Mezan Kehl Cesarotto A Jovem Homossexual Ficcao Psicanalitica

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Rosa Maria Gouvêa Abras (Organizadora)

A JOVEM HOMOSSEXUAL FICÇÃO PSICANALÍTICA

No infcio do século, uma bela jovem coloca sua reputação e seu relacionamento familiar em risco ao se apaixonar por uma mulher de má fama, uma conhecida deml-mondaine da sociedade vienense. Esta estória se tomou conhecida no meio psicanalltlco como ·o caso da jovem homossexual". Sua leitura nos leva a perguntar: o que teria acontecido à jovem após a tentativa fracassada de tratamento com Freud? Teria·se casado à força como era o desejo de seu pai? Ao imaginá-la dez anos depois, por exemplo, como teria sido afetada pelo episódio da sua paixão pela dama? O leitor já deve estar percebendo que estas perguntas são pura fantasia. Provavelmente efe já se pegou muitas vezes fantasiando outros destinos para os personagens de um livro que tenninou de ler ou ao sair de um filme que lhe tocou a sensibilidade. Foi então com a intenção de fantasiar que nos propusemos a recriar em estilo flcclonal o caso da

jovem homossexual. Para isto, convidamos alguns psicanalistas que estivessem dispostos, dentro do seu estilo pessoal e por su~ pr~pria conta, a correr o ·risca de e.ncarnar os vários personagens desta estória. Como o leitor vai . ver' . não se trata de um livro d e teoria psicanalítica. Trata-se de pura ficção. E o resúltado, surpreendeF)te. Agora só resta ao leitor com sua fantasia participar da trama e a nós só resta a expectativa de que. ele tenha tanto prazer·em ler esse livro como nós tivemos em produzi-lo e editá-lo.

PASSOS

A Jovem Homossexual Ficção Psicanalítica

Copyright ©: Rosa Maria Gouvêa Abras (Organizadora) Copyright © desta edição: AS. Passos Editora Ltda.

Capa: Heliana Brandão

Revisão: Berenicy Raelmy Silva

Composição: Lourdes- Editoração Gráfica - Fone.: 485-10ó7

Produção Gráfica e Acabamento: Editora Santa Edwiges - Fone.: (031) 442-7088

1996

A.S. PASSOS EDITORA LTDA. Av. Contorno, 4.640- Sala 701 30 IJ0-090 - Belo Horizonte - MG Telefax.: (03 1) 281-2477

Sumário

I. 2.

3.

Apresentação ......... ...... Mareio Peter de Souza Leite Um breve resumo .................. O caso da jovem homossexual

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23

31

A versão do pai Oscar Cesarotto

4.

A mãe ........................................................................ 43 Fim de tarde: reflexões de Alma José Domíngues de O liveira

5.

6.

7.

O irmão ..................................................................... 51 Seis cartas de Friedrich von Kleist para seu amigo Karl Schiller Renato Mezari A dama ...................................................................... 69 Maria Klein, demi-mondaine Ângela Maria de Araújo Porto Furtado

A jovem ..................................................................... 77

Aos olhos dele Mmia Rita Kehl 8. Diál"io clínico- 10 anos depois ................................ 87 Anotações sobre a análise de uma mulher Eliana Schueler Reis 9. Referências ....................................................... ......... 99 tO. Sobre os autores ................ ........ .................. ............. 105

Apresentação

7

Apresentação

Cara colega, Finalmente chegaram os textos que você havia me dito ter conseguido. Apenas não entendi direito o que seriam aquelas fotocópias de um velho manuscrito em alemão, com uma letra horrível, e que me chegou separado dos outros, sem o nome e endereço do remeteme. Mas apesar da sua insistência em falar comigo que não foi você quem me havia enviadlo este misterioso envelope, não imagino outra pessoa que o pudesse ter feito. Bem que estou gostando da proposta de escrever um texto de apresentação à sua investigação. Como foi que você conseguiu reunir estes documentos nem consigo imaginar, e pelo visto, nunca vou saber. De qualquer maneira, a idéia de

reunir num livro os depoimenws de todos os envolvidos neste episódio, que acabou sendo apresentado como sustenração clínica à re-elaboração da teoria do Édipo. digamos que é, no mínimo, genial. Pois, de fato, a opinião de Freud sobre aqueles acontecimentos foi demasiadamente parcial. Mas como poderia ser de outra maneira? Com estes novos documentos a história se relativiza e, como num tribunal, se quisermos julgar o que aconteceu, é imprescindível ouvir todas as partes. Esta história, conhecida carinhosamente entre nous como ..0 caso da jovem homossexual" (talve7. para com isso amenizar a caretice do Herr Professor, que colocou no seu relato

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o pomposo título "A psicogêoese de um caso de homossexualismo numa mulher"), fica ainda mais intrigante e enigmática depois dos depoimentos acrescentados. É claro que você sempre soube do meu interesse por este texto, e da curiosidade que tenho pelos seus mistérios. E também já lhe contei que acho o máximo ne~la história que Freud mande a paciente embora. É incrível não? Depois de pouquinho tempo de análise, dois meses, ele dá um chega pra lá em Leonora, sugere que vá se tratar com uma mulher e ... tchau! Eu sempre me perguntei o que teria acontecido com o velho, nesta época um analista calejado, já nos seus sessenta e três anos, que em meio a uma enorme crise econômica (sendo que, pouco antes, até mesmo emprestava dinheiro de seu amigo Max Eitingon!) se desse ao luxo de dispensar uma paciente que, além de falar na sua língua (dando um descanso às suas dificuldades de atender em inglês, a língua da maioria de seus pacientes na época), também lhe pagava em moeda estrangeira, única forma de o dinheiro não desaparecer comido pela inflação. (Já passamos por isto, mesmo sem guerra, não é colega?) Por isso era preciso que Leonora, e as outras pessoas envolvidas, tivessem uma oportunidade de dizer o que aconteceu. Até agora só se conhecia o ponto de vista freudiano, contado daquele jeito dele, com seu estilo arrumadinho, distante, neutro. Pois é, colega, o que é a verdade? Não é certo que o homem que está tentando vender um cavalo cego elogia-lhe os pés? O que foi de fato que aconteceu, naquele ano de 1919, com a fanu1ia von Kleist, em Viena? O que aconteceu com Freud? Pelo seu relato, desde sua perspectiva profissional, sempre discreta e muito adequada, aparentemente ele não se deixou envolver pela versão de Leonora, e muito menos teria o que dizer dos dissabores da mãe dela, Alma, ou de Anton e seu sofrimento de pai.

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Como cientista que era (apesar da sua declarada inveja por Schnitzler), procurou se centrar na problemática da gênese da homossexualidade feminina, mas. como sempre acabava fazendo, terminou por inovar outras questões, que de uma maneira ou de outra se ligam ao caso estudado. Os detetives que investigam as origens do pensamento freudiano chegam a situar este ano de 1919 como o início das grandes mudanças que tomariam, se me pemúte o chiste, Freud freudiano. E não era também que. em meio de tudo o que acontecia nestes fatídicos anos, ele gestava, entre outras coisas, o sombrio "Além do princípio do prazer"! Mas Leonora talvez tenha conquistado seu lugar no panteão psicanalítico, também porque abriu os olhos do mestre para um erro que há muito o incomodava. Aconteceu que, dezenove anos antes, outra jovem, então com os mesmos dezoito anos de Leonora, c nas palavras de seu analista, também bonita e inteligente, começou uma análise com ele e, como Leonora. ficou pouquíssimo tempo. Só que daquela vez não foi o analista quem a mandou embora, digamos que foi Dora (era esse o nome da outra "muchacha ") quem o dispensou. O fato é que o tratamento de Leonora precipitou para Freud a decisão de rever suas posições sobre a fem inilidade, o que acabaria por produzir, nos anos que se seguiram, uma mudança definitiva nesta questão. Antes, Freud achava (e foi por isso que fracassou com Dora) que a menina tomava como modelo amoroso unicamente a figura do pai. Após a análise de Leonora se impôs uma outra concepção da feminilidade, oposta às suas idéias anteriores. Não foi só esta vicissitude o que teria produzido tais . mudanças. A opinião de Freud sobre o Édipo feminino vinha amadurecendo à medida que sua experiência como analista aumentava. Pouco antes de conhecer a jovem em questão, Freud, tendo constatado a frequência com que a idéia de apanhar aparecia no relato de suas pacientes, se propôs investigar a construção desta fantasia, e a relatou no texto "Bate-se uma criança".

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Nele, observou que esta fantasia só aparece depois da idade de quatro ou cinco anos, fato que o levou a supor que ela tivesse uma história anterior, e desembocasse no resultado final somente depois de uma longa elaboração. Freud concluiu que ela se daria em três fases: na primeira aparece com o pai batendo numa outra criança (detestada pelo infantil sujeito); na segunda ela é batida pelo pai; e finalmente produzse o terceiro desenvolvimento da fantasia, o qual é formulado como "bate-se numa criança''. O que mais chamou sua atenção foi que. no último estágio desta fantasia nas meninas, a criança que apanha é sempre do sexo masculino. Para Herr Professor era justamente aí que estava o enigma, e para resolvê-lo se empenhou no exame do complexo parenta! da menina no período que vai dos dois aos cinco anos de idade, época em que ela constrói essa fantasia. Foi nesse momento da elaboração teórica freudiana que nossa jovem entrou em cena, e contribuiu para a posteridade, na medida em que seu problema serviu para tentar esclarecer o que quer uma mulher de outra mulher. E mesmo depois, Freud continuaria procurando respostas. Suas idéias sobre a feminilidade não iriam parar de se reciclar continuamente, e logo nos próximos anos ele redigiria o texto "Algumas consequências psíquicas da diferença sexual anatômica'' (preste-se aqui homenagem a Friedrich, irmão de Leonora, que contribuiu com o material necessário para a existência da diferença anatômica). Enfim, estas considerações desembocariam ainda nos famosos títulos sobre o tema, como: " Sobre a sexualidade feminina" , e o radical "A feminilidade". Assim foi, card colega, que, se Freud achava que a questão feminina decorria da fixação amorosa da menina pelo pai, ele pôde deduzir, como através de Leonora, que a menina tem urna fixação anterior com a mãe, o que ele chamaria de "préhistória" do Édipo. Por outro lado, pode-se tomar este relato também, e muitos o fazem, como paradigma para tentar entender certas si tu-

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ações dramáticas, infelizmente não tão infrequentes na clínica, que. para disfarçar o mal-estar que produzem, nomeamos com tecnicismos como acting-out, ou para diferir dele, o que Lacan nos ensinou a chamar de "passagem ao ato". No caso de Leonora, este acontecimento foi sua tentativa de suicídio, que para Freud teria a significação de ser ao mesmo tempo um autocastigo e uma realização de desejo. E teria sido também a realização de um desejo o que a impulsionou para a homossexualidade, desejo que, segundo Freud, seria o de ter um filho de seu pai. Na leitura desta tentativa de suicídio, ele deduziu esse desejo de ter um filho do pai a partir da homofonia entre ''cair" e "parir", possível em alemão, como uma dupla significação de "sie kam nieder". Este lacanismo avant-coup (ou seria Lacan freudiano apres-coup?) onde a distinção de "niederkommen" e "ausweichen" implica a moça numa posição subjetiva onde "cair" e ''parir" ao mesmo tempo a colocam quase no limite do delírio, realizado através da sua passagem ao ato suicida. Sempre é bom não esquecer que Dora também fez sua passagem ao ato quando deu um tapa no Sr. K. na hora em que ele disse a respeito de sua mulher: "ela não é nada para mim". Ah ! se o seu analista soubesse naquela época que não era o pai que Dora queria. mas sim a Sra. K! E quem saiu perdendo, mais do que o ingênuo Sr. K., foi Freud, que não pôde perceber que Dora não o queria. Mas, na história de Leonora, sua passagem ao .ato é o pivô que esclarece, segundo Freud, a sua inclinação homossexuaL A cena central é esta: Leonora caminhando romanticamente numa tarde acompanhada de Maria Klein (uma dama ''aus der Gesellschaft" no dizer freudi ano, mundana em bom português, "cocotte" no entender do pai, o que, claro, não era a opinião da própria Maria, como pude ler no seu depoimento), num lugar e em uma hora fácil de encontrar Anton, o que de fato ocorre, e este, ao cruzar com elas, lhes dirigiu um "olhar colérico''. E fulminada por este olhai:', Leonora se ati-

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rou (niederkommen) no fosso onde passava o bonde (sem maiores consequências, senão o caso teria sido outro ...). Se tem um vilão na história (toda história tem que ter um vilão), pode-se dizer que foi o olhar que o pai dirigiu ao casal. Mais que um olhar, foi um golpe. uma porrada, pois bate-se com o olho também, e este tipo de agressão pode as vezes doer mais que um tapa, pois o olhar é muito mais que só o olho, e entre eles dois, todo sujeito desliza infinitamente como desejante. Há sempre, para usar uma expressão de Lacan, um triunfo do olhar sobre o olho, fato que transforma o olhar em algo maior, mais poderoso que o olho, pois sua força vem do desejo, e como sabemos, é o olhar e não o olho o que constitui o mundo. E não é isso mesmo, cara colega, a pequena revolução que você pretende ao divulgar estes documentos? Ao tornálos públicos você não estaria tentando mudar o "ponto de vista", até então único, de Freud, e mostrar que em "cada cabeça uma s.entença" e conseguir assim subverter a "verdade histórica" do caso da jovem homossexual? Você não .estaria introduzindo novos olhares sobre a mesma questão, produzindo assim outros "pontos de vista?" Mas ainda permanece o que para mim é o maior mistério da análise de Leonora, e o que também foi o menos explorado por nossos colegas: a questão, muito estranha, dos sonhos mentirosos! (mentirosos no entender de Freud, nada menos!) Freud, velho de guerra, acostumado a manejar a transferência positiva para com o pai como a essência da posição feminina, deve ter sentido muito desconforto em relação à rejeição ao homem, que Leonora estaria lhe transferindo. Teria sido por isto que ele preferiu interromper a análise dessa paciente? Por que o teria feito em vez de tentar manejar este tipo de transferência que, diga-se de passagem, embora se manifestasse como rejeição, assim mesmo continuava sendo transferência? Argumentando a seu favor, claro, o velho mestre reivin-

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dicou que durante esta curta análise uma única vez produziuse algo que poderia se conceber como transferência positiva, e que seria a transferência do amor apaixonado que Leonora nutrira antes por seu pai. Freud chegou a esta conclusão pelos sonhos que ela lhe contou, nos quais se curava da sua homossexualidade pelo tratamento analítico, se casava e tinha filhos. Porém não tardou em ser percebido que estes sonhos eram "mentirosos", pois ela não escondia dele que não pensava em se casar, mas queria apenas se livrar do pai. Ou seja, para Freud, Leonora queria enganá-lo como engnou o pai! Pode o inconsciente mentir? Hum ... Por que será que ele não pôde perceber que a vontade de enganar era a manifestação transferencial de Leonora? Por que não pôde ocupar o lugar transferencial do enganado? Talvez as reflexões que você desêobriu no diário clínico de Ferenczi indiquem uma resposta a estas perguntas, e lembre-se que ainda não havia, na época, a noção de contratransferência! Pois é, não é difícil imaginar que tem o lado da pessoa de Sigmund nesta questão, lado que o analista Freud não se permitiu, ou não quis, aprofundar. (Parece que ele ainda não se havia curado de todo de Dora e, claro, além do que quer uma mulher, também tinha o que quer Freud !) Chegado neste ponto, sinto até mesmo uma certa pena do sábio vienense. Sinto orgulho também (afinal devemos a ele nossa profissão). pois o que mais poderia ele dizer publicamente em 1920 a não ser o que se esperava que ele dissesse? Mas, cara colega, não seria justo que, tal qual os demais personagens, ele também pudesse ter uma outra chance de dizer como foram estes acontecimentos? Não como um chefe de Escola, precursor de um novo e revolucionário método de tratamento, mas como uma pessoa que conta a alguém muito íntimo seus pensamentos mais secretos, independentemente do julgamento que este possa fazer? É aqui que eu acho que alguém quer me pregar uma peça. Pois não é que as fotocópias, do velho manuscrito, pa-

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recem ser de uma carta do Freud! De fato. efetuada a tradução c uma pequena pesquisa, constatei que .a primeira página é ipsis litteris a carta que ele mandou à sua mãe, em 22 de janeiro de 1920. O que se conhece dela é um relato curto, onde ele, secamente, comunica a Amalie Freud más notícias: ....~.4"~/ _,_,,,o~

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O resto da primeira folha continua tal qual a que conhecemos nos epistolários de Freud. Porém há neste manuscrito que me enviaram, uma continuação que não está e~ nenhuma das publicações que consultei. Pode ser que seJa ~ res~ da mesma carta de 22 de janeiro, e que o autor prefen u nao enviá-la completa, ou porque não teve coragem, ou porque quis poupar sua velha mãe, ou mesmo porque esta carta nunca existiu e você está brincando comigo. Seu teor é mais ou menos o seguinte:

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Bom , cara colega, onde termina a ficção e começa a realidade? Já sei, nunca faça esta pergunta a um analista! Atenciosamente Mareio Peter de Souza Leite

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Um breve resumo

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O caso da jovem homossexual Em 1920 Freud publicou o artigo "A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher". Esta história clínica tomou-se conhecida no meio psicanalítico como "O caso da jovem homossexual". Freud foi procurado pelos pais de uma jovem de 18 anos, bela e inteligente, seis meses após uma tentativa de suicídio. Ela estava em companhia de uma certa senhora da sociedade quando foi surpreendida por seu pai. Ele pas.~ou por elas com um olhar irado, sendo este o motivo que fez a jovem bruscamente sair correndo. arremeter a um muro e pular imediatamente na linha do trem. Isto lhe custou alguns dias de cama, embora não tivesse outras consequências mais graves. Já há algum tempo a jovem vinha despertando em seus pais grande desprazer e preocupação devido à devotada adoração com que perseguia "certa dama da sociedade", cerca de dez anos mais velha. Na opíní.ão dos país, a despeito do seu nome eminente, tal senhora não era mais que uma "coquete". Diziam que ela vivia com uma amiga casada e que ao mesmo tempo tinha relações íntimas com certo número de homens. Mesmo sabendo da fama de aventureira da tal senhora, e apesar das proibições paternas, a paciente de Freud não se importava de ser vista em sua companhia. Não perdia oportunidade de encontrar-se com sua amada, esperava por ela diante de sua porta, enviava-lhe flores e presentes. Perdera todos os interesses próprios de sua idade e só se relacionava com amigas que servissem de confidentes ou lhe facilitassem o acesso à dama. Os pais da jovem não sabiam até que ponto a filha tinha avançado neste relacionamento. Percebiam que ela não tinha interesse por rapazes e que sua admiração pela demi-mondaine era apenas a continuação de uma atração que já havia mani-

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fe stado antes pelo próprio sexo, causando ao pai grande irritação. Como foi dito, a jovem não se preocupava em aparecer em público com o objeto da sua adoração. Chegava mesmo a usar qualquer tipo de desculpas ou mentiras desde que estas facilitassem seus encontros. A tentativa de suicídio teve como consequências um afrouxamento da vigilância partema e ao mesmo tempo uma mudança de atitude da dama em relação a ela. A senhora que antes a evitava, depois de tal ato inequívoco de paixão, passou a tratá-la de forma amistosa. Os pais, vendo-se impotentes em suas medidas disciplinares e temerosos após a tentativa de suicídio, resolveram enviar a filha para tratamento psicanalítico. Esperavam que a orientação médica fosse suficiente para reconduzi-la ao estado natural de espírito. Caso esta tentativa fracassasse, pensavam em casá-la rapidamente pois, na opinião deles, o casamento deveria despertar seus instintos naturais. Fr~ud observou que o pai era um homem sério e conceituado. Embora temo no fundo do coração, sua rigidez era motivo de certo afastamento por parte dos filhos. As tendências homossexuais da filha causavam-lhe grande amargura. Estava clisposto a combater o problema - que ele atribuía a uma conduta degenerada, vício ou mesmo a certa perturbação mental. Por outro lado, a atitude da mãe não era tão fácil de entender. Ela era uma mulher jovem e pouco disposta a abandonar seus próprios direitos à atração. Não via de forma tão trágica como o pai o relacionamento da filha com a tal senhora. Sua oposição tinha mais a ver com a falta de cuidado da filha, sua exposição pública e a opinião da sociedade. Por certo tempo havia sido confidente da jovem, agora temia pela sua reputação. Era muito áspera com a filha e excessivamente indulgente com os três filhos. O mais novo nascera após um longo intervalo e tinha ainda três anos. Ela teve problemas neuróticos durante alguns anos, e gozava de grande consideração por parte do marido. Freud, por sua vez, encontrou sérias dificulades na condução desse tratamento. Os principais interessados eram os

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pais e não a sua paciente. Esta apenas queria cooperar por:que sabia que o seu comportamento era motivo de sofrimento para sua família. Em momento algum sentia necessidade de libertar-se do seu homossexualismo. Freud constatou que a jovem era bela e atraente. Tinha a figura alta do pai e suas feições eram mais agudas que suaves e femininas. Intelectualmente, era arguta e objetiva desde que não se achasse dominada pela sua paixão. Em relação à dama, mostrava a humildade e a supervalorização do objeto sexual, tão característicos do amante masculino, a renúncia a toda satisfação narcisista e a preferência de ser o amante e não o amado. A história do desenvolvimento sexual da paciente mostrou que na infância a jovem passou pela atitude normal característica do Édipo feminino e posteriormente começou substituir o pai por um irmão ligeiramente mais velho que ela. A comparação entre os órgãos genitais dos irmãos e os seus deixara-lhe forte impressão. Na idade de 13 a 14 anos afeiçoara-se a um menino de 3 anos, inferindo-se que, naquela época, achava-se possuída de forte desejo de ser mãe e ter um filho. Uma nova gravidez da mãe e o nascimento de um terceiro irmão, quando tinha dezesseis anos, provocou uma mudança na jovem, que agora passa a interessar-se por mulheres maduras, embora de aparência jovem. Inicialmente, a maternidade era uma condição para sua eleição amorosa. Posteriormente abandonou essa condição. A análise da jovem revelou depois que a amada era uma substituta de sua mãe, ao mesmo tempo que a figura esbelta, a beleza severa e a postura ereta de sua dama faziam-na lembrar-se do irmão que era um pouco mais velho que ela. A sua escolha satisfazia ao mesmo tempo a tendência homossexual e a tendência heterossexuaL Segundo Freud, a gravidez da mãe, no momento em que a jovem experimentava a revivescência de seu complexo de Édipo na puberdade, foi um grande desapontamento. Foi sua rival edípica, inconscientemente odiada, quem teve um filho. Seu desejo de ter um filho- um filho do pai - foi recalcado. Furiosamente ressentida e amargurada, afastou-se completamente do pai e dos homens e repudiou o papel feminino em

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geral. "Ela se transformou em homem e tomou a mãe em lugar do pai, como objeto de seu amor." A difícil relação com a mãe facili tou essa mudança. A jovem, tornando-se homossexual e deixando os homens para a mãe (em outras palavras, "se se retirasse em benefício dela"), poderia afastar algo que até então fora parcialmente responsável pela antipatia da mãe. Essa posição libidinal foi grandemente reforçada quando percebeu o desagrado do pai. Desafiar o pai e vingar-se dele passa a ser seu desejo mais intenso. O reforço fin al para a sua inversão veio com a descoberta de que sua dama prometia satisfazer tanto as suas inclinações homossexuais, como também aquela parte da sua libido que ainda se achava ligada ao irmão. Freud observou que a jovem apresentava o mesmo "complexo" que ele havia identificado no texto "Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens" (texto de 19 I0) e cujas características especiais remetem à ligação com a mãe. Para ela a má reputação de sua dama era positivamente uma condição necessária para o amor. No caso do tipo masculino de escolha de objeto derivado da mãe, é condição necessária que o objeto amado seja. de uma maneira ou outra, sexualmente de má reputação. Quando a jovem descobre que sua dama vivia de oferecer seus favores corporais, sua reação assumiu a forma de uma grande compaixão e de fantasias e planos para "resgatar" sua querida dessas condições indignas. As razões imediatas que determinaram sua decisão na tentativa de suicídio foram as seguintes: dissera à dama que o homem que lhes dirigira o olhar enfurecido era seu pai, e que ele proibira por completo a amizade entre elas. A dama encolerizara-se com isso e ordenara à jovem que a deixasse ali mesmo e que nunca mais a esperasse ou a ela se dirigisse: o caso tinha de terminar ali. Desesperada por haver perdido para sempre sua bem-amada, quis pôr termo à própria vida. A análise revela dois outros motivos para a tentativa de suicídio:- a realização de uma punição (autopunição) e arealização de um desejo. Esse último significava a realização

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do próprio desejo que, quando frustrado, a impelira ao homossexualismo: o desejo de ter um filho do pai, pois agora ela "caíra" por cu lpa do pai. [Em alem ão o verbo níederkommen significa tanto cair quanto "dar à luz".) O fato de a dama haver-lhe falado nos mesmos termos que o pai e profer1do a mesma proibição, forma o elo entre essa interpretação profunda e a superficial, dada pela jovem. Do ponto de vista da autopunição, a ação da jovem nos mostra que desenvolvera no inconsciente intensos desejos de morte contra um ou outro de seus genitores, talvez contra o pai, como vingança por impedir seu amor, porém, mais provavelmente contra a mãe, quando grávida do irmão. "É provável que ninguém encontre a energia mental para matar-se , a menos que, em primeiro lugar, agindo assim, esteja ao mesmo tempo matando um objeto com quem se identificou e, em segundo lugar, voltando contra si próprio um desejo de morte dirigido a outrem." "Uma vez que a jovem se identificava com a mãe, que deveria ter morri do no nascimento do filho, a ela negado, essa realização de punição constituía mais uma vez uma realização de desejo." Embora em seus relatos o pai não tenha figurado, por trás de sua pretensa consideração pelos seus genitores, por amor dos quais dispusera-se a efetuar a tentativa de transformação, jazia escondida sua atitude de desafio e vingança contra o pai, .atitude que a fizera aferrar-se ao homossexualismo. O decorrer da análise da jovem homossexual é bastante interessante. Cooperadora no início, ela não se envolve emocionalmente. Freud percebe que por trás dessa atitude continuam as mesmas tendências de antes. Há um desafio a Freud, assim como ao pai. Ela relata o desejo de casar-se para ficar livre da tirania paterna. Provavelmente o leitor lucrará mais lendo o texto original. R.A.

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··.

O pai

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A versão do pai

Oscar Cesarotto

Viena, 27 de dezembro de 1919

Prezado Oskar, Grande amigo, antes de mais nada, receba um abraço e um voto sincero de feliz Natal. Tanto tempo sem lhe escrever nem dar notícias, espero que você não se sinta chatet~dn ~la minha ausência. Só agora percebo que mais um ano foi embora, r.ípido como nunca. nos deixando cada vez mais velhos e alquebrados. Sim, e desta vez, não foi esquecimento nem preguiça, pois razões até sobraram para me tirar do sério e negligenciar minha correspondência. Tubo bem com você? Nesta época difícil para todos, tomara que o peso da história tenha sido, dentro das circunstâncias, o mais leve possível. Sua saúde melhorou? Confio que o tratamento de eletroterapia possa curar sua gota ou, no mínimo, acalmar as dores e permitir um dia-a-dia normal. A família vai bem? Espero que Frau Norah tenha superado todos os seus achaques definitivamente, e voltado a ser a mulher que sempre foi, alegre, simpática e bem-humorada, enfim, a rainha do lar. Suas filhas Romin e Terezin, como é que elas estão? Continuam peraltas, sapecas e travessas? Lembro da última vez que as vi, elas eram tão engraçadinhas, mas não paravam quietas! Imagino que devem estar enormes, cres-

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cendo sem parar. e deixando os pais em polvorosa. Afinal, gêmeas podem ser uma bênção, porém, dão trabalho em dobro, e haja paciência. E o herdeiro? Como está indo o varão da casa, o plccolo Iuripop, assim costumávamos chamá-lo, quando ainda era pequeno, isto é, faz bastante tempo. Acredi 1.0 que agora tenha virado um verdadeiro homem, já tem a idade suficiente para começar a pensar na vida, muito mais depois das manobras prévias ao armistício. Pelo menos para ele, foi uma sorte que a guerra acabasse sem ter que entrar em combate. Suponho que esteja ajudando na loja, pois vocação nunca lhe faltou para os negócios. Tenho quase cert.eza que ele é capaz .de se sair muito bem em tudo o que fizer, dedicando o esforço necessário. Um bom rapaz, correto e aplicado, poderá ter o mundo nas mãos, se estiver a fim. Dias melhores virão, e ele terá sua própria família. mulher, filhos. patrimônio, e um bom nome na praça. O mmivo da presente tem a ver com isto, embora de uma maneira talvez paradoxal. Para poder entender do que estou falando, vou ter que lhe contar alguns fatos acontecidos ultimamente, e que têm me tirado o sossego e a serenidade. Não vai ser simples narrar o que vem ocorrendo nestes meses, um calvário e tanto. Às vezes, nem eu mesmo acredito na veracidade de tudo isto. Parece um pesadelo, mas trata-se da cruel realidade, para além do que eu possa querer ou deixar de querer. O problema é a minha filha Leonora. Lembra dela? Quando você a viu pela última vez, naquelas férias em Dresden, ela era ainda uma menininha, tímida e meiga. e tudo levava a pensar que sempre seria assim, do mesmo jeito ou parecido. Agora ela está com 18 anos, é uma moça linda e vigorosa, praticamente uma mulher pronta para a vida adulta. Aliás, na flor da idade, está mais do que na hora de ela casar, para tirar a cabeça das nuvens, tomar conta de uma casa, fazer o marido feliz e cuidar de uma penca de filhinhos. Pois é, mas como há um problema com o seu jeito de ser, a melhor solução que me surge é providenciar um bom

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casamento pam ela, e incentivá-la a entrar no ·e ixo de uma forma natural. Por ora, não tem sido fácil fazê-la acertar o passo, mas nem tudo está perdido, e é por isso que estou aqui escrevendo para você e propondo - nada mais, nada menos que a gente concretize aquilo que alguma vez pensamos os dois, muitos anos atrás, quando os nossos filhos eram crianças, e nos parecia óbvio que, num futuro distante, eles casariam, confirmando assim uma aliança de amizade e interesses mútuos. Não tenho dúvidas que Iuripop seria o genro ideal, aquele que mereceria total aprovação para receber, junto com a mão de minha filha, um cargo de confiança na minha empresa, augurando prosperidade no comércio. e na prole também. Gostou da idéia? Nunca esqueci o que fantaseamos em alguma oportunidade, depois de uma dúzia de cervejas. Sócios na vida e nos negócios! Avôs simultâneos de netinhos e netinhas! Parceiros em grandes empreendimentos, para o que der e vier! Bem, mas acho que estou me antecipando um pouco demais, e nenhuma perspectiva é tão tranquila ou previsível ou cor-de-rosa... Cor-de-rosa: chegou o triste momento de dizer claramente e com todas. as letras o que se passou com Leonora, o que me tira o sono, o empecilho destes planos, o fado que me assola. Meu caro amigo, para ser honesto nesta sina amarga, . não lhe posso omitir o drama que me atormenta: contrariando as expectativas e o bom senso, minha filha tem gostado de mulher, pelo menos por enquanto. Leio o que e.<;erevi acima e me resulta duro de aceitar. O que foi que eu fiz para merecer isto, und der konchen auf das Lora! Não consigo crer que ela esteja mais J'róxi·ma de Lesbos que de Atenas, mas é a verdade insofismável. Gostaria, tãosó, que não fosse imutável, apenas uma fase passageira, um capricho adolescente, uma metamorfose da puberdade, e que, logo, logo, a anatomia possa ser o seu destino. Mas deixe eu Lhe contar como foi que tudo começou. Quatro anos atrás nasceu nosso caçulinha. Naque le periodo, Leo ficou muito atenta com o que se passava com a mãe, e

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tudo indicava que se identificava com ela, e quando o menino foi crescendo, parecia que a mãe era ela própria, tamanha a dedicação com o bebezinho. Bem, isto foi apenas o princípio. Em seguida. foi se interessando por outras mães, quase sempre mulheres jovens que encontrava no parque e de quem ia ficando amiga. Eu brincava com ela e dizia que poderia ganhar a vida tabalhando com baby-sirter, unindo o útil ao agradável, por ser tão vidrada em nenês. Mas não, eram as mães que chamavam a sua atenção. Devo admitir que, já então, havia algo de esquisito nesses relacionamentos, embora não fosse imaginável o que viria depois. Realmente, não era sequer cogitável que, de repente, se ligasse a uma mulher que não tinha em absoluto nada de maternal. Um dia, fiquei sabendo através de uma empregada que Leo visitava. de maneira sistemática, uma rapariga egressa da Maison de lA Licorne, ora bolas! (Aposto que você ainda guarda na memória os nossos tempos de estudantes, quando descobrimos ali mesmo que a felicidade tinha preço, e que valia a pena trocar um punhado de notas por noitadas inesquecíveis.) Uma putana, pois não. Demorei até entender a questão. Inclusive, porque era mais complexa do que parecia no início. De fato, rratava-se de uma demi-m ondaine, sim mas retirada da profissão. Na atualidade, ela só exercia a horizontalidade de forma amadora, por assim dizer. E nem sequer unicamente com homens. Como se tudo isso fosse pouco, era a preferida de Wanda von Pistor, conhecida dama da nossa sociedade, notória libertina e esposa infiel de SacherMasoch, o escritor. O céu caiu na minha cabeça. Minha filha estava se perdendo, devotada a amores ilícitos e condenáveis. Pouco se importava de estar sendo malfalada, na decorrência da reputação daquela sirigaita, que fazia dela gato e sapato. Para completar a confusão, recebi um bilhete de Wanda que, chateada com o andamento daquela relação, exigia que eu tomasse uma atitude. (Aqui um parêntese: faz alguns anos, num réveillon nos bosques de Viena. completamente bêbado e cambaleante

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depois de muitas valsas, acabei tendo um rápido entrevero com Wanda. Como isto veio a acontecer, até hoje não sei ao certo, mas suspeito que a iniciativa partiu dela. Naquela época, ela não podia ver uma calça masculina sem ir atrás, mesmo se estivesse pendurada num varal.) No entanto, parece que hoje seus gostos são mais diversificados. Morrendo de ciúmes da minha filha pelo assédio à sua protegida, me ameaçou de contar nosso affair para a minha mulher, se não colocasse um ponto final na situação. Como você poderá perceber, meu amigo, as coisas estavam bastante ruins para mim, em todos os sentidos. E ainda por cima, ia ficando raivoso e com vontade de dar uma surra em todas elas, na Leonora, na coco/te, e na Wanda. Enfim, como não tenho sangue latino, decidi parlamentar. Primeiro falei com ntinha esposa, omitindo alguns detalhes, mas ela já sabia de tudo e pouco estava se lixando. Me deu até a impressão de q4e estava gostando do assunto, como se tudo não passasse de uma homenagem filial à sua pessoa. Obviamente, também fiquei prestes a lhe d~r um cacete, mas sublimei. lnconti nenti, fui ter com a Leo, chamando ela na chincha, e sem meias-palavras. Primeiro tentou dissimular, a seguir ad~itiu , e por último, me desafiou , a mim, ao seu próprio pai , dizendo que não abriria mão do seu desejo. Afirmou, inclusive, que seria capaz de sair de casa e cair na vida, se não fosse reconhecido o seu direito de escolha. Me contive para evitar um gesto violento, mas · proibi que continuasse vendo a moçoila. Também cortei a sua mesada, para mostrar que estava falando sério: Dois dias mais tarde, o pior aconteceu. Após o expediente, eu ia caminhando pelo passeio público, como de costume, num crepúsculo primavera!, quando, subitamente, deparei-me com as duas, Leo e aquela vagabunda, andando de braços dados. Agora, apre.ç-coup, penso na cena e acho que era inevitável; mais tarde ou mais cedo tal encontro seria fatal. Para mim foi uma surpresa total, embora nem tanto para Leo, que talvez estivesse ali de propósito, ou sem querer, que.rendo. Entretanto, levou ttm susto. Vi as duas juntas, vi a cara

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de Leo, espantada, e vi o rosto da putinha, angelícal. Ora, nunca imaginei que fosse tão bonita, tão gostosa e tão semvergonha. Me foi impossível tirar os olhos dela, fascinado como estava por aquela mulher de má fama e moral dissoluta. porém bela. Perdi a noção do tempo, não dava para pensar em coisa alguma. nada mais existiu para mim na eternidade daquele instante, mas Leo, minha querida filhinha, achou por bem se jogar no fosso do bonde, e o encanto foi rompido pelos gritos das pessoas que tentaram impedir, sem nenhum sucesso. Por que ela fez isso'! Sei lá, creio que por ter ficado de lado enquanto contemplava a sua amiga, e não a ela. Sempre gostou de chamar a atenção, e, desta vez, com certeza conseguiu. Nem vale a pena contar os detalhes do resgate, o rebuliço, a ida para o hospital e a angústia que se seguiu. Por sorte, ela caiu sobre um dos trilhos mas sem encostar no outro, e por isso não levou choque. O bonde já tinha passado um pouco antes, portanto, não teve risco de ser abalroada. A queda foi de uma altura considerável, uns três metros talvez, e ela se amassou toda. Bom, meu caro, como você pode ver, desgraça pouca é bobagem. Depois de tudo isto, Leonora passou um par de semanas na cama até se restabelecer. Acabou, por alguma razão que não entendi, na posição de vítima, como se o que ela própria fez consigo não fosse de sua responsabilidade. Assim, todo mundo, sua mãe, seus irmãos, ficaram paparicando ela, no maior benefício secundário. A moça também, mesmo distante, fez chegar um mimo, como se tudo aquilo evidenciasse uma prova de amor. E eu, claro, morto de culpa, torcendo para que ela se recuperasse logo, apesar de saber muito bem o que poderia continuar acontecendo mais tarde. Me desculpe se estiver torrando a sua benevolência, mas agora que comecei a soltar o verbo, quero ir em frente e completar o relato. Nesta altura do campeonato, e sem saber muito bem o que fazer, me ocorreu conversar com Wanda von Pistor. Ela já tinha sido informada dos acontecimentos e, de certa forma, não parecia mais preocupada com seu ciúme

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possessivo. Teve até um lampejo de generosidade quando me disse para não me preocupar. pois nunca comentaria com ninguém a nossa história no bosque de Viena. (No entanto, en passant, acabou confidenciando que já tinha abordado o fato com o marido, e ele, aparentemente. apreciara sua falta de pudor.) Todavia, o mais importante foi que Wanda, profunda conhecedora da condição feminina, disse que achava a minha filha bastante desequilibrada ou, em outras palavras, histérica, e me sugeriu que a levasse para ser tratada da maneira apropriada, quanto antes melhor, para evitar futuras passagens ao ato. A pessoa que me recomendou merece um capítulo à parte. É um sujeito esquisito, controverso e fora .do comum, um dos mais curiosos habitantes da cidade. Seu nome é Sigmund Freud, e sua especialidade são as doenças nervosas que, segundo Wanda, consegue curar aplicando um método de sua invenção, chamado psico-análise, ou coisa parecida. Foi assim que marquei um horário com ele e, pontual, com pareci. Ele trabalha na própria casa, num bairro central. O dito-cujo não me provocou nenhuma grande impressão, mas devo conceder que escutou com atenção, e fez alguns comentários inteligentes. · A consulta durou quase uma hora. Por último, ele me perguntou, na lata, o que era mesmo que eu queria. Disse-lhe que, como todo pai; ansiava que a minha filha fosse nonnal e tivesse os gostos comuns de todas as garotas da sua classe social e, se possível, que tivesse a chance de ficar satisfeita com um homem. Herr Professor foi logo avisando que o tratamento por ele ministrado não garantia nada disso, mas que provavelmente permitiria que ela pudesse escolher sem repetir "fixações infantis". De nada adiantou eu falar que Leonora, quando criança, era completamente igual a qualquer outra menina, brincava de boneca e não tinha nenhuma tara visível, pois ele parecia já ter algumas idéias preconcebidas, e achava que todas as criancinhas eram "polimorfas.., e chegadas numas "aberrações sexuais".· Sei muito bem o que você deve estar pensando, que aque-

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le médico era um degenerado e que não merecia a mínima confiança. Muito pelo contrário, algo nele me fez acreditar que não era um charlatão. e que sabia do que estava falando. Me disse que topava analisar a Leonora, desde que ela consentisse. Em outras palavras, não adiantaria forçá-la, pois o sucesso da empreitada depeudia, em primeira instância, da disposição dela para encarar suas opções e tentar mudá-las. De volta para ca-;a, expliquei a ela a proposta, que em seguida foi aceita. Naqueles dias, ainda convalescente do tombo. estava muito dócil, e aparentemente disposta a fazer boa letra. Quando levantou, na semana seguinte, começou a frequentar o doutor, tendo sessões diárias de análise desde então. Os honorários são um pouco salgados, mas o que custa vale, e eu não meço esforços para que ela recupere a saúde e a alegria. Agora, passados já alguns meses desses tristes episódios, tudo parece se encaminhar para um bom termo. Leo está contente de novo, e age como um modelo de jovem bem-comportada. Às vezes, fala do tratamento. e comenta coisas que ninguém entende. Ontem, por exemplo, chegou dizendo que tinha atravessado a fantasia(?), e que só restava, portanto, se identificar com o próprio sintoma. Pois bem, assim caminha a humanidade. Trazemos fi lhos para este mundo e, a partir daí, nos tornamos eternos reféns. Eles são o que queremos que sejam, mesmo que nem sempre nos obedeçam. Leonorà é hoje, outra vez, uma garota casadoura e, como você sabe, um excelente partido. Foi ali que me lembrei do seu filho, e me ocorreu que poderia dar certo uma união entre ambos, tal para qual. Mais, ainda: até pensei que seria muito bom se as bodas fossem logo, para incentivar nela o autêntico amor. aproveitando que está numa ótima, longe daquelas más companhias. Lógico que toda noiva merece um dote, dignamente à altura. Também acho que seria uma oportunidade única para acertar entre nós aquele empréstimo que data antes da guerra, e que você, suponho, já deveria estar em condições de honrar. O ditoso casal poderá ter, destarte, um patrimônio sufici-

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ente para montar uma casa, e tocar em frente uma vida venturosa. Ora, meu futuro consogco, fico torcendo para que você possa entusiasmar luripop, que muito tem a ganhar desta feita. Não é qualquer dia que se consegue, quase sem batalhar, a mão de uma moça formosa, prendada, e ainda por cima, analisada_ Vai ser um grande prazer tê-lo na nossa família, juntos serão felizes e comerão perdizes! Termino por aqui estas maltraçadas, e fico esperando em breve boas-novas do seu lado. Desejo para você e os seus um bom final de ano, e um porvir promissor_ Aleluia! Atencioso e fraterno, Anton von Kleist P.S_Estimo que Turipop não precisaria saber das agruras da Leonora e suas afinidades prévias_ No final das contas, o passado é apenas uma página virada de um livro fechado de alguma obra completa inacabada...

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A mãe

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Fim de tarde: reflexões de Alma

José Domingues de Oliveira

O ambiente era de consternação. O desalento, o ânimo abatido pairavam no ar, misturando-se a um dolorimento extenuante. Tanto se pedia falar da dor de uma fadiga; quanto da fagida de uma dor! As lâmpadas tremulavam dando a impressão de que seus filamentos ígneos titubeavam na luminosidade esmaecida de suas ondas vibratórias. Melhor dizendo, uma luz tímida e recatada sugeria uma visão não muito clara, imprecisa dos presentes. Consequentememe, as sombras não se delineavam e nem buscavam contornos capazes de algum contraste. Não se podia falar de bordas, pois as figuras se perdiam no pano de fundo. E Já, no fundo do pano, o acolhimento se fazia sem maiores percalços. As sombras, como que engolidas pela penumbra, dela se destacavam de súbito, como num 'salto ou ressalto de um afã iluminário. Parecia a sucessão de um cairse descaindo, num entregar-se rebelando. Sem dúvida, movimentos contraditórios, pontuando um sumiço e uma sumidura intennitemes, rastreadores de uma espontaneidade que pare-· cia extinta. Fixando o olhar mais acuradamente, as pessoas presentes se destavavam como recém-saídas das coxias do sofrimento, aguardando a deixa certa para a encenação proposta. Na focalização núlimétrica -um homem e uma mulher. Se faziam um par, não era claro. Em suas faces estava ausente aquela cumplicidade mímica reveladora dos laços eróticos. Se estavam juntos, nada sugeria que ainda fossem comparsas no

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amor. Estavam mais lado a lado do que um com o outro. Outros lugares disponíveis davam mostras de ter sido ocupados recentemente. Um batom caído ao lado de uma das poltronas evidenciava que dos outros ocupantes, pelo menos um era mulher. Os vestígios de um retoque apressado da maquiagem assim testemunhavam. A mulher. aparentando meia-idade, ainda conservava a beleza e o viço de quem palpita pela vida. Postura elegante, absorta no seu olhar, como quem desejasse ver o infinito, tinha os ares de quem repassa o passado, querendo compreender os acontecimentos já idos. Em sua cabeça, os pensamentos buscavam na lógica dos fatos uma ficção extrema para se situar no imbricado problema da filha. Não censurava. Tampouco reticências fazia. Apenas repassava em sua memória as questões de Leonora, buscando achar o ponto onde a meada se perdera. Evidentemente, nessa tessitura algum fio fora puxado. É verdade que ainda se sentia bela e aprazível aos olhares masculinos e tampouco era indiferente aos galanteios e mesuras a ela dirigidos. Mesmo porque ao espelho ainda podia constatar uma certa formosura, o frescor de uma certa malícia, testemunhas inequívocas de uma jovialidade preservada, pronta a acolher as manifestações ardorosas de quem se atrevesse. A última gravidez, longe de ser o canto dos cisnes, funcionara mais como a revoada de pássaros migratórios, com o vigor para cobrir longa.~ distâncias na busca do acasalamento incontinente. Verdadeira água da juventude, remoçara bastante numa reintegração plena no circuito libidinal. O último rebento era o gaJardão inconteste de que continuava apetecível e desejada. Apegada a seus filhos ao extremo, principalmente a Johann, o mais novo, involuntariamente poderia muito bem ter-se descuidado da filha. Verdade é que o seu comportamento para com os filhos poderia encontrar eco e guarida na profunda relação afetiva que mantivera com seu pai. Talvez visse nos netos daquele a continuação devotada de seu amor

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filiaL É como se algo estivesse passando de uma geração para outra. Será que o devotamento aos filhos, de um fado, sopesava a pouca atenção à filha, de outro? Problemas emocionais tamhém os tivera, submetendo-se a algum tratamentos. Ou teria visto na filha uma competidora indesejável? ! O fato é que não abdicava de seus anseios femininos e do seu direito de ser atraente. O excesso de rigor com que tratava a filha, não seria resquício das relações não muito amistosas com a mãe? E nesses restolhos não estaria aplicando uma forte taxa de mora com altíssimos dividendos sobre o que recebera e agora passava adiante? O seu papel de mãe estaria assim configurado como o pontífice de uma geração a outra, de modo quase incoercível. Ou seja, nada de novo na dedicação a sua prole, herdeira integral dos sentimentos e afeições de uma geração a outra? Às vezes passava-lhe pela cabeça a idéia de se medir com Maria Klein, a Dama. Sentia-se tão bela quanto e compreendia prefeitamente a peja de promíscua a ela atribuída. Nessa comparação, assegurava-se de que também não partira para a poliandria como a Dama somente por princípios ou comodismo. Mas uma certa admiração por Klein e ra guardada, pois seria desastroso se viesse a público. Mas jamais per. deria o senso e a decência. Rejeitara veementemente a possibilidade de ligação homossexual de sua filha com Maria Klein, sobretudo levando em conta sua má fama Fundame ntava-se nas poucas confidências feitas pela filha e também na incompatibilidade entre uma cortesã vitoriosa e uma moça iniciante nas coisas do amor. Pensava mais na adolescente carente, a buscar simulacros maternais infantis. Além do fato de ser Leonora uma noviça ante os exuberantes dotes daquela que elegera como conquistadora. Acreditava que as duas nunca passassem do beija-mão. Nada de lascivo teria existido entre as duas. Acreditava que Maria Klein nutrisse um amor maternal por Leonora. Senão por que procurava manter Leonora à dist§ncia? Punha-se a discutir enérgica e calorosamente quando o

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marido vinha com a lamúria de sua sina porque diziam que sua fi lha era homossexual. Nestes momentos, ligeiramente enfurecida, dizia: Anton von Kleist, você está mais preocupado com o seu nome e a sua pessoa do que com sua fi lha. Deixe de ser trágico, abandone a ira e o orgulho ferido. Os Kleisrnunca souberam aceitar as adversidades. Você está com a vaidade ferida e o brio ofuscado na sua petulância de querer filhos perfeitos. E por isso o seu abatimento quando as viu na rua, juntas e inquestionavelmente juntas. Como negar aos olhos aquilo que o coração pressente. O suicídio de Leonora não o abateria tanto quanto abatido você ficou com a presença inquestionável da•; duas à sua frente. Pense mais no seu distanciamento dos filhos, provocado pelo modo severo com que sempre os tratou. Deixe as ameaças de Leonora. Não vê que considerar sua filha como uma degenerada, tarada ou viciada, são apenas apelos de isenção participativa na sua responsabilidade de educador? No mesmo caminho perambulam suas idéias de um casamento rápido e interessei ro. Essa solução mágica, mais cedo ou mais tarde, revelar-seia um simples truque de ilusionista. Lembra-se do episódio da atriz naquele veraneio. Você, com sua conduta e sua intervenção desastrada, talvez tenha posto tudo a perder. Já lhe ocorreu pergumar a Leonora se ela realmente deseja procurar esse médico? Nessas coisas não adianta fazer de conta. Você deveria se lembrar de quando, aos treze anos, ela se interessava por aquele guri de três anos. Você pode não ter enxergado, mas era uma forma como brotavam os vestígios de um sentimento de matemização incipiente. Como era tema e meiga, gentilíssima com os pais do garoto. Alma se continha l}as dicussões para não prolongar a pendenga. Sabia que a filh a não lhe dizia tudo, mas também não ignorava que nem tudo pode ser dito. Defendia a idéia de que a filha, com esse relacionamento, tentava dirimir algo. Tentava resolver o enigma comum na imaginação infantil ou mesmo no adolescente. lntufa uma relação longínqua entre Klein, Leonora e sua última gravidez. O nascimento de seu último filho mexeu bastante com Leonora.

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Como se algo do mais recôndito de si ti vesse vindo à luz, tivesse vindo a público. Quem sabe, taml:>ém ela esti vesse pensando em ter um filho, sonho de toda donzela. Quem seria o pai'! Ora, o primeiro namorado de toda menina é sempre o pai. E como perdoar um pai que no momento mais caloroso da paixão infantil vai engravidar justamente a mãe? Talvez Leonora o tenha odiado por isso, recorrendo aos braços de Maria. O homossexualismo talvez esteja aí, uma maneira de agredir o pai. Uma vingança ou um desafio, quem sabe? A verdade é que, panindo para os braços da dama, uma certeza se evidenciava: nunca haveria filhos. E Alma tinha que se haver ainda com a pertinácia do marido. Dele discordava frontalmente quando o via apegarse aos preceitos médicos, apegando-se desesperadamente à idéia de uma doença. Era uma posição cômoda porque poderia ser extirpada e, como consequência, uma esperança derestituição integral. É como se os médicos, os discípulos de Apolo, pudessem lhe devolver a filha saudável, pura, angelical. Embora empostasse uma compreensão e altivez exemplares, Alma sabia que o subjacente era um puro e cristalino preconceito contra o homossexualismo. Na sua benevolência arrogante, a esposa enxergava um pouco mais além. Via o pai irretocável em luta com a falibilidade humana. Assim, postas as questões, não havia o que conversar, pois a voz implica uma certa distância para que as palavras possam circular e fazer a sua tarefa medianeira. Alma, na sua condição de mãe, no seu lugar de genitora, nunca pusera muita fé na rápida busca de ajuda junto a um médico famoso. Reconhecia que o facultativo era considerado como homem sério e de coração temo. Nada dogmativo ou pessoal, mas apenas a certeza de que sua filha não era doente. Tampouco acreditava que um homem pudesse compreender um momento tão delicado e que diz respeito exclusivamente à alma feminina. Coisa de mulheres para mulheres. Como um macho iria compreender tudo isso? E para não falar naquela citação que se imputava ao

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médico famoso, quando se dizia que teria dito ou escrito que o casamento é como um guarda-chuvas. mais cedo ou mais tarde se toma um táxi. Alma não acreditava nas soluções propostas. Não cria no tratamento. c tampouco acreditava no casamento da filha com uma panacéia miraculosa. Anuía com as soluções propostas, mas no fundo intuía uma outra saída a ser encontrada, mas que fosse algo onde a participação da tilha fosse imprescindível e fundamental. Naquela sala, naquele silêncio que reinava entre ela c o marido. meditava sobre a solução proposta pelo médico. Aconselhava a filha a procurar uma médica. Interrogava-se sobre o papel do sexo do médico e o êxito terapêutico. Apesar da passividade de Anton em acatar a recomendação feita, Alma se questionava. Não estari a em jogo uma espécie de remendo para uma falha materna? E que falha teria cometido de maneira tão sibilina e sutil que não percebera? Enquanto o pai se abatia. a mãe rebatia, como querendo tranquilizar-se sobre o ocorrido, e uma idéia apaziguadora lhe perpassava a mente: o fio da meada, O FIO DE ARIADNE, ainda não fora encontrado. Essa era a grande questão de ALMA, naquele fim de tarde.

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O irmão

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Seis cartas de Friedrich von Kleist para seu amigo Karl Shiller Renato Mezan

1. Viena, 17 junho d e 1919 Querido Karl, Enfim! Com todos estes transtornos nas comunicações, só ontem recebi a carta que você me enviou; ela levou mais de um mês para vir de Berlim até aqui. Assim, pude me inteirar do que você anda fazendo e dos seus novos interesses; Berlim deve ser realmente fascinante, apesar de todas as complicações e das consequência·s terrfveis da derrota, desses exércitos de famintos e desabrigados que você encontra pelas ruas e que tanto o assustam. Sim, precisamos nos pôr em dia, conversar por cartas - mesmo sem saber quanto tempo o correio levará para entregá-las - pois, assim como você, eu também dou muito valor a nossa amizade. Afinal, no tempo em que sua fa míl ia morou em Viena, fomos quase inseparáveis, e uma relação desta intensidade precisa ser preservada. Pelo menos, é o que penso! E por aqui há muitas novidades; nem sei por onde começar, se pelo mais recente ou pelo mais antigo. Bem, houve anteontem o incidente com os comunistas, que faziam uma manifestação; em algum momento, começou uma briga com a polícia, e soube que morreram vários trabalhadores. O clima po lítico está quente, assim como em Berlim; não tínhamos líderes vermelhos como os da Alemanha, que de qualquer modo foram mortos - estou me referin-

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do a Rosa Luxemburgo e a Liebknecht, cujo assassinato em janeiro causou aqui certa comoção -, mas também aqui vivemos o fim de uma era, e tudo está muito confuso. Papai -que, é claro, vota com os social-cristãos -comentou que os comunistas precisam ser detidos, e houver mais uma discussão azeda ontem no jantar. Falou-se do que está acontecendo na Hungria, com os Sovietes de Béla Kun no poder, e naturalmente papai se opõe a tudo o que cheire a socialismo. Em Munique vocês também tiveram uma República dos Conselhos, mas teve vida curta, apenas algumas semanas. Eu sou mais pelos social-democratas, que aliás ganharam por pouco as eleições de fevereiro - três cadeiras de diferença frente aos social-cristãos -e têm uma série de projetos para melhorar a vida da classe trabalhadora. Karl Seitz, o prefeito, propôs uma refonna fiscal que deixou a burguesia horrorizada e obviamente papai o detesta. Por que me inclinei para os social-democratas? Entre outras coisas, porque desde que entrei para a Faculdade de Medicina, há um ano mais ou menos, tenho visto de perto a miséria e a doença. A gripe espanhola fez aqui estragos terríveis, talvez a pior calamidade em matéria de saúde pública desde a grande peste de 1679 - a que deu origem à Coluna da Peste no Graben, como você bem sabe. Mesmo os alunos do primeiro ano foram mobilizados nas enfermarias, e vi gente morrendo como moscas, debilitados, esfomeados - um horror. Suponho que em Berlim não tenha sido muito diferente. Aliás, este pequeno treinamento de enfermagem me foi útil por outro motivo, bem mais grave para nossa família. Leonora tentou se matar há cerca de dois mese~. jogando-se no fosso do bonde em circunstâncias que logo vou descrever. Não sofreu nada mais grave do que uma perna e umas costelas quebradas, mas teve de ficar em repouso por várias semanas, e eu lhe servi de enfermeiro durante as primeiras noites. Conversamos muito e acabamos por nos aproximar bastante; ela é muito inteligente, com você bem se lembra, mas vem sendo fonte de desgostos familiares já há um bom tempo. O fato é que ela nunca foi muito amiga de homenagens mascu-

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li nas - você mesmo tentou namorar com ela, c sabe como ela o rejeitou -e, para dizê-lo logo, parece ter fortes inclinações para pessoas do seu próprio sexo. Sim, meu amigo. minha irmã gosta de estar em companhia de mulheres! Papai ficou horrorizado ao saber disso, há coisa de uns dois anos. Foi nas férias de verão de 1917. logo depois que nasceu nosso innãozinho Johann. Ela teve uma reação muito estranha, bem diferente da que vimos quando mamãe teve o Franz; naquela época, pouco antes de começar a guerra, Leonora ficou toda maternal, fez amizade com aquele garotinho que encontrou no Volksgarten e não parava de falar no assunto. Você se lembra, ela tinha na época treze anos, e pedia o tempo todo para que Fraulein Gunda, nossa governanta, a levasse até a estátua de Strauss naquele parque, porque sabia que ali encontraria o menino. Tanto fez que os pais dele acabaram vindo jantar aqui em casa, e mamãe vê até hoje aquela senhora, que se tomou sua amiga. Pois bem: quando nasceu o pequeno Johann, Leonora ficou muito transtornada. Começou a procurar a companhia de mulheres, jovens mães como a do garotinho - só que agora o interesse era por elas, não pelos seus fi lhos. Em Bad Gastein, houve aquela cena horrível em que papai quase bateu nela, ao saber que estava atrás de uma atriz - ninguém menos que Pola Negri, que ainda não era tão famosa. mas já despontava como uma mulher notável (você deve tê-la visto em Carmen e naquele delicioso filme egípcio, Os Olhos da Múmia Ma). Mamãe não se preocupou muito, mas papai ficou furioso, gritou com ela na rua, humiihou-a, só faltou chamá-la de prostituta. Dali para a frente, Leonora o desafia a cada momento, e, tendo fracassado com a Negri -que voltou a Berlin e que eu saiba não veio mais à Áustria - enrabichou-se com uma senhora Klein, ou pelo menos assim conhecida. M~~a, Klein é bonita, tem uns 28 a 30 anos, e ouvi Leonora dizer·que é de família nobre; mas sua reputação não é das melhores, vive com uma amante, e até à tentativa de suicídio de Leonora, não lhe dava a menor bola. Já minha irmã, apaixonada por ela, ficava horas esperando-a à saída de casa ou do teatro, e

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no dia em que tentou se matar, estava passeando com Frau Klein quando cruzou com papai, que saía do escritório. Parece que o velho deu-lhe um daqueles olhares furibundos, ela disse à amiga que ele não queria mais vê-las juntas, e Frau Klein decidiu terminar ali mesmo aquela relação, que de qualquer modo não lhe agradava. Leonora ficou desesperada e se jogou no fosso do bonde; por sorte, não vinha nenhuma composição, e os passantes a acudiram. Papai chamou um táxi e a levou para casa. Foi um susto e tanto, mas o Dr. Bauer logo chegou e viu que o caso não era dos piores; como lhe disse, algumas fraturas e nada mais. Desde então, papai parou de criticá-la tanto e ao que parece ela ficou mais calma; porém continua vendo Frau Klein, a qual, comovida pelo gesto de Leonora, está lhe dando um pouco mais de atenção. Não sei com isto vai terminar, mac; estou preocupado, pois Leonora está totalmente tomada por sua paixão: não q uer continuar os estudos. ela que sempre falou em ser advogada e lutar pelos direitos das mulheres; não sai mais, só para ir à ópera ou ao cinema, e tem muito poucas amigas. Enfim, um problema sério. Bem, de resto as coisas vão como podem ir. Falta tudo na cidade, o inverno deste ano foi horroroso - sem aquecimento - e ao que tudo indica o próximo será pior ainda. O curso de medicina é interessante, temos bons professores você sabe que Viena era, antes da guerra, um dos melhores centros médicos, e continua a sê-lo - e eu realmente gosto do que estou estudando. Mamãe vai bem. sempre um pouco coquete, mas isto faz parte da sua natureza. Franz está crescido, já tem cinco anos e em breve começará a ir ao jardim de infância. Os negócios de papai vão como podem ir. nesta atmosfera confusa dos nossos tempos; boa parte dos seus fornecedores está agora em países estrangeiros, desde que as províncias se separaram para formar estes novos países, Hungria, Tchecoslováquia e Iugoslávia; tudo é difícil, os trens são raros e funcionam mal, e só a Ópera vai bem- Richard Strauss foi nomeado diretor há pouco e promete uma temporada brilhante a partir de setembro.

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Escreva-me quando puder, e conte um pouco do que vai por Berlim, como você está, e como vão as garotas. Um forte abraço do seu amigo Friedrich von Kleist.

2. Viena, 20 de setembro de 1919 Prezado Karl, Ao voltannos das féri as, esperava-me a sua carta, que foi muito bem-vinda. Já imaginava que você fosse admirar-se com o que lhe contei sobre Leonora, e tenho novidades a respeito. Mas tanta coisa aconteceu desde junho, que peço a você licença para pôr minhas idéias em ordem e contar uma coisa de cada vez. Antes, deixe-me expressar minha inveja por você estar em Berlim; 1i ontem na Neue Freie Presse sobre a est.réia do último fi lme de Lubitsch, Madame DuBarry, que segundo o jornal foi um sucesso aí. Você já foi vê-lo? Dizem que Emil Jannings está ótimo como Lufs XV, e Leonora vibrou quando soube que Pola Negri está excelente no papel da DuBany. Ela continua gostando de cinema, especialmente destas titas da UFA dirigidas por Lubitsch. Papai não aprova esta inclinação, e diz que Leonora gosta mesmo é de ver a espevitada. Ossi Oswalda em papéis como o da Princesa das Ostras - este você deve ter visto, é uma comédia muito engraçada. Mas papai nunca aprova nada do que nós, seus filhos, fazemos, de modo que já não nos admiramos com suas recriminações. Em todo caso, o cinema tem sido um ponto em comum entre Leonora e mim, e sempre discutimos os filmes que vemos juntos. Quanto às desaprovações de papai, a última foi hoje, quando falamos à mesa sobre política: você sabe que nosso chance1er, Karl Renner, é social-democrata, e que acaba de assinar em Paris o tratado que a Áustria firmou com os Aliados. Para papai este tratado é uma vergonha, e ele

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diz que o nome Saint-Germain- o subúrbio de Paris onde foi celebrada a cerimônia - ficará sempre sendo o símbolo de uma humilhação para nossa jovem República. Mas o que mais se podia fa1.er? Fala-se muito aqui na proibição que o tratado impõe de a Áustria se unir à Alemanha, coisa a que os socialcristãos, tão caros a papai, são absolutamente favoráveis. Ele mesmo, como muitos outros, acha que a Áustria amputada de suas províncias não é um país economicamente viável, e se queixa de que os negócios vão mal. Contudo, ainda temos a possibilidade de passar o verão nas montanhas ... Não sei; penso que a situação dele é menos precária do que ele diz ser. Já que você quer saber sobre Leonora, vou lhe contar como ela está. Temos conversado bastante, e criamos o hábito de ir ao cinema com frequência. Vimos entre outras fitas a Cannen de Lubitsch, novamente com a dupla EmH JanningsPola Negri; mas falta a música, e a versão para ópera é sem dúvida melhor. Já a Prince.w das Ostras e A Boneca são excelentes; aguardamos ansiosos a chegada aViena daDuEarry, e temos visto outros filmes, principalmente alemães, já que os estrangeiros ainda não são distribuídos aqui. Veremos agora, depois do tratado, como ficam as coisas; espero que cheguem Jogo, pois ouvi di7..er que há excelentes comédias americanas. que Leonora e eu temos muita curiosidade em assistir. E há este novo filme de Griffith, O Na.çcimento de uma Nação. o qual os jornais dizem ser esplêndido, mas que até agora não pôde ser exibido em Viena. Bem, com Leonora as coisas vão como estavam indo. Continua loucamente apaixonada por Frau Klein, mesmo esta tendo lhe aconselhado a desistir das mulheres e a procurar um rapaz a quem possa amar. A reputação de Frau Klein está em baixa aqui em Viena; nobre ou não, ela é simplesmente uma cortesã. e vive do que arrecada com diversos homens. Sim, porque ela sai com oficiais, empresários e juízes; e continua a ter sua amante, ao que parece atirando dos dois lados da trincheira. Agora Leonora cismou que irá salvá-la da ruína, regenerá-la, etc., tudo dependendo apenas de Frau Klein ceder aos seus apelos e se tomar sua amante oficial. Mas. até

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onde sei, entre elas as coisas não passaram de alguns abraços e beijos na mão, de modo que às ve7...es Leonora a-;sume o papel de Diotima no Banquete e faz belos discursos sobre o amor sem sexo, sobre a pureza do vínculo entre ela e Frau Klein, e assim por diante. Mamãe, que até pouco tempo atrás não parecia tão escandalizada com oajfaire, agora a trata muito mal; é papai quem se preocupa mais, pois no fundo é um homem carinhoso, apesar de sua rudeza e de suas idéias politicamente reacionárias. Pensa que Leonora está doente, e, como estudante de medicina, incumbiu-me de averiguar se existe algum tratamento para a homossexualidade. Pois bem: existe e se chama Psicanálise. Aqui em Viena vive um certo Dr. Freud, que também não goza de boa reputação no meio médico. Outro dia, visitando o Josephinum - o museu de anatomia com aquelas figuras de cera que o Imperador José mandou fazer em J781, para que os estudantes de medicina pudessem aprender como é o corpo humano - encontrei-me com Raimann, o assistente de Wagner-Jauregg. Talvez você tenha ouvido fa lar do cas<> dos neuróticos de guerra; eram soldados que ficavam em pânie<>, não podiam combater, e corriam o risco de ser fuzilados por traição ou deserção. Wagner-Jauregg, como psiquiatra mais eminente da Faculdade, declarou durante a guerra que estes soldados não eram covardes, mas doentes, e recomendou um tratamento à base de pequenos choques elétricos. Fala-se agora numa investigação, porque teriam ocorrido excessos de crueldade com estes choques; e Raimann m~ disse que será formada uma comissão para averiguar o que houve. Também me disse que os psicanalistas, adeptos de Freud, eram contrários a este tratamento, e que propunham uma espécie de psicoterapia, conversando com os soldados. Ao que parece, saíram-se muito bem; dessa conversa com Raimann participou também um colega meu, húngaro, que mencionou ter servido na guarnição de Pápa com um certo capitão Ferenczi. Este Ferenczi, ao que parece o principal freudiano da Hungria, fazia este tipo de tratamento com os soldados do hospital de Pápa, e obteve resultados apreciáveis. Wagner-Jauregg detesta Freud e os psi-

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canalistas, mas as autoridades militares ficaram impressionadas com o desempenho dos médicos que usaram a Psicanálise e, segundo Raimann, estão pensando em pedir ao Dr. Freud que participe desta comissão. Assim fiquei sabendo sobre este método. e falei dele a papai. Quando soube que Freud tem teorias muito estranhas sobre a sexualidade e que estas não são aprovadas pela Universidade, papai não gostou da sugestão: para ele, a respeitabilidade vem acima de tudo. Mas eu estou insistindo, pois encontrei na biblioteca da faculdade diversas obras de Freud e as estou lendo. Uma delas é um volume de conferências que ele fez aqui na Universidade durante a guerra, Liçües de Introdução à Psicanálise; achei-as magníficas, e nem um pouco pornográficas, como dizem os rumores a seu respeito. Pelo contrário, são muito bem escritas e ponderadas, com muitos exemplos, e bem mais interessantes que as classificações descritivas de Kraepelin, que é o texto adotado aqui como manual básico de Psiquiatria. Enftm, estou em campanha para que papai e mamãe consultem Freud, e vejam se ele pode fazer algo por Leonora; por enquanto, ainda não falei com ela, pois de nada adiantará sem a permissão dos dois. Em breve, poderei dizer o que resultou dos meus esforços ; até lá, receba um forte e cordial abraço do seu amigo

Friedrich von Kleist.

3. Viena, 4 de outubro de 1919 Estimado Karl, Uma breve nota para lhe dizer que papai e mamãe foram ver Freud e que decidiram permitir que Leonora faça uma

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"psicanálise". Gostaram dele, ou pdo menos o respeitam; ele lhes disse que é difícil curar a homossexualidade, especialmente num caso como este, em que Leonora não quer mudar seu comportamento nem sofre de modo algum por ele, mas concordou em vê-la por um ou dois meses, para "estudar o caso", e então tomar uma decisão. Quanto a minha irmã, aceita se tratar, não tanto porque pense em mudar de vida, mas porque - assim me disse ela - lhe causa pena o sofrimento de papai; com mamãe, suas relações estão meio estremecidas, e francamente acho que Leonora a detesta. Fiz Leonora me pro-

meter que me contará todos os deta.lhes do tratamento; ardo de curiosidade por saber como é uma psicanálise, e venho estudando os livros de Freud, que cada vez me parece mais inteligente e saga:t. Li recentemente a história de "Dora", uma moça de dezoito anos como Leonora, que sofria de histeria; nem tudo o que ele escreve me parece lógico, mas sem dúvida é brilhante, e s6 espero que nossa amiga não o deixe plantado depois de quatro meses. como fez a outra jovem. Por aqui as coisas vão como podem ir: agitação política

depois do tratado, discussões sobre os projetos dos socialdemocratas para Viena - querem transformá-la numa vitrhe do socialismo, com idéias sobre educação popu lar, habitação, saúde, etc. - e uma movimentada temporada no teatro e na ópera. Nenhum Max Reinhardt por aqui, infelizmente, e nenhuma UFA para produzir filmes; mas as orquestras vão se recompondo, e outro dia Richard Strauss apresentou sua prime:ira montagem como diretor, A Mulher sem Sombra, uma nova ópera cujo libreto foi escrito por Hu go von

Hoffmannsthal. Foi aplaudido de pé por nossa exigente platéia vienense. Na faculdade, começo meu segundo an,, na sala de anatomia, e já aprendi a dissecar alguns membros. Viena está cheia de refugiados políticos da Hungria, após a entrada dos romenos em Budapeste e a queda do regime dos sovietes, ·em agosto. Ao que parece, não teremos gripe espanhola neste

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inverno, mas tampouco gás suficiente para o aquecimento, nem outros combustíveis. Brrr! Um forte e cordial abraço do seu amigo Friedrich von Kleist.

4. Viena, 13 de novembro de 1919 Prezado Karl, Novidades! Estou apaixonado - e ela me deu esperanças! Chama-se Hilde, é minha colega da Faculdade de Medicina- entrou no primeiro ano agora com a nova turma- tem olhos verdes e lindos cabelos escuros. Conheci-a na cantina da faculdade, conversamos, marcamos um passeio no Prater, andamos na roda gigante e fomos tomar o vinho novo num dos Heurigen próximos ao parque. Ela é inteligente, culta, aprecia música e literatura, e, o que é mais importante, gosta de mim! Temos nos encontrado diariamente, à saida das aulas, e lhe emprestei meus cadernos do ano passado. Enfim , meu amigo, estou nas nuvens! Ela dança muito bem, e no próximo domingo iremos a um baile -estou treinando meus passos de valsa, para desenferrujar as pemali... Leonora começou há algumas semanas sua análise com o Dr. Freud. Ele mora na Berggasse, próximo à Votivkirche, a poucas quadras da parte da Ringstrasse conhecida como Schottenring. É um homem de uns sessenta e poucos anos, com barba e meio calvo; Leonora ficou impressionada como seus olhos. que. diz ela, são os mais penetrantes que já viu. Fala baixo, com um alemão impecável, e a voz inspira confiança. A análise ocorre todos os dias, de segunda a sábado, às quatro da tarde. Ela se deita num divã, e, como já está começando a esfriar, há uma manta para que os pacientes se cubram, porque o aquecimento ainda é mÚito fal ho e irregular.

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Há vários estrangeiros, americanos e ingleses, com que ela se encontra ao entrar ou ao sair do apartamento; a razão disso, me parece, é que assim o Dr. Freud recebe seus honorários em moeda forte , pois nossa coroa austríaca vai de mal a pior, por causa da inflação que se seguiu à guerra. Aliás, papai me disse que está pagando a análise dela com sua reserva de libras esterlinas, o que mostra como está desejoso de que este tratamento dê certo; se não der, disse ele outro dia, procurará arranjar logo um casamento para Leonom Assim, àcredita ele. os seus " instintos naturais" despe1tarão, ·e ela voltará a ser uma mulher no sentido pleno da palavra. Leonora, por sua vez, me confidenciou que não repele a idéia, mas não porque pense em abandonar Frau Klein, e sim porque, com o marido, poderia escapar ao que chama a "tirania'· de papai. E, um tanto cinicamente, acrescentou que saberá se arranjar com o infeliz marido para poder fazer tudo o que quiser- e ele que se dane. Contanto que não se depare com um Pctrucchio, como na Megera Domada de Shakespeare ... Você me pergunta o que penso da homossexualidade dela. Devo di7.er que estou dividido. Intelectualmente, não vejo problema nenhum nisto; a psicanálise diz que a homossexualidade não é uma doença, mas um tipo de escolha sexual que tem como causa uma parada no desenvolvimento das pulsões. Moralmente, não vejo como condenar quem prefere companheiros do seu próprio sexo - são muitas vezes pessoas nobres e inteligentes, como Oscar Wilde e tantos outros.

Na Grécia antiga, Safo escreveu odes tão belas quanto as dos melhores poetas líricos. e sua paixão era dirigida às sensuais jovens da ilha de Lesbos. Tenho acompanhado a campanha do Dr. Magnus Hirschfeld para retirar do código penal alemão o artigo que considera cri me a homossexualidade, e seus argumentos me soam bastante convincentes. Mas afetivamente, preferiria que Leonora fosse como as outras moças, que usasse sua beleza inegável e todos os seus dotes para fazer a felicidade de um homem - você, por exemplo, que gostava tanto dela quando vivia em Viem~. Não sei; estou confuso. Em todo caso, com ela evito falar de minhas dúvidas, porque ganhei

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sua contiança e não quero perdê-la. Ela continua apaixonada por Frau Klein, que outro dia tive oportunidade de conhecer. Antes eu já tinha ouvido falar sobre ela e, certa vez, a vi passar pe la rua. É uma mulher bonita, elegante, magra e de feições regulares, embora um pouco duras. A ligação de Leonora com ela é muito mais forte do que a dela com Leonora; para você ter uma idéia, há poucas semanas, Grete (uma amiga sua francam ente homossexual) lhe fez propostas, e minha irmã as recusou com o maior desprezo. Você vê que conversamos sobre coisas muito íntimas; mas, por outro lado, se Leonord quer mesmo conviver com mulheres, por que não aceitou a solicitação da sua amiga? Não entendo. Talvez ela não esteja tão segura assim do que quer- quem sabe? Perguntei-lhe do que fala na sua análise. Ela diz que fala de tudo, de nossa famrlia, de Frau Klein, do que pensa, etc. Também conta seus sonhos, e Freud os interpreta. Ela o admira muito pela sua inteligência e pela sua atitude calorosa, mas por outro lado fica um tanto incrédula com as coisas que ele lhe diz. Dou a você um exemplo, que ela contou anteontem, para que possa julgar por si próprio. Ela sonhou que estava grávida e feliz com isso; seu marido lhe dava um anel de ouro para comemomr a concepção deste primeiro filho . Você deve saber que o método do Dr. Freud consiste em dividir o sonho em partes e solicitar "associações" para cada elemento do sonho; depoi s, junta tudo e faz a sua interpretação. Pois bem, o anel lembrava a Leonora o anel dos Nibelungos, e justamente tínhamos visto, há poucos dias, a nova versão do Crepúsculo dos Deuses montada por Strauss, que está fantástica. Na saga dos Nibelungos, há um personagem, Siegmund, que o Dr. Freud interprelOu como se referindo a ele, que também se chama Siegmund. Leonora foi associando, e de Sigmund passou a Siegfried, que é o herói do Crepúsculo. Você se lembra que, nesta ópera, Siegfried recebe. uma poção mágica fabricada por Hagen, o traidor; esta poção deve fazer com que ele se esqueça de sua esposa, a valquíria Brunhi Ide, e se apaixone por Gutrune, irmã

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de Gunther, o rei dos Gibichungen; Siegfried, bebendo a poção, esquece que já é casado com Brunhilde e a traz para se casar com Gunther. Tudo isto foi mencionado por Leonora, que conhece bem a Tetralogia de Wagner. Freud lhe disse que esta trama se liga à história da própria Leonora; Brunhilde- pela semelhança dos nomes - presta-se bem a representar Hi Ide, minha namorada, o que faz com que Gunther represente a mim e Gutrune a própria Leonora, irmã do rei. Mas Gutrune não quer se casar, pelo menos não antes de conhecer Siegfried; há um momento, no início do primeiro ato, em que ela diz que se se casar ficará grávida e perderá sua beleza por causa das deformações que o parto pode produzir. Ora, esta é a opinião de Leonora, que no momento não pode nem ver uma mulher grávida - e há muitas em Viena, com o regressso dos soldados... Assim, segundo Freud, se confirma que Gutrune representa a própria Leonora, mas com o sinal trocado, por assim dizer, já que no sonho ela aparece grávida e fe liz. Mas o melhor vem agora. Gutrune, na ópera, muda de idéia ao ver Siegfried, e é ela quem lhe dá a poção mágica para beber. Freud tirou partido disso e deduziu que Leonora queria "dar-lhe uma poção mágica", capaz de o confundir e fazê-lo "perder a memória" . O sonho seria esta poção, por assim di:ler. Portanto, concluiu, não há desejo algum de gravidez, Leonora não tem a menor intenção de romper com Frau Klein, e o que o sonho significa é que ela quer enganar Sicgfried/Sigmund, fazendo-o crer que a análise vai "curála" e que ele poderá incluir este caso entre os seus "troféus de combate". Mais ainda, é o que ela estaria fazendo com papai, enganando-o quanto ao sucesso da análise e fazendo-o esperar que todo este esforço dê o resultado que ele espera. O que você me diz disso? Fiquei impressionado, e Leonora também; se non e vero. e ben trovato, como dizem os italianos. Freud chama esta atitude de "resistência", e esta substituição de personagens uns pelos outros de "transferência". Leonora me contou que e le falou um bom tempo sobre estas noções; ela escutou, achou tudo muito interessante, saiu

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da consulta e foi encontrar Frau Klein no café da esquina da Berggasse com a Wahringer Strasse... Bom, eis o que queria contar a você. De resto, nada de muito novo; ontem festejou-se o primeiro aniversário da nossa jovem República, o Dr. Karl Renner fez um discurso no Parlamento, e houve todas as cerimônias de praxe. Mas o povo não está muito entusiasmado, e a meu ver teremos dia<> difíceis pela frente; a lembrança da velha Ásustria, do velho Imperador José e de toda a pompa da corte dos Habsburgo ajnda está muito viva. As cicatrizes da guerra vão demorar a se fechar, se é que se fecharão alguma vez.... Mas deixemos de Jado a melancolia. Nossa cozinheira fez uma Sac:hertone para a sobremesa de hoje à noite, tenho um lindo cadáver me esperando amanhã na sala de anatomia, Hilde me mandou um bilhete delicioso, e o mundo deve ter tons mais alegres de que se poderia adivinhar somente pela leitura dos jornais! Um forte abraço do seu amigo, hoje muito feliz. Friedrich von Kleist.

5. Viena, 16 d e dezembro de 1919 Estimado K.arl, Hoje, depois de exatos dois meses, Leonora anunciou que o Dr. Freud decidiu interromper o tratamento, visto que nada vai mudar no seu comportamento sexual . Aconselhou-a a procurar uma analista mulher - sim, elas existem - uma médica cham ada Helene Deutsch, discípula dele. Deixou entender que. com uma analista mulher, talvez a Psicanálise tenha mais êxito. Não compreendi bem por quê, mas suspeito que o motivo tenha a ver com colocar na vida e nos interesses de Leonora uma outra mulher. Se ele pensa que com isso ela

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vai desistir de Frau Klein, temo que esteja muito enganado... Papai ficou muito aborrecido com o desfecho da história e se recolheu ao seu escritório, provavelmente para ver quantas libras nos restam depois de pagar os honorários do Dr. Freud. Mamãe não demonstrou grandes sentimentos, mas acredito que ela já não tinha mui tas expectativas, desde o início. Eu mesmo fiquei triste, porque venho me interessando muito pela Psicanálise e gostaria que esta tentativa tivesse dado melhores resultados. Devo sair para procurar um presente de N atai para Hilde, que está cada vez mais bonita - ou pelo menos eu a vejo assim. O frio já chegou, a neve começou a cair, e nada de aquecimento; o inverno será ainda pior que o do ano passado. O dinheiro anda curto, e penso em procurar, nas lojas da Kã.rtner Strasse, algo feito de boa lã para aquecer minha amada; só palavras e abraços não vão dar conta do recado ... Saudações natalinas e um feliz 1920 para você e para os seus, é o que deseja o seu amigo Friedrich von Kleist.

6. Viena, 8 de abril de 1920 Querido Karl, Estou enviando, junto com esta carta, um exemplar da lnternationale Zeitschrift fiir Psychoanalyse, cujo número 6:1 acaba de sai r. Mal acreditei quando vi na capa o título do artigo de Freud: "Sobre a Psicogênese de um Caso de Homossexualidade Feminina". É a história de Leonora, sem tirar nem pôr; ele diz que é um caso recente - "e in frisches Fali"- e é "fresco" mesmo, pois o tratamento acabou pouco antes do Natal. Corno em Hamlet, podemos dizer que a carne servida no jantar do enterro ainda não esfriou, e já a apresen-

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tam no banquete de casamento... Você acha mórbida esta minha "associação"? Não sei o que pensar, ainda estou sob o impacto da leitura. Como sempre, a prosa é magnífica, a história se lê como uma novela, e não como um destes aborrecidos "casos'' da literatura psiquiátrica. O raciocínio é claro e límpido, desde que você concorde com as premissas da teoria psicanalítica. Mas, caramba, é a história da minha irmã, e mal posso aceitar que esta seja a "psicogêncse" do seu comportamento. Aliás, eu também apareço - de leve - no relato, mas num ponto decisivo: Freud escreve que Frau Klein se parece comigo, e que, ao escolhêIa, Leonora realizou de modo disfarçado seus desejos incestuosos. pois, como naquelas bonecas russas, "demro" da imagem de Frau Klein está a minha, e dentro da minha a de papai . Gelei ao ler isto, e certamente não vou mostrar ao bom Dr. Anton o que Freud escreveu sobre nós... Ele também diz que Leonora tem inveja de mim por eu ser homem - "inveja do pênis", chama-se isto-, mas nunca notei nada disso nela. Será que sou tão cego assim? Não quero discorrer muito; você lerá o relato e me dirá suas impressões. Leonora ainda não viu o texto, e hesito se devo ou não mostrá-lo a ela. Eu mesmo só por acaso me deparei com a revista, na vitrina de uma livraria à qual vou pouco, porque é demasiado cara para meus recursos de estudante; mas estava por perto, já que havia ido à Kartner Strasse comprar um presente de aniversário para Hilde. Mas esta é uma outra história. Sabe o quê? Vou ler mais uma vez o artigo; e, se me convencer de que a lógica de Freud é boa, apesar das ·'resistências" que o conteúdo desperta em mim, irei procurá-lo. Quem sabe o que pode sair de uma conversa com este homem? Fico por aqui. Um forte abraço de seu amigo, de cujo espanto. corno di zia Aristóteles, talvez nasça alguma filosofia. Friedrich von Kleist.

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A dama

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Maria Klein, demi-mondaine

Ângela Maria A. Porto Furtado

Não saberia dizer, até agora, em que exatamente, em que ponto dado, além das roupagens com que me vesti tanto tempo, aquele olhar brilhante e furioso me tocou. Não consigo, enlretanto, esquecê-lo. Parecia não se dirigir nem a mim, nem a ela, Leonora, que, como em tantas tardes, caminhava a meu lado levemente apoiada na manga de meu vestido. O Sr. von Kleist, andar resoluto e modos refinados, embora firmes, parecia fixar agudamente um ponto vago entre mim e ela. Talvez tenha sido esse o meu maior incômodo! Não sei se enquadraria o Sr. Anton von .Kleist entre os moralista sombrios, os cínicos sofisticados ou, simplesmente, entre os pais devotados à sua fu nção regimentar. Amor conupto ou inocente, vício ou doença. é ceno que o ideal burguês exigente não lhe permitia conceder qualquer discussão sobre um amor que não lhe parecesse respeitável. Nem mesmo, acho, ele lhe daria o mereci mento deste nome: amor. Talvez ele até pudesse concordar que a natureza humana conhecesse, na paixão, suas imperfeições, mas, ostentá-las ·assim, com espalhafato, como Leonora o fazia? Se ela, pelo menos, lhe facultasse a negação tão vigente nesses nossos tempos, ou a permissividade cúmplice comum àqueles que desconsideram essa variedade de amor!... Ah ! se assim fosse ... talvez ele não precisasse gastar indignação com mulheres que amam mulheres!

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Pois. já de há muito, tenho eu cá minhas razões no passado, as mulheres despertavam meu interesse, embora os homens me acorda-;sem muito mais. Com elas podia experimentar a profundidade da pele, enquanto deles fruía a medida de uma outra profundidade, a dos meus limites de mulher. Talvez incomodasse a tantos porque, para uma sociedade em que a cuidadosa preservação das aparências significava a possibilidade constante de triunfo da hipocrisia, eu não vinha sendo muito prudente! Tinha para mim que o sexo eJLigia um certo conhecimento e nunca me havia furtado a ele. Também já havia observado que esperavam de mim, mulher de predileções sexuais discutiveis, que me apresentasse decaída, que me dissesse vítima impotente do destino Uá que o destino não é um vício) ou que me fizesse absolvida ao confessar minhas inclinações e práticas, pelo menos, chorando c rasgando as vestes publicamente. Não era assim. A mim também se apresentavam enigmáticas e constrangedoras muitas das minhas emoções e impulsos apaixonados, a tal ponto penosos que preferiria não os experimentar, caso tivesse deles o controle da razão! Ainda assim, desde as perdas que marcavam a decadência financeira e social de minha família e que me fizeram aguçar a inteligência de sobreviver, eu tentava sustentar ao menos a dignidade de uma tisionomia franca, de um corpo agradável, de uma mente viva e de um sorriso aberto. A este meu modo de ser os homens se apresentavam com frequência e entusiasmo. Afora a impropriedade incômoda de ser grosseiramente considerada umademi-mondaine, o que os tomava reservados, por vezes embar~çados, não podia me queixar das atenções e do conforto com que sempre pude me ver cercada por eles. Quanto às mulheres, das armadilhas eróticas oferecidas por elas ao corpo fustigado de calor, sangue e fantasia, não consegui me livrar. Em um colégio interno, num tempo de

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puberdade e lassidão. a amizade era sagrada e intacta e por mais calorosa que fosse, conservava a característica, aos olhos da culturd, de inocência e impunidade. Pois dela, então, fiz bom uso. Eu era só e viva. Wanda, amiga daquele tempo jovem, no colégio, que, muitos anos depois, vim reencontrar em Viena, foi o repouso. o refúgio, o comovente espaço onde a revolta do meu desamparo e a rebelião contra o meu destino solitário puderam se transformar num amor imperecível e restaurador. Hoje coabitávamos uma esperança desesperançada, a de viver felizes, numa mesma casa, eventualmente, numa mesma cama, à margem do descaso de um marido conveniente e tolerante, de cuja generosidade eu dependia em parte. De qualquer modo, não sabia de Anton von Kleist a não ser por llrn pálido retrato esfumado que sua filha me deixara entrever nas suas palavras e atitudes. Não o conhecia e ele não me conhecia, a não ser, talvez, de um retrato similar. Que espécie de suposição havia se instalado em Leonora quando insistentemente passou a me perseguir nos lugares e ocasiões mais inesperados? O que eu havia, sem o notar, referido a ela? Afinal, o repertório do amor proverbialmente impreciso, ambíguo e elástico poderia abarcar qualquer movimento apaixonado, qualquer gesto aparentemente inocente e, repentinament.e, capturar o desavisado olhar de uma jovem! Não havia sido assim comigo mesma? Talvez, hoje, eu compreenda a minha condescendência amável com os sentimentos c cortejos dela e, quem sabe, reconheça a curiosidade desafortunada que se apossou de mim. Ao dar-lhe trela, ou dar-me rédeas, deveria adivinhar que repassaria, da minha história, as histórias de amor benditas, malditas e interditas. Ah! ... Leonora se me afigurava tão rija, amarga e desamparada! O seu andar, subitamente desnorteado, fazia-a oscilar de um tropeçar nos próprios pés a um pisotear a terra como quem a queria possuir.

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Tropeçando foi que ela se aproximou, através de uma amiga em comum, para se apresentar quando, num café, fazíamos um grupo tagarela sobre a música, seu ritmo pulsante, seus "crescendos" ofegantes e clímax emocionantes. Enfim, discutíamos animadamente como a música podia ser uma estratégia de migração da sensualidade e de escamoteamento do desejo sexual. Leonora olhou-me atônita, ato contínuo, voltou-se e, dando-me as costas, atravessou o salão até uma bela mulher que, postada ao fundo , olhava-nos com um misto de questão e enfado. Alma, soube depois, era sua mãe. Pensei, emão, tê-la aterrorizado nos seus dezoito anos. Pensei tê-la feito correr e se abrigar no ninho macio dos seios da mãe. Pensei nunca mais vê-la me rodeando e me diverti imaginando ter esfregado em sua ingenuidade o sinal perigoso da minha intolerância à inexperiência. Terrível engano! Não houve um dia em que ela não se insinuasse com bilhetes, flores, recados, súbitas aparições sustentadas por fúteis propósitos de conversa ou desculpas esfarrapadas para companhar-me. Às vezes me divertia, outras me entediava, outras tantas preocupava-me pelo rumo que este caso poderia tomar, já que sua determinação era a de, até as últimas consequências, experimentar o que, sem mais aviso, eu lhe havia sugerido do que eu era ou aparentava ser e do que vivia nas minhas relações amorosas. Não era indiferente para mim, ademais, que tamanho desejo e ardor apaixonado me alimentassem a vaidade. Momento houve então que, incomodado, suponho, pela regurgitante reivindicação de sua filha de viver seu amorestranho a qualquer preço, mesmo ao preço de mentiras subterfúgios, o Sr. von Kleist resolveu apelar para o expediente mais controvertido, conquanto cada vez mais propalado de nosso tempo: a psicanálise, pelas mãos de seu criador, Dr. Freud. Leonora me fez, agastada, ciente da iniciativa do pai, garantindo-me, porém, que a única fidelidade à qual se via obrigada era aquela dos seus propósitos, propósitos de liberdade para amar a quem desejasse. Seria difícil para ela sub-

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meter-se de bom grado à mise en scêne do compromisso que o pai lhe exigia. Só o faria para se livrar de sua vigilância e ter trânsito mais flexível para estar com sua "adorada dama" . A mim também me intrigava sua escolha, assim como, em alguns momentos entristecidos, ocorria perguntar-me a mim por que me enlevava uma dor destas, que só e apenas doía. Também me estranhava que, tão sôfrega. Leonora tentasse se jogar nos meus braços ou aceitasse meus beijos afetuosos, quão rápida se confessava à mãe de seus sonhos e paixão. Ainda assim. dela jamais ouvia admoestação mais severa ou conselho radical. Estranho. Seria a mãe, Alma, tão bela, alma do jogo que a jogava, Leonora, tão jovem, para mim, Maria Klein, mulher da vida, demi·mondaine, meio mudana, meio? Seria eu só meio? O ruído monótono e repetitivo do trem, de tão repetitivo que se fez silêncio: de tão monótono que parecia introduzir o inexorável..., de repente, se interrompe e me interrompe no contínuo de meus pensamentos. Afasto-me de Viena em direção a Paris- "Sont les temps modemes" , 19'20. Busco a direção da vida, entre amigos poetas e a música. Aquele olhar, o do pai, assim hoje me parece, cortou o fio que ainda tentei sustentar na trama que, a pretexto de me fazer amada, me fez trilhar de novo os descaminhos de minha própria história. Não sei o que me levou, enraivecida, exposta, não sei, num átimo daquele momento, a dizer a Leonora o "nunca mais" que a fez balançar titubeante e, entre a minha voz e o olhar do pai, saltar de um golpe nos trilhos do trem. Decaída, decaídas ambas, ainda a vi algumas vezes, após a recuperação do grave acidente. Ela se valia agora da ameaça que fizera aos pais de sua morte, para insistir no seu desafio. Eu, eu desfio o fio que me fia e tece.

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Afasto-me dela, de Viena, em direção a Paris. Sou Maria Klein, dita demi-mondaine. "Sou Maria, sou demi, sou mulher." O ruído do trem, monótono e repetitivo, parece gritar, inexorável e cruel, esse refrão.

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A jovem

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Aos olhos dele

Maria Rita Kebl

Foi o olhar dele que me atirou nos trilhos. Percebi de imediato o que dizia: prefiro te ver morta a saber disso. Em seguida eu caí. Não me atirei, como dizem. Caí. O olhar dele me empurr.ou; por um segundo ele quis me ver morta para não saber. Depois se assustou com o que fez.. Quer que eu vá conversar com um médico especial. Eu !... mas se foi ele quem me fez cair! Meu pobre pai - há quanto tempo eu não o amo mais? e no entanto seu poder se confirmou mais uma vez. É que eu sou quase nada aos olhos dele. Se ele mostrasse querer alguma coisa, qualquer coisa de mim, seria eu, não ele, a poderosa. Mas tudo que ele quer de mim é que eu não faça algumas coisas. Se eu desaparecer, se eu nada for, para .ele está bem. Desde que eu não ultraje a sua família, o seu nome, nome que não depende de mim para se perpetuar. Maria não é companhia para mim. Quando ele me viu, seu olhar disse: prefiro te ver morta. Obedeci. O que ele não quer saber, não estou bem certa; eu mesma sei bem pouco de mim. Mas ele, :;empre foi desse tipo que prefere não saber. De nada. Basta ver o jeito que minha mãe vai levando como quer. ou melhor, como não quer. Ele acredita. o bobo. Hoje é a dor de cabeça, ontem as palpitações. na semana pa!isada ficou cinco dias sem sair do quarto a pretexto de náuseas, amanhã serão cólicas, tonturas, dispnéia. Minha mãe é um compêndio médico, mas no últi mo capítulo o prognóstico é desalentador: todas essas doenças têm cura. mas a

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paciente não. A cura depende da vontade da doente, e esta aqui, meus senhores, está bem melhor assim. Cuidados, atenções, chazinhos - nenhuma exigência, nenhum aborrecimento - e toda aquela circulação silenciosa à volta dela, a meia voz, na pontinha dos pés, as cortinas abaixadas, e os beijos suaves dos meus irmãos, beijos secos. levíssimos- respeitosos? Respeitosos eu já não garanto. Vista de um outro ângulo esta mesma cena, o qu.e parece? Cortinas abaixadas, sussur· ros, atenções carinhosas. toques delicados ... ela sabe viver com seus três rapazes- quatro, se contar com meu pai. Sabe sim. Só não me peçam pra explicar como foi que no meio de tantãs enxaquecas ela engravidou do caçulinha, seu bonequinho, seu "consolo", ela diz quando está melancólica, como se os outros dois não lhe valessem nada. E eu'! Desde pequena mamãe me chamou de Nora. É um jeito de diminuir meu nome mas também de me fazer mais dela, uma tilha de verdade que ela nomeou e agora chama como quer. Eu gosto de ser Nora, gostei mais ainda quando li a história daquela que deixou a casa. os filhos. o marido e foi viver a vida dela. O marido, coitado, ficou esperando "o maior dos milagres ... um casamento perfeito", e ela partiu. Mas para que eu pudesse ser Nora, seria preciso que meu pai quisesse algo de mim então eu o abandonaria, à espera da minha volta, "o maior dos milagres". Mas meu pai tem mamãe, minha mãe tem os meninos. E eu? Eu sou , na melhor das hipóteses, uma espécie de poupança para o futuro dela. "É bom ter uma filha, Alma", ouvi uma amiga dela dizer: ··os meninos vão embora, mas uma filha sempre nos fará companhia na velhice." A frase que me propõe um futuro tão interessante não inclui meu pai, certo? Ou seja, de duas uma: ou ele já está marcado para morrer antes dela, o que é bem provável já que ele é mais velho e trabalha duro desde que me entendo por gente; ou ele não serve de companhia para minha mãe, não servirá na velhice dela porque nunca serviu. "Anton não entende nada", eu ouço ela se queixando às tias, às amigas, até ao Friedrich eu já a ouvi se queixar, como se fosse decente uma senhora desaba-

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far desse jeito com seu filho. Comigo não, é claro. Eu faço parte dos que nada sabem. como meu pai. Só que no caso dele, é porque não quer saber. No meu, é porque "não convém". "Não convém a uma mocinha ouvir essas conversas." "Não convém a você saber de certas coisas." "Não convém se apressar, tudo vem a seu tempo." Eu sou um caso de inconveniência radical nessa família. Mas no futuro, quando me couber ser boa companhia na velhice de minha mãe, deverei merecer suas confidências- ou as mulheres idosas se esquecem daquilo que tanto precisaram confidenciar na juventude? Se ela não se esquecer, terá a mim, única filha, como confidente. Portanto, só no futuro estarei a par de tudo o que hoje não me convém. Nunca pensei em enganar minha mãe sobre meus conhecimentos. Se hoje ela se engana a meu respeito, não é porque eu minta a ela, mas porque ela me proíba, com seu simples silêncio, de dizer a ela o que toda moça como eu já teve ocaisão de aprender. Sei o sentido das regras de que sofro todos os meses, há anos. Ela sabe das regras, não teve como ignorá-las, mas pensa que minha curiosidade parou onde ela me deixou: "acontecem a todas as moças nessa idade". Então ela não sabe que desde menina alcanço a estante dos livros científicos? Pensa que nunca conversei com Friedrich, que nunca escutei conversas das criadas, que estive horas a fio escutando Maria falar com sua amiga sobre o sexo dos anjos? Eu sei muito mais do que ela pensa, muito mais do que ela julga conveniente para minha idade, muitíssimo mais do que meu pai sisudo quer saber. E no entanto ainda me sinto longe do conhecimento verdadeiro sobre as coisas da vida. Quando Maria conversa com suas amigas, sinto que alguma coisa soa muito distante de mim. Mesmo que eu conheça o sentido de cada palavra, parece que eu não alcanço o lugar de onde elas nascem, o sentido especial que dá graça ao que dizem. Um dia, quando Maria era só uma figura atraente que passava sob nosso balcão, Friedrich teve a imprudência de comentar com alguém, perto de mim: - Esta sabe das coisas.

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O sentido da frase estava no sorriso dele. Atrevido, perigoso. O sorriso dizia:- Ah, se eu te pego! ... dizia isto a ela, sem que ela soubesse - mas cu vi, Friedrich. Gostei tanto de brincar com ele - ah, se eu te pego! Eu era o caçador, antigamente ele a presa. Fui bem maior que ele nos primeiros anos, então adorava a caçada, pular sobre ele de um canto escondido da sala, ele gritava de medo, de prazer também. Adorava dominálo com meu peso, fingir que mordia, comia, estraçalhava. Ele não me chamava Nora ou Leonora. me chamava de Leo. seu leão ou leoa - nunca mais fui forte como uma leoa depois que Friedrich deixou de me chamar de Leo. Depois ele cresceu e inverteu a brincadeira, era o tigre feroz, eu a corça assustada. Dos dois jeitos era bom. Um dia a criada ouviu a correria no quarto e disse que ia contar a mamãe. Não entendi -contar o quê? Não estamos brigando, eu expliquei, e ela riu: "por isso mesmo" ... Friedrich entendeu alguma coisa porque teve tanto medo que nunca mais aceitou meu convite. Sofri como uma noiva abandonada, só hoje sei que nossa brincadeira era uma coisa proibida, a criada tinha razão. Se Friedrich me recusava, não me interessava brincar com mais ninguém. Ele ainda é meu irmão, meu amigo querido - mas até hoje temos um segredo, e quando ele não sustenta o meu olhar, fico tão triste como se ele tivesse partido para o outro lado do mundo levando a senha dos meus segredos de infância na sua bagagem: ah, se eu te pego. Friedrich entendeu antes de mim o que a criada sabia. Friedrich não se interessa pelas moças bobinhas, ignorantes. Ele não admite, mas seus olhos brilham por Maria - ela sabe das coisas. Vou atrás de Maria até o fim do mundo, até o inferno, que Deus me perdoe - mas quero saber. Maria não tem dores como minha mãe. Maria ri. Maria tem um cheiro muito diferente do de minha mãe. Minha mãe cheira bem, um cheiro de quarto de criança, cheiro que eu adorava; respirava fundo ao abraçar mamãe. Afundava o rosto nas roupas dela até ela me afastar - está bem, Nora, já chega, menina. Um cheiro de lençóis limpos, de banho, um cheiro diurno tinha, ainda deve ter, minha mãe. Maria tem um perfume doce. exa-

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gerado até- não gostaria de usar um tal perfume. Mas ele se mistura a um cheiro de pele, cheiro da pessoa dela, tão característico quanto impressões digitais. Amargo, um tiquinho salgado: Maria tem um cheiro de pessoa. Nem preciso abraçála, afundar o rosto no seu colo (nunca pude abraçá-la, só uma vez beijei de leve sua mão como quem reverencia um bispo, um cardeal, algo assim) pra saber o cheiro que ela tem. O cheiro de Maria anda ao redor dela. Minha mãe tem prefume de quê? De mãe, ora. Sempre foi assim. Maria me faz saber o perfume que tem uma mulher que não é mãe, que não cheira a bebês, a talquinhos, a lencóis. Será que Friedrich percebe o cheiro de Maria? Maria não é exatamente uma mulher honrada, dizem mas o que faz a honra de uma mulher? Eu também tenho a honra em meu nome, mas não me interesso por ela. Honore. Uma mulher honrada é como minha mãe, tão linda e inútil, tão jovem e cheirando a quarto de bebê, afastada dos amores verdadeiros, pagando sua honra à custa de enxaquecas, agarrada ao consolo do seu bebezinho estúpido. Uma mulher honrada não tem uma história dela. Maria, cheia de histórias que não me deixa saber, não é tida como honrada, mas a honra feminina não me importa: a honra dos homens é que faz heróis. Em defesa da honra eles guerreiam, se aventuram, conquistam bandeiras, fazem nomes. Pretiro ser Leonora desonrada como Alienor, a rainha adúltera, mãe de Ricardo Coração de Leão, que deixou Luís de França por Henrique da Inglaterra e ainda traiu os dois muitas vezes, até se rebelar jogando os filhos contra o pai em benefício próprio. Gostaria de ser Alienor desonrada, que se fez poderosa e comprou sua honra de volta, como os homens fazem. Compraria a honra de Maria, també m, como um herói salva sua dama. Ela não gosta muito de mim. Um dia me magoou dizendo que eu "grudo". Não sei por que essa menina grudou em mim, disse à amiga, bem alto para que eu pudesse ouvir. Talvez minha mãe também se incomodasse quando eu grudava em suas roupas, e ela me dizia - chega, Nora. Talvez Friedrich se incomodasse quando eu insistia em brincar de pegar, quando

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ele não queria mais - mas não queria mesmo? Maria disse que eu grudo e eu tentei mudar a tática, não é assim que se faz? uma proximação sutil, disfarçada. Pretextos inventados. Com os homens fu nciona melhor - se eu fosse um rapaz já teria sido convidada aos aposentos de Maria, quantas coisas ela me faria saber! que injustiça não podermos mudar de sexo quando nos convém, como quando eu brincava com meu irmão: num dia a caça, no outro o caçador. Poderia ser como a outra Leonora, a gue se fez de homem e entrou como Fidélio onde era vetado às mulheres entrar. Como a outra guerreira, Joana. Mas Joana se fez homem para lutar IJQf amor a Deus. e eu seria Fidélio para ter acesso à intimidade de Maria por amor a quem? A Friedrich. Para saber como é a mulher do desejo dele, a que toma seu olhar atrevido e perigoso como eu vi naquela tarde. Tentei inventar pretextos. Pedi um livro emprestado, ela cedeu. Pedi que me explicasse algumas coisas , sou jovem ainda, há termos que não entendo. E la foi cortês. Disse que eu deveria fazer certas perguntas a meus pais. Um dia eu a vi passando e fingi um encontro casual -que coincidência. também vou naquela direção! Andamos juntas alguns quarteirões e a amiga veio se juntar a nós. Então meu fingimento falhou e eu supliquei - Maria. quero saber tantas coisas sobre você, por favor, peça.a Wanda que não venha, diga a ela que nossa conversa é particular! Pouco depois papai nos viu juntas e e u caí. Mas ames, tive que ouvir a resposta de Maria. Quem você pensa que é, ela disse. Debochada, rindo de lado para a amiga ver como ela é superior, me rejeitando. Quem você pensa que é? irritada também, mas achando divertida a minha reação, ou melhor- minha falta total de reação. Pois então você não sabe, eu lhe disse, que eu só consigo pensar em quem você é? Você não percebeu que eu preciso saber quem você é? Por quem você me toma - ela já havia dito uma vez em particular, quando a amiga não estava perto para partilhar o olhar cúmplice, o riso disfarçado com a minha humilhação. Também daquela vez não pude responder. Se eu soubesse por quem tomo você, Maria, não teria que

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segui-la até o inferno, até o fim do mundo, aceitando humilhações, sentindo o olhar de meu pai me exterminar, sofrendo a crítica discreta de Friedrich e de mamãe. Quem eu penso que sou depende de quem é você. Como posso saber o que é uma mulher que não é mãe? Sou Leonora. Isto eu sei. Leonora, Nora, Leo, Honore, Alienar, posso ser muitas outras ainda, mas até agora quase nada eu vivi. Sou todas estas e não sou ninguém. Não posso responder à pergunta de Maria pois não tenho uma história pra contar. Que troca impossível esta entre duas mulheres; uma a quem não posso responder quem sou, porque preciso tanto saber como ela é. E se eu não posso responder quem sou, e]a não se interessa por mim. Mas Maria se interessou por minha queda. Ficou acessível por uns dias, carinhosa até. Talvez pense que eu me atirei num gesto romanesco, como os que tentam suicídio por amor. Então ela pensaria que eu sou alguém'? Me u pai se interessou por minha queda. Esteve preocupado. Quis saber. imaginem, se eu sofro! Dizem que em Viena existe um médico a quem posso falar de minha queda, por recomendação de meu pai. Todos querem saber do que menos me interessa. Minha história começou no dia em que eu caf, mas o que posso dizer sobre isto? Foi o olhar dele que me atirou nos trilhos. E também a resposta debochada de Maria mas quem você pensa que é? Não me atirei, como dizem. Caí. Minha história começou no dia em que eu cai.

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Diário clínico· 10 anos depois

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Anotações sobre a análise de uma mulher Eliana Schueler Reis

20 de maio de 1930 O que busca a mulher em outra mulher? Venho pensando a propósito da paciente K, que comecei a ver no final de março, cujo tratamento pode me ajudar a compreender melhor a homossexualidade feminina, que é muito menos estudada pela psicanálise do que as manifestações homoer6t1cas masculinas. Como eu já escrevi há muito tempo, classificar uma sexualidade com homo ou hetero, a meu ver, não se justifica, pois a sexualidade é uma conjunção de fatores libidinais que se organiiam sob o regime da anfimix.ia, e portanto não se resume às direções que tomam as escolhas de objeto. Isto diz respeito ao modo como os erotismos se organizam em determinadas direções. Ou seja, a sexualidade não é nem homo nem hetero, ela é múltipla. Os destinos eróticos de cada indivíduo são a consequência conjuntural da sua história pessoal. A homossexualidade feminina expressa as primeiras sensações eróticas ligadas a um objeto, o primeiro amor, que tanto para a menina quanto para o menino é à mãe. Talvez por isto a sociedade não julgue tão severamente a mulher quanto julga os homens homossexuais. As manifestações de carinho e afeto que as mulheres fazem umas as outras, em geral, são toleradas e encaradas como normais, enquanto que aos homens não é permitido o menor toque a não ser em lutas e disputas esportivas.

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A paciente em questão tem uma história curiosa de uma análise com Freud, quando ainda era bem jovem. Ela foi levada a ele por seu pai para curá-la de suas inclinações amorosas, que não eram consideradas adequadas. Parece que o Prof. Freud não conseguiu muita coisa, já que ela não estava pessoalmente interessada em se analisar e sim em escapar de uma situação familiar quase insustentável. A jovem na época estava intensamente apaixonada por uma certa dama da sociedade, de reputação duvidosa, e o conllito entre seus sentimentos e as convicções paternas levou-a ao extremo de uma séria tentativa de suicídio. Ela procura tratamento análitico agora, por sua conta, devido a sua dificuldade em aceitar as imposições de um casamento de conveniência e principalmente às dificuldades que encontra na maternidade. Foi obrigada pela família a se casar com um homem que mal conhecia, para que se curasse de suas "manias" através da obrigação da prática heterossexual no matrimônio e para abafar o escfindalo que ameaçava o bom nome da família. Não é difícil imaginar que este casamento, com todas as suas implicações, lhe foi extremamente desagradável, eu diria que lhe trouxe muito sofrimento e provocou o endurecimento de seu caráter, que já tinha características marcantes e mesmo um pouco masculinas. K. sofre atualmente, não só pela obrigação de estar casada com um homem que não ama nem deseja, mas, principalmente, por ver que está repetindo com sua filha pequena as mesmas coisas que enfrentou quando criança em seu relacionamento com sua mãe, que sempre deu mais atenção e amor ao filho homem. K. diz que se sentia jogada fora, desvalorizada por sua mãe em tudo que fizesse. Observação: A falta de amor e a desvalorização por parte da mãe, dificultam a construção de um sentido corporal e identitário próprios, pois tem a ver com os processos de introjeção primária e com as mais primitivas formas de investimentos. K. queixa-se de sensações de desrealizaç.ão e rle ameaça à totalidade da existência; tem sonhos com ondas enormes no mar nas quais está prestes a se afogar e dos quais

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acorda gritando e chorando. Estes sonhos revelam o desejo de retomar este contato com a mãe primitiva e o temor de submergir neste retorno. Medo da perda total de contornos e da identidade. Vamos ver como esta história pôde caminhar, já que K tem uma enorme dificuldade (correspondente ao enorme desejo) de se entregar a uma transferência analítica. Ela é muito desconfiada e muito arguta, usando a ironia e o humor mordaz como forma de defesa contra o analista. K. tem sobre seus familiares a estranha vantagem de ter experimentado em sua vida sentimentos e amores considerados impróprios e ter-se visto constrangida a escondê-los, mas não a esquecê-los e recalcá-los. De uma certa forma, esta jovem senhora mantém-se tiel a suas escolhas juvenis e não se deixou cair na hipocrisia estagnante que a sociedade quis lhe impingir. Talvez se o fizesse, tivesse desenvolvido uma neurose que a tomasse incapaz de sentir o seu desconforto, mergulhada na miséria dos seus sintomas. Veremos até que ponto essas marcas de caráter vão lhe pennitir, desta vez, a aproximação com o analista e o aprofundamento do trabalho de análise para que se possa tocar em feridas profundas e muito antigas.

20 de junho de 1930 A propósito do uso da teoria corno defesa do analista na contratransferência : Pensando sobre a contratransferência a propósito da primeira análise de K. : Ela relatou que Freud, no último dia que estiveram juntos, aconselhou-a a procurar uma analista mulher, para que os complexos referentes à relação com sua mãe pudessem ser tratados. Como se um paciente não pudesse viver na relação com um analista homem a transferência maternaL O problema de Freud é que ele passou a acreditar mais na sua teoria do que na realidade das sessões. Eu sei que Freud, com certeza, não podia estabelecer uma relação transferencial com esta jovem, isto lhe exigiria mergulhar em seu universo infantil e feminino e

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ter um pouco mais de interesse pelas pessoas. Acredito que ele, no início, acreditava na análise, mas depois se desencantou com seus pacientes, já que os sucessos não eram tantos e principalmente pelo problema da contratransferência, que se abria diante dele como um abismo. Além disso. Freud abandonou os interesses das mulheres (que foram tão importantes para ele no início de seu trabalho), em prol dos pacientes masculinos. como consequência da orientação andrófila de sua teoria da sexualidade.

29 de agosto de 1920

O bebê sábio é o louco que não perde a razão. Voltando a K., ela é dotada de uma inteligência aguda, que não foi embotada pela submissão cega que se instala, em geral desde a infância, pela dependência da criança e até da própria diferença de tamanho e força entre uma criança e os adultos. Se pelo menos estes não abusassem de sua vantagem, as crianças poderiam crescer sem serem tão marcadas pelo temor e pelo terror. Mas a criança inteligente e que se vê compelida a se desenvolver precocemente toma difícil a instalaçã-o desta submissão. A falta de amor e a incompreensão dos adultos (a distância da mãe, no caso de K.) exigem da criança que se tome o bebê sábio e dê coma de suas próprias dores. Posso pensar que a indiferença e até a hostilidade materna significam uma violência e têm o efeito de um trauma para o eu infantil. Na primeira infância a criança encontra-se mais próxima de um estado de "dissolução", em que está em "ressonância" com o mundo à sua volta, captando os sinais que vêm do meio ambiente e que são principalmente sinais afetivos. Para integrar esta dissolução ela precisa do amor e da compreensão dos adultos. K. nunca se sentiu amada e sua mãe a tratava com distância e até com hostilidade, principalmente quando começou a ficar púbere e a se tornar outra mulher dentro de casa;

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nunca a elogiou nem ficou feliz em ver a fi lha se tomar uma bela jovem. Ao contrário, só lhe fazia críticas pela feminilidade. Sua mãe era uma mulher muito jovem e bela e não queria rivais. As crianças que sofreram alguma perturbação maior em sua estruturação, resultante numa clivagem, tendem a pennanecer, quando adultos, mais próximas do estado de dissolução, o que pode resllltar numa psicose, mas também numa sensibilidade especial para as sensações. Se não se tornam loucas, podem ser capazes de se identificar com a dor do outro por conhecerem, elas próprias, a natureza da dor. Tornamse crianças sábias que são obrigadas a resolver sozinhas os seus enigmas e procurar suas próprias respostas.

17 de setembro de J930

O que é ser homossexual? K. é até hoje como uma menina que não abriu mão de sua atividade e curiosidade sexuais. Como se o quinhão de amor oferecido a ela por sua mãe fosse insuficiente para que ela pudesse se tornar mulher e mãe. Sente que hostiliza a filha , não tem prazer com sua presença, o que faz com que sofra muito, com muita culpa por não dar à fi lha o que sempre quis de sua mãe. As mulheres sabem, e ela também, que existem desejos que só a mãe pode aplacar. Muitos dos sentimentos homossexuais das mulheres vêm da saudade que elas sentem da mãe e não têm nada a ver com a inveja do pênis, ou com uma negação da feminilidade. No caso de K. o desejo de agradar à mãe, fez com que ela quisesse ter um corpo de homem, ser homem para evitar as críticas maternas quanto ao seu corpo de menina. K. foi-se afastando de seus pendores femininos, para não se submeter às humilhações maternas. Deixava de ser uma concorrente ao mesmo tempo que tentava agradar à mãe buscando parecer-se com o irmão. Como consequência disso, K. tornou-se uma pessoa es-

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quiva e desconfiada, cujos impulsos sádicos não encontraram vazão de nenhuma forma criativa, somente no ódio mesclado às ironias e sarcasmos dirigidos às pessoas próximas e principalmente à filha. K. foi endurecendo ao sentir que sua mãe não sentia nenhum prazer em observá-la crescer e se desenvolver, tornando-se uma nova mulher. Mas. parece que lhe resta ainda generosidade e integridade, pois ela consegue sentir o mal que faz à pequena e lembrar do mal que lhe fizeram, de como esperava que sua mãe a amasse, acariciasse e tivesse orgulho dela e só recebia reprimendas duras e ironias. Tanto anseio de amor sendo negado, poderia tê-la tomado tão dura que o sadismo se fizesse preponderante em seu caráter. Por outro lado seu pai sempre foi , segundo ela, um homem fraco e nervoso, dominado por sua mulher, principalmente pelo amor que lhe dedicava. Ele nunca a protegeu desta aridez de sentimentos. Na verdade, acredita que ele só passou a se preocupar com ela quando começou a demonstrar sua preferência por mulheres. Nesse momento ele se manifestou, mas K. acha que era por causa das convenções sociais e aparências, e que na verdade ele não sentia nada muito verdadeiro. Só queria evitar os comentários da sociedade.

25 de setembro de 1930

Ser analista é ser analista mulhét é homem. O que K. pode esperar de mim, do analista, senão .a repetição daquilo que ela já conhece: indiferença, hostilidade, hipocrisia e incompreensão? Tenho tentado me manter numa distância ótima, nem muito perto (solícito demais) nem muito distante (hipocrisia profissional). Sinto que para se estabelecer alguma confiança é preciso muita paciência, pois ela nunca pôde confiar em ninguém que fosse próximo e nunca teve direito à escolha de suas relações fora da fanu1ia. K. nunca rompeu com as convenções sociais a ponto de ser posta no ostracismo, mas também nunca conseguiu encontrar uma amiga em

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quem pudesse confiar, já que suas amizades estavam sempre sob suspeita. Discordo inteiramente da indicação de Freud de que ela deveria tentar análise com uma mulher, pois o que está em questão não é o sexo do analista. mas a possibilidade de ele vir a circular por vários papéis. Numa análise, a transferência não gira só em torno da figura paterna. Aliás, acho que sem que possa haver um retorno às experiências que envolvem os primeiros contatos com a figura da mãe, não se pode mergulhar numa verdadeira análise do caráter. K. viveu a relação com a mãe como algo ameaçador e transformou o seu medo e seu anseio pelo amor de sua mãe numa tentativa sem fim de conquista das mulheres, mas nunca pôde construir uma representação de mãe que pudesse supri-Ia internamente. Com isto, tinha que ser sempre submissa às mulheres e hostil para com os homens. para que ficassem afastados. já que eles poderiam ameaçar sua aproximação da figura feminina. Minha presença como analista homem coloca para ela : . este dilema: quer se aproximar e entregar-se à transferência, · o que para ela significa deixar-se mergulhar no mar de seus primeiros anseios de amor sem limites; porém. toda sua vida foi construída sobre a reserva e a desconfiança, principalmente para com os homens (acredito que como uma derivação, um segundo tempo. Na verdade, a desconfiança é com relação à mãe tão fugidia). Devo me deixar conduzir por ela nesta flutu ação, pois se forçar uma intensificação transferencial ela s~ distancia, toma-se fria e sarcástica para não entrar em pâruco. Ao mesmo tempo, se fico no distanciamento técnico, ela se torna indiferente e o trabalho não avança. ·.Se interpreto sua resistência, isto não tem o menor efeito, pelo contrário, ela se toma cáustica e lança selvagemente todo o seu desprezo sobre mim. A análise não pode poupar 0 analista nem a teoria aoalfrica; temos de estar atentos às palavras dos pacientes e tr~balhar em cima dos indícios que eles nos dão: As provocações dos pacientes são dirigidas àquilo que no analista repete situações vividas em sua história. Cabe

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ao analista, portanto, mudar o rumo da repetição e produzir a possibilidade de novas experiências. A tarefa da análise é de reconstrução através da repetição que introduza diferenças onde até então só havia identidades.

30 de ourubro de 1930 Compaixão e perdão mútuo como possibilidade de atingir certas regiões da mente. Começam a surgir alguns sinais de que K. está se deixando tocar pena análise. Relatou pela primeira vez um sonho que não é de angústia e de ameaça de morte. Continua sonhando com as águas, mas desta vez a água não aterroriza como nos sonhos anteriores. Sonha que mergulha no mar em busca de um tesouro. Da superfície pode ver o brillio dourado das moedas de ouro misturadas com o lodo lá no fundo. Quando se aproxima do fundo e vai tocar as moedas, percebe que não são de ouro, são de alguma outra coisa que brilha muito, meio escondida no meio das algas e do lodo. Seu primeiro sentimento é de decepção, mas em seguida fica curiosa para pegar aquelas coisas brilhantes, que não deixam de ser um tesouro, e diz para si mesma: não são ouro, mas valem também porque são belas. K. acordou deste sonho com um sentimento misto de tristeza e alívio, porque não foi .em vão a sua busca, mesmo que o tesouro não fosse o esperado. Percebe, então, que sempre espera o tesouro de ouro e não aceita quando encontra outras coisas, não conseguindo dar valor a nada que não seja aquilo que idealizou. Acha que colocou sua filha como substituto da mãe, vingando-se na menina de suas mágoas infantis.· Disse, então, que pela primeira vez conseguiu se aproximar da filha com carinho, sem aquele gosto amargo de deceprrãu e rancor. Yoho a pensar que o caminho ua análise não pode passar ao largo dos primeiros traumas infantis ligados à perda da figura maten'la. De uma certa forma este trauma passa sempre por um desmentido, já que os adultos se esquecem

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da dor que eles próprios experimentaram e negam à criança o sentido para suas desilusões. K. está fazendo o percurso de volta. podendo compartilhar com sua filha sua dor e talvez ajudá-la, e a si própria, a encontrar o seu tesouro.

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Referências

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Todos os artigos têm como rerferência o texto: FREUD, S. A Psicogênese de um caso de homossexualidade numa mulher (1920)./n Edição Standard Brasileira das Obras Completas de. Rio de Janeiro: Imago, 1975, v.

XVIII. Seis cartas de Friedrich von Kleist para seu amigo Karl SchiJler de RENATO MEZAN:

Os fatos da vida política e artística mencionados nas cartas correspondem ao que efetivamente se passou em Viçna entre junho de 1919 e abril de 1920. As pessoas públicas

mencionadas também existiram efetivamente e ocuparam as funções referidas. Para a documentação, consultaram-se as seguintes obras; BAPTISTA FILHO , Z A ópera. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1987, verbete O anel dos Nibelungos, p. 616-

640. Benét 's Reader's Encyclopaedia. New York: Harper and Row, 19S7, verbete Kriem!Jild. BOURGET, E. e L J. Lubitsch oulasatire romanesque. Paris: Stock , 1987 (coll. Champs Contre-Champs), especialmente p. 14-34. COCHE DE LA FERTÉ. E. Hugo von Hoffmannsthal . Paris:

Seghers, 1973 (coll. Monographies), especialmente p. 55 e seg.

FREUD, S.Über die Psychogenese eines Falies von weiblicher H omosexualitiit.

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Edição da Studienausgabe, Frankfurt am Main, v. VII, p. 255-281. A nota introduté>ri a de J. Strachey esclarece que o texto foi redigido em dcztrnbrl>de 1919 c janeiro de 1920, e publicado na lnternationale Zeitschrift for Psychoanalyse em março de I920, pennitindo assim reconstituir a cronologia dos eventos. _ __ . Sobre Ja.psicognénesis de un caso de homosexualidad femenina. Tradução de Lopez Ballesteros. Madrid: Biblioteca Nueva, v. 111, p. 2545-2561. Dois erros de tradução podem aqui induzir em e ngano o )eitor incauto: à p. 2549, Ballesteros diz que a dama não dava atenção à paciente ''hasta después de su tentati va de suicídio " (cf. Fre ud , "b i.r zum Selbstmordversuch " , até a tentativa de s uicídio, Studienausgabe VH, p. 263 ); e à p. 2550, lemos que a paciente tem um irmão "un poco menor que ella" (cf. Freud, "den wenig iilteren Bruder", um irmão um pouco mais velho, Studienausgabe VII, p. 265) JONES, E . A vida e a obra de Sigrmmd Freud. Rio de J aoeiro: lmago, 1989, v.U,p. 281-284(refere-seaotextodeFreud, dando data de composição e tecendo outros comentários). e v. Jll, p. 38 seg., sobre o episódio envolvendo WagnerJauregg e o tratamento dos neuróticos de guerra. KRACÀUER , S . De Calligari a H itl er: une hi s toire psychologique du cinéma allemand. Lausanne: L' Age d' Homme, 1977, especia)mente cap. 4, p. 45-63. KREISSLER, F.Histoire de l 'Autriche. Paris: PUF. 1977 (coll. Que sa.is-je?), especialmente p. 8 1-92. Vienne de A à Z: une ville se présente. Viena, Wiener Fremdverkehrsverband (Comissão de Turismo da Cidade de Viena), 1986. WEILLET, J. Art and politics - Weimar Period (The New Sobriety, 1917- 1933). NewYork: Pantheon Books, 1978, espec ialmente o capítulo " Revolution and t he arts : Germany, 1918-1920".

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"Anotações sóbre a análise de uma mulher" de ELIANA SCHUELER REIS . FERENCZI, S. "Masculino e feminino" (1929). In Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes, 1922, p. 37-46. _ _. "A criança mal- acolhida e sua pulsão de morte" ( 1929). In Psicanálise IV. São Paulo: Marti ns Fontes, 1992, p.47-52. _ _ . Diário clínico ( 1932). São Paulo: Martins Fontes, 1990.

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Sobre os autores

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Ângela Maria de Araújo Porto Furtado, psicóloga, psicanalista. Membro do Instituto de Estudos PsicanalíticosIEPSI. Tem vários artigos publicados nas revistas Grfphos e Estudos de Psicanálise. Eliana Schueler Reis, psicanalista, mestre em Teoria Psicanalítica pela UFRJ, tendo defendido, em 1992, a dissertação " Trauma e Repetição no Processo Psicanalítico- Uma Abordagem Ferencziana". Professora e supervisara de clínica da Livre Associação Psicanalítica RJ - Clínica Escola. Membro do Instituto Sandor Ferenczi do Brasil.

José Domingues de Oliveira, psiquiatra, psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG e seu atual presidente (gestão 95/97). Tem vários artigos publicados na revista Reverso. Mareio Peter de Souza Leite,-psiquiatra, psicanalista. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise. Autor de O deus odioso, o diabo amoroso (Escuta); A negação da falta (Relume-Dumará). Maria Rita Kehl, psicóloga, psicanalista, ensaísta. Autora de Processos primários- poesia (Estação Liberdade) e A mínima diferença- ensaio (Imago), inéditos. Oscar Cesarotto, psicanalista. Membro da Escola Bra-

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síleira de Psicanálise. Autor de No olho do Outro; Um affair freudiano; Jacques Lacem · uma biografia intelectual (com M. P. de Souza Leite); Idéias de Lacan (organizador), todos da Iluminuras. Renato Mezan, psicanalista, professor titular no Curso de Pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC/SP. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, onde coordena a Revista Percurso. Autor de diversos livros, entre os quais Freud, pensador da cultura (Brasiliense); Psicanálise, judaísmo: ressonâncias (Imago); A vingança da esfinge (Brasiliense); Freud- a trama dos conceitos (Perspectiva); e Figuras da teoria psicanalitica (Edusp/Escuta).

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