de Althusser não se prestaram ao obscurecimento das questões candentes reveladas pela crise do stalinismo. O que não ocorreu, em parte, com o uso da obra de Michel Foucault por alguns ideólogos da “ nova filosofia” neo-espiritualista e neo-humanista. 19 Por isso é necessário esclarecer as relações de seu trabalho teóde um modelo ideológico do que deve ser o bom trabalhador, produtivo e dócil, a quem se opõem a figura do agitador polí­ tico ou do delinquente, que recusam a ética burguesa do produtivismo. Por seus efeitos pode-se observar o mecanismo real da ideologia: um dispositivo que participa dos mecanismos de assujeitamento relativo das massas operárias da disciplina des­ pótica da fábrica, dos sindicatos controlados pelo Estado e às instituições do capitalismo brasileiro. tO modelo do ^oder repressão-exclusão com a ética burguesa __' trabalho forçado que lhe é correlativa presente na história da loucura foi utilizado por A. Glucksmann para tentar dar conta das sociedades pós-revolucionárias, principalmente a URSS. É uma leitura inspirada no grande internamento dos loucos, delinquentes, libertinos e criminosos na idade clássica descrita por Foucault que dá o código através do qual Glucksmann in­ terpreta a obra de alguns “dissidentes” soviéticos. N a verdade este esquema é insuficiente, do ponto de vista analítico, para explicar a corpplexidade do fenômeno que constitue as socieda­ des pós-revolucionárias. A montagem das disciplinas, nelas, tem um papel muito mais importante do que a generalização do modelo do poder-repressâo.

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rico e suas análises históricas como as de Althusser e sua leitura de Marx. Para alguns existe no pensamento de Foucault uma impossibilidade de pensar o marxismo. Frente ao mar­ xismo (que aparece como o incontornável do saber pre­ sente), há como que uma cegueira diante do espaço que ele abre ou um efeito de crise no pensamento que se situa no seu limite. Porém, só a ignorância diante da obra histórica de Foucault pode permitir tal juízo, Althusser lhe dá um estatuto paradigmático. Para ele, boa parte da tradição marxista foi incapaz de trabalhar conceitualmente o co­ nhecimento do campo histórico, especialmente o das formações culturais das chamadas superestruturas. E a obra de Foucault nos apresenta saídas positivas para os impasses do economicismo, do humanismo e do reducionismo presentes na historiografia marxista, presa, em boa parte, ao externalismo dominante na história das idéias. A História da Loucura é uma obra exemplar, diz Althusser; ela se articula em torno da aplicação difícil deste conceito, que constitui o nódulo axial da revolução teórica de Marx: o trabalho com as formas diferenciais do tempo histórico que permite o conceito de modo de produção e suas articulações complexas. Em Ler o Capital, dirá: “ que se leia os notáveis estuçjps-^e Michel íl2M,c§udt_sqbre,a ^jicuva, sobre o ÍÍ^Nasci-'^ mento da Çlínpíí” ,_ e se verá "qííe distância pode s e p a S âS^bérás sequências da crônica oficial, onde uma disci­ plina ou uma sociedade refletem apenas sua face boa, isto é, a máscara de sua má consciência — da temporalidade absolutamente inesperada que constitui a essên­ cia do processo de constituição e do desenvolvimento das formações culturais: a verdadeira história nada tem que permita lê-la no contínuo ideológico de um tempo linear que bastaria escandir e cortar, ela possui pelo contrário uma temporalidade própria, extremamente complexa, e bem entendido perfeitamente paradoxal à vista da simplicidade desarmante do preconceito ideo­ lógico. Compreender a história das formações culturais como a de loucura, do advento do olhar clínico na me-

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dicina, supõe um imenso trabalho, não de abstração, mas um trabalho na abstração, para construir, identifi­ cando-o, o objeto mesmo, e construir desta maneira o conceito de sua história. (Lire le Capital, p. 51-52). E referindo-se ao jogo complexo das relações entre a superestrutura e a base para a definição mesmo de uma formação ideológica “ loucura” : “ Michel Foucault estudando o dever desconcertante desta formação cultu­ ral complexa que reúne em torno do termo superdeterminado de “ loucura” no século X V II e X V III, toda uma série de práticas e de ideologias médicas, jurídicas, religiosas, morais e políticas numa combinação, cujas disposições internas e o sentido variam em função da mudança de lugar e do papel desses termos, ao contexto mais geral das estruturas econômicas, políticas e ideo­ lógicas da época” . (Id.>.Ibid., p. 55-6.) Há que ressaltar que, com o trabalho de Althusser, Foucault manteve uma relação de apropriação positiva e de transformação. É o que reconhece Althusser em carta ao tradutor inglês de Pour Marx: “ Seu (de Fou­ cault) caso é inteiramente diverso. Ele foi meu aluno, e algo de meus escritos passou para os seus, inclusive algumas de minhas formulações. Mas (e isto deve ser dito, no que concerne à sua própria personalidade fi­ losófica), sob sua pena e em seu pensamento mesmo, 0 sentido que ele dá às formulações que ele pedira emprestado a mim transformam-se num sentido intei­ ramente diverso do meu” .^° Em Foucault, teoria e política estão estreitamente articulados. Não se trata nem de leitura empirista nem de uma postura apolítica, pré-política ou. pós-política. Ele não levantou meramente materiais empíricos, úteis para uma futura análise científica; definiu teoricamente o campo de emergência histórica de certos conhecimenf29VA que responde Foucault, no mesmo diapasão. À pergunta a r Raymond Bellour: “Assim você declara um parentesco direto entre seus trabalhos e os de Althusser?" “Tendo sido seu aluno e devendo-lhe muito, talvez tenha a tendência de colocar sob seu signo um esforço que ele poderia recusar, ainda que não possa responder ao que só a ele concerne”. In Raymond Bellour, El Libro de los Otros, An^ram a.

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loH 0 certas práticas de poder a eles estreitamente viniMiIudas. Deu um estatuto político novo à questão do pnder médico, tanto na ordem psiquiátrica quanto na piAtica da clínica aplicada ao corpo biologicamente dnnnte, seja ele uma população ou um indivíduo.^i Não hiV, mesmo no plano do trabalho teórico, nada mais de­ cididamente anti-empirista do que os‘ resultados da muUlse a que chegou Foucault em suas investigações hlMliórlcas. O estatuto complexo do ato inaugural de definição moderna da Loucura e das formas do intermimonto é uma evidência que não pode se reduzir a uma simples ou à simples decisão de um olhar que fliialmente visse algo novo. A liberação destas evidências empíricas é mesmo o resultado de uma elaboração no conceito que nada tem a ver com qualquer concepção eHpoculativa ou idealista da História. Se retomarmos a agudíssima análise de Balibar Mohre a relação entre o Estado e as massas vemos que c*1 h tem um antecedente nos importantes estudos hisl(h’icos de Foucault, sobre a ossatura material do apa­ relho de Estado, desenvolvidos em A História da Lou­ cura, e, principalmente, em Vigiar e Punir e na Vontade
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máquina estatal era limitada. O pnddi* do Kslado se exercia como guerra interna atravds do aparato da Jus­ tiça, através de rituais sangrentos, em (pin apanuda toda uma floração barroca de tortura o supllcdo, para subme­ ter pelo terror e pelo medo as populaçdos. l'lra uma prática do poder que se confundia com o exorcíído ritual do direito de morte, com o poder da espada.‘-*2 Historicamente, o que ocorreu foi que a substitui­ ção das monarquias absolutistas nos Estados de sobe­ rania popular foi apoiada e sustentada por toda uma nova forma de poder: uma rede capilar de poderes disciplinares. Esta nova panóplia de poder não aban­ donou a forma de guerra, apenas mudou de alvo e estendeu o campo de sua aplicação e eficácia: passou a um nível microfísico de controle. Por isto, a definição do Aparelho de Estado como repressivo é insuficiente É a representação deste tipo de poder que embaraça a análise política hoje. i^epi;essãp é apenas uma parte da bjiífSlha. Foucault põe em questão a relação que a 22 Deparamos aqui com uma modificação de um grande tema histórico — a criação do corpo político do soberano fundamenta as monarquias absolutas a partir de uma matriz teológica — que propicia a Foucault a transformação desta metáfora num sentido materialista de investigação da concretude do Estado e da sociedade como corpo político. Esse grande tema lhe foi sugerido pela monumental obra de Ernst Kantorowics, The Kings Two Bodies: a Study in Medieval Political Theology. Te­ mática que atravessa também o pensamento dos teóricos do poder normalizador, esse conjunto de processos reguladores baseados na distinção cara ao século dezenove entre o normal e o patológico (o princípio de Broussais) e que se irradiou por todo o conjunto das formações sociais atingidas pela industria­ lização capitalista burguesa sob suas várias formas, ocidental e oriental. Ver a respeito a obra de Charles Lucas, La Reforme des Prisons, e suas reflexões sobre a normalidade e o corpo social. O conhecimento preciso destas questões e a natureza po­ lítica dos controles médicos do corpo começou a surgir a partir dos estudos notáveis de Georges Canguilhem acerca do nasci­ mento da biologia e da fisiologia médica, principalmente em O Normal e o Patológico. Tais análises tiveram a sua continuidade no não menos brilhante estudo de seu discípulo Foucault, O Nascimento da Clínica (ambos os livros editados no Brasil pela Forense Universitária, em sua Coleção Campo Teórico); e, pos­ teriormente, em Vigiar e Punir (também editado, no Brasil, pela Vozes).

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teoria clássica de poder coloca como matriz do seu dispositivo teórico: o par poder/repressão, a partir do quadro de sua genealogia ainda sob o Estado absolutlsta. Ao fazê-lo, ele levanta um problema teórico e o responde com uma ampla análise histórica, que rraarça ii ascensão, a um novo patamar, da análise problemática (lo poder nas sociedades capitalistas contemporâneas. lOspecialmente com Vigiar e Punir, vemos desenhar-se um amplo quadro histórico onde emergem os mecanis­ mos de poder que permeiam toda a estrutura social como uma extensa malha; redes de poder que garantem as relações de dominação e os efeitos de hegen^onia social nessas sociedades. Vigiar e Punir, assim corno a História da Sexualidade, marcaram uma mutação riesta problemática, uma definição nova do objeto, um novo método. E a tese central, que coloca em termos novos oste problema, é de que o poder no seu exercício real não pode ser pensado como .essencialmente negativo, oxcludente e cujos efeitos únicos seriam b a rrar,^ rtar, excluir, reprimir, proibir, censurar. Seus e f e i ^ são muito mais amplos, são positivos, produtores e não apenas negativos. Estas imagens dominantes na teoria política bloqueiam a analítica de poder hoje. Para medirmos a distância entre a análise atu^l de Foucault e as teses do poder/repressão, pode-se, mais uma vez, tomar como paradigma sua grande obra an­ terior, a História da Loucura. Nesta, tanto o grande Internamento, quanto o surgimento da ordem asilai* são pensados em função do poder repressão/exclusão, ca­ racterísticos ao mesmo tempo da monarquia absoluta e da ordem burguesa. Em que estes conceitos de poder repressão se mos­ tram inadequados? É que eles pretendem analisar as formas do exercício atual do poder com categorias que definem um tempo diverso da realidade histórica pre­ sente. Referem-se a um modelo de exercício de poder ((ue não é mais o de hoje, ao menos em seus efeitos luals penetrantes e mais fortes. Qual o quadro histórico que serve como panO de fundo para esta descoberta teórico-histórico-polític^- de l‘’oucault: as disciplinas do corpo? Foram as investiga­

ções sobre a penalidade e suas mutações desde a idade clássica, que levaram Foucault à descoberta do poder disciplinar — um conjunto de técnicas centradas sobre o corpo como máquina.JÍ)a fábrica à escola, do quartel ao hospital ou à prisão vemos o surgimento de um poder voltado para o adestramento dos corpos, o seu aproveitamento total e a sua docilização por meio de uma panóplía d e ^ e io s eficazes de controle, que dis­ põem o ê s p ã ç o ^ l^ p o , o conhecimento e a combinação tática de forçasJUm sistema que se chamou de anatomia política do corpo humano. A fabricação de corpos úteis insere-se como peça essencial na transformação da for­ ça dos homens em força de trabalho e o corpo humano em corpo produtivo. 23 O que está em questão na montagem teórica do que Foucault chama de anátomo-política do corpo é o pro­ blema da inscrição material das ideologias, para além de sua concepção vulgar como teoria das idéias ou genealogia das idéias. Trata-se, do ponto de vista filo­ sófico, de arrancar a ideologia do campo da teoria do conhecimento, na sua versão empirista e idealista clás­ sica, de sua localização no interior da dualidade filosó­ fica espírito/matéria. 24 Foucault traça a emergência desta tecnologia polí­ tica como o vetor que acompanha a formação do ca23 Explicando o sentido de sua ação no campo do problema penitenciário, diz Foucault: “Desejamos atacar a instituição aí onde culmina e se incarna numa ideologia simples e fundamental como as noções de bem, de mal, de inocência e de culpa. De­ sejamos mudar essa ideologia vivida através do próprio estrato institucional no qual foi investida, cristalizada, reproduzida”. Trata-se, portanto, efetivamente de uma nova concepção da ideo­ logia, que tem como objetivo um duplo alvo: a transformação da consciência e das instituições; o que pressupõe que se ataque as relações de poder “de que são o instrumento, o esqueleto, a armadura”. (Essas considerações são encontráveis num dos mais revolucionários prommciamentos de Foucault, “Para além do bem e do mal”, inicialmente publicado em Actuel e que consta da edição italiana da Microfísica do Poder. Infelizmente tiil texto não se encontra na importante edição brasileira da

Microfísica.) 'M Ao invé.s de Aparelho, Foucault utiliza o conceito de dispoMlllvo.

pllalismo, que é a condição mesma de possibilidade da íírganização das formas de sujeição de que ele necessita, nista tecnologia tem uma figura geral: é a disciplina ilii fábrica, a militar, a escolar etc., que corresponde às Ki undes funções sociais de produção material, produção (l(í conhecimentos e de capacidade de destruição. Ela responde a um duplo objetivo: aumentar a produtivi­ dade e diminuir a autonomia dos sujeitos, inividual e «'oletivamente. O que corresponde ao aumento da força p!’()dutiva dos corpos (do corpo do proletariado como (Musse nas fábricas, por exemplo, o da produção de um rorpo proletário distinto do corpo burguês) e à sua mibordinação às relações sociais de dominação, ou me­ lhor, à sua constituição como força dominada e contro­ lada, manipulada e explorada. A disciplina corresponde a uma necessidade impe­ riosa: a de adequar ao esqueleto de produção (Marx) OH músculos e a fisiologia da força de trabalho humano. Ilá que ressaltar que essa tecnologia política não nasce ('xclusivamente da fábrica; ela tem como ponto de irrup­ ção uma multiplicidade de instituições. Tr,atarseude_ uma tática de poden que é-,p fundamento uma estratégia (lo cIãss^ 3 ^^.§J3u rÊ ^ ia . C) ccntrole global- das forças — Individuais que a emergência,da disciplina, como méto-dT5""g5r;^'HelsuieiGãQ---revela~nas "instituições, responde iinTrê^Síusivamente ao noder^repressivo do Estado, mas^ iíHima--novsr^stràtégi§,^jâa:-_class.e.-JuDdadS^S^ffiiúcla da»4étieasrgúe^obrem com sua rede e pontos de apoio tioda a superfície e a-estr-ufcupa^dQ^.GQEPO.^social. Nestg^ .,___ j o, a repressão surge_iLomQ„.J«m»xejaurmJtii^^ quftttdtn^na a iorrnar~cotidiana, maciça, de controle. Portanto, o exeiX!Ício-dQ.«pQd&j;,.fíQmo^s^^^^

)arato dej;ustiça que se impõe através de

Pja§Í3'®PS/ra'’*p©nsafEi«$assi.QjQ;^^pl^Exí*

coerção e dominacà.CLJmvLentadas pelo-eapi-fealisi

•'oucault realiza ao mesmo tempo uma inversão e m^ ampliação a: um do axioma de Clausewitz: se a guerra ])ode ser considerada como a continuação da política l)or outros meios, a montagem de toda a panóplia ma­ terial do poder revela que a política foi concebida e

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investida segundo a lógica e arquitetura do modelo mi­ litar, como mecanismo fundamental para evitar o con­ flito civil nas sociedades ocidentais. A produção de uma massa disciplinada e dócil, como o estado normal da sociedade em paz e em ordem, tem como objetivo pôr em prática o mecanismo do exército ideal, funcio­ nando pela sujeição automática e pela obediência per­ f e it a ^ Desta forma, vemos como os mecanismos de poder se sucedem e são, historicamente, inventados e trans­ formados em meio a uma batalha móvel e perpétua. Do mesmo modo que se pensa a variação dos mecanismos e formas de exploração social, pode-se pensar os meca­ nismos de dominação e de poder que lhes são coextensivos. ^ o trabalho de Althusser, Ideologia e Aparelhos Ideológicos de E sta d ã o texto é marcado por uma con­ tradição interna em que se debate a formulação clássi­ ca marxista da problemática do Estado (máquina de reprimir a serviço da classe dominante) e as questões novas introduzidas sobre a ideologia e sua inscrição material. Trata-se de uma forma de transição. Para Althusser, como sabemos, a ideologia não se define por uma determinação material anterior, como a economia. Ela é uma realidade material, de cuja ma­ terialidade fazem parte não apenas idéias e noções, mas também atos, gestos, comportamentos, localizados num Aparelho material .25 A análise histórica de Foucault da formação do Aparelho penal e do exército, por exemplo, explicitam as formas históricas das articulações desta forma contraditória de unidade que é a ideologia, tal ^cojim definida por Althusser. Essas aproximações não apagaiHr^‘*’^erér5çasr^f!lbora amplie o conceito de Estado, Althusser mantém ainda o Aparelho Repressivo como um centro. Nele, com efeito, o conceito de “ re25 Davld Cooper observou, de maneira exemplar, que a obra de Foucault contribuiu de modo decisivo para destruir alguns dos lultoM mala resistentes do esquerdismo, teórico ou político; um iloM ((imlM ó a vlsRo exclusiva do poder como repressão. Marcuse, por xnini)lo, ó um dos ideólogos do poder-repressâo.

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pi oHsao” parece ocupar o centro da cena do núcleo duro (Io aparelho de Estado. Foucault irá mostrar por outro lado que na reprodução das relações de poder — mes­ mo em instituições como a prisão e o exército — a lornologia disciplinar os investe numa dimensão que vai além de seu aspecto repressivo. O fulcro desta de­ monstração se dá em torno da forma-prísão que na «■oncepção marxista clássica e mesmo na ótica jurídica visto exclusivamente como efeito do poder repressão. ( )H efeitos repressivos e mesmo mortais que atravesfiam alguns destes aparelhos: — o uso “ ilegal” da torlura, por exemplo se dá nos interstícios dos sobrepoderes, que são investidos nos aparelhos disciplinai’(ífl, isto é através dos ilegalismos nos quais eles estão Imersos. Na concepção de Foucault, o Aparelho Repressivo do Estado não foge ao env"olvimento dessa rede que o ultrapassa. Pode-se mesmo dizer que ele é o efeito do resultado produzido pela articulação desses mecanismos em alguns pontos nodais. E a montagem histórica do Aparelho de Estado mostra o campo múltiplo e móvel de transmissão e implantação das relações de poder que investem e constituem o dispositivo escolar-militarhospital-fabril. As massas estão no Estado. A tecnologia disciplinar quando emerge como método geral é como que a resultante de toda uma vasta trama ancorada num esqueleto material, mas que se desloca de uma Instituição para outra com suas redes de apoio, seus pontos de resistências etc. As grandes estratégias, as divisões entre as classes, as formas de hegemonia, são o resultado da batalha generalizada de todas essas for­ ças que não abandonam nunca as formas de luta loca­ lizada, restrita, mas que, em certos momentos, podem dar lugar a mutações revolucionárias.p^uc^ult trata, portanto, do Estado mas^não.segundo-a concencá^limiEsta é uma questão importante que deve ser ressal­ tada. Só quem desconhece o que é a análise marxista clássica do poder do Estado e do que este é composto, pode a f i l a r que Foucault não tratou do Estado: a ^ misão e c^l^ é rc ito são dois setores estratégicos do ApareHlo de tístaao'. Foucault analisa sua constituição ao

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nível da sua materialidade efetiva, dii rompoHlgflo das forças e de seu uso tático. Não está lUiiK^m da análise clássica; ele a ultrapassa. O ponto nodal do desloca­ mento efetuado por ele, gira em torno da questão da disciplina. Ela projeta nova luz, inclusive sobro as rela­ ções econômicas de dominação, sobro a trama política de poder que define a armadura da fábrica o das insti­ tuições capitalistas. Enquanto dispositivo geral de assujeitamento, de produção de indivíduos, as disciplinas não se exprimem ou se refletem como na metáfora do edifício social, mas são sim, constitutivos das relações sociais de produção. A própria produção da individualidade por aparelhos que, na versão clássica, pertencem à superestrutura, é um elemento constitutivo estruturante das relações de produção. A disciplina da fábrica, por exemplo, não é um elemento exterior ao processo de expropriação do sobretrabalho mas, isto sim, um elemento que constitui o tempo de trabalho produtivo, ou seja, é a condição mesma de possibilidade de produção da mais-valia. Assim como a disciplina da fábrica é constitutiva das relações de produção, a disciplina militar é cons­ titutiva de um dos setores básicos do esqueleto material do Aparelho de Estado — o Exército. Frente ao trabalho de Althusser, no qual o conceito de repressão parece ocupar o centro da cena do núcleo duro do aparelho de Estado, Foucault irá mostrar que, na reprodução das relações de poder nestes aparelhos, a tecnologia disciplinar investia-os numa dimensão que ia para além de seu aspecto repressivo. O fulcro desta demonstração dá-se em torno da for­ ma prisão, que na concepção marxista tradicional é vista exclusivamente na ótica do poder-repressãol A ação do aparelho repressivo se realiza normal­ mente pela disciplina que é uma forma fria de exercício da direção política da classe dominante contra as classes dominadas. Por outras palavras o aparelho repressivo — a prisão, por exemplo — não funciona nem exclusiva nem majoritariamente pela repressão. E a ideologia, ela também não é calma nem pacífica, é violenta; exerce-se sobre a forma de uma violência normalizada sobre os

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corpos, mais tempo de trabalho, maior produtividade, maior obediência. Ou seja, o exercício da violência se efetiva nos estados de direito no interior de um amplo' mecanismo de controle, de subordinação que se dá nos Heus interstícios ou em^ r o n tamentos mais fortes auan(lo a “normalidade/* entre em cnlapRn Aliás, ao levantar o problema crítico do Estado e das relações de poder n seu papel dêcisivo na reprodução das relações capi­ talistas de exploração, Foucault (como Althusser) men(!iona o caráter equívoco das análises econômicas mar­ xistas que obscurecem o papel produtor das relações de poder e saber na montagem dos mecanismos de pro­ dução. Assim, vemos como se reencontram, se prolongam 0 se diferenciam as análises históricas de Foucault dos mecanismos de poder e as reflexões teórico-críticas de Althusser sobre a teoria marxista do Estado. Entre­ tanto, esta problemática nova e crítica sobre o poder c o Estado não deixou de ser utilizada por tendências grupusculares e anarquistas. Receberam uma caução teórica de certos ideólogos do esquerdismo como Deleuzg^que pretenderam apresentar uma política de e^üèr(Ta liberta do marxismo. Cabe no entanto perguntar se a alternativa à política marxista que pretende DeleUze, (jonstitui efetivamente uma colocação nova e positiva das relações entre teoria e prática e das relações dos Intelectuais com o poder. se^opÕe Deleuze é aquecpní-eb eap m tm a çQm o _ lu ^ a ^ í S ^ ó Ou seja ImsCa opor-se a toda idéia de totalização, p'ârtindo do pressuposto de que toda totalização é mítica. As rela­ ções entre teoria e prática seriam muito mais parciais M fragmentárias. O que é a prática ou a teoria, nesta (íoncepção? A prática — um conjunto de pontos de pasHagem de um ponto teórico a outro; e a teoria, a passa­ gem de uma prática a outra. Na perspectiva deleuziana, ((ualquer totalização, pela consciência ou pelo excesso de determinação ou ainda um projeto estratégico, é Mula: “Quem fala e quem age é sempre uma multipli<'Idade, mesmo na pessoa que fala ou que age. Nós so­ mos todos grupúsculos” . 43

Foucault dá uma resposta a este problema que va^ loriza a importância das lutas localizadas, porém a reinscreve num contesto global, num campo estratégico li­ berto da totalização. Para ele, em primeiro lugar, o ca­ ráter local das lutas é importante, porcme nele se dá a emergência, a organização de saberes ^ m in a d os que as classes dominantes procuram expropriar. Mas estas lutas estão referidas a um horizonte geral no^qual se inscrevem. Elas não são pura fragmentação, não se es­ gotam na dispersão absoluta. O campo estratégico em que se inscrevem é um determinante fundamental. Se os pontos de luta são múltiplos, dispersos, há que ter presente o conjunto. Sem relação com o conjunto da situação, mesmo o sentido das lutas locais se perde: “ Em compensação nenhum dos seus episódios locali­ zados pode ser inscrito na História senão pelo efeito que induz em toda rede em que encontra” {Vigiar e Punir, p. 29). É a totalização hegeliana que Foucault rejeita: “ A generalidade da luta não se faz na forrna da totalização de que você falava a pouco... É o sis­ tema mesmo do poder, todas as suas formas de exer­ cício e aplicação que constituem a generalidade da luta” (Os intelectuais e o poder). Poderiamos de forma sintética dizer: o problema central do momento atual é: que é o Estado? que é o Poder? Não se trata do abandono de uma herança, da re­ cusa de um saber teoricamente válido e politicamente eficaz, mas da problematização, senão de umá ausência, pelo menos da extrema insuficiência da teoria clássica. De tal sorte que esta compromete a passagem para a outra sociedade. Pois que a montagem do não-Estado, da, estratégia política da destruição do Estado se faz por uma nova máquina estatal. Portanto, é preciso es­ tar extremamente atento aos efeitos políticos dessas teses. Na verdade, as novas lutas desenvolvidas nos países do capitalismo historicamente mais antigo (os da Eu­ ropa e EUA), a partir dos anos sessenta (fábrica, esco­ la, família, ecologia, território), foram bloqueadas por uma concepção de poder como máquina, como concen­

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tração de instrumentos de repressão. Esses efeitos fo ­ ram multiplicados e também se reproduziram no con­ texto de uma luta muito mais dura nos países latinoamericanos, onde a estratégia de ataque frontal ao Es­ tado, inclusive militar, tomou extremamente frágil a luta das forças de oposição populares, revolucionárias o/ou progressistas.28 Por isto, a batalha pelo poder, (;omo algo que se usa e não que se possui, deve ser não pela sua posse, mas pela sua transformação. Refletindo sobre o conjunto dessas questões, Pietro Ingrao chega­ ria a afirmar que o efeito terminal desta mudança teó­ rica e política operada por Althusser e Foucault é o de libertar-nos de uma idéia estreita do Estado mo­ derno” .2^ Disso tudo, 0 que podemos, finalmente concluir, é da suprema importância da inserção destas questões teórico-político-estratégicas no conjunto da situação brasileira atual. Pois esta problemática se abre para um amplo horizonte de mutações revolucionárias por vir, marcado,'desde já, pela ampliação da luta de massas e, no plano iriterriacional, pela culminância do processo jiescQlfínização. pela perda gradativa da hegemonia r^Qdp.lÈrse^ste qiia:arõ*interno-externo, transformacío, implicar positivamente numa redefinição do lugar e do papel da formação social brasileira no sistema mundial de poder, podemos até mesmo apostar que uma nova ora se abrirá na história do estado, da nação, das classes 0 do povo brasileiro.

'M Importante para o contexto latino-americano, e não apenas brasileiro, foi a crítica quase desconhecida de Althusser às teses (Io seu ex-aluno e hoje militante do partido socialista francês, Itegis Debray. '21 A frase de Ingrao encontra-se no agudíssimo prefácio à versão francesa de seu livro Crisi e Terza Via, publicado pela Maspero com o título de La Politique en Gr and et en Petit. Embora não HO refira diretamente a mais adiante no mesmo o conteúdo dessas teses, H('iido a de sua radical posse.

Althusser e Foucault, aliás discutidos texto, Ingrao reflete justamente sobre ao se colocar a questão do poder como transformação antes de ser da sua

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Sobre a Reprodução das Condições de Pródução ^ Impõe-se que tratemos de uma questão apenas es­ boçada em nossa análise, quando falamos da necessi­ dade de renovação dos meios de produção para que a produção seja possível. Era apenas uma rápida indica­ ção. Considerá-la-emos agora por si mesma. Como o dizia Marx, até uma criança sabe que uma formação social que não reproduz as condições de pro­ dução ao mesmo tempo que produz, não sobreviverá nem por um ano.^ Portanto a condição última da produção é a reprodução das condições de produção. Esta pode ser “ simples’’ (e então se limita a reprodu­ zir as condições pré-existentes de produção) ou “ am­ pliada” (quando as amplia). Deixemos, por hora, esta distinção de lado: O que é então a Reprodução das Condições de Pro­ dução? Penetramos aqui num domínio ao mesmo tempo bastante familiar, desde o Livro II do Capital, e singu1 O texto a ser lido se constitui de dois trechos de um estudo ainda em curso. O autor fez questão de entitulá-los Notas para uma pesquisa. As idéias expostas devem ser consideradas como uma introdução à discussão. 2 Carta a Kugelmanh, 11-7-1868 (Cartas sobre o Capital, Ed Sociales, p. 229).

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larmente desconhecido. As evidências tenazes (evidên­ cias ideológicas de caráter empirista) do ponto de vista da mera produção e da simples prática produtiva (abs­ trata em si mesma com relação ao processo de produ­ ção) se incorporam de tal forma à nossa consciência cotidiana que é extremamente difícil, para não dizer quase impossível^ alcançar o ponto de vista da repro­ dução. Portanto, se este ponto de vista não é adotado, tudo permanece abstrato (mais do que parcial: defor­ mado) mesmo ao nível da produção, e, com mais razão ainda, ao nível da simples prática. Tentaremos examinar as coisas com método. Para simplificar nossa exposição e se consideramos que toda formação social é resultado de um modo de produção dominante, podemos dizer que o proces­ so de produção aciona as forças produtivas existentes em e sob relações de produção definidas. Segue-se que toda formação social para existir, ao mesmo tempo que produz, e para poder produzir, deve reproduzir as condições de sua produção. Ela deve, portanto, reproduzir: 1)

as forças produtivas

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as relações de produção existentes

A Reprodução dos Meios de Produção Todo mundo reconhece (mesmo os economistas burgueses que cuidam da contabilidade nacional e os modernos teóricos “ macro-economistas” ), uma vez que Marx impôs a demonstração no Livro II de “ O Capi­ tal” , que não há produção possível sem que seja assel^iirada a reprodução das condições materiais da pro­ dução: a reprodução dos meios de produção. guiil(|uer economista, que nisto não se distingue de Himhiuor capitalista, sabe que é preciso anualmente picviM a icpoHlção do que se esgota ou se utiliza na pMiilução malórla-prlma, instalações fixas (constru4N

ções), instrumentos de produção (máquinas), e tc ... Di­ zemos: qualquer economista, qualquer capitalista, en­ quanto ambos expressam o ponto de vista da empresa, (iontentando-se em comentar simplesmente os termos (iu prática financeira contábil da empresa. Porém sabemos, graças ao gênio de Quesnay — que o brinieiro a.formular est e i roblema aue iisaita aòs gênio de Máiac.-»^querD^TSSolveu — que não e'^~tfl^€Ft3d3^eiiipre^irque-a«.!^^i^uçao das c o n ^ - A ..RlP<.áílÇâa^pMe„s£r;pêfíg^^r^s~m^ n nes^-mvéi que ela existe em suas coiiHíçoesreais. O

que'ãcgnEgceaõjjg^:i^ ^ p rjg s.g ^

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iipepas-^ d é ia r d a necessidMê^daliip r o á u ^ ^ que não’^peillSt'e la j^solufemente-Hg>ensa^Z!siiã cnndiqfifi,gi e Hous mecanismos. Basta refletir um pouco para se convencer: o Sr. X, cuipitalista, que produz tecidos de lã em sua fábrica, deve “ reproduzir” sua matéria-prima, suas máquinas, otc.., Porém quem as produz para a sua produção são outros capitalistas: o Sr. Y, um grande criador de ove­ lhas da Austrália; o Sr. Z, grande industrial metalúr­ gico, produtor de máquinas-ferramentas, etc, etc, devem por sua vez, para produzir esses produtos que condi­ cionam a reprodução das condições de produção do Sr. X, reproduzir as condições de sua própria produção, c assim infinitamente, tudo isso numa proporção tal que, no mercado nacional (quando não no mercado mundial), a demanda de meios de produção (para a reprodução) possa ser satisfeita pela oferta. Para pensar este mecanismo que constitui uma es­ pécie de “ fio sem fim ” , é necessário seguir a trajetória “ global” de Marx, e estudar especialmente as relações (1(5 circulação do capital entre o Setor I (produção dos moios de produção) e o Setor I I (produção dos meios (lo consumo), e a realização da mais-valia, nos Livros n e I I I do Capital. Não penetraremos na análise desta questão. Bastanos haver mencionado a existência da necessidade da ríiprodução das condições materiais da produção,

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Reprodução da força de trabalho Certamente alguma coisa terá chamado a atenção do leitor. Referimo-nos à reprodução dos meios de pro­ dução, mas não à reprodução das forças produtivas. Omitimos portanto a reprodução do que distingue as forças produtivas dos meios de produção, a saber a reprodução da força de trabalho. Se a observação do que ocorre na empresa, espe­ cialmente o exame da prática financeira contábil das previsões de amortização-inversão, pode dar-nos uma idéia aproximada da existência do processo material da reprodução, entramos agora num domínio no qual a observação do que ocorre na empresa é, senão total­ mente, quase que totalmente inútil, e por uma boa ra­ zão: a reprodução da força de trabalho se dá, no essen­ cial, fora da empresa. Como se assegura a reprodução da força de traba­ lho? Ela é assegurada ao se dar à força de trabalho o meio material de se reproduzir: o salário. O salário consta na contabilidade de cada empresa, mas como “ capital mão-de-obra” ^ e de forma alguma como condi­ ção da reprodução material da força de trabalho. No entanto é assim que ele “ atua” , uma vez que o salário representa apenas a parte do valor produzido pelo gasto da força de trabalho, indispensável para sua reprodução, quer dizer, indispensável para a reconsti­ tuição da força de trabalho do assalariado (para a ha­ bitação, vestuário e alimentação, em suma, pra que ele esteja em condições de tornar a se apresentar na ma­ nhã seguinte — e todas as santas manhãs — ao guichê da empresa); e acrescentemos: indispensável para a cria­ ção e educação das crianças nas quais o proletariado se reproduz (em X unidades: podendo X ser igual a 0,1,2, etc. . . ) como força do trabalho. Lembremos que esta quantidade de valor (o salá­ rio) necessário para a reprodução da força de trabalho 3 Marx elaborou o conecto científico desta noção: capital va­ riável.

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lifto está apenas determinada pelas necessidades de um MM.I.G. “biológico” , mas também por um mínimo lilNlórico (Marx assinalava: os operários ingleses preciamn de cerveja e os operários franceses de vinho) e, portanto, historicamente variável. Lembremos também que esse mínimo é duplamente lilMtórico enquanto não está definido pelas necessidades lilHtóricas da classe operária reconhecidas pela classe i'iipltalista, mas por necessidades históricas impostas p«ila luta da classe operária (dupla luta de classes: conIm 0 aumento da jornada de trabalho e contra a dimi* milção dos salários). Entretanto não basta assegurar à força de trabalho itM condições materiais de sua reprodução para que se 1'oproduza como força de trabalho. Dissemos que a força de trabalho disponível deve ser “ competente” , isto •V upta a ser utilizada no sistema complexo do processo (Io produção. O desenvolvimento das forças produtivas 0 0 tipo de unidade historicamente constitutivo das forças produtivas num dado momento determinam que II força de trabalho deve ser (diversamente) qualificada 0 ontão reproduzida como tal. Diversamente: conforme fiH ekigências da divisão social-técnica do trabalho, nos M(His diferentes “ cargos” e “ empregos” . Ora, vejamos, como se dá esta reprodução da qua­ lificação (diversificada) da força de trabalho no regime capitalista? Ao contrário do que ocorria nas formações Hociais escravistas e servis, esta reprodução da qualifi(íução da força de trabalho tende (trata-se de uma lei Icndencial) a dar-se não mais no “ local de trabalho” (a aprendizagem na própria produção) porém, cada vez mais, fora da produção, através do sistema escolar capi­ talista e de outras instâncias e instituições. Ora, o que se aprende na escola? Ê possível chegarHtí a um ponto mais ou menos avançado nos estudos, porém de qualquer maneira aprende-se a ler, escrever, 0 contar, ou seja, algumas técnicas, e outras coisas tam­ bém, inclusive elementos (que podem ser rudimentares ou ao contrário aprofundados) de “ cultura científica” ou “ literária” diretamente utilizáveis nos diferentes pos­

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tos da produção (uma instrução para os operários, uma outra para os técnicos, uma terceira para os enge­ nheiros, uma última para os quadros superiores, e tc .. . ) Aprende-se o “ know-how” . Porém, ao mesmo tempo, e junto com essas téc­ nicas e conhecimentos, aprendem-se na escola as “ re­ gras” do bom comportamento, isto é as conveniências que devem ser observadas por todo agente da divisão do trabalho conforme o posto que ele esteja “ destinado” a ocupar; as regras de moral e de consciência cívica e profissional, o que na realidade são regras de respeito à divisão social-técnica do trabalho e, em definitivo, re­ gras da ordem estabelecida pela dominação de classe. Aprende-se também a “ falar bem o idioma” , a “ redigir bem” , o que na verdade significa (para os futuros capi­ talistas e seus servidores) saber “ dar ordens” , isto é, (solução ideal) dirigir-se adequadamente aos operários etc... Enunciando este fato numa linguagem mais cien­ tífica, diremos que a reprodução da força de trabalho não exige somente uma reprodução de sua qualificação mas ao mesmo tempo uma reprodução de sua submis­ são às normas da ordem vigente, isto é, uma reprodu­ ção da submissão dos operários à ideologia dominante por parte dos operários e uma reprodução da capaci­ dade de perfeito domínio da ideologia dominante por parte dos agentes da exploração e repressão, de modo a que eles assegurem também “ pela palavra” o predo­ mínio da classe dominante. Em outras palavras, a escola (mas também outras instituições do Estado, como a Igreja e outros apare­ lhos como o Exército) ensina o “ know-how” mas sob formas que asseguram a submissão à ideologia domi­ nante ou o domínio de sua “prática” . Todos os agentes da produção, da exploração e da repressão, sem falar dos “ profissionais da ideologia” (Marx) devem de uma forma ou de outra estar “ imbuídos” desta ideologia para desempenhar “ conscensiosamente” suas tarefas, seja a de explorados (os operários), seja a de explora­ dores (capitalistas), seja a de auxiliares na exploração

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fos quadros), seja a de grandes sacerdotes da ideologia dominante (seus “ funcionários” ) etc... A reprodução da força de trabalho evidencia, como condição si?ze quae non, não somente a reprodução de Mua “qualificação” mas também a reprodução de sua Miibmissão à ideologia dominante, ou da “ prática” desta Ideologia, devendo ficar claro que não basta dizer: “ não Homente mas também” , pois a reprodução da qualifi­ cação da força de trabalho se assegura em e sob as formas de submissão ideológica. Com 0 que reconhecemos a presença de uma nova realidade: a ideologia. Faremos aqui duas observações: A primeira servirá para lise da reprodução.

completar

nossa aná­

Acabamos de estudar rapidamente as formas da reprodução das forças produtivas, ou seja, dos meios de produção por um lado e da força de trabalho por outro. Porém não abordamos ainda a questão da repro­ dução das relações de produção. Este é um problema (irucial da teoria marxista do modo de produção. Se o deixássemos no silêncio cometeriamos uma omissão teórica — pior, um grave erro político. Trataremos portanto desta questão. Mas para ob­ termos os meios de fazê-lo, temos que novamente dar uma grande volta. A segunda observação é que para dar esta volta so­ mos obrigados a recolocar nossa velha questão: o que é uma sociedade? Infra-estrutura e Superestrutura Já tivemos a oportunidade ^ de insistir sobre o caráter revolucionário da concepção marxista do “ todo 4 Em Pour Marx e Lire le Capital. Masperq, 1965,

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social’', naquilo em que ela se distingue da “ totalidade” hegeliana. Dissemos, (e esta tese apenas repetia céle­ bres proposição do materialismo histórico) que Marx concebe a estrutura de toda a sociedade como consti­ tuída por “ níveis” ou “ instâncias” articuladas por uma determinação específica: a infra-estrutura ou base eco­ nômica ( “unidade” de forças produtivas e relações de produção), e a superestrutura, que compreende dois “ níveis” ou “ instâncias” : a jurídico-política (o direito e o Estado) e a ideológica (as distintas ideologias, reli­ giosa, moral, jurídica, política, etc. . . ) Além de seu interesse teórico-pedagógico (que apon­ ta a diferença entre Marx e Hegel), esta representação oferece a seguinte vantagem teórica fundamental: ela per­ mite inscrever no quadro teórico de seus conceitos es­ senciais o que denominamos seu inãice de eficácia res­ pectivo. O que se entende por isto? Qualquer um pode facilmente percéber que a re­ presentação da estrutura de toda a sociedade como um edifício composto por uma base (infra-estrutura) sobre a qual erguem-se os dois “ andares” da superestrutura constitui uma metáfora, mais precisamente, uma metá­ fora espacial: um tópico.*^ Como toda metáfora, esta sugere, faz ver alguma coisa. O que? Justamente isto: que os andares superiores não poderíam “ sustentar-se” (no ar) por si sós se não se apoiassem sobre sua base. A metáfora do edifício tem então como objetivo primeiro representar a “ determinação em última ins­ tância” pela base econômica. Esta metáfora espacial tem então como resultado dotar a base de um índice de eficácia conhecido nos célebres termos: determina­ ção em última instância do que ocorre nos “ andares” da superestrutura pelo que ocorre na base econômica. A partir deste índice de eficácia “ em última instân­ cia” , os “ andares” da superestrutura encontram-se evi5 Tópico, do grego topos: local. Um tópico representa, num espaço definido, os locais respectivos ocupados por esta ou aque­ la realidade: desta maneira o econômico está embaixo (a base) e a superestrutura em cima.

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•tniitomente afetados por diferentes índices de eficácia. Qun tipo de índices? Pode-se dizer que os andares da superestrutura não nAo determinantes em última instância, mas que são »lol,orminados pela eficácia da base; que se eles são a una modo (ainda não definido) determinantes, apenas u Mão enquanto determinados pela base. Seu índice de eficácia (ou de determinação), enilimnto determinado pela determinação em última inslAncia da base, é pensado pela tradição marxista sob ilniis formas: 1) a existência de uma “ autonomia relallva” da superestrutura em relação à base; 2) a exislência de uma “ ação de retorno” da superestrutura so­ bro a base. Podemos então afirmar que a grande vantagem l(i()rico do tipo de eficácia “ derivada” próprio à superesfldo (base e superestrutura) consiste em mostrar ao mesmo tempo que as questões de determinação (ou de índice de eficácia) são fundamentais; e que é a base (lue determina em última instância todo o edifício; como consequência somos obrigados a colocar o problema teórico do tipo de eficácia “ derivada” próprio à superes­ trutura, isto é, somos obrigados a pensar no que a tra­ dição marxista designa pelos termos conjuntos de auto­ nomia relativa da superestrutura e de “ ação de retor­ no” da superestrutura sobre a base. O maior inconveniente desta representação da es­ trutura de toda a sociedade pela metáfora espacial do (ídifício está evidentemente no fato de ser ela metafó­ rica: isto é, -de permanecer descritiva. Parece-nos desejável e possível representar as coi­ sas de outra maneira. Que sejamos bem entendidos: não recusamos em absoluto a metáfora clássica, já que ela mesma nos obriga a superá-la. E não a superaremos afastando-a como caduca. Pretendemos simplesmente pensar o que ela nos dá sob a forma de uma descrição.

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Pensamos qué é a partir da reprodução que ê pos­ sível e necessário pensar o que caracteriza o essencial da existência e natureza da superestrutura. Basta colo­ car-se no ponto de vista da reprodução para que se es­ clareçam muitas questões que a metáfora espacial do edifício indicava a existência sem dar-lhes resposta con­ ceituai. Sustentamos como tese fundamental que somente é possível levantar estas questões (e portanto respon­ dê-las) a partir do ponto de vista da reprodução. Analisaremos brevemente o Direito, o Estado e a ideologia a partir deste ponto de vista, E mostraremos ao mesiíio tempo o que ocorre a partir do ponto de vista da prática e da produção por um lado, e da repro­ dução por outro. O Estado A tradição marxista é formal: desde o Manifesto e do Brumário (e em todos os textos clássicos poste­ riores, sobretudo no de Marx sobre a Comuna de Paris e no de Lênin sobre o Estado e a Revolução), o Estado é explicitamente concebido como um aparelho repres­ sivo. O Estado é uma “ máquina” de repressão que per­ mite às classes dominantes (no sécülo X IX 4 classe burguesa e à “ classe” dos grandes latifimdiários) asse­ gurar a sua dominação sobre a classe operária, para submetê-la ao processo de extorsão da mais-valia (quer dizer, à exploração capitalista). O Estado é, antes de mais nada, o que os clássicos do marxismo chamaram de o aparelho de Estado. Este termo compreende: não somente o aparelho especiali­ zado (no sentido estrito), cuja existência e necessidade reconhecemos pelas exigências da prática jurídica, a sa­ ber: a política — os tribunais — e as prisões; mas tam­ bém 0 exército, que intervém diretamente como força repressiva de apoio em última instância (o proletariado pagou com seu sangue esta experiência) quando a po­ lícia e seus órgãos auxiliares são “ ultrapassados pelos

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nnontecimentos” ; e, acima deste conjunto, o Chefe de iCKtívdo, 0 Governo e a Administração. Apresentada desta forma, a “ teoria marxista-leninlMtíi” do Estado toca o essencial, e não se trata por mnihum momento de duvidar que está aí o essencial. O upurelho de Estado que define o Estado como força i Im execução e de intervenção repressiva “ a serviço das cliiHses dominantes” , na luta de classes da burguesia e «tms aliados contra o proletariado é o Estado, e define IHírfeitamente a sua “função” fundamental. I)n Teoria Descritiva à Teoria Propriamente Dita No entanto, como o assinalamos na metáfora do •ullfício (infra-estrutura e superestrutura) também esta ii])resentação da natureza do Estado permanece descrillva em parte. Como usaremos constantemente este adjetivo (des­ critivo) torna-se necessária uma explicação que elimine (liialquer equívoco. Quando, ao falarmos da metáfora do edifício ou' da iooria marxista do Estado dizemos que são concepções ou representações descritivas de seu objeto, não escon­ demos nenhuma segunda intenção crítica. Pelo contrá­ rio, tudo leva a crer que os grandes descobrimentos (íientíficos não podem deixar de passar pela etapa que chamamos uma “ teoria” descritiva. Esta seria a pri­ meira etapa de toda teoria, ao menos no campo da ciên­ cia das formações sociais. Como tal, poder-se-ia, — e no nosso entender deve-se — encarar esta etapa como tran­ sitória e necessária ao desenvolviníento da teoria. A nos­ sa expressão: “ teoria descritiva” aponta este caráter transitório ao mostrar, pela conjunção dos termos em­ pregados, o equivalente a uma espécie de “ contradição” . Com efeito, o termo teoria choca-se em parte com o ad­ jetivo “ descritiva” que o acompanha. Isso significa exa­ tamente: 1) que a “ teoria descritiva” é, sem dúvida al­ guma, o começo sem retorno da teoria, porém, 2) que a forma “ descritiva” em que se apresenta a teoria exige,

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pelo efeito mesmo desta “ contradição” , um desenvolvi­ mento da teoria que supere a forma da “ descrição” . Precisemos nosso pensamento voltando ao nosso objeto presente: o Estado. Quando dizemos que a “ teoria” marxista do Estado que utilizamos é parcialmente “ descritiva” , isto significa em primeiro lugar e antes de mais nada que esta “ teo­ ria” descritiva é, sem dúvida alguma, o início da teoria marxista do Estado, e que tal início nos fornece o es­ sencial isto é, o princípio decisivo de todo desenvolvi­ mento posterior da teoria. Diremos, com efeito, que a teoria descritiva do Es­ tado é justa uma vez que a definição dada por ela de seu objeto pode perfeitamente corresponder à imensa maiora dos fatos observáveis no domínio que lhe con­ cerne. Assim, a definição de Estado como Estado de classe, existente no aparelho repressivo de Estado, elu­ cida de maneira fulgurante todos os fatos observáveis nos diferentes níveis da repressão, qualquer que seja o seu domínio: desde os massacres de junho de 1848 e da Comuna de Paris, do domingo sangrento de maio de 1905 em Petrogrado, da Resistência, de Charonne, etc.,. até as mais simples (e relativamente anódinas) inter­ venções de uma “ censura” que proíbe a Religiosa de Diderot ou uma obra de Gatti sobre Franco; elucida todas as formas diretas ou indiretas de exploração e extermínio das massas populares (as guerras imperia­ listas); elucida a sútil dominação cotidiana aonde se evidencia (nas formas da democracia política, por exem­ plo) o que Lênin chamou depois de Marx de ditadura da burguesia. Entretanto, a teoria descritiva do Estado represen­ ta uma etapa da constituição da teoria, que exige ela mesma a “ superação” desta etapa. Portanto está claro que se a definição em questão nos fornece os meios para identificar e reconhecer os fatos opressivos e arti­ culá-los com o Estado concebido como aparelho repres­ sivo de Estado, esta “ articulação” dá lugar a um tipo de evidência muito especial, a que teremos oportuni­ dade de nos referir mais adiante: “ Sim, é assim, está

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jiiíifelto!” ® E a acumulação de fatos à definição do Í<;»iiiido, ainda que multiplique sua ilustração, não faz i'i»m que esta definição avance, não permite realmente II iivanço da teoria científica do Estado. Toda teoria desi'1'lüva corre o risco de “bloquear” o desenvolvimento Indispensável da teoria. Por isso acreditamos que, para desenvolver a teortii descritiva em teoria propriamente dita, isto é, para molhor compreender os mecanismos do Estado em seu funcionamento, é indispensável acrescentar algo à defi­ nição clássica do Estado como aparelho de Estado. O essencial da teoria marxista do Estado Precisemos inicialmente um ponto importante: O KMtado (e sua existência em seu aparelho) só tem sen­ tido em função do poder de Estado. Toda luta política das classes gira em torno do Estado. Entendamos: em torno da posse, isto é, da tomada e manutenção do po­ der de Estado por uma certa classe ou por uma aliança de classes ou frações de classes. Esta primeira obser­ vação nos obriga a distinguir o poder de Estado (manu­ tenção ou tomada do poder de Estado), objetivo da luta do classes política de um lado, do aparelho de Estado de outro. Sabemos que o aparelho de Estado pode permane­ cer de pé, como o demonstram as “ revoluções” burgue­ sas do século X IX na França (1830, 1848), os golpes de estado (2 de dezembro de 1851, maio de 1958), as comoções de estado (qiíeda do Império em 1870, queda da I I I República em 1940), a ascensão política da pe­ quena burguesia (1890-1895 na França), etc, sem ser afetado ou modificado; pode permanecer de pé sob acon­ tecimentos políticos que afetem a posse do poder de Estado. Mesmo depois de uma revolução social como a de 1917, grande parte do aparelho de Estado permanecia 6 Ver mais adiante: Acerca da ideologia.

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de pé quando da tomada do poder pela aliança do pro­ letariado e do campesinato pobre: Lênin o repetiu inú­ meras vezes. Pode-se dizer que esta distinção entre poder de Es­ tado e aparelho de Estado faz parte da “ teoria marxis­ ta” do Estado de maneira explícita depois do 18 Brumário e das lutas de classes na França, de Marx. Resumindo este aspecto da “ teoria marxista do Es­ tado” , podemos dizer que os clássicos do marxismo sempre afirmaram que: 1) o Estado é o aparelho repres­ sivo do Estado; 2) deve-se distinguir o poder de estado do aparelho de Estado; 3) o objetivo da luta de classes diz respeito ao poder de Estado e consequentemente à utilização do aparelho de Estado pelas classes (ou alian­ ças de classes ou frações de classes) que detêm o poder de Estado em função de seus objetivos de classe e 4) o proletariado deve tomar o poder do Estado para des­ truir o aparelho burguês existente, substituí-lo em uma primeira etapa por um aparelho de Estado completa­ mente diferente, proletário, e elaborar nas etapas pos­ teriores um processo radical, o da destruição do Estado (fim do poder do Estado e de todo aparelho de Estado). Assim, deste ponto de vista, o que proporia que se acrescente à “ teoria marxista” do Estado já está con­ tido nela com todas as letras. Porém parece-nos que esta teoria completada desta forma permanece ainda em parte descritiva, se bem que já contenha elementos complexos e diferenciados cujas regras e funcionamen­ to não podem ser compreendidos sem o recurso a um aprofundamento teórico suplementar. Os Aparelhos Ideológicos do Estado O que deve ser acrescentado à “ teoria marxista” do Estado é, então, outra coisa. Devemos avançar com prudência num campo em que os clássicos do marxismo nos precederam há muito, mas sem ter sistematizado sob uma forma teórica os avanços decisivos que suas experiências e procedimen-

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i(iH Implicam. Com efeito, suas experiências e procedinmntos permaneceram sobretudo no campo da prática política. Na verdade, os clássicos do marxismo, em sua prá(Ica política, trataram do Estado como uma realidade miiis complexa do que a da definição da “ teoria marKlHta do Estado” , mesmo completado como acabamos (líi fazer. Eles perceberam esta complexidade em sua prática, porém não a exprimiram numa teoria corres­ pondente.'^ Gostaríamos de esboçar muito esquematicamente PHHa teoria correspondente. Com este objetivo propo­ mos a seguinte tese: Para fazer avançar a teoria do"Estado é indispenHável ter em conta não somente a distinção entre poder (Ir. Estado e aparelho de Estado, mas também outra realidade que se manifesta junto ao aparelho (represmIvo ) do Estado, mas que não se confunde com ele. Chamaremos esta realidade pelo seu conceito: os apa­ relhos ideológicos do Estado. O que são os Aparelhos Ideológicos do Estado (A|E)? Eles não se confundem com o aparelho (repressivo) (lo Estado. Lembremos que, na teoria marxista, o apa­ relho de Estado (A E ) compreende: o governo, a admi­ nistração, o exército, a polícia, os tribunais, as prisões, olic, que constituem o que chamaremos a partir de ago­ ra de aparelho repressivo do Estado. Repressivo indica ((ue o aparelho de Estado em questão “ funciona através da violência” — ao menos em situações limites (pois 7 Ao que saibamos, Gramsci é o único que avançou no caminho
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a repressão administrativa, por exemplo, pode revestirse de formas não físicas). Designamos pelo nome de aparelhos ideológicos do Estado um certo número de realidades que apresen­ tam-se ao observador imediato sob a forma de institui­ ções distintas e especializadas. Propomos uma lista em­ pírica, que deverá necessariamente ser examinada em detalhe, posta à prova, retificada e remanejada. Com todas as reservas que esta exigência acarreta podemos, pelo momento, considerar como aparelhos ideológicos do Estado as seguintes instituições (a ordem de enu­ meração não tem nenhum significado especial): AIE religiosos (o sistema das diferentes Igrejas) AIE escolar (o sistema das diferentes “ escolas” pú­ blicas e privadas) AIE familiar ® AIE jurídico® AIE político (o sistema político, os diferentes Par­ tidos) AIE sindical AIE de informação (a imprensa, o rádio, a televi­ são, e tc ,. . ) AIE cultural (Letras, Belas Artes, esportes, e tc .. . ) Nós afirmamos: os AIE não se confundem com o Aparelho (repressivo) de Estado. Em que consiste a diferença? 8 A família desempenha claramente outras "funções” que a de AIE. Ela intervém na reprodução da força de trabalho. Ela é, dependendo dos modos de produção, unidade de produção e (ou) unidade de consumo, 9 O “Direito” pertence ao mesmo tempo ao Aparelho (repressi­ vo) do Estado e ao sistema dos AIE.

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Num primeiro momento podemos observar que se nxlste um Aparelho (repressivo) do Estado, existe um^ pluralidade de Aparelhos Ideológicos do Estado. Su­ pondo a sua existência, a unidade que constitui esta pluralidade de AIE não é imediatamente visível. Num segundo momento, podemos constatar que onquanto que o Aparelho (repressivo) do Estado, uni­ ficado, pertence inteiramente ao domínio público, a maior parte dos Aparelhos Ideológicos do Estado (em Mua aparente dispersão) remete ao domínio privado. As Igrejas, os Partidos, os Sindicatos, as famílias, algu­ mas escolas, a maioria dos jornais, as empresas cultu­ rais etc, etc, são privadas. Deixemos de lado, pelo momento, nossa primeira observação. Mas detenhamo-nos na segunda, indagan­ do em nome de que podemos considerar como ApareIhos Ideológicos do Estado igafeltuições q u ^ ^ n T ^ u a 7fim õriá,~ ^ o^ ossu eIn re^ e „____ ______--^ ^ e^ ^ ib jeçã D n rtiistln çfto^ntre*õ'lpuTMte€rg'’l9*-ppivãao F intrínH(‘ca ao direito burguês, e válida nos domínios (subor­ dinados) aonde o direito burguês exerce seus “pode­ res” . O domínio do Estado lhe escapa, pois este está “ além do Direito” : o Estado, que é o Estado da classe dominante, não é nem público ném privado, ele é ao contrário a condição de toda distinção entre o público e o privado. Digamos a mesma coisa partindo dos nossos Aparelhos Ideológicos do Estado. Pouco importa se as Instituições que os constituem sejam “ públicas” ou “pri­ vadas” . O que importa é o seu funcionamento. Institui­ ções privadas podem perfeitamente “ funcionar” como Aparelhos Ideológicos do Estado. Seria suficiente uma análise um pouco mais profunda de qualquer dos AIE para mostrá-lo. Mas vamos ao essencial. O que distingue os AIE do Aparelho (repressivo) do Estado, é a seguinte dife­ rença fundamental: o Aparelho repressivo do Estado “funciona através da violência” ao passo que os Apa­ relhos Ideológicos do Estado “ funcionam através da ideologia” .

Podemos precisar, retificando esta distinção. Dire­ mos, com efeito, que todo Aparelho do Estado, seja ele repressivo ou ideológico, “ funciona” tanto através da violência como através da ideologia, mas com uma dife­ rença muito importante, que impede que se confundam os Aparelhos Ideológicos do Estado com o Aparelho (repressivo) do Estado. O aparelho (repressivo) do Estado funciona predo­ minantemente através da repressão (inclusive a física) e secundariamente através da ideologia. (Não existe aparelho unicamente repressivo). Exemplos: o Exército e a Polícia funcionam também através de ideologia, tanto para garantir sua própria coesão e reprodução, como para divulgar os “ valores” por eles propostos. Da mesma forma, mas inversamente, devemos dizer que os Aparelhos Ideológicos do Estado funcionam prin­ cipalmente através da ideologia, e secundariamente através da repressão seja ela bastante atenuada, dissi­ mulada, ou mesmo simbólica. (Não existe aparelho pu­ ramente ideológico). Desta forma, a Escola, as Igrejas “ moldam” por métodos próprios de sanções, exclusões, seleção etc... não apenas seus funcionários mas tam­ bém suas ovelhas. E assim a Família... Assim o Apa­ relho lE cultural (a censura, para mencionar apenas ela) etc. Será preciso dizer que esta determinação do duplo “ funcionamento” (de forma principal, de forma secun­ dária) através da repressão ou através da ideologia, se­ gundo a qual trata-se ou do Aparelho (repressivo) do Estado ou dos Aparelhos Ideológicos do Estado, per­ mite compreender que constantemente tecem-se sutis combinações tácitas ou explícitas entre o jogo do Apa­ relho (repressivo) do Estado e o jogo dos Aparelhos Ideológicos do Estado? A vida cotidiana oferece-nos inúmeros exemplos, que todavia devemos estudar de­ talhadamente para superarmos esta simples observação. Esta observação nos possibilita compreender o que constitui a unidade do corpo aparentemente disperso dos AIE. Se os AIE “ funcionam” predominantemente através da ideologia, o que unifica a sua diversidade

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é oMte funcionamento mesmo, na medida em que a liltiologia, na qual funcionam, está de fato sempre uniflciida, apesar da sua diversidade e contradições, sob H Ideologia dominante, que é a ideologia da “ classe ílomlnante” . Se consideramos que por princípio a “ cias«fi dominante” detém o poder do Estado (de forma oluru ou, mais frequentemente por alianças de classes mi de frações de classes) e que dispõe portanto do Apurelho (repressivo) do Estado, podemos admitir que t\ mesma classe dominante seja ativa nos Aparelhos Idíiológicos do Estado. Bem entendido, agir por leis e (Incretos no Aparelho (repressivo) do Estado é outra nolsa que agir através da ideologia dominante nos Aparelhos Ideológicos do Estado. Seria preciso detalhar oMta diferença, — que no entanto não deve encobrir a roíilidade de uma profunda identidade. Ao que sabemos, utmhuma classe pode, de forma duradoura, deter o podr.r do Estado sem exercer ao mesmo tempo sua hege­ monia sobre e nos Aparelhos Ideológicos do Estado. (Jlto apenas um exemplo e prova: a lancinante preo­ cupação de Lênin em revolucionar o Aparelho ideológico (!(í Estado escolar (entre outros) para permitir ao prol(ít;ariado soviético, que se apropriara do poder do Mstado, garantir nada mais nada menos do que o pró))rlo futuro da ditadura do proletariado e a passagem j)iira o socialismo, lo Esta última observação nos permite compreender (lue os Aparelhos ideológicos do Estado podem não apenas ser os meios mas também o lugar da luta de classes, e frequentemente de formas encarniçadas da luta de classes. A classe (ou aliança de classes) no ])Oder não dita tão facilmente a lei nos AIE como no aparelho (repressivo) do Estado, não somente porque as antigas classes dominantes podem conservar durante muito tempo fortes posições naqueles, mas porque a resistência das classes exploradas pode encontrar o meio 0 a ocasião de expressar-se neles, utilizando as contra­ io Em um texto patético, datado de 1937, Krupskaia relata os esforços desesperados de Lênin, e o que ela via como o seu fracasso ( “Z.e chemin parcouru).

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dições existentes ou conquistando pela luta posições de combate lo i’'». Concluamos nossas observações. Se a tese que propusemos tem fundamento, volta­ mos, precisando-a quanto a uma questão, à teoria mar­ xista clássica do Estado. Diremos que por um lado é preciso distinguir o poder do Estado (Sua detenção p o r .. . ) e por outro o Aparelho de Estado. Mas acres­ centamos que o Aparelho de Estado compreende dois corpos: o corpo das instituições que constituem o apa­ relho repressivo do Estada> e o corpo de instituições que representam o corpo dos Aparelhos Ideológicos do Estado. Mas, se é assim, não podemos deixar de colocar a seguinte questão, mesmo no estado bastante sumário de nossas indicações: qual é exatamente o papel dos Aparelhos Ideológicos do Estado? qual é o fundamento de sua importância? Em outras palavras: a que cor­ responde a “ fxmção” destes Aparelhos Ideológicos do 10 bis o que, em breves palavras, se diz aqui acerca da luta de classes nos AIE não pretende evidentemente esgotar a questão de luta de classes. Para tratar desta questão, deve-se ter presente dois prin­ cípios. O primeirõ princípio foi formulado por Marx no prefácio da Contribuição: “Quando consideramos tais abalos (uma revo­ lução social), é necessário distinguir entre o abalo material — que pode ser constatado de maneira cientificamente rigorosa — das condições de produção econômicas, e as formas jurídicas, poéticas, religiosas, artísticas ou filosóficas através das quais os homens tomam consciência deste conflito e o levam até o fim”. A luta de classes se expressa e se exerce portanto nas formas ideológicas, e portanto se exerce também nas formas ideológicas dos AIE. Mas a luta de classes ultrapassa ampla­ mente estas formas, e é porque ela as ultrapassa que a luta das classes exploradas pode se exercer nos AIE, voltando a arma da ideologia contra as classes no poder. Isto em função do segundo princípio: a luta das classes ultrapassa os AIE porque ela não tem suas raízes na ideologia, mas na Infraestrutura, nas relações de produção, que são re­ lações de exploração, e que constituem a base das relações de classe.

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tCutado, que não funcionam através da, repressão, mas ilit Ideologia? Inbro a reprodução das relações de produção Podemos então responder à nossa questão central, mantida em suspenso por tanto tempo: como é asseMiirada a reprodução das relações de produção? Na linguagem metafórica do tópico (Infra-estrutura, Muperestrutura) diremos: ela é, em grande parte ttHHGgurada pela superestrutura jurídico-política e ideo­ lógica. Porém, uma vez que julgamos indispensável ultra­ passar esta linguagem ainda descritiva, diremos: ela é, om grande parte ” , assegurada pelo exercício do poder do Estado nos Aparelhos de Estado, o Aparelho (re­ pressivo) do Estado, por um lado, e os Aparelhos Ideo­ lógicos do Estado por outro. Reunimos .,o que foi dito anteriormente nos três ))ontos seguintès: 1. Todos os aparelhos do Estado funcionam ora iitravés da repressão, ora através da ideologia, com a diferença, de que o Aparelho (repressivo) do Estado funciona principalmente através da repressão enquanto (lue os Aparelhos Ideológicos do Estado funcionam j)rincipalmente através da ideologia.

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2. Ao passo que o Aparelho (repressivo) do Es­ tado constitui um todo organizado cujos diversos coml)onentes estão centralizados por uma unidade de dire­ ção, a da política da luta de classes aplicada pelos representantes políticos das classes dominantes, que detém o poder do Estado, — os Aparelhos Ideológicos do Estado são múltiplos, distintos e relativamente au11 Em grande parte. Pois as relações de produção são antes de mais nada reproduzidas pela materialidade do processo de pro­ dução e do processo de circulação. Mas não devemos esquecer que as relações ideológicas estão presentes nestes mesmos pro­ cessos.

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tônomos, susceptíveis de oferecer um campo objetivo às contradições que expressam, de formas ora limita­ das, ora mais amplas, os efeitos dos choques entre a luta das classes capitalista e proletária, assim como de suas formas subordinadas.

3. Enquanto que a unidade do Aparelho (repr sivo) do Estado está assegurada por sua organização centralizada, unificada sob a direção dos representan­ tes das classes no poder, executantes da política da luta de classes das classes no poder — a unidade entre os diferentes Aparelhos Ideológicos do Estado está assegurada, geralmente de maneira contraditória, pela ideologia dominante, a da classe dominante. Tendo em conta estas características, podemos nos representar a reprodução das relações de produção 12 da seguinte maneira, segundo uma espécie de “ divisão do trabalho” : O papel do aparelho repressivo do Estado consiste essencialmente, como aparelho repressivo, em garantir pela força (física ou não) as condições políticas da reprodução das relações de produção, que são em últi­ ma instância relações de exploração. Não apenas o aparelho de Estado contribui para sua própria repro­ dução (existem no Estado capitalista as dinastias po­ líticas, as dinastias militares, etc.) mas também, e sobretudo o Aparelho de Estado assegura pela repressão (da força física mais brutal às simples ordens e proi­ bições administrativas, à censura explícita ou implícita, etc.) as condições políticas do exercício dos Aparelhos Ideológicos do Estado. Com efeito, são estes que garantem, em grande parte, a reprodução mesma das relações de produção, sob o “ escudo” do aparelho repressivo do Estado. É neles que se desenvolve o papel da ideologia dominante, a da classe dominante, que detém o poder do Estado. É por intermédio da ideologia dominante que a “ har-

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No que diz respeito à parte da reprodução assegurada pelo Aparelho repressivo do Estado e os Aparelhos Ideológicos do Estado.

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monia” (por vezes tensa) entre o aparelho repressivo ilo Estado e os Aparelhos Ideológicos do Estado e entre os diferentes Aparelhos Ideológicos do Estado é asse­ gurada. j Somos levados a formular a hipótese seguinte, em função mesmo da diversidade dos aparelhos ideológicos (lo Estado em seu papel único, pois que comum, de re])rodução das relações de produção. Enumeramos, nas formações sociais capitalistas contemporâneas um número relativamente elevado de aparelhos Ideológicos do Estado: o aparelho escolar, o aparelho religioso, o aparelho familiar, o aparelho polí­ tico, 0 aparelho sindical, o aparelho de informação, o aparelho cultural etc... Ora, nas formações sociais do modo de produção “jaeiail!’ (comumente denominado feudal), constatamos que, embora exista um aparelho repressivoEstfldn únigp, formalmente bastantê'semelhante ao que conhe­ cemos, não apenas desde a Monarquia Absoluta, mas desde os primeiros Estados antigos conhecidos, o nú­ mero dos aparelhos ideológicos do Estado é menor e nua individualidade diferente. Constatamos, por exem­ plo, que na Idade Média, a Igreja (aparelho ideológico de estado religioso) acumulava inúmeras funções hoje distribuídas entre os diferentes aparelhos ideológicos do Estado, novos em relação ao passado que evocamos, particular mente as funções escolares e culturais. Ao lado da Igreja existia o Aparelho Ideológico de Estado familiar, que desempenhava um papel considerável, sem medida comum com o que é hoje desempenhado nas formações sociais capitalistas. A Igreja e a Família não eram, apesar das aparências, os únicos aparelhos ideológicos do Estado; Havia também um Aparelho Ideológico do Estado político (os Estados Gerais, o Parlamento, as diferentes facções e Ligas políticas an­ cestrais dos partidos políticos modernos, e todo o sis­ tema político das Comunas libertadas e, depois, das (5idades). Havia também um poderoso aparelho ideoló­ gico do Estado “pré-sindical” , se podemos arriscar esta expressão necessariamente anacrônica (as poderosas

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confrarias dos mercadores, dos banqueiros, as associa­ ções dos empregados etc.) Até a Edição e a Informação conheceram incontestável desenvolvimento, bem como os espetáculos. Inicialmente integrados à Igreja, depois cada vez mais independentes dela. No período histórico pró-capitalista que examinamos sumariamente, é evidente que havia um aparelho ideo­ lógico de Estado dominante, a Igreja, que reunia não só as funções religiosas, mas também as escolares, e uma boa parcela das funções de informação e de “ cultura” . Não foi por acaso que toda a luta ideológica do século X V I ao X V III, desde o primeiro abalo da Reforma, se concentrou numa luta anticlerical e anti-religiosa, foi em função mesmo da posição dominante do aparelho ideo­ lógico do Estado religioso. A Revolução francesa teve, antes de mais nada, como objetivo e resultado não apenas a transferência do poder do Estado da aristocracia feudal para a bur­ guesia capitalista-comercial, a quebra parcial do antigo aparelho repressivo do Estado e sua substituição por um novo (ex. o Exército nacional popular), — mas o ataque ao aparelho ideológico do Estado n o 1: a Igreja. Daí a constituição civil do clero, a confiscação dos bens da Igreja, e a criação de novos aparelhos ideológicos do Estado para substituir o aparelho ideológico do Es­ tado religioso em seu papel dominante. Naturalmente as coisas não caminharam por si sós: como exemplo temos o concordai, a Restauração, e a lon­ ga luta de classe entre a Aristocracia fundiária e a burguesia industrial durante todo século X IX , para o estabelecimento da hegemonia burguesa nas funções anteriormente preenchidas pela Igreja: antes de mais nada pela Escola. Pode-se dizer que a burguesia se apoiou no novo aparelho ideológico de Estado político, democrático-parlamentar, estabelecido nos primeiros anos da Revolução, restaurado, após longas e violentas lutas, por alguns meses em 1848, e durante dezenas de anos após a queda do Segundo Império, para combater a Igreja e apossar-se de suas funções ideológicas, em suma para assegurar não só sua hegemonia política,

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nm« também a sua hegemonia ideológica, indispensáv«l h reprodução das relações de produção capitalistas. Acreditamos portanto poder apresentar a Tese seUtilnte, com todos os riscos que isto comporta. Afirma­ mos que o aparelho ideológico de Estado que assumiu H posição dominante nas formações capitalistas maduniH, após uma violenta luta de classe política e Ideoló«ICH contra o antigo aparelho ideológico do Estado do­ minante, é o aparelho ideológico escolar. Esta tese pode soar paradoxal se para todo mundo, Isto é, se na representação ideológica que a burguesia Uva de si mesma para si mesma e para as classes explonidas, não parece ser a escola o aparelho ideológico de KHtado dominante nas formações sociais capitalistas e Nim o aparelho ideológico de Estado político, ou seja n regime de democracia parlamentar oriundo do sufrá«lo universal e das lutas partidárias. No entanto a história, mesmo recente, demonstra (|ue a burguesia pôde e pode muito bem acomodar-se II aparelhos ideológicos de Estado políticos distintos da «lomocracia parlamentar: o Império, n.° 1 ou n° 2, a Monarquia constitucional (Luiz X V III, Cario X ), a Mo­ narquia parlamentar (Luis Felipe), a democracia presiilímcial (de Gaulle), para mencionar apenas a França. Na Inglaterra as coisas são ainda mais explícitas. La a revo­ lução foi particularmente bem sucedida do ponto de vista burguês, uma vez que contrariamente à França, onde a burguesia, por estreiteza da pequena nobreza, foi obrigada a aceitar chegar ao poder pelas “ jornadas ríwolucionárias” , camponesas e plebéias, que lhe custa­ ram terrivelmente caro, a burguesia inglesa pode “ com­ por com a Aristocracia, e “ partilhar” com ela o poder e o Estado e a utilização do aparelho do Estado durante niiiito tempo (paz entre todos os homens de boa von­ tade das classes dominantes!). Na Alemanha as coisas são mais surpreendentes ainda — foi sob o aparelho ideológico de Estado político, aonde os Jimkers impe­ riais (símbolo Bismark), seu exército e sua polícia lhe serviam de escudo e de pessoal dirigente, que a bur­ guesia imperialista entrou estrondosamente na história,

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antes de “ atravessar” a República de Welmar e de en" tregar-se ao nazismo. Acreditamos portanto ter boas razões para afirmar] que, por trás dos jogos de seu Aparelho Ideológico dej Estado político, que ocupava o primeiro plano do pal­ co, a burguesia estabeleceu como seu aparelho ideoló­ gico de Estado n.° 1, e portanto dominante, o aparelho! escolar, que, na realidade, substitui o antigo aparelho] ideológico de Estado dominante, a Igreja, em suas fun­ ções. Podemos acrescentar: o par Escola-Família subs­ titui o par Igreja-Família.

t

Por que o aparelho escolar ó o aparelho ideológico de Estado dominante nas formações sociais capitalistas e como funciona? No momento ó suficiente responder: 1 — Todos os aparelhos ideológicos de Estado, quaisquer que sejam, concorrem para o mesmo fim: a reprodução das relações de produção, isto ó, das rela­ ções de exploração capitalistas. 2 — Cada um deles concorre para este fim único na maneira que lhe é própria. O aparelho político sub­ metendo os indivíduos à Ideologia política do Estado, a ideologia “ democrática” , “ indireta” (parlamentar) ou “ direta” (plebiscitárla ou fascista). O aparelho de infor­ mação despejando pela imprensa, pelo rádio, pela tele­ visão doses diárias de nacionalismo, chauvinismo, libe­ ralismo, morallsmo, etc. O mesmo ocorre com o apare­ lho cultural (o papel do esporte no chauvinismo é de primeira importância),, etc. O aparelho religioso lem­ brando nos sermões e em outras cerimônias do Nasci­ mento, do Casamento e da Morte que o homem é cinza e sempre o será, a não ser que ame seu irmão ao ponto de dar a outra face àquele que primeiro a esbofetear. O aparelho fam iliar... Não insistamos. 3 — Este concerto é regido por uma única parti­ tura, por vezes perturbada por contradições (as do res­ tante das antigas classes dominantes, as dos proletários e suas organizações): a Ideologia da classe atualmente dominante, que inclui em sua música os grandes temas

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iln Humanismo dos Grandes Ancestrais, que realizamm, antes do Cristianismo, o Milagre grego, e depois N Urundeza de Roma, a Cidade eterna, e os temas do liilnrosse, particular e geral etc. Nacionalismo, moralismo (í economismo. 4 — Portanto, neste concerto, um aparelho ideolódo Estado desempenha o papel dominante, muito ■mhora não escutemos sua música a tal ponto ela é ■llnnciosa! Trata-se da Escola. kIco

Ela se encarrega das crianças de todas as classes ■odliiis desde o Maternal, e desde o Maternal ela lhes innulca, durante anos, precisamente durante aqueles em iluo a criança é mais “ vulnerável” , espremida entre o ttl)iirelho de Estado familiar e o aparelho de Estado esooiiir, os saheres contidos na ideologia dominante (o fiiincôs, o cálculo, a história natural, as ciências, a litenitura), ou simplesmente a ideologia dominante em unindo puro (moral, educação cívica, filosofia). Por volin do 16.0 ano, uma enorme massa de crianças entra "im produção” : são os operários ou os pequenos caml»(meses. Uma outra parte da juventude escolarlzável l)rossegue: e, seja como for, caminha para os cargos dos pnquenos e médios quadros, empregados, funciondrlos pequenos e médios, pequenos burgueses de todo lll)o. Uma última parcela chega ao final do percurso, se|ii para cair num semi-desemprego intelectual, seja para fornecer além dos “ intelectuais do trabalhador coleti­ vo” , os agentes da exploração (capitalistas, gerentes), oM agentes da repressão (militares, policiais, políticos, administradores) e os profissionais da ideologia (padres do toda espécie, que em sua maioria são “ leigos” con­ victos). Cada grupo dispõe da ideologia que convém ao pa))(d que ele deve preencher na sociedade de classe: papel d(í explorado (a consciência “ profissional” , “ moral” , “ cí­ vica” , “nacional” e apolítica altamente “ desenvolvida” ); papel de agente da exploração (saber comandar e diriglr-se aos operários: as “ relações humanas” ), de agen­ das da repressão (saber comandar, fazer-se obedecer “ sem discussão” , ou saber manipular a demagogia da retórica dos dirigentes pblíticos), ou de profissionais

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h

da ideologia (saber tratar as consciências com o res peito, ou seja, o desprezo, a chantagem, a demagogia que convêm, com as ênfases na Moral, na Virtude, na “ Transcendência", na Nação, no papel da França no' Mundo, etc.). Certamente multas destas Virtudes (modéstia, reslg nação, submissão de uma parte, cinismo, desprezo, se gurança, altivez, grandeza, o falar bem, habilidade) se aprendem também nas Famílias, na Igreja, no Exército, nos Belos Livros, nos filmes, e mesmo nos estádios. Porém nenhum aparelho ideológico do Estado dispõe durante tantos anos da audiência obrigatória (e por menos que isso signifique, gratuita...), 5 a 6 dias num total de 7, numa média de 8 horas por dia, da totali dade das crianças da formação social capitalista.

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É pela aprendizagem de alguns saberes contidos na inculcação maciça da ideologia da classe dominante que, em grande parte, são reproduzidas as relações de pro­ dução de uma formação social capitalista, ou seja, as relações entre exploradores e explorados, e entre explo­ rados a exploradores. Os mecanismos que produzem esse resultado vital para o regime capitalista são natu­ ralmente encobertos e dissimulados por uma ideologia da Escola universalmente aceita, que é uma das formas essenciais da ideologia burguesa dominante: uma ideo­ logia que representa a Escola como neutra, desprovida de ideologia (uma vez que é leiga), aonde os profes­ sores, respeitosos da “ consciência" e da “ liberdade" das crianças que lhes são confiadas (com toda confian­ ça) pelos “pais" (que por sua vez são também livres, isto é, proprietários de seus filhos), conduzem-nas à liberdade, à moralidade, à responsabilidade adulta pelo seu exemplo, conhecimentos, literatura e virtudes “ liber­ tárias". Peço desculpas aos professores que, em condições assustadoras, tentam voltar contra a ideologia, contra o sistema e contra as práticas que os aprisionam, as poucas armas que podem encontrar na história e no saber que “ ensinam". São uma espécie de heróis. Mas eles são raros, e muitos (a maioria) não têm nem um princípio de suspeita do “ trabalho" que o sistema (que

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OH ultrapassa e esmaga) os obriga a fazer, ou, o que é jjlor, põem todo seu empenho e engenhosidade em fiizô-lo de acordo com a última orientação (os famosos inótodos novos!). Eles questionam tão pouco que con­ tribuem, pelo seu devotamento mesmo, para manter e nllmentar esta representação ideológica da escola, que fiiz da Escola hoje algo tão “ natural" e indispensável, n benfazeja a nossos contemporâneos como a Igreja cira “ natural", indispensável e generosa para nossos an('Ofltrais de alguns séculos atrás. De fato, a Igreja foi substituída pela Escola em H»m papel de Aparelho Ideológico de Estado dominante. I<:ia forma com a Família um par, assim como outrora a Igreja o era. Podemos então afirmar que a crise, de profundidade sem precedentes, que abala por todo o mundo o sistema escolar de tantos Estados, geralmente acompanhada por uma crise (já anunciada no Manif('Hto) que sacode o sistema familiar, ganha um sentido político se considerarmos a Escola (e o par Escola-Família) como o Aparelho Ideológico de Estado dominanl(í. Aparelho que desempenha um papel determinante na reprodução das relações de produção de um modo de produção ameaçado em sua existência pela luta mun­ dial de classes. Acerca da Ideologia Quando apresentamos o conceito de Aparelhos Ideolí^gicos do Estado, quando dissemos que os AIE funcio­ navam “ através da ideologia", invocamos uma reali­ dade acerca da qual é necessário dizer algumas pala­ vras: a ideologia. Sabe-se que a expressão: ideologia, foi forjada por Cabanis, Destutt de Tracy e seus amigos, e que desig­ nava por objeto a teoria (genérica) das idéias. Quando, .')() anos mais tarde, Marx retoma o termo, ele lhe con­ fere, desde as suas Obras da Juventude, um sentido total­ mente distinto. A ideologia é, aí, um sistema de idéias, de representações que domina o espírito de um homem ou de um grupo social. A luta político-ideológica condu­ zida por Marx desde seus artigos na Gazeta Renana iria

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rapidamente levá-lo ao confronto com esta realidade ôl obrigá-lo a aprofundar suas primeiras intuições. Portanto estamos diante de um paradoxo bastante surpreendente. Tudo parecia levar Marx a formular^ uma teoria da ideologia. De fato, a Ideologia alemã nos oferece, depois dos Manuscritos de 44, uma teoria ex­ plícita da ideologia, m as... ela não é marxista (nds o veremos daqui a pouco). Quanto ao capital, mesmo que contendo inúmeras indicações para uma teoria das ideo-^ logias (a mais visível: a ideologia dos economistas vul­ gares), ele não contém esta teoria em si, que dependei em grande parte de uma teoria da ideologia em geral, Desejaria arriscar-me a propor um primeiro e muito esquemático esboço. As teses que apresentarei não são certamente improvisadas, mas não podem ser susten­ tadas e comprovadas, isto é, confirmadas ou retificadas, a nao ser através de estudos e análises aprofundadas. A Ideologia não tem história advertência antes de expor a razão de princípio que me parece fundar, ou ao menos autorizar, o projeto de uma teoria da ideologia em geral, e não de uma teõria das ideologias particulares, que expressam sempre, qualquer que seja sua forma (religiosa, moral jurídica, política) posições de classe. ' Evidentemente será necessário empreender uma teoria das ideologias, a partr da dupla relação que acabamos de indicar. Veremos então que uma teoria das ideologias repousa em última análise na história das for­ mações sociais, e portanto dos modos de produção combinados nas formações sociais, e das lutas de classe due se desenvolvem nelas. Neste sentido, fica claro que nao se trata de uma teoria das ideologias em geral uma vez que as ideologias (definidas pela dupla relação indi­ cada acima^ regional e de classe) têm uma história cuja determinação em última instância se encontra eviden­ temente fora delas, em tudo que lhes concerne. Por outro lado, se eu posso apresentar o projeto de uma teoria da ideologia em geral, e se esta teoria é um

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rtoH elementos do qual dependem as teorias das ideolotfliiH, isto implica numa proposição aparentemente para­ doxal que enunciarei nos seguintes termos: a ideologia não tem história. Sabemos que esta fórmula aparece^ com todas as Irtiras numa passagem da Ideologia alemã. Marx a enunrlu a propósito da metafísica que, segundo ele, não tem miils história do que a moral (subentenda-se: e as denmlB formas da ideologia). Na ideologia alemã, esta fórmula aparece num conIwxto nitidamente positivista. A ideologia é concebida í'oino pura ilusão, puro sonho, ou seja, nada. Toda a Ntiii realidade está fora dela. A ideologia é portanto mula como uma construção imaginária cujo estatuto e uxiilamente o mesmo estatuto teórico do sonho nos uul.ores anteriores a Freud. Para tais autores, o sonho »ti a 0 resultado puramente imaginário, quer dizer nulo, Mo “ resíduos diurnos” , apresentados numa ordem e i-ninposição arbitrárias, por vezes mesmo “invertidas’ , nm suma “ desordenadamente” . Para eles, o sonho era II Imaginário vazio e nulo, arbitrariamente hricolé *, de iilhos fechados, dos resíduos da única realidade plena o positiva, a do dia. É este exatamente o estatuto da filosofia e da ideologia (uma vez que a filosofia é a ideo­ logia por excelência) na Ideologia alemã. A ideologia é então para Marx um bricolage ima­ ginário, puro sonho, vazio e vão, constituído pelos resí­ duos diurnos” da única realidade plena e positiva, a da história concreta dos indivíduos concretos, matérias, produzindo materialmente sua existência. É neste senlldo que, na Ideologia alemã, a ideologia não tem histó­ ria, uma vez que sua história está fora dela, lá onde ostá a única história, a dos indivíduos concretos e tc ...

* N T O verbo bricoler não tem tradução direta para o portiiKuês, significando a maneira pragmática pela qual a partir (Ui iunção de pedaços de coisas diferentes pode-se construir oul.ras coisas. A bricolagem indica a ação de construção sem um jirojeto estabelecido, indica também que nao se conta com os elementos adequados à ação.

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Na Ideologia alemã a tese de que a ideologia nao teiri história é portanto uma tese puramente negativa que significa ao mesmo tempo que:

1 , — a ideologia, não é nada mais do que^puro sonho (fabricada não se sabe por que poder a não ser pela alienação da divisão do trabalho, porém esta deter­ minação também é uma determinação negativa), 2. — a ideologia não tem história, o que não quer dizer que ela não tenha uma história (pelo contrário, uma vez que ela não é mais do que o pálido^ reflexo va­ zio invertido da história real) mas que ela não tem uma história sua. A tese que gostaria de defender, retomando formal­ mente os termos da Ideologia alemã (*^a ideologia não tem história” ) é radicalmente diferente da tese positivista-historicista da Ideologia alemã, Porque, por um lado, acredito poder sustentar que as ideologias têm uma históvia sua (embora seja ela, em última instância, determinada pela luta de classes); e por outro lado, acredito poder sustentar ao mesmo tempo que a ideologia em geval não tem históTia, não em um sentido negativo (o de que sua história está fora dela), mas num sentido totalmente positivo. Este sentido é positivo se consideramos que a ideo­ logia tem uma estrutura e um funcionamento tais que fazem dela uma realidade não-histórica, isto é, omnihistórica, no sentido em que esta estrutura e este fun­ cionamento se apresentam na mesma forma imutável em toda história, no sentido em que o Manifesto define a história como história da luta de classes, ou seja, his­ tória das sociedades de classe. Eu diria, fornecendo uma referência teórica reto­ mando o exemplo do sonho, desta vez na concepção freu­ diana, que nossa proposição: a ideologia não tem his­ tória pode e deve (e de uma forma que nada tem de arbitrária, mas que é pelo contrário teoricamente neces­ sária, pois há um vínculo orgânico entre as duas pro­ posições) ser diretamente relacionada à proposição de Freud de que o inconsciente é eterno isto é, não tem história. 78

Se eterno significa, não a transcendência a toda his­ tória (temporal), mas omnipresença, transhistória e portanto imutabilidade em sua forma em toda extensão da história, eu retomarei palavra por palavra da expres­ são de Freud e direi: a ideologia é eterna, como o incons­ ciente. E acrescentarei que esta aproximação me parece teoricamente justificada pelo fato de que a eternidade do Inconsciente não deixa de ter relação com a eterni­ dade da ideologia em geral. Eis porque me considero autorizado, ao menos presuntivamente, a propor uma teoria da ideologia em ge­ ral, no mesmo sentido em que Freud apresentou uma teoria do inconsciente em geral. Levando em conta o que foi dito das ideologias, para simplificar a expressão, designaremos a ideologia em geral pelo termo ideologia propriamente dita, que conforme o dissemos não tem história, ou, o que dá no mesmo, é eterna, onipresente, sob sua forma imutável, em toda a história ( = a história das formações sociais de classe). Limito-me provisoriamente às “ sociedades de classes” e à sua história. A Ideologia é uma “ representação” da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência Para abordar a tese central sobre a estrutura e o funcionamento da ideologia, apresentarei inicialmente duas teses, sendo uma negativa e a outra positiva. A pri­ meira trata do objeto que é “ representado” sob a forma Imaginária da ideologia, a segunda trata da materiali­ dade da ideologia. Tese 1: A ideologia representa a relação imaginá­ ria dos indivíduos com suas condições reais de exis­ tência. Diz-se comumente que a ideologia religiosa, a ideo­ logia moral, a ideologia jurídica, a ideologia política, etc. são “ concepções de mundo” . Contrapomos, a menos que se viva uma dessas ideologias como a verdade (se, por exemplo, se “ crê” em Deus, no Dever, na Justiça etc.), que esta Ideologia de que falamos a partir de um ponto 79

de vista crítico, de um exame semelhante ao do etnólogo dos mitos de uma “ sociedade primitiva” , que essas “ con­ cepções de mundo” são em grande parte imaginárias, ou seja, não “ correspondem à realidade” . Portanto, admitindo que elas não correspondem à realidade e que então elas constituem uma ilusão, admi­ timos que elas se referem à realidade e que basta “ in­ terpretá-las” para encontrar, sob a sua representação imaginária do mundo, a realidade mesma desse mundo (ideologia = ilusão/alusão). Existem diferentes tipos de interpretação. As mais conhecidas são a mecanicista, corrente no século X V III, (Deus é a representação imaginária do Rei real) e a ^‘hermenêutica**, inaugurada pelos primeiros Padres da Igreja e retomada por Feuerbach e pela escola teológicofilosófica originada nele, por exemplo o teólogo Barth, etc. (para Feuerbach, por exemplo, Deus é a essência do Homem real). Chego ao essencial afirmando que, in­ terpretando a transposição (e inversão) imaginária da ideologia, concluímos que nas ideologias “ os homens re­ presentam-se, de forma imaginária, suas condições reais de existência” . Infelizmente esta interpretação deixa em suspenso um pequeno problema: porque os homens “ necessitam” dessa transposição imaginária de suas condições reais de existência, para “ representar-se” suas condições de existência reais? A primeira resposta (a do século X V III) propõe uma solução simples: Por culpa dos Padres ou dos Dés­ potas. Eles “ forjaram” Belas Mentiras para que, pensan­ do obedecer a Deus, os homens obedecessem de fato aos Padres ou aos Déspotas, que na maioria das vezes alia­ vam-se em sua impostura: os padres a serviço dos dés­ potas ou vice-versa, segundo as posições políticas dos “ teóricos” em questão. Há portanto uma causa para a transposição imaginária das condições de existência reais: essa causa é a existência de um pequeno grupo de homens cínicos que assentam sua dominação e sua explo­ ração do “ povo” sobre uma representação falseada do

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mundo, imaginada por eles para subjugar os espíritos pola dominação de sua imaginação. A segunda resposta (a de Feuerbach, retomada pa­ lavra por palavra por Marx em suas Obras da Juven­ tude) é mais “ profunda” , e igualmente falsa. Ela busca 0 encontra uma causa para a transposição e deforma­ ção imaginária das condições de existência reais dos liomens, para a alienação no imaginário da representa­ ção das condições de existência dos homens. Esta causa não é nem mais os padres ou os déspotas, nem a sua própria imaginação ativa ou a imaginação passiva de nuas vítimas. Esta causa, é a alienação material que rei­ na nas condições mesmas de existência dos homens. É (lesta maneira que Marx defende, na Questão Judia e em outras obras, a idéia feuerbachiana de que os homens HO fazem uma representação ( = imaginária) de suas condições de existência porque estas condições de exis­ tência são em si alienadas (nos Manuscritos de 44: por(lue estas condições são dominadas pela essência da Mociedade alienada: o “ trabalho alienado” ). Todas estas interpretações tomam ao pé da letra a tose que supõem e sobre a qual repousam, ou seja, a teMo de que o que é refletido na representação imagi­ nária do mrnido, o que se encontra na ideologia são as condições de existência dos homens, de seu mundo real. Retomo aqui uma tese já apresentada: não são as Huas condições reais de existência, seu mundo real que os “ homens” “ se representam” na ideologia, o que é nelas representado é, antes de mais nada, a sua relação com as suas condições reais de existência. É esta rela­ ção que está no centro de toda representação ideológica, e portanto imaginária do mundo real. É nesta relação (lue está a “ causa” que deve dar conta da deformação Imaginária da representação ideológica do mundo real. Ou melhor, deixando de lado a linguagem da causa, é l)reciso adiantar a tese de que é a natureza imaginária desta relação que sustenta toda a deformação imagi­ nária observável em toda ideologia (se não a vivemos em sua verdade).

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Em linguagem marxista, se é verdade que a repre­ sentação das condições de existência reais dos indivíduos que^ ocupam postos de agentes da produção, da explo­ ração, da repressão, da ideologização e da prática cien­ tífica, remete em última instância às relações de produ­ ção e às relações derivadas das relações de produção, podemos dizer que: toda ideologia representa, em sua deformação necessariamente imaginária, não as rela­ ções de produção existentes (e as outras relações delas derivadas) mas sobretudo a relação (imaginária) dos indivíduos com as relações de produção e demais rela­ ções daí derivadas. Então, é representado na ideologia não o sistema das relações reais que governam a exis­ tência dos homens, mas a relação imaginária desses in­ divíduos com as relações reais sob as quais eles vivem. Sendo assim, a questão da “ causa” da deformação imaginária das relações reais na ideologia desaparece, e deve ser substituída por uma outra questão: por que a representação dos indivíduos de sua relação (individual) com as relações sociais que governam suas condições de existência e sua vida coletiva e individual, é necessa­ riamente imaginária? E qual a natureza deste imaginá­ rio? Colocada desta maneira a questão esvazia a respos­ ta pela clique de um grupo de indivíduos (padres ou déspotas) autores da grande mistificação ideológica, bem como a do caráter alienado do mundo real. Vere­ mos porque no prosseguimento de nossa exposição. Por hora, não iremos mais longe. Tese II:

A ideologia tem uma existência material

Já esboçamos esta tese ao dizer que as “ idéias” ou “ representações” etc., que em conjunto compõem a ideo­ logia, não tinham uma existência ideal, espiritual, mas material. Chegamos mesmo a sugerir que a existência imaginária, ideal, espiritual das “ idéias” provinha exclu­ sivamente de uma ideologia da “ idéia” , da ideologia e

13 Emprego propositalmente este termo bastante moderno. Pois mesmo nos meios comunistas, a “explicação” de tal desvio po­ lítico (oportunismo de direita ou de esquerda) pela ação de uma “clique” é infelizmente frequente,

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i\(’roscentemos de uma ideologia do que parece “ fundar”

Mia concepção desde o nascimento das ciências, a saber (I (lue os cientistas se representam como “ idéias” , veríludeiras ou falsas, em sua ideologia espontânea. Certanumte, apresentada sob a forma de uma afirmação, esta Iung não está demonstrada. Pedimos simplesmente que, wm nome do materialismo, lhe seja dado um julgamen­ to favorável. Longos desenvolvimentos seriam necessáílofl para a sua demonstração. Esta tese presuntiva da existência não espiritual mas material das “ idéias” ou outras “ representações” é nentiHsária para prosseguirmos a nossa análise da naturena da ideologia. Ou, melhor, ela simplesmente nos é útil por possibilitar que apareça, de forma mais clara, o que qualquer análise um pouco séria de uma ideologia qual­ quer mostra imediatamenteAempiricamente a todo ob«nrvador, mesmo que pouco crítico. Ao falarmos dos aparelhos ideológicos do Estado e ilií suas práticas, dissemos que cada um deles era a rea­ lização de uma ideologia (a unidade destas diferentes Ideologias regionais — religiosa, moral, jurídica, polí­ tica, estética, etc, sendo assegurada por sua subordina­ ção à ideologia dominante). Retomamos esta tese: uma Idííologia existe sempre em um aparelho e em sua prállca ou práticas. Esta existência é material. Certamente a existência material da ideologia em um aparelho e suas práticas não é a mesma da de um paralelepípedo ou de um fusil. Porém, sem que nos to­ mem por neo-aristotélicos (lembramos que Marx tinha uma alta estima por Aristóteles), diremos que “ a malérla se expressa de inúmeras maneiras” , ou melhor, «|uo ela existe de diferentes formas, todas enraizadas tan última instância na matéria “ física” . Dito isto, vejamos o que se passa com os indivíduos (|ue vivem na ideologia, isto é, numa representação do mundo determinada (religiosa, moral etc.) cuja defor­ mação imaginária depende de sua relação imaginária <’om suas condições de existência, ou seja, em última ins­ tância das relações de produção e de classe (ideologia relação imaginária com as relações reais). Diremos

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que esta relação imaginária é em si mesma dotada de uma existência material. Constatamos o seguinte: Um indivíduo crê em Deus, ou no Dever, ou na Jus­ tiça, etc. Esta crença provém (para todo mundo, isto é, para todos que vivem na representação ideológica da ideologia, que reduz a ideologia, por definição, às idéias dotadas de existência espiritual) das idéias do dito in­ divíduo enquanto sujeito possuidor de uma consciência na qual estão as idéias de sua crença. A partir disso, isto é, a partir do dispositivo “ conceituar’ perfeitamente ideológico assim estabelecido, (um sujeito dotado de uma consciência aonde livremente ele formula as Idéias em que crê), o comportamento material do dito indi­ víduo decorre naturalmente. O indivíduo em questão se conduz de tal ou qual maneira, adota tal ou qual comportamento prático, e, o que é mais, participa de certas práticas regulamenta­ das que são as do aparelho Ideológico do qual “ depen­ dem” as idéias que ele livremente escolheu com plena consciência, enquanto sujeito. Se ele crê em Deus, ele vai à Igreja assistir à Missa, ele se ajoelha, reza, se con­ fessa, faz penitência (outrora ela era material no sen­ tido corrente do termo), e naturalmente se arrepende, e continua, etc. Se ele crê no Dever, ele terá compor­ tamentos correspondentes, inscritos nas práticas rituais, “ segundo os bons costumes” . Se ele crê na Justiça, ele se submeterá sem discussão às regras do Direito, e po­ derá mesmo protestar quando elas são violadas, assinar petições, tomar parte em uma manifestação, etc. Em todo esse esquema, constatamos portanto que a representação ideológica da ideologia é, ela mesma, forçada a reconhecer que todo “ sujeito” dotado de uma “ consciência” e crendo nas “ idéias” que sua “ consciên­ cia” lhe inspira, aceitando-as livremente, deve “ agir se­ gundo suas idéias” , imprimindo nos atos de sua prática material as suas próprias idéias enquanto sujeito li­ vre. Se ele não o faz, “ algo vai mal” . Na verdade se ele não faz o que, em função de suas crenças, deveria fazer, é porque faz algo diferente,



(I (lue, sempre em função do mesmo esquema idealista, il(»lxa perceber que ele tem em mente idéias diferentes •liifl que proclama, e que ele age segundo outras idéias, Kt\)a como um homem “ inconsequente” ( “ ninguém é voluntariamente mau” ), ou cínico, ou perverso. Em todos os casos, a ideologia da ideologia reco­ nhece, apesar de sua deformação imaginária, que as "Idólas” de um sujeito humano existem em seus atos, ou devem existir em seus atos, e se isto não ocorre, ela lhe confere idéias correspondentes aos atos (mesmo perversos) que ele realiza. Esta ideologia fala de atos: nós falaremos de atos inscritos em práticas. E obser­ varemos que estas práticas são reguladas por rituais nos quais estas práticas se inscrevem, no seio da exisI,finda material de um aparelho ideológico, mesmo que numa pequena parte deste aparelho: uma pequena masim numa pequena Igreja, um enterro, um pequeno jogo num clube esportivo, um dia de aulas numa escola, uma reunião ou um meeting * de um partido políti­ co, etc. Aliás, devemos à “ dialética” defensiva de Pascal a maravilhosa fórmula que nos permitirá subverter a or­ dem do esquema conceituai da ideologia. Pascal diz, aproximadamente: “ Ajoelhai-vos, orai e acreditareis” . Ele subverte portanto escandalosamente a ordem das coisas, trazendo, como Cristo, não a paz mas a divisão, o além disso, o que é muito pouco cristão (infeliz aque­ le por quem o escândalo vem ao mundo!) o próprio es­ cândalo. Feliz escândalo que o fez, pelo desafio jansenista, falar a linguagem da realidade em pessoa. Deixemos Pascal com seus argumentos da luta ideo­ lógica no seio do aparelho ideológico de Estado religio.so de seu tempo. E, se possível, empregaremos uma linguagem mais diretamente marxista, pois avançamos em domínios ainda mal explorados. Diremos portanto, considerando um sujeito (tal indivíduo), que a existência das idéias de sua crença é

* N.T.

no original em inglês.

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material, pois suas idéias são seus atos materiais inse­ ridos em práticas materiais, reguladas por rituais ma­ teriais, eles mesmos definidos pelo aparelho ideológico material de onde provêm as idéias do dito sujeito. Na­ turalmente, os quatro adjetivos “ materiais” referem-se a diferentes modalidades: a materialidade de um deslo­ camento para a missa, de uma genuflexão, de um sinal da cruz ou de um mea culpa, de uma frase, de uma ora­ ção, de uma contrição, de uma penitência, de um olhar, de um aperto de mão, de um discurso verbal interno (a consciência) ou de um discurso verbal externo não são uma mesma e única materialidade. Deixamos em suspenso a teoria da diferença das modalidades da ma­ terialidade. Resta que nessa apresentação invertida das coisas, não nos deparamos exatamente com uma “ inversão” uma vez que constatamos que certas noções pura e simples­ mente desapareceram em nossa apresentação enquanto que outras permanecem e que novos termos aparecem. Desaparece: o termo idéias. Permanecem: os termos sujeito, consciência, cren­ ça, atos. Aparecem: ideológico.

os termos práticas, rituais, aparelho

Não se trata portanto de uma inversão, mas de um remanejamento bastante estranho dado o resultado que obtemos. As idéias desaparecem enquanto tais (enquanto do­ tadas de uma existência ideal, espiritual), na medida mesrna em que se evidenciava que sua existência estava inscrita nos atos das práticas reguladas por rituais de­ finidos em última instância por um aparelho ideoló­ gico. O sujeito portanto atua enquanto agente do se­ guinte sistema (enunciado em sua ordem de determina­ ção real): a ideologia existente em um aparelho ideo­ lógico material, que prescreve práticas materiais regu­ ladas por um ritual material, práticas estas que existem nos atos materiais de um sujeito, que age consciente­ mente segundo sua crença.

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Nesta formulação conservamos as seguintes noções: sujeito, consciência, crença, atos. Desta sequência extrai­ remos o termo central decisivo, do qual depende todo 0 demais: a noção de sujeito. E enunciamos duas teses simultâneas: 1. _ só há prática através de e sob uma ideologia 2 , — só há ideologia pelo sujeito e para o sujeito Podemos agora abordar a nossa tese central. A Ideologia interpela os indivíduos enquanto sujeitos Esta tese vem simplesmente explicitar a nossa últi­ ma formulação: só há ideologia pelo sujeito e para os •sujeitos. Ou seja, a ideologia existe para sujeitos con­ cretos, e esta destinação da ideologia só é possível pelo •sujeito: isto é, pela categoria de sujeito e de seu funcio­ namento. Queremos dizer com isso, mesmo que esta categoria (o sujeito) não apareça assim denominada, que com o •surgimento da ideologia burguesa, e sobretudo com o da ideologia jurídica a categoria de sujeito (que pode aparecer sob outras denominações: como em Pla­ tão por exemplo, a alma. Deus, etc.) é a categoria cons­ titutiva de toda ideologia, seja qual for a determinação (regional ou de classe) e seja qual for o momento his­ tórico, — uma vez que a ideologia não tem história. Dizemos: a categoria de sujeito é constitutiva de toda ideologia, mas, ao mesmo tempo, e imediatamen­ te, — acrescentamos que a categoria de sujeito não é constitutiva de toda ideologia, uma vez que toda ideo­ logia tem por função (é o que a define) “ constituir*' in­ divíduos concretos em sujeitos. É neste jogo de dupla constituição que se localiza o funcionamento de toda ideologia, não sendo a ideologia mais do que o se^u fun-

14 Que faz da categoria jurídica de "sujeito de direito" uma noção ideológica; o homem é naturalmente um sujeito.

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cionamento nas formas materiais de existência deste mesmo funcionamento. Para compreender o que daí decorre, é preciso es­ tar alerta para o fato de que, tanto aquele que escreve estas linhas como o leitor que as lê, são sujeitos, e por­ tanto sujeitos ideológicos (formulação tautológica) ou seja, o autor e o leitor destas linhas vivem “ esponta­ neamente'' ou “ naturalmente" na ideologia, no sentido em que dissemos que “ o homem é por natureza um animal ideológico” . O fato do autor, enquanto autor de um discurso que se pretende científico, estar completamente ausen­ te, como “ sujeito” , de “ seu” discurso científico (todo 0 discurso científico é por definição um discurso sem sujeito, só existe um “ Sujeito da ciência” numa ideolo­ gia da ciência), é um outro problema que, pelo momen­ to, deixaremos de lado. Como 0 dizia São Paulo admiravelmente, é no “ Logos” , leia-se na Ideologia, que apreendemos “ o ser, o movimento e a vida” . Segue-se que, tanto para vocês como para mim, a categoria de sujeito é uma “ evidên­ cia” primeira (as evidências são sempre primeiras): está claro que vocês, como eu, somos sujeitos (livres, morais, etc.). Como todas as evidências, inclusive as ■que fazem com que uma palavra “ designe uma coisa” ou “possua um significado” (portanto inclusive as evi­ dências da “ transparência” da linguagem), a evidência de que vocês e eu somos sujeitos — e até aí que não há problema — é um efeito ideológico, o efeito ideológico elementar.^® Este é aliás o efeito característico da ideologia — impor (sem parecer fazê-lo, uma vez que se tratam de “ evidências” ) as evidências como evidên­ cias, que não podemos deixar de reconhecer e diante das quais, inevitável e naturalmente, exclamamos (em

15 Os linguistas e todos aqueles que recorrem à linguística com diferentes fins, tropeçam freqüentemente em dificuldades que decorrem do desconhecimento do jogo dos efeitos ideoló­ gicos em todos os discursos — inclusive os discursos científicos,

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vi»/t ulta, ou no “ silêncio da consciência” ): “ é evidente! ú oxiitamente isso! é verdade!” . iS nesta reação que se exerce a função de reconhe^ vinnmto ideológico, que é uma das duas fimções da ideoInglíi enquanto tal (sendo o desconhecimento a sua fun(,'í\() inversa). Tomando um exemplo bastante “ concreto” , quanilo nossos amigos batem à nossa porta, quando pergunImnos, através da porta fechada, “ quem é?” eles res­ pondem ( “ é evidente” ) “ sou eu!” . Com efeito reconhei'nmos que “ é ele” ou “ é ela” . Abrimos a porta, e “ ver«liideiramente era ele quem batia” . Tomando um outro oxomplo, quando reconhecemos na rua alguém do nos«() (re) conhecimento, demonstramos que o reconhece­ mos (e que reconhecemos que ele nos reconheceu) diKondo-lhe “ alô, como vai?” apertando-lhe a mão (prá­ tica ritual material do reconhecimento ideológico da vida cotidiana, ao menos na França: em outros lugares, outros rituais). Por este preâmbulo e estas ilustrações concretas, (piero assinalar que você e eu já somos sempre sujeito (1 que, enquanto tais, praticamos interruptamente os riiunis do reconhecimento ideológico, que nos garantem (lue somos de fato sujeitos concretos, individuais, incon­ fundíveis e (obviamente) insubstituíveis. O que escrevo unste momento e a leitura que vocês fazem neste mo­ mento estão entre os rituais de reconhecimento Ideológico, inclusive a “ evidência” através da qual pode impor a vocês a “ verdade” ou o “ erro” de minhas reflexões. Porém 0 reconhecimento de que somos sujeitos, ([ue funcionamos nos rituais práticos da vida cotidiana mais elementar (um aperto de mão, o fato de sermos chamados por nosso nome, o fato de saber que você

i(J Este duplo “neste momento” é mais uma prova da “eterni­ dade” da ideologia, uma vez que o intervalo de tempo que os Mopara não é levado em conta, escrevo estas linhas em 6 de abril de 69, vocês as lerão não importa quando,

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“ tem” um nome próprio, mesmo que eu o ignore, que faz com que você seja reconhecido como sujeito único etc), nos dá apenas a “ consciência” de nossa prática incessante (eterna) do reconhecimento ideológico — a consciência dele, ou seja o seu reconhecimento — mas não nos dá o conhecimento (cientifico) do mecanismo deste reconhecimento. É preciso chegar a este conhe­ cimento se queremos, falando da ideologia no seio da ideologia, esboçar um discurso que tente romper com a ideologia, pretendendo ser o início de um discurso científico (sem sujeito) acerca da ideologia. Então para representar a razão pela qual é a cate­ goria de sujeito constitutiva da ideologia a qual só exis­ te para constituir sujeitos concretos em sujeitos, utili­ zarei uma forma particular de exposição: “ concreta” o suficiente para que possa ser reconhecida, e abstrata o suficiente para que possa ser pensável e pensada, dando origem ao conhecimento. Numa primeira formulação direi: toda ideologia in­ terpela os indivíduos concretos enquanto sujeitos con­ cretos, através do funcionamento da categoria de su­ jeito. Esta formulação implica, pelo momento, na distin­ ção entre os indivíduos concretos por um lado, e sujei­ tos concretos por outro, embora o sujeito concreto só exista neste nível num fundamentado indivíduo con­ creto. Sugerimos então que a ideologia “ age” ou “ funcio­ na” de tal forma que ela “ recruta” sujeitos dentre os indivíduos (ela os recruta a todos), ou “ transforma” os indivíduos em sujeitos (ela os transforma a todos) através desta operação muito precisa que chamamos interpelação, que pode ser entendida como o tipo mais banal de interpelação policial (ou não) cotidiana: “ ei, você aí!” ,^'^

17 A interpelação, prática cotidiana, submetida a um ritual pre­ ciso, toma_uma forma bastante especial na prática policial de "interpelação”, quando se trata de interpelar "suspeitos”.

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Supondo que a cena teórica ocorre na rua, o indi­ víduo interpelado se volta. Nesse simples movimento físico de 180° ele se torna sujeito. Por que? Porque ele r(3Conheceu que a interpelação se dirigia “ certamente a nle” , e que “ certamente era ele o interpelado” (e não ou­ tro). A experiência mostra que as práticas de interpela-, ção em telecomunicações são tais, que elas jamais dei­ xam de atingir seu homem: apelo verbal, ou um assobio, 0 interpelado sempre se reconhece na interpelação. Há ((ue reconhecer que o fenômeno é estranho, não podendo Hor reduzido, apesar do grande número daqueles que tôm de que se arrependerem, a um “ sentimento de culpa” . Naturalmente, para a comodidade e clareza de ex­ posição do nosso pequeno teatro teórico, apresentamos os fatos em uma seqüência, com um antes e um depois, na forma de uma sucessão temporal. Há indivíduos (lue passeiam. De algum lugar (geralmente de suas cos­ tas) ressoa a interpelação: “ Ei, você aí!” . Um indivíduo (90% das vezes o interpelado) se volta, acreditando-suspeitando-sabendo que se trata dele, reconhecendo por­ tanto que “ certamente é ele” quem está sendo chamado. Porém na ralidade as coisas ocorrem sem sucessão al­ guma. A existência da ideologia e a interpelação dos indivíduos enquanto sujeitos são uma única e mesma coisa. Podemos acrescentar: o que aparentemente ocorre fora da ideologia (mais exatamente na rua) ocorre na realidade na ideologia. Portanto o que na realidade ocor­ re na ideologia parece ocorrer fora dela. Por isso aqueles que estão dentro da ideologia se pensam, por definição, como fora dela: é um dos efeitos da ideologia a nega­ ção prática do caráter ideológico da ideologia, pela ideo­ logia: a ideologia nunca diz: “ eu sou ideológica” . É pre­ ciso situar-se fora da ideologia, isto é, no conhecimento científico, para poder dizer: estou na ideologia (caso excepcional) ou (caso mais geral): estava na ideologia. Sabemos bem que a acusação de estar na ideologia va­ le apenas para os outros e nunca para si (a não ser que se seja verdadeiramente spinozista ou marxista, o que, quanto a este aspecto, vem a dar exatamente no

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mesmo). O que nos faz dizer que a ideologia não possui um exterior (para si mesma) mas que ao mesmo tempo ela é exterioridade (para a ciência e para a realidade). Spinoza explicou isto perfeitamente duzentos anos antes de Marx, que o praticou, sem explicá-lo detalha­ damente. Mas abandonemos esta questão, rica de conseqüêncías não apenas teóricas, mas diretamente polí­ ticas, da qual depende por exemplo toda a teoria da crí­ tica e autocrítica, regra de ouro da prática da luta de classes marxista-leninista. Portanto a ideologia interpela os indivíduos enquan­ to sujeitos. Sendo a Ideologia eterna, devemos agora su­ primir a temporalidade em que apresentamos o fun­ cionamento da ideologia e dizer; a ideologia sempre/já interpelou os indivíduos como sujeitos, o que quer di­ zer que os indivíduos foram sempre/Já interpelados pela ideologia como sujeitos, o que necessariamente nos leva a uma última formulação: os indivíduos são sempre!já sujeitos. Os indivíduos são portanto “ abs­ tratos" em relação aos sujeitos que existem desde sem­ pre, Esta formulação pode parecer um paradoxo. Que um indivíduo seja sempre/já sujeito, antes mesmo de nascer, é no entanto a mais simples realida­ de, acessível a qualquer um, sem nenhum paradoxo. <5ue os indivíduos sejam sempre “ abstratos” em rela­ ção aos sujeitos que são desde sempre, Preud já o de­ monstrou, assinalando simplesmente o ritual ideológi­ co que envolve a espera de um “nascimento", este “ fe­ liz acontecimento". Todos sabemos como e quanto é es­ perada a criança a nascer. Deixando de lado os “ senti­ mentos" isto, prosaicamente, quer dizer que as formas de ideologia familiqr/paternal/maternal/conjugal/fra­ ternal, que constituem a espera do nascimento da crian­ ça, lhe conferem antecipadamente uma série de caracte­ rísticas; ela terá o nome do seu pai, terá portanto uma identidade, e será insubstituível. Antes de nascer a crian­ ça é portanto sujeito, determinada a sê-lo através de e na configuração ideológica familiar específica na qual ele é “ esperado" após ter sido concebido. Inútil dizer que esta configuração ideológica familiar é, em sua unicidade, fortemente estruturada e que é neste estrutura

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Implacável, mais ou menos “patológica" (supondo-se que este termo tenha um sentido determinável) que o já-presente futuro-sujeito “ encontrará" o “ seu" lugar, quer dizer “ tornando-se" o sujeito sexual (menino ou menina) que ele já é. Compreende-se que esta pressão e predeterminação ideológica, todos os rituais do crescimento, da educação familiar têm alguma relação com as “ etapas pregenitais 0 genitais da sexualidade", tal como estudadas por Freud, na “ apreensão" do que ele designou, por seus efeitos, como o inconsciente. Mas deixemos também este ponto. Prossigamos. Deter-nos-emos agora na maneira pela qual os “ atores" desta encenação da interpelação e seus respectivos papéis estão refletidos na própria es­ trutura de toda ideologia. Um exemplo: A ideologia religiosa cristã. Sendo a estrutura formal de toda ideologia sempre idêntica, nos contentaremos em analisar apenas um exemplo, acessível a todos, o da ideologia religiosa; esta mesma demonstração pode ser reproduzida para a ideo­ logia moral, jurídica, política, estética, etc. Consideremos portanto a ideologia religiosa cristã. Utilizaremos uma figura de retórica e a “ faremos falar". Isto é recolheremos num discurso fictício o que ela “ diz" não apenas em seus dois Testamentos, através de Hous teólogos, em seus Sermões, mas em suas prá­ ticas, seus rituais, suas cerimônias e seus sacramentos. A ideologia cristã diz aproximadamente o seguinte. Ela diz: Dirijo-me a ti, indivíduo humano chamado Pedro (todo indivíduo é chamado por seu nome, no sentido passivo, não é nunca ele que se dá um nome), para dizer que Deus existe e que tu deves lhe prestar contas. Ela acrescenta: É Deus quem se dirige a ti pela minha voz (tendo a Escritura recolhido a Palavra de Deus, a Tradição a transmitido, a Infalibilidade Ponti­ fícia a fixado para sempre quanto às questões “ delica­

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das” ). Ela diz: Eis quem tu ás: Tu és Pedro! Eis a tua origem, tu foste criado pelo Deus de toda eternidade, embora tenha nascido em 1920 depois de Cristo! Eis o teu lugar no mundo! Eis o que tu deves fazer! Se o fizeres, observando o “ mandamento do amor” , tu serás salvo, tu Pedro, e farás parte do Glorioso Corpo do Cristo! e t c . .. Eis aí um discurso bastante conhecido e banal, mas ao mesmo tempo profundamente surpreendente. Surpreendente se considerarmos que a ideologia re­ ligiosa se dirige aos indivíduos para “ transformálos em sujeitos” , interpelando o indivíduo Pedro para fazer dele um sujeito, livre para obedecer ou desobe­ decer a este apelo, ou seja, às ordens de Deus; se ela os chama por seu nome, reconhecendo desta forma que eles são chamados sempre/já enquanto sujeitos possui­ dores de uma identidade pessoal (a ponto de o Cristo de Pascal dizer: “ É por ti que derramei esta gota de meu sangue” ); se ela os interpela de tal modo que o sujeito responde “ sim, sou eu!” ; se ela obtém o reconhe­ cimento de que o espaço por eles ocupado lhes foi por ela designado como seu no mundo como uma residên­ cia fixa: “ é verdade, eu aqui estou, operário, patrão, soldado!” neste vale de lágrimas; se ela obtém o reco­ nhecimento de um destino (a vida ou a danação eter­ nas) que depende do respeito ou do desprezo com que serão observados os “ mandamentos divinos” , a Lei tor­ nada Amor; — se tudo isso ocorre (nas conhecidas práticas dos rituais do batismo, da crisma, da comu­ nhão, da confissão e da extrema-unção, et c. . . ) devemos observar que todo este “ procedimento” , gerador de su­ jeitos religiosos cristãos, é dominado por um estranho fenômeno: só existe uma tamanha multidão de sujeitos religiosos possíveis sob a condição absoluta da existên­ cia de um Outro Sujeito Único, Absoluto, ou seja, Deus.

18 Embora saibamos que o indivíduo é sempre e antecipadamen­ te sujeito, continuamos a empregar este termo, pelo efeito de contraste que produz.

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Designaremos este novo e singular Sujeito como Sujeito com maiúscula para distingui-lo dos demais, «cm maiúscula. A interpelação dos indivíduos como sujeitos supõe II “ existência” de' üm Outro Sujeito, único, e central, em Nome do qual a ideologia religiosa interpela todos os Indivíduos como sujeitos, Tudo isto está claramente escrito no que justamente se chama a “ Escritura” : “ Naquele tempo, o Senhor-Deus (Jeová) falou a Moisés dns nuvens. E o Senhor chamou Moisés: “ Moisés!” “ Sou (certamente) eu!, disse Moisés, eu sou Moisés teu servo, fale e eu escutarei!” E o Senhor falou a Moisés, e lhe disse: “ Ew sou Aquele que É**\ Deus se define a si mesmo portanto como o Sujei­ to por excelência, aquele que é por si e para si ( “ Eu sou Aquele que é” ), e aquele que chama seu sujeito, o indi­ víduo que, pelo próprio chamado, está a ele submetido, I) indivíduo chamado Moisés. E Moisés, interpelado — chamado por seu Nome, tendo reconhecido que “ trata­ va-se certamente dele” se reconhece como sujeito, su­ jeito de Deus, sujeito submetido a Deus, sujeito pelo Sujeito e submetido ao Sujeito. A prova: ele o obedece e faz com que seu povo obedeça às ordens de Deus. Deus é portanto Sujeito, e Moisés, e os inúmeros Hiijeitos do povo de Deus, seus interlocutores-interpelados: seu espelho, seus reflexos. Os homens não foram criados à imagem de Deus? Como toda reflexão teoló­ gica o prova, embora Ele pudesse perfeitamente passar Hom..., Deus precisa dos homens, o Sujeito precisa dos Hujeitos, assim como os homens precisam de Deus, os Nujeitos precisam do Sujeito. Ou melhor: Deus precisa dos honiens, o Sujeito dos sujeitos, mesmo na temível Inversão de sua imagem neles (quando estes se deixam levar pelos excessos, quer dizer, pelo pecado), ' Ou melhor: Deus se duplica a si mesmo, e envia «eu Filho à terra, como simples sujeito “ abandonado” a si mesmo (o longo lamento do Jardim das Oliveiras

10 Cito não ao pé da letra, mas de forma resumida.

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que termina na Cruz), sujeito mas Sujeito, homem mas Deus, para realizar aquilo através do que a Redenção final se prepara, a Ressurreição do Cristo. Deus tem portanto necessidade de “tornar-se” homem, o Sujeito precisa tornar-se sujeito, como para mostrar empiricamente, de_ forma visível aos olhos, palpável às mãos (veja-se São Tomás) dos sujeitos que, se eles são sujei­ tos, submetidos ao Sujeito, o são unicamente para vol­ tar finalmente no dia do Julgamento Final ao seio do Senhor, como o Cristo, ou seja ao seio do Sujeito .2° Decifremos em linguagem teórica esta admirável ne­ cessidade de desdobramento do Sujeito em sujeitos e do Sujeito mesmo em sujeito-Sujeito. Constatamos que a estrutura de toda ideologia, ao interpelar os indivíduos enquanto sujeitos em nome de um Sujeito único e absoluto é especular, isto é, funciona como um espelho, e duplamente especular: este desdo­ bramento especular é constitutivo da ideologia e asse^ r a o seu funcionamento. O que significa que toda ideologia tem um centro, lugar único ocupado pelo Su­ jeito Absoluto, que interpela, à sua volta, a infinidade de indivíduos como sujeitos, numa dupla relação espe­ cular que submete os sujeitos ao Sujeito, dando-lhes no Sujeito, onde qualquer sujeito pode contemplar sua própria imagem (presente e futura), a garantia de que certamente trata-se deles e Dele, e de que se passando tudo em Família (a Santa Família: a Família é, por sua essência. Santa), “Deus aí reconhecerá os seus” , ou seja, aqueles que tiverem reconhecido Deus e se tiverem reco­ nhecido nele serão salvos. Resumamos o que vimos acerca da ideologia em geral. A estrutura especular duplicada da ideologia ga­ rante ao mesmo tempo: 1)

a interpelação dos “ indivíduos” como sujeitos.

20 O dogma da Trindade é a teoria mesma do desdobramento do Sujeito (o Pai) em sujeito (o Filho) e de sua relação espe­ cular (o Espírito Santo), ^

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2)

sua submissão ao Sujeito

3) 0 reconhecimento mútuo entre os sujeitos e o Hujeito, e entre os próprios sujeitos, e finalmente o re­ conhecimento de cada sujeito por si mesmo 4) a garantia absoluta de que tudo está bem asHlm, e sob a condição de que se os sujeitos reconhece­ rem o que são e se conduzirem de acordo tudo irá bem: “assim seja” . Resultado: envoltos neste quádruplo sistema de in­ terpelação, de submissão ao Sujeito, de reconhecimento universal e de garantia absoluta, os sujeitos “ cami­ nham” , eles “ caminham por si mesmos” na imensa maioria dos casos, com exceção dos “ maus sujeitos” que provocam a intervenção de um ou outro setor do aparelho (repressivo) do Estado. Mas a imensa maio­ ria dos (bons) sujeitos caminha “ por si” , isto é, entre­ gues à ideologia (cujas formas concretas se realizam nos Aparelhos ideológicos do Estado). Eles se inserem nas práticas governadas pelos rituais dos AIE. Eles “ re­ conhecem” o estado de coisas existente (das Bestehende), que “ as coisas são certamente assim e não de ou­ tro modo” , que é preciso obedecer a Deus, a sua cons­ ciência, ao padre, a de Gaulle, ao patrão, ao engenheiro, que é preciso “ amar o próximo como a si mesmo” , etc. Sua conduta concreta, material inscreve na vida a pala­ vra admirável de sua oração: “ Assim seja!” Sim, os sujeitos “ caminham por si” . Todo o misté­ rio deste efeito está contido nos dois primeiros momen­ tos do quádruplo sistema de que falamos, ou, se o pre­ ferirmos, na ambigüidade do termo sujeito. Na acepção corrente do termo, sujeito significa 1) uma subjetivi­ dade livre: um centro de iniciativas, autor e responsá­ vel por seus atos; 2) um ser subjugado, submetido a

21 Hegel é (a sua maneira) um admirável "teórico” da ideologia, enquanto "teórico” di Reconhecimento Universal, que infelizmen­ te desemboca na ideologia do Saber Absoluto. Peuerbach é um surpreendente "teórico” da relação especular, que infelizmente desemboca na ideologia da Essência Humana. Para o desenvol­ vimento de uma teoria da garantia é necessário retomar Spinoza.

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uma autoridade superior, desprovido de liberdade, a não ser a de livremente aceitar a sua submissão. Esta última conotação nos dá o sentido desta ambigüidade, que reflete o efeito que a produz: o indivíduo é interpe' lado como sujeito (livre) para livremente submeter-se às ordens do Sujeito, para aceitar, portanto (livremen­ te) sua submissão, para que ele “ realize por si mesmo” os gestos e atos de sua submissão. Os sujeitos se cons­ tituem pela sua sujeição. Por isso é que “caminham por si mesmos” . “ Assim seja!” ... Estas palavras, que expressam o efeito a ser obtido, provam que as coisas não são “ natu­ ralmente” assim ( “ naturalmente” : fora desta oração, fora da intervenção ideológica). Estas palavras provam que é preciso que assim seja, para que as coisas sejam 0 que devem ser usemos a palavra; para que a repro­ dução das relações de produção seja, nos processos de produção e de circulação, assegurada diariamente, na “ consciência” , ou seja, no comportamento dos indivíduos-sujeitos, ocupantes dos postos que a divisão socialtécnica do trabalho lhes designa na produção, na explo­ ração, na repressão, na ideologização, na prática cien­ tífica, etc. Neste mecanismo do reconhecimento espe­ cular do Sujeito e dos indivíduos interpelados como su­ jeitos, da garantia dada pelo Sujeito aos sujeitos caso estes aceitem livremente sua submissão às “ ordens” do Sujeito, como o que exatamente nos defrontamos? A realidade posta em questão neste mecanismo, a que ne­ cessariamente é desconhecida pelas formas mesmas do reconhecimento (ideologia = reconhecimento/desconhe­ cimento), é certamente em última instância, a reprodu­ ção das relações de produção e demais relações que de­ las derivam. PS. — Se estas teses esquemáticas possibilitam o esclarecimento de alguns aspectos do funcionamento da Superestrutura e de sua forma de intervenção na Infraestrutura, elas são evidentemente abstratas e deixam necessariamente em suspenso problemas importantes, acerca dos quais é necessário dizer alguma coisa: 1) O problema do processo de conjunto da reali­ zação da reprodução das relações de produção.

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Os AIE contribuem, como elementos deste processo, para esta reprodução. Mas o ponto de vista de sua sim­ ples contribuição permanece abstrata. É apenas no seio mesmo dos processos de produção e de circulação que esta reprodução é realizada. Ela é realizada pelo mecanismo deste processo, aonde se “ con­ suma” a formação dos trabalhadores, aonde lhes são designados postos, etc. É no mecanismo interno deste processo que se exerce o efeito das diferentes ideolo­ gias (sobretudo da ideologia jurídico-moral). Mesmo assim, este ponto de vista ainda permanece abstrato. Pois, numa sociedade de classes as relações de produção são relações de exploração, e portanto rela­ ções entre classes antagônicas. A reprodução das relações de produção, objetivo último da classe dominante, não pode ser assegurada por uma simples operação técnica formando e distribuindo os indivíduos pelos diferentes postos da “ divisão técnica” do trabalho. Na verdade, a não ser na ideologia da classe dominante, não existe “ divisão técnica” do trabalho: toda divisão “técnica” , toda organização “ técnica” do trabalho constitui a for­ ma e a máscara de uma divisão e de uma organização sociais (de classe) do trabalho. A reprodução das rela­ ções de produção não pode deixar de ser o empreen­ dimento de uma classe. Ela se realiza ao longo de uma luta de classes que opõe a classe dominante à classe explorada. O processo de conjunto da realização da reprodução das relações de produção permanece abstrato até que nos situemos no ponto de vista desta luta de classe. O ponto de vista da reprodução é então, em última ins­ tância, o ponto de vista da luta de classes. 2) O problema da natureza de classe das ideolo­ gias existentes numa formação social. O “ mecanismo” da ideologia em geral é uma coisa. Vimos que ele se reduzia a alguns princípios apreen­ didos em algumas palavras (tão “ pobres” como os que, segundo Marx, definem a produção em geral, ou se­ gundo Freud, o inconsciente em geral). Mesmo con­

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tendo uma verdade este mecanismo é abstrato em relação a qualquer formação ideológica real. Já expusemos a idéia de que as ideologias se reolizavam nas instituições, em seus rituais e práticas, os AIE. Vimos que é desta maneira que elas concorriam para esta forma de luta de classe, vital para a classe dominante que é a reprodução das relações de produ­ ção. Mas mesmo este ponto de vista, por mais real que seja, permanece abstrato. Com efeito, o Estado e seus Aparelhos, só têm sentido do ponto de vista da luta de classes, enquanto aparelho da luta de classes mantenedor da opressão de classe e das condições da exploração e sua reprodução. Não há a luta de classes sem classes antagônicas. Quem diz luta de classe da classe dominante diz resistência, revolta e luta de classe da classe dominada. Por isso os AIE não são a realização da ideologia em geral, ou mesmo a realização sem conflitos da ideo­ logia da classe dominante. A ideologia da classe domi­ nante não se torna dominante por graça divina, ou pela simples tomada de poder do Estado. É pelo estabele­ cimento dos AIE, aonde esta ideologia é realizada e se realiza, que ela se toma dominante. Ora, este estabele­ cimento não se dá por si só, é, ao contrário o palco de uma dura e ininterrupta luta de classes: antes de mais nada contra as antigas classes dominantes e suas posições nos antigos e novos AIE, em seguida contra a classe explorada. Mas este ponto de vista da luta de classe nos AIE permanece ainda abstrato. Com efeito, a luta de classes nos AIE é certamente um aspecto da luta de classes, por vezes importante e sintomático: por exemplo, a luta anti-religiosa do século X V III, a “crise” do AIE escolar em todos os países capitalistas hoje. Mas a luta de classes nos AIE é apenas um aspecto de uma luta de classes que ultrapassa os AIE. Certamente a ideo­ logia que uma classe no poder torna dominante em seus AIE se “ realiza” nestes AIE, mas ela os ultrapas­ sa, pois ela não se origina neles. Da mesma maneira a ideologia que uma classe dominada consegue defender 100

dentro de e contra tais AIE os ultrapassa, pois vem de outro lugar. Apenas do ponto de vista das classes, isto é, da luta de classes, pode-se dar conta das ideologias exis­ tentes numa formação social. Não é apenas a partir daí que se pode dar conta da realização da ideologia domi­ nante nos AIE e das formas da luta de classes das quais os AIE são a sede e o palco. Mas é sobretudo e também a partir daí que se pode compreender de onde provêm as Ideologias que se realizam e se confrontam nos AIE. Porque se é verdade que os AIE representam a jortnd pela qual a ideologia da classe dominante deve necessa­ riamente se realizar, e a forma com a qual a Ideologia da clas^ dominada deve necessariamente medir-se e confrontar-se, as ideolpgias não “ nascem'^ dos AIE mas das classes sociais em luta: de suas condições de exis-, tôncia, de suas práticas, de suas experiências de luta, etc.

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N O T A DO E D I T O R A “ F R E U D

E LACAN”

Louis Althusser concordou com que New Left Review reproduzisse o artigo seguinte escrito em 1964 e publicado na revista do PCP Nouvelle critique. Numa carta ao tradutor inglês (21 de fevereiro de 1969) Louis Althusser escreve: “Há um perigo de que este artigo seja mal compreendido, a menos que seja tomado pelo que então objetivamente era: uma inter­ venção filosófica instando os membros do PCF para reconhecerem a cientificidade da psicanálise, da obra de Preud e da importância da interpretação lacaniana desta. Consequentemente ele era polêmico, porque a psicanálise fôra oficialmente condenada nos anos cin­ quenta como uma “ ideologia reacionária” , a despeito de algumas modificações, esta condenação ainda domi­ nava a situação quando escrevi este artigo. Esta situação excepcional deve ser levada em conta quando o sen­ tido de minha interpretação é avaliada hoje. Althusser também advertiu os leitores ingleses de que este artigo continha teses que deveriam ser “ ou corrigidas ou ampliadas” . “ Em particular a teoria de Lacan é apresentada em termos que, a despeito de todas as precauções, tem os acentos culturalistas ao passo que a teoria de Lacan é profundamente anti-culturalista” . Por outro lado, as sugestões no fim do artigo são corretas e necessitam um tratamento bem mais amplo,

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Isto é, as discussões das formas da ideologia familiar, e 0 papel crucial que desempenham iniciando o fun­ cionamento da instância que Freud chama “ o incons­ ciente” , mas que deve ser reelaborado tão logo um me­ lhor termo for encontrado. Esta menção das formas da Ideologia familiar (a ideologia da maternldade-paternidade-conjugalidade-lnfâncla e suas interações) é crucial, por que implica na seguinte conclusão — que Lacan não pode expressar, dada a sua formação teórica — isto ó, que nenhuma teoria da psicanálise pode ser produzida sem baseá-la no materlallsmo histórico ( ” do qual a teoria das for­ mações da ideologia familiar depende, em última ins­ tância” ).

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FREUD E LACAN ^

Nota Preliminar

Digamo-lo sem rodeios; quem desejar hoje pura e simplesmente compreender a descoberta revolucionária de Freud, não apenas reconhecer a sua existência, mas também conhecer seu sentido, deve atravessar a preço de grandes esforços críticos e teóricos, o imenso espaço de preconceitos ideológicos que nos separa de Freud. Visto que não apenas a descoberta de Freud foi, como se vai ver, reduzida a disciplina que lhe são, em es­ sência, estranhas (biologia, psicologia, sociologia, filoso­ fia); não só numerosos psicanalistas (especialmente na escola americana) se fizeram cúmplices deste revisionismo; mas, o que é pior, este revisionismo mesmo objetivamente serviu á prodigiosa exploração ideológica de que a psicanálise foi objeto e vítima. Não foi sem razão que no passado (em 1948) marxistas franceses denunciaram nesta exploração uma "ideologia reacio­ nária” servindo de argumento na luta ideológica con­ tra 0 marxismo, e de meio prático de intimidação e de mistificação das consciências.

1 La Nouvelle critique n.«s 161-162 dezembro-Janeiro 1964-1865.

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Mas se pode perfeitamente hoje dizer que estes mesmos marxistas foram, a sua maneira, direta ou in­ diretamente, a primeira vítima das ideologias que de­ nunciavam: já que a confundiam com a descoberta revolucionária de Freud, aceitando assim nos fatos as posições do adversário, sujeitando-se a suas próprias condições, e reconhecendo na imagem que ele lhes im­ punha a pretensa realidade da psicanálise. Toda a his­ tória passada das relações do marxismo e da psicanálise repousa, quanto ao essencial, sobre esta confusão e esta impostura. Que tenha sido particularmente difícil escapar-lhe, nós o compreendemos primeiramente pela função desta ideologia: as idéias “ dominantes” , tendo no caso, desem­ penhado, perfeitamente, seu papel de “ dominação” impondo-se contra a vontade deles aos próprios espíritos que desejavam combatê-las. Mas o compreendemos também pela existência do revisionismo psicanalítico que tornou possível esta exploração: a queda da psica­ nálise começou de fato pela queda da psicanálise no biologismo, no psicologismo e no sociologismo. Que este revisionismo tenha podido autorizar-se do equívoco de certos conceitos de Freud, que foi coagido, como todo inventor, a pensar sua descoberta nos con­ ceitos teóricos existentes, portanto constituídos com ou­ tros fins,^ podemos também compreendê-lo (Marx não foi também forçado a pensar sua descoberta sem cer­ tos conceitos hegelianos?). Nisto nada há que possa sur­ preender um espírito um pouco informado acerca da história das ciências novas — e preocupado em definir o irredutível de uma descoberta e de seu objeto nos conceitos que a exprimiram quando de seu nascimento, e que tornados inatuais pelo progresso dos conhecimen­ tos, podem ulteriormente mascará-la. Retornar hoje a Freud impõe portanto: 1) Não apenas recusar como uma grosseira misti­ ficação a camada ideológica de sua exploração reacio­ nária; 2) Mais ainda, que se evite cair nos equívocos, mais sutis, e sustentados pelos prestígios de algumas

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disciplinas mais ou menos científicas, do revisionismo psicanalítico; 3) E que se consagre por fim a um trabalho sério de crítica histórico-teórica para identificar e definir, nos conceitos que Freud teve de empregar, a verdadeira re­ lação epistemológica existente entre estes conceitos e o conteúdo que eles pensavam. Sem este tríplice trabalho de crítica ideológica (1P e 2.0) e de elucidação epistemológica (3.°) praticamente inaugurado na França por Lacan, a descoberta de Freud ficará em sua especificidade, fora de nosso alcance. E, 0 que é muito mais grave, tomaremos por Freud justa­ mente o que é colocado ao nosso alcance, que desejamos recusar (a exploração ideológica reacionária) ou que mais ou menos inpensadamente o subscrevemos (as di­ ferentes formas do revisionismo bio-psicossociológico). Nos dois casos, continuaríamos prisioneiros, em níveis diferentes, das categorias explícitas ou implícitas da ex­ ploração ideológica e do revisionismo teórico. Os mar­ xistas, que sabem por experiência que deformações fo­ ram impostas por seus adversários ao pensamento de Marx, podem compreender que Freud tenha podido so­ frer a sua maneira o mesmo destino, e qual é a impor­ tância teórica de um autêntico “ retorno a Freud” . Admitirão então que um artigo tão curto, que se propõe a abordar um problema desta importância, se não desejam traí-lo, deve limitar-se ao essencial: situar o objeto da psicanálise, para dele fornecer uma primei­ ra definição, nos conceitos que permitem a localização, prévia indispensável a elucidação deste objeto. Deverão admitir consequentemente que se faça intervir estes conceitos tanto quanto se puder em sua forma rigorosa, como o faz toda disciplina científica, sem os enfraque­ cer num comentário de vulgarização demasiado aproximativo, nem tentar desenvolvê-los verdadeiramente nu­ ma análise que exigiria um espaço inteiramente diverso. O estudo sério de Freud e de Lacan, que qualquer um pode empreender, dará (apenas) a medida exata destes conceitos e permitirá definir os problemas em

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suspenso numa reflexão teórica já rica de resultados e promessas. L.A. Alguns amigos censuraram-me, justamente, o re­ paro por ter falado de Lacan em três linhas: ^ o ter falado demais pelo que dizia a seu respeito, e falado muito pouco pelo que concluía. Pedlram-me algumas palavras para justificar minha alusão e seu objeto. Ei-las aqui — algumas palavras onde seria necessário um livro. Na história da Razão Ocidental, os nascimentos são objeto de todos os cuidados, previsões, precauções, pre­ venções, etc. O Pró-natal ê institucional. Quando uma ciência nova nasce, o círculo de família já está pronto para o espanto, o júbilo e o batismo. Há muito tempo, que toda criança, mesmo encontrada, é reputada filha de um pai, e quando ê uma criança prodígio os pais se bateriam por ela não fosse a mãe e o respeito que lhe ê devido. No nosso mundo superlotado um lugar foi previsto para o nascimento, num lugar foi mesmo previsto para a previsão do nascimento: “ prospectiva". Que eu tenha conhecimento, durante o século X IX , duas ou três crianças nasceram, que não se esperava. Marx, Nietzsche, Preud. Filhos “naturais", no sentido que a natureza ofende os costumes, o bom direito, a mo ral e o saber-viver: natureza é a regra violada, mãe sol teira, portanto ausência de pai legal. Um filho sem pai a Razão Ocidental fá-lo pagar um preço multo caro Marx, Nietzsche, Preud tiveram que pagar a conta, algu mas vezes atroz da sobrevivência: preço contabilizado em exclusões, condenações, injúrias, misérias, fome e mortes, ou loucura. 2 Cf. Revue de renseigment philosophique, junho-Julho 1963, Philosophie et Sciences humaines p. 7 e p. 11, nota 14: Marx fundou sua teoria na rejeição do mito do “homo economlcus", Preud fundou sua teoria na rejeição do mito do “homo psychologlcus". Lacan viu e compreendeu a ruptura liberadora de Preud. Compreendeu-a no sentido pleno do termo, tomando a letra no seu rigor, e forçando-a a produzir, sem trégua nem concessões, suas próprias consequências. Ele pode, como qualquer um, errar nodetalhe, até mesmo na escolha de suas referências filosóficas: deve-se-lhe contudo o essencial.

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Falo apenas deles (poder-se-ia falar de outros mal­ ditos que viveram sua condenação a morte tia cor, nos sons ou no poema). Falo apenas deles porque estão no nascimento de ciências, ou crítica. Que Freud tenha conhecido a pobreza, a calúnia e a perseguição, que ele tenha tido a alma suficientemen­ te sólida para suportar, interpretando-as, todas as injú­ rias do século, — eis aí algo que não deixa de estar re­ lacionado com alguns dos limites e dos impasses de seu gênio. Deixemos este ponto, cujo exame, é sem dú­ vida prematuro. Consideremos simplesmente a solidão de Freud, em seu tempo. Não falo da solidão humana (teve mestres e amigos, se bem que tenha conhecido a pobreza), falo de sua solidão teórica. Porque, quando ele quis pensar, isto é, expressar sob a forma de um sistema rigoroso de conceitos abstratos, a descoberta extraordinária que ele encontrava, cada dia no encon­ tro de sua prática foi em vão que tentou procurar pre­ cedentes teóricos, pois na teoria, ele não encontrou nada. Teve que sofrer e dominar a situação teórica seguinte: ser para si próprio seu próprio pai, cohstruir com suas mãos de artesão o espaço teórico seguinte: em que si­ tuar sua descoberta, tecer com fios emprestados, to­ mados de um lado e de outro, tateando, a grade onde iria aprisionar, nas profundezas da experiência cega, o redimdante peixe do inconsciente, que os homens cha­ mam mudo, porque fala mesmo quando eles dormem. Isto quer dizer, para nos exprimirmos em termos Kantianos: Freud teve que pensar sua descoberta e sua prática em conceitos importados, emprestados a física energética, então dominante, a economia política e a biologia de seu tempo. Nenhuma herança legal atrás de si: salvo um lote de conceitos filosóficos (consciência, pré-consciente, inconsciente, etc.) talvez mais incômo­ dos do que fecundos, porque marcados por uma proble­ mática da consciência, presente até em suas restrições; nenhum fundo ligado por qualquer ancestral que seja: como únicos antecessores, escritores: Sófocles, Shakespeare, Molière, Goethe — frases, etc. Teoricamente, Freud montou sozinho seu negócio: produzindo seus conceitos próprios, seus conceitos “ domésticos", sob a

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proteção de conceitos importados, pedidos emprestados ao estado das ciências existentes, é bem necessário dizêlo, no horizonte do mundo ideológico que banhava estes conceitos. Foi assim que recebemos Freud. Longa seqüência de textos, profundos, algumas vezes claros, outras obs­ curos, muitas vezes enigmáticos e contraditórios, pro­ blemáticos, armados com conceitos dos quais muitos nos parecem, à primeira vista invalidados, não adequa­ dos e sem conteúdo, superados. Pois não duvidamos hoje da existência deste conteúdo: a prática analítica mesma, seu efeito. Resumamos portanto este objeto que é, para nós, Freud: 1) Uma prática (a cura analítica); 2) Uma téc­ nica (método de cura) que dá lugar a uma exposição abstrata, de aspecto teórico; 3) Uma teoria que está re­ lacionada a prática e a técnica. Este conjunto orgânico, prático, (1) técnico, teórico, (2) nos lembra a estrutura de toda disciplina científica. Formalmente, o que Freud nos dá possui de fato a estrutura de uma ciência. For­ malmente: porque nas dificuldades de terminologia con­ ceituai de Freud, a desproporção as vezes sensível entre seus conceitos e seu conteúdo, nos conduz a colocar a questão: neste conjunto orgânico prático-técnico-teórico, deparamo-nos com um conjunto verdadeiramente esta­ bilizado, verdadeiramente fixo no nível científico? Em outras palavras, a teoria é aí verdadeiramente teoria, no sentido científico? Não será ela aí pelo contrário simples transposição metodológica da prática (a cura?). Daí a idéia, muito freqüentemente admitida, que sob seus exteriores (devidos a uma pretensão respeitável, mas vã, no próprio Freud) a psicanálise continuaria uma simples prática dando algumas vezes resultado, mas não sempre; simples prática prolongada em técni­ ca (regras do método analítico) mas sem teoria, ao me­ nos sem verdadeira teoria: o que ela declara teoria, nada mais sendo do que os conceitos técnicos cegos, em que reflete as regras de sua prática; simples prática sem teoria... talvez então pura e simplesmente magia^l que conseguiría como toda magia, pelo efeito de seu pres­ tígio, e de seus prestígios, colocada a serviço de uma 110

necessidade ou de uma demanda sociais, que seria sua ünica razão, sua verdadeira razão. Levy-Strauss teria feito a teoria desta magia, desta prática social que seria a psicanálise, designando xamã o antepassado de Freud. Prática grávida de uma teoria em parte silenciosa? Prática orgulhosa ou envergonhada de não ser mais que a magia social dos tempos modernos? Que é então a psicanálise?

A primeira palavra de Lacan é para dizer: em prin­ cípio Freud fundou uma ciência. Uma ciência nova, que é ciência de um objeto novo: o inconsciente. Declaração rigorosa. Se a psicanálise é de fato uma ciência, porque é ciência de um objeto próprio, é tam­ bém ciência segundo a estrutura de toda ciência, pos­ suindo uma teoria e uma técnica (método) que permi­ tem o conhecimento e a transformação de seu objeto numa prática específica. Como em toda ciência autên­ tica constituída, a prática não é o absoluto da ciência, mas um momento teoricamente subordinado; o mo­ mento em que permite o conhecimento e a transforma­ ção de seu objeto numa prática específica. Como em toda ciência autêntica constituída, a prática não é o absoluto da ciência, mas um momento teoricamente su­ bordinado; 0 momento em que a teoria que se tornou método (técnica) entra em contato teórico (conheci­ mento) ou prática (a cura) com seu objeto específico (o inconsciente). Se esta tese é exata, a prática analítica (a cura) que absorve toda atenção dos intérpretes e dos filósofos ávi­ dos da intimidade do par confidencial, em que a con­ fissão doente e o segredo profissional médico trocam as promessas sagradas da intersubjectividade, não de­ tém os segredos da psicanálise: encerra apenas uma parte de sua realidade, a que existe na prática. Não de­ tém seus segredos teóricos. Se esta tese é exata, a téc­ nica, método, também não detém senão como todo mé­ todo, quer di^er, por delegação, não da prática, mas da

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teoria, os segredos da psicanálise. Só, a teoria òs detém, em si como em toda disciplina científica. Em cem lugares de sua obra, Freud diz-se teórico; comparou a psicanálise, sob a relação da cientificidade, a ciência física saída de Galileu; repetiu que a prática (a cura) e a técnica analítica (o método analítico) não eram autênticos senão porque fundados sobre uma teo­ ria científica. Freud disse e redisse que uma prática e uma técnica, mesmo fecundas, não podiam merecer o nome de científicas, a menos que uma teoria lhes desse não por simples declaração, mas por fundação rigorosa, o direito. A primeira palavra de Lacan é de considerar literal­ mente este dito. E dele tirar a conseqüência: retornar a Freud para procurar discernir e apreender nele a teoria da qual todo o resto, tanto técnica quanto prática, saiu de direito. Retornar a Freud. Porque este novo retorno às fon­ tes? Lacan não retorna a Freud como Hussel a Galileu ou a Tales, para apreender um nascimento em seu nas­ cimento — quer dizer, para realizar este preconceito filosófico religioso da pureza, que como toda a água que brota a luz, só é pura, no puro instante de seu nas­ cimento, na pura passagem da não-ciência a ciência. Para ele, esta passagem não é pura, é ainda impura: a pureza vem após esta passagem: ela não está na passa­ gem ainda “ turva’' (o invisível vaso de seu passado, suspenso na água nascente, que simula a transparência, quer dizer a inocência). Retorno a Freud quer dizer: retorno a teoria bem estabelecida, bem fixada em Freud mesmo, a teoria madura, refletida, entroncada, verifi­ cada, a teoria bastante avançada e instalada na vida (inclusive na vida prática) para aí ter construído seu habitat, produzido seu método, e engendrado sua prá­ tica. O retorno a Freud não é um retorno ao nascimen­ to de Freud: mas um retorno à sua maturidade. A juven­ tude de Freud, esta passagem comovente de não-aindaciência, a ciência (o período das relações com Charcot, Bernheim, Breur, até os Estudos sobre a histeria — 1895) pode nos interessar, certamente, mas por uma 112

razão inteiraínente diversa: a título de um e:jiemplo de arqueologia de uma ciência — ou como índice negativo de não maturidade, então para bem datar a maturidade mesma e sua chegada. A juventude de uma ciência é sua idade madura: antes desta idade, ela é velha, tendo a idade dos preconceitos de que ela vive, como uma crian­ ça vive com os preconceitos, e portanto com a idade de seus pais. Que uma teoria jovem, portanto madura, possa re­ cair na infância, quer dizer nos preconceitos de seus antepassados e de sua descendência: toda a história da psicanálise o prova. Aí está o sentido profundo do re­ torno a Freud, proclamado por Lacan. Temos que retor­ nar a Freud; para retornar a maturidade da teoria freu­ diana, não a sua infância mas a sua idade madura, que é sua verdadeira juventude — temos que retornar a Freud para além do infantilismo teórico, a recaida na infância, onde toda uma parte da psicanálise contem­ porânea, antes de tudo americana, saboreia as vanta­ gens de seus abandonos. Esta recaída na infância traz um nome, que os fenomenólogos compreenderão imediatamente; psicologismo, — ou um outro nome que os marxistas de ime­ diato compreenderão: pragmatismo. A história moder­ na da psicanálise ilustra o juízo de Lacan. A Razão Oci­ dental (razão jurídica, religiosa, moral e política tanto quanto científica) só consentiu de fato, depois de anos de desconhecimento, desprezo e injúrias — meios aliás sempre disponíveis em caso de insucesso — em con­ cluir um pacto de coexistência pacífica, apenas com a condição de anexá-la às suas próprias ciências e seus próprios mitos: a psicologia, que seja ela behaviorista (Dalbiez) ou fenomenológica (Merleau-Ponty) ou exis­ tencialista (Sartre); a bioneurologia, mais ou menos jacksoniana (E y) a “ sociologia” de tipo “ culturalista” ou “ antropológica” (doihinante nos E.U.A.: Kardiner, M. Mead, etc.) e a filosofia (cf. a “ psicanálise existen­ cial” de Sartre, a Daseinalyse” de Biswanger etc. A es­ tas confusões, a esta mistificação da psicanálise, disci­ plina reconhecida oficialmente, a preço de aliançascompromissos selados com linhagens imaginárias de

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adoção mas de realíssimos poderes, psicanalistas subs­ crevem, muito felizes de sair por fim de seu ghetto teó­ rico, de serem “ reconhecidos” como “ membros” de ple­ no direito da grande família da psicologia, da neurolo­ gia, da psiquiatria, da medicina, da sociologia, da an­ tropologia, da filosofia — por demais felizes de acres­ centar sobre seu sucesso prático a caução deste reco­ nhecimento “ teórico” que lhes conferia enfim, depois de décadas de injúrias e de exílio, direito de cidade no mundo: o da ciência, da medicina e a filosofia. Não se precaveram contra o aspecto suspeito deste acordo, crendo que o mundo se rendia às suas razões — quando eles mesmos se rendiam, sob as honras às razões deste mundo — preferindo suas honras às suas injúrias. Com isso, esqueciam que uma ciência só existe como tal se pode, de pleno direito, pretender ter a propriedade de um objeto próprio — que seja o seu e seja apenas seu — e não a porção conveniente de um objeto em­ prestado, concedido, abandonado por uma outra ciên­ cia, a um de seus “ aspectos” , de seus restos que se pode sempre... acomodar nas cozinhas a sua maneira, uma vez que não interesse mais ao patrão. De fato, se o con­ junto da psicanálise se reduz ao “ condicionamento” behaviorista ou pavloviano da primeira infância; se ele se reduz a uma dialética dos estágios descritos por Freud sob a terminologia do oral, do anal, e do genital, da latência e da puberdade; se ele se reduz por fim à experiência originária da luta hegeliana, do para outrem fenomenológico, ou de “ abertura” do seu heideggeniana; se toda a psicanálise nada mais é do que esta arte de acomodar os restos da neurologia, da biologia, da psi­ cologia, da antropologia, e da filosofia, que lhe cabe então de específico como objeto, que a distingue verda­ deiramente destas disciplinas e faça dela uma discipli­ na de pleno direito

3 As tentações mais ameaçadoras são representadas pela filoso­ fia (que reduz de boa vontade toda a psicanálise à experiência dual da cura, e aí encontra com que “verificar” os temas da intersubjetividade fenomenológica, da existêncla-projeto, ou mais geralmente do personalismo); pela psicologia, que anexa, como

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É neste ponto que iritervém Lacan: para defender, contra estas “ reduções” e desvios que dominam hoje uma grande parte das interpretações teóricas da aná­ lise, sua irredutibilidade, que nada mais é do que a irredutibilidade de seu objeto. Que seja necessário para esta defesa, uma lucidez e uma segurança fora do comum, aptos a rechaçar to­ dos os assaltos da hospitalidade devoradora das disci­ plinas enumeradas, não pode duvidar, quem tiver, uma vez na vida, medido a necessidade de segurança (teó­ rica, moral, social, econômica) quer dizer a intranqui­ lidade das corporações ameaçadas no seu equilíbrio e conforto pelo aparecimento de uma disciplina singular, que força cada um a interrogar-se, não apenas sobre sua disciplina, mas sobre suas razões de nela acreditar, quer dizer de duvidar dela; pelo aparecimento de uma ciência que, por pouco que nela se acredite, ameaça derrubar as fronteiras existentes, portanto modificar o status-quo de várias disciplinas. Daí a paixão contida, a contenção apaixonada da linguagem de Lacan, que só pode viver e sobreviver em estado de alerta de preven­ ção: linguagem de um homem previamente cercado, e condenado pela força esmagadora das estruturas e das corporações ameaçadas, a antecipar seus golpes, a simu­ lar ao menos de os dar antes de os ter recebido, desen­ corajando assim o adversário de o esmagar sob os seus. Daí também, este recurso, muitas vezes paradoxal, à

tantos atributos de um sujeito, que manifestamente, não cons­ titui problema para ela, a maioria das categorias da psicanálise; pela sociologia por fim, que, vindo em socorro da psicologia, fornece com que dar ao “princípio de realidade” seu conteúdo objetivo (os imperativos sociais e familiares) que o “sujeito” tem apenas que “interiorizar” para ficar armado de um “superego” e das categorias correspondentes. Submetida assim à psicologia ou à sociologia, a psicanálise se reduz no mais das vezes a uma técnica de readaptação "emocional” ou “afetiva”, a uma reeducação de função “relacionai” que nada tem a ver com seu objeto real, — mas que respondem infelizmente a uma forte demanda, e que mais ainda é, muito orientada no mtmdo con­ temporâneo. É por este desvio, que a psicanálise tornou-se um objeto de consumo corrente na cultura, quer dizer, na ideologia moderna.

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caução de filosofias inteiramente estranhas a sua em­ presa científica. (Hegel, Heidegger), como a outras tan­ tas testemunhas de intimidação, lançadas no rosto de alguns para os forçar ao respeito; como a outras tantas testemunhas de uma objetividade possível, aliada natu­ ral de seu pensamento, para tranquilizar ou ensinar os outros. Que este recurso tenha sido quase indispensá­ vel para sustentar um discurso dirigido de dentro ape­ nas aos médicos — seria necessário ignorar, tanto a fraqueza conceituai dos estudos médicos em geral, quan­ to a profunda necessidade de teoria dos melhores mé­ dicos para condená-lo sem apelo. E já que estou tra­ tando de sua linguagem, que constitui para alguns todo o prestígio de Lacan (Gongora da psicanálise. Grande Dragão, grande oficiante de um culto esotérico onde o gesto, o mutismo e a compunção, podem compor o ri­ tual tanto de uma comunicação real — quanto de uma fascinação muito “ parisiense” — e para outros (sábios ou filósofos em primeiro lugar) seu “ artifício” , sua es­ tranheza e seu “ esoterismo” , pode-se ver que ele não existe sem relação com as condições de seu exercício pedagógico; tendo que ensinar a teoria do inconsciente a médicos, analistas ou analisados, Lacan lhes dá, na retórica de sua palavra, o equivalente em mímica da linguagem do inconsciente, que é como todos sabem, em última instância, “ Witz” , “ calembour” , metáfora, falha­ da ou conseguida: o equivalente da experiência vivida na sua prática quer seja de analista ou de analisado. Basta compreender as condições ideológicas e peda­ gógicas desta linguagem — quer dizer, tomar frente a sua “ interioridade” pedagógica a distância da “ exterioridade” histórica e teórica, para discernir seu sentido e seu alcance objetivos — e reconhecer seu propósito fundamental: dar à descoberta de Freud conceitos teó­ ricos^ a sua medida, definindo tão rigorosamente quanto possível, hoje, o inconsciente, e suas leis que constituem todo seu objeto.

n Qual é o objeto da psicanálise? Isto com que a téc­ nica analítica se ocupa na prática analítica da cura,

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(juor dizer: não a própria cura, não esta situação prelansamente dual em que a primeira fenomenologia ou rnoral que aparece encontra com que satisfazer sua iincessidade — somar os “ efeitos” , prolongados no adullo sobrevivente, da extraordinária aventura que, do nas­ cimento à liquidação do Édipo, transforma um pequeno milmal engendrado por um homem e uma mulher, numa pequena criança humana. Um dos “ efeitos” do tornar-se humano do pequeno «(ir biológico saído do parto humano: eis aí, em seu lugar, o objeto da psicanálise que carrega o simples nome de inconsciente. Que este pequeno ser biológico sobreviva, e em lu­ gar de sobreviver criança dos bosques tornada cria de lobo ou de ursos (eram mostrados nas cortes princi­ pescas do século X V III), sobreviva criança humana (ten­ do escapado a todas as mortes da infância, tantas das (luais são mortes humanas, mortes sancionando o fra­ casso do devenir-humano), tal é a prova que todos os liomens, adultos, superaram: são, para sempre amnésicos, as testemunhas, e muitas vezes as vítimas desta vitória, trazendo no mais secreto, no mais gritante de si mesmos, as feridas, enfermidades e marcas deste combate para a vida e a morte humanos. Alguns, a maio­ ria, sairam mais ou menos indenes — ou ao menos es­ forçam-se, a alta voz, por fazê-lo saber a todos — ; mui­ tos destes antigos combatentes ficam marcados para toda a vida; alguns morrerão, um pouco mais tarde, de­ vido ao combate, as velhas feridas subitamente reaber­ tas na explosão psicótica, na loucura, a última compul­ são de uma “ reação terapêutica negativa” ; outros mais numerosos, o mais “ normalmente” do mundo, sob os disfarces de uma falha “ orgânica” . A humanidade ins­ creve apenas seus mortos oficiais nos memoriais de suas guerras: os que souberam morrer a tempo, quer dizer tarde, homens, em guerras humanas, onde só se rasgam e sacrificam lobos e deuses humanos. A psica­ nálise, ocupa-se nos seus sobreviventes apenas, de ou­ tra luta, da única guerra sem memória nem memoriais, que a humanidade finge nunca ter realizado, a que ela

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pensa sempre ter ganho previamente, pura e simples­ mente porque só consiste em tê-la sobrevivido, de viver e ser gerado como cultura na cultura humana: guerra que, a cada instante, se desenrola em cada um de seus rebentos, que, projetados, abandonados, rejeitados, cada um para si, na solidão e contra a morte, têm que per­ correr a longa marcha forçada, que de larvas mamí­ feras, faz crianças humanas, sujeitos. Que neste objeto os biólogos não encontrem sua parte: certamente, esta história não é biológica! já que ela está inteiramente dominada, desde o começo, pela coerção forçada da ordem humana, que cada mãe grave, sob “ amor'’ ou ódio materno, desde seu ritmo alimentar e adestramento, no pequeno animal humano sexuado. Que a história, a sociologia, ou antropologia não encon­ trem nela parte, nada de espantoso! já que elas têm a ver com a sociedade, portanto a cultura, quer dizer, ao que já não é mais o pequeno animal — que só se torna humano por ter atravessado este espaço infinito que separa a vida do humano, o biológico do histórico, a “ natureza” da “ cultura” . Que a psicologia aí se perca, nada de estranho! já que ela pensa tratar, no seu “ obje­ to” , com alguma “ natureza” ou “ não natureza” humana, com a gênese deste existente identificado e registrado sob os controles mesmos da cultura (do humano) — quando o objeto da psicanálise é a questão prévia abso­ luta, o nascer ou não, o abismo aleatório do humano mesmo em cada rebento humano. Que a “filosofia” aí perca suas referências e apoios, certo! já que estas sin­ gulares origens lhe escondem as únicas origens as quais ela presta homenagem de seu ser: Deus, a razão, a cons­ ciência, a história e a cultura. Desconfiar-se-á que o objeto da psicanálise possa ser específico, e que a mo­ dalidade de sua matéria, como a especificidade de seus “ mecanismos” (para retomar uma palavra de Freud) sejam de uma ordem inteiramente diversa da matéria ou os “ mecanismos” de que o biólogo, o neurologista, o antropólogo, o sociólogo, o psicólogo e o filósofo têm para conhecer.^Basta reconhecer esta especificidade, por­ tanto a distinção de objeto que a funda, para reconhecer para a psicanálise um direito radical à especificidade

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ilo seus conceitos, ajustados à especificidade de seu obJnto: o inconsciente e seus efeitos.

III Lacan não contestaria que, sem o surgimento de uma nova ciência: a linguística, sua tentativa de teorização Inrla sido impossível. Assim marcha a história das ciên­ cias, onde uma ciência só se torna tal muitas vezes pelo rocurso e o intermédio de outras ciências, não apenas (Ias ciêni3ias-existihíèâ::quando_4 e seu batismo, mas tam- bdm de tal ciência nova, chegada em atrazo que tem ne-_ cesfeídade^e tempo para nascer. Õ opaco provisório da Hombra projétãd^sbbre a ieoria freudiana pelo mode­ lo da física energética dé Hélniòlfz e Maxwell, encon- tra-se hoje esclarecido-pela claridade que a linguística estrutural láriça sóbré o seu objeto, permitindo um acesso—inteligível a este objeto. Freud já dissera-quetudo dependia^jã.Jinguagem,v^LacánTn’e c ís a r 'd j^ do iiTcbhsciente está estruturado cqmp uma-linguagem” . Na sua primeira grande ghm.A.Íiênçio^ ã^s Sonhos, que não é anedótica ou superficial como muitas vezes se acredita, mas fundamental, Freud estudara seus “ me­ canismos” ou “ leis” reduzindo suas variantes a duas: o deslocamento condensação. Lacan aí reconheceu duãs~“fíguras ^essenHais designadas pela linguística: a metonímia e a metáfora. Por aí, o lapso, o ato falho, a piada e o sintoma, tornavam-se como que elenientos do próprio sonho: Sionificantes.. inscritos na cadeia de um discurso inconscíenteTdbbrando em silêncio, quer dizer, com voz ensurdecedora, no desconhecimento do “ recalcamento” , a cadeia do discurso verbal do sujeito huma­ no. Por aí, éramos introduzidos no paradoxo, formal­ mente familiar a linguística de um discurso duplo e uno, inconsciente e verbal, só tendo por campo duplo um campo único sem coisa alguma, além de si próprio: o campo da “ Cadeia significante” . Por aí, as mais impor­ tantes aquisições de Saussure e da linguística que dela proveio, entravam de pleno direito na inteligência do processo tanto do discurso do inconsciente^ quanto do discurso verbal do sujeito, e de sua relação, quer di­ zer, de sua não relação idêntica a sua relação, em suma

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d© sua reduplicação e de sua decalagem. Por aí, as inter* pretações filosóficas-idealistas do inconsciente como segunda consciência, do inconsciente como má fé (Sartre), do inconsciente como sobrevivência cancerosa de uma estrutura inatural ou non-sens (Merleau-Ponty) to­ das as interpretações do inconsciente como “ id” biológico-arquetípico (Jung) tornaram-se o que eram: não um começo de teoria, mas “ teorias” nulas, mal entendi­ dos ideológicos. Ficavam por definir (sou obrigado ao pior esquematismo, mas como escapar a ele em algumas linhas?) o sentido deste primado da estrutura formal da lingua­ gem, e de seus mecanismos encontrados na prática da interpretação analítica, em função mesmo do funda­ mento desta prática: seu objeto, quer dizer, os “ efeitos” atuais nos sobreviventes, da “ hominização” forçada do pequeno animal humano em homem ou mulher. Não basta para responder a esta questão, invocar simples­ mente o primado de fato da linguagem na cura, que é o único objeto e meio da prática analítica. Tudo o que a,dvém na cura se desenrola de fato na linguagem e pela linguagem (inclusive o silêncio, seus ritmos, suas escansões). Mas é necessário mostrar legitimamente por­ que e C07720 o papel de fato da linguagem na cura, simul­ taneamente matéria prima da prática analítica e meio de produção de seus efeitos (a passagem como diz Lacan de uma “ palavra vazia” a uma “palavra plena” ) só é fundado de fato na prática analítica, porque ela está fundada de direito, em seu objeto, que funda em última instância esta prática e sua técnica: portanto, já que existe ciência, na teoria de seu objeto. Está aí, sem dúvida, a parte mais original da obra de Lacan: sua descoberta. Esta passagem da existência (no limite puramente) biológica, para a existência hu­ mana (filho de homem), Lacan mostrou que ela se operava sob a Lei da Ordem, que eu chamaria Lei da Cultura, e que esta Lei da Ordem se confundia na sua essência formal com a ordem da linguagem. Que com­ preender por esta fórmula, à primeira vista enigmática? Primeiramente que a totalidade desta passagem só pode ser apreendida sob as modalidades de uma linguagem 120

rooorrente, senão designada pela linguagem do adulto iMi da criança en^ situação de cura, designada, marcada, localizada, sob a lei da linguagem, em que se fixa e dá Ioda a ordem humana, portanto todo papel humano. Em nnKUida que, nesta determinação pela linguagem da cura, transparece a presença atual, perpetuada, da efinAola absoluta da ordem na passagem mesmo, da Lei da Cultura no devir humano. Para indicá-lo, em algumas palavras muito breves, marquemos para este fim os dois grandes momentos íloHta passagem, 1) O momento da relação dual préndlplana, em que a criança só se deparando com um nll;er-ego, a mãe que escande a vida com sua presença (da!) e com a sua ausência (fort)^ vive esta relação diial sob a forma da fascinação imaginária do ego, sen­ do ela própria este outro, tal, outro, qualquer outro, to­ dos os outros da identificação narcísica primária, sem poder jamais tomar frente ao outro ou a si mesmo na distância objetivante do terceiro; 2) O momento do ifldlpo, onde uma estrutura ternária surge sobre o fun­ do de uma estrutura dual, quando o terceiro (o pai) se mistura como intruso na satisfação imaginária da fasci­ nação dual, transforma sua economia, rompe suas fas­ cinações, e introduz a criança no que Freud chama a ( )rdem Simbólica, a da linguagem objetivante, que lhe permitirá por fim dizer: eu, tu, ele ou ela, que permi­ tirá portanto ao pequeno ser situar-se como criança humana num mundo de terceiros adultos. Dois grandes momentos portanto; 1) O do imagi­ nário (pré-edipiano); 2) O do simbólico (o complexo (lo Édipo resolvido) ou, para falar aqui uma linguagem diferente, o de objetividade reconhecida no seu uso (simbólico) mas não ainda conhecida (o conhecimento da objetividade dizendo respeito a uma “ idade” inter-

4 São duas expressões da língua alemã, tornadas célebres por l''roud — pelas quais uma criancinha que ele observava sanciouiiva o aparecimento e o desaparecimento de sua mãe, na ma­ nipulação de um objeto qualquer que a "figurava”. No caso uma bobina.

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namente diversa e também a uma prática totalmente diferente.

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E eis aqui o ponto capital, que Lacan esclareceu: estes dois momentos são dominados, governados e mar­ cados por uma única Lei, a do Simbólico. O próprio momento do imaginário, que se acaba de apresentar algumas linhas acima, para ser mais claro, como pre­ cedendo o simbólico, como distinto dele — portanto o primeiro momento em que a criança vive sua relação imediata com um ser humano (mãe) sem a reconhecer praticamente como a relação simbólica que ela é (quer dizer como a relação uma pequena criança humana com uma mãe humana) — , está marcada e estruturada em sua dialética pela dialética mesma da Ordem Simbó­ lica, isto é, da Ordem humana, da norma humana (as normas dos ritmos temporais da alimentação, da hi­ giene, dos comportamentos, das atitudes concretas do reconhecimento, — a aceitação, a recusa, o sim ou o não para a criança, sendo apenas uma pormenorização, as modalidades empíricas da Ordem constituinte. Or­ dem da Lei e do Direito de determinação atributiva ou excludente) sob a forma mesma da Ordem do significante, isto é, sob a forma de uma Ordem formalmente idêntica à ordem da linguagem.® No lugar em que uma leitura superficial ou orien­ tada de Freud só via a infância feliz e sem leis, o pa­ raíso da “ perversidade polimórfica” , uma espécie de natureza escandida apenas por estágios de aspecto bio­ lógico, ligados a primazia funcional de tal parte do

5 Formalmente. Porque a Lei da Cultura, qual a linguagem cons­ titui a forma e o acesso primeiros, não se esgota na linguagem: tem como conteúdo as estruturas do parentesco reais, e as for­ mações ideológicas determinadas nas quais os personagens ins­ critos nestas estruturas vivem sua função. Não basta saber que a família ocidental é patriarcal e exogâmica (estrutura do pa­ rentesco), — é necessário também elucidar as formações ideo­ lógicas que governam a conjugalidade, a paternidade, a mater­ nidade e a infância; que à "ser esposo", "ser pai", "ser mãe", "ser criança" no mesmo mundo presente? Sobre estas formações ideológicas específicas, todo um trabalho de pesquisa está ainda para se realizar.

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corpo humano, lugares de necessidades “ vitais” (oral, anal, genital) Lacan mostra a eficácia da Ordem da Lei e do Direito que espreita desde antes de seu nas­ cimento o pequeno homem que vai nascer, e toma conta dele desde seu primeiro grito, para lhe determinar seu lugar e seu papel, portanto seu destino forçado. Todas as etapas ultrapassadas pelo pequeno homem o são sob o reino da Lei, do código de atribuição, de comunica­ ção e de não-comunicação humanas; suas “ satisfa­ ções” trazem em si a marca indelével e constituinte da Lei, da pretensão da Lei humana, que como toda lei não é “ ignorada” por ninguém, sobretudo por seus igno­ rantes, mas pode ser desvirtuada ou violada por qual­ quer um, sobretudo por seus puros fiéis. É porque, toda redução dos traumatismos infantis apenas a cate­ goria das “ frustações biológicas” está falseada em seu princípio, já que a Lei que as concerne, faz, como Lei, abstração de todos os conteúdos, só existe e só age como Lei apenas por e dentro desta abstração e que o peque­ no homem sofre e recebe esta regra com seu primeiro sopro ®b'®. Por aí começa, desde sempre já começou

6 Uma certa neurobiologia e uma certa psicologia foram muito hábeis no descobrir em Freud uma teoria dos “estágios” que elas sem lutar direta e exaustivamente traduziram numa teoria de 'maturação por estágios” seja neuro-biológica, seja bio-neuro psicológica — concedendo mecanicamente a maturação neurobiológica o papel de uma “essência” da qual os estágios freudia­ nos seriam apenas o puro e simples “fenômeno”. Perspectiva que nada mais é do que uma reedição do velho paralelismo mecanicista. 6 bis Arriscaríamos desconhecer o alcance teórico desta condição formal, se lhe opuséssemos a aparência biológica dos conceitos (libido, afetos, pulsões, desejo) nos quais Freud pensa o “con­ teúdo” do inconsciente. Assim quando ele diz que o sonho é o “pleno-do-desejo” (Wunscherfullung). E no mesmo sentido que Lacan deseja reconduzir o homem à “linguagem de seu desejo” inconsciente. É entretanto a partir desta condição formal que estes conceitos (aparentemente biológicos) tomam seu sentido autêntico, que este sentido pode ser determinado e pensado e que uma técnica de certo pode ser definida e aplicada. O desejo, categoria fundamental do Inconsciente, só é inteligível em sua especificidade, como sentido singular do discurso do inconsciênte do sujeito humano: o sentido que surge no “jogo” da cadeia

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mesmo sem nenhum pai vivo, o que é a presença em ato do Pai (que é Lei) portanto da Ordem do significante humano, quer dizer, da Lei da Cultura: este discurso, condição absoluta de todo discurso presente do alto, quer dizer, ausente em seu abismo, em todo discurso verbal, o discurso desta Ordem, este discurso do Outro, do grande Terceiro, que é esta Ordem mesma: o dzscurso do inconsciente. Por aí, nos é dada uma aborda­ gem conceituai, sobre o inconsciente, que é, em cada ser humano, o lugar absoluto em que seu discurso sin­ gular procura seu próprio lugar, procura, falha, e, ao falhar, encontra seu próprio lugar, na imposição, na impostura, na cumplicidade e na denegação de suas pró­ prias fascinações imaginárias. Que no Édipo a criança sexuada se torne criança humana sexual (homem, mulher), pondo à prova do Simbólico seus fantasmas imaginários, e acabe, se tudo “ corre bem” , por tornar-se e aceitar-se o que é: menino ou menina entre adultos, tendo seus direitos de criança neste mundo de adultos, tendo, como toda criança, o

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significante da qual o discurso do inconsciente é composto. Como tal o “desejo” está marcado pela estrutura que comanda o devenir humano. Como tal, o desejo se distingue radicalmente da “necessidade” orgânica de essência biológica. Entre a necessi­ dade orgânica e o desejo inconsciente, não existe continuidade de essência, — e mais ainda não existe continuidade de essência entre a existência biológica do homem e sua existência histórica. O desejo é determinado no seu equivoco (sua ausência-de-ser diz Lacan) pela estrutura da Ordem que lhe impõe sua marca, e o condena a uma existência do recalcamento, a seus recursos como a suas decepções. Não se acede a realidade específica do desejo partindo da necessidade orgânica, assim como não se acede a realidade específica da existência histórica partindo da existência biológica do “homem”. Pelo contrário: da mesma forma que são as categorias da história que permitem definir a especificidade da existência histórica do homem, inclusive de­ terminação aparentemente puramente biológicas como suas “ne­ cessidades” ou os fenômenos demográficos, distinguindo sua existência histórica de uma existência puramente biológica — da mesma forma são as categorias essenciais do inconsciente que permitem apreender e definir o sentido mesmo do desejo, distinguindo-o das realidades biológicas que o suportam (exa­ tamente como a existência biológica suporta a existência histó­ rica mas sem constituir nem o determinar).

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pleno direito de tornar-se um dia “ como papai” quer dizer, um ser humano masculino, tendo uma mulher (e não mais apenas uma mãe), ou “ como mamãe” , quer dizer, um ser hiunano feminino tendo um esposo (e não apenas um pai) — isto é apenas o término da longa marcha forçada em direção da infância humana. Que, neste último drama, tudo se desenrole na ma­ téria de uma linguagem formada precedentemente, que, no Édipo, se centra inteiramente e se ordena em torno do insignificante falo\ insígnia do pai, insígnia do Di­ reito, insígnia da Lei, imagem fantasmática de todo Direito — eis o que pode parecer espantoso ou arbi­ trário, — mas todos os psicanalistas o atestam como um fato da experiência. A última etapa do Êdipo, a “ castração” pode nos dar uma idéia. Quando o menino vive e resolve a situa­ ção trágica e benéfica da castração, ele aceita não ter 0 mesmo Direito (falo) que seu pai, em particular de não ter o Direito do pai sobre sua mãe, que se revela então dotada do intolerável estatuto do duplo emprego, mãe para o menino, mulher para o pai; mas assumindo por não ter o mesmo direito que seu pai, ele com isto ganha a segurança de ter um dia, mais tarde, quando se tornar adulto, o direito que lhe é então recusado, por falta de “ meios” . Ele só tem um pequeno direito, que se tornará grande se ele próprio sabe tornar-se grande, tendo “ comido bem a sua sopa” . Quando, por sua vez, a menina vive e assume a situação trágica e be­ néfica da castração, aceita não ter o mesmo direito que sua mãe, aceita portanto duplamente de não ter o mes­ mo direito (falo) que seu pai, já que sua mãe não tem ausência de (falo), se bem que mulher, porque é mu­ lher, e ela aceita ao mesmo tempo não ter o mesmo direito que sua mãe, quer dizer, de não ser ainda uma mulher, como o é sua mãe. Mas ela ganha aí em com­ pensação seu pequeno direito: o de menina, e as pro­ messas de um grande direito, direito inteiro de mulher, quando ela se tornar adulta, se ela sabe crescer, acei­ tando a Lei da Ordem humana, isto é, submetendo-se a ela, se necessário para a violar — não comendo “bem” sua sopa.

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Em todos os casos, seja o momento da fascinação dual do Imaginário (1) seja o momento (Édipo) do reconhecimento vivido da inserção na Ordem simbóli­ ca (2) toda a dialética da passagem é marcada em sua essência última pelo selo da Ordem humana, do sim­ bólico, do qual a linguística nos fornece as leis formais, quer dizer o conceito formal. A teoria psicanalítica pode nos dar assim o que faz de toda ciência, não uma pura especulação, mas uma ciência: a definição da essência formal do seu objeto, condição de possibilidade de toda aplicação prática, técnica, sobre seus próprios objetos concretos. Por aí, a teoria psicanalítica escapa às antinomias idealistas clássicas formuladas por exemplo, por Politzer, quando este autor, exigindo da psicanálise (da qual ele foi o primeiro, na França, a compreender o alcance revolu­ cionário) que ela fosse uma ciência do concreto, ver­ dadeira “ psicologia concreta” , lhe reprochava suas abs­ trações: o inconsciente, o complexo de Édipo, o com­ plexo da castração, etc. Como dizia Politzer, a psicaná­ lise pode pretender ser ciência do concreto, que ela de­ seja e pode ser, se ela persiste em suas abstrações, que nada mais são do que o **concreto” alienado numa psi­ cologia abstrata e metafísica? Como alcançar o “ con­ creto, a partir de tais abstrações, do abstrato? Na ver­ dade, ciência alguma pode passar sem abstrações, mes­ mo quando não tem em sua “ prática (que não é, tenha­ mos cuidado, a prática teórica desta ciência, mas a prá­ tica de sua aplicação concreta) trata apenas destas va­ riações singulares e únicas que são os dramas indivi­ duais. Tais como Lacan os pensa em Preud — e Lacan nada mais pensa do que os conceitos de Freud, dandolhes a forma da nossa cientificidade a única cientificidade que existe — as “ abstrações” da psicanálise são de fato autênticos conceitos científicos de seu objeto, na medida em que, enquanto conceitos de seu objeto, contém nelas o índice, a medida e o fundamento da ne­ cessidade de sua abstração, quer dizer, a medida mesma de sua relação ao “ concreto” , portanto sua própria rela­ ção ao concreto de sua aplicação, comumente chamada prática analítica (a cura). 126

o Édipo não é portanto um “ sentido” oculto, ao qual só faltaria a consciência ou a palavra — o Édipo não é uma estrutura escondida no passado, que é sem­ pre possível reestruturar ou superar “ reativando seu sentido” ; o Édipo é a estrutura dramática, a máquina te a tra l imposta pela Lei da Cultura a todo candida­ to, involuntário e forçado a humanidade, uma estrutura contendo em si mesma não apenas a jpossibilidade, mas a necessidade das variações concretas nas quais ela existe, para todo indivíduo que pode chegar a seu um­ bral, vivê-lo e sobreviver a ele. A psicanálise, na sua aplicação, dita sua prática (a cura) trabalha sobre os “ efeitos” ® concretos destas variações, quer dizer, so­ bre a modalidade da modalidade específica e absoluta­ mente singular na qual a passagem do Édipo foi, é abor­ dada, ultrapassada, parcialmente não alcançada ou elu­ dida por tal ou tal indivíduo. Estas variações podem ser pensadas e conhecidas na sua essência mesma, a partir da estrutura do invariante Édipo, pela razão, pre­ cisamente, que faz com que toda esta passagem tenha sido marcada, desde seu preâmbulo da fascinação, nas suas formas mais “ aberrantes” como em suas formas mais “ normais” pela Lei desta estrutura, última forma do acesso ao Simbólico sob a Lei mesma do Simbólico. Sei que estas breves indicações não apenas parece­ rão, mas são sumárias e esquemáticas, e que numero­ sas noções, aqui invocadas ou avançadas, exigiriam lon­ gos desenvolvimentos para ser justificadas e fundadas. Mesmo esclarecidos no seu fundamento, e nas relações que elas entretêm com o conjunto das noções que as sustentam, mesmo relacionadas a letra das análises de Freud, elas colocam por sua vez problemas: não apenas

7 Expressões de Lacan ( “máquina”) retomando Freud ("ein anderes Shauspiel... Schauplatz”). De Politzer, que fala de “dra­ ma” a Preud e Lacan que falam de teatro, cena, encenação, maquinaria, gênero teatral, encenador, etc. — há toda a distância do espectador, que se toma pelo teatro — no teatro mesmo. H Se se compreende com este termo "efeito” no contexto de uma teoria clássica da causalidade, se conceberá por ele a pre­ sença atual da causa no seu efeito: (cf. Spinoza),

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problemas de formação, de definição e de esclarecimen* to conceituais, mas novos problemas reais, produzidos necessariamente pelo desenvolvimento do esforço de teorização de que acabamos de tratar. Por exemplo: co­ mo pensar rigorosamente a relação entre a estrutura formal da linguagem, condição de possibilidade abso­ luta da existência e da inteligência do inconsciente de um lado, as estruturas concretas do parentesco de ou­ tro lado, e por fim, as formações concretas ideológicas nas quais são vividas as funções específicas (paterni­ dade, maternidade, infância) implicadas nas estruturas de parentesco? Pode-se conceber que a variação histó­ rica destas últimas estruturas (parentesco, ideologia) possa afetar sensivelmente tal ou qual aspecto das ins­ tâncias isoladas por Freud? Outra questão: em que me­ dida a descoberta de Freud, pensada em sua racionali­ dade, pode, pela simples definição de seu objeto, e de seu lugar, repercutir sobre as disciplinas das quais elas se distinguem (tal como a psicologia, a psico-sociologia, a sociologia) e provocar nelas questões sobre o estatuto (algumas vezes problemáticas) de seu objeto? última questão por fim, entre tantas outras: quais são as rela­ ções existentes entre a teoria analítica e: l.° suas condi­ ções de aparecimento histórico de um lado; 2P suas condições sociais de aplicação doutro lado? 1.0 Quem era portanto Freud, para ter podido, ao mesmo tempo fundar a teoria analítica, e inaugurar, como analista n.o 1, auto analisado, Pai originário, a longa filiação dos práticos que se reclamam dele? 2.0 Quem são portanto os psicanalistas para acei­ tar ao mesmo tempo (com a maior naturalidade do mundo) a teoria freudiana, a tradição didática ligada a Freud, e as condições econômicas e sociais (o estatuto social de suas “ sociedades” estreitamente preso ao es­ tatuto de corporação médica) na qual eles exercem? Em que medida as origens históricas e as condições econômico-sociais do exercício da psicanálise, reper­ cutem sobre a teoria e a técnica analítiça? Em que me­ dida sobretudo, já que tal é o estado dos fatos, o silên­ cio teórico dos psicanalistas sobre estes problemas, o recalcamento teórico que atinge estes problemas no

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mundo analítico, afetam a teoria e a técnica analíticas no seu conteúdo mesmo? A eterna questão do “ fim da análise” não está, entre outras, relacionada com este recalcamento, isto é, com o não pensado destes proble­ mas, que dizem respeito a uma história epistemólógica da psicanálise e de uma história social (e ideológica) do mundo analítico? Outros problemas reais verdadeiramente abertos, que constituem desde já outros tantos campos de pes­ quisa. Não é impossível que certas noções saiam, num futuro próximo, transformadas desta prova. Uma prova deste tipo, se vamos ao fundo da ques­ tão, é a que Freud submeteu, no seu domínio, uma certa imagem tradicional, jurídica, moral e filosófica, quer dizer, definitivamente ideológica, do “homem” , do “su­ jeito” humano. Não foi em vão que Freud comparou a repercussão crítica de suas descobertas à comoção da revolução coperniciana. Desde Copérnico, sabemos que a terra não é o “ centro” do universo. Desde Marx, sa­ bemos que o sujeito humano, o ego econômico, político ou filosófico, não é o “ centro” da história — sabemos mesmo contra os Filósofos das Luzes, e contra Hegel, que a história não tem “ centro” mas possui uma estru­ tura que só tem “centro” necessário no desconhecimen­ to ideológico. Freud nos descobre por sua vez, que o sujeito real, o indivíduo na sua essência singular, não tem a figura de um ego, centrado sobre o “ eu” , na “ cons­ ciência” ou na “ existência” — quer seja a existência do “para-si” , do corpo próprio, ou do “ comportamento” — que o sujeito humano é decentrado, constituído por uma estrutura que ela também só tem “ centro” no des­ conhecimento imaginário do “ eu” , quer dizer, nas for­ mações ideológicas em que ele se “ reconhece” . Por aí, ter-se-á notado, nos é sem dúvida uma das vias pelas quais chegaremos talvez um dia a uma me­ lhor inteligência desta estrutura do desconhecimento que interessa em primeiro lugar a toda pesquisa sobre ji ideologia.® 9 Nota Bibliográfica de Estudos: O acesso à obra de Lacan, pode ser abordada, para facilitar seu acesso na ordem seguinte:

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1 — Les complexes familiaux en Pathologie, Encyclopédie Prançaise, de Monzie, vol. 8. La vie mentale; 2 — La causalité psychique, Evolutlon Psychiatrique fac. I, 1947; 3 — Le stade du miroir comme formateur de la fonction du c£. Écrits, Paris, 1966, pp. 93-100; 4 — La chose freudienne, Écrits, pp. 401-36; 5 — Les formations de Tinconscient, Seminário 1956-1957, Bulletin de Psychologie (tradução espanhola, Nuena Visión, Bue­ nos Aires); 6 — Les relations d'objet et les structures freudiennes. Seminá­ rio 1958-59, Bulletin de psychologie, janeiro 1960;

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7 — Le désir et son interpretation Seminário 1958-59, Bulletin de psychologie, janeiro 1960; 8 — Fonction et champ de la parole et du language, en psychanalyse, Écrits, pp. 237-322 (Tradução espanhola em Lacan, Escritos, Ed. siglo veinteuno). Remarque sur le rapport de Daniel Lagache: “Psychanalyse et structure de la personalité”, Écrits, pp. 64-84; “La direction de la cure et les principes de son pouvoir”, Écrits, pp. 585-646; L ’ihstance de la lettre dans Tinconscient ou la raison depuis Preud, Écrits, pp. 492-528; e outros estudos dos seis números da revista La psychanalyse, P.U.P. — entre os quais o n.° 6 sobre as psicoses;

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9 — Entre os textos publicados pelos discípulos de Lacan ou influências pelo seu ensino aconselharemos em primeira instância os artigos de S. Laclaire em La Psychanalyse; o artigo de S. Laclaire e J. Laplanche sobre o inconsciente (Tempos modernos, julho 1961) os artigos de J. B. Lefebvre — Pontalis sobre “Preud aujourd’hui” (Temps modernes n.°s 124, 125, 126 — 1965). A obra de J. Laplanche sobre “Holderlin et la question du père (P U F ); O livro de Maud Manononi sobre “L'enfant arrière et sa mère (Seuli). 10 Nota do tradutor: Após o artigo de Althusser Lacan publicou a transcrição dos Seminários 11, 1 e: Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, Les écrits tecniques de Preud e Encore. Mais 18 volumes estão anunciados por Seuil). Além disto a Tese de Lacan: La psychose paranoiaque dans ses rapports avec la personnalité junto aos primeiros escritos sobre a paranóia foi também publicada por Seuil, sem contarmos os 7 números da Revista Scilicet publicada pela Escola Freudiana de Paris. Os escritos contam com uma edição integral em italiano (Einaudi), parcial em espanhol além de edições em alemão e inglês, A Perspectiva anuncia uma edição em Português.

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M A R X IS M O E L U T A D E C L A S S E S

Traduzido por M a n o e l B arros i>a M o t t a

M A R X IS M O E L U T A D E C L A S S E S

Que me permitam, para apresentar a nova edição do pequeno manual de Martha Harnecker, de lembrar uma idéia muito simples. É uma idéia simples: mas suas conseqüências teó­ ricas e políticas são importantes. Eis aqui esta idéia: toda a teoria de Marx, quer dizer, a ciência fundada por Marx (o materialismo his­ tórico) e a filosofia aberta por Marx (o materialismo dialético) tem como centro e coração a luta de classes. A luta de classes é portanto “ o elo decisivo” , não apenas na prática política do movimento operário marxista-leninista, mas também na teoria, na' ciência e na filosofia marxistas. Desde Lenin, sabemos claramente que a filosofia representa a luta de classes na teoria: mais precisa­ mente que toda filosofia representa um ponto de vista de classe na teoria contra outros pontos de vista opos­ tos. Sabemos portanto que a filosofia marxista-leninista:

1 Prefácio á segunáa edição do Manual de Martha Harnecker: Princípios elementares ào materialismo histórico (siglo XX I, México).

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0 materialismo dialético representa o ponto de vista proletário na teoria: é o “ elo decisivo” para compreen­ der a filosofia marxista-leninista, e para desenvolvê-la. É 0 “ elo decisivo” para compreender porque esta filo­ sofia pode cenar de “ interpretar” o mundo, para ajudar a sua transformação revolucionária. Mas que a luta de classes seja também o “ elo deci­ sivo” na teoria científica de Marx, é talvez mais difícil de compreender. Contento-me com um exemplo apensis: O Capital. Eis um livro que contém a ciência marxista, os prin­ cípios fundamentais da ciência marxista. Entretanto, não devemos nos manter iludidos. Não basta ter um livro sob os olhos; é necessário saber lê-lo. Ora existe uma maneira de ler O Capital, uma maneira de “ com­ preender” e de “ expor” a teoria científica de Marx, que pode ser perfeitamente burguesa. Burguesa quer di­ zer: influenciada, marcada, penetrada pela ideologia burguesa, muito precisamente pela ideologia economicista ou sociologízante burguesa. Por exemplo, pode-se ler O Capital da maneira se­ guinte: como uma teoria da economia política do modo de produção capitalista. Começar-se-á pela infra-estru­ tura, se examinará o “ processo de trabalho” , se distinguirá as forças produtivas e as “ relações de produção” , analisar-se-á a mercadoria, o dinheiro, a mais-valia, o salário, a reprodução, a renda, o lucro, o juro, a baixa tendencial da taxa de lucro, etc. Em suma, se descobri­ rá tranquilamente em O Capital as “ leis” da economia (capitalista). E quando se tiver acabado esta análise dos mecanismos “ econômicos” , acrescentar-se-á um pe­ queno suplemento: as classes sociais, a luta de classes. Será que o minúsculo capítulo inacabado sobre as classes sociais não está exatamente no fim do Capital? Será que não é necessário falar de classes sociais ape­ nas depois de ter desmontado todo o mecanismo da economia capitalista? Será que Marx não nos convida a considerar as classes sociais (e portanto a luta de classes) como o simples produto, o último produto, da estjutura da economia capitalista, seu resultado? Será

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que as classes sociais não são um simples efeito da eco­ nomia capitalista, e a luta de classes um simples efeito da existência das classes? Esta leitura, esta interpretação do Capital são uma deformação grave da teoria marxista: uma deformação economicista (burguesa). As classes sociais não estão no fim do Capital: estão presentes do começo ao fim do Capital. A luta de classes não é um efeito (derivado) da existência das classes sociais: a luta de classes e a exis­ tência das classes são uma e a mesma coisa. A luta de classes é o “ elo decisivo" para compreen­ der O Capital. Quando Marx deu ao Capital o subtítulo: Crítica da Economia política, não desejava apenas dizer que ele se propunha criticar os economistas clássicos, mas a ilusão economicista (burguesa). Ele desejava criticar radicalmente a ilusão burgue­ sa que separa cuidadosamente de um lado a atividade de produção e de troca (a economia) e de outro as clas­ ses sociais, as lutas políticas, etc. Marx desejava mos­ trar que todas as condições da produção, da circulação e da distribuição capitalistas (portanto toda a assim chamada economia política) estão dominadas e penetra­ das pela existência das classes sociais e da luta de classes. Expliquemos em algumas palavras o princípio es­ sencial da tese de Marx. Não há produção econômica “pura", não há cir­ culação (trocas) “ puras", não há distribuição “ pura". Todos estes fenômenos econômicos são processos que têm lugar soh relações sociais que são, em última ins­ tância, quer dizer, sob suas “ aparências" relações de classe, e relações de classe antagônicas, quer dizer, re­ lações de luta de classe. Tomemos a produção material objetos de utilidade social (valor de uso) tal como ela se apresenta, a olho nu, nas unidades de produção (usinas, explorações agrí­ colas, etc.). Esta produção material supõe a existência de “ forças produtivas" ou a “ força de trabalho", (os tra­

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balhadores) põe em ação instrumentos de produção (instrumentos, máquinas) que transformam uma ma­ téria prima, Um “ economista" burguês, ou um leitor “ economista" do Capital aí verá um simples processo de trabalho técnico. Ora basta refletir com Marx para ver que é um contrasenso. É necessário dizer: as forças produtivas são postas em ação no pro­ cesso de trabalho sob a dominação de relações de pro­ dução, que são relações de produção, que são relações de exploração. Se existem operários, é que são assala­ riados, portanto explorados; se existem os assalariados, que só possuem sua força de trabalho e são coagidos (pela fome: Lenin) a vendê-la, é que há capitalista, que possuem os meios de produção e compram a força de trabalho para explorá-la, para dela extrair a mais-valia. A existência das classes está portanto inscrita na pro­ dução mesma, no próprio coração da produção: nas re­ lações de produção. É necessário ir tnais longe: as relações de produ­ ção não são alguma coisa que vem se superpor às for­ ças produtivas como sua simples “ forma". As relações de produção penetram nas forças produtivas, já que a força de trabalho, que põe em ação as “forças produ­ tivas", e que o processo de produção capitalista tende sem cenar a exploração máxima da força de trabalho. E, como é esta tendência que domina em todo o processo de produção capitalista, é necessário dizer que os meca­ nismos técnicos da produção estão submetidos aos me­ canismos (de classe) da exploração capitalista. O que se chama as forças produtivas são ao mesmo tempo a base material (base técnica) diz Marx, e a forma de existência histórica das relações de produção, quer di­ zer, das relações de exploração. Marx mostrou admira­ velmente no Livro I (Quarta Seção, capítulos 14 e 15) que as bases e as formas sucessivas da organização do processo de produção (da manufatura à grande indús­ tria) nada mais eram do que as bases e as formas su­ cessivas da existência material e histórica das relações de produção capitalista, Ê portanto um erro economi­ cista e tecnocrático separar as forças produtivas das relações de produção. O que existe é a unidade (tendencial) nas formas de existência material das forças pro­

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dutivas e das relações de produção $ob a dominação das relações de produção. Se assim é, não existe produção “ pura” e não há economia “pura” . Com as rélações de produção, as classes antagônicas estão presentes desde o processo de produção. Com esta relação de classes antagônica são lançadas as bases da luta de classes: a luta de classes está materialmente enraizada na própria pro­ dução. Mas isto não é tudo. Sociedade alguma existe, quer dizer, dura na história a menos que, ao mesmo tempo que produz, reproduza as condições materiais e sociais de sua existência (de sua produção). Ora as condições de existência da sociedade capitalista são as condições da exploração que a classe capitalista impõe à classe ope­ rária: a classe capitalista deve reproduzí-las custe o que custar, Para compreender O Capital, é necessário por­ tanto elevar-se até o ponto de vista da reprodução: e vê-se então que a burguesia só pode assegurar a esta­ bilidade e a duração da exploração (que ela impõe na produção) com a condição de travar uma luta de classes permanente contra a classe operária. Esta luta de classes, ela a trava perpetuando ou reproduzindo as condições materiais, ideológicas e políticas da explora­ ção. Ela a trava na produção (redução do salário des­ tinado à reprodução da força de trabalho; repressão, sanções, demissões; luta anti-sindical, etc.). Ela a trava ao mesmo tempo fora da produção, é aqui que inter­ vém o papel do Estado, do aparelho repressivo de Estado e dos aparelhos ideológicos de Estado (sistema político, escola, igrejas, informação), para submeter a classe operária pela repressão e a ideologia. Se o lemos assim, O Capital deixa de ser uma teoria da “ economia política” do capitalismo, para tornar-se a teoria das formas materiais, jurídicas, políticas e ideo­ lógicas de um modo de produção fundado na exploração da força de trabalho assalariada — para tornar-se uma teoria revolucionária. Se o lermos assim, colocamos em seu lugar a eco­ nomia política, as forças produtivas, a técnica, etc.

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Mas se assim é, podemos fazer uma outra idéia da luta de classes, e renunciar a certas ilusões, como as ilusões “ humanistas” que dizem respeito à ideologia pequeno-burguesa (e que são o complemento das ilu­ sões “ economistas” ). Se somos de fato forçados a aban­ donar a idéia de que a sociedade capitalista teria de certa forma existido antes da luta de classes, e que a luta de classes que conhecemos seria a ação do prole­ tariado (e de seus aliados) em revolta contra “ as injus­ tiças” da sociedade. Na realidade, a luta de classes própria da sociedade capitalista é consubstanciai à sociedade capitalista: começou com ela, foi a burguesia que a travou desde seus começos com uma ferocidade sem igual contra um proletariado então desarmado. Longe de se revoltar simplesmente contra “ as injusti­ ças” 0 proletariado não fez primeiramente senão resistir à luta das classes burguesas, antes de se organizar, desenvolveu sua consciência e passou à contra-ofensiva até a tomada do poder. Se assim é, se a teoria científica de Marx nos dá a demonstração que tudo leva à luta das classes com­ preende-se melhor as razões deste acontecimento sem precedente na História: a “ fusão” da teoria mancista e do movimento operário. Não se refletem suficiente­ mente acerca deste fato: porque e como o movimento operário que existia antes que Marx e Engels escrevessem 0 Manifesto se reconheceu numa obra tão difícil como O Capital? Foi a partir de um ponto comum; a luta das classes. Ela estava no coração da prática cotidiana do movimento operário. Está no coração do Captial, e no coração da teoria marxista. Marx deu como teoria científica ao movimen­ to operário o que recebera dele como experiência po­ lítica. Como diz Mao: Não esqueçamos jamais a luta das classes.

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COMO LER “O CAPITAL” '? O Capital foi publicado há um século (1867). Con­ tinua sempre novo, mais do que nunca atual e de uma atualidade queimante. Os ideólogos burgueses, mesmo se são “ economis­ tas” , “ historiadores” , ou “ filósofos” passaram seu tem­ po, há cerca de um século tentando “ refutá-lo” . Declararam que as teorias do valor trabalho, da mais-valia, e da lei do valor são teses “ metafísicas” que nada têm a ver com a economia “ política” . Efetivamen­ te, elas nada têm a ver com a economia “ política” deles. O último destes ideólogos é Raymond Aron. Literialmente, ele repete velharias ^ quando, acredita in­ ventar novidades. Aqueles entre os proletários que lêem O Capital podem compreendê-lo mais facilmente do que todos os especialistas burgueses, por mais “ cultos” que sejam. Porque? Porque o Capital fala pura e simplesmente da

1 LTíumanité, 21 de março de 1969. 2 O filósofo italiano Croce deu-lhes desde antes da guerra de 1914, a forma mais "perfeita” que conheço.

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exploração capitalista da qual eles são as vitimas. O Ca­ pital desmonta e demonstra os mecanismos desta explo­ ração que os operários sofrem todos os dias, sob todas as formas que a burguesia põe em ação: aumento da jor­ nada de trabalho, intensificação da produtividade, das cadências, diminuição dos salários, desemprego, etc. *'0 CapitaV* é de fato seu livro de classe. Além dos proletários outros leitores levam O Ca­ pital a sério: trabalhadores assalariados, empregados, quadros, etc. e de uma maneira geral alguns dos que chamamos “ trabalhadores intelectuais” (professores, pesquisadores, engenheiros, técnicos, médicos, arquite­ tos, etc.) sem falar dos jovens dos liceus e estudantes. Todos estes leitores, ávidos de saber, desejam com­ preender os mecanismos da sociedade capitalista, para orientar-se na luta de classes, lêem O Capital, que é a obra científica e revolucionária que explica o mundo capitalista; lêem Lênin que prolonga Marx, e explica que o capitalismo chegou a seu estágio supremo: o imperialismo. Duas dificuldades: Dito isto, não é fácil para todo mundo ler e com­ preender O Capital. É senta n." 1, de n.o

necessário saber, de fato, que esta leitura apre­ duas grandes dificuldades: uma dificuldade política, que é determinante; e uma dificulda­ 2, teórica, que é subordinada.

A dificuldade n.° 1 é política. Para “ compreender” O Capital, é necessário, ou bem (como os operários) ter a experiência direta da exploração capitalista, ou então como os militantes revolucionários, (quer eles sejam operários ou intelectuais) ter feito o esforço necessário para chegar “ às posições da classe operária” . Os que não são nem operários nem militantes revolu­ cionários, mesmo se são muito “ cultos” (como os “economistas” , “historiadores” e “filósofos” ), devem saber que o preço a pagar por esta compreensão é uma

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revolução em sua consciência, massiçamente dominada pelos preconceitos da ideologia burguesa. A dificuldade n.° 2 é teórica. Ela é secundária com relação à dificuldade n.° 1, mas é real. Os que têm o hábito de trabalhar na teoria, antes de tudo os cien­ tistas das várias ciências (as Ciências humanas são em cerca de 80% falsas ciências, construções da ideologia burguesa), podem superar as dificuldades que provêm do fato de que O Capital é um livro de teoria pura. Os outros, por exemplo, os operários, devem realizar um esforço contínuo, atento e paciente para aprender a avançar na teoria. Nós os ajudaremos. E eles verão que esta dificuldade não está acima de suas forças. Que eles saibam apenas, por ora:

1 — Que O Capital é um livro de teoria pura: que ele faz a teoria do “ modo de produção capitalista, das relações de troca que lhe pertencem” (Marx), que o Capital tem portanto um objeto “ abstrato” (que não se pode “ tocar com as mãos” ); que ele não é portanto um livro de história concreta ou de economia empírica, como o imaginam os “ historiadores e os economistas” ; 2 — Que toda teoria se caracteriza pela abstração de seus conceitos, e o sistema rigoroso de seus concei­ tos; que é necessário portanto aprender a praticar a abstração e o rigor; conceitos abstratos e sistemas ri­ gorosos não são fantasias de luxo, mas os instrumentos mesmos da produção dos conhecimentos científicos, exatamente como os instrumentos, máquinas e sua re­ gulação de precisão, são os instrumentos da produção dos'produtos materiais, automóveis, transistores, etc. Tomadas estas precauções, eis aqui alguns conse­ lhos práticos elementares para a L.eitura do Livro I do Capital. As maiores dificuldades teóricas e outras, que cons­ tituem obstáculos para uma leitura fácil do Livro I do Capital estão infelizmente (ou felizmente) concentradas no começo mesmo do Livro I, muito precisamente em sua Seção I, que trata da mercadoria e da moeda.

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Mais valia e horas suplementares ... Dou portanto logo o conselho prático seguinte: começar a leitura do Livro I pela Seção I I (A transfor­ mação do dinheiro em capital.) Não se pode, a meu ver, começar (e apenas come­ çar) a compreender a Seção I sem após ter lido e relido todo o Livro I a partir da Seção II. Este conselho é mais do que um conselho: é uma recomendação que eu me permito apresentar como uma recomendação imperativa. Qualquer um pode ter disto uma experiência prática. Se começamos a ler o Livro I, por seu começo, isto é, pela Seção I, ou nós nos cansamos e o abando­ namos; ou então acreditamos compreender, o que é ainda mais grave, porque temos fortes chances de com­ preender sem dificuldade alguma, porque é pura e compreender. A partir da Seção I I {A transformação do dinheiro em capital) as coisas são luminosas. Penetra-se então, diretamente no coração do Livro I. Este coração, é a teoria da mais valia, que os proletários podem com­ preender sem dificuldade alguma, porque é pura e simplesmente teoria científica daquilo de que eles têm a experiência cotidiana: a exploração de classe. Seguem-se logo duas seções muito densas, mas muito claras, e decisivas para a luta de classes, hoje mesmo: a Seção I I I e a Seção IV. Tratam das duas for­ mas fundamentais da mais-valia, de que dispõe a classe capitalista para levar ao máximo a exploração da classe operária: o que Marx chama a mais-valia abso­ luta e a mais-valia relativa. A mais valia absoluta (Séção I I I ) diz respeito à jornada de trabalho. Marx explica que a classe capita­ lista conduz inexoravelmente ao aumento da duração da jornada de trabalho, e que a luta da classe operária, mais do que centenária, tem como objetivo arrancar

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uma diminuição da duração da jornada de trabalho, lutando contra este aumento. Historicamente conhece-se as etapas desta luta encarnecida: jornada de 12 horas, de 10 horas, depois de 8 horas, e finalmente, com a Frente Popular, de 40 horas, Infelizmente, sabe-se também que a classe capitalista usa de todas as suas forças e de todos os seus meios, legais e para-legais, para prolongar a jornada de tra­ balho real, mesmo quando ela foi obrigada a limitá-la no plano legal, depois das leis sociais conquistadas com grande luta pela classe operária (exemplo: 1936). Uma palavra sobre as “ horas suplementares'’. Se­ gundo os horários, elas são pagas a 25h, 50h e mesmo lOOh acima da tarifa das “horas normais” . Aparente­ mente, elas parecem “ custar caro” ao patronato. Na realidade, elas são vantajosas para ele. Porque permi­ tem aos capitalistas fazer funcionar até 24 horas sobre 24 horas máquinas muito carás, que é necessário amor­ tizar o mais depressa possível, antes que sejam supe­ radas por novas máquinas ainda mais eficazes, que a tecnologia moderna lança sem cessar no mercado. Para o proletariado, as “ horas suplementares” são exatamen­ te o contrário de um “ presente” que lhe daria o pa­ trono. Elas dão sem dúvida um suplemento de renda aos operários que dele estão precisando, mas arruinam sua saúde. As “ horas suplementares” nada mais são portanto, sob suas aparências enganosas, do que uma exploração suplementar dos operários. Passemos agora à Seção V I do Capital (.Produção da mais-valia relativa). É uma questão queimante. A mais-valia relativa (Seção JV é a forma n.° 1 da exploração contemporânea. É muito mais sutil. Ela diz* respeito ao aumento do equipamento mecânico da in­ dústria (e da agricultura), portanto sobre a produtivi­ dade que dela resulta, O crescimento da produtividade (espetacular desde cerca de 10 a 15 anos) se exerce não apenas pela introdução de máquinas cada vez mais aperfeiçoadas, permitindo produzir a mesma quantida­ de de produtos em um tempo duas, três ou quatro

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vezes inferior, mas também pela intensificação do ritmo de trabalho (as cadências). É de tudo isto que Marx trata na Seção V. Ele demonstra os mecanismos da exploração pelo desenvol­ vimento da produtividade em suas formas concretas; e demonstra que jamais o desenvolvimento da produti­ vidade pode beneficiar espontaneamente a classe ope­ rária, já que ele é feito precisamente para aumentar sua exploração. O que pode fazer a classe operária, como no caso da duração do trabalho, é lutar contra todas as formas da exploração pelo desenvolvimento da produtividade, para limitar o efeito destas formas (luta contra as ca­ dências, contra a intensificação dos ritmos, contra a supressão de certos postos de trabalho, portanto contra o “ desemprego da produtividade” etc.). Marx demons­ tra de maneira absolutamente irrefutável que os traba­ lhadores não podem esperar se beneficiarem duravelmente do desenvolvimento da produtividade antes da tomada do poder pela classe operária e seus aliados; que até aí eles podem apenas lutar para limitar seus efeitos, portanto contra a exploração que é seu fim, numa luta de classes encarneclda. O leitor pode então, rigorosamente, omitir proviso­ riamente a Seção V {Pesquisas ulteriores sobre a maisvalia) que é muito técnica, e passar diretamente à Se­ ção V I sobre os Salários. Produtividade

luta de classes

Aí ainda, os operários estão literalmente em casa, já que Marx examina, além da mistificação burguesa que declara que o “ trabalho” do operário é pago “pelo seu valor” , as diferentes formas do, salário, salário a hora primeiro, depois salário por produção, quer dizer as diferentes armadilhas em que a burguesia tenta pren­ der a classe operária para destruir nela toda vontade de luta de classes.

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Aí, os proletários reconhecerão que a questão do salário, ou como dizem os ideólogos burgueses, a ques­ tão do “ nível de vida” é em última instância uma questão de luta de classes (e não uma questão de desen­ volvimento da “ produtividade” da qual os operários “ deveriam” se beneficiar “ naturalmente” ). Como conclusão das Seções II-VI, os proletários reconhecerão que sua luta de classes no domínio eco­ nômico só pode ser uma luta de classes contra as duas formas principais da exploração que são a tendência inelutável do sistema capitalista para: 1)

Aumentar a duração da jornada de trabalho;

2)

Diminuir o salário.

Os dois objetivos (e palavras de ordem) fundamen­ tais da luta de classes proletária econômica contra a exploração capitalista são portanto diretamente antagô­ nicas com os objetivos da luta de classes capitalista; 1)

Contra o aumento da duração do trabalho;

2)

Contra a diminuição dos salários.

Se ressaltamos que a luta de classes econômica era uma luta contra o aumento da jornada de trabalho e contra a diminuição do salário, foi para marcar bem estes três princípios fundamentais: 1) É uma ilusão entretida pelos reformistas deixar crer que o salário pode ser aumentado no regime capi­ talista, pelo simples fato de que a produtividade au­ menta. É mascarar a tendência inelutável do capitalismo que é pela diminuição do salário. Os militantes devem lembrar esta tendência a seus camaradas de trabalho. No regime capitalista toda luta em torno dos salários é uma luta contra esta tendência para a diminuição. Bem entendido, toda a luta contra a diminuição do salário é, ao mesmo tempo e também, uma luta pelo aumento do salário existente; X45

2) Se os reformistas mascaram este fato é que eles escamoteiam a luta de classes — A questão da luta contra o aumento da duração da jornada de trabalho e contra a diminuição do salário é não uma questão de desenvolvimento da produtividade, mas uma questão de luta de classe: muito precisamente de luta de classe econômica; 3) A luta de classe econômica está limitada nos seus efeitos porque é uma luta defensiva contra a agravação da exploração econômica, que é a tendência ine­ lutável do capitalismo. A única luta de classes que pode transformar a luta econômica defensiva {contra as cadências, contra as supressões de postos, contra a di­ minuição do salário, contra a arbitrariedade dos primes, etc.) em luta ofensiva, é a luta de classes política. A luta de classes política têm como objetivo último a revolução socialista. Uma luta de classes política englo­ bando a luta econômica, é a luta dos militantes revo­ lucionários, a luta pela revolução socialista. Tudo isto está perfeitamente claro no próprio Copital se bem que a distinção entre a luta de classes econômica e a luta de classes política não seja desen­ volvida aí em si mesma. Nós a encontramos exposta muito claramente nos continuadores de Marx, antes de tudo em Lênin (em Que fazer?) e em todos os outros dirigentes revolucionários (Maurice Thorez muito insis­ tiu neste ponto). Perspectiva revolucionária alguma é possível sem o primado da luta política sobre a simples luta econô­ mica. A simples luta econômica “ apolítica” conduz ao economicismo, quer dizer à colaboração de classes. Em compensação o primado da luta política que desprezaria a luta econômica e a negligenciaria conduziria ao voluntarismo quer dizer, ao aventureirismo. Esta luta de classes deve ser conduzida no plano nacional, levando em conta as particularidades da si­ tuação nacional, mas como uma parte da luta de classe internacional. Não esquecer que em 1864, três anos antes do Capital, Marx e os militantes revolucionários da época tinham fundado a Primeira Internacional, ré­

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plica proletária á Internacional Capitalista de fato, que domina o “ mercado mundial’\ “ Bola de neve” e Massacres Depois da Seção VI sobre o salário, os leitores po­ derão passar à Seção V II (A acumulação do capi­ tal) que é muito clara. Marx nela explica que a tendência do capitalismo consiste em transformar sem cessar em capital a mais-valia extorquida dos proletários, portanto que o Capital não deixa de fazer “bola de neve” , quer dizer, de se reproduzir numa base cada vez mais ampla, a fim de extorquir sempre mais sobre trabalho (mais valia) aos proletários. Esta tese é ilustrada pelo magní­ fico exemplo da Inglaterra de 1846 a 1866. Sabemos desde Lênin que esta reprodução do capitalismo tomou, desde o fim do século X IX , a forma do imperialismo: interpretação do capital bancário e do capital industrial, formação do capital financeiro e superexploração direta do “resto do mundo” sob as formas do colonialismo, acarretando as guerras coloniais, em seguida as guerras inter-imperialistas, que mostraram a todos, de maneira irrecusável, que o imperialismo doravante entrou na fase de sua agonia, já que as duas grandes guerras mundiais tiveram entre outras “ consequências” a Re­ volução russa (1917), a instauração das democracias populares, em seguida a Revolução Chinesa (1949). Quanto à Seção V III (A acumulação primitiva) que fecha o Livro I do Capital, ela contém uma descoberta de enorme importância. Marx denuncia aí a mistificação burguesa que explica tranquilamente o nascimento do capitalismo pela. .. poupança, do primeiro capitalista que teria trabalhado e colocado o dinheiro de lado para constituir o primeiro capital! Marx demonstra que na realidade o capitalismo só pode nascer nas sociedades ocidentais após uma enorme acumulação de dinheiro entre alguns homens ricos e que esta acumulação foi o resultado brutal de séculos de pilhagem, de expedi­ ções, de roubos, de rapinas e massacres de povos in­ teiros (por exemplo os descendentes dos Incas e outros habitantes do fabuloso Peru rico em minas de ouro).

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Ora, esta tese marxista sobre as origens históricas do capitalismo continua sempre de uma queimante atua­ lidade. Porque o capitalismo funciona relativamente sem massacre nos países “metropolitanos” , ele pratica sem­ pre os mesmos métodos de roubo, de pilhagem, de vio­ lência e de massacres no que se chama suas “ margens” que são os países do “ Terceiro Mundo” : América Lati­ na, África, Ásia. Os massacres americanos no Vietnã são hoje mesmo a prova da verdade que Marx expõe na Seção V III a propósito das longínquas origens do capi­ talismo. Mas a situação mudou inteiramente. Os povos não se deixam mais massacrar: aprenderam a se organizar e a se defender, entre outros porque Marx e Lênin e seus sucessores, educaram os militantes revolucioná­ rios da luta de classes. E é porque o povo vietnamita está em vias de alcançar no terreno a Vitória contra a agressão da maior potência militar do mundo, graças à guerra popular que ele realizou sob a direção das or­ ganizações que produziu. Se desejamos ler O Capital, ler Lênin (e particular­ mente — “ algumas conclusões” que terminam a Doen­ ça Infantil, quando falam diretamente das condições da Revolução Socialista nos países capitalistas ocidentais) saberemos tirar a lição e concluir que numerosos dentre nós verão em nossa vida mesmo, a Revolução em nosso próprio país. Esta regra de ouro . . . Resumo portanto nos conselhos práticos de leitura do Capital da maneira seguinte: 1)

Deixar sistematicamente de lado a Seção I;

2)

Começar pela Seção II;

*

3) Ler muito atentamente as Seções II, III, IV, V III (portanto deixar de lado a Seção V ); 148

4) Tentar ler (em seguida apenas) a Seção I, sa­ bendo que ela é de qualquer maneira extremamente difícil e requer explicações detalhadas.^ Dito isto, posso também aconselhar aos leitores do Capital de preceder o estudo da maior obra de Marx pela leitura de dois textos seguintes, que podem servirlhes de excelente introdução: 1)

Trabalho assalariado e Capital (1847) de Marx;

2) O Capital, artigo de Engels de 1868, reprodu­ zido no Tomo I I I do Capital, nas Editions Sociales pp. 219-225), admirável exposição das teses essenciais do Lávro I. 3 Não posso consagrar senão uma breve nota às dificuldades teóricas que constituem um obstáculo para uma leitura rápida do Livro I do Capital (Marx retomou-o uma dezena de vezes antes de lhe dar sua forma definitiva: não apenas por questões de exposição). Dou com uma palavra o princípio da solução: 1 — A teoria do valor trabalho só é inteligível como um caso particular do que Marx e Engels chamaram a lei do valor. Esta denominação lei do valor ela própria constituindo um problema enquanto denominação; 2 — A teoria da mais valia é apenas um caso particular de uma teoria-mais vasta: a do sobretrabalho que existe em todas as sociedades, mas que é extorquido em todas as sociedades de classe. Em sua generalidade, esta teoria do sobretraba­ lho não é tratada em si mesma no Livro I, O Livro I apresenta portanto esta particularidade específica, de conter certas soluções de problemas que só são colocadas nos Livros II, III, IV e certos problemas cujas soluções só serão dadas nos livros seguintes. Quanto ao essencial, é a este caráter de "suspensão” ou de "antecipação” que se devem as dificuldades objetivas do Livro I. É necessário sabê-lo, e disto tirar a consequência,*isto é, ler o Livro I, levando em conta os Livros II, I I I e IV. Secundariamente, e este aspecto não é de forma alguma desprezível, certas dificuldades do Livro I, em particular as que apresentam o capítulo I da Seção I e a teoria do "fetichismo” se devem à terminologia herdada de Hegel com a qual, segundo sua própria confissão, Marx teve a fraqueza de "flertar”

(Kokettieren).

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Se eles desejam perceber, num texto simples e cla­ ro, certas conseqüências importantes do Livro I, os lei­ tores podem, depois de terem estudado o Livro I, ler Salário, Preço e Lucro, de Marx (1865) publicado nas Editions Sociales no mesmo volume que Tra­ balho assalariado e Capital. Assinalo que estes dois tex­ tos são conferências que foram pronunciadas umas bem cedo (1847) outras mais tarde (1865) por Marx diante de um público operário (para as primeiras) e (para as segundas) diante do Conselho Geral da Primeira Iniemcücional. Poder-se-á, com sua leitura, ter a medida da lingua­ gem que Marx acreditava ser de seu dever manter dian­ te dos operários e dos militantes do movimento operá­ rio. Marx sabia falar uma linguagem simples, clara e direta, mas ao mesmo tempo não fazia qualquer con­ cessão sobre o conteúdo científico de suas teorias. Pen­ sava que os operários tinham direito à ciência, e que podiam superar as dificuldades próprias de toda expo­ sição verdadeiramente científica. Esta regra de ouro é e continua a ser mais do que nunca uma lição para nós.

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A FILOSOFIA COMO ARMA DA REVOLUÇÃO (Resposta a oito questões) Traduzido por R it a L i m a

A FILOSOFIA COMO ARMA DA REVOLUÇÃO oito questões) o texto que se vai ler reproduz a versão integral de uma entrevista concedida por Louis Althusser à corres­ pondente do Unitá, Maria-Antonnieta Macchiocchi. Por razões de edição, e com o consentimento do autor, algumas passagens foram suprimidas na versão italiana, publicada no jornal do Partido Comunista Ita­ liano, Unitá, de XP de fevereiro de 1968, sob o mesmo título: Â filosofia como arma da revolução,

Você pode nos falar um pouco sobre sua história pessoal? Como você chegou até a filosofia marxista? Em 1948, com 30 anos, tornei-me professor de filo­ sofia, e aderi aò Partido Comunista Francês.

A filosofia me interessava: tentava fazer dela a mi­ nha profissão. A política me apaixonava: tentava me tomar um militante comunista. O que me interessava na filosofia era o materialismo e sua função crítica: pelo conhecimento científico, contra todas as mistificações do “ conhecimento” ideoló­ gico, Contra a demíncia simplesmente moral dos mitos e méntiras, por sua crítica racional e rigorosa. O que me apaixonava na política era o instinto, a inteligência, a coragem e o heroísmo revolucionários da classe operária em sua luta pelo socialismo. A guerra e os longos anos de prisão me tinham feito viver em contacto com operários e camponeses e conhecer mili­ tantes comunistas. A política é que decidiu inteiramente. Não a política em geral: a política marxista-leninista. De início foi preciso encontrá-la e compreendê-la. Isso sempre é extremamente difícil para um intelec­ tual, E foi igual difícil nos anos 50-60 por razões que se conhece: as conseqüências do “ culto” , o XX.o Con­ gresso, depois a crise do movimento comunista inter­ nacional. Não foi fácil, sobretudo, resistir à vaga ideo­ lógica “ humanista” contemporânea, e aos outros assal­ tos da ideologia burguesa ao marxismo. Uma vez melhor compreendida a política marxistaleninista, comecei a me apaixonar também pela filo­ sofia, pois podia enfim compreender a grande tese de Marx, Lênin e Gramsci: de que a filosofia é fundamen­ talmente política. Tudo o que escrevi, inicialmente sozinho e depois em colaboração com camaradas e amigos mais jovens, gira, apesar da “ abstração” de nossos ensaios, em tor­ no dessas questões muito concretas. !53

P e rg u n ta 2

Você pode precisar por que é tão difícil, em geral, ser comunista em filosofia? Ser comunista em filosofia, é tornar-se partidário e artesão da filosofia marxista-leninista: o materialismo dialético. Não é fácil tornar-se um filósofo marxista-leninista. Como todo “ intelectual” , um professor de filosofia é um pequeno-burguês. Quando ele abre a boca, é a ideolo­ gia pequeno-burguesa que fala: seus recursos e astú­ cias são infinitas. Você sabe o que Lênin disse dos “ intelectuais” . In­ dividualmente alguns podem ser (politicamente) r&üolucionários, declarados, e corajosos. Porém em massa, continuam “ incorrigivelmente” pequeno-burgueses por sua ideologia. Gorki mesmo era, para Lenin, que admi­ rava seu talento, um revolucionário pequeno-burguês. Para chegar a ser “ ideólogos da classe operária” (Lê­ nin), “ intelectuais orgânicos” do proletariado (Gramsci), é preciso que os intelectuais façam uma revolução radical em suas idéias: reeducação longa, dolorosa, difí­ cil. Uma luta sem fim, exterior e interior. Os proletários, estes, têm um “ instinto de classe” que lhes facilita a passagem para as “ posições de classe” proletárias. Os intelectuais, ao contrário, possuem um instinto de classe pequeno-burguês que resiste ferrenhamente a essa passagem. A posição de classe proletária é mais que o sim­ ples “ instinto de classe” proletário. É a consciência e a prática conformes à realidade objetiva da luta de classe proletária. O instinto de classe é subjetivo e espontâ­ neo. A posição de classe é objetiva e racional. Para pas­ sar às posições de classe proletárias, o instinto de clas­ se dos proletários necessita apenas ser educado; em contrapartida, o instinto de classe dos pequeno-burgue­ ses, e portanto dos intelectuais, deve ser revolucionado. Esta educação e esta revolução são determinadas, em última instância, pela luta de classe proletária condu-

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zida com base nos princípios da teoria marxista-leni­ nista. O conhecimento desta teoria pode ajudar, como diz

0 Manifesto, alguns intelectuais a passarem para posi­ ções da classe operária. A teoria marxista-leninista compreende uma ciência (o materialismo histórico) e uma filosofia (o materialismo dialético). A filosofia marxista-leninista é então uma das duas armas teóricas indispensáveis à luta de classe proletá­ ria. Os militantes comunistas devem assimilar e utilizar os princípios da teoria: ciência e filosofia. A revolução proletária necessita de militantes que sejam cientistas (materialismo histórico) e filósofos (materialismo dialético), para ajudar na defesa e no desenvolvimento da teoria. A formação desses filósofos se choca com duas grandes dificuldades. 1. — Primeira dificuldade: política. Um filósofo de carreira que se inscreve no Partido, continua, ideolo­ gicamente, um pequeno-burguês. É necessário que ele revolucione seu pensamento para ocupar uma posição de classe proletária na filosofia. Essa dificuldade política é determinante em ültima instância” . 2. — Segunda dificuldade: teórica. Nós sabemos em que direção e com quais princípios trabalhar, para defi­ nir esta posição de classe como filosofia. Mas é preciso desenvolver a filosofia marxista: é teoricamente e poli­ ticamente urgente. Ora, o trabalho a ser feito é vasto e difícil. Pois na teoria marxista, a filosofia está atrasada em relação à ciência da história. No nosso país, esta é atualmente a dificuldade '‘do­ minante’'. X55

P e rg u n ta 3

Você distingue então na teoria marxista uma ciência e uma filosofia? Você sabe que essa distinção é contestada hoje em dia? Eu sei. Mas essa “ contestação” é uma velha his­ tória. Pode-se dizer, de uma maneira extremamente esquemática, que, na história do movimento marxista, a su­ pressão dessa distinção expressa um desvio ora de di­ reita, ora de esquerda. O desvio de direita suprime a filosofia: fica só a ciência (positivismo). O desvio de esquerda suprime a ciência: fica só a filosofia (subjetivismo). Há “ exceções” (casos de “ reviravolta” ), mas elas “ confirmam” a regra. Os grandes dirigentes de movimento operário mar­ xista, de Marx e Engels até nossos dias disseram sem­ pre: esses desvios são o efeito da influência e da domi­ nação da ideologia burguesa sobre o marxismo. Em vista disso, eles sempre defenderam a distinção (ciên­ cia, filosofia) não somente por razões teóricas, mas também por razões políticas vitais. Pense em Lenin de Materialismo e Empirocriticismo, e de Doença Infantil. Suas razões são lapidares.

Pergunta 4 Como você justifica essa distinção entre ciência e filosofia na teoria marxista? Vou lhe responder enunciando algumas teses esquemáticas provisórias. 1, — A fusão da teoria marxista e do movimento operário é o maior acontecimento de toda história da luta de classes, ou seja, praticamente de toda história humana (primeiros efeitos: as revoluções socialistas).

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2. — A teoria marxista (ciência e filosofia) repre­ senta uma revolução sem precedente na história do conhecimento humano. 3. — Marx fundou uma ciência nova: a ciência da história. Vou utilizar uma imagem. As ciências que nós conhecemos estão instaladas em alguns grandes “ con­ tinentes” . Antes de Marx estavam abertos ao conheci­ mento científico dois continentes: o continente-Matemática e o continente-Física. O primeiro pelos gregos (Thales) e o segundo por Galileu. Marx descortinou para o conhecimento científico um terceiro continente: o continente-História. 4. — A abertura desse novo continente provocou uma revolução na filosofia. Isso é uma lei: a filosofia está sempre ligada às ciências. A filosofia nasce (com Platão) com a abertura do continente-Matemática. Foi transformada (com Descar­ tes) pela abertura do continente-Física. Está hoje revo­ lucionada pela abertura do continente-História por Marx, Esta revolução denomina-se materialismo dialético. As transformações da filosofia são sempre o contra-golpe das grandeá descobertas científicas. No essen­ cial, elas acontecem imediatamente. É por isso que, na teoria marxista, a filosofia está em atraso em relação à ciência. Há outras razões que todo mundo conhece, mas essa razão, atualmente, é a dominante. 5. — Em sua maior parte, apenas os militantes pro­ letários reconheceram a importância revolucionária da descoberta científica de Marx. Sua prática política foi por ela transformada. E chegamos ao maior escândalo teórico da história contemporânea. Em sua maioria, os intelectuais, pelo contrário, não obstante ser essa sua “ ocupação” (especialistas em ciências humanas, filósofos), não reconheceram, ou se recusaram a reconhecer o inegável alcance da desco­ berta científica de Marx, que é condenada ou despre­ zada por eles, e que é desfigurada quando falam dela.

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Salvo exceções, eles ainda estão hoje em dia em vias de “ bricolar” em economia política, em sociologia, em etnologia, em “ antropologia” , em “psicosociologia” , etc., etc.,. cem anos após O Capital, como os “ físicos” aristotélicos “bricolavam” ainda em física, cinquenta anos após Galileu. Suas “ teorias” , são velharias ideoló' gicas, rejuvenescidas com grande reforço de sutilezas intelectuais e de técnicas matemáticas ultra-modernas. Ora, esse escândalo teórico não é inteiramente um escândalo. É um efeito da luta de classe ideológica: pois é a ideologia burguesa, a “ cultura” burguesa, que está no poder, que exerce a “ hegemonia” . Em sua maio­ ria, os intelectuais, inclusive inúmeros intelectuais co­ munistas e marxistas, são, salvo exceções, dominados em suas teorias pela ideologia burguesa. Salvo exceções, as “ ciências humanas” também. 6. — A mesma situação escandalosa na filosofia. Quem compreendeu a prodigiosa revolução filosófica provocada pela descoberta de Marx? Apenas os mili­ tantes Ou dirigentes proletários. Em sua maioria, pelo contrário, os filósofos de profissão nem mesmo descon­ fiaram. Quando eles falam de Marx é sempre, salvo exceções, raríssimas, para combatê-lo, condená-lo, “ di­ gerí-lo” , explorá-lo ou revisá-lo. Os que defenderam o materialismo dialético, como Engels e Lenin, são tratados como nulidades filosófi­ cas. O verdadeiro escândalo é que certos filósofos mar­ xistas cedem, em nome do “ anti-dogmatismo” , à mesma contaminação. Mas ainda aqui, o mesmo motivo: efeito da luta de classe ideológica. Pois é a ideologia burguesa, a “ cultura” burguesa, que está no poder. 7. — Tarefas capitais para o movimento comunista na teoria: reconhecer e conhecer a importância teórica re­ volucionária da ciência e da filosofia marxista-leninista. — lutar contra a concepção “do mundo burguesa le pequeno-burguesa, que sempre ameaça a teoria mar­ xista, e hoje em dia penetra-a profundamente. Forma

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geral desta concepção do mundo: o economicismo (ago­ ra “ tecnocratismo” ) e seu “ complemento espiritual” , o idealismo moral (agora “humanismo” ). Economicis­ mo e idealismo moral formam o par fundamental da concepção do mundo burguesa desde as origens da bur­ guesia. A forma filosófica atual desta concepção do mun­ do: o neo-positivismo e seu “ complemento espiritual” , o subjetivismo fenomenológico/existencialista. Variante própria às ciências humanas: a ideologia dita “ estruturalista” . — conquistar para a ciência a maioria das ciências humanas, e principalmente as ciências sociais que, sal­ vo exceções, ocupam por impostura o continente-História, cujas chaves foram fornecidas por Marx. — desenvolver com todo rigor e audácia necessá­ rias a ciência e a filosofia novas, ligando-as às exigên­ cias e invenções da prática da luta de classes revolu­ cionárias. Na teoria, elo decisivo atual: a filosofia marxistaleninista.

Pergunta 5 Você disse coisas aparentemente contraditórias ou dife­ rentes: 1)

A fiiosofia é fundamentalmente política;

2)

A filosofia está ligada às ciências. Como você concebe essa dupla relação?

Ainda aqui, respondo com teses esquemáticas pro­ visórias. 1. — As posições de classe que se defrontam na luta de classes são “ representadas” no campo das ideo­ logias práticas (ideologia religiosa, moral, jurídica, po­ lítica, estética, etc. . . ) por concepções do mundo de tendência antagônica: em última instância idealista

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(burguesa) e materialista (proletária). Todo homem tem espontaneamente uma concepção do mundo. 2. — As concepções do mundo são representadas no terreno da teoria (ciências + ideologias “teóricas” nas quais as ciências e os cientistas se nutrem) pela filosofia. A filosofia representa a luta de classes na teo­ ria. É por isso que a filosofia é uma luta {Kampf, dizia Kant), e luta fundamentalmente política: luta de clas­ ses. Todo homem não é espontaneamente filósofo: pode vir a ser. 3. — A filosofia existe desde que exista o domínio teórico: desde que exista uma ciência (no sentido es­ trito). Sem ciências, nada de filosofia, mas apenas con­ cepções do mundo. É preciso distinguir o alvo da bata­ lha, e o campo da batalha. O alvo último da luta filosó­ fica é a luta pela hegemonia entre as duas grandes ten­ dências das concepções do mundo (materialista, idea­ lista). O campo de batalha principal desta luta é o co­ nhecimento científico: a favor ou contra ele. A batalha filosófica número 1 se desenrola portanto na fronteira entre o científico e o ideológico. As filosofias idealistas que exploram as ciências lutam aí contra os filósofos materialistas que estão a serviço da ciência. A luta filo­ sófica é um setor da luta de classes entre as concep­ ções do mundo. No passado, o materialismo sempre foi dominado pelo idealismo. 4. — A ciência fundada por Marx muda toda a situa­ ção no domínio teórico. Ela é uma ciência nova: ciência da história. Permite então, pela primeira vez no mundo, o conhecimento da estrutura das formações sociais e de sua história: permite o conhecimento das concepções do mundo que a filosofia representa na teoria; permite o conhecimento da filosofia. Ela fornece os meios de transformar as concepções do mundo (luta de classes revolucionárias conduzida sob os princípios da teoria marxista). Nela a filosofia é duplamente revolucionada. O materialismo mecanicista, “ idealista em história” , transforma-se em materialismo dialético. A relação de forças é invertida: doravante o materialismo pode do­ minar 0 idealismo na filosofia, e, se as condições polí)

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ticas se efetivarem, ganhar a hegemonia na luta de classes entre as concepções de mundo. A filosofia marxista-leninista, ou o materialismo dia­ lético, representa a luta de classes proletária Tia teoria. Na união da teoria marxista e do movimento operário (realidade última da união da teoria e da prática) a filosofia deixa, como diz Marx, de “ interpretar o mun­ do” . Ela passa a ser uma arma para sua “ transforma­ ção” : a revolução.

Pergunta 6 t por todas essas razões que você disse que é necessário hoje em dia ler “ O Capital” ? Sim. É preciso ler e estudar O Capital. — Para compreender verdadeiramente em todo seu alcance e em todas suas conseqüências científicas e filo­ sóficas o que os militantes proletários compreenderam desde há muito em sua prática: o caráter revolucioná­ rio da teoria marxista. — Para defender essa teoria contra todas as inter­ pretações, isto é, revisões burguesas e pequeno-burgueHQs, que atualmente a ameaçam profundamente: em primeiro lugar o par: economicismo/humanismo. — Para desenvolver a teoria marxista, e produzir os conceitos científicos indispensáveis à análise da luta de classes hoje, em nosso país e alhures. É preciso ler e estudar O Capital. Acrescento: é pre­ ciso ler e estudar Lenin, e todos os grandes textos an­ tigos e atuais onde se aponte a experiência da luta de (áasses do movimento operário internacional. É preciso estudar obras práticas do movimento operário interna­ cional revolucionário, em sua realidade, seus problemas c suas contradições: sua história, passada, e igualmenl,e, sobretudo sua história presente. Há em nosso país, atualmente, imensos recursos para a luta de classe revolucionária. Mas é preciso pro-

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curá-los lá onde eles estão: nas massas exploradas. Não se “ descobrirá” eles sem um contacto estreito com es­ sas massas e sem as armas da teoria marxista-leninista. As noções ideológicas burguesas de “ sociedade indus­ trial” , de “ neocapitalismo” , de “ nova classe operária” , de “ sociedade de consumo” , de “ alienação” e tutti quanti são anti-científicas e anti-marxistas: feitas para com­ bater os revolucionários. Acrescento ainda uma última observação: a mais importante de todas. Para compreender verdadeiramente o que se “ lê” e estuda nessas obras teóricas, políticas e históricas, é preciso fazer propriamente, diretamente, a experiência das duas realidades que as determinam de um lado a outro: a realidade da prática teórica (ciência, filosofia) em sua vida concreta; a realidade da prática da luta de classes revolucionária em sua vida concreta, em estreito contacto com as massas. Pois se a teoria permite com­ preender as leis da história, não são os intelectuais, mesmo os teóricos, mas sim as massas que fazem a his­ tória. É preciso aprender junto à teoria — porém ao mesmo tempo, e isso é capital, é preciso aprender junto às massas.

Pergunta 7 Você dá muita importância ao rigor, inclusive no vocabu* lário. Por que? Uma única palavra pode resumir a função dirigente da prática filosófica: **traçar uma linha de demarcação** entre as idéias verdadeiras e as idéias falsas. A palavra de Lenin. Ora, a mesma palavra resume uma das operações essenciais da direção da prática da luta de classes: “ íraçar uma linha de demarcação** entre as classes antagô­ nicas. Entre nossos amigos e inimigos de classe. É a mesma palavra. Linha de demarcação teórica entre as idéias verdadeiras e as idéias falsas. Linha de 162

(Inmarcação entre o povo (o proletariado e seus aliados) n ON Inimigos do povo. A filosofia representa a luta de classes do povo na Inoria. Em troca ela ajuda o povo a distinguir na teoria n om todas as idéias (políticas, morais, estéticas, ntc.) as idéias verdadeiras das idéias falsas. Por prin(’lpio, as idéias verdadeiras sempre servem ao povo; an Idéias falsas servem sempre aos inimigos do povo. Por que a filosofia se bate com palavras? As reali­ dades da luta de classes são “ representadas” por “ Idéias” que são “ representadas” por palavras. Nos raelocínios científicos e filosóficos, as palavras (conceitos, <*al(ígorias) são “ instrumentos” do conhecimento. Mas na luta política, ideológica e filosófica, as palavras são lambém armas, explosivos, sedativos ou venenos. Toda luta de classes pode às vezes se resumir na luta por uma palavra, contra uma outra palavra. Certas palavras lulain entre si como inimigos. Outras palavras são o luKnr de um equívoco-, o lance de uma batalha decisiva embora indecisa. Exemplo. Os comunistas lutam pela supressão das classes e por uma sociedade comunista, onde um dia todos os homens serão livres e irmãos. No entanto toda II tradição marxista clássica se recusou a dizer que o marxismo é um humanismo. Por que? Porque praticamente, logo nos fatos, a palavra humanismo é explo­ rada pela ideologia burguesa que utiliza-a para combaler, quer dizer, para matar uma outra palavra verdaíleira e vital para o proletariado: luta de classes. Exemplo. Os revolucionários sabem que tudo de­ ponde em última instância não de técnicas, de armas, etc... mas de militantes, de sua consciência de classe, do seu devotamento e de sua coragem. No entanto toda IV tradição marxista se recusou a dizer que é “ o homem” que faz a história. Por que? Porque praticamente, logo nos fatos, esta expressão é explorada pela ideologia bur­ guesa que utiliza-a para combater, quer dizer, para ma­ tar uma outra expressão verdadeira e vital para o pro­ letariado: são as massas que fazem a história.

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A filosofia, até mesmo em seus trabalhos teóricos mais abstratos, mais difíceis, se bate ao mesmo tempo com palavras: contra as palavras-mentiras, contra as palavras-equívocos; pelas palavras justas, Ela se bate com “nuances” . Lenin diz: “ É preciso ser míope para considerar como inoportunas ou supérfluas as discussões de fra­ ção e a delimitação rigorosa das nuances. Da consoli­ dação de tal ou qual “ nuance” pode depender o futu­ ro da social-democracia russa por longos e longos anos” {Que jazer?). Esse combate filosófico sobre palavras é uma parte do combate político. A filosofia marxista-leninista só pode realizar seu trabalho teórico, abstrato, rigoroso, sistemático sob a condição de lutar com palavras muito “ sábias” (conceitos, teoria, dialética, alienação, etc.) e com palavras muito simples (homem, massas, povo, luta de classes).

Pergunta 8 Como você trabalha? Trabalho atualmente com três ou quatro camaradas e amigos, professores de filosofia. No momento princi­ palmente com Balibar, Badiou, Machery. As idéias que acabo de expor são o resultado de nosso trabalho co­ mum. Tudo 0 que escrevemos é evidentemente marcado por nossas experiências e por nossas ignorâncias: aí se encontra, pois, inexatidões e erros. Nossos textos e fórmulas são portanto provisórias, e destinadas a uma retificação. Em filosofia é como em política: sem crítica não há retificação. Pedimos que nos sejam dirigidas críticas marxistas-leninistas. Damos a maior importância às críticas de militan­ tes da luta de classes revolucionária. Por exemplo, cer­ tas críticas que nos foram dirigidas por alguns militan-

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'

lt»H durante a sessão do Comitê Central de Argenteuil nos foram de grande valia. Também outras. Sem teoria ríivolucionária, nada de movimento revolucionário. Mas M(nn movimento revolucionário, nada de teoria revolu­ cionária — principalmente em filosofia. Luta de classes c filosofia marxista-leninista são unidas como carne e unha.

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