Manual De Psiquiatria Unifesp

  • Uploaded by: Gracy Kelly O. Melo
  • 0
  • 0
  • January 2021
  • PDF

This document was uploaded by user and they confirmed that they have the permission to share it. If you are author or own the copyright of this book, please report to us by using this DMCA report form. Report DMCA


Overview

Download & View Manual De Psiquiatria Unifesp as PDF for free.

More details

  • Words: 108,301
  • Pages: 355
Loading documents preview...
■ Os autores deste livro e a EDITORA ROCA empenharam seus melhores esforços para assegurar que as informações e os procedimentos apresentados no texto estejam em acordo com os padrões aceitos à época da publicação, e todos os dados foram atualizados pelos autores até a data da entrega dos originais à editora. Entretanto, tendo em conta a evolução das ciências da saúde, as mudanças regulamentares governamentais e o constante fluxo de novas informações sobre terapêutica medicamentosa e reações adversas a fármacos, recomendamos enfaticamente que os leitores consultem sempre outras fontes fidedignas, de modo a se certificarem de que as informações contidas neste livro estão corretas e de que não houve alterações nas dosagens recomendadas ou na legislação regulamentadora. Adicionalmente, os leitores podem buscar por possíveis atualizações da obra em http://gen-io.grupogen.com.br. ■ Os autores e a editora se empenharam para citar adequadamente e dar o devido crédito a todos os detentores de direitos autorais de qualquer material utilizado neste livro, dispondo-se a possíveis acertos posteriores caso, inadvertida e involuntariamente, a identificação de algum deles tenha sido omitida. ■ Direitos exclusivos para a língua portuguesa Copyright © 2016 by editora guanabara koogan ltda. Publicado pela Editora Roca, um selo integrante do GEN | Grupo Editorial Nacional Travessa do Ouvidor, 11 Rio de Janeiro – RJ – CEP 20040-040 Tels.: (21) 3543-0770/(11) 5080-0770 | Fax: (21) 3543-0896 www.grupogen.com.br | [email protected] ■ Reservados todos os direitos. É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, no todo ou em parte, em quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrônico, mecânico, gravação, fotocópia, distribuição pela Internet ou outros), sem permissão, por escrito, da EDITORA GUANABARA KOOGAN LTDA.

■ Capa: Denise Nogueira Moriama Produção digital: Geethik ■ Ficha catalográfica P245m Paraventi, Felipe Manual de Psiquiatria Clínica / Felipe Paraventi, Ana Cristina Chaves. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Roca, 2016. 340 p.: il.; 17 cm Inclui bibliografia e índice ISBN 978-85-277-2934-5 1. Psiquitaria - Manuais, guias, etc. 2. Doenças mentais - Manuais, guias, etc. I. Chaves, Ana

Cristina. 15-22977

CDD: 616.89 CDU: 616.89

Colaboradores

Andiara Mayer de Souza. Médica. Especialista em Psiquiatria pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). André Lippe de Camillo. Residência em Psiquiatria pela Universidade Federal de São Paulo/Escola Paulista de Medicina (Unifesp/EPM). Angélica de Medeiros Claudino. Psiquiatra. Mestre em Psiquiatria e Doutora em Ciências pela Unifesp/EPM. Pós-doutora pelo Instituto de Psiquiatria do King’s College, Londres, Inglaterra. Orientadora da Pós-graduação do Departamento de Psiquiatria da Unifesp/EPM. Ary Gadelha de A. A. Neto. Doutor em Psiquiatria pela Unifesp/EPM. Coordenador do Programa de Esquizofrenia (PROESQ) da Unifesp/EPM. Caio Magno Matos de Almeida. Psiquiatra. Especialista em Dependência Química pela Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (UNIAD) da Unifesp/EPM. Cecília Roberti Proença. Médica. Especialista em Psiquiatria pela Unifesp/EPM. Cláudio Jerônimo da Silva. Psiquiatra. Especialista em Dependência Química e Doutor em Ciências pela Unifesp/EPM. Professor Afiliado da Disciplina de Psiquiatria Clínica do Departamento de Psiquiatria da Unifesp/EPM. Cristina Hajaj Gonzalez. Doutora em Ciências pela Unifesp/EPM. Coordenadora do Centro de Tratamento do Transtorno Obsessivo-Compulsivo (Centoc) do Departamento de Psiquiatria da Unifesp/EPM. Dartiu Xavier da Silveira. Especialista em Dependência Química pelo Centre Medical Marmottan, Paris, França. Mestre e Doutor em Psiquiatria pela Unifesp/EPM. Professor Livre-docente do Departamento de Psiquiatria da Unifesp/EPM. Edison Antonio de Almeida Prado Fagá. Médico. Residência em Psiquiatria pela Unifesp/EPM. Eduardo Seraidarian Najjar. Médico. Especialista em Psiquiatria pela Unifesp/EPM. Francine Nunes Ferreira. Psiquiatra. Colaboradora do Programa de Atendimento e Pesquisa em Violência (Prove) da Unifesp/EPM. Gabriela Rached El Helou Siloto. Psiquiatra. Especialista em Psiquiatria da Infância e da Adolescência pela Unidade de Psiquiatria da Infância e da Adolescência (Upia) do Departamento de Psiquiatria da Unifesp/EPM. Coordenadora de Assistência do Programa de Atendimento às Psicoses da Infância e da Adolescência (Papia/Proesq) da Unifesp/EPM. Coordenadora da Equipe de Psiquiatria da Infância e Adolescência do AME Psiquiatria Dra. Jandira Masur. Médica Pesquisadora da Upia/Unifesp/EPM.

Giulianno Ruffo Capatti. Médico. Residência em Psiquiatria pela Unifesp/EPM. Gustavo Machado Barros. Psiquiatra. Coordenador da Unidade de Internação Psiquiátrica do Hospital São Paulo. Hesley Lucena Landim Miranda. Médico. Especialista em Psiquiatria pelo Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto e em Psicogeriatria pela Unifesp/EPM. Ivete Gianfaldoni Gattás. Psiquiatra da infância e da adolescência. Coordenadora da Upia/Unifesp. Jair de Jesus Mari. Professor Titular do Departamento de Psiquiatria da Unifesp/EPM. Jessica Felício Abegão. Médica. Residência em Psiquiatria pela Unifesp/EPM. José Alberto Del Porto. Médico. Residência em Psiquiatria, Mestre e Doutor em Psicofarmacologia pela Unifesp/EPM. Professor Titular do Departamento de Psiquiatria da Unifesp/EPM. José Atílio Bombana. Médico. Especialista e Doutor em Psiquiatria pela Unifesp/EPM. Professor Afiliado da Disciplina de Psicoterapia do Departamento de Psiquiatria da Unifesp/EPM. José Cássio do Nascimento Pitta. Professor-assistente e Chefe do Departamento de Psiquiatria da Unifesp/EPM. Juliana Augusta Plens de Moura Garcia. Psiquiatra pela Unifesp/EPM. Juliana de Sousa Ribeiro de Carvalho. Médica. Residência em Psiquiatria pela Unifesp/EPM. Juliana Pinto Moreira dos Santos. Médica. Residência em Psiquiatria pela Unifesp/EPM. Julieta Freitas Ramalho da Silva. Professora Adjunta do Departamento de Psiquiatria da Unifesp/EPM. Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Larissa Fogaça Doretto. Médica. Residência em Psiquiatria pela Unifesp/EPM. Laura Martins Feitosa. Pediatra. Psiquiatra. Residência em Psiquiatria da Infância e da Adolescência pela Unifesp/EPM. Lucas Cese Marchetti. Médico. Especialista em Psiquiatria pela Unifesp/EPM. Luciana de Moraes Bernal. Psiquiatra pela Unifesp/EPM. Residência em Psiquiatria da Infância e da Adolescência pela Unifesp/EPM. Luciana Sarin. Mestre em Psiquiatria pelo Departamento de Psiquiatria da Unifesp/EPM. Psiquiatra-assistente do Ambulatório de Doenças Afetivas do Programa de Distúrbios Afetivos e Amorosos (Prodaf) da Unifesp/EPM. Coordenadora do Ambulatório de Depressão Refratária da Associação para Desenvolvimento, Educação e Recuperação do Excepcional (ADERE). Luiz Henrique Junqueira Dieckmann. Psiquiatra. Mestre em Psiquiatria pela Unifesp/EPM.

Marcelo Feijó de Mello. Médico. Mestre e Doutor em Psiquiatria pela Unifesp/EPM. Doutor em Psiquiatria pelo Hospital do Servidor Público Estadual. Pós-doutor em Neurociências pela Brown University, Rhode Island, EUA. Professor Adjunto da disciplina de Psiquiatria do Departamento de Psiquiatria da Unifesp/EPM. Marco Antonio Nocito Echevarria. Médico. Residência em Psiquiatria pela Unifesp/EPM. Maria Conceição do Rosário. Professora Adjunta da Upia/Unifesp. Professora associada do Child Study Center da Universidade de Yale, EUA. Coordenadora da Upia/Unifesp e do Curso de Especialização em Saúde Mental da Infância e Adolescência (CESMIA). Marília Queiroz Foloni. Psiquiatra do Departamento de Psiquiatria da Unifesp/EPM e do Núcleo de Medicina Psicossomática do Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE). Psicoterapeuta pela Escola Paulista de Psicodrama (EPP). Mônica Cristina di Pietro. Psiquiatra. Mestre e Doutoranda em Psiquiatria pela Unifesp/EPM. Pesquisadora do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes do Departamento de Psiquiatra da Unifesp/EPM. Preceptora do Serviço de Emergências Psiquiátricas do Hospital São Paulo da Unifesp/EPM. Nelson Trentini Júnior. Médico. Especialista em Psiquiatria pela Unifesp/EPM. Especialista em Psicanálise pelo Instituto Sedes Sapientiae. Osvladir Custódio. Psiquiatra e Terapeuta Cognitivo. Mestre em Saúde Mental pela Unifesp/EPM. Supervisor do Programa de Atendimento Neuropsicogeriátrico (PAN) da Unifesp/EPM. Rafael Latorraca. Residência em Psiquiatria pela Unifesp/EPM. Régis André Severino Hueb. Médico. Residência em Psiquiatria pela Unifesp/EPM. Renato Oliveira Rossi. Residência em Psiquiatria pela Unifesp/EPM. Renzo Roldi Rossoni. Psiquiatra. Especialista em Psiquiatria Geral e Psiquiatria da Infância e da Adolescência pela Unifesp/EPM. Samoara Correa Barbosa. Psiquiatra. Especialista em Psiquiatria pelo Hospital de Clínicas de Porto Alegre/Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Psicogeriatra pela Unifesp/EPM. Sheila C. Caetano. Psiquiatra da infância e da adolescência. Doutora e Pós-doutora pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Professora adjunta do Departamento de Psiquiatria da Unifesp/EPM. Coordenadora da Upia/Unifesp. Tássio Andrade Reis. Residência em Psiquiatria pela Unifesp/EPM. Thays Mello Ferreira. Psiquiatra pela Unifesp/EPM. Thiago Marques Fidalgo. Doutor pelo Departamento de Psiquiatria da Unifesp/EPM. Coordenador do Setor de Assistência do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (PROAD) da Unifesp/EPM.

Vanessa de Albuquerque Cítero. Professora Afiliada do Departamento de Psiquiatria da Unifesp/EPM. Pós-doutora em Psiquiatria pela Virginia Commonwealth University, EUA. Coordenadora do Serviço de Saúde Mental do Hospital Universitário da Unifesp/EPM. Victor Siciliano Soares. Médico. Residência em Psiquiatria pela Unifesp/EPM. Vinícius Lopes Emygdio de Faria. Psiquiatra pela Unifesp/EPM.

Apresentação

A atualização dos temas psiquiátricos mais relevantes é sempre bem-vinda. Quando se elabora um livro, pergunta-se a que público ele se destina, e o Manual de Psiquiatria Clínica é necessário para alunos, residentes, membros das equipes de saúde mental e, principalmente, clínicos gerais. Os capítulos abrangem praticamente toda a psiquiatria moderna, o que torna este manual um importante guia para profissionais da saúde. Todos tiveram o envolvimento de um jovem, que, sob a supervisão de seus professores, desenvolveu em linguagem clara conhecimentos atualizados da psiquiatria. Os temas abordam desde a entrevista psiquiátrica, os transtornos psiquiátricos do adulto e da criança, as populações especiais e as emergências até a questão ética em psiquiatria, além de demonstrarem o interesse dos jovens em prosseguir com suas pesquisas em um futuro breve. Como este manual foi escrito por residentes, sob a supervisão dos Professores do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, só pode ser comemorado como um feito raro e precioso, por dar conta da profundidade do conhecimento e da qualidade dos alunos. É mister do Departamento de Psiquiatria preparar quadros para o futuro, e este livro mostra que a tarefa está sendo feita a contento. Marcos Pacheco de Toledo Ferraz Professor Titular de Psiquiatria Aposentado do Departamento de Psiquiatria da Unifesp/EPM

Prefácio

A Residência Médica, instituída no Brasil em 5 de setembro de 1977, constitui uma modalidade de ensino de pós-graduação destinada aos médicos, sob a forma de curso de especialização, e funciona em instituições de saúde, sob a orientação de profissionais médicos de elevada qualificação ética e profissional, sendo considerada o padrão-ouro da especialização médica. Ao longo de mais de 30 anos, muitas transformações ocorreram. A constante evolução da medicina e o aumento dos conhecimentos científicos resultaram de forma inevitável em maior cobrança pela qualidade desses profissionais. Hoje, a maioria dos hospitais que alocam residentes possui suas atividades totalmente dependentes desses jovens médicos, o que resulta em excesso de carga de trabalho e horários extenuantes. Com o objetivo de ajudar nessa difícil missão, a Associação dos Médicos Residentes da Escola Paulista de Medicina (AMEREPAM) tem o prazer de contribuir com a série “Manual do Residente da Universidade Federal de São Paulo”, que envolve as mais diversas especialidades médicas e tem como finalidade levar ao residente, de forma fácil e ágil, as informações de maior relevância para a boa prática clínica. Luiz Fernando dos Reis Falcão Professor Adjunto de Anestesiologia da Unifesp Research Fellow da Harvard Medical School – Harvard University Idealizador da série “Manual do Residente da Universidade Federal de São Paulo”, em sua gestão como diretor científico da AMEREPAM – Gestão 2008-2009 A série “Manual do Residente da Universidade Federal de São Paulo” entrou em uma nova etapa após consolidar-se como um sucesso entre residentes e médicos de todo o país. Dessa forma, o Manual de Psiquiatria Clínica dá continuidade a esse sucesso, apresentando um texto com o conhecimento médico mais recente dentro de cada especialidade. Assim, novos residentes assumiram a coordenação das obras, permitindo que mais ideias fossem abordadas e exploradas. Nesse contexto, a Associação dos Médicos Residentes da Escola Paulista de Medicina (AMEREPAM) assumiu o papel de organizar as reedições e estimular a elaboração de novos manuais para atender a diversidade de programas de residência médica em nossa instituição e no país. Marcos Devanir Silva da Costa Presidente da AMEREPAM – Gestão 2013-2014 Residente de Neurocirurgia da Unifesp Colaborador da Liga Acadêmica de Neurocirurgia da Unifesp

Mestrando do Programa Tecnologias e Atenção à Saúde da Unifesp Muitas vezes, o médico residente é o pilar de funcionamento dos hospitais e o primeiro contato do paciente com o serviço, e isso exige formação adequada para o cumprimento de suas funções. Os avanços da medicina e da ciência ocorrem em considerável velocidade, o que requer do médico o uso permanente de ferramentas de atualização das informações. A série “Manual do Residente da Universidade Federal de São Paulo” tem a finalidade de colaborar com a formação e a atualização médica de maneira rápida e objetiva, trazendo conteúdos atualizados e fundamentados nas melhores evidências disponíveis na literatura médica nacional e internacional. A Associação dos Médicos Residentes da Escola Paulista de Medicina (AMEREPAM) traz aos leitores o Manual de Psiquiatria Clínica. Agradecemos aos residentes e aos colaboradores que tornaram possível esta obra, empenhando-se para contribuir com um conteúdo novo e necessário ao dia a dia da residência médica. Klaus Nunes Ficher Presidente da AMEREPAM – Gestão 2014-2015 Residente de Clínica Médica da Unifesp

Lista de Abreviaturas

5-HT = serotonina ACTH = hormônio adrenocorticotrófico AD = antidepressivo ADAS-Cog = Alzheimer’s Disease Assessment Scale – Cognitive subscale ADHD = attention deficit and hiperactivity disorder ADT = antidepressivo tricíclico AIDS = síndrome da imunodeficiência adquirida AINH = anti-inflamatórios não hormonais AIT = ataque isquêmico transitório AIVD = atividades instrumentais da vida diária ALT = alanina aminotransferase AMI = amissulprida AMP = monofosfato de adenosina AMPA = ácido alfa-3-hidroxi-5-metil-4-isoxazol propiônico AN = anorexia nervosa ANASE = antidepressivo noradrenérgico e serotoninérgico específico AP = antipsicótico ARFID = transtorno da evitação/restrição de ingestão alimentar ARIP = aripiprazol ASG = antipsicótico de segunda geração ASIR = antagonistas serotoninérgicos/inibidores da recaptação de serotonina AST = aspartato aminotransferase ATD = antidepressivo AVC = acidente vascular cerebral AVD = atividades da vida diária BDNF = fator neurotrófico derivado do cérebro (brain derived neurotrophic factor) BN = bulimia nervosa CANMAT = Canadian Network for Mood and Anxiety Treatments CAPS = Centros de Atenção Psicossocial CB = canabinoides CBZ = carbamazepina CCL = comprometimento cognitivo leve CDR = clinical dementia rating CEBRID = Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas CEM = Código de Ética Médica CGI = clinical global impression CHLOR = clorpromazina CID-10 = Classificação Internacional de Doenças, 10a edição

CIWA-Ar = Clinical Institute Withdrawal Assessment Scale for Alcohol, Revised COMT = catecol-O-metiltransferase CPK = creatinofosfoquinase CRH = hormônio liberador de corticotrofina CYP450 = citocromo p-450 CZP = clozapina D = dopamina DA = doença de Alzheimer DALY = disability-adjusted life year DCL = declínio cognitivo leve DDI = distúrbio dissociativo de identidade DHL = discreta desidrogenase lática DM = diabetes melito DNPM = desenvolvimento neuropsicomotor DPOC = doença pulmonar obstrutiva crônica DRESS = exantema por drogas com eosinofilia e sintomas sistêmicos (drug rash with eosinophilia and systemic syndrome) DSM = Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) DT = discinesia tardia DTI = tensores de difusão (diffusion tensor imaging) DU = dose única DUP = período de psicose não tratada (duration of untreated pychosis) DV = demência vascular DY-BOCS = Dimensional Yale-Brown Obsessive-Compulsive Scale ECA = episódios de compulsão alimentar ECG = eletrocardiograma ECT = eletroconvulsoterapia EEG = eletroencefalograma EH = estabilizadores de humor EMT = estimulação magnética transcraniana FAST = escala de Estadiamento Funcional (Functional Assessment Scale) FC = frequência cardíaca FDA = Food and Drug Administration FSH = hormônio foliculoestimulante (follicle-stimulating hormone) GABA = ácido gama-aminobutírico GAF = Global Assessment of Function HAL = haloperidol HAM-D = Escala de depressão de Hamilton HAS = hipertensão arterial sistêmica HIV = vírus da imunodeficiência humana (human immunodeficiency virus) HPA = hipotálamo-hipofisário-adrenal IAM = infarto agudo do miocárdio

IC = intervalo de confiança IECA = inibidor da enzima conversora de angiotensina IM = via intramuscular IMAO = inibidores da monoaminoxidase IMC = índice de massa corporal IPAP = International Psychopharmachology Algorithm Program IPC = internação psiquiátrica compulsória IPI = internação psiquiátrica involuntária IPVI = internação psiquiátrica voluntária que se torna involuntária IRNA = inibição da recaptação de noradrenalina IRND = inibidor da recaptação da noradrenalina e da dopamina IRSN = inibidor da recaptação de serotonina e noradrenalina ISBD = International Society for Bipolar Disorders ISRN = inibidor seletivo da recaptação de noradrenalina ISRS = inibidor seletivo da recaptação de serotonina ITU = infecção do trato urinário IV = via intravenosa LC = locus ceruleus LH = hormônio luteinizante (luteinizing hormone) LSD = dietilamida do ácido lisérgico MADRS = escala de pressão de Montgomery MAO = monoaminoxidase MARTA = multi-acting receptor-targeted antipsychotics MEEM = miniexame do estado mental NAA = N-acetil-aspartato NAC = N-acetilcisteína NCS = National Comorbibity Survey NE = neurônio excitatório NGF = fator de crescimento do nervo (nerve growth factor) NHSDA = National Household Survey on Drug Use and Health NICE = National Institute of Clinical Excellence NIDA = National Institute of Drugs Abuse NIH = National Institutes of Health NMDA = N-metil-D-aspartato OLANZ = olanzapina OMS = Organização Mundial da Saúde OROS = osmotic-controlled release oral delivery system P5 = 5o percentil PA = pressão arterial PANDAS = Pediatric Autoimmune Neuropsychiatric Disorders Associated with Streptococcal Infections PANSS = Escala das Síndromes Positivas e Negativas (Positive and Negative Syndrome Scale)

PBR = receptores benzoadiazepínicos periféricos (peripheal-type benzodiazepine receptors) PEP = primeiro episódio psicótico PET = tomografia por emissão de pósitrons (pósitron emission tomography) PKC = proteinoquinase C PMD = psicose maníaco-depressiva QUET = quetiapina REM = sono de movimentos rápidos dos olhos RISP = risperidona RM = ressonância magnética RMe = ressonância magnética estrutural RMf = ressonância magnética funcional RMP = relação médico-paciente RNA = ácido ribonucleico SAA = síndrome de abstinência alcoólica SEP = sintomas extrapiramidais SL = sublingual SNA = sistema nervoso autônomo SNC = sistema nervoso central SNG = sonda nasogástrica SNM = síndrome neuroléptica maligna SOC = sintomas obsessivo-compulsivos SOE = sem outra especificação SPCD = sintomas psicológicos e comportamentais associados à demência SPECT = tomografia por emissão de fóton único (single photon emission computadorized tomography) SRAA = sistema reticular ativador ascendente SRQ 20 = self-reporting questionnaire SUS = Sistema Único de Saúde T3 = tri-iodotironina T4 = tiroxina T4L = tiroxina livre TA = transtorno alimentar TAB = transtorno afetivo bipolar TAG = transtorno de ansiedade generalizada TANE = transtornos alimentares não especificados TARE = transtorno alimentar de restrição e evitação TASOE = transtornos alimentares sem outra especificação TBH = transtorno bipolar do humor TC = tomografia computadorizada TCA = transtorno de compulsão alimentar TCC = terapia cognitivo-comportamental TDAH = transtorno do déficit de atenção com hiperatividade

TDM = transtono depressivo maior TEPT = transtorno do estresse pós-traumático TF = transtorno factício TIG = transtorno de identidade de gênero TIP = terapia interpessoal TOC = transtorno obsessivo-compulsivo TOD = transtorno opositor-desafiador TP = transtorno de personalidade TPN = tumescência peniana noturna TRH = hormônio liberador de tireotropina TSH = hormônio estimulante da tireoide TVP = trombose venosa profunda VO = via oral ZIP = ziprasidona

Sumário

Seção I

Princípios gerais

1 Entrevista psiquiátrica Seção II 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17

Transtornos psiquiátricos do adulto Transtornos depressivos Transtorno afetivo bipolar Transtornos de ansiedade Transtorno obsessivo-compulsivo Transtorno do estresse pós-traumático Esquizofrenia e outras psicoses Primeiro episódio psicótico Transtornos dissociativos Transtornos somatoformes Transtorno factício e simulação Transtornos da personalidade Transtornos alimentares Transtornos da sexualidade Dependência de álcool Tabagismo Outras dependências químicas

Seção III 18 19 20 21

Populações especiais Princípios da psiquiatria na infância e na adolescência Depressão, ansiedade e insônia no idoso Psicose e agitação no idoso Uso de psicofármacos no período perinatal

Seção IV 22 23 24 25 26 27

Emergências psiquiátricas

Suicídio Agitação psicomotora e catatonia Delirium Síndrome de abstinência alcoólica Síndrome neuroléptica maligna Síndrome serotoninérgica

Seção V

Psiquiatria Forense

28 Aspectos éticos e legais da prática psiquiátrica

SEÇÃO I

PRINCÍPIOS GERAIS

Capítulo 1

ENTREVISTA PSIQUIÁTRICA Giulianno Ruffo Capatti e José Cássio do Nascimento Pitta

INTRODUÇÃO A anamnese psiquiátrica consiste no relato histórico do transtorno mental de um paciente, desde o período que antecede o início da doença até as últimas manifestações psicopatológicas que motivaram o atendimento atual. Dessa maneira, a anamnese é o conjunto de informações obtidas do paciente (anamnese subjetiva) ou de seus familiares (anamnese objetiva) que se relacionam com seu adoecimento mental. Os dados considerados relevantes para o paciente nem sempre são os mesmos valorizados pelos seus familiares, e cabe ao entrevistador avaliá-los e selecionar os tópicos importantes, possibilitando uma melhor sistematização. A anamnese se diferencia de uma entrevista “livre” ou de um questionário padronizado; sua transcrição deve consistir, na medida do possível, em uma coleta de dados significativos, em ordem cronológica e sistematizada, possibilitando a compreensão sobre o transtorno mental do paciente e todos os fatores clínicos e psicossociais relacionados. A finalidade é proporcionar ao entrevistador uma compreensão lógica do desenvolvimento da personalidade, dos fatores estressores relacionados com o início e a evolução do quadro clínico, bem como do ambiente sociofamiliar em que essas manifestações psicopatológicas tiveram início, progrediram e influenciaram na sua evolução. Outro importante aspecto da anamnese é a coleta de dados sobre a relação que se estabelece entre o paciente e seus familiares, tanto antes quanto após o início do transtorno. A obtenção dos dados para elaborar a história deve envolver tanto a finalidade de se alcançar um diagnóstico descritivo quanto a compreensão dinâmica das relações interpessoais, vinculadas ao transtorno mental. Assim, para possibilitar tal compreensão, a entrevista deve ter características “flexíveis”, oscilando entre a busca estruturada de fatos específicos e uma postura não estruturada de escuta do fluxo natural dos processos de pensamento do paciente. A anamnese e o exame do estado mental são elementos fundamentais para se estabelecer uma hipótese diagnóstica e, consequentemente, a intervenção terapêutica. Essa intervenção varia de acordo com o grau de emergência e o ambiente em que ocorre o atendimento, como pronto-socorro, unidades de internação e ambulatórios.

ANAMNESE PSIQUIÁTRICA Os itens que constituem a anamnese são: •

Identificação do paciente: nome, idade, data de nascimento, sexo, nacionalidade, naturalidade, estado civil, religião, escolaridade, profissão, grupo étnico, endereço e









telefone Queixa principal: o entrevistador deve redigir sucintamente e, de preferência, com as palavras do paciente as queixas que motivaram o atendimento. Nas circunstâncias em que isso se torna inviável, o registro pode ser feito por meio do relato dos familiares. Os registros transcritos de falas do paciente ou dos familiares ao longo da anamnese devem ser feitos entre aspas ou entre parênteses com a expressão (sic) Motivo da internação/da procura do atendimento: o entrevistador deve descrever os fatos que motivaram a internação. Essas informações podem ser obtidas com o paciente, os familiares ou o serviço de assistência que o encaminhou História pregressa da doença atual: esse relato pode ser considerado a extensão da queixa principal, consistindo em seu detalhamento. O entrevistador deve investigar primeiramente há quanto tempo o paciente apresenta as manifestações psicopatológicas relatadas e, posteriormente, descrever, em ordem cronológica, todos os sintomas, sua respectiva intensidade e como influenciaram seu desempenho afetivo, familiar, social e profissional. Deve ser descrito se o início da alteração do comportamento ocorreu de maneira aguda ou insidiosa e a existência de fatores estressores relacionados. Em relação à evolução do quadro psiquiátrico, deve-se questionar sobre períodos de remissão completa, com retorno ao desempenho prévio nas áreas anteriormente citadas, ou se a remissão foi apenas parcial, prejudicando o retorno do paciente às suas condições anteriores ao início da doença. Outro item importante é o relato dos tratamentos anteriores e a averiguação sobre a adesão, os motivos das possíveis interrupções do tratamento e a análise da eficácia desses tratamentos. Deve-se pesquisar a ocorrência e o número de internações prévias, o tempo de internação, as condições de alta e manutenção do tratamento, assim como relatar as medicações atuais História pessoal: este relato é de grande importância para o entendimento de todos os elementos factuais e condições físicas e psíquicas ao longo da vida do paciente que estão associados ao adoecimento mental e sua evolução. Esses dados devem ser descritos cronologicamente, iniciando nas condições da gestação e concluindo com as circunstâncias atuais. Devem ser investigados: – Problemas na gravidez e condições do parto – Número de irmãos – Ordem de nascimento – Desenvolvimento neuropsicomotor e comportamento durante a infância e a adolescência (crescimento, alimentação e aprendizado, relacionamento interpessoal) – Doenças na infância – Desempenho escolar – Menarca – Relacionamento interpessoal – História sexual – Namoros – Serviço militar (motivo da dispensa)

– – – – – – – – – – –





Uso de álcool; tabaco e outras substâncias psicoativas Desempenho profissional Situação trabalhista atual Relacionamento interpessoal (social e afetivo) Relacionamento conjugal Comportamento sexual Ciclo menstrual Gravidez e puerpério Climatério Fatores estressores (violência, acidentes, perdas) Condições clínicas: ■ Doenças transmissíveis ■ Acidentes, internações, cirurgias, traumatismos ■ Tentativas de suicídio ■ Doenças (crônicas e graves) ■ Utilização de medicações (prescritas, não prescritas e abuso) História familiar: a análise dos dados da família visa a compreender o ambiente em que o paciente nasceu, se desenvolveu e vive atualmente. Deve-se investigar antecedentes patológicos da família que possam estar associados à sua condição mórbida. Assim, é necessário analisar os itens relacionados com o ambiente e com os antecedentes clínicos: – Antecedentes familiares ■ Consanguinidade ■ Transtornos mentais na família ■ Tratamento e internações psiquiátricas ■ Suicídio ou tentativas ■ Epilepsia ■ Uso de álcool e outras substâncias psicoativas – Ambiente familiar ■ Número de membros, especificando os vivos e os falecidos ■ Problemas de adaptação ■ Ambiente familiar e social ■ Com quem mora, características do relacionamento familiar ■ Condições socioeconômicas ■ Condições de moradia ■ Vizinhança ■ Privacidade ■ Características culturais específicas do grupo social ■ Concepções religiosas Interrogatório dos diferentes aparelhos: o entrevistador deve interrogar de modo sistemático sobre os demais sistemas biológicos: circulatório, respiratório, digestório, geniturinário, locomotor, neurológico, metabólico, endócrino e tegumentar. Especial atenção deve ser voltada a dados sugestivos de disfunções psicossomáticas,

endócrinas e neurológicas. Ao término da coleta das informações anteriormente descritas, espera-se que o entrevistador analise a correlação entre as manifestações psicopatológicas e o contexto biográfico e psicossocial em que ocorrem. A anamnese psiquiátrica é complementada com os exames do estado mental, físico e complementares.

EXAME DO ESTADO MENTAL Esse exame consiste na observação e na descrição das funções psíquicas do paciente. O entrevistador deve descrever primeiramente a avaliação da atitude geral do paciente e, posteriormente, de maneira detalhada, cada uma das funções e suas alterações psicopatológicas. As próprias palavras ou frases do paciente podem ser utilizadas, entre aspas. Essas funções são: consciência, atenção, orientação, consciência do eu, memória, linguagem, inteligência, pensamento, afetividade e humor, sensopercepção, psicomotricidade e volição.

Atitude geral Este item inicia com a avaliação de características físicas relevantes, dos cuidados pessoais, incluindo as condições higiênicas e o vestuário. Analisa-se também como se estabelece o contato e qual é a atitude do paciente perante o entrevistador, ou seja, sua colaboração, hostilidade, respostas evasivas ou lacônicas, discurso com espontaneidade ou respostas mais sucintas, fácies e mímica.

Consciência O estado de consciência deve ser descrito em relação à sua forma conservada, ou seja, a lucidez psíquica, ou a ocorrência de possíveis alterações. Essas alterações podem ser: quantitativas, denominadas do nível da consciência, sendo o normal denominado vígil, e as possíveis alterações sendo turvação ou obnubilação, torpor, estupor, coma superficial ou profundo; e qualitativas, do campo da consciência, sendo as alterações estreitamento do campo, estados crepusculares ou hipnóticos, incluindo os estados dissociativos. A descrição de atenção, orientação e memória é útil para analisar a consciência em relação tanto ao nível quanto ao campo da consciência.

Atenção Investiga-se a capacidade do paciente de manter o foco ou a concentração em um determinado objeto, denominada atenção voluntária, e a direção a um estímulo novo ou diferente, denominada atenção espontânea.

Orientação Avalia-se a capacidade de se orientar em relação a si próprio, denominada orientação autopsíquica (nome, idade, sexo, profissão e estado civil) e em relação ao ambiente,

denominada orientação alopsíquica ou temporoespacial, considerando o tempo (ano, mês, dia, hora) e o espaço (lugar, andar, caminho percorrido).

Consciência do eu Investiga-se a consciência em relação à propriedade dos sentimentos, pensamentos e ações (atividade do eu), a compreensão de que o eu é uno e indivisível (unidade do eu), de ser o mesmo na sucessão do tempo (identidade do eu) e o evidente limite entre o eu e o mundo externo (oposição do eu).

Memória A memória diz respeito à habilidade de registrar, reter e evocar fatos ocorridos ao longo da vida. Avaliam-se a memória de fixação (anterógrada), de curto prazo, e a memória de evocação (retrógrada), de longo prazo, ou seja, a capacidade de manifestar as lembranças em ordem cronológica.

Linguagem Investiga-se a capacidade de comunicação pela fala e escrita. As alterações podem ser de caráter de articulação (disartria) ou da capacidade de expressar o conteúdo (afasia). Pode haver também prejuízos da capacidade de ler (alexia) ou escrever (agrafia). Existem alterações na velocidade do discurso (bradilalia; taquilalia) ou da quantidade de discurso (logorreia). A ausência de fala pode ocorrer (mutismo). Existem também alterações qualitativas da linguagem: ecolalia (repetição da última palavra ou sílaba ouvida); palilalia (repetição da última palavra ou sílaba dita); coprolalia (tendência à inclusão de palavras obscenas no discurso); tartamudez (gagueira); solilóquios (falar sozinho, sugestivo de alucinações).

Inteligência Avalia-se um conjunto de habilidades mentais como raciocínio, planejamento, abstração, criatividade, aprendizagem imediata etc. Pode-se apenas estimar a inteligência de um indivíduo por meio de uma entrevista psiquiátrica.

Pensamento Analisa-se o processo de pensar, como o paciente organiza suas representações mentais, a consistência de suas ideias, sua compreensão, a capacidade de abstração e o julgamento da realidade. Descreve-se curso (velocidade do pensamento), forma (o encadeamento das ideias) e conteúdo (a natureza da ideação, ideias prevalentes, fixas ou o julgamento distorcido da realidade denominado ideias delirantes).

Humor e afetividade A afetividade é a capacidade individual de experimentar emoções, paixões e sentimentos,

acompanhados de uma ideia ou representação mental. O humor é conceituado como o tônus afetivo ou estado de ânimo que prevalece em determinado período. Avalia-se sua polarização para tristeza, alegria, ansiedade e irritabilidade, e a exacerbação ou vivência desproporcional desses sentimentos. Em relação ao afeto, avaliam-se a modulação, a estabilidade e sua ressonância ao meio ambiente.

Sensopercepção A sensopercepção diz respeito à capacidade de transformar os estímulos sensoriais (auditivos, visuais, olfatórios, gustativos, táteis, proprioceptivos, cinestésicos e cenestésicos) em representações ou percepções. Em última instância, consistiria em tomar conhecimento, a partir de experiências anteriores, de um estímulo sensorial. Avaliam-se as alterações quantitativas (hiperestesias e hipoestesias) e qualitativas (ilusões, alucinações e alucinoses) da sensopercepção.

Psicomotricidade Consiste na correlação entre o estado mental e a atividade motora. Avaliam-se a quantidade de movimentação e a inquietude que o paciente apresenta durante a entrevista. Pode estar aumentada (inquieto ou agitado) ou diminuída (inibição psicomotora).

Volição A volição é a capacidade de cada indivíduo de se exercitar, escolher, julgar, deliberar e realizar seus atos voluntários, muitas vezes em desacordo com suas tendências instintivas ou seus hábitos.

Crítica e noção da doença A noção da doença pode ser definida como um julgamento mais superficial pouco reflexivo ou elaborado em relação ao seu próprio estado mórbido. Já a crítica ou consciência da doença consiste em uma compreensão mais elaborada, em que o paciente elabora e apresenta um sentimento ou julgamento de modificação, consequência ou prejuízo perante seu transtorno mental. O entrevistador deve atentar para esses elementos, principalmente para antever a adesão ao tratamento e quais as melhores estratégias para alcançá-la.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A anamnese psiquiátrica, associada ao exame do estado mental, é um instrumento de grande importância para a elaboração da hipótese diagnóstica de um transtorno mental e suas implicações nas condições psicossociais do paciente, assim como para avaliar a evolução clínica.

BIBLIOGRAFIA

Bastos CL. Manual do exame psíquico: uma introdução prática à psicopatologia. Rio de Janeiro: Revinter,1997. Dalgalarrondo P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2008. Jasper K. Psicopatologia geral. 2.ed. São Paulo: Atheneu, 1987. Portella Nunes E, Romildo Bueno J, Nardi AE. Psiquiatria e saúde mental. Rio de Janeiro: Atheneu,1996.

SEÇÃO II

TRANSTORNOS PSIQUIÁTRICOS DO ADULTO

Capítulo 2

TRANSTORNOS DEPRESSIVOS Cecília Roberti Proença e Luciana Sarin

INTRODUÇÃO O transtorno depressivo maior (TDM) é uma doença comum, heterogênea e incapacitante que afeta 10 a 15% da população ao ano. Apesar dos avanços na compreensão da psicofarmacologia e dos biomarcadores da depressão, assim como da introdução de novas classes de vários antidepressivos, apenas 60 a 70% dos pacientes com esse transtorno respondem à terapêutica antidepressiva. Dentre aqueles que não respondem, em torno de 10 a 30% apresentam sintomas residuais associados a dificuldades sociais e profissionais, declínio da saúde física, pensamentos suicidas e maior utilização dos serviços de saúde.1 O impacto do TDM na qualidade de vida pode ser tão grande ou maior que o das doenças crônicas como o diabetes. Dependendo da gravidade da depressão, uma média de 59% dos pacientes com TDM relatam prejuízo grave em domínios como trabalho, família, relacionamentos e vida social. O tratamento do TDM deve, portanto, incluir, além do alívio dos sintomas emocionais e físicos, a melhora do funcionamento psicossocial e profissional dos pacientes.2

EPIDEMIOLOGIA A depressão é uma condição comum, e o risco do episódio depressivo maior durante a vida é de aproximadamente 15%. É uma doença progressiva, que tende a recorrência e cronicidade: 25% dos pacientes apresentam recaídas nos primeiros 6 meses e 85% em um período de até 15 anos.2 A idade média de início varia entre 24 e 35 anos, e a prevalência dos transtornos depressivos é 1,6 a 3,1 vezes maior em mulheres, o que pode estar relacionado com alterações hormonais, gestação, parto e estressores psicossociais.3 A depressão maior ocorre em cerca de 17 a 37% dos pacientes de cuidados primários com 65 anos ou mais, e 12 a 30% dos idosos que vivem em instituições.4 O risco de suicídio deve ser sempre avaliado. Entre 20 e 40% dos pacientes com transtorno afetivo apresentam tentativas de suicídio, e 15% dos pacientes com depressão grave cometem suicídio. Dentre os que cometem suicídio, até 70% procuram seus clínicos gerais dentro de 6 semanas antes do episódio.5

FISIOPATOLOGIA DA DEPRESSÃO Depressão é um transtorno neurobiológico complexo que, assim como outras condições,

por exemplo doenças cardiovasculares, câncer e diabetes tipo 2, é produzida por múltiplas alterações de genes e suas interações com fatores ambientais, que podem aumentar o risco, como o estresse, ou conferir proteção, como o apoio social.6 Experiências adversas precoces (maus-tratos, abuso físico ou psicológico e falta de suporte social) podem aumentar o risco de depressão em indivíduos vulneráveis. O estresse ambiental influencia o desenvolvimento inicial da depressão em indivíduos suscetíveis, mas uma vez estabelecido o padrão de vulnerabilidade, novos episódios podem surgir ao longo do tempo, cada vez mais facilmente, sem que seja necessária a presença do estressor ambiental. Este conceito é semelhante ao modelo de progressão neurológica na epilepsia conhecido como kindling.7 Em um grande estudo de gêmeos do sexo feminino (N = 2.395), Kendler et al. demonstraram que, depois de quatro episódios de depressão, a ocorrência dos episódios depressivos têm menor relação com os estressores ambientais.8 A neurobiologia da depressão está associada a cinco áreas importantes do cérebro: córtex pré-frontal (inclui o córtex orbitofrontal, dorsolateral e cingulado anterior), a amígdala e o hipocampo, que fazem parte do sistema límbico. O córtex pré-frontal está envolvido em funções executivas (resolução de problemas, abstração, planejamento e julgamento). O córtex orbitofrontal regula os impulsos, compulsões e motivação e é relevante para vínculo e interação social. O cingulado anterior é uma área crítica para a valorização ou antecipação de recompensa e regulação de emoções. A amígdala é um ponto-chave de retransmissão para o processamento de estimulação afetiva positiva e negativa, e o hipocampo é importante tanto para a recuperação e o armazenamento de novas memórias, quanto na inibição de feedback do eixo hipotálamo-pituitária-adrenal (HPA), que está envolvido na resposta ao estresse.9 Sheline et al. estudaram o volume da substância cinzenta no hipocampo de pacientes com depressão e encontraram uma relação inversa entre o número de dias de depressão não tratada e volume do hipocampo, isto é, quanto maior o tempo que os pacientes permaneceram sem tratamento, menor seu hipocampo.10 A perda de volume em estruturas cerebrais frontolímbicas de pacientes com depressão pode ser o resultado de uma redução do volume neuronal e da densidade das células da glia, que é a característica mais proeminente da patologia celular na depressão. As células da glia fornecem glicose para os neurônios e proteção contra os efeitos deletérios de aminoácidos excitatórios, como o glutamato. Elas também participam da modulação da neurotransmissão e facilitam a reparação neuronal e sua sobrevivência por meio da síntese e liberação fatores neurotróficos. A redução do número e volume de células gliais pode levar à redução de volume neuronal e também de conectividade.11

QUADRO CLÍNICO Os sistemas de classificação diagnóstica têm sido centrados nos sintomas emocionais de um episódio depressivo maior, como humor deprimido, perda de interesse ou prazer e sentimentos de inutilidade. No entanto, a importância dos sintomas físicos em pacientes

com depressão maior também tem sido bem estabelecida. Estima-se que 69 a 92% desses pacientes apresentem sintomas somáticos. A apresentação clínica de um quadro depressivo pode ser muito variada. Embora alguns sintomas psíquicos, comportamentais ou físicos não sejam necessários para que o diagnóstico seja feito, é importante que eles sejam avaliados e valorizados. A Tabela 2.1 descreve sintomas que podem estar presentes no quadro clínico da depressão, incluindo desde os sintomas do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) até sintomas relacionados com comorbidades.12,13 Tabela 2.1 Sintomas clínicos. Sintomas psíquicos

Sintomas comportamentais

Sintomas físicos

Humor deprimido

Tentativa de suicídio

Fadiga/falta de energia

Alentecimento ou Perda de prazer

agitação psicomotora

Insônia ou hipersônia

Ataques de raiva Perda de interesse/motivação

Redução da produtividade

Aumento ou perda de apetite

Baixa autoestima

Redução de atividades de lazer

Aumento ou perda de peso

Culpa

Isolamento social

Indecisão

Esquiva de intimidade emocional e sexual

Disfunção sexual

Ideias/planos suicidas

Uso/abuso de substâncias

Dor

Redução de libido

Vitimização

Cefaleia

Hipersensibilidade Perfeccionismo

Automutilação

Sensação de peso em braços e/ou pernas

Tensão muscular Queixas gastrintestinais

Pessimismo/desesperança

Taquicardia

Sentimentos de desamparo

Palpitações

Irritabilidade

Sensação de queimação

Ansiedade/nervosismo

Distorções cognitivas Redução da concentração Sensação de estresse Em itálico estão os sintomas clínicos que fazem parte dos critérios de TDM no DSM. Os demais sintomas também podem fazer parte do episódio depressivo ou estar relacionados com comorbidades psiquiátricas. Adaptada de Cassano et al. (2002) e American Psychatric Association (2013).12,13

As depressões são condições clínicas heterogêneas, com diferentes cursos e apresentações, e a divisão em subtipos auxilia o tratamento e a determinação dos fatores de risco. Sua classificação é feita conforme as características do episódio (p. ex., melancólica, atípica), polaridade (unipolar ou bipolar), curso (recorrente ou crônico), fatores desencadeantes (p. ex., puerperal) e gravidade (leve, moderada ou grave).14 A Tabela 2.2 lista os principais subtipos depressivos. Tabela 2.2 Subtipos de depressão. Subtipos de depressão Melancólica

Características Humor não reativo, anedonia, perda de peso, culpa, agitação/alentecimento psicomotor, piora matinal do humor, despertar precoce

Atípica

Humor reativo, hipersônia, aumento do apetite, sensação de peso nos membros, sensibilidade à rejeição pessoal

Psicótica

Presença de delírios e alteração de sensopercepção

Catatônica

Catalepsia, excitação catatônica, negativismo ou mutismo, maneirismos ou estereotipias, ecolalia ou ecopraxia

Crônica

Sintomas preenchem critérios de episódio depressivo maior com duração de 2 anos ou mais

Sazonal

Início e remissão dos sintomas em determinada estação do ano

Puerperal

Início dos sintomas depressivos dentro das primeiras 4 semanas pós-parto

Adaptada de Gentil et al. (2011).14

DIAGNÓSTICO A entrevista psiquiátrica é a melhor ferramenta de que se dispõe para o diagnóstico de TDM, uma vez que não existem até hoje exames laboratoriais disponíveis para avaliação desses pacientes, embora sejam crescentes as evidências na literatura a esse respeito.

Questionários e entrevistas semiestruturados podem ajudar na identificação e acompanhamento clínico de pacientes deprimidos. Na 5a edição do DSM (DSM-5), publicada em 2013, os transtornos depressivos passaram a ser classificados da seguinte forma: • • • • • • • •

Transtorno disruptivo de desregulação do humor Transtorno depressivo maior Transtorno depressivo persistente (distimia) Transtorno disfórico pré-menstrual Transtorno depressivo induzido por substâncias Transtornos depressivos induzidos por condição médica Outros transtornos depressivos específicos Transtorno depressivo sem outra especificação.

O TDM representa a condição clássica desse grupo de transtornos. É caracterizado por episódios distintos de, pelo menos, 2 semanas de duração (embora a duração da maioria dos episódios seja consideravelmente maior), envolvendo alterações nítidas em afeto, cognição e funções neurovegetativas, além de remissões interepisódicas. O diagnóstico baseado em um único episódio é possível, embora o transtorno seja recorrente na maioria dos casos. No Quadro 2.1 são descritos os critérios diagnósticos do DSM-5.13 Quadro 2.1 Critérios diagnósticos do TDM segundo DSM-5. A. Presença de cinco ou mais sintomas, por no mínimo 2 semanas, representando mudança em padrão funcional prévio e pelo menos um dos sintomas deverá ser (1) humor deprimido ou (2) perda de prazer/interesse *Não incluir sintomas que possam ser atribuídos a outra condição médica •

Humor deprimido na maior parte do dia, quase todos os dias, indicado por relato subjetivo (p. ex., sentimento de tristeza, vazio, desesperança) ou observação feita por terceiros (p. ex., choro fácil). (Nota: em crianças e adolescentes, o humor pode ser irritável)



Redução evidente do interesse ou prazer em todas ou quase todas as atividades na maior parte do dia, quase todos os dias (indicado por relato subjetivo ou observação de terceiros)



Perda de peso significativa, na ausência de dieta ou ganho de peso (p. ex., alteração de mais de 5% do peso corporal em 1 mês), ou diminuição/aumento do apetite quase todos os dias. (Nota: em crianças, considerar ausência de ganho de peso esperado)



Insônia ou hipersônia quase todos os dias



Agitação ou alentecimento psicomotor na maioria dos dias (observado por terceiros, não bastam sentimentos subjetivos de inquietação ou alentecimento)



Fadiga ou perda de energia na maioria dos dias



Sentimentos de inutilidade ou culpa excessiva e/ou inadequada (a qual pode ser delirante) na maioria dos dias (não meramente

autorrecriminação ou culpa por estar doente) •

Capacidade diminuída de pensar e/ou concentrar-se ou indecisão, quase todos os dias (relato subjetivo ou observado por terceiros)



Pensamentos recorrentes de morte (não apenas medo de morrer), ideação suicida recorrente sem um plano específico, tentativa de suicídio ou um plano específico para cometer suicídio

B. Os sintomas devem causar estresse significativo ou prejuízo social, ocupacional ou em outra área de funcionamento C. O episódio não pode ser atribuído a efeitos psicológicos do uso de substância ou de outra condição médica Nota: critérios A-C representam episódio depressivo maior. As respostas a uma perda significativa (p. ex., perda financeira, desastre natural, doença médica séria ou invalidez) podem incluir sentimentos de tristeza intensa, ruminação sobre a perda, insônia, falta de apetite e perda de peso, observados no critério A, podendo assemelhar-se a um episódio depressivo. Embora esses sintomas possam ser compreendidos ou considerados apropriados para a situação de perda, deve-se considerar cuidadosamente a possibilidade da presença de um episódio depressivo maior, somado à resposta normal a uma perda significativa. Esta decisão requer o exercício de julgamento clínico baseado na história do indivíduo e nas normas culturais para a expressão de sofrimento no contexto de perda D. A ocorrência do episódio depressivo maior não pode ser explicada melhor por transtorno, esquizofrenia, transtorno delirante ou doença inespecífica do espectro da esquizofrenia ou outros transtornos psicóticos E. Ausência de história prévia de episódio maníaco ou hipomaníaco. Nota: essa exclusão não se aplica aos episódios de mania/hipomania induzidos por substância ou atribuíveis aos efeitos fisiológicos de outra condição médica Adaptado de American Psychiatric Association (2013).13 100% de magenta

COMORBIDADES A prevalência de comorbidades psiquiátricas e/ou clínicas em transtornos de humor é alta e está associada a idade de início mais precoce, sintomatologia mais grave, aumento das taxas de suicídio, pior recuperação sintomática e funcional, pior resposta aguda aos tratamentos farmacológico e psicossocial, prejuízo da qualidade de vida, menores taxa de remissão e evolução desfavorável.

PSIQUIÁTRICAS No estudo populacional National Comorbidity Survey-Replication (NCS-R), 72% dos pacientes com diagnóstico de depressão maior apresentaram critérios diagnósticos para outros transtornos mentais ao longo da vida, sendo 59,2% transtornos de ansiedade e 24% transtornos por uso de substâncias.2 Além dos transtornos ansiosos e uso de substâncias, transtornos alimentares ou de personalidade estão frequentemente associados a quadros depressivos. Durante os últimos 20 anos, o significado clínico dos sintomas de ansiedade em

pacientes com TDM tem sido cada vez mais reconhecido. Dada a alta prevalência de ansiedade em pacientes com TDM, o DSM-5 incluiu critérios para um especificador de ansiedade no TDM (ver Quadro 2.2).13 A presença de ansiedade em pacientes com TDM prevê maior morbidade, com aumento da tendência suicida, maior prejuízo funcional, piora da qualidade de saúde e de vida, curso longitudinal mais pobre, maior número de episódios de depressão e pior resposta ao tratamento. Quadro 2.2 Critérios diagnósticos de distimia segundo DSM-5. Presença de pelo menos dois dos seguintes sintomas durante a maioria dos dias, em um episódio depressivo maior ou transtorno depressivo persistente (distimia): •

Sentimento de tensão



Sensação incomum de inquietação



Dificuldade de concentração decorrente de preocupação excessiva



Medo de que algo terrível possa acontecer



Sensação de possibilidade de perda do autocontrole

Especificar gravidade atual: Leve: presença de dois sintomas Moderado: presença de três sintomas Moderada a grave: presença de quatro ou cinco sintomas Grave: presença de quatro ou cinco sintomas e agitação motora Nota: ansiedade tem sido observada como uma característica tanto do transtorno bipolar como do transtorno depressivo maior. Altos níveis de ansiedade têm sido associados a maior risco de suicídio, maior duração da doença e menores taxas de resposta ao tratamento. Assim, é importante que sua presença e gravidade sejam identificadas, para melhor planejamento terapêutico Adaptado de American Psychiatric Association (2013).13

A presença de ansiedade em pacientes com TDM prevê maior morbidade, com aumento da tendência suicida, maior prejuízo funcional, piora da qualidade de saúde e de vida, curso longitudinal mais pobre, maior número de episódios de depressão e pior resposta ao tratamento.

Substâncias que levam à alteração de humor O uso de substâncias lícitas ou ilícitas (inclusive medicamentos) pode desencadear

sintomas semelhantes aos de um episódio depressivo, sendo o quadro, na maioria das vezes, resolvido dentro de até 30 dias após descontinuação do uso. As substâncias mais frequentemente associadas à alteração do humor são: álcool, anfetaminas, ansiolíticos, cocaína, alucinógenos, hipnóticos, inalantes, opioides e sedativos.3

CLÍNICAS A associação entre doenças clínicas e depressão é comum e ocorre principalmente em portadores de doenças crônicas, como diabetes melito, doença cardiovascular, disfunção tireoidiana e distúrbios neurológicos. Por outro lado, sintomas depressivos podem ser secundários a uma condição orgânica, sendo fundamental a abordagem terapêutica da causa de base, além do quadro psiquiátrico.14 A tabela 2.3 lista condições médicas que frequentemente estão associadas a sintomas depressivos. Tabela 2.3 Condições médicas associadas a sintomas depressivos. Doença de Alzheimer, acidente vascular cerebral, neoplasia de SNC, trauma cranioencefálico, infecção de SNC, demências, epilepsia, distúrbios extrapiramidais, Condições neurológicas

doença de Huntington, hidrocefalia, migrânea, esclerose múltipla, narcolepsia, doença de Parkinson, paralisia supranuclear progressiva, apneia do sono, doença de Wilson

Doenças inflamatórias/autoimunes

Artrite reumatoide, síndrome de Sjögren, lúpus eritematoso sistêmico, arterite temporal Distúrbios da adrenal, doença de Cushing, doença de Addison, hiperaldosteronismo,

Doenças endócrinas/metabólicas

hiperparatireoidismo, hipo/hipertireoidismo, deficiência vitamina B12/folato/tiamina, insuficiência hepática

Doenças cardiopulmonares Outros

Infecção, infarto agudo do miocárdio, circulação extracorpórea Infecção bacteriana/viral, AIDS, neoplasias/síndrome paraneoplásica, síndrome de Klinefelter, porfirias, doença renal, uremia, anemia, condições pós-operatórias

SNC = sistema nervoso central; AIDS = síndrome da imunodeficiência adquirida. Adaptada de Lam et al. (2012) e Gentil et al. (2011).3,14

Doenças clínicas podem contribuir para o desenvolvimento de quadros depressivos por meio de mecanismos diretos (lesão cerebral, hipotireoidismo) ou de mecanismos fisiológicos relacionados com o estresse (ativação do eixo HPA e do sistema imunológico). A hiperfunção do eixo HPA e o aumento dos níveis de citocinas pró-inflamatórias são comuns em condições clínicas, as quais, adicionadas a fatores psicossociais podem contribuir para a associação com os transtornos de humor.15 A presença de doenças clínicas em pacientes com depressão leva a pior prognóstico,

por causa de menor adesão ao tratamento, maior morbimortalidade e taxas de mortalidade.15 Por outro lado, a depressão provavelmente aumenta a morbidade das doenças clínicas por meio de mecanismos biológicos, como aumento da atividade do eixo HPA, da estimulação simpática e dos níveis de citocinas pró-inflamatórias. Doenças cardiometabólicas são causa comum de mortalidade prematura no paciente deprimido.16

DIAGNÓSTICOS DIFERENCIAIS O primeiro passo na avaliação de um paciente é diferenciar cuidadosamente o episódio depressivo de casos de tristeza normal. O luto, por exemplo, pode levar a grave sofrimento, mas não está necessariamente associado a sintomas depressivos. Na última atualização do DSM, houve mudança em relação a esse diagnóstico: antes, a duração do luto por mais de 6 meses determinava uma condição patológica. Agora, esse período não é mais um critério determinante. Se houver sintomas depressivos durante mais de 2 semanas, mesmo que após uma perda ou luto, poderá ser feito o diagnóstico de episódio depressivo. O principal diagnóstico diferencial psiquiátrico é a depressão bipolar. É muito comum que pacientes com sintomas depressivos sejam diagnosticados com depressão unipolar quando realmente têm transtorno bipolar ou depressão bipolar, que comumente cursa com depressões recorrentes, mais graves, crônicas e de difícil tratamento. Daí a importância da investigação de episódios prévios de mania e/ou hipomania frente a um quadro de depressão. Uma das principais razões que pode mascarar a verdadeira condição bipolar é que a doença de um paciente pode começar com a depressão unipolar e só mais tarde se manifestar um episódio de hipomania ou mania.

SINAIS E SINTOMAS SUGESTIVOS DE DEPRESSÃO BIPOLAR Embora a principal diferença entre a depressão unipolar e transtorno afetivo bipolar (TAB) seja a presença de episódios de hipomania ou mania,17 outros sintomas e características clínicas podem oferecer pistas. As evidências sugerem que as pessoas com depressão bipolar tendem a apresentar mais irritabilidade, ansiedade, agitação e ideação suicida do que aqueles com depressão unipolar. O TAB é menos associado a insônia e queixas somáticas do que a depressão unipolar.18 Também são sugestivos de depressão bipolar o pensamento acelerado, sintomas atípicos (hipersônia e aumento do apetite), despertar precoce, sintomas psicóticos e episódios depressivos altamente recorrentes. Nessas situações, é importante ter uma história objetiva do paciente e investigar o histórico familiar. Outros fatores que podem indicar a necessidade de rastrear episódios maníaco e hipomaníaco são o mau funcionamento por questões interpessoais, mudanças frequentes de emprego e problemas legais. Ataques de raiva frequentes também podem estar presentes no estado misto bipolar.18,19 Episódios maníacos podem ter consequências adversas como doenças sexualmente transmissíveis ou gravidez não planejada, acidentes automobilísticos, engajamento em atividades de risco. A presença de história familiar de

TAB aumenta o risco em cerca de 20% dos filhos terem a doença. Se ambos os pais são afetados, o risco de um transtorno de humor nos filhos aumenta até cerca de 70%.16 Pacientes com sintomas psicóticos no início do episódio depressivo, idade de início precoce, resistência ou mania induzida pelo antidepressivo, isto é, quando o tratamento com antidepressivos não parece ser eficaz ou, inversamente, se parece ser muito eficaz bem rapidamente, o paciente pode ter distúrbio bipolar não diagnosticado.20 O diagnóstico preciso e precoce do TAB é benéfico para pacientes, suas famílias e para a sociedade, pois reduz o risco de suicídio, o comprometimento funcional de longa duração, a perda de trabalho, o comprometimento das relações familiares, problemas legais, o maior número de internações e os maiores custos com saúde.

TRATAMENTO O tratamento do TDM ainda constitui um desafio para clínicos e especialistas, pois cerca de 65% dos pacientes não atingem remissão após a primeira tentativa de tratamento antidepressivo com dose e duração suficientes, e aqueles que o fizerem, muitas vezes têm sintomas residuais. O principal objetivo do tratamento da depressão é alcançar a remissão sintomática e recuperação funcional dos pacientes. Depois de confirmado o diagnóstico de TDM, o tratamento adequado deve ser escolhido com base nas necessidades e características individuais do paciente e, ao mesmo tempo, ser considerada a disponibilidade desse tratamento, custo-eficácia, segurança e dosagem ideais. Além disso, o estabelecimento de uma aliança terapêutica e educação dos pacientes sobre a doença são os primeiros passos no tratamento da depressão. Diferenças robustas na eficácia global entre antidepressivos parecem não existir, mas, pelo perfil de melhor tolerabilidade e segurança superiores, o uso de antidepressivos mais recentes, tais como inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS), inibidores de recaptação de serotonina e noradrenalina (IRSN) ou inibidores de recaptação de noradrenalina e dopamina (IRND), são preferidos sobre o uso de inibidores da monoaminoxidase (IMAO) ou antidepressivos tricíclicos (ADT). O conhecimento dos antidepressivos de cada classe, incluindo os perfis de efeitos colaterais, estratégias de dosagem e interações medicamentosas, ajudará na seleção de uma medicação apropriada com base nas necessidades de cada paciente, assim como as estratégias de tratamento naqueles pacientes que não respondem à terapêutica de primeira linha.

ETAPAS DO TRATAMENTO •



Fase aguda (primeiras 12 semanas): a meta é atingir resposta (redução igual ou maior que 50% na pontuação em escalas de avaliação padronizadas, como Escala de Depressão de Hamilton (HAM-D) ou Escala de Depressão de Montgomery (MADRS) ou remissão completa dos sintomas (redução menor ou igual a 7 na HAM-D) Continuação (4 a 9 meses): o objetivo é consolidar a melhora obtida na fase aguda do tratamento evitando recaídas dentro de um mesmo episódio depressivo. Ao final dessa fase, se o paciente permanece bem, é considerado recuperado do episódio atual



Manutenção (após mínimo de 1 ano): o objetivo é evitar que novos episódios ocorram, portanto, a terapia é recomendada para os pacientes com risco de recorrência. Os fatores de risco que indicam necessidade de manutenção do tratamento são: episódios graves (e/ou com sintomas psicóticos), crônicos (duração > 2 anos), comorbidades (clínicas e/ou psiquiátricas), sintomas residuais, episódios frequentes/recorrentes, idosos, refratariedade.

A ausência de remissão pode impactar os funcionamentos ocupacional, físico, social e conjugal, gerar aumento da probabilidade de episódios futuros e maior risco de suicídio, além de afetar o bem-estar mental da prole.21

ESCOLHA DO ANTIDEPRESSIVO A escolha do antidepressivo deve ser feita com base na eficácia e outros fatores, como segurança, tolerabilidade, facilidade de uso, comorbidades, interações medicamentosas, subtipo da depressão e custo. É preferível a escolha de medicamento que foi eficaz em episódio depressivo anterior do paciente ou de familiares e cujas reações adversas e efeitos colaterais foram bem tolerados, pois pode haver predisposição genética a responder a um determinado antidepressivo com base no seu mecanismo de ação. Os antidepressivos são classificados com base no seu mecanismo de ação, incluindo bloqueadores de recaptação de neurotransmissores (ISRS, IRSN, IRND e tricíclicos), IMAO e bloqueadores dos receptores de neurotransmissores (antidepressivos com um único mecanismo de ação). Alguns agentes têm vários modos de ação, o que lhes dá um maior potencial de eficácia, mas também um maior risco de efeitos colaterais do que os agentes com um único mecanismo de ação. A Tabela 2.4 lista os antidepressivos e seus mecanismos de ação disponíveis no mercado brasileiro.22 A terapia farmacológica dos episódios agudos e de manutenção da depressão, em linhas gerais, obedece às seguintes etapas, descritas na Figura 2.1. Tabela 2.4 Mecanismos de ação dos antidepressivos. Mecanismo de ação

Antidepressivo

Dose (mg/dia)

Fluoxetina

20 a 80

Fluvoxamina

50 a 300

Sertralina

50 a 200

Paroxetina

20 a 60

Citalopram

20 a 60

Escitalopram

10 a 20

ISRS

Venlafaxina

75 a 225

Desvenlafaxina

50 a 200

Duloxetina

60 a 120

Amitriptilina

75 a 300

Clomipramina

75 a 250

Nortriptilina

50 a 150

Imipramina

75 a 300

Reboxetina

4 a 12

Tranilcipromina

30 a 60

Moclobemida

300 a 600

IRND

Bupropiona

150 a 450

ANASE

Mirtazapina

15 a 45

Trazodona

200 a 600

Agomelatina

25 a 50

IRSN

Tricíclicos

ISRN

IMAO

ASIR ISRS = inibidor seletivo da recaptação de serotonina; IRSN = inibidor da recaptação de serotonina e noradrenalina; ISRN = inibidor seletivo da recaptação de noradrenalina; IMAO = inibidores da monoaminoxidase; IRND = inibidor da recaptação de noradrenalina e da dopamina; ANASE = antidepressivo noradrenérgico e serotoninérgico específico; ASIR = antagonistas serotoninérgicos/inibidores da recaptação de serotonina. Adaptada de Cordioli AV (2011).22 Figura 2.1 Algoritmo para tratamento farmacológico dos transtornos depressivos sem sintomas psicóticos. AAP = antipsicótico atípico; T3 = triiodotironina. Adaptada de Lam, et al. (2009).23

Figura 2.1 Algoritmo para tratamento farmacológico dos transtornos depressivos sem sintomas psicóticos. AAP = antipsicótico atípico; T3 = tri-iodotironina. Adaptada de Lam, et al. (2009).23 Nos casos de depressão com sintomas psicóticos, o algoritmo anterior não se aplica, sendo recomendada a associação de um antipsicótico ao antidepressivo (Figura 2.2). Embora haja evidências de que eletroconvulsoterapia (ECT) é eficaz em qualquer subtipo de episódio depressivo, este método parece ser especialmente útil em casos de depressão com sintomas psicóticos.24

NOVOS MEDICAMENTOS MULTIMODAIS Os antidepressivos multimodais apresentam diversos mecanismos de ação, exercendo diferentes graus de atividade em vários sistemas das monoaminas, incluindo aqueles regulados pela serotonina, dopamina e glutamato. Vários subtipos de receptores de serotonina, incluindo receptores 5-HT3, 5-HT1A, 5-HT7 e 5-HT1B, parecem modular indiretamente a neurotransmissão de glutamato em determinadas regiões do cérebro. Assim sendo, a ação concomitante nas monoaminas e glutamato tratam tanto o humor deprimido como o comprometimento da cognição. Vilazodona e vortioxetina são exemplos de antidepressivos serotoninérgicos multimodais que modulam diretamente a neurotransmissão de serotonina e indiretamente a transmissão de glutamato.





Vilazodona: inibe a recaptação de serotonina, inibindo SERT (serotonin transporter), e o agonismo parcial de receptores 5-HT1A. Estudos indicam que esta combinação de mecanismos de ação reduz o início da atividade antidepressiva do medicamento, além de reduzir os efeitos colaterais decorrentes da inibição de recaptação de serotonina (como disfunção sexual) e ter um melhor impacto na redução de sintomas ansiosos.25 Vortioxetina: inibe a recaptação de serotonina, inibindo SERT, além de outras interações com receptores, em subtipos diferentes de receptor de serotonina: 5-HT3, 5-HT1A, 5-HT1D, 5-HT7. Apresenta menos efeitos colaterais e parece ter benefício na melhora de sintomas cognitivos.24

Figura 2.2 Algoritmo para o tratamento de depressão psicótica. Adaptada de Trivedi et al. (2006).26 ISRS/ISRN: inibidores seletivos de receptação de serotonina e de noradrenalina; ECT: eletroconvulsoterapia; TCA: antidepressivo tricíclico; AP = antipsicótico.

MONITORAMENTO DA RESPOSTA TERAPÊUTICA Durante o seguimento do paciente, a resposta ao tratamento deve ser monitorada, preferencialmente com base em escalas validadas. Os benefícios dessas escalas incluem a avaliação detalhada dos sintomas e a medição confiável do impacto do tratamento, garantindo que a remissão completa seja alcançada. As escalas de depressão mais utilizadas com essas finalidades são a HAM-D ou MADRS.27 A maioria das diretrizes de tratamento disponíveis para os transtornos depressivos recomenda o uso contínuo de antidepressivos por 4 a 8 semanas com base no início tardio de resposta a esses fármacos. Dados recentes indicam que os antidepressivos começam a exercer seus efeitos dentro das primeiras 2 semanas de tratamento, e a ausência de

resposta precoce pode prever um resultado desfavorável ao longo da evolução. Esses resultados sugerem a necessidade de revisitar o tempo de substituição do antidepressivo para não respondedores, em um estágio mais precoce do que sugere a prática atual. Na continuidade do tratamento, a remissão deve ser atingida e o paciente deve retornar ao seu nível pré-mórbido de funcionamento.28 Os pacientes que não respondem integralmente ao tratamento apresentam maior risco de recaída a longo prazo, de cronicidade, suicídio e pior funcionamento ocupacional. A avaliação eficaz para detectar uma resposta inadequada ao antidepressivo e presença de sintomas residuais é um aspecto crítico no tratamento da depressão.

PSICOTERAPIA Diferentes tipos de psicoterapia têm sido amplamente utilizados no tratamento dos transtornos depressivos. A terapia cognitivo-comportamental (TCC) e a terapia interpessoal (TIP) apresentam maiores evidências de eficácia até o momento. Os benefícios da TCC em pacientes com quadro depressivo leve a moderado já estão determinados. A TIP é recomendada como tratamento de primeira linha para quadros agudos de episódio depressivo maior, apesar de não haver dados que comprovem sua superioridade em relação à TCC ou a tratamento farmacológico.29

DEPRESSÃO REFRATÁRIA AO TRATAMENTO O TDM é considerado refratário ao tratamento quando são usados pelo menos dois antidepressivos (geralmente de duas classes farmacológicas diferentes) sem que seja obtida uma melhora significativa do paciente. A presença de sintomas residuais de depressão ao final do tratamento agudo aumenta o risco de recorrência, recaída e refratariedade. Pacientes com depressão refratária têm risco 2 vezes maior de hospitalização por motivos médicos e/ou relacionados com depressão, têm mais consultas ambulatoriais e usam mais psicotrópicos (incluindo antidepressivos) do que os pacientes com depressão que tiveram resposta ao tratamento.30

Substituição de antidepressivo A primeira estratégia empregada no tratamento da depressão que não atingiu remissão completa é o aumento da dose do antidepressivo. A substituição por uma classe de antidepressivo diferente ou por um composto diferente da mesma classe também é uma estratégia comum utilizada para tratar a depressão que não respondeu aos antidepressivos de primeira linha. O estudo STAR*D (Sequenced Treatment Alternatives to Relieve Depression),1 demonstrou que cerca de 25% dos pacientes obtiveram remissão após a primeira substituição para outro antidepressivo (seja na mesma classe ou não), mas mudanças subsequentes produziram taxas de remissão de 10 a 15%. Estudo de Souery et al.31 constatou que a substituição por uma classe diferente de antidepressivos em pacientes não respondedores resultou em taxas de remissão semelhantes tanto com a mudança dentro da mesma classe como em classe diferente (19% e 14%, respectivamente).

Potencialização de antidepressivo A potencialização preserva os benefícios do antidepressivo usado inicialmente nos respondedores parciais e aumenta seu efeito por meio de mecanismos de ação complementares. Uma das vantagens da potencialização é que ela elimina o período de transição de um antidepressivo para outro e parte da resposta parcial já obtida, por isso pode ter um efeito mais rápido. Essa estratégia normalmente tem como alvo sintomas residuais específicos do paciente, como insônia ou ansiedade e, portanto, as características desses sintomas devem guiar a escolha do tipo de potencialização a ser realizada.32 •





Lítio: é a estratégia de potencialização que conta com o maior número de estudos publicados até hoje. Crossley e Bauer33 publicaram metanálise recente de 10 estudos randomizados controlados com placebo demonstrando que a potencialização com lítio tem uma taxa de resposta 3 vezes maior que o placebo. O lítio deve ser administrado em regime de titulação rápida em adultos que não apresentam efeitos adversos importantes: o carbonato de lítio é iniciado com uma dose diária de 450 mg, e a dose é aumentada até 900 mg no segundo dia. Este esquema leva a níveis séricos de lítio de 0,5 a 0,7 mmol/l na maioria dos pacientes. O primeiro ajuste da dose pode ser realizado depois de atingido o estado de equilíbrio, isto é, 5 dias após a última mudança de dosagem para que o nível terapêutico seja atingido. A avaliação da resposta do paciente pode ser feita a partir da quarta semana de tratamento. Pacientes tratados com lítio tiveram um risco 88,5% menor de suicídio ou tentativas de suicídio ao longo do tempo.34 Nos pacientes que respondem a essa potencialização, doses eficazes de lítio devem ser mantidas em combinação com o antidepressivo por, pelo menos, 12 meses após a remissão, e em pacientes com depressão recorrente durante período ainda maior Antipsicóticos atípicos: a potencialização de antidepressivos com antipsicóticos atípicos dispõe de uma ampla base de evidência na literatura. O uso desses agentes não deve ser limitado à depressão psicótica ou depressão bipolar. Existem importantes diferenças entre os grupos e apresentam eficácia comprovada a risperidona, olanzapina, aripiprazol e quetiapina.35 A potencialização com antipsicóticos atípicos ainda apresenta várias questões em aberto em relação ao tempo de duração da potencialização e se a eficácia é sustentada durante o tratamento de manutenção. Outra pergunta ainda sem definição clara na literatura é se existem subgrupos de pacientes que obteriam maior benefício com os atípicos, como aqueles com ansiedade comórbida e depressão atípica. Finalmente, a relação custo/benefício em termos de risco de síndrome metabólica e de discinesia tardia também necessitam maior investigação Medicações antiglutamatérgicas: a cetamina é um antagonista não competitivo do receptor NMDA (N-metil-D-aspartato) do glutamato; é usada como anestésico há mais de 40 anos e tem sido estudada como tratamento antidepressivo de ação rápida, em casos de depressão resistente a tratamento. Seu mecanismo de ação tem impacto não







apenas no humor, mas também na cognição. As condições de segurança do uso da cetamina vêm sendo avaliadas para determinação dos riscos e benefícios em casos de depressão resistente ao tratamento36 Agentes dopaminérgicos: os psicoestimulantes podem ser usados como agentes de potencialização na depressão refratária, mas uma revisão sistemática revelou apenas um modesto suporte para a sua utilização.37 A modafinila, um psicoestimulante que promove o estado de vigília, demonstrou melhorar sintomas residuais de fadiga e sonolência em pacientes em uso de ISRS.38 O pramipexol, usado na doença de Parkinson, apresenta efeitos antidepressivos em pacientes que não responderam aos ISRS.39 O metilfenidato, usado no tratamento do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), não se mostrou eficaz como adjuvante do antidepressivo em adultos com depressão refratária, porém pode ser eficaz nos sintomas residuais como fadiga e sonolência. A lisdexanfetamina, usada no tratamento do TDAH, foi avaliada como tratamento coadjuvante ao escitalopram em adultos (18 a 55 anos de idade) com TDM. A partir da oitava semana de tratamento, o fármaco melhorou os sintomas depressivos quando comparado ao placebo. A estimativa do tamanho de efeito da lisdexanfetamina foi de 0,3, que é comparável com a estimativa do tamanho do efeito da potencialização com antipsicótico atípico40 Hormônio tireoidiano: a potencialização do hormônio da tireoide é de fácil manejo e apresenta poucos efeitos colaterais. Uma metanálise que avaliou o hormônio da tireoide potencializando tricíclicos em pacientes refratários demonstrou evidências de aumento da resposta e diminuição da gravidade dos sintomas depressivos em comparação com indivíduos controle.41 Embora a eficácia do hormônio tireoidiano em pacientes deprimidos com níveis de hormônio estimulante da tireoide (TSH, thyroid-stimulating hormone) normais e função tireoidiana normal ainda seja inconclusiva, essa estratégia deve ser considerada para pacientes refratários aos antidepressivos que apresentem hipotireoidismo ou aqueles com um nível de TSH elevado, mas sem hipotireoidismo clínico42 Buspirona: agentes ansiolíticos, incluindo os benzodiazepínicos, também podem ser usados como estratégia de potencialização de antidepressivos no tratamento da depressão refratária. A buspirona é um agonista parcial do receptor pós-sináptico 5HT1A. Os pacientes do estudo STAR*D que receberam o citalopram associado a buspirona apresentaram aproximadamente a mesma probabilidade de responder ou remitir que os pacientes que receberam combinação de citalopram e bupropiona.43

Outras opções de potencialização podem ser encontradas na área da medicina complementar e alternativa, como o uso de folato e ômega-3.44

Combinação de antidepressivos A falta de eficácia dos antidepressivos de primeira linha pode ser parcialmente explicada pela sua incapacidade de atuação em determinados sintomas depressivos específicos, inclusive sintomas residuais. Por exemplo, antidepressivos serotoninérgicos reduzem sintomas associados ao aumento de afeto negativo, como culpa, irritabilidade, ansiedade e

medo, porém eles podem ter eficácia menor nos sintomas associados à diminuição do afeto positivo, como a perda de prazer, de interesse, de energia e fadiga. Por outro lado, antidepressivos que aumentam as atividades noradrenérgica e dopaminérgica podem melhorar sintomas associados a afeto positivo, mas não atingir remissão completa dos sintomas associados ao afeto negativo. Portanto, é possível reduzir sintomas em pacientes com resistência ao tratamento por meio de estratégias de combinação de antidepressivos com diferentes mecanismos de ação, pois, ao combinar mecanismos que atuam em diferentes sistemas neurotransmissores, é criada uma ação sinérgica que aumenta a atividade neuronal da serotonina, norepinefrina e dopamina.45 A associação de um ISRS com bupropiona, por exemplo, é uma combinação bastante comum no tratamento da depressão refratária, particularmente quando existem efeitos adversos de disfunção sexual, ganho de peso e/ou síndrome amotivacional.46

OUTRAS TERAPÊUTICAS BIOLÓGICAS Outras intervenções terapêuticas que vêm sendo utilizadas no tratamento da depressão são privação de sono, atividade física, fototerapia, estimulação magnética transcraniana, além de procedimentos cirúrgicos, como estimulação do nervo vago ou estimulação cerebral profunda. A ECT geralmente é um tratamento de primeira linha em determinadas circunstâncias clínicas, como em casos de ideação suicida aguda, presença de sintomas psicóticos, depressão resistente ao tratamento, catatonia, intolerância a medicações, estado físico rapidamente deteriorante, gestação ou preferência do paciente. A ECT é eficaz para todos os subtipos de transtorno depressivo maior, incluindo a depressão atípica e a depressão bipolar, podendo ser especialmente eficaz nos casos em que há ideação suicida e em casos de depressão psicótica.27

PROGNÓSTICO O episódio depressivo leve a moderado sem tratamento pode durar 4 a 30 semanas, e o episódio grave pode ter duração média de 6 a 8 meses, e 25% dos pacientes se mantêm sintomáticos por mais de 12 meses. Em torno de 25% dos indivíduos com transtorno depressivo recidivam nos primeiros 6 meses, 58% em 5 anos e 85% dentro de 15 anos após a recuperação. Além disso, pacientes que desenvolveram dois episódios depressivos têm 70% de chance de apresentar um terceiro episódio e, destes, 90% apresentam risco de um novo episódio.3 O tempo de remissão dos sintomas depressivos pode ser considerado um fator prognóstico. A remissão rápida (< 6 semanas de tratamento) é um importante preditor de bom prognóstico a longo prazo, enquanto a falta de resposta adequada ao primeiro antidepressivo já é um preditor de resistência futura ao tratamento.28 São fatores de mau prognóstico, segundo o STAR*D, episódios depressivos longos, comorbidades médicas e psiquiátricas e pior funcionamento e qualidade de vida no início do tratamento, sendo este um grupo menos propenso à remissão completa. Os sintomas

residuais, também são um fator de mau prognóstico (ainda que os pacientes preencham critérios de remissão): quanto maior o número sintomas residuais, maior a taxa de recaída. Entre os pacientes que atingiram remissão, mais de 90% tinham um ou mais sintomas residuais, sendo mais frequentes os problemas cognitivos, de apetite e sono.47 Pacientes que atingiram remissão com sintomas residuais tiveram mais episódios depressivos, menor tempo entre os episódios (3 vezes mais rápido), maior prejuízo no trabalho e nos relacionamentos e maior risco de suicídio em comparação com pacientes assintomáticos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A depressão é um dos grandes problemas de saúde pública do mundo, do ponto de vista econômico, custo social e suicídio. Embora um número crescente de prescrições de antidepressivos seja feito para pessoas que não são diagnosticadas com depressão, um grande número de pacientes deprimidos ainda recebe terapêutica inadequada ou nenhum tratamento para esse transtorno. As decisões de tratamento devem ser tomadas individualmente, a escolha do antidepressivo orientada pelas características clínicas do paciente e os benefícios ponderados em função dos custos e riscos conhecidos associados a essa medicação, para que sua eficácia e tolerabilidade sejam otimizadas. Os sintomas devem ser cuidadosamente monitorados de maneira contínua, ao longo do tratamento, para que a remissão completa do episódio depressivo seja alcançada e, assim, os custos do TDM possam ser evitados ou minimizados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1.

Rush AJ, Warden D, Wisniewski SR, Fava M, Trivedi MH, Gaynes BN et al. STAR*D: revising conventional wisdom. CNS Drugs. 2009;23(8):627-47.

2.

Kessler RC, Berglund P, Demler O, Jim R, Koretz D, Merkangas KR et al. The epidemiology of major depressive disorder: results from the National Comorbidity Survey Replication (NCS-R). JAMA. 2003;289(23):3095-105.

3.

Lam RW. Depression – Revised second edition. Oxford Psychiatry Library, 2012.

4.

Birrer RB, Vemuri SP. Depression in later life: a diagnostic and therapeutic challenge. Am Fam Physician. 2004;69(10):2375-82.

5.

Bostwick JM, Pankratz VS. Affective disorders and suicide risk: a reexamination. Am J Psychiatry. 2000;157(12):1925-32.

6.

Kendler KS, Kessler RC, Walters EE, MacLean C, Neale MC, Heath C et al. Stressful life events, genetic liability, and onset of an episode of major depression in women. Am J Psychiatry. 1995; 152(6):833-42.

7.

Post RM. Do the epilepsies, pain syndromes, and affective disorders share common kindling-like mechanisms? Epilepsy Res. 2002;50(1-2):203-19.

8.

Kendler KS, Thornton LM, Gardner CO. Stressful life events and previous episodes in

the etiology of major depression in women: an evaluation of the “kindling” hypothesis. Am J Psychiatry. 2000;157(8):1243-51. 9.

Charney DS, Nestler EJ, eds. Neurobiology of Mental Illness. 2.ed. New York, NY: Oxford University Press Inc., 2004.

10. Sheline YI, Gado MH, Kraemer HC. Untreated depression and hippocampal volume loss. Am J Psychiatry. 2003;160(8):1516-18. 11. Rajkowska G, Miguel-Hidalgo JJ. Gliogenesis and glial pathology in depression. CNS Neurol Disord Drug Targets. 2007;6(3):219-33. 12. Cassano P, Fava M. Depression and public health: an overview. J Psychosom Res. 2002;53(4):849-57. 13. American Psychiatric Association (APA). Diagnostic and statistical manual of mental disorders. 5. ed. Washington: American Psychiatric Association, 2013. 14. Gentil V, Gattaz WF, Miguel EC. Clínica psiquiátrica – a visão do Departamento e do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. 2 vol. Barueri: Manole, 2011. 15. Hamasubbu R, Beaulieu S, Taylor VH, Schaffer A, McIntyre RS. Canadian Network for Mood and Anxiety Treatments (CANMAT) Task Force. The CANMAT task force recommendations for the management of patients with mood disorders and comorbid medical conditions: diagnostic, assessment, and treatment principles. Ann Clin Psychiatry. 2012; 24(1):82-90. 16. Bremme JD, Vermetten E. Stresse and development: behavioral and biological consequences. Dev Psychopatol. 2001;1(3):473-89. 17. Angst J, Gamma A, Bowden CL, Azorin JM, Perugi G, Vieta E et al. Evidence-based definitions of bipolar-I and bipolar-II disorders among 5,635 patients with major depressive episodes in the Bridge Study: validity and comorbidity [published online ahead of print January 31, 2013]. Eur Arch Psychiatry Clin Neurosci. 18. Schaffer A, Cairney J, Veldhuizen S, Kurdyak P, Cheung A, Levitt A et al. A populationbased analysis of distinguishers of bipolar disorder from major depressive disorder. J Affect Disord. 2010;125(1-3):103-10. 19. Perlis RH, Brown E, Baker RW, Nierenberg AA et al. Clinical features of bipolar depression versus major depressive disorder in large multicenter trials. Am J Psychiatry. 2006;163(2):225-31. 20. Pacchiarotti I, Bond DJ, Baldessarini RJ, Nolen WA, Grunze H, Licht RW et al. The International Society for Bipolar Disorders (ISBD) Task Force report on antidepressant use in bipolar disorders [published online ahead of print September 13, 2013]. Am J Psychiatry. 21. Keller MB. Past, present and future directions for defining optimal treatment outcome in depression. Remission and beyond. JAMA. 2003;289(23):3152-60.

22. Cordioli AV. Psicofármacos: consulta rápida. 4.ed. Porto Alegre: Artmed, 2011. 23. Lam RW, Kennedy SH, Grigoriadis S, McIntyre RS, Milev R, Ramasubbu R et al. Canadian Network for Mood and Anxiety Treatments (CANMAT) clinical guidelines for the management of major depressive disorder in adults. III. Pharmacotherapy. J Affect Disord. 2009;117(Suppl 1):S26-43. 24. Katona CL, Katona CP. New generation multimodal antidepressants: focus on vortioxetine for major depressive disorder. Neuropsychiatric Disease and Treatment 2014;10:349-54. 25. Pierz KA, Thase ME. A review of vilazodone, serotonin, and major depressive disorder. Prim Care Companion CNS Disord. 2013;2014;16(1). 26. Trivedi MH, Fava M, Marangell LB, Osser DN, Shelton RC. Use of treatment algorithms for depression. Prim Care Companion J Clin Psychiatry. 2006;8(5):291-98. 27. American Psychiatric Association. Practice guideline for the treatment of patients with major depressive disorder. 3.ed. Washington, DC: American Psychiatric Association 2010. 28. Szegedi A, Jansen WT, van Willigenburg AP, van der Meulen E, Stassen HH, Thase ME. Early improvement in the first 2 weeks as a predictor of treatment outcome in patients with major depressive disorder: a meta-analysis including 6562 patients. J Clin Psychiatry. 2009;70(3):344-53. 29. Hollon SD, DeRubeis RJ, Shelton RC, Amsterdam JD, Salomon RM, O’Reardon JP et al. Prevention of relapse following cognitive therapy vs medications in moderate to severe depression. Arch Gen Psychiatry. 2005;62(4):417-22. 30. Schlaepfer TE, Ågren H, Monteleone P, Gasto C, Pitchot W, Rouillon F et al. The hidden third: improving outcome in treatment-resistant depression Journal of Psychopharmacology. 2013;26(5)587-602. 31. Souery D, Serretti A, Calati R, Oswald P, Massat I, Konstantinidis A et al. Switching antidepressant class does not improve response or remission in treatment-resistant depression. J Clin Psychopharmacol. 2011;31(4):512-16. 32. Haubmann R, Bauer M. Lithium, thyroid hormones and further augmentation strategies in treatment-resistant depression. In: Kasper S, Montgomery M. (eds.) Treatmentresistant depression. Hoboken, NJ: Wiley-Blackwell, 2013. 33. Crossley NA, Bauer M. Acceleration and augmentation of antidepressants with lithium for depressive disorders: two meta-analyses of randomized, placebo-controlled trials. J Clin Psychiatry. 2007;68:935-40. 34. Guzzetta F, Tondo L, Centorrino F, Baldessarini RJ. Lithium treatment reduces suicide risk in recurrent major depressive disorder. J Clin Psychiatry. 2007;68(3):380-3. 35. Kasper S, Akimova E. The role of atypical antipsychotics in inadequate response and treatment-resistant depression. In: Kasper S, Montgomery M. (eds.) Treatment-

resistant depression. Hoboken, NJ: Wiley-Blackwell, 2013. 36. Mathew SJ, Shah A, Lapidus K, Clark C, Jarun N, Ostermeyer B et al. Ketamine for treatment-resistant unipolar depression, current evidence, CNS Drugs. 2012,26(3):189204. 37. Candy M, Jones L, Williams R, Tookman A, King M. Psychostimulants for depression. Cochrane Database Syst Rev. 2008;2(2). 38. Fava M, Thase ME, DeBattista C. A multicenter, placebo-controlled study of modafinila augmentation in partial responders to selective serotonin reuptake inhibitors with persistent fatigue and sleepiness. J Clin Psychiatry. 2005; 66(1):85-93. 39. Cusin C, Iovieno N, Iosifescu DV, Nierenberg AA, Fava M, Rush AJ et al. A randomized, double-blind, placebo-controlled trial of pramipexole augmentation in treatment-resistant major depressive disorder. J Clin Psychiatry. 2013;74(7). 40. McIntyre RS, Filteau MJ, Martin L, Patry S, Carvalho A, Cha D et al. Treatmentresistant depression: definitions, review of the evidence, and algorithmic approach. Journal of Affective Disorders. 2014;156:1-7. 41. Aronson R, Offman HJ, Joffe RT, Naylor CD. Triiodothyronine augmentation in the treatment of refractory depression. A meta-analysis. Arch Gen Psychiatry. 1996; 53(9):842-8. 42. American Psychiatric Association. Practice guideline for the treatment of patients with major depressive disorder. 3.ed. Washington, DC: American Psychiatric Association, 2010. 43. Trivedi MH, Fava M, Wisniewski SR, Thase ME, Quitkin F, Wardens D et al. STAR*D Study Team. Medication augmentation after the failure of SSRIs for depression. N Engl J Med. 2006;354(12):1243-52. 44. Fava M, Mischoulon D. Folate in depression: efficacy, safety, differences in formulations, and clinical issues. J Clin Psychiatry. 2009;70(suppl 5):12-7. 45. Papakostas GI, Shelton RC, Zajecka J, Etemad B, Rickels K, Clain A et al. LMethylfolate as adjunctive therapy for SSRI-resistant major depression: results of two randomized, double-blind, parallel-sequential trials. Am J Psychiatry. 2012;169: 126774 46. Nutt D, Demyttenaere K, Janka Z, Aarre T, Bourin M, Canonico PL et al. The other face of depression, reduced positive affect: the role of catecholamines in causation and cure. J Psychopharmacol. 2007;21(5):461-71. 47. Nierenberg AA, Husain MM, Trivedi MH, Fava M, Warden D, Wisniewski SR et al. Residual symptoms after remission of major depressive disorder with citalopram and risk of relapse: a STAR*D report. Psychol Med. 2010;40(1):41-50.

Capítulo 3

TRANSTORNO AFETIVO BIPOLAR Lucas Cese Marchetti e José Alberto Del Porto

INTRODUÇÃO O transtorno bipolar, infelizmente, ainda não é corretamente identificado, seja em nosso meio, seja em países mais desenvolvidos. Consequentemente, muitos pacientes não recebem os tratamentos adequados, pagando um preço muito alto pelas recorrências, pelo agravamento do curso da doença e pela decorrente incapacitação social. De acordo com a National Depressive and Manic Depressive Association (DMDA), 70% dos pacientes bipolares não receberam o diagnóstico no primeiro ano que se seguiu ao desenvolvimento da doença; mais ainda, 35% dos pacientes procuraram tratamento por 10 anos antes de receber o adequado diagnóstico.1 Até recentemente, e de acordo com os manuais clássicos da especialidade, a prevalência da doença bipolar era estimada em torno de apenas 1% da população geral. A inclusão de formas mitigadas da doença dentro do chamado “espectro bipolar”, assim como o reconhecimento de formas mistas e psicóticas (antes erroneamente classificadas dentro do grupo das esquizofrenias), fez sua prevalência passar a ser estimada em, no mínimo, 5% da população geral.2,3 O transtorno bipolar vem sendo, cada vez mais, considerado um problema de saúde pública, seja pela enorme prevalência, seja pelas consequências econômico-sociais que acarreta. Deve-se ressalvar que as classificações atuais, como o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – 5a edição (DSM-5)4, são ainda muito restritivas quanto à caracterização dos episódios de hipomania e dos estados mistos. Para a hipomania, o DSM-5 ainda requer a duração mínima de 4 dias, enquanto diversos estudos clínico-epidemiológicos convergem em assinalar que as hipomanias têm curso recorrente e breve, geralmente durando entre 1 e 3 dias. No que concerne à caracterização dos estados mistos, o DSM-5, embora mais flexível que o DSM-4, exclui da definição as características mais importantes para o seu diagnóstico (agitação psicomotora, angústia acentuada e irritabilidade).4,5 Koukopoulos et al.6 afirmam que o DSM-5, assim como suas versões anteriores, não dá a devida importância aos estados mistos, e, na prática, dificultam o seu adequado diagnóstico. Os autores propuseram critérios mais específicos para os estados mistos, validando-os por meio de estudos clínicos.7 A ampliação das fronteiras do espectro bipolar faz justiça às concepções de Kraepelin, que escreveu: A insanidade maníaco-depressiva, como descrita neste capítulo, inclui por um lado o domínio completo da insanidade periódica ou circular, e por outro lado a mania simples,

a maior parte dos estados mórbidos chamados de melancolia e também um número não desprezível de casos de amência. Por fim, incluímos aqui certas formas leves e sutis de alterações do humor, algumas periódicas, outras contínuas, as quais por um lado podem ser considerados como rudimentos das formas mais graves, e de outro podem passar, sem fronteiras nítidas, ao domínio da predisposição pessoal. No curso dos anos, tornei-me cada vez mais convencido de que as formas acima mencionadas representam apenas manifestações de um único processo mórbido.8 Levando-se em conta as formas mais leves e de menor duração da hipomania, muitos dos quadros antes diagnosticados como depressão unipolar passam a ser devidamente diagnosticados dentro do espectro bipolar. Angst observou que, na admissão, apenas 8% dos deprimidos foram classificados como bipolares; após 30 anos de seguimento, 43% deles foram reclassificados como pertencendo ao espectro bipolar.9 Os trabalhos de Judd et al.10,11, referindo-se a um acompanhamento de 15 anos de pacientes bipolares, observaram que os bipolares tipo I passam 31% do tempo em depressão e 10% em mania; os bipolares tipo II passam 50% do tempo em depressão e apenas 1,4% do tempo em mania. Depreende-se, do exposto, a importância da atenção que o médico deve ter, na anamnese, para diagnosticar retrospectivamente fases de hipomania. Uma vez feito o diagnóstico, o psiquiatra dispõe atualmente de variados recursos terapêuticos, todos eles com indicações e limitações reconhecidas. Apesar dos avanços na área, ainda persistem, de fato, muitas necessidades não atendidas no tratamento do transtorno bipolar do humor. O tratamento do transtorno bipolar tem quatro objetivos primários: o tratamento da mania aguda; o tratamento da depressão aguda; a prevenção das recorrências de mania; e a prevenção das recorrências de depressão. Naturalmente, a melhora do quadro não se restringe à melhora dos sintomas, mas visa a reintegração plena do paciente à sociedade, objetivando a plena recuperação funcional e a melhora de sua qualidade de vida. Além do tratamento farmacológico, enfatizam-se as intervenções psicoterápicas (para o paciente e sua família), assim como a chamada “psicoeducação”, destinada a dar informações objetivas sobre a doença aos pacientes e familiares. Na maioria das vezes, um único agente farmacológico é incapaz de preencher todos esses objetivos para o mesmo paciente. Dessa maneira, a doença bipolar frequentemente requer a cuidadosa associação de medicamentos.

QUADRO CLÍNICO O transtorno bipolar de tipo I caracteriza-se pela ocorrência de episódios de “mania” (caracterizados por exaltação do humor, euforia, hiperatividade, loquacidade exagerada, diminuição da necessidade de sono, exacerbação da sexualidade e comprometimento da crítica) comumente alternados com períodos de depressão e com períodos de normalidade.4 Para uma descrição por meio de critérios diagnósticos operacionais,

recomenda-se consultar os critérios do DSM-5, já traduzidos para o português.12 Com certa frequência, os episódios maníacos incluem também irritabilidade, agressividade e incapacidade de controlar adequadamente os impulsos. As fases maníacas caracterizamse ainda pela aceleração do pensamento (sensação de que os pensamentos estão fluindo mais rapidamente), distraibilidade e incapacidade de dirigir a atividade para metas definidas (embora haja aumento da atividade, a pessoa não consegue ordenar as ações de modo a alcançar objetivos precisos). As fases maníacas, quando em seu quadro típico, prejudicam ou impedem o desempenho profissional e as atividades sociais, não raramente expondo os pacientes a situações embaraçosas e a riscos variados (dirigir sem cuidado, fazer gastos excessivos, indiscrições sexuais etc.). Em casos mais graves, o paciente pode apresentar delírios (de grandeza ou de poder, acompanhando a exaltação do humor; ou delírios de perseguição, entre outros), e ainda alucinações, embora mais raramente.4 Nesses casos, muitas vezes, o quadro clínico é confundido com a esquizofrenia; o diagnóstico diferencial deve ser feito com base na história pessoal (na doença bipolar, os quadros são agudos e seguidos por períodos de depressão ou de remissão) e familiar (com certa frequência, podem ser identificados quadros de mania e depressão nas família). Nos últimos anos, tem-se reconhecido a importância dos quadros de “hipomania” (quadros de mania mitigada, que não se apresentam com a gravidade dos quadros de mania propriamente dita). Os quadros caracterizados por hipomania e pela ocorrência de episódios depressivos maiores têm sido chamados de “transtorno bipolar de tipo II”.10 O reconhecimento destes quadros é importante, visto que o uso de antidepressivos pode agravar seu curso, assim como ocorre na doença bipolar com fases maníacas típicas (tipo I). No transtorno bipolar, são recomendados os estabilizadores do humor, associados ou não a antipsicóticos atípicos (como olanzapina, risperidona, aripiprazol, quetiapina, paliperidona, asenapina, lurasidona), e, nos casos refratários, até mesmo a clozapina, apesar dos cuidados especiais inerentes à sua utilização.13 O tratamento da depressão bipolar requer cuidados específicos, que serão abordados na sequência.

EPIDEMIOLOGIA Estudos epidemiológicos considerados já “clássicos”, como o National Comorbidity Survey, nos EUA, estimam a prevalência, para o tempo de vida (lifetime prevalence), do transtorno bipolar em 1,6% para o tipo I, e de 0,5% para o tipo II.14 Como se mencionou anteriormente, esses dados não levam em conta as formas mais mitigadas da doença, que integram o chamado “espectro bipolar”. Mais ainda, é importante lembrar que esses estudos epidemiológicos, em especial o Epidemiological Catchment Area Study,15 foram realizados por leigos, por meio de entrevistas estruturadas, com pouca sensibilidade para detectar episódios hipomaníacos ocorridos no passado. Análises mais atuais estimam que a prevalência do transtorno bipolar, incluindo-se as formas chamadas de tipo II, chega a 5% da população. A idade média de início dos quadros bipolares situa-se logo após os 20 anos, embora uma porcentagem dos casos se inicie ainda na infância e na adolescência, e outros possam começar mais tardiamente (após os 50 anos). Os episódios maníacos

costumam ter início súbito, com rápida progressão dos sintomas. Frequentemente, os primeiros episódios ocorrem associados a estressores psicossociais; com a evolução da doença, os episódios podem se tornar mais comuns, e os intervalos livres se encurtam. Em algumas mulheres, o primeiro episódio maníaco pode acontecer no período puerperal.16

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL Deve-se ter em mente o diagnóstico diferencial com os seguintes quadros: esquizofrenia, psicoses esquizoafetivas, psicoses cicloides, quadros orgânicos cerebrais (incluem-se aqui a esclerose múltipla, quadros demenciais, a sífilis e a síndrome da imunodeficiência adquirida – Aids), além de certas formas de epilepsia), quadros associados a condições clínicas gerais (Cushing, hipertireoidismo etc.), uso de substâncias ilícitas (anfetaminas, cocaína etc.) e ainda síndromes desencadeadas por medicamentos (corticosteroides, antidepressivos etc.). Os quadros mais leves (de tipo II) são muitas vezes classificados erroneamente como “transtornos da personalidade”, mais frequentemente o transtorno borderline de personalidade17, e, assim, permanecem sem tratamento mais específico. Deve-se mencionar também que o abuso/dependência de substâncias ilícitas e álcool é muito mais comum em pacientes bipolares [odds ratio (OR) = 7,9] que na população geral.3

TRATAMENTO CARBONATO DE LÍTIO Mais de 65 anos decorridos de sua introdução na prática psiquiátrica, os sais de lítio permanecem como o tratamento de escolha para a maioria dos casos de mania aguda e para a profilaxia das recorrências das fases maníaco-depressivas. Na mania aguda, a eficácia do lítio situa-se, conforme o tipo de pacientes incluídos, entre 49% (estudo de apenas 3 semanas, incluindo casos anteriormente resistentes) e 80% dos casos, mostrando-se mais específica que os neurolépticos na redução dos sintomas nucleares da mania (exaltação do humor, aceleração do pensamento e ideias de grandiosidade); em contraposição, os neurolépticos mostram-se mais rápidos e eficazes no controle da hiperatividade e da agitação psicomotora, sugerindo que sua ação se deva a uma sedação mais inespecífica. Numerosos estudos controlados confirmam a eficácia do lítio na profilaxia de ambas as fases (maníacas e depressivas) do transtorno bipolar. As manias típicas, assim como os episódios de mania seguidos por eutimia e depressão (M-E-D) respondem particularmente bem ao lítio. Os pacientes com mania mista (mesclada com sintomas depressivos), mania disfórica (com marcada irritabilidade) e os cicladores rápidos (aqueles com mais de quatro ciclos em 1 ano) não respondem tão bem ao lítio; para estes, o divalproex (ácido valproico/valproato) ou a carbamazepina (CBZ), assim como os antipsicóticos atípicos, podem ser uma indicação melhor.13,18 Considerando a estreita faixa terapêutica e as variações na excreção do lítio,

recomenda-se o monitoramento periódico dos seus níveis séricos, mais frequente no início do tratamento, quando as doses forem alteradas ou a qualquer momento, desde que haja indícios ou suspeita de intoxicação por lítio.19 A dosagem do lítio deve ser feita sempre 12 h após a última ingestão do comprimido de lítio. Em geral, dosam-se os níveis séricos 5 a 7 dias após o início (quando o lítio atinge seu steady state), depois a cada 7 ou 14 dias, passando-se ao controle posterior a cada 2 ou 3 meses nos primeiros 6 meses e a cada 4 ou no mínimo a cada 6 meses posteriormente. Os níveis recomendados para o tratamento situam-se entre 0,6 e 1,2 mEq/l. O teto mais alto (1,2 mEq/l) é reservado aos estados agudos; para a manutenção, doses entre 0,6 e 0,8 mEq/l são geralmente suficientes, procurando-se manter o paciente com as menores doses necessárias para a profilaxia (alguns pacientes dão-se bem com 0,4 mEq/l, e outros eventualmente precisam de doses maiores que 0,8 mEq/l). Em geral, inicia-se o tratamento com 300 mg à noite, aumentando-se as doses gradativamente até alcançar os níveis séricos desejados, levando-se em conta a tolerabilidade do paciente aos efeitos colaterais. A dosagem dos hormônios tireoidianos deve ser feita a cada 6 ou 12 meses, assim como o monitoramento da função renal.19 O carbonato de lítio está disponível, em nosso meio, em comprimidos de 300 mg e em preparados de liberação lenta de 450 mg. Os preparados convencionais têm seu nível sérico máximo alcançado dentro de 1 h e 30 min a 2 h; os preparados de liberação lenta alcançam seu pico dentro de 4 h a 4 h e 30 min. O lítio é excretado quase inteiramente pelos rins, com meia-vida entre 14 e 30 h. As preparações convencionais são ministradas 2 vezes ao dia, podendo as de liberação lenta ser utilizadas em dose única, geralmente à noite (nestes casos, os níveis séricos matinais estarão aumentados em até 30%). Usandose doses maiores, mesmo o preparado de liberação lenta é mais comumente utilizado em duas administrações diárias. Antes de iniciar o tratamento, o paciente deve ser avaliado por exame físico geral e exames laboratoriais que incluem: hemograma completo, eletrólitos (Na+, K+), avaliação da função renal (ureia, creatinina, exame de urina tipo I) e da função tireoidiana [tiroxina (T4) livre e hormônio estimulante da tireoide (TSH, do inglês, thyroid-stimulating hormone)]. Em pacientes com mais de 40 anos ou com antecedentes de doença cardíaca, recomenda-se solicitar eletrocardiograma (ECG; depressão do nó sinusal e alterações da onda T podem surgir em decorrência do lítio, e é conveniente obter um traçado inicial para comparação posterior). Como o lítio frequentemente acarreta polidipsia e poliúria (por antagonizar os efeitos do hormônio antidiurético), deve-se também solicitar dosagem da glicemia antes de sua introdução. Algumas vezes, um “diabetes melito” pode passar desapercebido, julgando o psiquiatra que a polidipsia e poliúria devem-se exclusivamente ao esperado “diabetes insípido”, produzido pelo lítio, quando, na verdade, o primeiro pode também estar presente.19 As queixas relativas aos efeitos colaterais mais comuns são: sede e poliúria, problemas de memória, tremores, ganho de peso, sonolência/cansaço e diarreia. No início do tratamento, são comuns azia e náuseas. As fezes amolecidas, assim como a sensação de peso nas pernas e cansaço, são comuns no início do tratamento, desaparecendo com o

tempo. Diarreia e tremores grosseiros, aparecendo tardiamente no curso do tratamento, podem indicar intoxicação e requerem imediata avaliação. Entre os efeitos colaterais tardios do lítio, aqueles sobre a tireoide merecem particular atenção; o desenvolvimento de um hipotireoidismo clinicamente significativo ocorre em até 5% dos pacientes (em alguns casos chegando ao bócio), enquanto elevações do TSH chegam a 30% dos casos. Muitas vezes, a complementação com hormônios da tireoide (mais comumente T4) torna desnecessária a interrupção do uso do lítio, mas eventualmente o médico precisará mudar para outro estabilizador do humor. O lítio pode aumentar os níveis séricos do cálcio, e a associação com anormalidades da paratireoide pode ocorrer, embora mais raramente. Outros efeitos são: edema, acne, agravamento de psoríase, tremores (eventualmente tratados com betabloqueadores) e ganho de peso (25% dos pacientes em uso do lítio tornam-se obesos, razão pela qual nunca será demais insistir precocemente em cuidados relativos a dieta e exercícios). Cumpre notar ainda que o lítio pode diminuir o limiar convulsígeno e, em alguns casos, pode causar ataxia, fala pastosa e síndrome extrapiramidal (particularmente em idosos). Os efeitos renais do lítio incluem aumento da diurese, consequente à diminuição da capacidade de concentração da urina, por oposição à ação do hormônio antidiurético (ADH, antidiuretic hormone); fala-se em “diabetes insípido” quando os pacientes produzem mais que 3 l de urina por dia. O lítio pode causar nefrite intersticial, a qual geralmente não tem maior importância clínica. É preciso observar, no entanto, que uma parcela dos pacientes que usam lítio pode ter aumento progressivo dos níveis da creatinina e evoluir para a insuficiência renal. Felizmente, os níveis da creatinina aumentam lentamente, possibilitando ao médico tomar as medidas adequadas, como a substituição do lítio por outro medicamento, antes da instalação da insuficiência renal. As alterações cardíacas são geralmente benignas e incluem achatamento ou possível inversão da onda T, diminuição da frequência cardíaca e, raramente, arritmias. Casos isolados de disfunção do nó sinusal têm sido descritos, e eventualmente podem ocasionar síncope, mais comum em idosos. Leucocitose discreta pode se desenvolver, não sendo, em geral, um motivo de preocupação. Efeitos teratogênicos raros (anomalias da tricúspide e dos vasos da base) têm sido associados ao uso do lítio, particularmente no primeiro trimestre da gravidez – ao fim da gravidez, pode fazer com que o bebê nasça com hipotonia (síndrome do floppy baby). O lítio passa para o leite materno, de modo que, cuidados especiais devem ser tomados. Deve-se estudar a possibilidade da interrupção do aleitamento e substituição por outros tipos de leite. As intoxicações pelo lítio costumam ocorrer com concentrações séricas acima de 1,5 mEq/l e podem ser precipitadas por desidratação, dietas hipossódicas, ingestão excessiva de lítio, alterações na excreção renal ou interação com outros medicamentos que aumentam seus níveis séricos (anti-inflamatórios, diuréticos etc.). São sinais e sintomas da intoxicação pelo lítio: sonolência, fasciculações musculares, tremores grosseiros, hiper-reflexia, ataxia, visão turva, fala pastosa, arritmias cardíacas e convulsões.19 Recomenda-se o estrito monitoramento dos níveis séricos. Em casos leves, basta a manutenção do equilíbrio hidreletrolítico, eventualmente forçando-se a diurese com manitol, e alcalinizando-se a urina. A diálise pode ser necessária em intoxicações mais graves (níveis séricos maiores que 4 mEq/l ou na dependência do estado geral e da função renal do paciente).

Interações farmacológicas podem aumentar os níveis séricos do lítio: CBZ, diuréticos (tiazídicos, inibidores da enzima conversora de angiotensina ou antagonistas da aldosterona) e anti-inflamatórios não esteroides (ibuprofeno, diclofenaco, indometacina, naproxeno, fenilbutazona, sulindaco). Os neurolépticos podem potencializar o aparecimento de síndrome extrapiramidal. Em casos mais raros e com litiemias mais elevadas, também podem desenvolver síndrome cerebral orgânica, quando administrados em doses mais altas (principalmente aqueles de alta potência, como o haloperidol). Os antiarrítmicos, principalmente os de tipo quinidínico, podem potencializar os efeitos sobre a condução cardíaca.19 Cumpre notar que o uso de antidepressivos (em especial os tricíclicos e os duais, como a venlafaxina ou duloxetina) pode causar mudança para a fase maníaca em pacientes bipolares, mesmo durante o uso concomitante de lítio, além de poderem desencadear o aparecimento de ciclos rápidos e de episódios mistos. O tratamento da depressão nos pacientes bipolares deve ser tentado antes com estabilizadores do humor, empregando-se eventualmente também a bupropiona ou inibidores seletivos da recaptação da serotonina (ISRS) ou ainda inibidores da monoaminoxidase (IMAO), com as cautelas exigidas para esse grupo de pacientes, ou mesmo a eletroconvulsoterapia (ECT), nos casos resistentes aos tratamentos habituais.13,20

ANTICONVULSIVANTES O divalproato tem sido amplamente utilizado para o tratamento do transtorno bipolar. Existem estudos controlados mostrando sua eficácia no tratamento da mania aguda; há também dados indicando que o divalproato pode ser mais eficaz que o lítio na mania mista e nos cicladores rápidos. Embora faltem estudos controlados sobre o uso do valproato na manutenção, existem estudos abertos e naturalísticos que apontam para sua eficácia também na profilaxia da doença bipolar. Há menos evidência de apoio ao uso do valproato ou divalproato no tratamento da depressão bipolar, embora alguns estudos sugiram certa eficácia. O valproato ou o divalproato podem ser combinados com o lítio (consulte o estudo de Balance, Geddes, Goodwin e Rendell de 2010).21 Efeitos colaterais comuns do valproato incluem: sedação, perturbações gastrintestinais, náuseas, vômitos, diarreia, elevação benigna das transaminases e tremores. Leucopenia assintomática e trombocitopenia podem ocorrer. Outros efeitos incluem: queda de cabelo (às vezes acentuada), aumento de peso e do apetite. Em alguns casos, a leucopenia pode ser grave e acarretar a interrupção do tratamento. Pode ainda ocorrer síndrome dos ovários policísticos e hiperandrogenismo. Casos de morte, embora raros, têm sido descritos em razão de hepatotoxicidade, pancreatite e agranulocitose. Os pacientes ou seus responsáveis devem ser advertidos a respeito dos sinais e sintomas precoces dessas raras complicações. A intoxicação com doses excessivas eventualmente requer hemodiálise, além das medidas de suporte.19 O valproato deve ser iniciado com doses baixas (250 mg/dia), titulando-se a dose em aumentos graduais de 250 mg com intervalo de alguns dias, até a concentração sérica de 50 a 100 mg/mℓ (não excedendo a dose de 60 mg/kg/dia). Alguns autores, no entanto, recomendam o início com doses maiores de

divalproato, o que não é isento de riscos (oral load). Controles dos níveis séricos, do hemograma e das enzimas hepáticas são requeridos. Os níveis séricos do valproato podem ser diminuídos pela CBZ e aumentados por medicações como a fluoxetina e o ácido acetilsalicílico. Recomenda-se cuidado na associação do ácido acetilsalicílico ao ácido valproico. O valproato aumenta os níveis séricos do fenobarbital, da fenitoína e dos tricíclicos. O ácido acetilsalicílico desloca o valproato de sua ligação às proteínas, aumentando sua fração livre.19 A CBZ tem sido utilizada no transtorno bipolar desde a década de 1970; as diretrizes canadenses (CANMAT, Canadian Network for Mood and Anxiety Treatments) citam a CBZ como tratamento de segunda linha para a mania.13 Estudos controlados sugerem taxa de resposta, na mania aguda, em torno de 61%. A CBZ tem sido menos estudada no tratamento da depressão bipolar, embora alguns estudos deem suporte à sua utilização. A CBZ é citada como tratamento de terceira linha para a depressão bipolar.13 Quatorze estudos controlados (ou parcialmente controlados) sugerem que a CBZ seja eficaz na profilaxia da doença bipolar, apesar de algumas limitações metodológicas. Embora os níveis plasmáticos eficazes sejam muito diferentes entre os indivíduos, em geral preconizam-se níveis entre 4 e 12 mg/ml. Como a CBZ induz ao aumento de seu próprio metabolismo, suas doses devem ser ajustadas depois de algum tempo, para que os níveis no sangue sejam mantidos. Deve-se lembrar que a indução de enzimas hepáticas pela CBZ reduz os níveis de várias outras substâncias (como os hormônios tireoidianos) e medicamentos, entre os quais os anticoncepcionais, cujas doses devem ser reajustadas, em acordo com o ginecologista.19 Entre os efeitos colaterais da CBZ estão: diplopia, visão borrada, fadiga, náuseas e ataxia. Estes efeitos geralmente são transitórios, melhorando com o tempo e/ou com a redução da dose. Menos frequentemente observam-se rash cutâneo, leucopenia leve, trombocitopenia leve, hipo-osmolaridade e ligeira elevação das enzimas hepáticas (em 5 a 15% dos pacientes). Caso os níveis da leucopenia e a elevação das enzimas hepáticas se agravem, a CBZ deve ser interrompida. A hiponatremia deve-se à retenção de água decorrente do efeito antidiurético da CBZ; mais comum nos idosos, às vezes a hiponatremia leva à necessidade de interromper o uso desse medicamento. A CBZ pode diminuir os níveis de T4 e elevar os níveis do cortisol; no entanto, raramente esses efeitos são clinicamente significativos. Efeitos raros, mas potencialmente fatais, incluem: agranulocitose, anemia aplásica, dermatite esfoliativa (p. ex., Stevens-Johnson) e pancreatite.19 Os pacientes devem ser alertados sobre os sinais e sintomas que precocemente levantam a suspeita dessas condições. Muito raramente podem ocorrer insuficiência renal e alterações da condução cardíaca. Os cuidados prévios à introdução da CBZ incluem, além da anamnese a respeito de história prévia de discrasias sanguíneas e doença hepática, hemograma completo, enzimas hepáticas, bilirrubina, fosfatase alcalina, eletrólitos (pelo risco de hiponatremia) e avaliação da função renal. As doses devem ser iniciadas aos poucos (100 a 200 mg/dia, inicialmente), aumentando-se gradualmente até atingir níveis séricos compatíveis ou melhora terapêutica; as doses devem ser divididas em 3 ou 4 vezes, aumentando-se o intervalo para as preparações de liberação lenta. Doses superiores a 1.200 mg/dia não são geralmente recomendadas. Inicialmente, monitoram-se

o hemograma e a função hepática a cada 2 semanas, nos primeiros 2 meses, espaçandose depois os controles para fazê-los a cada 3 meses. Muitas das condições descritas anteriormente não são previstas por meio desses exames, devendo-se instruir os pacientes a relatar os sintomas precoces de cada condição potencialmente perigosa (leucopenia, quadros alérgicos, icterícia etc.). Para revisão sobre os efeitos colaterais dos anticonvulsivantes no tratamento do transtorno bipolar, ver artigo de 2009 de Ng et al.19 A lamotrigina encontra-se mais bem estudada no que se refere ao tratamento de depressão bipolar e profilaxia das fases depressivas da doença bipolar.22,23 A lamotrigina é um anticonvulsivante da classe da feniltriazina, que tem se mostrado eficaz sobretudo na prevenção das recorrências das fases depressivas. Uma metanálise de Geddes, Calabrese e Goodwin24 mostrou moderado efeito da lamotrigina na depressão bipolar aguda, observado sobretudo nos casos mais graves. Seus efeitos colaterais incluem: tonturas, ataxia, sonolência, cefaleia, diplopia, náuseas, vômitos e rash cutâneo. A lamotrigina pode reduzir a concentração do ácido fólico; a diminuição do ácido fólico, por sua vez, tem sido relacionada com teratogênese – por essa razão, a lamotrigina não deve ser usada durante a gestação. Os autores advertem a respeito do risco de rash cutâneo, que pode ser grave, e alertam para a possibilidade, embora rara, de desenvolvimento da síndrome de Stevens-Johnson.19 Recomenda-se iniciar a lamotrigina em doses baixas (25 mg/dia durante 1 semana, seguida por 50 mg/dia durante mais 2 semanas); se necessário, aumenta-se a dose, depois de mais 2 semanas, para 100 mg/dia, em 2 vezes; posteriormente, pode-se aumentar a dose em 50 a 100 mg a cada 1 ou 2 semanas. Em geral, usam-se doses diárias de 50 a 250 mg/dia. Caso o paciente esteja em uso de ácido valproico, as doses devem ser reduzidas à metade, sendo a titulação da dose iniciada com 25 mg a cada 2 dias; a associação com ácido valproico aumenta o risco de rash cutâneo. Caso haja associação com carbamazepina, as doses devem ser aumentadas, em função da indução enzimática que ocorre.

ANTIPSICÓTICOS ATÍPICOS Há muitos anos, os antipsicóticos convencionais têm sido utilizados no tratamento da mania aguda, pela rapidez da ação e controle da agitação psicomotora. Atualmente os neurolépticos típicos têm sido evitados pelos efeitos colaterais (parkinsonismo, acatisia e risco de desenvolvimento de discinesia tardia), principalmente quando há necessidade de uso mais prolongado, podendo ainda desencadear ou agravar quadros depressivos. Os antipsicóticos atípicos vêm sendo amplamente empregados no tratamento do transtorno bipolar. Na fase aguda da mania, já foram testados, com êxito, olanzapina, risperidona, quetiapina, ziprasidona, ariprazol, asenapina e paliperidona ER.13,25-27 A olanzapina conta com estudos que comprovam sua eficácia na fase de manutenção e também no tratamento da depressão bipolar (em combinação com a fluoxetina). Na depressão bipolar, a quetiapina conta com estudos controlados,28,29 assim como a olanzapina associada à fluoxetina30 e, mais recentemente, a lurasidona, até agora não comercializada no Brasil (2014). A lurasidona é citada nas diretrizes canadenses como alternativa de segunda linha para a depressão bipolar.13

Para o tratamento de manutenção do transtorno bipolar, além dos clássicos estabilizadores do humor (lítio e divalproato), as diretrizes canadenses13 enumeram os seguintes antipsicóticos atípicos como tratamento de primeira linha: olanzapina, quetiapina, risperidona de ação prolongada e aripiprazol (estes dois últimos principalmente para a prevenção das fases maníacas). Como tratamento de manutenção, de segunda linha, estão citados os antipsicóticos atípicos: paliperidona ER e, como terceira linha, asenapina.13 Os antipsicóticos atípicos, entre outros efeitos colaterais, podem facilitar o desenvolvimento da síndrome metabólica, dislipidemia e diabetes melito. Recomenda-se monitoramento periódico de glicemia e perfil lipídico.19

ELETROCONVULSOTERAPIA A ECT mantém um lugar de destaque no tratamento dos casos resistentes, mostrando ação antidepressiva, antimaníaca e estabilizadora do humor. Em casos refratários, chega a ser utilizada, dentro de certos limites, até como tratamento de manutenção (em aplicações mensais, por tempo limitado). Deve sempre ser realizada com relaxantes musculares (geralmente succinilcolina), anestesia e oxigenação; além da oximetria, deve-se monitorar o eletroencefalograma (EEG) e o ECG. Recomenda-se que a ECT seja feita com corrente de pulsos breves ou ultrabreves (nesse caso, em aplicações unilaterais, várias vezes acima do limiar convulsígeno, devendo sempre ser precedida da titulação do estímulo para determinação do limiar convulsígeno) e aplicada somente por médicos com treinamento especializado.31

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1.

Lish JD, Dime-Meenam S, Whybrow PC, Price RA, Hirchfeld RM. The National Depressive and Manic-Depressive Association (NMDA) survey of bipolar members. J Affect Disorders. 1994;31:281-94.

2.

Akiskal HS, Bourgeois ML, Angst J, Post R, Möller H-J, Hirschfeld R. Re-evaluating the prevalence of and diagnostic composition within the broad clinical spectrum of bipolar disorders. J Affect Disorders. 2000;59(suppl):5-30.

3.

Merikangas KR, Akiskal HS, Angst J, Greenberg PE, Hirschfeld RM, Petukhova M et al. Lifetime and 12-month prevalence of bipolar spectrum disorder in the National Comorbidity Survey replication. Archives of General Psychiatry. 2007;64 (5):543-52.

4.

American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders, DSM-5. Washington, DC: American Psychiatric Association, 2013.

5.

American Psychiatric Association. Diagnostic and statiscal manual of mental disorders, fourth edition, DSM-IV. Washington, DC: American Psychiatric Association, 1994.

6.

Koukopoulos A, Sani G, Ghaemi SN. Mixed features of depression: why DSM-5 is wrong (and so was DSM-IV). British Journal of Psychiatry. 2013;203 (1):3-5.

7.

Sani G, Vöhringer PA, Napoletano F, Holtzman NS, Dalley S, Girardi P et al. Koukopoulos’ diagnostic criteria for mixed depression: a validation study. Journal of Affective Disorders. 2014;164:14-8.

8.

Kraepelin E. Manic-depressive insanity and paranoia (translated by R. Mary Barclay, from the eight German edition of the Text-book of psychiatry. v. III and IV) Edinburgh: Livingstone, 1921. p. 1.

9.

Angst J, Sellaro R. Historical perspectives and natural history of bipolar disorder. Biol Psychiatry. 2000;48:445-457.

10. Judd LL, Akiskal HS. Depressive episodes and symptoms dominate the longitudinal course of bipolar disorder. Curr Psychiatry Rep. 2003;5(6):417-418. 11. Judd LL, Schettler PJ, Akiskal HS, Maser J, Coryell W, Solomon D et al. Long-term symptomatic status of bipolar I vs. bipolar II disorders. Int J Neuropsychopharmacology. 2003;6 (2):127-37. 12. American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais – DSM-5, revisão técnica de Aristides Volpato Cordioli (coordenação). Porto Alegre: Artmed, 2014. 13. Yatham LN, Kennedy SH, Parikh SV, Schaffer A, Beaulieu S, Alda M et al. Canadian Network for Mood and Anxiety Treatments (CANMAT) and International Society for Bipolar Disorders (ISBD) collaborative update of CANMAT guidelines for the management of patients with bipolar disorder: update 2013. Bipolar Disorder. 2013;15(1):1-44. 14. Kessler RC, Rubinow DR, Holmes C, Abelson JM, Zhao S. The epidemiology of DSMIII-R bipolar I disorder in a general population survey. Psychogical Medicine. 1997;27(5):1079-89. 15. Regier DA, Myers JK, Kramer M, Robins LN, Blazer DG, Hough RL et al. The NIMH Epidemiologic Catchment Area Program. Historical context, major objectives, and study population characteristics Arch Gen Psychiatry. 1984;41 (10):934-41. 16. Di Florio A, Jones L, Forty L, Gordon-Smith K, Blackmore ER, Heron J et al. Mood disorders and parity – a clue to the aetiology of the postpartum trigger. Journal of Affective Disorders. 2014;152-154:334-9. 17. Akiskal HS. Demystifying borderline personality: critique of the concept and unorthodox reflections on its natural kinship with the bipolar spectrum. Acta Psychiatr Scandinavica. 2004;110(6):401-7. 18. Swann AC, Lafer B, Perugi G, Frye MA, Bauer M, Bahk WM et al. Bipolar mixed states: an international society for bipolar disorders task force report of symptom structure, course of illness, and diagnosis. American Journal of Psychiatry. 2013;170 (1):31-42. 19. Ng F, Mammen OK, Wilting I, Sachs GS, Ferrier IN, Cassidy F et al. International

Society for Bipolar Disorders The International Society for Bipolar Disorders (ISBD) consensus guidelines for the safety monitoring of bipolar disorder treatments. Bipolar Disord. 2009;11(6):559-95. 20. Thase ME, Mallinger AG, McKnight D, Himmelhoch JM. Treatment of imipramineresistant recurrent depression IV: a double-blind crossover study of tranylcypromine for anergic bipolar depression. Am J Psychiatry. 1992;149 (2):195-8. 21. Geddes JR, Goodwin GM, Rendell J, Azorin JM, Cipriani A, Ostacher MJ et al. Lithium plus valproate combination therapy versus monotherapy for relapse prevention in bipolar I disorder (BALANCE): a randomised open-label trial. BALANCE investigators and collaborators. Lancet. 2010; 375(9712):385-95. 22. Bowden CL, Calabrese JR, Sachs G, Yatham LN, Asghar SA, Hompland M et al. (Lamictal 606 Study Group) A placebo-controlled 18-month trial of lamotrigine and lithium maintenance treatment in recently manic or hypomanic patients with bipolar I disorder. Arch Gen Psychiatry. 2003;60:392-400. 23. Lieberman DZ, Goodwin FK. Separate and concomitant use of lamotrigine, lithium, and divalproex in bipolar disorders. Curr Psychiatry Rep. 2004; 6(6):459-65. 24. Geddes JR, Calabrese JR, Goodwin GM. Lamotrigine for treatment of bipolar depression: independent meta-analysis and meta-regression of individual patient data from five randomised trials. Br J Psychiatry. 2009;194(1):4-9. 25. Tohen M, Sanger TM, McElroy SL, Tollefson GD, Chengappa KNR, Daniel DG et al. Olanzapine vs placebo in the treatment of acute mania. Am J Psychiatry. 1999; 156:702-9. 26. Tohen M, Jacobs TG, Grundy SL, McElroy SL, Banov MC, Janicak PG et al. Efficacy of olanzapine in acute bipolar mania: a double-blind, placebo controlled study. Arch Gen Psychiatry. 2000;57:841-9. 27. Tohen M, Marneros A, Bowden C, Greil W, Koukopoulos A, Belmaker H et al. Olanzapine versus lithium in relapse prevention in bipolar disorder: a randomized double-blind controlled 12-month clinical trial. Poster presented at the Third European Stanley Foundation Conference on Bipolar Disorder, September 12 a 14, 2002, Freiburg, Germany. 28. Thase ME, Macfadden W, Weisler RH, Chang W, Paulsson B, Khan A et al. BOLDER II Study Group. Efficacy of quetiapine monotherapy in bipolar I and II depression: a double-blind, placebo-controlled study (the BOLDER II study). J Clin Psychophar. 2006;26 (6):600-9 29. Weisler RH, Calabrese JR, Thase ME, Arvekvist R, Stening G, Paulsson B et al. Efficacy of quetiapine monotherapy for the treatment of depressive episodes in bipolar I disorder: a post hoc analysis of combined results from 2 double-blind, randomized, placebo-controlled studies. J Clin Psychiatr. 2008;69(5):769-82.

30. Tohen M, Vieta E, Calabrese J, Ketter, T, Sachs G, Bowden C et al. Efficacy of olanzapine and olanzapine-fluoxetine combination in the treatment of bipolar I depression. Arch Gen Psychiatry. 2003;60:1079-88. 31. Medda P, Toni C, Perugi G. The mood-stabilizing effects of electroconvulsive therapy. J ECT. 2014;30(4):275-82.

BIBLIOGRAFIA Goodwin FK, Jamison, KR. Manic-depressive illness. New York, Oxford, Oxford University Press, 1990. Kraepelin E. Dementia Praecox, Manic Depressive Insanity and Paranoia. Translated by Barclay, RM (ed. Robertson, GM), Edinburgh: E & S Livingstone. Reedição (1989) Birminham: The Classics of Medicine Library, 1921. Yatham LN, Kennedy SH, Parikh SV, Schaffer A, Beaulieu S, Alda M et al. Canadian Network for Mood and Anxiety Treatments (CANMAT) and International Society for Bipolar Disorders (ISBD) collaborative update of CANMAT guidelines for the management of patients with bipolar disorder: update 2013. Bipolar Disorder. 2013;15 (1):1-44.

Capítulo 4

TRANSTORNOS DE ANSIEDADE Tássio Andrade Reis e Luis Henrique Junqueira Dieckmann

INTRODUÇÃO Os transtornos de ansiedade são condições graves que resultam em grande prejuízo econômico. O curso das doenças é crônico, e baixas taxas de remissão a curto ou médio prazo são observadas. O estudo dos transtornos de ansiedade se torna fundamental em razão das altas taxas de prevalência, do grande prejuízo social e econômico decorrente dessas condições e da grande frequência com que aparecem como comorbidade de transtornos psiquiátricos.

EPIDEMIOLOGIA A prevalência pontual dos transtornos de ansiedade (Tabela 4.1) ao redor do mundo é de cerca de 4%, enquanto a prevalência ao longo da vida é de 29%. A relação homem:mulher é de cerca de 1:1,9. É mais comum na adolescência, entre adultos jovens, pessoas divorciadas, desempregados e pessoas de baixa condição econômica. Tabela 4.1 Prevalência dos transtornos de ansiedade. Transtorno

Prevalência nos últimos 12 meses (%)

Prevalência ao longo da vida (%)

Ansiedade generalizada

2,6

6,2

Pânico

2,4

4,7

Fobia social

7,1

12,1

FATORES DE RISCO Alguns fatores de risco são comuns a todos os transtornos de ansiedade: • • • • • •

Sexo feminino Baixa escolaridade História familiar de depressão Raça branca Abuso sexual na infância Número de experiências traumáticas até os 21 anos

• •

Ambiente familiar conturbado Baixa autoestima.

PSICOPATOLOGIA TRANSTORNO DE ANSIEDADE GENERALIZADA O quadro é marcado pela presença de ansiedade excessiva na maior parte dos dias. O indivíduo permanece tenso, angustiado e irritado. Fica preocupado com os problemas, como as dívidas que tem a pagar ou os compromissos a cumprir. Mantém o pensamento predominantemente no futuro e, em geral, de maneira reverberante. Pode apresentar alteração do sono (sendo mais comum a insônia inicial) e do apetite, sensação ruim, medo exacerbado, dificuldade de relaxar e de se concentrar. Sintomas somáticos são comuns, como opressão torácica, cefaleia, dores musculares, epigastralgia, taquicardia, formigamento, sudorese e tremores. A ansiedade permeia diversos aspectos da vida do indivíduo e, em diferentes graus, gera prejuízo.

SÍNDROME DO PÂNICO (TRANSTORNO DE PÂNICO) A ansiedade também pode se manifestar em crises intermitentes, com a eclosão de sintomas em número e intensidade variáveis. Nesse caso, pode ou não haver sintomas constantes de transtorno de ansiedade generalizada (TAG). Em decorrência da intensa descarga do sistema nervoso autônomo, é comum sintomas como taquicardia, dispneia, taquipneia, sudorese, tremores, náuseas ou formigamentos acompanharem as crises de pânico. Também é comum o relato de sensação iminente de morte e de perda de controle. Os pacientes frequentemente associam os sintomas à possibilidade de estarem sofrendo um infarto ou enlouquecendo. Pode surgir desrealização (sensação de que o ambiente, antes familiar, parece estranho) e/ou despersonalização (sensação da cabeça ficar leve, do corpo flutuar, de estranhar a si mesmo). As crises de ansiedade surgem sem desencadeador aparente e atingem seu pico em 5 a 10 min, geralmente com remissão em menos de 1 h. No entanto, após a crise, a pessoa pode permanecer com graves sintomas ansiosos por mais tempo. Assim, ela passa a evitar comportamentos que se relacionem com a crise e se mantém com medo de apresentar novos episódios. É comum a ocorrência de agorafobia secundária ao transtorno de pânico.

FOBIAS Caracterizam-se por medos intensos, irracionais e desproporcionais relacionados com situações ou objetos que não oferecem risco real ao indivíduo. •

Agorafobia: o medo relaciona-se com a impossibilidade de fugir ou conseguir ajuda; frequentemente ocorre em metrôs, praças, parques, trânsito ou cinema. A evitação desses lugares pode levar o sujeito a graves comprometimentos

• •

Fobia social: medo intenso de situações de contato interpessoal, exposição social, cobrança ou competição Fobias simples: direcionadas a objetos ou locais específicos, como seringas, vidro, palhaços, animais, locais fechados, entre outros.

CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – 5a edição (DSM-5) exibe uma seção para classificação dos transtornos de ansiedade, os quais são divididos em transtorno de ansiedade de separação, mutismo seletivo, fobias específicas, transtorno de ansiedade social (fobia social), síndrome do pânico, ataque de pânico, agorafobia, TAG, transtorno de ansiedade induzido por medicação ou substância, transtorno de ansiedade secundário a outra condição médica, transtorno de ansiedade com outra especificação e transtorno de ansiedade inespecífico.1 Aqui serão citados os critérios diagnósticos do TAG e da síndrome do pânico.

TRANSTORNO DE ANSIEDADE GENERALIZADA1 1. Ansiedade excessiva e preocupação ocorrendo em mais da metade dos dias por pelo menos 6 meses, relacionado com certos eventos ou atividades (como trabalho ou desempenho escolar). 2. O indivíduo acha difícil controlar a preocupação. 3. A ansiedade e a preocupação estão relacionadas com três (ou mais) dos seguintes sintomas (com os sintomas aparecendo em mais da metade dos dias nos últimos 6 meses). • Inquietação ou sensação ruim (de tensão) ou nervosismo • Sentir-se cansado com facilidade • Dificuldade de concentração ou sensação de “branco na mente” • Irritabilidade • Tensão muscular • Distúrbio do sono. 4. A ansiedade, a preocupação ou os sintomas físicos causam sofrimento significativo ou prejuízo social, ocupacional ou em outras áreas importantes do funcionamento. 5. Os sintomas não podem ser explicados por condição fisiológica ou efeitos de substâncias (droga ilícita, medicação) ou outra condição médica (hipertireoidismo). 6. Os sintomas não são mais bem explicados por outro distúrbio mental (preocupação em ter crises de pânico, ansiedade secundária a delírios na esquizofrenia etc.).

SÍNDROME DO PÁNICO1 1. Ataques de pânicos recorrentes e inesperados. Um ataque de pânico é caracterizado pelo surgimento de medo intenso ou desconforto intenso que atinge um pico em minutos e pode surgir de um estado calmo ou ansioso, com pelo menos quatro dos seguintes sintomas:

• • • • • • • • • • • • •

Palpitações, coração acelerado Sudorese Tremores Respiração curta ou sensação de sufocamento Sensação de asfixia Dor ou desconforto torácico Náuseas ou desconforto abdominal Sensação de tontura, instabilidade ou desmaio Calafrios ou ondas de calor Parestesias (sensação de anestesia ou formigamento) Desrealização (sensação de irrealidade) ou despersonalização (sentir-se separado de si mesmo) Medo de perder o controle ou enlouquecer Medo de morrer.

(Nota: outros sintomas, como dor de cabeça e gritos incontroláveis podem aparecer, mas não devem ser contados como um dos quatro itens.) 2. Pelo menos um dos ataques deve ser seguido de um ou ambos dos seguintes itens: • Preocupação persistente em ter outros ataques de pânico ou suas consequências (perder o controle, sofrer infarto, enlouquecer) • Uma mudança significativa do comportamento relacionada com o ataque (comportamentos para evitar os ataques de pânico, como evitar exercícios ou situações incomuns). 3. O distúrbio não pode ser atribuído a efeitos do uso de substâncias (droga ilícita, medicação) ou outra condição médica (hipertireoidismo, doença cardiopulmonar). 4. O distúrbio não pode ser mais bem explicado por outra doença mental (os ataques de pânico não podem ocorrer só em situações sociais estressantes, como no transtorno de ansiedade social, ou em respostas específicas a objetos ou situações fóbicas, como na fobia específica, entre outros).

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL Diversos transtornos psiquiátricos devem ser considerados diagnósticos diferenciais dos transtornos ansiosos, sendo comum ocorrerem como comorbidade. São eles: transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), transtorno afetivo bipolar, depressão, transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), transtorno alimentar, uso de substâncias, transtornos de personalidade (principalmente evitativa) e esquizofrenia. Também é importante serem afastadas patologias clínicas, como hipertireoidismo, feocromocitoma, doenças cardiovasculares (infarto agudo do miocárdio, taquicardia atrial paroxística, prolapso de valva mitral), doença respiratórias (asma, doença pulmonar obstrutiva crônica, TEPT), doença de Menière e doenças neurológicas (acidente vascular cerebral, encefalite). É importante para a diferenciação diagnóstica que seja realizado rastreamento clínico.

Para tanto, é fundamental uma história completa, um exame físico detalhado e exames complementares, como os laboratoriais de rotina, eletrocardiograma, função tireoidiana, além de outros específicos para suspeitas levantadas na história (p. ex., suspeita de TEPT deve seguir protocolo específico).

TRATAMENTO A ansiedade faz parte de sistema evolucionário útil e só deve ser tratada quando prejudicial, ou seja, quando atrapalha o funcionamento ou a qualidade de vida do indivíduo. Aconselhamento e informação podem resolver ou melhorar o quadro, sem necessidade de outras intervenções. O tratamento deve ser baseado na preferência do paciente, gravidade do quadro, na presença de comorbidades, nos riscos (suicídio, abuso de substâncias etc.), na história dos tratamentos prévios e nos custos do tratamento. Sempre se deve começar explicando a patologia e as possibilidades do tratamento com os seus respectivos riscos. Mesmo sendo um conjunto de diversos diagnósticos diferentes, o tratamento dos transtornos ansiosos tem muitas semelhanças. Para todas essas condições, há no arsenal terapêutico, terapias psicológicas e tratamento medicamentoso. O tratamento deve continuar por pelo menos 6 a 24 meses após a remissão dos sintomas. Não existe diferença significativa entre a terapia medicamentosa e a não medicamentosa, apesar de resultados mais duradouros serem obtidos quando o tratamento escolhido é a psicoterapia. Entretanto, o tratamento mais eficaz é a combinação das duas modalidades. A terapia psicológica mais bem estudada e com melhores resultados nos transtornos de ansiedade é a terapia cognitivo-comportamental (TCC). Entre as medicações, os antidepressivos são as mais importantes, não havendo grandes diferenças de eficácia entre as classes. Entretanto, em virtude do menor perfil de efeitos colaterais, os inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS) e os inibidores da recaptação de serotonina e noradrenalina (IRSN) são as primeiras escolhas. Os tricíclicos e os inibidores da monoaminoxidase (IMAO), em geral, são usados como medicações de segunda linha ou para casos refratários. Os benzodiazepínicos devem ser usados por cerca de 2 a 4 semanas, em associação com os antidepressivos, com posterior retirada gradual. Alguns estudos demonstram que a pregabalina é de primeira linha no tratamento do TAG, enquanto a buspirona é uma opção terapêutica ainda com resultados controversos. Antipsicóticos, betabloqueadores e anti-histamínicos podem ser utilizados como adjuvantes. Ver na Figura 4.1 e na Tabela 4.2 esquema de tratamento e as principais medicações usadas nos transtornos de ansiedade.

Figura 4.1 Esquema de tratamento dos transtornos de ansiedade. Tabela 4.2 Principais medicações usadas nos transtornos de ansiedade. Medicamento

Dose de início (mg/dia)

Dose de manutenção (mg/dia)

1a escolha ISRS Fluoxetina

20

20 a 80

Sertralina

25

50 a 200

Paroxetina

10

20 a 60

Citalopram

20

20 a 60

Escitalopram

10

10 a 20

Fluvoxamina

50

100 a 300

Venlafaxina

37,5

75 a 375

Duloxetina

30

60 a 120

IRSN

2a escolha

TCC Amitriptilina

25

75 a 300

Clomipramina

25

100 a 250

Imipramina

25

50 a 300

Nortriptilina

10 a 25

75 a 300

Adjuvantes Benzodiazepínicos (iniciar com 1a linha e suspender após 2 a 4 semanas) Diazepam

5

5 a 40

Clonazepam

0,25 a 0,5

0,25 a 4

Alprazolam

0,5

0,5 a 4

20

20 a 60

Pregabalina*

150

150 a 600

Gabapentina

300

600 a 3.600

Agonista parcial do receptor de serotonina 1A Buspirona Anticonvulsivante/modulador de canal de cálcio

*A pregabalina também é primeira linha no tratamento do TAG. ISRS = inibidor seletivo da recaptação de serotonino; IRSN = inibidor da recaptção de serotonina e noradrenalina; TCC = terapia cognitivo-comportamental.

PREVENÇÃO O grande desafio com relação aos transtornos de ansiedade é a elaboração de estratégias eficazes para prevenção desses transtornos. Estudos mostram que TCC pode ser eficaz para prevenir patologias do espectro ansioso. Outras medidas universais são úteis para a prevenção da ansiedade. Adoção de alimentação saudável, prática de atividade física, medidas de aumento da renda e da qualidade de vida estão entre os fatores protetores mais importantes. A prevenção do agravamento e da cronificação dos quadros ansiosos já instalados é fundamental para evitar prejuízos ao indivíduo e ao sistema de saúde. Por isso, fácil acesso a serviços de saúde, disponibilidade de

tratamentos comprovados e profissionais de saúde capazes de identificar e tratar precocemente os casos são mecanismos imprescindíveis para uma assistência efetiva e eficiente.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 1.

American Psychiatric Associaton (APA). Diagnostic and statistical manual of mental disorder. 5. ed. Washington, 2013.

BIBLIOGRAFIA Bandelow B, Sher L, Bunevicius R, Hollander E, Kasper S, Zohar J et al. World Federation of Societies of Biological Psychiatry (WFSBP) guidelines for the pharmacological treatment of anxiety, obsessive-compulsive and post-traumatic stress disorders – first revision. World J Biol Psychiatry. 2008;9:248-312. Bandelow B, Boerner RJ, Kasper S, Linden M, Wittchen H, Möller HJ. The diagnosis and treatment of generalized anxiety disorder. Dtsch Arztebl Int. 2013;110(17): 300-10. Bandelow B, Sher L, Bunevicius R, Hollander E, Kasper S, Zohar J et al. Guidelines for the pharmacological treatment of anxiety disorders, obsessive – compulsive disorder and posttraumatic stress disorder in primary care. International Journal of Psychiatry in Clinical Practice. 2012;16:77-84. Baxter AJ, Scott KM, Ferrari AJ, Norman RE, Vos T, Whiteford HA. Challenging the myth of an “epidemic” of common mental disorders: trends in the global prevalence of anxiety and depression between 1990 and 2010. Depress Anxiety. 2014; 131(6):506-16. Dalgalarrondo P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 2.ed. Porto Alegre: Artmed, 2008. den Bôer JA. Social anxiety disorder/social phobia: epidemiology, diagnosis, neurobiology, and treatment. Comprehensive Psychiatry. 2000;41(6): 405-15. Fidalgo TM, Silveira DX. Manual de psiquiatria. São Paulo: Roca, 2011. National Collaborating Centre for Mental Health. Generalised ansiety disorder in adults: management in primary, secondary and community care. National Clinical Guideline. 2011, n. 113. Roy-Byrne PP. Craske MG, Stein MB. Panic disorder. Lancet. 2006;368:1023-32. Stahl SM. The prescriber’s guide. 4.ed. New York: Cambridge University Press, 2011. Steel Z, Marnane C, Iranpour C, Chey T, Jackson JW, Patel V et al. The global prevalence of common mental disorders: a systematic review and meta-analysis 1980-2013. International Journal of Epidemiology. 2014;1-18. Stein MB, Stein DJ. Social anxiety disorder. Lancet. 2008;371:1115-25.

Tyrer P, Baldwin D. Generalised anxiety disorder. Lancet. 2006;368:2156-66.

Capítulo 5

TRANSTORNO OBSESSIVO-COMPULSIVO Juliana de Sousa Ribeiro de Carvalho e Christina Hajaj Gonzalez

INTRODUÇÃO O transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) está incluído, desde a 5a edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM), na categoria de Transtorno Obsessivo-compulsivo e Transtornos Relacionados, e é caracterizado pela presença de obsessões e/ou compulsões, definidas no Quadro 5.1. Quadro 5.1 Definição de obsessão e compulsão segundo o DSM-5. Obsessões são definidas por: 1. Pensamentos, impulsos ou imagens recorrentes e persistentes que, em algum momento, durante a perturbação, são experimentados como intrusivos e indesejados e que, na maioria dos indivíduos, causam acentuada ansiedade ou sofrimento 2. O indivíduo tenta ignorar ou suprimir tais pensamentos, impulsos ou imagens ou neutralizá-los com algum outro pensamento ou ação Compulsões são definidas por: 1. Comportamentos repetitivos (p. ex., lavar as mãos, organizar, verificar) ou atos mentais (p. ex., orar, contar, repetir palavras em silêncio) que o indivíduo se sente compelido a executar em resposta a uma obsessão ou de acordo com regras que devem ser rigidamente aplicadas 2. Os comportamentos ou os atos mentais visam a prevenir ou reduzir a ansiedade ou o sofrimento ou evitar algum evento ou situação temida; entretanto, esses comportamentos ou atos mentais não estão ligados de uma maneira realista com o que visam a neutralizar ou evitar ou são claramente excessivos Adaptado de American Psychiatric Association (2013).1

Os sintomas podem ter impacto relevante na autoestima e na vida acadêmica, ocupacional e social. O TOC costuma ser subdiagnosticado e subtratado, pois os pacientes frequentemente ocultam seus sintomas pela vergonha da irracionalidade dos seus pensamentos e comportamentos.

EPIDEMIOLOGIA •

Prevalência ao longo da vida: 2 a 3%



Nos adultos, há uma proporção semelhante entre homens e mulheres. Nos meninos, a idade de início costuma ser mais precoce, o que possivelmente contribui para a preponderância desse sexo nas amostras de TOC na infância e na adolescência.

ETIOLOGIA O TOC pode ser explicado a partir de aspectos psicodinâmicos, genético-ambientais, neurobiológicos, neuroquímicos e cognitivo-comportamentais, ou ainda, mais comumente, pela interação entre esses diversos aspectos. Nesse transtorno, suspeita-se que haja uma disfunção orbitofrontal-límbica-gânglios basais, e o tratamento com inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS) ou terapia cognitivo-comportamental (TCC) promove alterações estruturais e funcionais no cérebro dos pacientes. Apesar dos dados conflitantes, sugere-se que, no TOC, haja o envolvimento do sistema serotoninérgico: evidências indiretas bem documentadas dos efeitos antiobsessivos dos potentes ISRS. Entretanto, não parece que a desregulação serotoninérgica responda por tudo. É possível que ela module ou compense outros sistemas disfuncionais. Os genes predisponentes do TOC não foram identificados de modo consistente até o momento. Há evidências de cotransmissão de TOC, síndrome de Tourette e tiques motores crônicos em famílias. Não há fator ambiental específico associado, mas sabe-se que infecção estreptocócica pode o causar súbito aparecimento de sintomas obsessivo-compulsivos por anticorpos dirigidos contra os gânglios basais.

QUADRO CLÍNICO O TOC geralmente surge na adolescência ou início da idade adulta, de maneira insidiosa, com evolução crônica e progressiva. Na maioria dos casos, não há fator precipitante do início dos sintomas. Há diversas apresentações de sintomas, que podem, inclusive, sobrepor-se ou desenvolver-se em sequência. O uso da Yale-Brown Obsessive Compulsive Scale (YBOCS) ou ainda o CY-BOCS (para crianças) auxilia na avaliação do tipo e da gravidade dos sintomas, além do tempo consumido com obsessões e compulsões. Há alguns padrões sintomáticos principais: obsessão de contaminação seguida de lavagens ou esquiva compulsiva do “objeto contaminado”; obsessão de dúvida seguida de compulsão de verificação; pensamentos obsessivos sem compulsão; necessidade de simetria e precisão com alentecimento; acumulação. Outros: obsessões de conteúdo agressivo, sexual ou religioso, compulsões de repetição ou contagem etc. O Quadro 5.2 destaca pontos fundamentais da avaliação psiquiátrica no TOC. Quadro 5.2 Destaques da avaliação psiquiátrica no TOC.

1. Avaliar sintomas atuais 2. Considerar classificar a gravidade dos sintomas 3. Avaliar o efeito dos sintomas no bem-estar, no funcionamento e na qualidade de vida. 4. Avaliar se existe risco à própria segurança ou de terceiros 5. Investigar comorbidades, com destaque para transtorno bipolar e uso do de antidepressivos 6. Avaliar antecedentes psiquiátricos, hospitalizações, uso de medicações (doses, duração, resposta, efeitos colaterais) e psicoterapias pregressas 7. História médica geral: condição atual de saúde, uso de medicações, hospitalizações, alergias, história prévia de trauma craniencefálico, perda de consciência ou convulsões 8. Fazer revisão de sistemas (incluir sintomas que podem ser confundidos posteriormente com efeito colateral de medicações) 9. Registrar história de desenvolvimento psicossocial e sociocultural: especialmente períodos de transição na infância e na adolescência; capacidade de manter relações interpessoais estáveis e gratificantes; história sexual, incluindo disfunções; história educacional e profissional, incluindo serviço militar; potenciais estressores; suporte social 10. História psiquiátrica familiar 11. Exame do estado mental, especialmente aparência, estado geral, atitude, cooperação com a entrevista, alterações psicomotoras, insight e cognição Adaptado de American Psychiatric Association (2007).2

CURSO • • • •

De 24 a 33%: curso oscilante De 11 a 14%: curso fásico com períodos de remissão completa De 54 a 61%: curso crônico e progressivo 80% melhoram no decorrer de 40 anos.

DIAGNÓSTICO O Quadro 5.3 mostra os critérios diagnósticos e especificadores do TOC.

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL • •

Esquizofrenia Depressão

• • • • • • • • •

Hipocondria Transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) Transtornos fóbicos e ansiosos Depressão pós-parto Ruminações obsessivas da depressão Síndrome de Tourette Transtorno alimentares Transtorno dismórfico corporal Transtorno de personalidade obsessivo-compulsivo grave.

Quadro 5.3 Critérios diagnósticos do transtorno obsessivo-compulsivo (DSM-5). A. Presença de obsessões, compulsões ou ambas B. As obsessões ou compulsões tomam tempo (p. ex., tomam mais de 1 hora por dia) ou causam sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social, profissional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo C. Os sintomas obsessivo-compulsivos não se devem a efeitos fisiológicos de substâncias (p.ex., drogas ilícitas, medicamento) ou a outra condição médica D. A perturbação não é mais bem explicada pelos sintomas de outro transtorno mental (p. ex., preocupações excessivas, como no transtorno de ansiedade generalizada; preocupação com a aparência, como no transtorno dismórfico corporal; dificuldade de descartar ou se desfazer de pertences, como no transtorno de acumulação; arrancar cabelos, como na tricotilomania; beliscar a pele, como no transtorno de escoriação [skin picking]; estereotipias, como no transtorno do movimento estereotipado; comportamento alimentar ritualizado, como nos transtornos alimentares; preocupação com substâncias ou jogo, como nos transtornos relacionados a substâncias e transtornos aditivos; preocupação sobre ter uma doença, como no transtorno de ansiedade de doença; impulsos ou fantasias sexuais, como nos transtornos parafílicos; impulsos, como nos transtornos disruptivos, do controle de impulsos e da conduta; ruminações de culpa, como no transtorno depressivo maior; inserção de pensamento ou preocupações delirantes, como nos transtornos do espectro da esquizofrenia e outros transtornos psicóticos; ou padrões repetitivos de comportamento, como no transtorno do espectro autista) Especificar se: Com insight bom ou razoável: o indivíduo reconhece que as crenças do TOC são definitivas ou provavelmente não verdadeiras ou que podem ou não ser verdadeiras Com insight pobre: o indivíduo acredita que as crenças do TOC são provavelmente verdadeiras Com insight ausente/crenças delirantes: o indivíduo está completamente convencido de que as crenças do TOC são verdadeiras Especificar se: Relacionado a tique: o indivíduo tem história atual ou passada de um transtorno de tique

Adaptado do American Psychiatric Association (2013).1

COMORBIDADES • • • • • • • •

Tiques: 28 a 62% dos indivíduos com síndrome de Tourette têm TOC Transtorno opositor-desafiador (TOD) Transtornos de humor, como depressão e transtorno afetivo bipolar Transtornos ansiosos (pânico, transtorno de ansiedade generalizada e fobia social) Transtornos alimentares Abuso ou dependência de substâncias Transtorno de controle dos impulsos, como dermatotilexomania e tricotilomania Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH).

TRATAMENTO A Figura 5.1 mostra a diretriz da American Psychiatric Association para tratamento do TOC. As doses de ISRS no TOC podem ser vistas na Tabela 5.1.

Figura 5.1 Algoritmo para o tratamento do transtorno obsessivo-compulsivo. TCC: terapia cognitivo-comportamental; ISRS: inibidores seletivos de recaptação de serotonina; IMAO = inibidores da monoaminoxidase. Adaptada de American Psychiatric Association (2007).2

Tabela 5.1 Dose dos ISRS no TOC. Dose de início

ISRS

(mg/dia)

Dose usual (mg/dia)

Dose máxima (mg/dia)

Eventualmente doses acima da máxima (mg/dia)

Citalopram

20

40 a 60

80

120

Clomipramina

25

100 a 250

250

*

Escitalopram

10

20

40

60

Fluoxetina

20

40 a 60

80

120

Fluvoxamina

50

200

300

450

Paroxetina

20

40 a 60

60

100

Sertralina

50

200

200

400

* Níveis plasmáticos de clomipramina e desmetilclomipramina 12 h após a última dose devem ficar abaixo de 500 ng/mℓ pelo risco de convulsões e atraso na condução cardíaca. ISRS = inibidor seletivo da recaptação de serotonina. Adaptada de American Psychiatric Association (2007).2 100% de magenta

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1.

American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders. 5.ed. Washington: American Psychiatric Association, 2013.

2.

American Psychiatric Association. Practice guideline for the treatment of patients with obsessive-compulsive disorder. Washington: American Psychiatric Association, 2007.

BIBLIOGRAFIA Arnold PD, Richter MA. Is obsessive-compulsive disorder an autoimmune disease? CMAJ. 2001;165(10):1353-58. Bloch MD, Landeros-Weisenberger A, Rosario MC, Pittenger C, Leckman JF. Metaanalysis of the symptom structure of obsessive-compulsive disorder. Am J Psychiatry. 2008;165(12):1532-42. Goodman WK, Price LH, Rasmussen SA, Mazure C, Fleischmann RL, Hill CL et al. The Yale-Brown Obsessive Compulsive Scale. I. Development, use, and reliability. Arch Gen Psychiatry. 1989;46(11):1006-11. Goodman W, Price L, Rasmussen S, Mazure C, Fleischmann RL, Hill CL et al. The Yale-

Brown Obsessive Compulsive Scale. II. Validity. Arch Gen Psychiat. 1989; 46(11):101216. Hollander E, Simeon D. Transtornos de ansiedade. In: Hales R, Yudofsky S, Glabbard G. Tratado de psiquiatria clínica. 5.ed. Porto Alegre: Artmed, 2012. p. 531-638. Ruscio A, Stein D, Chiu W, Kessler RC. The epidemiology of obsessive-compulsive disorder in the National Comorbidity Survey Replication. Mol Psychiatr. 2010;15(1):53-63. Sadock B, Sadock V, Ruiz P. Kaplan & Sadocks’s comprehensive textbook of psychiatry. Philadelphia (PA): Lippincott Williams & Wilkins, 2009. Cap. 14 e 49. Thomsen P, Obsessive-compulsive disorder. Eur Child Adolesc Psychiatry. 2013;22(Suppl 1):S23-S28. Torresan RC, Smaira SI, Ramos-Cerqueira ATA, Torres AR. Qualidade de vida no transtorno obsessivo-compulsivo: uma revisão. Rev Psiq Clín. 2008;35:13-9.

Capítulo 6

TRANSTORNO DO ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO Francine Nunes Ferreira e Marcelo Feijó de Mello

INTRODUÇÃO O transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) ocorre após experiência traumática que envolve risco de morte ou da integridade física do próprio indivíduo ou de terceiros. O paciente apresenta, após um período de 30 dias, sintomas como revivescência do evento traumático, hipervigilância, evitação e sintomas negativos cognitivos e afetivos, que levam a comprometimento em seu funcionamento em vários campos da vida social, familiar e de trabalho ou estudo.

PREVALÊNCIA A prevalência ao longo da vida varia de 6,8 a 12,3% na população adulta dos EUA, sendo maior no sexo feminino (2:1). Número semelhante foi encontrado por Ribeiro et al.1 nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo (8,7 e 10,2%, respectivamente). Esse número é impressionante e é o primeiro estudo no Brasil, que não participa de guerras há décadas. Tais números são justificados pela alta prevalência de violência interpessoal. Nesse mesmo estudo, foram encontradas prevalências ao longo da vida para esse tipo de violência de 59,4 e 63,8%, nas mesmas cidades, ou seja, ser vítima desse tipo de violência é a regra. Também favorecem negativamente nesses índices as associações de condições ambientais e maior prevalência de TEPT, como baixo nível socioeconômico, negligência dos pais ou cuidadores e baixo suporte social.

DIAGNÓSTICO O TEPT está incluído em um novo capítulo do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) intitulado “Trauma e transtornos relacionados com o estresse”, cuja origem pode ser especificamente atribuída à situação de estresse e trauma.2 O critério A1 do DSM-IV-TR exigia que o evento traumático fosse vivenciado ou testemunhado pelo próprio indivíduo. Esse critério foi ampliado e, hoje, ter conhecimento de um evento traumático vivenciado por uma pessoa próxima ou ser exposto a detalhes repulsivos do trauma também pode satisfazer critérios diagnósticos. Vale ressaltar que esse critério não se aplica à exposição por meio da mídia. Não há exigência de que o evento seja vivenciado com intenso medo, desamparo ou horror.

CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS (DSM-5)2 A. Exposição ou ameaça de morte, ferimento grave, violação sexual de uma das seguintes maneiras: 1. Sofrer exposição direta ao evento traumatico 2. Presenciar o evento que ocorreu a outras pessoas 3. Saber que o evento traumático ocorreu a um familiar ou amigo próximo. Em caso de morte ou ameaça de morte de um familiar ou amigo, o evento deve ter sido violento ou acidental 4. Ser extremamente ou repetidamente exposto a detalhes aversivos do evento (p. ex., bombeiros, policial) B. Presença de um ou mais sintomas intrusivos associados ao evento traumático, iniciado após o evento traumático: 1. Memória intrusiva, involuntária e recorrente do trauma 2. Sonhos recorrentes relacionados com o evento traumático 3. Dissociações: alterações da percepção da realidade ou de si próprio, inabilidade de lembrar fatos importantes relacionados com o trauma. Por exemplo, flashbacks, em que o indivíduo sente ou age como se o evento estivesse acontecendo 4. Estresse psicológico intenso ou prolongado diante de algo que simbolize ou lembre o evento traumático 5. Reações fisiológicas evidentes diante de algo que simbolize ou lembre o evento traumático C. Evitação persistente de um estímulo associado ao evento traumático, iniciado após evento traumático, evidenciado por, pelo menos, um dos sintomas: 1. Evitação ou esforço para evitar lembranças, pensamentos ou sensações associadas ao evento traumático 2. Evitação ou esforço para evitar pessoas, lugares, conversas, atividades, objetos e situações relacionadas com o trauma D. Alterações negativas na cognição e no humor, iniciando ou piorando após o evento traumático, evidenciado por dois ou mais sintomas: 1. Incapacidade de recordar aspectos importantes do trauma (típico de amnésia dissociativa e não relacionado com o uso de drogas ilícitas, álcool e traumas cranianos) 2. Pensamentos negativos persistentes e exagerados ou expectativas negativas sobre si mesmo, sobre os outros e sobre o mundo (p. ex.: “Sou mau”, “Não posso acreditar em ninguém”, “O mundo é completamente perigoso”) 3. Cognições distorcidas e persistentes sobre a causa ou as consequências do evento traumático que levam o indivíduo a culpar a si mesmo ou a outros 4. Estado emocional negativo persistente (p. ex., medo, horror, raiva, culpa ou vergonha) 5. Diminuição do interesse ou participação em atividades significativas 6. Sensações de distanciamento ou estranhamento dos outros 7. Inabilidade persistente de sentir emoções positivas, como felicidade, satisfação ou

E.

F. G. H.

amor Alterações importantes na excitabilidade e reatividade, iniciando ou piorando após o evento traumático, evidenciado por dois ou mais sintomas: 1. Irritabilidade ou explosões de agressividade (com pouca ou nenhuma provocação) expressada por agressão verbal ou física contra objetos e pessoas 2. Comportamento autodestrutivo ou imprudente 3. Hipervigilância 4. Reações instintivas exageradas 5. Problemas de concentração 6. Distúrbios de sono (dificuldade de iniciar o sono, manter ou terminar) Duração dos sintomas (critérios B, C, D e E) superior a 1 mês O transtorno causa sofrimento significativo ou prejuízo social, ocupacional, funcional ou em outras áreas importantes do funcionamento Não é secundário a efeitos psicológicos de substância ou outra condição médica geral.

FATORES DE RISCO • • • • • • • • •

Gravidade do trauma Dissociação peritraumática Gênero feminino Jovens Baixos níveis socioeconômico e educacional Antecedentes psiquiátricos pessoais e familiares Exposição a trauma anterior, sobretudo na infância Ausência de apoio social Predisposição biológica.

COMORBIDADES MAIS FREQUENTES • • •

Depressão e distimia Transtorno de ansiedade generalizada (TAG) Transtornos relacionados com o uso de substâncias.

TRATAMENTO FARMACOLÓGICO ANTIDEPRESSIVOS Os inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS) são os medicamentos de primeira escolha para o tratamento de TEPT. A paroxetina e a sertralina são aprovadas pela Food and Drug Administration (FDA) para o tratamento de TEPT, demonstrando taxas de 62 e 53% de remissão dos sintomas, respectivamente.

Outros ISRS, como fluoxetina, fluvoxamina e citalopram, mostraram efetividade em estudos controlados ou abertos. Entre os antidepressivos tricíclicos, a imipramina e a amitriptilina demonstraram redução nos sintomas de TEPT. A trazodona apresenta eficácia limitada para os sintomas de TEPT, porém é usada em associação com os ISRS em pacientes com insônia refratária. Os sintomas de TEPT remitiram em 64,5% em um estudo controlado com mirtazapina. Alguns estudos com venlafaxina demonstram resultados promissores (taxas de remissão de 50,9%), ao contrário da bupropiona, que não mostrou eficácia.

ANTIPSICÓTICOS Habitualmente, são usados como terapia adjuvante para pacientes refratários aos antidepressivos. Os antipsicóticos reduzem transtornos do sono, agressividade, agitação, ansiedade, hipervigilância, lembranças intrusivas, flashbacks dissociativos e sintomas psicóticos. Existem estudos com resultados positivos para risperidona, quetiapina e olanzapina.

BENZODIAZEPÍNICOS Não há evidências de que os benzodiazepínicos apresentem eficácia na prevenção do TEPT. Ao contrário, dois estudos demonstraram resultados negativos para uso em prevenção, devendo, portanto, ser evitados nas fases iniciais da exposição ao trauma. Não há evidência, também, de melhora dos sintomas específicos. Podem ser usados com terapia adjuvante, no controle dos sintomas ansiosos e transtorno do sono presentes em TEPT, preferencialmente por curtos intervalos de tempo, pelo risco de dependência.

ANTAGONISTAS ADRENÉRGICOS Clonidina, propranolol, prazosina e guanfacina podem ser utilizadas para redução do tônus adrenérgico, com consequente redução das lembranças recorrentes do evento traumático, dos sintomas ansiosos e da hiperexcitabilidade. A prazosina mostrou eficácia na redução dos pesadelos.

ANTICONVULSIVANTES Acredita-se que possam exercer efeitos terapêuticos por um mecanismo antikindling. Existem estudos abertos, retrospectivos e relatos de casos que demonstram eficácia de carbamazepina, ácido valproico e lamotrigina para sintomas de TEPT, porém são necessários estudos controlados. Um estudo controlado com topiramato não mostrou superioridade ao placebo, e a taxa de abandono foi muito alta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O TEPT pode ser desencadeado por diferentes eventos traumáticos, como guerras, violência sexual, violência urbana e catástrofes naturais, ou seja, eventos que põem em risco a integridade física e psíquica do paciente. O TEPT também pode ser desencadeado quando o paciente presencia outras pessoas nessas situações de risco. Pacientes com TEPT podem apresentar sintomas cognitivos, afetivos, dissociativos e psicóticos. Muitos desenvolvem comorbidades psiquiátricas, como depressão, uso de substâncias e somatização. Os critérios diagnósticos incluem pensamentos intrusivos, alteração do humor, evitação, hipervigilância e prejuízo no funcionamento. O diagnóstico deve ser feito após 30 dias do evento traumático. Se os sintomas estiverem presentes antes desse período, trata-se de transtorno de estresse agudo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1.

Ribeiro WS, Mari JJ, Quintana MI, Dewey ME, Evans-Lacko S, Vilete LM et al. The impact of epidemic violence on the prevalence of psychiatric disorders in Sao Paulo and Rio de Janeiro, Brazil. PloS One. 2013;8(5):e635-45.

2.

American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders. 5. ed. Washington: American Psychiatric Association, 2013.

BIBLIOGRAFIA Kessler RC, Chiu WT, Demler O, Merikangas KR, Walters EE. Prevalence, severity and comorbidity of 12 month DSM-IV Disorders in the National Comorbidity Survey Replication. Arch Gen Psychiatry. 2005;62:617. Kessler RC, Sonnega A, Bromet E et al. Posttraumatic stress disorder in the National Comorbidity Survey. Arch Gen Psychiatry. 1995;52:1048 Kroll J. Posttraumatic symptoms and the complexity of responses to trauma. JAMA. 2003;290:667. Norris FH. Epidemiology of trauma: frequency and impact of different potentially traumatic events on different demographic groups. J Consult Clin Psychol. 1992;60:409. Resnick HS, Kilpatrick DG, Dansky BS, Saunders BE, Best CL. Prevalence of civilian trauma and posttraumatic stress disorder in a representative national sample of women. J Consult Clin Psychol. 1993;61:984. Stein MB, McQuaid JR, Pedrelli P, Lenox R, McCahill ME. Posttraumatic stress disorder in the primary care medical setting. Gen Hosp Psychiatry. 2000;22:261. Stein DJ, Seedat S, Iversen A, Wessely S. Posttraumatic stress disorder: medicine and politics. Lancet. 2007;369:139.

Van der Kolk BA, Pelcovitz D, Roth S, Mandel FS, McFarlane A, Herman JL. Dissociation, somatization, and affect of dysregulation: the complexity of adaptation of trauma. Am J Psychiatry. 1996;153:83. Vieweg WV, Julius DA, Fernandez A, Tassone DM, Narla SN, Pandurangi AK. Posttraumatic stress disorder: clinical features, pathophysiology, and treatment. Am J Med. 2006;119:383.

Capítulo 7

ESQUIZOFRENIA E OUTRAS PSICOSES Larissa Fogaça Doretto Ary Gadelha de A. A. Neto

ESQUIZOFRENIA A esquizofrenia é um transtorno mental normalmente associado a curso crônico e grave prejuízo funcional. É considerada o protótipo dos transtornos psicóticos e é a responsável pela maior parte dos custos do setor público associados à saúde mental. Apesar dos avanços nas últimas décadas, seu tratamento ainda representa um desafio, com poucos pacientes retornando ao funcionamento pré-mórbido. A seguir, apresenta-se um resumo das informações mais relevantes para o tratamento da esquizofrenia, tendo como foco a superação da doença.

EPIDEMIOLOGIA Esquizofrenia é uma doença que acomete cerca de 0,3 a 0,7% da população ao longo da vida, mas essas taxas podem variar entre raças/etnias e entre diferentes regiões geográficas.1 Afeta indivíduos do sexo masculino em uma proporção ligeiramente maior que do sexo feminino (1,4:1).2 Sua incidência é de aproximadamente 15,2 a cada 100.000 pessoas por ano.3 A doença tende a surgir, em média, cerca de 5 anos antes nos homens (15 a 25 anos) que nas mulheres (25 a 35 anos). O início do distúrbio antes dos 10 anos ou após os 60 anos é extremamente raro. Estudos revelam que portadores de esquizofrenia apresentam taxas de mortalidade 2 vezes maiores que as da população geral. Além disso, eles apresentam uma expectativa de vida reduzida, em média, de 12 a 15 anos. A principal razão para esse aumento da mortalidade está relacionada com causas naturais, especialmente cardiovasculares, em virtude do baixo acesso desses indivíduos aos serviços médicos e da maior exposição a fatores de risco em seu dia a dia (má alimentação, obesidade, pouco exercício físico, tabagismo, entre outros). Entretanto, as taxas de suicídio entre esses portadores também é alta, e estima-se que eles apresentam um risco aproximadamente 10 vezes maior que a população geral. O suicídio é mais frequente no sexo masculino e está associado a desesperança, depressão e falta de expectativas. As taxas de remissão da doença variam; estima-se que 20 a 30% de todos os portadores de esquizofrenia sejam capazes de levar uma vida relativamente normal. Cerca de 20 a 30% continuam a apresentar sintomas moderados e entre 40 e 60% persistem comprometidos de forma significativa ao longo da vida.4 •

Fatores de bom prognóstico:



– Inserção social – Estado civil casado – Bom ajuste e funcionamento pré-mórbido – Quociente intelectual (QI) mais elevado – Tratamento precoce – Ajustamento psicossocial adequado – Bom ambiente familiar – Pouco tempo de episódio psicótico – Início agudo e tardio – Sexo feminino Fatores de mau prognóstico: – Isolamento social – Solteiro, viúvo ou separado – Demora no início do tratamento psiquiátrico – Ajustamento psicossocial pobre – Ambiente familiar desfavorável – Longo tempo de episódio psicótico anterior à avaliação inicial – Início insidioso.

As mulheres apresentam um curso mais favorável da doença, quando comparadas aos homens. As possíveis causas dessa diferença incluem o início mais tardio da doença, melhor funcionamento social, uma história pré-mórbida melhor e menor ocorrência de sintomas negativos. Além disso, o estrogênio parece ter um efeito protetor.2

ETIOPATOGENIA Sabe-se que há uma clara influência de fatores genéticos associados à esquizofrenia, e quanto maior o grau de parentesco com um indivíduo afetado, maior o risco de desenvolver a doença. Por exemplo, o risco de desenvolver esquizofrenia para quem tem um pai esquizofrênico é de aproximadamente 9%, enquanto esse risco sobe para 50% para quem tem um irmão gêmeo monozigótico afetado.5 A esquizofrenia é considerada, do ponto de vista genético, uma doença poligênica e multifatorial, em que diversos fatores genéticos (nenhum isoladamente) interagem com fatores não genéticos para causar a doença.6 Sendo assim, acredita-se que algumas pessoas herdam apenas uma vulnerabilidade genética e, ao serem submetidas a um fator de risco ambiental, podem desenvolver a doença. Alguns fatores de risco ambientais já foram consistentemente associados à esquizofrenia: complicações obstétricas, infecção pré-natal, desnutrição materna e hipoxia no parto, consumo de Cannabis, migração, nascimento em áreas urbanas mais densas populacionalmente e idade paterna acima dos 40 anos ao nascimento.7 Além das teorias genéticas, existem várias teorias sobre a participação de neurotransmissores na esquizofrenia. A mais importante até o momento é a dopaminérgica, pela sua implicação sobre a compreensão da ação das medicações antipsicóticas. A formulação mais simples da hipótese dopaminérgica, na esquizofrenia, postula que o

transtorno resulta do excesso de atividade dopaminérgica. Essa teoria partiu da observação de que antipsicóticos (AP), que atuam como antagonistas dos receptores de dopamina D2, causavam a remissão dos sintomas psicóticos. A teoria evoluiu e, atualmente, observa-se que os sintomas positivos da esquizofrenia podem ser explicados pelo aumento da atividade dopaminérgica subcortical, e os sintomas negativos, pela diminuição da dopamina cortical. Apesar disso, outros neurotransmissores têm sido estudados, e existem evidências de que há uma interação de múltiplos sistemas, como o serotoninérgico e glutamatérgico, na regulação dos sintomas da esquizofrenia.

CLÍNICA A esquizofrenia é uma doença clinicamente heterogênea, em que os pacientes podem apresentar grandes diferenças quanto ao perfil de sinais e sintomas. Um mesmo paciente pode apresentar diferentes padrões de sintomas ao longo da evolução da doença. O primeiro episódio psicótico costuma atingir adultos jovens e pode ser precedido, em semanas e até meses, por uma fase prodrômica. A fase prodrômica costuma se apresentar com perda de energia, iniciativa e interesse, crenças e experiências perceptuais incomuns ou estranhas, descuido com a aparência e higiene pessoal e isolamento social, associados a quadros de ansiedade, depressão e desrealização/despersonalização. A psicose é definida pela presença de delírios e/ou alucinações. Além desses sintomas, os pacientes também podem apresentar comportamento e fala desorganizados, redução da motivação e embotamento do afeto. Durante a crise psicótica, os sintomas positivos tendem a ser mais proeminentes, enquanto na fase estável os sintomas negativos são relativamente mais intensos e os principais responsáveis pelo comprometimento funcional. Um dos maiores desafios no tratamento da esquizofrenia é promover a recuperação do prejuízo do funcionamento ocupacional ou social do portador. Na maioria dos casos, o declínio dessas funções causa um grande impacto nas atividades formais e informais da vida diária desses pacientes, como acompanhar o curso de uma conversa, fazer compras e aprender novas tarefas no trabalho ou na escola. O isolamento social, o prejuízo do autocuidado e a hipobulia frequentemente acompanham esse quadro. O comprometimento das capacidades funcionais já era apontado por Kraepelin (1896) e Bleuler (1911) como característica central da doença. Sabe-se que aproximadamente 80% dos portadores de esquizofrenia apresentam alguma dificuldade para retomar as expectativas pré-mórbidas.8 Com o objetivo de auxiliar a descrição e a investigação clínica, têm sido propostos métodos para sistematizar a observação dessa doença polimorfa. A mais amplamente usada é a avaliação dimensional dos sintomas.

Dimensão positiva A dimensão positiva caracteriza-se por sintomas relacionados com a distorção da realidade, como delírios e alucinações. O delírio é uma das principais alterações do pensamento encontrada na esquizofrenia. São crenças errôneas, com alto grau de convicção, que envolvem a interpretação falsa de percepções ou experiências.9 Os delírios podem assumir diversos temas, sendo os persecutórios os mais comuns; neles, o paciente

pode achar que está sendo perseguido, espionado ou desmoralizado por vizinhos, familiares, policiais, ou ainda, que eles querem matá-lo, prendê-lo ou envenená-lo. Os delírios de autorreferência também são frequentes; nesse caso, o indivíduo sente-se alvo de uma conversa, mensagens ou olhares, significando fatos cotidianos como referentes à sua pessoa. Os delírios bizarros são crenças implausíveis que não derivam de experiências comuns da vida. Frequentemente, delírios de influência, místico-religiosos, grandiosos ou somáticos também são observados nos pacientes com esquizofrenia. As alucinações são alterações da sensopercepção. Podem afetar qualquer um dos sentidos, mas as auditivas são as mais comuns na esquizofrenia. Geralmente, o paciente ouve vozes, com nitidez, corporeidade e projeção no espaço exterior, que apresentam conteúdo depreciativo, de perseguição, que o ameaçam ou insultam, ou ainda, que comandam as suas ações. As vozes também podem dialogar entre si ou comentar a vida do indivíduo.

Dimensão negativa ou deficitária Os sintomas negativos referem-se a um conjunto de sintomas dos quais os mais característicos são o estreitamento e a redução das expressões emocionais, denominados embotamento afetivo. Na maior parte das vezes, o rosto da pessoa é pouco expressivo, com pouco contato visual e linguagem não verbal reduzida. Além disso, os sintomas negativos incluem: diminuição da produtividade do pensamento e da fala (alogia), que se identifica por respostas breves, lacônicas ou vazias; retraimento social; redução de interesse pelas atividades habituais e diminuição dos comportamentos direcionados a metas, ou seja, dificuldade para realizar tarefas ou trabalhos minimamente organizados, que exijam iniciativa e persistência.

Dimensão desorganizada Na dimensão desorganizada, existe um distúrbio formal no pensamento, que é percebido no discurso e no comportamento dos pacientes. O discurso pode estar desconexo e incoerente, prejudicado por alterações no fluxo (“descarrilamento”) e na associação de ideias (“associação frouxa”). As respostas podem não ter relação com as perguntas (tangencialidade) ou, ainda, ser incompreensíveis (“salada de palavras”). O comportamento desorganizado manifesta-se como ações sem propósito ou não apropriadas a um esperado contexto, comumente observados em comportamentos sociais ou sexuais inadequados, vestimentas e aparência bizarras, falta de higiene pessoal ou até mesmo quadros de agitação psicomotora imprevisível. Afeto inadequado, ambivalente e pueril também fazem parte dessa dimensão.

Dimensão de alterações de humor São muito comuns os sintomas depressivos, ansiosos e de euforia, normalmente acompanhando o conteúdo dos delírios e alucinações. As alterações de humor podem ocorrer também após a remissão do quadro psicótico, quando o paciente recobra a crítica

sobre a doença e sua situação de vida.

Dimensão cognitiva Na dimensão cognitiva, podem ser observados deterioração da inteligência (QI) e comprometimento de outras funções cognitivas, como fluência verbal, atenção e memória esporádica e de trabalho; tais declínios costumam ser acompanhados de perda da capacidade de insight e abstração conceitual. Apesar de não existir um conjunto de sinais patognomônicos da esquizofrenia, considera-se que alguns sintomas são mais significativos para o seu diagnóstico, particularmente os sintomas de primeira ordem de Kurt Schneider (1887-1967). Esses sintomas indicam profunda alteração da relação “eu-mundo”:10 Vozes que dialogam entre si • • • • • • •

Vozes com comentários depreciativos acompanhando as próprias ações Vozes que comandam a ação Sonorização do pensamento Vivências de influência corporal e de pensamento Roubos do pensamento Difusão do pensamento Percepção delirante.

DIAGNÓSTICO O diagnóstico da esquizofrenia é clínico. Deve ser considerado na presença de delírios e/ou alucinações desde que se exclua que estes sejam causados por condição médica geral ou uso de medicamentos ou substâncias. A anamnese deve investigar o curso clínico de aparecimento dos sintomas psicóticos e identificar sintomas comórbidos sugestivos de organicidade (febre, emagrecimento, cefaleia recente, diplopia, crise convulsiva). Os exames físico e neurológico são obrigatórios; os exames complementares devem ser solicitados de acordo com as hipóteses formuladas a partir da anamnese/exame físico. A realização de tomografia computadorizada ou ressonância magnética de crânio é sugerida em casos de primeiro episódio psicótico.

Critérios diagnósticos para esquizofrenia segundo DSM-59 A. Sintomas característicos: pelo menos dois dos seguintes, cada um presente por um espaço significativo de tempo durante um período de 1 mês (ou menos, caso tratado com êxito). Pelo menos um dos sintomas deve ser 1, 2 ou 3: 1) Delírios 2) Alucinações 3) Fala desorganizada (p. ex., descarrilamento frequente ou incoerência) 4) Comportamento totalmente desorganizado ou catatônico 5) Sintomas negativos, ou seja, embotamento afetivo, alogia ou avolição. B. Disfunção ocupacional/social: durante um espaço significativo de tempo, desde o início do distúrbio, uma ou mais áreas principais de funcionamento, como trabalho, relações

C.

D.

E.

F.

interpessoais ou autocuidado, encontra-se significativamente abaixo do nível atingido antes do surgimento do transtorno (ou quando se inicia na infância ou na adolescência, fracasso em atingir o nível esperado de desempenho interpessoal, acadêmico ou ocupacional). Duração: sinais contínuos do distúrbio persistem no mínimo durante 6 meses. Esse período deve incluir pelo menos 1 mês com os sintomas que satisfazem o critério A (ou seja, sintomas da fase ativa) e pode incluir períodos prodrômicos e/ou residuais quando o critério A não é plenamente satisfeito. Durante esses períodos, os sinais do distúrbio podem ser manifestados por sintomas negativos ou por dois ou mais sintomas listados no critério A presentes em uma forma atenuada (p. ex., a duração total dos períodos ativo e residual). Distúrbio esquizoafetivo e distúrbio de humor com características psicóticas foram descartados porque: (1) nenhum episódio significativo depressivo ou maníaco ocorreu simultaneamente com os sintomas da fase ativa; ou (2) se episódios de humor ocorreram durante o episódio psicótico, sua duração total foi breve em relação à duração do episódio psicótico (ou seja, a duração total dos períodos ativo e residual). Exclusão de substância/condição clínica geral: o distúrbio não se deve a efeitos fisiológicos diretos de uma substância (p. ex., uma droga ilícita, uma medicação) ou uma condição clínica geral. Relacionamento a um distúrbio global do desenvolvimento: se há uma história de distúrbio autístico ou um distúrbio global do desenvolvimento, o diagnóstico adicional de esquizofrenia é estabelecido apenas se há presença de delírios ou alucinações proeminentes também durante pelo menos 1 mês (ou menos, caso o tratamento tenha êxito).

Critérios para Esquizofrenia segundo a CID-1011 Esta categoria geral inclui as variedades comuns da esquizofrenia, bem como algumas variedades menos comuns e distúrbios intimamente relacionados. F20.0 – F20.3 Critérios gerais para os tipos de esquizofrenia paranoide, hebefrênica, catatônica e indiferenciada: G1.Pelo menos um dos sintomas e sinais das síndromes listados no item (1) ou pelo menos dois dos sintomas e sinais listados no item (2) devem estar presentes durante a maior parte do tempo de um episódio de doença psicótica, durando pelo menos 1 mês (ou pelo menos algum tempo durante grande parte do dia). (1) Pelo menos um dos seguintes: a) Eco de pensamento, inserção ou bloqueio de pensamento ou irradiação de pensamento. b) Delírios de controle, influência ou passividade, claramente relacionados com movimentos do corpo ou membros ou pensamentos, ações ou sensações específicos; percepção delirante. c) Vozes alucinatórias fazendo um comentário contínuo sobre o comportamento do

paciente ou discutindo entre si ou outros tipos de vozes alucinatórias vindas de alguma parte do corpo. d) Delírios persistentes de outros tipos, culturalmente inapropriados e completamente impossíveis, como identidade religiosa ou política, poderes e habilidades sobre-humanos (p. ex., ser capaz de controlar o tempo ou entrar em comunicação com seres alienígenas). (2) Ou pelo menos dois dos seguintes: e) Alucinações persistentes em qualquer modalidade, que ocorram cotidianamente durante pelo menos 1 mês, quando acompanhadas por delírios (que podem ser fugazes ou meio formados) sem conteúdo afetivo claro ou quando acompanhadas por ideias supervalorizadas persistentes. f) Neologismos, quebras ou interpolação no curso do pensamento, resultando em incoerência ou fala irrelevante. g) Comportamento catatônico, tal como excitação, postura inadequada ou flexibilidade cérea, negativismo, mutismo e estupor. h) Sintomas “negativos” como apatia marcante, escassez de fala e embotamento ou incongruência de respostas emocionais (deve estar claro que estas não se devem a depressão ou medicação neuroléptica). G2.Critérios de exclusão mais comumente usados: se o paciente também preenche critérios para episódio maníaco (F30) ou episódio depressivo (F32), os critérios listados sob G1.1 e G1.2 devem ser preenchidos antes do desenvolvimento do distúrbio de humor. G3.O distúrbio não deve ser atribuído a doença cerebral orgânica ou a álcool ou intoxicação relacionada com substâncias ilícitas, dependência ou abstenção.

TRATAMENTO O objetivo inicial do tratamento farmacológico é o controle dos sintomas psicóticos. Quanto maior o tempo sintomático, maior o prejuízo e pior a evolução da doença. Uma vez formulado o diagnóstico de esquizofrenia, é necessário que se decida em qual contexto exato o tratamento será realizado, se em internação hospitalar, hospital-dia ou em regime ambulatorial. Em algumas diretrizes recentes, o tratamento inicial é recomendado em cenário ambulatorial ou domiciliar sempre que possível, uma vez que esta abordagem pode minimizar o trauma, a ruptura e a ansiedade para o paciente e a família, que, em geral, estão mal informados e têm receios sobre a doença mental. Nos casos em que sejam avaliados, principalmente, o risco de suicídio, o alto do grau de agitação e a agressividade do paciente ou a não compreensão acerca da sua condição, a internação pode ser necessária. Se indicada, a internação deve ser a mais curta possível, em geral, 15 a 30 dias são suficientes para controlar os sintomas mais evidentes. Assim que houver melhora da agitação ou agressividade, é possível o acompanhamento ambulatorial, mesmo que não tenha ocorrido a remissão total dos sintomas.12 Além disso, deve-se investigar outras situações cuja presença é determinante no manejo ou na escolha da medicação: histórico ou dados que sugiram não adesão,

catatonia ou síndrome neuroléptica maligna (SNM), sintomas depressivos ou maníacos, abuso de substâncias, sintomas prodrômicos ou primeiro episódio, histórico de efeitos colaterais a neurolépticos, existência de risco de suicídio e agitação e/ou agressividade grave. O advento de antipsicóticos de segunda geração (ASG) trouxe novas perspectivas no tratamento da esquizofrenia (Figura 7.1). Apesar disso, a esquizofrenia continua sendo uma patologia de difícil tratamento e o grande desafio consiste em evitar a cronificação da doença, a fim de evitar as perdas cognitivas.

Fase aguda A fase aguda do tratamento, que dura de algumas semanas a poucos meses, é definida pela ocorrência de um episódio psicótico agudo.13 Nessa fase, o objetivo é a remissão dos sintomas e o manejo de situações de risco para o paciente. Uma vez feito o diagnóstico deve-se introduzir um AP. O passo inicial do tratamento envolve a escolha da medicação. Uma questão em aberto é se a terapia medicamentosa deve ser feita com AP típico (de primeira geração) ou com um atípico (de segunda geração). Em relação à eficácia, vários ensaios clínicos conduzidos recentemente não foram capazes de evidenciar a superioridade dos AP atípicos.14 Um aspecto comum dos AP atípicos é a capacidade de promover a ação antipsicótica com menor propensão a causar sintomas extrapiramidais (SEP). Entretanto, caso não haja possibilidade de prescrição de um atípico, de custo mais elevado, a prescrição de um típico está corretamente indicada, sendo importante reduzir o risco dos sintomas extrapiramidais iniciando o tratamento com doses baixas (dose equivalente a 1 a 4 mg de haloperidol).15 Em resumo, típicos e atípicos são similares quanto à eficácia (capacidade de controlar sintomas), mas os atípicos parecem ser mais efetivos (eficácia no contexto clínico), possivelmente por conta do perfil de efeitos colaterais mais tolerável.

Figura 7.1 Algoritmo de tratamento da esquizofrenia. SNM: síndrome neuroléptica maligna; PEP: primeiro episódio psicótico; AP: antipsicótico; AMI: amissulprida; ARIP: aripiprozol; OLANZ: olanzapina; QUET: quetiapina; RISP: risperidona; ZIP: ziprasidona; HAL: haloperidol; CHLOR: clorpromozina; ECT: eletroconvulsoterapia. Embora os efeitos antipsicóticos já possam ser observados em poucos dias, em alguns casos, preconiza-se um período de 4 a 6 semanas para decidir sobre a resposta ao tratamento. Quanto tempo esperar deve ser decidido de forma individualizada, de acordo com a resposta ao tratamento e a gravidade do quadro. Os sintomas positivos geralmente respondem mais ao tratamento com AP que os negativos. A dose ideal deve ser titulada com cuidado, devendo-se evitar iniciar com doses muito elevadas. O início do efeito antipsicótico se dá normalmente entre 3 e 5 dias. Assim, deve-se tomar cuidado em separar a necessidade de aumento da dose de AP ou de sedação. Os anticolinérgicos (biperideno entre 2 e 6 mg/dia) podem ser prescritos caso surjam SEP, cuja presença costuma indicar maior sensibilidade ao medicamento e/ou que a dose do AP pode estar excessiva. Assim, com o controle do quadro psicótico, a dose do AP deve ser reduzida, até a mínima dose eficaz, e o anticolinérgico retirado.

Agitação psicomotora Pacientes com esquizofrenia podem desenvolver comportamento agitado, agressivo ou violento em decorrência dos sintomas psicóticos (como delírios persecutórios, mania ou alucinações), como resultado de outros sintomas (como medo e ansiedade) ou ainda quando os controles internos estão comprometidos. Diante de um paciente agressivo com doença aguda, o médico e a equipe clínica devem fornecer estrutura, reduzir a estimulação e tentar tranquilizar verbalmente e acalmar a pessoa, minimizando a situação o quanto antes.16 Se possível, a administração oral de medicamentos é preferível à administração parenteral. A menor dose eficaz deve ser administrada, sendo, caso necessário, gradativamente aumentada. O controle emergencial pode incluir sedação e, como última opção, reclusão e isolamento. Há evidências a favor da combinação de benzodiazepínicos e AP típico (p. ex., lorazepam 4 mg e haldol 5 mg) como estratégia para tais situações17, porém, em virtude da melhor tolerabilidade, um agente neuroléptico atípico (como a olanzapina) pode ser utilizado, quando possível. Essas medidas complementares são necessárias para aliviar o sofrimento, a insônia e os distúrbios comportamentais secundários à psicose.

Fase de manutenção Após alcançar a remissão dos sintomas psicóticos, ponto no qual os sintomas positivos foram completamente controlados ou, se presentes, não interferem de forma significativa no funcionamento do paciente, se inicia a fase de manutenção, que corresponde à fase estável da doença. O objetivo do tratamento nessa fase é, além de manter a remissão dos sintomas, melhorar a qualidade de vida, promover a reabilitação funcional, o monitoramento

e o manejo dos efeitos colaterais das medicações.13 É importante reforçar com o paciente a necessidade de manter a adesão ao tratamento. A monoterapia antipsicótica deve ser preferida. Em relação à dosagem da medicação, recomenda-se usar a dose mínima eficaz, ou seja, a menor dose que mantenha os sintomas em remissão.

Manejo de efeitos colaterais É necessário que seja realizada uma investigação ativa de efeitos colaterais para que, se presentes, eles possam ser manejados. A ocorrência de efeitos colaterais está relacionada com pior qualidade de vida dos pacientes e, consequentemente, pior adesão e maiores dificuldades para superação da doença. Ao se identificar um determinado efeito colateral, é preciso uma avaliação cuidadosa antes de se propor a troca da medicação, pois o próprio processo de troca expõe o paciente a riscos.

Sintomas extrapiramidais Os SEP constituem complicações neurológicas decorrentes do uso de AP e englobam manifestações agudas, como a distonia aguda, o parkinsonismo e a acatisia, e tardias, que ocorrem após o uso crônico de AP, como a discinesia tardia. A distonia aguda é um quadro de contrações ou espasmos musculares que podem ocorrer no pescoço, mandíbula, língua, olhos (crise oculogírica) ou no corpo todo. A distonia é dolorosa, exigindo tratamento imediato com o uso de agentes anticolinérgicos, preferencialmente via intramuscular [(biperideno 5 mg, 1 ampola intra-muscular (IM)]. A acatisia é uma sensação subjetiva de inquietação interna, que impele o paciente a mexer-se constantemente para alívio desses sintomas. Para seu manejo agudo, podem ser utilizados: betabloqueador (propranolol de 40 a 120 mg/dia), benzodiazepínicos (clonazepam 2 a 6 mg/dia ou lorazepam 1 a 3 mg/dia) ou anticolinérgico (biperideno 2 a 8 mg/dia) associado ou não às medicações anteriores. O parkinsonismo é composto pela tríade clássica: tremor, bradicinesia e rigidez muscular (pode levar ao aparecimento do sinal da “roda denteada”). O tratamento desses sintomas pode ser realizado com anticolinérgico (biperideno 2 mg a cada 8 h), pelo mínimo tempo possível. A discinesia tardia é caracterizada por movimentos estereotipados, involuntários e repetitivos que ocorrem principalmente na musculatura orofacial (língua, lábios e boca), mas também podem ocorrer em membros e tronco. A intensidade pode variar durante o dia, e costuma piorar com ansiedade e melhorar com o sono. A maioria dos tratamentos para discinesia tem se mostrado sem efeito significativo em ensaios clínicos.18 A troca do AP por clozapina ou outros AP atípicos, como a quetiapina, pode ser tentada, mas a discinesia pode persistir mesmo após a descontinuação da medicação. Uma vez identificado os SEP, se possível, considerar a redução da dose do AP em uso. Se isso não for possível, a troca por outro AP com menor propensão a causá-la pode ser uma alternativa. Entretanto, em muitos casos, esse manejo é impraticável, dado o risco de

recaída ou piora dos sintomas psicóticos. Nessas circunstâncias, é necessário que o paciente seja avaliado individualmente e sejam ponderados os riscos e benefícios do fármaco em questão.

Síndrome neuroléptica maligna A SNM é uma reação idiossincrática ao uso de neurolépticos. Para realizar seu diagnóstico, são necessários rigidez muscular grave e febre acompanhado de, no mínimo, dois dos dez itens seguintes: diaforese, disfagia, tremor, incontinência, alteração do estado mental, mutismo, taquicardia, pressão arterial elevada ou lábil, leucocitose, creatinofosfoquinase elevada.19 A prevalência de SNM é incerta, ocorrendo provavelmente em menos de 1% dos pacientes tratados com antipsicóticos de primeira geração (APG)20 e sendo ainda mais rara entre os pacientes tratados com ASG. O tratamento preconizado é a suspensão do AP e o uso de dantroleno 1 a 3 mg, via oral (VO) até 4 vezes/dia e/ou bromocriptina 2,5 a 10 mg/dia.21 Deve-se fazer um cuidadoso monitoramento clínico, com foco na hidratação e distúrbios eletrolíticos, as principais causas de mortalidade.

Síndrome metabólica Os principais elementos da síndrome metabólica induzida por medicamentos são ganho de peso e adiposidade central. O peso corporal deve ser reavaliado nas semanas 4, 8 e 12 após o início ou a troca de um AP e, a partir daí, a cada 3 meses. Um aumento de peso de 5% ou mais em relação ao peso inicial obriga à implementação de modificações do estilo de vida, com adoção de dieta e prática de atividade física e/ou alternativas terapêuticas, dentre as quais podem-se incluir a troca de medicamentos ou acréscimo específico de medicação para controle do apetite.

Disfunção sexual e hiperprolactinemia O aumento da prolactina é mais pronunciado entre os APG. Entre os ASG, esse aumento costuma ser transitório e manifestações clínicas são menos frequentes. Níveis elevados de prolactina, mesmo quando não levam a disfunção sexual ou galactorreia, devem ser evitados, pois há evidências de que geram prejuízos a longo prazo. A redução da dose ou troca de AP deve ser feita sempre que houver manifestações clínicas decorrentes dos aumentos de prolactina, como galactorreia ou ginecomastia. A disfunção sexual também pode ter como causa a própria doença, como extensão do processo de comprometimento volitivo. Assim, a adoção de uma conduta farmacológica deve ser precedida de diagnóstico diferencial cuidadoso e abordagem realista das expectativas dos pacientes. A Tabela 7.1 apresenta o mecanismo de ação dos antipsicóticos.

Esquizofrenia refratária Considera-se esquizofrenia refratária se a resposta terapêutica for insuficiente (menos de 40% de melhora da psicopatologia) apesar de um tratamento adequado, isto é, com base no emprego alternativo de pelo menos dois AP (um dos quais deve ser atípico),

administrados nas doses recomendadas (equivalentes a 400 mg de clorpromazina ou 5 mg de risperidona) por pelo menos 4 a 6 semanas. A adesão ao tratamento deve ser verificada, se necessário, pela determinação das concentrações dos medicamentos. A clozapina é o AP indicado para os casos refratários, pois vários ensaios clínicos têm demonstrado sua superioridade em relação a outros APG e ASG.22 Não é indicada como primeira opção ao tratamento, pelo risco de efeitos colaterais graves associados a seu uso, como agranulocitose e convulsões. O risco de agranulocitose induzida por clozapina é estimado em 0,8% no 1o ano de uso e cai para aproximadamente 0,03% após isso, e não é dose-dependente, afetando seletivamente os precursores dos neutrófilos polimorfonucleares da medula óssea, podendo ser revertida sem sequelas hematológicas se o tratamento for interrompido.23 Sendo assim, recomenda-se a realização de monitoramento com hemogramas semanais nas primeiras 18 semanas de tratamento. Após esse período, recomenda-se controlar o hemograma mensalmente. O risco de convulsões é dose-dependente, sendo maior com doses acima de 600 mg/dia. Se o paciente apresentar convulsões, sugere-se reduzir a dose e/ou adicionar ácido valproico, o anticonvulsivante mais indicado para uso em associação com clozapina. Tabela 7.1 Mecanismo de ação dos antipsicoticóticos. Atuação sobre receptores

Bloqueio de receptores de dopamina na via túberoinfundibular

ASG – Afinidade pelos

Possíveis efeitos

receptores

relacionados

Risperidona, paliperidona e amissulprida > ziprasidona > olanzapina > quetiapina, clozapina e aripiprazol

Manejo

Hiperprolactinemia, disfunção

Reduzir a dose quando possível

sexual, galactorreia e

Trocar medicação quando

ginecomastia

intoleráveis Reduzir a dose quando possível

Risperidona, paliperidona e Bloqueio de receptores de

amissulprida > ziprasidona >

dopamina na via nigro-estriatal

olanzapina > quetiapina, clozapina e aripiprazol

SEP

Trocar para ASG

Acatisia

Uso cuidadoso de

DT

anticolinérgicos em SEP DT: preferir clozapina

Tremores

Antagonista de receptores M1 (muscarínicos)

Olanzapina e clozapina >

Boca seca

Reduzir a dose quando possível

Visão turva

Administrar medicação à noite

Sonolência

Boca seca: tomar goles de água,

quetiapina > risperidona > ziprasidona e aripiprazol

Náuseas

chupar balas dietéticas, escovar os dentes com frequência

Diarreia

Orientações sobre alimentação Antagonista de receptores H1 (histamínicos)

Olanzapina e clozapina >

Ganho de peso

quetiapina > ziprasidona > aripiprazol > risperidona

Sonolência

e atividade física Uso de medicações que provoquem menor ganho de peso (ziprasidona e aripiprazol) Orientações para levantar e

Risperidona > quetiapina e Antagonista adrenérgico

clozapina > ziprasidona > olanzapina > aripiprazol

Tonturas Hipotensão postural

mudar de posição devagar Introdução lenta da medicação Evitar em idosos

ASG = antipsicótico de segunda geração; SEP = sintomas extrapiramidais; DT = discinesia tardia.

A introdução da medicação pode ser feita ambulatorialmente. Inicia-se com baixas doses e o aumento é gradual, monitorando a emergência de efeitos colaterais. Aproximadamente 30% dos pacientes respondem em 6 semanas; os outros 30%, mais lentamente, em até 2 anos. A clozapina se mostrou associada a uma redução consistente nas taxas de suicídio e de comportamento suicida persistente. Em caso de não resposta à clozapina, recomenda-se associação com outro AP ou eletroconvulsoterapia (ECT). Além disso, existem evidências, ainda que muito limitadas, em relação à associação da lamotrigina à clozapina.

Falta de adesão e antipsicóticos injetáveis de longa ação Adesão A não adesão ao tratamento é comum em pacientes em uso de AP e estima-se que menos de 50% dos pacientes permanecem completamente aderidos ao tratamento prescrito após alta.24 Esse dado é preocupante, pois a falha na adesão ao tratamento é considerada um importante fator de risco para a recaída, que por sua vez, está associada a pior prognóstico e maiores taxas de refratariedade. Existem várias causas para a dificuldade em aderir ao tratamento no caso da esquizofrenia: falta de crítica dos pacientes sobre os sintomas e tratamento; prejuízo cognitivo; sintomas de desorganização e comprometimento em funções executivas; ocorrência de efeitos colaterais; e dificuldade da família em compreender a doença. Uma avaliação cuidadosa desses fatores é fundamental para

avaliar o risco e promover a adesão. A relação médico-paciente e o vínculo são importantes determinantes da adesão e devem ser trabalhados constantemente para o êxito do acompanhamento psiquiátrico.

Antipsicóticos injetáveis de longa ação Uma parcela significativa dos pacientes costuma não aderir ao tratamento, mesmo após várias recaídas. Nesses casos, recomenda-se a manutenção com AP injetáveis de longa ação (AILA), os quais são um instrumento valioso para o manejo da não adesão. Como sua aplicação é realizada pelos profissionais de saúde, torna-se mais fácil identificar falhas quando estas ocorrem, possibilitando uma intervenção mais precoce nos casos de uma nova crise. Eles conferem, em relação às preparações orais, um melhor prognóstico global.25

Tratamento não farmacológico A presença de uma equipe multiprofissional e a possibilidade de intervenções focadas em melhorar a sociabilidade, treino de habilidades e resolução de problemas são especialmente úteis aos pacientes durante o tratamento mais prolongado da esquizofrenia. A modalidade da abordagem psicossocial deve ser escolhida de acordo com a evolução do quadro e das possibilidades do paciente, sendo focadas principalmente ao aconselhamento e à psicoterapia de apoio, às abordagens psicoeducacionais e às intervenções familiares. A terapia cognitivo-comportamental tem sido usada para melhorar distorções cognitivas, reduzir a distraibilidade e corrigir erros de julgamento, e, segundo alguns estudos, tem-se mostrado eficaz no controle da sintomatologia positiva residual.7

OUTRAS PSICOSES A psicose é uma síndrome característica da esquizofrenia, mas também pode ocorrer em outros transtornos psiquiátricos. A seguir, são apresentados outros transtornos psicóticos que fazem parte do diagnóstico diferencial da esquizofrenia.

TRANSTORNO ESQUIZOAFETIVO O transtorno esquizoafetivo é uma condição limite entre as categorias nosológicas da esquizofrenia e dos transtornos afetivos. Sua característica essencial é um período ininterrupto de doença, durante o qual existem sintomas que preenchem o critério A para esquizofrenia, concomitante com um episódio de humor: episódio depressivo maior, maníaco ou misto. Além disso, durante algum momento do curso da doença, ocorrem apenas sintomas psicóticos, caracterizados por delírios ou alucinações, que duram pelo menos 2 semanas. Os sintomas de humor estão presentes na maior parte da duração total da doença. Os sintomas não devem decorrer dos efeitos fisiológicos diretos de uma substância (p. ex., cocaína) ou de uma condição médica geral. Esta determinação pode ser difícil e exigir

uma observação longitudinal, além de múltiplas fontes de informações. Pode haver um fraco funcionamento ocupacional, uma faixa restrita de contato social, dificuldades com os cuidados pessoais e um aumento no risco de suicídio. Os sintomas residuais e negativos geralmente são menos graves e menos crônicos do que aqueles vistos na esquizofrenia.

TRANSTORNO DELIRANTE PERSISTENTE O transtorno delirante persistente é essencialmente caracterizado pela presença de um ou mais delírios de característica não bizarra, que durem mais de 1 mês. Os delírios podem ser persecutórios, grandiosos, de ciúmes, erotomaníacos, somáticos, entre outros. Alucinações auditivas, visuais, táteis ou olfatórias, se presentes, não são proeminentes, e costumam ser relacionadas com o tema do delírio. A resposta emocional do paciente ao sistema delirante é congruente ao conteúdo do delírio. Muitos deles desenvolvem humor disfórico. Os pacientes frequentemente são desconfiados e hipervigilantes, o que pode levar ao isolamento social, apesar da capacidade de funcionamento social. A idade de início varia entre 20 e 90 anos, com idade média de 40 anos. O transtorno tente a ser crônico e sem remissões.

TRANSTORNO PSICÓTICO BREVE O transtorno é caracterizado pelo início súbito de sintomas psicóticos que duram mais de 1 dia e menos de 1 mês, e o indivíduo recupera seu funcionamento pré-mórbido após o quadro. Os sintomas são semelhantes aos de outros transtornos psicóticos, porém com mais instabilidade, volatilidade e desorientação. Habitualmente ocorrem após um estresse evidente na vida do paciente. Causas orgânicas devem ser descartadas, em particular a intoxicação e abstinência de substâncias. Epilepsia, transtorno dissociativo e simulações também devem ser considerados transtornos da personalidade preexistentes que podem predispor o indivíduo ao desenvolvimento do quadro.

TRANSTORNO PSICÓTICO INDUZIDO POR SUBSTÂNCIAS O transtorno psicótico induzido por substância é caracterizado pela presença de alucinações ou delírios proeminentes, considerados decorrentes dos efeitos fisiológicos diretos de uma substância (droga de abuso, medicamento ou exposição a toxina). Uma vez iniciados, os sintomas psicóticos podem perdurar enquanto continuar o uso da substância. No caso de drogas de abuso, deve haver evidências de intoxicação ou abstinência, a partir da história, exame físico e achados laboratoriais. Os transtornos psicóticos podem ocorrer em associação com intoxicação ou abstinência de diversas substâncias psicoativas, como álcool, Cannabis, anfetaminas, cocaína, alucinógenos, ansiolíticos, entre outras. Existem fatores que sugerem que os sintomas psicóticos são mais bem explicados por um transtorno psicótico primário, como persistência dos sintomas psicóticos por um período substancial (i. e., cerca de 1 mês) após o final da intoxicação com substância ou abstinência aguda de substância; o desenvolvimento de sintomas substancialmente

excessivos aos que seriam esperados, tendo em vista o tipo ou a quantidade da substância usada ou a duração do uso; ou uma história de transtornos psicóticos primários recorrentes.9

TRANSTORNO PSICÓTICO DECORRENTE DE UMA CONDIÇÃO MÉDICA GERAL As características essenciais do transtorno psicótico decorrente de uma condição médica geral são alucinações ou delírios proeminentes, presumivelmente resultantes dos efeitos fisiológicos diretos de uma condição médica. O diagnóstico não é feito se a perturbação ocorre apenas durante o curso de um delirium. Ao determinar se a perturbação psicótica decorre de uma condição médica geral, é preciso que existam evidências, a partir de achados laboratoriais, exame físico ou história clínica, da presença dessa condição.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O objetivo no tratamento atual da esquizofrenia é intervir precocemente para promover o controle dos sintomas, a reinserção social e ocupacional. A remissão mais rápida está associada à redução da deterioração cognitiva habitualmente observada na doença e a melhor evolução do prognóstico geral. Um dos desafios para evitar recaídas é manter a adesão ao tratamento medicamentoso. Nesse sentido, é preciso fazer o paciente se considerar parte do processo terapêutico, participando das decisões tomadas junto com a equipe. O tratamento multidisciplinar também é parte essencial desse processo, visto que as intervenções psicossociais visam a melhorar o manejo dos sintomas residuais e a prevenção de recaídas, bem como favorecer a melhora da funcionalidade em áreas como vida independente, relações pessoais e trabalho.26 O foco deve ser sempre o indivíduo e todos os níveis de intervenção devem ser entendidos como meios para alcançar o fim maior do tratamento, que deve ser a superação da doença.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1.

McGrath J, Saha S, Welham J, El Saadi O, MacCauley C, Chant D. A systematic review of the incidence of schizophrenia: the distribution of rates and the influence of sex, urbanicity, migrant status and methodology. BMC Med. 2004;2:13. Epub 2004/04/30.

2.

Chaves AC. Diferenças entre os sexos na esquizofrenia. Rev Bras Psiquiatr. 2000;22(s.1).

3.

Saha S, Chant D, Welham J, McGrath J. A systematic review of the prevalence of schizophrenia. PLoS Med. 2005;2(5):e141. doi:10.1371/journal.pmed.0020141.

4.

Sadock BJ. Manual conciso de psiquiatria clínica. Virginea Alcott Sadock; Trad. Cristina Monteiro. 2.ed. Porto Alegre: Artmed, 2008.

5.

Gottesman II. Schizophrenia genesis: the origins of madness. New York: WH Freeman and Company, 1991.

6.

Itiro Shorakawa (ed.). Esquizofrenia: adesão ao tratamento. São Paulo: Casa Editorial de Lemos, 2007.

7.

Miguel EC, Gentil V, Gattaz WF. (eds.) Clínica psiquiátrica. Barueri: Manole, 2011.

8.

Harrow M, Sands JR, Silverstein ML, Goldberg JF. Course and outcome for schizophrenia versus other psychotic patients: a longitudinal study. Schizophr Bull. 1997;23(2):287-303. Epub 1997/01/01.

9.

American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-5. 5.ed. Washington, DC: American Psychiatric Association; London, England, 2013.

10. Dalgalarrondo, P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 2.ed. Porto Alegre: Artmed, 2008. 11. World Health Organization. International Statistical Classification of Disease and Related Health Problems, 10th revision (ICD-10); 2015. Disponível em: apps.who.int/classifications/icd10/browse/2015/en#/F20. Acesso em 11 maio 2015. 12. Shirakawa I. Ajustamento social na esquizofrenia. 4.ed. revisada. São Paulo: Casa da Leitura Médica, 2009. 13. Falkai P, Wobrock T, Lieberman J, Glenthoj B, Gattaz WF, Möller HJ. Diretrizes da Federação das Sociedades de Psiquiatria Biológica para o Tratamento Biológico da Esquizofrenia. Parte 1: Tratamento agudo. Rev. Psiq. Clín. 2006;33(supl 1):7-64. 14. Kahn RS, Fleischhacker WW, Boter H, Davidson M, Vergouwe Y, Keet IPM et al. Effectiveness of antipsychotic drugs in first-episode schizophrenia and schizophreniform disorder: an open randomized clinical trial. Lancet. 2008;3(71):108596. 15. Gadelha A, Noto CS, de Jesus Mari J. Pharmacological treatment of schizophrenia. Int Rev Psychiatry. 2012;24(5):489-98. 16. Osser DN, Sigadel R. Short-term inpatient pharmacotherapy of schizophrenia. Harv Rev Psychiatry. 2001;9:89-104. 17. Bienikek SA, Ownby RL, Penalver A, Dominguez RA. A double-blind study of lorazepam versus the combination of haloperidol and lorazepam in managing agitation. Pharmacotherapy. 1998;18(1):57-62. 18. Cordioli AV. Psicofármacos: consulta rápida. 4.ed. Porto Alegre: Artmed, 2011. 19. American Psychiatry Association. Diagnostic and statistical manual for mental disorders. 4.ed. Washington, DC: American Psychiatry Association, 1994. p. 739-42.

20. Adityanjee AYA, Mathews T. Epidemiology of neuroleptic malignant syndrome. Clin Neuropharmacol. 1999;22:151-8. 21. Rosenberg MR, Green M. Neuroleptic malignant syndrome: review of response to therapy. Arch Intern Med. 1989;149:1927-31. 22. Kane J, Honigfeld G, Singer J, Meltzer H. Clozapine for the treatment- resistant schizophrenic: A double-blind comparison with chlorpromazine. Arch Gen Psychiatry. 1988;45:789-96. 23. Alvir JMJ, Lieberman JA, Safferman AZ, Schwimmer JL, Schaaf JA. Clozapine-induced agranulocytosis – incidence and risk factor in United States. N Engl J Med. 1993;329(3):162-7. 24. Weiden PJ, Zygmunt A. The road back: working with severely mentally ill. Medication noncompliance in schizophrenia, pt.1: assessment. J Prac Psych Behav Health. 1997;3:106-10. 25. Adams CE, Fenton MKP, Quraishi S, David AS. Systematic meta-review of depot antipsychotics drugs for people with schizophrenia. Br J Psychiatry. 2001;179:290-9. 26. Mueser KT, McGurk SR. Schizophrenia. Lancet. 2004;363:2063-72

BIBLIOGRAFIA Glazer WM. Review of incidence studies of tardive dyskinesia associated with typical antipsychotics. J Clin Psychiatry. 2000;61(suppl. 4):15-20. Mathers CD, Lopez AD, Murray CJL. The burden of disease and mortality by condition: data, methods, and results for 2001. In: Lopez AD, Mathers CD, Majid E, Jamison DT, Murray CJL (eds.). Global burden of disease and risk factors. New York: Oxford University Press, 2006. p. 45-240. Robinson DG, Woerner MG, Alvir JM, Bilder R, Goldman R, Geisler S et al. Preditors of relapse following response from a first episode of schizophrenia or schizoaffective disorder. Arch Gen Psychiatry. 1999b;56:241-7. Stahl SM. Psicofarmacologia: bases neurocientíficas e aplicações práticas. 3.ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2011.

Capítulo 8

PRIMEIRO EPISÓDIO PSICÓTICO Thays Mello Ferreira e Ana Cristina Chaves

DEFINIÇÃO Existem várias definições na literatura de primeiro episódio psicótico (PEP). Neste capítulo, considera-se que um indivíduo está apresentando um PEP quando: • •

Pela primeira vez na vida procura um serviço de saúde em virtude de sintomas como delírios, alucinações, discurso e/ou comportamento desorganizado Se o indivíduo já estiver se tratando com antipsicóticos, o período do tratamento deve ser inferior a 6 semanas.

A criação de centros especializados para identificar e tratar, de modo precoce e intensivo, pacientes no PEP baseou-se na constatação de que o modelo de tratamento tradicional dos transtornos psicóticos não foi suficiente para evitar o curso crônico da doença em uma grande parcela de indivíduos. Além disso, evidências de estudos longitudinais assinalavam que o fator preditivo mais importante para o funcionamento social, após 5 anos do PEP, era o próprio funcionamento social logo no início da doença. Esse dado reforça que o tratamento não poderia ser restrito somente ao controle dos sintomas psicóticos, mas como um processo que envolveria três domínios independentes: sintomatológico, psicossocial e psicológico. Com todos esses argumentos, houve uma mudança de posição na abordagem de pacientes no PEP. A atitude expectante de observar como seria a evolução natural da doença transformou-se em uma postura mais ativa, intensiva e preventiva. Identificar e tratar intensamente as fases iniciais da psicose tornou-se primordial em vários serviços de saúde ao redor do mundo.

QUADRO CLÍNICO E DIAGNÓSTICO As manifestações das alterações psicopatológicas no PEP variam significativamente entre os pacientes. Na maioria das vezes, a distinção diagnóstica não é possível no início do episódio psicótico. É importante notar que o PEP é um termo de conveniência e não faz parte dos principais manuais diagnósticos. A definição varia de acordo com os diferentes estudos e também no que se refere ao que o próprio clínico considera como crise psicótica. Considera-se a psicose uma síndrome global e simples, definida de maneira estrita pela presença clara de delírios e/ou alucinações e mais amplamente por marcada desorganização do pensamento e comportamento. Pode ocorrer em associação com

depressão maior, mania e sintomas negativos primários. As combinações diferentes dessas síndromes com psicose dão origem às categorias dos transtornos psicóticos, mas são frequentes as dificuldades de identificar o diagnóstico nessa fase inicial. Primeiro, porque é comum a mistura de sintomas psicóticos e afetivos – estes podem ser síndromes maníacas e depressivas relativamente transitórias e podem mudar rapidamente. Segundo, não é raro o quadro clínico constituir-se de poucos sintomas, sendo muitas vezes difícil determinar se a pessoa está realmente psicótica. E, terceiro, o uso de drogas ilícitas é bastante frequente e pode ser etiologicamente importante. Uma consequência disso é que o termo genérico “psicose” é preferível nessa fase, mas sem deixar de enfatizar a gravidade da doença. Essa postura, corrente na literatura, foi adotada pelos autores. Prefere-se utilizar o termo mais global “primeiro episódio psicótico” em vez de “primeiro episódio de esquizofrenia ou transtorno bipolar”. O Quadro 8.1 mostra categorias de transtornos psicóticos de acordo com o Diagnostic and statistical manual of mental disorders – 5a edição (DSM-5).1 Quadro 8.1 Categorias de transtornos psicóticos de acordo com o DSM-5. Transtornos psicóticos não afetivos: • Esquizofrenia • Transtorno esquizoafetivo • Transtorno esquizofreniforme • Transtorno delirante • Transtorno psicótico breve • Transtorno psicótico não especificado Transtornos psicóticos afetivos: • Transtorno bipolar com sintomas psicóticos • Transtorno depressivo com sintomas psicóticos Transtorno psicótico induzido por substâncias: • Induzido pelo álcool • Induzido por outras substâncias Adaptado de American Psychiatric Association (2013).1

EPIDEMIOLOGIA Um estudo epidemiológico recente sobre esquizofrenia e transtornos relacionados mostrou que a taxa durante toda a vida para esse critério mais amplo de transtornos psicóticos foi de 2 a 3%. Se forem incluídos outros transtornos psicóticos, como transtorno bipolar e transtorno psicótico induzido por substâncias, essa taxa aumenta para 3 a 5%.

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL É fundamental descartar a presença de uma doença não psiquiátrica que possa ser a causa da manifestação dos sinais e sintomas psiquiátricos atuais. A avaliação médica no primeiro episódio psicótico inclui exame físico com ênfase no exame neurológico; aferição dos sinais vitais; peso, altura e circunferência abdominal; e exames laboratoriais [hemograma completo, função renal, função hepática, glicemia de jejum, perfil lipídico, hormônio estimulante da tireoide (TSH) e tiroxina (T4) livre]. Deve-se solicitar exames de neuroimagem quando há suspeita de alguma doença médica de base, sendo a ressonância magnética (RM) o método preferível (mais sensível para detectar as alterações associadas com mais frequência ao primeiro episódio psicótico: doenças da substância branca, tumores cerebrais e alterações em lobo temporal).

TRATAMENTO MEDICAÇÃO As doses iniciais dos antipsicóticos devem ser baixas e, na presença de resposta clínica incompleta, aumentadas de modo lento e gradual, já que nesse período o paciente está muito suscetível ao surgimento de efeitos colaterais associados às medicações e ao risco de abandono do tratamento é alto. Apesar de ainda não existir um consenso, os antipsicóticos atípicos são considerados a primeira escolha por especialistas nesse assunto, principalmente pela menor incidência de sintomas motores extrapiramidais, além de algumas outras hipóteses, como melhor tolerância e resposta a longo prazo, quando comparados com os antipsicóticos convencionais. No entanto, é importante ressaltar que alguns atípicos podem causar disfunções sexuais e ganho de peso considerável, levando essa população a sérios problemas de saúde. Assim, é importante a avaliação de cada caso, para estabelecimento individual da melhor medicação possível. Logo no primeiro atendimento do paciente com um PEP, é introduzido um antipsicótico atípico em baixa dose (p. ex., 1 a 2 mg de risperidona, 2,5 mg de olanzapina, 7,5 mg de aripiprazol). Se o paciente estiver muito ansioso ou com insônia, pode-se considerar o tratamento adjuvante com benzodiazepínicos. A reavaliação do paciente semanalmente é importante; se necessário, considera-se aumentar lentamente a dose do antipsicótico. Se o paciente apresentar boa resposta terapêutica, com remissão dos sintomas, deve-se

manter o tratamento com o antipsicótico pelo período de 1 ano. Se, durante esse período, o paciente não apresentar recorrência dos sintomas, pode-se diminuir gradual e lentamente a dose do antipsicótico. É importante salientar que essa decisão deve ser tomada em conjunto com o paciente e seus familiares para que todos fiquem atentos aos sinais e sintomas de possível recaída da doença. Em torno de 80 a 90% dos pacientes apresentam pelo menos uma recaída nos primeiros 2 anos. Caso isso aconteça, recomenda-se manter o antipsicótico em baixas doses por pelo menos 5 anos, mesmo que o paciente tenha apresentado remissão total dos sintomas psicóticos. Se o paciente não responder ao antipsicótico ou apresentar resposta parcial, deve-se trocar a medicação (dar preferência a outro atípico). Se ocorrer nova falha, deve-se considerar o tratamento com clozapina. Em geral, os sintomas ansiosos, depressivos e de exaltação do humor melhoram com o tratamento antipsicótico, mas, se persistirem, será necessário avaliar a necessidade de adicionar outro agente terapêutico conforme o quadro clínico apresentado pelo paciente. Deve-se considerar a introdução de estabilizador do humor em pacientes com sintomas de mania e de antidepressivos naqueles com sintomas de depressão, estando sempre atento a possíveis diagnósticos diferenciais e fazendo acompanhamento próximo ao paciente.

ESPECIALIZADO PARA PRIMEIRO EPISÓDIO PSICÓTICO Se possível, é recomendado que pacientes no PEP sejam tratados em programas especializados. O modelo de atendimento não é igual em todos os centros de atendimento. Em 1999, iniciou-se um modelo no Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) com os seguintes objetivos: • • • •

Identificar precocemente o PEP Tratar de maneira intensiva as fases agudas e de remissão do episódio psicótico Reduzir o impacto do PEP Apoiar e ajudar os familiares no cuidado ao seu parente doente.

O fluxo de atendimento começa com a avaliação do paciente em triagem feita pelo médico psiquiatra do programa. Nessa fase, algumas questões importantes merecem investigação: como e por que a pessoa chegou ao serviço? Quais foram os fatores de predisposição à doença? Existem fatores estressores? Qual é a rede social do paciente? Foram excluídas doenças médicas com apresentação psiquiátrica? Qual é o melhor tratamento medicamentoso para esse indivíduo? A condição para que o paciente seja atendido é que ele e seus familiares concordem em participar dos grupos psicoeducacionais por pelo menos 12 semanas. O envolvimento e a adesão nos grupos são condições básicas para o sucesso do tratamento, já que, além de acolhimento, os grupos propiciam informações a respeito de sintomas, etiologia, tratamento e evolução da doença. Esse atendimento global facilita a adesão à medicação, que é o alicerce do tratamento, favorecendo uma rápida recuperação da crise e diminuindo recaídas.

PROGNÓSTICO A recuperação após o PEP é um processo complexo que está relacionado com o tratamento, suporte social e características, assim como a experiências individuais. Com a remissão dos sintomas, os pacientes passam a enfrentar questões complexas que envolvem o prognóstico, o sentido do episódio psicótico, o tratamento e as possíveis recaídas. Contudo, a maioria dos indivíduos no PEP é responsiva à medicação antipsicótica. Nos casos em que tratamento adequado é oferecido, mais de 90% apresentam remissão total ou parcial dos sintomas, embora isso não ocorra no funcionamento psicossocial. Por isso, esses pacientes necessitam de acompanhamento e manejo adequados nesse processo de recuperação.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 1.

American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders. 5.ed. Washington, DC: American Psychiatric Association, 2013.

BIBLIOGRAFIA Attux C, Quintana MI, Chaves AC. Weight gain and metabolic abnormalities in first-episode psychosis: six-month follow-up. Rev Bras de Psiquiatria. 2007;29:346-49. Cabral RF, Chaves AC. Knowledge of the disease and treatment expectations in relatives of patients with the first psychotic episode: a cross sectional study. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul. 2005;27:32-8. Cabral RF, Chaves AC. Multi-family group intervention in a programme for patients with first-episode psychosis: a Brazilian experience. International Journal of Social Psychiatry. 2010;56:527-32. Chaves AC, Leile ALSS. Fases iniciais da psicose: a experiência do Programa de Pesquisa e Atendimento ao Primeiro Episódio Psicótico. São Paulo: Roca, 2009, p.170. Eisenstadt P, Monteiro VB, Diniz MJA, Chaves AC. Experience of recovery from a firstepisode psychosis. Early Intervention in Psychiatry (Print). 2012;6:476-80. Jorge RCFA, Chaves AC. The experience of caregiving inventory for first-episode psychosis caregivers: validation of the Brazilian version. Schizophrenia Research (Print). 2012;138:274-79. Marindale B, Chaves AC, Corcoran CC, Cullberg J, Johannssen JO, McGorry P et al. Firstepisode psychoses. Recommended roles for the psychiatrist: World Psychiatric Association Committee on Education. Early Intervention in Psychiatry (Print). 2009;3:239-42.

Capítulo 9

TRANSTORNOS DISSOCIATIVOS Régis André Severino Hueb e José Cássio do Nascimento Pitta

INTRODUÇÃO Platão, Hipócrates e Galeno fizeram as primeiras descrições de histeria. O deslocamento do útero foi considerado fator importante. A teoria era que a doença originava do estancamento de substância sexual, que produzia efeito tóxico. Com o Renascimento e a retomada da cultura grega, ocorreu um retorno às ideias que associavam a histeria à fisiologia da mulher. A crença em uma etiologia exclusivamente orgânica prevaleceu até meados do século 19, quando os estudos de Charcot e Babinski possibilitaram o reconhecimento dos aspectos psicológicos do fenômeno e evidenciaram a importância dos fatores psicogênicos ao observar e descrever as grandes crises de histeria. Freud partiu da hipótese de que os sintomas histéricos poderiam ser facilitados por componentes constitucionais, mas a etiologia estaria relacionada com componentes psíquicos, cujo esclarecimento seria fundamental. Essas determinações psíquicas não estavam na consciência dos pacientes, mas no inconsciente. A histeria deu origem aos primeiros postulados teóricos de Freud e aos principais recursos técnicos que originaram a escola psicanalítica. A histeria ou neurose histérica foi dividida, então, em duas formas clínicas: histeria de conversão e histeria de dissociação. Os termos “psicogênicos” e “histéricos” são utilizados frequentemente de modo indiscriminado. Entretanto, os sintomas histéricos são considerados de origem psicogênica, mas nem todos os sintomas psicogênicos são histéricos. O termo conversão implica a ideia de que a ansiedade é substituída (convertida) por sintomas físicos, assim como o termo dissociação relaciona os sintomas como resultantes da perda da coordenação das diferentes funções psíquicas. A Classificação Internacional de Doenças em sua 10a edição (CID-10) não emprega o termo histeria, mas a denomina transtornos dissociativos, que incluem os conversivos. Nos atuais manuais classificatórios, o termo histeria não é utilizado em virtude das conotações negativas e imprecisas agregadas ao longo da história.

FORMAS CLÍNICAS AMNÉSIA DISSOCIATIVA A característica principal é a perda da memória, relacionada geralmente a acontecimentos importantes e recentes, não atribuída a transtornos mentais de origem orgânica. A amnésia, geralmente, é parcial e seletiva, extensa demais para ser explicada como

esquecimento normal ou fadiga. Adultos jovens são mais comumente afetados.

FUGA DISSOCIATIVA Tem todas as características da amnésia dissociativa e acrescenta-se o deslocamento aparentemente proposital do paciente para longe de casa ou do local de trabalho, período durante o qual o cuidado pessoal é mantido. Em alguns casos, ele pode assumir nova identidade, apresentando incapacidade de recordar a identidade prévia. Embora haja amnésia durante o período de fuga, o comportamento do indivíduo pode parecer normal aos observadores desconhecidos.

ESTUPOR DISSOCIATIVO Há importante redução ou ausência de movimentos voluntários e de reação normal a estímulos externos, como luz, ruído e tato. Não há evidências de alterações no exame físico ou complementar que comprovem origem orgânica. Além disso, existem argumentos favoráveis à origem psicogênica e à relação com recentes eventos ou problemas estressantes.

TRANSTORNOS DE TRANSE E POSSESSÃO Manifestam perda transitória da consciência de identidade e ambiente. Em alguns casos, o indivíduo age como se tomado por outra personalidade, espírito, divindade ou “força”. Inclui somente os estados de transe involuntários e indesejados, excluindo-se situações admitidas em contexto cultural ou religioso.

TRANSTORNO DE DESPERSONALIZAÇÃO/DESREALIZAÇÃO A despersonalização caracteriza-se por alterações na percepção de si mesmo, enquanto a desrealização diz respeito a alterações na percepção sobre os objetos externos (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM). A despeito do quadro, esses pacientes mantêm o teste de realidade intacto. Os sintomas incluem: • • • •

Sensação de irrealidade: como se o mundo não fosse real, como se o próprio corpo, a voz ou os pensamentos não fossem reais Sensação de distanciamento das emoções e sensações: como se a dor, a tristeza e o prazer fossem sentidos por outra pessoa Distorções na percepção de tempo e espaço: como se eventos recentes parecessem distantes no tempo Sensação de entorpecimento físico e emocional

Assim como outros sintomas dissociativos, os sintomas de despersonalização/desrealização podem ocorrer de maneira ocasional e transitória na vida de muitas pessoas, sobretudo nos mais jovens, não configurando condição patológica. Quando os sintomas ocorrem em episódios persistentes e recorrentes e resultam em sofrimento significativo para os pacientes, são considerados patológicos. Essas

manifestações aparecem geralmente de maneira súbita, com mais frequência entre 15 e 30 anos e raramente após os 40 anos.

Abordagem É fundamental uma avaliação clínica completa, especialmente quando os sintomas de despersonalização/desrealização ocorrem sem outros comemorativos. Devem-se afastar causas sistêmicas, como distúrbios da tireoide ou pâncreas, assim como causas neurológicas, como tumores e epilepsia. Outra condição que deve ser abordada na entrevista inicial é o uso de medicamentos psicoativos, visto que eles induzem alterações duradouras na experiência de realidade. Os sintomas de despersonalização/desrealização também podem acompanhar diversos transtornos psiquiátricos, como transtornos depressivos e esquizofrenia, incluindo como parte dos critérios diagnósticos de alguns deles: ataques de pânico, transtorno de estresse agudo, transtorno de estresse pós-traumático e transtorno dissociativo de identidade. Nesses casos, a abordagem terapêutica será voltada aos transtornos subjacentes. As pesquisas sobre o tratamento específico para o transtorno de despersonalização/desrealização são incipientes e inconclusivas. Os estudos com lamotrigina e fluoxetina não se mostraram mais eficazes que placebo. As pesquisas com o uso de antagonistas opioides (naloxona, naltrexona) apresentaram alguns resultados promissores. A intervenção psicoterápica também necessita de estudos mais sistematizados, embora haja evidências de sua efetividade.

TRANSTORNO DISSOCIATIVO DE IDENTIDADE Trata-se de um rompimento de identidade, caracterizado por duas ou mais identidades ou estados de personalidades distintos, que podem ser descritos em algumas culturas como experiências de possessão. Envolve a descontinuidade nos sensos de si mesmo e de controle volitivo, acompanhados por alterações de afeto, consciência, memória, percepção, cognição e funcionamento neurossensorial. Os sinais e sintomas podem ser observados por outros ou relatados pelo próprio indivíduo. Associada ao quadro, ocorre incapacidade de recordar informações tanto de eventos diários quanto de informações pessoais importantes ou eventos traumáticos. A causa do transtorno é desconhecida, embora a história dos pacientes quase sempre envolva evento traumático, em geral, na infância. Os sintomas podem ocorrer a partir de 3 anos de idade e quanto mais precoces, pior o prognóstico. Esse transtorno não deve ser visto como um fenômeno raro ligado a uma sintomatologia exuberante e dramaticamente clara. Na verdade, os pacientes apresentam uma mistura de sintomas dissociativos com sintomas psiquiátricos, o que contribui com frequência para erros diagnósticos e tratamentos ineficazes. É imprescindível, portanto, uma clara distinção entre as principais comorbidades (depressão, ataques de pânico, abuso de substâncias, sintomas somatoformes, transtornos alimentares e de

personalidade) e os principais diagnósticos diferenciais (transtornos psicóticos, transtorno afetivo bipolar de ciclagem rápida, transtorno de personalidade borderline e simulação). Embora qualquer distúrbio psiquiátrico possa cursar com sintomas dissociativos, esses casos requerem uma observação cuidadosa, pois suas sintomatologias podem se assemelhar muito às dos transtornos dissociativos. Entres os distúrbios neurológicos que devem ser descartados, encontram-se a epilepsia parcial complexa, com probabilidade de manifestar sintomas semelhantes aos do transtorno dissociativo de identidade.

Abordagem Assim como outros transtornos dissociativos, a abordagem inicial requer investigação clínica completa para exclusão de condições médicas orgânicas subjacentes, sobretudo pelo fato de que sintomas somatoformes frequentemente acompanham o quadro. Esses pacientes devem ser avaliados, em todas as consultas, para o risco de suicídio. Em três estudos recentes, observou-se que 72 a 78% desses pacientes relataram ao menos uma tentativa de suicídio em algum momento da vida. Ainda não existem evidências consistentes sobre os benefícios do tratamento farmacológico para esses pacientes. As medicações podem ser usadas como sintomáticas, geralmente dirigidas a transtornos mentais subjacentes, de modo que o tratamento de escolha continua sendo a psicoterapia.

DIAGNÓSTICO, TRATAMENTO E PROGNÓSTICO O diagnóstico dos transtornos dissociativos é feito a partir das evidências das formas clínicas. A avaliação clínica e laboratorial, além da investigação neurológica cuidadosa, é necessária para afastar qualquer doença de origem orgânica, principalmente as que acometem o sistema nervoso central. Atenção especial deve ser dada à avaliação psicossocial, investigando eventos estressantes recentes, experiências traumáticas anteriores e relacionamentos interpessoais. O prognóstico e o tratamento dos estados dissociativos dependem de vários fatores associados, além dos sintomas específicos. A personalidade e as circunstâncias que se relacionam ao desencadeamento dos sintomas são especialmente importantes. Início agudo, experiência estressante relacionada com o início do quadro e apoio adequado encontrado no ambiente, especialmente na família, são fatores associados ao prognóstico favorável. Sintomas de longa duração, alto grau de invalidez e ganho secundário decorrente da incapacidade de lidar com as dificuldades emocionais são fatores desfavoráveis relacionados com o prognóstico. Os transtornos dissociativos, muitas vezes, remitem completamente, sem relação com qualquer intervenção terapêutica. Os pacientes com sintomas persistentes tendem a apresentar reação desfavorável ao tratamento, independentemente da abordagem terapêutica empregada. A natureza aparentemente simulatória desses transtornos leva o médico e outros

profissionais de saúde a desconsiderar o sofrimento psíquico e a legitimidade dessas manifestações emocionais. Esses profissionais, com frequência, sentem-se ludibriados pelos pacientes, o que desencadeia sentimentos de hostilidade, irritabilidade e desprezo. O atendimento acolhedor, demonstrando solicitude ao sofrimento, muitas vezes é suficiente para atenuar o episódio. Tarefa de igual valor é a orientação dos familiares, que se sentem incapazes de compreender e lidar com essas manifestações. O tratamento psicoterápico deve proporcionar ao paciente condição receptiva e tranquilizadora para facilitar o reconhecimento de experiências emocionais desconfortáveis que possam ter contribuído para o desenvolvimento do transtorno. O médico deve criar recursos que facilitem atitude psicoterápica, reconhecendo a existência da dinâmica da vida mental e as dificuldades para suplantar os conflitos de natureza psíquica. Após essa intervenção terapêutica inicial, psicoterapia prolongada é geralmente indicada para ajudar o paciente a lidar com os conflitos psicológicos que podem precipitar o episódio dissociativo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A prevalência do transtorno dissociativo provavelmente não está diminuindo. Com as novas classificações diagnósticas, o fenômeno dissociativo se incorporou a novas categorias diagnósticas, não deixando, portanto, de existir. Além disso, sabe-se, desde os primeiros estudos sobre a histeria, que sua sintomatologia é influenciada pelas condições ambientais e expectativas em relação ao paciente. Os pacientes atuais podem manifestar sintomas diferentes daqueles do século passado. O médico deve investigar a possibilidade da presença do transtorno dissociativo em quadros clínicos que se manifestam com a alteração do campo e nível da consciência, principalmente quando se afastam possíveis etiologias orgânicas. Além disso, os pacientes portadores de transtornos dissociativos apresentam maior risco de tentativas de suicídio, o que exige o reconhecimento mais precoce possível. Ainda existem muitos debates sobre como esses pacientes devem ser diagnosticados, classificados ou tratados. Contudo, mesmo sem um consenso sobre esses aspectos fundamentais do transtorno, o médico deve reconhecer o sofrimento desses doentes, mantendo uma postura acolhedora e desprovida de preconceitos. Essa abordagem deve incluir a compreensão dessas manifestações psicopatológicas em uma dimensão universal e própria do ser humano.

BIBLIOGRAFIA American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-5. 5.ed. Washington, D.C.: American Psychiatric Association, 2013. American Psychiatric Association. Diagnostic criteria from DSM-IV-TR. Washington, D.C.: American Psychiatric Association, 2000. Berlinck MT. Histeria. São Paulo: Escuta, 1997.

Brand BL, Lanius R, Vermetten E, Loewnstein RJ, Spiegel D. Where are we going? An update on assessment, treatment, and neurobiological research in dissociative disorders as we move toward the DSM-5. Journal of Trauma & Dissociation: the Official Journal of the International Society for the Study of Dissociation (ISSD). 2012;13(1):9-31. Gentile JP, Dillon KS, Gillig PM. Psychotherapy and pharmacotherapy for patients with dissociative identity disorder. Innovations in Clinical Neuroscience. 2013;10 (2):22-9. MacPhee E. Dissociative disorders in medical settings. Current psychiatry reports. 2013;15(10):398. Mari, JJ, Razzouk D, Peres MFT, Del Porto JA, Schor, N. Guia de psiquiatria. Barueri: Manole, 2005. Sadock BJ, Sadock VA, Dornelles CO. Compêndio de psiquiatria ciência do comportamento e psiquiatria clínica. Porto Alegre: Artmed, 2007. Sierra M, Berrios GE. The Cambridge Depersonalization Scale: a new instrument for the measurement of depersonalization. Psychiatry Research. 2000;93(2):153-64. Spiegel D, Lewis-Fernández R, Lanius R, Vernetten E, Simeon D, Friedman M. Dissociative disorders in DSM-5. Annual Review of Clinical Psychology. 2013;9(1):299-326. Spiegel D. Trauma, dissociation, and memory. Annals of the New York Academy of Sciences. 1997;821(1):225-37. Spitzer C, Barnow S, Freyberger HJ, Grabe HJ. Recent developments in the theory of dissociation. World Psychiatry. 2006;5(2):82-6. Trauma and Dissociation, International Society for the Study of. Guidelines for treating dissociative identity disorder in adults, third revision. Journal of Trauma & Dissociation. 2011;12(2):115-87.

Capítulo 10

TRANSTORNOS SOMATOFORMES Nelson Trentini Júnior e José Atílio Bombana

INTRODUÇÃO O termo somatoforme deriva da união do radical grego sóma, sómatos (corpo) ao latino forme (à forma de), indicando um amplo espectro de condições cuja principal marca se faz nas manifestações e queixas corporais. Esses quadros envolvem interações mente-soma ainda não totalmente compreendidas pela medicina, colocadas como uma “escrita a decifrar” no corpo. Estão relacionados, desde seu desencadeamento e manutenção, com fatores psíquicos. A introdução da categoria nas classificações internacionais de doenças ocorreu há cerca de 35 anos. Entretanto, eles são reconhecidos e descritos há muito tempo, tendo recebido as mais diversas nôminas: distúrbios de órgãos corporais, distúrbios funcionais, hipocondria, neurastenia, somatização, síndrome de Briquet. Em 1980, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – 3a edição (DSM-III) introduziu a categoria dos transtornos somatoformes, ampliada nas versões posteriores. A Classificação Internacional de Doenças (CID-10),1 de 1992, passou a incluíla com sete diferentes especificadores: transtorno de somatização, transtorno somatoforme indiferenciado, transtorno hipocondríaco, disfunção autonômica somatoforme e transtorno doloroso somatoforme persistente (os outros dois são diagnósticos residuais). A existência dessa categoria diagnóstica não deixa de apontar o dualismo mente-corpo, muito presente nas concepções médicas atuais.

CONSIDERAÇÕES GERAIS Os transtornos somatoformes caracterizam-se por queixas frequentes de sintomatologia física (durante longo período, geralmente anos) que sugerem a presença de acometimento orgânico, porém sem correlação com nenhuma das doenças descritas nos tratados médicos. Eles tampouco são explicáveis pelos efeitos diretos de substâncias ou por outro transtorno mental (p. ex., transtornos de humor). Mesmo na presença de outras doenças diagnosticadas, não se encontra uma explicação fisiopatológica para toda a sintomatologia referida pelo paciente, o que permite levantar a hipótese de somatização mesmo naqueles com comorbidades clínicas comprovadas. Supõe-se que particularidades do funcionamento do aparelho psíquico (como a parca mobilização de recursos para elaboração e simbolização) estejam implicadas no desenvolvimento dos quadros. O conceito de somatização, mais amplo, não é sinônimo de transtorno somatoforme

(termo que corresponde ao grupo como um todo) nem deve ser confundido com o de transtorno de somatização (um dos sete subtipos dos transtornos somatoformes). A somatização pode ser descrita como “a tendência para experienciar e comunicar distúrbios e sintomas somáticos não explicados pelos achados patológicos, atribuílos a doenças físicas e procurar ajuda médica para eles”.2 Ela pode se manifestar de diversas formas: como modo de expressão subjetivo (variação subjetiva normal), indicando doença orgânica ainda não diagnosticada, como parte de outras doenças psiquiátricas e como um transtorno somatoforme.

EPIDEMIOLOGIA Um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) em diversos países, conduzido nos serviços de atenção primária, detectou taxas de prevalência global para o transtorno de somatização de 0,9% (variando de 0 a 3,8%, conforme o local), mas que chegavam a 19,7% (variação de 7,6 a 36,8%) quando se utilizava o conceito de transtorno de somatização “expandido”3 – o que reforça a percepção de que, embora a prevalência dos transtornos somatoformes propriamente ditos seja relativamente baixa, as somatizações são muito frequentes. Esse conceito aproxima-se do diagnóstico de transtorno somatoforme indiferenciado, o que apresenta a maior taxa de prevalência dentro de toda a categoria dos transtornos somatoformes (salientando-se que os transtornos conversivos não estão incluídos nos somatoformes pela CID-10).

ABORDAGEM PSICANALÍTICA O campo hoje chamado de psicossomática psicanalítica, que se aproxima dos transtornos somatoformes da CID-10, tem origem nos primeiros escritos de Freud, que datam da última década do século 19. Neles, Freud estabelece uma distinção entre as psiconeuroses (histeria e neurose obsessiva) e as neuroses atuais (neurastenia e neurose de angústia). Ele afirma que a etiologia de ambas se relaciona à sexualidade, o que garante a diferenciação; porém, é o caráter da problemática: nas psiconeuroses, ela remonta a conflitos edificados sobre a sexualidade infantil, já na neurose atual diz respeito ao período contemporâneo ou posterior à maturidade sexual. Em Sobre os Fundamentos para Destacar da Neurastenia uma Síndrome Específica Denominada Neurose de Angústia”4, Freud esclarece o mecanismo patogênico das neuroses atuais: [...] a neurose de angústia é acompanhada por um decréscimo extremamente acentuado da libido sexual, ou desejo psíquico [...] Todas essas indicações – de que estamos diante de um acúmulo de excitação; de que a angústia, provavelmente correspondente a essa excitação, é de origem somática, de modo que o que se está acumulando é uma excitação somática; e ainda, de que essa excitação é de natureza sexual e acompanhada por um decréscimo da participação psíquica nos processos

sexuais – todas essas indicações, dizia eu, levam-nos a esperar que o mecanismo da neurose de angústia deva ser buscado em uma deflexão da excitação sexual somática da esfera psíquica e no consequente emprego anormal dessa excitação. Seria como se o indivíduo não conseguisse traduzir a sensação de angústia para a esfera psíquica; ao contrário, ela fica represada no corpo, encontrando escape nas mais diversas manifestações – sejam dores, palpitações, dispneia etc. A Escola Psicossomática de Paris, que tem em Pierre Marty seu expoente, trabalhou o conceito de mentalização – espécie de medida da capacidade (tanto qualitativa quanto quantitativa) de elaboração simbólica da pessoa. Quanto mais mentalizada, menos propensa ela se torna às descargas corporais – a excitação (angústia) pode, dessa maneira, encontrar ressonância nas representações-palavra pré-conscientes. Na teoria de Lacan, importante psicanalista pós-freudiano, a lesão psicossomática é concebida como fenômeno, não constituindo verdadeiramente um sintoma (no sentido estrito do termo) – justamente porque não se produz pelos processos de metáfora e metonímia (deslocamento e condensação, em Freud), característicos do sintoma psiconeurótico. O fenômeno psicossomático é marcado pelo que ele chama de “congelamento” dos significantes, inscrevendo-se em um corpo “sem sentido” – que, não obstante, padece e sofre; como se o fenômeno psicossomático se situasse, assim, no nível do real, e não no do simbólico.

QUADRO CLÍNICO E CLASSIFICAÇÃO São descritas, na CID-10, sete diferentes entidades nosográficas dentro do capítulo dos transtornos somatoformes. Aqui, serão apresentados apenas os mais relevantes. Convém assinalar que os transtornos conversivos (uma apresentação particular dos casos de histeria) são classificados em outro capítulo na CID-10, sob a denominação de transtornos dissociativos (ou conversivos) – ao passo que, no DSM-IV,5 fazem parte dos transtornos somatoformes. Optou-se por seguir a orientação da CID-10, por considerá-la mais coerente com a prática clínica.

TRANSTORNO DE SOMATIZAÇÃO Caracteriza-se por uma história (mais de 2 anos) de múltiplos sintomas físicos, afetando vários sistemas diferentes (mutáveis ao longo do tempo) em uma evolução crônica e flutuante, marcada por inúmeros tratamentos médicos, geralmente ineficazes. Há um grande predomínio de mulheres, e o início do quadro tende a ser precoce (início antes dos 30 anos é um critério diagnóstico no DSM), com prejuízo social importante. Alguns sintomas frequentes são dores pelo corpo, falta de ar, náuseas e vômitos. A presença de sintomas depressivos e ansiosos é relativamente comum.

TRANSTORNO SOMATOFORME INDIFERENCIADO Semelhante ao anterior, exceto por não preencher todas as características descritas. As

queixas podem ocorrer em número restrito, por exemplo, ou o tempo de evolução ser curto; ou ainda pode não ocorrer comprometimento social e profissional.

TRANSTORNO HIPOCONDRÍACO O paciente é tomado pela interpretação errônea de sensações corporais costumeiras, levando à crença de estar gravemente doente. A atenção é geralmente voltada para um ou dois órgãos ou sistemas. Seu curso é crônico e flutuante. Embora concebido aqui como um transtorno independente, sabe-se que sintomas hipocondríacos existem também em outros quadros psiquiátricos (p. ex., depressão) ou mesmo como um traço de personalidade, presente em maior ou menor grau na população geral. O transtorno dismórfico corporal – preocupação com um defeito corporal imaginário ou pouco relevante – é incluído na CID-10.

DISFUNÇÃO AUTONÔMICA SOMATOFORME Caracteriza-se por queixas objetivas decorrentes da excitação do sistema nervoso autônomo (p. ex., palpitações, sudorese e tremores), que cursam com sintomas subjetivos e inespecíficos (p. ex., sensações de dor, aperto) e que levantam preocupação quanto ao acometimento de um órgão ou sistema específico. Por vezes, esses quadros são genérica e pejorativamente chamados de distúrbio neurovegetativo (DNV).

TRANSTORNO DOLOROSO SOMATOFORME PERSISTENTE Quadro de dor persistente e intensa, não atribuível a doenças médicas conhecidas. Há relação com conflitos psíquicos, o que se presume estar na origem das queixas de dor. Sua localização é variável de paciente a paciente, sendo frequentes os relatos de cefaleia, lombalgia e dores difusas. Alguns tendem a atribuir à dor a fonte de todos seus problemas na vida, e verifica-se uma importante associação com sintomas depressivos. Levando em conta as já mencionadas dificuldades de classificação nesse complexo campo, ambos os manuais – a próxima edição da CID (CID-11) e o já lançado DSM-5, de 2013 – apresentam propostas de mudanças. Assim, no DSM-5, há a categoria transtornos de sintomas somáticos (somatic symptom disorder) e desaparecem os transtornos somatoformes.

DIAGNÓSTICO O diagnóstico é feito por meio da história clínica do paciente. Não há exames laboratoriais ou de imagem específicos que o confirmem. Existem alguns dados que sugerem um quadro de somatização: queixas múltiplas e inespecíficas de muitos sistemas orgânicos, sintomas desproporcionais aos achados no exame clínico e cronicidade, com relato de múltiplas intervenções (prontuários médicos longos). Grande parte dos pacientes somatizadores busca atendimento em locais não psiquiátricos, recusando com veemência o encaminhamento a serviços de saúde mental.

Um ponto marcante é a dificuldade no estabelecimento de vínculo positivo com os profissionais de saúde, decorrente dos constantes questionamentos das assertivas emitidas pelo técnico (principalmente quando relacionadas com a provável inexistência de substrato orgânico detectável). Embora os transtornos somatoformes tenham hoje o status de um grupo diferenciado dos demais, existem outros que dizem respeito aos seus limites e a possíveis sobreposições aos diagnósticos da clínica médica. São os quadros chamados de “funcionais”, nos quais fatores psicológicos parecem desempenhar papel importante. Alguns deles são: fibromialgia, síndrome do intestino irritável e síndrome da fadiga crônica. Quando atendidos por médicos não psiquiatras, os pacientes podem receber diagnósticos como o de fibromialgia, por exemplo – ao passo que, se encaminhados a psiquiatras, serão classificados como somatizadores.

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL É imperativo, inicialmente, excluir a possibilidade de doença orgânica. Isso implica a realização de um exame físico cuidadoso e a solicitação criteriosa de exames laboratoriais, que permitam a diferenciação de possíveis condições clínicas dos transtornos somatoformes. Deve ser dada atenção a doenças que se apresentam com quadros inespecíficos, como a esclerose múltipla e o lúpus eritematoso sistêmico (LES). A relevante presença de comorbidades com outros diagnósticos psiquiátricos pode dificultar essa tarefa. Faz-se necessário atentar para os quadros depressivos (em que os sintomas depressivos predominam sobre as queixas somáticas), os transtornos de ansiedade (nos quais, os sintomas somáticos tendem a ser mais restritos aos períodos de ansiedade exacerbada) e os transtornos conversivos (nos quais há também manifestações somáticas, mas limitadas a um ou dois sintomas pseudoneurológicos). O delírio somático (nas psicoses) também precisa ser diferen-ciado. É caracterizado por sua rigidez e irredutibilidade. É ainda frequentemente observada a existência de transtornos de personalidade.

TRATAMENTO A abordagem desse grupo de pacientes tem se mostrado assunto complexo. Evidências demonstram que não existe estratégia única. Há desde propostas que privilegiam um enfoque na figura do médico (importância das avaliações clínicas, uso de medicamentos) até aquelas que se concentram nos cuidados psicológicos dos pacientes (especialmente por meio de psicoterapia). Deve-se considerar a necessidade de uma avaliação global (clínica, psiquiátrica e psicossocial) no início do tratamento, a fim de poder orientar os procedimentos. O médico não especialista tem função essencial nesse campo, haja vista a resistência dos pacientes com o seguimento psiquiátrico. A relação médico-paciente torna-se essencial em muitos casos; é necessário discernimento para evitar múltiplos encaminhamentos e exames desnecessários (Tabela 10.1).

Orienta-se que sejam programadas consultas regulares, não muito espaçadas, ainda que breves em duração (alguns especialistas sugerem consultas mensais de 15 min). Seriam oportunidades de esclarecimento quanto a possíveis novos sintomas, de tranquilização do paciente sobre as vivências corporais angustiantes e de progressivamente alterar o foco apenas somático das queixas para aspectos emocionais e sociais. A psicoterapia deve ser indicada sempre que haja disponibilidade. Pode ser individual ou de grupo (utilizada em inúmeras instituições). O modelo a ser empregado comporta diferentes linhas; existem pelo menos duas grandes correntes: uma baseada na psicologia experimental (p. ex., a terapia cognitivo-comportamental) e outra na psicanálise. Os antidepressivos têm sido usados na vigência de um transtorno depressivo ou de ansiedade associado.6 Utilizam-se os diferentes tipos disponíveis, recaindo a escolha sobre o que melhor se adaptar às características de cada paciente e de seu quadro clínico (presença ou não de sintomas de ansiedade, intensidade de sintomatologia depressiva, doenças orgânicas associadas, efeitos colaterais etc.) Como exemplo, algumas opções comumente utilizadas são os inibidores seletivos da recaptação de serotonina (p. ex., fluoxetina 20 a 60 mg/dia, via oral) e os tricíclicos (p. ex., amitriptilina 50 a 200 mg/dia via oral). Os benzodiazepínicos, embora não tenham uma ação direta sobre os sintomas somáticos, são por vezes administrados, procurando-se restringir seu uso a poucas semanas. A associação de psicoterapia e psicofármacos está indicada em muitos casos, sendo o modelo mais empregado nos quadros graves. Os pacientes devem ser incentivados a buscar atividades saudáveis, como exercícios físicos, e estimulados à sociabilização. Tabela 10.1 Recomendações práticas para o manejo dos transtornos somatoformes. Sim

Não

Centrar o tratamento em um médico determinado

Evitar confrontações e o “isso é tudo da sua cabeça”

Realizar consultas frequentes, regulares e breves

Não incentivar exames laboratoriais e intervenções cirúrgicas

Ser tolerante com as queixas Evitar múltiplos encaminhamentos para especialistas Utilizar medicações moderadamente Priorizar o manejo do quadro em vez da cura Explorar aspectos psicossociais

Não manter expectativas exageradamente otimistas quanto à evolução do quadro.

Estimular mudanças no estilo de vida e atividades saudáveis. Adaptada de Servan-Schreiber et al. (1999) e de Oyama et al. (2007).7,8

PROGNÓSTICO É importante não almejar sempre grandes resultados, principalmente quando se lida com somatizadores graves. Nesses casos, pode ser satisfatório mantê-los afastados de prontosocorros e hospitais, além de complicações iatrogênicas. Os transtornos somatoformes correspondem a condições crônicas e os que deles se ocupam precisam estar preparados para contornar as demandas e tensões, muito comuns nesses pacientes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1.

Organização Mundial da Saúde. Classificação de transtornos mentais e de comportamento da CID-10 – Descrições clínicas e diretrizes diagnósticas. Porto Alegre: ArtMed, 1993.

2.

Lipowski ZJ. Somatization: the concept and its clinical application. Am J Psychiatry. 1988;145(11):1358-68.

3.

Gureje O, Simon GE, Ustun TB, Goldberg, DP. Somatization in cross-cultural perspective: a World Health Organization study in primary care. Am J Psychiatry. 1997; 154(7):989-95.

4.

Freud S. Sobre os fundamentos para destacar da neurastenia uma síndrome específica denominada neurose de angústia. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. III.

5.

Ameircan Psychiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais – DSM-IV. 4.ed. Washington, DC: American Psychiatric Association, 2013.

6.

Pitta JCN, Bombana JA. Transtornos dissociativos e conversivos e somatoformes. In: Atualização terapêutica. 27.ed. São Paulo: Artes Médicas, 2007.

7.

Servan-Schreiber D, Kolb R, Tabas G. The somatizing patient. Primary Care. 1999;26(2):225-42.

8.

Oyama O, Paltoo C, Greengold J. Somatoform disorders. Am Fam Physician. 2007; 76(9):1333-8.

BIBLIOGRAFIA Bombana JA. Transtornos somatoformes. In: Diagnóstico e tratamento. v. 2. Lopes AC. (ed.) Barueri: Manole, 2006. Bombana JA. Sintomas somáticos inexplicados clinicamente: um campo impreciso entre a psiquiatria e a clínica médica. J Bras Psiquiatr. 2006;55(4):308-12. Ferraz FC. Das neuroses atuais à psicossomática. In: Ensaios psicanalíticos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011. p.215-36. Kaplan HI, Sadock BJ, Grebb JA. Transtornos somatoformes. In: Compêndio de

psiquiatria. 7.ed. Porto Alegre: ArtMed, 1997. p.584-97.

Capítulo 11

TRANSTORNO FACTÍCIO E SIMULAÇÃO Vinícius Lopes Emygdio de Faria e Vanessa de Albuquerque Cítero

INTRODUÇÃO A palavra “factício” tem origem no latim facere, que significa fazer, criar, fabricar.1 A “fabricação” consciente de condições mórbidas leva a dois diagnósticos diferenciais: transtorno factício e simulação, cuja diferenciação se faz por meio da motivação e consciência ou não desta.2 No transtorno factício (TF), o comportamento é motivado por uma necessidade inconsciente de assumir o papel de doente. Na simulação, há uma motivação consciente direcionada para obtenção de ganhos secundários, por exemplo, benefícios previdenciários.2 Classicamente, o TF era dividido em três categorias: transtorno factício comum, síndrome de Münchausen e síndrome de Münchausen por procuração.2 Quadros mais graves, crônicos, com ocorrência de pseudologia fantástica (mentira patológica) e peregrinação por diferentes cidades e serviços em busca de cuidados médicos, recebiam o nome de síndrome de Münchausen.2 Na síndrome de Münchausen por procuração, o indivíduo, na maioria dos casos um cuidador, cria ou simula condições mórbidas em um terceiro, geralmente uma criança.3 Na quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) foram feitas algumas modificações nessas classificações. Se na 4a edição do DSM (DSMIV) o TF contava com um capítulo exclusivo, no DSM-5 passou a compor o capítulo de Transtorno de Sintomas Somáticos e Transtornos Relacionados, juntamente com Transtorno de Sintomas Somáticos, Transtorno Conversivo e outros. No DSM-IV, o TF era dividido de acordo com o predomínio de sinais e sintomas psicológicos, físicos ou combinados. O TF indireto – correspondente à síndrome de Münchausen por procuração – estava inserido em TF sem outra especificação. Já o DSM-5 divide o TF em apenas dois: TF autoimposto e TF imposto a outro; com os especificadores de episódio único ou recorrente. A simulação continua dentro do capítulo de Outras Condições que Podem Ser Foco de Atenção Clínica, pois não constitui um transtorno psiquiátrico.4,5 Por esse motivo, e também por ocorrer em diversas situações clínicas e sociais, a simulação será abordada como diagnóstico diferencial do TF, assim como o transtorno de somatização (apresentado no Capítulo 10). Uma análise mais aprofundada sobre simulação pode ser encontrada em livros de medicina forense.

ETIOLOGIA E EPIDEMIOLOGIA

Embora não haja uma etiologia definida para o TF, no Quadro 11.1 estão descritos alguns fatores que podem ser considerados de risco.1 Quadro 11.1 Fatores de risco. • Traços de personalidade sociopata, histriônica ou borderline • História de privação emocional ou abuso na infância • Vivência de adoecimento (próprio ou de cuidadores) • Atividade como profissional de saúde • História familiar de transtorno factício

Há uma prevalência maior em mulheres (de até 96%) e em profissões relacionadas com a saúde, o que leva alguns autores a citarem o perfil da “jovem mulher, profissional de saúde, com TF”.1,2,6,7 Dados epidemiológicos são de difícil obtenção, principalmente por falha diagnóstica ou dificuldade do profissional em assumir o diagnóstico quando corretamente detectado.6 Diferentes estudos apontam uma prevalência entre 0,8 e 5% dos atendimentos médicos, com taxas de até 15% entre atendimentos de dermatologia e neurologia.2,6 A prevalência em crianças e adolescentes parece ser similar àquela em adultos.8 Uma amostra australiana encontrou prevalência de até 1,5% de síndrome de Münchausen por procuração como causa de sintomas em crianças atendidas em situações potencialmente fatais.2 Nos EUA, estima-se incidência de TF por procuração entre 0,4 e 2 casos por 100.000 habitantes (600 casos/ano), com taxas de mortalidade entre 6 e 10%. As vítimas geralmente são crianças menores de 2 anos, mas já foram identificados casos em adolescentes de até 16 anos.3

MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS Na Tabela 11.1, Huffman e Stern6 exemplificaram algumas apresentações comuns em TF com sintomas físicos. Tabela 11.1 Apresentações comuns de TF com sintomas físicos. Gastrintestinais

Dor, vômito, hematêmese, múltiplas cicatrizes abdominais

Pulmonares

Hemoptise, dispneia, sintomas de embolia pulmonar

Cardíacos

Dor no peito e palpitação

Neurológicos

Pseudocrise convulsiva, AIT, fraqueza não explicada

Endócrinos

Hipoglicemia e hipertireoidismo

Geniturinários

Cólica renal e hematúria

Infecciosos

Bacteriemia, febre, ITU

Musculoesqueléticos

Lesões e feridas

Hematológicos

Anemia e sangramento

AIT: ataque isquêmico transitório; ITU: infecção do trato urinário.

Kran et al.7 selecionaram exemplos de resultados de exames laboratoriais inexplicáveis em 93 pacientes com TF (Tabela 11.2). Tabela 11.2 Exemplos de resultados inexplicáveis de exames laboratoriais. Queixa apresentada

Evidência laboratorial

Hematúria

Doce vermelho encontrado em amostra de urina

Hipoglicemia recorrente

Identificação de insulina endógena

Ferida que não cicatriza

Antisséptico bucal encontrado na ferida

Feocromocitoma

Tecido suprarrenal normal (pós-operatório)

Diarreia

Amostra de fezes composta apenas de água

Cólica renal recorrente

Fragmentos de vidro encontrados em amostra de urina

Infecções recorrentes

Identificação de patógenos incomuns (água de aquário)

Hipopotassemia, diarreia

Identificação de diuréticos tiazídicos na urina

Esses mesmos autores listaram as evidências de TF identificadas nessa amostra (o número total é maior que 93, pois alguns pacientes tiveram mais de uma evidência) (Tabela 11.3). Tabela 11.3 Evidência de TF em amostra de 93 pacientes. Evidência

No

%

Resultados laboratoriais inexplicáveis

42

45,2

História inconsistente ou implausível

33

35,5

Confissão do paciente de doença autoinfligida

16

17,2

Registros externos (de outros serviços)

15

16,1

Identificação de seringas, adulterações etc.

11

11,8

Identificação de medicações escondidas

4

4,3

Paciente desmentido pela família

3

3,2

No caso de TF por procuração, Dye et al.3 identificaram fatores para identificação precoce do transtorno na criança e no cuidador (Tabela 11.4). Tabela 11.4 Fatores para identificação precoce de TF por procuração. Criança

Cuidador

História clínica e avaliações inconsistentes

História de transtorno psiquiátrico

Doença recorrente/prolongada

Busca por atenção

Resistência ao tratamento

Relação matrimonial conturbada

Criança

Cuidador

Alterações emocionais

Histórico de abuso/negligência

Atrasos de crescimento e desenvolvimento

Demasiadamente envolvido em condutas

Sintomas inexplicáveis

Traumas mal resolvidos

Ausência de relações interpessoais externas

Relação familiar com profissional de saúde

Assintomática na ausência do cuidador

Prevalência de sexo feminino

Recaídas frequentes

Respostas emocionais pouco sinceras Profissional de saúde

DIAGNÓSTICO No Quadro 11.2, Steel fornece um roteiro sistematizado para a identificação do TF, no qual o médico agiria como “detetive”.1 Quadro 11.2 Roteiro prático para detecção de TF. 1. Identificação de história inconsistente com achados clínicos objetivos • História vaga, contraditória, que muda com frequência • Sintomas não melhoram mesmo com tratamento adequado 2. Exclusão dos principais diagnósticos diferenciais • Existe a possibilidade de ser uma doença rara? • Apresentação incomum de uma doença comum? 3. Coleta circunstancial de evidências • Dados biográficos inconsistentes (p. ex., data de nascimento) • Barreiras para obtenção de informações (p. ex., ausência de visitas) • Elevado conhecimento da rotina hospitalar e termos médicos • Ânsia por procedimentos diagnósticos ou de tratamento • Sintomas ocorrem predominantemente quando não observados • Múltiplos resultados normais ou inconclusivos em avaliações diagnósticas • Surgimento de novos sintomas após avaliações negativas • Sintomas mudam ou pioram ao longo do tratamento 4. Identificação de alguma evidência inequívoca de fraude por parte do paciente • Testemunho de paciente manipulando ferida, amostra de exame, medicação • Exames laboratoriais ou de imagem podem fornecer evidências inequívocas 5. Confirmação de evidência por meio de segunda opinião médica

• Consultar pelo menos outro médico experiente a respeito das evidências • Registrar toda a discussão em prontuário médico 6. Excluir somatização e simulação • Sintomas inexplicáveis são comuns na prática médica • Caso não haja evidência inequívoca de fraude, é prudente excluir que os sintomas não sejam fabricados ou induzidos inconscientemente • Quando houver evidência inequívoca, aconselha-se investigar qual é a motivação (ganho secundário?)

Huffman e Stern6 colaboram com o diagnóstico diferencial entre TF, transtorno de somatização e simulação (Tabela 11.5). Tabela 11.5 Diagnóstico diferencial de síndromes associadas a múltiplas queixas. Condição

Produção de sintomas

Somatização

Inconsciente

Transtorno factício

Consciente

Simulação

Consciente

Ganho Inconsciente: atenção, “papel de paciente”

Procedimentos arriscados ou dolorosos Aceita

Inconsciente: atenção, “papel de

Aceita prontamente ou solicita

paciente”

procedimentos

Consciente: dinheiro, dispensa, proteção

Evita

Embora não seja rotina na prática clínica, alguns autores sugerem outras ferramentas diagnósticas, como testes neuropsicológicos, neuroimagem funcional e testes laboratoriais mais complexos (p. ex., cromatografia) para auxiliar no diagnóstico diferencial.2

MANEJO CLÍNICO Embora seja de especial interesse dentro da psiquiatria, há de se considerar que, em geral, pacientes com TF travarão contato inicial com médicos de outras especialidades. Geralmente, o psiquiatra é acionado quando a hipótese diagnóstica de TF já foi aventada. Médicos geralmente reagem de maneira intensa diante desses pacientes, fruto da produção de sentimentos negativos de contratransferência. A postura demandante e, por vezes, depreciativa do paciente pode levar o médico a solicitar procedimentos

desnecessários ou arriscados e comprometer a qualidade do diagnóstico e do tratamento. O principal papel do psiquiatra nesse contexto é auxiliar a equipe assistencial a manejar o paciente da maneira mais adequada e segura possível, além de avaliar a coexistência de outros transtornos psiquiátricos.6,7 Existe ampla discussão sobre qual é a melhor abordagem ao paciente diagnosticado com TF, sem que tenha sido definida uma conduta padrão. Um dos pontos de maior controvérsia refere-se à confrontação do paciente, e a maioria dos autores defende uma postura mais acolhedora, empática e de suporte. Quando “descobertos” e confrontados de maneira direta, esses pacientes tendem a abandonar ou mesmo fugir do serviço de saúde e continuam sua peregrinação em outros locais de atendimento.1,2,6,7 Estão reunidas no Quadro 11.3 algumas recomendações que têm se mostrado úteis no manejo de casos de TF.2,6,7 Quadro 11.3 Recomendações gerais para manejo terapêutico do TF. Manter postura de suporte, evitando confrontação direta Desenvolver um relacionamento empático de maneira gradual, que induza o paciente a desistir de seu comportamento mal adaptativo Apresentar ao paciente um leque de diagnósticos diferenciais, entre eles o de TF, de modo a negociar o diagnóstico proposto pela equipe Manter a coerência do plano de tratamento entre todos os membros da equipe. Evitar opiniões divididas e mensagens ambíguas Garantir um ambiente terapêutico compassivo, porém com limites bem definidos, esclarecendo o paciente sobre a necessidade ou não de procedimentos Autorizar procedimentos e medicamentos somente quando claramente indicados e justificados por achados objetivos Motivar a equipe assistencial, procurando fazer com que o paciente pareça “interessante” e desestimulando posturas acusatórias ou de confrontação Encorajar o paciente a manter acompanhamento psiquiátrico a longo prazo, focado em psicoterapia

Em casos de TF por procuração ou imposto a outro, a prioridade será sempre manter a segurança da criança, e o caso deverá ser conduzido como qualquer outro de suspeita de abuso infantil. A criança deverá receber atendimento multidisciplinar, com a presença de um psiquiatra. Os irmãos também devem ser investigados para ocorrência de maus-tratos. O cuidador (perpetrador) deve ser abordado individualmente e também receber assistência psiquiátrica. As medidas legais cabíveis não devem ser negligenciadas.3 No Brasil, o Guia de Atuação frente a Maus-tratos na Infância e Adolescência, da Sociedade Brasileira de Pediatria, aponta a síndrome de Münchausen por procuração como uma das formas de maus-tratos e orienta a notificação, mesmo em caso de suspeita, ao Conselho Tutelar.9

CONSIDERAÇÕES FINAIS “Pacientes que se esforçam para ficar doentes”7 são tema de uma discussão ampla e complexa, que até o momento resultou em poucas conclusões definitivas e muitas dúvidas. São pessoas que podem causar a si mesmas ou a terceiros danos irreparáveis, com altíssimo custo para a sociedade e que despertam fortes emoções nos profissionais de saúde.7 O manejo clínico desses pacientes não é óbvio e levanta importantes questionamentos de ordem ética e moral. É aceitável vasculhar seus pertences ou filmá-los na tentativa de flagrá-los fraudando? Listas negras em serviços de saúde devem ser usadas? Quando indicar tratamento involuntário? Essas e outras perguntas demandariam volumes inteiros para uma discussão aprofundada, mas muito provavelmente virão à tona em algum momento na prática clínica do psiquiatra e dos profissionais de saúde em geral.2,6

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1.

Steel RM. Factitious disorder (Munchausen´s syndrome). J R Coll Physicians Edinb. 2009;39:343-7.

2.

McCullumsmith CB, Ford CV. Simulated illness: the factitious disorders and malingering. Psychiatr Clin N Am. 2011;34:621-41.

3.

Dye MI, Rondeau D, Guido V, Mason A, O’Brien R. Identification and management of factitious disorder by proxy. Journal for Nurse Practitioners – JNP. 2013;9(7):435-42.

4.

Diagnostic and statistical manual of mental disorders. 4.ed. (text rev.). American Psychiatric Association, 2000.

5.

Diagnostic and statistical manual of mental disorders. 5.ed. American Psychiatric Association, 2013.

6.

Huffman JC, Stern TA. The diagnosis and treatment of Munchausen’s syndrome. General Hospital Psychiatry. 2003;23:358-63.

7.

Krahn LE, LI H, O’Connor MK. Patients who strive to be ill: factitious disorder with physical symptoms. Am J Psychiatry. 2003;160(6):1163-68.

8.

Ehrlich S, Pfeiffer E, Salbach H, Lenz K, Lehmkuhl U. Factitious disorder in children and adolescents: a retrospective study. Psychomatics. 2008;49(5):392-98.

9.

Sociedade Braileira de Pediatria. Guia de atuação frente a maus-tratos na infância e adolescência. Secretaria de Estado dos Direitos Humanos Ministério da Justiça, 2.ed., 2001.

Capítulo 12

TRANSTORNOS DA PERSONALIDADE Juliana Pinto Moreira dos Santos e Julieta Freitas Ramalho da Silva

INTRODUÇÃO A personalidade consiste em todas as características próprias de um indivíduo, como seus estilos cognitivos, afetivos, de interesses e no modo com que este se relaciona com o mundo e os demais indivíduos.1 Apesar de relativamente estável ao longo da vida, apresenta-se em constante desenvolvimento dinâmico. Sua formação é multifatorial, dependendo de fatores físicos, biológicos, psíquicos e socioculturais.1,2 A personalidade tem como pano de fundo o temperamento (básico e constitutivo do indivíduo), fortemente influenciado por características genéticas e hereditárias, sobre o qual se desenvolve o caráter, predominantemente influenciado por fatores psicológicos e de desenvolvimento. A personalidade seria então resultado do modo pelo qual o indivíduo equacionou, consciente e/ou inconscientemente, o seu temperamento com as exigências e expectativas internas e externas, sendo fortemente influenciada pelas relações estabelecidas nos primeiros anos de vida e pela forma com a qual tais experiências foram internalizadas pelo indivíduo.1,3 Personalidade = temperamento + caráter Vasto campo de estudo e pesquisa, a personalidade é examinada e compreendida pelas diversas linhas de pensamento sob diferentes enfoques. De um ponto de vista neurobiológico (como o modelo de personalidade de Cloninger), busca-se explicar os padrões de funcionamento e resposta aos estímulos ambientais a partir de uma compreensão neuroestrutural e biológica. De um ponto de vista psicodinâmico, iluminam-se os aspectos relacionais e inconscientes constitutivos da subjetividade humana e que estariam implicados no desenvolvimento da personalidade.1 De acordo com a concepção psicanalítica das relações objetais de Otto Kernberg, são características da personalidade: a identidade (estrutura psicológica de ordem superior responsável pelo senso de self e pela percepção dos outros significativos) e os mecanismos de defesa mais comumente utilizados pelo indivíduo (variando dos mais maduros, como humor e sublimação, aos mais imaturos, como a cisão e identificação projetiva), os quais formariam padrões de funcionamento estáveis e duradouros, organizadores da conduta, das percepções e da experiência subjetiva do indivíduo (Tabela 12.1). As personalidades, de acordo com tal linha de pensamento, também são avaliadas de acordo com o grau de rigidez com que lidam com as relações e situações e com o teste de realidade (intacto ou não, no caso de pacientes psicóticos).2,3

Tabela 12.1 Principais mecanismos de defesa. Maduros, normais

Neuróticos

Imaturos, primitivos

Supressão

Repressão

Cisão

Antecipação

Deslocamento

Identificação projetiva

Altruísmo

Projeção

Desvalorização

Humor

Formação reativa

Controle onipotente

Sublimação

Intelectualização

Negação

Adaptada de Dalgolarrondo (2008) e Clarkin et al. (2013).2,3

TRANSTORNOS DA PERSONALIDADE A American Psychiatric Association (APA), por meio do DSM-5 (2013), caracteriza os transtornos da personalidade como modos de pensar e sentir sobre si mesmo e os outros que afetam de maneira significativa e adversa o modo com o qual o indivíduo funciona em muitos aspectos da vida.4 Os transtornos da personalidade costumam se manifestar precocemente durante o desenvolvimento do indivíduo, embora possam aparecer mais tardiamente ao longo da vida (sobretudo após situações existenciais que requerem maior grau de maturidade ou flexibilidade do indivíduo). De acordo com os principais manuais diagnósticos, caracterizam-se por um alto grau de estabilidade (diferindo de situações agudas e transitórias, correspondentes a situações de ajustamento e adaptação a situações vivenciais ou ao estabelecimento de um transtorno mental agudo, como um quadro depressivo) e englobam múltiplos domínios do comportamento e do funcionamento psicológico, estando frequentemente associados a sofrimento subjetivo e ao comprometimento do desempenho social.5 De um ponto de vista psicodinâmico, sob a ótica das relações objetais de Kernberg, trata-se de padrões de personalidade que se caracterizam por um alto grau de rigidez e pela difusão da identidade (determinando uma experiência subjetiva de si e dos outros fragmentada e instável no tempo e nas diferentes situações), levando à utilização de defesas pouco adaptativas e comumente imaturas. Apesar de manterem o teste de realidade intacto, pacientes com transtornos da personalidade podem ver a realidade de maneira distorcida, principalmente em momentos de maior intensidade afetiva (Tabela 12.2).3 Tabela 12.2 Características dos transtornos da personalidade. Identidade

Pouco consolidada

Mecanismos de defesa

Defesas imaturas, primitivas, baseadas na cisão

Rigidez

Rigidez grave

Teste de realidade

Pode estar comprometido em situações de maior intensidade afetiva

Adaptada de Caligor et al. (2008) e Clarkin et al. (2013).1,3

Os transtornos da personalidade são classificados, segundo o DSM-5, em três clusters: cluster A (esquisitos ou excêntricos), cluster B (dramáticos ou impulsivos) e cluster C (ansiosos ou evitativos). A seguir, elencamos os transtornos de personalidade classificados tanto na Classificação Internacional de Doenças – CID 10 (da Organização Mundial de Saúde, 1992) como no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), divididos em seus respectivos clusters (Tabela 12.3). Tabela 12.3 Classificação dos transtornos da personalidade de acordo com a CID-10 e o DSM-5. Cluster A (esquisitos ou excêntricos)

Cluster B (dramáticos, emotivos e imprevisíveis)

Cluster C (ansiosos e medrosos)

TP paranoide (F60.0)

TP antissocial (F60.2)

TP obsessivo-compulsiva** (F60.5)

TP esquizoide (F60.1)

TP borderline (F60.3)

TP esquiva (F60.6)

TP esquizotípica (F21)*

TP histriônica (F60.4)

TP dependente (F60.7)

TP narcisista (F60.8)*** TP: transtorno de personalidade. * Classificado pela CID-10 em uma categoria específica para transtornos psicóticos. ** Também chamado de transtorno de personalidade anancástico pela CID-10. *** Categoria não existente na CID-10. Adaptado de American Psychiatric Association (2013) e World Health Organization (2015).4,5

EPIDEMIOLOGIA Dados norte-americanos indicam que os transtornos da personalidade afetam cerca de 10 a 15% da população, sendo 50% mais frequentes na população que utiliza serviços psiquiátricos (cerca de 50% dos pacientes ambulatoriais têm transtornos de personalidade como comorbidades a outros transtornos mentais anteriormente classificados como pertencentes ao eixo I do DSM-IV).6,7 Os transtornos da personalidade histriônica, borderline e dependente são mais comuns em mulheres, enquanto o transtorno da personalidade antissocial é mais comum em

homens.8 A comorbidade entre diferentes tipos de transtornos da personalidade foi documentada em diversos estudos e ocorre com relativa frequência.6

ETIOLOGIA Os transtornos da personalidade são resultantes das relações entre polimorfismos genéticos, déficits no desenvolvimento cerebral e experiências ambientais emocionais precoces adversas infantis e de adolescência.6 Fatores genéticos + biológicos + meio ambiente

DIAGNÓSTICO Uma vez abolido o sistema multiaxial utilizado no DSM-IV, os transtornos da personalidade foram incluídos no eixo único do DSM-5, em uma tentativa de extinguir uma classificação muitas vezes arbitrária entre os ditos “transtornos mentais” e as questões relacionadas com o desenvolvimento e relações intersubjetivas.4 Os dois principais manuais diagnósticos utilizados em psiquiatria (DSM-5 e CID-10) utilizam-se de critérios e categorias diagnósticas bastante semelhantes (ver Tabela 12.3). Apesar de uma tentativa da APA de desenvolver um modelo dimensional para os transtornos da personalidade, o DSM-5 acabou sendo lançado mantendo o antigo modelo categorial para tais transtornos. Mesmo com mais fácil utilização clínica e estatística, o modelo categorial tem sido alvo de críticas referentes à relativa superficialidade com a qual aborda os transtornos da personalidade e a um limite um tanto arbitrário na distinção entre patologia e normalidade.4,5 O diagnóstico é eminentemente clínico. Uma boa anamnese é essencial para um diagnóstico apurado. Deve-se investigar, além da sintomatologia atual que motiva o paciente a procurar ajuda psiquiátrica, dados sobre a sua história de vida e características do seu funcionamento no âmbito pessoal, íntimo, sociocultural e ocupacional. É importante que o médico estabeleça um contato empático com o paciente, mostrando compreender seu estado emocional e evitando agir contratransferencialmente, de maneira hostil, preconceituosa ou castigadora. Um bom contato com o paciente é essencial para o estabelecimento de uma aliança terapêutica posterior.5

QUADRO CLÍNICO CLUSTER A (ESQUISITOS E EXCÊNTRICOS) Transtorno da personalidade paranoide É um transtorno caracterizado, no âmbito interpessoal, por um estilo desconfiado, com

suspeita de intenções malevolentes (tais indivíduos costumam sentir-se explorados e maltratados, duvidam da lealdade, da fidelidade e da confiabilidade dos colegas e parceiros conjugais, interpretam situações cotidianas e interpessoais banais com significados ocultos e humilhantes, guardam rancores e reagem a suspeitas com raiva e fúria).7,9 Os relacionamentos com indivíduos com esse perfil costumam se dar sempre da mesma maneira rígida e invariável. Eles apresentam intenso estado de vigilância, são incapazes de relaxar e podem aparentar indiferença e frieza emocional. Como a maioria dos transtornos da personalidade, essas características são egossintônicas.9 Acomete cerca de 0,5 a 2,5% da população, com maior frequência em pacientes internados. A relação médico-paciente pode ser bastante dificultada pelas características desconfiadas e pela rivalidade que podem estabelecer com supostas figuras de autoridade.7,9

Transtorno da personalidade esquizoide É caracterizado por um padrão de desapego de relações sociais e familiares com pouca expressão emocional nos contextos interpessoais. Tais indivíduos costumam preferir atividades solitárias a relacionamentos íntimos (nas esferas pessoal, familiar e sexual) e raramente demonstram fortes emoções, como raiva e prazer, aparentando certa frieza emocional e indiferença a elogios ou críticas.9 Seu mundo interno, entretanto, pode diferir substancialmente da sua aparente frieza emocional, visto que costumam experimentar intensa carência afetiva e marcada sensibilidade ao ambiente externo (resultantes de uma identidade difusa e da utilização de defesas primitivas, como a cisão). Têm dificuldade em dizer quem são e sentem-se assolados por pensamentos, sentimentos, desejos e anseios altamente conflitantes, o que torna difícil o relacionamento com os outros.9 Sua prevalência é de 0,5 a 7% na população geral, sendo ainda mais frequente na população em situação de rua (cerca de 14%), de acordo com estudos epidemiológicos norte-americanos.7

Transtorno da personalidade esquizotípica As características deste transtorno são um grande desconforto e representam reduzida capacidade para as relações interpessoais. Tais indivíduos podem apresentar pensamentos com forma estereotipada e circunstancial, bem como conteúdos mágicos, bizarros ou de referência (porém não delirante), além de distorções cognitivas e perceptuais (incluindo ilusões somáticas). Seu comportamento pode parecer bizarro aos outros, sendo frequentemente chamados de excêntricos e peculiares. Costumam experimentar intensa ansiedade social, ligada mais a aspectos paranoides do que a preocupações de julgamentos negativos a seu respeito.9 O transtorno da personalidade esquizotípico é mais comum em indivíduos com familiares de primeiro grau com esquizofrenia e é considerado, por muitos autores, uma

versão silenciosa da esquizofrenia, caracterizada por teste de realidade mais ou menos intacto, dificuldades de relacionamento e leves distúrbios de pensamento. É classificado, pela CID-10, na categoria F21, dentro do setor específico para os transtornos psicóticos (F20-F29: esquizofrenia, transtornos esquizotípicos e transtornos delirantes). Estudos populacionais norte-americanos revelam uma prevalência de cerca de 3% (Tabela 12.4).7,9

CLUSTER B (DRAMÁTICOS E EMOTIVOS) Transtorno da personalidade antissocial É caracterizado pela existência de um padrão de desconsideração e violação dos direitos alheios que se inicia na infância ou no começo da adolescência e se mantém na idade adulta. Os indivíduos com tal diagnóstico apresentam impulsividade, agressividade e um autoconceito inflado e arrogante. Têm, caracteristicamente, pouco remorso a respeito de suas condutas, o que se manifesta por indiferença ou racionalização relativas a prejuízos que possam ter causado a outros.7,9 Tabela 12.4 Principais características dos transtornos da personalidade pertencentes ao cluster A. Características

Padrão de relacionamento interpessoal

Pensamento

Transtorno de

Transtorno de

Transtorno de

personalidade paranoide

personalidade esquizoide

personalidade esquizotípica

Relacionamento interpessoal rígido, invariável, guardam rancor

Aparente desapego de relações sociais e familiares. Costumam preferir atividades solitárias a relacionamentos íntimos

capacidade para as relações interpessoais

Mundo interno assolado por Pensamento desconfiado,

Pensamentos com curso

pensamentos, sentimentos,

suspeitoso de intenções

estereotipado e circunstancial

desejos e anseios altamente

malevolentes e humilhantes,

e conteúdos mágicos, bizarros

conflitantes, demonstrando

porém não chegam a ser

ou de referência (porém não

uma importante cisão do self

delirantes), além de distorções

Apresentam uma identidade

cognitivas e perceptuais

difusa e fragmentada

(incluindo ilusões somáticas)

Isolamento social, pouco

Seu comportamento pode

Constante estado de vigilância e

interesse por relações sexuais e

parecer bizarro aos outros,

reagem com raiva e agressão

íntimas. Vistos como tímidos e

sendo frequentemente

quando se sentem ameaçados

distantes

chamados de excêntricos e

delirantes, mantendo intacto o teste de realidade

Comportamento

Grande desconforto e reduzida

peculiares

Raramente demonstram fortes

Afetividade

Aparente frieza emocional e

emoções como raiva e prazer,

indiferença. Podem apresentar

aparentando certa frieza

rompantes agressivos quando

emocional e indiferença, o que

se sentem injustiçados ou

contrasta com uma vivência

humilhados

afetiva interior de intensa sensibilidade e fragilidade

Teste de realidade

Costumam experimentar intensa ansiedade social, ligada mais a aspectos paranoides do que a preocupações de julgamentos negativos a seu respeito

Intacto, mas podem apresentar

Intacto, mas podem apresentar

Intacto, mas pode apresentar

distorções

distorções

distorções

Obs.: Não são decorrentes de efeitos fisiológicos diretos de uma condição médica geral. Não ocorrem exclusivamente durante o curso de esquizofrenia, transtorno de humor com características psicóticas ou outros transtornos psicóticos ou transtorno global do desenvolvimento.

Estudos revelam prevalência de cerca de 1% da população geral; entretanto, tais indivíduos não costumam procurar serviços de saúde mental especificamente por conta de suas condutas antissociais, podendo chegar à psiquiatria levados por familiares, por decisão judicial ou procurar atendimento espontâneo por comorbidades como transtornos de humor e uso de substâncias.7,9

Transtorno da personalidade borderline O termo borderline foi criado para designar indivíduos que se encontrariam em um estado intermediário entre a neurose e a psicose. Apesar de não serem portadores de transtornos psicóticos (mantêm teste de realidade relativamente intacto na maior parte do tempo e costumam preservar áreas saudáveis de funcionamento social e funcional), utilizam-se de defesas primitivas como cisão e identificação projetiva, podendo apresentar alteração no teste de realidade (caracterizada principalmente por episódios dissociativos, de despersonalização e ideações paranoides) principalmente quando em situações de intensa carga afetiva.9 Ao contrário dos transtornos da personalidade constituintes do cluster A, os pacientes com transtorno da personalidade bordeline apresentam relações interpessoais intensas e conturbadas, com alto grau de instabilidade e demanda de atenção exclusiva e intensiva, podendo reagir de maneira impulsiva, agressiva e manipulatória, quando não totalmente atendidos, em um esforço por evitar abandonos reais ou imaginários.1,7,9 Apresentam identidade frágil e dependente da resposta do outro para constituir-se, com consequente autoimagem instável. Muitas vezes apresentam comportamentos automutilatórios e ideação suicida com recorrentes tentativas de suicídio associadas a sentimentos de angústia, vazio e desamparo. Tem sido um dos grupos mais estudados na literatura e possui prevalência de aproximadamente 1,6% da população geral e de cerca de 20% dos pacientes internados em instituições psiquiátricas.7,9

Transtorno da personalidade histriônica Os indivíduos com este transtorno apresentam um padrão global de excessiva emotividade e busca de atenção, porém com característica superficial e afetada (seu discurso, apesar de teatral e intenso, costuma ser carente em detalhes e impressões).9 No plano interpessoal, costumam envolver-se rapidamente em relacionamentos e a considerá-los mais íntimos do que realmente o são. Seu comportamento com os outros pode ganhar ares de exagero e inadequação, com intensa sedução, que logo se esvazia pela constante exigência de ser o centro das atenções.9 Tais indivíduos apresentam padrão de resposta ao ambiente caracterizada por sugestionabilidade (moldando-se, inconscientemente, às expectativas alheias) e hipermodulação dos afetos frente às circunstâncias.9 Sua prevalência varia de 1 a 3% da população e de 10 a 15% da população ambulatorial.7

Transtorno da personalidade narcisista O transtorno da personalidade narcisista caracteriza indivíduos que se apresentam com uma formação defensiva caracterizada por grandiosidade, necessidade de admiração e dificuldade de empatizar com os outros.9 Creem serem especiais e únicos e fantasiam serem exageradamente poderosos, belos, inteligentes e amados. Procuram, então, associar-se apenas a pessoas de elevada importância (tanto no plano profissional quanto no pessoal e íntimo).9 No plano interpessoal, tais indivíduos tendem a exigir serem reconhecidos e admirados de modo superior às próprias realizações e a utilizar-se dos outros para obter vantagens pessoais, sem se darem conta (ou não se importando) com os desejos alheios. Costumam sentir inveja das realizações alheias e projetar tal sentimento nos outros, frequentemente acreditando serem alvo de inveja. Seu comportamento costuma ser visto como arrogante, presunçoso e insolente, o que afasta as pessoas de um convívio íntimo.9 De um ponto de vista psicodinâmico, tais pacientes utilizam-se de defesas primitivas contra um sentimento de desamparo e impotência. Alguns autores os consideram semelhantes aos pacientes borderlines, no que tange aos mecanismos de defesa e vivências internas.9 Estudos populacionais revelam prevalência de 1% da população geral, mas pode chegar a 16% na população ambulatorial psiquiátrica (Tabela 12.5).7

CLUSTER C (ANSIOSOS E EVITATIVOS) Transtorno da personalidade obsessivo-compulsiva A principal característica que diferencia o transtorno da personalidade obsessivocompulsiva (TPOC) do transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) é o caráter egossintônico do primeiro. Enquanto pacientes com TOC atormentam-se com o caráter intrusivo de seus

pensamentos e querem se livrar deles, os pacientes com TPOC costumam considerar seus comportamentos adequados e adaptativos.7,9 Tais pacientes apresentam um funcionamento caracterizado por um padrão de preocupação com ordem, perfeccionismo, controle mental e interpessoal, às custas de flexibilidade, abertura e eficiência.9 Os indivíduos com esse transtorno são excessivamente cuidadosos, propensos à repetição e presos a detalhes, com tendência à acumulação e à procrastinação. Têm dificuldade em delegar tarefas e trabalhar em grupo e costumam preocupar-se excessivamente com questões relativas à moralidade e aos escrúpulos.7,9 Costumam ser excessivamente devotados ao trabalho e à produtividade em detrimento de atividades de lazer e são frequentemente tidos como “pães-duros”, por causa da tendência a evitar gastos financeiros e adotar um estilo de vida miserável, reservando o dinheiro para eventuais catástrofes futuras.9 Tabela 12.5 Principais características dos transtornos da personalidade pertencentes ao cluster B. Características

Padrão de relacionamento interpessoal

Transtorno de

Transtorno de

Transtorno de

Transtorno de

personalidade

personalidade

personalidade

personalidade

antissocial

borderline

histriônica

narcisista

Relações intensas e

Intensa exigência em ser

Tendem a exigir

Padrão de

conturbadas

o centro das atenções.

reconhecimento e

desconsideração e

Alto grau de

Costumam envolver-se

admiração de modo

violação dos direitos

instabilidade e

rapidamente em

superior às próprias

alheios, com pouco ou

demandas de atenção

relacionamentos e a

realizações. Podem

nenhum remorso ou

exclusiva. Esforçam-se

considerá-los mais

utilizar-se dos outros

sentimento de culpa

por evitar abandonos

íntimos do que

para obter vantagens

reais ou imaginários

realmente o são

pessoais

Padrão de pensamento do tipo “tudo ou nada”, caracterizado por Autoconceito inflado e arrogante Utilizam-se de Pensamento

indiferença ou racionalização para condutas relativas a

intensa cisão

Intensos, dramáticos, porém superficiais

Possuem identidade

Fornecem poucos

frágil e dependente da

detalhes de suas

resposta do outro.

vivências e não se

Podem apresentar

aprofundam nos

distorções de

sentimentos e emoções

Creem serem especiais e únicos e fantasiam serem exageradamente poderosos, belos,

prejuízos que possam

autoimagem, episódios

ter causado a outros

paranoides e dissociativos em

que relatam

inteligentes e amados

São sugestionáveis

situações de maior intensidade afetiva

Agem para o próprio

Comportamento

benefício,

Reações impulsivas,

desconsiderando as

agressivas e

Costumam ser vistos

necessidades e

manipulatórias quando

como arrogantes e

consequências de seus

não atendidos em sua

presunçosos. Procuram

atos para os outros

demanda.

Costumam ter um

Seu comportamento

associar-se apenas a

pode ganhar ares de

pessoas que consideram

exagero e inadequação

de elevada importância

padrão de

Podem apresentar

comportamento

comportamentos

(tanto no plano

impulsivo e podem

automutilatórios,

profissional quanto no

utilizar-se de

ideações e tentativas

pessoal e íntimo)

agressividade quando

de suicídio frequentes

contrariados Sentimentos de

Costumam ser vistos Afetividade

como frios e calculistas Desconsideram sentimentos alheios

angústia, vazio e

Hipermodulação afetiva

Costumam sentir inveja

desamparo frequentes,

frente às respostas do

das realizações alheias

motivando tentativas

ambiente. Podem

e a projetar tal

desesperadas de

apresentar episódios

sentimento nos outros,

impedir o abandono

dissociativos em

frequentemente

(real ou imaginário) e

situações de intensa

acreditando serem alvo

atuações auto ou

carga afetiva

de inveja

Em geral, intacto

Em geral, intacto

heteroagressivas Podem apresentar alterações transitórias, Teste de realidade

Intacto

principalmente em situações de intensa carga afetiva

Apesar de serem extremamente produtivos e responsáveis, tais pacientes costumam

procurar tratamento estimulados por pessoas próximas, em virtude das dificuldades de convívio desencadeadas pela intensa rigidez e teimosia.9 O TPOC tem prevalência de cerca de 2,4% na população geral e parece ser duas vezes mais comum em homens.7

Transtorno da personalidade dependente O ser humano é um ser dependente das relações interpessoais por princípio. Vive em sociedade e depende por muitos anos de seus pais ou cuidadores para, então, adquirir algum grau de autonomia. Mesmo assim, sempre está, de algum modo, na dependência dos outros.9 A categoria do transtorno da personalidade dependente engloba indivíduos que apresentam uma dependência tão extrema que chega a ser patológica. Tais indivíduos costumam sentir-se desamparados quando sozinhos, relatando temores irrealistas de abandono e incapacidade de autocuidado. Desta maneira, costumam buscar relacionamentos que lhes ofereçam cuidado, carinho e amparo, colocando-se de modo passivo e submisso frente ao outro. Sua prevalência é de cerca de 0,6% da população geral.7,9 Tais pacientes costumam pedir por reasseguramentos constantes e têm dificuldade em tomar decisões e realizar projetos cotidianos de maneira autônoma, solicitando que os outros assumam responsabilidade pelas principais áreas de sua vida.9 Muitos dos pacientes com tal diagnóstico preenchem também critérios para outros transtornos da personalidade. Embora cerca de 50% dos pacientes com transtorno de personalidade dependente também recebam o diagnóstico de transtorno de personalidade borderline, a principal diferença entre os dois transtornos está no modo como eles lidam com o abandono: os pacientes borderlines reagem com raiva e manipulação, enquanto os dependentes tornam-se submissos e apegados.9

Transtorno da personalidade esquiva ou evitativa Esta categoria diagnóstica foi criada para caracterizar um grupo de indivíduos socialmente retraídos, distinto dos pacientes esquizoides principalmente porque anseiam por relacionamentos interpessoais, mas os temem em decorrência da baixa autoestima e do receio de crítica e rejeição. Cerca de 5,2% da população geral atende aos critérios para transtorno de personalidade esquiva, sendo sua prevalência ainda mais comum em pacientes com fobia social.7,9 São indivíduos inibidos socialmente, hipersensíveis a avaliações negativas e atormentados por sentimentos de inadequação social e medos de serem ridicularizados ou de se encontrarem em situações vergonhosas. Costumam evitar, então, contatos interpessoais íntimos, mostrando-se reservados e envolvendo-se apenas quando têm a certeza da estima do outro. Evitam situações sociais em que se sentem de alguma maneira expostos e tendem a ser reticentes em assumir riscos pessoais ou envolver-se em novas atividades.9

Existe uma considerável controvérsia com respeito à diferença entre fobia social e o transtorno de personalidade esquiva. Diversos estudos demonstram pouca evidência de diferenças qualitativas entre os dois transtornos, que mais parecem fazer parte de um continuum de gravidade e impacto funcional do que caracterizam transtornos diferentes (Tabela 12.6).9

TRATAMENTO De maneira geral, a principal indicação terapêutica para os transtornos da personalidade é a psicoterapia, acompanhada de medicação e outras intervenções se necessário.1,3,6,8,9 O melhor tratamento é sempre a alternativa menos intensiva que funcione. Dentro do possível, é importante que se incentive o paciente a contar com seus próprios recursos e evitar um comportamento regressivo.1,3 No contexto de atendimentos de emergência, no pronto-socorro, deve-se levar em conta o risco de auto/heteroagressividade ou suicídio e a presença ou não de continência sociofamiliar. Muitas vezes, acolher o sofrimento do paciente no momento do atendimento ou em períodos de observação curtos no pronto-socorro é suficiente para a estabilização do quadro e posterior encaminhamento para atendimento ambulatorial. Em outros casos, a internação pode ser necessária.10 O setting ideal para o tratamento desses pacientes varia de acordo com o momento em que eles se encontram. Pacientes mais regredidos, pouco aderentes ao tratamento ambulatorial e apresentando risco persistente de suicídio e atos autodestrutivos ou comorbidades graves (como transtornos alimentares e transtornos do humor) podem necessitar de acompanhamento mais intensivo em hospital-dia, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e breves internações psiquiátricas (Tabela 12.7).3,9,10 O contato entre os diversos profissionais que trabalham com o paciente é essencial para evitar triangulações e atuações contratransferenciais resultantes das cisões e projeções dos pacientes mais regredidos. É comum, em pacientes que se utilizam de defesas mais primitivas, que, em dados momentos, um dos membros da equipe (o psiquiatra ou o terapeuta) seja idealizado, enquanto o outro seja alvo de projeções negativas. O contato entre os membros permite que tais cisões não sejam atuadas por eles durante o tratamento.3,9 Atenção importante deve ser dada à contratransferência no tratamento de pacientes com transtornos graves da personalidade. O psiquiatra e o terapeuta devem ter em mente que muito do que sentem no contato com o paciente é resultado de identificações projetivas maciças do paciente e, na verdade, revelam o seu mundo interno, como ele se sente. Um psiquiatra que se sente enraivecido e irritado pelas demandas excessivas e pela maneira como um paciente borderline se relaciona nos atendimentos pode perceber que se sente, na verdade, como o próprio paciente está se sentindo naquele momento: enraivecido e desamparado. Ao se dar conta disso, o clínico pode evitar agir de modo repressivo ou negligente e mostrar-se empático aos sentimentos do paciente, ainda que não possa atender a todas as suas demandas.3,9

Tabela 12.6 Principais características dos transtornos da personalidade pertencentes ao cluster C. Transtorno de Características

personalidade obsessivocompulsiva

Transtorno de

Transtorno de

personalidade dependente

personalidade esquiva

Desejam contato interpessoal, mas o temem por receio de Extremamente rígidos e teimosos consigo mesmos e Padrão de relacionamento

com os outros Apresentam

interpessoal

dificuldade em aceitar outros pontos de vista que não os próprios e dividir tarefas

Buscam relacionamentos que

sentirem-se humilhados e

lhes ofereçam cuidado, carinho

expostos

e amparo, colocando-se de

Costumam evitar, então,

forma passiva e submissa

contatos íntimos, mostrando-

frente ao outro

se reservados e envolvendo-se apenas quando têm a certeza da estima do outro

Preocupação com ordem,

Pensamento

Tais indivíduos veem-se

perfeccionismo, controle

Costumam sentir-se

atormentados por

mental, com característica

desamparados quando

pensamentos de inadequação

predominantemente

sozinhos, relatando temores

social e medos de serem

egossintônica

irrealistas de abandono e

ridicularizados ou

Tendem a ser detalhistas,

incapacidade de autocuidado

encontrarem-se em situações vergonhosas

escrupulosos e procrastinadores

Comportamento

Costumam pedir por Costumam ser excessivamente

São indivíduos inibidos

reasseguramentos constantes

devotados ao trabalho e à

socialmente

e têm dificuldade em tomar

produtividade em detrimento

decisões e realizar projetos

Evitam situações sociais em que

de atividades de lazer

cotidianos de forma autônoma,

se sentem de alguma forma

Tidos como “pães-duros”,

solicitando que os outros

expostos e tendem a ser

guardam o dinheiro para

assumam responsabilidade

reticentes em assumir riscos

eventuais catástrofes futuras

pelas principais áreas de sua

pessoais ou envolver-se em

vida

novas atividades São hipersensíveis à críticas,

Tendem à racionalização e ao

Relatam sentimentos de solidão

isolamento de afetos que

e desamparo, com intensa

amedrontando-se no contato

Afetividade

consideram inadequados, como

ansiedade quando se veem

interpessoal por temerem

raiva, inveja e rancor

sozinhos

sentirem-se humilhados e envergonhados

Teste de realidade

Intacto

Em geral, intacto

Em geral, intacto

Tabela 12.7 Setting terapêutico de acordo com a gravidade do quadro. Ambulatorial

CAPS, hospital-dia

Internação psiquiátrica

Pacientes com pouco suporte social e pouca

Pouca continência sociofamiliar e/ou

autonomia no cotidiano e/ou episódios psicóticos com risco de Muitas atuações, tentativas de suicídio, Sempre que possível

auto/heteroagressividade e/ou

hetroagressividade e automutilações e/ou quadros dissociativos graves e duradouros e/ou Comorbidades psiquiátricas que necessitem de um manejo mais intensivo, mas que dispensam

tentativas de suicídio graves ou ideações

internação psiquiátrica integral (transtorno de

suicidas estruturas e com alto grau de

humor, transtornos alimentares) etc.

letalidade

Adaptada de Clarkin et al. (2013) e Noto et al. (2014).3,8

O tratamento farmacológico geralmente envolve o manejo dos sintomas predominantes e mais incapacitantes de cada paciente. Estudos atuais carecem de metodologia abrangente e confiável para generalização (em vista da complexidade desses transtornos e a grande gama de comorbidades) e não demonstram evidência significativa para a utilização de nenhuma classe farmacológica específica,11 exceto pela pequena superioridade no uso de antipsicóticos atípicos e estabilizadores do humor no manejo da raiva em pacientes borderlines.11 As medicações destinam-se, portanto, mais a sintomas específicos do que a transtornos específicos: inibidores seletivos da recaptação de serotonina para sintomas de humor, impulsividade e automutilação; neurolépticos para desorganização cognitiva, sintomas psicóticos-like e impulsividade; anticonvulsivantes para desregulação afetiva e impulsividade; benzodiazepínicos para quadros ansiosos agudos.9-11 Deve-se levar em conta, na prescrição das medicações, o potencial de abuso e o risco de possíveis intoxicações exógenas, devendo-se calcular os riscos-benefícios em cada caso particular.9-11 Entre as abordagens psicoterápicas para transtornos graves da personalidade, em especial o transtorno de personalidade borderline (para o qual existem mais estudos), destacam-se três com maior evidência de eficácia: a psicoterapia focada na transferência, a psicoterapia baseada na mentalização (ambas de base psicodinâmica) e a terapia dialético-comportamental (adaptação da terapia comportamental específica para o

transtorno de personalidade borderline).1,3,9,10 Apesar dos diferentes enfoques teóricos e técnicos de cada tipo de psicoterapia para os transtornos da personalidade, estas visam, em geral, a uma mudança psíquica que possibilite a diminuição das atuações e uma maior capacidade de refletir, pensar e vivenciar as relações interpessoais. Estudos demonstram que o tratamento psicoterápico é de longo prazo. Enquanto os sintomas externalizantes como a automutilação, agressividade e tentativas de suicídio costumam apresentar melhoras logo nos primeiros meses de tratamento, as questões psíquicas e representativas relativas à fragilidade da identidade e aos sentimentos de vazio e desamparo necessitam de maior tempo de tratamento para serem manejadas, em geral, anos.3,9,10

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1.

Caligor E, Kernberg O, Clarkin J. Psicoterapia dinâmica das patologias leves da personalidade. Porto Alegre: Artmed, 2008.

2.

Dalgalarrondo, P. A personalidade e seus transtornos. In: Dalgalarrondo, P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 2.ed. Porto Alegre: Editora Artmed, 2008.

3.

Clarkin J, Fonagy P, Gabbard G. Psicoterapia psicodinâmica para transtornos da personalidade, Porto Alegre: Artmed, 2013.

4.

American Psychiatric Association. Personality disorders fact sheet. 2013. Comunication about DSM V, Disponível em: http://www.dsm5.org/Documents/Personality%20Disorders%20Fact%20Sheet.pdf

5.

World Health Organization. International Statistical Classification of Disease and Related Health Problems, 10th revision (ICD-10); 2015. Disponível em: http://www.datasus.gov.br/cid10/V2008/cid10.htm

6.

Andearsen, N. Transtornos da personalidade. In: Andearsen N, Black D. Introdução à Psiquiatria. 4.ed. São Paulo: Artmed, 2009.

7.

Angstman KB, Rasmussen NH. Personality disorders: review and clinical application in daily practice. American Family Physician, 2011; 84(11):1253-60.

8.

Noto, MN, Grassi-Oliveira. Transtornos da personalidade. In: Quevedo J, Carvalho A. Emergências psiquiátricas. 3.ed. Porto Alegre: Artmed, 2014.

9.

Gabbard, G. Psiquiatria psicodinâmica na prática clínica. 4.ed. Porto Alegre: Artmed, 2006.

10. Zanarini MC. Psychotherapy of borderline personality disorder. Acta Psychiatr Scand. 2009;120(5):373-7. 11. Lieb K, Völlm B, Rücker G, Timmer A, Stoffers J. Pharmacotherapy for borderline personality disorder: Cochrane systematic review of randomised trials. BJP. 2010;

196:4-12.

Capítulo 13

TRANSTORNOS ALIMENTARES Felipe Paraventi e Angélica de Medeiros Claudino

INTRODUÇÃO Os transtornos alimentares (TA) são compreendidos como: “distúrbios dos hábitos alimentares ou dos comportamentos voltados ao controle de peso que resultam em um importante prejuízo da saúde física e/ou do funcionamento psicossocial do indivíduo”. Essas condições são potencialmente graves e persistentes, incluindo o transtorno de maior mortalidade entre todas as doenças psiquiátricas, a anorexia nervosa. Uma série de mudanças nos sistemas classificatórios vem ocorrendo, já percebidas com a recente publicação do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5).1 A categorização dos TA é um campo de extensa discussão, sendo visto que, frequentemente, aspectos psicopatológicos e síndromes comportamentais são comuns em entidades nosológicas diversas; também a migração de categoria diagnóstica ao longo do curso da doença não é rara, e a proporção dos transtornos alimentares não especificados (TANE) é bastante elevada (considerando-se a 4a edição do DSM). Alguns modelos sugerem que os TA são distúrbios que compartilham as mesmas alterações psicopatológicas e que as manifestações sindrômicas mudam com o tempo para cada paciente em um espectro de sintomas. Pelas classificações atuais podem ser divididos os TA, conforme a Figura 13.1. Em vista da importância na prática clínica, este capítulo aborda a anorexia nervosa (AN), a bulimia nervosa (BN) e o transtorno da compulsão alimentar (TCA).

Figura 13.1 Classificação dos transtornos alimentares. Outros especificados (AN atípica,

BN/TCA de baixa frequência ou duração limitada, transtorno purgativo e síndrome do comer noturno). AN = anorexia nervosa; BN = bulimia nervosa; TCA = transtorno da compulsão alimentar; ARFID = transtorno da evitação/restrição da ingestão alimentar; PICA = transtorno alimentar infantil.

EPIDEMIOLOGIA Os TA têm baixa prevalência; considerando-se mulheres jovens, as médias estimadas são de 0,3% para AN e 1% para BN, sendo os quadros parciais consideravelmente mais frequentes. A idade de início da AN/BN é na faixa dos 10 a 19 anos, sendo as mulheres mais acometidas que homens em uma proporção de 10:1. Diversas ocupações e esportes são descritos como de risco para esses transtornos: modelos, ginastas, atrizes, patinadoras, maratonistas, profissionais da área de saúde. O abuso físico também parece aumentar o risco de TA, especialmente BN, enquanto o abuso sexual traz dados menos consistentes. Estudos recentes contestam a imagem estereotipada dos TA como doenças de mulheres brancas, ricas, de elevado nível econômico e educacional – são fracas as evidências da relação dos TA com grupo étnico, classe social, escolaridade ou urbanicidade. O TCA tem características diferentes, apesar de pouca evidência na literatura; estimase uma prevalência de 1 a 5% na população geral, alcançando até 15% nos obesos. O transtorno acomete indivíduos mais velhos, entre 30 e 50 anos, sendo sua distribuição mais igualitária entre os gêneros.

ETIOLOGIA A etiologia multifatorial para os TA é bem estabelecida, sendo especialmente impactantes as influências socioculturais. O modelo multidimensional tem por base a interação de fatores biopsicossociais, os quais interagem entre si, levando um indivíduo vulnerável ao adoecimento em certo momento da vida. Esses fatores têm sido compreendidos conforme sua atuação no curso da doença, sendo considerados predisponentes, precipitantes ou mantenedores.

ANOREXIA NERVOSA CONSIDERAÇÕES GERAIS O termo anorexia é derivado do grego an (falta) e orexis (apetite), sendo uma associação imprópria, já que as pacientes apresentam na realidade um grande controle do apetite; a inapetência surge apenas em estágios avançados, quando a desnutrição se estabelece. É uma síndrome caracterizada por baixo peso com comportamentos voltados à manutenção deste; distorção da imagem corporal; medo intenso de engordar, sendo este o elemento psicopatológico central; além de alterações endócrinas que levam à amenorreia

classicamente associada ao quadro. Em 1874, William Gull utilizou pela primeira vez o termo anorexia nervosa e descreveu os elementos nucleares do transtorno, usados até os dias de hoje. Em termos práticos, com as atuais mudanças classificatórias, a amenorreia deixa de ser um critério essencial para o diagnóstico da AN.

QUADRO CLÍNICO Apesar da heterogeneidade do transtorno, a apresentação clássica da AN é a mulher jovem, levada a contragosto à consulta clínica por familiares, bastante preocupados com a sua perda de peso e restrição dietética extrema nos últimos meses. Esses pacientes mostram grande preocupação com o peso e a forma corporal, empreendendo uma inexorável busca pela magreza; para tal, podem envolver-se também em métodos purgativos e atividades físicas excessivas. Geralmente apresentam algum grau de distorção da imagem corporal, acreditando que estão obesas ou que uma parte específica do corpo está muito grande; em outros casos, a motivação para a dieta pode ser manifestada como uma queixa somática, por exemplo, dor ou desconforto abdominal. Nem sempre a justificativa é clara, mas, com o acompanhamento, a preocupação com o ganho de peso ou a obsessão por uma dieta saudável comumente aparece. Frequentemente são pessoas com alto grau de rigidez, perfeccionismo e introspecção; a autoestima baixa pode reforçar comportamentos alimentares, uma vez que a perda de peso é vivida como uma conquista, e não como um problema. Podem ter especial interesse em culinária, apesar de evitarem comer em público. Até metade dos indivíduos descreve episódios de compulsão alimentar, o que dispara comportamentos compensatórios. Alguns chegam a ter medo de que calorias possam ser ganhas em situações diárias, como escovar dentes e passar batom, hidratante ou protetor solar. Sinais de inanição representam a maior parte dos achados físicos, bem como alterações laboratoriais, exemplificadas na Figura 13.2.

Figura 13.2 Principais achados clínicos e laboratoriais na AN. K: potássio; Mg: magnésio; P: fósforo; Cl: cloro; Zn: zinco; T3: tri-iodotironina; T4: tiroxina; TSH: hormônio estimulante da tireoide.

CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS Os critérios diagnósticos (DSM-5) são sintetizados da seguinte maneira:1 A. Restrição da ingesta calórica que leva a baixo peso corporal* B. Medo intenso de engordar ou presença de comportamentos que impeçam o ganho de peso a despeito do baixo peso C. Distorção do modo como vivencia seu peso ou forma corporal, influência inapropriada do peso ou forma do corpo sobre sua autoavaliação ou negação da gravidade do peso atual. Especificadores: • Tipo restritivo: apenas jejum, dieta e exercícios excessivos nos últimos 3 meses • Tipo bulímico/purgativo: nos últimos 3 meses apresentou comportamentos bulímicos ou purgativos (p. ex., laxantes, enemas, vômitos ou diuréticos). Gravidade:** • Leve: IMC $ 17 kg/m2 • Moderada: IMC 16 – 16,99 kg/m2 • Grave: IMC 15 – 15,99 kg/m2 • Extrema: IMC < 15 kg/m2.

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL

Quadros sugestivos de AN devem ser distinguidos principalmente de BN (tecnicamente por critério ponderal), outros transtornos psiquiátricos (transtorno do humor, transtorno obsessivo-compulsivo, fobias, transtorno dismórfico corporal), abuso de substâncias, iatrogenia medicamentosa e doenças orgânicas (p. ex., doença inflamatória intestinal, pancreatite, hipertireoidismo, doenças infecciosas, diabetes melito, insulinoma, tumores cerebrais hipotalâmicos, neoplasias e síndrome da artéria mesentérica superior).

COMORBIDADES As comorbidades são mais regra do que exceção na AN: transtornos de ansiedade e de personalidade estão presentes em cerca de metade dos pacientes, transtornos depressivos em aproximadamente dois terços deles e abuso/dependência de substâncias em torno de um terço.

TRATAMENTO O manejo da AN demanda um grande empenho do paciente, de seus cuidadores e também da equipe profissional. Grande parte do sucesso do tratamento depende do estabelecimento de um bom vínculo com o doente, facilitando sua colaboração. A meta principal na fase aguda é a recuperação do peso saudável. Sugere-se que esse manejo seja feito por equipe multiprofissional, compreendendo psiquiatra, psicoterapeuta, nutricionista/nutrólogo, terapeuta ocupacional, assistente social, educador físico, enfermeiro e clínico geral, conforme a demanda de cada caso e dos recursos disponíveis. A escolha do setting terapêutico é outro fator fundamental a ser considerado. A maioria dos casos pode ser efetivamente tratada ambulatorialmente, somente considerando-se os regimes semi-intensivo ou intensivo dentro de situações específicas, como as exemplificadas no Quadro 13.1. Quadro 13.1 Indicações de internação para pacientes com anorexia nervosa. IMC < 14 ou rápida perda ponderal (> 1kg/sem.)

Necessidade de separação do ambiente familiar ou social (raro)

Resistência ao tratamento

Complicações clínicas graves

Falha do tratamento extra-hospitalar

Risco de suicídio ou autoagressão

Ausência de suporte familiar ou social IMC: índice de massa corporal.

A terapia nutricional, apesar de ser ponto-chave do tratamento, não deve ser realizada como estratégia única. Em média, estima-se um ganho de 0,5 kg/semana em pacientes ambulatoriais e 0,5 a 1 kg/semana nas internações, o que requer 3.500 a 7.000 kcal extras por semana. O uso de nutrição parenteral não é recomendado, exceto se houver grave disfunção gastrintestinal. Durante a recuperação inicial de peso em pacientes gravemente

desnutridos, alerta-se para o risco da síndrome de realimentação. Tecnicamente, não existem evidências de superioridade entre as abordagens psicoterápicas individuais [terapia cognitivo-comportamental (TCC), terapia interpessoal (TIP) ou psicodinâmicas] e o tratamento em geral tem longa duração. No caso de crianças e adolescentes, a terapia familiar tem se mostrado a intervenção com evidências de maior eficácia a curto e longo prazo. Até o momento, não existe evidência para uso de nenhuma medicação específica para a AN. Os psicofármacos não devem ser usados como tratamento principal ou exclusivo, além disso, grande parte dos casos não necessita de medicação. Na fase aguda, podem ser utilizados para redução de sintomas específicos [p. ex., antipsicóticos para a distorção de imagem corporal; inibidores seletivos da receptação de serotonina (ISRS) para compulsões/ideias obsessivas; e benzodiazepínicos para a ansiedade antes da refeição] ou comorbidades psiquiátricas – com a observação de que frequentemente esses sintomas melhoram com a recuperação do peso. Atenção também deve ser dada à escolha do psicofármaco em virtude de efeitos colaterais e riscos clínicos nesses pacientes.

CURSO E PROGNÓSTICO A AN tem evolução prolongada com flutuações frequentes entre remissões parciais e recaídas; tende à cronicidade, sendo a demora do início do tratamento o maior preditor de prognóstico ruim (Quadro 13.2). Estima-se que, a longo prazo, 45% dos pacientes tenham recuperação total, 20% permaneçam gravemente doentes e 30% tenham remissão parcial (p. ex., mantendo hábitos alimentares inadequados). A mortalidade encontra-se por volta de 5%, sendo metade por conta das complicações da inanição e grande parte da outra metade por suicídio. Quadro 13.2 Fatores relacionados com pior prognóstico na AN. Tempo de doença prévio ao tratamento

IMC inicial < 14 kg/m2

Presença de compulsão-purgação

Sexo masculino

Aparecimento tardio dos sintomas

Ansiedade ao comer em público

Transtorno de personalidade comórbido

Traços cluster C na infância

Relacionamento familiar complicado IMC: índice de massa corporal.

BULIMIA NERVOSA CONSIDERAÇÕES GERAIS

O termo grego bulimia significa “fome de boi” e conota um estado patológico de voracidade. O episódio em si não ocorre apenas como um meio exagerado de saciar a fome, mas também como um reflexo de estados emocionais ou situações de estresse. Os binges são definidos como episódios de ingestão alimentar excessiva, acompanhados de sensação de perda do controle; muitas vezes, são secretos e rápidos, e cessam apenas por mal-estar físico, chegada de outras pessoas ou quando a comida acaba. Discute-se atualmente a inclusão de binges subjetivos nos critérios diagnósticos. Inicialmente foi descrito como uma “variação ou evolução estranha da AN”, entretanto, hoje há evidência de que a BN sem antecedente de AN é muito mais comum do que se pensava e vem aumentando em incidência.

QUADRO CLÍNICO Geralmente inicia-se com uma dieta para reduzir peso, decorrente da insatisfação com o corpo e baixa autoestima. Para essas pessoas, a aparência física é o cerne de sua autoavaliação; muitas sentem que só serão aceitas socialmente se atingirem os padrões desejados pela sociedade. Apesar disso, a grande maioria costuma tolerar faixas ponderais superiores às de anoréticas, mantendo-se com peso normal, no seu limiar inferior e até superior. A fome e a tensão emocional (frustrações, rejeições, angústia, solidão etc.) costumam ser os gatilhos para um episódio bulímico, levando a um grande desespero em virtude do medo que têm de engordar. Os repetidos binges são clinicamente marcantes neste transtorno, e chega-se a ingerir mais de 3.000 kcal em um único episódio; os alimentos são na maioria das vezes carboidratos e gorduras (evitados em sua dieta regular). Este descontrole leva a evitar o ganho de peso por meio de comportamentos compensatórios, como jejum, restrição alimentar e exercício excessivo. Com o passar do tempo, descobrem – pelos amigos, revistas, sites, filmes etc. – que purgar, por meio de vômitos (85% casos), laxantes, diuréticos ou enemas, pode ser uma solução mais fácil para o controle do peso, tornando-se escravas de um duradouro ciclo de bulimia-purgação. A culpa e a vergonha por essa prática são bastante comuns. Os episódios muitas vezes são planejados para serem realizados sem interrupções; também é comum que evitem situações de exposição à comida, por exemplo, comer em público, nas quais controlar a alimentação seja difícil, trazendo grande impacto aos relacionamentos pessoal e social. Costumam conseguir ocultar seus sintomas por anos, principalmente por manterem um peso próximo ao normal. Comumente só reconhecem que necessitam de ajuda após 2 a 5 anos da abertura do quadro e, ao contrário das pacientes com anorexia, podem chegar espontaneamente ao tratamento (Quadro 13.3). Além da baixa autoestima, são frequentes as dificuldades de adaptação interpessoal (com alta sensibilidade frente a impressões dos outros e maior necessidade de aprovação), os pensamentos dicotômicos (“tudo ou nada”) e os distúrbios de controle de impulsos (abuso de substância, automutilação, furto e promiscuidade). Quadro 13.3 Complicações clínicas mais frequentes na BN.

Hipotensão ortostática, arritmias e miocardiopatias

Constipação, esofagite, gastrite, sangramento gastrintestinal

Hipocalemia, acidose metabólica e alcalose metabólica

Aumento de glândulas parótidas pela prática dos vômitos

Erosão de esmalte dentário e cáries

Aumento da frequência de convulsões

Sinal de Russell* e petéquias

Irregularidade menstrual

*Calosidades no dorso das mãos, decorrentes dos vômitos autoinduzidos.

CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS Segundo o DSM-5, resumem-se os seguintes critérios para o diagnóstico da BN:1 A. Episódios recorrentes de compulsão alimentar – caracterizados por: 1. Ingerir, em um curto período (p. ex., dentro de 2 h), uma quantidade de alimentos consideravelmente maior do que a maioria das pessoas ingeriria na mesma circunstância 2. Sensação de perda de controle sobre a ingestão de comida B. Comportamentos compensatórios recorrentes e inapropriados para evitar o ganho de peso C. Os episódios de compulsão e os comportamentos compensatórios acontecem ao menos 1 vez/semana por 3 meses D. Autoavaliação indevidamente influenciada pelo peso ou forma corporal E. As alterações não ocorrem apenas durante episódios de AN. Gravidade atual* (baseada na média de episódios de comportamentos compensatórios): • Leve: 1 a 3 episódios por semana • Moderada: 4 a 7 episódios por semana • Grave: 8 a 13 episódios por semana • Extrema: 14 ou mais episódios por semana.

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL Os quadros bulímicos devem ser diferenciados de doenças gastrintestinais, síndromes neurológicas e genéticas (como Kleine-Levin e Prader-Willi), transtornos psiquiátricos (depressão atípica) e principalmente de outros transtornos alimentares (AN e TCAP).

COMORBIDADES Semelhante à AN, a comorbidade com outros transtornos psiquiátricos é bastante elevada: os transtornos depressivos chegam a 70% dos casos, além de maior frequência neste grupo de transtorno afetivo bipolar, transtornos do impulso e abuso/dependência de substâncias. Os transtornos de personalidade cluster B comumente coexistem com a BN, principalmente os transtornos borderline e histriônico.

TRATAMENTO A abordagem da BN tem melhores evidências científicas do que a AN, também é multidisciplinar e o setting de tratamento basicamente ambulatorial, sendo raras as necessidades de internação hospitalar (complicações médicas, ciclos incoercíveis de compulsão-purgação, risco de suicídio, baixo controle de impulsos). Além da orientação nutricional, o tratamento objetiva reduzir sintomas psicológicos e comportamentais do transtorno (binges, purgação e distorções cognitivas), bem como tratar comorbidades psiquiátricas. Entre as modalidades psicoterápicas, a TCC mostra maior eficácia – principalmente TCC-BN (adaptada à BN) – e podem ser realizadas individualmente ou em grupo, tendo, em geral, curto tempo de duração (16 a 20 sessões em 4 a 5 meses). A TIP também se destaca, porém o tempo para alcançar resultados é maior. No caso da BN o uso de antidepressivos é bem estabelecido, sendo ISRS a primeira linha. A única substância aprovada pela Food and Drug Administration (FDA) é a fluoxetina e recomenda-se uso de doses elevadas (60 a 80 mg/dia). Nos casos de maior comorbidade, impulsividade ou pouca resposta aos antidepressivos, o uso de topiramato torna-se uma opção. Em linhas gerais, a combinação da TCC com antidepressivos deve ser considerada já no início do tratamento. Estudos apontam que, isoladamente, a TCC seja superior aos psicofármacos (Tabela 13.1). Tabela 13.1 Principais psicofármacos utilizados no tratamento da BN. Fármaco

Dose (mg/dia)

ISRS Fluoxetina

60 a 80

Sertralina

50 a 200

Citalopram

20 a 60

IRSN Venlafaxina

75 a 225

Anticonvulsivante 25 a 300 Topiramato ISRS: inibidor seletivo da recaptação de serotonina; IRSN: inibidor da recaptação de serotonina e noradrenalina.

CURSO E PROGNÓSTICO Tratando-se de uma categoria recente, pouco se sabe sobre sua evolução quando comparado à AN; os estudos são ainda heterogêneos e com resultados inconclusivos. Estima-se que cerca de 47% dos pacientes que completam o tratamento tenham uma resposta satisfatória quanto aos sintomas bulímicos, cerca de 26% remitam parcialmente e cerca de 26% se cronifiquem. Raramente pacientes bulímicos desenvolvem quadros de AN, sendo mais comum a migração para as categorias TANE e TCA. As taxas de mortalidade são baixas (cerca de 1%), porém o risco de morte é elevado – não por complicações clínicas, mas por um elevado risco de suicídio.

TRANSTORNO DA COMPULSÃO ALIMENTAR CONSIDERAÇÕES GERAIS Frente à utilidade clínica em diferenciar-se indivíduos com TCA, obesos sem compulsões e bulímicos, essa condição já havia sido incluída no DSM-IV como categoria em estudo. Com a publicação do DSM-5, o TCA (binge-eating disorder) passa a ocupar uma posição formal dentro das categorias diagnósticas.1 Tal diferenciação tem relevância na prática clínica pela diversidade encontrada quanto a psicopatologia, gravidade de sintomas, estrutura de personalidade subjacente, curso, prognóstico e, consequentemente, abordagem terapêutica. É importante lembrar que a obesidade por si não é considerada uma doença psiquiátrica, além de não ser uma condição essencial para o diagnóstico de TCA, apesar de estar presente na maioria dos casos.

QUADRO CLÍNICO Com início no fim da adolescência, caracteriza-se pela presença de episódios de compulsão alimentar (ingestão excessiva de alimentos com perda de controle) associados a angústia e arrependimento, mas sem levar a comportamentos compensatórios direcionados ao controle do peso. É fundamental explorar se o episódio caracteriza realmente uma compulsão alimentar ou trata-se de outras questões, por exemplo, uma quebra de dieta. O binge acontece em um específico intervalo de tempo; portanto, não se consideram como portadores de TCA aqueles que apenas “beliscam” pequenas quantidades de alimentos ao longo do dia. Destaca-se que os episódios compulsivos não são exclusivos dos obesos, embora o aporte calórico e a frequência da compulsão geralmente levem à obesidade na maioria dos casos. Em comparação com pessoas obesas sem compulsão alimentar, esses indivíduos apresentam maior ingestão calórica e IMC, variações de peso mais rápidas e frequentes, bem como maior dificuldade em perder peso. Clinicamente, a preocupação com o próprio comportamento alimentar, a sensação de dissociação durante o episódio de descontrole e a racionalização das causas do binge podem ajudar na diferenciação entre TCA e

hiperfagia/obesidade sem compulsão. Alguns autores observam traços de personalidade em comum nos indivíduos acometidos pelo TCA, incluindo impulsividade, pensamento dicotômico (“tudo ou nada”), autocrítica excessiva e baixa autoestima. São pacientes que têm grande preocupação com a maneira errática de lidar com a alimentação.

CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS Os critérios atuais (DSM-5) para TCA são:1 A. Episódios recorrentes de compulsão alimentar – caracterizados por: 1. Ingerir, em um curto período (p. ex., dentro de 2 h), uma quantidade de alimentos consideravelmente maior do que a maioria das pessoas ingeriria na mesma circunstância 2. Sensação de perda de controle sobre a ingestão de comida B. Os episódios de compulsão estão associados a, pelo menos, três dos seguintes: 1. Comer muito mais rapidamente que o normal 2. Comer até sentir-se desconfortavelmente cheio 3. Comer grandes quantidades de comida sem sentir-se fisicamente faminto 4. Comer sozinho por constrangimento do quanto está comendo 5. Sentir repulsa de si, depressão ou muito culpado após o episódio C. Presença de angústia importante relacionada com a compulsão alimentar D. Episódios de compulsão acontecem, em média, pelo menos 1 vez/semana em 3 meses E. A compulsão alimentar não está associada a uso recorrente de métodos compensatórios inapropriados como na BN, e não ocorrem exclusivamente durante episódios de BN ou AN. Gravidade atual* (baseado na frequência dos binges): • Leve: 1 a 3 episódios por semana • Moderada: 4 a 7 episódios por semana • Grave: 8 a 13 episódios por semana • Extrema: 14 ou mais episódios por semana.

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL É feito principalmente com BN (muitas vezes com difícil distinção) e quadros de obesidade que não estejam sobrepostos à compulsão alimentar. Também se destacam a síndrome do comer noturno e a depressão atípica (com hiperfagia). Vale ressaltar que o padrão de dieta do TCA é diferente da BN, na qual mais restritivo quando o indivíduo não se encontra no binge, se comparado à dieta do TCA. Além disso, vale lembrar que os pacientes com esse transtorno também podem fazer uso de métodos purgativos, porém não de modo regular ou tão associado ao episódio compulsivo.

TRATAMENTO O tratamento visa a remissão dos episódios de compulsão alimentar e melhorar os hábitos

de alimentação. Até o momento, sugere-se a associação da orientação nutricional, com psicoterapia (sendo TCC e TIP as de maior grau de evidência) e psicofármacos. Considera-se que o objetivo prioritário seja o controle da compulsão; dietas muito restritivas não são consideradas. Os ISRS são os fármacos mais utilizados, entretanto, outros antidepressivos e o topiramato apontam resultados positivos na redução dos episódios de compulsão alimentar. Obesidade à topiramato pode ter impacto no peso e não apenas no comportamento + agentes antiobesidade (sibutramina/orlistate). A abordagem farmacológica tem resultados positivos no controle da compulsão alimentar, porém não mostra evidência de impacto na redução de peso.

CURSO E PROGNÓSTICO Os índices de remissão são maiores que os da BN e AN, tanto na evolução natural do transtorno quanto ao longo do tratamento. É uma condição considerada relativamente persistente e seu curso é comparável ao da BN em termos de duração e gravidade. Os estudos mostram que a migração do TCA para outras categorias diagnósticas é infrequente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS As guidelines recomendam que quadros parciais de AN/BN ou TANE recebam intervenções conforme o transtorno alimentar que mais se assemelhe ao caso.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 1.

American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders. 5.ed. Arlington, VA, American Psychiatry Association, 2013.

BIBLIOGRAFIA American Psychiatric Association. Guideline watch (August 2012): practice guideline for the treatment of patients with eating disorders, 3.ed. Arlington, VA: American Psychiatric Association, 2012. Claudino AM, Zanella MT. Guia de transtornos alimentares e obesidade. Barueri: Manole, 2005. Parte 1 (transtornos alimentares). De Zwaan M, Herpetz S, Zipfel S, Tuschen-Caffier B, Friederich HC, Schmidt F et al. (2012). INTERBED: internet-based guided self-help for overweight and obese patients with full or subsyndromal binge eating disorder. A multicenter randomized controlled trial. Trials. 2012;21(13):220.

Forman SF. Eating disorders: epidemiology, pathogenesis, clinical features, and course of illness. In: UpToDate, Post TW (Ed), UpToDate, Waltham, MA. (accessed on April, 2014.) Geddes J, Price J, McKnight R. Psychiatry (Oxford Medical Publications). 4. ed. Eating Disorders. Oxford University Press, 2012. Jordan J, Joyce PR, Carter FA, Horn J, McIntosh W, Luty SE et al. Specific and nonspecific comorbidity in anorexia nervosa. Int J Eat Disord. 2008;41:47-56. Mehler P. Anorexia nervosa in adults and adolescents: Medical complications and their management. In: UpToDate, Post TW (Ed), UpToDate, Waltham, MA. (accessed on April, 2014.) Mitchell JE, Roerig J, Steffen K. Biological therapies for eating disorders. International Journal of Eating Disorders. 2013;46(5):470-7. Mitchison D, Phillipa JH. The epidemiology of eating disorders: genetic, environmental, and societal factors. Clinical Epidemiology. 2014;6:89-97. National Institute for Clinical Excellence (NICE). Full national clinical guideline. Core interventions in the treatment and management of anorexia nervosa, bulimia nervosa and related eating disorders. CG9, 2004. Phillipa JH, Claudino AM. Clinical psychopharmacology of eating disorders: a research update. The International Journal of Neuropsychopharmacology 2012;15:209-22. The Royal Australian and New Zealand College of Psychiatrists. Clinical practice guideline – eating disorders, 2013. Treasure J, Claudino AM, Zucker N. Eating disorders. Lancet. 2010;13(375):583-93. Wonderlich SA, Gordon KH, Mitchell JE, Crosby RD, Engel SG. The validity and clinical utility of binge eating disorder. International Journal of Eating Disorders. 2009;42(8):687-705.

_________ * Para adolescentes: peso menor que o esperado (abaixo do percentil 5 na curva de IMC para a idade do Centers for Diseases Control and Prevention – CDC). ** Para adolescentes, usam.se os percentis correspondentes. * O nível de gravidade pode ser aumentado em função de outros sintomas ou da perda funcional.

Capítulo 14

TRANSTORNOS DA SEXUALIDADE Jessica Felício Abegão e Jair de Jesus Mari

CLASSIFICAÇÃO Categoricamente, a American Psychiatric Association (APA) separa os transtornos da sexualidade em três grupos: disfunções sexuais, transtornos de identidade de gênero (TIG) e parafilias.1 Faz-se uma ressalva ao fato de que houve modificações classificatórias no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM-52 (nem todas serão esmiuçadas neste capítulo), lembrando que, em alguns anos, haverá mudanças também na Classificação Internacional de Doenças (CID-10).

DISFUNÇÕES SEXUAIS CONSIDERAÇÕES GERAIS Entende-se sexualidade humana como a interação complexa e conjunta de várias dimensões básicas, compreendendo desde as esferas biológica (comandada por fatores fisiológicos, cerebrais e hormonais) e psicológica (determinada por desejos eróticos e relacionamentos afetivos) até a dimensão sociocultural, compreendendo as variações de padrões sexuais ao longo da história da sociedade.3,4 É um tema de grande relevância na medicina e psiquiatria, pois há um grande número de indivíduos acometidos por disfunções sexuais de diversas ordens, e cabe a esse profissional conhecer os estágios da sexualidade e, a partir disso, reconhecer suas possíveis alterações, além de garantir a exclusão de causas orgânicas reversíveis.5 A Tabela 14.1 sintetiza as fases do ciclo sexual.1,3,5 Tabela 14.1 Fases do ciclo sexual segundo a American Psychiatric Association. Fases do ciclo sexual Desejo sexual

Excitação Orgasmo

Descrição Depende de fatores psicológicos, como fantasias eróticas, mas também é muito influenciada por fatores socioculturais e biológicos (hormônios e neurotransmissores) Fase inicial da relação sexual propriamente dita; ocorrem modificações fisiológicas reguladas pelo sistema nervoso autônomo, cujo resultado é a congestão sanguínea dos genitais de ambos os sexos Ocorrem contrações musculares rítmicas dos órgãos reprodutivos sexuais, culminando no ápice do prazer sexual

Retorno das condições do organismo ao estado prévio à relação sexual; a velocidade de resolução varia de acordo Resolução

com a presença prévia da fase anterior; caso não tenha ocorrido, pode durar de 2 a 6 h e resultar em desconforto e irritação

Adaptada de Fortaleza e Miguel (2012), Dalgalarrondo P (2008), Hales et al. 2012.1,3,5

Há algum tempo, as pesquisas científicas eram voltadas apenas para o sexo masculino, e hoje tem-se dado maior enfoque ao sexo feminino, buscando compreender a frequência populacional, a neurobiologia, o curso clínico dos problemas identificados e possíveis intervenções psicológicas e medicamentosas que possam contribuir para o tratamento.5

EPIDEMIOLOGIA Uma recente revisão da literatura mostrou que as taxas de disfunção sexual encontradas para o transtorno de orgasmo masculino foram de 0 a 3%, transtorno erétil masculino de 0 a 5%, transtorno do desejo sexual hipoativo masculino e ejaculação precoce de 4 a 5%. No sexo feminino, encontrou-se a taxa de 7 a 10% para transtorno do orgasmo. Quando os dados são coletados de clínicas especializadas no assunto, a prevalência tende a aumentar. Um levantamento norte-americano com uma população adulta (19 a 59 anos) mostrou as seguintes prevalências de acordo com o gênero:5,6 • •

Em mulheres: 33% de desejo sexual deficiente, 20% de disfunções de excitação, 25% de problemas de orgasmo e 15% de dispareunia Em homens: 10% de disfunções de ereção, 27% de ejaculação precoce, 10% de problemas de orgasmo e 3% de dispareunia.

No Brasil, foi citado em um estudo que 28,5% das mulheres e 18,5% dos homens referiam algum tipo de dificuldade sexual.6 O desejo sexual hipoativo foi citado em 8,2% das mulheres e 2,1% dos homens, e quanto ao orgasmo, 26,2% das mulheres e 4,9% dos homens têm dificuldade para atingi-lo.6 Quanto ao vaginismo, há grande dificuldade na obtenção de dados estatísticos, pelo fato de grande parte não buscar tratamento.4 O estudo da vida sexual do brasileiro encontrou prevalência de 7,9% de mulheres e 5,1% de homens com aversão sexual em uma população acima dos 18 anos.7 A idade parece ser um fator relevante; observa-se que a taxa de disfunções sexuais aumenta a partir dos 30 anos em ambos os sexos (20 a 30% em homens e 40 a 45% em mulheres). Com o avanço da idade, há um aumento significativo na frequência de transtornos de desejo sexual hipoativo e dos orgasmos masculino e feminino, além de transtorno erétil, em homens, e notável diminuição de ejaculação precoce nessa população.5,8

ETIOLOGIA A etiologia das disfunções sexuais está relacionada com uma interação complexa de fatores psíquicos, interpessoais, comportamentais e orgânicos.5 Na gênese das disfunções

eréteis e dispareunia, há maior envolvimento de fatores orgânicos e, em menor proporção, no vaginismo/ anorgasmia e principalmente no desejo hipoativo.8 Sabe-se que algumas medicações diminuem a testosterona e a dopamina ou têm efeito parassimpaticolítico ou anticolinérgico, perturbando, portanto, a resposta sexual normal. O aumento serotoninérgico provocado pelos antidepressivos também contribui negativamente para a atividade sexual.6 Não se deve esquecer também do aumento da prolactina que pode ocorrer em algumas condições fisiológicas, patológicas ou secundárias a medicações antipsicóticas e antidepressivos inibidores da recaptação de serotonina (ISRS).6,9

QUADRO CLÍNICO O psiquiatra, erroneamente, nem sempre pesquisa a vida sexual dos pacientes. É extremamente importante pesquisar o histórico pessoal e conjugal do casal, inquirir se o início do problema é recente ou prolongado (deve estar presente por no mínimo 6 meses), especificar se é situacional ou generalizado, identificar o grau de sofrimento presente, além de investigar outros aspectos da vida familiar, como conflitos familiares, situação financeira e questões de saúde.1 É necessário uma história objetiva com o parceiro. Deve-se pesquisar antecedentes de traumas e abuso sexual na infância. A queixa de um sintoma sexual pode ser apenas a ponta do iceberg, levando-se em conta que os transtornos do desejo e excitação sexual podem não se resolver nem mesmo com uma terapia sexual breve.6,10 Segue-se uma descrição das principais disfunções sexuais.

CLASSIFICAÇÃO A classificação das disfunções sexuais é apresentada na Tabela 14.2. Tabela 14.2 Classificação das disfunções sexuais. • Transtorno do desejo sexual hipoativo Deficiência ou ausência persistente ou recorrente de fantasias ou desejo de ter relações sexuais com importante prejuízo interpessoal. É a queixa mais comum em Transtornos do desejo sexual

mulheres* • Transtorno de aversão sexual Esquiva ou aversão persistente e recorrente a um contato sexual genital com acentuado sofrimento pessoal**

Transtornos da excitação sexual

Transtornos do orgasmo

Insucesso persistente ou recorrente para iniciar ou manter lubrificação-turgescência em mulheres e ereção em homens, com acentuado prejuízo interpessoal Atraso ou ausência persistente ou recorrente de orgasmo após fase de excitação normal, e que tenha como consequência acentuado sofrimento interpessoal

Ejaculação persistente ou recorrente após estimulação sexual mínima, que ocorre Ejaculação precoce

antes que o indivíduo a deseje de fato. É o mais prevalente dos transtornos sexuais em homens • Dispareunia

Transtornos sexuais dolorosos

Dor genital persistente e recorrente durante o intercurso sexual em homens e mulheres • Vaginismo Espasmo dos músculos perineais que impedem a penetração vaginal total ou

Transtornos sexuais dolorosos (continuação)

parcialmente, impossibilitando ou dificultando o ato sexual. Pode ser primário (desde a primeira tentativa de penetração) ou secundário (após período de vida sexual ativa)

Disfunção sexual induzida por substância ou

Disfunção sexual significativa desenvolvida durante ou logo após a exposição a

medicação

medicação/substância capaz de produzir tais sintomas

* No DSM-5, houve a inclusão da categoria de transtorno do interesse/excitação sexual na mulher e do desejo hipoativo no homem. **Esta categoria foi excluída no DSM-5. Adaptada de Hales et al. (2012), Cavalcanti R (2012), Abdo CHN (2012), Abdo CHN e Fleury HJ (2006).5-8 10% de magenta

DIAGNÓSTICO O diagnóstico deve ser feito com uma boa anamnese e exame físico, avaliação urológica ou ginecológica, solicitação de exames laboratoriais gerais iniciais (glicemia de jejum, hemoglobina glicosilada, testosterona total e livre e lipidograma) e teste com inibidores da fosfodiesterase, se não houver contraindicações (com a finalidade de diagnóstico diferencial na disfunção erétil de causa orgânica).4

EXAMES COMPLEMENTARES ESPECÍFICOS Sexo masculino. Para avaliação de disfunções eréteis, tumescência peniana noturna (TPN), mede-se a ocorrência de ereções durante a fase do sono de movimentos rápidos dos olhos (REM – rapid eye movement); são questionáveis e podem ser mal interpretados. Ultrassonografia Doppler, medição da pressão sanguínea peniana, arteriografia e teste da ereção fármaco-induzida (TEFI) com injeções de substância vasoativa no corpo cavernoso são utilizados para avaliar a tumescência e o fluxo sanguíneo peniano. A estimulação da raiz nervosa pode auxiliar na avaliação de causas neurológicas.5,6 Sexo feminino. Medidas que avaliam a excitação, como a fotopletismografia vaginal, cujos

parâmetros são o volume sanguíneo e a amplitude de pulso vaginal; nota-se ainda dificuldade na interpretação dos resultados. Outras técnicas são termistor vaginal, eletrodo de oxigênio aquecido, aplicação de agentes vasoativos tópicos e ultrassonografia Dopplerduplex, que é a mais promissora. Há várias escalas de avaliação de função sexual feminina, como a FSFI (Female Sexual Function Index) e a SIDI-F (Sexual Interest and Desire Inventory/Female).5

DIAGNÓSTICOS DIFERENCIAIS Devem ser avaliados clinicamente por outras especialidades para descartar doenças orgânicas (anomalias genéticas e congênitas, doenças locais dos órgãos genitais ou sistêmicas, como problemas circulatórios, neurológicos e endócrinos). É mandatório pesquisar ativamente uso de substâncias lícitas e ilícitas, além de medicações que podem interferir no ciclo sexual (Tabelas 14.3 e 14.4).4,6 Tabela 14.3 Medicações gerais que afetam negativamente a sexualidade. Fármacos

Ação

Ciproterona e diurético poupador de potássio (espironolactona)

Antiandrogênicos, com efeitos sobre a ereção e a apetência sexual

Alfametildopa e propranolol Diuréticos (tiazídicos) Anticolinérgicos (antimuscarínicos, antagonistas do H2, antihistamínicos)

Antieméticos Hipolipemiantes

Bloqueadores adrenérgicos (diminuição da dopamina), com efeitos na ejaculação e na apetência sexual Diminuição do volume vascular, com efeito sobre a ereção Efeitos parassimpaticolíticos, com prejuízo erétil

Antagonistas dos receptores dopaminérgico e agonistas da prolactina Efeitos sobre a ereção

Adaptada de Fortaleza e Miguel (2012), Cavalcanti R (2012), Cordás e Laranjeiras (2006).1,4,9

Tabela 14.4 Medicações psicotrópicas que afetam negativamente a sexualidade. Fármacos

Ação

Carbonato de lítio

Diminuição dos níveis de testosterona

Antidepressivos tricíclicos

Efeito anticolinérgico e sobre o desejo sexual

Inibidores da MAO (tranilcipromina)

Anorgasmia, diminuição da libido e, menos frequentemente, ejaculação retardada e impotência, além de diminuição dos níveis de testosterona Anorgasmia, diminuição da libido e impotência. A paroxetina em altas doses tem ação anticolinérgica importante, podendo causar

Inibidores seletivos de recaptação de serotonina

disfunção erétil. Sobretudo a fluoxetina e a sertralina possuem efeito antiorgásmico, sendo usadas no tratamento da ejaculação precoce

Antipsicóticos, como fenotiazinas (clorpromazina, tioridazina, flufenazina), risperidona Outras medicações

Aumento da prolactina, efeito anticolinérgico

Opioides, benzodiazepínicos e anticonvulsivantes

Adaptada de Fortaleza e Miguel (2012), Cavalcanti R (2012), Cordás e Laranjeiras (2006).1,6,9

TRATAMENTO Há maior benefício nas combinações de tratamentos medicamentoso e psicoterapia (Tabelas 14.5 e 14.6).10 Tabela 14.5 Terapias psicológicas empregadas no tratamento das disfunções sexuais.5,6,10 Casal com dificuldade de desejo/excitação, orgasmo, sem presença Terapia sexual comportamental breve

de psicopatologia séria, altamente motivada e satisfeita no relacionamento conjugal. Deve ser evitada caso haja história de trauma sexual Casal com desejo sexual hipoativo ou disfunções de excitação e

Terapia conjugal

insatisfeitos com o relacionamento conjugal. Também indicado nos transtornos sexuais dolorosos Casal candidato à terapia sexual breve, mas que necessita de

Terapia psicossexual (híbrida)

abordagem psicodinâmica, pois apresenta relutância em praticar exercícios comportamentais. Indicada nos transtornos sexuais dolorosos

Psicanálise ou psicoterapia expressiva-de apoio

Casal em que um dos indivíduos apresenta conflitos neuróticos enraizados ou grave patologia do caráter

Terapia de grupo

Indicado para disfunções eréteis

Adaptado de Hales et al. (2012), Cavalcanti R (2012), Gabbardi GO (2012).5,6,10 100% de magenta

Tabela 14.6 Farmacoterapia das disfunções sexuais. •

Tratamento da depressão caso seja a causa: administrar antidepressivos com menor potencial de prejuízo sexual; caso se opte por ISRS, acrescentar “antídotos”, se necessário (bupropiona 150 a 300 mg/dia, buspirona 30 a 60 mg/dia, mirtazapina 15 a 45 mg/dia, trazodona 200 a 400 mg/dia, inibidores da PDE-5)11

• Transtorno do desejo sexual hipoativo

Testosterona: em mulheres, os métodos laboratoriais não são confiáveis para dosar este hormônio e não há consenso sobre seu uso em mulheres pós-menopáusicas. Já no sexo masculino, é indicada na presença de hipogonadismo e deficiência androgênica importante, sempre pesando riscos-benefícios de seu uso



Bupropiona de liberação prolongada (incialmente 150 mg/dia divididos em 2 a 3 tomadas diárias, em 3 dias; caso não tenha havido resposta, aumentar para até 300 mg/dia)4,5

Antidepressivos tricíclicos4 Transtorno de aversão sexual Tratar depressão ou ansiedade se comórbidos12 Caso seja a causa, tratar a depressão com antidepressivo de menor impacto sobre a sexualidade Transtorno da excitação sexual feminina

Caso esteja no climatério, deve-se averiguar a necessidade de terapia de reposição hormonal Pode-se também empregar mesmas medidas para o tratamento do desejo hipoativo ou utilizar o creme de alprostadil tópico Primeira linha •

Inibidores da fosfodiesterase 5: o mais usado é o citrato de sildenafila 50 a 100 mg, 30 min antes da relação sexual;

outras opções são tadalafila, vardenafila e iodenafila •

Androgênios: indicados apenas quando há níveis hormonais reduzidos; empregam-se mais frequentemente injeções intramusculares de undecanoato de testosterona



Antagonistas alfa-adrenérgicos: iombina 5 a 10 mg/dia, 3 vezes/dia. Indicada principalmente em disfunções eréteis de causa não orgânica, muitas vezes em associação com a trazodona



Antidepressivo atípico: trazodona, geralmente na dose de 50 mg à noite, mas podendo chegar a 600 mg/dia,

Transtorno da excitação sexual masculina (disfunção erétil)

indicada quando a disfunção sexual é de natureza não orgânica. Há relatos de ocorrência de aumento da libido (manual prático de disfunções sexuais) e prolongamento do tempo de ereção peniana, mas ainda não é um consenso5 Segunda linha •

Injeções vasoativas (papaverina, fentolamina e prostaglandina) no corpo cavernoso



Dispositivo de vácuo externo: alternativa mais barata e com menos efeitos colaterais, mas há baixa adesão6

Terceira linha •

Cirurgia de implante de prótese peniana (prótese de silicone flexível ou inflável): usada em casos clinicamente refratários ou quando a etiologia é puramente orgânica6



Inibidores da PDE-54



Imipramina (transtornos do orgasmo induzido por psicotrópicos em homens)

• Transtorno do orgasmo

Buspirona ou alprazolam (0,5 a 2 mg/dia): caso haja ansiedade importante



Cipro-heptadina: caso seja secundário ao uso de ISRS



Trazodona: foram referidas ocorrências de orgasmos espontâneos5



Antidepressivos ISRS: mais comumente usada a sertralina 50 mg/dia ou pré-coital (4 a 8 h antes do ato sexual), paroxetina 20 mg/dia, e menos frequentemente, a fluoxetina 20 a 40 mg/dia



Antidepressivos tricíclicos: são menos efetivos e possuem mais efeitos colaterais, mas emprega-se também em alguns casos a imipramina (dose inicial de 25 mg/dia até 100 a 200 mg/dia) e a clomipramina (dose inicial de 10 mg/dia, até 50 mg/dia, podendo chegar ao máximo de 75 a 150 mg/dia, ou pré-coital 25 mg 12 a 24 h antes do ato sexual)

Ejaculação precoce



Outras opções: trazodona (75 a 150 mg/dia), venlafaxina (75 mg/dia) e buspirona (5 mg) 3 vezes/dia



Métodos questionáveis: creme SS, cremes anestésicos, injeções intracavernosas, intervenções cirúrgicas

Pode-se empregar benzodiazepínicos como adjuvantes no controle da ansiedade sexual de desempenho: •

Benzodiazepínicos: alprazolam (0,25 mg, 2 a 3 vezes/dia até no máximo 3 mg/dia) e (clonazepam 0,5 mg, 1 a 2 vezes/dia) por 2 a 6 semanas, quando deve ser reduzida e suspensa



Buspirona 5 mg, 3 vezes/dia (seus efeitos só aparecem após 2 a 3 semanas de uso) caso haja falha com os benzodiazepínicos5,6



Gel hidrossolúvel11



Cremes estrogênicos tópicos (caso haja atrofia urogenital e falta de lubrificação)11

Transtornos sexuais dolorosos



Tibolona (melhora a lubrificação em mulheres pósmenopáusicas)



Fisioterapia e exercícios de Kegel: técnica usada para diminuir a dor pélvica-vulvar e promover relaxamento



Dessensibilização sistemática4,5

ISRS = inibidor seletivo de recaptação de serotonina; PDE-5 = fosfodiesterase-5.

PROGNÓSTICO O prognóstico depende da fase do ciclo de resposta sexual acometido; quanto mais precoce maior a dificuldade de tratamento.4 Um melhor prognóstico depende também do quanto o parceiro se envolve no tratamento5, pois vale ressaltar que algumas manifestações sexuais podem ser subterfúgios de problemas entre o casal.6

TRANSTORNO DE IDENTIDADE DE GÊNERO CONSIDERAÇÕES GERAIS Sexo genético é determinado na concepção, mas seu consequente desenvolvimento psicossexual é influenciado por muitos fatores.5 Entende-se por identidade de gênero o modo como o indivíduo percebe a si mesmo e como deseja ser (homem ou mulher), apesar do sexo anatômico a que foi designado biologicamente.3,5 Esse processo se estabelece aos 3 anos de idade e depende do sexo sob o qual é criado. O papel de gênero é o modo como o indivíduo é identificado (pela sociedade) por meio de seu comportamento e vestimenta, já a orientação sexual é o direcionamento e o foco da atração sexual do indivíduo, por homens e/ou mulheres.3,5 Existe muita polêmica em torno desse assunto, pois há controvérsias sobre o fato de poderem ser consideradas como patológicas. A homossexualidade implica desejo sexual duradouro por pessoas do mesmo sexo, havendo aceitação de sua própria identidade e sexo biológico; há também indivíduos denominados bissexuais, que adotam práticas homo e heterossexuais. Atualmente, ambas as situações não são mais consideradas transtornos mentais. A psiquiatria ocupa-se desse assunto somente quando está presente importante sofrimento pessoal.3

EPIDEMIOLOGIA Não há estudos recentes para prover informações sobre prevalência, mas o transtorno de identidade de gênero (TIG) em adultos é considerado raro, aproximadamente 1:30.000 homens, e 1:100.000 buscam cirurgia de reatribuição sexual. Estima-se que o TIG na infância afete cerca de 1 a 2% das crianças,2 torna-se mais aparente no início da idade escolar11 e não necessariamente persiste na vida adulta, portanto, é razoável assumir que a prevalência varia com a idade. Vários estudos relataram taxas de TIG na infância significativamente maiores em meninos dos 3 a 12 anos em comparação às meninas. Essa discrepância diminui dramaticamente com a progressão da idade, quase não havendo

diferenças nas taxas entre adolescentes.5,11,12

ETIOLOGIA A etiologia do TIG está relacionada com fatores psicossociais (durante a infância), hormonais, genéticos, biológicos e ambientais.1,11 Alguns estudos evidenciaram meninos com história de excessiva intimidade com a mãe e ausência do pai, mas nem todas as crianças com TIG tornam-se adultos com tais condições.5,12

CLASSIFICAÇÃO A classificação do TIG é apresentada no Quadro 14.1. Quadro 14.1 Classificação do transtorno de identidade de gênero.* Identificação intensa e persistente com gênero oposto, havendo desconforto ou sensação de inadequação com papel de gênero deste sexo; é necessário sofrimento significativo. O termo transexualismo foi excluído do DSM-4. Agora, o termo TIG aplica-se a crianças, adolescentes e adultos Obs.: TIG sem outra especificação aplica-se em condições intersexuais e comportamento de vestuário cruzado transitório4 TIG = transtorno de identidade de gênero. *Intitulado disforia de gênero no DSM-V.

QUADRO CLÍNICO E DIAGNÓSTICO É necessário conhecer o histórico do desenvolvimento psicossexual, a orientação sexual e a identidade de gênero, além da persistência e do grau de desconforto com o seu próprio sexo; o sofrimento pessoal deve ser significativo. Cerca de 60% de indivíduos com TIG têm comorbidade psiquiátrica (transtorno de personalidade borderline, antissocial ou narcisista; abuso de substância e comportamento autodestrutivo)5, podendo estar presentes quadros de depressão e ansiedade importantes.1

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL Devem fazer parte do diagnóstico diferencial as psicoses, o travestismo fetichista e condições intersexuais (como alterações decorrentes de problemas cromossômicos e hormonais).

TRATAMENTO São recomendadas intervenções psicossociais para o indivíduo e em grupos para crianças e adolescentes, procurando envolver também a família. Essas intervenções têm como objetivo o apoio e o estímulo à psicoeducação.12 A partir da idade adulta, as opções disponíveis são hormonioterapia com estrogênio em homens e testosterona em mulheres, cirurgia de reatribuição sexual (em homens:

orquidectomia bilateral, amputação peniana e confecção de neovagina; em mulheres: mastectomia bilateral, opcionalmente histerectomia e remoção de ovários, com possibilidade de implante peniano artificial) e psicoterapia.5 Alguns indivíduos buscam cirurgia de reatribuição sexual, mas nem todos de fato têm transtorno de identidade de gênero. Alguns manifestam travestismo com desejo de vestuário cruzado ou homossexualidade efeminada em homens, e esse desejo de reatribuição sexual oscila com o tempo.5 Portanto, para a realização da cirurgia, é necessária a avaliação psicossexual, psiquiátrica e psicológica, para exclusão de indivíduos com outros diagnósticos psiquiátricos, sendo imperativa uma história objetiva com os familiares. A psicoterapia é aconselhável mesmo que a cirurgia seja indicada.5

PROGNÓSTICO Fatores pré-cirúrgicos, como estabilidade mental e emocional, adaptação bem-sucedida ao gênero desejado por no mínimo 1 a 2 anos antes, psicoterapia, entendimento das consequências e limitações da cirurgia e, por último, ausência de psicose, são indicativos de resultado mais favoráveis.5

PARAFILIAS (OU TRANSTORNOS DE PREFERÊNCIA SEXUAL) CONSIDERAÇÕES GERAIS Antigamente eram intituladas “perversões sexuais”; hoje em dia, o termo foi praticamente abandonado em razão das más interpretações e do tom pejorativo que causaria a leigos. No DSM-5, há algumas mudanças quanto à nomenclatura vigente, mas que não serão incluídas neste capítulo. São patologias do comportamento sexual, podendo, em algumas situações, ser danosas ao próprio indivíduo e a terceiros.3 Inclui a persistência de pensamentos, fantasias, comportamentos (masturbação e/ou atividade sexual) que envolvam pessoas relutantes ou incapazes de consentir, ou, caso seja consentido, deve haver risco significativo de lesão ou morte. É válido destacar que os comportamentos parafílicos nem sempre são considerados patológicos, já que não há uma norma explícita de comportamento sexual normal, portanto, considera-se anormal o padrão sexual exclusivo e compulsivo que tem como consequência prejuízos significativos ao indivíduo e a outros.3,5,10,11,13

EPIDEMIOLOGIA Há poucos dados sobre sua prevalência (estima-se que afete 1% da população)1,7, visto que a busca por tratamentos é reduzida e, muitas vezes, só ocorre após problemas judiciais. De modo geral este transtorno inicia-se antes dos 18 anos e é mais comum em homens (20:1), estes principalmente homossexuais.1,3,5,7 Há taxas relevantes de o indivíduo ter mais de um tipo de parafilia (3 a 5),

concomitantes ou alternadas1,7, e também de comorbidades psiquiátricas, como transtornos de ansiedade e de humor, além de uso de substâncias ilícitas.5

ETIOLOGIA A etiologia ainda permanece obscura e misteriosa, provavelmente envolve fatores biológicos, mas claramente notam-se aspectos psicológicos fundamentais presentes, que, por meio da excitação sexual, ajuda-os a se livrar do sentimento de morte e vazio iminente. Freud acreditava que as parafilias estão imersas na teoria das pulsões e explana sobre como o instinto sexual independe do objeto, mas estas hoje em dia ainda são insuficientes para explicá-las totalmente. Classicamente podem ser definidas como fixações a formas de sexualidade infantis que persistem na vida adulta, servindo como negação à castração genital. Por meio de suas fantasias, há um desejo de vingança de seus pais pelos traumas infantis e humilhações que sofreram, e a expressão parafílica pode ser um modo de expressar sua independência, resultando em sentimento de vitória sobre a mãe controladora internalizada. Deve-se considerar, então, que uma variedade de diagnósticos psiquiátricos e de personalidade pode ser encontrada, como o polimorfismo de pacientes com organização de personalidade borderline e a presença de crueldade sexual em pacientes com transtorno de personalidade antissocial (Tabela 14.7).10

CLASSIFICAÇÃO E QUADRO CLÍNICO Tabela 14.7 Classificação das parafilias. Descrição Transtorno mais comum em homens, caracterizado por prazer exclusivo em mostrar nudez Exibicionismo

corporal, em especial os órgãos genitais a estranhos, de maneira desprevenida e não consentida, com o objetivo de chocar ou surpreender o observador

Voyeurismo

Sadismo sexual Masoquismo Fetichismo

Padrão fixo de prazer sexual em observar sem consentimento, repetidamente, pessoas nuas ou despindo-se, ou praticando relação sexual O sadismo é o prazer sexual exclusivamente relacionado com produção de dor, humilhação ou qualquer outra forma de sofrimento a outrem de modo não consensual Atração, fantasia e/ou prática sexual com a intenção de sofrer dor e humilhação É o prazer sexual obtido por meio do uso de objetos inanimados relacionados com o corpo (roupas íntimas, peças de vestuário etc.), com dificuldade de manter a excitação na ausência deste Obtenção da excitação sexual ao ter a experiência temporária de sentir-se semelhante ao sexo

Travestismo (fetichista)

oposto, por meio do uso de roupas e adornos característicos deste. É muito comum no sexo

masculino, e é necessário especificar se há transtorno de identidade de gênero presente Frotteurismo

Consiste em tocar e esfregar-se em outra pessoa sem consentimento; geralmente ocorre em ambientes lotados (ônibus ou metrô) É a mais comum dentre as parafiias, cuja característica é fantasias ou atividades sexuais com

Pedofilia

crianças do mesmo sexo (pederastia) ou do sexo oposto (pedofilia propriamente dita) prépúberes, sendo as vítimas geralmente membros da família ou estranhos. O agressor deve ter no mínimo 16 anos e ser 5 anos mais velho que a vítima Padrão sexual atípico intenso e persistente que não satisfaz os critérios diagnósticos para

Outro transtorno parafílico

transtornos citados anteriormente. Há uma vasta descrição de parafilias (mais de 40 condições) na literatura

Adaptada de Dalgalarrondo P (2008), Hales et al. (2012), Cavalcanti R. (2012), Abdo CHN (2012), Sadock et al. (2005).3,5,7,11

Pedofilia Uma das parafilias que causa maior aversão à sociedade, pois, para alcançar a satisfação sexual, o indivíduo pode prejudicar irreparavelmente crianças inocentes. Na visão clássica psicanalítica, o pedófilo enxerga na vítima sua autoimagem quando criança e usa-a para manter sua frágil autoestima elevada e evitar a ansiedade de castração e ansiedade em decorrência da noção de envelhecimento e finitude. Sobre a etiologia, carece ainda de maiores esclarecimentos, mas sugere-se na literatura fatores neurológicos, hormonais (testosterona aumentada, disfunção do eixo hipotálamo-hipófise-gonadal) e psicodinâmicos (associação de abuso sexual na infância na história de vida dos pedófilos).7 O típico agressor é do sexo masculino; inicia essa prática na maioria das vezes na adolescência; em geral, tem facilidade para relacionar-se com crianças e, portanto, consegue facilmente trabalhar em locais onde há público infantil.7 É referida taxa de reincidência entre 18 e 45%, e sua maior ocorrência depende do grau de violência implicado. Longe de ser incomum, na prática clínica, observa-se a presença desse comportamento em indivíduos com transtorno de personalidade (narcisista e antissocial), além de transtornos psiquiátricos de ansiedade e distimia.10

DIAGNÓSTICO É necessário diferenciar algumas parafilias de variações normais de comportamentos parafílicos sexuais que sejam consensuais. Deve sempre haver algum tipo de sofrimento implicado. É preciso lembrar também que um comportamento sexual inadequado pode não ser resultado de uma parafilia propriamente dita, portanto, deve-se excluir outros diagnósticos psiquiátricos.5-7,11

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL Deve-se considerar se há esquizofrenia, episódio francamente maníaco, transtornos do desenvolvimento, quadros demenciais e estados de intoxicações por substâncias.1,11

TRATAMENTO Os pacientes com esse tipo de transtorno raramente buscam tratamento espontaneamente, pois é raro estarem interessados em cessar a prática sexual. As circunstâncias em que buscam ajuda envolvem brigas conjugais, ameaças de divórcio, situações legais, principalmente no caso de voyeurismo, exibicionismo e pedofilia. Há notoriamente grande dificuldade no tratamento dessa população em vista da contratransferência que provoca, mas também em função de frequente associação com transtornos de personalidade e uso de substâncias.10 Empregam-se como tratamento modalidades biológicas e farmacoterápicas, como tratamentos hormonais, sobretudo nos casos de pedofilia, sadismo sexual e exibicionismo.5 Na maioria das vezes, empregam-se abordagens psicodinâmicas e terapia cognitivocomportamental, cujo objetivo é desenvolver empatia pelas vítimas, habilidades sociais e pessoais, além de evitar recaídas. Em situações nas quais tenha ocorrido um crime sexual ou há alto risco de recidiva, com o intuito de reduzir a libido, associam-se medicações antiandrogênicas, como acetato de medroxiprogesterona e ciproterona, agonistas do hormônio liberador de gonadotropina (GnRH, gonadotropin-releasing hormone), acetato de leuprolida etc.; antipsicóticos, inibidores seletivos de recaptação de serotonina (fluoxetina e sertalina) e agonistas do hormônio liberador do hormônio luteinizante, estes dois últimos com menor perfil de efeitos colaterais. As medicações autorizadas no Brasil para esses casos são os antidepressivos e antipsicóticos.7 O tratamento hospitalar é empregado quando há falha no tratamento ambulatorial, principalmente no caso da pedofilia e exibicionismo, sendo preferíveis, nesses ambientes, as abordagens de confrontação em grupo.10

PROGNÓSTICO A recaída sexual se torna mais frequente quando há histórico criminal, desvio sexual e orientação antissocial. Algumas parafilias, como o exibicionismo, tendem a se tornar menos comuns após os 40 anos. Há mau prognóstico, por exemplo, em casos de manifestação de início precoce, ausência de empatia e culpa, bem como várias parafilias associadas.7

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1.

Forleza OV, Miguel EC. Compêndio de clínica psiquiátrica. Barueri: Manole, 2012.

2.

American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual mental disorders. 5. ed. Arlington, VA: American Psychiatric Association, 2013.

3.

Dalgalarrondo P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 2.ed. Porto Alegre: Artmed, 2008.

4.

Cavalcanti R. Tratamento clínico das inadequações sexuais. 4.ed. São Paulo: Roca, 2012.

5.

Hales RE, Yudofsky SC, Gabbard GO. Tratado de psiquiatria clínica. 5.ed. Porto Alegre: Artmed, 2012.

6.

Cavalcanti R. Manual prático de tratamento clínico das disfunções sexuais. São Paulo: Roca, 2012.

7.

Abdo CHN. Sexualidade humana e seus transtornos. 4.ed. São Paulo: Editora Leitura Médica, 2012.

8.

Abdo CHN, Fleury HJ. Aspectos diagnósticos e terapêuticos das disfunções sexuais femininas. Rev Psiq Clín. 2006;33(3);162-7.

9.

Cordás TA, Laranjeiras M. Efeitos colaterais dos psicofármacos na esfera sexual. Rev Psiq Clín. 2006;33(3);168-73.

10. Gabbard GO. Psiquiatria psicodinâmica na prática clínica. 4.ed. Porto Alegre: Artmed, 2006. 11. Sadock BJ, Sadock VA. Kaplan & Sadock’s. Comprehensive textbook of psychiatry. 8.ed. Lippincott Wiliams & Wilkins, 2005. 12. Shechner T. Gender identity disorder: a literature review from a developmental perspective Isr. J Psychiatry Relat Sci. 2010;47(2). 13. Oliveira Jr. WM, Abdo CHN. Unconventional sexual behaviors and their associations with physical, mental and sexual health parameters: a study in 18 large Brazilian cities. Rev Bras Psiquiatr. 2010;32(3):264-74.

Capítulo 15

DEPENDÊNCIA DE ÁLCOOL Renato Oliveira Rossi, Thiago Marques Fidalgo eDartiu Xavier da Silveira

INTRODUÇÃO A Organização Mundial de Saúde (OMS)1 define a dependência química como: ... estado psíquico e algumas vezes físico resultante da interação entre um organismo vivo e uma substância, caracterizado por modificações de comportamento e outras reações que sempre incluem o impulso a utilizar a substância de modo contínuo ou periódico com a finalidade de experimentar seus efeitos psíquicos e, algumas vezes, de “evitar o desconforto da privação”. O álcool é uma substância, com potencial de causar dependência, consumida mundialmente por 40% da população com mais de 15 anos. Além disso, cerca de 2 milhões de pessoas morrem anualmente em decorrência de seu uso (como intoxicação aguda ou acidentes de trânsito). No Brasil, o álcool é uma substância lícita, porém em outros países seu consumo é proibido, como ocorre no Oriente Médio.

EPIDEMIOLOGIA Levantamentos realizados pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas (CEBRID) entre estudantes de ensino fundamental e médio de dez capitais brasileiras, em 1987, 1989, 1993 e 1997, revelaram aumento na prevalência de consumo de álcool ao longo do período estudado.2 Segundo dados do II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil, realizado em 2005 pelo CEBRID, 74,6% da população brasileira já fez uso de álcool na vida. De acordo com os critérios diagnósticos da época, 12,3% da população apresentava o diagnóstico de dependência.3 Segundo dados do I Levantamento Nacional sobre os Padrões de Consumo de Álcool na População Brasileira, de 2007, 52% dos brasileiros acima de 18 anos bebem pelo menos uma vez ao ano. Entre os homens, a quantidade é de 65% e, entre as mulheres, é de 41%. Entre os homens, 11% bebem todos os dias e 28% o fazem de 1 a 4 vezes/semana.4 Pinsky et al.5, em estudo de 2010 com 661 adolescentes brasileiros (14 a 17 anos) encontraram prevalência de 91% para o beber frequente (pelo menos uma vez por semana). A quantidade ingerida variava de acordo com gênero, renda familiar e o fato de o adolescente estar estudando ou não. O binge drinking, ou beber periódico compulsivo (ingestão de cinco ou mais doses de álcool em uma ocasião para o sexo masculino ou de quatro ou mais doses no mesmo período para o sexo feminino), foi verificado em 52,9%

dos meninos e em 37,6% das meninas.

ETIOLOGIA A dependência é um fenômeno complexo, com diversas variáveis envolvidas. Dessa maneira, não existe uma explicação etiológica simples e que consiga contemplar todas as facetas do problema. Pode-se pensar na dependência como um tripé (Figura 5.1): •





Meio ambiente: é o cenário em que se desenrola o encontro do indivíduo com a substância, bem como o contexto em que ela é utilizada. Nesse caso, merecem atenção a disponibilidade da substância e o simbolismo de seu uso. Como ilustração da importância desse elemento do tripé, basta refletir sobre a diferença no consumo de álcool com amigos, em um brinde de réveillon e no consumo imediatamente antes de conduzir um veículo Substância: consideram-se sua forma de apresentação, acessibilidade e custo, modo de uso, características químicas (potencial para causar dependência) e seus efeitos fisiológicos. O álcool é, por definição, um depressor do sistema nervoso central e promove a redução das atividades cerebrais e das funções orgânicas de modo geral. Rápido início de ação e intensidade dos efeitos correlacionam-se com o maior ou menor potencial de abuso. Uso rápido de bebidas de maior teor etílico tende a aumentar a alcoolemia mais precocemente Indivíduo: certamente o mais complexo dos três elementos, que pode ou não se tornar um dependente, de acordo com a relação que estabelece com a substância. Tal relação será influenciada diretamente por diversos fatores genéticos, biológicos e psicodinâmicos – Fatores genéticos: vários estudos envolvendo famílias com casos de dependência química vêm evidenciando a importância do fator genético no desenvolvimento do quadro. Todos os estudos, no entanto, são unânimes em apontar que apenas parte do fenômeno pode ser explicada pelos genes, sendo os demais fatores determinantes de sua expressão ou não. O gene responsável pela codificação do receptor dopaminérgico D2 parece ter papel-chave, uma vez que sua expressão está reduzida nos pacientes dependentes químicos. Assim, para compensar esse hipofuncionamento dopaminérgico, esses indivíduos procurariam meios de estimular tal via – Fatores biológicos: serão desenvolvidos em detalhes a seguir – Fatores psicodinâmicos: o dependente químico pode ser compreendido como um indivíduo que não completou adequadamente seu processo de individuação, como se, no momento de se perceber como pessoa, o fizesse frente a um espelho quebrado, no qual várias falhas e lacunas de seu ego são expostas. Frente a essa situação, a substância atua como um fator de estruturação do ego, gerando, assim, a sensação de profundo bem-estar, que leva ao impulso incessante de consumo.

Figura 15.1 Tripé da dependência química.

ASPECTOS NEUROBIOLÓGICOS A ativação da via de recompensa cerebral é o elemento comum a todas as substâncias com potencial de causar dependência, entre elas o álcool, produzindo reforço positivo (sensação agradável e prazerosa), que leva à intensificação do consumo. Assim, o álcool age sobre os corpos celulares de neurônios dopaminérgicos da área tegmental ventral. Tais neurônios lançam projeções para áreas límbicas, como o núcleo accumbens, a amígdala e o hipocampo (via mesolímbica). Essa via está ligada às sensações subjetivas e motivacionais do uso da substância. Além disso, projeções para o córtex pré-frontal também são ativadas (via mesocortical), sendo responsáveis pela experiência consciente dos efeitos da substância, bem como pela fissura e compulsão ao uso. A transição do uso para a dependência de álcool envolve memória e aprendizado e é mediada pelos sistemas glutamatérgico e GABAérgico orquestrados pelos sistemas dopaminérgicos. Os receptores GABA-A parecem ser particularmente importantes na predisposição genética à dependência. As teorias dominantes que tentam explicar a transição para dependência abordam a perda do controle executivo pré-frontal sobre a ingesta de álcool, a mudança na saliência dos gatilhos de ingesta de álcool ou a conversão do reforço positivo em reforço negativo. O álcool é uma substância que se difunde facilmente pelas membranas celulares de todo o corpo, de modo que a alcoolemia tem múltiplas variáveis, como: tipo de bebida, peso, sexo, fatores genéticos, função hepática, presença de alimentos no estômago etc. A depuração do álcool é de aproximadamente uma dose por hora. A via mais comum de metabolização é a hepática, em que a enzima álcool desidrogenase produz acetaldeído (substância tóxica) que é metabolizado pela enzima aldeído desidrogenase.

AVALIAÇÃO CLÍNICA Frente a um paciente que faz uso de álcool, é importante a caracterização detalhada do consumo, questionando-o sobre: • • • • • •

Motivações do uso Quantidade utilizada Padrão de uso Aspectos circunstanciais do uso Efeitos obtidos Sentimento pós-uso.

Além disso, deve ser feita uma pesquisa ativa acerca da presença de comorbidades psiquiátricas, já que estão presentes em até 80% dos alcoolistas. Depressão e transtornos ansiosos são as comorbidades mais comumente encontradas. Não existe consenso na literatura quanto ao potencial que as substâncias apresentam para desencadear quadros psiquiátricos graves, como transtornos do espectro bipolar e psicóticos, que também são encontrados em associação com o abuso da substância. A comorbidade entre transtorno depressivo e dependência de álcool está associada a tentativas de suicídio, baixo funcionamento global e insatisfação com a vida. Tal correlação é mais comum entre jovens e tem efeito cumulativo ao longo do tempo. Os transtornos que incluem a impulsividade como traço-chave, como alguns de personalidade, também são comuns. Os mais estudados em tal associação são o transtorno de personalidade antissocial e o transtorno de personalidade. A importância dessa avaliação psiquiátrica detalhada reside no fato de a presença de comorbidades influenciar diretamente o curso clínico, o prognóstico e o planejamento terapêutico do quadro. O exame do estado mental deve sempre ser feito com o paciente fora do estado de intoxicação. Deve ser realizada, ainda, criteriosa avaliação clínica, com exame físico cuidadoso e avaliação completa com exames complementares, com ênfase na avaliação da função renal e hepática e na presença de infecções, como hepatites B ou C, além do vírus da imunodeficiência humana (HIV, do inglês, human immunodeficiency virus). O eletrocardiograma (ECG) também é fundamental, uma vez que diversas substâncias, como os estimulantes, que podem ser usados em conjunto com o álcool, podem interferir na perfusão e na eletrofisiologia cardíacas. Pesquisas de anemia ou outras alterações hematológicas também são de grande importância. A avaliação nutricional também é fundamental, considerando-se que o uso crônico de álcool está comumente associado à depleção de muitos nutrientes, como ácido fólico e vitamina B12, muitas vezes sintomática com alterações no sistema nervoso periférico. Essa avaliação torna-se ainda mais imperiosa quando se considera que muitos pacientes usuários de substâncias vivem em situação marginal e sem acesso aos serviços de saúde, sendo o psiquiatra, muitas vezes, seu primeiro contato com um profissional da área da saúde, após muitos anos.

INSTRUMENTOS DIAGNÓSTICOS Três instrumentos de rastreamento, descritos a seguir, são bastante práticos e de rápida aplicação, sendo muito úteis na detecção inicial de quadros em que o uso de álcool pode caracterizar um problema.

CAGE6 • • • •

Alguma vez o senhor sentiu que deveria diminuir a quantidade de bebida ou parar de beber? (C – Cut down) As pessoas o aborrecem porque criticam o seu modo de beber? (A – Annoyed) O senhor se sente culpado pela maneira com que costuma beber? (G – Guilt) O senhor costuma beber pela manhã para diminuir o nervosismo ou a ressaca? (E – Eye opening)

The Alcohol Use Disorders Identification Test (AUDIT) Instrumento desenvolvido pela OMS para rastreio de uso excessivo de álcool em uma avaliação rápida, além de uma proposta de intervenção para o uso nocivo com objetivo de redução ou cessação do consumo. Criado para auxiliar na atenção primária a saúde.

The Alcohol, Smoking and Substance Involvement Screening Test (ASSIST) Também desenvolvido com foco na atenção primária à saúde, auxilia na identificação de pessoas que estão em uso de substâncias, com uma proposta de intervenção breve.

DIAGNÓSTICO Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da American Psychiatric Association, atualmente em sua quinta versão (DSM-5), de 2013, a dependência química pode ser classificada em leve, moderada ou grave, de acordo com os seguintes critérios diagnósticos, presentes na maior parte do tempo, em um período de 12 meses:7 • • • • • • • • •





O álcool é consumido em quantidades maiores ou por um período maior que o pretendido Existe um desejo persistente ou esforços malsucedidos em parar ou controlar o uso Uma grande quantidade de tempo é gasta em atividades necessárias para a obtenção ou consumo de álcool, ou para recuperação de seus efeitos Fissura ou um forte desejo ou urgência em consumir álcool Uso recorrente de álcool resultando em falha em cumprir a maioria das obrigações no trabalho, na escola, em casa Uso frequente de álcool, apesar de persistentes ou recorrentes problemas sociais ou interpessoais causados ou exacerbados em decorrência desse hábito Desistência ou redução de importantes atividades sociais, ocupacionais ou recreativas pelo consumo de álcool Uso recorrente de álcool em situações de perigo físico O consumo de álcool é continuado apesar da consciência de se ter um problema recorrente ou persistente físico ou psicológico que provavelmente é causado ou exacerbado pelo álcool Tolerância, definida por: – Necessidade de aumentar marcadamente a quantidade de álcool para atingir a intoxicação ou o efeito desejado – Marcada diminuição do efeito com o uso contínuo da mesma quantidade de álcool Abstinência.

TRATAMENTO O tratamento pode se dar em uma variedade de ambientes, em intensidades e com

abordagens bastante variáveis, como Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas (CAPS-AD), ambulatório especializado, enfermaria especializada, comunidade terapêutica e grupos de autoajuda. O modelo CAPS-AD funciona em regime de hospital-dia, com foco no tratamento da dependência, segundo o posicionamento do Ministério da Saúde, em geral com abordagem de redução de danos. O CAPS-AD conta com equipe multiprofissional e dispõe de estratégias de estratificação da necessidade do cuidado, articulando com a rede de saúde do município um atendimento integral ao indivíduo. O ambulatório especializado para dependência química vem caindo em desuso com a inserção do CAPS-AD na rede de atendimento, pois tem seu atendimento limitado ao horário da consulta psiquiátrica, sem propiciar espaços de convivência ou intervenções que promovam mais intensivamente a reinserção social do paciente. A enfermaria especializada é um equipamento fundamental da rede, sendo a modalidade de tratamento principal quando há risco importante clínico ou psiquiátrico, incapacidade de romper o ciclo de uso ou falha do tratamento ambulatorial. A internação deve ser, de preferência, voluntária, devendo ser breve e idealmente articulada a um serviço de tratamento longitudinal ambulatorial, para o qual o paciente possa ser direcionado no momento da alta. Em relação ao tratamento medicamentoso, algumas medicações podem ser usadas para o tratamento da dependência do álcool: •









Naltrexona: antagonista do receptor opioide, diminui o reforço positivo produzido pelo uso de álcool. A dose habitualmente usada é de 50 mg/dia e o efeito adverso mais comum é náusea. Tem como contraindicação relativa a presença de insuficiência hepática. Dessa maneira, durante seu uso, as transaminases devem ser monitoradas. É a medicação com maior nível de evidência de eficácia, segundo metanálise de 2014 Dissulfiram: inibidor irreversível da aldeído desidrogenase, causa acúmulo de acetaldeído, metabólito tóxico, ao ser associado ao consumo de álcool. Por ser de grande toxicidade, o acúmulo de acetaldeído causa grande desconforto e pode até ser fatal. Assim, o dissulfiram não pode ser utilizado em associação com o álcool em nenhuma hipótese. Está contraindicado em pacientes com cirrose hepática com hipertensão portal, gestantes e paciente com falta de entendimento dos riscos do consumo de álcool. A dose habitualmente usada é de 250 mg/dia e deve ser observado um período de, ao menos, 12 h de abstinência para sua introdução. Revisão sistemática de 2014 mostrou evidências insuficientes ou baixas de sua eficácia, embora seja medicação aprovada pela Food and Drug Administration (FDA) Topiramato: antagonista glutamatérgico. Útil para o tratamento da dependência de álcool. Efeitos colaterais possíveis são parestesia, anorexia e dificuldade de concentração. Doses habitualmente usadas de 100 a 400 mg/dia Baclofeno: agonista do receptor GABA-B, com ação neurofarmacológica ainda desconhecida para o tratamento da dependência de álcool. Diminui o consumo de álcool e suas propriedades reforçadoras Acamprosato: inibe a atividade glutamatérgica. Apesar de apresentar bom nível de

evidência, segundo metanálise de 2014, não está disponível no Brasil. Para o Ministério da Saúde, a orientação teórica do tratamento da dependência química, incluindo a do álcool, é a redução de danos. Trata-se de modelo de intervenção focado na redução dos comprometimentos de natureza biológica, social e econômica do uso de substâncias, pautado no respeito ao indivíduo. Objetiva construir um vínculo de confiança e respeito, no qual é valorizada a autonomia do paciente que se coloca frente à equipe de profissionais de saúde. O objetivo primordial é que o paciente possa desfrutar de autonomia e liberdade para se autodeterminar e desempenhar seus papéis sociais de maneira mais adaptada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1.

World Health Organization. Expert Comitee on Drug Dependence. Geneve: WHO, 1970.

2.

Galduróz JCF, Noto AR, Carlini EA. Tendência do uso de drogas no Brasil: síntese dos resultados obtidos sobre o uso de drogas entre estudantes do 1o e 2o graus em 10 capitais brasileiras (1987, 1989, 1993, 1997). São Paulo: Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas/Departamento de Psicologia da Escola Paulista de Medicina, 1997.

3.

Carlini E, Galduróz J, Noto A, Carlini C, Oliveira L, Nappo S et al. II Levantamento domiciliar sobre o uso de drogas psicotrópicas no Brasil: estudo envolvendo as 108 maiores cidades do país. Brasília: Centro de informações sobre drogas psicotrópicas (CEBRID). Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD), 2005.

4.

Centro de Informações sobre Saúde e Álcool. I Levantamento nacional sobre os padrões de consumo de álcool na população brasileira. Brasília: Secretaria Nacional Antidrogas, 2007.

5.

Pinsky, I., Sanches, M., Zaleski, M., Laranjeira, R., Caetano, R. Patterns of alcohol use among Brazilian adolescents. Rev Bras Psiquiatr 2010;32(3),242-9.

6.

Mansur J, Monteiro MG. Validation of the “CAGE” alcoholism screening test in a Brazilian psychiatric inpatient hospital setting. Braz J Med Biol Res. 1983; 16(3):215-8.

7.

American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders. 5. ed. Arlington: American Psychiatric Association, 2013.

BIBLIOGRAFIA American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistic Manual. I Levantamento nacional sobre os padrões de consumo de álcool na população brasileira. 2007. Brière FN, Rohde P, Seeley JR, Klein D, Lewinsohn PM. Comorbity between major depression and alcohol use disorder from adolescence to adulthood. Comprehensive

Psychiatry. 2014;55:526-33. Fidalgo TM, Silveira ED, Silveira DX. Psychiatry comorbidities related to alcohol use among adolescents. American Journal of Drug and Alcohol Abuse. 2008;34(1). Harding TW, Arango MV, Baltazar J, Climent CE, Ibrahim HHA, Ignacio LL et al. Mental Disorders in primary health care: a study of their frequency and diagnosis in four development contries. Psychological Medicine. 1980;10:231-41. Jonas DE, Amick HR, Feltner C, Bobashev G, Thomas K, Wines R et al. Pharmacotherapy for adults with alcohol use disorders in outpatient settings: a systematic review and meta-analysis. JAMA. 2014;311(18):1889-900. Kessler RC, McGonagle KA, Zhao S, Nelson CB, Hughes M, Eshleman S et al. Lifetime and 12-month prevalence of DSM-III-R psychiatric disorders in the United States: results from the National Comorbidity Survey. Arch Gen Psychiatry. 1994;51:8-19. Kleber HD, Weiss RD, Anton RF, George TP, Greenfield SF, Kosten TR et al. Treatment of patients with substance use disorders. 2.ed. Am J Psychiatry. 2007;164:4(Suppl). Kushner MG, Abrams K, Borchardt C. The relationship between anxiety disorders and alcohol use disorders: a review of major perspectives and findings. Clin Psychol Rev. 1999;20(2):149-71. Kushner MG, Thuras P, Abrams K, Brekke M, Stritar L. Anxiety mediates the association between anxiety sensitivity and coping-related drinking motives in alcoholism treatment patients. Addict Behav. 2001;26(6):869-85. Olievenstein C. La clinique du toxicomane. Bagedis Éd. Universitaires, 1987. p. 45-61. Regier DA, Farmer ME, Era DS, Locke BZ, Keith SJ, Judd LL et al. Comorbidity of mental disorder with alcohol and other drug abuse. Results from Epidemiologic Catchment Area Study. J Am Med Association. 1990;264(19):2511-8; Silveira DX, Jorge MR. Comorbidade psiquiátrica em dependentes de substâncias psicoativas: resultados preliminares. Rev Bras Psiquiatr. 1999;21(3):145-51. Silveira DX, Moreira FG. (orgs.) Panorama atual de drogas e dependências. São Paulo: Atheneu, 2005. Tabakoff B, Hoffman PL. The neurobiology of alcohol consumptio and alcoholism: an integrative history. Pharmacology, Biochemestry and Behavior. 2013;113:20-37. World Health Organization. Global status report on alcohol and health, 2011. World Health Organization – WHO. Mortality and burden of desease attributable to selected major risks, 2009. Xavier da Silveira D. Drogas, uma compreensão psicodinâmica das farmacodependências. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1995.

Capítulo 16

TABAGISMO Caio Magno Matos de Almeida e Cláudio Jerônimo da Silva

INTRODUÇÃO O tabagismo é considerado um problema de saúde pública em razão da alta prevalência e elevada mortalidade. No mundo, existem 1,3 bilhão de fumantes com 15 anos ou mais. Entre esses, 900 milhões estão em países em desenvolvimento e 250 milhões são mulheres. No Brasil, há 27,9 milhões de fumantes, que consomem 110 bilhões de cigarros por ano. A mortalidade anual relacionada com o tabaco, no mundo, é de 5,4 milhões de pessoas, das quais 70% estão em países em desenvolvimento. No Brasil, ocorrem cerca de 200.000 óbitos por ano. O tabagismo é a maior causa de morte prematura no mundo, correspondendo a 30% das mortes de homens com mais de 30 anos e 5% das mulheres.1 Existem mais de 50 doenças associadas ao tabaco que atingem vários sistemas, como o aparelho respiratório [doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), doenças intersticiais, agravamento de asma, câncer], cardiovascular (acidente vascular cerebral, doença arterial coronariana, tromboangeíte obliterante), entre outros. Estima-se que, para cada morte causada por cigarro, 20 fumantes sofrem de uma doença relacionada com o tabagismo.2-4

NEUROBIOLOGIA Os receptores de nicotina são largamente distribuídos nas junções neuromusculares, nos gânglios autônomos e no sistema nervoso central (córtex, tálamo, alguns núcleos do tronco cerebral e lócus cerúleos). Quando a nicotina se liga a esses receptores, ocorre a liberação de acetilcolina e norepinefrina. Como consequência, há aumento da pressão arterial (de 5 a 10 mmHg) e da frequência cardíaca (10 a 20 bpm) e vasoconstrição periférica. O esquema na Figura 16.1 mostra o efeito da nicotina no sistema nervoso periférico. No sistema nervoso central, a estimulação dos receptores nicotínicos provoca liberação de dopamina, serotonina e betaendorfinas, responsáveis pelos efeitos prazerosos. No tálamo, leva à liberação de hormônio do crescimento e hormônio adrenocorticotrófico (ACTH, adrenocorticotropic hormone) pela hipófise. Os gânglios autonômicos estão localizados na medula espinal (paravertebral e pré-vertebral) e daí enviam terminações para diversos locais, como vasos sanguíneos e vísceras. Essas terminações chegam aos vasos sanguíneos liberando norepinefrina e provocando contração da musculatura lisa dos vasos, com consequentes vasoconstrição e aumento da pressão arterial.

Figura 16.1 Ação da nicotina no sistema nervoso periférico. Adaptada da ilustração de Cláudio Jerônimo da Silva e Gisele Garimevicius Garbe. Outras terminações chegam à glândula adrenal e provocam a liberação de mais epinefrina pelas células dessa glândula, potencializando todos os efeitos autonômicos simpáticos, como vasoconstrição e aumento da frequência cardíaca.

AVALIAÇÃO E DIAGNÓSTICO DO USO A avaliação inicial é parte fundamental da abordagem do fumante (Figura 16.2). É por seu intermédio que se determina qual é o tratamento mais adequado para o momento em que o paciente se encontra. Para tanto, deve-se coletar uma história de como e quando o paciente começou a fumar, quais derivados de tabaco consome regularmente e como são seus hábitos em relação ao cigarro. Uma pergunta que pode ser feita é: “como é um dia típico seu com o cigarro?”. Muitos pacientes já tentaram parar de fumar em outras ocasiões. É importante conhecer como foram as tentativas passadas a fim de entender quais foram as dificuldades encontradas pelo paciente. Auxiliá-lo a trabalhar tais elementos é um passo para que uma nova tentativa seja mais efetiva. Por exemplo, se um paciente recaiu por estresse no trabalho, isso indica que é importante trabalhar o manejo do estresse. Outro ponto importante é conhecer quais métodos efetivos foram utilizados em

tentativas passadas, podendo ser aplicados com sucesso em um novo tratamento. A investigação de comorbidades, tanto clínicas quanto psiquiátricas, é fundamental. A identificação de doenças relacionadas com o tabagismo pode ser um motivador para fazer o paciente parar de fumar. Contudo, caso o quadro clínico seja grave, pode ter o efeito oposto, desmotivando o paciente. As comorbidades psiquiátricas devem ser investigadas e tratadas a fim de contribuir para a boa evolução do paciente.

Figura 16.2 Esquema de avaliação clínica. AVC = acidente vascular cerebral; IAM = infarto agudo do miocárdio; DM = diabetes melito; HAS = hipertensão arterial sistêmica; HIV =

vírus da imunodeficiência humana. Deve-se também realizar um exame físico completo e solicitar alguns exames complementares. A radiografia de tórax é importante durante o tratamento. O bom profissional perceberá o momento certo de pedir o exame. Os pacientes frequentemente têm receio do que podem encontrar e, por vezes, se afastam do tratamento para não terem de enfrentar a situação. Se disponíveis, testes que medem o monóxido de carbono no ar exalado (COex) e seu principal metabólito, cotinina (salivar, sérica ou urinária), podem ser solicitados. São úteis para avaliar a evolução do tratamento.4-7

QUADRO CLÍNICO A dependência de nicotina é definida tanto pela Classificação Internacional de Doenças (CID-10)8 quanto pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5).9

CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS CID-10 Presença de três critérios ou mais no último ano configura dependência (Quadro 16.1). Quadro 16.1 Critérios diagnósticos pela CID-10. 1. Forte desejo de consumir a substância ou senso de compulsão para tal 2. Dificuldade para controlar o comportamento de consumir a substância em termos de seu início, término e níveis de consumo 3. Estado de abstinência fisiológico quando o uso da substância cessou ou foi reduzido, como evidenciado por síndrome de abstinência característica para a mesma ou o uso da substância com a intenção de aliviar ou evitar sintomas de abstinência 4. Tolerância, ou seja, aumento crescente das doses da substância, requerido para alcançar efeitos originalmente produzidos por doses mais baixas 5. Abandono progressivo de prazeres ou interesses alternativos em favor do uso da substância 6. Aumento da quantidade de tempo necessária para obter ou tomar a substância ou para se recuperar de seus efeitos 7. Persistência do uso das substâncias apesar da evidência clara de consequências manifestadamente nocivas Adaptado de World Health Organization (1993).8

DSM-5 O DSM-5 engloba os problemas relacionados com o tabaco em transtornos relacionados ao seu uso, considerando uma classificação por gravidade.

Padrão problemático de uso de tabaco que leva a prejuízo clinicamente significativo ou disfunção, manifestado por, pelo menos, dois dos critérios mostrados no Quadro 16.2, ocorrendo em um período de 12 meses. O quadro é leve se dois a três critérios estiverem presentes, moderado se houver quatro a cinco critérios e grave se seis ou mais critérios estiverem presentes.8,9

AVALIAÇÃO E DIAGNÓSTICO Grau de dependência O teste de Fagerström caracteriza a dependência como uma variável contínua e, por meio de um valor de corte, possibilita a diferenciação entre fumantes com alto grau de dependência física e aqueles de menor grau. Uma soma acima de cinco pontos indica que provavelmente o paciente sentirá, de modo mais intenso, os sintomas de abstinência à nicotina (Quadro 16.3).10,11 Quadro 16.2 Critérios diagnósticos pelo DSM-5. 1. A substância é consumida em maior quantidade ou por mais tempo que o pretendido 2. Existe um desejo persistente ou tentativas fracassadas para parar ou reduzir o uso 3. Muito tempo é despendido em atividades necessárias para obter ou usar a substância 4. Fissura ou um forte e urgente desejo de usar a substância 5. Uso recorrente da substância resultando em incapacidade de cumprir obrigações no trabalho, escola ou lar 6. Uso continuado da substância apesar de problemas interpessoais ou sociais recorrentes ou persistentes causados ou exacerbados por ela 7. Atividades sociais, ocupacionais ou recreativas são deixadas de lado ou reduzidas em virtude do uso da substância 8. Uso recorrente da substância em situações em que é perigoso à integridade física (p. ex., fumar na cama) 9. O uso da substância é continuado apesar de saber que apresenta problemas físicos e psicológicos persistentes ou recorrentes 10. Tolerância: necessidade de maiores quantidades da substância para atingir o efeito desejado ou marcante redução do efeito com a quantidade de consumo habitual 11. Abstinência: presença de sintomas de abstinência da substância ou uso dela para aliviar ou evitar tais sintomas Adaptado de American Psychiatric Association (2013).9

Quadro 16.3 Teste de Fagerström. 1. Quanto tempo após acordar você fuma seu primeiro cigarro?

(3) Nos primeiros 5 min (2) De 6 a 30 min (1) De 31 a 60 min (0) Mais de 60 min 2. Você acha difícil não fumar em lugares proibidos? (1) Sim (0) Não 3. Qual o cigarro do dia que traz mais satisfação? (1) O primeiro da manhã (0) Os outros 4. Quantos cigarros você fuma por dia? (0) Menos de 10 (1) 11 a 20 (2) 21 a 30 (3) Mais de 31 5. Você fuma mais frequentemente pela manhã? (1) Sim (0) Não 6. Você fuma mesmo doente, quando precisa ficar acamado a maior parte do tempo? (1) Sim (0) Não Total: 0 a 2 = muito baixa; 3 a 4 = baixa; 5 = média; 6 a 7 = elevada; 8 a 10 = muito elevada.

Os principais sintomas de abstinência ao tabaco são: inquietação, dificuldade de concentração, irritabilidade, insônia ou sonolência, tristeza, ansiedade, aumento do apetite e frequência cardíaca reduzida. Além dos sintomas físicos da dependência, são importantes os aspectos psicológicos e comportamentais do tabagismo. Na dependência comportamental, o fumante constrói uma rotina, criando hábitos associados ao fumo que servem como gatilhos. O condicionamento tende a ocorrer com a repetição da ação de fumar com o comportamento associado. Outro ponto importante é a dependência psicológica que se caracteriza pela associação de sentimentos com o cigarro. O hábito de fumar está associado a sensações prazerosas e, em muitas ocasiões, tem a função de amortecer emoções desagradáveis.6

Estado de motivação Pelo menos 70% dos fumantes veem um médico a cada ano nos EUA. Outros fumantes se deparam com enfermeiros, terapeutas ocupacionais, psicólogos etc.12 Setenta por cento dos fumantes relatam desejo de parar de fumar e costumam mencionar que a opinião de um clínico é um fator motivador.13,14 A motivação favorece a reflexão para a tomada de decisão, o que diz respeito também ao uso de substâncias. Prochaska e DiClemente descreveram um modelo no qual a prontidão para mudar consiste em estágios pelos quais o indivíduo transita (Tabela 16.1).15 Tabela 16.1 Estado motivacional. Pré-contemplação Contemplação

Preparação Ação Manutenção Recaída

Não há intenção de parar, nem mesmo uma crítica a respeito do conflito envolvendo o comportamento de fumar Há conscientização de que fumar é um problema, no entanto, há uma ambivalência quanto às perspectivas de mudança Prepara-se para parar de fumar – quando o paciente aceita escolher uma estratégia para realizar a mudança de comportamento Deixa de fumar – o paciente toma atitude que o leva a concretizar a mudança de comportamento O paciente deve aprender estratégias para prevenir a recaída e consolidar os ganhos obtidos durante a fase de ação Falha no processo de mudança e retorno ao comportamento anterior

A avaliação do grau de motivação é passo importante para se definir as estratégias a serem utilizadas. Por exemplo, se o paciente está em um estágio de pré-contemplação, o clínico pode estimulá-lo a pensar em parar de fumar, informando os riscos e malefícios associados ao fumo. De outro modo, se o paciente se encontra no estágio de ação, devese estimulá-lo a escolher uma data para parar de fumar e ajudá-lo a definir estratégias que o auxiliem, como medicação, afastar-se de situações relacionadas com o uso, técnicas de manejo de fissura etc. A motivação é uma condição imprescindível para iniciar um tratamento e sua ausência praticamente elimina as expectativas de abstinência. A entrevista motivacional é uma técnica de abordagem focada no paciente que se propõe a resolver as ambivalências relativas ao tabagismo e mudar o estágio comportamental, sendo uma boa opção.

TRATAMENTO FARMACOLÓGICO

De acordo com dados da literatura, já se sabe que o tratamento farmacológico é eficaz para tratar a dependência de tabaco e, portanto, deve ser oferecido a todos os fumantes com mais de 18 anos com consumo superior a dez cigarros por dia, que desejam parar de fumar, salvo na presença de contraindicações.

Terapia de reposição de nicotina A terapia de reposição de nicotina (TRN) tem como objetivo substituir a nicotina do cigarro por doses menores, a fim de reduzir a fissura e os sintomas de abstinência. A medicação costuma ser bem tolerada, com poucos efeitos colaterais. Os mais comuns são náuseas, cefaleia, insônia, tontura, sintomas gastrintestinais, irritação no local de aplicação e queixas orofaríngeas na administração oral. Os eventos adversos mais graves são arritmias, dor precordial e infarto agudo do miocárdio (IAM). Pacientes com cardiopatias crônicas não têm risco aumentado com o uso da TRN. Contudo, após evento agudo (IAM), a TRN está contraindicada nos primeiros 15 dias. Outras contraindicações são: gravidez, amamentação, doenças dermatológicas, como dermatite de contato, e psoríase, no caso de uso de adesivos. Atualmente, existem seis formas de apresentação: adesivo, goma, pastilhas, spray nasal, inalador e comprimidos sublinguais. No Brasil, estão disponíveis os três primeiros somente.

Adesivos de nicotina Os adesivos liberam nicotina de um modo constante através da pele. A dose deve ser prescrita de acordo com o consumo médio de cigarros por dia, variando de 14 a 21 mg/dia, considerando-se 1 mg para cada cigarro, podendo ser aumentada a critério médico. Pacientes que fumam grande número de cigarros podem fazer uso de até 42 mg/dia, ou seja, dois adesivos. O tempo de redução da dose varia de 4 a 6 semanas e o período total de uso deve ser de 6 a 14 semanas. O adesivo deve ser aplicado 1 vez/dia sobre a pele dos braços ou tronco, de preferência no mesmo horário, fazendo-se rodízio do local de aplicação a cada 24 h. A região de aplicação deve ser protegida do sol e, de preferência, evitar locais com muitos pelos. O uso noturno reduz a fissura matinal, mas deve ser evitado quando há prejuízo no sono.

Goma de nicotina A goma é uma apresentação que libera a nicotina de modo rápido para aliviar picos de fissura. Recomenda-se tomar um gole de água antes para eliminar resíduos que possam interferir na absorção. Deve ser mastigada até o paciente sentir uma sensação de formigamento ou um forte sabor. Nesse momento, deve-se colocar a goma entre a bochecha e a gengiva até o sabor ou formigamento desaparecer. Em 30 min, toda a nicotina deve ter sido liberada e a goma pode ser descartada. A dose é individualizada, de acordo com o número de cigarros por dia. Para pacientes que fumam mais de 20 cigarros

por dia, é preferível iniciar com a goma de 4 mg. O uso deve ser feito nos momentos de fissura, até de hora em hora (máximo de 15 gomas por dia). O número de gomas deve ser reduzido gradualmente ao longo do tratamento até o número de 1 a 2 por dia, quando pode ser suspenso. A duração do tratamento costuma ser de 3 meses.

Pastilha de nicotina A pastilha de nicotina é absorvida de modo mais rápido que a goma de mascar e tem a vantagem de não apresentar os inconvenientes relacionados com a goma, como doenças gengivais e periodontais, assim como disfunções da articulação temporomandibular. A pastilha deve ser colocada na boca encostada na bochecha, sendo movida de modo continuado de um lado para o outro até a completa dissolução, que ocorre em torno de 20 a 30 min. É importante lembrar que a pastilha não pode ser mastigada ou ingerida. Existem pastilhas de 2 e 4 mg. A dose de 4 mg é recomendada para fumantes de mais de 20 cigarros por dia. Pode-se utilizar uma pastilha a cada 1 ou 2 h até um máximo de 15 por dia. A quantidade de pastilhas deve ser reduzida gradualmente ao longo do tratamento. Recomenda-se que após a 12a semana só se utilizem as pastilhas, se houver fissura intensa. O tratamento não deve exceder 6 meses.

Combinação de terapia de reposição de nicotina Existe evidência de que a combinação do adesivo de nicotina com uma forma de liberação aguda, como a goma ou adesivo, é eficaz. Recomenda-se utilizar a combinação quando o uso isolado não tem sucesso (Tabela 16.2).5,7,16-20 Tabela 16.2 Terapêutica de reposição de nicotina. Adesivos

1 mg para cada cigarro, 1 vez/dia pela manhã

Goma

Dose de 4 mg para fumantes de mais de 20 cigarros/dia, usada em momentos de fissura, até 15/dia

Pastilha

Semelhante à goma

Bupropiona A bupropiona originalmente começou a ser utilizada no mercado como antidepressivo. Seu mecanismo de ação é incerto, porém, evidências indicam que inibe a recaptação de norepinefrina e dopamina. A ação no sistema dopaminérgico e noradrenérgico estaria por trás dos benefícios na cessação do tabagismo. A bupropiona deve ser iniciada na dose de 150 mg 1 semana antes de o paciente parar de fumar. Com 3 dias, é possível aumentar para 300 mg em 2 vezes. As contraindicações são convulsões, epilepsia, anorexia nervosa, bulimia, acidente vascular encefálico, traumatismo cranioencefálico, tumor cerebral, etilismo pesado, gravidez e amamentação.

Os efeitos colaterais mais comuns são insônia, boca seca, cefaleia, ansiedade e insônia. Também há incidência maior de convulsão com o uso da medicação, principalmente se as doses são maiores que 450 mg. A duração usual do tratamento é de 6 a 12 semanas, mas sabidamente a medicação pode ser usada por muito mais tempo.

Vareniclina A vareniclina é um agonista parcial de receptores nicotínicos a4b2. Acredita-se que consegue reduzir a fissura e sintomas de abstinência por sua ação agonista e a satisfação de fumar pela ação antagonista. A medicação deve ser iniciada 1 semana antes de o paciente parar de fumar. Inicialmente, a dose é de 0,5 mg 1 vez/dia, do 1o ao 3o dia, 0,5 mg a cada 12 h do 4o ao 7o dia, 1 mg a cada 12 h do 8o dia até o final do tratamento. A duração do tratamento costuma ser de 12 semanas. Os principais efeitos adversos são náuseas, sonhos anormais, cefaleia, dispepsia, flatulência, boca seca, diarreia, constipação intestinal, insônia e fadiga. Uma metanálise de 2013 da Cochrane traz a vareniclina como superior às TRN usadas de modo isolado e à bupropiona, e com eficácia similar à TRN combinada. Em 2008, a Food and Drug Administration (FDA) lançou um alerta sobre o risco de piorar sintomas depressivos e possíveis comportamentos suicidas.

Nortriptilina A nortriptilina é um antidepressivo tricíclico indicado como terapia de segunda linha para cessação de tabagismo. Seu mecanismo de ação se dá pela inibição da recaptação de norepinefrina e dopamina. A medicação deve ser iniciada 2 a 4 semanas antes da suspensão do fumo. Inicia-se com 25 mg/dia, aumentando-se gradualmente até a dose de 75 a 100 mg. A duração do tratamento é de 3 meses. Os principais efeitos colaterais são: boca seca, constipação intestinal, sonolência e ganho de peso. A nortriptilina não é recomendada em pacientes com distúrbios de condução e IAM recente.

Clonidina A clonidina é um agonista a-2 de ação central, utilizado primariamente como antihipertensivo. É também considerada terapia de segunda linha. Estudos demonstram sua eficácia; no entanto, os efeitos colaterais, como sedação e hipotensão postural, dificultam seu uso. A dose recomendada é de 0,1 mg/dia com incremento gradual até 0,4 mg/dia. O paciente é orientado a parar de fumar de 2 a 3 dias após o início da medicação. A duração

do tratamento costuma ser de 3 meses, mas pode ser estendida se houver um maior risco de recaída (Tabela 16.3).5,19-22 Tabela 16.3 Terapêutica não nicotínica. Bupropiona

Vareniclina

Nortriptilina Clonidina

Deve-se começar com 150 mg e, em 3 dias, aumentar para 300 mg, 1 semana antes de o paciente parar de fumar Deve-se começar com 0,5 mg nos três primeiros dias; 0,5 mg a cada 12 h do 4o ao 7o dia e 1 mg a cada 12 h do 8o dia em diante. Deve-se iniciar 1 semana antes Deve-se começar com 25 mg com aumentos graduais até 75 a 100 mg/dia. Deve-se iniciar 2 a 4 semanas antes de parar de fumar Deve-se começar com 0,1 mg/dia, com incremento gradual até 0,4 mg/dia. Deve-se parar de fumar 3 dias depois

NÃO FARMACOLÓGICO As intervenções psicossociais, sejam elas individuais, em grupo ou por telefone, apresentam alta taxa de cessação e de custo-efetividade e, por isso, devem ser indicadas. É importante entender que cada fumante desenvolve uma relação específica com o cigarro, sendo este o motivo que leva cada pessoa a manter hábitos individuais diferentes. As abordagens não medicamentosas costumam se basear em técnicas cognitivocomportamentais. O foco é identificar crenças e comportamentos associados ao ato de fumar e ajudar os pacientes a mudá-los. Por exemplo, muitos pacientes acreditam que fumar traz relaxamento. O cigarro não possui nenhuma substância que estimule o relaxamento. O que ocorre é que geralmente os pacientes fumam em situações estressantes ou para aliviar os sintomas de abstinência da nicotina. Também o ato de fumar envolve uma parada na rotina, um intervalo, em que o fumante busca se distrair e diminuir seu estresse, embora não exista uma propriedade relaxante no tabaco. Outros pacientes acreditam que, sem o cigarro, não vão conseguir produzir com eficiência. É verdade que a nicotina pode melhorar a concentração, que em geral fica pior na fase inicial da abstinência. É importante ajudar o paciente a adiar tarefas mais criativas na primeira semana e ter tolerância em relação a essa fase inicial, mesmo que tenha uma piora no seu rendimento, o que é até esperado. Deixar de fumar é um passo importante, e um período com dificuldade de concentração não é mais prejudicial que fumar.

RECAÍDA Os principais motivos relacionados com recaída são: ganho de peso, sintomas psiquiátricos, estados emocionais negativos, conflitos interpessoais, pressão social, associação com bebida alcoólica, excesso de confiança, sintomas de abstinência e

experiências negativas ao ato de parar de fumar. Em caso de lapso ou recaída, o paciente deve aceitar sem culpa. A recaída deve ser trabalhada como um processo de aprendizagem que pode levar o paciente a outro período de abstinência. Para tanto, junto com o paciente, é importante avaliar a situação, o que estava dando certo, o que deu errado e o que poderia ter sido feito diferente. As comorbidades psiquiátricas são o fator que mais interfere no sucesso no tratamento; portanto, devem ser investigadas e adequadamente tratadas. Recomenda-se primeiro tratar a comorbidade antes de iniciar o tratamento para o tabagismo, exceto se as comorbidades forem pelo uso de outras substâncias.4-6

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1.

Jha P, Chaloupka FJ, Moore J. Tobacco addiction. In: Jamison DT, Breman JG, Measham AR et al. (eds). Disease control priorities in developing countries. 2.ed. Washington (DC): World Bank, 2006. Disponível em: www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK11741/.

2.

Cigarette smoking-attributable morbidity – United States, 2000. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 2003;52(35):842-4.

3.

World Health Organization – WHO Report on the Global Tobacco Epidemic 2008. The MPower Pachage. Geneve: WHO, 2008.

4.

Associação Médica Brasileira. Diretrizes clínicas de saúde suplementar. São Paulo, 2011.

5.

Reichert J, Araujo AJD, Gonçalves CMC, Godoy J, Chatkin JM, Sales MPU et al. Diretrizes para cessação do tabagismo – 2008. Jornal Brasileiro de Pneumologia. 2008;34:845-80.

6.

Diehl A, Cordeiro CC, Laranjeira R. Dependência química: prevenção, tratamento e políticas públicas. Porto Alegre: Artmed, 2011.

7.

Tobacco Use and Dependence Guideline Panel. Treating tobacco use and dependence: 2008 Update. Rockville (MD): US Department of Health and Human Services, 2008. Disponível em: www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK63952/.

8.

World Health Organization. Classificação de transtornos mentais e de comportamento da CID-10. Porto Alegre: Artmed, 1993.

9.

American Psychiatry Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-V. 5.ed. Washington, 2013.

10. Fagerström KO. Measuring degree of physical dependence to tobacco smoking with reference to individualization of treatment. Addict Behav. 1978;3(3-4):235-41. 11. Halty LSR, Hüttner MD, Netto JCO, Santos VA, Martins G. Análise da utilização do questionário de tolerância de Fagerström (QTF) como instrumento de medida da

dependência nicotínica. Jornal de Pneumologia. 2002;28:180-6. 12. Centers for Disease Control and Prevention. Physician and other health care professional counseling of smokers to quit–United States,1991. MMWR. 1993;42:8547. 13. National Cancer Institute. Tobacco and the clinician: interventions for medical and dental practice. Monograph No. 5. NIH Publication n. 94 a 3696, 1994. 14. Kreuter MW, Chheda SG, Bull FC. How does physician advice influence patient behavior? Evidence for a priming effect. Arch Fam Med. 2000;9:426-33. 15. Diclemente CC, Prochaska JO. Self-change and therapy change of smoking behavior: a comparison of processes of change in cessation and maintenance. Addict Behav. 1982;7(2):133-42. 16. Fiore MC, Jaen CR, Bakeretal TB. Clinical Practice Guideline: Treating Tobacco Use and Dependence, Tobacco Use and Dependence Guideline Panel, US. Department of Health and Human Services, Rockville, Md, EUA, 2000. Disponível em: www.ahrq.gov/path/tobacco.htm#Clinic. 17. Miller WR, Rollnick S. Ten things that motivational interviewing is not. Behavioural and Cognitive Psychotherapy. 2009;37(2):129-40. 18. Henningfield JE, Fant RV, Buchhalter AR, Stitzer ML. Pharmacotherapy for nicotine dependence. CA: A Cancer Journal for Clinicians. 2005;55(5):281-99. 19. Stead LF, Perera R, Bullen C, Mant D, Lancaster T. Nicotine replacement therapy for smoking cessation. Cochrane Database Syst Rev. 2013;11:CD000146. 20. Cordioli A. Psicofármacos: consulta rápida. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2011. 21. Cahill K, Stevens S, Perera R, Lancaster T. Pharmacological interventions for smoking cessation: an overview and network meta-analysis. Cochrane Database Syst Rev. 2013; 5:CD009329. 22. Jain R, Majumder P, Gupta T. Pharmacological intervention of nicotine dependence. Biomed Res Int. 2013; 2013:278392.

BIBLIOGRAFIA McRobbie H, Hajek P. Nicotine replacement therapy in patients with cardiovascular disease: guidelines for health professionals. Addiction. 2001;96(11):1547-51. Mills EJ, Wu P, Lockhart J, Wilson K, Ebbert JO. Adverse events associated with nicotine replacement therapy (NRT) for smoking cessation. A systematic review and metaanalysis of one hundred and twenty studies involving 177,390 individuals. Tob Induc Dis. 2010;8:8. Rollnick S, Miller WR, Butler CC. Motivational interviewing in health care. New York:

Guilford, 2008.

Capítulo 17

OUTRAS DEPENDÊNCIAS QUÍMICAS Marco Antonio Nocito Echevarria e Cláudio Jerônimo da Silva

INTRODUÇÃO O uso de substâncias psicoativas tem acompanhado a humanidade há milênios. O ópio é utilizado há pelo menos 3.500 anos, e existem referências ao uso da maconha desde a civilização chinesa antiga. Apesar disso, as propriedades de perdurar o uso, as ações reforçadoras e as alterações no padrão de comportamento, em alguns indivíduos, não podem ser explicadas unicamente por seus efeitos agradáveis iniciais ou outros efeitos psicotrópicos. Dependência e abuso podem ocorrer com qualquer substância psicoativa, e todas elas parecem dividir uma mesma via final, responsável por suas propriedades reforçadoras. Cerca de 5,6 milhões de pessoas experimentaram cocaína no ano de 2012 (4% da população); 45% da população experimentou cocaína antes dos 18 anos e 48% dos que usaram no último ano se tornaram dependentes. No caso da maconha, 7% dos brasileiros experimentaram-na no ano de 2012 (cerca de 8 milhões de pessoas), e 62% destes o fizeram antes dos 18 anos. Entre os que a usaram no último ano, 37% eram dependentes. Embora o uso de benzodiazepínicos seja muito frequente, pesquisas epidemiológicas ainda precisam ser realizadas para estimar esse número no Brasil. Este capítulo apresenta uma visão geral das principais substâncias psicoativas (exceto álcool e tabaco), assim como de fármacos com potencial para abuso e dependência: maconha, cocaína, crack, benzodiazepínicos e opioides. No final do capítulo, apresenta-se uma breve introdução sobre entrevista motivacional e prevenção de recaídas.

NEUROBIOLOGIA Alguns comportamentos são fundamentais para a preservação da espécie. Tais comportamentos, como sexo e alimentação, são reforçados pela sensação de prazer envolvida nessas atividades. A liberação de dopamina no circuito de recompensa cerebral está envolvida na sensação de prazer e nas propriedades reforçadoras de tais comportamentos. O circuito de recompensa cerebral é composto por área tegmentar ventral, núcleo accumbens e córtex pré-frontal (Figura 17.1). As substâncias de abuso, por diferentes vias, causam grandes liberações de dopamina no núcleo accumbens. Estas são maiores do que as obtidas com comportamentos fisiológicos, tornando a substância eventualmente a principal motivação do indivíduo. Estão envolvidos também na neurobiologia da dependência a amígdala e o hipocampo.

Figura 17.1 Circuito de recompensa cerebral. A. No corte longitudinal, pode-se identificar as estruturas que formam o sistema límbico (apontadas em rosa). O sistema límbico é filogeneticamente muito antigo, existindo em todos os vertebrados. Esse sistema é responsável pela regulação do sistema emocional. B. Dentro do sistema límbico, pode-se identificar uma área que está relacionada com a sensação de prazer, que inclui o prazer sexual e aquele gerado pelo uso de substância. Essa área é denominada circuito de recompensa cerebral. Estudos em animais demonstram que estímulos elétricos nessas regiões específicas do sistema límbico provocam sensações de prazer e levam a repetidas tentativas de estimulação, fazendo com que os animais negligenciem todas as outras atividades, como a procura de alimento e atividade sexual. A partir destas observações, pesquisas utilizando substâncias marcadas identificaram quais são as estruturas relacionadas com o circuito de recompensa cerebral. Adaptada da ilustração de Cláudio Jerônimo da Silva e Gisele Grimevicius Garbe. Essas estruturas também estão relacionadas com a impulsividade e compulsividade, ambas associadas à dependência química, seja como possível causa do uso experimental ou abusivo, seja como consequência do uso crônico. Impulsividade diz respeito à inabilidade do sujeito em obter êxito em não iniciar certas ações. Diz respeito também à incapacidade de escolha entre uma ação que leva a uma recompensa tardia mais interessante, em favor de recompensas imediatas. O comportamento impulsivo é associado a um circuito cerebral, envolvendo o córtex préfrontal e o striatum ventral. A falha do córtex pré-frontal em exercer um controle inibitório sobre o striatum ventral pode resultar em um comportamento impulsivo (Figura 17.2).

Figura 17.2 Neurocircuito associado à impulsividade. Adaptada de Stahl SM (2013).1 Compulsividade significa a inabilidade de deixar de fazer certas ações, uma vez que elas sejam iniciadas, ou em adaptar certos comportamentos, apesar das consequências negativas óbvias deles. Resulta em comportamentos que, apesar de inadaptativos, perseveram. Está associada a um circuito envolvendo o córtex pré-frontal e o striatum dorsal. Do mesmo modo, neurobiologicamente, está associada à falha de controle inibitório do córtex pré-frontal sobre o striatum dorsal (Figura 17.3).

Figura 17.3 Neurocircuito associado à compulsividade. Adaptada de Stahl SM (2013).1 O controle volitivo inibitório dependeria de ações de diferentes áreas do córtex préfrontal sobre o striatum ventral e dorsal. Muitos comportamentos começam como comportamentos impulsivos, mas com o tempo, neuroanatomicamente, por meio de neuroplasticidade e neuroadaptação, passam a ativar um sistema de formação de hábitos, envolvendo o striatum dorsal. Dessa maneira, comportamentos impulsivos podem se tornar comportamentos compulsivos. O uso de substâncias segue esse padrão. Apesar de o uso inicial ser voluntário ou ligado a um comportamento impulsivo, gradualmente o usuário perde a capacidade de controlar o uso e a procura por tais substâncias, e estes se tornam compulsivos.

AVALIAÇÃO INICIAL Uma boa avaliação é o primeiro passo para o diagnóstico preciso e consequente terapêutica adequada e eficaz.

ANAMNESE COMPLETA A avaliação é o que subsidia o diagnóstico por meio de informações precisas da história de uso, dos sintomas comórbidos, antecedentes familiares e sociais dos problemas relacionados com o uso, da motivação e outras comorbidades psiquiátricas. A investigação de doenças clínicas associadas e o exame físico completo não devem ser negligenciados (Figura 17.4 e Quadro 17.1).

Figura 17.4 Avaliação inicial psiquiátrica, clínica e do uso de substâncias. TDAH = transtorno do déficit de atenção com hiperatividade; HIV = vírus da imunodeficiência humana. Quadro 17.1 Sintomas mais frequentes considerados sinalizadores do uso problemático de substâncias. Alterações no padrão de sono Depressão Sintomas ansiosos Instabilidade do humor Irritabilidade Alterações de memória Alterações na percepção da realidade Faltas frequentes a compromissos sociais (trabalho, escola) Alterações na pressão arterial Problemas gastrintestinais Trauma e acidentes frequentes Disfunção sexual Adaptado de Diehl et al. (2011).2

DIAGNÓSTICO USO É importante caracterizar aspectos relacionados com o uso da substância, como idade de início do uso e contexto em que ocorreu. Devem ser caracterizados, também, a via de administração da substância, a quantidade consumida, o local em que é feito o consumo, o contexto em que ocorre o uso e outras características de seu padrão atual. Para o diagnóstico do uso, embora o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) utilize os critérios da síndrome de dependência de Grifith, não usa o termo “dependência” por considerar impreciso e com possível conotação negativa. O

termo utilizado é “transtorno associado ao uso de substâncias” (substance use disorder), que descreve todos os transtornos associados ao uso, desde formas leves até as mais graves, quando ocorrer um padrão de uso que cause sofrimento ou prejuízo com pelo menos dois dos seguintes critérios dentro de um período de 12 meses:3 1. A substância é consumida em maiores quantidades ou por um período mais longo que o pretendido 2. Desejo persistente ou esforços malsucedidos para reduzir ou controlar o uso da substância 3. Muito tempo é gasto em atividades necessárias para a obtenção da substância, na utilização ou recuperação de seus efeitos 4. Craving (sensação subjetiva de urgência para o uso da substância) 5. Perda da capacidade de cumprir com obrigações e papéis sociais 6. Uso da substância apesar dos problemas persistentes causados ou exacerbados por ele 7. Redução de repertório (outras atividades são deixadas de lado em favor do uso da substância) 8. Uso recorrente em situações que podem estar associadas a danos físicos 9. O uso da substância é mantido, apesar do conhecimento de ter problemas físicos ou psicológicos causados por ela 10. Tolerância (necessidade de doses cada vez maiores para se atingir o efeito desejado) 11. Abstinência.

GRAVIDADE DO USO O diagnóstico de transtorno relacionado com o uso de substância é genérico e não descreve o impacto que este teve na vida daquele indivíduo que usa em um determinado contexto social, familiar, profissional e ocupacional. O diagnóstico da gravidade do uso, portanto, ajuda a individualizá-lo e saber quais foram as áreas da vida afetadas e que necessitarão de intervenção e apoio para serem reestruturadas. Portanto, é fundamental avaliar os problemas decorrentes do uso nos diversos domínios da vida (social, ocupacional, familiar, educacional), assim como quaisquer outros prejuízos decorrentes. Sintomas de intoxicação e abstinência, assim como tentativas anteriores de interromper o uso devem ser investigados. Ao final dessa etapa, pode-se classificar a gravidade do uso em: • •



Uso sem problemas: nesse caso, informar que todo uso tem o potencial de causar problemas e que não há evidências de quantidades de uso seguro Uso com problemas leves: problemas que não causaram muitos prejuízos, por exemplo: queda do desempenho escolar, mas não abandono da escola; prejuízo ocupacional, mas não perda do emprego etc. É necessário reduzir o consumo, assumindo a responsabilidade em mudar o comportamento e novo retorno para reavaliação Uso com problemas moderados a grave: variados graus de problemas levando a prejuízos mais graves na família, emprego, escola, financeiro, problemas com a justiça. Neste caso, os problemas consequentes do uso devem ser contemplados e

monitorados pelo tratamento.

MOTIVAÇÃO É fundamental estabelecer o diagnóstico motivacional. Ele norteia a conduta não farmacológica e até a farmacológica. A mudança de comportamentos passa por diferentes etapas denominadas estágios motivacionais. Deve-se avaliar em qual estágio motivacional o indivíduo se encontra (Tabela 17.1).

COMORBIDADES O uso de substâncias psicotrópicas está associado a muitas patologias psiquiátricas e clínicas. Além disso, a ação dessas substâncias pode mimetizar, atenuar ou piorar transtornos psiquiátricos. Portanto, uma etapa fundamental do diagnóstico e que não deve ser negligenciada é a investigação pormenorizada das doenças comórbidas. Os transtornos psiquiátricos comórbidos mais comuns são esquizofrenia, transtornos do humor, de ansiedade, da alimentação, da conduta e de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). A relação entre o uso de substâncias e transtornos psiquiátricos primários seria bidirecional: o transtorno primário resultaria em fragilidades que aumentariam a chance de envolvimento com substâncias, assim como o uso destas influenciaria o curso ou facilitaria o surgimento de outras comorbidades psiquiátricas. A alta prevalência de uso de substâncias no TDAH, por exemplo, poderia ser explicada pelo fato de que essas substâncias aumentam a liberação de dopamina no sistema nervoso central (SNC), o que, do ponto de vista farmacológico, pode ser compreendido como uma tentativa de alívio dos sintomas. Tabela 17.1 Estágios motivacionais. Pré-contemplação

Não considera a possibilidade de mudar e não se preocupa com a questão

Contemplação

Admite o problema, é ambivalente e considera adotar mudanças

Preparação

Inicia algumas mudanças, planeja condições para mudar

Ação

Implementa a mudança, investindo tempo e energia

Manutenção

Continuidade do processo de mudança implementado, trabalha para manter ganhos e evitar recaídas

Recaída

Falha no processo de mudança e retorno ao comportamento anterior

Adaptada de Mari e Kieling (2013).4

SUBSTÂNCIAS ESPECÍFICAS

MACONHA Cannabis sativa é a droga ilícita mais utilizada em países desenvolvidos. Estima-se em 140 a 190 milhões o número de usuários no mundo. Tem em sua composição mais de 80 canabinoides conhecidos, a maioria com pouco efeito psicoativo. Os principais canabinoides são o D-tetra-hidrocanabinol (THC), responsável pelos efeitos psicoativos, e o canabidiol com vários efeitos opostos ao THC, incluindo efeito antipsicótico. O THC é um agonista parcial do receptor CB1 e o canabidiol pode agir como antagonista CB1 e CB2.

Intoxicação O uso de maconha em situações sociais está associado aos seguintes efeitos subjetivos: relaxamento, leve euforia, intensificação das experiências sensoriais, alterações na percepção e avaliação do tempo. A maconha também provoca alterações motoras, efeito analgésico, hipotermia e aumento de apetite. O THC em doses elevadas também pode provocar crises de pânico e quadros psicóticos transitórios (Tabela 17.2). Tabela 17.2 Intoxicação e estruturas neurais associadas à ação em receptores CB1. Efeito

Estrutura

Alterações motoras

Núcleos da base e cerebelo

Déficits cognitivos e amnésia anterógrada

Regiões do córtex cerebral e hipocampo

Efeitos hedônicos e reforçadores

Núcleo accumbens

Efeito analgésico

Substância cinzenta periaqueductal

Efeitos emocionais

Amígdala

Hipotermia e aumento de apetite

Hipotálamo

Adaptada de Diehl et al. (2011).2

Déficits cognitivos Foram detectados prejuízos cognitivos em usuários crônicos de maconha, principalmente em relação a memória, atenção, funções executivas e controle inibitório de respostas. Os déficits parecem ser maiores quando o início do uso ocorre na adolescência, quando o neurodesenvolvimento ainda não se completou. Um estudo recente encontrou redução significativa nos volumes do hipocampo e da amígdala de usuários submetidos ao uso diário de maconha por 20 anos, em média.

Efeitos sobre a ansiedade e o humor Usuários frequentes de maconha apresentam maior prevalência de transtornos de ansiedade. Há também comorbidade maior com transtorno afetivo bipolar do que o esperado pelo acaso.

Associação com psicose Doses elevadas de THC provocam quadros psicóticos transitórios em voluntários normais. Pacientes esquizofrênicos apresentam, também, recorrência transitória de seus sintomas psicóticos. Usuários pesados de maconha (mais de 50 vezes aos 18 anos) tiveram um risco 3 vezes maior de desenvolver esquizofrenia. O risco parece ser maior, quanto mais precoce o uso.

Tratamento Na intoxicação. Não há tratamento específico para a intoxicação de maconha. Para os efeitos cardiovasculares (taquicardia, elevação da pressão arterial e hiperemia conjuntival), pode-se usar propranolol. Ataques de pânico induzidos por maconha. Benzodiazepínicos como lorazepam ou alprazolam. Quadros psicóticos induzidos por maconha. Dá-se preferência a antipsicóticos com pouca ação anticolinérgica, uma vez que efeitos anticolinérgicos fazem parte da intoxicação por maconha. Abstinência e dependência de maconha. São estratégias eficazes no tratamento da dependência de maconha: entrevista motivacional, terapia cognitivo-comportamental (TCC) e manejo de contingências. Entretanto, os índices de resposta são modestos e a recaída é frequente. Não há tratamento farmacológico aprovado para a dependência de maconha. Podem ser usados benzodiazepínicos para tratar o componente de ansiedade da abstinência.

COCAÍNA E CRACK A cocaína é uma droga ilícita com fortes propriedades estimulantes. Seu mecanismo farmacológico se dá, principalmente, pelo bloqueio na receptação de dopamina e norepinefrina no sistema mesolímbico-mesocortical. É a droga ilícita que mais motiva a procura por tratamento, apesar de não ser a mais consumida, demonstrando o impacto pessoal e familiar da dependência. O impacto social e pessoal é ainda demonstrado pela considerável mortalidade (17,6% em 5 anos), principalmente por infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV, human immunodeficiency virus) e homicídio, e pelo forte caráter compulsivo e causador de fissura associado ao crack, que pode levar a comportamentos violentos, venda de objetos pessoais, furtos e roubos na busca desenfreada por uma nova dose.

O crack é obtido pela adição de uma base à cocaína, possibilitando seu consumo pela via fumada, em vez da via intranasal. Por meio dessa mudança na administração da substância, ocorre disponibilidade quase imediata ao cérebro, alcançando concentrações maiores com uma mesma dose. Assim, origina-se um padrão compulsivo de consumo da droga ilícita, com muitos usuários passando a noite ou dias seguidos consumindo-a até a completa exaustão. O crack provoca uma reação de intensa euforia, de curta duração, seguida de intensa fissura e desejo por nova dose. No Brasil, houve um grande aumento no número de usuários de crack a partir da década de 1990.

Intoxicação A intoxicação pela cocaína é caracterizada por euforia, autoconfiança elevada, aumento da vigília e alerta, redução de apetite, ansiedade, aumento do senso de energia e da cognição e uma gama de sintomas adrenérgicos, como hipertermia, sudorese, taquicardia, hiperventilação e midríase. Podem surgir, ainda, estados paranoides e psicóticos, além de comportamentos violentos. O risco de superdosagem é maior com o uso concomitante de álcool pela formação do metabólito cocaetileno.

Dependência de cocaína A sensação de euforia provocada pela cocaína age como reforço e motiva os usuários a buscar uma nova dose. O usuário passa, com o tempo, a apresentar uma dissociação entre o querer e o gostar, pois o uso passa a ser visto como prejudicial, contudo, permanece a compulsividade deste.

Síndrome de abstinência Ocorre em três fases, como mostra a Tabela 17.3. Tabela 17.3 Fases da síndrome de abstinência. Fase

Crash

Síndrome disfórica tardia

Tempo Ocorre na primeira hora após o consumo e pode durar 3 a 4 dias

Dura de 2 semanas a 4 meses

Características Hipersonia, esgotamento físico, sintomas depressivos, podendo já haver fissura. Ocorre por depleção dos níveis de dopamina Intensa fissura, sintomas depressivos, irritabilidade, apatia e anedonia Há melhora gradual dos prejuízos, podendo ocorrer recaídas

Extinção

Duração variável de meses até anos

relacionadas com situações de estresse ou gatilhos ambientais, como o uso de álcool

Tratamento Intoxicação Não há terapêutica específica para a intoxicação por cocaína. As medidas recomendadas são: • • • • •

Colocar o paciente em local tranquilo Medições de sinais vitais frequentes Monitoramento cardíaco Benzodiazepínicos, se houver agitação ou ansiedade extremas Antipsicóticos com cautela (diminuem o limiar convulsivo).

Abstinência e dependência de cocaína O topiramato foi a primeira substância a mostrar eficácia no tratamento da dependência de cocaína, embora não possua ainda aprovação da Food and Drug Administration (FDA). Um ensaio clínico duplo-cego, randomizado, placebo-controlado mostrou que o topiramato na dose-alvo de 300 mg foi efetivo em reduzir a fissura e os dias livres de cocaína.5

BENZODIAZEPÍNICOS E HIPNÓTICOS Os benzodiazepínicos são moduladores alostéricos dos receptores GABA-A, ou seja, eles aumentam a frequência de abertura desses canais, na presença do GABA (ácido gamaaminobutírico), possibilitando, assim, o maior influxo de Cl-. Essa ação provoca hiperpolarização do neurônio, que se traduz em efeitos sedativos, hipnóticos e ansiolíticos. Os benzodiazepínicos têm potencial de causar dependência, tolerância e abstinência, quando usados cronicamente. Além disso, são contraindicados em gestantes, pelos riscos de malformação associados, e devem ser prescritos com cautela em idosos, em razão do risco de quedas. Os benzodiazepínicos podem ser divididos de acordo com sua meia-vida (Tabelas 17.4 e 17.5): Tabela 17.4 Meia-vida dos benzodiazepínicos. Ultracurta Benzodiazepínico

Meia-vida (h)

Midazolam

1,5 a 2,5

Curta Benzodiazepínico

Meia-vida (h)

Alprazolam

6 a 20

Bromazepam

12

Oxazepam

5 a 20

Lorazepam

9 a 22

Clorozepato

6a8

Estazolam

8 a 24

Intermediária Benzodiazepínico

Meia-vida (h)

Clordiazepóxido

10 a 29

Clonazepam

19 a 42

Diazepam

14 a 61

Nitrazepam

16 a 48

Longa Benzodiazepínico

Meia-vida (h)

Cloxazolam

20 a 90

Clobazam

50

Flurazepam

36 a 120

Adaptada de Diehl et al. (2011).2

Tabela 17.5 Equivalência de dose entre benzodiazepínicos. Benzodiazepínico

Dose terapêutica (mg)

Dose equivalente (mg)

Diazepam

4 a 40

10

Midazolam



15

Alprazolam

0,75 a 4

1

Bromazepam

1,5 a 18

6

Lorazepam

2a6

2

Clordiazepóxido

15 a 100

25

Clonazepam

1a3

2

Nitrazepam

5 a 10

10

Adaptado de Diehl et al. (2011).2

A intoxicação por benzodiazepínicos caracteriza-se pelos seguintes sintomas: • • • • •

Depressão do SNC Sonolência Intenso relaxamento muscular Diminuição de reflexos Confusão mental.

Síndrome de abstinência e dependência Ocorre 2 a 3 dias após a parada abrupta ou diminuição de dose, principalmente com benzodiazepínicos de meia-vida curta, podendo permanecer por até 10 dias. Em maior ou menor grau, acontece em 50% dos pacientes com uso por mais de 12 semanas. Parece ser dose-dependente (Quadro 17.2). Quadro 17.2 Síndrome de abstinência de benzodiazepínicos. Ansiedade

Agitação

Insônia

Convulsões

Tremores

Alucinações

Cefaleia

Náuseas

Dores musculares

Anorexia

Irritabilidade

Vômitos

Dificuldade de concentração

Palpitações

Disforia

Despersonalização/desrealização

Sintomas gripais

Inquietação

Adaptado de Diehl et al. (2011).2

Tratamento Intoxicação • • • • •

Atendimento em sala de emergência Monitoramento dos sinais vitais Suporte clínico (hidratação e manutenção de vias respiratórias) Esvaziamento gástrico, se possível Flumazenil intravenoso (IV), ampola de 5 ml (0,5 mg), deve-se iniciar com 0,2 a 0,3 mg, diluída em soro fisiológico a 0,9%, solução de glicose a 5% ou lactato de Ringer. Se o nível de consciência desejado não for alcançado em 30 s, doses subsequentes (0,5 mg) podem ser repetidas a cada 60 s até o máximo de 3 mg. A velocidade da infusão deve ser ajustada individualmente. Caso não haja reversão, deve-se considerar outra etiologia para o rebaixamento. Uso cauteloso: há risco de convulsões e síndrome de abstinência.

Síndrome de abstinência A melhor maneira de se evitar a síndrome de abstinência consiste na retirada gradual dos benzodiazepínicos. Pode-se retirar 25% da dose por semana. Em alguns casos, pode ser necessário negociar um prazo com o paciente e reduzir a dose conforme a tolerabilidade, geralmente em 6 a 8 semanas. Pode-se, também, antes da retirada da dose, calcular a dose equivalente para um benzodiazepínico de meia-vida mais longa (clonazepam ou diazepam), realizar a troca do benzodiazepínico de meia-vida curta por um de meia-vida longa e, então, proceder à diminuição gradual da dose, objetivando-se mais conforto para o paciente. Outra estratégia bastante usada é a substituição por benzodiazepínicos em forma líquida, que facilitam a redução da dose.

OPIOIDES O Brasil é o país com maior consumo de analgésicos opioides da América do Sul. Apesar disso, o consumo de opioides no país é considerado baixo. O consumo de heroína está fortemente associado à disseminação de HIV e hepatites virais, em razão do uso IV. Os opioides são substâncias supressoras do sistema nervoso central e possuem ação periférica, com efeitos analgésicos, antitussígenos e antidiarreicos. Ligam-se aos receptores opioides mu (m), kappa (k), delta (d), épsilon (e) e rô (r), nos quais também se ligam peptídios endógenos, como as encefalinas e as endorfinas. Os receptores m medeiam efeitos eufóricos, analgesia, depressão respiratória e constipação intestinal. Os receptores k são responsáveis por miose, sedação, despersonalização e desrealização.

Os receptores d e e medeiam, respectivamente, alterações do humor e sedação. Finalmente, os receptores r estão associados a analgesia, alterações do humor e talvez alucinações. No cérebro, esses receptores encontram-se principalmente em áreas corticais sensoriais, áreas límbicas, hipotálamo e substância cinzenta periaqueductal (Tabelas 17.6 e 17.7). Tabela 17.6 Classificação dos opioides. Classe

Modo de obtenção

Substâncias

Naturais

Derivados da planta papoula

Ópio, morfina, codeína, tebaína

Obtidos por modificações na estrutura química

Heroína, oxicodona, hidroxicodona, oximorfona,

dos opioides naturais

hidroximorfona

Semissintéticos

Metadona, meperidina, petidina, fentanila, L-α-

Sintéticos

Obtidos totalmente em laboratório

Agonistas-antagonistas



Buprenorfina, nalbufina, pentazocina

Antagonistas puros



Naltrexona, naloxona

acetilmetadol ou levometadilacetato

Adaptada de Nastasy et al. (2002).6

Tabela 17.7 Opioides, vias de administração e meia-vida. Fármaco

Via de administração

Meia-vida (h)

Morfina

VO, IV, IM, intratecal

3a4

Heroína

VO, IV, IM, fumada,

<1

Metadona

VO, IV, IM

> 24

Petidina

VO, IM

2a4

Buprenorfina

Sublingual, intratecal, SC

12

Fentanila

IV, epidural, emplastro, transdérmica

1a2

Codeína

VO

Pró-fármaco; metabolizado para morfina e outros opioides ativos

SC = via subcutânea; VO = via oral; IV = via intravenosa; IM = via intramuscular. Adaptada de Nastasy et al. (2002).6

Intoxicação • • • • • • • • • • • •

Euforia inicial Retardo psicomotor Apatia Prejuízo do julgamento Letargia Fala ininteligível Rebaixamento do nível de consciência Prejuízos da atenção e memória Miose Coma Disforia Depressão respiratória.

Abstinência O início se dá 12 a 18 h após o último consumo, com duração aproximada de 2 semanas. Pode ser dividida em abstinência aguda e crônica. Síndrome de abstinência aguda. Inicia-se em 6 h em usuários de opioides de ação curta, como a heroína, e em 1 a 2 dias em usuários de opioides de ação mais longa, como a metadona. Caracteriza-se pelos seguintes sintomas: • •

Sintomas iniciais: sudorese, lacrimejamento, rinorreia, bocejo e fissura Sintomas tardios: mialgias, cólicas abdominais, midríase, tremores, insônia, ondas de calor, inquietação, náuseas, vômitos, diarreia, hipertensão e taquicardia.

Síndrome de abstinência crônica. Caracteriza-se por um quadro mais sutil com duração de até 6 meses.

Tratamento Intoxicação • • • •

Monitoramento Suporte clínico (hidratação + manutenção das vias respiratórias e suporte ventilatório) Lavagem gástrica + carvão ativado Naloxona IV na superdosagem – dose inicial de 0,4 a 0,8 mg. Se o paciente não acordar em 15 min, deve-se administrar 1,6 mg IV. Aguardam-se mais 15 min; se ele não acordar, pode-se administrar 3,2 mg IV. Se após 15 min não houver melhora do rebaixamento, reconsidera-se o diagnóstico.

Abstinência e síndrome de dependência O tratamento farmacológico é fundamental na dependência de opioides em virtude da

rápida dependência física induzida. Ele é composto por: desintoxicação e manutenção. Há duas maneiras de realizar a desintoxicação: curta (30 dias de tratamento farmacológico) ou longa (30 a 180 dias de tratamento farmacológico). As taxas de abstinência são maiores na desintoxicação longa. Após a fase de desintoxicação, segue-se a de manutenção, com tratamento farmacológico de 6 a 24 meses. Pode-se lançar mão das seguintes estratégias na fase de desintoxicação: • • • •

Retirada progressiva da substância de abuso Utilização de fármacos que apresentem tolerância cruzada com a substância de abuso Sintomáticos para os sintomas de abstinência Substâncias que afetam os mecanismos que produzem sintomas de abstinência.

Farmacoterapia Metadona. É um agonista opioide com meia-vida longa, administrado por via oral (VO) e pico de concentração em 4 h. Reduz o risco de superdosagem, proporciona maior adesão do paciente ao tratamento por reduzir os sintomas de abstinência, reduz o consumo de opioides não prescritos, o envolvimento em delitos e o risco de comportamentos de risco para HIV e hepatites virais decorrente do uso IV. A dose inicial é de 5 a 20 mg/dia VO, podendo-se acrescentar doses de 5 a 10 mg, se houver recidiva dos sintomas de abstinência. É utilizada na fase de desintoxicação e na fase de manutenção, e, nesta última, tem como função evitar a recaída. Buprenorfina. Trata-se de um agonista em doses baixas (1 a 3 mg) e um antagonista em doses maiores que 8 mg. Tem menor risco de intoxicação e dependência. Reduz os sintomas de abstinência de modo mais eficaz do que a metadona. O objetivo é uma dose de 8 mg/dia (equivalentes a 65 mg de metadona), por via sublingual, entretanto, no Brasil, dificilmente ultrapassam-se 3 mg/dia, uma vez que a maior parte dos usuários é dependente de doses baixas de opioides. Clonidina. É um alfa-2-agonista utilizado na dose de 0,6 a 2 mg 4 a 5 vezes/dia para atenuar os sintomas noradrenérgicos provenientes da síndrome de abstinência. Não reduz a fissura. A principal indicação é na fase de desintoxicação, para tratar dependentes que não se interessam pelo tratamento com metadona ou no tratamento de usuários de opioides sintéticos. Naltrexona. Antagonista opioide VO, é indicada para prevenir a recaída após a fase de desintoxicação. Dose: 50 a 100 mg VO, 2 a 3 vezes/semana. Pode desencadear síndrome de abstinência, se houver uso recente de opioides. Em altas doses, pode causar fadiga e hepatotoxicidade.

TRATAMENTO NÃO FARMACOLÓGICO | MACONHA, COCAÍNA, BENZODIAZEPÍNICOS E OPIOIDES Algumas técnicas psicológicas e estilos de abordagem ao paciente são eficazes para o

tratamento do transtorno por uso de qualquer substância. Entre elas, a mais utilizada é a entrevista motivacional (EM), que não é precisamente uma técnica, mas um estilo de abordagem que ajuda no processo de mudança do estado motivacional, na adesão ao tratamento e na prevenção de recaída. Esta técnica é oriunda do modelo cognitivocomportamental para gênese da dependência química e da TCC.

ENTREVISTA MOTIVACIONAL Consiste em uma abordagem de aconselhamento utilizada na mudança de comportamentos e em todas as fases do tratamento da dependência química. Prioriza a abordagem empática na relação do profissional de saúde e do paciente, de modo não confrontativo. A EM evita o confronto para não provocar a resistência do paciente ao ser confrontado. Também é embasada no processo colaborativo, reconhecendo que o paciente tem competência e recursos próprios para a mudança do comportamento. A ambivalência é vista como normal e o desejo de mudança é mais importante do que a necessidade de mudança. Trata-se de uma abordagem de poucas sessões, com eficácia comprovada e excelente custo-benefício (Tabela 17.8). Tabela 17.8 Os quatro princípios da entrevista motivacional – conhecidos pelo acrônimo RULE (resist, understand, listen, empower). Resist

Suprimir o ímpeto de confrontar o paciente a abandonar o comportamento prejudicial Entender as razões e os desejos intrínsecos do paciente para a mudança comportamental, uma vez que as razões

Understand

do paciente têm mais probabilidade de serem efetivas para a mudança. O paciente é quem deve verbalizar as razões para a mudança

Listen

Escuta empática para encontrar as razões para a mudança do comportamento vindas do paciente

Empower

Ajudar o paciente a encontrar meios de realizar as mudanças e incentivá-lo a participar ativamente de seu tratamento

Três estilos de comunicação Opõe-se ao embate que ocorre muitas vezes em uma consulta clínica, no qual há o clínico de um lado, tentando persuadir o paciente a mudar seu comportamento, e o paciente de outro, resistindo à mudança Acompanhar. Atenção total ao que o paciente está dizendo, entendendo suas experiências e seus valores. Direcionar. Em alguns momentos, o paciente tem que ser encorajado a confiar nas orientações terapêuticas. Orientar. Oferecer ao paciente meios de realizar a mudança.

Três habilidades de comunicação Perguntar, escutar e informar. Torna possível a aplicação de qualquer um dos três estilos de comunicação. Consistem no comportamento que o profissional deve ter durante sua prática Perguntar. Devem-se realizar perguntas abertas, possibilitando que o paciente fale sobre seus sentimentos e evoque motivações internas. Escutar. Deve-se escutar com atenção o paciente e checar se compreendeu o que ele quis dizer. Informar. Deve-se transmitir ao paciente informações e recomendações sobre o seu tratamento, de maneira clara e simples.

Metodologia da entrevista motivacional É conhecida pelo acrônimo PARR: perguntas abertas, afirmar (reforço positivo), refletir e resumir. Essa metodologia permite ao clínico a estruturação de seu diálogo com o paciente. Utiliza-se a estratégia 2 para 1, ou seja, para cada pergunta aberta feita, devese realizar duas outras estratégias. Perguntas abertas. Perguntas que não podem ser respondidas com respostas curtas, estimulando, asssim, o paciente a falar. Refletir. É a principal estratégia. Trata-se de realizar uma reflexão sobre o que o paciente disse e o que ele quis dizer. Faz uma inferência quanto ao sentido implícito da fala do paciente. Afirmação (reforço positivo). Por meio de apoio, elogios e apreciação do profissional às conquistas do paciente envolvidas na mudança comportamental. Resumir. Funciona para organizar e sintetizar as ideias do paciente e permite que este tenha melhor compreensão delas.

PREVENÇÃO DE RECAÍDAS Define-se recaída como o retorno do padrão anterior de uso após um período de remissão. O lapso é um evento mais discreto, caracterizado pelo retorno ao uso inicial da substância. A dependência de substâncias é associada a altas taxas de recaída que tendem a diminuir quanto maior é o tempo de abstinência. O modelo de prevenção de recaída de Marlatt e Gordon utiliza um referencial cognitivo-comportamental para entendêla, tratá-la e desenvolver técnicas eficazes junto ao paciente para enfrentá-la. Esse modelo consiste em três pontos fundamentais: 1. Conscientização do problema: o dependente deve reconhecer variáveis que influenciam a recaída, como a crença do indivíduo em sua capacidade para enfrentar situações de risco (autoeficácia) e que um comportamento previamente reforçado tende a reaparecer

2. Treinamento de habilidades de enfrentamento: visa à construção de estratégias de enfrentamento das situações de alto risco para a recaída 3. Modificação do estilo de vida: o paciente deve buscar um novo estilo de vida com equilíbrio entre estressores e recursos para lidar com eles. São fatores de alto risco para precipitar uma recaída: estados emocionais negativos, estados fisiológicos negativos (dores, abstinência), estados emocionais positivos, teste do controle pessoal, desejos e tentações, conflitos interpessoais, pressão social. As estratégias aplicáveis no modelo de prevenção de recaídas envolvem a restruturação cognitiva, ou seja, a ressignificação de crenças centrais cognitivas, crenças relativas às substâncias e pensamentos automáticos que são disfuncionais para alcançarse a abstinência. São exemplos de crenças disfuncionais: • • • •

“Os sintomas de abstinência serão tão intensos que eu não conseguirei suportá-los” “Eu não serei feliz, a menos que use a substância” “A droga é necessária para meu bom funcionamento psicológico, emocional ou social” “A droga trará alívio para minha depressão ou ansiedade”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O plano de tratamento para um paciente dependente de substâncias psicoativas, assim como em qualquer outra área da medicina, necessita de uma boa avaliação inicial e exame psíquico. A avaliação deve perseguir o propósito de estabelecer um bom diagnóstico do uso, da gravidade deste, da motivação e das comorbidades psiquiátricas. A intoxicação e a síndrome de abstinência são as principais intercorrências associadas ao uso e devem ser adequadamente diagnosticadas. O tratamento dependerá de qual substância foi utilizada. Algumas técnicas de abordagem ao paciente são eficazes em qualquer transtorno por uso de substâncias. A EM e a prevenção de recaída são as mais comumente utilizadas, com boas evidências de eficácia. O plano de tratamento deve contemplar não apenas o uso, mas seu impacto na vida da pessoa. Estabelecer um plano, entretanto, é só o primeiro passo. Este plano precisa ser constantemente monitorado e, sempre que necessário, novos recursos devem ser recrutados para o tratamento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1.

Stahl SM. Stahl’s essential psychopharmacology: neuroscientific basis and practical application. 4. ed. New York: Cambridge University Press, 2013.

2.

Diehl A, Cordeiro D, Laranjeira R. et al. Dependência química: prevenção, tratamento e políticas públicas. Porto Alegre: Artmed, 2011.

3.

American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders. 5. ed. Arlington, VA: American Psychiatric Association, 2013.

4.

Mari JJ, Kieling C. Psiquiatria na prática clínica. Barueri: Manole, 2013.

5.

Johson BA, Ait-Daoud N, Wang XQ, Penberthy JK, Javors MA, Seneviratne C et al. Topiramate for the treatment of cocaine addiction: a randomized clinical trial. JAMA Psychiatry. 2013;70(12):1338-46.

6.

Nastasy H, Ribeiro M, Marques ACPR. Projeto diretrizes. São Paulo: Associação Médica Brasileira, 2002.

BIBLIOGRAFIA Cordioli AV. Psicofármacos: consulta rápida. 4.ed. Porto Alegre: Artmed, 2011. Figlie NB, Bordin S, Laranjeira R. Aconselhamento em dependência química. 2. ed. São Paulo: Roca, 2010. Madruga C, Laranjeira, R, Pinsky J, Caetano R, Mitsuhiro SS. LENAD II: II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas no Brasil, 2012. Disponível em: http://inpad.org.br/lenad/sobreo-lenad-ii/ Acesso em 1/5/2014. Ribeiro M, Laranjeira R. O tratamento do usuário de crack. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2012. Sadock BJ, Sadock VA, Ruiz P (eds.). Kaplan and Sadock’s comprehensive textbook of psychiatry. 9.ed. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2009. Silva CJ, Laranjeira R. Neurobiologia da dependência química. In: Figlie NB, Bordin S, Laranjeira R. Aconselhamento em dependência química. 2.ed. São Paulo: Roca, 2010. Volkow ND, Wang GJ, Fowler JS, Tomasi D. Addiction circuitry in the human brain. Annu Rev Pharmacol Toxicol. 2012;52:321-36.

SEÇÃO III

POPULAÇÕES ESPECIAIS

Capítulo 18

PRINCÍPIOS DA PSIQUIATRIA NA INFÂNCIA E NA ADOLESCÊNCIA Laura Martins Feitosa, Gabriela Siloto, Ivete Gianfaldoni Gattás e Maria Conceição do Rosário e Sheila C. Caetano

INTRODUÇÃO No Brasil, existem cerca de 63 milhões de crianças e adolescentes com menos de 20 anos de idade.1 Destes, cerca de 12 a 15% apresentam problemas mentais.2 Esses dados revelam que cerca de 10 milhões de crianças e adolescentes brasileiros necessitam de avaliação e tratamento em saúde mental. Esses transtornos afetam o presente e terão impacto futuro em diversas áreas de suas vidas, como no desempenho escolar, no relacionamento familiar e com amigos, no aumento do risco de evasão escolar, engajamento em atividades ilegais, além de abuso e dependência de substâncias psicoativas. Um dos fatores que têm sido associados a pior resposta ao tratamento e maior prejuízo ao longo da vida é a demora no reconhecimento dos sintomas e no início do tratamento adequado. Considerando a alta prevalência e o impacto negativo ao longo da vida da criança e de sua família, é extremamente importante que os diversos profissionais da área de saúde adquiram conhecimentos sobre os vários aspectos envolvidos na identificação precoce dos sintomas, na avaliação e no diagnóstico das crianças e adolescentes que precisam de tratamento. Este capítulo tem como objetivo principal descrever as principais características de quadros psiquiátricos frequentes na infância e na adolescência.

DESENVOLVIMENTO NORMAL E PATOLÓGICO Existem vários desafios para a avaliação e o diagnóstico de transtornos psiquiátricos na infância e na adolescência. Entre eles, vale destacar que crianças e adolescentes estão ainda em desenvolvimento, o que faz os sintomas se apresentarem de modos diferentes nas diversas faixas etárias. Outra dificuldade é que não são as crianças que procuram ajuda, e sim seus cuidadores, com os quais é preciso interagir todo o tempo para que se tenha sucesso na avaliação. Sobre psicopatologia do desenvolvimento, é preciso ressaltar que, ao longo dos processos de maturação, diversos comportamentos podem ser evidenciados desde a infância até a idade adulta. De acordo com a idade de cada indivíduo, é possível compreender esses comportamentos como parte do desenvolvimento normal ou desvios de seu curso.

Uma prática clínica que envolva o atendimento de crianças e adolescentes deve acompanhar as mudanças que ocorrem ao longo dos anos, considerando os diversos aspectos físicos, genéticos, cognitivos, linguísticos, socioemocionais e comportamentais das crianças, mas também as variações possíveis dentro de uma população em seu contexto histórico e cultural. Dentro dessa perspectiva, durante algum tempo, houve um longo debate tentando distinguir quanto dos comportamentos infantis eram derivados da genética ou provenientes do ambiente no qual a criança se desenvolve. Estudos recentes demonstraram que tanto fatores genéticos quanto ambientais e neurobiológicos são importantes, e que todos eles interagem de maneira intensa e contínua, podendo, em alguns momentos, atuar como fatores de risco e em outros como fatores de proteção para a determinação das características individuais de cada pessoa.3-7 É importante lembrar que o desenvolvimento emocional da criança não se faz de modo linear, contínuo e progressivo. Seu funcionamento psíquico inclui certas manifestações que, por serem comuns e a princípio de natureza benigna, são consideradas “variações do normal”. Entre elas, destacam-se certos comportamentos regressivos e passageiros ligados a eventos habituais na vida da criança. São exemplos as crises de birra e manifestações de medo do pré-escolar, voltar a molhar a cama ou falar de modo regredido após o nascimento de um irmão. Alguns desses comportamentos podem ser considerados marcos do desenvolvimento emocional da criança, tal como a ansiedade diante de estranhos, que se manifesta a partir dos 8 meses de vida. O conhecimento do desenvolvimento normal de uma criança e a compreensão da interação desses fatores ao longo de sua formação como sujeito possibilita uma clínica aberta ao diálogo interdisciplinar, uma regra no campo da infância e da adolescência, e mais atenta à qualidade de vida da criança e de sua família. A Tabela 18.1 contém um resumo das principais características do desenvolvimento de acordo com as faixas etárias.

AVALIAÇÃO E DIAGNÓSTICO EM PSIQUIATRIA DA INFÀNCIA E DA ADOLESCÊNCIA A avaliação psiquiátrica de crianças e adolescentes (PIA) tem a particularidade de contar com um interlocutor: os pais (ou outros cuidadores). A demanda espontânea é incomum, mesmo em adolescentes, e não é frequente que o motivo da consulta seja uma queixa proveniente da própria criança. Outras vezes, os pais conduzem o filho para a consulta não porque percebem uma dificuldade na criança, mas por uma exigência externa ao ambiente familiar, como da escola. Portanto, o pedido de tratamento por parte do paciente, a criança ou o adolescente, precisa ser compreendido nesse contexto. A entrevista deve ser direcionada para uma visão mais ampla possível, tentando identificar a funcionalidade do paciente nos vários contextos de vida, como escola, família, atividades de lazer, comunidade onde vive, grupo de amigos etc., além de dados específicos sobre o desenvolvimento, tratamentos anteriores ou patologias associadas. É fácil perceber que muitas dessas informações não podem ser obtidas com o próprio paciente e tais aspectos são fundamentais para seu diagnóstico, prognóstico e

organização de projeto terapêutico. Desse modo, para a realização do diagnóstico e posterior conduta, a avaliação deve englobar tanto os familiares quanto o paciente, sendo que a entrevista idealmente deve ser realizada com toda a família, mas também separadamente com a criança para que, além da história clínica, seja possível realizar o exame psíquico do paciente. Na Tabela 18.2, são apresentadas algumas características que devem ser observadas durante a avaliação das funções psíquicas de crianças e adolescentes. Tabela 18.1 Resumo dos marcos do desenvolvimento de 0 a 5 anos. Marcos de cognição e linguagem •

Diferenciação de estímulos externos



Reconhece expressões faciais e prefere rostos

Marcos de comportamento, socialização e desenvolvimento emocional



Comportamento e contenção emocional iniciais são baseados no estabelecimento de rotinas

familiares

(comer, dormir etc.) 0 a 6 meses



Usa o choro para expressar necessidades básicas •



Precursores da fala: lalação (4 meses)



Atenção conjunta (troca de expressões e sons

Sorriso social (6 semanas como resposta a estímulo/3 a 4 meses iniciado espontaneamente pelo bebê)

entre bebê e cuidador) •

Objeto permanente (8 meses): pessoas e objetos



principal

continuam a existir mesmo quando não vistos 7 a 12 meses



Aponta para os objetos



Emergência da linguagem e atende ao próprio



Ansiedade de separação deste cuidador



Aquisição de referências sociais: diferencia ele mesmo de outros/início da aquisição de nuances

nome

sociais

Avanços cognitivos na memória, atenção e



Reconhece a si mesmo

resolução de problemas



Demonstra empatia



Brinca de faz de conta e constrói coisas



Usa linguagem ou outros comportamentos para



Expansão do vocabulário e combina duas ou mais



1 a 2 anos

Desenvolve relações de apego ao cuidador

palavras

regular experiências emocionais •

Menor intensidade da ansiedade de separação



Aumento das capacidades de representação

Comportamento de “birra” relacionado à •

mental (p. ex., amigos imaginários) •

Busca de explicações de causa/efeito (fase dos “por ques”)

2 a 5 anos



Representação dual (3 a 4 anos). Reconhece um

comunicação verbal •

Desenvolvimento das primeiras amizades



Surgimento de preceitos éticos e regras socioculturais

objeto como ele mesmo e com sua função simbólica (p. ex., fotografia/lembrança) •



Melhora do autocontrole e uso de atenção seletiva, dividida e focada



Crescimento da capacidade de distinguir estados emocionais/mentais de terceiros



Curiosidade sexual e autoexploração



Definição de gênero (5 a 6 anos)



Autoestima: influenciada pelos fatores sociais, identificação com adultos de referência e em comparação com seus pares

Diferenciação entre direita e esquerda (orientação espacial e temporal)

6 a 11 anos



Expansão do vocabulário com formação de sentenças complexas

autorregulação emocional e à capacidade de



Melhora do autocontrole e crescimento das capacidades emocionais e de resiliência



Consegue seriar e categorizar objetos



Ampliação dos processos visuais e auditivos



Desenvolvimento da identidade de gênero



Desenvolvimento da metacognição: pensar sobre



Amizades baseadas em confiança



Início do interesse romântico/sexual (pode

o que é pensado/considerar o pensamento do outro •

Entende metáforas e amplia capacidades de conversação (p. ex., introduzir mudanças de

ocorrer ainda nessa fase) •

empatia

assunto) •

Progresso no desenvolvimento moral e da

Melhora nas habilidades de processamento de informações, metacognição e estratégias e autorregulação cognitiva





relacionada com mudanças hormonais

Aumento de conscientização e percepção de distorções cognitivas

Frequente flutuação emocional e de autoestima



Inserção em grupos e adequação aos seus comportamentos

Egocentrismo: crença em ser o centro das

12 a 18 anos •



Suscetibilidade a comportamentos de risco



Amizades regradas por características como

atenções e que suas experiências e sentimentos são únicas, não comparadas a de outros

confiança mútua, lealdade, apoio •

Impulsividade com dificuldade de tomada de decisões racionais



Maior apropriação e entendimento das próprias crenças ético-morais



Progresso em habilidades em conversação



Refinamento da gramática e vocabulário

Tabela 18.2 Funções psíquicas observadas durante o exame mental da criança e do adolescente. Função psíquica

Observar

Aparência

Higiene, vestimentas e lesões cutâneas Irritabilidade, alegria, tristeza e medo. Congruência afetiva

Humor e afeto Pedir que fale como se sente Pensamento, linguagem

Velocidade do discurso (acelerado ou alentecido), incompreensível, desorganizado. Neologismos. Repetições

e sensopercepção

(ecolalia). Conteúdo do pensamento, delírios. Alucinações

Orientação, memória e cognição

Localizar-se em tempo e espaço. Informar sobre dados da rotina. Conhecimento adequado para a faixa etária

Motricidade

Agitação, alentecimento, hipotonia, ataxia, maneirismos e tiques. Coordenação motora grossa e fina

Insight/Crítica

Capacidade de reconhecer suas dificuldades

Coletada a anamnese com os familiares e a criança e, tendo sido a criança avaliada, o clínico deve avaliar as queixas e pontuá-las frente ao esperado para o desenvolvimento normal e, a partir disso, delinear hipóteses diagnósticas. A formulação diagnóstica inicial pode não ocorrer na primeira consulta e pode se modificar ao longo do tempo. Um dos motivos para que isso ocorra, além das transformações inerentes ao desenvolvimento, é o fato de as crianças muitas vezes não trazerem sinais e sintomas em quantidade ou intensidade suficientes para definir uma síndrome clínica em suas avaliações iniciais, o que não significa, contudo, que as queixas iniciais já não causem prejuízo e, portanto, devam ser abordadas como sintomas-alvo.

Outra questão importante que permeia o diagnóstico em PIA é a alta prevalência de comorbidades entre os transtornos mentais, presentes não apenas em amostra clínicas, mas também na comunidade. Portanto, durante o acompanhamento longitudinal, a hipótese diagnóstica e o plano terapêutico devem ser sempre revisitados. Deve-se ter sempre em mente o impacto causado à família e ao paciente ao se informar um diagnóstico. Além de orientar sobre os sintomas e o tratamento proposto, é de suma importância assinalar as possibilidades e as potencialidades da criança, levando em consideração que a infância tem seu futuro em aberto, apesar dos limites incertos que uma doença é capaz de instituir. A seguir, são apresentados alguns dos transtornos mais frequentes na infância e na adolescência.

TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA QUADRO CLÍNICO E DIAGNÓSTICO O transtorno do espectro autista (TEA), também conhecido como transtorno invasivo do desenvolvimento (TID) ou transtorno global do desenvolvimento (TGD), refere-se a uma condição do neurodesenvolvimento definida por algumas características comportamentais. De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), as principais características clínicas do TEA incluem prejuízos em duas áreas do funcionamento – comunicação social e interação social, além de padrões repetitivos do comportamento, interesses e atividades. Os sintomas estão presentes desde o início do desenvolvimento, mas podem não se manifestar completamente até que as demandas sociais excedam a capacidade limitada da criança.8 Os tratamentos disponíveis atualmente podem melhorar muito a qualidade de vida dos portadores do transtorno, mas ainda não há cura para o TEA e a maioria dos pacientes, particularmente nos países em desenvolvimento, não recebem tratamento especializado, ou qualquer tipo de tratamento.9 O DSM-5 eliminou a distinção que havia no DSM-IV10 entre autismo, síndrome de Rett, síndrome de Asperger, transtorno desintegrativo da infância e transtorno invasivo do desenvolvimento não especificado, criando uma categoria única de TEA, caracterizada por: • • • •



Déficit persistente na comunicação social e na interação social em diversos contextos Padrões de comportamento, interesses ou atividades restritos e repetitivos, atuais ou observados ao longo da história clínica Prejuízo significativo nos aspectos sociais, ocupacionais ou em outras importantes áreas do funcionamento Presença de sintomas desde o início do desenvolvimento, mas podem não se manifestar completamente até que as demandas sociais ultrapassem a capacidade da criança Dificuldades não explicadas por deficiência intelectual ou atraso global do desenvolvimento.9 Apesar de os primeiros estudos de prevalência terem apontado o autismo como um

transtorno muito raro, estudos mais recentes e com melhor metodologia mostram que os TEA acometem aproximadamente 1% da população. Existe uma clara preponderância de meninos sobre meninas, em uma proporção de 4-5:1.11

FISIOPATOLOGIA A identificação precoce é essencial para que prontamente se iniciem as intervenções, o que pode melhorar o prognóstico em significativa proporção de portadores de TEA. Sabe-se da importância dos fatores genéticos na etiologia do autismo. Apesar de a herdabilidade do autismo ser estimada em 90%,12 os fatores genéticos são heterogêneos e complexos. Os mecanismos estão sendo explorados por meio de estudos de genoma, citogenética e avaliação de genes candidatos.13 Achados neuroanatômicos e de neuroimagem, apesar de não diagnósticos, revelaram volume cerebral aumentado, que afeta tanto a substância cinzenta quanto a substância branca, e alargamento dos ventrículos. Achados de neuroimagem ainda incluem anormalidades na química cerebral, síntese de serotonina e eletrofisiologia do cérebro.14-16 Os fatores prognósticos para desenvolvimento individual dos pacientes do espectro autista são a presença ou ausência de deficiência intelectual e prejuízo de linguagem (p. ex., linguagem funcional aos 5 anos de idade é sinal de bom prognóstico) e existência de outras doenças mentais. A comorbidade com epilepsia é associada a deficiência intelectual e habilidade verbal prejudicada.8 Diversos fatores de risco inespecíficos, como idade dos pais avançada, baixo peso ao nascer ou exposição maternal ao valproato podem contribuir para aumentar o risco de TEA. A herdabilidade estimada para o TEA varia entre 37 e mais de 90%, baseada em taxas de concordância entre gemelares. Atualmente, 15% dos casos parecem estar associados a uma mutação genética conhecida, com diferentes mutações. No entanto, mesmo quando o TEA é associado a uma mutação genética conhecida, esta não parece ser totalmente penetrante. O risco para o restante dos casos parece ser poligênico, com talvez centenas de lócus fazendo contribuições relativamente pequenas.8 A diretriz NICE17, enfatizando a baixa qualidade das evidências encontradas, lista a prevalência de TEA em diversas condições clínicas, como deficiência intelectual (de 8 a 27,9%), síndrome do X frágil (24 a 60%), esclerose tuberosa (36 a 79%) e síndrome de Down (6 a 15%).

TRATAMENTO O tratamento dos portadores de TEA deve ser feito por equipe multiprofissional, geralmente composta por psiquiatra da infância e da adolescência ou neurologista infantil, psicólogos, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, psicopedagogos e educadores, a depender da demanda do caso. De modo geral, o tratamento depende do mapeamento adequado de áreas de potencialidades e de déficits dos indivíduos para estruturação do programa de intervenção. O tratamento do autismo não leva à cura, mas melhora sobremaneira o prognóstico e o desempenho do paciente. A terapêutica com melhor

evidência de eficácia é a de base cognitiva comportamental, mais especifica-mente análise aplicada ao comportamento (ABA, do inglês, applied behaviour analysis). O tratamento farmacológico tem atuação limitada nesses pacientes, uma vez que nenhum fármaco mostra eficácia sobre os sintomas centrais do autismo (alteração da sociabilidade e linguagem). Os medicamentos são utilizados para tratamento dos sintomas-alvo comórbidos, como desatenção, agitação psicomotora, agressividade, irritabilidade, ansiedade, estereotipias excessivas, insônia e sintomas depressivos.11

TRANSTORNO DE DÉFICIT DE ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE QUADRO CLÍNICO E DIAGNÓSTICO O transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) é um dos transtornos mais frequentes na infância e na adolescência, afetando cerca de 6% das crianças em idade escolar e 3% dos adolescentes.18 A prevalência é maior em indivíduos do sexo masculino.9 O quadro clínico do TDAH é caracterizado por sintomas de desatenção, hiperatividade e/ou impulsividade. Alguns exemplos de sintomas de desatenção incluem: dificuldade para iniciar, permanecer engajado e completar tarefas; distrair-se com facilidade; perda e esquecimento de objetos. A hiperatividade é caracterizada por atividade física excessiva, normalmente sem estar relacionada com um objetivo, constante inquietação, não conseguir permanecer sentado durante as aulas, fala excessiva, subir e correr em ambientes inapropriados. A impulsividade refere-se à dificuldade em retardar ou inibir uma ação ou resposta, mesmo quando se sabe que estas levarão a consequências negativas. Dificuldades para esperar seu momento de falar, de jogar ou atravessar a rua, e tendência a agir sem pensar são alguns exemplos de comportamentos impulsivos. Pacientes com TDAH frequentemente têm a necessidade de recompensas imediatas, mesmo quando o adiamento levaria a melhores resultados.8 Além da presença de sintomas, para o diagnóstico, é necessário que os sintomas tenham começado antes dos 12 anos de idade, que estejam presentes em mais de um ambiente e que causem incômodo e/ou interferência no funcionamento do paciente e/ou de familiares.8 Frequentemente, as crianças com TDAH apresentam sintomas desde a idade pré-escolar mas, em quadros mais leves, os sintomas podem se tornar evidentes com o aumento das demandas escolares. Os sintomas de desatenção e/ou hiperatividade/impulsividade precisam ocorrer em pelo menos dois ambientes da vida da criança (p. ex., escola e casa) e que tenham estado presentes durante o desenvolvimento da criança. Por exemplo, caso os sintomas estejam presentes por curtos períodos apenas (cerca de 2 a 3 meses), com início claramente após um desencadeante psicossocial, o clínico deve estar alerta para outras causas de hiperatividade e desatenção, como transtornos de ansiedade, depressão ou dificuldades de relacionamento familiar.19 O diagnóstico do TDAH é clínico, ou seja, não existe até o momento nenhum exame ou teste que substitua a avaliação clínica. Portanto, o processo diagnóstico deve ser cuidadoso, abrangente e incluir a coleta de dados por meio de vários informantes. A

anamnese envolve a identificação de sintomas de TDAH e outros sintomas que possam estar presentes, além de dados da história do paciente, que incluem a investigação sobre os contextos familiar e social, antecedentes patológicos (individuais e familiares), desempenho da pessoa em diversos ambientes (como escola, trabalho e entre familiares) e sobre o grau de seu sofrimento psíquico ou o prejuízo causado pela presença dos sintomas. Deve-se realizar exame físico completo (incluindo pulso, temperatura, pressão arterial, altura e peso), além do exame psíquico. É importante solicitar exames laboratoriais. Durante essas investigações iniciais, é importante lembrar de registrar as queixas somáticas e/ou possíveis alterações de sono. Todos esses dados devem ser então analisados à luz da idade cronológica e do nível de desenvolvimentos motor, cognitivo e emocional do paciente. Um dos desafios para o diagnóstico correto do TDAH e seu tratamento é a alta frequência de comorbidades, em todas as idades. Estima-se que cerca de 70% dos pacientes com TDAH apresentam ao menos um outro diagnóstico comórbido, que 32% têm no mínimo dois transtornos psiquiátricos e 11% têm três ou mais diagnósticos. Alguns dos quadros mais frequentes são: transtornos disruptivos (transtorno de conduta e transtorno opositor desafiador), situada em torno de 30 a 50%; transtorno depressivo (cerca de 15 a 20%); transtornos de ansiedade (em torno de 25%); transtornos da aprendizagem (10 a 25%). Vários estudos têm demonstrado que os pacientes não tratados adequadamente têm maior risco de desenvolver abuso ou dependência de substâncias na adolescência e, principalmente, na idade adulta (9 a 40%).19 Evidências indicam que os sintomas de TDAH podem persistir até a vida adulta. Uma revisão recente da literatura relatou persistência do diagnóstico de TDAH em 15% de adultos jovens e a presença de sintomas de TDAH (sem preencher todos os critérios) em 40 a 60% dos casos.20 A persistência dos sintomas parece estar associada à gravidade da síndrome e ao tipo combinado,21 levando a importantes prejuízos na vida dos pacientes.

FISIOPATOLOGIA Sabe-se atualmente que o TDAH é um transtorno heterogêneo, tanto do ponto de vista clínico quanto etiológico, e que apenas uma teoria não será suficiente para explicar a etiologia complexa e multifatorial do quadro. Acredita-se que o TDAH compromete principalmente o funcionamento da região frontal do cérebro, responsável, entre outras atividades, pelas funções executivas (FE).22 O termo FE tem uma definição bastante ampla, abrangendo um número grande de subdomínios extremamente importantes, que podem ser agrupados em quatro elementos: 1. volição, ou capacidade de estabelecer objetivos, que envolve as capacidades de motivação e de consciência (de si e do ambiente); 2. planejamento, ou capacidade de organizar e prever ações para atingir um objetivo, que necessita das habilidades para tomar decisões, desenvolver estratégias, estabelecer prioridades e controlar impulsos; 3. ação intencional, que é a efetivação de um objetivo e envolve a iniciação, a manutenção ou a modificação de ações integrada e organizadamente; 4. desempenho efetivo, ou capacidade de

automonitorar, autodirigir e autorregular a intensidade, o ritmo e outros aspectos qualitativos do comportamento e da ação. As FE são fundamentais para a aprendizagem, pois permitem o processamento de informações, a integração das informações selecionadas, os processos mnêmicos (estratégias de memorização e evocação da informação armazenada na memória), na programação das respostas motoras e comportamentais. Quando as FE estão comprometidas, os pacientes podem apresentar (em diferentes níveis de gravidade): dificuldades para inibir as respostas; fraca sustentação da atenção; perseveração nas respostas; comprometimento da memória de trabalho (verbal e não verbal), da capacidade de planejamento, noção do tempo e regulação da emoção. A hipótese que pacientes com TDAH apresentam desregulação dos circuitos frontalsubcorticais tem sido confirmada por estudos de neuroimagem funcional e estrutural, mostrando pacientes com pequenas reduções de volume nessas regiões. Entretanto, outros achados sugerem que a circuitaria frontossubcortical não seria suficiente para explicar a fisiopatologia do transtorno, sugerindo o comprometimento de outras regiões como o cerebelo, o corpo caloso e o estriado. Em estudo prospectivo, crianças com TDAH apresentaram atraso na maturação cortical, quando comparada aos controles. O atraso foi maior em áreas relacionadas com a atenção, particularmente o córtex pré-frontal.23 Estudos genéticos (com famílias, com gêmeos e de adoção) têm demonstrado que o TDAH é transmitido familiarmente e que os genes têm um importante papel na transmissão familiar do TDAH. A herdabilidade do TDAH é estimada em torno de 0,8 (cerca de 78%), mostrando que os genes são muito importantes na etiologia do TDAH. Estudos em genética molecular têm revelado a complexa genética do TDAH, sugerindo que a predisposição para o TDAH seria causada por vários genes, com pequeno efeito, que interagem entre si e com o ambiente. Além dos fatores genéticos, estudos indicam que complicações na gestação e no parto elevam o risco para TDAH. Complicações específicas incluem toxemia ou eclâmpsia, saúde materna pobre, idade da mãe, pós-maturidade fetal, trabalho de parto prolongado, estresse fetal e hemorragia pré-partal. Vários estudos confirmam que prematuridade, assim como baixo peso ao nascer, são fatores de risco para TDAH.24

TRATAMENTO O tratamento do TDAH é multidisciplinar, e as intervenções devem contemplar os sintomas do TDAH, a investigação de comorbidades, o levantamento do funcionamento familiar, de como a criança se relaciona com amigos e seu desempenho acadêmico. Idealmente, o tratamento deve abranger uma abordagem interdisciplinar e incluir intervenções de orientação e apoio ao paciente e a seus familiares, além de psicoterapia e psicofarmacoterapia. O tratamento psicoeducacional é ferramenta essencial para o sucesso do tratamento. Tem como objetivos orientar portadores e familiares sobre o TDAH, a necessidade do uso de medicamentos e outras estratégias de tratamento, e as dificuldades impostas pelo tratamento prolongado. Uma das maiores dificuldades é garantir a adesão ao tratamento,

principalmente nos casos que iniciaram o tratamento desde a infância. No Brasil, existe a Associação Brasileira de Déficit de Atenção (ABDA), que tem desenvolvido um trabalho excelente na promoção de atividades com pacientes e familiares.25 Entre as psicoterapias, as que têm demostrado maior evidência de eficácia para o tratamento do TDAH são aquelas que envolvem componentes comportamentais. A terapia comportamental e/ou cognitivo-comportamental (TCC) utiliza várias estratégias no tratamento do TDAH. Entre os tipos de intervenções comportamentais, os que têm maior evidência de eficácia para o tratamento de pacientes com TDAH são o treino parental, o manejo comportamental em sala de aula e o treino de habilidades sociais, especialmente se realizado de maneira intensiva e em ambientes recreacionais em grupo.24 Para o tratamento farmacológico, os psicoestimulantes têm se mostrado as medicações mais efetivas para o tratamento de pacientes com TDAH. Existem dois tipos de psicoestimulantes disponíveis para tratar o TDAH no Brasil: o metilfenidato e a lisdexanfetamina, ambos com eficácia e segurança comprovadas por inúmeros estudos, podendo ser usados como tratamento único ou em combinação com outras intervenções, dependendo das características do paciente e sua família.26-28 Os efeitos benéficos dos psicoestimulantes incluem: melhora da desatenção e da concentração; diminuição da impulsividade; diminuição dos comportamentos agressivos e/ou antissociais; diminuição da hiperatividade e da agitação motora. Os psicoestimulantes devem ser iniciados em doses baixas e tituladas, de acordo com a resposta clínica e efeitos colaterais. Os efeitos colaterais mais frequentes são: insônia, cefaleia, irritabilidade, tremor, náuseas, inapetência e perda de peso. Esses efeitos tendem a ser leves, transitórios e dose-dependentes. Os estimulantes podem ainda piorar a gravidade dos tiques, induzir quadros maniformes e convulsões em pacientes em risco para tais condições. Estudos avaliando risco cardíaco demonstraram que o uso de psicoestimulantes não está associado a eventos cardiovasculares graves.29 O risco de atraso do crescimento deve ser discutido com os pais, e o paciente deve ser monitorado frequentemente. A interrupção do uso da medicação durante as férias pode minimizar este risco.9 Os fármacos não estimulantes são considerados medicações de segunda linha para o tratamento do TDAH, e utilizados em casos de intolerância aos efeitos colaterais, contraindicações e falência do tratamento. Concluindo, a eficácia e a segurança dos psicoestimulantes foram extensivamente avaliadas por diversos ensaios clínicos randomizados, agregados em revisões sistemáticas e metanálises,30,31 e comprovam os benefícios para o tratamento de pacientes com TDAH, desde que estes tenham sido avaliados de maneira detalhada e cuidadosa. A escolha de quais estratégias e/ou técnicas serão usadas deve ser feita a partir das características de cada paciente, sua família e o ambiente em que vive, além da faixa etária.

TRANSTORNOS DO HUMOR

DEPRESSÃO Quadro clínico e prevalência A depressão na infância e na adolescência é caracterizada por tristeza, perda do prazer e interesse nas atividades diárias, irritabilidade e presença de sintomas associados, como falta de energia, comprometimento do sono e apetite, perda de concentração e pensamentos negativos. A depressão frequentemente causa grave comprometimento do desempenho escolar e dos relacionamentos familiar e social. Algumas peculiaridades podem ser observadas na apresentação dos sintomas de acordo com a idade e a capacidade da criança expressar seus sentimentos (Quadro 18.1). Quadro 18.1 Peculiaridades da apresentação dos critérios diagnósticos para transtorno depressivo na infância e na adolescência. (A) Cinco (ou mais) dos seguintes sintomas, durante um período superior a 2 semanas, e que os mesmos representem uma alteração em relação ao funcionamento anterior. Pelo menos um dos sintomas deve ser (1) Humor deprimido, ou (2) perda de interesse ou prazer 1. Humor deprimido

Em crianças e adolescentes, o humor pode ser irritável em vez de triste

2. Anedonia

Em crianças, pode-se notar desinteresse por esportes e brincadeiras e queixas de tédio

3. Alterações no apetite ou peso 4. Alterações de sono (insônia ou hipersonia) 5. Diminuição da atividade psicomotora

Em crianças, deve-se atentar para o fato de que apenas o ganho de peso menor que o esperado pode corresponder à perda de peso em adultos –

Em crianças, observa-se também tom de fala monotonal e pode ocorrer hiperatividade motora

6. Diminuição de energia

Queixas de cansaço

7. Sentimentos de desvalia, culpa ou

Em crianças, a ideia de que não é amada, que é um peso para a família, que é culpada por tudo

ruína

que ocorre com os familiares

8. Dificuldades de raciocínio, concentração ou em tomar

Repercussão no rendimento escolar

decisões 9. Pensamentos recorrentes sobre morte ou ideação suicida, planos

Em crianças, pode ser observado vontade de desaparecer, fugir, dormir eternamente

ou tentativas de suicídio (B) Os sintomas não satisfazem os critérios para episódio misto (C) Causam sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional, no caso de crianças e adolescentes no ambiente escolar (recusa escolar, fingir estar doente), ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo (D) Não se devem aos efeitos fisiológicos diretos de uma substância (p. ex., droga ilícita ou medicamento) ou de uma condição médica geral (p. ex., hipotireoidismo) (E) Os sintomas não são mais bem explicados por luto ou outro transtorno psiquiátrico

A prevalência varia de acordo com a faixa etária, sendo estimada entre 1 e 2% em prépúberes, sem diferença entre os sexos, chegando em torno de 5% em adolescentes com aproximadamente o dobro do número de casos no sexo feminino após menacme.32 A idade de surgimento do quadro não parece estar associada a qualquer subgrupo de sintomatologia, porém, quanto mais precoce o primeiro episódio depressivo, maior o impacto no desenvolvimento da criança e maiores as comorbidades e o risco de suicídio.33

Diagnóstico e fisiopatologia A etiologia da depressão é complexa e multifatorial, resultado da interação entre vulnerabilidades biológicas (genética, condições pré-natais etc.) e influências ambientais (relações familiares, eventos estressores, escola etc.), sendo o histórico de depressão parental o principal fator de risco identificado. Quanto ao diagnóstico, as crianças frequentemente apresentam-se com sintomas considerados atípicos e que envolvem queixas somáticas (Quadro 18.1). A presença de alteração de humor, permeando um quadro sem causa orgânica estabelecida, deve levantar suspeita de um episódio depressivo. Na infância e na adolescência, a depressão apresenta grande associação com o suicídio, o que aumenta significativamente as taxas de mortalidade nessa faixa etária e ratifica a importância de um diagnóstico e tratamentos adequados.34

Tratamento O tratamento é estabelecido de acordo com a gravidade do quadro. Pode-se afirmar que o tratamento de primeira linha para depressão leve a moderada é psicoeducação e psicoterapia. A atividade física também tem efeito terapêutico em depressões leves em adolescentes. A farmacoterapia deve ser a primeira escolha em quadros graves em que ocorra risco de suicídio e sintomas psicóticos, e pode ser necessária quando não há resposta a psicoterapia. Os inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS) são a primeira linha do tratamento farmacológico (Tabela 18.3).9

Tabela 18.3 Medicações psicotrópicas e nível de evidência para eficácia em crianças (< 18 anos). Nível de

Idade indicada (aprovado pela

evidência

FDA)

TDAH

Nível I

A partir dos 6 anos

Anfetaminas

TDAH

Nível I

A partir dos 3 anos

Atomoxetina

TDAH

Nível I

A partir dos 6 anos

TDAH

Nível I

Medicação

Condição clínica

Metilfenidato e dexmetilfenidato

Clonidina

Guafacina

A partir dos 6 anos Doença de Tourette

Nível I

TDAH

Nível I

Depressão

Nível I

A partir dos 6 anos

A partir dos 8 anos Fluoxetina

TOC

Nível II A partir dos 7 anos

TAG

Nível II

Depressão

Nível II

TOC

Nível I

TAG

Nível I

Citalopram

Depressão

Nível II



Escitalopram

Depressão

Nível I

A partir dos 12 anos

TOC

Nível II

Sertralina

Fluvoxamina

Venlaflaxina

A partir dos 6 anos

A partir dos 7 anos TAG

Nível I

Depressão

Nível V

TDAH

Nível II

Bupropiona



– Depressão

Nível V

Clomipramina

TOC

Nível II

A partir dos 10 anos

Nível I

A partir dos 3 anos

Nível II

A partir dos 3 anos

Nível II

A partir dos 3 anos

Nível II

A partir dos 3 anos

Nível II

A partir dos 3 anos

Doença de Tourette

Nível I

A partir dos 12 anos

Esquizofrenia

Nível II

A partir dos 13 anos

TAB

Nível I

A partir dos 10 anos

Agressividade

Nível I

“Irritabilidade” nos TEA (5 a 16

Doença de Tourette

Nível I

anos)

Esquizofrenia

Nível II

A partir dos 13 anos

TAB

Nível II

A partir dos 10 anos

Esquizofrenia

Nível II

TAB

Nível II

Agressividade

Nível I

Esquizofrenia

Nível II

A partir dos 13 anos

TAB

Nível II

A partir dos 10 anos

TAB

Nível III

Doença de Tourette Psicose Haloperidol

Hiperatividade Alterações graves de comportamento Hiperexcitabilidade explosiva

Pimozida

Risperidona

Quetiapina

Aripriprazol

A partir dos 13 anos A partir dos 10 anos “Irritabilidade” nos TEA (5 a 16 anos)

Olanzapina

Lítio

A partir dos 12 anos Agressividade

Nível II

TAB

Nível II

Valproato

Agressividade

Nível II



Carbamazepina

TAB

Nível V



Oxcarbazepina

TAB

Nível V



Lamotrigina

Depressão bipolar

Nível V

TDAH = transtorno do déficit de atenção com hiperatividade; TOC = transtorno obssessivo-compulsivo; TAG = transtorno de ansiedade generalizada; TAB = transtorno afetivo bipolar.

TRANSTORNO BIPOLAR Quadro clínico e prevalência O transtorno afetivo bipolar (TAB) é caracterizado pela ocorrência de pelo menos dois episódios de transtornos do humor, sendo um destes obrigatoriamente de hipomania/mania ou misto (caracterizado pela presença simultânea de sintomas de mania e depressão). Episódios depressivos também são frequentes. Os primeiros sintomas do TAB ocorrem na infância e na adolescência em até 60% dos pacientes, e pelo menos 30% dos pacientes têm o início da doença na faixa etária pediátrica.35 O TAB com início na infância e na adolescência tem curso crônico com oscilações diárias e importantes prejuízos funcionais, como dificuldades nas relações interpessoais, problemas familiares, escolares, legais e múltiplas hospitalizações.36 Não há dados brasileiros sobre prevalência de TAB em crianças e adolescentes. Nos EUA, estima-se uma prevalência ao longo da vida de TAB em adolescentes de 13 a 18 anos de 2,5%,37 e em crianças de 9 a 13 anos de 0,1%.38 Nos EUA, o TAB é o diagnóstico de 17 a 30% das crianças e adolescentes em atendimento ambulatorial de psiquiatria da infância; e de 30 a 40% das crianças hospitalizadas por transtornos psiquiátricos.39,40

Diagnóstico e fisiopatologia Os critérios diagnósticos para TAB foram desenvolvidos para a população adulta, mas existe a preocupação em adaptar esses critérios para crianças e adolescentes. No episódio maníaco, a criança ou adolescente pode apresentar euforia/elação ou irritabilidade, grandiosidade, aumento da autoestima, aumento de energia, necessidade de sono diminuída, distraibilidade, pressão de fala, pensamentos acelerados, fuga de ideias e hipersexualidade. A irritabilidade é mais frequente do que o humor eufórico, o que dificulta o diagnóstico. No episódio depressivo, as queixas mais frequentes são: tristeza intensa e persistente, irritabilidade, pouca energia, pouca motivação, falta de entusiasmo, faltas à escola, queda no rendimento escolar, mudanças nos hábitos de dormir e comer, falta de concentração e baixa autoestima. Também são comuns queixas físicas, como dores de cabeça e de barriga. Em casos mais graves, pode haver agitação, desesperança e ideias

de morte ou suicídio. Em mais de 50% dos adolescentes, o TAB se inicia com um quadro depressivo.41 Tanto os episódios de mania como os de depressão graves podem ser acompanhados de sintomas psicóticos, como delírios persecutórios e alucinações; especificamente na mania, delírios de grandeza, e na depressão, de ruína ou culpa. A comorbidade do TAB com outros transtornos psiquiátricos é muito comum, principalmente com TDAH (entre 50 e 80%), transtornos ansiosos (30 e 70%) e transtornos opositor desafiador ou conduta (20 e 60%).42 Devem ser feitos diagnósticos diferenciais com outros transtornos psiquiátricos e doenças clínicas, como hipertireoidismo, epilepsia de lobo temporal, tumores cerebrais, esclerose múltipla, lúpus eritematoso sistêmico, doença de Wilson, e medicações que causam sintomas maniformes (estimulantes, corticosteroides, aminofilina e simpaticomiméticos). Em crianças com comportamento hipersexualizado, é necessário também investigar abuso sexual.36,42 Durante o seguimento de crianças e adolescentes com TAB, 70 a 100% apresenta recuperação dos episódios do humor, mas em 2 a 5 anos, aproximadamente 80% destes pacientes apresentam recorrência da doença.43,44 Em seguimento de 8 anos, o acolhimento materno foi o melhor preditor de recuperação de crianças e adolescentes com TAB.44 O início precoce do TAB é considerado um preditor de mau prognóstico, assim como presença de psicose e comorbidades, estados mistos, ciclagem rápida (pelo menos 4 episódios de humor por ano) e eventos de vida negativos.39,42,44 A etiologia do TAB é desconhecida. Estudos em adultos, adolescentes e crianças evidenciam bases biológicas, envolvendo genética, alterações neuroquímicas e neuroanatômicas. O principal fator de risco para TAB é antecedente familiar, com a herdabilidade do TAB tipo I de até 70%, e o risco para desenvolver TAB em filhos de pacientes aumenta em 13 vezes.45 O curso da doença parece ser bastante influenciado por fatores ambientais, sendo a privação de sono um importante desencadeador de episódios.36

Tratamento Farmacoterapia é sempre de primeira escolha, sendo consideradas duas fases: na fase aguda, a meta é a estabilização do humor; na fase crônica, o objetivo é a profilaxia de novos episódios. Na fase aguda, a criança ou o adolescente também pode apresentar sintomas psicóticos, agitação psicomotora ou tentativa de suicídio, os quais devem ser abordados com urgência. Se houver risco de auto ou heteroagressividade grave ou suicídio, a internação psiquiátrica muitas vezes é necessária. Não há consenso sobre qual é a medicação de cada classe (antipsicótico atípico e estabilizador do humor) a ser utilizada, em razão da falta de estudos para todas as apresentações clínicas. Sugere-se optar por medicação de acordo com o episódio do humor, presença de sintomas psicóticos ou comportamentos suicidas, efeitos colaterais, resposta medicamentosa anterior e preferência do paciente e familiares. Não há dados de seguimento suficientes, mas sugere-se manutenção da medicação por 12 a 24 meses após

remissão completa.36 Em uma revisão sistemática dos ensaios clínicos, risperidona, olanzapina, quetiapina e aripiprazol apresentaram os melhores resultados. Carbamazepina, divalproato de sódio e carbonato de lítio tiveram efeitos modestos em monoterapia. Topiramato e oxcarbazepina apresentaram resultados negativos. Uso da lamotrigina como adjuvante em ensaio aberto mostrou efeitos robustos.46 As medicações aprovadas pela Food and Drug Administration (FDA) dos EUA para tratar o TAB na infância e na adolescência em episódios maníacos estão expostas na Tabela 18.3. Abordagens psicoterápicas e sociais são essenciais. Os principais objetivos da psicoterapia no tratamento de crianças e adolescentes com TAB são: ensinar noções básicas sobre a doença, estratégias para resolver problemas e lidar com os sintomas, aumentar o envolvimento familiar, reduzir os prejuízos da doença e prevenir recorrências.36 As modalidades de psicoterapia para crianças e adolescentes com TAB que tiveram sua eficácia evidenciada em ensaios clínicos foram: psicoeducação para pais e filhos; terapia centrada na família e TCC.36

TRANSTORNOS DE ANSIEDADE A ansiedade é um estado emocional decorrente da percepção de uma ameaça e, por muitos anos, acreditou-se que transtornos de ansiedade fossem afecções raras na infância e na adolescência por sua apresentação e curso distintos do quadro no adulto. No entanto, estima-se uma prevalência em torno de 15% nessa população, com um maior número de casos entre o sexo feminino (1,5 a 2:1) desde a faixa etária pré-escolar.47 Os transtornos ansiosos estão entre as doenças de início mais precoce dentro da psiquiatria infantil, mas cada transtorno apresenta características específicas quanto a sintomatologia e faixa etária de acome-timento (Tabela 18.4). Crianças com transtornos de ansiedade apresentam maiores riscos para transtornos de humor, ansiedade, abuso de substâncias e suicídio durante a adolescência e a vida adulta.9 O sintoma central dos transtornos ansiosos é a antecipação do medo que envolve a evitação e pode se manifestar por meio de ruminações, preocupações, ansiedade antecipatória ou ainda pensamentos negativos. O diagnóstico de cada transtorno específico deve ser feito a partir dos sintomas associados de padrões de comportamento, queixas emocionais e físicas relatadas. Tabela 18.4 Sintomatologia dos principais transtornos de ansiedade. Transtorno

Idade média de início

Sintomas principais

Sintomas associados Sonhos e pesadelos sobre separação Sintomas físicos quando a separação é

Medo que algo possa acontecer a si ou

antecipada

Ansiedade de separação

7 a 8 anos

à figura de apego quando separados

Medo sobre as consequências da separação Tentativas de evitar a separação

Busca repetida por asseguramento dos Tendência a se preocupar demais com atividades ou eventos do dia a dia, Ansiedade generalizada

10 a 12 anos

geralmente com antecipação de que consequências negativas possam acontecer

pais sobre as preocupações Sintomas físicos e irritabilidade quando preocupado Evitar novidades, situações incertas, cometer erros Evita se envolver em atividades sociais

Medo ou evitação de interação social, Fobia social

11 a 13 anos

geralmente por crença de má avaliação pelos pares

Preocupação sobre avaliações negativas Dificuldade em fazer amizades

Fobia específica

Transtorno do pânico

6 a 7 anos

22 a 24 anos

Medo e evitação em resposta a

Medo de animais, insetos, escuro,

estressores (“gatilhos”) específicos

tempestade, palhaços, injeções etc.

Ataques de pânico com sintomas

Palpitações, falta de ar, tontura,

somáticos e medo de morrer ou

parestesias etc.

enlouquecer

Os ataques podem parecer imotivados

Para o tratamento dos transtornos de ansiedade da infância e da adolescência, tanto as psicoterapias quanto os psicofármacos são eficazes. O manejo medicamentoso é feito por meio de inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS) (Tabela 18.4) e a TCC é a terapia com maior evidência de eficácia. Dois grandes estudos avaliaram o tratamento combinado (ISRS + TCC) contra os componentes em monoterapia e placebo, sendo o tratamento combinado superior às duas condições.9

TRANSTORNO OBSESSIVO-COMPULSIVO Quadro clínico e diagnóstico

O TOC é uma doença frequente, com prevalência ao longo da vida entre 1 e 2,5%. O TOC é caracterizado pela presença de obsessões e/ou compulsões que consomem tempo (ao menos 1 h por dia), geram sofrimento e/ou interferem na vida do paciente.8 O TOC pode afetar todos os grupos etários independentemente de raça, status socioeconômico ou grupo religioso. No entanto, apresenta dois picos de incidência, sendo o primeiro na infância, com maior número de meninos, e o segundo por volta dos 21 anos com discreta predominância feminina.48 Obsessões são definidas como pensamentos, ideias, medos ou imagens intrusivas (invadem a mente das pessoas) e são experimentadas como desconfortáveis ou desagradáveis, causando ansiedade ou sofrimento. Compulsões são definidas como comportamentos ou atos mentais realizados de modo repetitivo ou de acordo com regras rígidas. Em geral, as compulsões são realizadas com o objetivo de reduzir ou eliminar a ansiedade e o sofrimento causados pelas obsessões.8 Os critérios diagnósticos são os mesmos para todas as idades, e os sintomas obsessivo-compulsivos (SOC) em crianças e adolescentes podem se assemelhar com o quadro apresentado por adultos, mas frequentemente têm características clínicas peculiares. Por exemplo, quanto mais nova a criança, maior a chance das compulsões ocorrerem sem a presença de obsessões.49 Outras características do TOC com início na infância e na adolescência são: maior frequência de compulsões tic-like, definidas como compulsões semelhantes a tiques motores e/ou vocais; maiores taxas de fenômenos sensoriais, definidos como sensações ou percepções desconfortáveis que precedem e/ou acompanham as compulsões; e maior probabilidade da criança não ter insight (ou seja, não reconhecer que os sintomas são excessivos). É imprescindível diferenciar SOC de comportamentos ritualísticos normais para o desenvolvimento em algumas faixas etárias. Por exemplo, rituais que envolvem a alimentação, o banho e a hora de dormir são típicos da idade pré-escolar (3 a 6 anos), enquanto comportamentos de colecionismo são típicos da idade escolar (7 a 13 anos). Além da idade, é importante avaliar quanto tempo os SOC duram, quanto sofrimento, ansiedade e/ou incômodo causam ao paciente e/ou sua família e quanta interferência causam nas vidas dessas pessoas. Muitos pacientes com TOC escondem os SOC ou levam muito tempo para buscar tratamento e, por isso, esses sintomas devem ser sempre ativamente pesquisados. Alguns pacientes procuram ajuda de outros profissionais de saúde para avaliar e/ou tratar condições secundárias aos SOC, conforme observado na Tabela 18.4. Algumas perguntas de triagem que podem auxiliar nessa investigação ativa incluem: • • • • • •

Você tem pensamentos repetitivos dos quais não consegue se livrar? Você tem preocupações ou impulsos desagradáveis de machucar alguém? Você sente necessidade de contar coisas ou lavar as mãos ou checar objetos repetidamente? Você se preocupa muito com obrigações religiosas ou com a moralidade? Você tem pensamentos perturbadores de conteúdo sexual? Você sente necessidade de que os objetos estejam arrumados simetricamente ou em

• •

uma determinada ordem? Você tem problema para jogar objetos fora, a ponto de chegar a entulhar partes de sua casa? Essas preocupações e comportamentos interferem no seu funcionamento profissional, no seu relacionamento familiar ou social?

Fisiopatologia As causas do TOC são complexas e multifatoriais, produto da interação de genes de vulnerabilidade com fatores ambientais que ocorrem ao longo da vida. Portanto, acreditase que vários elementos precisam atuar em conjunto (interação gene-ambiente) para que os SOC se manifestem e se perpetuem. Estudos neurobiológicos mostram que pacientes com TOC apresentam um padrão de ativação cerebral acentuada em um circuito cerebral corticossubcortical que envolve estruturas conhecidas como o córtex orbitofrontal, o córtex do cíngulo anterior, os gânglios da base (caudado e putame) e o tálamo. Esse padrão de hiperativação é atenuado após os tratamentos farmacológicos e psicoterápicos em pacientes que apresentam uma boa resposta terapêutica.

Tratamento O tratamento do TOC começa com uma avaliação abrangente do paciente e de sua família. Após a determinação dos sintomas principais, e qual o seu grau de comprometimento no funcionamento do paciente e da família, estabelece-se o programa de tratamento, que deve incluir intervenções de orientação e apoio, além de psicoterapia e psicofarmacoterapia. A orientação do paciente e seus familiares sobre os sintomas e qual a melhor forma de lidar com eles (ou psicoeducação) é fundamental para o sucesso do tratamento. Pacientes e familiares devem ser incentivados a procurar a Associação Brasileira de Síndrome de Tourette, Tiques e Transtorno Obsessivo Compulsivo (ASTOC) para portadores de TOC e tiques. Os familiares podem “participar” dos sintomas dos pacientes de várias maneiras, entre elas, facilitando os comportamentos de esquiva, auxiliando na realização dos rituais ou até fazendo adaptações na rotina diária da família, de acordo com os SOC da criança ou adolescente. Essa participação tem sido chamada de acomodação familiar, e vários estudos têm demonstrado associação entre altos níveis de acomodação familiar e pior resposta ao tratamento. Portanto, sobretudo com crianças e adolescentes, é extremamente importante que a família participe de todas as etapas do tratamento, pois pesquisas têm demonstrado que a psicoterapia tem melhores resultados quando os familiares se engajam ativamente no tratamento. As primeiras intervenções terapêuticas com eficácia comprovada no tratamento do TOC foram as oriundas dos procedimentos de terapia comportamental. As taxas de resposta a TC variam de 30 a 90% dependendo da população estudada e do protocolo

utilizado. Nos casos leves ou moderados, a terapia comportamental mostrou-se tão ou mais eficaz do que as medicações de primeira linha. Um fator limitante dessa técnica é a recusa de alguns pacientes a se submeterem ao procedimento, dado o seu caráter aversivo e a ansiedade por ele causada, principalmente durante as primeiras semanas de tratamento. Além disso, existe uma limitação associada à psicoterapia, que é relacionada com a escassez de terapeutas treinados para a aplicação desses procedimentos. O tratamento farmacológico do TOC está embasado em medicações que inibem preferencialmente a recaptação de serotonina, como clomipramina e os ISRS. São eles: fluvoxamina, sertralina, fluoxetina, citalopram, paroxetina e escitalopram. Todos os ISRS são mais eficazes do que o placebo para o tratamento do TOC em estudos duplo-cegos. As doses necessárias para o controle dos sintomas do TOC costumam ser relativamente altas em comparação ao controle dos sintomas depressivos, por exemplo. Além disso, o efeito benéfico não é imediato e pode demorar até 3 ou 4 meses para ser notado. Isso tem uma implicação prática que envolve o uso de doses maiores de antidepressivos e por um período mais prolongado até que a resposta terapêutica ocorra. Concluindo, o TOC na infância e na adolescência é uma doença frequentemente crônica com períodos de remissão e recaída, o que envolve um tratamento de longo prazo,27 baseado na intensidade dos sintomas.9 É importante ressaltar que um dos fatores mais importantes para o sucesso do tratamento de pacientes com TOC é a identificação precoce e a instituição do tratamento adequado o mais cedo possível.

PSICOSE NA INFÂNCIA Os transtornos psicóticos são associados a prejuízos no funcionamento emocional, cognitivo e social, que podem se manter por toda a vida. O tratamento especializado precoce é crucial. Estes transtornos são altamente estigmatizados na maioria das culturas, dificultando o tratamento e a integração com a comunidade.9 O início de um quadro psicótico antes dos 13 anos de idade tem prevalência estimada de aproximadamente 0,9 caso a cada 100 mil habitantes. A partir dos 13 anos, essa faixa etária aumenta significativamente, com a frequência de psicoses esquizofreniformes com início entre 13 e 19 anos de aproximadamente 0,5%. Por tratar-se de um quadro raro, poucos estudos investigam a fisiopatologia da esquizofrenia de início na infância. No entanto, é possível extrapolar os conhecimentos sobre a fisiopatologia da esquizofrenia em adultos, em que os surtos psicóticos têm sido associados à hiperfunção dopaminérgica nas vias mesolímbicas.11 Os sintomas relacionados com a esquizofrenia são divididos em positivos (presença de delírios e alucinações) e negativos (diminuição da iniciativa, do interesse e certo distanciamento emocional). Os conteúdos delirantes mais comuns na infância são de natureza persecutória, de autorreferência, grandiosidade ou ideias bizarras. As alucinações auditivas são as mais comuns. O curso da esquizofrenia de início precoce é crônico, deteriorante e cíclico. Na prática clínica, pode ser difícil diferenciar os sintomas psicóticos de certos comportamentos normais na infância. A psicose de início na infância geralmente está associada a alterações generalizadas

do desenvolvimento. É comum a comorbidade com deficiência intelectual, atraso no desenvolvimento neuropsicomotor e sintomas autísticos. Pode ser ainda um sintoma de doença clínica subjacente, e recomenda-se solicitar um exame de imagem, preferencialmente ressonância magnética. É mandatória a avaliação cuidadosa do caso, pesquisando outras alterações de comportamento, morfológicas, neurológicas e sintomas físicos, que podem sugerir a necessidade de propedêutica acessória, como exame citogenético e pesquisa de erros inatos do metabolismo.11 Outro transtorno que pode ter início na infância e apresentação clínica com sintomas psicóticos é o TAB. No entanto, a maioria das crianças que apresenta sintomas psicóticos não tem esquizofrenia ou TAB. Provavelmente, tratam-se de alucinações auditivas transitórias, assim como sintomas ansiosos ou de humor associados a estresse. Inicialmente, essas crianças podem preencher critérios para depressão, transtorno do estresse pós-traumático, transtornos ansiosos ou do comportamento, mas não transtornos psicóticos. Há poucos estudos de seguimento para avaliar se essas crianças desenvolverão esquizofrenia.9 O diagnóstico diferencial pode ser difícil e a perspectiva longitudinal é essencial. Pode ser mais útil descrever “hipóteses diagnósticas” do que diagnósticos específicos, especialmente após a primeira apresentação dos sintomas.50 O tratamento das crianças psicóticas é feito com o uso de antipsicóticos (preferencialmente os atípicos) associados a psicoeducação, psicoterapia e reabilitação (terapia ocupacional, acompanhamento terapêutico e treinamento cognitivo). O objetivo é garantir o bom funcionamento geral dos pacientes. A abordagem multidisciplinar (psiquiatras da infância e da adolescência, psicólogos, neuropsicólogos, terapeutas ocupacionais e acompanhantes terapêuticos) é de extrema importância para que essas crianças possam atingir o melhor nível possível de desenvolvimento.51 A recuperação dos pacientes deve ser mais do que o controle dos sintomas positivos, e a melhora cognitiva e funcional pode ser o aspecto central para se atingir a recuperação.52

CONSIDERAÇÕES FINAIS Transtornos psiquiátricos são muito frequentes na infância e na adolescência, afetando cerca de 8 a 10 milhões de crianças no Brasil. Quando presentes, esses transtornos afetam o desempenho da criança em várias áreas do funcionamento, como desempenho acadêmico, sociabilidade e relacionamento familiar. Um dos fatores associados a pior resposta ao tratamento é a demora em reconhecer os sintomas e iniciar o tratamento adequado. Portanto, é extremamente importante que os diversos profissionais da área de saúde adquiram conhecimentos sobre os vários aspectos envolvidos na identificação precoce dos sintomas, na avaliação e no diagnóstico de crianças e adolescentes que precisam de tratamento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1.

Censo Demográfico. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Brasil, 2012. www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010.

2.

Fleitlich-Bilyk B, Goodman R. Prevalence of child and adolescent psychiatric disorders in southeast Brazil. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry. 2004;43(6):727-34.

3.

Meier MH, Slutske WS, Arndt S, Codoret RJ. Impulsive and callous traits are more strongly associated with delinquent behavior in higher risk neighborhoods among boys and girls. Journal of Abnormal Psychology. 2008;17:377-85.

4.

Turkheimer E, Haley A, Waldron M, D’Onofrio, Gottesman II. Socioeconomic status modifies heritability of IQ in young children. Psychological Science. 2003;14:623-8.

5.

Tuvblad C, Grann M, Lichtenstein P. Heritability for adolescent antisocial behavior differs with socioeconômic status: gene-environment interaction. Journal of Child Psychology and Psychiatry. 2006;47:734-43.

6.

Berk LE. Child development.7.ed. Boston, MA: Pearson Education, 2006.

7.

Plomin R, McClearn GE, Smith DL, Skuder P, Vignettti S, Chorney MJ et al. Allelic associations between 100 DNA markers and high versus low IQ. Intelligence. 1995;21:31-48.

8.

American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders (DSM-V). 5.ed. Washington, DC: American Psychiatric Association, 2013.

9.

IACAPAP e-Textbook of Child and Adolescent Mental Health. Geneva. International Association for Child and Adolescent Psychiatry and Allied Professions, 2012.

10. American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders, fourth edition, revised. (DSM-IV – TR). Washington, DC: American Psychiatric Association, 2000. 11. Borges DR. (ed.) Atualização terapêutica (AT) de Prado, Ramos e Valle: diagnóstico e tratamento – 2014/2015 – 25.ed. Reformulada e atual. São Paulo: Artes Médicas, 2014. 12. Freitag CM. The genetics of autistic disorders and its clinical relevance: a review of the literature. Molecular Psychiatry. 2007;12:2-22. 13. Muhle R, Trentacoste SV, Rapin I. The genetics of autism. Pediatrics. 2004;113:47286. 14. Courschene E, Redcay E, Kennedy DP. The autistic brain: birth through adulthood. Current Opinions in Neurology. 2004;17:4889-96. 15. Hazlett HC, Poe M, Gerig, Smith RG, Provenzale J, Ross A et al. Magnetic resonance imaging and head circumference study of brain size in autism: birth through age 2 years. Archives of General Psychiatry. 2005;62:1366-76.

16.

Lainhart JE. Advances in autism neuroimaging research for the clinician and geneticist. American Journal of Medical Genetics. Part C. Seminars in Medical Genetics. 2006;142C:33-9.

17. NICE guideline. Autism: recognition, referral and diagnosis of children and young people on the autism spectrum. London: Royal College of Obstetricians and Gynaecologists, 2011. 18. Polanczyk G, De Lima MS, Horta BL, Bierderman J, Rohde LA. The worldwide prevalence of ADHD: a systematic review and metaregression analysis. American Journal of Psychiatry. 2007;164:942-8. 19. Rohde LA, Miguel Filho EC, Benetti L, Gallois C, Kieling C. Transtorno de deficit de atenção/hiperatividade na infância e adolescência: considerações clínicas e terapêuticas. Rev Psiq Clin. 2004;31(3):124-31. 20. Faraone SV, Biederman J, Mick E. The age-dependent decline of attention deficit hyperactivity disorder: a meta-analysis of follow-up studies. Psychological Medicine. 2006;36:159-65. 21. Kessler RC, Adler LA, Barkley R, Biederman J, Conners CK, Faraone SV et al. Patterns and predictors of attention-deficit/hyperactivity disorder persistence into adulthood: results from the national comorbidity survey replication. Biological Psychiatry. 2005;57:1442-51. 22. Castellanos FX, Sonuga-Barke EJ, Milham MP, Tannock R. Characterizing cognition in ADHD: beyond executive dysfunction. Trends in Cognitive Sciences. 2006; 10:117-23. 23. Shaw P, Eckstrand K, Sharp W et al. Attention-deficit/hyperactivity disorder is characterized by a delay in cortical maturation. Proceedings of the National Academy of Sciences USA. 2007;104:19649-54. 24. Rosario MC, Gattás IG. Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. In: Borges DR. (ed.) Atualização Terapêutica de Prado, Ramos e Valle: diagnóstico e tratamento – 2014/2015. 25.ed. reformulada e atual. São Paulo: Artes Médicas, 2014. 25. ABDA: Associação Brasileira do Déficit de Atenção [homepage na internet]. Disponível em: www.tdah.org.br. Acesso em 18/3/2015. 26. American Academy of Pediatrics. ADHD: clinical practice guideline for the diagnosis, evaluation, and treatment of attention-deficit/hyperactivity disorder in children and adolescents. Pediatrics. 2011;128:1007-22. 27. American Academy of Child and Adolescent Psychiatry – AACAP. Practice parameter for the assessment and treatment of children and adolescents with obsessive compulsive disorder. Journal of the American Academy of Child & Adolescent Psychiatry. 2012;51:98-113. 28. Pliszka S. Practice parameter for the assessment and treatment of children and adolescents with attention-deficit/hyperactivity disorder. J Am Acad Child Adolesc

Psychiatry. 2007;46(7):894-921. 29. Cooper WO, Habel LA, Sox CM et al. ADHD drugs and serious cardiovascular events in children and young adults. New England Journal of Medicine. 2011; 365:1896-904. 30. Faraone SV. Using meta-analysis to compare the efficacy of medications for attentiondeficit/hyperactivity disorder in youths. P T. 2009;34(12):678-94. 31. Faraone SV, Glatt, SJ. A comparison of the efficacy of medications for adult attentiondeficit/hyperactive disorder usin meta-analysis of effect sizes. J Clin Psychiatry. 2010;71(6):754-63. 32. Lewis M. Child and adolescent psychiatry. A comprehensive text book. Lippincott Williams & Wilkins, 2002. 33. Berndt ER, Koran LM, Finkelstein SN et al. Lost human capital from early-onset chronic depression. American Journal of Psychiatry. 2000;157:940-7. 34. Souza LD, Silva RA, Jansen K, Kuhn RP, Horta BL, Pinheiro RT. Suicidal ideation in adolescentes aged 11 to 15 years: prevalence and associated factors. Rev Bras Psiquiatr. 2010;32(1):37-41. 35. Lish JD, Dime-Meenan S, Whybrow PC, Price RA et al. The National Depressive and Manic-depressive Association (DMDA) survey of bipolar members. J Affect Disord. 1994;31(4):281-94. 36. Kleinman A, Lafer B, Caetano SC. Transtorno bipolar na infância e na adolescência. In: Kapczinski, F, Quevedo J. (org.). Transtorno bipolar, teoria e clínica. Artmed: 2008. p. 306-30. 37. Merikangas KR, Cui L, Kattan G, Carlson GA, Youngstrom EA, Angst J. Mania with and without depression in a community sample of US adolescents. Arch Gen Psychiatry. 2012;69(9):943-51. 38. Costello EJ, Angold A, Burns BJ, Stongl DK, Tweed DL, Erkanli A et al. The Great Smoky Mountains Study of Youth. Functional impairment and serious emotional disturbance. Arch Gen Psychiatry. 1996;53(12):1137-43. 39. Kowatch RA et al. Treatment guidelines for children and adolescents with bipolar disorder. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry. 2005a;44(3):213-35. 40. Kowatch RA, Youngstrom EA, Danielyan A, Findling RL. Review and meta-analysis of the phenomenology and clinical characteristics of mania in children and adolescents. Bipolar Disord. 2005b;7(6):483-96. 41. Axelson D, Birmaher B, Strober M, Gill MK, Valeri S, Chiappetta L et al. Phenomenology of children and adolescents with bipolar spectrum disorders. Arch Gen Psychiatry. 2006;63(10):1139-48. 42. Goodwin FK, Jamison KR. Manic-depressive illness. 2.ed. Oxford: Oxford University Press, 2007.

43. Birmaher B. et al. Clinical course of children and adolescents with bipolar spectrum disorders. Arch Gen Psychiatry. 2006;63(2):175-83. 44. Geller B, Tillman R, Bolhofner K, Zimerman B. Child bipolar I disorder: prospective continuity with adult bipolar I disorder; characteristics of second and third episodes; predictors of 8-year outcome. Arch Gen Psychiatry. 2008;65(10):1125-33. 45. Birmaher B. et al. Lifetime psychiatric disorders in school-aged offspring of parents with bipolar disorder: the Pittsburgh Bipolar Offspring study. Arch Gen Psychiatry. 2009;66(3):287-96. 46. Liu HY et al. Pharmacologic treatments for pediatric bipolar disorder: a review and meta-analysis. American Academy of Child and Adolescent Psychiatry. 2011;50:749-62 e 39. 47. Rapee RM, Schniering CA, Hudson JL. Anxiety disorders during childhood and adolescence: Origins and treatment. Annual Review of Clinical Psychology. 2009;5:31141. 48. Rosario MC, Pereira RMR, Machado, FSN. Transtornos de ansiedade e transtorno obsessivo-compulsivo na infância e adolescência. In: Borges DR. (ed.) Atualização terapêutica de Prado, Ramos e Valle: diagnóstico e tratamento – 2014/2015. 25.ed reformulada e atual – São Paulo: Artes Médicas, 2014. 49. Rosario-Campos MC, Leckman JF, Mercadante MT et al. Adults with early-onset obsessive-compulsive disorder. American Journal of Psychiatry. 2001;158:1899-903. 50. Lee P, Moss S, Friedlander R et al. Early-onset schizophrenia in children with mental retardation: diagnostic reliability and stability of clinical features. Journal of the American Academy of Child & Adolescent Psychiatry. 2003;42:162-9. 51. Noto CS, Bressan RA (org.). Esquizofrenia: avanços no tratamento multidisciplinar. 2.ed. Porto Alegre: Artmed, 2012. 52. Wilson BA. Cognitive rehabilitation in the 21 st century. Neurorehabil Neural Repair. 2002;16(2):207-10.

BIBLIOGRAFIA American Academy of Child and Adolescent Psychiatry (AACAP), Practice Parameters for the Assessment and Treatment of Children, Adolescents and Adults with AttentionDeficit/Hyperactivity Disorder. J Am Acad Adolesc Psychiatry. 1997;36 Suppl 10:85-121. Askenazy FL, Lestideau K, Meynadier A et al. Auditory hallucinations in pre-pubertal children. A one-year follow-up, preliminary findings. European Child & Adolescent Psychiatry. 2007;16:411-5. Biederman J, Newcorn J, Sprich S. Comorbidity of attention deficit hyperactivity disorder with conduct depressive, anxiety, and other disorders. Am J Psychiatry. 1991;

148(5):564-77. Courchesne E, Karns CM, Davis HR et al. Unusual brain growth 17 patterns in early life of patients with autistic disorders. Neurology. 2001;57(2):245-54. David CN, Greenstein D, Clasen L, Gochman P, Miller R, Tossel JW et al. Childhood onset schizophrenia: high rate of visual allucinations. J Am Child Adolesc Psychiatry. 2011;50(7):681-6. Dhossche D, Ferdinand R, Van Der Ende J et al. Diagnostic outcome of self-reported hallucinations in a community sample of adolescents. Psychological Medicine. 2002;32:619-27. Escher S, Morris M, Buiks A et al. Determinants of outcome in the pathways through care for children hearing voices. International Journal of Social Welfare. 2004; 13:208-22. Escher S, Romme M, Buiks A et al. Independent course of childhood auditory hallucinations: A sequential 3-year follow-up study. British Journal of Psychiatry. 2002; 181(supp43):s10-s18. Faraone SV, Perlis RH, Doyle AE et al. Molecular genetics of attention-deficit/hyperactivity disorder. Biological Psychiatry. 2005;57:1313-23. Hafner H, Nowotny B. Epidemiology of early-onset schizophrenia. Eur Arch Psychiatry Clin Neurosc. 1995;245(2):80-9. Kieling C, Goncalves RR, Tannock R et al. Neurobiology of attention deficit hyperactivity disorder. Child and Adolescent Psychiatry Clinics of North America. 2008; 17:285-307, viii. McGee R, Williams S, Poulton R. Hallucinations in nonpsychotic children. Journal of the American Academy of Child & Adolescent Psychiatry. 2000;39:12-3. Poulton R, Caspi A, Moffitt TE et al. Children’s self-reported psychotic symptoms and adult schizophreniform disorder: A 15-year longitudinal study. Archives of General Psychiatry. 2000;57:1053-8. Rosario MC, Alvarenga PG, de Mathis A et al. Obsessive compulsive disorder in childhood. In: Banaschewski T, Rohde LA (eds.). Biological child psychiatry. Recent trends and developments. Basel: Karger. 2008. p.83-95. Russell AT. The clinical presentation of childhood-onset schizophrenia. Schizophr Bull. 1994;20(4):631-46. Scott J, Chant D, Andrews G et al. Psychotic-like experiences in the general community: the correlates of CIDI psychosis screen items in an Australian sample. Psychological Medicine. 2006;36:231-8. Wexler BE, Bell MD. Cognitive remediation and vocational rehabilitation for schizophrenia. Schizophr Bull. 2005;31(4):931-41.

Capítulo 19

DEPRESSÃO, ANSIEDADE E INSÔNIA NO IDOSO Andiara Mayer de Souza, Hesley Lucena Landim Miranda e Osvladir Custódio

DEPRESSÃO A depressão em pessoas com mais de 65 anos é um problema de saúde pública. Tem consequências graves, incluindo sofrimento dos pacientes e cuidadores, piora da incapacidade associada à doença física e aos transtornos cognitivos, aumentos dos custos dos cuidados de saúde e maior mortalidade relacionada ao suicídio e à doença física.1 As manifestações clínicas da depressão em idosos exibem considerável diversidade, especialmente no início do transtorno, e isto frequentemente confunde o médico e leva ao atraso do diagnóstico e do tratamento.2

EPIDEMIOLOGIA Em uma metanálise recente de estudos comunitários brasileiros,3 as taxas de prevalência estimada de depressão maior, sintomas depressivos clinicamente significantes e distimia foram, respectivamente, 7%, 26% e 3,3%. A prevalência de depressão é ainda mais alta em subgrupos específicos (p. ex., idosos internados, institucionalizados). Em um estudo brasileiro,4 a prevalência de depressão e apatia em indivíduos com doença de Alzheimer foi, respectivamente, 49% e 56%, e essas perturbações foram os sintomas psicológicos e comportamentais associados à demência (SPCD) mais comuns.

MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS A depressão apresenta uma diversidade de manifestações clínicas:5,6 •





Manifestação afetiva: tristeza, melancolia, apatia, falta de sentimento, tédio, aborrecimento crônico, irritabilidade aumentada, angústia ou ansiedade, desespero e desesperança. Expressão facial de tristeza, reduzida mobilidade facial e choro fácil ou frequente Manifestação instintiva e neurovegetativa: anedonia, fadiga, cansaço fácil e constante, desânimo, apetite reduzido ou aumentado, despertar precoce, insônia inicial, múltiplos despertares e sonolência excessiva, redução da libido e resposta sexual, obstipação intestinal, palidez, pele fria com diminuição do turgor, variabilidade diurna no humor com tristeza mais grave pela manhã que se atenua à tarde ou à noite Alteração do pensamento: pessimismo, ideação, planos ou atos suicidas, ideias de arrependimento, culpa, morte, desejo de desaparecer ou dormir para sempre, crença de que a vida e? vazia, sem sentido e que nada vale a pena. Baixo autoconceito marcado por crenças de incapacidade, inadequação e não ser amado. Autocrítica

• •



• •



exagerada. Delírios de ruína, miséria, delírio de culpa, delírio hipocondríaco e/ou de negação dos órgãos, delírio de inexistência (de si e/ou do mundo), delírios incongruentes com o humor (p. ex., ciúmes, persecutório) Alteração da sensopercepção: alucinações, geralmente auditivas, com conteúdo depressivo. Ilusões auditivas ou visuais Perturbação da cognição: pobreza de associações, dificuldade para tomar decisão, déficit de atenção, concentração e memória, prejuízo de tarefas visuoespaciais e pseudodemência depressiva Alteração da expressão verbal: latência para resposta verbal a perguntas, alentecimento do discurso, respostas verbais curtas, redução do volume verbal no curso da sentença, mutismo, pouca iniciação de conversas e disprosódia (falta de inflexão emocional na voz). O contato visual com o examinador é evitado Alteração da volição: reduzido interesse e dificuldade para iniciar novas atividades. Tendência a permanecer na cama o dia todo. Negativismo Alteração da psicomotricidade: retardo psicomotor (ou períodos de agitação), estupor, catatonia, postura curvada e cabisbaixo, imobilidade corporal, movimentos lentos, incluindo a marcha Marcadores biológicos: falência para suprimir a secreção de cortisol endógeno com a administração de dexametasona exógena no teste de supressão de dexametasona. Diminuição da latência para o sono de movimentos rápidos dos olhos (REM, do inglês, rapid eye movement). Resposta alterada do hormônio estimulante da tireoide (TSH, do inglês, thyroid-stimulating hormone) pós-estímulo com hormônio liberador de tireotropina (TRH, do inglês, thyrotropin-releasing hormone). Depressões graves, por meio de tomografia computadorizada por emissão de fóton único (SPECT, single photon emission computed tomography) ou tomografia por emissão de pósitrons (PET, positron emission tomography), podem apresentar hipofrontalidade. Em idosos, nos exames de neuroimagem, podem ser observados sinais de alterações vasculares.

Em comparação com adultos jovens, idosos com depressão maior queixam-se mais de inquietude, hipocondria e sintomas somáticos.7

DIAGNÓSTICO O diagnóstico clínico é essencialmente realizado por meio de uma anamnese detalhada baseada em informações fornecidas pelo paciente e um informante, especialmente em idosos com psicose, déficits cognitivos e dificuldades de comunicação. Para a elaboração do diagnóstico de depressão, são necessários a revisão da história psiquiátrica, das comorbidades médicas e do uso de medicamentos, álcool e outras substâncias psicoativas, a avaliação do risco de suicídio, a observação do comportamento do paciente, o exame físico e, em alguns casos, a investigação laboratorial e de neuroimagem para confirmação de condições médicas associadas.

Diagnóstico diferencial O diagnóstico diferencial da depressão envolve transtornos depressivos, reação de

ajustamento com humor depressivo, transtorno bipolar, luto e transtorno do humor decorrente de condição médica geral ou induzido por medicamentos ou substâncias psicoativas. Depressão psicótica é aquela em que sintomas depressivos são acompanhados por delírios e alucinações, comumente compatíveis com temas depressivos. Os mesmos critérios do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, em sua 5a edição (DSM-5)8, para o diagnóstico de depressão maior utilizados para o adulto jovem são adotados para o idoso: A. Cinco (ou mais) dos seguintes sintomas presentes no mesmo período de 2 semanas e que representam uma mudança do funcionamento prévio; ao menos, um dos sintomas deve ser (a) humor deprimido ou (b) perda de interesse ou prazer a. Humor deprimido b. Interesse ou prazer marcadamente diminuído nas atividades c. Perda de peso significativa, ganho de peso, apetite aumentado ou reduzido d. Insônia ou hipersonia e. Retardo ou agitação psicomotora f. Fadiga ou pouca energia g. Sentimentos associados a menos valia, culpa excessiva ou inapropriada (pode ser delirante) B. Estes sintomas depressivos devem causar sofrimento ou prejuízo funcional significativo e não são atribuíveis a efeitos fisiológicos de um medicamento, uma substância psicoativa ou outra condição médica. Luto é considerado uma reação normal à morte de uma pessoa amada. Como parte desta reação, algumas pessoas podem apresentar uma síndrome semelhante à depressão maior. Nesses casos, não se aplica este diagnóstico, exceto se os sintomas se prolongarem. Antecedente familiar ou pessoal de depressão, ideação e humor constantemente negativos, baixa autoestima, ideação suicida, retardo psicomotor, prejuízo funcional grave e persistente e sintomas psicóticos são mais característicos de depressão maior. Transtorno depressivo persistente (distimia) é um tipo de depressão mais persistente e representa uma consolidação da depressão maior crônica e o transtorno distímico. As principais características para o seu diagnóstico, segundo o DSM-58, são (a) humor deprimido na maior parte do tempo; (b) presença, enquanto deprimido, de dois (ou mais) dos seguintes: pobre apetite ou comer em excesso, insônia ou hipersonia, baixa energia ou fadiga, baixa autoestima, pobre concentração ou dificuldade para tomar decisão e sentimentos associados a pensamentos de desesperança; (c) os sintomas descritos nos critérios (a) e (b) nunca estiveram ausentes por mais de 2 meses em um período de 2 anos; e (d) critério para depressão maior pode estar continuadamente presente por 2 anos. Transtorno de ajustamento com humor deprimido é uma síndrome emocional e comportamental, cujas manifestações dominantes são humor deprimido, choro fácil e frequente e sentimentos de desesperança, e que se desenvolve dentro de 3 meses do

início de um estressor identificável. Uma vez que o estressor ou sua consequência tenham terminado, os sintomas não persistem por mais de 6 meses. Para firmar este diagnóstico, as manifestações clínicas não devem preencher critério para outros transtornos mentais. A característica essencial do transtorno bipolar é a mania, cujas manifestações principais são humor exaltado ou eufórico, atividade exagerada com necessidade reduzida de sono e otimismo exacerbado com prejuízo de julgamento. Hipomania é uma forma atenuada de episódio maníaco, que não é acompanhada por disfunção social importante ou sintomas claramente psicóticos, muitas vezes passa despercebida, e, por isso, não recebe habitualmente atenção médica.5 Episódios de depressão podem ocorrer em pessoas com transtorno bipolar. Depressão orgânica ou secundária é uma síndrome depressiva causada ou fortemente associada à doença física, seja ela primariamente cerebral ou sistêmica.5 Por exemplo, cerca de um terço dos pacientes que teve um acidente vascular cerebral (AVC) sofrerá com sintomas depressivos.9 Condições médicas associadas à depressão orgânica: •

• •

• • •

Doenças neurológicas: demência com corpos de Lewy, doença de Alzheimer, demência frontotemporal, doenças extrapiramidais, doenças cerebrovasculares, neoplasias cerebrais, infecções do SNC, esclerose múltipla, epilepsia, narcolepsia, hidrocefalia Infecções: virais e bacterianas Doenças metabólicas: hipertireoidismo, hipotireoidismo, hiperparatireoidismo, hipoparatireoidismo, síndrome de Cushing, doença de Addison, hiperaldosteronismo, diabetes melito, prolactinoma, hipopituitarismo Doenças reumatológicas: lúpus eritematoso sistêmico, arterite temporal, síndrome de Sjögren Carências: deficiência de vitamina B12, niacina, folato Doenças sistêmicas: doença cardiopulmonar, doença renal, uremia, neoplasias sistêmicas, porfirias.

No DSM-5,8 depressão orgânica é denominada transtorno depressivo decorrente de outra condição médica e definida pela presença de sintomas depressivos que são consequência direta de outra condição médica evidenciada pela história médica, exame físico ou investigação laboratorial. Este diagnóstico é presuntivo, uma vez que não há como comprovar a relação. Algumas características fortalecem esse diagnóstico: (a) associação temporal entre início, exacerbação ou remissão da condição médica geral e os sintomas psiquiátricos; (b) presença de déficits cognitivos significativos desproporcionais aos tipicamente encontrados no transtorno mental primário; (c) idade de início, curso e sintomas atípicos para o transtorno mental; (d) manifestações clínicas desproporcionalmente mais graves do que as esperadas; e (e) o tratamento voltado para a condição médica geral melhora tanto os sintomas dessa condição quanto os do transtorno mental. No transtorno depressivo induzido por medicamentos ou substância psicoativa, a perturbação do humor é proeminente e persistente no quadro clínico e há evidência pela

história, exame físico ou achados laboratoriais de que (a) os sintomas depressivos apareceram após intoxicação ou abstinência de substâncias psicoativas ou exposição a um medicamento e que (b) a substância psicoativa ou medicamento é capaz de produzir os sintomas depressivos.8 Alguns medicamentos ou substâncias psicoativas que podem causar depressão são: aciclovir, álcool, anticolinesterásico, anticonvulsivantes, antiparkinsonianos, benzodiazepínicos, betabloqueadores, bloqueadores de canais de cálcio, inibidores dos receptores H2, bromocriptina, corticosteroides, estatinas, estrogênios, fluoroquinolonas, inibidores de bomba de prótons, interferona alfa, neurolépticos, opiáceos e opioides. Um importante diagnóstico diferencial é entre depressão e demência. Estas duas doenças são muito prevalentes na população idosa, podendo estar sobrepostas, dificultando mais o diagnóstico e o tratamento e piorando o prognóstico. Em alguns casos, a depressão geriátrica apresenta sintomas cognitivos muito intensos e, por isso, pode ser confundida com demência. A instalação rápida e a flutuação dos déficits cognitivos, a presença de humor depressivo, a tendência a enfatizar as dificuldades e o pouco engajamento na entrevista ou na aplicação de testes neuropsicológicos são mais comumente observados em deprimidos. Depressão é um dos mais frequentes SPCD, pode ser recorrente no curso da demência e, especialmente, em fases mais avançadas desta, seu diagnóstico pode ser extremamente difícil. Em uma entrevista diagnóstica, um paciente com demência pode não compreender as perguntas, comunicar inadequadamente seu sofrimento ou não se lembrar dos sintomas depressivos. Algumas manifestações clínicas (p. ex., apatia, perturbação do sono, agitação e perda de peso) podem ocorrer tanto na depressão como na demência. Outro SPCD muito frequente e difícil de diferenciar da depressão é a apatia. No seu diferencial, apoiam o diagnóstico de depressão a presença de pensamentos de desvalia, morte ou suicídio, antecedentes pessoais de depressão e/ou humor triste e anedonia proeminentes. Afeto pseudobulbar (choro e riso patológico, incontinência emocional) é um diagnóstico diferencial de depressão e caracterizado por riso ou choro descontrolado que pode ser desproporcional ou inapropriado ao contexto social.10 Os episódios de emoção são percebidos pelos outros como não provocados ou desconectados da situação ou fora de proporção ao humor e sentimentos do paciente. Pode ocorrer em uma variedade de doenças neurológicas (p. ex., doença de Alzheimer, doenças extrapiramidais, trauma craniano, esclerose lateral amiotrófica, esclerose múltipla). Transtornos depressivos não especificados são aqueles que não preenchem critério “número de sintomas”, “apresentação” ou “duração” dos transtornos depressivos descritos anteriormente e, na literatura, são descritos como depressão menor, subliminar ou subsindrômica.

TRATAMENTO O tratamento visa à supressão dos sintomas depressivos, à melhoria da qualidade de vida

e da capacidade funcional e à redução do risco de recidiva e recorrência. Os tratamentos disponíveis são: terapias psicossociais, biológicas (especialmente, psicofármacos, eletroconvulsoterapia [ECT] e estimulação magnética transcraniana [TMS, do inglês, transcranial magnetic stimulation]) e os tratamentos alternativos/mudanças de estilo de vida, que podem ser utilizados isoladamente ou em associação. Atividade física pode reduzir a gravidade da depressão em idosos,11 porém, a falta de engajamento dos pacientes deprimidos nessas atividades, especialmente, sem supervisão é o principal obstáculo para implementação dessa recomendação. O tratamento farmacológico da depressão geriátrica é um desafio por conta da suscetibilidade dos idosos aos efeitos colaterais de psicofármacos, presença de comorbidades, uso simultâneo de vários medicamentos e do potencial de interações medicamentosas. Com base na redução de 50% ou mais dos sintomas depressivos em uma escala de avaliação, o número necessário para tratar com antidepressivos tricíclicos, inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS) e todos os antidepressivos combinados foi, respectivamente, 5 (índice de confiança [IC] 95%, 3 a 7), 8 (IC 95%, 5 a 11) e 8 (IC 95%, 5 a 11).12 Os ISRS são de primeira linha no tratamento da depressão geriátrica, pela boa eficácia e o perfil de efeitos colaterais mais bem tolerados. A introdução de um antidepressivo deve ser iniciada com a menor dose possível, que paulatinamente será aumentada com base na resposta terapêutica, tolerância aos efeitos colaterais ou presença de interação medicamentosa. Em geral, a resposta terapêutica à introdução ou ao aumento da dose de um antidepressivo é observada em 2 ou 3 semanas. Uma tentativa de tratamento com esse tipo de psicofármaco é considerada adequada após 4 a 6 semanas com a máxima dose tolerada. A adesão ao tratamento, o diagnóstico psiquiátrico equivocado e a presença de comorbidades médicas ou psiquiátricas são fatores que podem levar à falta de resposta ou à falência do tratamento. Posologia e efeitos de alguns antidepressivos que podem ser utilizados no tratamento do idoso: •





ISRS: sertralina (12,5 a 150 mg), paroxetina (5 a 20 mg), citalopram (10 a 40 mg), fluoxetina (5 a 40 mg), escitalopram (5 a 20 mg). Paroxetina, fluoxetina e altas doses de sertralina são potentes inibidoras do citocromo-450 (CYP-450) – Efeitos colaterais: ansiedade, agitação, sudorese, perturbações do sono, tremor, diarreia, disfunção sexual e cefaleia. Menos comuns: parkinsonismo, distonia, acatisia e hiponatremia por secreção inapropriada de hormônio antidiurético Venlafaxina (37,5 a 225 mg). Em idosos hipertensos, especialmente os de difícil controle, deve ser evitada – Efeitos colaterais: náuseas, cefaleia, insônia, sonolência, boca seca, tontura, obstipação, astenia, sudorese, nervosismo. Em doses altas, hipertensão arterial Desvenlafaxina (50 a 100 mg). Deve ser utilizada com cuidado em hipertensos, pessoas com problemas de coagulação ou sangramento, glaucoma, distúrbios de lipídios e epilepsia – Efeitos colaterais: náuseas, tontura, insônia, hiperidrose, obstipação, sonolência,











apetite reduzido, priapismo, terror noturno e disfunção sexual em homens Mirtazapina (15 a 45 mg). Deve-se evitar em pacientes com risco de queda, confusão mental e obesidade – Efeitos colaterais: sonolência, sedação excessiva, boca seca, aumento de apetite e de peso Duloxetina (30 a 120 mg). Pode auxiliar no tratamento de algumas dores em idosos, entre elas, a neuropática – Efeitos colaterais: náuseas, boca seca, constipação intestinal, insônia, diarreia, cansaço, tontura, sonolência, aumento da sudorese, efeitos sexuais Bupropiona (75 a 225 mg). É contraindicada em pacientes com epilepsia – Efeitos colaterais: agitação, insônia, boca seca, náuseas, vômito, inquietação. Em doses mais altas, pode provocar convulsões Nortriptilina (10 a 100 mg). É contraindicada em bloqueio atrioventricular e glaucoma e deve ser utilizada com cautela em idosos com hiperplasia prostática e déficit cognitivo – Efeitos colaterais: obstipação intestinal, xerostomia, retenção urinária, hipotensão ortostática, déficit cognitivo, delirium e cardiotoxicidade Tranilcipromina (5 a 30 mg). Interage com alimentos ricos em tiramina e medicamentos (L-dopa, anfetaminas, tricíclicos), provocando reação hipertensiva potencialmente fatal. Utilizada em depressão refratária – Hipotensão supina e ortostática, edema periférico, ganho de peso e disfunção sexual.

O consenso do National Institutes of Health (NIH) recomenda a manutenção do tratamento farmacológico por, no mínimo, 6 meses após a recuperação do primeiro episódio e 12 meses em casos de doença recorrente. E ainda adverte que pacientes idosos com depressão recorrente podem precisar de tratamento indefinidamente para manter-se bem, sempre com o mesmo tipo e intensidade do tratamento que ocasionou a recuperação.13 As terapias cognitivo-comportamental (TCC), comportamental, psicodinâmica breve, de reminiscência e a psicoterapia interpessoal são algumas das abordagens propostas para tratamento da depressão geriátrica. Podem ser extremamente úteis e efetivas em idosos que não toleram medicação, têm pouco suporte social ou enfrentam evento estressor negativo (p. ex., perda de ente querido) ou alguma dificuldade interpessoal (p. ex., conflito com parente com demência). A TCC individual é bem recomendada para tratamento de idosos deprimidos. A ECT é efetiva no tratamento agudo da depressão geriátrica, geralmente, segura e indicada em casos de depressão grave ou psicótica ou quando se faz necessária uma resposta rápida, não há resposta terapêutica aos antidepressivos ou há intolerância à medicação. Em relação à fase de manutenção, em idosos, ECT parece ser efetiva. Os efeitos colaterais mais comuns são dor de cabeça e perda de memória. No que concerne à TMS, não há estudos suficientes para avaliar firmemente a eficácia e a segurança.

PROGNÓSTICO Depressão em idosos na comunidade e em cuidados primários apresenta prognóstico ruim, pode ser crônica e/ou recidivante e provavelmente subtratada.14 Depressão geriátrica é associada a risco aumentado para todas as causas somadas de demência.

ANSIEDADE Ansiedade é uma resposta cognitiva, afetiva e fisiológica que é ativada quando eventos aversivos são percebidos como incontroláveis e ameaçadores aos interesses vitais de um indivíduo. Passa a ser mórbida quando se torna excessiva, prolongada ou injustificável e, assim, causa sofrimento ou prejudica o desempenho da pessoa no trabalho, na escola, na interação social e no lazer. Nos idosos, pode ainda perturbar funções cognitivas, exacerbar doenças físicas e/ou fazer parte de uma doença física não reconhecida.

EPIDEMIOLOGIA Em idosos, transtornos ou sintomas de ansiedade, incluindo transtorno do estresse póstraumático (TEPT), são comuns, mas, em relação a adultos mais jovens, menos prevalentes. Em um estudo comunitário,15 a prevalência de transtornos de ansiedade agrupados, fobia e transtorno de ansiedade generalizada foi, respectivamente, 7%, 4,7% e 1,2%. Comorbidade entre ansiedade e transtorno depressivo é uma ocorrência comum. A ansiedade é mais prevalente em pacientes com doença de Alzheimer do que em indivíduos sem comprometimento cognitivo.4 Por vezes, é complicado evidenciá-la por conta da fonte de informação e da sobreposição de sintomas de ansiedade, depressão e demência.

MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS O diagnóstico dos transtornos de ansiedade envolve, em primeiro lugar, a identificação e a caracterização de sinais e sintomas de ansiedade: •





Pensamento, emoção, cognição ou percepção: nervosismo, preocupação, ansiedade, medo ou pavor, medo de que possa ocorrer alguma coisa ruim e não se saiba lidar, apreensão, dificuldade para relaxar, irritabilidade, desejo de escapar, despersonalização, desrealização, dificuldade para se concentrar, pensamentos rápidos, obsessões, receio de perder controle ou ficar louco, sensações de asfixia ou falta de ar, parestesias (dormência ou formigamento), compulsões Sinais comportamentais: inquietação, evitação, expressão facial de apreensão, pressão para falar, reação de alarme, olhos arregalados, atos motores repetitivos, hábitos, maneirismos, compulsões Sinais ou sintomas autônomos: taquicardia, palpitação, aperto, desconforto ou dor no peito, boca seca, hiperventilação, parestesias, tonturas, urgência para urinar, desconforto abdominal leve, diarreia, sudorese, tremores, náuseas, calafrios ou

sensações de calor.

DIAGNÓSTICO O diagnóstico de ansiedade deve ser elaborado com base em anamnese completa e observação do comportamento durante a entrevista. São detalhados sintomas psiquiátricos, histórico médico, medicações tomadas, estressores psicossociais recentes e desempenho nas atividades cotidianas. Frequentemente, a avaliação clínica precisa ser complementada com informante por conta de comprometimento cognitivo. Pacientes mais velhos com ansiedade frequentemente apresentam-se de modo diferente dos adultos mais jovens. Podem ter dificuldades em relembrar sintomas ou descrevê-los adequadamente, por exemplo, o idoso fala sobre seus problemas concretos mais do que suas preocupações ou pensamentos catastróficos ou atribui seus sintomas de ansiedade mais a doenças físicas do que a um transtorno mental. Com base na sintomatologia ansiosa, podem-se aplicar os critérios diagnósticos do DSM-5 para obter o diagnóstico dos transtornos de ansiedade específico no idoso.8

Diagnóstico diferencial O primeiro passo do diagnóstico diferencial é diferenciar entre os diversos transtornos de ansiedade de acordo com suas características e sua etiologia. Ansiedade orgânica é caracterizada pela experiência de ansiedade ou ataques de pânico intensos, que se relacionam ao uso de medicamentos (p. ex., fármacos simpaticomiméticos, antiparkinsonianos, corticosteroides), à intoxicação ou à abstinência de substâncias psicoativas (p. ex., intoxicação por cafeína, abstinência de álcool) ou a condições médicas (p. ex., arritmia cardíaca, hipertireoidismo, hipoglicemia, embolia pulmonar, doença de Parkinson). Algumas dessas condições médicas podem ser uma ameaça à vida. O transtorno de ansiedade generalizada é caracterizado pela experiência, em um período de seis ou mais meses, quase todos os dias, de preocupação excessiva ou ansiedade incontroláveis acerca de uma série de eventos ou atividades, associada a, pelo menos, outros três sintomas desta lista: a) agitação ou sentir-se tenso ou estar no limite; b) ficar facilmente fatigado; c) dificuldade de concentração ou dar branco na mente; d) irritabilidade; e) tensão muscular; f) perturbação do sono. Agorafobia é o medo ou a ansiedade intensa e desproporcional relacionada a espaços abertos, locais fechados, estar em uma fila, em uma multidão ou sozinho. Estas situações são ativamente evitadas, requerem a presença de companhia ou são confrontadas com muito medo e ansiedade. Transtorno do pânico é caracterizado por ataques de pânico (uma onda abrupta de medo ou desconforto intenso que alcança seu pico dentro de minutos) recorrentes e inesperados, que podem se seguir por preocupação persistente (p. ex., perder de controle, ficar louco) ou comportamento de evitação. Fobia social é o medo ou a ansiedade intensa acerca de uma ou mais situações sociais nas quais o sujeito pode ser exposto ao escrutínio. Ele teme que agirá de uma maneira ou

revelará sintomas de ansiedade que serão avaliados negativamente pelos outros. Fobia específica é caracterizada por ansiedade ou medo intensos, quase sempre presente, em relação a um objeto ou uma situação específica, que são ativamente evitados ou confrontados com emoções intensas. TEPT é caracterizado pela experiência, após a exposição a um evento traumático (p. ex., ameaça de morte, grave injúria ou violência sexual), de sintomas que podem ser reunidos em três grupos: (a) hiperexcitabilidade psíquica e psicomotora: ansiedade, taquicardia, sudorese, tonturas, dor de cabeça, distúrbios do sono, dificuldade de concentração, irritabilidade, hipervigilância; (b) reexperiência traumática: pensamentos recorrentes e intrusivos que remetem à memória do trauma, flashbacks, pesadelos; (c) esquiva e isolamento social: a pessoa foge de contatos, situações e atividades que possam reviver as memórias dolorosas do trauma. Na demência, os pacientes podem expressar preocupações excessivas sobre seu dinheiro, futuro, saúde e com eventos e atividades que não eram estressantes (p. ex., sair de casa). A síndrome de Godot é comum e caracteriza-se por preocupação excessiva ou temor patológico com acontecimentos futuros (p. ex., com a consulta de rotina a seu médico) e leva o paciente a perguntar repetidamente sobre um evento para familiares ou cuidadores. O medo de ficar só também é comum e particularmente estressante para membros da família ou cuidadores, já que o paciente pode queixar-se incessantemente de falta de companhia ou exigir a presença de alguém.

TRATAMENTO Dados sugerem que antidepressivos ou anticonvulsivantes podem ser tão efetivos em idosos como o são em adultos jovens.16 Os ISRS são considerados agentes de primeira escolha para o tratamento dos transtornos de ansiedade por seu melhor perfil de eventos adversos. Duloxetina e venlafaxina são outros antidepressivos testados para o transtorno de ansiedade generalizada. Outros medicamentos utilizados no tratamento de ansiedade são os benzodiazepínicos, a pregabalina (75 a 300 mg), a buspirona (20 a 50 mg) e os antipsicóticos atípicos (quetiapina 25 a 100 mg). No tratamento do TEPT, prazosina (bloqueador alfa-1-adrenérgico) e trazodona podem ser utilizadas. Embora os benzodiazepínicos sejam os mais prescritos para o tratamento dos transtornos de ansiedade, seu uso está associado a efeitos colaterais graves no idoso, como o risco aumentado de quedas, alentecimento psicomotor, fala pastosa, falta de coordenação motora, prejuízo cognitivo ou potencial de tolerância e dependência. Em idosos, TCC, treino de relaxamento, terapia de exposição, terapia interpessoal e outras estratégias psicoterápicas podem ser aplicados para o tratamento dos transtornos de ansiedade. A TCC é a técnica mais estudada e que apresenta melhores resultados. Terapia de exposição, com ou sem TCC, demonstra eficácia em indivíduos com TEPT e fobias específicas. Exercício físico regular pode reduzir o risco de desenvolver transtornos de ansiedade em idosos.16

PROGNÓSTICO Para os transtornos de ansiedade, são altas as taxas de recidiva, persistência e de migração para transtorno depressivo ou misto de ansiedade e depressão.

INSÔNIA Insônia é um sintoma que pode ser definido como dificuldade em iniciar e/ou manter o sono, presença de sono não reparador, ou seja, insuficiente para manter uma boa qualidade de alerta e bem-estar físico e mental durante o dia, com o comprometimento consequente do desempenho nas atividades diurnas.17

EPIDEMIOLOGIA No idoso, perturbações do sono associam-se a déficits cognitivos, pior qualidade de vida, risco aumentado de acidentes e quedas, sintomas de depressão e ansiedade e fadiga crônica.18 Em um estudo com 1.042 adultos brasileiros, a prevalência de insônia objetiva foi de 32% e, nos indivíduos com 60 anos ou mais, a de sintomas de insônia e insônia definida pelo DSM-IV foi, respectivamente, 19,6% e 9,1%.19 Na população idosa, aproximadamente 50% têm queixas significativas de perturbação do sono.18 Problemas com o sono e o comportamento noturno são frequentes em pessoas com comprometimento cognitivo e, em um outro estudo brasileiro,4 a prevalência desses problemas em indivíduos com doença de Alzheimer foi estimada em 34%.

MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS Indivíduos insones queixam-se de dificuldades em adormecer, despertar precoce, despertares noturnos, cansaço ao despertar ou muitos cochilos durante o dia. Na caracterização da insônia, é importante avaliar o impacto na função cognitiva, no humor, na psicomotricidade e na funcionalidade. Em uma população saudável, a maioria das mudanças do padrão de sono ocorre antes dos 60 anos: decréscimo do sono total, da eficiência do sono e do sono de ondas lentas e aumento dos despertares. Depois dos 60 anos, podem ser observadas dificuldades para adaptar-se à troca rápida de turnos de trabalho, tendência a ir e a levantar mais cedo da cama e à menor eficiência do sono. Em idosos, a associação entre queixas de sono e doenças físicas, transtornos mentais, uso de medicamentos ou substância psicoativa sugere que essas queixas relacionam-se mais ao estado mórbido do idoso do que à idade cronológica per se.

DIAGNÓSTICO O diagnóstico da insônia é eminentemente clínico, com base na anamnese detalhada com ênfase nos hábitos de sono, preferencialmente confirmada por cuidador ou familiar e,

algumas vezes, com um diário de sono. Este registro pode ser muito importante, especialmente em pessoas com demência, deve ser diário e indicar horário de dormir e despertar, satisfação com o sono, número de cochilos, horário e quantidade das refeições, uso de álcool e medicamentos, exercícios e condições do ambiente. A escala de sonolência de Epworth pode ser utilizada como instrumento de triagem,18 para quantificar a sonolência diurna excessiva ou avaliar a resposta ao tratamento. A polissonografia é indicada quando há sonolência diurna excessiva, suspeita de outro transtorno do sono (p. ex., apneia do sono, movimentos periódicos de pernas) ou não há resposta favorável ao tratamento da insônia. No diagnóstico, podem ser utilizados os critérios diagnósticos do DSM-5 para melhorar a concordância entre os profissionais que definem insônia primária por:8 •







Queixa predominante de falta de satisfação com a quantidade e/ou qualidade do sono com um ou mais dos seguintes sintomas: (a) dificuldade para iniciar o sono, (b) para manter o sono e/ou (c) despertar precoce A perturbação do sono causa sofrimento significativo ou prejuízo social, ocupacional, educacional, acadêmico, comportamental ou em outra área importante de funcionamento Dificuldade para dormir: (a) ocorre, pelo menos, em três noites de 1 semana, (b) está presente por, pelo menos, 3 meses e (c) acontece mesmo em oportunidades adequadas para dormir (a) Não pode ser explicada melhor por outro transtorno do sono ou ocorrer exclusivamente no curso de outro transtorno do sono e (b) não pode ser atribuída ao efeito fisiológico de algum medicamento ou substância psicoativa ou à presença de um transtorno mental ou doença física.

Diagnóstico diferencial A insônia pode ser classificada em episódica, quando os sintomas duram, pelo menos 1 mês e menos de 3 meses, persistente quando duram três ou mais meses e recorrente quando dois ou mais episódios de insônia ocorrem no intervalo de 1 ano. Quando causada por doença física, transtorno mental, uso de medicamento ou substância psicoativa, a insônia é denominada secundária e, na sua investigação, exames laboratoriais, imagens radiológicas e provas cardiorrespiratórias podem ser importantes. No idoso, são causas de insônia:18 •

• • • •

Maus hábitos ou condição ambiental inadequada: ambiente claro, barulhento, temperatura desconfortável, hábitos inapropriados (p. ex., horário irregular de ir para a cama, consumo de bebidas estimulantes antes de dormir) Dor aguda ou crônica: artrite, cefaleia, câncer, fibromialgia, neuropatia Doenças neurológicas: doença de Alzheimer, demência frontotemporal, AVC parkinsonismo secundário e doença de Parkinson Transtorno mental: depressão, transtornos de ansiedade, psicose, demências Doenças cardiorrespiratórias: angina de peito, doença vascular periférica, doença

• • • • • • •

pulmonar obstrutiva crônica, broncospasmo, rinite, sinusite Doenças gastrintestinais: refluxo gastresofágico, úlcera gástrica Doenças endocrinológicas: hipertireoidismo, hipotireoidismo, diabetes melito Doenças geniturinárias: uremia, incontinência urinária Outras doenças: anemia, neoplasias, doenças infecciosas Parassonias: pesadelos frequentes, distúrbio comportamental de sono REM Uso de substâncias psicoativas: álcool, benzodiazepínicos Medicamentos: psicoestimulantes (p. ex., modafinila, metilfenidato), anti-hipertensivos, broncodilatadores, bloqueadores do canal de cálcio, corticosteroides, descongestionantes, antidepressivos.

Síndrome de pernas inquietas (SPI) é uma causa comum de insônia, pode provocar sofrimento psíquico ou comprometimento da funcionalidade e caracteriza-se pelo impulso de mover as pernas, geralmente como resposta a sensações desconfortáveis e desagradáveis.20 Esta condição pode ocorrer apenas à noite, melhorar parcial ou totalmente com movimento e piorar em períodos de repouso ou inatividade. O diagnóstico é clínico e as causas secundárias devem ser excluídas (p. ex., deficiência de ferro, mirtazapina). A SPI é mais frequente em idosos, pessoas com história familiar, grávidas, anêmicos por deficiência de ferro e doentes com uremia.20 Vários medicamentos (p. ex., ISRS, antidepressivos tricíclicos, lítio) podem precipitar ou exacerbar a SPI. No registro da polissonografia, podem ser observadas perturbações com fragmentação frequente do sono e característicos movimentos periódicos de pernas. A SPI tem que ser diferenciada de polineuropatia periférica, cãibras noturnas, insuficiência vascular periférica, acatisia e síndrome de painful legs and moving toes, o que pode ser extremamente difícil em idosos com comprometimento cognitivo. Em pessoas com demência, as perturbações do sono são variadas. Em pacientes com doença de Alzheimer, as mais comuns são dormir mais do que o normal e despertar precocemente, e a mais penosa para os cuidadores é ser despertado durante a noite. Perambulação e agitação noturnas podem ser causadas por SPI.

TRATAMENTO No caso de uma pessoa idosa com queixa de insônia persistente, médico e paciente devem, inicialmente, determinar metas e expectativas realistas de tratamento abarcando a melhoria das reclamações noturnas e, no mínimo, a manutenção e, preferencialmente, a melhoria da funcionalidade.18 A identificação, o tratamento de doenças físicas ou transtornos mentais e/ou a remoção de agentes agressores podem corrigir a insônia. Algumas vezes, a resposta a essa abordagem pode ser ausente ou parcial, levando à necessidade de uma terapêutica adicional. Em todos os casos de insônia, medidas de higiene do sono são valiosas e devem ser recomendadas:

• • • • • • • • • •

Manter um horário fixo para se deitar e levantar, mesmo em fins de semana, férias e feriados Não assistir televisão, ler, escutar rádio, comer ou falar no telefone na cama Manter o quarto em temperatura agradável e com níveis mínimos de iluminação e ruído Cultivar hábitos que ajudem a se preparar mental e fisicamente para dormir, por exemplo, escovar os dentes, vestir o pijama ou técnicas de relaxamento Não conferir a hora a cada despertar, uma vez que isto pode causar ou agravar a ansiedade Não ficar acordado na cama por períodos longos. A cama é para dormir Evitar luz brilhante à noite e expor-se à luz pela manhã Não cochilar durante o dia, lembrando que o hábito da sesta não prejudica o sono Realizar exercícios físicos regulares, preferencialmente, sob luz solar. Não os pratique 3 h antes de dormir Antes de dormir, evitar fumar e consumir líquidos em geral, especialmente, bebidas alcoólicas e aquelas que contenham cafeína ou muito açúcar.

A TCC é aplicada com sucesso no tratamento da insônia e envolve psicoeducação, técnicas de reestruturação cognitiva e intervenções comportamentais (p. ex., técnicas de relaxamento, medidas de higiene do sono, restrição de sono e controle de estímulos). Os benefícios clínicos dessa abordagem não são imediatos e dependem da prática regular dos exercícios propostos pelo terapeuta. A fototerapia envolve breves ensaios de exposição à luz artificial e é outro método efetivo para um ciclo sono-vigília saudável em indivíduos com ou sem demência. É comum, na prática clínica, que a insônia seja tratada com medicamento mesmo com terapias não farmacológicas eficazes. O tratamento farmacológico da insônia deve iniciar com psicofármacos de eliminação rápida e com a menor dose efetiva, seu uso deve ser intermitente (2 a 4 vezes/semana) e por períodos curtos (menos de 4 semanas) e sua descontinuação gradual para a prevenção de insônia rebote. O uso de medicamentos em pacientes geriátricos, por serem mais propensos aos efeitos colaterais, associa-se, algumas vezes, a problemas de mobilidade e menor capacidade para realizar as atividades diárias. Esses problemas se opõem às metas de tratamento. Os agentes farmacológicos utilizados no tratamento da insônia do idoso são: •



Agentes não benzodiazepínicos: zolpidem (5 a 10 mg), zolpidem de liberação prolongada (6,25 a 12,5 mg), zopiclona (3,75 a 7,5 mg). Interferem menos na arquitetura do sono, reduzem a latência para o início do sono e causam menos sonolência diurna – Efeitos colaterais: amnésia anterógrada, falta de coordenação motora, diarreia, fadiga, tonturas ou sensação de embriaguez, sonolência diurna; sensação de boca amarga e/ou secura da boca Benzodiazepínicos: midazolam (7,5 a 15 mg), estazolam (0,5 a 2 mg), temazepam (7,5 a 15 mg), triazolam (0,125 a 0,250 mg), clonazepam (0,25 a 1 mg). Interferem com a







arquitetura do sono (aumentam a fase II e suprimem as fases III e IV e sono REM) e diminuem a latência para o sono e o número de despertares noturnos. Não se deve utilizar os de meia-vida longa (p. ex., diazepam, clordiazepóxido) pela possibilidade de efeitos colaterais diurnos – Efeitos colaterais: sonolência diurna, amnésia, confusão, déficit no desempenho cognitivo, queda, agitação paradoxal Trazodona (antidepressivo) (25 a 100 mg): reduz o número de despertares e aumenta a porcentagem de sono profundo durante à noite – Efeitos colaterais: sonolência, boca seca, gosto desagradável, náuseas, vômito, cefaleia e priapismo Mirtazapina (antidepressivo) (15 a 45 mg): melhora a arquitetura do sono e a eficiência do sono sem supressão do sono REM – Efeitos colaterais: sonolência, sedação excessiva, boca seca, aumento de apetite e de peso, pode causar ou piorar SPI Agomelatina (antidepressivo) (25 a 50 mg): diminui a latência para início do sono, o número de despertares e pode aumentar o sono de ondas lentas e a eficiência do sono. Apresenta efeito de melhora na sincronização dos ritmos circadianos – Efeitos colaterais: tonturas, alterações nos testes de função hepática, dor abdominal. Contraindicado em pacientes com cirrose ou transaminases aumentadas.

Em pacientes com demência, o tratamento da insônia geralmente envolve a combinação de várias intervenções, como medidas ambientais, uso de analgésicos, técnicas comportamentais e terapia medicamentosa. Nesses pacientes, o uso excessivo de psicotrópicos pode agravar os prejuízos cognitivos, provocar quedas e até mesmo levar à morte. A SPI pode ser causada ou agravada por baixos níveis de ferro. A dosagem de ferritina é um exame sensível para demonstrar baixos níveis de ferro e, quando os níveis ficam abaixo de 50 mcg/l, ferro deve ser suplementado. A resposta à suplementação é esperada após 2 semanas. O tratamento de primeira linha da SPI é agonista dopaminérgico (p. ex., pramipexol 0,125 a 1 mg/dia), e de segunda linha são agentes alfadelta ligantes (gabapentina 300 a 2.400 mg/dia e pregabalina 75 a 600 mg/dia).20 No caso de SPI, dolorosa, podem ser úteis opioides (p. ex., codeína 10 a 60 mg/dia, tramadol 50 a 200 mg/dia). Melatonina é conhecida como uma substância endógena indutora do sono, cuja secreção é estimulada pelo escuro e inibida pela luz. Em idosos, sua deficiência e, em uma noite, seu pico de concentração mais tardio podem contribuir para a insônia. A administração de melatonina de liberação prolongada tem efeitos modestos na melhoria da qualidade de sono e na redução dos sintomas de pôr do sol em pacientes com Alzheimer.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1.

Reynolds C3, Kupfer D. Depression and aging: a look to the future. Psychiatr Serv.

1999;50(9):167-72. 2.

Heok K, Ho R. The many faces of geriatric depression. Curr Opin Psychiatr. 2008;21(6):540-5.

3.

Barcelos-Ferreira R, Izbicki R, Steffens D, Bottino C. Depressive morbidity and gender in community-dwelling Brazilian elderly: systematic review and meta-analysis. Int Psychogeriatr. 2010;22(5):712-26.

4.

Tatsch M. Sintomas psicológicos e comportamentais em pacientes com demência de amostra representativa da comunidade de São Paulo: prevalência, relação com gravidade da demência e com estresse do cuidador. [Tese de Doutorado] São Paulo: Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, 2005.

5.

Dalgalarrondo P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 2.ed. Porto Alegre: Artmed, 2008.

6.

Cummings J, Mega M. Neuropsychiatry and behavioral neuroscience. Oxford: Oxford University Press, 2003.

7.

Hegeman J, Kok R, van der Mast R, Giltay E. Phenomenology of depression in older compared with younger adults: meta-analysis. Br J Psychiatry. 2012;200(4): 275-81.

8.

American Psychiatric Association. Diagnostic and Stastical Manual of Mental Disorder, 5th Edition: DSM-5. 5. ed. Washington: American Psychiatric Publishing, 2013.

9.

Hackett M, Yapa C, Parag V, Anderson C. Frequency of depression after stroke: a systematic review of observational studies. Stroke. 2005;36(6):1330-40.

10. Ahmed A, Simmons Z. Pseudobulbar affect: prevalence and management. Ther Clin Risk Manag. 2013;9:483-9. 11. Bridle C, Spanjers K, Patel S, Atherton N, Lamb S. Effect of exercise on depression severity in older people: systematic review and meta-analysis of randomised controlled trials. Br J Psychiatry. 2012;201(3):180-5. 12. Taylor W, Doraiswamy P. A systematic review of antidepressant placebo-controlled trials for geriatric depression: limitations of current data and directions for the future. Neuropsychopharmacology. 2004;29(12):2285-99. 13. Lebowitz B, Pearson J, Schneider L, Reynolds C3, Alexopoulos G, Bruce M et al. Diagnosis and treatment of depression in late life. Consensus statement update. JAMA. 1997;278(14):1186-90. 14. Cole M, Bellavance F, Mansour A. Prognosis of depression in elderly community and primary care populations: a systematic review and meta-analysis. Am J Psychiatry. 1999;156(8):1182-9. 15. Gum A, King-Kallimanis B, Kohn R. Prevalence of mood, anxiety, and substance abuse disorders for older Americans in the national comorbidity survey-replication. Am J Geriatr Psychiatry. 2009;17(9):769-81.

16. Katzman M, Bleau P, Blier P, Chokka P, Kjernisted K, Van Ameringen M et al. Canadian clinical practice guidelines for the management of anxiety, posttraumatic stress and obsessive-compulsive disorders. BMC Psychiatry. 2014;14(Suppl 1):S1. 17. Poyares D, Tufik S. I Consenso Brasileiro de Insônia. Hypnos – J Clin Exp Sleep Res. 2003;4(Supl2):4-43. 18. Kamel N, Gammack. J. Insomnia in the elderly: cause, approach, and treatment. Am J Med. 2006;19(6):463-9. 19. Castro L, Poyares D, Leger D, Bittencourt L, Tufik S. Objective prevalence of insomnia in the São Paulo, Brazil epidemiologic sleep study. Ann Neurol. 2013; 74(4):537-46. 20. Wilt T, MacDonald R, Ouellette J, Khawaja I, Rutks I, Butler M et al. Pharmacologic therapy for primary restless legs syndrome: a systematic review and meta-analysis. JAMA Intern Med. 2013;173(7):496-505.

Capítulo 20

PSICOSE E AGITAÇÃO NO IDOSO André Lippe de Camillo, Samoara Correa Barbosa e Osvladir Custódio

PSICOSE Sintomas psicóticos podem aparecer em vários transtornos mentais. Em um estudo retrospectivo de idosos internados com as primeiras manifestações psicóticas, doença de Alzheimer foi o transtorno mais frequente, seguido por depressão maior, psicose orgânica, delirium, transtorno bipolar, transtorno delirante, esquizofrenia e transtorno esquizoafetivo.1 Nesses transtornos, os sintomas psicóticos mais comuns foram delírios e alucinações.

EPIDEMIOLOGIA Em uma revisão sistemática de estudos longitudinais2, fatores de riscos associados à psicose de início tardio foram: • • • •

Saúde física comprometida Comprometimento visual Eventos negativos de vida História de psicose ou sintomas psicóticos.

A prevalência de sintomas psicóticos foi estimada em 2,6% em um estudo comunitário com idosos sem demência.3 Estes sintomas associavam-se a outras manifestações psicopatológicas (desejo de morte, humor deprimido), prejuízo do funcionamento, isolamento social e comprometimento cognitivo. Sintomas psicológicos e comportamentais associados à demência (SPCD) são muito frequentes. Em um estudo brasileiro,4 a prevalência de delírios e alucinações em indivíduos com doença de Alzheimer foi estimada em, respectivamente, 10 e 12%, e as ideias delirantes associavam-se a maior estresse do cuidador. Na comunidade, as estimativas de prevalência de 1 ano, especificamente de transtornos psicóticos primários em indivíduos com mais de 60 anos, foram estimadas em:5 • • •

0,55% para esquizofrenia (0,35% esquizofrenia de início precoce, 0,14% de início tardio e 0,05% início muito tardio) 0,14% para transtorno esquizoafetivo 0,03% para transtorno delirante.

MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS Na Tabela 20.1, há uma lista de manifestações clínicas que podem ocorrer em transtornos psicóticos.

Tabela 20.1 Manifestações clínicas que podem ocorrer na psicose. Funções psíquicas/sintomas

Alterações Percepção delirante*, eco do pensamento*, sonorização do pensamento*, difusão do

Pensamento

pensamento*, roubo do pensamento*, vivências de influência corporal* ou ideativa*, ideias delirantes paranoides, autorreferentes, de influência ou de outra natureza, ideias bizarras não necessariamente delirantes, afrouxamento das associações, desagregação

Sensopercepção

Comportamento

Alucinações auditivas (p. ex., vozes que comentam e/ou comandam a ação do paciente*) ou de outras modalidades, pseudoalucinação, ilusões Comportamento catatônico (flexibilidade cérea, negativismo, mutismo), comportamento bizarro, agitação psicomotora, atos impulsivos, comportamento desorganizado Distanciamento afetivo, embotamento afetivo, retração social, empobrecimento da linguagem,

Sintomas negativos

diminuição da fluência verbal, avolição, hipopragmatismo, negligência quanto a si mesmo, alentecimento e empobrecimento psicomotor

Outros

Neologismos, parafasias, autismo ou ensimesmamento, afeto inadequado ou pueril, ambivalência afetiva, dissociação ideoafetiva

*Sintomas de primeira ordem de Kurt Schneider.

DIAGNÓSTICO No idoso, o diagnóstico de um determinado transtorno psicótico é baseado primariamente na anamnese detalhada com o paciente e complementada com uma entrevista com um informante (p. ex., familiar, cuidador), exame físico e neurológico e investigação laboratorial. Podem ser necessários, nos pacientes com apresentações atípicas e naqueles em que há razões para excluir uma determinada condição médica, exames complementares adicionais como imagens cerebrais, líquido cefalorraquidiano e eletroencefalograma.

Esquizofrenia Embora a esquizofrenia seja uma causa importante de psicose no idoso, não é uma causa tão comum quanto delirium, demência e depressão. No diagnóstico da esquizofrenia pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 5a edição (DSM-5)6, as principais características requeridas são: a) Dois (ou mais) dos seguintes sintomas presentes em uma parte significativa do período de 1 mês e, pelo menos, um destes sintomas seja (A), (B) ou (C): (A) delírios, (B) alucinações, (C) discurso desorganizado, (D) comportamento catatônico ou muito

b) c) d) e)

desorganizado, (E) sintomas negativos Prejuízo do funcionamento de uma ou mais áreas (p. ex., trabalho, autocuidados) em uma parte significativa do tempo Sinais contínuos da perturbação por, no mínimo, 6 meses. Nesse tempo, pode incluir o período de 1 mês referido no item A e de pródromo ou de fase residual Devem ser excluídos transtorno depressivo, bipolar e esquizoafetivo Essa perturbação não pode ser atribuível aos efeitos fisiológicos de condição médica, substância psicoativa ou medicamento.

Em comparação com a esquizofrenia de início mais precoce, a esquizofrenia de início tardio:7,8 • • • • • •

Afeta mais mulheres Apresenta sintomas positivos menos graves Tem mais queixas de alucinações visuais, táteis, olfatórias e de vozes que comentam o comportamento Tem mais delírios bem estruturados, ideias persecutórias e menor insight sobre sua psicopatologia Apresentam menos alterações do pensamento formal ou embotamento afetivo Requerem doses menores de antipsicótico.

Psicose orgânica e induzida por fármaco ou substância psicoativa Transtorno psicótico decorrente de outra condição médica (psicose orgânica) é caracterizado por alucinações e/ou delírios proeminentes que causam sofrimento ou prejuízo funcional importante e são consequências fisiopatológicas diretas de outra condição médica presente.6 Estes sintomas não devem ocorrer exclusivamente no curso de um delirium. O diagnóstico de transtorno psicótico induzido por fármaco ou substância psicoativa é formalizado quando há evidências do uso de um fármaco ou substância psicoativa capaz de causar delírios e/ou alucinações e de que o início desses sintomas ocorre depois da exposição a um medicamento ou durante ou logo depois da intoxicação ou abstinência de uma substância psicoativa.6 Esses sintomas devem causar sofrimento ou prejuízo funcional significativo e não devem ocorrer no curso de delirium, preceder o uso do medicamento ou da substância psicoativa ou persistir por um período substancial após a intoxicação aguda ou a abstinência. Nos idosos, comorbidade é um fenômeno comum. A suspeita, a comprovação da presença de uma condição médica e a confirmação da relação entre a condição e a psicose são vitais, em muitos casos, para evitar um desfecho catastrófico. A presença de uma doença física pode ainda desencadear ou piorar um transtorno psicótico sem ser sua causa direta. Alguns indícios levam a presumir a presença de uma condição médica causando sintomas psiquiátricos, incluindo psicose:9,10 • •

Evidência de trauma craniano Anormalidades sustentadas nos sinais vitais

• • • • •

Queixas (p. ex., mudança de padrão de dor de cabeça) ou perturbações neurológicas (p. ex., paralisia, perturbação visual, movimentos corporais anormais, disartria ou afasia) Perturbações recentes da consciência (ou confusão), orientação, atenção ou memória grave Sintomas catatônicos; alucinações visuais ou multimodais; delírios envolvendo falso reconhecimento de pessoas conhecidas (p. ex., delírio de Capgras) Testes cognitivos comprometidos Evidências de intoxicação medicamentosa ou intoxicação/abstinência de substância psicoativa.

Há evidências que alertam sobre a possibilidade de síndrome cerebral orgânica: ausência de antecedentes psiquiátricos; início agudo, apresentação ou idade atípica para o transtorno mental; ausência de estressor psicossocial; 55 anos de idade ou mais; coexistência de doenças crônicas e uso de medicamentos ou substâncias psicoativas. A coincidência temporal entre o aparecimento da condição médica e dos sintomas psicóticos e a resolução da psicose após a correção da condição médica são achados que fortalecem o diagnóstico de psicose orgânica ou delirium.9 Praticamente qualquer substância psicoativa, fármaco ou doença física que possa afetar o sistema nervoso central (SNC) pode cursar com sintomas psicóticos como manifestação principal ou parte do quadro clínico. A seguir, uma lista de causas selecionadas:9,11 •





Doenças neurológicas: – Doenças extrapiramidais: parkinsonismo pós-encefalite, doença de Parkinson, doença de Huntington – Infecções do SNC: herpes, encefalopatia pelo HIV, doença de Creutzfeldt-Jacob, sífilis, cisticercose – Doenças desmielinizantes: esclerose múltipla, desmielinização isquêmica – Doenças degenerativas: doença de Alzheimer, demência em doença de Parkinson, demência com corpos de Lewy, demência frontotemporal – Doenças adquirida do SNC: epilepsia, acidente vascular cerebral, hematoma subdural, encefalopatia pós-anóxica, neoplasma, hidrocefalia – Outras doenças neurológicas: narcolepsia, cistos intracranianos, encefalite por anticorpo antirreceptor N-metil-D-aspartato (NMDA) Doenças metabólicas – Doenças sistêmicas: uremia, encefalopatia hepática e pancreática, anoxia, insuficiência cardiopulmonar, endocardite bacteriana, hiponatremia, hipercalcemia, hipoglicemia, porfiria – Doenças endócrinas: doença de Addison, doença de Cushing, hipo e hipertireoidismo, hipo e hiperparatireoidismo, pan-hipopituitarismo – Deficiências nutricionais: deficiência de tiamina, vitamina B12, ácido fólico, niacina Doenças imunológicas ou inflamatórias: lúpus eritematoso sistêmico, arterite temporal, sarcoidose

• • •

Fármacos: anticolinérgicos, agonistas dopaminérgicos, benzodiazepínicos, anticonvulsivantes, psicoestimulantes, anti-hipertensivos, interferona, digoxina, antibióticos, antineoplásicos, analgésicos, corticosteroides Uso de substâncias psicoativas: alucinose alcóolica, abstinência de álcool e drogas ilícitas, intoxicação por drogas ilícitas (cocaína, alucinógeno) Déficit sensoriais: cegueira, síndrome de Charles Bonnet.

No caso da epilepsia, a psicose ictal tende a durar por minutos a horas e é a manifestação psicopatológica de estados de mal epiléptico não convulsivos e estados de mal parcial simples. A chamada psicose pós-ictal caracteriza-se por episódio psicótico breve, composto por delírio, alucinação e sintomas afetivos, que sucede em horas a dias crises epilépticas repetidas e se resolve em alguns dias.9 Síndrome psicótica em epilepsia de lobo temporal ou generalizada pode ser semelhante à esquizofrenia, caracterizada por quadro paranoide-alucinatório, achatamento afetivo e prejuízo da volição. A doença de Parkinson é a segunda doença neurodegenerativa mais comum. Estimativas de prevalência de psicose em doença de Parkinson variam, dependendo dos critérios adotados, entre 25 e 60%.12 Os fatores de risco para psicose em doença de Parkinson incluem idade avançada, doença de longa duração, prejuízo motor mais grave, presença de transtornos do sono, depressão, prejuízo autônomo e demência. Os sintomas psicóticos descritos são ilusões, alucinações de presença, alucinações de passagem, alucinações simples (p. ex., ver luz, cor, linhas), alucinações multimodais, delírios (paranoide, infidelidade) e síndrome de identificação.12 A apresentação clássica de neurossífilis envolve acidente vascular cerebral, paralisia geral progressiva e tabes dorsalis. A forma tardia da sífilis pode ocorrer com psicose,9 delírios paranoides, prejuízo cognitivo, mudanças da personalidade ou perturbações afetivas. Sintoma psiquiátrico como única manifestação é um fenômeno raro. Embora sintomas neurológicos possam remitir com tratamento com penicilina, os psiquiátricos podem persistir. Neurossífilis pode ocorrer mais precocemente em casos de coinfecção pelo HIV. Psicose após acidente vascular cerebral é raro. Infartos no hemisfério direito podem apresentar agitação, desatenção, desconfiança, delírios paranoides e alucinações. Alucinose peduncular caracteriza-se, principalmente, por alucinações visuais complexas, vívidas e coloridas que podem ser acompanhadas por outras anormalidades psiquiátricas (agitação, delírio, insônia noturna e sonolência diurna) na presença de lesões (p. ex., infartos, tumores) de mesencéfalo e/ou tálamo. Estas alucinações, geralmente, ocorrem à noite, iniciam-se poucos dias depois da lesão inicial e resolvem-se em semanas. Neste quadro, alucinação liliputiana não é incomum. Lesões traumáticas concentradas no lobo temporal, habitualmente à esquerda, podem ser seguidas por psicose semelhante à esquizofrenia ou ao transtorno esquizoafetivo. Tumores cerebrais de lobo temporal e pituitários manifestam-se com frequência com psicose. Sintomas psicóticos podem ocorrer em várias condições médicas associadas ao uso do álcool: alucinose alcóolica, delirium tremens, encefalopatia de Wernicke, encefalopatia por

deficiência de niacina (pelagra), encefalopatia hepática, doença de Marchiafava Bignami e mielinólise pontina central.

Delirium Delirium é a terceira causa de psicose no idoso e caracteriza-se por transtorno cognitivo, geralmente de início agudo, transitório e reversível, caracterizado por alteração do nível de consciência, desatenção, pensamento desorganizado, prejuízo de memória, desorientação e perturbação da sensopercepção.7 Estes sintomas costumam flutuar. O modelo de diátese-estresse é muito útil para compreensão da gênese do delirium, propondo que esta doença é o resultado da interação complexa entre fatores de vulnerabilidade (p. ex., prejuízo visual, demência) e precipitantes (p. ex., polifarmácia, uso de cateter urinário). Quando sintomas não cognitivos (p. ex., alterações de humor, delírios e alucinações) são mais proeminentes que os déficits cognitivos, pode ocorrer erro no diagnóstico. As alucinações visuais tendem a ser silenciosas e completamente formadas; por exemplo, um cachorro andando pelo quarto. Alucinações táteis não são raras em delirium, particularmente em abstinência de cocaína e álcool. Alucinações auditivas (vozes e sons) podem ocorrer, mas não costumam ser tão frequentes quanto as visuais. Os delírios podem ser simples, transitórios e frouxos e, em alguns casos, podem ter conteúdo específico (p. ex., síndrome de Capgras ou paramnésia reduplicativa). O conteúdo do delírio pode motivar suspeição, comportamento agressivo ou autodestrutivo. As mudanças de humor observadas costumam ser congruentes com o conteúdo dos delírios. Sintomas de primeira ordem de Kurt Schneider são raros em delirium.

Depressão ou mania Nos idosos, depressão maior com características psicóticas (depressão psicótica) é um transtorno comum, com considerável mortalidade e morbidade e, muitas vezes, o mais difícil de se tratar. Até 45% de idosos internados apresentam esse tipo de depressão.13 O conteúdo dos delírios, geralmente, é de culpa, desconfiança, pecado e perseguição. As alucinações podem ocorrer e, algumas vezes, incluem comando para o suicídio. O diagnóstico de transtorno de depressão ou mania é mais forte quando há predominância de sintomas afetivos e curso episódico. Casos de mania de início tardio devem ser investigados para etiologia orgânica. Os sintomas afetivos podem ocorrer em qualquer fase da esquizofrenia e costumam ser menos persistentes do que os sintomas psicóticos.

Psicose em demência Transtorno neurocognitivo maior (demência) é caracterizado pelo DSM-56 pela evidência de declínio cognitivo de um nível prévio de desempenho em um ou mais domínios cognitivos (p. ex., funções executivas, atenção, aprendizagem, memória e linguagem) que interfere na independência nas atividades diárias. Estes déficits cognitivos não devem ocorrer

exclusivamente durante o curso do delirium e não podem ser explicados por outro transtorno mental. Diferente do delirium, a demência cursa com relativa preservação do nível de consciência, atenção e orientação até fases mais avançadas da doença.14 Geralmente, quando a família começa a perceber as alterações e se preocupar com o idoso, este já apresenta um declínio cognitivo significativo. A história psiquiátrica detalhada com paciente e informante, uma bateria cognitiva breve (p. ex., Miniexame do Estado Mental – MMSE, teste do relógio e fluência verbal) e o exame psíquico podem ser suficientes para o diagnóstico de demência. SPCD são comuns e associados a pior prognóstico, altos custos de cuidado, aumento de estresse do cuidador e institucionalização precoce.4 Doença de Alzheimer, demência com corpos de Lewy, demência em doença de Parkinson, demência vascular e demência frontotemporal podem cursar com sintomas psicóticos. Os delírios em demência costumam ser simples ou pouco elaborados e os mais frequentes delírios são os persecutórios ou paranoides, de que as pessoas estão roubando suas coisas, de identificação, de abandono e de infidelidade. Em demência, três tipos de delírio de identificação podem estar presentes: a síndrome de Capgras, a de Fregoli e a de intermetamorfose. Nos delírios de abandono, os pacientes comumente acreditam que foram abandonados ou institucionalizados ou imaginam que há conspiração para institucionalizá-los. Delírio de infidelidade não é tão frequente, mas os pacientes com esse delírio podem ser agressivos verbal e fisicamente contra seus parceiros. Alucinações visuais são o tipo mais frequente em demência, e ver pessoas em sua casa que realmente não estão lá é comum. Alucinações visuais bem formadas, detalhadas e recorrentes são uma característica essencial para diagnóstico de demência de corpos de Lewy.6 Sintomas psicóticos são raros em demência frontotemporal.

Outros transtornos psicóticos Transtorno psicótico breve é caracterizado pela presença de ideias delirantes, alucinações, discurso desorganizado (p. ex., descarrilamento ou incoerência), comportamento catatônico ou gravemente desorganizado que dura entre 1 dia e menos de 1 mês.6 O diagnóstico de transtorno esquizofreniforme é realizado quando os critérios de esquizofrenia são preenchidos, porém a duração do transtorno é de, no mínimo, 1 mês e menos de 6 meses. No transtorno delirante, o delírio é, em geral, monotemático, pouco interfere no comportamento ou no funcionamento social e as alucinações são raras. Transtorno esquizoafetivo são transtornos episódicos nos quais tanto os sintomas afetivos quanto os esquizofrênicos são proeminentes, de tal modo que o episódio da doença não justifica um diagnóstico, seja de esquizofrenia, seja de episódio depressivo ou maníaco.

MANEJO E TRATAMENTO Os médicos que lidam com idosos psicóticos devem estabelecer a causa da psicose, controlar o comportamento e definir uma estratégia de tratamento a longo prazo. Este tratamento requer atenção especial às alterações farmacocinéticas associadas ao envelhecimento, à presença de comorbidades e polifarmácia e aos possíveis efeitos adversos dos antipsicóticos. Dada a natureza crônica da esquizofrenia, as terapias psicossociais (p. ex., treino de tarefas sociais, aconselhamento familiar, terapia cognitivo-comportamental) podem ser importantes para melhorar o desfecho clínico. Os antipsicóticos são os fármacos mais efetivos para o tratamento, por melhorarem os sintomas psicóticos e prevenirem recidivas. Há os antipsicóticos típicos ou convencionais e os atípicos. Por conta da suscetibilidade aos efeitos colaterais extrapiramidais, antipsicóticos atípicos emergem como tratamento de primeira linha para esquizofrenia e outros transtornos psicóticos nos idosos.15 Em comparação com pacientes com esquizofrenia de início precoce, as doses de antipsicóticos necessárias para o tratamento de esquizofrenia de início tardio são menores.8 Antipsicóticos devem ser evitados ou utilizados com cautela em doença de Parkinson, demência em doença de Parkinson, demência com corpos de Lewy e pacientes com QT longo no eletrocardiograma (ECG). Alguns dos antipsicóticos atípicos utilizados no tratamento da psicose são risperidona (0,5 a 4 mg/dia), quetiapina (50 a 450 mg/dia), olanzapina (2,5 a 5 mg/dia), ziprasidona (20 a 160 mg/dia), aripiprazol (20 a 30 mg/dia) e clozapina (12,5 a 100 mg/dia). Os efeitos colaterais potenciais dos antipsicóticos são: •







• •



Pseudoparkinsonismo e distonia aguda ocorrem no início do tratamento, associam-se com desconforto, estigma e baixa adesão ao tratamento, e são causados com mais probabilidade por antipsicóticos típicos de alta potência (p. ex., haloperidol e pimozida) Discinesia tardia é um tipo de discinesia (movimentos repetitivos involuntários) que ocorre com mais probabilidade em idosos7 pelo uso de longo prazo ou de altas doses de antipsicóticos, especialmente, com os típicos de alta potência Efeitos anticolinérgicos (boca seca, retenção urinária, obstipação intestinal, delirium e visão embaçada) podem ser observados com mais frequência com antipsicóticos típicos de baixa potência, clozapina e altas doses de olanzapina e quetiapina. Déficits cognitivos podem piorar por conta destes efeitos Hipotensão postural podem causar quedas em idosos. Pode ocorrer com antipsicóticos típicos de baixa potência, clozapina e, quando são rapidamente titulados, quetiapina e risperidona Sedação pode ocorrer com antipsicóticos típicos de baixa potência, clozapina, olanzapina e quetiapina Ganho de peso é mais provável com antipsicóticos atípicos do que com os típicos. Entre os antipsicóticos atípicos, os que mais causam obesidade são a clozapina e a olanzapina, e os que menos causam são aripiprazol e ziprasidona Anormalidades glicêmicas são observadas com todos os antipsicóticos, destacando











• •

com maior risco a clozapina Hiperprolactinemia pode ser assintomática ou causar ginecomastia, galactorreia, disfunção sexual, acne, hirsutismo, infertilidade e perda de densidade óssea. Antipsicóticos típicos, risperidona e olanzapina são os que mais causam esta alteração Arritmia cardíaca pode ser causada por todos os antipsicóticos por prolongarem a repolarização ventricular (QT longo), que pode virar torsades de pointes e morte repentina. A combinação com outras medicações (p. ex., antidepressivos tricíclicos) que têm o mesmo efeito na repolarização deve ser evitada. Este efeito na repolarização é mais observado com ziprasidona e tioridazina Agranulocitose é mais provável com idosos e ocorre, especialmente, com clozapina. Recomenda-se, em idosos tratados com clozapina, contagem semanal de glóbulos nos primeiros 6 meses, a cada 2 semanas entre 6 e 12 meses e mensalmente após 12 meses. Este fármaco deve ser suspenso quando a contagem de glóbulos brancos fica abaixo de 3.000 células/mm3 ou a absoluta de neutrófilos abaixo de 1.500 células/mm3 Convulsão pode ser causada por todos os antipsicóticos, especialmente os típicos de alta potência e clozapina. Pacientes com história de epilepsia ou doença cerebral orgânica têm mais risco Síndrome neuroléptica maligna é reação idiossincrática a neurolépticos, provavelmente relacionada com bloqueio dos receptores dopaminérgicos nos gânglios da base e caracterizada por febre alta, alteração do nível de consciência, hipertonia, disfunção autonômica e insuficiência respiratória Mortalidade aumentada em idosos com demência é observada com todos os antipsicóticos Risco de acidente vascular cerebral é aumentado por todos os antipsicóticos. Nos pacientes que apresentam potencial para AVC, esse risco deve ser contrastado aos possíveis benefícios.

O tratamento dos sintomas psicóticos em demência inicia-se com a revisão de possíveis problemas médicos e de medicamentos utilizados. Nos casos menos graves, pode ser utilizado tratamento não farmacológico (p. ex., atividade física, intervenção cognitiva, estratégias comportamentais). Inibidores de colinesterase (galantamina, donepezila e rivastigmina) podem ser utilizados por serem efetivos na redução dos SPCD, especialmente, em demência com corpos de Lewy e demência em doença de Parkinson. Nos casos mais graves, os antipsicóticos atípicos (p. ex., risperidona) podem ser utilizados por até 12 semanas. No tratamento de sintomas psicóticos em doença de Parkinson, a primeira medida é verificar a possibilidade de psicose secundária por outras condições médicas ou delirium. Em seguida, qualquer medicação não essencial que poderia contribuir para a psicose (p. ex., antidepressivo tricíclico, anticolinérgico, benzodiazepínico, opioides) deve ser descontinuada. Após este passo, medicações antiparkinsonianas, na medida do possível, devem ser suspensas ou ter suas doses reduzidas. Nesse delicado processo, sintomas psicóticos podem melhorar e os motores podem piorar. Após todos os passos, se restarem sintomas psicóticos, clozapina e quetiapina são antipsicóticos atípicos que podem

ser utilizados em doses baixas.12 No caso de depressão psicótica, o tratamento pode envolver a combinação de um antidepressivo e um antipsicótico ou eletroconvulsoterapia.7

AGITAÇÃO Agitação psicomotora é caracterizada pela presença de intensa excitação com aumento da atividade motora e/ou verbal e comumente associada a logorreia, insônia, irritabilidade, hostilidade e agressividade.10,16 A abordagem eficiente de um paciente agitado exige o conhecimento de técnicas de manejo comportamental, do diagnóstico diferencial e de intervenções farmacológicas específicas. No idoso, costuma ser mais complexa, pela presença de comorbidade, polifarmácia e déficits cognitivos.

EPIDEMIOLOGIA Em serviços de emergência, agitação é uma grande preocupação em todo mundo. Nos EUA, são estimados 1,7 milhão de episódios de agitação por ano.17 Entre os idosos, a prevalência de agitação e agressividade é variável em função da gravidade de comprometimento cognitivo.4 Em amostras comparativas de idosos, a prevalência de agitação/agressividade variou entre 0 e 3% em idosos sadios, 4 e 11% naqueles com comprometimento cognitivo leve e 24 e 30% naqueles com doença de Alzheimer.4 Agitação e agressividade em demência são sintomas que se associam com maior estresse do cuidador.4,18

MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS A apresentação clínica da agitação pode ser variada, com comportamento motor aumentado, vocalização aberrante, agressividade e recusa de cuidados (Tabela 20.1). Tabela 20.1 Manifestações clínicas de agitação no idoso. Perambulação, maneirismos, perseverar em tarefas (abrir e fechar gavetas, dobrar e desdobrar roupas, utilizar Agitação motora

objetos), balançar pernas, mover-se na cadeira, despir-se, levar pertences dos outros. Movimentos são rápidos, invasivos ou perturbadores e podem ou não ser acalmados com orientação verbal

Agressividade

Irritabilidade, ameaças verbais, gestos ameaçadores, agressão física contra propriedade e/ou pessoas (bater, chutar, agarrar, empurrar)

Vocalização aberrante

Pedidos ou reclamações repetitivas, logorreia, vocalizações não verbais (p. ex., gemer, gritar, barulhos estranhos)

Resistência dos

Procrastinar, recusar verbalmente ou afastar-se da tarefa de cuidado (higiene, alimentação, vestuário,

cuidados

medicamentos) para evitá-la, expulsar o cuidador

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL É difícil avaliar completamente um paciente agitado e, muitas vezes, uma avaliação psiquiátrica completa só é possível quando o paciente está calmo para participar de uma entrevista psiquiátrica.10 Habitualmente, em serviços de emergência, os médicos realizam a avaliação psiquiátrica em dois passos. O primeiro passo envolve uma curta avaliação para determinar a causa mais provável da agitação, o que orientará as intervenções preliminares. Quando o paciente estiver calmo, uma avaliação psiquiátrica mais extensa poderá ser realizada. É de extrema importância que o médico fique atento às particularidades que apontem para uma etiologia específica ou outra, sobretudo no atendimento de urgência e emergência. Algumas evidências presuntivas e de alerta são úteis, já citadas anteriormente, e podem indicar mais fortemente a presença de agitação resultante de outra condição médica geral.9,10 O manejo dos quadros de agitação pode ser facilitado considerando-se primariamente a etiologia. Agitação pode ser resultado de:10 •

• •

Condição médica geral (inclui delirium): traumatismo cranioencefálico, encefalopatia, infecções (principalmente no SNC), hipoxemia, distúrbios hidreletrolíticos, doenças tireoidianas, intoxicação medica-mentosa, estado pós-convulsivo Uso de substâncias psicoativas (intoxicação ou abstinência): álcool, sedativos, tranquilizantes, opioides/opiáceos, estimulantes do SNC Transtornos mentais: transtornos da personalidade cluster B, psicoses (p. ex., esquizofrenia, transtorno delirante), transtornos de ansiedade, demência, mania e depressão com características ansiosas.

Há evidências de que o abuso de álcool e outras substâncias psicoativas cresce entre os idosos, especialmente em países desenvolvidos. Por isso, em casos de agitação sem evidência de condição médica geral ou antecedentes psiquiátricos, é importante considerar intoxicação ou abstinência de substâncias psicoativas. Vários transtornos mentais podem ser acompanhados por agitação psicomotora. Nesses casos, além dos sintomas descritos para qualquer quadro de agitação, podem estar presentes sintomas psiquiátricos ou traços de personalidade associados a um transtorno específico. A agitação paranoide ocorre no contexto de vivências alucinatórias e delirantes paranoides.16 Nos transtornos da personalidade do cluster B, a agitação pode ser desencadeada como meio de manipulação, para lidar com frustração ou controle precário de impulsos. Ao lado de delírios e depressão, a agitação é um dos SPCD mais persistentes, está presente em diferentes tipos de demência e causa grande impacto na vida do paciente, sobretudo maior estresse do cuidador.4 Associa-se a ideias paranoides com muita desconfiança, medos difusos e sensação de que se está sendo roubado ou assaltado.16 A síndrome do pôr do sol é um fenômeno que ocorre em idosos, especialmente

naqueles com déficit cognitivo, e caracteriza-se pelo surgimento ou agravamento de sintomas neuropsiquiátricos no final da tarde, ao anoitecer e/ou à noite.19 Estes sintomas podem ser variados, como agitação, inquietação, agressão, ansiedade, confusão, desorientação, perambulação, resistência ao redirecionamento, alterações do humor, atitude anormalmente exigente, desconfiança e alucinações visuais ou auditivas. Têm origem provavelmente multifatorial,19 que se relacionam com privação de luz, distúrbios do sono e do ritmo circadiano. Podem contribuir para o aparecimento desse quadro mudanças no ambiente, medicações, transtornos mentais e doenças físicas. Delirium é um importante problema de saúde, frequente nos idosos, considerado pela nova psicopatologia como uma perturbação da consciência e cuja etiologia é fortemente orgânica. Pode apresentar hiperatividade com agitação, inquietação e hipervigilância no seu curso.

MANEJO E TRATAMENTO A abordagem da agitação/agressão visa a: assegurar a integridade física e psicológica de paciente, profissionais de saúde e familiares ou terceiros; formular um diagnóstico clínico inicial (incluídas condições médicas gerais) para orientar uma intervenção precoce para evitar a progressão da agitação psicomotora, aumentar o controle dos impulsos violentos do paciente e, com isso, reduzir atos violentos; em emergências, quando o paciente estiver mais calmo, estabelecer o diagnóstico definitivo, sua terapêutica e apropriado encaminhamento.10 O médico deve formar uma boa aliança terapêutica.17 Pacientes com potencial de violência despertam fortes emoções no médico, sobretudo medo. Eventualmente, o médico pode sentir raiva, o que pode influenciar a condução da entrevista, levando à confrontação e aumentando o risco de violência momentânea. Essas emoções podem prejudicar a objetividade da avaliação e a isenção das decisões. Por outro lado, o medo pode manter o médico alerta para tomar providências necessárias à sua segurança. O médico deve preocupar-se com a própria segurança, do paciente, de sua equipe e de terceiros. A avaliação de um paciente agitado não deve ocorrer em corredores e enfermarias, pelo risco à integridade física de terceiros. A sala de entrevista não deve ter objetos que possam ser utilizados como armas e deve ter uma saída fácil tanto para o médico como para o paciente e, sempre que possível, um alarme para chamar enfermeiros e seguranças em caso de necessidade. Em idosos, especialmente os com demência, as intervenções não farmacológicas para a agitação são as primeiras a serem adotadas e devem ser combinadas com a revisão de problemas médicos (p. ex., infecção urinária, dental, dor, fome, retenção urinária, fecaloma) e da prescrição atual.18,20 O tratamento de problemas médicos e/ou a descontinuação de um medicamento podem resolver a agitação. Em estágios avançados de demência, dor e desidratação são particularmente comuns e podem levar à agitação pela inabilidade do paciente de comunicar seu sofrimento. A agitação esporádica em indivíduos com demência, que não causa sofrimento ou põe em risco a integridade física de terceiros, frequentemente responde a intervenções

psicológicas práticas8 baseadas na história e nos interesses da pessoa, que envolvem numerosas atividades como interação social estruturada, uso de música e terapia de reminiscência. Em situações de emergência, medidas de desescalada de agitação e agressão – intervenção não farmacológica – podem acalmar o paciente de modo mais rápido e seguro, melhorar a cooperação e evitar a adoção de medidas mais extremas, como a contenção física ou farmacológica. Os princípios de desescalada de agitação propõem:21 • • • • • • • • • •

Respeitar o espaço pessoal Não ser provocativo Estabelecer contato verbal Ser conciso Reconhecer os desejos e sentimentos do paciente Ouvir empaticamente o paciente Concordar ou concordar para discordar Estabelecer as regras e os limites do que é aceitável Oferecer as escolhas Investigar pensamentos e emoções do paciente e equipe após a resolução da agitação e explicitar suas razões para ter tomado determinadas ações.

Nos idosos, a seleção de psicofármacos para tratamento da agitação deve ser criteriosa, dado o potencial de efeitos colaterais decorrente das frequentes comorbidades e da utilização de múltiplas medicações. A utilização de psicofármacos pode eventualmente complicar a avaliação do estado mental, provocar quedas, prejudicar a compreensão do ambiente, dificultar a cooperação com o tratamento e, positivamente, evitar a necessidade da contenção física. Os psicofármacos mais empregados para controle de agitação e/ou agressão são os antipsicóticos típicos, atípicos e benzodiazepínicos. Devem acalmar o paciente, e não causar sono. Medicamentos de uso oral (VO) tomados voluntariamente são preferidos, pois promovem a aliança terapêutica e não têm complicações como as outras vias de administração [p. ex., formulação intramuscular (IM), intravenosa]. No idoso, os fármacos e as doses utilizados no controle da agitação/agressividade são: •







Aripiprazol – VO (dose 7,5 mg; dose máxima 30 mg/dia) – IM (dose 9,75 mg; dose máxima 20 mg/dia) Haloperidol – VO (dose 1 mg; dose máxima 5 mg/dia) – IM (dose 1 mg; dose máxima 5 mg/dia) Lorazepam – VO (dose 0,5 mg; dose máxima 5 mg/dia) – IM (dose 2 mg; dose máxima 5 mg/dia) Olanzapina – VO (dose 2,5 mg; dose máxima 10 mg/dia) – IM (dose 10 mg; dose máxima 20 mg/dia)

• • • • •

Quetiapina – VO (dose 12,5 mg; dose máxima 150 mg/dia) Risperidona VO (dose 0,5 mg; dose máxima 2 mg/dia) Midazolam – IM (dose 2,5 mg; dose máxima 5 mg/dia) Ziprasidona – IM (dose 10 a 20 mg; dose máxima 30 mg/dia).

Na demência, olanzapina, aripiprazol e, especialmente, risperidona são medicações comumente prescritas. Em uma revisão recente18, risperidona foi o único antipsicótico recomendado a curto prazo em pessoas com demência, e os pacientes deveriam ser monitorados para identificar e reduzir efeitos colaterais. Recomenda-se a utilização de antipsicóticos, no máximo, por 12 semanas. Morte e aumento do risco de acidente vascular cerebral (AVC) são observados com períodos maiores de utilização. Na literatura médica, com evidências preliminares positivas, mas não suficientes para recomendar o uso, surgem alternativas farmacológicas para o tratamento da agitação e agressão em demência, como memantina, carbamazepina, citalopram e prazosina.18 Em pacientes não cooperativos que requeiram controle imediato da agitação ou não respondem às medidas não farmacológicas, a tranquilização rápida com medicação parenteral é necessária. Se a agitação for muito intensa, antipsicóticos podem ainda ser associados a benzodiazepínicos, porém a efetividade e o perfil de efeitos colaterais dessa combinação precisam ser estudados melhor. Habitualmente, os antipsicóticos de alta potência – haloperidol – podem ser utilizados na tranquilização rápida por terem poucos efeitos cardiovasculares e anticolinérgicos, mas podem provocar acatisia, síndrome extrapiramidal e, raramente, síndrome neuroléptica maligna. As formulações intramusculares de olanzapina, ziprasidona e aripiprazol foram testadas em demência, esquizofrenia e transtorno bipolar e podem ser também utilizadas. A tranquilização rápida exige monitoramento intensivo da pressão arterial, pulso, temperatura e ECG seriado. Alargamento do QT no traçado do ECG é a evidência inicial de alteração na condução elétrica, que pode levar a torsades de pointes, fibrilação ventricular e morte. Na presença desse alargamento, são necessárias a suspensão da medicação antipsicótica e a avaliação cardiológica cuidadosa. Benzodiazepínicos podem ser utilizados no tratamento da agitação e/ou agressão relacionados com transtornos mentais, porém são menos efetivos do que os antipsicóticos e, mais provavelmente, causam sedação excessiva, exacerbação de confusão e depressão respiratória em idosos, especialmente naqueles com comorbidades. Em virtude da interação farmacodinâmica, não se recomenda a combinação intramuscular de olanzapina com um benzodiazepínico. Benzodiazepínicos são os medicamentos de primeira escolha no tratamento de delirium associado a abstinência do álcool e sedativos, e devem ser evitados nos outros casos de delirium. Lorazepam apresenta início rápido de ação, meia-vida curta a intermediária, baixo risco de acumulação e poucos metabólitos ativos.

No delirium, haloperidol é o fármaco mais utilizado na prática clínica e, por isso, pode ser indicado como primeira linha. Os antipsicóticos atípicos também podem ser utilizados. Olanzapina e quetiapina, pela forte atividade anti-histaminérgica, podem provocar sedação, piorar a confusão e interferir na resolução do delirium. Idosos, comumente, têm delirium hipoativo e, por isso, não necessitam de sedação. O uso de contenção física é desestimulado em idosos, pela possibilidade de lesão em membros da equipe de saúde, prejuízo da confiança do paciente nos cuidados oferecidos17 e, ainda, por ser um fator de risco para o delirium.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1.

Webster J, Grossberg G. Late-life onset of psychotic symptoms. Am J Geriatr Psychiatry. 1998;6(3):196-202.

2.

Brunelle S, Cole M, Elie M. Risk factors for the late-onset psychoses: a systematic review of cohort studies. Int J Geriatr Psychiatry. 2012;27(3):240-52.

3.

Östling S, Bäckman K, Waern M, Marlow T, Braam A, Fichter M et al. Paranoid symptoms and hallucinations among the older people in Western Europe. Int J Geriatr Psychiatry. 2013;28(6):573-9.

4.

Tatsch M. Sintomas psicológicos e comportamentais em pacientes com demência de amostra representativa da comunidade de São Paulo: prevalência, relação com gravidade da demência e com estresse do cuidador. [Tese de Doutorado] São Paulo: Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, 2005.

5.

Meesters P, de Haan L, Comijs H, Stek M, Smeets-Janssen M, Weeda M et al. Schizophrenia spectrum disorders in later life: prevalence and distribution of age at onset and sex in a Dutch catchment area. Am J Geriatr Psychiatry. 2012;20(1):18-28.

6.

American Psychiatric Association. Desk reference to the diagnostic criteria from DSMV. Washington: American Psychiatric Publishing, 2013.

7.

Broadway J, Mintzer J. The many faces of psychosis in the elderly. Curr Opin Psychiatry. 2007;20(6):551-558.

8.

Maglione J, Thomas S, Jeste D. Late-onset schizophrenia: do recent studies support categorizing LOS as a subtype of schizophrenia? Curr Opin Psychiatry. 2014;27(3):173-8.

9.

Keshavan M, Kaneko Y. Secondary psychoses: an update. World Psychiatry. 2013; 12(1):4-15.

10. Nordstrom K, Zun L, Wilson M, Stiebel V, Ng A, Bregman B et al. Medical evaluation and triage of the agitated patient: consensus statement of the american association for emergency psychiatry project Beta medical evaluation workgroup. West J Emerg Med. 2012;13(1):3-10.

11. Cummings J, Mega M. Neuropsychiatry and behavioral neuroscience. Oxford: Oxford Unversity Press, 2003. 12. Goldman J, Holden S. Treatment of psychosis and dementia in Parkinson’s disease. Curr Treat Options Neurol. 2014;16(3):281. 13. Meyers B, Greenberg R. Late-life delusional depression. J Affect Disord. 1986;11(2):133-7. 14. Downing L, Caprio T, Lyness J. Geriatric psychiatry review: differential diagnosis and treatment of the 3 D’s – delirium, dementia, and depression. Curr Psychiatry Rep. 2013;15(6):365. 15. Chan W, Lam L, Chen E. Recent advances in pharmacological treatment of psychosis in late life. Curr Opin Psychiatry. 2011;24(6):455-60. 16. Dalgalarrondo P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 2.ed. Porto Alegre: Artmed, 2008. 17. Holloman GJ, Zeller S. Overview of Project BETA: Best practices in Evaluation and Treatment of Agitation. West J Emerg Med. 2012;13(1):1-2. 18. Ballard C, Corbett A. Agitation and Agression in people with Alzheimer’s disease. Curr Opin Psychiatry. 2013;26(3):252-9. 19. Khachiyants N, Trinkle D, Son S, Kim K. Sundown syndrome in persons with dementia: an update. Psychiatry Investig. 2011;8(4):275-87. 20. Ballard C, Corbett A, Chitramohan R, Aarsaland D. Management of agitation and aggression associated with Alzheimer’s disease: controversies and possible solutions. Curr Opin Psychiatry. 2009;22(6):532-40. 21. Richmond J, Berlin J, Fishkind A, Holloman GJ, Zeller S, Wilson M et al. Verbal Deescalation of the agitated patient: consensus statement of the American Association for Emergency Psychiatry Project BETA De-escalation Workgroup. West J Emerg Med. 2012;13(1):17-25.

Capítulo 21

USO DE PSICOFÁRMACOS NO PERÍODO PERINATAL Juliana Augusta Plens de Moura Garcia, Marília Queiroz Foloni e Ana Cristina Chaves

INTRODUÇÃO O período perinatal é um momento sujeito a variações hormonais e estressores socioambientais que implicam alterações neuronais e aumentam a probabilidade de desenvolvimento de transtornos psiquiátricos, especialmente os afetivos. A elevação progressiva dos níveis de hormônios sexuais na gravidez e sua redução importante no período puerperal são fatores que contribuem de maneira importante para essa predisposição. Além disso, é comum que as mulheres passem por mudanças psicológicas acentuadas, relacionadas com o estresse do parto e a responsabilidade trazida pela maternidade, o que aumenta o risco de apresentarem transtornos mentais. Estima-se que cerca de 20% das gestantes sofram de depressão e 20 a 40% das mulheres relatem alguma perturbação emocional ou disfunção cognitiva no período pós-parto. Podem ser citados, ainda, outros fatores de risco associados a maior predisposição a transtornos mentais nessa fase, como história prévia de doença psiquiátrica pessoal e familiar, antecedente de abortos, natimortos e malformação fetal, eventos estressantes e fatores socioeconômicos (falta de suporte familiar e social, ausência de parceiro estável, dificuldades financeiras, gestação não planejada, multiparidade, história de violência doméstica e uso de álcool e drogas ilícitas). Muitos sintomas são comuns à gestação e à depressão; por exemplo, alterações do apetite, do sono e do desejo sexual, adinamia, letargia e labilidade emocional. Essa similaridade de sintomas muitas vezes dificulta o diagnóstico e o tratamento nessas mulheres, podendo afetar, assim, a capacidade das pacientes de seguir os cuidados prénatais adequados. Desse modo, é possível haver comportamentos prejudiciais relacionados com dificuldades interpessoais e prejuízos na interação mãe-bebê.

PRINCIPAIS TRANSTORNOS PSIQUIÁTRICOS NO PERÍODO PERINATAL TRANSTORNOS ANSIOSOS O aparecimento de ansiedade é comum no início da gravidez. As principais preocupações das gestantes estão relacionadas com o desenvolvimento do bebê, especialmente em mulheres com história prévia de abortos, malformações ou natimortalidade. Aborto espontâneo, descolamento de placenta, partos prematuros ou instrumentais, baixo peso ao nascer, baixo índice de Apgar nos recém-nascidos e problemas de adaptação neonatal podem estar associados à ansiedade patológica em gestantes.

Em relação a pacientes com transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), dados da literatura sugerem que os hormônios sexuais têm forte influência na manifestação dos sintomas psiquiátricos, intensificando-se durante a gravidez e o puerpério. Pensamentos negativos intrusivos em relação ao trabalho de parto na gestação e no puerpério, sintomas obsessivo-compulsivos associados à contaminação da criança e agressividade contra o bebê, podem ocasionar intenso sofrimento à paciente.

TRANSTORNOS DEPRESSIVOS Cerca de 10 a 16% das mulheres podem desenvolver um episódio depressivo durante a gestação ou puerpério, sendo o diagnóstico de difícil realização, pois até 70% das gestantes têm sintomas semelhantes aos do transtorno depressivo. O reconhecimento e a correta abordagem da depressão em obstetrícia contribuem para uma gestação mais tranquila, com um menor número de intercorrências, consequente diminuição nas chances de sintomas depressivos no período pós-parto e melhores condições para a formação de um vínculo saudável entre a mãe e seu bebê. A depressão puerperal tem início insidioso, em geral após a 2a ou 3a semana do parto, em 10 a 15% das puérperas. Mulheres que já apresentaram episódios depressivos puerperais previamente têm 50% de chance de apresentarem depressão puerperal em futura gestação. Assim como na gestação, o diagnóstico é dificultado pela sobreposição de sintomas depressivos a situações consideradas normais no puerpério. Quando não tratada, a depressão pós-parto associa-se a comprometimentos cognitivos e emocionais na criança, pois mães deprimidas interagem menos com os filhos e têm ideias pessimistas em relação à prole e à maternidade. É importante diferenciar a depressão puerperal do blues puerperal, também conhecido por disforia pós-parto, o qual é caracterizado por humor depressivo ou algum grau de tristeza nos primeiros dias após o parto. Os sintomas depressivos são leves, em geral, caracterizados por irritabilidade, labilidade emocional e tensão. Além disso, os sintomas são autolimitados, remitindo espontaneamente por volta do 10o dia de puerpério, e não causam prejuízo no funcionamento social, bem como não comprometem a relação da mulher com o recém-nascido.

TRANSTORNOS PSICÓTICOS Transtornos psicóticos preexistentes podem ser exacerbados na gestação e são considerados os quadros psiquiátricos mais graves no puerpério. É comum ocorrer quadro confusional, semelhante ao delirium, nos quais predominam alterações de memória e desorientação temporoespacial. O início do quadro geralmente é agudo, nas primeiras 4 semanas pós-parto, em especial entre o 2o e o 4o dia do puerpério. Em geral, são predominantemente caracterizados por alterações de humor semelhantes a mania ou hipomania, ao passo que quadros mais tardios, até o 6o mês, tendem a apresentar-se com características esquizofreniformes.

TRANSTORNO AFETIVO BIPOLAR A manifestação do transtorno afetivo bipolar (TAB) ocorre, em geral, na adolescência ou no começo da vida adulta da mulher, coincidindo com o início da vida reprodutiva. As pacientes com TAB apresentam fatores de risco que aumentam a chance de uma gestação não programada: desinibição, aumento da libido, prejuízo da crítica e diminuição da eficácia de métodos contraceptivos e irregularidades menstruais, associadas ao uso de alguns estabilizadores do humor. O período pós-parto representa a fase de maior risco de início ou piora do TAB preexistente (a probabilidade de ocorrer o primeiro episódio é aproximadamente 7 vezes maior do que em outras fases da vida e o risco de psicose puerperal em pacientes com TAB é 100 vezes maior em relação à população geral).

PSICOFÁRMACOS E SEU USO NO PERÍODO PUERPERAL Todos os fármacos psicoativos cruzam a barreira placentária, expondo o feto a consequências decorrentes do seu uso. A decisão de medicar ou não a paciente deve envolver a avaliação entre os riscos da exposição ao feto e os da doença psiquiátrica materna não tratada adequadamente, uma vez que a manutenção das alterações psicopatológicas também pode trazer danos consideráveis à evolução da gravidez. É importante ressaltar que nenhuma decisão é totalmente livre de riscos. Entende-se por teratogenicidade o risco que existe à saúde do embrião quando há exposição deste à substância a partir da instalação da circulação fetoplacentária, por volta do 12o dia da gestação até o término da organogênese, na 12a semana da gravidez. Já os teratógenos são medicações ou outros agentes que causam desenvolvimento fetal anormal, sendo os medicamentos responsáveis por menos de 1% dos casos de teratogenia. A Food and Drug Administration (FDA) desenvolveu um sistema de classificação estratificando os medicamentos em cinco categorias de risco teratogênico: A, B, C, D e X. A seguir, são apresentadas as definições das categorias e, entre parênteses, exemplos de substâncias associadas a elas. • • •

A: não foram observados riscos fetais em estudos humanos controlados (ferro) B: nenhum risco fetal em estudos animais. Não há estudos controlados em humanos (paracetamol, buspirona, clozapina, difenidramina e maprotilina) C: alguns estudos em animais mostraram efeitos adversos. Não há estudos controlados em humanos (acamprosato, amitriptilina, anfetaminas, aripiprazol, asenapina, bupropiona, clorpromazina, citalopram, clomipramina, clonidina, desvenlafaxina, dissulfiram, duloxetina, escitalopram, flumazenil, fluoxetina, flufenazina, fluvoxamina, gabapentina, haloperidol, lamotrigina, lisdexanfetamina, metilfenidato, mirtazapina, modafinila, naltrexona, nefazodona, olanzapina, oxcarbazepina, paliperidona, pimozida, pipotiazina, pregabalina, propranolol, quetiapina, risperidona, selegilina, sertralina, tioridazina, tranilcipromina, trazodona, trifluoperazina, triexifenidil, vareniclina, venlafaxina, vortioxetina, zaleplon, ziprasidona, zolpidem e zoplicona)



• • • •

D: risco fetal humano observado. Os benefícios podem justificar sua utilização durante a gravidez (alprazolam, carbamazepina, clordiazepóxido, clonazepam, diazepam, imipramina, lítio, lorazepam, midazolam, nortriptilina, paroxetina, topiramato, valproato de sódio) X: risco fetal comprovado em humanos. Não há indicação para uso (estazolam, flurazepam, triazolam e talidomida) Não classificados e sem estudos controlados em humanos: agomelatina e sulpirida Não classificados e não recomendados: amissulprida, moclobemida, mianserina, reboxetina, tianeptina e zuclopentixol Não classificados e contraindicados: flunitrazepam (evidências positivas de risco fetal) e hidroxizina (pode ser usada no pré-parto).

Não há uma resposta definitiva sobre quais psicotrópicos são mais seguros durante a gravidez e lactação. A decisão de realizar ou não um tratamento farmacológico durante o período perinatal deve levar em consideração o risco ao feto decorrente da exposição à medicação, o risco da doença não tratada para a mãe e para o feto, bem como o risco de recaída associada à retirada de um tratamento de manutenção. Antes de uma gravidez planejada, deve-se ponderar a gravidade de cada caso para uma possível retirada dos psicotrópicos sob supervisão. A importância de uma relação próxima entre o médico e a gestante ou lactante deve ser enfatizada e, em muitos casos, essa proximidade pode permitir a não introdução ou diminuição e retirada do uso da medicação. De modo geral, preconiza-se evitar todas as medicações que não forem absolutamente essenciais nessa fase (principalmente durante o primeiro trimestre). Vale ressaltar que alguns fármacos poderão ser administrados durante a gravidez e outros durante a amamentação e que a permissividade em um período não incorre necessariamente no outro.

ANTIDEPRESSIVOS Os antidepressivos são as medicações mais estudadas durante a gestação. Não parece haver um aumento de risco clinicamente significativo dos desfechos adversos publicados que justifique o não uso de um antidepressivo necessário nesse momento.

Inibidores seletivos da recaptação de serotonina Os inibidores seletivos da receptação de serotonina (ISRS) são os antidepressivos com mais informações na literatura, portanto, estão atualmente entre as medicações mais prescritas no período perinatal. Em geral, apresentam baixo risco de teratogenicidade, embora dados de literatura associem, ainda, hipertensão pulmonar em recém-nascidos ao uso de ISRS após a 20a semana gestacional. Uma recente metanálise feita com o propósito de demonstrar a força de associação entre o uso de ISRS e malformações em filhos de mulheres que usaram essas medicações durante a gestação demonstrou que a fluoxetina e a paroxetina se associaram ao aumento do risco de malformações maiores. A paroxetina foi associada ao aumento de risco de malformações cardíacas, motivo pelo qual o uso essas duas medicações deveria ser

evitado no primeiro trimestre da gestação e em mulheres com risco de gestação não planejada. A sertralina e o citalopram não se associaram significativamente a malformações congênitas. Em outra metanálise atual, houve uma pequena associação entre um maior risco de desconforto respiratório agudo em neonatos filhos de mães deprimidas que usaram ISRS durante a gestação em comparação a filhos de mães não tratadas com tais medicamentos nesse período, porém não houve diferença entre os grupos em relação a convulsões neonatais e prematuridade.

Antidepressivos tricíclicos Muitos estudos têm descartado a ligação entre o uso dos antidepressivos tricíclicos (ADT) e a ocorrência de teratogenicidade e abortamento: porém, embora prescritos por muitas décadas, o real potencial teratogênico em causar defeitos estruturais permanece indeterminado e, portanto, as evidências existentes na literatura não justificam a preferência dos ADT, como grupo, sobre o uso de ISRS no início da gestação. Há algumas evidências sugerindo que a exposição à clomipramina pode aumentar o risco de defeitos cardíacos, sendo essa medicação também associada a sintomas neonatais mais graves e prolongados. Em contrapartida, os ADT parecem apresentar um pequeno ganho em segurança no final da gestação (exceto a clomipramina), uma vez que alguns achados demonstram que sintomas neonatais apresentados por bebês expostos a ISRS, como hipertensão pulmonar, alargamento do intervalo QT e enterocolite necrosante, não foram descritos após a exposição a esses medicamentos. Entre os ADT, a nortriptilina parece ser a medicação mais segura para uso durante a amamentação.

Inibidores da monoaminoxidase O uso de inibidores de monoaminoxidase (IMAO) é desaconselhado no período gestacional pelo risco de crises hipertensivas, possíveis interações com fármacos eventualmente usados durante o parto e evidências, embora limitadas, de retardo no desenvolvimento fetal e quadros de intoxicação e malformações.

Bupropiona, mirtazapina e venlafaxina Há poucos dados disponíveis na literatura em relação ao uso dessas medicações no período perinatal, porém não foram encontrados efeitos teratogênicos até o momento. Vale lembrar que o uso de antidepressivos duais está associado à síndrome neonatal e há relatos de convulsões em neonatos cujas mães fizeram uso de bupropiona durante a amamentação. Um fator importante a ser considerado são as possíveis diminuições dos níveis séricos dos antidepressivos ao longo da gravidez, em razão do aumento de volume de distribuição, metabolismo hepático e clearance renal, necessitando, com frequência, de um ajuste das

doses, em especial a partir do 6o ou 7o mês de gestação. A intoxicação ou abstinência manifestada pelo recém-nascido é decorrente do uso de medicações principalmente no terceiro trimestre. Entre os sintomas mais observados encontram-se: taquicardia, taquipneia, cianose, hipotonia ou hipertonia, espasmos musculares, irritabilidade, convulsões e, mais raramente, alargamento do intervalo QTc. São mais comuns com uso de paroxetina e fluoxetina e podem durar alguns dias. Há descrição de uma síndrome semelhante com uso de clomipramina.

ESTABILIZADORES DE HUMOR Carbonato de lítio O uso do carbonato de lítio em gestantes está associado ao aumento de 1,2 a 1,7 vez mais alterações cardíacas fetais, a maioria delas corrigíveis e muitas com resolução espontânea. Em relação à anomalia de Ebstein, caracterizada por hipoplasia do ventrículo direito e implantação baixa da válvula tricúspide, há um aumento em 20 vezes do risco em neonatos expostos a essa medicação no período pré-natal, embora esse risco ainda permaneça baixo, cerca de 1:1.000 crianças. Assim, é recomendado o monitoramento ecocardiográfico fetal, quando há uso de carbonato de lítio pela gestante no primeiro trimestre de gravidez. Não há evidências de aumento do risco de abortamentos ou morte intrauterina. O lítio atravessa a placenta livremente e a concentração sanguínea fetal é igual à materna; portanto, o feto pode sofrer efeito tóxico, mesmo com o nível sérico materno na faixa terapêutica, dada a sua imaturidade renal. É indicado o monitoramento da litemia a cada 2 a 4 semanas durante a gestação, semanalmente no último mês e a cada 2 dias na proximidade do parto. É recomendada a diminuição da dose para metade a um quarto da terapêutica ou a descontinuação da terapia com o lítio nas 24 a 48 h que antecedem o nascimento, em virtude da diminuição do volume vascular materno e da queda do clearance renal do lítio a níveis pré-gravídicos, no momento do parto. É observado um índice de Apgar significativamente menor, maior permanência hospitalar e altas taxas de complicações neuromusculares e de sistema nervoso central em crianças com concentrações séricas de lítio acima de 0,64 mEq/l ao nascimento. Os sintomas da toxicidade neonatal pelo lítio incluem letargia, hipotonia, hiporreflexia, baixo índice de Apgar, hipotermia, prejuízo no reflexo de tosse, dificuldade de sucção e depressão neurológica (síndrome de floppy baby). O lítio também está mais associado à ocorrência de hipotireoidismo neonatal. Após o nascimento, as doses de lítio devem ser retomadas às pré-gestacionais, com monitoramento cuidadoso dos níveis séricos a cada 6 semanas; a litemia de lactentes de mães que usam lítio gira em torno de 30 a 50% da litemia materna. Vale ressaltar que mulheres em uso dessa medicação devem evitar dietas hipossódicas, uso de diuréticos e anti-inflamatórios não esteroidais e manter hidratação adequada, além de fazerem acompanhamento da função renal e tireoidiana, cuidados que sempre devem ser tomados por pacientes em uso dessa medicação.

Anticonvulsivantes As crianças expostas a anticonvulsivantes durante a gestação estão em risco aumentado de nascerem pequenas para a idade gestacional, com um escore de Apgar abaixo de 7 no primeiro minuto e com sequelas comportamentais e cognitivas, além de apresentarem maior risco de malformações, sendo mais frequentes as cardíacas, orofaciais, urogenitais, esqueléticas e de tubo neural. A exposição ao valproato de sódio aumenta a taxa de qualquer malformação congênita para 11% versus 3,2% em crianças não expostas. São descritos aumento significativo no risco de alterações no fechamento do tubo neural (1 a 4%), defeitos cardíacos, restrição do crescimento fetal, defeitos nos membros e anormalidades craniofaciais, sendo bem descrita a facies anticonvulsivante, caracterizada por hipoplasia do centro da face, nariz curto, narinas antevertidas e lábio superior alongado na prole de pacientes expostas ao ácido valproico no período gestacional. Além disso, o uso dessa medicação está relacionado a alterações neurocomportamentais, déficits cognitivos e, mais recentemente, tem-se aventado a hipótese de que a exposição pré-natal ao ácido valproico esteja associada a distúrbios do espectro autista. Vale ressaltar que o aumento do risco das malformações está associado à dose e à combinação de terapias anticonvulsivantes. Pela relevância dos riscos para o feto da exposição ao valproato de sódio, a troca por lítio, lamotrigina, carbamazepina ou antipsicóticos deve ser considerada. O ácido valproico ainda se associa a risco de hepatotoxicidade e a sintomas neonatais como irritabilidade, inquietação, dificuldade de sucção e tônus muscular anormal. Por outro lado, suas concentrações no leite materno são baixas, podendo ser uma opção durante a lactação, com o cuidado de se monitorar a função hepática, plaquetária e seus níveis séricos no recém-nascido. A carbamazepina também é teratogênica, sendo associados ao uso dessa medicação o aumento do risco de defeitos no tubo neural, dismorfismo facial e hipoplasia de unhas, embora os riscos de malformações, nesse caso, sejam muito inferiores em relação aos associados ao uso de ácido valproico. O risco de qualquer malformação maior ao nascimento é de 4,6%, comparado com 3,2% em crianças não expostas. Além disso, também há risco de agranulocitose, alteração da função hepática e rash cutâneo. Em caso de aleitamento, deve-se monitorar seu nível sérico no recém-nascido, além da função hepática e realização de hemograma completo. Os dados disponíveis em relação à lamotrigina até o momento não apontam para risco de malformação, sendo considerada a opção mais segura entre os anticonvulsivantes na gestação. Deve-se lembrar do risco de rash cutâneo neonatal e, em caso de aleitamento, monitorar seu nível sérico no recém-nascido, que gira em torno de 18 a 33% do materno. O uso de ácido fólico diminui a incidência de defeitos no tubo neural quando associado à carbamazepina, porém isso não ocorre em relação ao valproato de sódio. Evidências sugerem que o topiramato está relacionado com baixo peso ao nascer, mas não aumenta o risco de prematuridade. Em relação à teratogenicidade da oxcarbazepina, não há dados suficientes disponíveis na literatura até o momento.

Antipsicóticos Os antipsicóticos são boas opções para quadros agudos de mania, sendo considerados medicações de primeira escolha em substituição ao lítio e aos anticonvulsivantes, evidenciando baixo risco teratogênico. É importante ressaltar, entretanto, sua associação ao ganho de peso, o que poderia favorecer o aparecimento de diabetes gestacional e complicações ao nascimento, como maior ocorrência de cesarianas decorrentes, por exemplo, de recém-nascidos gigantes para a idade gestacional. Devem-se evitar medicações de depósito e manter o antipsicótico na menor dose eficaz para evitar efeitos colaterais. As fenotiazinas e as butirofenonas foram muito utilizadas para tratar náuseas, hiperêmese gravídica e psicoses na gestação. Apesar de poucos estudos investigarem o efeito da exposição pré-natal aos antipsicóticos de alta potência, como o haloperidol, essa medicação foi, por mais de 10 anos, a primeira escolha em gestantes, e os efeitos teratogênicos específicos não foram identificados nos serviços de farmacovigilância. Efeitos teratogênicos significativos também não têm sido documentados com clorpromazina e perfenazina. Vale ressaltar, entretanto, que sintomas como taquicardia, sedação e hipotensão são descritos em recém-nascidos filhos de mulheres que usaram clorpromazina no período gestacional, bem como alguns sintomas extrapiramidais (hipertonicidade, inquietação psicomotora, espasticidade, tremor e dificuldade de sucção) são observados em neonatos que foram expostos ao haloperidol antes do nascimento. Dados de gestantes usando exclusivamente antipsicóticos atípicos são limitados na literatura. Há informações principalmente sobre olanzapina, clozapina e risperidona, com poucos dados para ziprasidona, quetiapina e aripiprazol. Os dados disponíveis até o momento não mostram aumento de risco para teratogenicidade. Durante a amamentação, a olanzapina e a risperidona são preferíveis, em razão dos baixos ou indetectáveis níveis séricos no recém-nascido e poucos efeitos adversos.

BENZODIAZEPÍNICOS Os benzodiazepínicos devem ser usados com cautela, por períodos curtos, em baixas doses e apenas se forem realmente necessários no período perinatal, devendo-se optar por agentes de meia-vida curta. Os mais seguros são o lorazepam e o clonazepam. Doses elevadas e/ou uso por tempo prolongado podem estar relacionados com fendas orais. Deve-se reduzir gradativamente a dose até a suspensão nas 2 a 3 semanas que antecedem o parto, pelo risco de intoxicação (síndrome do floppy baby) e síndrome de abstinência: hipertonia, hiper-reflexia, irritabilidade, convulsões, bradicardia, cianose e choro incontrolável.

OUTROS Em relação aos psicoestimulantes, há dados limitados na literatura e, até o momento, sem evidências de teratogenicidade. Anfetamina e metilfenidato podem inibir a lactação por suprimir a prolactina, limitando a amamentação.

No que se refere aos adesivos de nicotina, seu uso não é indicado durante a gestação. A nicotina atravessa a barreira placentária e atinge o feto, afetando sua respiração e circulação, sendo o efeito na circulação dose-dependente e, portanto, é contraindicada na gravidez, exceto se a gestante não suportar parar de fumar sem o auxílio de algum método de reposição de nicotina. O tabagismo representa um risco maior ao feto do que a terapia de reposição de nicotina sob supervisão médica. Além disso, a nicotina também é excretada no leite materno, devendo ser evitada durante a lactação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Os transtornos mentais podem prejudicar a gestação, o desenvolvimento fetal, o vínculo mãe-bebê e ter importante impacto no desenvolvimento infantil. Portanto, o não tratamento dessas condições leva à exposição do bebê à doença materna, trazendo riscos a ambos. Deve-se, preferencialmente, buscar tratamentos não medicamentosos, como a psicoterapia, mas, se houver necessidade do tratamento farmacológico, deve-se preferir a monoterapia, com medicações de meia-vida curta e liberação prolongada (para evitar picos séricos), avaliando a necessidade de ajuste da dose no final da gestação, além de monitoramento do recém-nascido. A descontinuação de um tratamento de manutenção é uma decisão importante e só deve ser tomada com a avaliação cuidadosa da história da doença em conjunto com a paciente e o obstetra. A redução de qualquer medicação nesse período deve ser lenta (15 a 30 dias). Fatores comportamentais, como uso de álcool, cigarro e cuidados pré-natais inadequados, podem ser causas de aumento de malformação. Portanto, são imprescindíveis o acompanhamento pré-natal rigoroso e a orientação de hábitos de vida saudáveis.

BIBLIOGRAFIA Botega NJ, Pinto e Silva, JL, Nomura ML. Gravidez e puerpério. In: Botega NJ. Prática psiquiátrica no hospital geral: intercosulta e emergência. 3.ed. Porto Alegre: Artmed, 2012. p.464-84. Cordioli AV. Psicofármacos: consulta rápida. 4.ed. Porto Alegre: Artmed, 2011. p.252-4. Deligiannidis KM, Byatt N, Freeman MP. Pharmacotherapy for mood disorders in pregnancy: a review of pharmacokinetic changes and clinical recommendations for therapeutic drug monitoring. J Clin Psychopharmacol. 2014;34(2):244-55. Einarson A. Antidepressant use during pregnancy. Canadian Family Physician. 2013;59:941-44. Ferrando SJ, Levenson JL, Owen JA. Clinical manual of psychopharmacology in the Medicalli iII. Washington, DC/London, England: American Psychiatric Publishing, 2010.

p.339-70. Gentile S. Tryciclic antidepressants in pregnancy and puerperium. Expert Opin Drug Saf. 2014;13(2):207-25. Martin HG, Manzoni OJ. Late onset deficits in synaptic plasticity in the valproic acid rat model of autism. Front Cell Neurosci. 2014;8(23):1-20. McDonagh MS, Matthews A, Phillip C, Romm J, Peterson K, Thakurta S et al. Depression drug treatment outcomes in pregnancy and the postpartum period: a systematic review and meta-analysis. Obstet Gynecol. 2014;124(3):526-34. Myles N, Newall H, Large M. Systematic meta-analysis of individual selective serotonin reuptake inhibitor medications and congenital malformations. Aust N Z J Psychiatry. 2013;47(11):1002-12. Sadock BJ, Sadock, VA. Kaplan & Sadock. Compêndio de psiquiatria: ciência do comportamento e psiquiatria clínica. 9.ed. Porto Alegre: Artmed, 2007. Stahl SM. The prescriber’s guide (Stahl’s essential psychopharmacology). 5. ed. San Diego: University of California, 2014 Tess VLC. Abordagem dos transtornos psiquiátricos na gestação e no puerpério. In: Miguel EC, Forlenza OV. Compêndio de clínica psiquiátrica. HCFMUSP- IPQ. Barueri: Manole, 2012. p.639-55. Vasconcelos AA, Teng CT. Psiquiatria perinatal: diagnóstico e tratamento. São Paulo: Atheneu, 2010.

SEÇÃO IV

EMERGÊNCIAS PSIQUIÁTRICAS

Capítulo 22

SUICÍDIO Renzo Roldi Rossoni e Marcelo Feijó de Mello

INTRODUÇÃO A Organização Mundial de Saúde (OMS) define o suicídio como um “ato intencional de um indivíduo para extinguir a própria vida”. Por sua elevada prevalência definida a partir de estudos epidemiológicos, passou a ser considerado um problema de saúde pública de proporções mundiais e objeto de inúmeros estudos científicos e de programas de prevenção.1 Ainda segundo a OMS, uma pessoa morre por suicídio a cada 40 s, o que soma aproximadamente um milhão de mortes por ano. Está entre as três maiores causas de morte entre indivíduos de 15 a 44 anos em alguns países2 e foi a 12a maior causa de anos de vida perdidos em 2011.3,4 O Centers for Disease Control and Prevention (CDC), nos EUA, assinalou que mais de 38 mil pessoas tiraram suas vidas naquele país, em 2010.5 Dados brasileiros apontam 9.852 óbitos por lesões autoprovocadas em todo o país no ano de 20116, porém essa taxa é provavelmente maior, por causa da grande subnotificação.7

DEFINIÇÕES O comportamento autolesivo é uma prática complexa que envolve aspectos biológicos, psicológicos, genéticos, sociais e culturais. Para compreender o assunto em sua totalidade, é imperativo conhecer conceitos básicos ligados ao tema, o que tem como prerrogativa facilitar a comunicação entre profissionais, a formulação de hipóteses diagnósticas e a estimativa do risco de maneira pragmática (Tabela 22.1). Tabela 22.1 Definições associadas ao comportamento autolesivo. Suicídio

Morte causada por comportamento autodirigido, com evidência implícita ou explícita da intenção de morte

Tentativa de suicídio

Comportamento autolesivo não fatal feito com evidência implícita ou explícita da intenção de morte

Tentativa

Após iniciado o comportamento autolesivo, este é interrompido pela pessoa ou por outrem antes da lesão fatal.

interrompida

A interrupção pode ocorrer em qualquer ponto do ato Pode ser inferida mesmo na ausência de comportamento suicida quando há evidências passadas ou presentes

Intenção suicida

(implícitas ou explícitas) de que o indivíduo tem expectativa subjetiva de atentar contra si mesmo e compreende as prováveis consequências de seus atos ou potenciais atos

Ideação suicida

Comportamento preparatório

Letalidade

Pensamentos de iniciar comportamentos relacionados com o suicídio. Pode variar em intensidade a depender do planejamento e da intensidade da intenção suicida Atos de preparação para o suicídio. Pode incluir qualquer comportamento de verbalização ou pensamento, assim como o planejamento de um método (p. ex., comprar uma arma, juntar remédios para posterior ingesta) ou a preparação para a própria morte (p. ex., escrever carta de despedida, doar bens) Risco objetivo de que o método escolhido leve à morte. Não necessariamente coincide com a expectativa de potencial autolesivo pelo praticante do ato

Adaptada de American Psychiatric Association (2003) e Department of Veterans Affairs (2013).8,9

FATORES DE RISCO E DE PROTEÇÃO O comportamento suicida é influenciado por uma série de fatores de risco e de proteção. A avaliação dessas variáveis é imprescindível para determinar o risco e adotar uma conduta adequada. Os fatores de risco podem ser divididos didaticamente em não modificáveis e modificáveis. Os não modificáveis são relativamente duradouros ou estáveis, podendo aumentar a suscetibilidade de uma pessoa a comportamentos suicidas, como fatores genéticos e neurobiológicos, gênero, personalidade, cultura e nível socioeconômico. Os modificáveis são os que geralmente podem ser foco de intervenção e incluem posse de arma de fogo, transtornos psiquiátricos, doenças clínicas, entre outros (Quadro 22.1). Também devem ser avaliados os fatores de proteção (Quadro 22.2), que são capacidades, qualidades, recursos ambientais e pessoais que aumentam a resiliência, ajudam a lidar com diferentes eventos da vida e conduzem o indivíduo para o crescimento, a estabilidade e/ou a saúde.9 Quadro 22.1 Fatores de risco e precipitantes associados ao comportamento suicida. Fatores psicossociais •

Suicídio de parente, pessoa famosa ou amigo, luto, perda de ente querido



Término de relacionamento (divórcio, separação, viuvez)



Relacionamento familiar ruim



Baixo suporte social



Outros: humilhação pública, bullying, abuso, perda de emprego, ser preso, agredido

Transtornos mentais



Transtornos do humor (depressão, transtorno bipolar)



Transtornos de personalidade (borderline, antissocial)



Esquizofrenia



Ansiedade (transtorno de estresse pós-traumático, transtorno do pânico)



Transtorno do uso de substâncias (álcool, drogas ilícitas)



Transtornos alimentares (anorexia)



Transtorno do sono

Condições médicas •

Doenças neurológicas (esclerose múltipla, Huntington, epilepsia)



História de trauma cranioencefálico



Doenças em estágio terminal



Câncer



HIV/Aids



Diagnóstico recente de doença grave



Piora de doença crônica



Uso de medicações que aumentam o risco de suicídio

Sintomas físicos •

Dor crônica



Insônia



Limitação funcional

Preexistentes e não modificáveis •

Idade (jovens e idosos)



Gênero (masculino)



Raça (caucasianos)



História familiar de suicídio ou tentativa, transtornos mentais



Abuso físico, sexual ou psicológico na infância, negligência, trauma sexual



Baixo nível educacional



Orientação sexual (LGBT)



Crenças culturais e religiosas

HIV: vírus da imunodeficiência humana; Aids: síndrome da imunodeficiência adquirida; LGBT: lésbicas, gays, bissexuais, transexuais. Adaptado de American Psychiatric Association (2003) e Department of Veterans Affairs (2013).8,9

Quadro 22.2 Fatores de proteção associados ao comportamento suicida.8,9 •

Gravidez, ter crianças em casa



Suporte social adequado, estar empregado, relações interpessoais positivas na família e/ou comunidade



Satisfação com a própria vida, boa autoestima, visão otimista de futuro



Religiosidade



Habilidade para lidar com estresse e tolerar frustração, habilidade para resolução de problemas, bom controle de impulso



Acesso a serviços de saúde de qualidade



Adesão a tratamentos de saúde mental

Adaptado de American Psychiatric Association (2003) e Department of Veterans Affairs (2013).8,9

AVALIAÇÃO A avaliação do comportamento suicida por profissional de saúde mental capacitado é uma peça-chave para a condução do caso. Durante essa avaliação, devem-se obter informações sobre o estado mental do paciente e de seu histórico, o que pode ser feito por observação, questionamento direto ou coleta de história com terceiros (Quadro 22.3).8 Isso permite ao médico estimar o risco e tomar as condutas necessárias para evitar um desfecho desfavorável. Os sinais de alerta devem ser observados, uma vez que são preditores de um possível

comportamento autolesivo em um futuro próximo. Esses sinais podem ser observados na ausência de fatores de risco evidentes9 ou mesmo na negação da ideação suicida, evidenciando uma ameaça de comportamento autolesivo. Idealmente, o paciente em risco de suicídio deveria ser identificado antes do ato ou tentativa, porém, na maioria dos casos, essa identificação só acontece depois. A avaliação de pacientes após tentativas de suicídio geralmente ocorre em setores de emergência e deve ser pormenorizada, a fim de favorecer a compreensão global do ato e a determinação de seu contexto. O comportamento suicida está altamente associado à presença de transtornos psiquiátricos. São fundamentais a avaliação cuidadosa dos pacientes com distúrbios mentais quanto ao risco de comportamento autolesivo e a avaliação dos pacientes em risco de suicídio quanto à possível presença de transtornos mentais. Quadro 22.3 Características avaliadas em pacientes com comportamento suicida. Comportamento suicida •

Pensamentos suicidas, autolesivos, intenção ou planejamento



Arrependimento ou não em relação à tentativa



Evidência de desesperança, anedonia, impulsividade



Método usado para a tentativa, incluindo a letalidade e a expectativa de letalidade pelo paciente



Pensamento, planos ou intenção de violência contra outros



Evidência de uso de substância psicoativa



Razões para viver e planos para o futuro

História pessoal •

Tentativas de suicídio prévias, tentativas abortadas ou outros comportamentos autolesivos



Respostas pregressas a estressores; capacidade de teste de realidade



Habilidades de resolução de problemas; capacidade de tolerar dor psíquica



História psiquiátrica com especial atenção para transtornos do humor, anorexia, esquizofrenia, transtornos do uso de substâncias, transtornos de personalidade



Tratamentos prévios para transtornos psiquiátricos, incluindo hospitalizações



História familiar de suicídio ou tentativas, ou história familiar de transtornos mentais, incluindo abuso de substâncias



História de doenças clínicas e seus tratamentos atuais e prévios, incluindo cirurgias ou hospitalizações

Situação psicossocial •

Crises psicossociais agudas e estressores psicossociais crônicos



Status empregatício, situação de vida e presença ou ausência de suporte social



Conjuntura familiar (incluindo se há ou não criança em casa) e qualidade das relações familiares



Crenças culturais ou religiosas sobre morte ou suicídio



Acesso a armas de fogo ou pesticidas

Adaptado de American Psychiatric Association (2003), Department of Veterans Affairs (2013) e Berman e Silverman (2013).8-10

Além disso, o exame físico deve necessariamente ser realizado, pois pode mostrar evidências de intoxicação ou de doenças clínicas que agravam o quadro. Exames laboratoriais devem ser solicitados de acordo com o julgamento clínico.

ESTIMATIVA DO RISCO Entende-se que o comportamento suicida se apresenta em um continuum, que se estende entre a vontade de continuar a viver e a certeza da intenção de se matar. O percurso entre um extremo e outro pode levar anos ou minutos, a depender das peculiaridades de cada paciente. O risco de suicídio não é uma característica estática, estando em constante flutuação. Logo, por ser um atributo dinâmico, com inúmeras variáveis, não há modelo preditivo exato e validado para estimar seu risco com precisão absoluta.9,11 Dessa maneira, as diretrizes, livros e artigos sobre o tema não se prestam a ser o padrão-ouro em relação à avaliação de cada paciente em particular, mas colaboram com informação sobre o assunto e ajudam na tomada de decisão. Para a avaliação do risco, o examinador deve obter toda a informação possível sobre a intenção do paciente de se engajar em um comportamento autolesivo, avaliar os fatores que podem aumentar ou diminuir o risco de que esse ato ocorra e integrar esses dados para que seja feita a estimativa (Tabela 22.2).9 Tabela 22.2 Avaliação do risco de suicídio e ação inicial baseada no risco. Indicadores de risco Risco baixo

Fatores contribuintes

Ação baseada no risco



Ideação ou pensamentos suicidas



recentes •

Sem planejamento



Sem tentativas prévias



Sem intenção ou planejamento



Capaz de controlar o impulso

Indicar sequência de tratamento ambulatorial em serviço psiquiátrico

• • •

Existência de fatores de proteção •

Tratar problemas atuais



Checar questões de segurança



Documentar no prontuário sobre o risco

Fatores de risco limitados Suporte social adequado de suicídio e as condutas tomadas

Risco médio •

Ideação ou pensamentos suicidas •

atuais

Alertar familiares ou pessoas próximas para ficarem atentas a mudanças de



Sem intenção para o ato



Capaz de controlar o impulso



Sem tentativas recentes ou



comportamento

Existência de sinais de alerta ou fatores de risco



Limitar acesso a meios letais



Avaliar necessidade de internação



Manter controle observacional direto do

comportamento preparatório Risco alto • •

• • •

Transtorno mental agudo ou sintomas

Ideação ou pensamentos suicidas

psiquiátricos agudos. Especial atenção

persistentes

para psicose

Forte intenção ou plano estruturado Não é capaz de controlar o impulso



história familiar de suicídio



Limitar acesso a meios letais



Eventos precipitantes agudos



Transferir imediatamente para setor de



Fatores de proteção inadequados



Suporte social inadequado

Tentativa de suicídio recente ou comportamento preparatório

paciente

História de tentativas prévias ou

urgência para hospitalização

Adaptada de American Psychiatric Association (2008), Department of Veterans Affairs (2013) e Berman e Silverman (2013).8-10

Determinados fatores, como transtorno do uso de substâncias ou intoxicação aguda, acesso a meios letais e teste de realidade negativo, aumentam o risco em qualquer

estágio. A evidência de comportamento preparatório deve ser levada em consideração, mesmo na negação de ideação suicida.8,9 A formulação do risco de suicídio se baseia não só no somatório de fatores de risco e de proteção, mas também na interação entre eles.10 Apesar da existência dos guias de conduta e algoritmos, o profissional de saúde deve estar preparado para tomar sua conduta considerando as inevitáveis variações que ocorrem na prática e ser flexível para aperceber-se de maneira apropriada das necessidades de cada paciente, levando em conta os recursos disponíveis no momento e as limitações de cada serviço. O profissional deve avaliar essas condutas preestabelecidas como referências, mas também fazer uso de seu julgamento clínico e bom senso para cada situação em particular.9.

PREVENÇÃO Estima-se que, no ano de 2020, o suicídio acarretará 2,4% de todo o global burden of disease.12 Por se tratar de um grande problema de saúde pública, a OMS tem envidado esforços para aumentar a atenção à prevenção desse agravo.2 O trabalho consiste em formular estratégias efetivas como a redução do acesso a meios comuns de tentativas, como armas de fogo e pesticidas, o acompanhamento de pessoas com tentativas de suicídio prévias e a implementação de call centers de emergência.13,14 Visa também a estimular políticas de aumento do acesso a tratamentos de transtornos que aumentam o risco de suicídio, como depressão e transtorno de uso de álcool, além de aumentar a divulgação de políticas de prevenção e as discussões sobre o tema.14

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1.

World Health Organization. World report on violence and health. Geneva: WHO, 2002.

2.

World Health Organization. Public health action for the prevention of suicide: a framework. Geneva: WHO, 2012.

3.

World Health Organization. Global Burden of Diseade Project. Disponível em: www.who.int/healthinfo/global_burden_​disease/estimates_regional/en/index1.html. Acesso em: 10/4/2014.

4.

Murray CJ, Vos T, Lozano R, Naghavi M, Flaxman AD, Michaud C et al. Disabilityadjusted life years (DALYs) for 291 diseases and injuries in 21 regions, 1990-2010: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study, 2010. Lancet. 2012;380(9859):2197-223.

5.

WISQARS W-bISQaRS. Fatal Injury Reports, National and Regional, 1999 – 2010 http://webappa.cdc.gov/sasweb/ncipc/mortrate10_us.html: Centers for Disease Control and Prevention, 2010 [08/03/2014].

6.

Brasil. Ministério da Saúde. Departamento de Informática do SUS (Datasus). Mortalidade por causa. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?

sim/cnv/obt10uf.def. Acesso em: 08/3/2014. 7.

Marin-Leon L, Barros MB. Suicide mortality: gender and socioeconômic differences. Revista de Saude Pública. 2003;37(3):357-63. Mortes por suicídio: diferenças de gênero e nível socioeconômico.

8.

American Psychiatric Association. Practice guideline for the assessment and treatment of patients with suicidal behaviors, 2003.

9.

Department of Veterans Affairs DoD-VD. Clinical practice guideline for assessment and management of patients at risk for suicide. Washington, DC; 2013.

10. Berman AL, Silverman MM. Suicide risk assessment and risk formulation. Part II: Suicide risk formulation and the determination of levels of risk. Suicide & lifethreatening behavior. 2013. 11. Bleich A, Baruch Y, Hirschmann S, Lubin G, Melamed Y, Zemishlany Z et al. Management of the suicidal patient in the era of defensive medicine: focus on suicide risk assessment and boundaries of responsibility. The Israel Medical Association Journal: IMAJ. 2011;13(11):653-6. 12. Bertolote JM FA. Oxford Textbook of suicidology and suicide prevention: a global perspective: Oxford: Oxford University Press, 2009. 13. du Roscoat E, Beck F. Efficient interventions on suicide prevention: a literature review. Revue d’epidemiologie et de sante publique. 2013;61(4):363-74. 14. World Health Organization. Suicide Prevention – SUPRE. Disponível em: www.who.int/mental_health/prevention/suicide/suicideprevent/en/. Acesso em: 09/4/2014.

Capítulo 23

AGITAÇÃO PSICOMOTORA E CATATONIA Rafael Latorraca e José Cássio do Nascimento Pitta

AGITAÇÃO PSICOMOTORA A agitação psicomotora pode ser definida como um quadro agudo de aumento excessivo da atividade verbal e da psicomotricidade, associado à experiência subjetiva de tensão, irritabilidade, ausência de cooperação à contenção verbal e risco de agressão física.1 Nos serviços de emergência médica, as alterações de comportamento relacionadas com a agitação psicomotora correspondem a aproximadamente 5% dos atendimentos nos EUA e a 3% em nosso meio. Já nos serviços de emergência psiquiátrica, os quadros de agitação psicomotora são responsáveis por até 10% dos atendimentos.1 A maior parte dos episódios são quadros de intoxicação aguda por abuso de substâncias e episódios psicóticos por diferentes causas, como esquizofrenia, transtorno afetivo bipolar ou psicose induzida por substância.1-3 Os fatores de risco associados aos quadros de agitação psicomotora estão relacionados a seguir: • • • • • • • • • • • •

Sexo masculino Idade de 15 a 24 anos Baixo nível sociocultural Desemprego Ausência de suporte social Atos violentos prévios Envolvimento em assaltos Homicídio Ser vítima de violência na infância Baixa tolerância a frustrações Uso de mecanismos de defesa primitivos, como dissociação e projeção Baixa autoestima.

APRESENTAÇÕES E CONDIÇÕES ASSOCIADAS A agitação psicomotora é uma manifestação complexa e inespecífica associada a inúmeras condições clínicas e psiquiátricas primárias.4 Cabe ao profissional responsável o conhecimento e o raciocínio clínico para investigar com competência as diferentes associações possíveis. Em virtude da baixa capacidade de insight e comprometimento da crítica para tomada de decisões e julgamento da realidade, dificilmente há procura espontânea do indivíduo em

agitação pelo serviço de emergência. Com o aumento da psicomotricidade, contato difícil, taquipsiquismo e atitude hostil, geralmente os pacientes são levados para atendimento pelo corpo de bombeiros, policiais, familiares, amigos e até desconhecidos.4 As associações com condições clínicas podem apresentar alteração do nível de consciência com flutuação quantitativa e alterações qualitativas nos estados crepusculares e oniroides, alteração da atenção com distraibilidade e hipotenacidade, sinais diretos e indiretos de alucinações visuais, ausência de reatividade a fatores psicossociais recentes, além de desorientação importante no tempo e no espaço. Já em quadros psiquiátricos primários, além da história psiquiátrica prévia, encontra-se, com maior frequência, reatividade a circunstâncias familiares, mudanças recentes no tratamento, entre outros fatores estressores profissionais e sociais antecedendo os episódios de agitação, principalmente em transtornos de personalidade do cluster B, quadros dissociativos, transtornos afetivos e até nas psicoses. Hipervigilância geralmente ocorre associada aos delírios persecutórios com alterações da forma do pensamento, frouxidão de laços associativos até desagregação, além de solilóquios e outros indícios de alucinações auditivas nas esquizofrenias e outros transtornos esquizofreni-formes. Já aceleração do pensamento, fuga de ideias, hipersexualidade e delírios de grandeza são mais comuns nos quadros manitiformes do transtorno afetivo bipolar. Menos frequentemente, o episódio de agitação pode acontecer durante o atendimento em pacientes inicialmente calmos e colaborativos. Nesses casos, pode-se observar alguns preditores de comportamentos violentos, como aumento das exigências, elevação do tom da voz, comentários pejorativos, irritabilidade, sinais de desconfiança, permanecer em pé ou andando pela sala, desacatando as orientações dadas pelo médico, e até percepção do sentimento contratransferencial de medo pelo profissional mais experiente.3 Os transtornos mentais primários associados à agitação psicomotora estão relacionados a seguir: • • • • • • • • • •

Esquizofrenias Transtorno afetivo bipolar Psicose induzida por substância Transtorno delirante persistente Transtorno de personalidade do cluster B Crise de pânico Deficiência intelectual Episódio conversivo e dissociativo Primeiro episódio psicótico Intoxicação aguda.

As condições clínicas, embora menos frequentemente associadas aos quadros de agitação, necessitam do correto diagnóstico por demandarem tratamento específico, além de possibilitarem medidas de alto impacto, se estabelecidas no momento adequado. Exemplos: redução de mortalidade com antibiótico no delirium infeccioso bacteriano, correção hidreletrolítica de alguns distúrbios metabólicos, diagnóstico precoce de

hematoma extradural e uso adequado de benzodiazepínicos guiado por sintomas na abstinência alcoólica. Condições mais simples de agitação, como acatisia secundária a neurolépticos, possibilitam uma conduta resolutiva imediata, além de evitar a piora dos sintomas no uso indiscriminado de haldol intramuscular em todos os casos de agitação. Algo sempre importante é afastar o diagnóstico de delirium (síndrome confusional aguda), principalmente em pacientes idosos, flutuação do nível de consciência, desorientação em tempo e espaço, comprometimento da atenção voluntária com distraibilidade e sugestionabilidade em virtude da alta morbimortalidade associada. Alguns sinais funcionam como red flags em relação à maior associação com essas diversas condições clínicas possíveis. São eles: alterações dos sinais vitais, alucinações multissensoriais, ausência de diagnóstico psiquiátrico prévio, comprometimento importante da atenção voluntária com sugestionabilidade, idade avançada, alteração no exame neurológico, alterações do ciclo sono-vigília, ausência de personalidade pré-mórbida compatível com o quadro, desorientação grave, ausência de história familiar, crítica pobre, início abrupto, flutuação com períodos de melhora espontânea, flutuação do nível de consciência, alteração qualitativa da consciência (estados oniroides), alucinações multissensoriais e rápida perda de peso inexplicada. As principais condições clínicas associadas à agitação psicomotora estão relacionadas a seguir: • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • •

Delirium Hipoglicemia Hipoxia Encefalopatia hepática Insuficiência renal com uremia Hipo/hipernatremia Hipo/hipercalcemia Hipo/hipertireoidismo Insuficiência suprarrenal Porfiria aguda Epilepsia Estado pós-ictal Traumatismos cranioencefálicos Neoplasias cerebrais Demências Hemorragia subaracnoides Acidentes vasculares encefálicos Doença de Huntington Doença de Wilson Intoxicação com quimioterápicos Intoxicação com anticonvulsivantes Alteração de comportamento induzido por corticosteroides Encefalites virais Encefalopatia pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV, human immunodeficiency

• • •

virus) Lúpus Encefalite anti-NMDA (N-metil-D-aspartato) glutamatérgico Esclerose múltipla.

EXAMES COMPLEMENTARES Devem ser solicitados obviamente após a estabilização do quadro e de acordo com a suspeita clínica. Deve-se avaliar hemograma, eletrólitos, sorologias, funções tireoidiana, renal e hepática, enzimas hepáticas, bilirrubina total/frações, além de exame toxicológico. Na investigação direcionada em casos de maior suspeita de condição clínica associada, encontram-se os exames de imagem do sistema nervoso central (SNC), sendo a ressonância magnética superior à tomografia computadorizada em relação à qualidade de investigação, mas têm maiores custos e menor disponibilidade. Na investigação direcionada, recomenda-se pesquisa de HIV para apresentação atípica da panencefalite esclerosante subaguda do HIV, eletroencefalograma (EEG) para pesquisa de manifestações atípicas de epilepsia, além de encefalopatias por toxinas. Deve-se coletar líquido cefalorraquidiano na suspeita de quadros desmielinizantes, infecciosos e inflamatórios/autoimunes. De acordo com as probabilidades diagnósticas de cada caso, deve-se verificar anticorpo antifosfolipídico, cálcio, paratormônio, anticorpos do lúpus, se houver suspeita de psicose lúpica, exame toxicológico de urina, pesquisa de metais pesados para intoxicação e ceruloplasmina na suspeita de doença de Wilson.

CONDUTA IMEDIATA Pode-se dividir o manejo em quatro diferentes níveis: ambiente, manejo comportamental, medidas farmacológicas e, por último, pela contenção mecânica, modificadas de Mantovani et al.4 As diretrizes de manejo clínico e orientações para contenção mecânica estão respectivamente relacionadas nos Quadros 23.1 e 23.2. Em uma revisão sistemática com 31 ensaios clínicos de intervenções farmacológicas para agitação psicomotora, encontrou-se evidência de controle do quadro com administração por via oral (VO) de olanzapina, risperidona, aripiprazol, quetiapina, haloperidol e lorazepam, assim como IM de olanzapina, lorazepam, ziprasidona, haloperidol, aripiprazol, midazolam e droperidol. Entre as vantagens da via IM estão a possibilidade de administração mesmo sob a recusa do paciente, após a contenção mecânica, além da velocidade de ação cerca de 2 vezes mais rápida, por exemplo, para a olanzapina, 30 min IM versus 1 h VO.1 Apesar do elevado custo e da ausência desse medicamento no Sistema Único de Saúde (SUS), a olanzapina 10 mg IM é uma ótima opção para a agitação em esquizofrenia.5 Quadro 23.1 Diretriz de manejo clínico.

1.

Avaliar clinicamente a gravidade da agitação psicomotora e preferencialmente quantificá-la por meio da pontuação de escalas de gravidade

2. Iniciar o manejo por meio de intervenções verbais, sempre que possível 3. Estabelecer plano específico para manejo da situação, envolvendo as equipes de enfermagem e de segurança no caso 4. Ao escolher a medicação a ser utilizada, considerar: idade, sexo, índice de massa corporal estimado, presença de outras complicações clínicas, medicações prescritas anteriormente, ocorrência de efeitos colaterais com tratamentos anteriores, risco de rebaixamento do nível de consciência e uso de substâncias psicoativas com intoxicação vigente. 5. Registrar em prontuário as justificativas clínicas para a escolha do(s) fármaco(s) 6. Se possível, oferecer medicação por VO 7. Se paciente cooperativo, mas com risco de agitação: •

Haloperidol 2,5 a 5 mg VO ou diazepam 10 mg VO ou



Haloperidol 2,5 a 5 mg associado a diazepam 10 mg VO ou risperidona 2 mg, VO ou



Risperidona 2 mg associada a lorazepam 2 mg, VO. Preferência ao lorazepam se houver hipótese de hepatopatia comórbida.

Obs.: evitar benzodiazepínicos em caso de condição médica geral presente, rebaixamento do nível de consciência ou intoxicação alcoólica 8. Se paciente não cooperativo, agitado ou com risco iminente de violência ou fuga: •

Condição médica geral – Haloperidol (2,5 a 5 mg) IM ou – Olanzapina (5 a 10 mg) IM



Intoxicação por estimulantes – Midazolam (5 a 15 mg) IM ou – Diazepam (5 a 10 mg) IV (evitar uso intramuscular do diazepam por causa da absorção errática)



Intoxicação por álcool ou outras substâncias psicoativas – Haloperidol (2,5 a 5 mg) IM



Transtornos psiquiátricos primários

– Haloperidol (2,5 a 5 mg) IM ou – Haloperidol (2,5 a 5 mg) associado a midazolam (5 a 15 mg) IM ou olanzapina (5 a 10 mg) IM ou ziprasidona (5 a 10 mg) IM •

Gestantes – Haloperidol (2,5 a 5 mg) IM

9. Reavaliar o paciente a cada 30 min e, preferencialmente, quantificar os níveis de tranquilização/agitação por meio da pontuação de escalas de gravidade, bem como aferição de sinais vitais e nível de consciência 10. Em caso de necessidade de medicação adicional, repetir o medicamento (ou a combinação de medicamentos) usado inicialmente, na mesma dose 11. Realizar ECG em caso de administração de ziprasidona, sempre que houver achados clínicos indicativos de alteração cardiovascular ou uso de altas doses de neurolépticos 12. Nas 24 h subsequentes ao uso de medicação injetável para o manejo de agitação psicomotora, deve ser observada e registrada em prontuário a ocorrência de efeitos colaterais e medidas terapêuticas adotadas no manejo destes VO: via oral; IM: via intramuscular; IV: via intravenosa; ECG: ecocardiografia.

Quadro 23.2 Orientações para contenção mecânica. 1. Contenção mecânica é o procedimento de fixação do paciente ao leito por meio de faixas de couro ou tecido, geralmente aplicadas nos membros superiores, inferiores e, em casos mais graves, também no tronco 2. A contenção mecânica deve ser usada apenas como último recurso, quando todas as outras possibilidades de intervenção fracassarem, e apenas quando há risco iminente de agitação psicomotora intensa, de auto e heteroagressão e de queda ou ferimentos em pacientes com rebaixamento do nível de consciência 3. Deve-se estabelecer um plano específico para a realização do procedimento 4. A contenção mecânica deve ser realizada por vários membros da equipe (de preferência, cinco pessoas) 5. O médico deve estar presente durante todo o procedimento 6. O paciente deve ser continuamente orientado sobre o procedimento que está sendo realizado e os motivos que o levaram a este 7. A contenção mecânica deve ser mantida pelo menor tempo possível 8. No caso de uso de contenção em tórax, o conforto e a segurança do paciente devem ser rigorosamente checados, verificando-se a qualidade da perfusão e a eventual ocorrência de garroteamento e hiperextensão de membros, compressão de tórax e de plexo braquial

9.

O paciente deve ser mantido sob observação contínua pela equipe de enfermagem durante o período em que estiver sob contenção mecânica

10. Os sinais vitais e o nível de consciência devem ser rigorosamente monitorados 11. O paciente deve ser reavaliado pelo médico-assistente, de preferência a cada 30 min, para a averiguação da necessidade de manutenção da contenção mecânica 12. A retirada da contenção mecânica deve ser realizada na presença de vários membros da equipe para evitar acidentes em caso de nova agitação psicomotora 13. As informações relativas à indicação de contenção mecânica, sinais vitais, condições de conforto e segurança e eventuais intercorrências durante o procedimento devem ser detalhadamente registradas em prontuário

A prometazina pertence à classe das fenotiazinas, sendo usada principalmente em casos alérgicos pelo antagonismo H1, mas também com ação de antagonismos dopaminérgico, noradrenérgico e colinérgico, por ser um análogo químico da clorpromazina. Sabidamente tem a hipotensão como efeito colateral, e pode teoricamente aumentar o risco de síndrome neuroléptica maligna. Seu uso frequente no Brasil possivelmente associa-se à indisponibilidade de lorazepam injetável.4 Contudo, as evidências atuais demonstram efeito sedativo maior da associação haldol+prometazina (HP) em relação ao haldol sozinho e até à olanzapina, sem observação de diferenças significativas de efeitos colaterais entre os grupos, exceto maior ocorrência de distonia aguda no grupo medicado apenas com haldol, demonstrando um possível efeito benéfico do antagonismo anticolinérgico da prometazina.4 Em um ensaio clínico randomizado com 150 pacientes, foi comparado o efeito IM da olanzapina, ziprazidona, haldol sozinho, HP e haloperidol + midazolam para controle da agitação psicomotora. O grupo olanzapina apresentou menor agitação e agressividade após 1 h da aplicação.5 Após 12 h da aplicação, os pacientes tratados com haloperidol e midazolam tinham os piores resultados, com altos níveis de agitação e agressividade, e ainda mais efeitos colaterais. O grupo HP e o grupo olanzapina tiveram os melhores resultados em estabilidade do controle de agressão e da agitação ao longo das 12 h.5 Em um estudo na Índia com HP versus olanzapina, tanto HP quanto olanzapina IM foram alta e rapidamente efetivos. A maioria dos pacientes estava tranquila ou adormecida em meia hora com ambos os tratamentos. Contudo, mais pessoas no grupo da olanzapina (65/150) necessitaram de medicação adicional nas primeiras quatro horas do que no grupo HP [31/150, NNT (número necessário para tratar) = 5, IC (intervalo de confiança) 4 a 8]. Isso pode ser encarado como uma desvantagem considerável para a olanzapina IM, além de seu custo. No que concerne aos efeitos adversos, nenhum tratamento foi tóxico e não

houve ocorrência de efeitos extrapiramidais.5 Entre os diversos neurolépticos que apresentam evidências de controle nos casos de agitação psicomotora, deve-se graduar a intervenção de acordo com a gravidade do quadro, variando desde o uso VO até as opções mais sedativas com o uso IM.1-5 Quanto às condições ambientais, pode-se destacar treinamento da equipe, presença de profissionais de seguranças, sala física propícia ao atendimento sem objetos com potencial para serem usados como armas, fácil acesso do profissional à porta de saída, sistema de alarme, retirada de estímulos desestabilizadores ao paciente, como um familiar inserido em um delírio persecutório.4 Tais medidas existem em um continuum, até a bem-vinda existência de uma porta com detectores de metais para evitar a entrada de armas de fogo no serviço. Quanto às medidas de manejo comportamental, o objetivo primário é estabelecer algum grau de confiança e respeito por meio da relação médico-paciente para que este se sinta acolhido e reconhecido em seu sofrimento, podendo retomar seu autocontrole. Para isso, o psiquiatra deve apresentar-se ao paciente como o profissional responsável do serviço, colocando-se aberto ao diálogo, além de estimular o paciente a verbalizar suas reivindicações. A fala deve ser firme, porém não autoritária. Pausada, evitando entonações inadequadas, confrontações ou fazer anotações nesse momento. Recomenda-se fazer perguntas claras e objetivas, olhar diretamente para o paciente, mantendo-se a certa distância, ao mesmo tempo que outro membro da equipe observa o atendimento a uma distância maior, evitando movimentos bruscos, negociações, barganhas, humilhações ou ameaças, lembrando que, em algum nível, o quadro deve-se a um sofrimento subjetivo do paciente com possibilidade de alívio, se estimulado a expressar seus sentimentos verbalmente e a reassumir o controle de si mesmo.4 A gradação da contenção é essencial, iniciando-se pelas medidas comportamentais e, em seguida, passando para a tentativa de medicação voluntária VO. Em casos refratários às exaustivas tentativas das primeiras medidas, mantendo-se risco de auto e/ou heteroagressividade, preconiza-se medicação involuntária IM e, por último, a contenção mecânica a ser realizada apenas por equipe treinada de cinco pessoas; cada indivíduo é responsável por um membro e o líder permanece conversando com o paciente, justificando os motivos da contenção e os passos do procedimento. Um dos membros da equipe, de preferência o líder, deve se responsabilizar em proteger e apoiar a cabeça e pescoço do paciente durante o procedimento, evitando a obstrução das vias respiratórias e broncoaspiração. A ação deve ser sincronizada, evitando qualquer decisão impulsiva ou ato intempestivo. Cada um dos quatro membros deve ser fixado à maca com faixas de tecido ou dispositivos próprios elaborados para evitar lesões isquêmicas mesmo sob esforço do paciente, sendo necessária uma quinta faixa na região torácica nos casos de pacientes mais graves. A posição deve ser em decúbito dorsal, cabeça levemente levantada, com o braço fixado de modo a facilitar o acesso intravenoso (IV). Deve-se sempre revistar os pacientes agitados, se não for possível antes, logo após a

contenção. O objetivo é evitar uso de facas, canivetes e até de isqueiros pelo próprio paciente na tentativa de fuga, auto ou heteroagressão. Além disso, o nível de consciência e sinais vitais deve ser avaliado sistematicamente para evitar rebaixamento excessivo de nível de consciência, insuficiência respiratória, broncoaspiração, desidratação, entre outras complicações. Os motivos e as particularidades do procedimento devem ser registrados no prontuário, assim como as avaliações posteriores justificando a necessidade de permanência. Deve-se considerar o uso de medicações para evitar contenções prolongadas. A equipe de saúde deve estar habilitada para o manejo de pacientes com os quadros de agitação psicomotora que necessitam de uma intervenção imediata e compreender que esse comportamento é decorrente de condições clínicas ou transtornos mentais primários, e, na maioria das vezes, não se deve a intenção primária em prejudicar os recursos humanos ou físicos do ambiente de atendimento.

CATATONIA Catatonia é uma síndrome neuropsiquiátrica descrita inicialmente por Kahlbaum (18281899) em sua monografia de 1874, a qual foi traduzida para o inglês somente em 1973. Nessa obra, Kahlbaum descreve 28 episódios de catatonia com o nome de Katatonie, oder der Spannungsirresein, traduzida para o inglês como catatonia, tension insanity.6-9

CONDIÇÕES ASSOCIADAS Os quadros de catatonia associam-se a transtornos psiquiátricos, doenças neurológicas, neoplásicas, metabólicas, autoimunes e intoxicações. A presença do diagnóstico varia de 7 a 17% das admissões em serviços de psiquiatria dos EUA.6 As condições médicas associadas aos quadros de catatonia estão relacionadas na Tabela 23.1. Tabela 23.1 Condições associadas a quadros de catatonia. Condição associada

Casos de catatonia (%)

Transtornos do humor

46

Esquizofrenia

20

Transtorno esquizoafetivo

6

Condições clínicas

16

Abstinência de benzodiazepínicos

4

Adaptada de Rosebush et al. (2010), Sienaert et al. (2011) e Jaimes-Albornoz et al. (2012).7,9,10

DIAGNÓSTICO Na prática clínica, fechar o diagnóstico de quadros intermediários pode ser difícil. Existem diversas escalas com diferentes pontos de corte para o diagnóstico. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) considera catatonia quando há três ou mais características das 12 a seguir: estupor catatônico (imobilidade ou extrema hipoatividade sem relação com o ambiente); catalepsia (manutenção de postura contra a gravidade após indução passiva); flexibilidade cérea; mutismo (total ou quase ausência de fala); negativismo; posturas bizarras espontâneas; maneirismos; estereotipias; agitação súbita não influenciada por fenômenos externos; sustentação bizarra da mímica facial (grimacing); ecolalia; e ecopraxia. Já a Bush-Francis Catatonia Rating Scale (BFCRS) apresenta um baixo limiar diagnóstico, exigindo apenas dois dos 14 itens, contendo todos os sinais do DSM-5, mas contando com ecolalia e ecopraxia como critério único, e mais três critérios possíveis: rigidez, staring (presença de olhos abertos fixos sem foco) e verbigeration (repetição de palavras sem sentido).6,11 Os critérios diagnósticos pela escala BFCRS encontram-se no Quadro 23.3. Em razão da real possibilidade de associação com condições clínicas (cerca de 20% dos casos não são transtornos psiquiátricos primários), é necessário um raciocínio clínico amplo na investigação clínica de modo análogo à agitação psicomotora e à investigação de psicoses secundárias a causas orgânicas estabelecidas.6,11,12

INVESTIGAÇÃO Preconizam-se, além da anamnese detalhada, exame físico e neurológico completos, assim como investigação laboratorial com hemograma, velocidade de hemossedimentação (VHS), eletrólitos, glicemia, ureia, creatinina, função hepática e hormônios tireoidianos. Quadro 23.3 Bush-Francis Catatonia Rating Scale. Itens de rastreamento diagnóstico Furor catatônico* (agitação não associada a estímulos externos) Imobilidade/estupor* (ausência de atividade psicomotora ou diretamente relacionada ao ambiente) Mutismo* (ausência ou rara expressão verbal) Catalepsia* (postura espontânea e ativamente sustentada contra gravidade) Expressão facial contorcida e sustentada* Ecopraxia / Ecolalia* (repetição/imitação da fala ou de movimentos do entrevistador).

Estereotipia* (movimentos repetitivos, anormais e sem propósito) Maneirismo* Negativismo* (oposição ou ausência de resposta aos estímulos externos) Flexibilidade cérea* (resistência leve e contínua à movimentação passiva) Olhar fixo (olhar sustentado e fixo sem propósito aparente) Verbigeração (repetição de palavras ou frases sem sentido) Retirada (recusa-se a beber, comer ou fazer contato visual) Rigidez* *Critérios presentes do DSM-5

Exames de imagem do encéfalo também são úteis quando disponíveis, com superioridade da ressonância magnética em relação à tomografia computadorizada para investigação dos diagnósticos diferenciais possíveis. Na investigação direcionada, recomenda-se pesquisa de HIV, eletroencefalograma (EEG) para episódios atípicos de convulsão e encefalopatias por toxinas. Líquido cefalorraquidiano deve ser coletado na suspeita de quadros autoimunes, desmielinizantes ou infecciosos. Outros exames devem ser solicitados de acordo com a probabilidade do diagnóstico de desequilíbrio hidroeletrolítico (sódio, potássio, cálcio, magnésio e paratormônio); anticorpo antifosfolípide para coagulopatia, deficiência vitamínica pela dosagem de B12 e ácido fólico; anticorpos do lúpus para psicose lúpica. Por fim, toxicológico de urina, pesquisa de metais pesados e ceruloplasmina na suspeita de doença de Wilson.

TRATAMENTO Inicialmente, o suporte clínico imediato para evitar complicações graves é mandatório. Hidratação IV, correção de possíveis distúrbios hidreletrolíticos e suporte nutricional via sonda nasoenteral são necessidades esperadas em casos graves.6,7 O tratamento específico dependerá da condição clínica associada. Já nos quadros psiquiátricos primários, existe apenas um único ensaio clínico randomizado publicado. Neste estudo de 1992, foram 34 pacientes randomizados entre o uso de amobarbital IV e solução salina IV. Não houve resposta no grupo-controle, mas metade dos pacientes do grupo do amobarbital responderam com melhora de 56% em apenas 10 min na escala utilizada.6 Em um ensaio clínico aberto com 13 pacientes, o uso de lorazepam 2 mg IV reduziu em 60% a pontuação na escala BFCRS em apenas 10 min. Diversas outras séries de casos e

ensaios clínicos abertos nos últimos 20 anos demonstraram resultados semelhantes ao uso de lorazepam IV ou VO, com taxa de resposta variando entre 60 e 80% após algumas horas a alguns dias após o início da intervenção.6 Embora não existam ensaios clínicos randomizados publicados até o momento, existem dados consistentes na literatura a favor dos benzodiazepínicos como tratamento, além de resposta significativa documentada e eficiência bem estabelecida do flumazenil como antagonista de benzodiazepínicos. Preconizam-se doses iniciais de 2 a 6 mg de lorazepam, mas alguns pacientes podem demandar doses de 12 a 16 mg/dia.6,7 Os dados sobre uso de antipsicóticos é controverso na literatura, em alguns estudos publicados com piora do quadro e outros com um efeito positivo discreto. Há apenas um ensaio clínico randomizado com neurolépticos em catatonia, no qual foram randomizados 14 de 68 pacientes sem resposta ao lorazepam entre um grupo de risperidona mais sham eletroconvulsoterapia (ECT) e outro grupo de placebo mais ECT bilateral. Em 3 semanas, houve resposta satisfatória em 50% no grupo risperidona versus 90% no grupo ECT.6,7 Em quadros de catatonia maligna (quadro grave, raro, com agitação extrema, febre e desequilíbrios autônomos), é proscrito o uso de antipsicóticos por conta da piora do quadro, possivelmente associada à síndrome neuroléptica maligna. A ECT apresenta os melhores resultados, uma vez que tem sido descrita como eficaz para a maioria dos casos de catatonia refratária aos benzodiazepínicos.6,7

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1.

Zeller SL, Rhoades RW. Systematic reviews of assessment measures and pharmacologic treatments for agitation. Clinical Therapeutics. 2010;32(3):403-25.

2.

Huf G, Coutinho ESF, Adams CE. Rapid tranquillization in psychiatric emergency settings in Brazil: pragmatic randomised controlled trial of intramuscular haloperidol versus intramuscular haloperidol plus promethazine. Rev Bras Psiquiatr. 2009;31(3):265-70.

3.

Botega, NJ. Agitação psicomotora. In:. Prática psiquiátrica no hospital geral: interconsulta e emergência. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2006. p.211-24.

4.

Katagiri H, Fujikoshi S, Suzuki T, Sugiyama N, Takahashi M et al. A randomized, double-blind, placebo-controlled study of rapid-acting intramuscular olanzapine in Japanese patients for schizophrenia with acute agitation. BMC Psychiatry. 2013;11(13):20.

5.

Mantovani C, Migon MN, Alheira FV, Del-Ben CM. Managing agitated or aggressive patients. Rev Bras Psiquiatr. 2010;32(Suppl II).

6.

Francis A. Catatonia: diagnosis, classification, and treatment. Curr Psychiatry Rep. 2010;12:180-5.

7.

Rosebush P, Mazurek MF. Catatonia and its treatment. Schizophrenia Bulletin. 2010;36(2):239-42.

8.

Fink M, Shorter E, Taylor MA. Kraepelin’s error: catatonia is not schizophrenia. Schizophrenia – Bulletin. 2010;36(2):314-20.

9.

Sienaert P, Rooseleer J, De Fruyt J. Review – Measuring catatonia: a systematic review of rating scales. Journal of Affective Disorders. 2011;135.

10. Jaimes-Albornoz W, Serra-Mestres J. Catatonia in the emergency department. Journal Article, Review. Emerg Med J. 2012; 29(11):863-7. 11. Fink M, Taylor MA. The catatonia syndrome: forgotten but not gone. Arch Gen Psychiatry. 2009;66:1173. 12. Baldacara L, Sanches M, Cordeiro DC, Jackowski. Rapid tranquilization for agitated patients in emergency psychiatric rooms: a randomized trial of olanzapine, ziprasidone, haloperidol plus promethazine, haloperidol plus midazolam and haloperidol alone. Rev Bras Psiquiatr. 2011;33(1).

BIBLIOGRAFIA Falcão LFR et al. Emergências, fundamentos e prática. São Paulo: Martinari, 2010. Huf G. et al. Haloperidol plus promethazine for psychosis-induced aggression. Rev Bras Psiquiatr. 2009;933:30-9.

Capítulo 24

DELIRIUM Eduardo Seraidarian Najjar e Osvladir Custódio

INTRODUÇÃO O delirium foi redefinido pela nova psicopatologia como uma perturbação da consciência, com seus sintomas acompanhantes sendo considerados secundários ou fenômenos derivados e sua etiologia orgânica em um sentido forte.1 Suas definições, em geral, ressaltam sua natureza transitória, intermitente e estereotipada.

EPIDEMIOLOGIA Associa-se a morbidade e mortalidade aumentadas, permanência mais prolongada em hospital, declínio cognitivo e funcional e internação em unidades de longa permanência.2 Seu custo para o sistema de saúde é substancial. Pacientes com delirium que recebem alta hospitalar podem manter sintomas persistentes. Na população geral, o delirium não é comum. Na subpopulação de 65 ou mais anos, sua prevalência varia entre 1,75 e 2,3%3 e, em populações com maiores proporções de idosos com demência, atinge até 22%. Em serviços de saúde, as prevalências são ainda maiores e variam, em enfermarias clínicas e cirúrgicas, entre 10 e 30% dos pacientes2, e, em unidades de cuidados a longo prazo, entre 1 e 70%, dependendo dos critérios diagnósticos utilizados e da prevalência de demência.3 As mais altas incidências de delirium são observadas em serviços médicos cirúrgicos, unidades de terapia intensiva e cuidados paliativos.

ETIOLOGIA A lista das possíveis causas de delirium pode ser enciclopédica. Ainda que um único fator possa desencadear o quadro, habitualmente, mais de um fator está envolvido nesse processo. Para o aparecimento do delirium, o modelo Diátese-Estresse é bastante útil e propõe que fatores de risco predisponentes ou de vulnerabilidade interagem de maneira complexa com os precipitantes.4 O conhecimento desses fatores de risco propiciou o desenvolvimento e a validação de estratégias para prevenção do delirium.5 Um fator de vulnerabilidade muito importante para a ocorrência desse quadro é a existência de demência ou déficit cognitivo. Em uma revisão,4 foram identificados fatores de vulnerabilidade para o aparecimento do delirium: •

Idade avançada

• • • • • • •

Déficit cognitivo, demência ou história de delirium Prejuízo funcional Comprometimento visual e/ou auditivo Comorbidade ou doença física grave Depressão Abuso de álcool História de acidente vascular cerebral ou episódio isquêmico transitório.

Na mesma revisão de modelos preditivos4, foram compilados os seguintes fatores precipitantes associados ao delirium: • • • • • • • • •

Uso de cateter urinário Uso de contenção física Qualquer evento iatrogênico Medicamentos: polifarmácia, uso de medicação psicotrópica (p. ex., antipsicótico, antidepressivo, anticonvulsivante, anticolinesterásico), uso de sedativos Infecção Alterações da glicemia e dos eletrólitos (sódio e potássio), albumina sérica anormal, ureia aumentada, elevada relação ureia/creatinina, acidose metabólica Coma Cirurgias de aneurisma de aorta, torácica não cardíaca e de neurocirurgia Internação de urgência ou em unidade de trauma.

FISIOPATOLOGIA A fisiopatologia do delirium ainda é pouco compreendida, uma vez que envolve interações dinâmicas complexas entre vários fatores de risco. Em um modelo de estudo das alterações que levam a essa condição, são considerados dois tipos de agressão ao cérebro.6 No primeiro tipo, os danos cerebrais são causados por agressão direta de um fator de risco, como hipoglicemia ou hiponatremia. No segundo, são causados pela resposta inflamatória exacerbada. Vários fatores ou condições médicas gerais associadas a delirium causam a ativação da uma cascata inflamatória com liberação de mediadores inflamatórios na corrente sanguínea. Há forte evidência de que a estimulação inflamatória aguda periférica induz a ativação de células do parênquima cerebral, a expressão de citocinas pró-inflamatórias e de outros mediadores inflamatórios no sistema nervoso central.6 Essas respostas neuroinflamatórias induzem disfunção neuronal e sináptica com consequentes sintomas cognitivos e neurocomportamentais. Adicionalmente, o envelhecimento e doenças neurodegenerativas intensificam respostas da micróglia após a estimulação por inflamação periférica e/ou infecção.

MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS

No delirium, o início é geralmente agudo, variando de horas a dias. A característica flutuante e intermitente dos sintomas demanda reavaliações periódicas para o diagnóstico. São listados sinais e sintomas que podem compor o quadro clínico: • • • •

• • • • • •

Atenção: desatenção, hipotenacidade, testes simples de atenção prejudicados (p. ex., teste seriado de 7, contagem regressiva de 20) Orientação: desorientação quanto a pessoa, tempo e/ou espaço Memória: prejuízo da memória de curto e longo prazo Linguagem: fluência anormal, compreensão reduzida, dificuldade para achar palavras, dificuldade de nomeação, agrafia, déficits na comunicação, mistura de palavras, mutismo Habilidade visuoespacial: dificuldade para transitar pelos locais onde mora (perder-se), desenhar, copiar um desenho, organizar pedaços de um quebra-cabeças Processo do pensamento: pensamento tangencial, pensamento circunstancial, afrouxamento de associações Sintomas neuropsiquiátricos: delírios, ilusões, interpretações equivocadas, alucinações, labilidade afetiva, apatia, alterações de humor Distúrbios do ciclo sono-vigília: sonolência excessiva, cochilos durante o dia, despertares noturnos, inversão do ciclo vigília-sono, pesadelos ou sonhos vividos Atividade motora: hiper ou hipoatividade motora, perseveração, comportamento sem propósito (p. ex., procurar ou escolher), delirium ocupacional e impersistência motora Sinais e sintomas físicos: tremores de ação, asterixe, mioclonia, disartria, disfunção autonômica, apetite reduzido, anormalidades do reflexo e do tônus.

Em um estudo7, os sintomas neuropsiquiátricos e comportamentais de delirium mais frequentes foram perturbação do ciclo vigília-sono (97%), agitação motora (62%), retardo motor (62%), perturbações da linguagem (p. ex., mutismo, dificuldade de compreensão) (57%), labilidade afetiva (53%), distúrbios da percepção e alucinações (50%) e delírios (31%). Os distúrbios da percepção incluem equívocos de interpretação e ilusões; por exemplo, o paciente pode ver a enfermeira manipulando soluções intravenosas e concluir que ela tenta envenená-lo (interpretação equivocada)2 ou achar que o equipo de soro é uma cobra (ilusão). As alucinações visuais são frequentes, tendem a ser silenciosas e completamente formadas; por exemplo, um cachorro andando pelo quarto. Alucinações auditivas (vozes e sons) podem ocorrer, mas são menos frequentes. Particularmente em delirium associado à abstinência de cocaína ou álcool, alucinações táteis podem ocorrer. Os delírios são invariavelmente transitórios e pobremente sistematizados; em geral, são persecutórios e, algumas vezes, de grandiosidade, somáticos ou com conteúdo específico (p. ex., síndrome de Capgras ou paramnésia reduplicativa). O conteúdo do delírio pode motivar suspeição, comportamento agressivo ou autodestrutivo e ser um dos aspectos mais difíceis de manejar no delirium. Os casos de delirium podem ser classificados em três subtipos: hiperativo, hipoativo e

misto.2 O delirium hipoativo associa-se a maior risco de mortalidade, é o mais frequente, especialmente na população idosa, e, pela pouca interação com o ambiente, o mais difícil de reconhecer. Sintomas físicos podem apresentar-se quando a condição de base que leva ao delirium se manifesta. Nos quadros de hipotireoidismo, pode haver mixedema, enquanto nos quadros de hipertireoidismo pode haver queda de cabelo, exoftalmia e agitação psicomotora. No delirium tremens, além de alucinações, podem ocorrer hipertensão, taquicardia e sudorese. Nos quadros de encefalopatia hepática e outros distúrbios tóxicometabólicos, podem estar presentes asterixe, tremor de ação, mioclonia, alteração de reflexos e outras anormalidades motoras.

DIAGNÓSTICO Uma boa parte dos casos de delirium não é reconhecida4 e, em alguns serviços de saúde, a causa pode ser a falta de uma rotina de triagem apropriada. A identificação de casos pode ser melhorada com a utilização de instrumentos padronizados. Para este fim, o Método de Avaliação de Confusão (Confusion Assessment Method – CAM) é a ferramenta mais utilizada na prática, por ter boas propriedades psicométricas8, um algoritmo para o diagnóstico segundo critérios padronizados e ser aplicável rapidamente (cerca de 5 min). O diagnóstico de delirium é primordialmente clínico. A avaliação envolve o paciente e, sempre que possível, um informante, por conta dos déficits cognitivos. O médico deve fazer anamnese detalhada, observação do comportamento, exame físico completo (incluindo avaliação neurológica) e, eventualmente, leitura de prontuários médicos. Devem ser investigados o tempo de início, a duração, os fatores de vulnerabilidade e precipitantes, o abuso ou dependência de substâncias psicoativas, a prescrição médica atual, as cirurgias prévias, o estado nutricional e a hidratação. No idoso, a investigação laboratorial inicial deve incluir hemograma completo, eletrólitos, níveis de ureia, creatinina, glicose, cálcio, magnésio e fósforo, testes de função hepática, exame de elementos e sedimentos anormais na urina, gasometria arterial, eletrocardiograma (ECG) e radiografia de tórax. A necessidade de outros exames deve ser guiada pela avaliação clínica. Eletroencefalograma (EEG) é requisitado na suspeita de crises convulsivas ou para o diagnóstico diferencial. O alentecimento generalizado é o padrão típico de EEG na maioria dos casos de delirium. Nos casos de delirium tremens, o traçado do EEG mostra frequentemente atividade rápida de baixa voltagem. O exame de neuroimagem (tomografia computadorizada ou ressonância nuclear magnética) é indicado quando há sintomas neurológicos, história de traumatismo craniano ou em idosos em pós-operatório, pela incidência aumentada de acidente vascular cerebral. Ainda que existam diferentes apresentações clínicas de delirium, a aplicação de critérios diagnósticos possibilita melhor concordância diagnóstica e comunicação entre os profissionais de saúde. O diagnóstico de delirium pode ser feito pelos critérios padronizados do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, em sua 5a

edição (DSM-5)9 e, para isto, devem estar presentes: a) Perturbação na atenção (redução na capacidade de focar, sustentar e desviar atenção) e na consciência (diminuição da orientação ambiental) b) O desenvolvimento do quadro em curto período de tempo (horas ou poucos dias) representa uma mudança na linha de base da atenção e da consciência e tende a flutuar ao longo do dia c) Uma perturbação adicional na cognição (déficit de memória, desorientação, linguagem, percepção ou habilidade visuoespacial) d) As alterações observadas nos critérios a e c não são explicadas por doença neurocognitiva preexistente e não ocorrem no contexto de uma grave perturbação do nível de consciência (p. ex., coma) e) A evidência pela história, exame físico ou achados laboratoriais de que o distúrbio é consequência fisiológica direta de outra condição médica, intoxicação ou abstinência de substâncias psicoativas, exposição a toxinas ou de múltiplas etiologias. Em um estudo7, desatenção – um dos itens dos critérios do DSM-5 – estava presente em 97% dos pacientes de uma amostra clínica, outros déficits cognitivos variaram entre 76 e 89% e a desorientação foi o menos frequente. A gravidade da desatenção correlacionava-se com a de outros déficits cognitivos, mas não com sintomas neuropsiquiátricos e comportamentais. Alguns autores propõem um tipo subsindrômico de delirium, que apresenta pelo menos um dos critérios diagnósticos propostos pelo DSM. Esse tipo costuma ser negligenciado e situa-se entre a normalidade e o diagnóstico sindrômico. Um estudo longitudinal10 evidenciou que pacientes com tipo subsindrômico tiveram pior desfecho cognitivo nos 6 meses subsequentes à alta hospitalar.

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL A apresentação clínica do delirium pode ser confundida com demência, depressão e esquizofrenia. Em comparação à demência,11 o delirium apresenta início mais rápido (horas ou dias), flutuação dos sintomas cognitivos, mais sintomas neuropsiquiátricos e maior prejuízo da atenção. O início da demência é lento e gradual e seu curso é marcado por déficit cognitivo progressivo. No EEG, o delirium apresenta mais alterações, mas pode sobrepor-se à demência. Diferente do delirium, a depressão apresenta nível preservado de consciência e atenção e memória pouco alterada. O curso da depressão pode ser episódico com possíveis recaídas. O humor predominante é depressivo. Os delírios costumam ser congruentes com o humor. Em comparação ao delirium, a esquizofrenia apresenta nível de consciência preservado, delírios estruturados e, principalmente, alucinações auditivas. Sintomas de primeira ordem de Kurt Schneider são frequentes. Evolui em surtos com deterioração. A encefalopatia de Wernicke é um importante diagnóstico diferencial de delirium, revelado entre 0,4 e 2,8% de todas necropsias e mais frequente em alcoólatras.12 Seu

diagnóstico deve ser considerado em qualquer paciente com a presença de pelo menos duas de quatro características: estado mental alterado ou memória prejudicada, anormalidades oculomotoras, disfunção cerebelar e deficiência nutricional.12 Dosagem de tiamina e imagem cerebral por ressonância nuclear magnética podem apoiar esse diagnóstico. Outros diagnósticos diferenciais possíveis são: mania, amnésia dissociativa, síndrome neuroléptica maligna e catatonia.

PREVENÇÃO E TRATAMENTO No tratamento, o objetivo é prevenir o aparecimento desse quadro, identificar e reverter causas possíveis de delirium e manejar sintomas neuropsiquiátricos (p. ex., agitação, agressividade) que põem o paciente ou terceiros em risco. A prevenção é a estratégia mais eficaz para reduzir sua frequência e suas complicações. Estima-se que até um terço dos casos de delirium possa ser prevenido.5,13 Os pacientes devem ser avaliados quanto aos fatores de risco para delirium, minuciosamente nas primeiras 24 h da internação.14 Otimização do sono, mobilização física, hidratação oral, uso de próteses auditivas e óculos diminuem a incidência de delirium.5 O uso profilático de medicamentos para prevenção de delirium ainda é controverso e não amparado pela literatura médica. A identificação do delirium e o início de seu tratamento devem acontecer o mais rápido possível. O manejo inicia-se com o tratamento não farmacológico, como medidas de desescalada para agressão e agitação psicomotora. Uma equipe multiprofissional (enfermeiros, psicólogo, clínico geral, psiquiatra) é necessária para atender às necessidades do bom cuidado aos pacientes com delirium e deve estar atenta para:15 • • • • • • • • • • • • • • •

Comunicar-se com frequência com o paciente e a família Garantir um ambiente calmo e confortável Informar sobre ruídos ou equipamentos não familiares Informar sobre ou apresentar pessoas desconhecidas no ambiente Orientar o paciente frequentemente sobre onde está e o que faz naquele lugar Fornecer calendários, relógios, sinalização e boa iluminação Facilitar visitas de amigos e familiares e, se possível, envolvê-los nos cuidados de reorientação e prevenção de danos Deixar o ambiente mais familiar, permitindo itens pessoais ou porta-retratos perto do leito Utilizar atividades que estimulem cognitivamente Corrigir qualquer déficit sensorial (p. ex., remover cera, disponibilizar óculos) Oferecer bebidas quando visitá-lo, para mantê-lo hidratado Interessar-se pela boa nutrição (p. ex., fornecer dentaduras, envolver nutricionista) Encorajar a mobilidade precoce Evitar barulhos ou iluminação que possa prejudicar o sono Durante o tratamento, a equipe médica deve ser diligente para:15

– – – – – –

Corrigir hipoxia e hipotensão Manter-se vigilante em relação à infecção Monitorar as eliminações e tratar obstipação intestinal Identificar e tratar dor Revisar as medicações (suspender as com propriedades anticolinérgicas) Evitar cateteres, aplicar medicação intravenosa ou coletar exames laboratoriais desnecessariamente – Não perturbar o sono do paciente com procedimentos ou administração de fármacos. A maioria dos casos de delirium resolve-se rapidamente. Se os déficits cognitivos não melhoram, mesmo após o tratamento, é preciso avaliar a eficácia da terapêutica realizada, pesquisar outras causas para o delirium e, por último, considerar o diagnóstico de demência. A encefalopatia de Wernicke é subdiagnosticada e ocorre mais frequentemente em pessoas com absorção comprometida (p. ex., má nutrição, hiperêmese), metabolismo aumentado (p. ex., sepse, tumores malignos) ou que recebem a administração de grandes quantidades de carboidratos (p. ex., administração intravenosa de glicose).12 É recomendada a administração de tiamina 200 mg, intramuscular ou intravenosa, 3 vezes ao dia, por 2 a 3 dias. Tiamina deve ser dada antes da administração de carboidratos. A resolução dos sintomas neurológicos é rápida, e isso ajuda a confirmar o diagnóstico. Nos casos de delirium, sedativos e antipsicóticos podem prolongar a duração do quadro ou piorar o desfecho clínico.4 Por isso, a abordagem farmacológica deve ser utilizada somente em pacientes com risco de danos para si ou terceiros, sintomas psicóticos que provoquem muito sofrimento e/ou grave agitação psicomotora que interrompam o tratamento médico essencial. No caso de delirium hipoativo, muitas vezes, não há necessidade de utilizar psicofármacos. Psicofármacos devem ser prescritos um por vez, por curto período e com a menor dose possível, ajustada para peso, idade e gravidade dos sintomas e revisada no conjunto da prescrição a cada 24 h. No tratamento dos sintomas neuropsiquiátricos e comportamentais do delirium, haloperidol é considerado fármaco de primeira linha, especialmente por ter menos efeitos anticolinérgicos, poucos metabólitos ativos e baixa propensão para sedação e hipotensão arterial. Recomendam-se doses de 1 a 2 mg (dose máxima 5 mg), via oral, com intervalos de 2 a 4 h. Na forma intramuscular, o aparecimento de efeitos colaterais motores é menor, porém há maior risco do aparecimento de torsades de pointes e os pacientes devem ser monitorados com EEG. Quando houver intervalo QTc superior a 500 milissegundos (ms), o antipsicótico deve ser suspenso e realizada avaliação cardiológica. Haloperidol pode causar sintomas extrapiramidais como acatisia, distonia e síndrome neuroléptica maligna. Evidências preliminares suportam que o uso de haloperidol antes da cirurgia diminui a duração e a intensidade do delirium pós-cirúrgico.16 Não foram observadas diferenças no controle do delirium e na incidência de efeitos colaterais entre haloperidol em baixas doses e os antipsicóticos atípicos, olanzapina (2,5 a

7,5 mg/dia) e risperidona (0,5 a 3 mg/dia).16 Esses antipsicóticos atípicos devem ser considerados nas situações em que o haloperidol provoca manifestações cardíacas, aumenta o risco de efeitos extrapiramidais ou tem que ser usado em altas doses. Olanzapina (2,5 a 7,5 mg/dia) e quetiapina (12,5 a 150 mg/dia), por apresentarem grande atividade anti-histaminérgica, podem causar sedação e piorar a confusão mental. Os antipsicóticos devem ser evitados ou utilizados com extremo cuidado em pacientes com doença de Parkinson, demência com corpos de Lewy ou intervalo QT prolongado no ECG. Não há suporte na literatura para o uso de benzodiazepínicos no tratamento do delirium não relacionado com a abstinência do álcool.17 Benzodiazepínicos podem causar sedação excessiva, prejuízo de memória, depressão respiratória, confusão mental ou agravar os sintomas de confusão mental, particularmente em pessoas com demência. Podem ser utilizados em casos específicos (p. ex., delirium tremens ou sedativos, em casos de acatisia, doença de Parkinson ou demência com corpos de Lewy); quando se faz muito necessária, a sedação pode ser usada. Lorazepam (1 a 2 mg, dose máxima 4 mg) é o benzodiazepínico de escolha por ter início rápido de ação, meia-vida curta, poucos metabólitos ativos e baixo risco de acumulação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1.

Berrios G. Delirium e confusão mental no século XIX: uma história conceitual. Rev Latinoam Psicopatol Fundam. 2011;14(1):166-89.

2.

Trzepacz P, Breitbart W, Franklin J, Levenson J, Richard Martini D, Wang P. Diretrizes para tratamento de pacientes com delirium. In American Psychiatric Association. Diretrizes para o tratamento de transtornos psiquiátricos: compêndio 2006. Porto Alegre: Artmed, 2006. p.56-79.

3.

de Lange E, Verhaak P, van der Meer K. Prevalence, presentation and prognosis of delirium in older people in the population, at home and in long term care: a review. Int J Geriatr Psychiatry. 2013;28(2):127-34.

4.

Inouye S, Westendorp R, Saczynski J. Delirium in elderly people. Lancet. 2014;383(9920):911-22.

5.

Inouye S, Bogardus SJ, Charpentier P, Leo-Summers L, Acampora D, Holford T et al. A multicomponent intervention to prevent delirium in hospitalized old patients. N Engl J Med. 1999;340(9):669-76.

6.

Cerejeira J, Firmino H, Vaz-Serra A, Mukaetova-Ladinska E. The neuroinflammatory hypothesis of delirium. Acta Neuropathol. 2010;119(6):737-54.

7.

Meagher D, Moran M, Raju B, Gibbons D, Donnelly S, Saunders J et al. Phenomenology of delirium: assessment of 100 adult cases using standardized measures. Br J Psychiatry. 2007;190(2):135-41.

8.

Wei L, Fearing M, Sternberg E, Inouye S. The confusion assessment method: a systematic review of current usage. J Am Geriatr Soc. 2008;56(5):823-30.

9.

American Psychiatry Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-5. 5. ed. Washington: American Psychiatric Publishing, 2013.

10. Cole M, McCusker J, Voyer P, Monette J, Champoux N, Ciampi A et al. Subsyndromal delirium in older long-term care residents: incidence, risk factors, and outcomes. J Am Geriatr Soc. 2011;59(10):1829-36. 11. Downing L, Caprio T, Lyness J. Geriatric psychiatry review: differential diagnosis and treatment of the 3 D’s – delirium, dementia, and depression. Curr Psychiatry Rep. 2013;15(6):365. 12. Day G, del Campo C. Wernicke encephalopathy: a medical emergency. CMAJ. 2014;186(6):E295. 13. Inouye S, van Dyck C, Alessi C, Balkin S, Siegal A, Horwitz R. Clarifying confusion: the confusion assessment method. A new method for detection of delirium. Ann Intern Med. 1990;113(12):941-8. 14. Marcantonio E, Flacker J, Wright R, Resnick N. Reducing delirium after hip fracture: a randomized trial. J Am Geriatr Soc. 2001;49(5):516-22. 15. Young J, Murthy L, Westby M, Akunne A, O’Mahony R, Guideline Development Group. Diagnosis, prevention, and management of delirium: summary of NICE guidance. BMJ. 2010;341:c3704. 16. Lonergan E, Britton A, Luxenberg J. Antipsychotics for delirium. Cochrane Database of Systematic Reviews. In: The Cochrane Library, Issue 8, Art. No. CD005594. Available from: http://cochrane.bvsalud.org/cochrane/main.php?lib=COC&​searchExp=delirium%20and%20prevention&lang=pt. 17. Lonergan E, Luxenberg J, Areosa Sastre A. Benzodiazepines for delirium. Cochrane Database of Systematic Reviews. In: The Cochrane Library, Issue 8, Art. No. CD006379. Available from: http://cochrane.bvsalud.org/cochrane/main.php?lib=COC​&searchExp=benzodiazepine%20and%20delirium&lang=pt.

Capítulo 25

SÍNDROME DE ABSTINÊNCIA ALCOÓLICA Edison Antonio de Almeida Prado Fagá, Mônica Cristina di Pietro, Thiago Marques Fidalgo e Dartiu Xavier da Silveira

INTRODUÇÃO A dependência de álcool, em seus variados graus, bem como as complicações dela advindas, têm alta prevalência na população, podendo trazer graves consequências aos indivíduos acometidos, incluindo o óbito. Estima-se que, no Brasil, 12,3% da população preencha critérios para dependência de álcool e que, nos EUA, existam cerca de oito milhões de dependentes. Neste país, por ano, ocorrem 500.000 episódios de síndrome de abstinência alcoólica (SAA) que necessitam de tratamento farmacológico. Nesse contexto, o médico deve estar familiarizado com a SAA e preparado para prover o manejo adequado de seu paciente, visando a cumprir os seguintes objetivos: tratar adequadamente os sintomas de abstinência alcoólica; evitar que a síndrome evolua para delirium tremens (DT) e morte; e, após a completa recuperação da SAA, fazer o adequado encaminhamento do paciente para o tratamento definitivo da dependência do álcool.

FISIOPATOLOGIA O álcool é um depressor do sistema nervoso central (SNC), agindo tanto pela potencialização das vias inibitórias (GABAérgicas) quanto pela inibição das vias excitatórias (glutamatérgicas). Com a exposição crônica ao álcool, ocorre a neuroadaptação, com dessensibilização dos receptores GABA (ácido gama-aminobutírico) e hipersensibilização dos receptores NMDA, na tentativa de manter a homeostase entre inibição e excitação no SNC. Assim, quando o consumo de álcool é interrompido, ou mesmo quando a quantidade de álcool ingerida é apenas menor do que a habitual, ocorre hiperestimulação glutamatérgica, entrada excessiva cálcio nos neurônios, hiperexcitabilidade do SNC e morte neuronal (Figura 25.1). É importante lembrar que, para que essa neuroadaptação ocorra, é necessária a manutenção de nível sérico de álcool alto por um período prolongado. Especula-se que a exposição contínua por 1 semana seja suficiente para o desenvolvimento de sintomas leves e 1 mês para sintomas graves de abstinência.

QUADRO CLÍNICO Os sinais e sintomas da SAA (Figura 25.2) geralmente se iniciam nas primeiras 6 h da parada ou diminuição do consumo de álcool e se resolvem entre 24 e 48 h após o início da sintomatologia, caso não haja complicações.

Figura 25.1 Relação temporal entre a interrupção do uso de álcool e o início dos sintomas. SAA: síndrome de abstinência alcoólica.

Figura 25.2 Bases biológicas da síndrome de abstinência alcoólica. Os critérios diagnósticos para a SAA são: • •

História clara de parada ou diminuição da ingestão de álcool há 24 ou 48 h em paciente com uso prolongado e pesado de álcool (Figura 25.1) Três ou mais dos seguintes sintomas e sinais: – Taquicardia ou hipertensão – Sudorese – Tremores de membros superiores, pálpebras ou língua

– – – – – – –

Insônia Náuseas ou vômitos Cefaleia Agitação psicomotora Mal-estar ou fraqueza Alucinações transitórias Convulsões do tipo grande mal.

Entre as complicações possíveis, há: Alucinose alcoólica. Trata-se de um quadro de início precoce no decorrer da SAA, com início entre 12 e 24 h e resolução em 24 a 48 h. Geralmente, as alucinações são visuais, mas podem ser de qualquer natureza. Este quadro se distingue do DT por ser precoce, sem alteração do nível de consciência e dos sinais vitais. Convulsões. As convulsões secundárias à abstinência alcoólica também ocorrem precocemente no curso da síndrome de abstinência, geralmente entre 12 e 48 h após a última dose, e são do tipo tônico-clônicas generalizadas. Elas acontecem em até 5% dos pacientes com SAA não tratados adequadamente. Importante: convulsões recorrentes ou prolongadas ou status epilepticus requerem investigação imediata para causa estrutural ou infecciosa [deve-se solicitar tomografia computadorizada (TC) de crânio e punção lombar, p. ex.]. DT. É uma grave complicação da SAA e trata-se de um quadro caracterizado por alucinações, confusão mental, taquicardia, hipertensão, hipertermia (aumento da temperatura em até 2°C), agitação e diaforese. Geralmente, tem início entre 48 e 96 h após a última dose e pode durar até 7 dias, se não houver complicações. Na maior parte dos casos, o DT encerra em 4 a 5 dias. Cerca de 5% dos pacientes com SAA desenvolvem DT, e a mortalidade deste varia de 5 a 37%, a depender da qualidade da assistência prestada ao paciente. A morte geralmente é secundária a complicações clínicas, especialmente arritmias, pancreatite e hepatite, ou à própria lesão do SNC acarretada pela hiperexcitabilidade neuronal. Os fatores de risco para desenvolvimento do DT são: • • • • •

História prévia de DT Idade > 30 anos Presença de comorbidades clínicas SAA grave mesmo com altos níveis séricos de álcool Período longo após a última dose, geralmente acima de 48 h.

CLASSIFICAÇÃO DA SÍNDROME DE ABSTINÊNCIA ALCOÓLICA A Associação Médica Brasileira divide a SAA em dois níveis, de acordo com a gravidade, e cada nível apresenta quatro aspectos do quadro clínico que podem estar alterados.

Nível I: SAA leve e moderada

• •





Aspectos biológicos: leve agitação psicomotora, tremores finos de extremidades, sudorese facial discreta, náuseas sem vômito Aspectos psicológicos: bom contato com o profissional de saúde, orientado temporoespacialmente, sem prejuízo da crítica, leve ansiedade; sem história de auto ou heteroagressividade Aspectos sociais: mora com familiares ou amigos e essa convivência está regular ou boa, mantém uma atividade produtiva, mesmo que momentaneamente afastado ou desempregado. A rede social está mantida Aspectos comórbidos: sem complicações e/ou comorbidades clínicas e/ou psiquiátricas graves.

Nível II: SAA grave •



• •

Aspectos biológicos: agitação psicomotora intensa, tremores generalizados, sudorese profusa, náuseas com vômitos, sensibilidade visual intensa, convulsões ou relato de convulsões anteriores Aspectos psicológicos: contato prejudicado com o profissional da saúde, desorientação temporoespacial, comprometimento do juízo crítico, ansiedade intensa, presença de delírios e/ou alucinações, história de auto ou heteroagressividade Aspectos sociais: mau relacionamento com familiares e amigos, sem desenvolver qualquer atividade produtiva, ausência de suporte social Aspectos comórbidos: com complicações e/ou comorbidades clínicas e/ou psiquiátricas graves.

AVALIAÇÃO DO PACIENTE Anamnese História clínica completa. Deve-se realizar a anamnese com especial atenção para a história do uso do álcool (padrão de consumo nos últimos anos; quantidade e frequência; último consumo ou diminuição do consumo; SAA anterior, com ou sem convulsões), pesquisa de comorbidades psiquiátricas e avaliação da rede de suporte social. Fatores preditores de SAA grave. Deve-se pesquisar história anterior de SAA grave; presença de alcoolemia alta sem sinais de intoxicação ou com sintomas de abstinência; uso concomitante de tranquilizantes e hipnóticos; associação de problemas clínicos ou cirúrgicos; sintomas de base moderados a graves; idade avançada; maior gravidade da dependência alcoólica.

ESCALA DE AVALIAÇÃO DE SINTOMAS A CIWA-Ar (Clinical Institute Withdrawal Assessment Scale for Alcohol Revised – Figura 25.3) é uma escala para avaliação objetiva da gravidade dos sintomas da SAA, permitindo classificação e guiando a conduta medicamentosa, inclusive provendo bases para a escolha do contexto em que o paciente poderá ser tratado.

• • •

Sintomas leves: escores menores que 10 Sintomas moderados: escores entre 10 e 14 Sintomas graves: escores maiores ou iguais a 15. Atenção: maior risco de complicação, se não tratado.

EXAMES COMPLEMENTARES O diagnóstico de SAA é exclusivamente clínico e, portanto, para sua devida confirmação, pode ser necessária uma extensiva investigação na tentativa de excluir outros diagnósticos diferenciais (p. ex., infecção, trauma, alterações metabólicas) ou a detecção de comorbidades que tragam aumento do risco de morte ou complicações para o paciente. Essa investigação frequentemente inclui: • •

Exames laboratoriais: hemograma, transaminases, coagulograma e eletrólitos Exames de imagem: radiografias (deve-se descartar a presença de fraturas ou de infecção pulmonar); tomografia de crânio (deve-se descartar a presença de hematomas, originados de possíveis quedas que o paciente não consiga relatar). O principal diagnóstico diferencial a ser considerado é o de delirium.

Figura 25.3 CIWA-Ar (Clinical Institute Withdrawal Assessment Scale for Alcohol Revised). FC: frequência cardíaca; PA: pressão arterial.

TRATAMENTO | CONCEITOS GERAIS Uma vez adequadamente descartados os diagnósticos diferenciais e detectadas as comorbidades que porventura existam, o tratamento da SAA deve ser sempre multiprofissional, visando a um olhar amplo sobre o paciente e atendimento integral às suas necessidades de saúde. Deve-se colocar o paciente em local calmo e protegido, com adequado suporte nutricional e que possibilite reavaliações frequentes, especialmente dos sinais vitais. Na maioria das vezes, o tratamento deve ocorrer em regime de internação hospitalar.

PACIENTES CLASSIFICADOS EM NÍVEL I Deve-se realizar intervenção psicoeducacional (orientar o paciente sobre o seu diagnóstico, sobre a dependência do álcool e sobre a síndrome de abstinência) e prover o adequado acompanhamento clínico, por exemplo, para ambulatório especializado, onde o tratamento para a fase de privação aguda será feito de acordo com a necessidade.

PACIENTES CLASSIFICADOS EM NÍVEL II O tratamento deve ser realizado na emergência clínica-psiquiátrica. Nesse caso, utiliza-se a terapia guiada por sintomas, em vez de uma terapia de doses pré-fixadas. Uma das vantagens dessa abordagem é o uso de menor concentração de medicação e menor duração do tratamento. Sua principal desvantagem é o risco teórico de maiores taxas de convulsão, especialmente em pacientes com história prévia de SAA, embora não haja evidências que comprovem tal risco. A família deve ser orientada do ponto de vista psicoeducacional.

TRATAMENTO FARMACOLÓGICO A SAA moderada a grave deve sempre ser tratada com farmacoterapia, buscando recuperar a homeostase metabólica (glicose, tiamina e fluidos) e reduzir a irritabilidade do SNC com o uso de benzodiazepínicos.

Benzodiazepínicos É recomendada a administração de benzodiazepínicos por via oral. Essa recomendação torna-se medida obrigatória em ambientes que não tenham estrutura para lidar com rebaixamento do nível de consciência, insuficiência respiratória e parada cardíaca, consequências possíveis do uso de benzodiazepínicos intravenosos. A quantidade total de benzodiazepínicos que foi necessária nas primeiras 24 h do tratamento da SAA deve ser calculada e esse valor deve ser utilizado para determinar a dose do dia subsequente, que

deve ser pelo menos 50% da dose do dia anterior. Os benzodiazepínicos devem ser utilizados por 2 a 5 dias, mas alguns pacientes com SAA grave podem necessitar de 10 dias ou mais de tratamento. Os benzodiazepínicos têm eficácia comprovada no tratamento da SAA e não há evidência de superioridade de eficácia entre si. Seus custos também não apresentam variações importantes. No tratamento ambulatorial, aqueles com rápido início de ação (lorazepam, alprazolam) devem ser evitados, quando possível, em função de seu maior potencial de abuso. Os benzodiazepínicos de ação longa, como o diazepam, são mais eficazes na diminuição do risco de convulsão, mas aumentam o risco de sedação excessiva. Em pacientes hepatopatas e idosos, é preferível utilizar o lorazepam, que não tem metabolismo hepático e, portanto, apresenta menor risco de efeitos colaterais graves. Recomenda-se o seguinte esquema terapêutico: • •

Diazepam 10 a 20 mg, via oral (VO), com reavaliação a cada hora. A dose deve ser repetida até controle dos sintomas, até a dose máxima de 160 mg em 24 h Lorazepam 2 mg VO, com reavaliação a cada hora. A dose deve ser repetida até o controle dos sintomas, até a dose máxima de 24 mg em 24 h. Deve ser preferido em hepatopatas e idosos.

Outros agentes sedativo-hipnóticos e anticonvulsivantes Não são recomendados em virtude da menor eficácia e menor margem de segurança, como é o caso do fenobarbital. Diversos estudos já demonstraram a ineficácia da fenitoína no tratamento e na prevenção da SAA e de suas complicações.

Betabloqueadores Não devem ser utilizados no tratamento da SAA por não terem atividade anticonvulsivante e terem delirium como um possível efeito colateral. No entanto, podem ser úteis no manejo dos sintomas autônomos, mas sempre com uso concomitante de benzodiazepínicos. Devese tomar cuidado especial, uma vez que, ao diminuírem os sintomas autônomos, a gravidade do quadro pode ser mascarada.

Carbamazepina Não há evidências de eficácia no tratamento de sintomas graves da SAA e no DT e, assim, não deve ser utilizada em monoterapia.

Neurolépticos Esses medicamentos diminuem o limiar convulsígeno e devem ser evitados. Seu uso pode ser justificável caso o paciente apresente comorbidade psiquiátrica descompensada e necessite do uso de antipsicóticos. Além disso, obrigatoriamente, seus sintomas de abstinência já foram devidamente controlados com benzodiazepínicos.

Magnésio Não há evidência de benefício na SAA. Deve ser usado apenas para reposição, quando necessário.

Tiamina Deve-se sempre usar essa medicação antes de administrar glicose, na tentativa de prevenir a síndrome de Wernicke-Korsakoff. A dose é de 100 mg, 3 vezes/dia, intramuscular (IM). Nos EUA, os benzodiazepínicos são considerados fármacos de primeira escolha para o tratamento da SAA e na prevenção das convulsões. Já na Europa, a carbamazepina, o clormetiazol (não disponível no Brasil e nos EUA) e o valproato são frequentemente utilizados.

O QUE NÃO FAZER • • • • •

Hidratar indiscriminadamente Administrar glicose sem ter usado tiamina Administrar clorpromazina, por conta da diminuição do limiar convulsígeno que esse fármaco pode causar Hidantalizar Administrar diazepam intravenoso, sem recursos para reverter uma possível parada cardiorrespiratória.

QUANDO INTERNAR O PACIENTE • • • • • • •

Pacientes com sintomas moderados a graves Pacientes que não consigam fazer uso de medicação por via oral Pacientes sem rede de suporte social que garanta tratamento ambulatorial adequado Paciente com doença psiquiátrica ou clínica descompensada DT atual ou prévio Convulsões secundárias a SAA atuais ou prévias Paciente gestante

BIBLIOGRAFIA American Psychiatric Association. Referência rápida às diretrizes para o tratamento de transtornos psiquiátricos: compêndio 2006. Porto Alegre: Artmed, 2007. Carlini EA. II Levantamento domiciliar sobre o uso de drogas psicotrópicas no Brasil: estudo envolvendo as 108 maiores cidades do país: 2005. Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, 2006. Kosten TR, O’Connor PG. Management of drug and alcohol withdrawal. N Engl J Med.

2003;348:1786. Laranjeira R, Nicastri S, Jerônimo C, Marques AC. Consenso sobre a Síndrome de Abstinência do Álcool (SAA) e o seu tratamento. Rev Bras Psiquiatr. 2000;22(2):62-71. Malcolm R, Myrick H, Roberts J, Wang W, Anton RF, Ballenger JC. The effects of carbamazepine and lorazepam on single versus multiple previous alcohol withdrawals in an outpatient randomized trial. J Gen Intern Med. 2002;17:349-55. Mayo-Smith MF. Pharmacological management of alcohol withdrawal. a meta-analysis and evidence-based practice guideline. JAMA. 1997:278(2). McIntosh C, Chick J. Alcohol and the nervous system. J Neurol Neurosurg Psychiatry. 2004;75(Suppl III) iii16-iii21. Poikolainen K, Alho H. Magnesium treatment in alcoholics. A randomized clinical trial. Substance Abuse Treatment, Prevention, and Policy. 2008;3:1. Ritson B. ABC of alcohol. Tratment for alcohol related problems. BMJ. 2005;330. Rogawaski MA. Update on the neurobiology of alcohol withdrawal seizures. Epilepsy Currents. 2005;5(6):225-30. Silveira DX, Moreira FG. Panorama atual de drogas e dependências. São Paulo: Atheneu, 2006. Silveira DX, Niel M, Julião A. Diagnóstico e tratamento dos transtornos relacionados com o uso de álcool (1649-1655). In: Atualiazação terapêutica. São Paulo: Artes Médicas, 2005. Tsai G, Gastfriend DR, Coyle JT. The glutamatergic basis of human alcoholism. Am J Psychiatry. 1995;152:332. Yost DA. Alcohol withdrawal syndrome. Am Fam Physician. 1996;54:657.

Capítulo 26

SÍNDROME NEUROLÉPTICA MALIGNA Victor Siciliano Soares e Ana Cristina Chaves

INTRODUÇÃO Emergência neurológica potencialmente fatal, associada ao uso de antipsicóticos, caracterizada por alteração do estado mental, rigidez, febre e disautonomia. A mortalidade é decorrente das manifestações disautonômicas e de complicações sistêmicas provocadas pela doença. Atualmente, a mortalidade gira em torno de 10 a 20%. Requer rápida suspeita diagnóstica e tratamento.

EPIDEMIOLOGIA A incidência varia entre 0,2 e 3% dos pacientes em uso de antipsicóticos, de acordo com a população estudada e o rigor diagnóstico aplicado. É mais frequente em pacientes internados utilizando altas doses de antipsicóticos. Pode acometer indivíduos de qualquer idade e, apesar de ser mais frequente em adultos jovens, a idade não constitui um fator de risco. Medicações associadas são mais frequentemente utilizadas com antipsicóticos típicos de alta potência (p. ex., haloperidol). Entretanto, agentes típicos de baixa potência (p. ex., clorpromazina) e agentes atípicos (p. ex., risperidona, olanzapina, quetiapina) também estão frequentemente associados, assim como agentes antieméticos (p. ex., metoclopramida). A retirada ou diminuição da dose de medicações agonistas dopaminérgicas na doença de Parkinson (p. ex., L-dopa) pode precipitar uma síndrome semelhante. Geralmente se trata de um quadro mais leve, com prognóstico um pouco melhor.

FATORES DE RISCO • • • • • • • •

Altas doses de antipsicóticos Aumento rápido de dose Aplicação parenteral Catatonia aguda Agitação psicomotora intensa Uso concomitante de lítio Antipsicóticos de depósito Uso concomitante de substâncias de abuso

• • •

Comorbidade neurológica Desidratação Outra condição médica aguda (trauma, cirurgia, infecção).

PATOGÊNESE A causa da síndrome neuroléptica maligna (SNM) é desconhecida. Supostamente, a síndrome teria alguma relação com o bloqueio central de receptores de dopamina, principalmente da via nigroestriatal. Alguns outros neurorreceptores também parecem estar envolvidos direta ou indiretamente [ácido gama-aminobutírico (GABA), serotonina, norepinefrina e acetilcolina].

QUADRO CLÍNICO Uso de medicação que bloqueia neurotransmissores dopaminérgicos + tétrade clínica característica: febre, rigidez, alteração do estado mental e instabilidade autonômica. •



• •

Alteração do estado mental: é o sintoma inicial em 82% dos pacientes. Geralmente se dá como delirium hiperativo com confusão mental ou catatonia e mutismo. Pode evoluir com estupor e coma Rigidez muscular: grave e generalizada. Pode apresentar resistência total à mobilização passiva, com “rigidez em cano de chumbo”, com tremor sobreposto ou com “sinal da roda denteada”. Menos frequentes: distonia, opistótono, trismo, coreia, outras discinesias, sialorreia, disartria e disfagia Hipertermia: sintoma definidor de acordo com a maioria dos critérios diagnósticos; > 38°C em 87% dos casos e > 40°C em 40% Instabilidade autonômica: taquicardia (88%), oscilação da pressão arterial (61 a 77%), taquipneia (73%). Podem ocorrer arritmias e geralmente apresenta diaforese importante. A apresentação mais frequente (70%) segue a seguinte ordem: Alteração do estado mental S rigidez muscular S hipertermia (pode demorar até 24 h para aparecer) S disautonomia As alterações laboratoriais mais comuns são:



• • •

Elevação de creatinofosfoquinase (CPK): apesar de inespecífica, em casos suspeitos, níveis acima de 1.000 UI/l reforçam a hipótese. Pode atingir níveis de até 100.000 UI/l. Consequente à rigidez muscular e, portanto, pode apresentar níveis mais baixos quando esta for mais leve Leucocitose: entre 10.000 e 40.000, com possível desvio à esquerda Alterações hidreletrolíticas: hipocalcemia, hipomagnesemia, hipo ou hipernatremia, hiperpotassemia e acidose metabólica Mioglobinúria e insuficiência renal aguda: consequente à rabdo-miólise

• •

Ferro sérico baixo: marcador sensível (92 a 100%), porém pouco específico Elevação discreta de desidrogenase láctica (DHL), fosfatase alcalina e transaminases.

Pode ser observado um quadro clínico mais leve, se suspeitado precocemente ou com o uso de agentes menos potentes.

DIAGNÓSTICO Não há critérios diagnósticos validados para a SNM. Sempre que suspeitada, algumas medidas devem ser tomadas até a exclusão de todos os diagnósticos diferenciais (ver Tratamento). É fundamental que se solicite algum exame de imagem cerebral [ressonância magnética (RM) ou tomografia computadorizada (TC) de crânio] e coleta de líquido cefalorraquidiano para afastar causas estruturais ou infecciosas. A TC e a RM geralmente são normais ou apresentam edema cerebral difuso. Deve-se solicitar todos os exames laboratoriais que podem vir alterados, além dos necessários para afastar os diagnósticos diferenciais possíveis.

DIAGNÓSTICOS DIFERENCIAIS •









Síndrome serotoninérgica: principal diagnóstico diferencial. Causada por agentes serotoninérgicos. Pode ser diferenciada por tremores, hiper-reflexia, mioclonia, ataxia, náuseas, vômitos e diarreia. A rigidez e a hipertermia geralmente são mais leves Hipertermia maligna: apesar da semelhança, acontece em contexto clínico bem diverso. Síndrome genética rara desencadeada pelo uso de succinilcolina e agentes anestésicos inalatórios halogenados Catatonia maligna: muito difícil de diferenciar; em alguns casos, é impossível. Geralmente apresenta pródromos comportamentais, como agitação e psicose. Quadro motor mais rico, com flexibilidade cérea, movimentos repetitivos estereotipados ou postura distônica Outras síndromes relacionadas com medicamentos: descontinuação da terapia com baclofeno intratecal, superdosagem por agentes anticolinérgicos, cocaína ou êxtase podem promover quadros clínicos semelhantes Outras condições que devem ser consideradas: infecções do SNC, sepse, convulsões, hidrocefalia aguda, lesão aguda de medula, infarto agudo do miocárdio (IAM), distonia aguda, tétano, tireotoxicose, feocromocitoma, intoxicação aguda por substâncias, delirium tremens, porfiria aguda.

TRATAMENTO Consiste na retirada do agente causador e de agentes que podem contribuir para agravamento do quadro (lítio, anticolinérgicos, agentes serotoninérgicos). Os cuidados de suporte intensivo são de fundamental importância. Várias complicações

são frequentes, graves e potencialmente fatais. Entre elas: • • • • • • • • • • • • • • •

Desidratação Trombose venosa profunda (TVP) Desequilíbrio hidreletrolítico Trombocitopenia Falência renal aguda pela rabdomiólise Coagulação intravascular disseminada Arritmias (inclusive torsades de pointes e parada cardíaca) Falência respiratória por rigidez da parede torácica, pneumonia aspirativa e/ou tromboembolismo pulmonar IAM Tromboflebite venosa profunda Cardiomiopatia Convulsões secundárias à hipertermia Desarranjos metabólicos Falência hepática Sepse. As medidas de suporte devem ser as seguintes:

• • • • • •

Manter a estabilidade cardiorrespiratória (ventilação mecânica, antiarrítmicos, marcapassos podem ser necessários) Manter a volemia com fluidos intravenosos (IV); se a CK estiver muito elevada, realizase hiper-hidratação com alcalinização da urina Controlar hipertemia com cobertores de resfriamento, bolsas de gelo nas axilas e/ou lavagem gástrica com água fria Controlar pressão arterial, se muito elevada (fármacos sugeridos: clonidina ou nitroprussiato) Prevenir TVP com heparina ou heparina de baixo peso molecular Usar benzodiazepínicos para controlar agitação, se necessário.

TERAPÊUTICA ESPECÍFICA Apesar da falta de evidência, há relatos de casos de sucesso terapêutico com algumas medicações. São eles: •



• •

Dantroleno: relaxante muscular que ajuda a controlar a rigidez muscular e a hipertermia 1 a 2,5 mg/kg IV. Dose máxima 10 mg/kg/dia. Contraindicado em caso de prejuízo de função hepática Bromocriptina: agonista dopaminérgico geralmente bem tolerado por pacientes psicóticos; 2,5 mg por sonda nasogástrica (SNG) a cada 6 h. Dose máxima de 40 mg/dia. Manter por até 10 dias com redução gradual da dose Amantadina: alternativa à bromocriptina. Dose inicial de 100 mg VO ou SNG e dose máxima de 200 mg a cada 12 h Eletroconvulsoterapia (ECT): alguns relatos de caso mostraram sucesso terapêutico

com ECT. Sugere-se não utilizar anestésicos que possam causar hipertermia maligna.

PROGNÓSTICO A maioria se resolve em 2 semanas, geralmente entre 7 e 11 dias. Tal prazo é prolongado em casos de medicação de depósito ou dano cerebral decorrente de hipoxia ou hipertermia prolongada. Mortalidade de 5 a 20%, sendo os principais fatores de risco para pior prognóstico a falência renal pela rabdomiólise (50%) e drogadição comórbida (38,5%). Orientações para reintrodução do neuroléptico: • • • • • •

Aguardar pelo menos 2 semanas após a remissão dos sintomas Evitar agentes de alta potência Iniciar com doses mais baixas e aumentar gradualmente Evitar uso concomitante de lítio Prevenir desidratação Monitorar com rigor o reaparecimento de sintomas da SNM.

BIBLIOGRAFIA Caroff SN, Mann SC. Neuroleptic malignant syndrome. Med Clin North Am. 1993;77:185. Langan J, Martin D, Shajahan P, Smith DJ. Antipsychotic dose escalation as a trigger for neuroleptic malignant syndrome (NMS): literature review and case series report. BMC Psychiatry. 2012;12:214. Levenson JL. Neuroleptic malignant syndrome. Am J Psychiatry. 1985;142:1137. Moscovich M, Nóvak FTM, Fernandes, AF, Bruch T, Tomelin T, Nóvak EM et al. Neuroleptic malignant syndrome. Arq Neuropsiquiatr 2011;69(5):751-5. Pelonero AL, Levenson JL, Pandurangi, AK. Neuroleptic malignant syndrome: a review. Psychiatric Services. 1998;49. Perry PJ, Wilborn CA. Serotonin syndrome vs neuroleptic malignant syndrome: a contrast of causes, diagnoses, and management. Annals Of Clinical Psychiatry. 2012;24(2):15562. Shalev A, Hermesh H, Munitz H. Mortality from neuroleptic malignant syndrome. J Clin Psychiatry. 1989;50:18. Velamoor VR. Neuroleptic malignant syndrome. recognition, prevention and management. Drug Saf. 1998;19:73.

Capítulo 27

SÍNDROME SEROTONINÉRGICA Victor Siciliano Soares e Ana Cristina Chaves

INTRODUÇÃO É o conjunto de sinais e sintomas provocados pelo aumento da atividade de serotonina no sistema nervoso central (SNC).

ETIOLOGIA Na maior parte dos casos, é causada por superdosagem de alguma medicação serotoninérgica ou por algumas associações medicamentosas. Pode ocorrer também em doses terapêuticas. Medicações que podem precipitar ou, quando em associação, contribuir para uma síndrome serotoninérgica: antidepressivos tricíclicos, inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS), inibidores da monoaminoxidase (IMAO; mais comum), opioides, antitussígenos, antibióticos, antieméticos, agentes antimigranosos, produtos fitoterápicos, ecstasy (metilenedioximetanfetamina).

QUADRO CLÍNICO O quadro clínico é muito variável e as manifestações podem ser desde um discreto tremor de extremidades e diarreia, nos casos mais leves, até um quadro de delirium, rigidez neuromuscular, hipertermia e óbito, nos casos extremos. Os sintomas da síndrome serotoninérgica podem ser divididos em três grupos: • • •

Alteração do estado mental: agitação, ansiedade, desorientação, inquietação Alterações neuromusculares: tremores, clônus, hiper-reflexia, rigidez muscular, sinal de Babinski bilateral, acatisia Hiperatividade autonômica: hipertensão, taquicardia, taquipneia, hipertermia, midríase, diaforese, mucosas ressecadas, flushing, calafrios, vômitos, diarreia, arritmias, ruídos hidroaéreos intestinais aumentados.

CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS Em razão da grande variabilidade dos sintomas, é necessário usar critérios diagnósticos. A seguir, são apresentados, respectivamente nos Quadros 27.1 e 27.2, dois critérios diagnósticos validados com boa acurácia (cerca de 90%).

A gravidade da síndrome pode ser avaliada pelos sintomas encontrados. A Figura 27.1 representa os sintomas encontrados nos casos mais leves em direção aos casos mais graves. Quadro 27.1 Critérios de Hunter. Presença de agente serotoninérgico mais um dos critérios seguintes: •

Clônus espontâneo



Clônus induzido + agitação ou diaforese



Clônus ocular + agitação ou diaforese



Tremor e hiper-reflexia



Hipertonia + temperatura > 38°C + clônus ocular ou clônus induzido

Critérios de Hunter: (especificidade 84% e sensebilidade 97%) Adaptado de Dunkley et al. (2003).1

Quadro 27.2 Critérios de Sternbach. •

Adição recente ou aumento de dose de agente serotoninérgico



Exclusão de outras etiologias (infecção, abuso de substâncias, abstinência etc.)



Sem adição ou aumento recente de agentes neurolépticos



Pelo menos três dos sintomas seguintes: – Alteração do estado mental (confusão, hipomania) – Agitação – Mioclonia – Hiper-reflexia – Diaforese – Calafrios – Tremores

– Diarreia – Alteração na coordenação motora – Febre

Figura 27.1 Sintomas observados em ordem crescente de gravidade.

MANEJO E TRATAMENTO O tratamento é variável, de acordo com a gravidade do quadro. De modo geral, deve-se suspender o agente causador, oferecer suporte clínico e usar benzodiazepínicos (diazepam) para controlar a agitação. A contenção mecânica só deve ser feita com sedação, pois pode promover contrações musculares isométricas e consequente aumento da temperatura corporal. Casos leves. Benzodiazepínicos para aliviar sintomas. Casos moderados. Correção de sinais vitais com fluidos intravenosos (IV), sedação e monitoramento rigoroso da temperatura. Casos graves (temperatura > 41,1°C). Correção agressiva dos sinais vitais (fluidos e medicações vasoativas), sedação imediata, intubação orotraqueal, correção da temperatura. Considerar o uso de fármacos que bloqueiam receptores 5-HT2A: • •

Cipro-heptadina: via oral (VO) ou por sonda nasogátrica; dose inicial de 12 mg e 2 mg a cada 2 h até remissão dos sintomas Olanzapina: 10 mg sublingual.

EVOLUÇÃO Geralmente a intoxicação se resolve após 24 h. Tal intervalo pode ser maior em pacientes com disfunção renal ou em metabolizadores lentos.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 1.

Dunkley EJC, Isbister GK, Sibbritt D, Dawson AH, Whyte IM. The Hunter serotonin toxicity criteria: simple and accurate diagnostic decision rules for serotonin toxicity. Q J Med. 2003;96:635-42.

BIBLIOGRAFIA Boyer EW, Shannon M. The serotonin syndrome. N Engl J Med. 2005;352(11):1112-20. Volpi-Abadie J, Kaye AM, Kaye AD. Serotonin syndrome. Ochsner J. 2013;13(4):533-40.

SEÇÃO V

PSIQUIATRIA FORENSE

Capítulo 28

ASPECTOS ÉTICOS E LEGAIS DA PRÁTICA PSIQUIÁTRICA Luciana de Moraes Bernal e Gustavo Machado Barros

INTRODUÇÃO A psiquiatria forense é uma subespecialidade da psiquiatria que lida com a interface entre a lei e a psiquiatria. Nessa interface, também estão presentes temas que aludem à ética médica. A ética médica tradicional tratou de temas como beneficência, não maleficência, integridade pessoal, paternalismo, capacidade técnica, sigilo profissional, respeito ao paciente, não exploração e não discriminação dos enfermos, desprendimento material, veracidade, fidelidade, caridade e responsabilidade social do médico, e vedou o aborto, a eutanásia e a assistência ao suicídio. Nas últimas décadas, agregou-se também à discussão a questão da autonomia do paciente.1 Todas essas questões se fazem presentes na prática da clínica psiquiátrica. No hospital geral, o psiquiatra geralmente é chamado para atuar em situações de crise. Trabalha em condições subadequadas, nas quais tem que ser muito flexível, baseando suas decisões em poucas informações, em um curto espaço de tempo, fora de um ambiente psiquiátrico, contando com uma equipe assistencial sobre a qual tem pouco controle. Além disso, tem que raciocinar sobre uma condição delicada de fatores orgânicos e psicodinâmicos. Essas características de seu trabalho podem torná-lo mais suscetível a vários dilemas éticos e de situações que trazem repercussões jurídicas.2 Neste capítulo, serão discutidos alguns dos temas anteriormente citados, com o objetivo de auxiliar a reflexão do residente na prática clínica.

RELAÇÃO CONTRATUAL O “contrato terapêutico” estabelecido entre médico e paciente pressupõe confidencialidade, cooperação e responsabilidades compartilhadas. Se essa relação não puder ser estabelecida com um paciente por conta do seu estado mental, deve-se estabelecer com um familiar ou uma pessoa próxima ao paciente. Se a relação estabelecida não for por motivos terapêuticos, como no caso da perícia forense, isso deve ser claramente explicado ao paciente. Respeitadas certas limitações (risco de morte, disponibilidade de outro profissional), a condição de autonomia do médico permite-lhe recusar-se a assumir um tratamento, com o cuidado de orientar o paciente, facilitando-lhe o acesso a outro serviço ou profissional.2

SIGILO MÉDICO Do ponto de vista legal, o segredo profissional é a obrigação devida às confidências recebidas pelo médico ou de tudo que vier a perceber ou a deduzir em sua relação com o paciente, cuja revelação possa causar-lhe dano. Esse preceito médico estende-se a outros membros da equipe que assistem o paciente. Há situações em que a quebra do sigilo se faz necessária, a fim de proteger a saúde ou o bem-estar do paciente ou quando existe um bem jurídico maior a ser preservado. A violação do sigilo profissional só é considerada crime quando houver intenção manifesta da vontade de praticá-la. Deixa de ser violação quando o paciente ou seu representante legal autoriza a revelação de fatos considerados sigilosos. De acordo com o Código de Ética Médica, é vedado ao médico: Art. 73. Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício da profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente. Parágrafo único. Permanece proibição: a) mesmo que o fato seja de conhecimento público ou o paciente tenha falecido; b) quando de seu depoimento como testemunha. Nessa hipótese, o médico comparecerá perante a autoridade e declarará seu impedimento; c) na investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal. Art. 154 do Código Penal: É proibido revelar a alguém, sem justa causa, segredo de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, cuja revelação possa produzir dano a outrem. Art. 66 da Lei das Contravenções Penais: É proibido deixar de comunicar à autoridade competente: II. Crime de ação pública, de que teve conhecimento no exercício da medicina ou de outra profissão sanitária, desde que a ação penal não dependa de representação e a comunicação não exponha o cliente a procedimento criminal. Art. 207 do Código de Processo Penal: São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devem guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar seu testemunho.2

CAPACIDADE PARA RECUSAR TRATAMENTO O Código Civil de 2002, em seu artigo terceiro, refere como “incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos” ou que, “mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade”. Com frequência, encontram-se pacientes psiquiátricos perfeitamente ajustados à vida

social e, sob tratamento, que apenas em ocasião excepcional teriam ausência de discernimento ou impedimento de expressar de maneira plena e livre a sua vontade. No hospital-geral o psiquiatra normalmente é chamado para determinar se o paciente está em condições mentais para, entendida a necessidade de um procedimento diagnóstico ou terapêutico, recusá-lo, ou convencer o paciente a aceitar um procedimento proposto pela equipe médica. Nessa situação, o psiquiatra deve: • • •

• •

Certificar-se de que foi dada ao paciente informação adequada Avaliar se a capacidade de julgamento, em relação a uma situação específica, encontra-se limitada por um transtorno mental ou ideias irrealistas Criar condições para uma tomada de decisão, quer revertendo uma situação de incapacidade específica temporária (ao melhorar as condições mentais do paciente), quer diminuindo bloqueios de comunicação entre as partes envolvidas Auxiliar a equipe assistencial a aceitar a decisão do paciente Oferecer apoio à família, que precisa acatar o desejo do paciente, ou tomar uma decisão, no caso de procedimentos com crianças ou com pessoas incapazes de decidir.

Entre as condições psiquiátricas que podem interferir na capacidade de o paciente avaliar e decidir sobre sua situação clínica, incluem-se demência, delirium, psicoses, depressão grave, dor e uso de substâncias psicoativas. A maioria dos transtornos mentais não interfere na capacidade de decidir sobre um procedimento médico.2

INTERNAÇÃO PSIQUIÁTRICA De acordo com o Art. 6o da Lei 10.216/2001, a internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos. São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica: • • • •

Internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário Internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro Internação psiquiátrica voluntária que se torna involuntária em sua evolução Internação compulsória: aquela determinada pela justiça.

A pessoa que solicita voluntariamente sua internação, ou quem a consente, deve assinar, no momento da admissão, uma declaração de que optou por esse regime de tratamento. O término da internação voluntária se dá por solicitação escrita do paciente ou por determinação do médico-assistente.3 Em algumas situações clínicas, a internação se faz ora prudente, ora mesmo imperativa, devendo o médico indicá-la. A decisão do psiquiatra em indicar a internação, esgotados os recursos extra-hospitalares para o tratamento ou manejo do problema, ou mesmo perante a gravidade/emergência do caso, acaba por se constituir, mais frequentemente, nas seguintes apresentações: presença de transtorno mental (exceto transtorno de personalidade antissocial), além de, no mínimo, uma das seguintes

condições: • • • • •

Risco de autoagressão ou de heteroagressão Risco de prejuízo moral ou patrimonial Risco de agressão à ordem pública Incapacidade grave de autocuidados Risco de morte ou de prejuízos graves à saúde.

É nas condições clínicas e apresentações anteriormente descritas que o Estado, sob a Lei no 10.216/2001, já citada, confere ao médico especialista, com o consentimento da família ou responsável legal do paciente, a possibilidade de internação involuntária, mediante comunicação devidamente justificada ao Ministério Público Estadual no prazo de até 72 h após sua ocorrência, seguida de notificação circuns-tanciada ao mesmo órgão quando da alta hospitalar. Na ausência da família, ou em sua não concordância, pode o Estado autorizar a internação compulsória, mediante decisão de juiz competente, que levará em conta o laudo médico especializado.4 Na internação compulsória, quem determina a natureza e o tipo de tratamento a ser ministrado ao paciente é o médico-assistente, que poderá prescrever alta hospitalar no momento em que entender que aquele se encontra em condições para tal.5 A autorização da alta será dada pelo juiz competente.

ALTA A PEDIDO A alta a pedido deve ser analisada com prudência. Se consentida, paciente e responsável devem assinar um documento após esclarecimentos feitos pelo médico. Entretanto, se houver riscos e o responsável autorizar, a internação voluntária deverá ser transformada em involuntária. Se o parecer da equipe médica contraindicar a alta e, ainda sim, o paciente e/ou os familiares a exigirem, deve-se acionar autoridade judicial.2

SUICÍDIO No Brasil, considera-se delito a indução, a cooperação ou a execução do suicídio. Portanto, suicídio assistido, ou seja, realizado com auxílio médico, é condenável. A Constituição Federal determina, em seu Art. 153, que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”. Aquele que violar esse direito cairá nas sanções do Código Penal, que trata de crimes contra a liberdade pessoal no Art. 146. Contudo, no parágrafo terceiro desse artigo, há o esclarecimento de que não se compreendem nessa disposição as intervenções médicas ou cirúrgicas sem o consentimento do paciente em casos de iminente risco de morte, nem a “coação exercida para impedir o suicídio”. Assim, diante de iminente risco de morte por suicídio, o médico terá amplo amparo legal para proceder a uma internação involuntária.2 É importante documentar no prontuário ou na ficha médica do paciente a possibilidade de suicídio, além de explicitar a decisão de internar ou não o paciente. Uma vez

identificado o problema, são necessárias evoluções contínuas, avaliando a resposta ao tratamento.6

DOENÇA MENTAL E CRIME Tanto a saúde mental quanto a psiquiatria forense ou a criminologia são ciências autônomas, com objetivos de estudos próprios. Ocorre que, em alguns casos, elas são ciências complementares. Por exemplo, quando um indivíduo que infringiu a lei for acometido por um transtorno mental no momento do ato ilícito e for possível estabelecer o nexo causal, ele será considerado inimputável ou semi-imputável.7 De acordo com o Art. 26 do Código Penal, é considerado inimputável o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinarse de acordo com esse entendimento. Nesse caso, é isento de pena. A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado, não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, sendo, nesse caso, considerado semi-imputável.8

ATOS PERICIAIS EM PSIQUIATRIA O ato médico pericial, além de elucidar o diagnóstico, destina-se a esclarecer à autoridade que o solicitou, dentre outros pontos, sobre: capacidade civil, capacidade laboral, invalidez, imputabilidade penal ou prognóstico de risco de violência.5

CONSIDERAÇÕES FINAIS Os vínculos éticos fortalecem a relação entre a medicina e a sociedade, possibilitando que o médico experimente essa relação de modo efetivo e refletido. Sabe-se que a medicina psiquiátrica sofre pressões que tendem a alterar a posição e a função do médico. Assim, é necessária a reflexão ética para resistir a essas pressões tanto no plano individual quanto no coletivo.9

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1.

Taborda JGV. Prefácio – Ingenuidade e revolução. In: Alves LCAA. (org.). Ética e psiquiatria. 2.ed. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, 2007. p.16.

2.

Botega NJ. Aspectos éticos e legais. In: Botega NJ. (org.). Prática psiquiátrica no hospital geral – interconsulta e emergência. 3.ed. Porto Alegre: Artmed, 2012.

3.

Brasil. Lei no 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das

pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. 4.

Lima MA. Internação involuntária em psiquiatria: legislação e legitimidade, contexto e ação. In: Alves LCAA. (org.). Ética e psiquiatria. 2.ed. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, 2007. p.115-7.

5.

Conselho Federal de Medicina. Consolida as diversas resoluções da área da Psiquiatria e reitera os princípios universais de proteção ao ser humano, à defesa do ato médico privativo de psiquiatras e aos critérios mínimos de segurança para os estabelecimentos hospitalares ou de assistência psiquiátrica de quaisquer naturezas, definindo também o modelo de anamnese e roteiro pericial em psiquiatria. Resolução no 2.507/2013. D.O.U. de 12 de nov. de 2013, Seção I, p.165-71.

6.

Camargo IBC. In: Alves, LCAA (org.). Ética e psiquiatria. 2.ed. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, 2007. p.133.

7.

Cohen C. Doença mental e crime. In: Alves LCAA. (org.). Ética e psiquiatria. 2.ed. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, 2007. p.151.

8.

Jesus DE. Direito penal. Volume I, Parte Geral. 31.ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

9.

Silva FL. Posfácio. In: Alves LCAA (org.). Ética e psiquiatria. 2.ed. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, 2007. p.236.

Related Documents


More Documents from "Fernando Quevedo"