Taylor Caldwell - Doce Vitoria

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OBRAS DA AUTORA A CASA GRANDE A CIDADE DO AÇO A DINASTIA DA MORTE A GLÓRIA QUE PASSOU A HORA DERRADEIRA A LUZ E AS TREVAS A TERRA DE DEUS AMOR COM AMOR SE PAGA ANJO MAU DOCE VITÓRIA EU, JUDAS (com J. Steam) MÉDICO DE HOMENS E DE ALMAS MELISSA NUNCA VENCEDORA, NUNCA DERROTADA O ANJO MAU O COMEÇO DO FIM O CONFESSOR O DESAFIO DO JUSTO O FANTASMA DE CLARA O FIEL DA BALANÇA O GRANDE AMIGO DE DEUS O PECADO DE TODOS NÓS O RIO É A LUZ O ROMANCE DA ATLÂNTIDA O RUGIDO DO TROVÃO O SACRIFICIO DA INOCÊNCIA OS ABUTRES OS CAPITÃES E OS REIS TESTEMUNHO DE DOIS HOMENS UM PILAR DE FERRO

UM TEMPO QUE PASSOU

Título original norte-americano: TENDER VICTORY Copyright © 1984 by Taylor Caldwell. Direitos de publicação exclusiva em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S. A. Rua Argentina 171 - 20921 Rio de Janeiro, RJ – Tel.: 580-3668 que se reserva a propriedade literária desta tradução. impresso no Brasil PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Posta 23052 – Rio de Janeiro, RJ – 20922 impresso na EDITORA LUZ NOVA LTDA. Rua Pesqueira, 134 – Bonsucesso Rio de Janeiro

Ocerização – Correção - PDF epub —> LAVRo

Para Edward G. Aswell, com gratidão por todo o seu trabalho neste livro

I Quando as coisas, acontecimentos, ou pessoas aborreciam, cansavam ou perturbavam o Dr. Francis Stevens, ele se retirava mentalmente para um lugar aprazível onde pudesse refletir sobre o fato de se parecer tanto com o cardeal Francis Spellman que isso passara a ser uma brincadeira afetuosa entre ele e o amigo. O cardeal implicara com ele a respeito, e eles deram boas risadas, não só por causa de sua semelhança mas também por terem os mesmos nomes de batismo. O espantoso é que também tinham temperamento muito semelhante: bem-humorado, realista, fortemente ativo, misericordioso e divertido, e ambos tinham uma espiritualidade apaixonada. Nesse dia, mantendo no rosto um sorriso ameno e fixo, por causa dos outros na biblioteca da reitoria, o Dr. Stevens se perguntava se o Padre Francis tinha de suportar os tolos tanto quanto ele, desse modo ficando à mercê deles. Era provável que sim, Podia ser que ele tivesse uma oração especial que rezasse para si, para aliviar os músculos faciais e a contração dos lábios, Teria de perguntar a ele. O Dr. Stevens disse, em voz alta: — E, sim. Tenho certeza disso. Era raro essas duas frases não serem recebidas com meneios satisfeitos, cabeças abaixadas, em reconhecimento, ou sorrisos de aceitação. Ele tinha polido e cultivado essas frases e esse sorriso ao ponto em que transmitiam quase tudo. Com efeito, qual a situação que não poderia abranger com suavidade e boa vontade, especialmente quando pronunciada com uma voz pensativa ou suavemente contemplativa? O Dr. Stevens, homem muito intuitivo e sensível, de repente se deu conta de que pela primeira vez as frases amáveis tinham provocado um silêncio inquietante. Ele saiu da letargia morna produzida pelo tédio e o calor do dia de agosto e piscou. As senhoras e senhores em volta dele o estavam fitando com insistência, continuando a sorrir com um ar brando e vazio, como se seus companheiros fossem apenas sonhos. Depois seus músculos faciais passaram a doer muito e ele descontraiu o sorriso e levou a mão branca e gorda à bochecha flácida. As paredes da biblioteca brilhavam com tantos livros sérios e importantes, que o efeito geral era deprimente, na opinião do Dr. Stevens. Mas, como refletia por vezes, com pesar, isso provavelmente se devia ao seu conteúdo. Por que os livros religiosos não podiam falar da felicidade, alegria e prazer no amor do Deus, e por que não podiam ter encadernações mais alegres e bonitas, cintilando aqui e ali com um toque de um interessante tom de cor de laranja, rosa ou decorado? A religião não era uma coisa triste, cheia de melancolia e tédio, lira uma experiência viva e brilhante, exultante, às vezes extasiada, um arco-íris de luz entre o Homem e Deus. Era a revelação e a simpatia. Era o êxtase mais profundo do Homem. Para certos espíritos era quase uma blasfêmia sugerir que Cristo podia ter rido, podia ter-se regozijado, podia ter tomado do vinho que produziu nas bodas de Caná. Era muito triste. A Bíblia falava de Deus andando pelo jardim, da Sua alegria com o que tinha criado e Sua satisfação majestosa com Suas obras. Sem dúvida E Ele ficara feliz com as planícies de flores que fizera brotar num deserto escuro e lamacento, salvo das águas. Sem dúvida Ele se rira de prazer diante das “colinas saltando

como cordeiros”. Sem dúvida Ele sorrira para as crianças que se juntaram em volta Dele. Sem dúvida quando Ele assumira a carne de homem desfrutara dos prazeres simples do homem e gostara dos frutos frescos e suculentos. Ele produzira, se descontraíra no sono, olhara com prazer para uma linda aurora ou um pôr-do-sol de uma grandeza especial, e abençoara a todos. Constantemente criava universos que mal eram visíveis ao homem, com todos os seus poderosos instrumentos, mas, quando foi Homem, sem dúvida achava um botão de rosa igualmente importante e significativo, e se abaixara para inspirar a sua fragrância. Em Suas palavras “Os lírios do campo” havia uma admiração terna. Nunca se poderia imaginar isso pelos livros escritos sobre Ele, é o que o Dr. Stevens estava pensando, deprimido. Então, de repente se deu conta de que seu comentário banal provocara grande constrangimento. Piscou depressa e focalizou os olhos meio vidrados sobre as senhoras e senhores que o rodeavam na biblioteca. Estava arrependido de ter pensado neles como tolos, mesmo momentaneamente; não só isso era proibido pelas Sagradas Escrituras, como também era muito pouco bondoso. Era uma gente boa, bem intencionada, se bem que era um tanto limitada em suas ideias, cheia de uma boa vontade natural, embora não cintilante; disposta entusiasticamente na direção das “excelentes obras”, embora lhe faltasse imaginação. Além disso, alguns dos senhores eram homens de negócio bemsucedidos e o Dr. Stevens os admirava por sua eficiência e por sua virtude pública. Estavam todos sentados em volta dele nas poltronas de couro vermelho escuro e azulmarinho, na biblioteca, e entre eles estava arrumada uma mesinha de chá. Raios do sol de agosto entravam pelas venezianas, batendo na bandeja de prata bem lustrosa e nos bules e na louça. Os leves tinidos que acompanhavam as vozes tranquilas e bem-educadas, porém, tinham ajudado a embalar a sua consciência para aquela letargia morna, durante a qual ele cometera algum erro desastroso. Alarmado, procurou se lembrar do comentário que provocara seu murmúrio amável. Nesse esforço, seu olhar vagou. Procurou um esclarecimento na grande secretária de mogno, com o tampo de couro lavrado em dourado, as cortinas azuis, conservadoras, nas janelas altas e estreitas, o tapete azulmarinho, o sofá de couro vermelho, a reprodução discreta (muito boa) de uma catedral inglesa gótica, pendurada entre as janelas. Era tudo muito correto, muito duro, muito pesado e, enquanto procurava se lembrar do comentário, não pôde deixar de ter um pensamento dispersivo e inquieto: Johnny vai ficar abafado com tudo isso. Mas o que foi que eu disse, afinal? Os olhos acusadores sob os prosaicos chapéus das senhoras, os olhos severos dos homens calvos e magros, ou gordos, a consternação naqueles rostos, aguardando, tornou o rosto redondo dele ainda mais vermelho do que de costume. Mas, como clérigo, aprendera a ser hábil. Seu sorriso de querubim tornou-se muito doce e escusatório. Os olhos azuis brilharam com ternura. Ele pegou o bonito lenço de linho e o passou pela cabeça lustrosa e as faces. Começou a rir. — Desculpem — pediu. — Devem desculpar um velho. Afinal, já estou com mais de 70 anos, e por vezes a minha atenção vagueia. Examinou as senhoras. Aquela com os olhos mais acusadores era, sem dúvida, a que lhe dirigira a pergunta fatídica. Era uma mulher de estatura baixa, gorda e competente, de

pouco mais de 60 anos, com uma papada bem decidida; era espantosamente ativa para a idade e o Dr. Stevens respeitava-lhe a astúcia e o bom senso realista. Embora ela tivesse paixão por estampados de flores grandes, como o vestido que usava nesse dia, ele perdoava essa aberração e os resultados deploráveis. Olhou dentro dos olhos cinzentos, um tanto duros, e acrescentou: — Prezada Sra. Grant, espero que perdoe o meu esquecimento de velho; podia repetir o que acabou de dizer? O grupo trocou olhares compadecidos e o Dr. Stevens teve um sorriso íntimo, afetuoso. Como estavam todos na casa dos 50 e 60 anos, ainda eram mais jovens do que ele. Achou, com razão, que estariam pensando: Bom, o coitado do velho! E de esperar, com a idade dele. Então, todos sorriram para ele, amáveis, e a Sra. Grant falou: — Como o senhor sabe, estávamos falando do seu novo e jovem pastor, que resolvemos aceitar por sua recomendação e aval, embora ele só tenha tido uma pequena paróquia antes de entrar para o Exército. O senhor nos disse hoje, e em outras ocasiões, que ele era o seu discípulo favorito no Stevens Religious Institute. Ela falara com precisão e um pouco alto, como quem fala com quem é ou “estrangeiro” ou quase senil. Os outros menearam as cabeças, sorrindo para ele. Bem, pensou, mereço isso. Não tinha o direito de deixar que meus pensamentos divagassem para os livros, mas depois de 10 dessas longas discussões nas últimas semanas talvez me possam perdoar por sentir tédio. Coitado do Johnny! A Sra. Grant alisou as luvas brancas sobre os joelhos gordos. — Todos nós sabemos como devemos ser gratos às nossas forças armadas, e como cumpriram com galhardia o seu dever na Europa durante a guerra. Mas sabemos também o que o militarismo faz até com as melhores pessoas. Ele… as brutaliza, de certo modo. Meu neto, por exemplo, que acabou de voltar, não é mais o rapaz que era antes de se alistar. Antes, era tão bonzinho! Tão bom para a mãe, tinha tanta consideração. Lembrome de quando era menino; chorava quando alguém matava uma mosca. E era tímido, também. Corava se alguém ousasse beijá-lo. Verdade! — Deu uma risada de menina que espantou o Dr. Stevens, pois fazia ideia melhor sobre ela. Os outros também deram risadinhas com ela, com carinho. Depois ela suspirou. — Hoje mal o reconhecemos, e isso nos deixa tristes. O rapaz devia ser felicitado, e o Exército também, pensou o Dr. Stevens, com certa falta de caridade. Respondeu, com brandura: E preciso lembrar-se de que John Fletcher não foi propriamente um soldado. Foi capelão. — Não obstante — disse outra senhora, seria — ele necessariamente entrou em contato com… personalidades militares. Não leio os modernos romances de guerra, claro, mas minha filha lê, e, embora eu mal possa acreditar, ela me diz que o vocabulário… e as coisas que os soldados fazem… A essa altura os senhores pareceram ficar constrangidos e sorriram levemente uns para os outros, lembrando-se da Primeira Guerra.

Cara Sra. Howard, pensou o Dr. Stevens, a senhora ficaria assombrada com o número de personalidades brutalizadas que existem no mundo e o vocabulário e as coisas que acontecem ativamente em volta de sua pessoa inocente, a cada hora de cada dia! Ele se assombrava ao ver que até mesmo as Sras. Howard podiam viver seis décadas sem saber que o mundo não era constituído de “gente boa”, em sua maior parte. Ele contemplou a senhora esguia, de rosto liso, com bastante piedade. A Sra. Grant interrompeu. — Portanto, minha pergunta foi a seguinte, Dr. Stevens: haveria alguma possibilidade de que o Sr. Fletcher se tenha tornado mesmo ligeiramente depravado, rude e insensível, devido ao seu contato com os soldados? — Ela sorriu e seu rosto largo ficou quase bonito. — E o senhor respondeu: “Sim, tenho certeza disso”. O Dr. Stevens estava horrorizado. Pira nisso que dava pensar em livros quando os outros estavam fazendo perguntas tolas. Depois ficou imensamente aliviado, pois todas as senhoras e senhores estavam rindo e sacudindo as cabeças, evidentemente comentando a respeito da idade do Dr. Stevens. Ele falou: — Que coisa horrível de minha parte, e indesculpável. Mas, francamente, ando um pouco cansado, e sentado aqui entre vocês, meus amigos, eu me permiti me descontrair pela primeira vez, há muito tempo. — Estendeu as mãozinhas gorduchas e sorriu. — Há pessoas que alegam não conseguir se descontrair em Nova York. Mas eu nunca descanso tão bem quanto quando estou aqui e durmo como uma criança, a qualquer hora. Se eles ainda não o tivessem perdoado, passaram a perdoá-lo plenamente agora, pois eram todos nova-iorquinos antigos e amavam sua cidade. Abraçaram o novo pastor, John Fletcher, na sua afeição expansiva pelo Dr. Stevens. A Sra. Howard disse, feliz: — De certo modo, é tão romântico o nosso novo pastor ter sido capelão do Exército. Tão pitoresco. Que experiências ele deve ter tido! Acho isso tão empolgante, e vocês? — Ela se virou para os outros, que concordaram enfaticamente. — Tantos dos nossos rapazes estiveram no Exército — respondeu a Sra. Grant. — Tenho certeza de que o Sr. Fletcher terá uma boa influência sobre eles. Há de compreendêlos. Além disso, é jovem e há de ter mais em comum com eles. O Dr. Stevens acreditava que os acessórios de palco são tão necessários a um clérigo quanto aos atores. As pessoas com quem o Dr. Stevens tinha de tratar diariamente, quer em Nova York ou em Illinois, onde já morara, eram cidadãos sólidos e conservadores, de modo que ele sempre se vestia com sobriedade, até para um clérigo, e usava um relógio de ouro antiquado, que pertencera ao pai. Por vezes ele se dizia que o relógio tinha vencido vários momentos muito difíceis em sua vida, especialmente quando alguém começava a suspeitar de que o Dr. Stevens talvez não fosse tão respeitável e de confiança quanto aparentava ser. O relógio era sempre tranquilizador para as almas tímidas e convencionais. Ele o usou então, deixando que os olhos tias senhoras e senhores tocassem na pesada corrente de ouro pendurada em sua barriguinha firme, e depois pousassem, com aprovação, no grande relógio de repetição com suas tampas grossas, gravadas. Alguns suspiraram, com saudades de um pai falecido, e o Dr. Stevens suspirou com eles, pelo pai,

que também fora do clero e uma alma séria, tora do mundo e santa. — Nossa! — exclamou, empertigando-se na poltrona, — Já são quase 16 horas! O meu assistente, Sr. Montrose, deve estar chegando a qualquer momento, com o Sr. Fletcher. O navio já atracou há mais de uma hora. Claro, há a alfândega e outras coisas maçantes, mas assim mesmo… Dispensou o gesto de uma empregada engomada e idosa que queria lhe servir mais chá. Uma onda de empolgação controlada passou pelas senhoras e senhores. O Dr. Stevens ficou comovido ao ver as senhoras endireitarem os cabelos e se pavonearem um pouco. Criaturas boas e queridas. O homem que disse “Ainda me sinto moço por dentro, embora já tenha mais de 77 anos” falara uma verdade profunda. A alma nunca envelhecia, embora o corpo murchasse. Sua juventude se manifestava em lampejos rápidos e repentinos de olhos cansados e velhos, em sorrisos repentinos de um entusiasmo puro, em súbitas alegrias e antecipações infantis. Os mesquinhos e sem coração é que se riam das vaidades femininas idosas e das gravatas e meias alegres cios velhos, de cachos brancos e paletós esportes pendurados em ombros curvos e cansados. Tudo isso era prova de um espírito imortal, que a monotonia dos anos e o peso da vida quotidiana não conseguiam extinguir. O Dr. Stevens guardou o relógio no bolso, cheio do calor que só podem sentir aqueles que compreendem os homens e têm pena deles. Já ia tornar a falar quando se ouviu um barulho tremendo por trás da porta fechada da biblioteca. Era um alarido tal como se poderia esperar ouvir entre jovens animais selvagens numa selva perturbada, e tumultuosa, e as discretas cortinas nas janelas pareceram se agitar, alarmadas. As senhoras e os senhores fizeram menção de se levantar das poltronas, as fisionomias assustadas e curiosas, olhando para o Dr. Stevens, mudas, pedindo uma explicação. Deus do céu! — exclamou ele, e uma vez na vida não olhou para seu público, para ver a reação. — O que foi isso?

II Tão repentinamente quanto começara, aquele alarido na casa paroquial cessou. O Dr. Stevens, as senhoras e os senhores estavam estupefatos. O ministro caiu sentado na poltrona e os senhores ficaram ali, perplexos. — Alguma altercação na rua lá fora — disse o Dr. Stevens, porém sem convicção. O barulho inumano tinha positivamente se originado no corredor ensolarado junto da biblioteca. No entanto, como não havia uma explicação razoável e lógica para ele, era preciso apresentar uma ilógica, por mais incrível que fosse. — Não veio da rua, não! — exclamou a Sra. Grant. — Este é um bairro muito bom! Veio de fora desta sala. — Ela olhou para o Dr. Stevens, furiosa, evidentemente exigindo não só que ele a tranquilizasse, mas que também explicasse. — Por que alguém não abre a porta? Os cavalheiros não mostraram qualquer vontade de aceitar a sugestão dela; ficaram olhando para o Dr. Stevens. De algum modo, isso lhe diz respeito, e é assunto seu, diziam seus olhos, acusadores. Ele afastou a poltrona, preparando-se para se levantar, quando todos ouviram uma voz masculina e branda, do lado de fora. Falava como se já estivesse falando durante a balbúrdia, e então aumentou de volume, com força e afeição. — Ninguém vai maltratar vocês. Ninguém jamais fez isso, desde que são meus garotos. Estão lembrados? Ninguém maltratou vocês em Salzburgo, nem em lugar algum, nem no navio. Ninguém vai maltratar os meus guris. Trouxe vocês para casa, sabem? Então, Jean, você é o maior, pegue a mão de Emilie; isso mesmo. Ela é uma menininha, e de agora em diante é sua irmã. Certo? Kathy, pegue a mão de Pietro; ele está assustado. E, Max, pare de ficar mordendo o lábio e ponha-se direito. Isso mesmo, isso mesmo. Meus garotos! Então, venham comigo… Onde estará Montrose?, pensou o Dr. Stevens, meio aflito. — O que é isto? — perguntou a Sra. Grant, indignada porque estava perplexa. Estava acostumada a um mundo muito ordeiro, onde não acontecia nada de inesperado. — Crianças? De quem? Onde, pensou o Dr. Stevens, blasfemando, está aquele diabo de Montrose? Todos estavam olhando de novo para a porta fechada e as senhoras estavam dando sinais de medo e ofensa, e os cavalheiros ficaram ali parados, olhando, sem expressão. Era pior para o Dr. Stevens, pois ele reconhecera a jovem voz masculina, tão bondosa, afetuosa e forte. Agora sabia o que era ter o “coração desfalecendo”. — Creio — tentou explicar, com voz fraca — que o Sr. Fletcher chegou. Mas onde está…? Ouviu-se um grito agudo do lado de fora, acompanhado por outro silêncio abrupto e a porta abriu-se com estrondo. E lá estava o Sr. Montrose, alto, de cabelos brancos, muito bem vestido, o rosto vermelho e horrorizado. Sua pose digna de sempre desaparecera; estava com aspecto de quem andou correndo loucamente num vento forte, com alguma

coisa horrorosa em sua perseguição. Olhou para o Dr. Stevens, que a essa altura estava de pé, e tentou falar, mas só conseguiu mexer as sobrancelhas brancas para cima e para baixo e a boca, abrindo e fechando, só conseguiu produzir um guincho. O nariz grande estava se torcendo e ele estendeu as mãos, deixou-as cair do lado do corpo, em desalento, e tornou a estendê-las. Depois deu um pulo. Deu um pulo alto, para espanto do Dr. Stevens. O Sr. Montrose positivamente não era do tipo de pular, de fato. No entanto, lá estava Horace Montrose, pulando que nem uma pulga, bem alto, e depois para um dos lados da porta, e depois tornou a guinchar. — Meus bons garotos! — dizia a voz do Sr. Fletcher. — Isso, venham comigo. Não se assustem. Aqui só tem gente boa, que vai lhes dar um lar… Uma massa avançou na sala, uma massa de rostos, braços, pernas, corpos, tudo revolvendo junto como num pesadelo. Rostos de crianças, brancos e selvagens, braços e pernas magros e agitados de crianças, cabeças de crianças misturadas, olhos de crianças, arregalados e ferozes. Davam a impressão de uma multidão numa explosão impetuosa; na verdade, eram só cinco. E então, atrás delas, com um sorriso indulgente, estava o jovem Sr. Fletcher, ainda de farda de capelão. A massa parou, ofegante, no limiar, comprimindo-se como se precisasse de proteção, preparada para fugir, para lutar, morder, rasgar, se necessário. Ficara ali olhando para o grupo petrificado na biblioteca, e dela surgiu um som rouco e murmurante, o som do medo, pânico e ódio. O Sr. Fletcher afagou os ombros e as cabeças mais próximas dele. Depois tirou o boné, sorriu por cima das cabeças daquela confusão horrorosa e fez um gesto amigável para o Dr. Stevens. — Trouxe meus filhos para casa, Dr. Stevens. São todos Fletchers. Fletchers. Não são, garotos? — Seus filhos? — gemeu o Dr. Stevens, levando a mão ao lado da cabeça e tendo pensamentos muito caóticos. — Johnny! Mas o que é isso? Quem são essas… essas crianças? O Sr. Fletcher rodeou o bolo renitente de gente miúda no limiar e entrou na sala. Estendeu a mão para o Dr. Stevens, com um amplo sorriso. — Que bom tornar a vê-lo, Dr. Stevens! — exclamou. — Maravilhoso! O Dr. Stevens apertou a mão estendida, menos como cumprimento do que por necessidade de um apoio físico. Então um calor paternal tomou conta dele, era o Johnny mesmo. Johnny, alto e esguio, forte e seguro; Johnny, cujo coração sempre o levava aonde uma cabeça ajuizada não seguiria — para sua grande, grande pena. Era mesmo Johnny, com o rosto moreno e luminoso, olhos firmes, queixo firme e bem-feito, pestanas e cabelos espessos e negros e nariz pequeno e forte. Era Johnny, afinal. Johnny que acreditava que o amor é a única força da vida. Ele estava com os olhos úmidos e pôs a mão no ombro do jovem ministro, esquecendo-se daquelas crianças horrorosas e desconhecidas e das senhoras e dos senhores.

— Seja bem-vindo, Johnny — murmurou. — Seja muito bem-vindo! Uma perfuradora a ar comprimido, começando a funcionar de repente, arrebentando a calçada lá fora, encheu a biblioteca com um ruído áspero de matraca, como o de metralhadoras. Imediatamente as crianças soltaram gritos pavorosos de medo. Explodiram para dentro da sala, correram juntos para uma parede e ficaram lá, encolhidas, abraçandose desesperadamente e escondendo as cabeças. As senhoras e os senhores acompanharamnas com o olhar duro, completamente abismadas, sem poderem se mover nem falar. Mas o Sr. Fletcher estava sorrindo para elas com aquela indulgência incrível. Aproximou-se delas, devagar. — Ora, vamos. Vocês sabem que isso não é uma metralhadora. Já disse que nas cidades americanas elas não disparam à toa. Isso é uma máquina para cavar as ruas, para serem consertadas. Por que não vão até a janela para ver por si? Jean, pare com isso, e você também, Max. Vocês já são garotos grandes. Vão fazer o Pietro e as meninas fazerem tolice também. — O tom dele ficou autoritário. — Bom, agora, parem com isso, vamos. — Pelo amor de Deus, Johnny — começou o Dr. Stevens, balbuciando fracamente. — Ah, são os meus garotos — respondeu o Sr. Fletcher, como se isso explicasse tudo. — Eu os adotei. Isto é, sou o pai de criação deles, até poder adotá-los de verdade. Vamos, guris — insistiu —, vocês sabem que não é uma metralhadora. Vou fechar as janelas. O Sr. Montrose estava encolhido na janela junto das crianças, e então afastou-se e deu um salto em direção ao Dr. Stevens. Ele, que era sempre calmo e polido, agarrou o braço do Dr. Stevens. — O senhor nem pode imaginar! — balbuciou. — Tirá-los do navio. Foi um pesadelo! Tentei lhe telefonar, mas… Um dos senhores, refazendo-se um pouco, falou, indignado: — Creio que merecemos uma explicação, Dr. Stevens. E apresentações… Mas o Dr. Stevens estava olhando para as crianças. Aquele era o Jean, ali, provavelmente com seus 12 anos, com o rosto de um velho cínico, duro, estreito e sabido. Dava uma impressão de muita atenção e, a despeito da explosão de pavor de que participara, também dava a impressão de ser bem capaz de enfrentar qualquer situação; uma espécie de desafio obstinado se irradiava dos maxilares brancos, a linha do queixo branco e duro e olhos ferozes, quase fixos, pálidos e dilatados sob pestanas duras. Uma mecha de cabelos castanho-claro caía sobre a testa dura, Positivamente um menino estranho e nada simpático, pensou o Dr. Stevens, com pesar, pois gostava de crianças. Não amou Jean, nem sentiu qualquer impulso de simpatia por ele. Depois Jean se mexeu um pouco e ficou evidente que era aleijado, pois o ombro direito era caído e, quando ele o apoiou na parede, fez uma careta e o Dr. Stevens viu que a perna esquerda era mais curta do que a outra. Ah, pensou o Dr. Stevens, com pena, alguma coisa terrível aconteceu com essa criança! Jean estava segurando com força a mão de uma menina muito pequenina, com quem o Sr. Fletcher agora estava falando, acalmando-a, chamando-a de Emilie. Ela estava

agarrada a Jean, mas olhou para o jovem ministro com medo, piscando os grandes olhos azuis. — Meu bem disse o Sr. Fletcher, tocando em seus cabelos compridos, castanhos, emaranhados — você não é o meu bebê querido? Claro que é. Pronto, não chore. Sabe o que lhe disse… aqui todo mundo gosta de você. Ele sorriu para o rostinho pontudo, em que os lábios pálidos tremiam, como de bebê, pois não podia ter mais de cinco anos. Era tão magrinha, quase um esqueleto, e então seu corpo começou a tremer, nas roupas que não eram para o seu tamanho. Começou a soluçar como o bebê que era, com soluços fundos e arfantes, mas quando o Sr. Fletcher continuou a afagar-lhe a cabeça, com carinho, o tremor passou e ela encostou a testa contra a mão do ministro, como uma criança que procura um refúgio. Ah, a coitadinha, pensou o Dr. Stevens. E aí a menina ficou quieta, as lágrimas enormes cintilando em seu rostinho puxado. Johnny Fletcher virou-se para o Dr. Stevens. — Este é o meu filho Max — falou, sério. — Meu filho, Max. Pôs a mão no ombro de um garoto grande, de seus 11 anos, que não olhou para ele. Lerdo, pensou o Dr. Stevens, com pena, ou talvez só aturdido. Mas dava a impressão de não estar presente de todo, e sim vivendo alguma experiência terrível de que se esquecera um pouco mas cujos efeitos continuavam a pesar sobre ele. Os ossos grandes lhe davam o aspecto de ser mais sólido do que era de fato, pois um exame mais atento mostrava que os ombros tinham pouca carne cobrindo- os, e as mãos, embora grandes, eram emaciadas. O rosto quadrado era só ossos; tinha olhos castanhos famintos, olhando fixamente, mas vazios, e os cabelos acastanhados estavam desgrenhados, espetados pela cabeça redonda. O menino será retardado?, perguntou-se o Dr. Stevens, com tristeza. Ele notou que Max, depois de um breve olhar para o ministro, um olhar sem qualquer expressão, fixou os olhos nas mãos e ficou ali, num silêncio rígido. Depois as mãos se juntaram, convulsamente e, diante dos olhos do Dr. Stevens, cheios de compaixão e temor, começaram a se torcer, vezes e mais vezes, nos gestos eternos do mais completo desespero; o desespero de um homem alquebrando. — Meu filho, Max — repetiu Johnny, a voz forte e afetuosa. O menino teve um sobressalto. Aos poucos, as mãos pararam de se torcer; ficaram juntas, as palmas apertadas uma contra a outra. — Filho, você é um menino grande e bonito. Não se lembra de mim, seu pai? Os olhos de Max, fixos nas mãos, piscaram. As pálpebras se moveram, como se estivessem pesadas e depois ele levantou os olhos e olhou para Johnny. Neles não havia qualquer expressão, mas ele deixou as mãos caírem ao lado do corpo. Johnny fez um carinho nos picos de cabelo secos e sorriu, satisfeito. — Meu bom filho, Max. O menino deu um suspiro profundo, como se estivesse adormecendo. Ao lado dele estava um menino de seus nove anos, que não conseguia ficar parado. O rosto extremamente móvel e sensível se contorcia; a pele morena tremia sempre. Os enormes olhos negros brilhavam sob sobrancelhas trêmulas e uma massa de cachos

negros. Ele olhava para toda parte furtivamente mas vendo tudo; os braços, pernas e corpo de esfomeado tinham contrações como se ele estivesse sofrendo de algum grave distúrbio nervoso, tinha um ar de macaco, de uma energia desnorteada, e ficava abrindo e fechando os dedos. O menino começou a se balançar nas pontas dos pés, os joelhos afastados, os ombros encolhidos. — Meu filho, Pietro — apresentou-o Johnny, com orgulho. — Ele anda por toda parte. Os olhos brilhantes e furtivos tinham parado e depois olharam para Johnny, de esguelha. O ministro meneou a cabeça. — Bom menino, Pietro? Um lampejo sabido tocou aqueles olhos selvagens, mas o menino respondeu obedientemente, com um sotaque estrangeiro: — Bom… menino. Um mentiroso, um mentiroso adaptado, conjeturou o esperto Dr. Stevens. De onde pode ter saído? — E agora — continuou Johnny, naquele mesmo tom de orgulho paternal — minha filha grande, Kathy. Vejam essas faces rosadas. Ele beliscou de leve a face da menina, que, embora não propriamente “rosada”, tinha um pouco de colorido infantil. Kathy, como Max, era grande e provavelmente também tinha 11 anos. As roupas, evidentemente de segunda ou terceira mão, assentavam melhor nela do que as das outras crianças, pois tinha um corpo firme e forte. E um ar maternal, absurdamente comovente numa criança tão nova. Ela arranjara, em algum lugar, uma lira azul, que amarrara, na trança muito comprida e muito espessa de cabelos completamente louros, pendurada de seu crânio liso e dourado. Os olhos redondos eram da cor da fita, rodeados por pestanas louras e ela possuía uma boca redonda, meio apertada, e um nariz entroncado. Holandesa?, perguntou-se o Dr. Stevens. Os olhos dela piscaram, ao olhar para o grupo imóvel na biblioteca. Não confiava em ninguém, pensou o Dr. Stevens. Mas ela há de se arranjar; é do tipo que sempre se arranja, de um jeito ou de outro. Ela permitiu que Johnny lhe afagasse a cabeça, não propriamente se submetendo ao agrado. O Dr. Stevens sorriu de leve. Johnny virou-se para ele. — Levei meses para trazê-los para cá, Dr. Stevens. Todo tipo de burocracia. E depois não podiam vir até que as autoridades se certificassem de que tinham ficado um pouco “civilizados”, como disseram. Bem, eram meio selvagens, mas quem poderia culpá-los? — Parece que estamos pondo o carro à frente dos bois. As explicações podem vir depois, Johnny — respondeu o Dr. Stevens. Hummm… você não foi apresentado às senhoras e aos senhores aqui, membros de sua congregação. E o Presidente do Conselho… O coração do velho ficou doente de pressentimento, pois os cavalheiros a quem Johnny, o valente, forte e delicado, estava sendo apresentado receberam aquela apresentação com uma frieza imponente, entremeada de um alarma desconfiado e expressões de descrença. Johnny, com sua farda de capelão um tanto desmazelada e o poder de sua juventude nada ortodoxa, não era a ideia que faziam de um novo pastor, nem

um que eles pudessem aceitar. O Presidente do Conselho sentia-se completamente insultado, a voz especialmente fria e distante. O Dr. Stevens sabia exatamente o que estavam pensando: um ministro “respeitável” chegava com dignidade e pose e, se fosse realmente necessário aparecer fardado pela primeira vez diante de parte de sua congregação, essa farda deveria ser bem talhada e usada com garbo. (Nunca mais vão confiar nos meus julgamentos, pensou o Dr. Stevens, melancólico.) John falava alto demais, com ênfase demais. Tinha até certa sugestão de vulgaridade em sua pessoa, que, o Dr. Stevens suspeitava, provinha de experiências cruas e perigosas que essa gente ali nunca havia de compreender. E tinha também um tipo de inocência, quase espalhafatosa — coitado do Johnny, tornou a pensar o Dr. Stevens. No entanto, tudo isso lhe poderia ser perdoado “por causa dos jovens da paróquia”, — se Johnny não tivesse chegado com aquelas “crianças indizíveis”. Sua suposição calma de que as crianças, “seus filhos”, seriam aceitas com compaixão e compreensão é um grande elogio que fez a todos nós, comentou o Dr. Stevens consigo, com ironia. Mas também, Johnny sempre acreditou na bondade inata do homem. Aparentemente, nem o que ele tinha visto e experimentado abalaram essa fé poderosa. Lá estava ele, alto, sorridente e controlado, ou não vendo ou se recusando a ver, com carinho, que os cavalheiros se sentiam repelidos por ele, abismados diante dele e do que ele fizera. Ele apertou as mãos deles com simpatia, e seus olhos muito escuros e muito brilhantes cintilaram com maior simpatia ainda. Eles viam tudo depressa… ou será que viam mesmo?, perguntou-se o Dr. Stevens, infeliz. As senhoras, em especial a Sra. Grant e Sra. Howard, se mostraram mais bondosas do que os senhores. Johnny tinha uma afeição especial e protetora pelas mulheres, e elas sentiam isso. As senhoras até se esqueceram de olhar para as crianças, enquanto examinavam Johnny atentamente, considerando, e a despeito de seu modo reservado e os rostos frios, uma expressão mais pensativa substituiu a dureza original em seus olhos. Mas os senhores se viraram e furtivamente examinaram as crianças monstruosas, ainda amontoadas contra a parede, e o Sr. Montrose, que se abrigara por trás da grande mesa de mogno. Eu nunca imaginei que o Montrose fosse assim tão tolo, disse o Dr. Stevens para si, irritado. E que… como é que se diz?… Sim, um canastrão. Ele não está nada tão horrorizado ou apavorado com esses pobrezinhos quanto finge estar. Pensando bem, ele nunca foi muito amigo de Johnny e sempre se ressentiu de meu afeto por ele. Estará nos castigando a ambos, agora? No entanto, aquelas crianças! O Dr. Stevens se deu conta das coisas, com um sobressalto. O que Johnny estava dizendo às senhoras agrupadas em volta dele, falando com aquela sua voz grossa e firme? — É, Sra. Howard. Foi o que eu o chamava em Munique. O Caminho do Pesadelo. A primeira vez que o vi foi de noite. A cidade de Hitler, era como chamavam Munique; era o quartel-general dele, sabe, o seu lugar favorito quando não estava em Berchtesgaden. Passei uns dias no Hotel Quatro Estações, em Munique, antes de ser mandado para Salzburgo. Um dia fora o melhor hotel naquela região da Europa; agora é uma ruína arrasada. Os proprietários o estavam reconstruindo valentemente, de metro em metro. As grandes salas de jantar, famosas em toda a Europa, tinham desaparecido, mas ouvi histórias de sua grandeza. Os proprietários estavam usando o “salão de chá” como sala de

jantar e tinham uma orquestra de velhos que tocavam ao jantar. Velhos, alquebrados, muito cansados. No entanto, de algum modo, vendo os proprietários reconstruindo o hotel e vendo a orquestra e o maitre d’hotel andando por ali, com seus grandes bigodes e fazendo mesuras e supervisionando o que restava dos vinhos e examinando os pratos, novamente senti orgulho do meu semelhante. — Mas são alemães! — exclamou o Presidente do Conselho. — Nossos inimigos! Sr. Fletcher, o senhor se orgulha dos alemães? Os seus olhos gélidos tinham encontrado os olhares dos outros cavalheiros e o buquê frio da rejeição foi apresentado a Johnny, com um olhar demorado e fixo. Johnny se calou. Devagar, aqueles olhos extraordinários de um azul escuro foram pousando em rosto após rosto, sondando, procurando. Mas até as senhoras estavam recuando dele, juntando-se com os senhores numa falange de ressentimento e rejeição. Johnny viu aquilo. Seu rosto moreno ficou triste, e depois muito severo. Ele pareceu crescer em tamanho, dominar todos na sala, na qual reinava um silêncio total. Até as crianças estavam paradas; o murmúrio constante e baixo tinha cessado. Até o Sr. Montrose estava paralisado por alguma coisa estranha que estava acontecendo, de instante em instante. E o Dr. Stevens sentiu o coração bater mais depressa. Era só sua imaginação, claro, mas lhe pareceu que a luz do sol poente, jorrando pelas altas janelas, aos poucos se concentrava sobre Johnny, como um nimbo. — Inimigos? — repetiu Johnny, e sua voz, embora suave, penetrou nítida em todos os cantos da grande biblioteca. Ele olhou para as crianças; estavam escutando. Por um momento, sua expressão se suavizou, ficando até pesarosa. — Inimigos? Será que uma nação acorda, um dia, e de repente resolve que outra nação é inimiga? Onde estão agora aqueles que tornaram os alemães nossos inimigos, e inimigos de seus vizinhos? Eu lhes digo — e então a voz dele subiu num tom profundo e trêmulo — que Hitler está morto e Mussolini está morto e muitos de seus generais e conselheiros estão mortos. Mas os homens que tornaram os alemães nossos inimigos não estão mortos! Não morrem nunca! Os olhos dele pareciam um lampejo azul em seu rosto. — São os homens que criam os Hitlers, Mussolinis e Stalins também. São os homens que nos odeiam a todos, e odiaram a humanidade desde o princípio. São os homens que escolhem e aclamam os déspotas, que planejam, por trás das portas de bronze em todas as capitais do mundo, qual a nação que deve odiar outra nação, qual a guerra que deve ser projetada do inferno, em qual ano. A voz dele tremia, mas estava carregada de uma força maior ainda. Todos olharam para ele, fascinados, imobilizados. Ele estava tremendo de raiva. Suas mãos eloquentes se erguiam e gesticulavam, não com desespero, mas com cólera. — Não mudam nunca! — exclamou. — Através dos tempos eles seguem, ganhando força, ganhando influência, homens de rostos sombrios por trás de reis, presidentes e ditadores! Falando em idiomas já mortos, falando hoje em inglês e francês, chinês e japonês. E amanhã hão de falar em outras línguas, ainda não existentes, em nações cujas fronteiras ainda não estão marcadas! Nossos inimigos! Ah, Johnny, pensou o Dr. Stevens, e seus velhos olhos estavam úmidos. Mas as

senhoras e os senhores se tinham afastado mais ainda do jovem ministro e estavam olhando fixamente para ele, num misto de perplexidade e indignação, sem compreender nada, as paredezinhas floridas de suas vidas tremendo num vento que nunca os assaltara. As crianças, as crianças terríveis, estavam escutando. Não era possível que tivessem entendido todas as palavras, todas as insinuações que partiram de Johnny Fletcher. No entanto, do jovem ministro se irradiava uma emanação que elas reconheciam instintivamente, coisa que os outros não conseguiam. Ficaram ali encolhidas, juntas, os olhos e bocas abertos, escutando, mal respirando, enquanto os mais velhos apenas olhavam com um ar afrontado e recuavam friamente. Mas também, pensou o Dr. Stevens, Ele não disse que se não fôssemos como as criancinhas…? — Realmente, Sr. Fletcher — respondeu o Presidente do Conselho, com sua melhor voz de diretor. Olhou para os outros e foi tranquilizado por sorrisos vagos e bem-educados de desdém. — E posso perguntar quem são “eles”? — Já lhe disse. Nunca há de reconhecê-los, assim como os seus antepassados não os reconheceram. — Por um momento, mas só por um momento, Johnny parecia estar muito cansado, e sua voz ficou controlada. Depois, de repente, ele ficou alto e apaixonado de novo, e sua voz alteou-se. — Não está mais na moda acreditar em Satanás ou Lúcifer. Afinal de contas, somos civilizados, não? Lúcifer, no Velho Testamento, é apenas um símbolo, dizem os nossos melhores teólogos. É uma coisa que as melhores escolas podem erradicar, com a educação. É o bicho-papão da Idade Média. É o subconsciente e o id do psiquiatra. É só fazê-lo aparecer na luz do dia, no sofá de um psiquiatra, e onde está Satanás? Ora, não tem qualquer realidade e pode ser abolido com algumas sessões calmantes ou uma série de tratamentos de choque! Bom, pensou o Dr. Stevens, isso completou tudo, Johnny! Johnny suspirou. — Eu gostaria de lhes mostrar a Europa agora. Gostaria de lhes mostrar não apenas cinco crianças como estas, mas dezenas de milhares. Gostaria de levá-los pelas cidades em ruínas, as igrejas destruídas, as ruínas dos museus, os escombros de escolas e universidades, as ruas destroçadas. Gostaria de conduzi-los pelos campos de concentração, as câmaras de gás, os crematórios onde milhares de mulheres, crianças e bebês morreram. Gostaria de lhes mostrar os alqueires sem fim onde repousam mortos os nossos jovens americanos, dormindo para sempre sob o sol. Talvez que bastasse uma só cara de velho, ou de velha, olhando com o olhar vazio para uma casinha arrasada ou um jardim pisoteado. Ou o grito de morte de uma criança sob um muro desabado. Ou os olhos cegos, alucinados, de um jovem soldado que nunca mais há de reconhecer ninguém, nem mesmo a mãe. E então eu lhes perguntaria… quem mais senão Lúcifer, que nunca dorme, e conhece os seus e os utiliza? As senhoras se tinham sentado, aos poucos, mas os senhores estavam de pé em volta de Johnny. Pareciam cachorrinhos terriers velhos, cautelosamente examinando um jovem mastim. Realmente, Johnny, pensou o Dr. Stevens, não se fala do mal para aqueles que o Mal convenceu que não existe. No entanto, agora o velho ministro falou, com calma.

Já se disse que o maior triunfo de Satanás foi convencer aqueles que ele queria destruir de que ele não tinha uma realidade. Acho que o Sr. Fletcher quer dizer mesmo é que em todas as gerações nascem homens maus de homens que odeiam os outros. Os ignorantes entre eles são chamados de psicóticos. Os mais inteligentes e influentes ajudam a provocar as guerras e estimular os ódios… ou para o lucro financeiro, ou satisfação ou poder pessoais. Ele pôs a mão com firmeza no braço esquerdo de Johnny e apertou-o discretamente. Johnny tinha ficado pálido é sua exaustão, que era mais do espírito do que do corpo, se revelou no seu ar abstrato, de recuo momentâneo. Bom, isso se pode compreender — disse o Presidente do Conselho, com um ar superior, lançando um olhar de reprovação ao Dr. Stevens. — Não precisamos de drama nem falar de um… um demônio pessoal… para se entender isso. Johnny animou-se depressa. — Nós admitimos que o mal existe. Já que é tão disseminado entre as ditas nações cristãs, acredito que nós nos abrimos para um caos absoluto dentro dos próximos anos. — Caos? — repetiu um dos senhores, com desdém. — A guerra já acabou, não? — Não — disse Johnny. — Não acaba nunca. Eles ficaram calados. O jovem ministro procurou cada rosto de novo, suplicante, esperançoso, pedindo compreensão. Mas agora até os rostos das mulheres estavam fechados para ele, nervosos. A essa altura ele já deve ter percebido, disse o Dr. Stevens consigo, triste. Mas ele é um dos heróis nobres que nunca desistem. O Dr. Stevens era um velho, e estava muito cansado. Sua cabeça começou a zunir, incoerente. Em algum lugar, ele se lembrava, uma firma de tintas tinha usado um slogan muito eficiente: “Salve a superfície, e salvará tudo!” Havia gente demais “tentando salvar a superfície”, enquanto ela estava rachando violentamente, tumultuosamente, até os confins do globo. De repente Johnny foi para junto das crianças. Elas o viram vir com os olhos selvagens e furtivos, os rostos insondáveis, o ar de selvageria reprimida. O Dr. Stevens estremeceu. Eu teria medo de chegar perto delas!, pensou. Mas Johnny não tinha medo. Olhou para elas com ternura. O menino Pietro, o menino-macaco, deixou aparecer os dentes entre os lábios, num rosnar sem barulho. Max, de cara vazia, estava de novo torcendo as mãos. Jean, o aleijado, olhava para o jovem ministro de cara fechada. As meninas se limitaram a fitá-lo, tensas como feras das selvas. Johnny falou com os adultos na sala, mas não tirou os olhos de cima das crianças. — Olhem para esses pequeninos. Daqui a pouco contarei onde os encontrei. São órfãos; não sabem quem são. Os pais foram assassinados nos campos de concentração. Quem matou seus pais? Quem fez voltarem as cabeças e almas dessas crianças até a aurora da era dos homens, a idade dos dentes e garras? Olhem para eles, e eu lhes darei a resposta! Duros, resistentes, todos os olhos se voltaram para o grupo amontoado junto da parede. John girou nos calcanhares, devagar, e olhou para as senhoras e os senhores com uma cólera triste e penetrante.

— Dirão que os alemães é que fizeram… os alemães, nossos inimigos. Acusarão a dona-de-casa alemã assustada, com os próprios filhos brutalizados. Dirão que essas criancinhas aqui são as vítimas do tímido escrivão alemão, o lojista alemão atormentado, o magro professor alemão, o burguês alemão que só queria a paz para levar à frente o seu negócio. Estarão confundindo os instrumentos com aqueles que usaram os instrumentos. A voz dele alteou-se apaixonadamente, uma verdadeira voz de orador. — Eu lhes digo que nenhuma nação ó inimiga de outra nação, povo nenhum é inimigo de outro povo! Não existem nações más, só há governos maus que são dominados pelos homens do mal. “A prole de Satanás”, como diz a Bíblia, O Presidente do Conselho respondeu, com um sorriso: — O senhor é um rapaz muito eloquente, Sr. Fletcher. Um treinamento excelente. Todos os ex-discípulos do Dr. Stevens o são. E agora, já que estamos falando sobre governos, há outro ditado antigo: “Um povo merece o governo que tem”. — Não — disse Johnny, e em sua voz havia amargura. O Dr. Stevens, aflito, começou a pensar em outras igrejas onde o Johnny poderia ser recebido, depois daquilo. — Essas crianças — continuou Johnny, em desespero — não são só vítimas dos carniceiros alemães. Também são nossas vítimas. Há mais de 10 anos, muito antes da guerra, demos o nosso consentimento para o mal no governo alemão. Com o nosso silêncio… com o nosso silêncio perverso. Numa hora em que uma palavra apenas, uma poderosa palavra cristã, teria derrubado Hitler, teria salvo o próprio povo alemão e teria salvo inúmeros milhares de outras crianças como essas. Mas não pronunciamos essa palavra. De que tínhamos medo? Da guerra? Nunca teria havido uma guerra se tivéssemos nos pronunciado em 1936. — Suspirou. — E agora não haveria um Stalin, nem um governo comunista, se há uma geração tivéssemos pronunciado uma palavra de salvação. Ele agora estava colérico e dominador, de novo. — Por que vocês… nós… não falamos? Onde estavam os pastores, os homens educados e civilizados? Onde estavam os nossos líderes, em 1917, em 1936? Ninguém lhe respondeu. Com exceção do Dr. Stevens, todos os olhares eram frios. Como são odiosos os que exigem uma confissão e contrição dos outros!, pensou o velho ministro, com pesar. Como é detestável o homem que nos mostra nossos pecados de omissão e cometimento! Preferimos mil vezes pensar bem de nós mesmos. Então o Presidente do Conselho virou-se portentosamente para seus companheiros. — Acho que devemos marcar uma reunião para a próxima semana. Segunda-feira, às 14h30? É conveniente? Ele não me convidou, pensou o Dr. Stevens. Bem, Johnny, é o fim. Johnny também deve ter sentido isso. — Não se interessam em saber como fiquei com essas crianças? Não se preocupam? — Isso, Sr. Fletcher — respondeu a Sra. Grant, com energia —, é um assunto seu.

Mas eu sugeriria que o senhor as internasse num orfanato. Se o pessoal da Imigração o permitir. — Ela apertou os olhos duros, conjeturando. Johnny deu um passo em direção a ela. — Não vão para orfanato nenhum. Isso foi sugerido para eles na Europa, por outras pessoas. Eles teriam se separado e isso teria sido horrível, pois só confiam uns nos outros, e com toda a razão. — Ora veja — perguntou a Sra. Howard —, não confiam no senhor, Sr. Fletcher? — Não confiam, não. Por que haveriam de confiar? Estou com eles há 10 meses. Mas sou um homem, um adulto, e eles sabem o que já sofreram nas mãos dos homens. Nem mesmo eu sei de tudo. Portanto, por que haveriam de confiar em mim? Não sabem o que é ser um ministro. Sabe, nunca conheceram um ministro. E por quê? Talvez me possam dizer. Mas ninguém lhe respondeu. As senhoras estavam-se levantando num farfalhar final, arrumando os chapéus, ajeitando os cabelos, trocando olhares significativos. Os senhores pegaram os chapéus e as luvas. Johnny, ali de pé junto deles, então, os examinou, mas ninguém olhou para ele, se bem que ele tivesse levantado a mão, num apelo. — Ora, onde está a minha bolsa? — perguntou a Sra. Grant, virando da cadeira para a mesa, aflita. — Estava naquela mesa junto da porta. Eu acho… Johnny virou-se depressa para as crianças, soltando uma exclamação. É, acontecera de novo. Kathy, a gordinha loura e segura, não só pegara a bolsa, de algum modo, como a abrira. Estava agarrada com ela na mão esquerda. A direita estava fechada sobre alguma coisa, e com um ar de desafio, ela olhava furiosa para os adultos. Jean, o aleijado de olhos ferozes, fora para o lado dela, com um ar protetor, os punhos patéticos cerrados. As crianças eram um grupo alucinado e selvagem, preparado para qualquer violência, e preparado para retribuí-la. Johnny apelou, com a voz mais branda: — Kathy, não se lembra? Minha filhinha não rouba nada. Kathy? Os olhos dilatados da menina, brilhando com uma luz de lobo, olharam para ele. O Dr. Stevens ficou alarmado de novo, nervoso. — Kathy? — repetiu o Sr. Fletcher, indo para junto da menina e estendendo a mão. Jean deu um passo para ele, levantando os punhos, abaixando a cabeça. — Pare com isso, Jean — ordenou o jovem ministro, severo. — Você sabe que não vou maltratar Kathy. Comporte-se. Depois, não tomou mais conhecimento do menino, que ficou ali como uma estátua truculenta. — Ladrões! — exclamou a Sra. Howard. — Que horror, que… — É — disse Johnny, sem olhar para ela, mas só para Kathy. — Que horror. — Ele estendeu a mão para Kathy, severo, mas com um sorriso. As outras crianças se juntaram em volta dela, olhando para ele furiosas, e novamente ergueu-se delas aquele murmúrio, sem palavras mas assustador.

— Ela não quer o seu dinheiro, Sra. Grant — explicou Johnny. — Só quer a sua pozeira. — Ele sorriu para Kathy, com firmeza. — Sabe, quando eu a salvei… de adultos… há meses, disse a ela que ela era uma menina simpática e bonita. Que tinha olhos como flores e os cabelos como um narciso. Alguém… um homem, provavelmente… dissera a ela que ela era feia demais para viver, e que por isso ia morrer. É esse tipo de tortura que eles usam nas crianças nos campos de concentração, antes de as assassinarem. Assim, hoje, Kathy rouba espelhos, para se olhar, para ver se é bonita e assim não morrer. — Bom, e então, por que não comprou um espelhinho para ela? — perguntou a Sra. Grant, muito altiva. — Comprei, sim. Mas parece que ela pensa que eu pintei um retrato nele, de uma menina bonita, para enganá-la. A Sra. Grant e as outras senhoras soltaram exclamações, sem poderem acreditar. Os senhores viraram os rostos. Como sempre, pensou o Dr. Stevens. — Assim — continuou Johnny — ela está sempre roubando espelhos de pozeiras, para poder ver por si, nos espelhos dos outros, que ela é bonita e não vai ter de morrer. Ele se aproximou mais de Kathy e ela recuou. — A bolsa, meu bem — disse ele. — Olhe, amanhã vou comprar para você uma caixinha bonita, dourada, com um espelho. Amanhã, Kathy. Então, aconteceu uma coisa estranha. A Sra. Grant falou: — Pode dar a pozeira para ela. Johnny virou-se para ela. Os lábios firmes dela estavam tremendo. — Eu… eu disse, que ela pode ficar com a pozeira. Eu só quero a minha bolsa. Uma luz grande e alegre brilhou no rosto de Johnny. — Está vendo, Kathy! — exclamou ele. — A moça disse que você pode ficar com o seu espelho. Só para você, querida, para poder se olhar. Mas você não quer a bolsa… A menina olhou para ele, furiosa, e depois para a Sra. Grant. Depois atirou a bolsa na cara do jovem ministro, com um movimento forte do braço. Ele se esquivou, mas a bolsa acertou-o no lado da cabeça e ele cambaleou com o impacto do peso. As crianças soltaram gargalhadas e gritos roucos de triunfo. — Johnny! — exclamou o Dr. Stevens, por cima do tumulto. Mas Johnny recuperara a calma. Esfregou o lado da cabeça e ficou examinando as crianças. — Que monstros — murmurou o Presidente do Conselho. — Vamos ter de consultar as autoridades da Imigração… é perigoso permitir que fiquem soltas… nunca se sabe… As crianças estavam se balançando juntas numa dança histérica de ódio e vitória. E pavor. Tinham começado a entoar algum ritmo selvagem, nascido das profundezas de sua barbaria. — Foi só isso que conseguiu fazer por eles, nesses 10 meses? — perguntou a Sra.

Howard, a voz trêmula de medo e repugnância. — Não conseguiu fazer coisa melhor? Olhe só para eles! São… são um pesadelo! — É — disse Johnny, de costas para ela. — Pesadelos. Os nossos pesadelos. Ele foi para junto das crianças, depois de ter entregue a bolsa à Sra. Grant. Disse a Kathy: — Não quer nos mostrar o que a moça boazinha lhe deu, meu bem? Jean, Pietro, Max e Emilie também gostariam de ver. Olhe, vou pôr as mãos atrás de minhas costas. De repente as crianças se calaram. Eram um só olhar fixo de ódio, desconfiança e astúcia. Depois os olhos de Kathy vacilaram. Ela ficou com o cotovelo bem junto do corpo, os dedos apertando de tal modo a pozeira que estavam sem cor. Depois, devagar, de momento em momento, como que sob um encantamento, ela foi abrindo os dedos e na sua palma estava a pozeira. As crianças esticaram as cabeças para olhar, fascinadas. Era uma coisa linda, e o Dr. Stevens ficou assombrado com a generosidade da Sra. Grant. Era um círculo de ouro, incrustado com turquesas, ametistas e topázios. Refletiu a luz do sol e um raio de luz multicolorida jorrou dela. — Ah, ah! — gemeram as crianças, em êxtase, tornando a arrastar os pés naquela dança horrorosa. Mas, notou o Dr. Stevens, com o coração tremendo, nenhum deles tentou tirar a pozeira de Kathy. Estavam-se alegrando com ela porque ela agora possuía um tesouro tão lindo. Ah, pensou o Dr. Stevens, onde está o homem ou mulher “civilizada” que se alegraria com outras pessoas, mesmo com o irmão mais ligado, sem uma inveja secreta ou maldade? Os rostos das crianças eram um brilho de uma luz radiosa. Ele quis agradecer à Sra. Grant. Ela estava sorrindo, com relutância, e muito corada. — Vamos indo? — perguntou ela, virando-se para as senhoras. As outras saíram e os senhores as acompanharam. A porta fechou-se. A sala estava escurecendo, ao crepúsculo. As crianças continuavam a entoar em sua alegria pelo que Kathy possuía, abaixando as cabeças sobre o objeto. Max tinha parado de torcer as mãos. Estava até batendo palmas, batendo com os pés. Kathy tinha aberto a pozeira e estava olhando dentro dela, atenta. Depois exclamou para Johnny, em êxtase: — Bonita! Bonita! Eu! Eu! — É, meu bem — respondeu ele, e agora, quando ele tocou na trança lisa, ela não fez careta. — Bonita, você. Minha filhinha bonita, querida, querida.

III — O senhor quer dizer que temos de cortar a carne para eles? Esses guris grandões? — perguntou Edith, a empregada elegante, tremendo de ressentimento. A cozinheira, Sra. Burnsdale, virou-se do fogão e olhou furiosa para o Sr. Fletcher, com uma espátula na mão. As crianças estavam sentadas em volta da grande mesa redonda e branca na cozinha, de cabeças baixas, espiando desconfiadas por baixo das pálpebras semicerradas. A luz elétrica quente caía diretamente sobre elas, revelando, impiedosamente, cada um dos rostos selvagens, cada queixo tenso e mão enroscada na toalha de linho. A Sra. Burnsdale, mulher de meia-idade que se parecia muito com a Sra. Grant, estava especialmente indignada com aqueles “invasores”, e disposta a olhar sem simpatia para o rapaz que as levara para aquela casa paroquial respeitável. Edith, alta, nervosa, temperamental e muito magra, era sua sobrinha, e a Sra. Burnsdale nunca perdia a oportunidade de comentar que Edith só a estava “ajudando” ali porque era quase impossível se encontrar empregados em Nova York. Edith, dizia ela, com um ar de reprovação, tinha feito o ginásio e entrara para uma escola de enfermagem “num dos grandes hospitais de Nova York, vou-lhe contar!”. Embora isso não fosse absolutamente verdade, era uma ficção agradável que reforçava a posição tanto de Edith quanto da Sra. .Burnsdale, achavam elas, com quem pudesse querer “aproveitar-se” delas. O Dr. Stevens, sentado ali perto na grande cozinha quente, sentiu uma nova depressão. Por que as pessoas não aprendiam que o “serviço”, fosse numa cozinha, um púlpito, uma fábrica, um escritório ou em qualquer parte, aliás, não implicava nenhuma degradação, a não ser na cabeça de quem “servia”? Nós todos servimos, pensou ele, irritado, e quem era o maior Servidor de todos? O próprio Deus. Pois Ele não lavara os pés empoeirados e calejados de Seus próprios discípulos, no gesto supremo de lhes revelar a honra do serviço, a dignidade do serviço? — Edith né… não é… babá, e nem eu! — disse a Sra. Burnsdale, com sua voz áspera e emburrada. — Sempre dissemos que, se viesse para cá um ministro com guris, tinha de ter uma ama para eles. Talvez duas, se fossem mais que duas crianças. E guris como esses! Dr. Stevens! — ela virou-se para o velho murcho. — O senhor nunca nos disse que o Sr. Fletcher ia trazer índios selvagens para cá! A gente não tem de suportar isso. O Dr. Stevens olhou para Johnny, mas Johnny estava olhando para as crianças, com ternura, o rosto jovem cheio de compaixão e cansaço. Ele parecia não tomar conhecimento de ninguém naquela cozinha, salvo aqueles três meninos e duas meninas. — Lá vai ele de novo! — gritou Edith, recuando da pia numa tosca imitação de pavor. A Sra. Burnsdale correu para o lado dela, brandindo a espátula. Max, o caladão e lerdo, estava lavando as mãos febrilmente debaixo da torneira, vezes e mais vezes, esfregando as unhas, as palmas. Elas já estavam esfoladas de tanto lavar, a pele corroída. Mas não estava dando atenção nem às mulheres nem aos homens. Enquanto se esfregava, gemia, a espuma em seus dedos, e então, diante da piedade sincera do Dr. Stevens, as lágrimas lhe saltaram dos olhos.

Johnny disse com uma voz calma e baixa, enquanto as crianças olhavam avidamente para o menino: — Está tudo bem, Max. Max, está tudo bem. Você sabe que não tinha mancha nenhuma desde o princípio. Esta me ouvindo, filho? O menino se encostou à pia e olhou fixamente para Johnny, que sorriu, tranquilizando-o. — Filho, filho — balbuciou o menino, e depois soluçou: — Papai! Papai! — Ele se agachou e torceu as mãos e soluçou mais alto, angustiado: — Papai! Papai! — Passou os dedos pelo cabelo seco, que ficou como uma moita de agonia em volta de seu rosto quadrado e desesperado. Ah, meu Deus, pensou o Dr. Stevens. O que será? O que será? Johnny ficou sentado, mas estendeu os braços para Max. — Venha aqui com o papai, Max. As crianças estavam em completo silêncio, cada rostinho atormentado fixo como se fosse de pedra, esperando. Max estava tremendo, curvado, e as duas mulheres o contemplaram com uma repugnância indignada. Aquele não era um “bom” menino americano, brincalhão, rosado, natural, cheio de alegria e travessura. Era algum “estrangeiro” horroroso, com uma voz gutural. — Doido — resmungou a Sra. Burnsdale, passando o braço em volta da sobrinha, para protegê-la. — É melhor a gente ir embora. Estão todos doidos. — Foi só um sonho mau, Max — disse Johnny, a voz cheia, suave e dominadora. — Veja, eu sou o seu papai. Você nunca me maltratou, filho, nunca. Venha. Muito devagar, o menino levantou a cabeça e fixou os olhos que pareciam nada ver no rosto misericordioso e afetuoso de Johnny. Passaram-se alguns momentos, um após outro; os soluços do menino foram escasseando. Passaram e ele prendeu a respiração. Continuava a olhar para Johnny. E então, muito vagamente, interrogando, ele disse: — Papa? Bist Du mein Papa? — Ja, das bin Ich — respondeu Johnny, rindo com carinho. É, pensou o Dr. Stevens, o Nosso Pai sempre respondeu: Sou eu. Aquele menino arrasado ouviria a resposta universal? — Venha — chamou Johnny, em inglês. — Venha, meu filho. Max afastou-se aos poucos da pia, como que hipnotizado, e foi para junto de Johnny. Ele bateu na mesa, sem saber; empurrou Jean, sem ver. E então estava nos braços de Johnny, apertado ao peito de Johnny, agarrando-se a ele. As crianças soltaram um suspiro demorado e profundo e as mãos cerradas na toalha se descontraíram. Johnny disse ao Dr. Stevens, por cima da cabeça frenética do menino: — Ele só se lembra do alemão quando lava as mãos. Ou nos pesadelos. Eu lhe

ensinei a falar inglês, não foi, Max? Nós só falamos inglês, não é? Max sabe muita coisa em inglês. — É — disse Max, abrigado nos braços de Johnny. — Só inglês. Eu … sou… um… menino… americano. Você… é… meu… papai. — Isso mesmo — respondeu Johnny. — E o papai quer que você vá se sentar à mesa e coma como um menino americano. Max agarrou-se mais. Johnny insistiu, com certa severidade paternal: — Max, você já é grande. Tem de me ajudar com os pequeninos. Vá, mostre a eles como se come, como um menino americano. Lembra-se? Eu já lhe mostrei. Pietro, o “menino-macaco” moreno, de repente começou a bater com a colher grande na mesa. — Senta. Max, senta! — gritou ele. As outras crianças repetiram o grito e Edith reprimiu um grito e fugiu da cozinha. Johnny ficou calmo. Mas Max ouviu o alarido e deixou Johnny e se aproximou da mesa, devagar, e sentou-se. Então, eles têm disciplina entre si, comentou o Dr. Stevens consigo. Pietro empurrou o ombro de Max e riu para ele, aos gritos. As outras crianças começaram a rir também, não o riso de gentinha alegre, mas o riso estridente e agudo de antropóides no zoológico, levados histericamente a uma alegria primitiva. Max também estava rindo, mas era um riso encabulado e humano e Johnny o ouviu, pois sua boca ficou menos tensa. — Come, come — falou Max, aconselhando as meninas e Pietro, depois que as risadas se acalmaram, num último uivo. Jean o fitava por baixo das mechas caídas dos cabelos castanhos e depois deve ter chegado à conclusão de que ele, o mais velho, estava perdendo parte de sua autoridade. Ele fechou a cara, com um jeito masculino, olhando para as meninas e Pietro, e falou em voz alta: — Come, come. Boa comida. Johnny apertou as palmas das mãos e seus ombros se relaxaram. — Estamos sempre melhorando e progredindo — murmurou para o Dr. Stevens. Ele se levantou e foi para a pia, pegando uma faca. — Vou cortar a carne, garotos. Bife. Um bom bife americano. Só para vocês. Mexa o braço, Kathy. Não avance, Pietro, primeiro as meninas. Primeiro as damas. Pronto, Emilie, neném. Cortadinho para você. Por que ele não os deixa usarem as facas?, perguntou-se o Dr. Stevens. E aí ele viu a expressão feroz nos rostos de Jean e Pietro, uma expressão faiscante e de ganância, enquanto olhavam fascinados os movimentos rápidos da faca. Isso é muito mau, pensou o Dr. Stevens, com um novo desânimo. Realmente, não deviam estar aqui, de todo. Se Johnny só conseguiu isso deles em 10 meses, quanto tempo levarão para se civilizarem? Esses meninos! Parecem criminosos, olhando para a faca. Hoje de noite vou ter de trancar minha porta. A Sra. Burnsdale deve ter tido exatamente a mesma ideia, pois foi andando ameaçadoramente pelo alegre linóleo amarelo e vermelho, em direção ao Dr. Stevens, e postou-se pesadamente diante dele.

— Dr. Stevens, a Edith e eu vamos embora hoje à noite — falou ela, com energia. — Não, vamos já. Nossas vidas… correm… perigo. Sim, senhor. Johnny continuou a se movimentar em volta da mesa, cortando a carne, sorrindo, e os olhos de Jean ç Pietro observavam a faca e o brilho em seus rostos ficou mais pronunciando e mais astucioso. Era evidente que estavam pensando que, se havia uma faca, provavelmente havia outras, Mas para que haviam de querê-las? Os meninos normais, é verdade, pensou o Dr. Stevens, gostam de canivetes. Mas aqueles não eram meninos normais, e seu desejo pelas facas não era normal. Johnny estaria louco? O Dr. Stevens fez menção de se levantar, pois Johnny estava pondo a faca ao lado do prato de Jean. Estava sorrindo para ele, pensativo. Depois disse: — Jean, você já está muito grande para eu ter de lhe cortar a carne. Você sabe usar a faca. Pegue-a, filho, e corte sua carne, e mostre aos outros como é. As crianças tinham pegado a carne com os garfos rombudos. Mas então pararam de novo, olhando para Jean. O olhar de Jean se fixou sobre o aço reluzente ao lado de sua mão. Os olhos se apertaram, o rosto se contraiu e uma luz maléfica brilhou-lhe nos olhos. Johnny estava perto dele, perto demais! Jean ainda não tocara na faca. Ficou olhando para ela e gotas de saliva apareceram nos cantos de sua boca. Seus músculos ficaram tensos e então os dedos se aproximaram do objeto mortífero, furtivamente. Num segundo ele a teria e então saltaria…! — Pegue a faca, Jean — mandou Johnny. — E para a carne. Pegue-a! Os dedos rastejantes pararam; alguma coisa naquela mente bárbara também devia ter parado, algo violento demais para se contemplar. A Sra. Burnsdale, olhando também, recuou para a porta, a espátula abanando de um lado para outro em frente dela, como que preparando-se para um ataque. Os olhos alucinados do menino pararam; as pálpebras cerradas se abriram bem e aí os olhos se levantaram para Johnny, dirigindo-se para ele. Era como se ver um animal se transformar num ser humano, ou um louco perceber aos poucos que sua loucura estava passando. — Você quer eu… ter a faca? — sussurrou Jean. Estava tremendo visivelmente e lambia os lábios secos. — É, o papai quer que você pegue a faca para cortar a sua carne. Olhe, a carne de Kathy ainda não está toda cortada. Primeiro as damas, Jean. A mãozinha, a mão humana, procurando, tocou na faca, recuou; depois tocou-a de novo. Algum drama terrível se estava passando nos lugares secretos do coração do menino, os lugares não domesticados. Algumas recordações temíveis moravam lá, palpitando. E então Jean estava sacudindo a cabeça de um lado para outro. — Não… papai. Não sei cortar carne ainda. Não… sei. Papai corta carne para Jean e Kathy. Johnny suspirou com uma impaciência divertida. — Está bem, só desta vez. Mas depois disso, você é que corta, em todas as refeições. Está ouvindo?

Jean ficou calado; as crianças também. Então Jean disse, humilde: — OK, papai. Ele parecia menor na cadeira, e era um rosto de menino quase normal que olhava agora em volta da mesa. — Quero faca! — exclamou Pietro, pulando para cima e para baixo, as mãos voando. — Dá faca para Pietro! Johnny estava com a faca na mão. Olhou para Jean: — Bem, Jean, dou a faca ao Pietro? Jean não disse nada mas olhou para Pietro. E então, de um modo comovente, sua expressão imitou a de Johnny, pensativa, um pouco severa, contemplando, e ele respondeu: — Não, faca para Pietro não. Muito… muito criança. Papai corta carne de Pietro. — Apontou um dedo mandão para o menino mais moço. — Pietro cala a boca e come ou Jean bate na cara dele. Está vendo? Pietro se comporta. — Jean corta carne de Pietro! — gritou o moreninho, os cachos pretos saltando em sua testa. — Pietro não se comporta, se Jean não corta a carne! — Ele estava ficando descontrolado. Jean, o lado aleijado caído, levantou-se com dificuldade. Estava sorrindo para Johnny, como que constrangido com as artes de Pietro. Estendeu a mão e Johnny, sem hesitar um instante, deu a faca afiada ao menino. Jean olhou para ela, na sua palma. Ouviu-se um estrondo e o Dr. Stevens viu que a Sra. Burnsdale tinha fugido, batendo com a porta. Absorto, o Dr. Stevens viu que Jean estava equilibrando a faca, avaliando-a, experimentando. — Para a carne — murmurou, num tom aturdido, sonhador. — Para a carne, para a comida — repetiu Johnny encorajando-o. — Não é para matar, nunca mais, Jean. Meu filho. Pietro estava-se remexendo na cadeira, mas espiava Jean, com astúcia, e sua boca aberta estava úmida, babando. Jean disse alto, de repente: — Cale a boca, seu… seu Pietro! Cale a boca! O menino menor acalmou-se como se tivesse levado um tiro. Jean tinha levantado a mão esquerda, ameaçadoramente, no gesto eterno de um irmão mais velho prestes a disciplinar um mais moço. Então Jean, arrastando-se devagar, foi para junto de Pietro, pegou o garfo dele e, usando a faca desajeitadamente, começou a cortar a carne do menino. As crianças estavam observando de novo, com aquela sua cautela terrível. O suor apareceu em gotas nos maxilares brancos e na testa de Jean; suas mãos tremiam. Mas, de pedaço em pedaço, o bife estava sendo reduzido a fragmentos. Pietro estava tenso como uma mola, as narinas dilatadas. Soltou um rosnido, menos com a boca do que com todo o corpo. Max estava ganindo. As meninas — e como as meninas são mais civilizadas do que os meninos — estavam ali sentadas, examinando Jean com curiosidade.

Estava feito o trabalho. Jean afastou-se da mesa. Olhou para Johnny. Johnny sorriu para ele e, depois de um instante, Jean sorriu. Pôs a faca na mão de Johnny, sem relutância, mas como que aliviado. — Jean é bom menino, non? — perguntou. — Jean é o filho mais velho do papai — respondeu Johnny. — Obrigado, Jean. Agora as crianças estavam comendo, sem modos. Até Pietro estava comendo. De vez em quando ele lançava um olhar para Jean, intrigado e admirado. — Bem, crianças — disse Johnny —, vou para a biblioteca conversar com o Dr. Stevens. Jean, tome conta das coisas. Max, faça o que o Jean disser e ajude a Emilie. Pietro, passe o pão e a manteiga. Kathy, veja que os meninos usem os guardanapos e não derramem as coisas na mesa. Kathy? — Sim, papai — respondeu Kathy, empertigada. No seu rosto de bom senso aparecera aquela expressão comovente, maternal e controladora. — Os meninos não vão derramar nada. Dou neles. — Ela olhou feroz para os três meninos, torcendo a trança loura. Os dois homens estavam sentados na biblioteca. Johnny fumando seu cachimbo, o Dr. Stevens se dando ao luxo de um charuto. A porta estava aberta, e eles ouviam o que se passava na cozinha. Kathy ralhava de vez em quando; Jean mandava. Por vezes havia ura arrastar breve, ou um grito. Mas às vezes a normalidade desaparecia e reinava um silêncio agudo, de lobo, e Johnny e o Dr. Stevens escutavam, aflitos. Aí uma voz de criança fazia uma pergunta, havia uma resposta, um barulho de louça. — Eu não suportaria isso, Johnny — confessou o Dr. Stevens. — E, sabe, a congregação não vai admiti-lo. Assim como Edith e a Sra. Burnsdale. Estão fazendo as malas neste momento, sabe. — Sei — respondeu Johnny, e de novo estava muito cansado. — O senhor sabe, sempre fui, bem, meio idealista. O senhor me disse que o idealismo é muito bom, desde que a gente fique próximo da realidade. Pensei que talvez a congregação compreendesse; aliás, tinha certeza disso. Os americanos não são o povo mais bondoso do mundo, mandando comida para toda parte, passando listas de assinaturas, abrigando crianças… ? — Os americanos — falou o Dr. Stevens, com secura — são gente muito simples. Fazem caridade aos aflitos, ajudam os desamparados, civilizam os selvagens, têm misericórdia com os que foram maltratados, dão dinheiro, dinheiro, dinheiro, generosamente, onde quer que ajude. Mas pelo amolde Deus, não traga as vítimas para muito perto! Não existem organizações, fundadas com o dinheiro excedente, para ajudar e deixar que o resto do mundo viva de modo agradável, com a ilusão de que tudo, tudo mesmo, é muito bom para a maioria das pessoas, e a felicidade, com poucas exceções, é a sorte geral? A grande ilusão dos Estados Unidos é: sorria, conserve tudo agradável, salve a superfície e estará tudo salvo. Ele estava fumando com sofreguidão. — Duas guerras com o intervalo de apenas duas décadas e ainda não aprendemos! Desfiles, bandas de música, casa própria, playgrounds, discursos políticos, aniversários,

associação de pais e professores, comemorações, carros, máquinas de lavar, aeroplanos, bugigangas reluzentes… isso é que é importante. Mas talvez devêssemos compreender. Talvez os americanos saibam, no fundo de seus corações, que adoram ó beisebol, que, se tivessem as mesmas oportunidades que tiveram um Mussolini ou um Hitler ou um Stalin, seriam iguaizinhos a eles! Talvez seja essa a terrível verdade que não querem enfrentar. — O senhor não falava assim — disse Johnny. — Mas sabia disso — respondeu o Dr. Stevens, sério. — Dois mil anos de cristianismo e não progredimos mais que isso? — perguntou Johnny, com tristeza. O Dr. Stevens sacudiu a cabeça. — Não. Não que se note. A não ser no caso de alguns ministros, padres e rabinos. Mas eles sempre existiram, de modo que não os contamos. — Então, Deus se fez carne e morreu no Calvário, para nada? Johnny estava debruçado para ele, o rosto jovem franzido, o cachimbo nas mãos. O Dr. Stevens ficou calado. A voz de Johnny estava muito branda: — Deus não desperdiça nada. Não se desperdiçaria. — Bem, imagino que haja exceções, entre os seres humanos. Johnny sorriu e recostou-se na poltrona. — Hei de encontrar essas exceções, Dr. Stevens. O Dr. Stevens olhou para o charuto. Sua fisionomia estava menos amarga, e muito insegura. — Um amigo meu, um padre, me disse que os santos nem sempre estão em posições ilustres. Um pode estar na sua cozinha, disse ele, ou cortando sua grama, ou lavando suas vidraças. Pode estar numa máquina na sua fábrica. Pode ser seu patrão, seu irmão, o homem por quem você passa na rua, que o ultrapassa no carro dele, que lhe vende gravatas ou sapatos. Pode até ser um político! — O Dr. Stevens riu-se um pouco. — Bem, acho que aí ele se excedeu. Mas Johnny estava sério. — O seu amigo tinha razão. Sempre, nos lugares mais inesperados, podemos encontrar os santos. Vou procurar por eles. Preciso da ajuda deles. Meus filhos precisam deles. O Dr. Stevens sacudiu a cabeça, de leve. — Não nesta congregação, Johnny! Receio que aqui você esteja queimado. Vou ter de lhe arranjar outro lugar. Vai ser muito difícil. As notícias se espalham. Vai ter de ir para algum lugar obscuro, alguma igreja pobre… alguém que o aceite, Johnny. E às crianças. — Como o senhor disse quando entramos aqui, é verdade que fui um pouco

exagerado com aquelas senhoras e senhores. Mas, sabe, eu não podia acreditar! Pensei que fossem compreender. E depois vi que eram tal e qual as pessoas da Europa, se bem que não tivessem sofrido o que a Europa sofreu. Fiquei desiludido, Dr. Stevens. — Johnny se levantou, o rosto agitado, e começou a andar de um lado para outro. — Os americanos deviam saber; seus corações bondosos sofreriam por essas crianças, que não têm nome, nem casa, nem nacionalidade, nem língua, e que eram só “animais”, comportando-se como animais. E aí chego aqui, hoje! — Ele parou,- com eloquência. O Dr. Stevens olhou para o charuto. — Como é que você os encontrou, Johnny? O jovem ministro recomeçou seus passos inquietos. — Fui a Salzburgo, no mês de outubro passado. Queria tirar umas férias; tinha ouvido dizer que Salzburgo era uma linda cidade. O lugar estava cheio de pracinhas e não consegui encontrar um quarto de hotel. Mas alguém me arranjou um quarto perto da ponte, numa casa particular, muito limpo, muito pobre mas muito agradável. Os austríacos são um povo animado, amável… Parou junto da janela e ficou olhando para a avenida lá fora, escura, vazia, sossegada, só um táxi de vez em quando passando com um berro mudo de luzes. Mas na verdade estava olhando pela janelinha da casa “perto da ponte” em Salzburgo, em plena luz do sol. Uma campina estreita, pintalgada de dentes-de-leão dourados, e acima uma montanha coberta de florestas, manchada de pedras cinzentas, entremeada de pequenos trigais dourados, pontilhada de casinhas brancas com beirais de telhas largas. Havia uma casa bem em frente, bem na orla da campina avermelhada, o jardinzinho bem tratado viçoso com flores e fraldas em cordas compridas, a relva cheia de crianças brincando. E ao lado dessa casa havia outra, em construção, não por carpinteiros e pedreiros, mas por toda a família… pai, mãe e dois meninos, um de seus 12 anos e outro de seus oito anos. Um carrinho de bebê estava debaixo de uma árvore e por vezes se balançava com força. Johnny sorriu, relembrando, esquecendo-se de todas as outras coisas que tinha visto, o palácio travesso de Marcus Silicus, as grutas, as salinas, a excursão apavorante nos Alpes num jipe e toda a grandeza melancólica de picos e mais picos, dobras e mais dobras, e a massa roxa das nuvens nas gargantas. — Uma família estava construindo uma casa — recomeçou a narrativa. — O pai de calças de couro curtas, a mãe com os cabelos amarrados num pano e um avental cobrindo o vestido preto, os meninos, sérios e interessados, de calças como as do pai. Ainda recentemente, tinha havido uma guerra. A cidade conhecera Hitler; Berchtesgaden estava ali, além do horizonte. As tropas de assalto e os soldados tinham marchado pelas ruas calçadas de pedras. Os russos tinham estado lá, todas as tropas dos conquistadores e dos conquistados. A morte também estivera lá… por toda parte. E o som de canhões e bombas. No entanto, lá estava aquela família construindo uma casa de blocos de concreto, o menino menor de pé empoleirado numa viga em cima das paredes puxando baldes de cimento que o mais velho estava misturando com a ajuda da mãe. Lá estava o pai batendo vigorosamente com o martelo, subindo e descendo escadas,-enquanto fumava o cachimbo. Às vezes mamãe parava o trabalho para se sentar numa pedra grande e dar de mamar ao

bebê. Johnny tornou a encher o cachimbo e sorriu, aquele seu sorriso profundo e terno. — Eu tinha vontade de gritar com eles, quando começavam a trabalhar fazendo barulho de manhã cedo, ao nascer do sol. Mas perdoei tudo quando chegou a hora da cumeeira. A mãe levou um buquê de flores do campo, e o pai as amarrou solenemente em galhinhos e levou aquilo tudo pela escada acima, devagar, rezando, e prendeu à cumeeira. Foi uma ocasião muito emocionante. Quando o pai desceu, todos se ajoelharam juntos, se persignaram e rezaram, toda a família. Johnny respirou fundo. — Até então eu estava bastante amargurado, com o que tinha visto. Discutia com Deus todas as noites. Essa guerra tinha sido o fim de tudo… era o que eu pensava. E depois, lá estava aquela familiazinha construindo aquela casa, e lá estava a cumeeira com seu buquê; então, a despeito de tudo o que tinha acontecido, a despeito de todo o ódio, ruína, morte e desespero, lá estava aquela família rezando junto, recomeçando, certa, em sua fé, de que Deus tinha a resposta e eles estavam salvos com Ele. Em mais de um sentido, estavam construindo à sombra da Montanha. Ele parou defronte do Dr. Stevens, que estava escutando fascinado. Depois o sorriso desapareceu e seu rosto ficou sério e severo. — Essa foi a parte boa. Há uma parte que não é tão boa. Um dia almocei numa fortaleza antiga na encosta de uma montanha. Sobe-se de funicular. O chef estava fazendo o possível para servir um bom almoço para a “gente boa”, que então significava americanos. Duvido que ele se importasse mesmo. O dever dele era cozinhar e fazer molhos e arranjar vinhos para estômagos sem rostos mas que sabiam apreciar. Era essa sua missão na vida e eu bebi um cálice de vinho em homenagem a ele, ali sozinho no terraço. Ele viu o vale largo e verde abaixo da fortaleza e além do vale os morros chatos e azuis contra o céu chato e azul. Uma névoa pairava entre os picos pintados. Ele tinha olhado muito tempo para aquilo. Depois, sua atenção foi despertada por alguma coisa no verde quente do vale; uma casa alta, despida, de telhado de sapê, estucada. Lançava uma sombra escura sobre a relva. Lá não havia mais nada, só aquela casa. — Só havia uma casa caiada no vale — disse ele. — Eu não sabia o que era. Só vi que não tinha jardim em volta, nenhum sinal de vida. Não sei por que mas aquilo me deprimiu. Chamei uma garçonete e ela me contou que era a “casa do carrasco”. Qual carrasco, nunca cheguei a descobrir. Não quis saber. — E então, Johnny? — perguntou o Dr. Stevens, pois a fisionomia do rapaz tinha ficado perdida e amarga. — Não pude deixar de olhar para aquela casa, Dr. Stevens, enquanto fiquei ali no terraço. Agora havia algo de terrível nela, para mim. Tinha um ar de assombrada… monstruoso. Suas duas carreiras de janelas pareciam estar cheias de caras más. Fantasmas da danação. Em todo aquele sol, naquele vale verde e sem vida. Um lugar amaldiçoado. Não sei por quanto tempo fiquei ali, olhando para aquilo. Já estava quase anoitecendo quando fui embora.

Ele acendeu de novo o cachimbo, impaciente, pois este se apagara, mas o Dr. Stevens viu que ele não estava realmente presente naquela biblioteca de luz acesa. As crianças estavam muito quietas, na cozinha. Estariam escutando? — Fui à catedral — continuou Johnny — na Plaza Dom. Não conhecia ninguém e, no meu estado de espírito, não queria conhecer ninguém. Passei pelas ruas, quando escureceu, e só havia algumas luzes, aqui e ali. Jantei num posto de reembolsável que tinha sido aberto na véspera. Nunca me sentira tão agitado na vida. Alguma coisa parecia estar-me chamando, o tempo todo, e meus pensamentos voltavam constantemente para a casa do carrasco. A lua estava nascendo e a noite estava quente, embora estivesse nas montanhas. E então, vi que tinha de ir à casa do carrasco, sozinho ali naquele campo grande, ao luar. A princípio, pareceu uma ideia maluca. No entanto, era uma tal ânsia… Peguei o meu jipe e fui, me xingando. Eu estava é cansado; minha mente estava ficando medieval, ou coisa assim. O que eu esperava encontrar ali? Fantasmas? “Parei o jipe perto da velha fortaleza e depois dei a volta e fui para o vale. Aí, ouvi gritos e berros. Diversas pessoas, homens e mulheres, parecendo espectros negros ao luar, estavam correndo pelo vale, carregando cacetes, em direção à casa. Nunca se viu um espetáculo tão perverso na vida! Foi um pesadelo. “Comecei a correr com eles, com vontade de estar armado. Lembro-me de que pensei que essa era uma ideia imprópria para um capelão. Mas, não sei por quê, senti que tinha de chegar àquela casa com o povo, ou antes dele. Nunca se ouviu uma gritaria tão danada, parecia um verdadeiro inferno. Reconheci muito bem os gritos; já os tinha ouvido. Eram os gritos do desejo de sangue. As montanhas os repetiam; a própria terra parecia captá-los e repeti-los. “Alcancei um homem e segurei o pelo braço; e quase caímos juntos quando ele tentou se afastar de mim. Agarrei-me a ele e perguntei de que se tratava. E ele me gritou: As crianças-lobos! Vamos matá-las! Ele então conseguiu se livrar de mim e foi embora correndo. Agarrei uma mulher que passava correndo, o vestido voando. ‘Que criançaslobos?’, perguntei. Ela estava ofegante e vi que seus dentes reluziam como de um demônio ao luar. Então ela viu a minha farda e parou de se debater, chegou até a se encolher. Respondeu: ‘Herr Capitão, as crianças-lobos estão em Salzburgo desde o fim da guerra. Não sabemos quem são. Elas se escondem e só saem de noite. Dizem que até já mataram para arranjar comida. Atacam as pessoas nas ruas. Arrombam as casas para roubar. Não são gente nossa. E agora ouvimos dizer que estão escondidas na casa do carrasco!’” — Ah, Deus de misericórdia! — murmurou o Dr. Stevens. Johnny meneou a cabeça. — Foi o que eu disse, Dr. Stevens, mas não o disse nesse tom de voz, pode crer. Joguei a mulher no chão e corri atrás dos outros. Já estavam na casa. A porta devia estar trancada, pois o pessoal estava batendo nela com os cacetes e uivando. Uivando! As janelas eram pequenas e altas; alguns dos homens estavam tentando entrar por elas. E eu só desejava ter uma arma. “Eu nunca tinha corrido tão depressa na minha vida. A porta já estava cedendo, quando cheguei lá. Estavam martelando nas dobradiças; antigamente, faziam-se boas dobradiças. Sem saber como… então aquilo parecia mais do que um pesadelo… eu me

meti entre os homens e a porta. E, como a mulher, eles reconheceram a minha farda americana, de oficial. Aí uma mulher viu a cruz na minha lapela e deve ter pensado que eu era padre. Ela começou a exclamar e apontou para a cruz. A farda… e a cruz. Ou talvez, só a cruz. Aquilo os deteve.” — Sempre acontece isso — falou o Dr. Stevens. — Pois bem, conseguiu isso, por uns minutos, pelo menos. Eu disse a eles que se havia crianças naquela casa, crianças pequenas, eu ia procurá-las e ia protegê-las. Ia leválas embora comigo. Eles recomeçaram a berrar, brandindo os cacetes na minha cara. Chegaram tão perto de mim que senti o suor deles e vi seus olhos terríveis e seu bafo. Se não fossem as mulheres, as mais velhas, eles me teriam matado, a despeito da cruz. “Gritei com eles, também. Provavelmente até os amaldiçoei. Isso os acalmou um pouco… um pastor amaldiçoando-os! Perguntei se não tinha havido já bastante ódio e mortes. Pedi que se lembrassem dos filhos, seguros em suas camas. As mulheres resmungaram, zangadas. Mas, havia aquela cruz.” — E então? — perguntou o Dr. Stevens, sentado na beira da cadeira. O silêncio na cozinha era tal que ele quase o sentia. Bem, eu os escutei. E depois eu disse: “Perdão”. Ele esperou, mas o Dr. Stevens, que estava pálido e estático, não disse nada. —·Então — continuou Johnny — parei de me enraivecer com aquela gente, pois o que eu tinha dito me fez cair em mim, também. Eu apenas repeti “Perdão”. Os uivos começaram a diminuir. Algumas das mulheres começaram a chorar. Uma chegou a dizer: “Ah, as pobres crianças!” E eu toquei na cruz que tinha salvo não só as crianças, mas também aqueles homens e mulheres. Ele largou o cachimbo e tapou o rosto com as mãos, convulsivamente. Quando abaixou as mãos, tinha marcas como de lágrimas nas faces. — E sabe o que aqueles homens e mulheres, que tinham visto a morte, canhões e bombas, me disseram, afinal, ajuntando-se em volta de mim? Disseram: “Perdoe-nos, também”. Ele se virou de costas para o Dr. Stevens. — Entramos todos juntos na casa. Lá dentro estava negro como piche. Dissemos às crianças que não lhes íamos fazer mal. Elas estavam escondidas em algum lugar e a única luz era a do luar nas janelas. As mulheres começaram a cantar, como cantavam com os filhos. Comecei a achar que talvez as crianças tivessem sido libertadas, ou fugido, de campos de concentração, depois da libertação. Tentei o pouco italiano que sabia, o francês que conhecia. E embora olhássemos para todo lado, aflitos, e falássemos baixinho, não tivemos resposta. Por que haveria? Só o silêncio, e era só o que merecíamos. — Mas você os encontrou, Johnny. — É, no porão, amontoados junto a uma parede, tentando se proteger. A bebê Emilie, e Kathy e Pietro e Jean e Max. Encurralados, como os animais irracionais em que os tínhamos transformado. Num monte, os meninos tentando proteger as meninas. Mal os

podíamos ver. Ele se virou, o rosto agitado. — Não posso falar muito mais a respeito, Dr. Stevens. Mesmo hoje, é horrível demais. Mas os homens e mulheres me ajudaram a tirar os garotos dali. Eles arranhavam, mordiam e rasgavam como cachorros danados. Estavam famintos, meio nus, imundos. Tivemos de carregá-los. Eles não conseguiam falar uma só palavra; caíam de nossos braços e tentavam fugir, de quatro, Não sei como, conseguimos levá-los a um posto do exército e as mulheres foram depressa arranjar roupas para eles, roupas que iam lhes fazer falta. Os homens trouxeram pão preto e vinho. Não quero me lembrar dos dias seguintes! Por vezes tínhamos de amarrar os meninos. As meninas ficavam tentando fugir. Sabe, todos pensavam que realmente queríamos matá-los. De repente Johnny saiu da biblioteca e seus passos rápidos o levaram à cozinha. O Dr. Stevens ficou ali sentado sozinho, mexendo os lábios em silêncio. Mas estava dizendo e repetindo, em seu coração: Deus tende piedade de mim. Pai, me perdoe. Johnny voltou, sorrindo. — Estão comendo bolo e tomando leite. Estão-se comportando muito bem! Se acha que estão mal agora, devia tê-los visto há 10 meses. Ele parecia ter recuperado um pouco da calma. Chegou a sentar-se na beira da mesa, e pegou o cachimbo. Ouviram o som de passos firmes e pesados no corredor e Edith e a Sra. Burnsdale entraram, decididas. — Vamos embora, Dr. Stevens — comunicou a mulher mais velha, sem fazer caso de Johnny. — Queremos o nosso dinheiro. O Dr. Stevens olhou para das friamente: a magricela Edith, que estava fungando pateticamente, olhando com um medo fingido por cima do ombro, e a sólida Sra. Burnsdale. — A sua semana ainda não terminou — respondeu ele, sabendo que era inútil. — E estou precisando de vocês aqui. Daqui a alguns dias o Sr. Fletcher vai partir, com as crianças. Ele precisa de sua ajuda. Não podem prestá-la a ele, embora seja difícil? Johnny saiu da mesa. Chegou-se à zangada Sra. Burnsdale, e olhou-a. — Sabe, eu antes pensava que as pessoas como a senhora eram mais bondosas do que… outras. Mais bondosas porque tiveram de trabalhar pesado a vida toda. Mais bondosas porque sofreram. Mas essa é apenas mais uma das mentiras que eu me venho contando, desde que me lembre. Ele estava com uma expressão severa, e dominou o olhar da mulher. Ela mudou a bolsa de posição no braço e levantou a cabeça, desafiadora. — O quê! — exclamou. — Ficar aqui e sermos assassinadas na cama? Depois, o que sabe o senhor do meu tipo de gente, Sr. Fletcher? Ele tentou sorrir.

— Porque sou desse tipo também. Fui criado numa pequena cidade de mineração de carvão. Tive de ganhar a vida desde os 13 anos de idade. Acho que eu devia era ter tido mais juízo. A senhora não é melhor nem pior do que as senhoras que estiveram aqui hoje à tarde. Por que havia de ser? É humana. — Vamos ser mortas na cama! — gemeu a imbecil da Edith. — Vamos, titia! — A senhora é uma covarde, que tem medo de crianças, Sra. Burnsdale? — perguntou o Dr. Stevens, começando a ter uma vaga esperança. Mas Johnny estava falando com calma: — A senhora já ouviu falar dos campos de concentração, Sra. Burnsdale? Pois bem, essas crianças vêm de lá. São órfãs. Os pais foram mortos. Eu lhes ensinei um pouco de inglês, durante 10 meses. Eles não se lembram de onde nasceram, nem de quem. Ora, o garoto mais faminto e imundo do Harlem, morando no pior cortiço, teve uma vida feliz, comparada com a deles! A senhora é cristã, Sra. Burnsdale? Abalada, ela piscou. — Acho que sim, senhor. Edith estava ganindo. A tia virou-se para ela abruptamente. — Pare com isso, sua idiota. — Ela virou-se para Johnny. Ele estendeu a mão e a pôs no ombro forte dela. Ela fez menção de recuar mas não recuou. — Precisamos da senhora, titia — apelou para ela, e seu rosto estava de novo forte e suave. — Só por uns dias. Não vou conseguir alimentar esses garotos sozinho. É só cozinhar para eles. Mantenha as facas fora do alcance deles… — Facas! — gemeu Edith. — Estarei por perto, o tempo todo — prometeu Johnny, depois que a Sra. Burnsdale lançou um olhar arrasador à sobrinha. — Eles não a incomodarão. — Eu vou para casa — disse Edith, Ninguém fez caso dela. Mesmo quando foi andando para a porta, nervosa, ninguém notou. — Deixe lhe contar sobre o Max, o segundo menino — continuou Johnny. — Ele só fala inglês. Não se lembra de que um dia falava alemão. Só nos pesadelos. Não se lembra de nada, a não ser nos pesadelos. Sabe o que aconteceu com o Max, quando ele tinha, provavelmente, uns seis anos? Ouvi a história, quando ele estava dormindo. Os nazistas, que tinham prendido a ele e ao pai num campo de concentração, juntos, chegaram para eles, uma noite, dizendo que no dia seguinte um deles seria enforcado, e o outro seria obrigado a enforcar o primeiro. A Sra. Burnsdale levou a mão enluvada à boca, e por sobre ela seus olhos estavam horrorizados. — É — disse Johnny, meneando a cabeça. — E o pai convenceu o menino de que ele é que devia ter a chance de viver. Assim é que no dia seguinte, com o auxílio de um membro da tropa de assalto, esse menino, que tem idade de ser seu neto, foi obrigado a enforcar o pai. É por isso que Max é bobo. É por isso que está sempre lavando as mãos… tentando lavar a sujeira de ter matado o pai. Não se lembra do enforcamento; só se lembra

de que fez uma coisa horrível, o coitadinho. Ele se virou um pouco, de lado, para a mulher horrorizada. — Então, ele às vezes me pergunta: “Papai, é você?” E eu digo sempre: “Sou, meu filho”. E isso ajuda. Sabe, Max muitas vezes, está a ponto de perder o juízo que lhe resta, depois dos pesadelos. A Sra. Burnsdale começou a chorar. Era uma coisa curiosa: seu rosto grande se agitou e vieram as lágrimas e ela estava remexendo na bolsa. — Eu… eu não posso acreditar nessas coisas — balbuciou. — São bem verdade — respondeu Johnny. — Jean se lembra do campo de concentração muito bem, nos pesadelos dele. Provavelmente é um menino francês, e nos sonhos fala em francês. Devia ouvi-lo, certas noites! Os pais dele foram mortos lentamente, diante dele. Ele tentou ajudar a mãe e um membro das tropas de assalto tentou matá-lo a pontapés, também. É por isso que ele é aleijado. É por isso que é tão violento e odeia as pessoas. É por isso que Jean também matou, quando teve a oportunidade. Mas foi por comida, e o homem que ele matou era um guarda austríaco solitário, montando guarda, depois que nós americanos chegamos lá. Sabe, o homem estava almoçando. Jean não se lembra de ter morto o soldado. Só se lembra de que houve um período em que achava que tinha de vingar a mãe, e conseguir comida, com uma faca. E ele conserva a ideia, no fundo da mente, de que tem de matar ou ser morto. Agora não, nem sempre, especialmente quando está acordado. Só quando está desprevenido, e quando sonha. — Ah, Deus tenha piedade de nós! — exclamou a Sra. Burnsdale, com a voz abafada. — Espero que tenha — respondeu Johnny, com simplicidade. — Precisamos da Sua misericórdia. — Não suporto ficar aqui ouvindo isso! — gritou Edith. — E temos o Pietro. Acho que é italiano. Os pais morreram num bombardeio na casinha dele, na Itália. Bombardeiros americanos. Ele tinha um irmão mais velho. Contoume a respeito, uma noite em que estava quase dormindo. Os nazistas, ao se retirarem da Itália, levaram o irmão para trabalhos forçados, e ele deu um jeito de levar Pietro com ele, clandestinamente. Talvez, para não deixar o menino morrer de fome, ele se ofereceu para ser espião. Não sei, nunca saberemos. Em todo caso, eles acabaram num campo de concentração. Vittorio, irmão de Pietro, evidentemente era um italiano bom demais para trair a pátria. As tropas de assalto se divertiram muito com Vittorio, uma noite. Mataramno devagar, sem pressa nenhuma, com suas facas, e Pietro viu. Assim, uma faca significa vendetta para Pietro: quer ter facas para poder ferir os homens que mataram o irmão. E para o coitadinho do Pietro, todos os que usam farda, até eu, estão ligados de algum modo, em sua cabeça de criança, com as tropas de assalto, e o assassino de seu irmão Vittorio. Johnny parou. A voz dele estava muito sossegada, e isso e a falta de emoção tinham um impacto terrível. A Sra. Burnsdale não fez comentários; estava com os olhos bem fechados e por baixo das pálpebras, as lágrimas escorriam. Johnny continuou:

— Pietro é um menino muito, muito inteligente. Adora cores e música. Pensa. Acho que um dia será um grande artista. É mais perigoso do que o Jean, embora seja mais moço. Jean odeia abertamente; Pietro sorri, e odeia dentro do coração. Tenho de vigiar Pietro o tempo todo: ele acha que todo adulto, especialmente qualquer homem, é seu inimigo e teve culpa na morte do irmão. — Johnny tornou a esfregar o rosto com as mãos. — Às vezes eu me pergunto se Pietro não tem razão. Edith tinha tomado mais coragem. — Se a senhora não vier já, titia, vou sozinha. Já ouviu o que o próprio Sr. Fletcher está dizendo. Perigoso. Facas! O táxi está esperando. A Sra. Burnsdale virou-se para a sobrinha, devagar, e a penetrou com seus olhos cinza-claro. — Se você ousar deixar esta casa… — começou. Johnny e o Dr. Stevens trocaram um sorriso rápido. Johnny disse: — Deixe a Edith ir, Sra. Burnsdale. Não queremos ter junto das crianças ninguém que não as entenda ou tenha pena delas. E Edith tem razão: se ela mostrar às crianças que tem medo delas, ora, como todas as coisas selvagens, elas lhe darão motivos para ter medo. Edith fugiu, agarrando a valise. Eles ouviram a porta bater lá fora. As crianças estavam fazendo uns ruídos estranhos na cozinha — palavras desconexas, frases arrastadas, grunhidos, gritinhos, depois silêncio. Johnny pegou o braço grosso da Sra. Burnsdale e a fez sentar-se, delicadamente. Ela sentou-se como uma pedra, ainda chorando, mas ainda indomável. Estava com um ar decidido, enquanto esperava que Johnny falasse de novo. Ele recomeçou: — Parece um jardim zoológico, não é? Bom, as crianças aprenderam inglês comigo, e assim, como as criancinhas muito pequenas tentam se comunicar com as outras com um vocabulário limitado, essas cinco tentam se comunicar. Mas é uma coisa muito engraçada. Posso falar inglês depressa com eles, e muitas vezes acho que elas entendem mais do que parece possível. Ele enxugou as faces molhadas da Sra. Burnsdale com seu lenço. Ela não se mexeu, e ficou esperando. — Tem a Kathy. Pensa que é feia; disseram que era. Pensa que vai ter de morrer, porque é feia. Ela rouba espelhos. Quem sabe o que Kathy pensa, além disso? Eu não sei. Ela deve ser de uma família boa, alemã, holandesa ou dinamarquesa. Pelo jeito como age, às vezes, acho que ela não passou muito tempo no campo de concentração. É muito arrumada e eficiente, e gosta de mandar e tomar conta das crianças menores. Assim, é minha opinião que ela era a filha mais velha de uma família de jovens, e ajudava a mãe. Gente da classe média. Kathy não fala dormindo, a não ser sobre sua “feiúra” e os espelhos. Nunca fala nos pais, nem em outras pessoas. Mas toda a família deve ter morrido. Aliás, Kathy tem uma cicatriz de queimadura comprida nas costas, embaixo, de uns 20 cm de largura. Por vezes eu me pergunto se Kathy não terá. escapado de algum modo de um crematório. Sabe, ela tem muito medo do fogo. A única vez que a vi ficar

histérica foi quando viu uma chama, e às vezes, quando risco um fósforo, ela fica aflitíssima. A Sra. Burnsdale levou as mãos enluvadas aos ouvidos e começou a se balançar na cadeira, no antigo movimento de dor. O Dr. Stevens estava olhando para o chão, o charuto apagado na mão. Parecia doente e abalado e Johnny foi para junto dele, preocupado. — Dr. Stevens? — perguntou ansioso. O senhor está bem? O velho respondeu: Só estou pensando se Deus algum dia nos perdoará a algum de nós, neste mundo. Não tenho muita certeza, Johnny. — Nem eu. Bem, agora só falta falar sobre a bebê Emilie. Acho que ela passou todos os dias da vida dela, até fugir com os outros, num campo de concentração e nunca aprendeu a falar, até eu lhe ensinar. Deve ter uns cinco anos, eu acho. Tem algum problema de coração e pode ser que nem se crie. Fiz que os melhores médicos do exército a examinassem. Eles acham que ela foi usada para alguma experiência pelos médicos alemães. Uma cobaia, como se diz. O sangue dela estava cheio de algum remédio desconhecido; agora já está quase eliminado, mas o coração dela tem o dobro do tamanho que devia ter. Dilatação. Ela não pode dormir deitada; tem de dormir apoiada em travesseiros. Chora dormindo, ganindo como um cachorrinho. Pode ser que tenha alguma possibilidade de vida, se se convencer de que alguém realmente gosta dela e se interessa por ela. Ele passou a andar de um lado para outro, torcendo as mãos como o Max torcia as dele. — Para eu poder trazer as crianças para cá, elas tiveram de tomar uma série de injeções. Levaram a agulha para Emilie. Quando ela a viu, desmaiou. Pensamos que tivesse morrido. Foi preciso aplicar-lhe oxigênio durante vários dias para ela voltar a si. Não passa de um bebê, e no entanto quase, morreu de susto. Tivemos de lhe dar uma anestesia, que quase a matou, para poder aplicar as injeções. Isso quanto a Emilie. Ele levantou as mãos e deixou-as cair. — Somente cinco crianças. Pensem nos milhões que morreram, assim como estas poderiam ter morrido, pelos mesmos motivos. Nem sei como foram poupadas. Nem sei como se juntaram em Salzburgo. Só sei que estavam vivendo juntas, em qualquer prédio abandonado, destroçado pelas bombas, que podiam encontrar. Só sei que confiam uns nos outros, compreendem-se. E só sei que vão ter de aprender a confiar em mim, e em todos os outros, do contrário é certo que morrerão. O rosto dele estava brilhando de suor. Passou as mãos pelos cabelos, agitado. — Não posso falar de Deus para eles. Ainda não. Sabe, foi uma gente “cristã” que fez essas coisas com eles. Eu mesmo os batizei, mas não expliquei o que era aquilo. Se eu lhes falar de Deus vão querer me fazer umas perguntas muito pertinentes, e não estou preparado para responder. Ainda é demais para mim. A Sra. Burnsdale levantou-se e falou, com sua voz forte:

— Já são quase 21h00, e essas crianças ainda estão na cozinha. Vocês homens deviam ter vergonha! E o banho delas, e a cama? Ela tirou o casaco, as luvas e o chapéu e olhou feroz para os dois ministros, resmungando. Depois saiu da biblioteca. Johnny, aflito de novo, ia saindo atrás dela. Mas o Dr. Stevens perguntou: — Como é que em nome de tudo que é sagrado você conseguiu trazê-los, afinal? O rapaz sorriu, sombriamente. — Ah, foi duro, pode crer! Tive de preencher centenas de formulários. Tive de ficar responsável por elas, como meus filhos de criação. Tive de depositar 500 dólares por cada um, como fiança para o Serviço de Imigração dos Estados Unidos, declarando que não seriam ônus público aqui, Eu mesmo só tinha a metade do dinheiro. Mas os camaradas do exército me ajudaram. Conseguiram levantar o resto, E ainda sobrou um bocado, uns 200 dólares, para me ajudar com eles quando cheguei. — Não sou um homem rico, Johnny. Antes de você partir daqui, vou lhe dar um cheque para as crianças, de mil dólares. E pretendo ajudar em qualquer outra ocasião. De braço dado, eles foram logo para a cozinha, e depois pararam no vão da porta, sem poder acreditar. A Sra. Burnsdale tinha assumido o comando. Imediatamente, a esperta percebera o que tinha de ser feito. Estava falando devagar e com firmeza: — Você, Kathy. Primeiro Emilie vai tomar banho, e você é quem vai dar o banho nela. Depois você tome o seu. Confio em você como minha ajudante. Kathy levantou-se e ficou atenta, empertigada, pronta, competente. Para assombro dos homens, ela abaixou a cabeça educadamente para a Sra. Burnsdale e disse: — Sim, Mutter. O Dr. Stevens e Johnny se entreolharam, pasmos. Kathy pôs as mãos nos ombros de Emilie e disse, severa: — Vem. Banho. Emilie desceu da cadeira, obediente, olhando fixamente, e Kathy pegou a mão da criança. — Antes de tudo ordenou a Sra. Burnsdale — digam boa-noite ao seu papai. Johnny mal podia acreditar. Kathy estava fazendo uma reverência para ele, como se se lembrasse de uma antiga lição. Depois fez outra reverência para o Dr. Stevens. Boa noite disse ela, com uma voz de menina bem-educada. Depois, sem mais delongas, pegou Emilie e saiu da sala com ela. Os meninos estavam tão pasmos quanto os dois ministros. Então, pensou o Dr. Stevens, estão precisando é de uma mulher. Os meninos voltaram as cabeças para os ministros, perplexos. Johnny riu-se. — Estão vendo, rapazes, quando, as mulheres assumem o comando, ninguém pergunta nada.

A Sra. Burnsdale respondeu: — Não passam de crianças, e vão me obedecer. Você é Jean, o menino grande. Muito bem, o jantar acabou. Leve aquele ali… Pietro, não é? Bom, dê banho nele e depois tome um também. E se o deixar correr pela casa depois, rapaz, vai se entender comigo! Tenho a mão dura. Criei quatro filhos. — Ela mostrou a mão imensa debaixo do nariz de Jean e ele meneou a cabeça, humildemente. —·Sim, Maman — murmurou. Ele se levantou com esforço e agarrou o braço de Pietro. O menino resistiu. — Vamos — disse Jean, de cara fechada, feroz. Pietro gritou, meio abafado. Mas Jean o arrastou da cadeira e eles saíram juntos. Pietro protestando, mas sem muita convicção. Restava o Max. A Sra. Burnsdale se aproximou dele, postando-se ao seu lado. Ele ficou olhando para a frente, o olhar vazio, os lábios se mexendo. — Max? — perguntou a mulher. Ele estremeceu mas não respondeu, — Max — continuou a Sra. Burnsdale —, diga boa-noite. Ao seu papai, Max. Ao seu papai. Ele não foi embora nunca. O rosto de Max continuou vazio, estupidificado. Aí a Sra. Burnsdale debruçou o corpo grosso sobre ele e o beijou na testa, passando o braço pelo pescoço dele. Ele teve um sobressalto horrível. — Papai! — gritou. — Papai! Johnny foi para junto dele. — Aqui está o papai, Max — respondeu ele, pegando Max no colo, e o menino passou os braços em volta do pescoço dele, soluçando. — Papai vai dar banho no Max e vai pô-lo na cama — disse Johnny, carregando o menino da cozinha, murmurando para ele. A Sra. Burnsdale e o Dr. Stevens se olharam por algum tempo. Depois ela falou, resolvida: — O senhor vai ter de arranjar outra governanta, Dr. Stevens. Sinto muito, mas esse rapaz precisa da ajuda de uma mulher, e aonde ele for eu vou também. Seja para onde for. Aquela Edith! — acrescentou, olhando para a pilha de pratos na pia e na mesa. — Logo quando preciso dela. Mas ela também nunca prestou, sério. Bem, lavo a louça depois que puser as crianças todas na cama. Uma pena — continuou, a caminho da porta — não poder ouvir elas rezando. O Dr. Stevens ficou sozinho na cozinha grande e quente. Ficou pensando. Depois tirou o casaco e a gravata. Arranjou uma toalha grande e a amarrou em volta da cintura gorducha. Encontrou a bacia de louça e o sabão. Começou a cantarolar, o rosto se animando. Mergulhou as mãos na espuma e o cantarolar ficou mais forte como se alguma dor tivesse tido um alívio.

IV O Reverendo John Fletcher, ali de pé na escada da casa paroquial no dia quente de princípios de agosto, examinou o seu rebanho, pensativo. E eles o examinaram pensativos, pois era a primeira vez que o viam de preto de clérigo. Como ele esperara, o fato de tirar a farda tinha inspirado um pouco mais de confiança dos garotos nele, pois, inevitavelmente, associavam aquela farda ao terror que só faltara destruí-los. As roupas que a UNRRA (Organização de Auxílio e Reabilitação das Nações Unidas) tinha conseguido arranjar para eles os cobriam adequadamente, mas era só. Seus olhos azuis começaram a brilhar. Vestidos bonitos para as meninas, camisetas americanas e jeans para os garotos e boas roupas de domingo! Ora, com as roupas próprias, essas crianças passariam por crianças americanas! Johnny acreditava firmemente que, embora as roupas não fizessem o homem, certamente o ajudavam a se tornar um homem. O tráfego passava rugindo com os carros e táxis e multidões, o sol se refletindo de mil vidraças largas e quentes. Graças a Deus isso é Nova York, pensou Johnny. Se bem que as crianças estivessem vestidas de um modo muito esquisito, em volta dele ali na escada da casa de pedra marrom, nenhum transeunte olhou para elas com curiosidade. Nas cidades grandes as pessoas tratam de suas vidas. Aliás, ninguém tinha olhado demais para as crianças em Roma, nem em Paris nem em Londres, esse lugar tão correto. Ele, Johnny, tinha pensado em comprar roupas normais para “meus filhos” na cidade pequena onde iriam morar, mas depois se lembrara de que as cidades pequenas são mais curiosas, mais censoras do que as poderosas. Quando eles todos chegassem — em algum lugar — iam parecer iguais a todas as outras crianças, e quem se importava com as despesas? Deus tomava conta dos Seus, pensou Johnny, procurando se esquecer do campo de concentração e da casa do carrasco. Pietro estendeu a mão morena e ágil e tocou no casaco preto de Johnny. Estava muito parado e tinha começado a franzir a testa. — Sim, filho? — perguntou Johnny, O menino olhou para ele com aqueles seus olhos insondáveis e uma centelha brilhava ali. Uma centelha de recordação de algum velho padre naquela aldeia esquecida? — Padre? — murmurou o menino, inseguro. Johnny sentiu um alívio no coração. —·Padre — respondeu. Pietro deu uma gargalhada, mas ainda ficou agarrado ao casaco de Johnny. Era a primeira vez que ele tocava no jovem ministro, por sua vontade. Os pés dele se arrastaram, como se dançasse, Agora Jean o estava examinando, os lábios se movendo. Depois ele exclamou, triunfante: — Abbé! Abbé! — Abbé! — respondeu Johnny, e disse consigo: Obrigado, Pai. Ele olhou para Max,

com esperanças, mas Max parecia uma estátua sonhadora de um menino sem lar. A pequena Emilie, tão pálida e bonitinha ao sol, com aquela massa de cachos caídos pelas costinhas e os olhos grandes e azuis olhando os meninos, estava agarrada à mão de Kathy. Emilie estava toda assombrada. Kathy examinou Johnny, apertou os lábios, meditando. Depois seu rosto redondo se iluminou. — Fadder! — exclamou, triunfante. — Fadder — respondeu Johnny, meneando a cabeça para ela. Ela abraçou Emilie. — Papai… Fadder — explicou ela, severa. Emilie ficou confusa. — Ela é um bebê — falou Johnny. — Ainda não sabe de nada. Vamos ensinar a ela, não é, Kathy? — Bebê — concordou Kathy. Ela estava com a mão direita apertada em alguma coisa, e Johnny sabia que era a pozeira da Sra. Grant. Ele disse: — Hoje vou lhe comprar uma bolsa, Kathy, e você pode pôr o espelho lá dentro. — Ele hesitou. — Por que não me deixa guardar isso no meu bolso, meu bem? Ela recuou, apertando os olhos, e sacudiu a cabeça com tal violência que a trança dançou de um lado para outro. Johnny perdeu parte de suas esperanças. Voltou os olhos para a grande igreja de pedra marrom ao lado, a cruz de metal incandescente ao sol. Ele pensou. Seria cedo para começar a ensinar alguma coisa às crianças? Depois de uns instantes, disse: — Estão vendo aquilo? É uma igreja. Vamos entrar. Ele sabia que agora nunca havia de pregar ali. — Igreja — disse Jean. Ele estava com os maxilares muito brancos, como osso nu, ao sol. Johnny repetiu: — Igreja. Casa de Deus. — Ele procurou uma reação de Jean, de Kathy. Nada, o vazio. No entanto, tinham dito “Abbé’’ e “Fadder“. Não se lembravam de uma igreja, então — qualquer igreja, mas apenas de alguns padres que, provavelmente fugitivos também, tinham tentado levar algum consolo antes de morrer ou serem levados embora. — Deus — repetiu Johnny, ansioso. As crianças sacudiram as cabeças e, como sempre faziam quando não o estavam entendendo, recuaram e formaram um bandinho, juntas. Ele lhe estendeu a mão, lutando para encontrar palavras Disse: — Dio? Dieu? Gott? — Quatro das crianças, Max, Emilie, Kathy e Pietro, ficaram confusas, inseguras. Mas, para horror de Johnny, Jean começou a rosnar, abafado, e seu rosto ficou distorcido de ódio. Ah, pensou Johnny, então ele se lembra um pouco, e se lembra de que não encontrou ajuda em lugar algum, bem no fundo de seu subconsciente. Ele disse ao menino: — Não é Dieu, não é Deus, meu filho, só os homens. Eles o separaram Dele. Jean agora estava rosnando mais alto, mas piscou, tentando se lembrar de alguma coisa. Então as crianças, acompanhando Jean, seu líder, começaram a resmungar, e Johnny viu que nunca se acostumaria com aquele ruído horrível. Pegou logo a mão de Kathy. Disse a Jean, que estava olhando para ele com aqueles olhos quentes, odiando: — Lembra-se, Jean? Você toma conta dos meninos, Max e Pietro. Você é o meu filho

mais velho. Vou levar as meninas para a igreja e você traga os outros. Preste atenção. — Ele olhou para Jean, enérgico, dominando o olhar do menino. Jean ficou ali calado, a mecha castanho-amarelado caindo na testa. Estava obstinado e Max e Pietro estavam um de cada lado dele, igualmente obstinados. Então Kathy falou com sua nova voz de professora, e com energia: — Jean… menino grande. Jean traz meninos pequenos. Acompanha papai e Kathy e Emilie. Johnny virou-se para ela, surpreendido e agradecido. Ela estava olhando para os meninos, friamente. Era mais jovem do que Jean, mas dominadora, de seu jeito maternal. — Acompanha — repetiu. Puxou Emilie e foi andando para a igreja, decidida. Johnny deu uma risada fraca. — O que se pode fazer quando uma mulher nos diz o que fazer? — perguntou. Pietro deu risada. Max tinha adquirido um pouco de vida. Sorriu um pouco. Jean ficou olhando para Kathy, furioso. — Sou o mais velho — disse, e a luz horrível desapareceu de seus olhos. Com um olhar advertiu Pietro e Max, e agarrou a mão de Pietro e o braço de Max. Depois olhou de novo para Johnny, e seus olhos subiram e desceram pelo paletó e se fixaram no colarinho clerical branco. — Papai… Abbé… primeiro. Bom, obrigado de novo, Pai, pensou Johnny, com humildade. Ele desceu a escada da casa. Os meninos realmente o acompanhariam? Atrás dele reinava o silêncio. E então, com gratidão, ele ouviu os pezinhos se arrastando perto de seus calcanhares. Johnny esperou até que passasse um grupo de pessoas, e depois seguiu depressa. Os meninos ficaram juntos, sem olhar para os homens e mulheres que passavam por eles, sem reparar. Eles nunca olhavam para as pessoas, quando podiam evitar. Kathy puxou Emilie para o lado quando Johnny se aproximou da porta grande e encerada da igreja. Os meninos ficaram para baixo, nos degraus. Na porta estava pregado um aviso: “Ofícios no segundo e quarto domingos durante julho e agosto, às 10h00. Comunhão no último domingo”. Johnny, a mão na maçaneta, olhou para o aviso por vários momentos, e aí seu rosto se fechou. Então, Deus estava naquela igreja, a igreja Dele, somente em certas ocasiões especificadas, é? Não era necessário, a não ser no “segundo e quarto domingos em julho e agosto — às 10h00”. O homem que mergulhasse no desespero ou uma mulher angustiada que contemplasse o suicídio teriam de esperar pelo segundo ou quarto domingo. — Igreja do papai? — perguntou Kathy, curiosa para saber por que Johnny ainda estava ali parado. Johnny olhou para a igreja. — Acho que não é a igreja do papai, meu bem — respondeu. Não obstante, torceu a maçaneta. A porta estava trancada. Ele recuou e a examinou. — Positivamente, não é a igreja do papai — acrescentou. Estava-se sentindo mal no coração. Tinha visto tantas catedrais e igrejas em toda a Europa, e sempre estavam abertas. Ele se esquecera de que a maior parte das igrejas protestantes ficam fechadas, a não ser aos domingos e em ocasiões

especiais. Ele só tivera uma igreja e congregação, antes de ser capelão, em 1940. Uma igrejinha humilde… mas a porta nunca se fechava, a despeito dos protestos dos diretores e do sacristão. Ele não sabia bem o que fazer. Tinha querido apresentar as crianças a uma igreja. Estava frustrado. Seu olhar irritado percorreu a avenida e parou de repente, A distância havia outra cruz, destacando-se no céu de verão muito azul. — Acho — disse ele — que vamos andar por aí… procurando Deus. Pode ser que o encontremos em algum lugar. Ele desceu para a rua, as crianças acompanhando-o de perto. — Vestidos? — perguntou Kathy, esperançosa. — Sapatos? — perguntou Jean, puxando os meninos com ele. — Primeiro — respondeu Johnny — vamos ver se Deus está por aí. Há uma leve possibilidade de estar. Quero que vocês O conheçam, e as roupas vêm depois. — Não quer conhecer Deus — protestou Pietro. Ele estava ficando nervoso com as cenas e o barulho da cidade. — Bem, de certo modo, não o culpo. Mas tenho a impressão de que Ele quer conhecer você, Pietro — respondeu Johnny. — Max medo de Deus — falou Max, com sua voz baixa, insegura. Afastou-se de Jean e começou a chorar, sem fazer barulho. — Deus quer matar Max? Johnny suspirou. Tinha pegado a outra mão de Emilie. As crianças estavam esperando a resposta dele, com medo. Diga-me o que devo lhes dizer, Senhor, rezou ele. Disse então: — Vocês sabem que eu amo vocês, não sabem? — Ele olhou de um para o outro dos rostinhos. — Sabem que sempre os amarei. Às vezes se esquecem disso e me machucam, bem aqui. — Ele pôs a mão no coração. Max parou de chorar. Todos estavam olhando para Johnny, com um ar solene. — Vocês sabem o que é sofrer aqui dentro. Bom, é assim que me machucam. Gostam de me machucar? Jean desviou o olhar, encabulado, e depois falou: — Os meninos… não gostam… machucar papai, Ele sorriu para eles, com ternura. — Pois é o que fazem, muitas vezes. Vocês se esquecem. Sou o papai de vocês. Mas quem é o papai de todos nós, eu e vocês também? Quem é que nos ama a todos, todos no mundo, a despeito da maldade das pessoas? É Deus! Deus é o nosso papai. O mundo muitas vezes se esquece de Papai, o nosso Pai, e faz coisas más, assim como vocês fazem. Mas eu não me esqueço de vocês e nunca deixo de gostar de vocês. É assim que acontece com Deus… o nosso Papai, nosso Pai. Eles escutaram mas não acreditaram. Ele via o brilho desconfiado nos olhos deles. Ninguém os ajudara, só esse homem. Duvidavam que alguém mais os ajudasse. Então, o papai estava mentindo para eles,

e, se ele lhes mentia, não merecia confiança. O medo os fez empalidecer. — Vou-lhes dizer uma coisa — continuou Johnny. — Vou levar vocês para conhecerem Deus, e se não gostarem Dele vamos embora logo. Que tal? — Como é que ele é… Deus? — perguntou Jean. Lá vêm as perguntas!, pensou Johnny. Se ele confessasse, que nunca tinha visto Deus, as crianças ficariam inteiramente confusas e assustadas. Ele sorriu, misteriosamente. — É lindo, lindo — respondeu. — Não vou estragar isso para vocês. Têm de ver por si. Teria de ser uma igreja com imagens, altares e luz de velas. Ele pegou a mãozinha de Emilie e riu-se, contente. — Primeiro vamos só olhar pela porta, para ver se Deus está lá. Se não estiver, vamos embora comprar nossas roupas. Ele foi andando com Kathy e Emilie. Os meninos foram trotando atrás. As pessoas se desviavam deles, impacientes. As crianças agora estavam muito curiosas. Kathy gritou para Johnny, lembrando-se da noite anterior. — Deus gosta de uma senhora como a Sra. Burnsdale. Deus nina Emilie numa cadeira também? — Seu rostinho rosado estava se iluminando. — Deus — respondeu Johnny — é como o papai e a Sra. Burnsdale. Ele começou a ficar preocupado. Como explicar o Imponderável, o Invisível, o TodoPoderoso, a essas crianças para que elas compreendessem? O troar da cidade os absorveu. Os meninos estavam tropeçando nos calcanhares de Johnny, as meninas se agarrando a ele. Então, mesmo acima do barulho, Johnny ouviu a risada estridente de Pietro. — Pietro sabe! — gritou ele. — Deus papai grande, como o meu papai! — Cala a boca — disse Jean, e Johnny ficou grato, pois algumas pessoas tinham parado para olhar para eles, por cima dos ombros, tomando conhecimento daquela troupe estranha. Johnny estava suando, o coração disparado. Mas ele não ousou parar; a cruz estava a certa distância, agora desaparecendo por trás dos prédios. É sempre assim, pensou. Não podemos ver Deus por causa do homem e todas as suas obras. Era uma igreja grande, de pedra cinzenta. As portas estavam bem abertas e alguns homens e mulheres estavam entrando e saindo, sozinhos ou acompanhados. — Estão vendo — disse Johnny. — Deus está em casa, afinal. Vejam as pessoas. Estão entrando para conversar com Ele, como nós. Vão dizer a Ele onde sentem dor, e Ele as ajudará, como faz sempre. Ele apontou para a cruz reluzindo no azul do céu. — Aquele é o Sinal Dele. Quer dizer que Ele está em casa, esperando por nós. Os meninos pararam. Jean olhou bem para Johnny. — Ele vai endireitar a minha perna e esse meu braço, se eu pedir a Ele?

A fisionomia de Johnny mudou. Ele fizera com que Jean fosse examinado pelos melhores médicos do exército e outros na Europa. Um ou dois tinham sugerido uma série de operações, porém sem grandes esperanças. A maioria tinha dito que não se podia fazer coisa alguma. O menino estava aleijado para sempre; os ossos não se tinham consolidado direito, anos antes. — Se eu pedir a Ele? — repetiu Jean, com um sorriso ladino, Johnny olhou para a cruz, rezando intimamente, o coração pesado. Não podia mentir para aquela criança: nunca poderia traí-lo. De repente, Johnny sentiu que estava com os olhos úmidos. Aí a cruz pareceu se expandir no céu, num jorro de uma luz ofuscante; seus braços tremiam numa radiosidade como o sol, através das lágrimas de Johnny. Pairava num, círculo de chama luminosa. O coração de Johnny tremeu, ao olhar aquilo. Depois a cruz passou a ser apenas uma cruz reluzente, na torre. Mas Johnny sabia. Ele pôs as mãos nos ombros de Jean. Disse, a voz forte e nítida: — Vai, se você lhe pedir. Talvez não hoje, nem amanhã. Mas muito breve. Você tem de ficar pedindo o tempo todo, e tem de acreditar que Ele fará isso por você. Ele não pode ajudar se você não acreditar. Acreditaram nele! Pela primeira vez, aqueles rostinhos novos eram rostos de crianças de verdade e não pesadelos — rostos sorridentes, assombrados, esperançosos, ansiosos, estimulados. — Depressa, depressa! — gritou Pietro. Um velho padre, subindo a escada, tinha parado para escutar e observar. Ele então se aproximou de Johnny, os olhos castanhos e brilhantes sorrindo. Estendeu a mão e Johnny a apertou, corando. — Meus filhos, Padre. Sou o Reverendo John Fletcher, e acabei de voltar de meu serviço de capelão na Europa. — Ficou ali no meio das crianças, e estendeu os braços, abraçando-as. :— Meus filhos — repetiu, rezando para ser compreendido. O padre meneou a cabeça. — Sou o Padre McCloskey — disse para as crianças, em voz séria. Kathy perguntou, entusiasmada: — Deus? Jean, Pietro, Max e Emilie exclamaram: — Deus? Deus? O velho padre ficou muito sério. Olhou para cada rostinho e sua boca tremeu de compaixão. Olhou para as roupas deles. Depois olhou para Johnny, sorriu, encorajando-o e voltou a olhar para as crianças. — Não, meus queridos — respondeu, com bondade —, sou só um que serve a Deus. Como… como o seu pai, aqui.

— Eles ainda… não O conhecem — esclareceu Johnny. — Sabe, eu os levei a uma igreja… estava fechada. — Ele parou, com dificuldade. — Então eu os trouxe aqui… para conhecê-lo. — Acrescentou, mais baixo. — Está sendo… bem, um bocado duro. — Imagino bem — murmurou o velho padre, compreendendo. Ele parou. Depois viu o que tinha a fazer. Viu quem tinha de escolher: o mais instável. Pegou a mão de Pietro. O menino não resistiu. — Vamos todos entrar e conhecer Deus — convidou. — Ele já está esperando, há muito tempo. Há muito tempo mesmo. O velho, pequeno, curvado e brando, e o menino esperto subiram de mãos dadas os últimos degraus, seguidos por Johnny e os meninos intrigados. O padre perguntou: — Como se chama, filho? Pietro? Ah, Pedro. O seu pai lhe contará sobre Pedro. Pietro começou a falar, para assombro de Johnny. — Pietro… Pedro! Pedro… Pietro! — Ele olhou para o padre com os olhos escuros e irrequietos. — Padre! Padre como papai? Sim? Sim? Papai também é padre. Sou filho dele, seu filho americano! Vamos ver Deus, é? Na igreja? Todos pararam no vestíbulo fresco. O padre estava mais sério do que nunca. Dirigiuse a Johnny: — Vemos tantas dessas crianças salvas. Deus as abençoou a elas e ao senhor, Sr. Fletcher. Mas tantas, tantas crianças que não foram salvas! Qual a sua paróquia, Sr. Fletcher? Johnny respondeu: — Ainda não tenho. Mas Deus cuidará disso, claro. — Depois acrescentou: — Quer vir comigo e me ajudar agora, padre? O padre hesitou. Depois sorriu e tocou na manga preta de Johnny, com uma mão paternal. — Acho que Outra pessoa o ajudará. Não creio que precise de mim. — Virou-se para as crianças, que estavam olhando, ávidas, murmurando entre si. Ele ergueu a voz e disse: — Deus os abençoe e guarde, queridas crianças. — Levantou a mão murcha numa bênção e entrou na igreja. — Abençoe? Abençoe? — perguntou Pietro, impaciente. — O que é… abençoe? — Venha — chamou Johnny, e eles entraram na igreja. O jovem ministro parou com seu rebanho, cheio de apreensão. E se as crianças se insubordinassem, como faziam muitas vezes? E se começassem a gritar e correr como loucos, ou fazer perguntas em voz alta? Só havia meia dúzia de pessoas na igreja, ajoelhadas ou junto dos bancos dos vários altares, mas essas não podiam ser perturbadas. Johnny disse, com calma: — Vocês têm de olhar e escutar. Se fizerem travessura ou barulho, garotos, vão machucar a Deus e a mim. Entendido? Eles o fitaram: ele via o brilho dos olhos deles na penumbra. Depois Jean disse aos

meninos menores, com ferocidade: — Vocês calem a boca, nada de barulho. Tenho de pedir a Deus pelo meu braço e perna. Papai diz que ele vai me melhorar. Nada de barulho. Kathy segurou a mão de Emilie com força e disse, com energia: — Emilie, fica quieta e não faça perguntas. Deus está escutando. A igreja estava diante deles, e de repente as crianças ficaram inteiramente caladas, de boca aberta, maravilhadas, prendendo a respiração. Os arcos góticos cinzentos saíam das paredes cinzentas, em que penetrava a luz forte dos vitrais colori- dos. O ar, fresco, permeado de incenso, tremia com fragmentos de cor, uma lança de vermelho numa aresta das abóbadas, um azul delicado no piso de pedra branca, um amarelo suave num banco distante, uma lâmina roxa nos claros degraus do altar. Lá estava o grande altar nos fundos, com seu alto crucifixo de ouro, seu florescer de velas paradas, seus jarros de flores. Lá brilhava a luz eterna, testemunhando a Presença. Pelas paredes marchava a lenta agonia das estações da Via Sacra, e havia altares, as velas tremendo delicadamente nos lados. Por onde começar?, pensou o jovem ministro, apreensivo. Pietro estava puxando o braço dele, febrilmente, sussurrando: — Deus? Deus? — ele apontou para o grande altar nos fundos. Johnny respondeu: — É, Deus. — Ele pôs a mão no ombro magro, contendo-o. — Mas você ainda não vai correr para Ele, ainda não. Primeiro, aprenda sobre Ele. Onde estaria o velho padre? Não o via em lugar algum. Meio desesperado, Johnny olhou para o altar mais próximo, no seu nicho especial. Um alto arco encerrava a imagem branca, azul e dourada da Virgem Mãe com o menino nos braços, velas diante dela, o lindo rosto de virgem meio sorrindo, meditando, o Filho levantando a mãozinha, numa bênção. Seus pés descalços estavam sobre um globo circundado de estrelas e seus olhos olhavam para o mundo com ternura. Johnny pegou a mão de Pietro e fez sinal para os outros o acompanharem. Eles o imitaram, andando sem fazer barulho, na ponta dos pés. Ficaram diante do altar da Madona e Filho e olharam para cima, chupando os lábios, os olhos sem piscar. — Olhe o menino — disse Johnny. — Um menino como vocês, Jean, Max e Pietro. Esta é a Mãe Dele, que está com Ele no colo, assim como suas mães carregaram vocês. As crianças se apinharam mais para perto do altar, tensas, caladas. Jean estava um pouco à frente, o rosto destacado e nítido à luz das velas. Estava sussurrando alguma coisa para si, que Johnny não ouvia, e seus lábios tremiam. Pietro virou- se para Johnny e apontou para Nossa Senhora. — Mãe? Mãe? Minha mãe? — Ele estava começando a tremer, empolgado demais. — É — respondeu Johnny. — Mãe de Deus… e sua. Veja como ela olha para você; ela o ama, meu bem. Não, não chegue muito perto, ainda. — Por quê? Por quê? — perguntou Pietro.

— Por quê? — perguntaram os outros. Só Jean estava calado… calado demais. Como explicar a santidade a essas crianças? Onde estavam as palavras? E por que essas crianças não podiam pelo menos tocar nos pés dela? Johnny olhou em volta depressa. Agora os bancos estavam inteiramente vazios e na igreja não havia ninguém, só eles. Rezando fervorosamente para que não entrasse ninguém, Johnny abaixou-se, pegou Pietro no colo e abraçou-o, para fazê-lo parar de tremer. Subiu os degraus do altar e sussurrou: — Ela está rezando, e você não deve incomodá-la. Quero dizer, ela está falando com Deus. Estique a mão, Pietro, e toque nos pés dela. A mãozinha rápida estendeu-se, mas não para os pés, como Johnny esperava. Os dedos se fecharam na mão da Virgem. Então, uma aura de luz apareceu no rosto de Pietro. — Mamãe? Mamãe? — perguntou, num sussurro apaixonado. A estátua sorria para ele. — Mamãe. De qual cripta escondida no cérebro dessa criança solitária surgira a recordação do amor e proteção maternas? De onde brotara a palavra universal de esperança confiante? Johnny encostou a face na cabeça de Pietro: sentia a espera urgente do menino. — Ela o está ouvindo, meu bem. Veja como sorri para você. Pietro se debateu no colo dele, esticando-se para a frente, e Johnny o conteve. Pietro beijou a mão da Virgem e depois olhou encabulado para o Menino no colo dela. — Minha mamãe também — disse ele ao Menino, com orgulho. Ficou parado um instante, depois agitou-se no colo de Johnny, passou os braços em volta do pescoço dele e lhe deu seu primeiro beijo, quente e feliz. Johnny, abraçando-o, fechou os olhos por um momento. As crianças estavam olhando. Comprimiram-se contra Johnny, pedindo. — Minha mamãe? É minha mamãe também? Estavam com inveja de Pietro. Johnny respondeu: — Bom, sim, claro. Se é mãe de Pietro, é de vocês também. — Depois, ficou alarmado. O que havia com o Jean, ali à parte, tão rígido, as mãos cerradas ao lado do corpo? Johnny disse depressa: — Jean, Jean! Mas Jean estava murmurando: — Je vous aide. Ah, não, pensou Johnny, em desespero. Jean nunca falava francês quando estava acordado. Johnny largou Pietro no chão e segurou o ombro do menino mais velho. Jean permanecia olhando fixamente para a imagem, as lágrimas lhe escorrendo pelas faces. Estava cego ao que o cercava, cego para tudo menos sua promessa ameaçadora, seu voto de vingança, pela jovem mãe morta a pontapés na sua frente, nalgum campo de concentração esquecido.

Johnny fez o menino se virar para olhar para ele e fixou os olhos sobre os dele, que não viam nada. — Jean — disse ele, devagar e com ênfase —, escute. Está me ouvindo? Ela não precisa da sua ajuda. Está com Deus. Deus. Salva, com Deus. Está me ouvindo? Os olhos cegos nem piscaram. — Salva com Deus — repetiu Johnny, suando. — Você não pode ajudá-la. Ela está repousando, em Deus. Procure compreender, Jean? Ele pôs a mão sob o queixo de Jean e virou o rostinho de pesadelo de novo para a imagem. — Não vê que ela está sorrindo para você, dizendo que está bem, e que o ama e vigia? Olhe para ela, Jean! O corpo de Jean parecia de ferro. Ele não se afastou de Johnny. Mas devagar o ferro amoleceu e de alguma profundeza da pobre criança surgiu um tal suspiro, como nenhuma criança deveria jamais emitir. — Maman — murmurou ele, e depois sorriu e o coração de Johnny se contraiu de novo, com tristeza. — Mamãe — sussurrou Johnny. — Você só sonha que ela morreu — continuou Johnny, passando o braço em volta do menino. — Só os maus sonhos. Pode se lembrar disso, Jean? — Só um sonho — repetiu Jean, obediente, com uma nova voz que Johnny ainda não tinha escutado. Ele sorriu para Johnny. — Mamãe não morreu — declarou, e havia paz em seus olhos. As crianças, tão anormalmente sensíveis ao medo, à emoção, à paixão, sentiram uma comunicação partindo dele. Começaram a rir, muito baixinho, até a pequenina Emilie, que bateu as mãozinhas, como que com prazer. E o riso era um riso de criança, descuidado e feliz. — Vamos nos sentar aqui mesmo — disse Johnny. — Onde podemos ficar olhando para a Mãe e eu lhes conto do Menino, que é Deus. Sabe, Deus teve tanta pena de todos nós que Ele veio aqui, Ele mesmo, do céu, para nos mostrar o caminho de volta para Ele. Ele resolveu que a Trindade era uma coisa complexa demais para esse dia. Ajudou as crianças a irem para um banco e sentou-se no meio delas. Enquanto ele falava, elas olhavam para a imagem. — Uma vez — continuou ele, falando claramente e devagar — havia uma moça. Não foi há muito tempo, se bem que muitas vezes pareça. Ela era muito linda. — Ele olhou para Kathy e o rosto da menina, em toda aquela doce penumbra e luz de vela, assumiu uma pureza estranha, um encanto e inocência, parecendo mármore. — Tão linda quanto a Kathy e não era muito mais velha. Os meninos se comprimiram em volta de Johnny para olhar para Kathy, solenes, e com um novo interesse, e Kathy piscou as pestanas louras num espanto feliz diante do exame dos meninos. Abriu a pozeira, que nunca largava, e se examinou rapidamente. Johnny puxou seus cabelos compridos e repetiu:

— Tão linda quanto a Kathy e não muito mais velha. E essa imagem aí é um retrato dela como algum artista sonhou que ela era. Quem sabe? Talvez a modelo do artista fosse assim, e ele a amasse. Pois bem, essa moça, num país muito distante… ainda mais longe do que de onde vocês todos vieram… amava muito a Deus, e queria servi-Lo. Deus sempre escuta as orações. Então ele mandou um anjo, chamado Gabriel, para visitar a moça, cujo nome era Maria. — Anjo? — perguntou Pietro, pulando no assento duro de madeira. Estou sempre arranjando dificuldades, pensou Johnny. Olhou em volta. Havia dois anjos de estuque, com halos, ajoelhados de ambos os lados do altar principal. — Aqueles ali são anjos — explicou ele. — Vivem com Deus. E o anjo disse a Maria que ela teria um Filho, e que o Filho era Deus, e que Ele salvaria o nosso pobre mundo mau de si mesmo, e traria a paz e esperança pára todos os homens. No rosto de Jean apareceu uma expressão tenebrosa e cínica e Johnny continuou, depressa. — Ainda não temos paz, nem muita esperança, mas um dia isso virá. Deus não mente nunca. Enquanto isso, temos de trabalhar por isso, todos nós, crianças, homens e mulheres. Pois bem, Maria ficou assustada. Afinal, era muito mocinha. Mas como posso explicar o Nascimento Virgem?, perguntou-se Johnny. Essas crianças nem sabem muita coisa do nascimento natural. Há coisas que terei de passar por cima. Aí ele teve uma inspiração. — Maria ia se casar com um homem muito bom, José… Ele foi interrompido por uma exclamação forte de Max. — José? José? Papa, bist Du? — Ele estava agarrando as costas do banco a sua frente e seus olhos pálidos estavam fixos. Então, pensou Johnny, era esse o nome do pai. Ele continuou depressa: — Muitos homens têm esse nome, Max. — Debruçou-se por cima de Pietro e com delicadeza afrouxou as mãos tensas agarradas ao banco. — Não quer que eu termine a história? Então, sente-se como o Jean e seja bonzinho. Aquela gente era muito pobre, a família de Maria, pois um exército forte de um país muito grande tinha tomado a terra do povo dela e o tinha escravizado e roubado todo o dinheiro, Puseram a gente de Maria, muitos deles, na prisão. Agora ele ia ver se conseguia encontrar realmente uma ou duas dessas crianças. Olhou devagar de um rosto para outro. Pietro só estava olhando para ele com os olhos atentos e impacientes para ele continuar a história. Mas Jean virara o rosto atormentado para o ministro e uma compreensão plena se estampava nele, bem como o assombro. Kathy levantara a cabeça, alerta, novamente franzindo a testa num esforço para compreender que o que lhe acontecera, acontecera com outra menina. Depois tornou a lançar um sorriso terno e significativo para a imagem. Max teve a única reação violenta. Ele se debruçou por cima de Pietro e agarrou o joelho de Johnny num gesto súbito e desesperado.

— Maria… e José… a gente deles na prisão também? Não… não… — Hoje chamamos de campos de concentração — disse Johnny, com tristeza, pondo a mão por cima da de Max. — Sabe, é uma história muito, muito antiga. Max puxou os dedos livrando-se de Johnny e recomeçou a torcer as mãos. — Não faça isso — ordenou Johnny, com energia. — Maria e José não fizeram isso. Amavam a Deus. Confiavam n’Ele. As mãos de Max pararam, se descontraíram e caíram sobre os joelhos. Mas sua cabeça abaixou até o peito. — Os soldados fortes de outro país fizeram a vida do povo de Maria muito infeliz. Andavam por toda parte, marchando… matando, também, quando o povo, não suportando mais, lutou. De repente Jean disse, do fundo das trevas turvas dentro de si: — Tropas de assalto! — Bom, sim, acho que você os chamaria assim — respondeu Johnny. Jean olhou para a estátua e seu rosto ficou muito tenso. — Então — continuou Johnny — esses soldados… chamavam-se romanos… tinham feito um rei… um chefe… para o povo de Maria. O povo de Maria se chamava judeu, — Ele vacilou. Max estava levantando a cabeça, devagar. Era como uma cabeça de um jovem cadáver levantando-se de um túmulo, acusando cegamente, cegamente perguntando por quê. Então, agora tenho uma pista, pensou Johnny. Ele não podia suportar aquele rosto cego, aqueles olhos perdidos e solitários cheios de uma angústia confusa. Os picos de cabelo na cabeça do menino pareciam uma coroa de espinhos. — Então, quando estava muito frio e havia neve nas montanhas, os romanos disseram ao povo de Maria que ele tinha de ir para a cidade mais próxima e pagar mais dinheiro. E eles eram tão pobres. Então, Maria e o marido tiveram de ir para um lugar chamado Belém, não só para pagar aquele dinheiro, mas para serem contados, também. — Todas as noites — murmurou Jean, olhando para o espaço — eles contavam… — É, sim, Jean — respondeu Johnny. — Você compreende. Mas quando Maria, que estava montada num cavalinho, e José, marido dela, chegaram a Belém, viram que não tinham onde ficar. Todos os hotéis e casas estavam cheios com o resto do povo, que tinha sido obrigado a ir para Belém a fim de serem contados pelos romanos e dar dinheiro. Estava muito frio e nevando e Maria e José estavam muito cansados e com tome e o único lugar que encontraram para se abrigar foi um velho estábulo. Com arame farpado em volta? — perguntou Jean, debruçando-se para Johnny, os olhos se apertando. De certo modo, de um modo simbólico, pensou Johnny. Mas aquelas crianças ainda não estavam preparadas para ouvir falar de símbolos, ou compreendê-los. No entanto… — É — respondeu ele —, tenho certeza de que tinha arame farpado ou uma cerca em volta. Agora Kathy estava se debruçando para ele, sempre agarrada a Emilie.

— Eu sei. Tem sempre arame farpado em volta deles… Espetam. Johnny suspirou. — Deixaram Maria e José entrar no estábulo, havia vacas lá; o bafo das vacas e os corpos delas fizeram com que lá dentro fosse um pouco menos frio do que fora. Era de noite e a lua brilhava como gelo e só havia a palha para eles dormirem. Então Maria e José se deitaram na palha para dormir. — Eu me lembro disse Jean, quase sem se fazer ouvir. — Eu estava lá. — É — disse Johnny, olhando para todas as crianças. — Você estava lá, sempre esteve. Através dos tempos. — O coração dele batia pesado, doente. As crianças o olhavam, sérias. Até que ponto compreendem?, perguntou-se ele. Tinha a convicção mística de que estavam compreendendo ainda mais do que ele estava contando. — É então — continuou —, enquanto a pobre Maria, aquela mocinha, estava deitada na palha, no frio, coberta com o casaco remendado do marido, Deus nasceu para ela, um Menino, um Bebê. As crianças viraram as cabeças para olhar para o Menino de gesso nos braços de Maria. Foi só um truque da penumbra, claro, e o lampejo súbito da luz de vela, que fez o resto de gesso assumir o brilho e compaixão da carne, fazendo-o brilhar sobre as crianças no banco. — Vejam — disse Kathy. — Ele está ouvindo papai nos contar a história Dele. — Ele era um bebê — disse Johnny. — Como vocês. Menor ainda do que a Emilie. Não sabia andar nem falar. Só tinha a Sua mãezinha. E ela não tinha uma cama para Ele. Então, rasgou parte do vestido para cobri-Lo por causa do frio, e encontrou uma manjedoura… onde põem o feno para o gado comer… e deitou o Bebê na manjedoura, na palha. Jean levantou as mãos cerradas e todo o seu rosto tremia. — Eu sei! Vi isso, papai! Um bebê e as meninas e mulheres tinham medo que os soldados fossem matar o bebê e a mãe pôs o bebê numa caixa cheia de palha e escondeu debaixo de umas coisas… Eu vi, papai! — Claro que sim — respondeu Johnny, apertando as mãos nos olhos. — Claro que sim, Jean. — Não vou deixar os soldados verem a Emilie! exclamou Kathy, feroz, agarrando a menininha. Os meninos rosnaram, ferozes. Não?, pensou Johnny. E quem vai proteger todas as mães… no futuro? Onde estão as mães agora, segurando os filhos, sem saber que amanhã, talvez, os filhos vão morrer em seus braços? Onde estão as pessoas “bem”, “boas”, que não trabalham para evitar isso? As pessoas bem e boas que têm certeza, de que “está tudo bem, só demora um pouco!” Um pouco, um pouco! Johnny continuou:

— Só algumas pessoas sabiam que Deus tinha nascido naquele estábulo, na manjedoura. Eram homens muito pobres, o povo de Maria, que tomava conta dos carneiros nas montanhas frias. F, de repente um anjo apareceu a eles, com Uma luz maravilhosa em volta dele, e os pastores tiveram muito medo.. Mas o anjo disse: “Não se assustem, crianças, porque tenho uma notícia maravilhosa para vocês. Deus nasceu nesta hora para salvar vocês e Ele está numa manjedoura na cidade de Belém”. E o anjo apontou para uma grande Estrela que de repente apareceu no céu, que era o sinal. E enquanto a luz brilhava sobre os rostos dos pobres pastores, e os carneiros se juntavam em volta deles, o anjo disse: “Glória a .Deus nas alturas e na terra, paz… ” A voz lhe falhou e ele abaixou a cabeça. Passaram-se alguns momentos até ele perceber que as crianças estavam muito quietas e aí ele viu que os olhos delas estavam cheios de um brilho estranho. E permaneciam olhando para o crucifixo no grande altar, à distância. Johnny continuou: — Bem, o rei mau e os romanos ouviram o que os pastores contaram ao povo, de terem visto Deus em Sua manjedoura e o rei teve medo de que o Bebê tivesse vindo para lhe tirar aquelas terras, pois isso já tinha sido contado muitos anos antes. Assim, deu ordem para encontrarem o Bebê e o matarem. — É — murmuraram as crianças, mas continuavam a olhar para o Homem crucificado, e não para o menino nos braços da Mãe. Seria possível que tivessem entendido alguma coisa num momento místico? Então, Maria e José saíram depressa do estábulo, com o Bebê, e a Mãe e o Filho foram carregados no cavalinho, que se chama um burro, e foram para outro país, para que os soldados não pudessem encontrá-los e matá-los. E o nome do país onde viveram muitos anos é Egito. Max disse, com sua voz baixa, sonhadora: — Eu também estive no Egito. É — respondeu Johnny —, esteve, sim, Max. Ele continuou: — A pequena família era muito pobre, no Egito, e ninguém queria saber deles, pois eram estrangeiros numa terra estranha. Mas eram felizes juntos e se amavam, pois, sabe, onde há amor, está Deus. José trabalhava de carpinteiro e o Menino, que se chamava Jesus, trabalhava com ele; faziam mesas e cadeiras para as pessoas que queriam comprálas. Muitas vezes iam para a cama com fome e moravam num casa muito pobre, e muitas vezes Maria tinha medo porque os vizinhos não gostavam deles e os outros meninos eram maus com o Filho dela. Kathy interrompeu: — Mas Ele era Deus! Por que Deus deixou ele mesmo ter fome e ser maltratado? Johnny a abraçou. — Porque, minha querida, ele amava o mundo, embora seja terrível e mau, e queria mostrar ao povo que compreendia o que eles sofriam e que sabia o que é estar sem casa e

ser só e odiado. Ele queria mostrar a eles que sabia o que é ser um homem. Nunca se poupou. — Johnny esperou um pouco e depois disse: — Seja o que for que alguém tenha sofrido, Deus também sofreu e Deus compreende. Ele esperou. As crianças estavam sentadas caladas, cada qual com suas feridas e suas recordações confusas. Max olhou para as mãos, vagamente; Jean mordeu o lábio, o rostinho de Pietro brilhava. E Kathy chorou, abaixando a cabeça sobre a pequena Emilie, que tinha adormecido no colo dela. Johnny respirou fundo. — Se vocês um dia estiverem cansados de novo, meninos, ou com fome, ou forem odiados ou não tiverem um lar, nunca devem se esquecer de que Deus sofreu isso, muito antes de vocês. Deus esteve lá primeiro. Jean olhou bem para o crucifixo e suspirou. Depois virou-se para Johnny e sorriu, e era um sorriso de homem, não de criança. O jovem ministro retribuiu o sorriso com tristeza. — Contei a história de Deus quando ele era mocinho como vocês, e hoje à noite conto mais sobre Ele, quando ficou homem e voltou para a sua pátria. Ele se levantou e as crianças também. Levou-as para a nave, para as portas por onde entrava o sol. Quando passaram pelo banco onde tinham sentado, Johnny teve um sobressalto. O velho padre estava ali sentado, sorrindo. Ele disse, quando Johnny parou, sem poder acreditar. — Você contou a história muito bem, meu filho. — Obrigado, padre — murmurou Johnny, confuso. Fez uma mesura e saiu com seu rebanho. Quando chegou à porta, olhou para trás, mas o velho padre tinha desaparecido. Só havia o altar, as imagens, a luz de vela e as sombras nos arcos e as janelas brilhantes. Johnny falou em voz alta, com firmeza: — Não acredito em fantasmas! — O quê? — perguntou Pietro. — Além disso — acrescentou Johnny — o nome dele era McCloskey, e quem já ouviu falar de um fantasma com esse nome? Eles estavam na escada da igreja, olhando para a rua barulhenta e ofuscante, — Olhem! — exclamou Jean, apontando para baixo. — Pessoas, pessoas! — Pessoas — os outros gritaram em coro com alegria. Johnny pôs a mão no bolso, procurando um lenço. Seus dedos encontraram uma coisa dura e redonda. Era a pozeira da Sra. Grant. A rua abaixo dele fundiu-se numa onda de cores quentes. O Dr. Stevens ficou calado por muito tempo, depois que Johnny acabou de falar. As crianças estavam deitadas, dormindo, quietas, nas novas roupas de dormir que Johnny lhes comprara naquele dia. Tinham jantado quase normalmente, mas no final suas pálpebras estavam caindo e ficaram contentes em tropeçar atrás de Johnny e da Sra. Burnsdale, indo para a cama. O dia tinha sido longo e difícil.

O velho ministro suspirou. Tinha tirado o colete e estava sentado em mangas de camisa, o colarinho desabotoado. Sorriu para o outro. — Tenho a impressão de que eles não vão nem chorar, nem sonhar hoje, Johnny. Sabe, se eu fosse católico, diria que você é um santo. — Suspirou de novo. — Não faz mal, não fique tão encabulado. Mas vai ter uma trabalheira, sabe, se levar a cabo suas ideias. Está convencido de que Jean e Pietro são católicos e Max é judeu; e Kathy e provavelmente a menina menor são protestantes. Então, pretende educá-los dentro de suas respectivas religiões! — Sacudiu a cabeça. — Já não estão bastante confusos, sem você ter de aumentar essa confusão? Mesmo que fossem crianças com uma origem média, crianças americanas, já seria um horror, numa casa só, numa cidade estranha! Mesmo nas melhores das hipóteses, você teria a maior dificuldade em explicar a tolerância a guris de credos diferentes, e tentar conseguir que vivessem juntos em paz. Pense. Johnny! — Já pensei, Dr. Stevens. E também pensei que cada uma dessas crianças tem direito a sua herança, e o direito de compreender essa herança, direito a suas raízes. Com o passar dos anos, terão um quadro de referência. O passado não será vazio e sem forma para elas. Haverá uma continuidade nisso, mesmo que cias não se lembrem, antes dos campos de concentração. Ele estava sentado na beira da cadeira, os olhos extremamente azuis no rosto moreno. — Tolerância! Quer lugar melhor para aprender isso do que numa casa, no meio dos irmãos e irmãs? Ora, esses guris vão sair pelo mundo e, quando virem a intolerância, vão se lembrar do que eles já sofreram com isso, e verão que coisa monstruosa que é, e por que deveria ser erradicada do mundo deles. Saberão que está marcada com letras vermelhas nos portões do inferno. Saberão que causou todas as guerras, os campos de concentração, os massacres, as mortes dos pais, a dor, e falta de lar que eles suportaram e as próprias feridas que têm no corpo. E hão de compreender o que o Senhor disse quando profetizou: “Um Rebanho, Um Pastor”. Ah, eles levam uma vantagem maravilhosa sobre todos os garotos deste país, todos os garotos protegidos, em toda parte! O Dr. Stevens tornou a sacudir a cabeça. — Está bem, Johnny. Não faz mal. Sinto muito não ter conseguido lhe arranjar um lugar melhor do que Barryfield, bem no meio da região das minas de carvão. Mas também fica nos Poconos, e você sempre pode olhar para cima, para as montanhas. — Pois eu não sinto, Dr. Stevens. Estou contente. Sabe, eu não poderia ficar aqui, nem que essa congregação me quisesse. Não posso ser ministro de gente que quer que sua religião seja confortável, uma espécie de sobremesa no fim de um jantar agradável na semana. Sabe, sempre tive pena dos fariseus… são tão covardes! E não tolero a covardia, e não quero fingir, com qualquer congregação, que a religião é uma coisa calmante. Porque não é. É um chamado ao espírito para lutar contra a carne, e contra todo o mal. Ele se levantou e enfiou as mãos no fundo dos bolsos e seus olhos faiscaram. — Então, querem um pastor que lhes minta e lhes diga o que querem ouvir. Não sou esse homem, não, senhor. — Não, Johnny — respondeu o Dr. Stevens e sorriu. — Você não e esse homem.

V O sol amarelo e quente jorrava pela janela da biblioteca e parecia envolver Johnny, de pé ali diante de Jean e Kathy. A ocasião era importante demais para que alguém se sentasse. Jean e Kathy estavam muito parados, escutando o pai de criação, o rosto estreito e sabido de Jean sério e atento, os olhos claros alertas, os cabelos castanhos bem penteados — pela primeira vez — pela Sra. Burnsdale. Kathy estava tão séria quanto ele. Com suas novas roupas “americanas”, parecia uma filha mais velha, muito madura, responsável pelos membros menos responsáveis e mais moços. A Sra. Burnsdale a tinha convencido a largar a trança comprida e os cabelos louros e macios caíam-lhe em dobras lisas pelos ombros. Os olhos azuis não eram mais furtivos, e sim firmes. A boca estava posta em curvas femininas, estranhamente comovente, na idade dela. As mãos gorduchas permaneciam dobradas na frente do corpo, num gesto antiquado de uma atenção obediente. — Preciso da ajuda de vocês — começou Johnny, com simplicidade, fumando o cachimbo. — A Sra. Burnsdale vai conosco para aquela cidade, Barryfield. Só o que ela pode fazer, porém, é ajudar a manter vocês limpos, e nos dar comida a todos, e tomar conta de nossa nova casa. Mas primeiro quero contar a vocês sobre Barryfield. Não é como Nova York. Lá eles extraem carvão. Fica nas montanhas, umas montanhas azuis chamadas Poconos. Já as vi. Sempre podemos olhar para cima, para longe do pó e do barulho da cidade e ver as montanhas. É muito importante para as pessoas verem as montanhas, fora do cansaço do trabalho diário, e a preocupação e a sujeira. Estão entendendo, garotos? Eles menearam a cabeça, mas nada responderam. Ele examinou Jean e Kathy, ansioso. Jean devia saber o que ele estava pensando, pois sorriu, seu sorriso secreto. — Nós compreendemos — disse ele. Kathy meneou a cabeça. — Papai também é como as montanhas. Mas não como os Alpes, — Não — repetiu Jean, o queixo enérgico — como os Alpes. Johnny suspirou, mas mesmo em sua tristeza estava agradecido. Eles estavam compreendendo. — Obrigado, garotos. Mas não sou grande coisa como montanha. Se fosse, e todos os outros pastores e ministros também, o que aconteceu com vocês não teria acontecido. Eles ficaram muito sérios de novo. — As coisas não vão ser fáceis em Barryfield — disse Johnny. — Isso é a coisa mais importante que vocês têm de compreender agora. Eu não vou ter muito dinheiro. Nem tenho uma igreja muito boa, pelo que ouvi dizer, e a casa não vai ser igual a esta. É pequena, e não vamos ter muito lugar. Vou ter uma paróquia… uma porção de gente para eu tomar conta. Não vou poder ficar o tempo todo com vocês, e talvez nem muito tempo, a não ser de noite. Então você, Jean, e você, Kathy, têm de saber exatamente em que nos

estamos metendo. Entenderam? Jean perguntou: — Sim, entendemos. Mas é Estados Unidos, não é? Johnny respondeu, sério: — Sim, é Estados Unidos. E agora, vem a parte mais importante. Eu já lhes disse o que este país significa: a liberdade, não se ter medo, nem medo da polícia estadual, nem do campo de concentração, nem do pavor de uma morte violenta, a qualquer momento, por qualquer pessoa. Uma liberdade protegida pela lei. Ninguém pode lhes fazer o que lhes foi feito na Europa. Ninguém vai me tirar de vocês ou me matar. Ninguém vai colocar arame farpado em volta de nenhum de nós. Ninguém vai me dizer, ou a você, o que devo dizer, ou fazer… em momento algum. Temos uma coisa que se chama Constituição, e isso impede que os americanos matem outros americanos, ou tirem as propriedades deles, ou incendeiem suas casas, ou machuquem as crianças. — E então? — perguntou Jean. — Então, por que papai tem medo? O que mais mete medo se os americanos são assim? — Temos tudo isso — disse Kathy, com sua voz certinha, meio reprovadora. — O que mais precisa, papai? — Muita coisa — respondeu Johnny. —: Olhem, guris, quero que vocês saibam do pior. Os americanos não são diferentes das pessoas na Europa. — Ele parou. Os olhos pálidos de Jean se aguçaram, brilhantes. Kathy recuou, com medo. — Espere aí — continuou Johnny. — Sé há uma coisa que é diferente. A lei aqui. Já lhes disse isso. — Mas… se não tem lei? — respondeu Jean, tenso. — Como não teve lei na Europa? Essa é uma boa pergunta, pensou Johnny, sério. Por que vocês acham que passo as noites acordado, pensando? Ele procurou sorrir, tranquilizando-os. — Sempre haverá a lei, seja o povo o que for. E sabem por quê? O povo respeita a lei, a maior parte. Já viram o que aconteceu na Europa quando aboliram a lei, e não querem que isso aconteça aqui. E temos milhões… milhões!… de gente boa trabalhando o tempo todo, explicando a lei, explicando às crianças nas escolas, fazendo funcionar nos tribunais. Sabem o que são tribunais? A polícia. Esperem. Não a polícia como na Europa. Não. Polícia que protege o povo contra quem desrespeita a lei. Um dia desses vou ler a Declaração de Direitos para vocês, e na escola também vocês vão aprender isso. Aí vão saber. As crianças pensaram nisso, várias emoções violentas passando por seus rostos, como sombras. Então, não é assim tão simples, foi o que Johnny quase os ouvia pensarem. Então, não estamos assim tão seguros. Sempre há pessoas. — Deus e a lei são a nossa proteção — disse Johnny. — Pode acontecer o que acontecer, eles são a nossa proteção. E estarão conosco em todos os minutos. Isso é que é importante vocês se lembrarem. E é por isso que preciso da ajuda de vocês com Max, Pietro e Emilie. Eles não vão compreender tão bem quanto vocês. Vocês estarão com eles o tempo todo, tomando conta deles, por mim. Se não fizerem isso, nós todos vamos fracassar, Quero dizer, não haverá nada para nenhum de nós. Entendem?

As crianças examinaram o rosto ansioso e atormentado de Johnny, por alguns momentos. Não lhes escapou nada, naquela agudeza sobrenatural deles, que era seu legado do terror. Então, como se um sinal tivesse sido passado entre eles, não percebido pelo jovem ministro, eles se adiantaram para ele. Kathy pegou uma de suas mãos e Jean a outra. Sorriram para ele com uma sabedoria antiga, e para espanto humilde dele — compaixão. — Nós sabemos — disseram. E se puseram nas pontas dos pés para lhe dar o seu primeiro beijo de confiança e fé. Estavam todos reunidos no quarto grande onde dormiam os meninos e Johnny. Emilie meio dormindo no colo de Johnny, os três meninos no chão, Kathy sentada direito numa cadeira ao lado da Sra. Burnsdale e o Dr. Stevens no lado da grande cama de casal. A noite estava quente e parada, o trovão murmurando no ar abafado e uma brisa quente soprava nas cortinas, nas janelas compridas e abertas, Um abajur atrás de Johnny iluminava o livro que ele tinha na mão. — E eles levaram a Ele as criancinhas, para que Ele as tocasse; e Seus discípulos reprovaram aqueles que as levaram. Mas quando Jesus viu aquilo, ficou muito contrariado e disse-lhes: “Deixai vir a mim as criancinhas e não as embaraceis, porque o reino de Deus é dos que se parecem com elas… ” E Ele as tomou nos braços e pôs Suas mãos sobre elas e as abençoou. Ele largou o livro e, abraçando a menina dormindo, tocou de leve na testa dela, abençoando-a. Os meninos no chão o observaram, atentos. O rosto de Kathy estava brilhando. — É — disse ela. — Ele nos tomou nos braços e nos abençoou. E mandou papai para nós. Emilie sentou-se, sonolenta, no joelho de Johnny, olhando em volta com o sorriso de bebê, assombrado, e afastando os cachos compridos. Johnny a pôs de pé, ela se agarrou à mão dele. Ele olhou para todos, com orgulho, as meninas com suas bonitas camisolas de algodão branco, os meninos de pijamas azuis. Todos tinham cheiro de sabonete e uma infância asseada. — Meus guris! — exclamou Johnny. Eles ficaram em volta dele, esperando, a Sra. Burnsdale entre as duas meninas. Ele abaixou a cabeça e todos o imitaram. O Dr. Stevens olhou para eles e viu seus rostos sérios e graves, Johnny rezou: — Pai Nosso. — Ele parou e as crianças murmuraram: — Pai Nosso. — Johnny continuou, a voz pura e forte no silêncio: “Pai Nosso que estais no céu, Santificado seja o Vosso Nome… ” Ás vozes jovens o acompanharam, e o Dr. Stevens pensou que nunca ouvira aquela oração ardente pronunciada tão devotamente, com tanto sentimento, Quando Johnny acabou, as crianças ficaram ali de pé, as mãos dobradas e juntas, as cabeças abaixadas, por algum tempo, como se a oração que tinham aprendido ainda estivesse ressoando em suas almas, cintilando com um brilho eterno nos orifícios escuros e tortuosos. Apenas alguns dias, pensou o velho, mas quanta coisa tinham aprendido!

O Dr. Stevens colocou o envelope com as passagens na secretária na biblioteca. — Mas um carro-salão, para apenas quatro horas! — protestou Johnny, — Sim, é verdade que no navio eu tinha camarotes vizinhos e tomávamos todas as refeições lá, mas acho que agora os garotos já estão bem e podem viajar de vagão comum. — Eu não acho — respondeu o Dr. Stevens. — Johnny, não fique tão deprimido. Mas meu conselho é não se apressar demais em dar doses de cidadania às crianças. Você fez maravilhas… humm, com a ajuda de Deus. Não vamos forçá-lo a fazer milagres. Imagino que já tenha pensado na questão de escola? — Já. Assim que puder, vou contratar um professor aposentado para ensinar a eles em casa. É esse o meu maior problema. Todos agora já conhecem o alfabeto; comecei a ensinar-lhes assim que fiquei com eles, e Jean, Kathy e Pietro já sabem ler algumas palavras simples em inglês. Não sei quanto ao Max. Nunca sei o que é que ele sabe. O Dr. Stevens levantou os olhos para o teto. — Johnny, não invejo os seus problemas. Vamos esperar que você não tenha dificuldades com a associação de pais e professores em Barryfield, se é que isso existe lá. Ou senhoras que se dedicam a atividades comunais e metem o nariz em tudo. Atividades… palavra abominável. Tive um velho professor escocês que me ensinou uma oração: “Deus nos livre dos fantasmas e espíritos e das feras de perna comprida que rondam de noite”. Sem dúvidas as senhoras de atividades são almas dignas, mas sempre me fazem lembrar das feras de pernas compridas. Correndo de um lado para outro, com poses muito agressivas de virtude cívica, se metendo na vida de todo mundo e querendo que todos se conformem com as normas. Não se ria, Johnny. Elas podem tornar as coisas bem difíceis para você e as crianças. Os olhos abatidos de Johnny brilharam com malícia. — O senhor costuma contar isso às suas muitas admiradoras? — Não, pois elas me poriam no ostracismo, ou achariam que estou senil. Por falar nisso, onde é que se originou esse negócio infernal de mulheres trabalhando ao lado dos homens? Qual a mulher normal que deseja isso? — Começou na Rússia — respondeu Johnny. — Ouvi falar muito disso na Europa. — O rosto dele ficou frio e escuro. O Dr. Stevens deu de Ombros. — Os comunistas americanos progrediram muito neste país, nestes últimos 10 ou 12 anos, filho. Muito mesmo. Foi planejado. Não podiam contribuir com coisa alguma senão o ódio e a revolução, para esta terra, e a inveja e desconfiança entre o povo, a confusão e por fim a escravidão. — De repente os olhos dele brilharam, com sua irritação. — E há aqui gente que, não sendo comunista, deseja exatamente isso, para seus propósitos monstruosos. E isso, filho, me leva de volta a Barryfield, e todos os problemas que você vai enfrentar, não só com essas pobres crianças salvas, e escolas e o trabalho de tentar melhorar uma paróquia sofrível e uma igreja pobre, mas com outros também. Barryfield é, em parte, construída à base do carvão, embora tenha algumas fábricas. As minas não são muito grandes, nem muito produtivas. Uma terça parte dos homens trabalha nelas e a

população da cidade é de apenas cerca de 150 mil habitantes, no máximo. Os proprietários e administradores das minas de carvão mal sobreviveram à crise; de 1938 a 1941, ficaram mais ou menos equilibrados. A guerra lhes trouxe certa prosperidade, mas pouca. Agora, em 1946, estão perdendo dinheiro de novo. Os comunistas têm andado muito ativos lá. Os homens não são tolos; as companhias puseram os livros na mesa, para que os delegados do sindicato vejam por si. O sindicato não quer que os trabalhadores façam greve; eles não querem fazer greve. Mas os comunistas querem. Numericamente, os comunistas são poucos em Barryfield, mas são desgraçadamente ativos e barulhentos e são peritos em dividir e armar confusão e mentir. “Bom, a mineração de carvão é uma coisa periódica. Os proprietários querem conservar as minas abertas, embora não estejam ganhando coisa alguma, mal fazendo face às despesas e salários. Querem que os homens tenham emprego. Mas, se houver greves e os homens tiverem aumentos de salários, as minas terão de ser fechadas. E é isso que os comunistas querem.” Ele esperou por um comentário, mas Johnny não disse nada. O velho ministro continuou: — O delegado do sindicato de uma das minas está no conselho da sua igreja, filho. Um bom homem, pelo que ouvi dizer esses últimos dias. Ele está bastante aflito. Conversei com ele pelo telefone várias vezes, se bem que não o conheça pessoalmente. Está precisando de sua ajuda, Johnny. Assim, você está com os comunistas nas suas mãos. “E tem outro problema. Barryfield originariamente foi inglesa, alemã e irlandesa. É uma cidade velha e tiveram seus problemas, há meio século, com essa mistura explosiva de raças. Espere aí; sei que você detesta a palavra ‘raça’, mas tenho de usá-la propositadamente. Hoje Barryfield tem uma dúzia de “raças” ou mais, e quando os cidadãos não têm muito o que fazer, dedicam-se ao racismo. Um ou dois contra dois ou três, e vice-versa. Não com violência; só de mau humor, às vezes. Isso se manifesta discretamente, mas existe. Tudo estimulado pelos comunistas, recentemente.” Ele olhou para Johnny com uma expressão eloquente. — Tentei lhe arranjar um lugar melhor, filho. Você sabe disso. A paróquia já teve quatro ministros, em menos de oito anos. Pode adivinhar o motivo. Eram todos bons homens, com uma missão, e tentaram. Não adiantou nada. Ou tinham contra si as poucas pessoas abastadas, ou eram inimizados pelos próprios fiéis, ou os sindicatos ou alguma dita minoria. Assim é que, sabendo de tudo isso, não pude suportar a ideia de você ir para lá. Mas não lhe pude arranjar outro lugar, de uma hora para outra. Você vai ter de aguentar, até eu poder lhe arrumar coisa melhor. Johnny levantou a cabeça, de repente, e seu rosto estava animado. — Não. Vou ficar enquanto a igreja quiser que eu fique. Vou tentar ficar. Não sei por quê, sinto… e isso me veio de repente, como uma revelação… que eu estava destinado a ir para lá. Não sei bem como me exprimir, Dr. Stevens, mas é isso que sinto. O Dr. Stevens olhou para o lado e não respondeu. — É uma palavra antiquada, Dr. Stevens, mas creio que é o que chamavam de vocação.

O Dr. Stevens estava chupando o cachimbo, meditando. — Estou velho e acho que já vi demais neste mundo, Johnny. Não me dê ouvidos. Talvez você é que saiba das coisas. Talvez Deus ainda esteja interessado nessa violenta bola de lama rolando em seu próprio sangue. Johnny se inclinou e pôs a mão no joelho do velho, sorrindo. — Bem. Ele a achava tão importante e se interessou tanto por ela que veio aqui Ele mesmo, morrer por ela. Por vezes nos esquecemos disso. O Dr. Stevens tirou os óculos, pois estavam úmidos. Esfregou-os com o lenço. — Está bem, Johnny. Eu me esqueço, mas você nunca esquece. Há outra coisa que você deve saber sobre sua paróquia. O homem mais importante de lá é muito rico e velho e, ao que eu soube, detestável. Por que frequenta essa igreja? O pai dele foi o primeiro ministro de lá; foi quem a construiu, literalmente. O tio, porém, foi muito feliz. Foi para Nova York e depois de uns 50 anos tinha arranjado um lugar na bolsa de valores. Não sei os detalhes. Quando esse tio morreu, solteiro, e sem outros parentes, deixou todo o dinheiro… depois de várias contribuições para caridade, eram vários milhões… para esse homem, que é presidente do conselho da igreja. Ele mesmo teve uma vida muito dura, como filho de ministro. Estava resolvido a ser médico, de modo que custeou os estudos trabalhando nas minas durante as férias de verão. Em certa ocasião, foi obrigado a largar a universidade durante três anos, para poder conseguir o dinheiro necessário, trabalhando nas minas. Mal sabia da existência do tio “pecador”, como o chamava o pai. Ele já estava com 50 anos, clinicando em Barryfield, quando o tio, que era 30 anos mais velho do que ele, morreu e lhe deixou todo esse dinheiro. O nome dele é Alfred McManus, Dr. Alfred McManus, e agora está com bem mais de 60 anos. Ele prometeu que daria exatamente o que os paroquianos conseguissem contribuir para sustentar a igreja. Mas nada mais, nem um centavo a mais. Johnny pensou naquilo. Depois disse: — Creio que concordo com ele. Se as pessoas querem uma igreja, devem estar dispostas a trabalhar por ela e sustentá-la. O Dr. Stevens ficou satisfeito. — Fico contente que você diga isso, Johnny, pois vejo que terá poucas dificuldades quanto a isso com o Dr. McManus. Todos os outros ministros tiveram problemas, coitados. Achavam que ele é que devia sustentar tudo. O Dr. McManus, ao que ouvi dizer, é um individualista ferrenho. Parece que tinha muito amor pelo pai. E continua a praticar a medicina. Tem a única clientela rica da cidade e os honorários dele são tremendos. O Sr. Kmil Schoeffel, tesoureiro do conselho, o detesta. Foi pelo Sr. Schoeffel que eu soube que o Dr. McManus é um selvagem bruto e sujo e blasfemo, “sem piedade no coração”. A citação e do Sr. Schoeffel, que tem uma pequena fábrica de sapatos, não muito próspera. O senhor tem certeza de que sabem de tudo sobre mim e as crianças? — Tenho. — O Dr. Stevens tossiu, O Dr. McManus não queria que você fosse para lá, Johnny. Disse que você provavelmente era “um raio de comunista”. Citando de novo: “Já há estrangeiros demais nesta cidade”. Eu disse a ele pelo telefone que, se ele não o

aceitasse, ia esperar muito tempo por outro ministro. A resposta dele me convenceu de que ele- não é um senhor cristão, mas, sim, apenas um velho hostil, amargurado, que só ajudou obstinadamente a manter aquela igreja por causa do pai. — Não obstante — meditou Johnny — quis ser médico. — Provavelmente é ambicioso; pensou que podia ganhar muito dinheiro. — Se fosse só o dinheiro que ele queria, teria se aposentado ao herdar a fortuna. Alguns médicos têm na sua natureza algo que os santos têm. Isso foi demais para o Dr. Stevens. Ele deu uma boa gargalhada. — Bom, filho, deixo esse santo em suas mãos. Pelo que ouvi dizer, ele provavelmente já foi mandado para um lugar onde os santos em geral não vão.

VI Dentro de mais cinco minutos, o trem chegaria a Barryfield. John Fletcher olhou em volta, procurando toda a bagagem do carro-salão: lá estava amontoada em pilhas novas, alegres, embora baratas, todas cheias das roupas novas das crianças. (A valise dele era velha e rachada, e ele tinha sua mochila do exército. Nunca lhe ocorrera comprar para si uma mala melhor, quando estava comprando as coisas das crianças.) Ficou satisfeito com a imponência de todas aquelas malas, grandes e pequenas. Passou um pente pelos cabelos pretos e curtos e olhou para as crianças com amor. Que milagre duas semanas de América tinham realizado com elas! Lá estava Kathy, penteando energicamente os cachinhos compridos e emaranhados da Emilie, depois de ter lavado o rosto da menina, com capricho, na milagrosa pia de aço. Lá estava Jean, tornando Pietro e Max apresentáveis à força, endireitando gravatas, escovando a poeira dos ternos azuis, novos. Tanto Jean quanto Kathy estavam murmurando baixinho palavras de advertência para os outros. Johnny olhou para a Sra. Burnsdale, sentada majestosamente junto da janela, deixando que Jean e Kathy assumissem a responsabilidade pelos mais moços. Passando pelas cidades pequenas e estações menores, a Sra. Burnsdale lançava olhares altivos pela grande janela de vidro laminado. Johnny achou graça naquilo e falou: — Garotos, e Sra. Burnsdale, acho que Barryfield não vai ser muito melhor do que isso por onde temos passado. Pode até ser pior. A Sra. Burnsdale respondeu, mais altiva ainda: — Humm. As cidades podem ser modificadas, se o povo tiver peito e amor-próprio. O sabão é barato e a tinta também. Nunca tive paciência com gente preguiçosa. Mas há alguma coisa errada com esta terra, Sr. Fletcher. Todo mundo quer o que os outros têm, sem ter de trabalhar por isso. Caridade? Às vezes eu penso o que George Washington diria dessa gente. — Provavelmente também existiam naquele tempo — respondeu Johnny. — E provavelmente queriam ter tudo por nada. Mas passavam fome, ou tinham de trabalhar. A natureza humana nunca muda muito, se bem que nós, ministros, nos esforcemos. E como! Ela lhe lançou um olhar de compreensão. — Acho que o senhor sempre tentou. Mas não adiantou grande coisa, não é? — Agora a senhora está sendo cínica. Sim, creio que adiantou, de certo modo. Não matamos de fome os doentes mentais, nem os jogamos em poços de víboras, nem os surramos até perderem os sentidos. Não deixamos que os órfãos morram de fome nas ruas. Não pomos os nossos velhos para morrerem nas estradas. Não matamos mais os idiotas e débeis mentais. A Sra. Burnsdale inclinou-se e deu um tapinha maternal no joelho dele. — Continue tentando. Talvez um dia desses cheguemos a alguma coisa. Talvez dentro de um milhão de anos, mais ou menos. — E acrescentou: — Se Barryfield for uma dessas cidades, talvez a gente consiga que eles a esfreguem e limpem, mesmo sendo uma

cidade de mineração de carvão, e tendo fábricas, isso vai fazer parte do meu serviço. — Já lhe disse que a casa não é muito boa. E é pequena. Vou estar muito ocupado com as crianças e a igreja. — Ele hesitou. — Entende o que quero dizer? As crianças já têm alguma ideia do sonho americano. Temos de tornar Barryfield parte desse sonho… se bem que eu não saiba como… para as crianças não ficarem desiludidas. A Sra. Burnsdale sacudiu a cabeça, com força. — Esses guris, como todo mundo, têm de encarar os fatos, mais dia, menos dia, e quanto mais cedo melhor. Por que está me olhando assim, Jean? E você, Kathy? Jean corou e deu um último puxão reprovador à gravata de Max. Depois olhou para a Sra. Burnsdale, sério. — A única coisa é que tem a lei. — Ele fez uma careta. — Só a lei. Ele virou-se para Kathy, que meneou a cabeça, convicta. — Bom, então — respondeu a Sra. Burnsdale, aliviada e satisfeita. — Você é um garoto muito sensato e Kathy é uma menina sensata. Ela estendeu o braço para ajudar Jean a pôr o casaco, pois ele tinha dificuldade em se vestir por causa do braço aleijado e o ombro defeituoso. Mas ele recuou, os olhos claros severos. — Jean tem de aprender coisas sozinho, non? Mamãe Burnsdale e papai acham isso? Os olhos da Sra. Burnsdale ficaram úmidos. Ela piscou. — Claro que sim, benzinho. Sempre faça por si tudo o que puder. Ajuda a formar o caráter. O trem estava diminuindo a marcha. Na última hora, tinham passado por morrinhos insignificantes, verdes e desgrenhados e sem grandeza. Mas então, quando o trem deu uma volta, de repente apareceram as montanhas, em arco, possantes, majestosas em seu colorido, lançando sua força contra o céu dourado da tardinha. Suas sombras caíam sobre vales verdes como uma bênção. Johnny chamou as crianças para junto dele. Agora, não tinha palavras. Eles olharam pelas janelas largas, solenes. Viram as aldeias ao longe, se aninhando sob uma névoa dourada de neblina e fumaça; viram os delicados arcos, como de brinquedo, de pontes distantes; viram os rios buliçosos, tocados aqui e ali com vermelho. E sempre as montanhas, sempre as sombras das montanhas. Pietro, que na última hora tinha começado a ficar inquieto, por vezes mal controlando sua empolgação, ficou muito parado. Seus olhos grandes e negros refletiam a luz dourada dos céus, a forma dos “montes eternos”. Johnny o observou. O rosto moreno e expressivo do menino tinha uma severidade triste, coisa que Johnny nunca tinha visto, uma expressão sonhadora, olhando para o passado, sem sofrimento. Alguma recordação racial italiana se estaria revolvendo nele, de montanhas e colorido, brilho e beleza? De camponeses seriamente cultivando os alimentos, ou colhendo os feixes ao pôr-do-sol, com o som do doce Angelus em seus ouvidos, de fogueiras sob apetitosas panelas de ferro, e risos, paz, cantos, alegria e fé? De santuários à beira da estrada, à sombra dos olivais, de ciprestes e torres de igreja pontudas com cruzes brilhantes? De terras vermelhas, não de sangue, mas

de alimentos, de pontes lançadas sobre abismos, do aroma de jasmins e rosas no pôr-dosol quente, e os cincerros do gado e as corridas das cabras levadas e os gritos das ovelhas sob as árvores pesadas de frutas e paredes cinzentas sufocadas com buganvílias magenta e casinhas com telhados vermelhos e os cantos dos pescadores num mar esmaltado? Algum italiano, mesmo aquela criancinha perdida, poderia se esquecer da glória de sua herança? — Bom — disse a Sra. Burnsdale, desaprovando — as montanhas bonitas. Mas vejam onde estamos parando. É tão ruim quanto eu esperava que não fosse. Johnny, com desânimo, reconheceu, calado, que ela estava certa. Uma estação acanhada e empoeirada, de madeira, com uma placa torta. “Barryfield”. Uma plataforma de madeira comprida, quebrada, coberta por uma poeira preta. A mesma poeira de fuligem escurecia as janelas da estaçãozinha, pousava sobre os olmos solitários que lutavam pela vida perto da linha, se insinuava nas frestas dos pobres prédios da estrada de ferro em volta do pátio sem grama, se despejava sobre o mato e as cercas, O trem batia e apitava impaciente ao parar, e Johnny concordou com ele. Ele jamais vira uma estação tão triste quanto aquela, em nenhum lugar da Europa. Nem mesmo a catarata de luz dourada do céu conseguia aliviar o seu ar geral de irresponsabilidade, sujeira e indolência. Nem mesmo as montanhas em seu esplendor real surgindo além da estação, conseguiam dar uma pequena medida de dignidade a essa indiferença para com a decência comum. O triste estado da estação não era, claro, culpa direta do povo de Barryfield, pois o local era de propriedade da estrada de ferro. No entanto, se o povo tivesse exigido que a companhia limpasse e pintasse um pouco as coisas, a companhia teria de ceder. Em todos os sentidos, pensou Johnny, o povo é culpado de tudo o que é mau, mesquinho e cruel que acontece em qualquer parte do mundo, mesmo a cinco mil quilômetros de distância. Ele se forçou a falar com animação: — Muito bem, criançada! É aqui que saltamos. Vou primeiro, depois a Sra. Burnsdale com Emilie e Pietro e depois vocês maiores. Jean, a Kathy vai antes de você, lembra-se? Ele se orgulhava deles, mas também estava apreensivo. Arrumados, limpos, bonitos… se a gente não olhasse muito nos olhos deles. Ele jogou a mochila no ombro, enquanto um carregador foi buscar a bagagem das crianças. Foi para a porta e sentiu que pegavam em seu braço. Virou-se e olhou para Jean. — Jean carrega a… mala de papai — disse Jean, sorrindo. Johnny entregou-lhe logo a mochila, dizendo “Obrigado”, sério. Seu coração animou-se um pouco. A plataforma estava coberta de areia, quando desceram. Outros passageiros olharam para eles, curiosos, das vidraças largas do trem. Dois funcionários do trem os fitaram com o olhar vazio. Johnny viu dois senhores idosos saindo da estação, lado a lado, mas com uma distância fria e estudada entre eles. Como estavam olhando para Johnny e seu rebanho com uma expressão decidida, ele chegou à conclusão de que aquela era uma comissão de recepção. Um dos homens falou, em voz aguda e esganiçada: — Sr. Fletcher? Foi o que pensei, Humm. Sou o Dr. McManus.

Ele não estendeu a mão. Não era um homem imponente, pois tinha um corpo tão anormalmente largo que sua estatura mediana era quase diminuída grotescamente. Johnny achava que todos aqueles quilos eram carne dura e sólida sob um terno cinza-claro que não lhe assentava bem e estava tão encardido que o sujo parecia uma ostentação, temperada com o desprezo pela opinião local. Os sapatos largos eram rachados e empoeirados, a camisa parecia não ter sido passada a ferro, a gravata preta era um cordão sebento. Como o corpo, o rosto era todo uma carne larga mas sem gordura, cinzenta, o nariz curto e truculento, a boca dura e quase sem lábios. Tinha olhos pequenos, da cor de concreto velho, sob sobrancelhas baixas e cinzentas. Olhos cínicos e sem piedade, pensou Johnny, que estava sendo examinado por eles. Qual a última vez que essa cabeleira grisalha foi penteada, ou lavada? A caspa aparecia nos ombros fortes, e também isso parecia uma ostentação. A voz aguda e esganiçada, como de uma velha desagradável, era ridícula num homem tão vigoroso, que possuía aquela virilidade desaparecida do país antigo. Ele devia estar fumando um charuto, ou cachimbo, pensou Johnny. Mas o Dr. McManus fumava cigarros: um cigarro de cinza comprida estava pendurado do canto de sua boca, não ousadamente, mas com um ar de uma ferocidade fria. O Dr. McManus voltou o seu exame duro para as crianças. Disse, com um desdém pesado: — Este camarada aqui é Emil Schoeffel, dono da fábrica de sapatos. Do conselho da igreja; tesoureiro. Nem sei por que foi eleito: não fez muito sucesso, ele. O Sr. Schoeffel corou muito, lançando ao Dr. McManus um olhar contendo um misto de medo e aversão. Johnny sentiu pena do tesoureiro idoso, que parecia ser feito de um cordão frouxo e altas tábuas finas, penduradas frouxas de um modo displicente. Até mesmo o rosto parecia feito de madeira, entalhado inocente e ineptamente, com olhos castanhos grandes e míopes, um nariz comprido e torto, boca branda e uma cabeça parcialmente calva. Ele apertou a mão de Johnny, com timidez, e logo a largou. Falou, e sua voz era espantosamente profunda: — Seja bem-vindo, Sr. Fletcher. E essas, imagino… soube… são as… as crianças? — Os estrangeiros — disse o Dr. McManus, com brutalidade. E acrescentou: — Por que esse garoto aleijado está carregando aquela mochila? O senhor não tem força para isso, é, pastor? Johnny controlou-se. — Dr. McManus, este é o Jean. Ele quis carregar a mochila. Permita que eu os apresente ao senhor. Mas primeiro, esta é a Sra. Burnsdale, nossa governanta, que vai tomar conta de nós. Sra. Burnsdale, o Dr. McManus. A Sra. Burnsdale retribuiu o olhar impassível do Dr. McManus com outro em espécie. Ora, pensou Johnny, perdendo um pouco de sua raiva, eles se parecem, de certo modo! A Sta. Burnsdale levantou o nariz e disse: — Humm, Dr. McManus. Ela girou em seus pés sólidos e deu um sorriso amável ao Sr. Schoeffel, quando

Johnny a apresentou. O Sr. Schoeffel, corando de novo, apertou a mão dela. Estava muito agradecido e disse: — Bem-vinda a Barryfield, Sra. Burnsdale. Johnny continuou, contra a vontade, pondo o Dr. McManus em primeiro lugar. — Doutor, essa minha menina grande é Kathy, a pequena, Emilie. E este é o Max. E esse aí é Pietro. As crianças estavam olhando para o Dr. McManus com expressões insondáveis, o que fez Johnny suspeitar do pior. Mas, para sua surpresa, não pareciam estar com medo do velho feio e impressionante. Estenderam as mãos para ele. Ele recuou, franzindo a testa. Kathy sorriu para ele, serena, esperando. — Bom, então — murmurou ele. Apertou a mão de cada criança com relutância e aversão. — Esse garoto parece um macaco — falou ele, se referindo a Pietro. Pietro sorriu e seus olhos pretos e brilhantes se iluminaram e os dentes alvos reluziram. — Pietro macaco — zombou ele, e seus pés se mexeram depressa numa dança. — Ele quer ser acrobata — disse o coitado do Johnny, depressa, enquanto Kathy punha uma mão pesada no ombro de Pietro. — Mas eu acho que ele provavelmente será artista, ou cantor. Tem uma voz maravilhosa. — É mesmo? — perguntou o Dr. McManus, com ironia. Os olhos dele tornaram e examinar Kathy, os cabelos louros, puros, o rosto forte. Um espasmo curioso tocou sua boca e ele desviou o olhar da menina. Passou a Jean, que continuava carregando a mochila de Johnny, desafiadoramente, — O que aconteceu com esse rapazinho? Por que não fez alguma coisa quanto a esse braço, e a perna?… e é pastor! Estará esperando que Deus o cure, ou coisa assim? Jean disse: — É, Deus. Papai disse Deus cura. Johnny, cada vez mais aflito, interrompeu: — Fiz com que quase todos os ortopedistas da Europa examinassem o Jean. — E então? — perguntou o Dr. McManus, com desprezo. — Tenho as radiografias e todos os relatórios, doutor. — É mesmo? — perguntou o Dr. McManus, com sarcasmo. — Gostaria de vê-los. Só por curiosidade. Não há tolo igual aos especialistas, que sabem tudo. — Ele se esqueceu de Jean e passou e examinar Emilie, que estava olhando para ele com os olhos grandes, azuis e radiosos. — Emilie? — chamou, abruptamente. A menina sorriu e seu rosto de bebê ficou luminoso. — Não sabe falar? — perguntou o doutor, e em sua voz havia um tom de irritação. — Não muito — respondeu Johnny, com simplicidade. — Sabe, ela provavelmente nasceu num campo de concentração, onde os pais foram mortos, e ninguém lhe ensinou nada, a não ser eu. — Coitadinha — disse o Sr. Schoeffel, que parecia estar com medo das crianças.

— Judia, é? — perguntou o Dr. McManus, e seu tom era cheio de afronta. Johnny preparou-se contra a própria irritação. — Não creio. Acho que Jean é francês; Kathy de origem holandesa; Pietro italiano; Emilie da Bélgica. São suposições, mas creio que estou certo. — Ele parou e passou o braço pelos ombros de Max, respirando fundo. — Max é de origem judia, eu acho. Max, o meu segundo filho. Os olhos do Dr. McManus se focalizaram sobre Max, e seu rosto largo ficou logo tenso. Max o olhou, cegamente. — Ele não enxerga? — perguntou o médico. Johnny adiantou-se, com Max. — Fisicamente, sim. Mas ainda não consegue ver muita coisa do mundo. Tem sido horrível demais para ele. O senhor e eu, doutor, e todos os outros do mundo, o tornaram terrível demais. — Papai? — murmurou Max, agarrando as mãos de Johnny. — É, Max, papai está bem aqui com você — respondeu Johnny, mas olhando para o Dr. McManus. Ele apertou a mão de Max, quando o Dr. McManus deu um passo para ele, subitamente. Max começou a tremer. O médico pegou o queixo dele e olhou bem nos olhos do menino. — Vamos, filho — disse ele, com rudeza. — Ninguém vai machucar você se bem que eu não saiba como vai conseguir comer com o ordenado do pastor. Não me vê, hein? Max virou-se para Johnny. Johnny meneou a cabeça e disse: — O Dr. McManus. Max repetiu devagar: — Dr. McManus. — Depois sorriu e os olhos castanhos brilharam. — Eu… vejo. A Sra. Burnsdale ficou espantada. — É a primeira vez que ele fala sem ajuda! — comentou. — Está melhorando. — Não há nada errado com ele — resmungou o Dr. McManus. — A princípio pensei que fosse débil mental. — Então ele olhou para Kathy de novo e mais uma vez aquele espasmo tocou sua boca amarga. — Kathy? Menina boazinha, parece sensata. Bonita, também. Kathy ficou radiante. — Muito bonita — repetiu ela, meticulosa. — Não vá ter ideias bobas — disse o Dr. McManus, severo. — Já vi meninas como você ficarem donas-de-casa gordonas, com a inteligência de selvagens. — Ele se virou, como se estivesse enojado, e depois de repente pegou Emilie no colo. A menina se aninhou no colo dele, satisfeita, para assombro de Johnny. O Sr. Schoeffel olhou para os meninos, timidamente, e pigarreou.

— Parecem todos saudáveis — arriscou, esperançoso, como se sentisse uma culpa no coração e quisesse se aliviar. O Dr. McManus gritou: — Ei, Jim, venha cá ajudar. Mexa esse raio de carcaça! Um chofer fardado apareceu na porta da estação, apressando-se. — Ponha essas malas no carro — ordenou o médico. — Não sei para que lhe pago 60 dólares por semana! Foram todos para fora da estação. Á Sra. Burnsdale cochichou depressa para Johnny: — Acho que vai dar tudo certo, Sr. Fletcher, acho mesmo. O Dr. McManus estava andando na frente, carregando Emilie, e as crianças atrás dela, até Max. Johnny e o Sr. Schoeffel seguiram atrás. O Sr. Schoeffel murmurou: — Uma pessoa terrível, o doutor. Sou cristão, mas tenho de lhes dizer. É um sovina, e um velho mau. Não é cristão. Johnny olhou para as costas imensas do médico. Os bracinhos de Emilie estavam em volta do pescoço dele, seus cabelos compridos esvoaçando por cima de um de seus ombros. — Não é cristão? — perguntou Johnny, sorrindo. — Ainda bem que estamos livres daquele enjoado — disse o Dr. McManus, referindo-se ao Sr. Schoeffel, que fora embora num carro muito velho. — Tem sempre um novo plano para me fazer gastar dinheiro. A… cidade precisa de outro hospital, diz ele: precisa de uma nova casa paroquial; a igreja precisa de consertos; o orfanato precisa de mais apoio particular. — Bom, e é verdade? — perguntou Johnny. O Dr. McManus resmungou baixinho. A grande limusine parecia deslizar como que sobre óleo pelas ruas sujas e sinuosas. As crianças estavam muito caladas, nos assentos luxuosos, e a Sra. Burnsdale tornara a assumir sua expressão de altivez. O Dr. McManus respondeu: — É provável que sim. Pensam que sou feito de dinheiro? Se não querem fazer nada por si, por que hei de ajudar? Hein, pastor? — Não devia — disse Johnny. O Dr. McManus virou a cabeça a fim de olhar para o jovem ministro. — O quê? O quê? Pensei que fosse um pastor! — Soltou uma risada feia. — E sou. E também me lembro da parábola da cigarra e da formiga. — Seus olhos azuis-escuros sorriam para o velho. — Não há nada na Bíblia que aprove um preguiçoso. O Dr. McManus o contemplou, de cara fechada. Tinha acendido outro cigarro e este estava caído da boca. — Eu não queria que viesse para cá. Sabe disso. Frank Stevens é que me pressionou.

Talvez que nos demos bem. Talvez, Mas eu lhe dou uns seis meses nesta cidade. — Por quê? — Porque o senhor não é bobo. Ainda não aprendeu que só os tolos sobrevivem, ou os ladrões? — Ele tornou a rir e olhou pela janela. — Cidade imunda, hein? Eu mesmo a detesto. Ratos estúpidos. Ou talvez eu não os deva chamar de estúpidos, pastor? Johnny respondeu, com calma: — Se são mesmo, por que não há de chamá-los assim? Mas a estupidez não é propriedade exclusiva de Barryfield É um vício universal. Um brilho de divertimento iluminou o concreto dos olhos do médico. — Não há uma coisa na Bíblia sobre suportar os tolos com alegria? O quê? E aquele trecho que diz que o que chama o irmão de tolo corre perigo dos fogos do inferno? — Alguns de nossos maiores homens são estúpidos — redarguiu Johnny. — Mas não se poderia dizer que fossem tolos. Napoleão, por exemplo, era um homem estúpido, e Júlio César também, e Hitler, Stalin, Bismarck e uma longa lista de nossos próprios presidentes, sem falar nos parlamentares e uma porção considerável de filósofos, inclusive Platão e Nietzsche, e Wagner entre os músicos, e Darwin entre os cientistas, e Maquiavel entre os sofistas. — Bom, essa é uma lista extraordinária — respondeu o médico. A cinza comprida caiu do cigarro nas suas coxas pétreas. — O que o leva a crer que fossem estúpidos? — Porque lhes faltava a compaixão. O médico ficou calado. Johnny começou a se sentir deprimido. Barryfield, pensou, era extremamente feia. O vale em que ficava a cidade era bem largo, bastante amplo para poder haver ruas mais largas e terrenos maiores para as casas. No entanto, a cidade se espremera e apertara, tudo junto, num agrupamento de favela como as cidades europeias fazem, por falta de espaço. Também havia algo de europeu, de faminto, nas estreitas casas de madeira inclinadas umas para as outras, uma coisa velha demais para uma terra vasta e jovem, uma coisa fora do contexto das montanhas altas e expansivas, a amplidão dos vales suaves, os numerosos riachos e rios. Crianças sujas brincavam aos enxames, todas juntas, como se ali perto não houvesse a terra verdejante, capim alto e 3 árvores, não cultivadas pelos lavradores que as possuíam e que provavelmente venderiam o terreno à cidade por um preço razoável para um playground. A cidade jazia sob uma nuvem de fumaça, no pôr-do-sol ocre, e então, seguindo nu carro, Johnny sentiu um bafo de mau cheiro, vislumbrando uma usina ali perto, de cujas chaminés jorravam flâmulas de um amarelo vivo e sulfuroso, poluindo o ar, fazendo as crianças tossirem. Havia outras fábricas, outras usinas, todas vomitando sua corrupção contra um céu desfigurado, tudo negro, fumacento e trovejante. De certo modo, era bom ver que estavam ativos, empregando homens nos fornos e nas máquinas. Mas não era necessário que destruíssem o oxigênio puro e vivo; era monstruoso que as crianças e os velhos respirassem aquela sujeira. — Por que toda a sujeira e a fumaça? — perguntou Johnny ao Dr. McManus.

O médico mexeu os ombros, num gesto de execração. — Ninguém se importa, claro. Há anos que venho atormentando os políticos, mas me dizem que sou o único a reclamar. Mas o que se pode esperar de uma gente degenerada? Você esteve fora. Não ouviu falar de como os americanos estão degenerados? Tão degenerados quanto os russos. Antes de começarmos, por exemplo, a chamar os russos de bárbaros e ateus, é melhor começar a olhar para as nossas próprias igrejas, e cidades grandes e pequenas. E talvez o nosso governo, também… de aldeia, cidade, município, estadual e federal. — O Dr. Stevens concorda com o senhor e acho que eu também — respondeu Johnny. Barryfield só teria favelas? Verdade, as minas ofereciam trabalho apenas “temporário”, mas lá também havia fábricas, e os operários das fábricas tinham ganho bons salários, quando os rapazes estavam morrendo na guerra da Europa e do Pacífico. Então Johnny viu um fenômeno americano que não tinha igual em nenhum outro país do mundo: as casas podiam estar cobertas de fuligem e sujeira, sem pintura, com janelas imundas, sem cortinas, tendo na frente e atrás pedaços de terra batida, sem grama alguma, chaminés tortas e varandas quebradas, mas quase todas tinham diante de si um carro brilhante, de dimensões imponentes, os vidros reluzindo, o cromo brilhando, e com curiosos ornamentos nos capôs. As crianças podiam parecer só ligeiramente menos macilentas do que seus irmãos r irmãs da Europa, e, em muitos casos, muito mais sujas, mas os carros brilhavam à luz cor-de-limão do céu desfigurado, tão cuidadosamente tratados como os deuses de casa dos antigos romanos. Teriam os Estados Unidos realmente endeusado a máquina, como os russos a endeusavam abertamente, e sem hipocrisia? Haveria alguma verdade na alegação britânica de que os Estados Unidos e a Rússia tinham muita coisa em comum? — Está vendo aqueles carros? —· perguntou o médico. Estou. O Dr. McManus apertou os olhos e o olhou. — Chegou às mesmas conclusões que eu? — Sim. Doutor, onde estavam os nossos ministros todos esses anos? O médico brandiu um dedo manchado de fumo na cara do jovem ministro. — Diga-me você! Tivemos uma porção de pastores na nossa igreja, a Igreja do Bom Pastor. Parece-me que meu pai foi o último dos pastores. Sabe de que falavam os que tivemos? Da psiquiatria amadora, ou política. É para isso que serve um ministro? Não cabe a ele procurar instilar certo sentido dê honra na sua congregação, certa esperança, alguma noção de Deus e dever e caridade e… por Deus!… alguma contrição por todos os malditos crimes que os homens cometem uns contra os outros, contra Deus todos os dias? Já ouviu um pregador falar sobre a penitência ultimamente? Hein? Johnny sorriu para o médico e seus olhos brilhavam com uma compreensão afetuosa. O médico olhou para ele, furioso, e murmurou alguma obscenidade, baixinho, mas piscou muito, por um instante. Bateu furiosamente no anteparo de vidro que o separava do chofer. Quando o painel desligou, gritou:

— Siga pela Rua Munston, para a esquina de Kazinski. Tornou a recostar-se, a cara furiosa. Emilie tinha adormecido no colo dele; os dedos rombudos e brutos, com as pontas espatuladas de um verdadeiro cirurgião, afagavam os cabelos dela, rudemente. O carro foi seguindo por uma rua especialmente acanhada e feia, fervilhando com crianças, uivando, e com mulheres desmazeladas de pé nas varandas e balcões estragados, gritando umas para as outras, de um lado para outro. Na esquina havia uma igrejinha de pedra, muito arrumada, pateticamente digna no meio daquela sordidez, num trecho de relva separado por uma corda e estacas. A sua cruz estava polida, num céu que estava ficando de um verde baço e manchado. Minha igreja?, pensou Johnny, com esperança e prazer. As portas de madeira estavam abertas, numa penumbra fresca, e Johnny viu que afinal não era a sua igreja, O carro parou. — Esse é a igreja com um nome engraçado, Nossa Senhora do Rosário — mostrou o Dr. McManus, tentando desprezá-la. — Um camarada que se diz Padre John Kanty Krupszyk. Pouco mais velho do que você, mas maior, com uma cara de jogador de futebol. Não admira: estudou em Notre Dame, aquela grande universidade papista perto de Indiana. O Grande Irlandês! Krupszyk! Eu o conheci num jantar oferecido para Mac Summerfield, o dono do jornal aqui da cidade. Eu disse a ele: “Como é que conserva aquela sua igreja limpa, hein? E com a grama em volta? No meio daquela gente!” Ele respondeu: “O povo a respeita. Afinal, Deus está lá. As crianças das vizinhanças cuidam da grama e das árvores que todos nós plantamos e as mulheres limpam a igreja elas mesmas e os homens lavam as janelas e fazem os consertos, e tem sempre comida na minha cozinha: elas me levam comida, porque o meu ordenado é pequeno e tenho família. A igreja e a reitoria são empreendimentos anexos”. — E devem ser mesmo — concordou Johnny. — Espere até ver a sua igreja e a casa paroquial! Por falar nisso, os telhados têm goteiras, e se pensa que vou consertá-las sem ajuda, está enganado. Pode colocar panelas debaixo das goteiras. Ele acendeu outro cigarro, afastando com cuidado a fumaça do rosto de Emilie, que dormia. — Num domingo fui à igreja desse camarada. Fala polonês. Tem coisas que chama de missas. Duas missas em polonês, duas em inglês. Esta era a Missa Solene. Cerimônia. Ritual. Não acredito numa palavra, mas gostei. E sabe sobre o que foi o sermão dele? Descompôs a congregação como o diabo! Berrou com eles, brandiu o punho, xingou-os! Uma maravilha! E pensa que eles foram embora danados? Não, senhor! Ficaram escutando, com vergonha, humildes como o quê. Depois ele disse a eles que se não se arrependessem de seus pecados… imagine um pastor falar de pecados, nos dias de hoje!… acabariam com o traseiro em chamas. Hoje em dia! Ele se riu, gostando da recordação. — E nem havia moedinhas de nada na hora da coleta. A gente via que eles davam o que realmente podiam. Depois, um garotinho correu por cima da grama, e a mãe deu uma

surra nele. Parecia até que era um terreno consagrado. Sim, senhor, as mulheres podem não ser melhores do que o resto das mulheres aqui, mas pode apostar que cuidam bem da igreja! Têm um negócio que chamam de Irmandade. — Nós não temos uma Ajuda Feminina? — perguntou Johnny, em desânimo. — Ha, ha! Você verá! — Ficou ruminando, achando graça, irritado. — Fui visitar aquele sujeito, o padre. Tem uma biblioteca que só vendo. É uma reitoria pobre, mas tem cheiro de cera e tinta e tudo esfregado até os ossos. Resolvemos que era melhor eu chamálo de Padre Kanty; não consigo dizer esses nomes estrangeiros desgraçados. Sabe o que mais? Ele tem mais instrução do que você; fala cinco idiomas ao todo, e não é amador. Está escrevendo um livro em francês, sobre um dos santos deles, para uma editora canadense. Escreve bem, li o manuscrito, Bem, perguntei a ele por que não conseguia fazer com que a gente dele limpasse as casas e os jardins deles. Sabe o que ele disse? “Acabei de conseguir que os filhos deles comam três refeições por dia. Nenhuma mulher da minha paróquia trabalha fora, a não ser que seja viúva ou abandonada ou tenha marido inválido. Dê-me tempo.” E completou: “Levei cinco anos, mas agora eles se confessam sempre, e todas as missas estão lotadas. O coitado do padre antes de mim tinha sorte se conseguisse levá-los à confissão antes do Natal e da Páscoa, e a maior parte do tempo a igreja ficava vazia”. Eles viram o altar modesto brilhando corajosamente, no meio da penumbra. — Olha! — exclamou Jean. — Deus! — É — disse Johnny. Ele pensou na notícia que teria de dar ao médico, sobre a instrução religiosa dos meninos, e sentiu o coração fraquejar. — Qual a distância entre esta e a minha? — Só meio quilômetro. Eu o conduzi pela cidade, para você poder vê-la. — O Dr. McManus bateu no vidro de novo e ordenou: — Siga para a Rua Sycamore. Pare no meio à direita. — Não posso dizer que ache grande coisa o que vi até agora — comentou a Sra. Burnsdale. — Ha! — exclamou o médico. — Espere até ver em que a senhora e o pastor estão se metendo! O carro estava andando por uma rua muito apinhada e triste, não triste no sentido de ser suja, se bem que a eterna fuligem flutuasse livremente ali também, assim como o fedor das fábricas. Era, antes, vazia e crestada e inteiramente sem árvores, A noite estava descendo sobre os becos estreitos e aqui e ali uma lojinha pobre tinha começado a se acender, fracamente. O carro parou diante de um prédio quadrado, insignificante, feito de tijolos, com vidraças simples e um arco de pedra sobre a porta estreita. Johnny inclinou-se para a frente, para ver melhor. Inscritos no arco havia letras hebraicas e Johnny as leu: “Os Virtuosos Podem Entrar Aqui”. Então era uma sinagoga, e muito modesta. — Lugar dos judeus — explicou o médico, olhando para a casa. — Conheci o sujeito que toma conta, naquele jantar do jornal. Ele e o Padre Kanty são bons amigos; provavelmente têm pena um do outro. Parecem ter muita coisa em comum, e não é de admirar. As congregações são o diabo. Se você ainda não aprendeu isso, filho, é melhor

começar logo. Ele ficou fumando furiosamente. — Camarada chamado Rabino Chaim Chortow, e velho que nem Abraão. Estudioso, diz o Padre Kanty, e tímido como um ratinho. Tem barba. Isso deixa os moços da congregação furiosos, se bem que eu não entenda por que o homem não há de usar barba se gosta. Cerca de 300 judeus em toda a cidade, e esse é o único lugar que têm. Sabe por quê? O Padre Kanty me contou. As antigas famílias judias moram nessa comunidade, porque para eles é o lar: estão lá desde o Ano Um, quando construíram a sinagoga. Gente velha é igual em toda parte: detestam se-mudar dos lugares onde foram jovens e pensavam que o mundo era maravilhoso, e se casaram e tiveram filhos. Bom, tendo sido curioso quanto ao Padre Kanty, resolvi ir ver esse rabino. Ele mora atrás da igreja, numa casa do tamanho de casa de boneca, e.om a velha esposa, que passa o tempo todo com uma coisa em cima dos cabelos. Isso deixa o pessoal jovem furioso também, se bem que eu não entenda por que eles acham que o que ela usa seja pior do que um lenço. As moças judias o usam na rua, igualzinho a todas as outras mulheres, desmazeladas. O médico fumava, pensando. — Nunca apreciei os estrangeiros. Mas estou começando a achar que as pessoas são iguais no mundo inteiro… em outras palavras, no fundo não prestam para nada. Veja esse velho rabino. Tem uma voz como um órgão velho e suave… sabe, quando parece que está pensando sozinho. Tem um sotaque; veio da Rússia, ou algum outro lugar maldito. Isso é outra coisa que os judeus moços têm contra ele. Ouvi dizer que querem expulsá-lo e trazer um sujeito esperto e novo, cheio de esperteza e ares de Nova York. Mas esses sujeitos espertos sabem o que é bom para eles, e não quiseram vir. Além disso, os velhos também quiseram dar opinião, e os judeus têm uma coisa: respeitam seus país. É uma coisa que nós também devíamos aprender. “Bom, filho, os judeus mais jovens se mudaram para os subúrbios, lá nos morros, carregados de hipotecas. Orgulho. Talvez o nosso povo também devesse arranjar um pouco desse artigo em extinção. Os velhos judeus são alfaiates e lojistas e têm os seus açougues próprios. Os judeus moços deram para o Direito e Medicina e “manufaturas”. Isso significa fazer algumas roupas e vendê-las. Aliás, dois dos jovens médicos judeus são um bocado inteligentes, e eu os pus no conselho do hospital depois de brigar como um demônio com os diretores. Pessoalmente, não gosto deles. Por quê? Não sei, não me dei ao trabalho de pesquisar. Isso não tem importância. Pois bem, o velho rabino me conta os problemas dele. Johnny o interrompeu: — O senhor não gosta dos católicos nem dos judeus, mas… eles lhe fazem confidências. Engraçado. — Cale-se — retrucou o médico. — Eu é que estou dirigindo esse passeio, e não quero comentários, por favor, pastor. As moças judias gostam de se vestir bem e morar em casas boas, mesmo com uma hipoteca até o pescoço. E os judeus nesta cidade são, mais ou menos tão abastados quanto o resto… o que quer dizer que lutam para ganhar a vida. E as moças judias lêem muitos livros e obrigam seus homens a lerem muitos livros e todos têm mania de psiquiatria. Jargão, é o que eu digo. Ainda não conheci um psiquiatra que

conhecesse alguma coisa realmente básica sobre a natureza humana. Assim, os jovens judeus acham que o rabino deles devia falar de psiquiatria e psicologia infantil com eles, e fatos atuais e ética e integração social, seja o que for isso, em nome de Deus. Não querem saber de sermões sobre Deus e a necessidade da oração e dedicação. Não, senhor. Isso é coisa antiquada, para os guetos e gente velha. “Só existe um Deus, e Freud é Seu profeta.” É assim. — Isso não é exclusividade dos jovens judeus — disse Johnny. — O Dr. Stevens me disse que encontra isso o tempo todo, com congregações mais jovens, mais “sabidas”. — O que faz ele a respeito? — Bem — respondeu Johnny, com pesar —, ele tem de lhes dar ouvidos. — Humm. Voltemos ao velho rabino e à gente moderninha que ele tem de suportar, embora isso o deixe doente. Contou-me que só a fé o sustém. Então, numa noite de sexta- feira, ele pergunta a eles: “Deus passou de moda?” E pensa que eles meditam isso, e fazem penitência, como diz o Padre Kanty? Claro que não! Só ficam furiosos, A bomba atômica deu um pouco de juízo a eles, assim como aos católicos e protestantes. Mas depois a natureza humana se firmou de novo e lá estavam eles de novo, gritando sobre o progressivismo e ser atualizado. — Nada original concordou Johnny. — O Dr. Stevens tem o mesmo problema. Será que as pessoas não compreendem que a religião se baseia sobre verdades eternas? — Claro que não. São burras demais. — Ele parou. — Quais verdades eternas? Não existe nenhuma. — O senhor sabe que existem — respondeu Johnny, com calma. O Dr. McManus olhou para ele, os olhos brilhando de raiva. — Deixe de ser bobo, pastor. Estou disposto a apoiá-lo, desde que não seja um tolo. Comece com verdades eternas comigo, e estará procurando uma nova congregação. Johnny sorriu para si, sentindo-se em paz. Afinal, havia Deus, e ainda havia homens de Deus. — As crianças estão cansadas — disse Johnny, numa sugestão, enquanto o carro continuava a rodar. — Não me parecem nada cansadas — respondeu o Dr. McManus, irritado. — Um pouco magras, mas saudáveis. Sou médico, e sei. Além disso, não o estou tirando do seu caminho, como parece pensar; só mais um minuto. Pensou que podia saltar da estação direto para a casa paroquial? Em todo caso, olhe os garotos. Estão escutando como nenhum garoto americano escuta; não estão pulando por aí, os olhos vazios, como uns dos nossos guris. Ei, você aí, Jean, sabe de que eu estive falando? Mas foi Max quem os surpreendeu a todos, respondendo logo. — Sim… doutor. O senhor diz, doutor, que todos os povos são iguais. Ja? — Max! — exclamou Johnny, com um prazer intenso.

— Filho, você resumiu a coisa, e certo — completou o médico. Max sorriu com orgulho. Alisou os picos da cabeça, achatando-os. — Mas aqui tem a lei. Papai disse — falou Jean. O Dr. McManus parecia que ia dar um grunhido mas fechou bem a boca sobre o cigarro, depois de lançar um olhar de escárnio a Johnny. Agora estavam passando por um bairro melhor, com casas sossegadas e ruas mais limpas, a despeito da fuligem. Viam-se jardins, cheios de zínias, petúnias, cravos-dedefunto e gerânios. — Nossa classe média, ou o que resta dela — explicou o Dr. McManus. — Os Americanos em extinção, Se está procurando alguma coisa para salvar, pastor, é essa a sua oportunidade. Mulheres que se orgulham de suas casas, lêem revistas de casa e fazem suas cortinas e estudam livros de cozinha. Homens que trabalham em pequenos escritórios e voltam para casa de noite com uma pasta debaixo do braço. Ou que são mecânicos especializados, ou possuem um ou dois caminhões. O sonho americano… a classe média. Eles estão se interpondo no caminho do comunismo. Apontou para algumas casinhas de tijolo vermelho, enfeitadas com heras reluzentes. — Os ministros, gente tola… acreditam na fraternidade do homem. E aquela casa ali na esquina, com aquelas malva-rosas, pertence a Dan McGee, presidente do sindicato de mineiros daqui. Ganha cerca de oito mil por ano. Faz parte do seu conselho da igreja; lutei contra a entrada dele para lá, pois não gosto de encrenqueiros. — E ele é encrenqueiro? — perguntou Johnny, interessado, olhando para as cortinas brancas nas janelas limpas. — Não — disse o médico, com rispidez, e sem coerência. — Não gosto dele por princípio. Mas ele me apóia na ideia de fazer os seus paroquianos sustentarem a igreja deles; não acha que eu deva custear tudo. Vive muito preocupado com os comunistas; eles o odeiam. Temos muitas conversas. Johnny sorriu interiormente. O carro estava subindo nas ruas em ladeira. As montanhas estavam aparecendo mais e o ar estava mais puro. — Está vendo aquela casa branca grande, quase tapada pelas árvores, lá em cima do morro? Custou mais de 100 mil dólares, há 10 anos, quando as coisas eram baratas. Entrada circular, jardins, chafarizes, até mesmo uma piscina. Sabe quem é o dono? Mac Summerfield, proprietário e redator de nosso único jornal matutino e de nosso vespertino. Não precisa dos jornais. Fortuna de petróleo. Herdou dois ou três milhões do pai, que encontrou petróleo em Titusville. É o nosso comuna rico, oculto. Tem folhas clandestinas que instigam o ódio; além disso, são anti-semitas, anticatólicos, anti-americanos. Há alguns anos ele se meteu em encrencas por causa desses pasquins: era todo a favor do Hitler, nessa ocasião. É engraçado como as pessoas não se dão conta de que o comunismo e o fascismo são a mesma coisa. Filhos da mãe burros. — O senhor não pode fazer nada quanto a essas atividades comunistas? — perguntou

Johnny. — Raios, não — respondeu o Dr. McManus, melancólico. — Não é um comuna declarado. Às vezes chega a publicar um editorial criticando a Rússia, de forma amena, por alguma insignificância. Para que um homem rico há de querer ser comuna? Filho, você é ingênuo. Ele quer o poder; quer ser o comissário-chefe, ou coisa assim. Detesta a humanidade; quer ajudar a meter a cara dela na lama. F.d.p. pervertido, mas são todos. Johnny pensou naquilo, sombrio. O Dr. McManus riu para ele. — Ele fica de olho em todas as igrejas. Se um ministro sair da linha e falar à congregação com bom senso, lá vem um editorial chamando-o de inimigo do povo e instrumento de Wall Street ou coisa assim. Cuidado, filho. Você vai ganhar alguns editoriais, no futuro. Estou sentindo isso. O médico apontou para uma carreira de casinhas estilo Cape Cod, de telhado de madeira, todas recém-pintadas de branco, na luta contra a fuligem. Havia nelas certa uniformidade, mas também uma graça, pois todos os jardins eram diferentes, cada qual cercado por cerquinhas de madeira pintada de branco. — É ali que moram os instrumentos de Wall Street e do capitalismo imperialista e os opressores, como os chama o Mac — disse o Dr. McManus. — Em outras palavras, chefes de turmas e supervisores das minas. Estão todas hipotecadas. Eu sei. São da sua paróquia, pobres-diabos. As ruas estavam ficando feias de novo, mas pelo menos eram limpas. Como era a hora do jantar, não havia crianças nas ruas, nem mulheres nas varandas. Tinham tentado plantar glicínias nos postes, mas com pouco êxito. Os gramados estavam sujos de fuligem, mas a grama lutava valentemente, bem como as poucas árvores novas. — Sua paróquia — apresentou o Dr. McManus. — Uma boa amostra de toda a cidade. Aqui não mora nem um homem que ganhe mais de cinco mil dólares por ano, se ganhar isso, ou nas usinas ou fábricas ou escritórios ou negócio independente, que está praticamente entregando os pontos, do jeito que vão as coisas, hoje em dia. E lá está a sua igreja. Era uma igreja de madeira, na esquina seguinte. Aparentemente o arquiteto tinha tido uma vaga ideia das igrejas da Nova Inglaterra, mas a ideia era muito vaga. Tinha uma torre fina com uma cruz e a torre era alta demais para o prédio baixo, que originariamente fora branco mas agora era cinzento sujo. O prédio era atarracado, como se tivesse vergonha por ser tão modesto. Os vitrais coloridos eram baratos e malfeitos. Somente as portas tinham um belo aspecto, de madeira escura e encerada e ricamente entalhadas. — Eu dei essas portas para a igreja — comunicou o Dr. McManus, irritado. — Pago para que sejam enceradas todas as semanas. E pago por aqueles gramadinhos também. Pensa que os paroquianos são agradecidos? Nada disso. Acham que eu devia fazer tudo. A casa paroquial ao lado pareceu a Johnny muito pequena, modesta e feia, sem um estilo definido, sem uma boa varanda à moda antiga. As janelas eram estreitas e altas, no seu exterior baixo, e tinha uma porta estreita e arqueada. Como a igreja, era construída de madeira cinzenta e suja, antes branca, e tinha um telhado de madeira ondulada. Embora estivesse quase no mesmo nível que a calçada, Johnny viu, com certa esperança, que tinha

um quintal grande, e a grama grossa e o mato tinham sido cortados havia pouco. Mas não havia árvores, nem flores, e era cercado. — Gostou? — perguntou o médico, com um interesse macabro. — Não — respondeu Johnny. O médico riu com tanto gosto que Emilie acordou. Ele afagou o rosto dela. — Estou me divertindo, benzinho. — Ela sorriu para ele, com timidez, e bocejou. — Bons dentes — comentou o médico, aprovando. — Boca bonita, também. — Podemos ter um jardim — disse Johnny. — E árvores. O chofer tinha aberto as portas da grande limusine e ajudou as crianças a saltarem, tentando pegar a mochila das mãos de Jean. Mas o menino se agarrou a ela. As crianças estavam meio tolhidas no carro, a despeito de seu tamanho, mas não tinham reclamado. As meninas ajeitaram os vestidos, com capricho, os meninos, as gravatas. Olharam para a casa sem qualquer expressão de decepção ou curiosidade. Quando todos se dirigiam para a porta, ela se abriu e apareceu uma mulher grisalha, magra, meio severa, calada. O Dr. McManus acenou. — Sr. Fletcher, esta é a Sra. Dan McGee, mulher do presidente do sindicato mineiro local, e presidente da Assistência Feminina. Marjie, o seu novo ministro. E os filhos, li a Sra. Burnsdale, espécie de governanta. A Sra. McGee sorriu um pouco e apertou a mão de Johnny, dizendo numa voz um tanto monótona: — Sejam bem-vindos, Sr. Fletcher, Sra. Burnsdale. — Hesitou e olhou para as crianças. —Bem, ouvi falar deles. Vão todos ao catecismo; que bom. Mas entrem, entrem. O vestíbulo era o menor possível, não contendo mais que um antigo cabide de chapéus, o assoalho coberto por um linóleo limpo mas rachado, de um tom vermelho fosco. Dava para uma sala cheia de móveis velhos, de imitação de bordo, estofados com um chintz estampado que já fora lavado tantas vezes que o estampado original estava inteiramente desbotado, dando um efeito geral de um verde-rosa pálido. Um grande tapete de fibra cobria o chão, em quadrados de azul e amarelo, evidentemente novo e evidentemente mais próprio para um terraço do que para uma sala dentro de casa. Johnny viu paredes de tom de chocolate escuro, com um teto cor-de-rosa, abajures velhos com cúpulas de porcelana em xadrez, ou de vime, mesas de pseudobordo, mogno e nogueira, tudo lustroso com um verniz novo e feio. Numa das paredes havia uma estante de livros, mas só com cinco ou seis volumes velhos. Mas havia uma lareira, e foi para ela que Johnny se virou, depois de seu primeiro exame desanimado da sala. Poderiam acender o fogo ali no inverno, e ter um conforto, intimidade e amor. — Parece muito… limpo — disse ele à Sra. McGee, que o estava examinando atentamente, para ver sua reação. — É só o que se pode dizer a respeito — zombou o médico. — Aqui tem tudo o que as pessoas queriam descartar, e depois acharam que podia servir para os pastores. — Ora, Dr. McManus — protestou a Sra. McGee, com frieza. Mas tinha espírito: as

narinas pálidas se dilataram no rosto insignificante. — Fazemos o que podemos. Dan e eu damos o que podemos. Ela os levou para uma sala de jantar, tão estreita e escuta que era quase impossível ver que ali a mobília era tipo “missão”, datando dos primeiros anos do século, de madeira escura e feia, com assentos de couro sintético e uma mesa redonda. A Sra. McGee acendeu uma lâmpada, embora o sol ainda estivesse brilhando em tons de magenta e dourado, lá fora. Então, Johnny ficou comovido. Á mesa estava coberta por uma toalha de renda barata, feita a máquina. Uma louça modesta e talheres de metal muito gastos estavam arrumados sobre ela. No centro havia uma jarra de vidro com flores de jardim, frescas e doces. A Sra. McGee comprimiu as mãos contra a fazenda barata do vestido e ficou esperando. — Bom — falou Johnny — foi muita gentileza. Ele lhe lançou o seu sorriso forte e suave e ela sorriu de volta, ficando bonita como uma mocinha. Ela explicou que os outros membros da Assistência Feminina não podiam estar ali nessa hora; tinham famílias e era a hora do jantar. Mas tinham enchido a geladeira e a despensa, e tinham levado suas próprias camas de armar para as crianças. Johnny ficou perplexo, mas a Sra. Burnsdale perguntou: — Camas de armar! Aqui não tem quarto de dormir? Os olhos das duas mulheres se chocaram num combate invisível mas palpável. Então, quando Johnny já ia ficando apreensivo, a Sra. McGee tornou a sorrir o seu sorriso bonito e inclinou a cabeça, com pesar. — Sinto dizer que só há três quartos. Um meio grande, para o ministro, e dois muito pequenos. Ficamos muito preocupadas com isso. Só havia três camas, uma de casal para o ministro e uma de solteiro em cada um dos outros quartos. Onde colocar cinco crianças e uma governanta? Convocamos uma reunião especial. Estávamos muito preocupadas. Sete pessoas. Então, achamos um jeito. Alguém tinha uma cama de solteiro sobrando, e ela está em um dos quartos pequenos. E depois outra pessoa tinha duas camas de armar. Elas ficam escondidas, depois de desarmadas de manhã; não haveria lugar para ficarem armadas durante o dia. E depois a Sra. Fichet pôs os homens para trabalhar e compraram um sofácama, e pusemos isso no quarto do ministro. Arrumamos e experimentamos e o único jeito que achamos bom era dois dos meninos ficarem com o quarto pequeno e um dos meninos dormir no quarto do ministro e as meninas com a Sra. Burnsdale. — Ela suspirou e esfregou os braços magros, como que se lembrando de um trabalho árduo. — Foi o melhor que conseguimos arranjar. Johnny respondeu, depressa: — Afinal, não esperavam cinco crianças. Acho que fizeram maravilhas, e lhe agradeço. A Sra. McGee ficou melancólica e sacudiu a cabeça. — Talvez não fique contente quando vir o resto da casa. — Correto — disse o Dr. McManus, feliz.

Ela lhe lançou um olhar arrasador, o que o fez dar uma risada. A Sra. Burnsdale teve má impressão da cozinha pequena e escura. A despensa era bem grande, para apenas algumas panelas velhas, alguns pratos e o trem de cozinha. A pia era de ferro, com porcelana branca rachada. Não havia um refrigerador, só uma geladeira de gelo com um tabuleiro para água embaixo. O fogão a gás, convertido de um de carvão, tinha um cheiro enjoativo, mas seus lados pretos e a frente niquelada tinham sido areados. — Não vejo um fogão desses desde que tinha meus 20 anos. Não pensei que pudesse funcionar com gás — comentou a Sra. Burnsdale. — A Sra. McGee olhou para ela, com desânimo. — É bem horrível — reconheceu. — Mas esperamos lhe arranjar coisa melhor muito breve. A Sra. Barnes vai comprar um elétrico, quando o marido tiver um aumento; ele trabalha para o nosso vespertino. Então ela vai dar o fogão de gás dela para a paróquia, e ele não tem mais que seis anos. — Alguma coisa me diz, Sra. Burnsdale, que a senhora vai cozinhar nesse fogão do homem das cavernas até o fim dos tempos — comentou o Dr. McManus. — Mac Summerfield não acredita em aumentar os salários de seus funcionários. A Sra. McGee virou-se para ele, os olhos cansados e espertos faiscando de raiva. — Então, por que não dá um fogão novo para a Sra. Burnsdale? Em vez de ficar fazendo pouco o tempo todo? O Dr. McManus esfregou o queixo e olhou para ela, aprovando. — Marjie, você sempre teve tutano. Hoje em dia as mulheres parece que têm mais fibra do que os homens. Já que fala assim… o fogão da Sra. Burnsdale… isso me faz pensar. Eu não faria nada pelo pastor, mas a Sra. Burnsdale é outro caso. Vou pensar a respeito. —·Prefiro um elétrico — comunicou a Sra. Burnsdale, com majestade. — Com pelo menos quatro queimadores e dois fornos. Vou precisar de dois fornos, com esta família. É também uma geladeira, não isto de gelo. Os guris têm de tomar leite fresco e a geladeira vai ter de ser supergrande. O Dr. McManus era todo admiração. — Mais alguma coisa? — perguntou. Ela olhou para a cozinha, um dedo rombudo e enluvado no queixo. — Sim, mais armários. E pelo menos três frigideiras de ferro e uma porção de panelas novas. Vou fazer uma lista. — Bom — disse o médico, enquanto Johnny e a Sra. McGee olhavam, estupefatos. — E um linóleo novo — continuou a Sra. Burnsdale, pensando. — E um dos cantos separado e uma mesa e seis cadeiras para o café da manhã. Gosto de amarelo e cromados. — Faça uma lista — ordenou o Dr. McManus. A Sra. McGee olhou para Johnny com uma eloquência impotente, e então, sem

querer, ele piscou um olho. A Sra. McGee ficou obviamente assustada. Pensou naquilo, voltou a si, olhou para Johnny e piscou de volta, alegre. Ela virou- se para a Sra. Burnsdale. — Não gostaria de um conjunto de jantar mais bonito, ou móveis novos para a sala? — perguntou, com inocência. — Claro que sim — respondeu a Sra. Burnsdale, com calma. — Vou fazer uma lista. — Não faça economia nisso — recomendou o Dr. McManus, com uma ironia pesada. — Claro que não vou fazer — prometeu a Sra. Burnsdale, o que logo provocou a fúria do médico. — E agora — continuou a Sra. Burnsdale — quero ver o escritório do pastor. Para termos uma verdadeira congregação aqui, o escritório é muito importante. A Sra. McGee tossiu, infeliz. — Não há escritório — confessou. Apontou para a secretária de bordo artificial no canto, perto de uma das duas janelas tristes. Depois apontou para o teto abominavelmente rosa, com suas inúmeras rachaduras. — Estão vendo aquela linha divisória lá em cima? Bem, havia uma divisão, separando a sala em duas peças. Mas eram tão pequeninas! Então, a Assistência Feminina arranjou um fundo, há cinco anos, e derrubamos a divisão e juntamos as duas peças. Sabe, o escritório só tinha uma janela, e era mau para o ministro. A Sra. Burnsdale e Johnny tornaram a olhar bem para a sala, que continuava a ser desanimadoramente pequena. A Sra. McGee suspirou, simpatizando com eles, mas lançou um olhar acusador ao Dr. McManus. — É aconchegante quando o pastor tem visitas… o escritório e a sala tudo junto — arriscou. A Sra. Burnsdale foi até a secretária, o chão tremendo sob seus passos pesados. Abriu as gavetinhas, examinando significativamente a superfície marcada e manchada de tinta. Olhou para a estante de livros que ocupava toda a extensão da parede cor de chocolate atrás da secretária. Depois pôs as mãos nas cadeiras e enfrentou o Dr. McManus, do outro lado da sala. — Já estive em algumas casas paroquiais bem horríveis na minha vida mas esta é a pior de todas. Não tem vergonha? — Tenho, sim — respondeu o médico. — Mas o resto da congregação não tem. Se quiserem uma igreja, uma casa paroquial decente, estou pronto a ajudar. Darei exatamente o que eles derem, mas nem mais um tostão. Então? Ela pensou naquilo, e aos poucos sua expressão se desanuviou. — Doutor ;— disse, com mais gentileza. — Acho que o senhor tem razão. Bom, Sra. McGee, agora faço parte da sua Assistência Feminina, e quando acabar com elas… A fornalha era velha, quebrada e perigosa, um queimador de carvão de uma marca esquecida. A Sra. Burnsdale examinou o porão sujo, o montinho de carvão. As janelas imundas, cheias de teias de aranha, não deixavam passar luz alguma. Eles não tinham levado as crianças lá, depois que Johnny fizera um sinal rápido para a Sra. Burnsdale. Ela falou com sua voz forte e franca:

— Essa fornalha nunca mais será usada nesta casa! Não vou me arriscar a fazer essas cinco crianças morrerem de dióxi… carbono… Carbo… — Monóxido de carbono é o termo, creio — emendou o médico. — Vai para a lista — disse a Sra. Burnsdale. — Quanta coisa — perguntou o médico, indignado — vai para a minha lista, e quanto a congregação vai pagar? A Sra. Burnsdale abrandou-se. Seu rosto largo abriu-se em covinhas e os olhos faiscaram. Ela pôs a mão no braço do médico. — Só o que eu falei. Mais nada. Doutor, o senhor é um homem maravilhoso. Um homem maravilhoso. — Deixe de ser idiota — respondeu o médico, bruscamente, pondo uma distância segura entre si e a mulher temível. — Vou comprar o que a senhora precisa, mas nada para o pastor. Está entendido, não é? Johnny, depois daquela inspeção, estava desanimado demais para achar graça. A Sra. Burnsdale estava olhando para as prateleiras do porão, a cara fechada, reprovando. — Não sei se os outros ministros tinham mulheres, mas se tinham elas certamente não eram precavidas em matéria de conservas e coisas assim. Na minha opinião, uma mulher que não faz conservas não tem nada de se casar. Eles subiram a escada de madeira bolorenta, com cuidado. — Podem-se comprar comidas congeladas e em conserva — respondeu o médico. — É, bom para emergências e gente que tem de cozinhar depressa e outras coisas. Mas nem se compara com um bom pêssego em compota caseira, ou a verdadeira geleia de morangos, ou tomates em conserva. A Sra. Burnsdale falava com autoridade e o médico não discutiu. Quando voltaram para a cozinha, onde as crianças estavam amontoadas, caladas, o Dr. McManus falou: — Ainda não viram os quartos. — Deu uma risada melancólica. — Se ainda não desanimaram com o que já viram, os quartos vão fazer isso! Se vão! E fizeram mesmo. O “quarto do ministro” era ainda mais feio do que a sala e mobiliado com o mesmo bordo de imitação e estampado indistinto, com cortinas iguais, uma janelinha alta, redonda como uma vigia, no gesso verde leproso da parede, uma mesa ao lado da cama de colunas com sua colcha marrom barata, enfeitada com um abajur fraco com uma cúpula de raiom rosa barato e uma cadeira de balanço de bordo. Johnny pensou no grande crucifixo de mosaico e dourados que lhe tinham dado em Roma, que, garantiam, fora benzido pela Sua Santidade em pessoa, e pensou que, pendurado acima de sua cama, ia alegrar o quarto triste. — Mas o sofá-cama vermelho é bonito, não é? — perguntou a Sra. McGee, esperançosa. Ela foi até a peça em questão e alisou sua coberta áspera. — Custou quase 70 dólares e dizem que é muito confortável. Um dos meninos pode dormir aqui. Ou os dois mesmo; é bem largo.

A Sra. Burnsdale murmurou, aprovando. Johnny decidiu: — Acho que Jean e Max devem dormir no sofá-cama. A Sra. Burnsdale tinha encontrado o armário modesto que, explicou a Sra. McGee, era para “a roupa de cama, e essas coisas”. Seis cobertores, usados, mas limpos, e muito ralos, estavam ali, e uns 10 lençóis e uma dúzia de fronhas, e um edredom de algodão. — A Assistência Feminina, à qual pertenço, vai arranjar muitos outros cobertores e lençóis — disse a Sra. Burnsdale, com ênfase. — E umas quatro dúzias de toalhas. Quando é sua próxima reunião, Sra. McGee? — O terror da Assistência Feminina — comentou o médico, com respeito. O banheiro foi mostrado com muito constrangimento pela Sra. McGee. As peças eram incrivelmente antigas, a banheira alta numa armação de madeira. A Sra. Burnsdale ia exprimindo sua indignação mas o médico levantou a mão. — Não, Sra. McGee, nada daqui vai na lista. Isso é departamento do pastor. — Sete pessoas, e só isso — insistiu a Sra. Burnsdale, apontando, sem piedade. O Dr. McManus acompanhou o dedo dela com os olhos. — Ora, eu acho que é um artigo muito bom. Eu mesmo o usei, quando era menino. Gosto disso. Fiz muitas meditações boas e profundas ali. Se um dia o jogarem fora, quero para mim. — E ponha na sua sala da frente. Todo mundo deve ter uma coisa que preze — respondeu a Sra. Burnsdale, num tom arrasador, e Johnny sorriu. A Sra. McGee se retirara delicadamente para a porta, onde fingia examinar o tapete de fibra no pequeno hall. — Aliás — continuou a Sra. Burnsdale — por que havemos de guardar o que lhe é tão caro, doutor? Vamos lhe fazer um presente disso! — Ah, é muita bondade sua, Sra. Burnsdale — respondeu o médico, olhando para Johnny de cara fechada. — Vou aceitar o oferecimento. Excelente trabalho, esse; nada matado, como o que há hoje em dia. Vai durar um século. Vamos ver. Vou substituí-lo por dois novos. Minha cara senhora, prefere cor-de-rosa ou um azul e um rosa? A Sra. McGee, ouvindo o tom da voz dele, desceu depressa pela escadinha tortuosa. Até mesmo ela, que tinha espírito, recuava quando o Dr. McManus falava assim. Mas a Sra. Burnsdale não se intimidou. Pensou. — Bem, acho que gostaria de rosa. Bom para as meninas, e as meninas devem vir primeiro. Vai ser o princípio do que chamam de conjuntos combinantes. Podemos pôr um ferro de chuveiro sobre aquela… aquela banheira! Olhe só! Doutor, o senhor também meditava lá, e sobre o que pensava? — O meu pai foi o primeiro ministro, e em geral eu pensava em como eu estava com fome e que batatas cozidas, mesmo com o molho de leite que minha mãe preparava, não

bastavam para o almoço. Pensava em como ia custear meus estudos de Medicina; pensava em acrescentar novos biscates aos outros que já fazia. Pensava em como seria bom se minha mãe pudesse ter pelo menos um vestido novo; ela não teve nenhum durante quase cinco anos depois que viemos para cá. Pensava no meu pai, querendo inspirar o amor a Deus, a fé, esperança e caridade à sua congregação, e que não estava conseguindo muita coisa, se bem que fosse o melhor homem do mundo. Pensava em como o ânimo dele estava sendo destruído, e como ele era quando o sol batia em seu rosto, no quintal. Pensava na coragem que ele tinha, durante muitos anos, ali no púlpito, falando como um anjo sem ninguém escutar. Sra. Burnsdale, minha senhora-com-a-lista, era nisso que eu pensava. Johnny pôs a mão naquele ombro incrivelmente largo e maciço. Era só sua imaginação, claro, mas ele pensou que estava tremendo. Os olhos da Sra. Burnsdale tinham começado a piscar. Ela fungou. — Espero não estar me resfriando — disse ela, severa, remexendo na bolsa e puxando um lenço muito branco e engomado. Assoou o nariz. — Doutor — nada poderia ser mais triste do que sua voz —, por que o seu pai ficou? — Porque ninguém mais queria aceitar esta paróquia, com o ordenado dele — respondeu o médico, com rispidez, mas muito duro sob a mão de Johnny, sem se afastar. — E não queria desertar o que chamava de sua “gente” e deixar que a igreja e a casa apodrecessem sem moradores. — Ele resmungou baixinho. — Dizia que os pastores tinham morado em lugares piores e que o primeiro pastor nem tinha um lugar onde deitar a cabeça. Então, por que ele havia de reclamar? Pensando bem, o povo não era mais pobre do que é hoje. Ganhavam 20 dólares por semana, no máximo, mas compravam mais do que hoje. Bom. Além disso, as velhinhas e as crianças o adoravam, e eram gente dele. A Sra. Burnsdale olhou para a banheira e depois disse, com convicção: — Podemos nos descartar de tudo o mais, mas disso não! Vou contar aos guris a respeito. Então só um ferro de chuveiro, e talvez possamos pintar essa madeira rachada em volta dela de uma cor bonita. — Cor-de-rosa, sem dúvida — falou o médico, com raiva. Ela sorriu para ele e eles desceram de novo, depois de terem visto os quartinhos incrivelmente pequenos onde dormiriam a Sra. Burnsdale e as crianças. A Sra. McGee lhes disse: — Está ficando escuro, e acho que as crianças deviam jantar, Sra. Burnsdale, e a comida está pronta, quente, no forno. Uma boa panelada de feijão com porco e macarrão com queijo… muito queijo… e três pães feitos em casa e… ah, sim, uma sopa de legumes e uma boa salada de batatas, com verduras, do jardim da Sra. Schoeffel, e leite para as crianças e um bule de café. Não posso me demorar mais. Espero — concluiu, educadamente — que esteja tudo bem. E também tem comida para mais uns dias. As senhoras cuidaram disso. — Ótimo, ótimo — respondeu, a Sra. Burnsdale, calorosamente, tirando as luvas. — Vou só pegar um avental. Ela vacilou. Não sabia qual seria o seu status ali, mas, ao ver os olhos agradecidos da

Sra. McGee, ela reagiu impulsivamente e beijou a outra na face, depressa. — Vou ficar para jantar — declarou o médico. — Há anos que não como uma coisa assim. — Afrouxou a gravata encardida e deixou-a pendurada. — E depois pode me dar a sua lista infernal, senhora. Eles se sentaram apinhados em volta da mesinha feita na sala de jantar. Johnny dobrou as mãos e as crianças o imitaram e ele abaixou a cabeça. — Senhor, Nosso Deus, Nosso Pai Adorado, nós Vos agradecemos pelo que nos destes hoje. Que nos alimente para podermos fazer o Vosso trabalho, e nos dê paz. Amém. O Dr. McManus, que acabara de se sentar como uma montanha em sua cadeira, não se juntou à oração e nem abaixou a cabeça. Depois rosnou: — Paz, amém! Vai precisar disso, meu rapazinho esperto. E agora, passe o feijão. — Primeiro o papai — advertiu Kathy, com sua voz de advertência, e o médico deixou cair a mão e ficou esperando.

VII Eles tinham acabado de jantar e as crianças já estavam deitadas, e ouvia-se o barulho bom e sólido da Sra. Burnsdale lavando a louça na cozinha. O Dr. McManus e Johnny estavam sentados na sala-escritório; o ar abafado mal se agitava na sala fechada. O médico largou um pesado embrulho de papel pardo, contendo radiografias. Acendeu um cigarro depois do outro, o rosto agitado, as sobrancelhas se mexendo, a boca apertada. Johnny esperou, as mãos cerradas sobre os joelhos, rezando por alguma esperança no veredicto do homem mais velho. Mas o médico continuava ali sentado, deixando a cinza cair nas -coxas, resmungando com sua voz esganiçada, coçando a orelha. Tinha recebido quatro telefonemas do hospital, mas tinha roncado no telefone e sugerido aspirina ou “uma dose de morfina, e diga que ele cale a boca”, e continuava ali sentado, o monte de cinzas aumentando em seu terno leve e sujo. Tinha marcas de suor sob os braços imensos e o colarinho da camisa estava cinzento. Depois disse: — Isso é uma coisa danada. — Não tem esperanças, então? — perguntou Johnny, em desespero. Ele tentou pegar as radiografias, mas o médico gritou com ele. — Deixe-as aí, raios! Vou estudá-las mais um pouco. Aquele ombro do garoto… o braço. Diabos, você provavelmente já aprendeu bastante anatomia para eu não precisar entrar em detalhes. Não sei como ele conseguiu recuperar até parte do uso do ombro e braço, e da perna. Especialmente a perna, o raio da perna é uma mixórdia, só ela. E falam em milagres! Você já tem um em suas mãos, sem ter de pedir outro. Se você mostrar essas chapas a um ortopedista comum, ele dirá que não é possível que o menino ande, ou use o braço, de todo! E você ainda quer milagres! — Jean sente dores quase constantes — respondeu Johnny, sem esperanças. — Aprendeu a suportá-las sem se queixar. Isso é pior… — Meu Deus, nós todos sentimos dores — falou o médico, com desprezo. — Todos nós… de um modo ou de outro. Adoro ouvir esses psiquiatras falarem de uma adaptação feliz e integração sadia e outras besteiras! Referem-se a idiotas sem personalidade e contentes. É o objetivo deles para a maior parte das pessoas — acrescentou, num tom sombrio. — Mas veja as pessoas normais. Até mesmo criancinhas, bebês. Dor. Um resmungo aqui, uma cólica ali, olhos defeituosos, audição defeituosa, mesmo nos melhores. Veja as crianças adolescentes. Dores. A essa altura também já têm dores mentais. É natural. Não levamos vidas normais. A natureza nunca teve intenção de que andássemos nas pernas traseiras. Ora, não comece a me doutrinar sobre alma. Tolices. Dor; temos aspirina e codeína e morfina e tudo o mais, mas a dor está à espreita, bem ali no fundo. Um tigre de dente de sabre, esperando. E depois que passamos a ser homens e mulheres, a dor, física e mental, passa a ser pior. Por que você acha que os consultórios dos médicos estão sempre cheios? Não seja tolo.

Ele olhou com azedume para o embrulho das radiografias. — Não admira que aquele garoto tenha mais dores do que os outros. Reconheço isso. E vai piorar, com a idade. Os ossos foram estraçalhados, originariamente. Como é que se soldaram tão bem, não sei! É contra todas as leis, como as conhecemos. — É preciso fazer alguma coisa — insistiu Johnny, mais desesperado. — Sabe, eu só faltei prometer que Deus o há de curar. O médico teve um sorriso mau. — Então, por que não o leva a um desses santuários católicos? Ouvi dizer que fazem milagres lá. — Sacudiu a cabeça. — Mas não neste caso. São simples ossos malditos e quebrados que sararam de um modo qualquer e nem sei como! Johnny ficou esperando. Sem saber por quê, o seu próprio sofrimento por Jean diminuiu. O médico brandiu um dedo sujo na cara dele. — Uma cadeira de rodas para aquele menino, dentro de um ano ou dois, e para o resto da vida dele. Depois vêm os analgésicos; fazem efeito, por algum tempo. Depois ele vai amaldiçoar o dia em que você o salvou. O que você vai fazer então? Johnny respondeu, com calma: — O Senhor não vai deixar que isso aconteça. O médico ficou furioso. — Vocês, pastores! Não têm miolos no crânio. Lembro-me de meu pai, a fisionomia toda iluminada, falando da misericórdia divina. Que misericórdia? Diga-me isso, meu filho. Que misericórdia deixou que esse garoto fosse quase morto a pontapés? E esses seis milhões de judeus nos crematórios? E os campos de trabalho escravo na Rússia? Diga-me onde está o seu Deus, e onde estava. Conte-me isso, e também passo a acreditar em milagres. Johnny redarguiu, e tinha linhas brancas em volta da boca: — Essa é uma das coisas que não consigo entender. Mas deve haver um sentido em tudo isso. — Apertou bem os dedos. — Penso na resposta de Deus às recriminações angustiadas de Jó. “Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra? Dize, se tens entendimento.” — Se Deus disse isso, então Ele é o maior sofista de todos. O médico abriu o embrulho, com brutalidade, e tomou a olhar para as radiografias. Sacudiu a cabeça. Murmurou, virando as chapas: — Olhe, sou cirurgião. Opero qualquer pessoa, desde a tireóide à gangrena dos dedos dos pés. Hoje em dia, a moda é dividir cada parte do corpo e só operar a parte que lhe cabe. Diabo de bobagem. Deixo de lado os olhos; isso pertence a outro ramo, e tenho muito respeito pelos olhos para tocar neles. Mas o resto do corpo… ora, um homem de bom senso pode entrar em qualquer parte dele, até o cérebro ou o coração. Para o público, é caro ser-se um especialista, especialmente um cirurgião especializado. Mas nunca vi um urologista esperto que não soubesse extrair um apêndice ou costurar um buraco numa barriga ou fazer um serviço retal.

Ele tornou a enfiar as radiografias no embrulho, com desprezo. — Mande-me esse garoto amanhã, e eu mesmo tiro minhas fotos. Não vou prometer milagres, lembre-se disso. Mas talvez possa fazer alguma coisa quanto à dor. Cortar alguns nervos, aqui e ali. Mais do que isso não posso prometer. — Piscou, melancólico, diante do sorriso brilhante de Johnny. — Danado de idiota. Ele deixou cair o cigarro no tapete de fibra e o apagou lá, calmamente, para susto de Johnny. — Não se preocupe, não vai pegar fogo. — Acendeu outro cigarro. Era viciado num dos tipos mais fortes. — Dizem por aí que se pode ter um bom câncer de pulmão, proveniente do hábito do fumo. Mais besteiras. Como é que explicam os milhares de bebês que já nascem com câncer? Eu sei explicar, mas não me dão ouvidos. Gases e fumaça industrial. Pittsburgh fez alguma coisa a respeito; por que as outras cidades não podem fazer o mesmo? “Tenho outra coisa de que quero falar. Você é um louco. Eu hoje lhe dei seis meses aqui. Mas não vai durar nem duas semanas. É melhor escrever ao Frank Stevens para lhe procurar uma nova paróquia. Espere até essa congregação descobrir que vai mesmo pregar a Palavra de Deus! — Sua risada esganiçada encheu a sala. Ele bateu na coxa. Depois parou e olhou para Johnny, os olhos apertados. — Coitado do raio do idiota — concluiu, sério. O consultório do Dr. McManus era imenso e desarrumado, tendo duas enfermeiras e uma recepcionista que pareciam adorar o velho indomável, apesar de suas pragas e insultos. Mas as salas de exames eram claras e reluzentes. — Sol Klein e o outro rapaz judeu vêm duas tardes por semana para ajudar — explicou ele a Johnny. — E dois rapazes católicos, em que estou de olho, e três sujeitos do Hospital Luterano. Mas não tenho assistentes fixos, com bons ordenados. Isso os torna preguiçosos. Pago aos rapazes tanto por caso; isso os faz trabalhar. Bem, vamos ver essas radiografias agora. Acontece que Sol Klein está aqui. Quero que ele olhe o garoto. Jean disse, friamente: — Deus cura braço e perna. — Ah, claro, claro! — respondeu o Dr. McManus, gesticulando. — Mas talvez a gente possa ajudá-lo, hein? Mas nunca ouvi dizer que Ele fosse diplomado por uma universidade reconhecida. O Dr. Klein era um rapaz miúdo, competente, louro, que parecia levar a vida muito a sério. Seus olhos azuis eram firmes e penetrantes, embora bondosos, por trás de óculos grossos. O paletó branco, ao contrário do Dr. McManus, estava rigorosamente limpo e lhe assentava bem. — Gostou desse rapaz? — perguntou o Dr. McManus a Johnny, pondo a mão carnuda no ombro do jovem médico. — Não tem medo de nada, e é disso que eu gosto. É por isso que estou com ele. Entra com um bisturi onde os especialistas de Nova York não iriam nem com uma radiografia, ou bário. Há dois anos tivemos uma mulher com câncer do

útero; espalhou-se para os tecidos vizinhos e as glândulas. Foi recusada em Nova York. Sol arriscou; ela estava quase moribunda, mesmo. E sabe o que aconteceu? Ela teve alta do hospital cinco semanas depois, engordou cinco quilos, recuperando-se. Curou-se? Não sei. Mas não me admiraria. O Dr. Klein surpreendeu Johnny com um piscar de olhos furtivo. — Ele se esqueceu de lhe dizer que ela vem aqui três vezes por semana, para tratamentos complementares de raio-X. — Olhou para Jean e seu rosto estreito ficou tenso. — Então, este é o menino que esteve num campo de concentração. Então, ouvi dizer que Deus vai curar você. — Ele sorriu, um sorriso doce. — Nós, médicos, podemos ajudar um pouco, ou dar remédios, mas no final, Jean, é Deus quem cura de verdade. Você está entendendo? — Sim — respondeu o menino. Ele ficou parado enquanto as mãos esguias do jovem médico passavam peritamente pelo seu braço e sua perna. Johnny estava observando, aflito. O rosto do dr. Klein não lhe dizia nada; estava distante e sem expressão. Jean foi levado para a sala de raio-X e Johnny ficou esperando na sala de espera meio desarrumada, repleta de pacientes. Estes olharam para sua roupa preta de clérigo e o colarinho e ele lhes lançou sorrisos tímidos, experimentando. Alguns retribuíram o sorriso; outros desviaram o olhar, com amargura. Ele compreendeu e suspirou. As enfermeiras, indo e vindo, sorriam para ele, encorajandoo. Pai Querido, rezou, em silêncio, fazei com que haja um meio de curar esse menino, Vosso filho. Um milagre. Um milagre, Pai, por favor. Olhou para o relógio de pulso. O conselho da igreja e a Assistência Feminina lhe ofereciam um jantar de “boas-vindas”, nessa noite. Ele estava apreensivo. Tinha de contar a todos, nessa noite, a respeito de Jean, Pietro e Max. Não era mais que justo dar a eles a oportunidade de decidirem se queriam ou não conservá-lo como seu pastor. Ele rezou de novo: Pai, se for a Vossa vontade, fazei com que eles saibam e compreendam. É tão terrivelmente necessário que compreendam. Pensou na sua igreja, que tinha visto naquela manhã. Pequena, escura, feia, mas muito limpa. Não havia nela, porém, nenhum traço inspirador, e os vitrais baratos deixavam entrar pouca luz, se bem que a multidão tivesse sido cheia de sol. Explicaram a Johnny que antes havia uma cruz no altar; mas muitos dos paroquianos tinham começado a se opor a isso. Uma cruz na torre, sim, mas não no altar! Houvera até uma discussão acerca de velas — sua quantidade, tamanho, posição. Os “conservadores” tinham vencido. Dois candelabros no altar, com velas brancas pequenas. Mas em nenhum outro lugar. Um lustre comprido, convertido 20 anos antes, do gás à eletricidade, estava pendurado do teto de carvalho muito inclinado. Esse lustre sempre aceso ostentosamente quando as velas eram acesas. Johnny pensou nos primeiros cristãos, que carregavam lanternas nas mãos por cavernas secretas e enfumaçadas e a cruz estava sempre com eles, mesmo que só fossem dois paus toscos presos com couro ou pregos. Suspirou. As peças que lhe eram reservadas na igreja eram tão pequenas que ele mal tinha espaço para se mexer. O coro? O Dr. McManus tinha rido disso. Seis pessoas, todos homens feitos. Nenhum menino. Por quê? Papismo, claro. Não havia uma única cantora

feminina. — Mas isso parece pior do que qualquer igreja de interior de um século atrás! — exclamara Johnny para a Sra. Burnsdale, que se mostrara compreensiva. O automóvel que a congregação lhe forneceu tinha pelo menos sete anos, mas estava bem limpo e lubrificado e um paroquiano, dono de uma pequena oficina e bom mecânico, o deixara em ótimo estado. As crianças o tinham admirado. Era deles, e portanto era melhor do que a limusine do Dr. McManus. Os quatro menores tinham dado vivas na calçada quando ele partira com Jean, naquela manhã, numa nuvem de fumaça do escapamento e com um barulho valente e explosivo. Johnny sorriu, lembrando-se. Então uma enfermeira o chamou e ele se levantou logo e a acompanhou para a sala de exames. Jean estava vestindo a camisa e o casaco, com dificuldade, e os dois médicos o observavam num silêncio que, Johnny achou, era cínico demais. — Então? Então? — perguntou com voz trêmula. O Dr. McManus olhou para ele de cara fechada. — Ah, é você — resmungou. — Sente-se, não vai sair já. Mas Johnny virou-se para o Dr. Klein, implorando. O jovem médico acendeu um cigarro com cuidado, os olhos semicerrados, pensando. Quando Jean, com uma habilidade aprendida com muito sofrimento, jogou o casaco depressa sobre o ombro, o Dr. Klein meneou a cabeça, como se satisfeito com alguma confirmação de seu diagnóstico. Depois se dirigiu a Johnny: — Digo que se opere, assim que for possível. Vai ser uma operação demorada, recompor, remendar, e não vai ser confortável. — Sentou-se e ficou em frente de Jean, pegando a mão do menino. Seu rosto agora mostrava certa amargura, embora a voz fosse bem branda. — Jean, você me disse que o seu… pai… disse que Deus ia curá-lo. Deus já realizou um milagre para você: permitiu que você vivesse; mandou o ministro, aqui, para você. Agora, você vai ter de ser operado. Hospital. Enfermeiras. Sabe o que quero dizer? Jean olhou para ele, calado, com olhos pálidos e rebeldes. Depois de um instante, respondeu: — Deus vai curar. O Dr. Klein meneou a cabeça. — Claro que sim. Nunca duvide disso. Sabe, nós, médicos, não poderíamos curar uma só dor, sem Deus. Não poderíamos ajudar ninguém, sem Deus. Johnny pôs a mão no ombro duro de Jean e fez o menino se virar para ele. — Jean — disse, num tom urgente —, olhe. Está vendo as minhas mãos? Elas se mexem, pegam coisas, trabalham, escrevem. O que as faz executarem essas coisas? — Jean voltou a olhar para o jovem ministro. Johnny bateu na testa. — É o meu cérebro, na minha cabeça. Sem o meu cérebro as minhas mãos não poderiam se mover de todo. Jean, Deus usa os homens como nós usamos nossas mãos. Nós somos instrumentos Dele. Ele é o grande Autor. Quando um médico, como o Dr. Klein aqui, trabalha para curar as

pessoas, Deus está com ele. Às vezes Deus cura logo, mas é mais frequente Ele usar Seus homens para Seus milagres. Entende, meu bem? Jean continuava a olhar para ele, distante, e os três homens ficaram esperando. Então os olhos pálidos aos poucos foram-se aquecendo e Jean pegou a mão do ministro, consolando-o. — Papai é milagre — disse, e por um instante encostou a cabeça na manga preta de Johnny. O homem e o menino ficaram juntos e o Dr. Klein sorriu de novo. O Dr. McManus falou: — Acho que o garoto tem razão. O Dr. Klein acompanhou Johnny e Jean, até a porta externa. Apertou a mão de Johnny. — O velho Al me contou sobre você e as crianças. — Tirou o cigarro da boca e olhou para ele, pensativo. — Não sei por quê, você me lembra do nosso velho rabino… cheguei à conclusão de que nenhum de nós merece os nossos pastores. Temos uma boa força policial em Barryfield, e um bom chefe. Pagamos a eles mais do que qualquer outra cidade ou Estado, só para protegerem a nossa propriedade e nossas vidas. — A boca fina se torceu. — Mas pagamos muito menos aos nossos pastores, por protegerem nosso.. . digamos, bem-estar espiritual? Talvez achemos que é menos importante. — Jogou fora o cigarro, pela escada branca da clínica do Dr. McManus. — Acho que sua vinda para cá não foi mero acaso, Sr. Fletcher. — Obrigado — respondeu Johnny, sério. — Também acredito nisso. — Hesitou. — Jean, vá descendo e entrando no carro, sim? — Jean obedeceu logo, descendo a escada depressa e de lado, para ajudar a perna manca. Os olhos de Johnny estavam ardendo. — Há três semanas, ele contestava tudo o que eu lhe pedisse, e coisa pior. Agora, é meu braço direito. Doutor, vai poder curá-lo? — Por que não? — perguntou o Dr. Klein, com displicência. Mas seu sorriso foi rápido, embora breve. — Afinal… Deus… não está do seu lado? — Ele meneou a cabeça, virou-se e entrou. Mas Johnny deu a volta e o alcançou. ;

— Um minuto, doutor. — Engoliu em seco. — Não tenho muito dinheiro. O que tenho foi dado por pessoas boas, que têm menos ainda, para as crianças. Os soldados. Tenho um cheque do Dr. Stevens… meu superior… que também é para as crianças, em partes iguais. Portanto, não posso pagar muita coisa pela operação. Talvez, pagamentos parcelados… O Dr. Klein o olhou com uma surpresa fria. — Alguém falou em honorários? — perguntou, e afastou- se, irritado. Johnny ficou olhando para ele. A caminho de casa, Johnny explicou a operação a Jean, que ficou escutando calado. — Então, digamos que seja na semana que vem. Não vai ser muito confortável, Jean. Mas você é um menino valente. Quer um milagre de Deus, e vai tê-lo. Deus nos mandou para esta cidade; foi Deus que nos mandou para o Dr. McManus e o Dr. Klein. É, Deus

podia curar você de uma vez. Mas pense um pouco. Talvez fosse necessário que esses médicos conhecessem você, para levá-lo de volta a Deus. Curando você, estarão curando alguma doença no coração deles. Está entendendo? Jean estava com a boca apertada, os olhos fixos. Depois respondeu: — É, eu sei. Jean e papai são milagres de Deus, para médicos. Deus faz milagres para muitos. Johnny apertou os dedos magros do menino, mas disse consigo: Será um milagre mesmo se a congregação me aceitar… depois da noite de hoje. Quando chegaram em casa, encontraram a casinha fria vibrando de entusiasmo. A Sra. Burnsdale mal podia falar, de tão contente; ela puxou a mão de Johnny e o levou para a cozinha, como uma criancinha. Depois apontou, com orgulho. A cozinha estava cheia de crianças que circulavam com exclamações em volta de um fogão branco novo e reluzente e uma geladeira. Sobre os balcões havia caixas altas de panelas e pratos e a mesa era nova e maravilhosa, de plástico amarelo e cromados, com cadeiras condizentes. Um bombeiro levara embora a pia velha e outra estava sendo instalada, cor de mel, alegre, com torneiras cromadas. O bombeiro olhou por cima do ombro para Johnny e riu. — Estará tudo pronto dentro de mais uns 10 minutos, senhor. Tenho de me apressar, por isso espero que não se importe se não me levanto. Por falar nisso, sou da sua congregação. Mal posso esperar para ouvir o seu primeiro sermão no domingo. As crianças juntaram-se em volta de Johnny, gritando. — Lá em cima, também! — gritou Pietro, apontando para o teto. — Cores lindas. Dois, papai! — Sosseguem, agora — ordenou a Sra. Burnsdale, com energia. — Vão andando, para a sala de jantar almoçar. Jean, primeiro mande esses guris lavarem as mãos e Kathy, leve a Emilie, e penteie os cabelos dela, também. Rápido! As crianças se aquietaram logo e se foram. A Sra. Burnsdale sorriu com carinho. — Quem me dera que os nossos guris tivessem tanto juízo e soubessem obedecer aos mais velhos. Temos sorte, Sr. Fletcher. — É — respondeu Johnny. Olhou para as novidades com assombro. — O Dr. McManus deve ter posto mãos à obra logo. Provavelmente ontem à noite mesmo, depois que saiu daqui. Ele parece achar que essa congregação não nos vai mandar embora. Gostaria de ter essa mesma certeza. — O senhor tem certeza de tudo menos do senhor mesmo — falou a Sra. Burnsdale, num tom severo e maternal. — Posso saber se isso está certo? O bombeiro olhou por cima do ombro forte, curioso. — É a primeira vez que o velho Al faz alguma coisa por um ministro, senhor. Sem que nós outros puséssemos a outra metade logo de cara. Contei à patroa. Ela nem quis acreditar. Claro que a gente quer o senhor. Um pastor que consegue levar o velho Al a fazer alguma coisa por ele é o tipo de pastor que a gente quer. Se é. — Ele apertou uma porca, com habilidade. — Os melhores aparelhos da cidade. O velho Al tirou o pessoal

das ferragens da cama, ontem à noite. “Não interessa as despesas”, disse ele para eles. Eles nem podiam acreditar. Aposto que a essas horas a notícia já se espalhou pela cidade. Minha mulher é presidente da Assistência Feminina. Quando saí para vir para cá hoje, ela estava no telefone, contando tudo para as outras senhoras. A Sra. Burnsdale olhou para Johnny e meneou a cabeça, satisfeita. — Está vendo? Bom, vamos para a sala de jantar. Um homem dos móveis me ligou e disse que vai entregar um conjunto de mogno verdadeiro, moderno mesmo, amanhã. O Dr. McManus. E um homem dos linóleos também vem amanhã, para instalar o linóleo novo na cozinha, banheiro e hall. Aliás — completou ela, com displicência — hoje de manhã chegou um tapete novo para a sala. Estava tudo na minha lista, que dei ontem ao doutor. Johnny começou a rir, não aguentando aquilo. Depois de um almoço frio muito bom, Johnny levou as crianças para o jardim. Eles andaram sobre a grama dura e grossa, ao sol quente. — Vamos plantar árvores — disse ele. — Árvores frutíferas. Cada um vai ter a sua árvore… talvez duas. Maçãs, cerejas, pêras, pêssegos, ameixas. Depois árvores de sombra. E junto da cerca vamos plantar flores. Cada criança vai ter o seu jardim. Vamos ter bandos de passarinhos e casinhas de passarinhos nas árvores. — Respirou fundo. — Houve um tempo — continuou — em que os homens eram bons e puros, e moravam num Jardim que Deus fez para eles. E Deus abençoou as flores e as árvores e os pássaros, e tudo o que vivia no Jardim, inclusive os homens. Em volta dele, as crianças o escutavam, interessadas. — Nesse jardim, ninguém detestava nada. Lá só havia felicidade e uma beleza maravilhosa e cantos e risos. Mas isso não bastou para os homens. O amor não bastou. Eles queriam nutra coisa. Então, o Mal lhes apareceu e o nome do Mal era Lúcifer, um dos poderosos arcanjos, o anjo mais amado por Deus, o anjo mais belo de todos. Sabe, Lúcifer não gostava dos homens; não queria que eles fossem iguais aos anjos Lúcifer era orgulhoso. Amava Deus, realmente, e lhe parecia que Deus estava-se diminuindo, fazendo os homens. Ele parou, para deixar que essa parte da história penetrasse nas cabeças dos meninos, fascinados. Pôs a mão sobre a cabeça de Kathy, que brilhava como ouro no sol. Os grandes olhos azuis de Emilie estavam da cor de safiras. A boca de Pietro, aberta, era como uma cereja vermelha, e em seu rosto o interesse parecia uma luz, e Max. também estava escutando, naquele aturdimento dele. Jean, à direita de Johnny, era um sargento em posição de sentido ao lado do oficial comandante. Jean disse, e sua voz era a voz de um homem taciturno: — Lúcifer tinha razão. Johnny continuou. — Então, Lúcifer chegou para os homens e disse: “Se vocês comerem daquelas frutas ali, que lhes são proibidas, serão iguais aos anjos”. E então eles comeram as frutas. Ora,

era costume de Deus passear no Jardim que Ele fizera, quando o sol se punha, para Ele poder apreciar a sua beleza e sentar debaixo das árvores e sorrir para as flores e falar com os homens. Mas depois que os homens comeram as frutas daquela árvore, eles se esconderam, ao ouvirem Deus se aproximar pela floresta, que estava cantando sozinha sob a lua nova. Então Deus chamou os homens e eles tiveram medo de responder. E quando Ele mandou que eles respondessem, e que lhe dissessem por que tinham comido daquela árvore, eles se culparam uns aos outros, detestando-se por sua própria desobediência. Acho que isso deixou Deus mais zangado do que qualquer outra coisa, pois Ele viu que uma vez que o ódio entra nos homens, o mundo não é mais lugar seguro para ninguém, e nada, sejam jardins ou arvores ou animais inocentes ou outros homens. Então Deus, em Sua cólera, expulsou os homens do Jardim, para um mundo sem vida e perigoso, onde estavam condenados à morte, onde não teriam paz, onde teriam de trabalhar muito, sem esperanças, onde todas as coisas os temiam e fugiam deles. Todas as coisas inocentes fugiam deles, pois o homem comera o ódio. O homem agora era um terror no mundo, o criador de guerras e ruína. Sentou-se na grama e as crianças, os olhos turvos fixos nele, também se sentaram num círculo junto dele, Jean disse: — Então, nós tivemos… tivemos… Johnny meneou a cabeça, tocou no ombro de Jean e suspirou. — E Deus ficou zangado com Lúcifer, mais ainda do que com os homens, e expulsou Lúcifer do céu, e Lúcifer caiu e construiu um novo lugar para si, que chamou de inferno, e levou para lá todos os anjos que também odiavam os homens. Eu lhes contei sobre o inferno, crianças. Pietro meneou a cabeça, com força, pulando. — Aqui é o inferno. Johnny teve um sobressalto. Olhou para Pietro e pensou: nunca pensei nisso. Talvez a terra seja, de fato, a Montanha de Sete Andares. Se o reino dos céus está conosco na terra, então talvez também esteja o reino do inferno. Ele coçou o queixo e olhou pensativo para o rosto vivo de Pietro. Pegou o cachimbo e Jean o acendeu para ele. Jean fez essa coisinha com graça, jeito e importância. — O inferno — disse Johnny — é o lugar onde está todo o mal, onde vivem homens que nunca amaram a Deus, nunca quiseram conhecê-lo, que odeiam seus semelhantes e nunca se arrependem de seus pecados. É um lugar terrível. — Aqui — disse Pietro, prosa, olhando para os outros para ver se admiravam a sua perspicácia. Johnny fumava. A fumaça tornou-se uma nuvenzinha prateada, ao sol. — Mas os homens se lembravam do Jardim de onde Deus os haviam expulso. Então, fizeram jardins para si, no mundo. Reflexos do Jardim de que nunca se esqueceram, em suas almas. E é por isso que temos de ter um jardim para nós, bem aqui, para nos lembrarmos do céu e rezarmos para que Deus nos deixe voltar, um dia, àquele velho Jardim, que ainda nos aguarda. Sabem, meus queridos, Deus é misericordioso para nós.

Ele nos deixa termos flores e grama e árvores; manda o Seu hálito nelas e ordena que vivam para nós. A misericórdia de Deus não tem fim, nem o Seu amor. Muito embora escolhamos o inferno para nós. Eles passearam pelo quintal e Johnny lhes mostrou onde seriam seus jardins e as árvores, e as crianças ficaram cheias de assombro e entusiasmo. Chegaram a um canto da cerca onde encontraram uma trepadeira florescente de ipomeias, pequenas, rosadas e frescas. As crianças olharam para ela com alegria. — Chama-se a flor da manhã — disse Johnny, e olhou para o céu claro, em paz.

VIII A Sra. Burnsdale, resmungando, zangada, estava passando o único terno clerical de Johnny. — É uma vergonha — murmurou. — O senhor nunca pensa em si, Sr. Fletcher? — E por que havia de pensar? — perguntou ele, com calma. A Sra. Burnsdale sacudiu a cabeça grisalha. — Ora, mas que pergunta tola! — respondeu, impaciente. — Em todo caso, aí estão suas calças e o paletó no cabide. Deixe arejar um pouco. Ainda estão úmidos. — Ela parou. — Se o senhor não pensar em si, quem vai pensar. — Tem muita gente pensando em mim — respondeu ele. — Como a senhora, por exemplo. Ele subiu, assobiando, levando o terno com cuidado Espiou no banheiro e riu-se. Bom, lá estavam as peças e cor-de-rosa, sim. Ainda assobiando, ele se vestiu para o “jantar de boas-vindas” daquela noite. Ouvia os ruídos abafados das crianças na sala lá embaixo e de pratos na sala de jantar. Estava cheio de paz. Não havia mais nada de que ele precisasse na vida… se a congregação lhe permitisse ficar. El olhou pela janelinha redonda de seu quarto. O sol estava se pondo, todo lilás e um verde frio, acima dos telhados apinhados da cidade. Nós, protestantes, também deveríamos ter sinos de tarde, pensou. O que é mais consolador, mais terno, mais cheio da memória de Deus do que sinos ao pôr-do-sol Depois ouviu os sinos da tarde sobre a cidade, das igrejas católicas, suaves e tranquilizantes, antigas,-com amor, falando! de segurança com suas línguas alegres. O salão paroquial era o porão da igreja, e era ainda mais sem graça do que Johnny temera. O teto de madeira era baixo, e dele pendia uma única luz branca e ofuscante, mais própria para uma barbearia do que um salão paroquial Havia um lambri de cerca de 1,20 m nas paredes, em ripa estreitas e rachadas, pintado de um marrom-escuro enjoativo e a parede acima era pintada de um castanho desagradável. O piso, inteiramente despido, rangia quando se andava, mas estava limpo e encerado. Não havia sinais de que o salão fosse usado para outra coisa senão as reuniões. Parece que ninguém jamais pensara em torná-lo agradável para as crianças, nem em instalar equipamento para basquete ou artesanatos. Não havia qualquer indício de que algum dia se convertesse em um lugar para danças, a alegria da juventude. Havia uma comprida mesa de cavaletes sob a luz forte, e estava coberta com a melhor toalha de mesa da Sra. McGee, branca, reluzente e engomada, com guardanapos do tamanho de lençóis de bebê. Outra senhora tinha contribuído com os talheres de metal reluzentes, outra com os pratos alegres, camponeses, azuis e vermelhos, outra com as duas séries de castiçais. Outra mulher levara um grande vaso de zínias e outras flores de fim de verão, bronze, vermelho, amarelo, unia nota alegre e viva em toda aquela brancura. As cadeiras eram de dobrar e incômodas. Ali não havia fogão, e a Assistência Feminina tinha

levado a comida em panelas tampadas — o inevitável mas delicioso feijão assado, grossas fatias de carne de boi e presunto e língua, salada de batata, pão com manteiga, imensas tortas marrons e café em garrafas térmicas. Johnny foi apresentado oficialmente aos membros de sua congregação, que resolveriam se ele deveria ser expulso, com raiva, ou se poderia ficar. Senhoras grisalhas, algumas severas, outras melancólicas, umas gordas, outras baixas, umas coradas, outras pálidas, algumas com a expressão alegre, outras com olhos azedos e desconfiados. Todas mal vestidas, com grandes estampados veranis, colares de pérola de imitação e sapatos discretos. Os cabelos grisalhos tinham sido penteados em cachos firmes e ondas duras, ou antes, pensou Johnny, o cabelo tinha sido posto num molde e saído em volutas metálicas. Nenhuma das senhoras era insegura em suas atitudes, ou tímida. Eram muito seguras de si, e examinaram Johnny com um olhar crítico. Mulheres de cidade pequena, limitadas, das lhe lembraram, incomodamente, ás senhoras de Park Avenue. Os maridos estavam mais propensos a olhar para ele com tolerância e simpatia. Precisavam de um ministro. O Dr. Stevens dizia que aquele era o único ministro que lhes mandaria. Então, ficariam com esse ministro. Para eles, se não para as mulheres, era um silogismo muito simples. A incrível história da generosidade do Dr. McManus naquele dia tinha servido para dissipar parte da animosidade natural das senhoras por Johnny, devido às crianças “estrangeiras”. A Sra. McGee dissera, na sua série de telefonemas “Quem consegue que o Al dê um centavo sem que nós tenhamos de dar outro centavo é um operador de milagres. Portanto, vamos ser amáveis com o novo ministro. Eu o vi sabe, e embora ele pareça meio menino, fez uma impressão no A1… engraçado, mesmo. E ele tem uns lindos olhos azuis”. Pelo menos quatro das senhoras tinham filhas casadoiras e o fato de Johnny não ser um homem casado despertou seus interesses e esperanças. Mas elas sentiam que, de algum modo, ele as tinha traído, tendo adquirido aquela “tropa de estrangeiros”. Nenhuma moça sensata havia de querer se casar com ele — a não ser, claro, que se pudesse convencê-lo a se livrar das crianças. A hostilidade estava quase dissipada, quando elas o conheceram. O Dr. McManus, usando outro terno cinza-claro amarfanhado, um pouco menos manchado do que o anterior fez as apresentações, com sarcasmo. — Sujeito maluco que o Dr. Stevens nos mandou. Johnny esta é a Sra. Lovitt. Sra. Wolfe. Sra. Sherwood. Sra. Long Assistência Feminina. O Padre John Kanty me disse que tem o mesmo problema com as freiras e a Irmandade. Nenhum homem razoável pode se dar bem com mulheres. Esta aqui é a Sra. Krantz… As senhoras lançaram um olhar fixo e brutal ao Dr. McManus. As ligações dele com “aquele padre com o nome estrangeiro esquisito, e aquele velho rabino esquisito” sempre constituíam um motivo de afronta pessoal para elas. Acreditavam firmemente que essas relações tinham como único propósito aborrecer a congregação da Igreja do Bom Pastor. Elas se voltaram para Johnny e ficaram quase completamente derretidas. Alto, magro e magnético, em suas roupas clericais pretas e surradas, ele era bastante jovem para poder despertar-lhes o instinto maternal. Seu rosto forte, tão animado, tão moreno, tão brando, as comoveu. Aquele não era um fraco, com medo da congregação, ansioso por agradar e

acalmar. Em um homem e quando elas olharam dentro de seus olhos azul-escuro, e viram a força bondosa e o poder deles, e sentiram o vigor quente de seu aperto de mão, pelo menos a metade das senhoras estava conquistada. Os homens chegaram à conclusão de que, embora Johnny “não seja do nosso tipo”, parecia um bom rapaz, e nenhum maricas. Já não era sem tempo que as mulheres tivessem uma direção, pensaram, aprovando. Esse não era um ministro que seria dominado pelos membros femininos da congregação. Mas era bonito demais; todas as garotas iam persegui-lo, e todo mundo sabia os problemas que isso cria. No entanto, quem conseguia fazer do “velho Al gato e sapato.” era uma aquisição valiosa para a igreja. Johnny disse as graças com sua voz comovente: — Nós vos agradecemos, Pai, por Vossas dádivas generosas, e rezamos para ser merecedores delas. Pedimos que em todas as coisas podeis nos aceitar como Vossos servos em nome do Senhor Jesus Cristo. Amém. Para si, ele repetiu a oração a Deus para que fosse possível ficar naquela cidade feia e enfumaçada. Tudo dependia daquela noite, pensou, enquanto seu garfo passava pelo feijão e as vozes se alteavam cordialmente em volta dele, como uma nuvem de calor. Johnny sentiu aquela meia aceitação curiosa, quanto a ele, e começou a comer com mais apetite. Também sentia, com certa tensão íntima, os olhares demorados e sardônicos do Dr. McManus. O velho não o ajudaria, ele sabia. Cabia a ele. — Nada mau, este feijão. Mas por que não podemos tomar uma cerveja, hein? — reclamou o Dr. McManus. — O Padre John Kanty gosta de um bom copo de cerveja, e os almoços dele têm cerveja, e os piqueniques também. A cerveja ia muito bem com essa bóia. A Sra. McGee respondeu, mordaz: — Não, doutor! O senhor sabe perfeitamente que somos da UAMC (União Antialcoólica das Mulheres Cristãs). Todas nós da Assistência Feminina, quero dizer. Cerveja! Para que há de querer estragar uma boa comida? — Marjie — insistiu o Dr. McManus —, você ainda não ouviu falar das bodas de Caná? Pensa por um minuto que o Senhor transformou a água em suco de uva? Senhor ou não, Ele teria sido expulso de um casamento respeitável, por isso, sem conversa. Aquilo pareceu uma blasfêmia às senhoras, e elas lançaram ao Dr. McManus outro de seus olhares brutais combinados. Ele deu uma risada. Os maridos sorriam, sem jeito. Johnny olhou em volta da mesa e reprimiu um sorriso. — O que o senhor acha, Sr. Fletcher? — perguntou a Sra. Krantz, mulher do bombeiro. Ele hesitou, depois disse: — Não creio que haja na Bíblia alguma coisa que explique que Deus nesse dia tenha suspendido as leis naturais de fermentação. Os homens riram. O Dr. McManus deu uma risada esganiçada, encantado, e bateu na coxa, pesadamente. Ás senhoras assumiram ares severos e acusadores.

— No entanto — continuou Johnny, com uma expressão muito inocente — não há nada na Bíblia que diga que Ele não tenha feito isso. Eu, pessoalmente, gosto de suco de uva, e há muita gente que gosta. As senhoras sorriram para os maridos, triunfantes. O Dr. McManus tornou a rir. — Um diplomata! Um raio de diplomata de calças listradas! — ele se debruçou sobre a mesa, em diagonal, para Johnny, e brandiu o dedo possante na cara dele. — Não gosto de diplomatas. Quase todos os problemas do mundo são causados por eles. Andando por aí todos melosos, sorridentes, fazendo mesuras, dizendo sim para todo mundo e querendo dizer não em seus corações suntuosos, e com uma faca escondida na manga. Se começar a andar de mansinho por aí assim, meu filho, eu pessoalmente carrego suas malas para a estação e o chuto pelo vagão acima. As senhoras ficaram zangadas com isso e romperam num tumulto de exclamações. O Dr. McManus conservou uma expressão enigmática de taciturnidade diante desse ataque. Johnny, porém, sorriu para si. Os homens, tendo mais medo do médico do que tinham das mulheres, ficaram inseguros e se calaram. Começaram a se fazer perguntas. Um rapaz meio insinuante. A resposta dele à Sra. Krantz era meio traiçoeira, pensou o Sr. Schoeffel. Na véspera não parecera assim. Seria um radical? Talvez. Provavelmente todo a favor dos trabalhadores. Com certeza nem pensava naqueles que tornam possível aos trabalhadores trabalharem, de todo, e não podiam ter uma semana de trabalho de 40 horas, como operários de fábrica e de lojas. Depois, ele tinha estado na Europa e provavelmente se metera com todos aqueles comunistas de lá; também trouxe os garotos de um lugar remoto. O Sr. Dan McGee, homem de pequena estatura e delicado, de pouco mais de 50 anos, com uma coroa de cachos prateados encimando um rosto redondo e rosado com olhos muito pretos, perguntou-se: insinuante? Sim. Provavelmente foi treinado assim. Gente Insinuante, com instrução universitária e o modo de responder dele, em geral eram pessoas que não sabiam nada sobre o trabalho e seus problemas e desprezavam os trabalhadores. Nunca tomavam partido, nem lutavam pelo direito e pela justiça social. Reacionários, é o que eram. O presidente da mina local refletiu sobre os reacionários com bastante desânimo. Depois pensou no Sr. Summerfield, o abastado dono do jornal local, e ficou confuso. Olhou furtivamente para as mãos de Johnny e ficou surpreso. Mãos fortes, competentes, de trabalhador, cheias de força e decisão. O chefe de turma e os supervisores da mina estavam igualmente divididos quanto a Johnny. Ele iria agitar os homens? Denunciaria todas as greves, indiscriminadamente? Teria consciência social? Seria um desses rosados? Comunista, talvez? Fascista, talvez? Quem sabe ia se ligar com aquele maldito Summerfield, com seus jornais espalhafatosos. Talvez fosse do tipo que gosta de sociedade. Olha para as mãos dele; provavelmente já foi um desses operários obstinados. Dois dos supervisores, conhecedores das mãos dos homens, chegaram à conclusão acertada de que aquele era um homem que não era estranho ao trabalho manual, e, como o Sr. McGee, ficaram confusos. As senhoras, conforme notou o médico sagaz, examinando-as por sob suas sobrancelhas ferozes, eram quase unânimes quanto a Johnny. Gostavam dele, estavam começando a se interessar por ele; suas roupas velhas e surradas não escaparam a seus

olhos maternais. A ternura começou a brilhar em seus rostos cansados. Mas esperem, meninas, pensou o médico, com violência. O Sr. Krantz, o bombeiro atarracado e sólido, sentiu as interrogações masculinas em volta de si. Chupou os lábios gordos. Era negociante independente, tendo um pequeno negócio de empreitada de serviços de bombeiro. Mas nem sempre fora comerciante. Ele engoliu um bocado enorme de presunto, tomou um bom gole de café, enxugou os lábios e disse: — Pastor, o que acha desse problema de minorias de que se fala tanto? Johnny largou o garfo, com calma. Fixou os olhos atentamente sobre o bombeiro bem-humorado. — Minorias? — perguntou, num tom de assombro e perplexidade. — Acho que não estou entendendo. O que é uma minoria? Quer dizer, um partido político? O Dr. McManus rolou um naco de carne mastigado entre os malares inferiores e a bochecha e sorriu. Os homens trocaram olhares perplexos e as senhoras passaram a escutar com uma intensidade que alarmou o ministro. O Sr. Krantz fez um gesto de desalento. — Não, não me refiro exatamente a um partido político, se bem que acho que se possa chamar o partido perdedor de minoria. Não sei. A gente hoje ouve tanta coisa de urnas com votos falsos, e fraudes nas máquinas eleitorais. Não sei. Não, eu me reteria a esses grupos minoritários, como religiosos raciais e… hummm… igrejas e tal e o trabalho e capital e a grande indústria e profissões, professores e tal, e médicos e advogado e o pequeno comércio. Sabe. Minorias. Johnny cerrou as mãos na mesa mas falou com calma, apesar do brilho apaixonado nos olhos azuis. — Então, suponho que o senhor queira dizer que faz parte da maioria, Sr. Krantz, e não da minoria? — Bem, sim — respondeu o Sr. Krantz. — O senhor citou grupos minoritários, Sr. Krantz. E agora, pode me dizer a qual grupo, fora desse grupo, o senhor pertence? — Bem — começou o Sr. Krantz. Depois parou. Procurou, na sua cabeça, e se calou. A voz de Johnny, embora ainda insistente, estava mais bondosa. — Profissionais? Pequeno comércio? Certa raça? Certa igreja? Certa origem? — Bem — resmungou o Sr. Krantz. Johnny sorriu. Estava com a respiração um pouco apressada. — Acho que o senhor agora está pensando a qual grupo minoritário pertence, Sr. Krantz. — Ele virou-se para os outros homens. — E a que grupo minoritário os senhores pertencem? — A nenhum — respondeu logo o Sr. Wolfe, espantado. — Ou… — e ele também se calou.

— Exatamente — disse Johnny, recostando-se na cadeira. — Ninguém no mundo pertence a um grupo minoritário. Ninguém, tampouco, pertence a um grupo minoritário. Vocês são pessoas lógicas. Analisem a questão das minorias com o auxílio da lógica; pensem nessa questão por apenas um minuto. Verão, quase imediatamente, que é uma ilusão, uma mentira. Verão que a ideia das minorias foi inventada pelos inimigos dos homens, a fim de dividi-los, de provocar ilusões nãoexistentes sobre as classes e outras nações, a fim de fomentar a discórdia interna e externa. Esses inimigos só têm um objetivo: confundir, destruir, tomar o poder. Eles nos odeiam a todos. Fez-se um silêncio profundo no salão. Todos os garfos estavam parados; as mãos que erguiam as xícaras de café pararam no ato. Todas as testas estavam franzidas, todas as bocas apertadas, todas as cabeças abaixadas, pensando. O Dr. McManus fungou, alto. Ninguém olhou para ele. Os olhos de Johnny percorreram a mesa. Ele falou, com muita brandura: — “No princípio era o Verbo e o Verbo estava em Deus.” Logo, o Verbo, também significa lógica, razão como manifestada pela palavra. Usando a lógica, que está em Deus, sabemos que não há minorias. Usando o Verbo, que é de Deus, sabemos que não existem divisões reais entre os homens, apenas divisões maléficas, nascidas de mentes que giram no inferno. Eles então olharam para ele atentamente. Viram-no ali sentado, alto, e com uma nova majestade e autoridade, apesar da bondade vigorosa dos olhos azuis, apesar de sua juventude. — É o tipo de raciocínio teológico que não aprecio — redarguiu o Dr. McManus, observando bem os outros. — Deixe para lá, Johnny, que negócio é esse de inferno? Você não é o tipo de pastor que vai nos insultar aos domingos falando do inferno medieval, é? Você, um ministro moderno? O que é o inferno, afinal? — Ele piscou para a mesa, com um ar condescendente. — O inferno? — perguntou Johnny, pensando. — Claro que existe um inferno. O que ser moderno tem a ver com isso? Ser moderno recusa a ideia dos universos não descobertos, o mundo microscópico invisível, os poderes misteriosos da mente, que são invisíveis, as marés não identificadas das emoções humanas, as paixões do espírito que criaram civilizações e belezas e escolas de pensamento, e filosofias e culturas infinitas? Mas, se quisermos fatos concretos, nada disso existe, porque não é visível. Mas, sabemos que existe. “O inferno? — repetiu, depois de uma pausa demorada. — Por certo. E o que é o inferno? A total ausência de Deus. Um lugar, um estado de espírito, em que Deus não está. Pense nisso, por um minuto só. Um lugar em que Deus não está. Pense na angústia fria de um lugar assim, de um tal estado de. espírito; pense na raiva amarga e triste de um estado assim, o desespero sem fim, o ódio, a loucura. Isso é o inferno.” Ninguém lhe respondeu. O Dr. McManus olhava para ele, num silêncio ferrenho. “— E, no entanto — continuou Johnny — Deus desceu ao inferno. Nenhum pastor jamais respondeu por quê. Não com lógica, pelo menos. Ele teria ido lá, depois de ter

morrido na cruz, para avisar ao reino do mal que já não podia mais governar a terra? Ou… e acho que esta é a resposta mais razoável… teria ido lá para levar esperança aos desesperançados? A Sra. Wolfe, senhora fundamentalista, revoltou-se. Tossiu. — Sr. Fletcher, o inferno, segundo a Bíblia, é eterno. Johnny ficou muito sombrio. — Claro que é. Enquanto uma alma permita que seja. Ele deixou que eles ponderassem sobre isso um pouco. Aqui e ali uma fisionomia cansada de repente se desanuviou como se um raio de luz tivesse passado por ela. Então, pensou ele, com compaixão, aqui há alguns que desesperaram de se salvar. Ele achou que era chegado o momento de falar sobre e que tinha de falar. Disse então, e sua voz os tirou de sua meditação: — Agora que já terminamos o jantar, devo contar-lhe; uma coisa. Sabem que trouxe cinco crianças comigo, da Europa Mas não conhecem a história delas. Vou contá-la agora. E contou, com frases vividas e gestos eloquentes. Eles escutaram, fascinados, absortos. O horror apareceu nas fisionomias de algumas das mulheres; a reserva fez outras fazerem beicinho. Os homens se mostraram incrédulos, enojados, compreensivos ou constrangidos. Remexiam nos talheres; passavam os dedos pelo pescoço. Evitavam se olhar nos olhos. Um ou dois coraram. Mas, por mais que tentassem, não podiam escapar do rosto de Johnny, nem de seus olhos brilhantes. — E assim — concluiu ele — cá estão essas crianças comigo. Sou pai delas. Vou adotá-las. Já lhes dei meu nome, de antemão. Sou a única esperança que elas têm. O que fiz por elas está feito, e continuarei a fazer. Mas o resto é responsabilidade de vocês. A Sra. McGee, que estava vermelha de emoção e com os olhos cheios de lágrimas, disse, impulsivamente: — Sr. Fletcher, o senhor sabe que faremos o que pudermos. Senhoras — e ela se virou para as amigas —, podemos prometer isso ao Sr. Fletcher, não podemos? Nós mesmas vamos mais ou menos adotar as crianças. Vamos vesti-las. Vamos pô-las na aula de catecismo. Civilizá-las. Ser mães para elas. As senhoras menearam as cabeças, violentamente, concordando com sua presidente. O Sr. Krantz pigarreou. — Talvez possamos organizar um pequeno fundo, pôr alguns dólares todo mês no banco, em nome delas, para a instrução delas. Hein? Os homens hesitaram e depois concordaram, com relutância. O Sr. McGee foi o último a menear a cabeça. Ainda estava pensando em trabalho e capital, que, dizia o pastor, na verdade não existiam. Teria de pensar sobre isso, naquela noite, na cama. Era muito confuso. A Sra. Wolfe falou: — Ouvi dizer que as crianças vão dos cinco aos 12 anos, Sr. Fletcher. Sou assistente

do supervisor da aula de catecismo, o meu marido. Terei um interesse pessoal pelas crianças. — Estava-lhes falando sobre o conceito artificial das minorias. Creio que concordam comigo. Mas, devo reconhecer, há diferentes escolas de pensamento, um mundo subjetivo. Nada disso é perigoso a não ser que permitamos que o seja, a não ser que lhes demos uma existência objetiva. Ah, pensou o Dr. McManus, feliz. Agora é que vem a revolução. Johnny estava corando. Olhou para eles com uma tristeza séria. Ele olhou para eles aflito, rezando para que o acompanhassem. É uma gente simples, insular. No entanto, Deus tinha feito essa gente assim entender, com Suas parábolas. Eles podiam ser lentos, mas no final chegavam a um entendimento sólido. — Quando formamos nossas opiniões subjetivas, que fazem parte da variedade infinita da alma humana, a realidade objetiva, cometemos um profundo erro lógico. Aqui está uma rosa. Eu a chamo de vermelha; todos concordamos que é vermelha. No entanto, se nesse momento tivéssemos o poder de olhar para essa rosa com os olhos de outros, poderíamos ver uma cor que não chamamos de vermelho. Quem nos pode dizer que a cor subjetiva que vemos é objetiva? Quem ousa nos dizer que estamos errados? Suponhamos que os outros resolvam que somos perigosos por chamarmos essa cor de uma cor inteiramente diferente, e, assim, nos oprimem? Como pode uma alma, que é subjetiva, ser obrigada a se conformar com ilusões objetivas? Eles o acompanhavam intuitivamente, mas também estavam perplexos. Johnny virouse para o Dr. McManus, que estava sorrindo com um ar maldoso. — Doutor, o senhor opera várias vezes por semana. Há de concordar que, embora a estrutura do corpo humano seja essencialmente a mesma, em suas várias partes é inteiramente única e diferente da de qualquer outro corpo humano. O senhor há de concordar que nem um único ser humano reage a uma situação, seja mental ou física, com a mesma intensidade ou do mesmo modo que outro. — Está bem, concordo — respondeu o Dr. McManus, acendendo outro cigarro. Ele piscou para Johnny. — Foi uma bela preleção que você deu. Continue. Johnny suspirou. Estava começando a ser dominado por uma sensação de exaustão. Fechou os dedos um instante e rezou pedindo ajuda. — Nenhuma folha, árvore, montanha, mundo ou homem é igual a outra folha, árvore, montanha, mundo ou homem. Aí está a beleza da criação de Deus. Nenhuma uniformidade, nenhum conformismo. A uniformidade é a morte da alma. E é por isso que temos tantas religiões aparentemente… notem, digo aparentemente… diferentes no mundo. Mas na verdade, não são diferentes. São apenas aspectos, entre os inúmeros aspectos, de Deus, seja cristão, judeu, maometano, budista ou outra coisa que seja. Nunca houve senão um Pastor. Cabe a nós, espiritualmente, sermos um Rebanho. Ele então se levantou e colheu todos os olhos em cima de si. — E é por isso que devo lhes contar uma coisa. É por isso que, em toda a justiça para com vocês, tenho de lhes contar uma coisa que não sabem e aguardar sua decisão, se

querem me conservar aqui como seu pastor. Eles se espantaram. Empertigaram-se em suas cadeiras. — Ora — balbuciou o Sr. Long —, pensei que isso tudo já estivesse resolvido. Johnny sorriu, com pesar, e sacudiu a cabeça. — Creio que não. Deixe contar-lhes. Já estou com essas crianças há quase um ano. Já escutei os pesadelos delas. Escutei as poucas indicações que deram, sem saber, sobre suas origens. — Respirou fundo. — Tenho um respeito inabalável pela individualidade do homem, por suas raízes individuais. As crianças, mais que tudo, têm de sentir suas raízes, pois sem elas, não têm, uma segurança objetiva. — Assim é que descobri que Kathy e a pequenina Emilie têm raízes protestantes. Descobri que Jean e Pietro tiveram raízes católicas. E Max, o mais terrivelmente prejudicado de todos, é judeu. Todos esses termos são subjetivos, mas as crianças têm direito a suas raízes, a ter um quadro de referência, a saber que, embora tenham uma crença diferente, só têm um Pastor, um só Deus. O Sr. Krantz explodiu: — Um é judeu? Dois são católicos? — Ele estava apavorado. — Quer dizer — perguntou o Sr. Lovitt, indignado —; que o senhor, um ministro protestante, está pretendendo deixar que três dessas crianças não sejam protestantes? Não acredita na sua religião? Um zunzum de indignação e afronta encheu o salão. Todos os homens se viraram para seus vizinhos, ruidosamente. As exclamações se elevavam, como um enxame de mosquitos. As mãos se agitavam, gesticulavam. Johnny esperou, calado, e o Dr. McManus viu o seu rosto entristecido. — Não podemos admitir isso — falou o Sr. Krantz, resolvido. — Claro que não — concordou o Sr. McGee. — É ridículo — disse o Sr. Wolfe. — Nem pensar nisso — era a Sra. Sherwood, com nova indignação. — O que é que a congregação ia dizer? — É um insulto — disse a Sra. Williams. — Um insulto à nossa igreja. De repente eles pararam. Viraram-se para o Dr. McManus, com um ar acusador. — O senhor não disse uma palavra! — exclamou a Sra. Sherwood. — E o senhor que é presidente do conselho da igreja. Mas o Dr. McManus olhou para Johnny com um ar zombeteiro. Estendeu as mãos. — Bom, esse é o fim de sua preleção subjetiva, menino. É bom começar a arrumar as malas. Ele se virou para os outros, que estavam corados. — Eu sabia que ele não servia para nós. Disse isso a ele. Imagine só o que pensou de

nós! Insultou-nos, pensando que éramos seres humanos decentes, com uma compreensão e simpatia decentes! Ele chegou a pensar que éramos diferentes das outras pessoas. É um insulto, é o que acho. Todos ficaram muito quietos. Só seus olhos duros piscavam. O médico deu uma risada, baixinho. — Então? — perguntou Johnny, quando o silêncio ficou opressivo demais. Os homens se viraram uns para os outros, sem falar, e as mulheres também. — Não queremos um pastor que ache que somos melhores do que os outros — continuou o Dr. McManus. — Queremos um pastor que saiba que somos mentirosos e que mentimos descaradamente quando falamos da Fraternidade de Deus e a Irmandade do Homem. Queremos alguém que não nos importune, não nos obrigue a praticar a nossa religião de tolerância amor e bondade. Pois sabemos que não temos essa religião. A Sra. McGee, presidente da Assistência Feminina, ficou vermelha. Virou-se para o médico, furiosa. — Somos cristãs, sim! — exclamou. — São mesmo? — perguntou o Dr. McManus. — Quem disse isso? Ainda não vi nenhum sinal disso. Um sujeito velho e sábio disse: “Só houve um Cristão, e Ele foi crucificado”. É verdade. Leiam os jornais; pensem na História. Cristãos? Claro que não somos, e nunca fomos. Nenhum filho da mãe de nós. Ele acendeu mais um cigarro, enquanto os outros o olhavam com uma raiva envergonhada. — E é por isso que quero demolir esta igreja. Tenho uma grande hipoteca nela. Precisamos de um estacionamento por aqui. Boa renda. Sempre é útil, mais rendas. Então. Vou demolir esta igreja. Antro de hipocrisia. Detesto a hipocrisia mais do que qualquer outra coisa no mundo. — A igreja do seu pai! — exclamou a Sra. Schoeffel, em voz fraca. O Dr. McManus meneou a cabeça, triste. — Isso mesmo. Pensando bem, talvez ele fosse um cristão. Ou o mais próximo que pôde ser. Mas ele não havia de querer que perdurasse uma igreja que não fosse cristã, portanto, ela vai abaixo. — Se está pensando que pode mandar em nós… — disse a Sra. Sherwood, com lágrimas nos olhos. — Não estou mandando, madame. Só estou dizendo a verdade. — Está, sim! Está dizendo que se não concordarmos com o Sr. Fletcher quanto à religião das crianças, o senhor vai demolir a igreja. Ele sacudiu o dedo para a pobre mulher, muito irritado. — Eu não disse nada disso! Não me importo a mínima se ele e os moleques dele ficam aqui ou não. Francamente, jamais quis que ele viesse para cá, e não o quero agora. Ele e o cristianismo dele! Deixa todo mundo muito incomodado. Voto contra ele. — Ele

olhou para os outros, devagar, com atenção. — Bom? Qual o seu voto? Johnny apertou os olhos e a exaustão fugiu dele. Ele ouviu um farfalhar em volta de si, murmúrios, grunhidos, sussurros, agitação, cadeiras arrastadas. — Vamos, votem — continuou o médico, irascível. — Ainda tenho cinco doentes para ver no hospital hoje. Um voto contra. Sou eu. — Mas e o resto da congregação? — perguntou o Sr. Wolfe. — Bem, o senhor está no conselho. E as senhoras são da Assistência Feminina. Conseguiram seus postos aqui sendo um pouco mais espertos… mas só um pouco mais espertos… do que o resto dos fi… quero dizer, carneirinhos burros. — O médico deu de ombros e puxou uma nuvem de fumaça do cigarro. A Sra. Sherwood a abanou, zangada. Johnny abriu os olhos. Olhou para cada rosto, um olhar penetrante, mas brando e compadecido. As senhoras engoliram em seco. Os homens assoaram os narizes. Então, o Sr. McGee gritou: — Sim! — e bateu com o punho na mesa com tanta força que os pratos saltaram. — Sim! — gritaram os outros, homens e mulheres. Eles sorriam, brilhavam com alegria e afeto, os olhos cheios de resolução. Voltaram seus sorrisos para Johnny, e estenderam as mãos por cima da mesa, para apertar a mão dele. — Vamos ajudar — disse o Sr. Krantz. — Diabos, sou cristão, não sou? — É — respondeu Johnny —, somos todos. — Olhou para o Dr. McManus e repetiu: — somos todos. Uma espécie de exultação encheu as senhoras e senhores. Estavam brilhando de prazer e amor. Cada qual olhava para o outro, como que descobrindo um estranho encantador, que merecia ternura e compreensão. Mãos se tocavam, encabuladas. As lágrimas corriam pelas faces das senhoras, lágrimas de alegria e exaltação. Johnny levantou-se e eles se levantaram com ele, numa unanimidade simples. — Deus, Nosso Pai — rezou ele —, olhai para vossos filhos com amor, pois fomos livrados das trevas, do ódio, da ignorância. Abençoai-nos, Pai, e nos dai força e coragem e aceitai a nossa contrição e nossas penitências. Sede misericordioso para conosco, Deus Todo-Poderoso, e a nossa Rocha numa terra cansada. Em nome do Senhor Jesus. Amém. Depois o pessoal ficou em volta dele, procurando se aproximar dele, procurando consolo nele. As mãos tocavam em seus ombros, seus braços, suas mãos. Ele nunca tinha visto tanta alegria na vida, e seu coração sentiu-se humilde. Concedei-me a graça de conduzir vossas ovelhas, ó Deus, rezou ele, intimamente. Ele os acompanhou até a porta. O Dr. McManus estava a seu lado. Abaixou-se para cochichar depressa para o velho, com um sorriso: — Quem é o hipócrita agora? — perguntou, rindo um pouco.

IX A chuva tinha parado, mas o sol não estava brilhando. O prenuncio do outono estava no ar, como uma névoa triste, embora as árvores ainda tivessem o seu verde esforçado e o pequeno gramado em volta da reitoria do Reverendo John Kanty Krupszyk tivesse o brilho venenoso da grama artificial. Johnny via a rua vazia, desolada na penumbra do outono, mais cedo, através das compridas janelas da biblioteca tão espantosamente grande. Ele chegou à conclusão sagaz de que aquela sala era não só a biblioteca, como ainda escritório e sala também, e no teto havia leves marcas mostrando que divisões tinham sido demolidas. Não obstante, a biblioteca era imponente, todas as paredes forradas de livros encadernados em vermelho, azul, marrom e preto, o assoalho quase nu, escuro e bem encerado, as cadeiras poucas mas cobertas com almofadas de couro. A secretária do Padre Krupszyk sem dúvida era sua, particular, e ele se orgulhava dela. De tampo de couro, de madeira quase negra, tinha pegadores dourados e os lados entalhados. Johnny estava sentado perto da secretária, e o padre por trás dela. Jean e Pietro estavam de pé, um de cada lado de Johnny, que estava segurando as mãos deles, com força. Eles olhavam para o padre com um interesse respeitoso, embora feroz, em guarda contra um estranho. O padre, por sua vez, compreendendo o medo e a insegurança deles, só lhes lançou sorrisos breves e não lhes falou logo. Estava escutando o jovem ministro, os olhos cinzentos muito cavados pregados no rosto de Johnny. Conforme dissera o Dr. McManus, o padre tinha pouco mais de 30 anos e o físico alto e pesadamente musculoso de um atleta. Seus movimentos eram firmes, bem coordenados e sem qualquer nervosismo. Tinha uma cabeça grande, louro escuro, um rosto grande e rosado e uma boca forte. Seu aspecto geral era de um padre volumoso e forte, com mãos largas, de camponês, e pés muito grandes. Mas quando a pessoa olhava dentro de seus olhos firmes, que viam tudo, via uma imensa espiritualidade, resolução e resistência, não muito temperadas pela brandura, e inteiramente despidas de ilusões. — Então — disse Johnny — eu os batizei… condicionalmente. Mas tenho certeza de que são católicos. O padre sorriu. — Condicionalmente — repetiu, e as sobrancelhas louras se mexeram. — É uma expressão católica. Mas, como me disse, o senhor foi capelão na guerra e um de seus amigos era padre. — Parou, examinando Johnny. Tinha escutado a longa história em silêncio e às vezes seus olhos se tinham apertado, olhando para o ministro, na dúvida, e por vezes com descrença. — Fico contente que o seu conselho e a Assistência Feminina tenham acabado concordando com o senhor, mas, sabe, vai ter muitos problemas com o resto da congregação. — Tossiu. — Especialmente com as mulheres. As mulheres têm naturalmente bons corações, com relação às crianças, mas podem ser muito… difíceis. Como Johnny, ele fumava cachimbo. Um grande jarro de palmas-de-santa-rita, de muitas cores brilhantes, estava sobre a mesa dele. Ele olhou para as flores, pensando. —· Muito… pouco convencional. Um ministro criar dois de seus filhos adotivos

como católicos. As freiras vão falar sobre o fato de eles morarem em sua casa; vão falar sobre o nosso pequeno orfanato. Sabe, Sr. Fletcher, faz parte da natureza humana desconfiar da natureza humana. Vou ter de falar com elas com bastante energia, mostrando que o senhor não precisava ter feito nada disso, e poderia ter criado as crianças do seu jeito. Isso as fará se mostrarem ainda mais desconfiadas do senhor, por algum tempo. Vão pensar qual será o seu verdadeiro objetivo. — Examinou Johnny atentamente, mas Johnny só sorriu. — Conheço bem a natureza humana. Basicamente, é boa, depois que se atravessa a camada de desconfiança e oportunismo. “Venho lidando com as pessoas há muito tempo. A primeira coisa em que pensam, quando se oferece alguma coisa a elas num puro espírito de bondade e generosidade cristã, é o que se chama de ‘golpe’. Esse é um bom comentário, depois de dois mil anos de cristianismo. Um cristão é quase tão estranho nesta terra quanto um marciano. É preciso a gente se habituar a ele. Enquanto isso, a ideia é que o outro quer dar um golpe, e que isso se revelará com o tempo. Aliás — acrescentou o padre, com franqueza — eu mesmo pensei nisso, quando o senhor veio, me ver hoje.” — Por quê? — perguntou Johnny. O padre deu de ombros. — Já lhe disse: sou apenas um ser humano. Fiquei me perguntando: o que haverá por trás disso, de fato? Um ministro protestante que tem dois filhos diz que tem um compromisso de honra de educar esses filhos em outra religião, especialmente a católica! Não seria mais lógico pensar que ele havia de querer que fossem protestantes? Tenho certeza de que qualquer padre e ministro se fariam a mesma pergunta, com dúvidas acerca de suas verdadeiras intenções. — O padre sorriu de novo e de repente seu sorriso era bondoso e um tanto assombrado, e ele completou, com ironia: — Sabe, encontramos tão poucos cristãos, no pleno sentido da palavra, não é? Johnny sorriu de volta. Afagou com carinho o braço trêmulo de Pietro e o menino espantado se acalmou. — Não sei, não — respondeu, pensativo. — Já conheci muitos cristãos que nem sabiam que eram cristãos. Como o Dr. McManus, por exemplo. E, infelizmente, conheci cristãos muitos enfáticos que na verdade eram pagãos, sem coração, nem compreensão, nem compaixão, nem bondade. O padre meneou a cabeça. Abriu uma porta na secretária e tirou uma garrafa de vinho e dois cálices. Encheu-os com cuidado, a testa franzida, pensando. A testa dele era queimada de sol e muito larga e estava descascando, pois a pele rosada era clara. Ele deu um cálice de vinho a Johnny e olhou-o sério. — A um cristão — saudou, e bebeu o vinho. — Faço o que posso, mas nem sempre é o suficiente — falou Johnny, com uma depressão súbita. O padre lançou-lhe um olhar de pena e tornou a menear a cabeça. Largou o cálice, virou-se para os meninos com um ar de autoridade e girou a cadeira. — Venham, meninos — chamou. Os meninos ficaram rígidos ao lado de Johnny, e não se moveram. Mas ele não

insistiu. Pousou neles os olhos penetrantes e depois estendeu as mãos numa ordem branda, esperando com paciência. Então Jean olhou para Johnny e o ministro sorriu. Aí, resolvido, Jean deu um passo à frente e pegou a mão vibrante de Pietro, puxando-o devagar para junto do padre. Mas eles pararam um pouco afastados das mãos dele. Johnny falou com calma: — Este é o Padre Krupszyk, meninos. Já lhes falei hoje de manhã. Abbé, Jean. Padre, Pietro. — Padre! — exclamou Pietro, lançando ao padre o seu sorriso radioso. Deu um pulinho e Jean olhou para ele, severo. — Pare — ordenou. Pietro continuou a sorrir e olhou para o padre com uma espécie de malícia respeitosa. O Padre Krupszyk riu-se. Disse a Jean: — Na terra de Pietro os padres sempre ficam contentes quando as crianças pulam de alegria ao vê-los. Às vezes os padres brincam com elas, jogando bola, apostando corrida ou ajudando-as a colherem flores, ou se ajoelhando com elas nos santuários de beira de estrada. — Como o papai — disse Jean, perdendo parte de sua austeridade. — Como o seu papai —·confirmou o padre. Continuava de mãos estendidas e então as crianças se aproximaram dele, devagar. Ele pôs uma das mãos em cada ombro e, olhando para os rostos deles, a sua fisionomia se abrandou com compaixão e amor. Falou com Pietro em italiano: — Pequenino, sou seu amigo. Nunca tenha medo de mim. — Com Jean, falou em francês: — Sou seu curé, seu confessor, seu amigo, meu filho. Os meninos olharam para ele, intrigados, procurando nos lugares quase esquecidos de suas mentes para compreendê-lo. Depois sorriram. O padre levantou a mão, impulsivamente, e então, para espanto de Johnny, pois ele achava que eles não se lembrariam, os meninos se ajoelharam imediatamente, abaixando as cabeças, e o padre os abençoou. Para Johnny, aquilo foi tão comovente que ele engoliu em seco. De repente Jean se lembrou do sinal-da-cruz, e o fez; Pietro, olhando-o, levantou depressa a mão, sem segurança, e o imitou. Quando as crianças se levantaram, o padre passou os braços em volta delas e as abraçou brevemente. Depois abriu uma gaveta na secretária e puxou dois rosários de contas pretas e crucifixos de prata e os deu aos meninos. Eles os examinaram com uma curiosidade intensa. — Sabem o que é isso? — perguntou o padre a Jean. O menino franziu a testa, os olhos claros procurando à distância. Girou uma conta grande na mão e então, com uma voz de sonâmbulo, disse, em francês: — Pai Nosso… Pietro gritou, a voz estridente, tocando numa conta menor: — Madre… Madre!

Ele pulou de novo, no seu entusiasmo. Agarrou o rosário com ambas as mãos e o apertou contra o peito magro, feliz. O padre o olhava, com afeição. Dirigiu-se a Johnny: — Não há dúvida de que são católicos batizados, com algum ensino católico, interrompido pela loucura da guerra e os campos de concentração. Pietro correu para Johnny, mostrando o rosário. — Vê! Vê! — exclamou. — Vittorio tinha. Pietro tinha. Perdeu. Johnny o pôs no colo e Pietro se aninhou junto dele, rindo de prazer. Johnny alisou seus cachos pretos. O padre perguntou a Jean: — Primeira Comunhão. Sabe o que é? A Mesa do Senhor… Jean ficou calado. Mais uma vez, seus olhos pesquisaram à distância. Depois, com aquela voz estranha e distante, murmurou: — O Pão. O Sangue. — Sim — concordou o padre e olhou para Johnny. — Então, ele já deve ter feito a Primeira Comunhão, há muito tempo. — Suspirou. — Mas Pietro, o pequenino, não fez, eu acho. Devia ser muito pequeno. Parece que o irmão lhe ensinou a rezar o terço, no campo de concentração. O pobre rapaz, bom e devoto, que também devia ser muito jovem. Há ocasiões — acrescentou o padre, a voz endurecendo — que, a despeito de minha vontade, e quando penso no que aconteceu com o mundo, e o que provavelmente ainda há de acontecer, fico amargo. Ele apertou um botão na secretária e depois de alguns momentos entrou na biblioteca uma freira idosa, acompanhada por uma mulher de meia-idade, de avental. Johnny se levantou. — Esta é minha irmã, Sra. Sakowski, que também é minha governanta. Ela é quem praticamente governa a paróquia e a mim, também. — A Sra. Sakowski, que era tão grande quanto o irmão, lançou a Johnny um sorriso reservado, e ao padre um de advertência. — E esta é a Irmã Sylvia. É diretora de nossa escola. Como a escola abre na semana que vem, achei que ela devia conhecer as crianças. Irmã Sylvia, este é Jean Fletcher e Pietro Fletcher. Talvez a senhora queira levá-los para mostrar a escola e a igreja também. A freira tinha um rosto alegre e olhos castanhos que brilhavam por trás de óculos. Era pequena e gorducha e maternal, e os meninos foram logo para junto dela. Ela pegou as mãos deles e os levou para fora, acompanhada pela Sra. Sakowski. — Essas duas! — falou o padre, em tom confidente. — Quando não é uma, é outra me descompondo. A Irmã Sylvia é um personagem e tanto. Ela se ressente quando eu sequer piso naquela sua preciosa escola, e tenho de andar com muito cuidado. Parece que acha que a escola é sua propriedade particular. E minha irmã pensa que eu pertenço a ela. As duas não concordam em nada a não ser que eu sou um tolo que tenho de ser conduzido, dirigido e mandado. — Eu sei como é — disse Johnny, compreendendo. — Tenho uma governanta, a Sra. Burnsdale.

O padre lançou-lhe um olhar de comiseração, e os dois se riram. O padre Krupszyk falou da cidade. Era evidente que detestava o Sr. Summerfield. — Um canalha — falou, com a voz fria e enfática. — Usa aqueles seus jornais para provocar a dissenção, o ódio e as lutas nesta cidade, e no país também. Escreve os editoriais numa linguagem simples e emotiva, para que todos compreendam bem. Visa ao homem do povo. Parece que tentou comprar uns jornais em Nova York, Filadélfia e Pittsburgh. Mas Deus foi misericordioso e… misteriosamente… ninguém quis vender para ele, embora um ou dois estivessem praticamente falidos. Assim, ele se concentra em Barryfield. “A princípio, parecia querer ser meu amigo. Faz pose de cristão não convencional, um não-conformista, como se intitula. Convidou-me para visitá-lo, e eu fui. Depois ele começou a falar sobre ‘a pobre minoria polonesa de sua congregação’. Ora, a minha gente é americana; sabem que seus antepassados eram poloneses. Nunca lhes ocorrera que fossem uma minoria maltratada. Mas o Sr. Summerfield os convenceu! Sim, senhor. Depois convenceu-os de que estavam sendo explorados pelos donos das minas e das fábricas. O caráter do polonês não é taciturno; tem seus lados brincalhões e alegres. Mas agora, o meu povo ficou emburrado. Tentei desfazer o mal que Summerfield tinha feito mas as pessoas gostam, por algum motivo perverso, de pensar que são pobres-diabos, mal constituídos. De um certo modo, que ainda não entendi, isso insufla o ego deles, os faz sentirem-se importantes.” Ele bebericou o vinho, meditando, e os olhos pareceram afundar mais em sua cabeça. — Então, agora as crianças de minha paróquia formam turmas e brigam com os vizinhos e há encrencas sem fim. É isso que os Summerfields desejam, claro, e agora vamos ter problemas trabalhistas, tudo devido ao mal original. Os poloneses são bons trabalhadores, não são arruaceiros. Se tiverem, um salário decente e um tratamento razoável, eles fazem um bom trabalho por um pagamento justo. Agora, estão sendo “oprimidos” pelos patrões. No entanto, tive algum sucesso com eles. Conheço o- Sr. McGee, presidente do sindicato, e ele ficou tão alarmado quanto eu. Trabalhamos juntos para convencer o povo de que as minas lhes estão pagando tanto quanto podem, e os homens não querem fazer greve. O primeiro round foi nosso. Mexeu o cálice na secretária, sério, a cabeça abaixada. Um raio de sol pálido bateu em seus cabelos, que por um instante brilharam como ouro escuro. — Summerfield me detesta. Nos editoriais, insinua claramente que “os pastores são falsos pastores” e que nós tratamos de manter o povo pobre, dócil e explorado. Estamos combinados com os ricos donos das minas. Queremos manter nosso povo na ignorância. Sabe, eu lhe disse exatamente o que pensava dele e exatamente quais os motivos dele e exatamente quem ele é. Um homem pode suportar qualquer coisa, menos ser desmascarado. Eu disse que lutaria contra ele. Sabe o que ele fez? Escreveu ao meu bispo. Johnny falou, irritado: — E o que o seu bispo escreveu a ele? O padre sorriu.

— Isso é uma coisa que nunca saberei, claro. Mas agora Summerfield está atacando o meu bispo em Filadélfia. Tem um amigo que é redator-chefe de um dos jornais de Filadélfia, e de vez em quando escreve um editorial para esse jornal. Não assinado por ele, claro. Mas reconheço o estilo. A Irmã Sylvia voltou com as crianças, tocando-as na sua frente, com competência. Ela lançou um sorriso amável a Johnny. — São meninos muito bonzinhos. Gostaram da escola. O Jean me disse, Sr. Fletcher que o senhor vai tomar um professor aposentado para ensinar a eles, por uns meses, até poderem entrar para as séries certas. ·— Os olhos dela brilharam sobre Johnny com certa reserva. — Conheço uma pessoa que serve. Johnny respondeu logo: — Obrigado, Irmã. Eu estava mesmo esperando que a senhora me oferecesse isso. A cautela desapareceu dos óculos. — Teremos muito prazer em ajudar os meninos — fez uma pausa. — São bemeducados — acrescentou, com certa condescendência. — Tenho de felicitá-lo. Não sei como conseguiu. O Padre Krupszyk riu-se e a freira logo olhou para ele, severa, como quem olha para uma pessoa frívola. Ela fez um afago severo nas cabeças dos meninos, que, para espanto de Johnny, suportaram humildemente. Também pareciam um tanto subjugados. A freira falou, em voz precisa: — Eles sabem que têm de se comportar, com todas as outras crianças. E nada de tolice. Não é, meninos? — Sim, Irmã — disse Jean, num tom que Johnny nunca tinha ouvido. Johnny encheu-se de admiração pela freira idosa. Começou a se sentir também como um colegial, quando ela dirigiu a atenção para ele. — E eles têm de vir todas as manhãs para a aula de catecismo. Antes das aulas do colégio. Não sabem de nada disso. — Ela olhou para Johnny com um ar reservado. Pietro gritou, excitado: — Papai é bom, bom, bom! — e olhou para a freira, furioso. Ela, muito hábil, retribuiu o olhar em espécie. — Modos, modos — disse, com frieza, e Pietro se acalmou logo, para novo espanto de Johnny. — Vocês têm um bom papai — continuou. — Devem obedecer a ele e respeitálo e amá-lo. Mas eu sou sua professora. Lembre-se disso, filho. O desalento encheu os olhos brilhantes de Pietro e ele correu para Johnny, buscando proteção. Johnny o abraçou. — A Irmã Sylvia tem razão, meu bem. Ela quer ajudar você a ser um verdadeiro menino americano e, se você não obedecer, ela não o pode ajudar. Está vendo? Jean disse, aborrecido: — Pietro é um bobo.

Ele olhou para a Irmã Sylvia, procurando aprovação, mas a freira olhou para ele com severidade. — Isso é uma coisa má que você disse, Jean. Lembre-se de pedir perdão por isso quando for se confessar. Jean, o selvagem, o feroz, não respondeu mal. Apenas meneou a cabeça e murmurou: — Sim, Irmã. Johnny ficou mais assombrado do que nunca. A freira lançou aos quatro homens na biblioteca um olhar demorado, desconfiado e altivo, de advertência, e depois se foi, deixando atrás de si um ar de contrição apropriado. — Eu não lhe disse… um verdadeiro algoz — falou o padre. — Ouvi dizer que ela às vezes se refere a mim, com desdém, como “o menino”. Isso é para me reduzir à insignificância. Estavam todos meio melancólicos, pensando na Irmã Sylvia. Quando Johnny se preparou para partir, o padre lhe apertou a mão com efusão, tendo desaparecido toda a reserva. — Acredito que foi Deus quem o mandou para cá, Sr. Fletcher, para servir a Seus grandes desígnios. Precisamos do senhor. Mas devo preveni-lo de que vai ter o seu bom quinhão de problemas. Sabe, é um cristão. Johnny ficou mais animado no caminho para casa. As coisas estavam mesmo andando bem. Ele começou a cantar animadas canções do exército, para prazer dos meninos. Eles se juntaram a ele nos coros alegres, batendo palmas, entusiasmados, ao ritmo. Os rostos deles assumiram expressões de meninos normais e até os olhos furtivos de Jean pareciam mais jovens. A voz de Pietro era suave, pura e forte. Johnny escutou atentamente a beleza daquela voz de menino. Um cantor, pensou. De repente sua mente ficou ofuscada com uma visão de si, mais velho, grisalho e orgulhoso, sentado na Metropolitan Opera para assistir à estreia de Pietro na Aída. Ouviu a ovação da plateia e seus olhos se turvaram, antecipando. Ele procurou não pensar na operação de Jean, que seria na próxima semana. O sol tinha saído, o sol de princípio de outono. Havia um cheiro de folhas queimando em algum lugar, mas isso só podia ser sua imaginação, pensou Johnny. Afinal, era só o fim de agosto. Não obstante, as sombras sob as árvores, o sol nos lados das casas e nos telhados, a sensação no ar, o movimento de vento leve sugeriam o outono e falavam do inverno. As casas pareciam mais fechadas, mais isoladas, as ruas mais desertas. Johnny saiu um pouco de seu caminho para mostrar aos meninos a casa do Dr. McManus. Ficava em um terreno amplo, com cerca de ferro, no meio de casas menores. Os gramados estavam cortados rente, as árvores isoladas. Além disso havia a casa imensa, vitoriana, sem graça, o caminho de cascalho varrido e proibitivo. Johnny achava que nunca tinha visto uma casa tão feia, toda de torreões de madeira, janelas em curva e varandas sombrias. Pior ainda, a casa tinha sido pintada de um amarelo açafrão com

remates marrom-escuro. Não havia flores, mas só arbustos escuros e reluzentes, abraçando as varandas. Ninguém se mexia no terreno e não havia um sinal de vida por trás daquelas janelas estreitas e polidas, com cortinas de rendas. — Boa casa — disse Johnny, caridosamente. — Horrorosa — respondeu Jean, já confiando na sua opinião pessoal. — Não é bonita — acrescentou Pietro. Jean encostou a cabeça no ombro de Johnny. — Boa casa, bom médico, bom homem. — É — respondeu Johnny, comovido. Então, Jean também estava pensando na operação. Johnny apertou a mão do menino, com força. Homens estavam voltando para casa do trabalho, homens aflitos, de escritórios, com suas pastas chatas, ou homens com suas marmitas, diligentes. Johnny olhou para eles, voltando para casa, dirigindo devagar. Eram sua gente, esses homens de caras pálidas ou manchadas, esses homens com seus problemas, suas esperanças, suas dúvidas, suas incertezas, seus sofrimentos, seus pequenos prazeres, sua ambição pelos filhos, seu amor pelas esposas trabalhadeiras e esgotadas. De terno surrado ou de macacão eram a sua gente. Eram um só. Ele olhou para cima, para as montanhas lilases, frias e brilhantes no sol da tarde. Viu os grupos de casas grandes ali, altivas e reservadas, meio escondidas pelas árvores. E aqueles também são minha gente, pensou. Viu a casa branca do Sr. Summerfield. Respirou fundo. E ele também é um de nós, disse consigo. No dia seguinte, ia levar Max ao rabino. Já tinha marcado hora. O rabino parecera perplexo, se bem que sua voz fosse cheia e bondosa. Não era a voz de um velho, pensou Johnny. Ele passou pela igreja, a igreja dele, e ela lhe pareceu ainda mais triste do que antes, com sua torre fina. Por sobre a cidade enfumaçada, os sinos começaram a tocar. A torre da Igreja do Bom Pastor estava muda. Talvez não houvesse sinos… mas claro, devia haver. Johnny começou a planejar tocaios sinos ao anoitecer. Seu primeiro sermão, no domingo, talvez. A necessidade de sinos reconfortantes. — Olhe! — exclamou Pietro, apontando. — O doutor! O carro do Dr. McManus, a comprida limusine preta com o chofer, estava parado diante da pequena casa paroquial, toda reluzente com seus cromados, Johnny ficou contente. Pensou em quais os novos artigos da “lista” da Sra. Burnsdale estavam sendo entregues pessoalmente. Parou seu carro modesto atrás da limusine e saltou, acompanhado pelas crianças. Talvez, pensou, podia convencer o médico a jantar com ele e as crianças. Devia tanto ao velho feroz, com suas mãos sujas e olhos furiosos. Ele e os meninos subiram correndo a escadinha. Entraram às pressas no hall pequeno e Johnny gritou: — Olá! Olá! Já chegamos! Mas só o silêncio lhe respondeu. A luz do sol pálido se filtrava pelas janelas, acentuando a pobreza da sala, que não se alegrava nem com o belo e caro tapete verde,

presente do Dr. McManus. A Sra. Burnsdale tinha desencaixotado os livros de Johnny, mas eles estavam caídos na estante comprida e malfeita, na parede. — Olá — disse Johnny, de novo. E então alguma coisa o acometeu, com um pressentimento horrível, um peso no coração. Ele entrou correndo na sala de jantar e depois na cozinha. Uma panela cheirosa estava fervilhando no novo fogão branco, mas a cozinha estava vazia. Johnny procurou controlar-se. Havia alguma explicação, e muito racional, para a ausência da Sra. Burnsdale e Kathy, Emilie e Max. Talvez tivessem ido a uma loja local. Mas onde estaria o Dr. McManus? — Olá! — gritou Johnny, correndo para a escada, sentindo os joelhos cedendo, num pesadelo, ouvindo o paletó preto bater em seu corpo. — O que é? Em nome de Deus, o que é? Onde estão as crianças? — exclamou Johnny. Já ia subir voando quando ouviu um passo em cima. O Dr. McManus apareceu, grotescamente maciço e largo, o chapéu na cabeça. Ele olhou para Johnny, calado, e depois começou a descer devagar. O Dr. McManus não respondeu. Pesadamente, fazendo a escada tremer sob seu passo sombrio, ele desceu. Chegou ao pé da escada e então olhou para Johnny e seu rosto estava mau. — Sente-se e pare com esse raio de berreiro — falou, com uma voz punitiva. Parou e olhou para os rostos assustados de Jean e Pietro. A boca torceu-se, num movimento espasmódico. Johnny agarrou o braço dele, a voz rouca ao falar: — Aconteceu alguma coisa. Conte-me. Não me faça esperar assim. — Diga a esses meninos para irem brincar no quintal dos fundos — pediu o médico, livrando-se da mão de Johnny. — Andem, vocês dois. Fora, já disse. Parem de olhar feito idiotas. Jean, você é um menino esperto, leve o Pietro para o quintal. O quintal, eu disse, e não a rua. Não a rua! Uma das crianças estava ferida, provavelmente por um carro! Johnny gemeu. Os garotos se agarraram a ele. Mas ele falou com toda brandura e calma possíveis: — Jean, faça o que o Dr. McManus disse. Eu lhe digo se… alguma coisa… aconteceu. Mais tarde. Por favor, Jean, meu filho. Jean olhou para ele e viu o pavor dele. Sorriu, animando-o. — Ah, OK, papai. Vamos brincar. Pietro vai brincar comigo. Ele pegou a mão de Pietro e carregou o menino para fora, a despeito de seus gritos, um misto de curiosidade e medo. Mas Johnny só olhava para o Dr. McManus. Seus olhos aguçados de repente viram manchas de sangue nas mangas do paletó do velho. Sangue novo. — Max? — perguntou, a voz fraca. — Emilie? Kathy? A Sra. Burnsdale? Carro? — Não — respondeu o Dr. McManus, e sua voz esganiçada estava carregada de ódio. — Não foi um carro. Uma arma mais antiga. O ódio humano, a bestialidade humana. Sente-se bem aí. Vai precisar.

Um suor frio espalhou-se pelo rosto de Johnny, reluzindo na luz enfraquecida. Ele engoliu, pois a água salgada lhe entrara na boca, numa onda enjoativa. O médico estava de pé diante dele, as pernas curtas e troncudas abertas, as mãos nos bolsos. O velho olhava para ele, duro. — Eu lhe disse, eu lhe avisei, Johnny. As pessoas são pessoas; cães são cães. A mesma coisa. A história se espalhou da Assistência Feminina pela vizinhança. A sua paróquia. A Sra. Burnsdale e eu ainda não conseguimos a história inteira. As meninas estão bem; isto é, estão no quarto delas. É o Max. — Max — repetiu Johnny, a voz fraca. Max, com os cabelos secos, em picos, os olhos perdidos, sonhadores, o rosto vazio, o pequenino Max com seus gritos pelo pai, de noite. — O que aconteceu com Max? — A Sra. Burnsdale deixou as meninas e Max darem uma volta pelas redondezas. Uma coisa comum, sensata. Conhecer o lugar em que estão morando; ideia normal. Só que as pessoas não são normais. As pessoas são uns porcos. Malditos! — acrescentou, o médico, e o esganiçado de sua voz falseou, como se ele chorasse por dentro. — Max — rezou Johnny. — Max está… ? — Não, não está morto. Ainda não, em todo caso. Não podemos movê-lo, nem leválo para o hospital. Tenho de avisar a polícia daqui a pouco. Ainda não tive tempo. Tive de trabalhar ligeiro. Ei, você já é um homem, filho, e não me vá desmaiar, e eu não lhe vou trazer água nem sais para cheirar. Escute! Mas ele pôs as mãos poderosas nos ombros de Johnny e os apertou. — O Max vai precisar de você, filho; portanto, não banque a mulher. Está precisando de você agora, na verdade. “Não sei bem o que aconteceu, e nem a Sra. Burnsdale sabe. Então, os garotos saíram para olhar o lugar, aquela menina ajuizada, Kathy, tomando conta de Max e do bebê. Só crianças, andando pela rua, encabuladas. E aí apareceram os outros garotos. Ah, já tinham sabido de você e as crianças, pelas mães! A Sra. Burnsdale olha pela janela e pensa: bem, que simpático, os garotos vieram brincar com os seus. Então, volta para a cozinha. “E foi só, até que ela ouviu as meninas gritando. Uns cinco minutos depois. Então ela corre para a porta, e lá está Kathy ajudando Max a subir a escada e entrar em casa, e o bebê, Emilie, correndo e pulando e gritando como se estivesse louca, pobrezinha. E a Kathy tenta controlá-la. Mas é para o Max que a Sra. Burnsdale olha. Max, com o queixo à direita e parte do pescoço abertos, sangrando. Max, parecendo já morto. Uma faca.” — Ah, Deus ;— exclamou Johnny, apertando as mãos cerradas na testa. — O que aconteceu, o que aconteceu? O Dr. McManus continuou: — Ainda não sei de tudo. A menina, Kathy, não consegue falar direito. Não quero insistir. Só sei o suficiente para saber que algum demônio de menino grande começou a chamar Max de judeu imundo. Duas vezes o tamanho de Max. Talvez Kathy tenha dado no garoto; talvez Max tenha começado a chorar ou gritar. Em todo caso, outros garotos começaram a bater nele e lhe dar pontapés. E aí o garoto grande… Não sei como a Sra.

Burnsdale conseguiu o nome dele, mas conseguiu. Conheço a família dele — continuou o médico, enquanto Johnny gemia e gemia. — O pai fabrica material dentário. O nome é Bradford. Mora a umas quatro ou cinco ruas daqui. As mãos nos ombros de Johnny se cerraram em punhos. — Não se preocupe. Vamos pegar o Sid Bradford. Um garoto de seus 14 anos. Já devia estar num reformatório há muito tempo. Queridinho da mamãe. Macacão bruto. Débil mental, é o que sempre digo. Sempre são. Já causou muitas encrencas antes disso. Max apenas se meteu no caminho dele. Olhe aqui, não se encolha assim na cadeira, Johnny, como se tivesse levado um pontapé no estômago. Mas o médico puxou uma cadeira para junto de Johnny e sentou-se ao lado dele, muito perto, as mãos nos joelhos abertos. Sacudiu a cabeça monolítica. — Malditos, todos eles — disse ele, devagar, repetindo, com ódio. — Max — sussurrou Johnny. — De todas as crianças… Max. Max, que não poderia suportar isso. Max, que estava começando a se esquecer. — Ele olhou para o Dr. McManus. — É… grave? — Dei 20 pontos no queixo e pescoço. A faca por um triz não acertou na veia jugular, mas pegou uma artéria. A Sra. Burnsdale é uma mulher esperta, inteligente. Chamou-me imediatamente; pegou-me quando eu saía do hospital. Levou o menino para cima e pôs compressas no ferimento. Salvou a vida do menino. Se isso é consolo — concluiu ele, melancólico. — Chamei uma enfermeira e pedi uma transfusão. O menino não pode ser removido. Não por causa do ferimento, mas… — Mas? — suplicou Johnny. A sala estava rodando para ele, cada vez mais escura. O médico vacilou. — Não seria bom levá-lo para o hospital, longe de você. Ele precisa de você. E as meninas também. Max ficaria louco se você não ficasse com ele, quase o tempo todo. Agora, está sob o efeito de um sedativo. Mas, embora eu lhe desse o máximo, ele não adormeceu. Acho melhor você subir para vê-lo. Ou não pode? Johnny começou a se levantar da cadeira, mas aquela angústia o fez cambalear. O Dr. McManus pegou o braço dele, rudemente. — Olhe, você já viu coisa pior do que isso. O garoto está quieto, pelo menos, mas fica olhando para a porta e falando aquelas besteiras dele em alemão. Quer você. Ele ajudou Johnny a subir a escada. Via que a porta do quarto das meninas estava fechada. Ouviu a Sra. Burnsdale cantando uma canção de ninar, em voz rouca, e o ranger de uma cadeira de balanço. Mas nenhuma voz de criança lhe falou, no silêncio total da casa. O telefone começou a tocar, com insistência, mas ninguém o ouviu. Alguém tocou a campainha da porta da rua, mas ninguém se importou. A porta do quarto do ministro estava aberta, e Johnny, com ajuda da parede e do médico, se aproximou dela. Depois ouviu um farfalhar conhecido e fraco, os sussurros de Max no pavor das noites. Ele se endireitou e respondeu, a voz límpida e forte: — Sim, Max! É o papai.

Ele foi andando decidido para a porta, com passos fortes. A lâmpada da cabeceira tinha sido acesa. Max estava deitado na cama de Johnny, mirrado, pequenino, como que se escondendo, sem travesseiro sob a cabeça. Os cabelos estavam em picos, sobre o lençol branco; o rosto, da cor da morte, estava virado para a porta. Mas seus olhos castanho-claro estavam alucinados de desespero e tormento, a boca aberta, sussurrando. Um menino tão pequeno, uma criança tão indefesa, tão inocente, tão destruída por um mundo assassino, louco. Johnny ficou ali no vão da porta, e de repente conheceu o ódio, pela primeira vez na vida, um ódio tão monstruoso, tão avassalador que ele sentiu a ânsia de matar. Muitas vezes ele se perguntara como seria o desejo de matar; agora compreendia. Era um fluxo de sangue, um negrume diante dos olhos, as mãos se curvando em garras. — Firme — instou o Dr. McManus, com compaixão. — Papai, papai? — murmurou Max, levantando uma das mãos. O rosto dele enrugou-se e ele começou a chorar, sem fazer barulho. O pescoço estava envolto em ataduras. — Papai, bist du? Johnny foi para junto dele e se ajoelhou ao lado da cama. Pegou a mão errante de Max e a apertou bem. Beijou a face cavada com ternura. Sorriu, encorajando o menino. Mas, pensou… e agora? Como é que ele vai poder continuar depois disso, quando estava começando a confiar nas pessoas? Nunca há de se esquecer do que os homens lhe fizeram antes, e do que lhe fizeram agora. Está perdido, perdido para sempre. Pela primeira vez na vida de Johnny seus pensamentos não foram logo, instintivamente, para Deus. Havia trevas e silêncio, onde antes a Luz esperava, segura e brilhante, inabalada. Uma porta de ferro se fechara entre ele e Deus, e sua mão a fechara na sua raiva desesperada, seu ódio e sofrimento. Ele não sabia que tinha deitado a cabeça ao lado da de Max, até sentir que lhe tocava na face, de leve, procurando, cegamente. Max o tinha tocado, procurando-o. A luz rosada da lâmpada barata encheu os olhos de Johnny com uma névoa. Ele sentia a cabeça imensamente pesada, mas flutuando. Ele a sacudiu e por um momento terrível não sabia onde estava, nem quem era. Um vazio total o envolveu. Então ele viu o rosto de Max, muito junto dele. Max estava sorrindo um pouco, um sorriso de criança. Mas os olhos de Max estavam límpidos, como nunca tinham sido antes, e cheios de piedade e compreensão. Johnny olhou para ele, e a fúria de seu coração começou a ceder, em assombro e admiração. — Max? — murmurou. — Papai — disse Max, falando com uma clareza dolorosa —, papai não chorar. Papai não ficar… raiva. Os meninos… eles não sabem o que fazem… Os músculos do rosto de Johnny se retesaram, achatando-se. Quem já tinha dito isso? “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.” Ah, sim, mas sabiam, sempre sabiam! O Dr. McManus ficou ao lado da cama, a cabeça baixa, o rosto escondido. Calado, pôs a mão no ombro de Johnny.

O rosto de Max estava iluminado, como se estivesse possuído de uma exaltação, algum novo conhecimento. Um pouco de cor apareceu em seu rosto. A mão dele ficou mais quente dentro da de Johnny. E então ele apertou os dedos de Johnny, como um pai aperta a mão de uma criança amargurada. — Eles não sabiam o que estavam fazendo… Isso eu sei, papai. Suspirou. Fechou os olhos e dormiu. — Você agora já pode deixá-lo — sugeriu o Dr. McManus, a voz apertada. — E alguma coisa me diz que não vai ter de se preocupar com esse garoto, com os pesadelos dele. Não vai mais tê-los. Já sabe demais… agora. Nunca se sentirá perdido. Max dormiu, na luz da lâmpada, em paz. Johnny levantou-se e tapou o rosto com as mãos. A porta de ferro se abrira. A Luz brilhou, mais viva e triunfante do que nunca. Perdão, Pai, disse ele consigo. Foi ao quarto das meninas, onde uma lâmpada branca pendia do teto. A Sra. Burnsdale, aquela mulherzinha intrépida, se balançava sozinha na cadeira de balanço. Estava cantarolando uma canção de ninar, com firmeza. Num canto do quarto, Kathy e Emilie estavam encolhidas juntas, os braços da mais velha em volta da menor, apertando-a bem. Quando Johnny entrou, os olhos de Kathy voaram para ele, e eram os olhos de que ele se lembrava em Salzburgo — ferozes, com ódio, apavorados. Ela cobriu o rosto de Emilie com os braços, protegendo-a; os lindos cabelos louros estavam desgrenhados. Emilie choramingava como um gatinho assustado; encostou-se mais a Kathy, agarrando-se a ela. Os bonitos vestidos de algodão das meninas estavam manchados de sangue. — Kathy? — chamou Johnny. Ela não respondeu. Continuou a olhar para ele com o medo estranho e assustado de um animal, e sua ferocidade. — Ora — perguntou o Dr. McManus —, o que essa menina ajuizada está fazendo aí no chão, que nem um coelho? A nossa menina ajuizada. A nossa Kathy. — Nunca as vi assim — respondeu a Sra. Burnsdale, cansada. — Nem no primeiro dia. Falo e falo com elas, e é como se não me ouvissem nem conhecessem. — Ela mostrou a Johnny um arranhão comprido e feio no seu braço gorducho. — Kathy fez isso, coitadinha, quando eu quis abraçá-la… depois que ela trouxe o Max para dentro. E a pequena Emilie não compreende, a não ser que as coisas voltaram a ser o que eram. Johnny pegou o braço arranhado e depois ajudou a Sra. Burnsdale a se levantar. Puxou-a para junto das crianças. Kathy recuou, apertando Emilie bem junto dela. O silêncio se interpunha entre eles como uma barreira. Johnny levantou o braço da Sra. Burnsdale e mostrou o arranhão a Kathy. Ela olhou, umedeceu os lábios e dirigiu aquele olhar selvagem a Johnny. — Você fez isso à Sra. Burnsdale, Kathy? — perguntou Johnny. — A Sra. Burnsdale que gosta de você, que penteia seus cabelos e cozinha para você, e lava para você, e toma conta de você? Kathy? Você fez isso? Kathy soltou um ruído único, um grunhido horrível. Johnny se lembrava dele. Então, Kathy se retirara de novo, no seu medo e desconfiança. Recuara para o lugar aonde Max

nunca mais iria. O ferimento não aparecia na sua carne, mas no espírito. O Dr. McManus aproximou-se, agachou-se e contemplou Kathy. — Essa é uma menina que sempre pensei que fosse ajuizada. — A voz dele quase não estava mais esganiçada. — Vou-lhe contar uma história. Uma vez uma menina como você, Kathy, nasceu para mim e minha mulher. Mas minha mulher morreu. — Ele parou, tossiu e pigarreou. ·— E depois a menina morreu. Tinha cabelos louros como você, Kathy, e olhos azuis como os seus. Pensei que você tivesse vindo para ser a minha filhinha; se ela vivesse, seria igual a você. Ou talvez não. Não seria tão burra. Os olhos de Kathy tremeram, ao olhar para o médico. — Minha filhinha se teria lembrado de como o papai dela gostava dela. Não teria machucado ninguém, como você. fez, e está fazendo agora. Teria confiado no pai dela. O rosto de Kathy, em geral tão rosado, estava muito branco e parado. Johnny disse: — Max está bem, Kathy. Está muito melhor. Nunca mais vai ter medo. Sabe, ele confia em mim, e sabe que eu o amo, e sabe que a… que o… menino que fez aquilo é doente. Aqui na cabeça. E que não era culpa dele ser cruel. Alguma coisa o fez ficar assim. Ele precisa de nossa piedade. Uma expressão esquisita, ladina, passou pela cara de Kathy, e ela apertou os olhos. — E na Europa, também? As pessoas estavam doentes? Piedade por eles também? — A voz dela era baixa e sabida. — É, Kathy. É, Kathy — disse Johnny, olhando para ela, sério. Os braços convulsos se afrouxaram em volta da pequenina Emilie e os olhos da menina espiaram para fora, fixando-se ansiosos em Johnny. — Papai? — perguntou ela, lutando para se livrar. Mas Johnny repetiu para Kathy, num tom mais grave e profundo: — Sim, Kathy. Novamente a menina mais velha ficou calada, Estava umedecendo os lábios repetidamente. Não estava mais olhando para Johnny: olhava para o chão e olhava para dentro de si. Quando Emilie se livrou, Kathy não fez um gesto para prendê-la. A pequenina levantou-se aos tropeções e correu para Johnny, os braços estendidos. Ele a pegou nos braços e a apertou contra si e os cabelos compridos da menina esvoaçavam em volta dela. Então Kathy soltou um grito fraco e angustiado e as lágrimas lhe encheram os olhos. Ela se levantou de um salto num movimento rápido. Mas não correu para Johnny. Correu para a Sra. Burnsdale, agarrou o braço dela, soltou outro grito ao ver o arranhão que fizera, e depois começou a beijá-lo vezes e mais vezes, soluçando. A Sra. Burnsdale abaixou-se e beijou a cabeça da menina. — Pronto, pronto. Não tem importância o braço. Não foi de propósito, foi?

Mas Kathy estava soluçando, agarrando o braço com remorsos. — Doente da cabeça! Doente da cabeça! Como o menino! — Ela parou de repente, como que abalada. Virou-se para Johnny, depressa. — Como o menino! — exclamou. — Como na Europa! — É, querida — respondeu Johnny. Kathy sorriu, um sorriso brilhante, os olhos azuis e redondos cintilando. Foi para junto de Johnny e pegou a mão dele. Pôs-se nas pontas dos pés para beijá-lo. Depois correu para o Dr. McManus e o beijou também. — Sou sua filha, depois de ser filha do papai. — Bem, vai ter de agir melhor do que antes — resmungou o médico e afagou os cabelos desgrenhados dela, sem jeito. — Pensei que tivesse mais juízo. Minha filha. A Sra. Burnsdale lembrou-se de repente: — Ora, pelo amor de Deus, e o ensopado no fogo! Kathy, desça já para me ajudar. Olhe, já está escuro lá fora. E a mesa nem está posta. — É — respondeu Kathy, e acompanhou a mulher para fora do quarto. Os outros as seguiram, Johnny carregando Emilie, que tinha começado a bocejar. Max ainda estava dormindo, em paz. Jean e Pietro estavam esperando na sala modesta. Pietro encolhido numa poltrona, assustado, os olhos fixos. Mas Jean estava muito calmo e sério. Disse a Johnny: — As pessoas telefonaram. Sentem muito pelo Max, dizem. Contaram do Max. Johnny parou. Olhou bem para Jean, com medo. Mas Jean sorriu com tristeza. — Então, papai, começa de novo, é? Johnny tocou no ombro dele. — Jean, nunca parou. Nunca há de parar. Até que as pessoas saibam sobre Deus. Jean pensou bem naquilo, os olhos claros pensativos. Depois meneou a cabeça. — É, sei. É o mundo. É. — Então sorriu, sem tristeza. — Mas não tem medo. Não como o papai. Virou-se para Pietro e disse, severo: — Venha, lavar as mãos e pentear cabelo e ajudar Kathy. Tem trabalho. O Dr. McManus pigarreou. — Não precisa mais se preocupar com esses guris. Humm… alguém lhes deu uma lição hoje, e nunca se esquecerão.

X Só quando estava no meio do “povo” é que Lars (“Sueco”) Swensen, que não era sueco, usava uma linguagem chula, o tipo de linguagem que ele e tantos outros consideravam aceitável pelos “trabalhadores”. Ele sabia perfeitamente que os trabalhadores eram, em sua maioria, gente jovem que tinha tido instrução secundária completa e até universitária, em muitos casos, e que uma linguagem errada ou chula lhes era ofensiva. No entanto, ele funcionava baseado no que chamava de “sedução pela lisonja”. Parecendo “rude” e “tosco” a esses trabalhadores ele lhes dava a feliz convicção de que eram superiores a ele, a despeito de sua fortuna conhecida, de modo que eles o ouviam com carinho. Além disso, ele estava na casa dos 50; para eles, representava a geração mais velha, “desprivilegiada, que não tinha tido as vantagens deles. Paradoxalmente, eles se irritavam com os país por desconfiarem desse defensor das massas; gente mais velha, diziam entre si, era ignorante demais para poder compreender. Swensen utilizava sua sedução para lisonja de um modo ainda mais sinistro. Estava conseguindo convencer dezenas de milhares de rapazes e moças que’ uma educação acadêmica não era necessária às massas, mas que seus filhos se ajustariam melhor num mundo tecnológico se lhes fossem ensinados ofícios e vocações exclusivamente manuais. Afinal, ele mesmo não era um homem de sucesso? E nunca tivera mais do que cinco anos de estudo elementar. Ele era tosco; ele se fizera por si. Por meio de uma luta sem fim, saíra do cadinho do anonimato. — Teria vencido antes — dizia ele, com seu belo sorriso — se tivesse tido uma dessas educações profissionais. E, por falar nisso, o que vocês estão fazendo por seus filhos, nas escolas? Ora, bem aqui em Barryfield (ou em Lexington, ou Filadélfia ou Nova York ou Chicago ou Scranton ou Pittsfield ou Buffalo ou Detroit ou Utica ou Trenton, Portersville ou Greensburg) não tem um décimo das escolas profissionais que precisam para seus filhos! Educação liberal! Diabo, isso é para os professores, médicos e advogados e essa gente! Dêem aos seus filhos uma educação de modo a poderem usar as mãos, e serem alguém. Uma vez, falando numa grande reunião de sindicato em Detroit, ele falara sobre a dignidade do trabalho mão-de-obra. — Peguei isso de um professor — disse. — Mas tem um som bom, né? Claro. Mãode-obra. Os reacionários não gostam da mão-de-obra, e são boas mãos sujas. É por isso que vocês têm suas escolas profissionais. Tudo isso fazia parte do plano de estratificar, congelar e imobilizar o povo americano em classes. O trabalho começara anos antes, antes da Primeira Guerra Mundial. Estava indo muito bem. Pela primeira vez no seu fluxo de vida robusto e vital, onde um homem era hoje um trabalhador e amanhã supervisor de uma usina siderúrgica, ou onde um obscuro estudante de física numa cidade pequena hoje era um famoso cientista alguns anos depois, o povo americano estava começando a pensar em si como em grupos, minorias e, o mais perigoso de tudo, classes, e a ter a ilusão de que, como grupos, minorias ou classes, tinham de pensar segundo os sofismas dessa ilusão.

O “sueco” Swensen morava num apartamento de cobertura de um luxo extravagante em Nova York, coisa mantida cuidadosamente fora dos jornais e do conhecimento de qualquer sindicalista honesto e, claro, dos trabalhadores. Ele dizia: — Bem, eu moro num apartamento bonzinho em Nova York; é a minha sede. Mas durmo em qualquer lugar. O que importa, em todo caso? O mundo é meu lar. O Sr. Lars Swensen era um homem importante demais para perder tempo. Quando ele aparecia em algum lugar, para estar com um de seus associados, é que o assunto era vital. Lorry Summerfield, na cabine telefônica da pequena farmácia perto do escritório do pai, enxugou as mãos úmidas e depositou as moedas necessárias para sua ligação para Nova York. Estava com medo de que o irmão, Barry, não estivesse em casa nessa quente tarde de sábado, e sentiu-se descontrair ao ver que ele ia atender à chamada. Ela se inclinou para a frente, ansiosa. — Barry! Swensen está aqui de novo… com ele. Eu o vi entrando… deve ser importante. A voz do irmão, de repente tensa, lhe respondeu. — É. Ele andou procurando uma porção de jornais, em todo o país. Desta vez, não se está concentrando nos grandes jornais nacionais, só as publicações populares. Ainda não consegui ter informações, pois o tipo de jornal que segue as sugestões dele não é do tipo que dê informações, — Ele deu uma risada, breve e dura, muito semelhante à da irmã. — Veja o que pode conseguir para mim, Lorry, e me avise. Ponho na minha coluna “O Vigilante” no Star de Nova York, na semana que vem. Por falar nisso, a circulação do Star subiu de 100 mil, e isso é boa notícia. Legal, mana. A “mana” saiu da cabine. A loja estava fresca e limpa, e ela hesitou, olhando para o balcão onde serviam refrigerantes. O proprietário a cumprimentou afetuosamente, mas seus olhos mostraram curiosidade. Ora, por que seria que a Srta. Lorry Summerfield usava tanto o telefone da farmácia, quando tinha um escritório tão bom e grande ao lado do pai? As telefonistas fofocavam, claro. — Uma soda, oferta da casa, Srta. Lorry? — perguntou ele, saindo de detrás do balcão e estalando os dedos para o menino que presidia às delícias geladas. — Não, obrigada, Jim — respondeu Lorelei Summerfield. — Estou com pressa. A edição de domingo, amanhã, sabe. As coisas estão zunindo, como sempre. Lembrei-me de que tinha de dar um telefonema urgente e não pude esperar. — Claro — disse o homenzinho gorducho, depressa. Tinha servido a essa moça as delícias especiais em matéria de sorvete desde que ela era criança. Ficou olhando quando ela saía. Bem, não era da conta dele. Era uma bela moça, a despeito daquele nome bobo posto pela mãe mais boba, com aqueles vestidos bobos “estampado de arte” e echarpes de gaze arrastando e brincos esquisitos. A menina tinha toda razão, aos cinco anos de idade, de insistir em dizer que seu nome era Lorry, e não Lorelei, e o nome perdurara, por 22 anos. Por que seria que uma moça tão linda nunca se casara? Tinha todos os predicados,

não? Não estava “encalhada” em Barryfield. Passava mais tempo em Filadélfia e Nova York e na Europa do que na sua cidade natal, como correspondente do pai. Boa fotógrafa, também. Ele tinha visto alguns trabalhos dela na Life e outras revistas. Mas nada do que ela fotografava era tão interessante, lindo ou empolgante quanto ela mesma. Lorry Summerfield foi andando apressada pela rua curta para o belo prédio moderno em que estava localizado o Press de Barryfield. Os transeuntes a acompanhavam com os olhos, e alguns dos olhos não eram muito simpáticos. Boa demais para Barryfield, é? E todas aquelas coisas sobre ela nos jornais de Filadélfia e Nova York. Sempre dizendo que estava noiva de alguém com um nome importante, e nunca se casando. Ela bebia muito, diziam. Mau gênio, também, nunca fazendo caso de ninguém nas ruas por onde passava levantando poeira com o seu Cadillac grande e reluzente, o nariz para cima, a expressão desdenhosa. Não era como o “velho” dela, amigo de todos. Ela o odiava, diziam, e ele era tão bom para ela, deixando que trabalhasse como uma de suas redatoras. Provavelmente tão ruim quanto o meio irmão, que tomara o nome do padrasto quando a terrível primeira mulher do coitado do Mac Summerfield, divorciada dele, se casara de novo. Barry Lowell, era como se chamava, e ninguém sabia onde ele estava, a maior parte do tempo. Tal e qual a irmã. O nome Summerfield não prestava para ele! Lorry, o lindo rosto cinzelado, pálido com o calor, subiu correndo a escada atapetada da entrada particular e abriu em silêncio a porta de mogno louro. Olhou para o hall quadrado, com o piso de mármore branco e preto. Nele havia duas portas, uma dando para os escritórios suntuosos do pai e outra para o dela. Tudo era à prova de som; ela não ouvia nada. Abriu a porta de seu escritório particular, correu para a sua mesa e sentou-se. A seda turquesa do vestido de verão se agarrava ao seu corpo comprido e gracioso com uma umidade incômoda, e as meias pareciam invólucros de metal pegajoso em suas pernas excepcionalmente lindas. Tirou os sapatos pretos para deixar que o ar refrigerado fresco soprasse em seus pés. Começou a tremer, quando o calor de sua pele foi soprado dela. As gotas d’água em seu rosto ficaram frias. Ela o enxugou com lenços de papel. Abrindo uma caixa de cosmético que guardava à mão numa gaveta da secretária, olhou-se no espelho um instante. O rosto oval, um pouquinho comprido demais, tinha o tom e a textura de marfim, inteiramente sem cor salvo pelos grandes olhos inclinados da cor do vestido e a boca amarga, embora voluptuosa. Tinha a cara do pai, e a detestava, como o detestava havia anos. Também tinha os olhos dele, e seu nariz comprido e fino, o queixo pontudo e liso. Havia manchas como ferimentos na pele delicada sob os olhos, as marcas de um desgosto desesperado, de insônia. Ela passou as mãos frágeis sobre os cabelos louros muito lisos, puxados para trás e enrolados num coque perto do alto da cabeça. Depois encolheu-se na poltrona e ficou olhando para o vazio, sombria. De qualquer modo, tinha de entrar no escritório do pai. Quando Swensen estava lá, ele nunca queria ser incomodado. Ela olhou para a secretária para ver se alguém tinha posto ali alguma coisa de importância suficiente para justificar que ela entrasse no escritório do pai sem ser anunciada. Mas ainda era muito cedo. Junto do seu mata-borrão só havia o jornal da manhã. Cada vez mais aflita, ela o pegou e olhou para as colunas. De repente, parou. Na segunda página à direita, havia uma coluna mencionando “um ataque a uma criança, Max Fletcher”, por um jovem criminoso desconhecido. O menino tinha levado uma facada,

dizia a polícia, durante uma “briga de criança”. Era um dos cinco filhos adotivos do novo ministro da Igreja do Bom Pastor, na Rua Malone. O repórter do Press se interessara pelo fato de que Max e seus “irmãos e irmãs” eram todos refugiados trazidos para este país pelo ministro, que fora capelão do exército. Os pais eram desconhecidos, mas eles tinham sido prisioneiros de vários campos de concentração na Europa, “vítimas do recente horror nazista”. Max, diziam, só tinha 11 anos. A família chegara havia apenas três dias e estava morando na casa paroquial com o pai adotivo. Davam os nomes das outras crianças: Jean, Pietro, Kathy e Emilie. Interessante, pensou Lorry Summerfield. John Fletcher. O ministro, John Fletcher! Em algum lugar, em alguma ocasião, ela já ouvira aquele nome. Ele teria sido condecorado por bravura, talvez? Ter-se-ia destacado de algum modo? Ela franziu a testa, pensando. De certa maneira, aquele nome a comoveu estranhamente; sentiu um calor desconhecido, um desejo urgente de se lembrar. Releu a história. Um homem de cerca de 30 anos. Pedira à polícia para não levar em custódia o menino que atacara seu “filho” Max, mas a polícia entregara o menino às autoridades da delinquência juvenil. A Igreja do Bom Pastor… na Rua Malone. Um bairro tão pobre! Ela o conhecia bem. Aí ela se lembrou de outra coisa. Era a igreja do “Tio Al”! Ele era o único homem em Barryfield que o pai dela odiava e cortejava abertamente. A moça ficou toda empolgada. O querido Dr. Al, com sua boca malvada, os~ olhos selvagens, as mãos grandes e ternas, sua honra e ferocidade! Ela então sorriu e a amargura desapareceu de seu rosto, que ficou extremamente branco e lindo. Ele teria uma história de verdade para ela. E, enquanto isso, tinha um pretexto para entrar no escritório do pai. Ela se levantou da cadeira, foi para o escritório externo, onde sua secretária estava datilografando diligentemente, e correu para o hall, com o jornal na mão. Abriu a porta dos escritórios do pai, enfrentando, como sempre, o secretário dele, rapaz pálido, com um rosto nervoso, tenso, olhos pretos e fanáticos por trás de óculos de aros de chifre, e um corpo que parecia composto exclusivamente de fios duros e vibrantes sob um terno muito bem-feito. Lorry Summerfield o desprezava. O pai levara Edgar Sloan de Nova York para ser seu secretário particular e ele ganhava um ordenado tão grande que constituía motivo de espanto perene para o pessoal. Mas Lorry não se espantava em absoluto. Ela sabia. — O Sr. Summerfield está em conferência, Srta. Lorry — comunicou ele. Tinha uma voz grave, tão intensa e penetrante quanto o rosto. — Sinto muito. — Quem é? — perguntou ela, com rispidez. Ele deu de ombros. — Não sei — murmurou. Lorry o fitou, o turquesa de seus olhos vivo com sua aversão. — Bom, não tem importância. — Ela bateu no jornal. — Tenho uma história maravilhosa para ele. Nós nem notamos, fizemos só uma reportagem de rotina. Não pode esperar. — Bom, não podemos mandar outro repórter cobrir isso, para a edição de domingo? — Ele estava olhando para ela com aquela sua admiração e desejo furtivo, que tanto a

enfurecia. — Não é preciso incomodar o Sr. Summerfield. A mão dele esgueirou-se para a caixa do interfone e ele ligou o interruptor, abaixando-se para falar. — Sr. Summerfield, a Srta. Lorry insiste em falar com o senhor imediatamente. Diz que é muito importante. — Dentro de meia hora — respondeu o Sr. Summerfield, impaciente, mas Lorry correu para a secretária, abaixou-se e gritou: — Não daqui a meia hora! Não pode esperar, se é para sair no jornal amanhã! Vou entrar. Edgar Sloan postou-se no caminho dela, muito inseguro. Ela olhou para ele com desprezo e, como se ela o tivesse atacado, ele saltou para o lado. Ela abriu de repente a porta do escritório do pai e postou-se ali no limiar. Tudo ali era em mogno claro, escolha do pai, acentuado por cortinas verde e coral nas janelas e um tapete verde-escuro no chão. Alguns quadros abstracionistas, cuidadosamente escolhidos por suas cores suplementares, estavam pendurados nas paredes de um tom de esmeralda pálido. MacDonald Summerfield estava sentado por trás da secretária dourada, reluzente e arrumada, do tom de seus cabelos ralos e lisos. Era um homem alto, magro, aristocrático, parecendo muito mais jovem do que sua verdadeira idade, e com uma semelhança espantosa com a filha. Mas sob os olhos não havia sinais de tristeza, nem linhas em volta da boca, como nela. Ele era todo brandura, saúde e segurança. Perto dele, com uma lourice mais vigorosa do que a dele, estava o volume grande e sólido do “Sueco” Swensen. Ambos os homens se levantaram, Swensen sorrindo de prazer, Summerfield de cara fechada. — Realmente, Lorry — reclamou Summerfield. Mas a fisionomia dele suavizou-se, mudando de um modo quase patético, ao ver a filha querida que o detestava, sem dar para ele qualquer explicação lógica. Ela não fora sempre sua queridinha? Ela jamais lhe contara por quê, nem como, chegara a essa aversão declarada por ele. Antes ela o adorava, e essa adoração continuara até uns quatro anos antes. Fora uma criança voluntariosa, uma moça voluntariosa, mas ele não lhe negara nada. Em todo caso, o psiquiatra dissera, com uma confiança complacente: “Não gosto de dizer isso, mas em minha opinião, ela está concorrendo com você; talvez pelos jornais, ou alguma coisa”. Como sempre, ela não estava tomando conhecimento dele. Estava sorrindo muito para Swensen, e apertando a mão dele, grande e rosada. — Ora, por que o pai havia de escondê-lo de mim? — perguntou ela, inclinando a cabeça, brejeira. — Ele sabe que sempre fico contente em vê-lo, Lars, e temos tanta coisa em comum. — Você o veria ao jantar, hoje à noite — respondeu o pai, irritado. — Bem, o que é, em todo caso, Lorry?

Mas Lorry sentou-se, tendo o cuidado de abrir o vestido turquesa em volta das lindas pernas como um leque. Sorriu para Swensen e ele puxou a cadeira mais para perto da dela e ela sentiu o frescor dele. ,Era um homem bonitão, colorido, com olhos cinza-claro e cabelos louros e ondulados, um nariz largo e boca rasgada, sempre sorrindo vagamente. Exalava poder e determinação e era todo compacto, a despeito do tamanho. — Tem cigarro, Lars? — pediu ela, depois que ele completou o exame prolongado e lascivo de sua pessoa. Ela sabia que nem ele nem o pai fumavam; tampouco bebiam. Swensen sempre tinha cigarros para os amigos, e foi logo puxando a cigarreira de ouro e um isqueiro de ouro. Lorry demorou, deixando que ele tocasse em seus dedos numa carícia leve. O Sr. Summerfield foi ficando com a cara ainda mais fechada. Swensen estava sorrindo quase com timidez para a moça; as faces rosadas estavam mais rosadas. Ele sacudiu um dedo para ela e disse: — Lorry, andei ouvindo coisas sobre sua última viagem a Nova York. Os olhos dele apontavam para ela, reluzindo como pedacinhos de granito. — O quê? — perguntou ela, parecendo achar graça. — Ah — respondeu Swensen, abanando a cabeça. — Devo citar nomes? — Por favor — disse ela, indiferente. Swensen cantarolou uma melodia alegre do último musical de Nova York. — Só passei três dias lá — acrescentou Lorry. — Jantei num clube, dancei em outro e vi um show. Cada vez com um par diferente, todos muito respeitáveis. — Ela riu-se. Seu riso não era doce nem musical, mas estranhamente como um latido breve. — Tenho os meus espiões — respondeu Swensen, brejeiro. E tem mesmo, pensou Lorry, zangada. — Um rapaz muito bonitão, moreno, saiu com você na noite de terça-feira. A um lugar no Village, bem escurinho, e bebida boa. Ora, Lorry, eu mesmo a vi lá! — Sorriu, encantado. — Quem era o rapaz? — Eu o teria apresentado, se você tivesse ido falar comigo — respondeu Lorry, displicente. — Quem era? — perguntou o pai. Ela deu de ombros. — Um homem que conheci num coquetel. Escreve livros de viagens. Estávamos falando sobre algumas de minhas fotografias da Noruega. O nome não é importante. — Ela acrescentou: — Robert Corde. Já ouviram falar dele. — O seu irmão publica os livros dele, não é? — indagou Swensen, com pouco interesse. A fisionomia de Summerfield tornou a mudar, e dessa vez para uma tristeza mais pesada. Ele raramente via o filho, Barry, a quem muito amava; Barry, que era sempre frio e cortês com ele, e que tomara o nome do padrasto, não em criança, mas quando já rapaz

de 21 anos. Por quê? Ele nunca explicara direito. Provavelmente, pensava Summerfield, com ódio, porque Ethel mentiu para ele, virando-o contra o pai. — É — respondeu Lorry. — Mas você sempre soube disso, Lars. Mas Bob Corde estava pensando num editor maior e Barry me pediu para tentar fazer com que ele fique com a Lowell Publishing Company. Consegui. — Ela sorriu, encantadora. — Você não poderia falhar, Lorry — falou Swensen, fascinado. Ela mudou de assunto, habilmente. — Vai se demorar em Barryfield, Lars? Os dois homens trocaram olhares significativos. Havia muito tempo que Summerfield vinha insistindo em dizer que Lorry era de confiança. — Mas ela bebe muito. Desculpe, Mac. Você sabe que nunca confiamos em pessoas que bebem, nem temos nada a ver com elas. São instáveis — dissera Swensen. O rosto de Summerfield tinha ficado sombrio, carregado de pesar e perplexidade. — É, sei que Lorry bebe demais. Mas nunca a vi perder o controle. Francamente, acho que ela bebe mais é em casa, de modo que eu possa ver. Por quê, não sei. Mesmo assim, nunca perde o controle. Além disso, escreve alguns de nossos melhores editoriais. Estou-lhe dizendo, algumas coisas dela são proféticas. — Vamos mantê-la profética só nos jornais — respondeu Swensen. — Precisamos de todos os liberais que conseguirmos arranjar… milhões deles. Mas se os deixarmos entrar no círculo restrito, vão perder um pouco das ilusões! — Ele dera risada, acrescentando: — Depois, há o irmão dela, seu filho. — Mas a Lorry diz que o está conquistando. Swensen estava pensando nessa conversa com Summerfield, nesse momento; ocorrera havia três meses. Ele perguntou então à moça: — Como vai indo o Barry com o último livro que publicou, The Sleepless Enemy (O Inimigo Não Dorme), de Francis Connell? A boca cheia de Lorry se apertou, num esgar. — Perguntei a Barry sobre isso. Acho que ele está exagerando. Diz que vendeu 40 mil exemplares, até há um mês. Claro, hoje em dia a gente vende qualquer negócio, especialmente se for escrito de um modo sensacionalista. E aquilo é tudo sangue e trovão. O Inimigo Não Dorme! Como se o comunismo americano tivesse algum propósito além do de aliviar a discriminação racial, a discriminação nos empregados e proteger as liberdades cívicas e apoiar o trabalho! Ela olhou bem nos olhos de Swensen e sorriu, um sorriso profundo, sábio e sutil. O homem ficou assustado. Olhou dentro dos olhos azul-esverdeados, que se tinham tornado quentes, íntimos e sábios, e ficou espantado. Talvez Summerfield tivesse razão quanto à filha, afinal. A expressão dele ficou séria. — Bom, e tem? — perguntou. Lorry soltou sua risada estranhamente áspera e não respondeu.

— Eu, por mim, acho que o Partido Comunista Americano faz parte integrante de uma conspiração internacional — respondeu Swensen, mais sério. Suas faces lisas estavam achatadas, enquanto ele fitava Lorry. — Creio que é uma ameaça ainda maior do que o fascismo foi, pois é ao mesmo tempo mais concentrado e mais universal e tem mais atração para as massas ignorantes. Pelo canto do olho, Lorry viu que o pai tinha abaixado a cabeça. Um raio de sol quente tornava seus cabelos ralos dourados. Ele estava escutando, atentamente, e, como sempre, irrequieto, enquanto, externamente controlado, estava escrevendo alguma coisa numa folha de papel, distraído. Ela disse: — Não concordo com você, Lars. Creio que podemos perfeitamente integrar o Partido Comunista Americano no nosso sistema de governo, pois não é uma conspiração, em absoluto, e sim uma extensão do liberalismo. Mas também, você sempre foi conservador — e ela lhe lançou um olhar de troça. — Nem sei como é que você se dá bem com o pai, ele sendo um liberal tão apaixonado. Ela se levantou de repente, fazendo girar a saia, e pôs o jornal da manhã na secretária do pai, debruçando-se para isso. Seus olhos espertos, bem treinados, liam as palavras invertidas na folha de papel: “Vencer — Paz Vencer — Paz”. Ela ficou decepcionada. Então, quando o pai, voltando a si como um esportista disciplinado num momento de tensão, amassou depressa o papel na mão e não o jogou na cesta de papéis, sua decepção desapareceu. “Vencer — Paz”. Então era isso que estavam discutindo nesse último sábado quente de agosto de 1946. Mas as palavras exprimiam o que todos estavam esperando, acreditando. Nada de sinistro nelas… a não ser aquela mão comprida e aristocrática do Sr. Summerfield, amassando depressa o papel. — Tenho de voltar para a minha mesa — disse ela. — Pai, leia esse artigo sobre o ministro e os órfãos europeus adotados. Acho que temos uma boa história aí. Ele guardou a folha amassada no bolso, com cuidado, e pegou o jornal. Swensen se levantou para se postar atrás dele e ler também. O Sr. Summerfield leu depressa. — Bom — murmurou —, é uma coisa fora do comum, para Barryfield. A UNRRA deve ter apoiado essa turma… humm. “Vítimas do nazismo”. Não sei. Swensen, porém, falou com entusiasmo: — Uma história maravilhosa! As pessoas se esquecem do nazismo, embora a guerra só tenha acabado há pouco mais de um ano. Não devíamos deixar que esqueçam. Ora, um editorial sobre o fascismo, ou um artigo com destaques, com fotos se possível, contendo uma história desse ministro e as crianças, teria um grande efeito. Não estamos correndo perigo de neofas- cismo? Talvez você pudesse conseguir uma entrevista com ele, e deixar que ele conte a história do fascismo e como ele mesmo salvou essas crianças de suas garras. Depois podia-se arrumar que a United Press e a Associated Press ficassem com a história. — O rosto dele parecia cintilar de entusiasmo. — Lorry, o que acha disso? — Acho que é uma ótima ideia — respondeu ela. — E se o pai quiser, eu mesma escrevo a matéria. Fletcher vai fazer seu primeiro sermão amanhã. O Sr. Summerfield levantou os olhos atento.

— Aquela não é a igreja do McManus? — É. — Lorry riu-se. — O senhor sempre chamou o Tio Al de reacionário e até insinuou que era fascista. No entanto, ele, como Presidente do Conselho, é que deixou que viessem para cá. O Sr. Summerfield e Swensen trocaram um olhar demorado e duro. Lorry o percebeu e fingiu que estava ocupada arrumando o vestido. Perguntou: — O nome Fletcher lhe lembra alguma coisa, pai? O pai pensou. — Não, acho que não. É um nome comum. Não me lembro de nenhum Fletcher em especial. Por quê? — Não sei. Impressionou-me, não sei por que… Fletcher… ministro… capelão. Bom, não tem importância. Pode ser que me lembre. Enquanto isso, amanhã vou àquela igreja e combino uma entrevista com Fletcher. Talvez consiga tirar umas fotos dele. Bom. Acho que podemos fazer alguma coisa a respeito. E agora, de volta às salinas. Até de noite, Lars. Ela lhe lançou outro de seus sorrisos sedutores, a que ele respondeu satisfatoriamente. Ele ficou olhando enquanto ela saía da sala, observando, como sempre, como sua cintura comprida era fina, os ombros lindos, as pernas reluzentes. E Summerfield o viu olhando e puxou os lábios. Uma hora depois Lorry tornou a entrar depressa na farmácia, indo logo para a cabine telefônica. O irmão estava aguardando o telefonema dela. — Não sei se isso quer dizer alguma coisa, Barry… não consegui nada da conversa deles quando estive lá… mas ele escreveu alguma coisa numa folha de papel enquanto eu estava conversando com Swensen… distraído. Escreveu: “Vencer — Paz”. A voz dura e rápida se empolgou um pouco. — É muito importante, Lorry. Tudo se encaixa. É isso que estávamos esperando. Já o ouvimos de mais duas fontes. Agora sabemos. É a nova política deles, sem dúvida. Alguns dias depois, o editorial principal do Sr. Summerfield tinha o cabeçalho: “Temos de Vencer a Paz!” O corpo do editorial exortava todas as mães americanas a exigirem a volta “de seus filhos” da Europa, imediatamente, e um fim aos armamentos, e a restauração da “vida normal neste país”. Seguia-se uma diatribe sobre a guerra, desdenhosa e amarga. Acusava-se o Sr. Truman de desejar não a paz, mas “uma guerra prolongada e vitoriosa à custa do sofrimento americano, das mulheres e mães americanas, em benefício de alguns que se aproveitam com a fabricação de armamentos”. O mundo ansiava pela paz e segurança, um fim do derramamento de sangue. Os Estados Unidos deviam dirigir a marcha para essa gloriosa realização do verdadeiro destino do homem. Eram belas palavras. Nessa época, eram usadas pelos Generais MacArthur e Eisenhower e pelo Presidente. Eram usadas por gente boa e decentes por toda parte. Mas, o que é mais significativo, eram usadas por homens maus para fins maléficos e caóticos, homens que odiavam o Presidente e os generais, e toda a humanidade, e que amavam, não

a paz, mas a guerra revolucionária.

XI — Andei lendo o Press, nos últimos dias — falou Johnny, com frieza. Olhou para Lorry, sentada ali na sua combinação de sala e escritório. Ele se sentara por trás da secretária surrada e suas mãos fortes brincavam com uma caneta. Pensou, olhando para ela, que ela parecia uma cintilante borboleta branca, pousando momentaneamente numa selva de vegetação desbotada e em decomposição, tão radiosa estava com o costume de seda branca, naquela sala triste. Ele raramente antipatizava com as pessoas; chegara à conclusão com pesar, de que não estava gostando daquela moça linda e ousada, com os olhos de água-marinha e um ar de segurança dura e cínica. Notou o colar de belas pérolas em seu pescoço leitoso, o chapéu caro, os sapatos bem- feitos, o brilhante na mão direita. — Não gosta do Press? — perguntou Lorry, com uma doçura ácida. — Não — respondeu Johnny, com rudeza. Ele fixou os olhos sobre ela, e estavam duros. — Sabe, sempre reconheço a linha… perigosa… sob as frases nobres e humanitárias. Reconheci, pela primeira vez na Europa. Eu a descobri em Nova York. E agora, estou vendo, está até em lugares como Barryfield, Havia um repúdio frio em sua voz e ele afastou o olhar dela, com um desdém triste. Acrescentou: — São frases velhas. Os tiranos as vêm usando desde os princípios dos tempos. Sinto muito. Não lhe posso dar uma história. Não quero expor meus filhos nem ao ridículo nem ao sensacionalismo; não quero focalizar mais atenções sobre eles. — Tornou a olhar para ela, e seus olhos a ameaçavam, negando-a, rejeitando-a, num olhar demorado e compreensivo. — Eles não podem suportar isso, sabe. Já lhes fizeram coisas demais. Deixe que tenham paz. — Mas o Press é um jornal liberal, antifascista — respondeu Lorry. — Creio que, a bem da democracia americana, o senhor devia nos permitir ter essa história. — É mesmo? Já lhe disse, li o seu jornal, Srta. Summerffield. Não creio que estejam nada interessados na democracia americana. Portanto, não vou permitir que essas crianças sejam usadas para o que realmente têm em mente. Lorry debruçou-se para ele, — E o que é isso? — perguntou. — A senhorita sabe, claro. Não sou muito ingênuo. Lorry levantou a voz e gritou, sem afastar os olhos de cima de Johnny: — Tio Al! Venha cá! Enquanto ela estava conversando com Johnny, tinha ouvido o barulho feliz de vozes de crianças nos fundos da casa, uma voz de mulher, forte mas carinhosa, e o barulho doméstico de louça e talheres. A pobre casinha estava muito quente e o sol iluminava os

móveis feios. Mas havia no ar um bom cheiro de carne assada e o aroma de sopa. Mas ela notara Johnny mais que tudo. O rosto moreno, de ossos fortes, iluminado pelos olhos estranhamente azuis, a tinha comovido misteriosamente. Ele estava sentado ali por trás da secretária, com suas roupas pretas, muito surradas e modestas, que não melhoravam por mais escovadas e passadas que fossem. Ele apoiou os braços na mesa, como que inteiramente cansado e desanimado e ela viu as marcas do sofrimento e tensão em volta de sua boca. De repente, para seu espanto e irritação, ela se sentiu inundada por uma ternura por ele, tão intensa que seus olhos se encheram d’água e ela sentiu um nó na garganta. O rosto dele, os cabelos pretos cortados, as sobrancelhas pretas bem marcadas, flutuaram diante dela, e ela não teve noção de mais nada até ver o Dr. McManus. — Bem, o que há, Lorry? — perguntou ele. — O pastor aqui está-lhe criando dificuldades? Ele não quer um artigo sobre os garotos dele. Não quer nada de você. O que há, Lorry? — acrescentou logo, preocupado e carinhoso, pegando o queixo dela e virando seu rosto para ele. Ela se afastou dele, impaciente. — Ah, Tio Al. Pensei que o senhor fosse me ajudar. Que mal pode fazer um bom artigo? — Você sabe perfeitamente. A maior parte das pessoas desta cidade não gosta dos jornais de seu pai. Lêem por causa de algumas boas seções femininas, e notícias locais, e os quadrinhos, e porque são os únicos jornais, mas não lêem muito os editoriais. E o que lêem os deixa furiosos. Haviam de desconfiar do nosso pastor, se você falasse bem dele, e se dissesse suas belas coisas vitriólicas, o desprezariam. Isso é da natureza humana. Adora ler maldades nos jornais sobre qualquer pessoa, e quer acreditar nisso. Seja qual for o tipo de artigo que você escrevesse, o pastor estaria numa encrenca. Deixe-o em paz, Lorry. Ele olhou para Johnny. — Não se preocupe com essa moça, Johnny. Conheço-a desde que nasceu. Há coisas que não posso contar a você, nem a ninguém, sobre ela… por enquanto. Ela tem um trabalho a fazer nos jornais do pai. Mas não é o que você pensa. Não faz mal. Não dê nada a ela. Johnny ficou escutando, espantado, perplexo. Olhou para Lorry, cheio de conjecturas e curiosidade. O que o velho médico queria dizer? O Dr. McManus, com uma expressão de carinho no rosto, tão grotesca que chegava a parecer um sorriso de débil mental, estava acendendo um cigarro para Lorry e ela estava sorrindo para ele. Que rosto lindo ela tem, pensou Johnny, com um pouco menos de hostilidade. No entanto, quando um raio de sol bateu nele, de lado, não era um rosto suave. Poderia, pensou Johnny, ser considerado um rosto desiludido e amargo e desesperado. Depois ela virou a cabeça e a revelação ligeira, se é que fora uma revelação, desaparecera, ficando ali só uma lisura de marfim, lábios talhados e cheios de graça. — O senhor é uma grande ajuda, Tio Al — disse Lorry, afagando o braço dele. — Sente-se aqui, bem ao meu lado. — Ele sentou-se no sofá de chintz ao lado dela, e as molas rangeram. — Está bem — continuou ela. — Nem vou tocar no seu precioso pastor. Ah, já notei o seu interesse fátuo por ele, deve ser um rapaz e tanto, para lhe fazer isso.

Olhe, Sr. Fletcher, vamos ser amigos. Nem vou falar no senhor e seus filhos, se é assim que o senhor deseja. Entendo o seu ponto de vista. O Tio Al me contou das crianças antes de irmos para a igreja e talvez não seja mesmo conveniente dar-lhes mais publicidade. Por falar nisso — continuou ela, olhando para a ponta do cigarro — percebi que a congregação, a não ser uma minoria militante nos bancos da frente, não estava propriamente simpática ao senhor. A igreja estava repleta; isso porque o senhor é uma raridade. Mas vão se cansar do senhor; as coisas são assim. Terá muitos bancos vazios, num futuro imediato. E talvez… coisa pior. Ela levantara os olhos para o rosto mudo dele, e novamente aquela sensação desconhecida, de uma ternura apaixonada, a encheu de um calor profundo, e uma espécie de anseio que ela não reconheceu. Um pastor obscuro e modesto, com uma família bizarra de filhos dos fins do mundo… como é que um homem assim, pobre, desconhecido, podia comovê-la tão fortemente, tão apaixonadamente? Então, como um vago grito de sua infância, ela ouviu dentro de si: “Nada de bom pode vir da Galileia!” Quem dissera isso, e sobre quem? Não fantasie, ralhou ela consigo, asperamente. Esse sujeito aqui não passa de um pastor com um bando de órfãos, que veio para uma cidade pequena para presidir a uma igreja e congregação tristes, que não o desejam. Só tem um amigo, e esse amigo, e esse mesmo é caprichoso, que se pode voltar contra ele de uma hora para outra. Lembre-se do sermão dele, hoje, apenas 15 minutos. Quem se emocionou? Quem o escutou, extasiado? Ninguém, nem mesmo eu. Eloquente? Foi, sim, mas também foi anacrônico. Todos pensaram que ele ia falar amargurado, depois do assalto ao filho. Ou falar sobre a intolerância ou os desvalidos ou a situação social. Mas nada disso. Nem me lembro de frase alguma marcante dele, se bem que tenha uma voz excelente. Então, qual foi o assunto do sermão dele? É, ideia boba, o arrependimento. Arrependimento de quê? Os nossos pecados! Não admira que até os mais burros lá tenham ficado perplexos. Se ele ainda fosse um desses evangelistas uivantes que andam pelo país espumando pela boca, a gente podia compreender. Mas não é. Nossos pecados, pelo amor de Deus! Ela falou, bruscamente: — Bem, pelo menos posso lhe dedicar algumas linhas nos nossos avisos religiosos. Deixe ver: falou sobre o pecado. — Ela lhe lançou um sorriso arrogante. — Os americanos não pecam. Somos a nação mais idealista do mundo. Estamo-nos preparando para inundar o mundo com o nosso leite e mel, liberal e figurativamente. Amamos todo mundo. Somos virtuosos, infantis, simples, bondosos, generosos e cheios de uma fé sincera. — Somos? — perguntou Johnny. Os olhos dele estavam pousados nela, azuis e ardentes. — Quem disso isso? Ora, fomos nós. Dizemos sempre. No entanto, nos esquecemos da bomba atômica lançada sobre duas cidades japonesas indefesas, duas semanas depois de o governo japonês implorar para se render a nós. Por que fizemos isso? Por sermos tão bons, virtuosos etc.? Estou-lhe dizendo, Srta. Summerfield, que vamos pagar com sangue por esse crime contra a humanidade, e por todos os crimes que temos cometido contra o mundo durante meio século, assim como outras nações já pagaram com o sangue por seus crimes. Só existe um modo pelo qual nós e todo o resto do mundo poderemos evitar as consequências de nossos crimes: pelo arrependimento e a penitência.

— Foi o que disse hoje de manhã — comentou Lorry, secamente. Ela olhou para o Dr. McManus, com humor, aguardando dele um sorriso correspondendo ao seu desdém. Mas o Dr. McManus, para sua grande surpresa, estava olhando melancólico para o tapete verde no chão e dizendo: — Bem, claro. Mas não sei quanto a Deus fazer isso. Eu mesmo não acredito Nele, como uma força pessoal real. Ideia tola. Só a lei da retribuição. — E Quem é a lei da retribuição? — perguntou Johnny, severo. — Ora, vamos — respondeu Lorry, desconcertada e aborrecida. — Não vamos ficar místicos, por favor. Já sou uma mocinha. Voltando ao seu sermão, Sr. Fletcher: pense nas pessoas em sua congregação. Não há um que não tenha contribuído de boa vontade para o que se chamava, alegremente, de esforço de guerra. Cruz Vermelha, doação de sangue, pacotes para além-mar, “cigarros para os rapazes”, guardas, de abrigos antiaéreos, doações para refugiados, trabalho extra nas fábricas, e assim por diante, um não acabar, até enjoar. Muitos deles perderam filhos ou maridos ou irmãos na guerra. O senhor lhes fala de consolo, os elogia pelo seu patriotismo, ou diz a essas pobres almas que trabalharam bem? Não, diz que são pecadores, que devem se arrepender, e fazer penitência! Pelo amor de Deus, Fletcher! Ele ficou ali sentado, olhando para ela com aquela sua severidade muda. E de repente, passou pelo corpo de Lorry uma sensação quente, como se ela estivesse corando muito, corando de dor e um remorso sem nome, um sofrimento profundo, Ela não o entendeu. Estava abalada até o íntimo. Levantou-se, como se saltasse, em fuga. A bolsa caiu, deixando cair o que havia dentro. O Dr. McManus, resmungando um pouco, abaixou-se para apanhá-la. Ele a estendeu para Lorry mas ela estava olhando fixamente para o jovem ministro, como que abalada e imobilizada. A expressão dela mudara, até ficar quase totalmente distorcida. E então, de repente, seus olhos se dilataram, apavorados. Ela perguntou, a voz débil: — O nome… Lowell, Barry Lowell, significa alguma coisa para o senhor? Johnny, surpreendido com a violência inexplicável de seus movimentos, pela expressão do olhar e a mudança da voz, levantou-se. Pensou um instante. — Não, Srta. Summerfield. Devia significar? — Barry Lowell é irmão dela, é editor em Nova York — explicou o Dr. McManus, com muito interesse. — Esteve nessa guerra. Conheceu-o? Johnny, a despeito de sua desconfiança e desânimo, procurou concentrar-se. — Lowell? Não que eu me lembre. Mas conheci milhares de nossos soldados. Estive por toda parte, como capelão. Onde estava o seu irmão? Mas Lorry se virara depressa para olhar para o Dr. McManus e ele se voltara para ela e Lorry sorriu para ele, um sorrizinho apagado e aflito, meneando a cabeça. — Bem — esclareceu o Dr. McManus —, devia haver centenas como o Barry, de modo que ele não pode se lembrar de todos, e talvez de nenhum deles.

Os olhos de Lorry se encheram de lágrimas. Ela olhou para Johnny com humildade e tentou falar. O Dr. McManus pegou o braço dela, delicadamente. — Não, Lorry, não vamos falar sobre isso. Não significaria nada para o nosso pastor. Faz parte do trabalho normal. Ele é desse tipo. Não fique emotiva. — Leve-me para casa, Tio Al — pediu ela, a voz alterada, e virou-se. Johnny estava intrigado. Saiu de detrás da mesa, sem saber o que dizer. O Dr. McManus sorriu para ele, sombriamente, e afagou-lhe o ombro. — Vamos indo, Lorry. Está na hora do meu jantar, mesmo. — Posso fazer alguma coisa? — perguntou Johnny, perplexo. — A Srta. Summerfield não parece estar bem. O Dr. McManus parou e fixou os olhos cor de concreto sobre o jovem ministro. — Filho, você é o pastor. Lembra-se de Lázaro? — Ele sorriu ao ver que Johnny estava cada vez mais perplexo. — Nada não, filho. Mas só quero dizer que o seu sermão foi muito bom, se bem que não tenha esperança de que adiante muita coisa. E pode dizer à Sra. Burnsdale que vou pensar naquele freezer para ela. Ela levou Lorry para o carro dele e pediu a um rapaz que estava passando, e que ele conhecia, para levar o carro de Lorry para a casa dela. Ele ajudou a moça a se sentar. Ela parecia estar inteiramente flácida, como se tivesse levado um choque tremendo. Quando a limusine começou a andar, da rompeu em soluços secos, o peito arfando, as mãos cerradas nos joelhos. — Sossegue, benzinho — pediu o médico. — Isso não parece você. Sabe, eu também estou ficando meio místico, Começo a achar que esse rapaz não veio para cá por acaso. Ela murmurou, os lábios secos, ainda olhando para a frente, como se não o tivesse ouvido: — Eu sabia que havia alguma coisa conhecida nesse nome, e o fato de ele ser capelão. Tentei me lembrar. E então, quando estava conversando com ele, lembrei-me… as cartas do Barry… tenho de ligar já para o Barry, e contar a ele. O Dr. McManus pensou naquilo apertando os lábios. Depois sacudiu a cabeça. — Eu não contaria, Lorry. Ainda não. Nem ao seu pai. Tenho impressão de que o que sabemos pode vir a ser muito útil para o nosso pastor… um dia desses. Conserve isso como nosso trunfo. O Sr. Summerfield escreveu o seu próprio editorial na noite de segunda-feira, e foi habilidoso. “Vencemos a guerra contra o nazismo e agora nós, com nossos aliados, temos de vencer a paz. Desarmamento mundial total — volta imediata dos rapazes — era de boa vontade, nova esperança para o mundo — a magnífica contribuição da Rússia para a luta pela liberdade — expansão da democracia pelo mundo — os últimos inimigos da humanidade, a fome, doenças, desemprego, devem ser erradicados, assim como esperamos erradicar a guerra — grandes esperanças para o mundo… vencer a paz, vencer a paz… Lorry leu o editorial vezes e mais vezes, assim como muitos outros, bem esclarecidos. Eram todas palavras nobres e heróicas; eram os anseios de toda a

humanidade, a esperança de todas as nações. Não havia nada de errado nelas, pensou Lorry. Só que estavam sendo usadas pelas pessoas erradas, e com propósitos maléficos.

XII Naquela manhã de segunda-feira cinzenta, todas as crianças saíram para o carro antigo com Johnny. O calor abafava a cidade, cheia dos gases enjoativos das usinas e fábricas presos sob o céu baixo. Emilie tossiu, o rostinho franzino empalidecendo. Johnny a pegou no colo, ansioso. As outras crianças tossiram, mas a atenção de Johnny estava concentrada na menina. Seria sua imaginação, ou ela estaria mais frágil do que de costume, mais mirrada? Bem, logo veriam. Ele e as crianças estavam acompanhando Jean, agora uma pessoa muito importante, ao hospital, onde ele seria operado naquela tarde. Por insistência do Dr. McManus, os outros seriam submetidos a um exame completo, em parte, Johnny sabia, para distraí-lo de sua aflição por Jean, e em parte por necessidade. Jean não tivera licença para tomar o café da manhã. As crianças tinham olhado para ele com respeito. Ele falou de Deus e de consertar o braço e a perna e eles menearam a cabeça, concordando calados. A confiança deles deixou Johnny ainda mais apreensivo. Sabia como a operação seria grave; conhecia os riscos. E se Jean morresse durante aquela longa provação? E se não tivesse sucesso? Por Jean ser quem era, o Dr. McManus não insistira para o menino passar a noite no hospital, preparando-se para a operação. — Pode ser um trauma para ele — dissera ele a Johnny. — Traga as crianças, para dar apoio moral, e fazer disso uma espécie de feriado para ele e para elas. Johnny desejou que o dia estivesse mais alegre, um dia bonito. Mas uma luz triste pairava sobre a cidade nublada, pendurando-se fria nos lados das casas e fazendo covas solitárias sob as árvores. Algumas folhas já estavam caindo, roçavam as calçadas como dedos misteriosos quando a leve brisa as movia. As crianças estavam oprimidas; Johnny sentiu isso, enquanto desciam o curto caminho para o carro junto do meio-fio. Ele lançou um olhar rápido a Max. O menino, fraco como estava, e com a garganta e o queixo ainda envoltos em ataduras, insistira em se juntar aos outros. Estava agarrado ao braço forte de Kathy, e ela estava com o braço bem reto e firme para sustentá-lo. — Sejam bonzinhos! — gritou a Sra. Burnsdale, da porta, as mãos embrulhadas no avental. As crianças acenaram para ela. Ela sorriu, embora os olhos estivessem tão preocupados quanto os de Johnny. Estava rezando e olhando com compaixão para o vulto alto de Johnny, com suas roupas pretas de clérigo. Ele estava andando com firmeza, com Emilie no colo, mas ela sabia da tristeza dele, seu desencorajamento, seu sofrimento. Não era o fato de que a maioria da congregação se mostrara silenciosamente hostil a ele na véspera que o estava deprimindo, se bem que isso tivesse representado um papel importante. Ele estava melancólico desde o assalto a Max; ela o vira meditando à sua secretária, brincando com a caneta, à toa. Uma reserva o tinha envolvido, na qual ninguém conseguia penetrar. Ele parecia perdido em pensamentos tão pesados, tão distantes, que não havia meio de alguém se aproximar dele. Até as crianças o tinham sentido. Raramente se aproximavam dele voluntariamente, mas durante esses últimos dias, elas tinham entrado na sala, caladas, apertando-se um pouco no ombro dele, tocando nele, encabuladas, e depois saindo correndo.

— Seria de esperar — dissera a Sra. Burnsdale ao Dr. McManus, muito indignada — que a congregação estivesse com vergonha, depois do caso do Max. Mas não estava. Ficaram ali sentados olhando para o coitado do ministro, enquanto ele lhes falava dos pecados deles e de seu arrependimento e as caras deles foram ficando cada vez mais fechadas, a despeito do pessoal do conselho e das mulheres deles apoiando-o nos bancos da frente. Nunca tive boa opinião das pessoas, conheço-as bem demais. Mas pensei que uma vez na vida iam ser decentes, levando tudo em conta. — E por que havia de esperar isso, ora? — dissera o Dr. McManus, esganiçado, admirado. — São pessoas, mais nada. Johnny tinha chegado ao carro. Já ia abrindo a porta, quando parou de repente. Ficou olhando para as rodas. Alguma coisa na sua imobilidade repentina alarmou a Sra. Burnsdale. Ela correu pesadamente até o meio-fio. Ao vê-la, Johnny apontou para as rodas. Cada pneu tinha sido hábil e completamente cortado, e as rodas estavam arriadas. Isso não era coisa de criança. A borracha fora cortada com força, vezes e mais vezes, não só no revestimento, mas também na câmara-de-ar. A Sra. Burnsdale tapou a boca com a mão. As crianças já estavam entrando no carro, Kathy ajudando Max. Jean, como mais velho, estava esperando que as crianças se sentassem. Ele já ia entrar no veículo quando sua intuição aguçada, nascida do antigo terror e agonia, sentiu alguma coisa no ar. Levantou os olhos, alertado, para Johnny e a Sra. Burnsdale, e seus olhos estreitos se apertaram nos cantos. — Há alguma coisa? — murmurou. Havia alguma coisa na voz dele que logo chamou a atenção de Johnny. Ele largou Emilie no chão, com cuidado. Aquele era um dia sério; a vida de Jean dependia do que o dia trouxesse. A primeira ideia de Johnny foi sorrir e dizer, com displicência: “É o carro. Aconteceu alguma coisa. Vamos tomar um táxi”. E então ele viu que seria errado usar evasivas com Jean. Pôs a mão no ombro dele e falou, com calma: — Jean, eu já lhe disse que existe a lei nesta terra. Você já verificou isso. A polícia prendeu o menino que assaltou o Max; ele vai ficar preso por muito tempo numa espécie de escola, porque está com a mente doente. Isso é a lei. E agora aconteceu outra coisa. Os pneus do carro foram cortados por alguma pessoa malvada, que me detesta. Jean olhou por algum tempo para o rosto triste e branco do ministro. Depois abaixouse, com dificuldade, e examinou os pneus. Meneou a cabeça, vezes e mais vezes, sozinho. Endireitou-se e tornou a olhar para Johnny. Depois seu rosto velho e sabido abriu-se num sorriso de compreensão, e ironia. — Um homem, papai? Sim, um homem. Sempre há homens, non? — É — respondeu Johnny. As crianças estavam espiando curiosamente pelas vidraças do carro, para o grupo na calçada. O rosto animado de Pietro estava achatado no vidro. — Venham, venham! — gritou.

Jean olhou para seus companheiros, pensativo: via a sombra do rosto afundado de Max. Mancou para perto do carro e disse: — Saiam. O carro não presta. Temos de tomar um táxi. — Não, não! — gritou Pietro, que adorava o carro. Jean abriu a porta, agarrou o braço do menino e o puxou para fora. — Pietro é bobo — disse, com severidade. As outras crianças acompanharam Pietro, assombradas. Ficaram esperando que Jean falasse de novo. — Táxi — repetiu ele. — Mamãe Burnsdale chama táxi para nós, Pietro cala a boca. Por que carro não anda? — perguntou Kathy, enquanto a Sra. Burnsdale, as lágrimas lhe escorrendo pelas faces, entrava em casa depressa. Jean advertiu Johnny com um olhar rápido. — Papai diz que não anda. Então não anda. Os carros nem sempre andam. Vamos esperar o táxi. — Oh, oh — lamentaram as crianças, decepcionadas. Lançaram olhares reprovadores ao carro. O estado dos pneus escapou a sua atenção. — Carro mau — disse Emilie. Johnny estava cheio de gratidão e de dor. Passou o braço em volta de Jean, sem nada dizer. Depois seu coração se aliviou, inexplicavelmente, e ele sentiu remorsos. Ele, um homem, um ministro, ficara desanimado e desencorajado. Suas orações tinham sido sem ânimo, nesses últimos dias. Ele sentira que alguma coisa o havia quebrado. No entanto, ali estava um menino, uma criança, que sofrerá angústia, desespero e desesperança terríveis e no entanto, em circunstâncias monstruosas, podia se levar a aliviar o sofrimento de outro, altruisticamente, e conservar a fé. Ele aceitara o mal dos homens, mas afinal perdera o seu pavor por ele. — Enquanto esperamos — sugeriu Johnny, e sua voz tinha o velho tom alegre — vou-lhes contar uma história. — As crianças se juntaram em volta dele, interessadas. — Quando a Mãe do Menino e José deixaram a terra deles com Ele, para se esconderem dos soldados do rei malvado que queria matá- lo, estavam muito assustados. Tinham viajado muito longe, numa estrada solitária, para o Egito. Mas antes de chegarem ao Egito um anjo lhes avisou que os soldados, a cavalo, estavam perto deles. Então, arranjaram uma gruta, em que se esconderam. — Gruta — repetiu Jean. Kathy, Max e Pietro menearam as cabeças, solenes. Conheciam bem as grutas. Conheciam o seu escuro e umidade, os pisos entulhados, o medo, o coração batendo depressa, de susto, o silêncio, o agachamento no escuro. E a escuta, sempre a escuta, esperando os passos dos soldados perseguindo-os. — Os soldados, na estrada, procuraram por todos os arbustos e todas as grutas e por trás de todas as pedras grandes. E depois estavam muito perto dessa gruta onde estavam escondidos a Mãe e o Menino e José. José tinha amarrado o burrinho atrás de umas árvores. Rezou para que o burro não fizesse barulho quando os soldados se aproximassem, A Mãe estava sentada no fundo da gruta com o Menino apertado ao peito, a jovem Mãe

com seu Bebê. E então eles ouviram os cascos dos cavalos batendo na estrada e os gritos dos soldados. — Sim, sim — disseram as crianças, lembrando-se. — O pobre José só podia pensar que os soldados também iam revistar aquela gruta. Ele fechou os olhos e as lágrimas escorreram por suas faces, enquanto ele rezava. E então, quando levantou os olhos, viu que uma coisa muito estranha tinha acontecido, em apenas alguns momentos. — O quê, o quê? — perguntaram as crianças, em voz alta. Pietro estava dançando com uma impaciência incontrolável. Johnny sorriu para eles, triunfante. — Uma grande aranha tinha tecido sua teia, nesses poucos momentos, por cima da entrada da gruta! Uma teia espessa, que em geral levaria uma noite inteira para ser tecida! — Ah — disseram as crianças, num coro suave, assombrado. — E quando os soldados chegaram à gruta, queriam revistá-la. Mas o chefe apontou para a teia e disse que seria impossível a Família estar naquela caverna, pois a teia não estava rompida. Então os soldados continuaram pela estrada quente e branca, e depois de muito tempo a Família saiu da gruta e seguiu seu caminho, por outra estrada. As crianças ficaram caladas, os rostos brilhando. A luz fraca sob as nuvens cinzentas parecia menos feia do que antes. Depois Jean falou: — Deus tece muitas teias, sim? Sim — respondeu Johnny. Um táxi apareceu na esquina. Cá estamos — disse Johnny, animado. Ele ajudou as crianças a entrarem no táxi, enquanto o chofer olhava, curioso. Então um carro preto foi chegando perto deles e parou. Jean olhou para ele, alerta, e sorriu para Johnny. — A polícia — murmurou, e pela primeira vez disse essa palavra com confiança e satisfação, sem seu velho tom de pavor. A Sra. Burnsdale desceu o caminho de casa e Johnny sacudiu a cabeça para ela, apontando furtivamente para o carro da polícia, e ela se dirigiu logo para ele, pois havia chamado a delegacia mais próxima. O táxi passou pelo carro oficial e Jean cumprimentou os jovens policiais dentro dele com um aceno, ao qual eles responderam. — Quem, quem? — perguntou Pietro, que sempre reparava em tudo. Jean disse: — Nossos amigos. O táxi foi seguindo pelas ruas silenciosas. As crianças da cidade já estavam nas escolas. Agora a luz ficou mais sombria e o cheiro dos gases industriais mais sufocante. As rodas do táxi raspavam na escória grossa da pavimentação. Aqui e ali um lampejo de um amarelo sulfuroso ou um verde venenoso penetrava o céu nublado. Por uma ou duas vezes Johnny ouviu um ronco vago na terra, e sabia, nervoso, que vinha das minas sob a cidade. A opressão dele voltou e também o seu medo por Jean. O menino estava sentado tão quieto a seu lado, olhando para as ruas, pensativo, o perfil pálido, o perfil de um homem que tinha sofrido muito, e se lembrava.

Chegaram ao hospital, do qual o Dr. McManus era o chefe da equipe. Johnny sabia que era relativamente novo, mal tendo seis anos, mas o granito claro original estava manchado e escurecido, como se algum mofo leproso o tivesse atacado. Havia homens lavando janelas turvas, que no dia seguinte esta- riam sujas de novo. Se não fosse o desenho moderno do prédio, suas portas de vidro e alumínio, Johnny diria que devia ter pelo menos um quarto de século. No entanto, tinha sido instalado um equipamento completo de ar-condicionado e o interior era todo de azulejos de borracha, preto e branco, alumínio, limpeza e tranquilidade. — Um bom lugar — disse Johnny às crianças, que estavam andando muito junto dele, no seu amontoamento conhecido. Emilie começou a chorar, quando passou por ela uma enfermeira apressada; estava se lembrando das agulhas que a tinham lançado em convulsões, e Johnny a pegou logo no colo. Ela escondeu o rosto no ombro dele e ficou ali, ofegante. A recepcionista, uma enfermeira idosa com uma cara alegre e simpática, cumprimentou-os. O Dr. McManus chegaria logo. E lá estava ele, vindo de alguma porta, de cara fechada, as pernas curtas e grossas movendo-se como pistões. — Quinze minutos de atraso! — gritou, esganiçado. — O que está pensando que isso aqui é, pastor? Um chá da Assistência Feminina? Foi Jean quem lhe respondeu, adiantando-se um passo para o homem violento e encarando-o. — O carro… não andou. O médico olhou para ele, de cara fechada. — Bobagem. O carro está funcionando bem. Não seja malcriado, menino. Jean murmurou, quase sem se fazer ouvir: — As rodas… estavam cortadas… todas cortadas. Só papai e eu sabemos. — O quê? — exclamou o médico, e seu rosto cinzento ficou arroxeado. Virou-se para Johnny e sua expressão ficou raivosa. Sua respiração estava assobiando e as crianças olharam para ele, interessadas. Depois ele pôs a mão no ombro de Jean e disse, abruptamente: — Acontecem coisas com os carros. Bem, garotos e pastor, vamos para o quarto do Jean. É um espetáculo. — Ele procurou no bolso e puxou um telegrama endereçado a Johnny, de Nova York, e Johnny o abriu. Era do Dr. Stevens, exprimindo um desejo sincero de que Jean fosse bem-sucedido na operação e pedindo que lhe informassem logo. Mandava lembranças afetuosas a toda a família. — Também mandou um ramo de flores — completou o médico, que, sem pudor, estava lendo o telegrama por cima do ombro de Johnny. — Bem, vamos. O telegrama animou Johnny, e ele o leu para as crianças. Subiram todos num elevador muito grande e suave, até o andar cirúrgico, que tinha corredores largos e bem iluminados, portas de vaivém largas e um ar de paz. As crianças estavam impressionadas mas ainda agrupadas junto de Johnny, que tinha dificuldades para andar. O médico abriu a porta de um quarto grande e disse, com um humor lúgubre: — Parece um raio de câmara funerária, não é?

O quarto estava literalmente cheio de rosas, vermelhas, amarelas, brancas, rosadas, escarlate. A mesa espaçosa perto da cama branca estava transbordando; a cômoda estava inundada; vasos imensos estavam contra as paredes, em filas de dois. O quarto era ensolarado e o efeito de toda essa fragrância e cores era o de um jardim em pleno verão. As crianças soltaram exclamações de prazer e até mesmo a pequenina Emilie saltou do colo de Johnny para ir para o chão. O perfume das flores era soprado pelo quarto pela brisa suave que entrava pelas duas grandes janelas e as crianças cheiravam extasiadas. O rosto sem cores de Jean ficou corado de felicidade e orgulho e ele só conseguiu ficar ali parado, olhando. — Deus do céu! — exclamou Johnny, a voz fraca. — Foi o Dr. Stevens quem mandou tudo isso? — Não — respondeu o médico. Olhou para as flores com seu ar carrancudo de sempre, mas era evidente que estava satisfeito. — Não interessa. Um amigo. Não fui eu. Ninguém da sua congregação. Um amigo. Johnny teve outra ideia, quando uma enfermeira jovem e sorridente apareceu no vão da porta. Ele corou. — Dr. McManus. Este quarto. Provavelmente é muito caro. Eu… tinha pensando numa enfermaria. É mais ou menos só o que posso pagar, sabe, E pensei agora nas enfermeiras… — O menino não pode ficar numa enfermaria — respondeu o Dr. McManus, bruscamente. — Por vários motivos. Além disso, vai precisar de um atendimento constante, durante algum tempo. Três enfermeiras. O quarto custa 18 dólares por dia, é o melhor que temos. E as enfermeiras ganham nove dólares por dia, sem incluir a pensão. Agora cale a boca. Foi tudo providenciado… por um amigo. — Quem? — perguntou Johnny, desconfiado. — O senhor? Não. Já está fazendo demais, assim mesmo. O Dr. Klein me contou. Não posso aceitar mais nada. — Não sou eu. Nem o Sol — respondeu o médico, com impaciência. — Só um amigo que tem uma dívida com você, que não pode ser paga plenamente. Uma dívida tão grande que o amigo está tentando pagar apenas Uma pequena parcela. — Ninguém me deve nada, nem um centavo — disse Johnny, mais desconfiado e humilhado. — A não ser um soldado, que jogou pôquer comigo. Cinco dólares. Doutor, não posso aceitar caridade, mesmo sendo ministro. O médico levou as mãos aos quadris e olhou para Johnny, furioso. — Ora, quem é que havia de lhe fazer uma caridade, pastor? Quem, em Barryfield, ou em outro lugar, eu gostaria de saber? Deixe de ser burro. Acontece que sei dessa dívida que tem para com você, e, pode crer, pagar por tudo isso é uma picada de pulga comparado com o resto. — Não acredito — respondeu Johnny, com voz cansada. — É ridículo. — Está bem, está bem, não acredite — falou o Dr. McManus, zangado. O Dr. Klein apareceu; louro, de roupa branca, os olhos sorridentes por trás dos

óculos. Riu um pouco das flores e apertou a mão de Johnny e a de Jean. Admirou uma rosa amarela especialmente linda e, pedindo licença a Jean, tirou-a do jarro, com carinho, e a prendeu no casaco. — Foram mandadas da Filadélfia; quase encheram um caminhão — esclareceu ele. — Parece que alguém gosta do senhor e desse menino aqui. E então? — Ele olhou para o Dr. McManus. — Tudo bem. Temos de fazer umas coisas, pastor. O quarto nem é bastante grande, com todas essas flores infernais. Johnny pegou a mão de Jean na sua, com firmeza. — Jean, os médicos têm de prepará-lo para a operação. Vamos esperar até eles acabarem e depois voltamos. OK? Jean hesitou. De repente, sentiu medo. Olhou bem para Johnny e depois para os dois médicos, respondendo: — OK. — Bom — comentou o Dr. McManus. — O guri tem fibra. Por falar nisso, enquanto trabalhamos, leve os outros guris para as salas de exames lá embaixo. Já marquei hora para você. Vai conhecer um de meus rapazes, um irlandês chamado Kennedy. Está esperando por vocês. As crianças, especialmente Pietro, não queriam sair de perto de Jean. De repente rodearam-no num círculo fechado, e seus olhos pareciam de novo os olhos desconfiados de animais. — Ficar — disse Pietro. — Ficar — disseram Max e Kathy. Pareciam estranhos e encurralados, enfrentando inimigos. Então Jean falou, em voz alta e firme: — Vocês não ficam. Não quero vocês. Médicos tomam conta de mim. Fora, Max, Kathy, Pietro. Fora! Eles olharam para ele, sem poder acreditar. Ele empurrou Pietro e Kathy para a porta, com firmeza, e Max os acompanhou, inseguro, com Emilie. — Fora! — repetiu Jean. — Papai! — gritou Pietro, dominado pela sua perplexidade, e Johnny foi logo se juntar ao bandinho assustado. — Bom, garotos — disse ele, com pesar, já no corredor —, parece que nos expulsaram, não é? Estamos atrapalhando lá dentro. Vamos descer para a sala de exames, onde os médicos vão dizer se vocês estão com saúde. Eles se riram com ele e pegaram as mãos dele, aliviados. Depois Johnny viu o Padre Krupszyk descendo por um corredor e de repente sentiu todo o impacto da experiência que Jean ia ter.

— Padre! — exclamou Pietro, com prazer, e correu para o padre, enquanto os outros olhavam espantados. O padre pegou a mão de Pietro, mas foi Pietro quem o arrastou para o grupo à espera. — Padre — explicou ele, com um ar superior, às meninas e Max. As crianças olharam para ele, encabuladas, enquanto Johnny apertava-lhe a mão. O coração do jovem ministro bateu mais depressa, com apreensão. — Jean está sendo preparado — disse ele. O padre Krupszyk meneou a cabeça, consolando-o. — Vou ficar esperando junto da porta, até me chamarem. — Ele parou e seu rosto largo de polonês ficou lindo, quando sorriu. Pôs a mão no braço de Johnny. — Vamos estar rezando juntos, Sr. Fletcher. E vamos nos lembrar que Deus ouve todas as orações. — Os olhos dele mostravam sua preocupação com o rosto abatido de Johnny e a boca, que denotava sua tristeza. — Tenho certeza de que vai dar tudo certo. Johnny apertou bem os olhos, para limpá-los de uma névoa turva. Sem saber como, viu que estava seguindo pelo corredor com as crianças. Pietro estava tagarelando, com um ar importante, contando aos outros sobre o seu “Padre”. Tornou a mostrar-lhes o seu rosário, segurando-o nas mãozinhas morenas, em concha. As salas de exames eram grandes e claras e Johnny foi recebido por um rapaz esguio, de olhos e cabelos pretos, que se apresentou como sendo o Dr. Timothy Kennedy. — Então são essas as crianças. — Sorria para o grupo, que estava calado de novo. O olhar esperto dele tocou nos rostos, ativamente; parou por mais tempo do que agradou a Johnny no rostinho frágil da pequenina Emilie, tão pálido, tão puxado. Então o Dr. Kennedy estendeu a mão e levantou uma mecha comprida do cabelo bonito da menina. — Tenho uma filhinha igualzinha a você, meu bem. Chama-se Mary. Como é o seu nome? Ela se encostou à perna de Johnny e não respondeu. Estava tremendo. — O nome dela é Emilie —. falou Johnny, com a voz mais forte que conseguiu. — E é a minha bebezinha. Minha Emilie. De repente ela passou os braços em volta da perna dele e escondeu o rosto no paletó. Foi Kathy quem tomou conta da situação, com competência. Puxou uma das mãos de Emilie e a segurou. — Eu vou com a Emilie — informou ao Dr. Kennedy, com uma voz severa, matronal. — Bem, claro — respondeu o rapaz. — Por que não? As meninas numa sala. Os meninos na outra. — Ele mexeu nos cabelos de Pietro e o garoto sorriu para ele, travesso. Olhou para Max de novo e sua sorridente boca irlandesa ficou tensa. — Vamos trocar essas ataduras — disse, e seus olhos não estavam mais sorrindo, mas duros como azeviche. Uma enfermeira chegou junto dele, uma garota baixinha com uma cara alegre que reconheceu logo a líder. — Kathy? — Você toma conta da menininha, sua irmã? Você se importa se eu lhe disser que nunca vi cabelos mais lindos do que os seus? Amarelo coma uma tulipa. Quem

me dera ter um cabelo assim. Kathy, que estava olhando para ela com altivez, sorriu, feliz, pavoneando-se. — Obrigada — agradeceu ela, empertigando-se e ajeitando a saía. A enfermeira falou: — Meu nome é Nancy. Gosto do seu vestido, Kathy. Uma vez tive um parecido, e o adorava. As crianças foram levadas dali e Johnny foi mandado para uma confortável sala de espera. Ninguém tomou conhecimento dele, pois os outros ocupantes estavam preocupados com seus próprios temores e aflições. Ele olhou para a mulher gorda e sem vida na sua frente: a pele era branca e puxada em dobras desesperadas. Ela estava torcendo um lenço entre os dedos de luvas pretas e ficava piscando, os olhos secos, vezes e mais vezes. De vez em quando mexia a boca, numa prece muda. Um homem muito magro, macilento, estava sentado quieto ao lado da mulher pequenina: a cabeça parecia uma caveira e ele tinha a morte nos olhos. Câncer?, pensou Johnny, com pena e dor. A consciência daquilo estava escrita no rosto da mulher, de mão dada com ele, olhando para a frente, fixamente, o olhar morto. Havia uma mãe com o bebê, uma coisinha mirrada, choramingando. A mão da mãe, gasta, afagava a cabecinha, e ela murmurava constante, a angústia na voz carinhosa. Havia um velho, os olhos tapados por óculos escuros e uma moça que estava definhando quase a olhos vistos. E uma menina com um corpo bem-feito, cujo rosto estava distorcido pelas cicatrizes. Johnny rezou por eles, do seu coração cheio de medo. Mas a oração era uma busca perdida, como uma criança chamando um pai mudo e distante. Enquanto ele rezava pelos sofredores naquela sala, seus pensamentos voltavam inexoravelmente para Jean, um catavento girando ao vento. Ele disse, intimamente: Como posso rezar pelos outros, ou ajudar os outros, se em mim só há terror e dúvidas? E então uma voz falou dentro dele, com uma autoridade profunda e suave: “Fique tranquilo, e saiba que sou Deus”. Johnny ficou ali sentado, imóvel. Várias vezes, não muitas, ele já tinha ouvido aquela Voz paternal, surgindo-lhe de repente, sem qualquer aviso, não de dentro de si, mas como de fora, de espaços radiosos e perolados cheios de êxtase, palpitando de paz, cheios de compreensão e toda a sabedoria. Ele prendeu a respiração, para não perturbar essa glória mística, esse amor, essa compreensão, essa compaixão e ternura. E essa alegria muda e indescritível, que era como se todo o seu ser estivesse sendo inundado por uma luz nunca vista na terra ou no céu. E então ela o deixou, como uma maré luminosa, mas deixando-o com coragem e força, com humildade e calma. Ele via aquela maré eterna se juntando ao horizonte infindo e brilhante, pairando ali, esperando, nunca desaparecendo. Ele agora podia rezar, não só por Jean, sem medo, mas também por aqueles estranhos, que ele não conhecia. Podia rezar com confiança e paz, olhando com seu olhar interior para a maré e o horizonte e um céu que não era o céu da terra. Alguém tocou em seu braço e ele teve um sobressalto. O Dr. Kennedy estava sorrindo para ele.

— Bem, Sr. Fletcher, tiramos os grampos do pescoço de Max. Está cicatrizando muito bem. Receitamos uma caixa grande de comprimidos para ele. Pietro não podia estar melhor de saúde, se bem que seja um pouco nervoso. E Kathy é só energia e vitaminas. Está convencida de que tem de ser médica. A sua voz jovem estava animada, mas quando Johnny olhou nos olhos dele, eles se desviaram. — Emilie? — perguntou Johnny. Seu coração mirrou um pouco, a despeito de sua vontade e da maré brilhante: o céu e o horizonte escureceram. O Dr. Kennedy olhou em volta da sala de espera. Estava vazia, agora. Ele abaixou a voz e apertou o ombro de Johnny. — Imagino que já sabia mesmo. É o coração dela. Houve um defeito congênito, para começar. E depois aconteceram coisas. O doutor me contou. Não sei como lhe dizer isso, mas não podemos fazer coisa alguma. Nem mesmo a operação experimental dos “bebês azuis”. As coisas foram… longe demais, Sr. Fletcher, ela não poderá viver. Uma semana, um mês, um ano? Não podemos dizer. Mas ela não pode viver. Pode ser… a qualquer momento. Johnny apertou as mãos com força. Sua boca e garganta pareciam um papel velho, seco e empoeirado. Tentou falar várias vezes até conseguir dizer, em voz rouca: — Ela foi examinada várias vezes na Europa. Os melhores médicos, cardiologistas. Eu… a levei à Harley Street, em Londres. Foi em julho. Ele… o especialista… informou que havia uma possibilidade de 50%… não entendo. Como… como é que o estado dela pode ter-se deteriorado… assim? — Essas coisas acontecem — respondeu o médico, com pena, — Ela é só uma menina pequena… cinco anos. Mas tem suas recordações. O senhor fez todo o possível, mas o pavor e o sofrimento permanecem na mente dela. E… — ele levantou a mão, com eloquência, deixando-a cair com um gesto de desespero. O amor só pode ir até certo ponto, sabe. Terá o consolo de saber o quanto fez, e quanto deu à menina. — Não basta — murmurou Johnny, engolindo convulsivamente. — Um hospital? Uma internação? Pode ajudar? O médico pensou. Depois sacudiu a cabeça. — Ela teria de passar o tempo todo na cama ou em cadeira de rodas. Longe do senhor e dos outros. Receio que ela se fosse mais depressa ainda, nessas circunstâncias. Ela… ah, ela morreria de susto e solidão. Lembre-se, ela não é uma menina comum, com recordações comuns. — Não — falou Johnny, com violência. Bateu no joelho com o punho. — Não. — Não a pequenina Emilie, com os grandes olhos azuis tensos, o sorriso infantil e confiança, a mãozinha tímida, os jeitinhos ansiosos, o carinho encabulado. Por que não lhe posso dar o meu coração?, pensou Johnny, em agonia. Meu sangue, minha carne? Minha vida? O Dr. Kennedy suspirou. Pensou na própria filha e compreendeu. — O senhor pode estar enganado — insistiu Johnny, tossindo, como que engasgado. — Creio que… uma clínica. Mayo? Cleveland? Johns Hopkins?

Os olhos dele pesquisaram o rosto do médico, buscando a menor esperança. — O senhor estaria perdendo tempo e dinheiro. Eu… nunca vi um coração em tão mau estado. É um milagre ela respirar, de um momento para outro. Gostaria de ver as radiografias? Olhar pelo fluoroscópio? Acho que isso o deixaria sentindo-se pior ainda. É um milagre que ela respire, de todo. Ou que tenha sobrevivido. Mantenha-a o mais sossegada e confortável que for possível. Não a mande para a escola. Controle as brincadeiras dela. Faça com que durma frequentemente. E sossego. Nada de agitação. Sabia que ela sente muita dor? Dor! A menina nunca falara disso, nunca se queixara, nunca chorava! Johnny olhou para o Dr. Kennedy, torturado. Para ele, aquilo era o horror supremo, que uma criança, pouco mais que um bebê, tivesse a força, a aceitação, a humildade madura de aceitar o sofrimento sem se queixar, aceitar aquilo como normal e natural, sem uma filosofia adulta para apoiá-la, ou uma fé compreensiva. Ele falou, sufocado: — Eu… poderia aceitar isso, se ela tivesse idade… para acreditar em Deus. — E como é que sabe que ela não tem essa fé? — indagou o Dr. Kennedy. — A idade dela? Sua ignorância, a não ser o que aprendeu com o senhor? Como sabe que a fé só é reservada para aqueles que podem raciocinar de um modo adulto? Johnny abaixou a cabeça. — Eu não devia estar lhe falando assim — continuou o Dr. Kennedy, desculpando-se. — Afinal, é um ministro. Johnny levantou os olhos. — Um ministro — respondeu ele, com certa amargura. — Eu fico me esquecendo que sei. — Suas mãos cerradas estavam doendo e ele então sorriu, sombrio. — É, eu me esqueço. Por vezes a lógica também me impressiona. É, como é que eu sei que Deus não consola os bebês e as criancinhas? O Dr. Kennedy sorriu para ele. — Bem, dei um comprimido à menina, há uma meia hora. Eu também não saberia, se bem que desconfiasse de que ela podia estar sentindo alguma coisa. Foi só quando ela… bem, coitadinha… beijou minha mão e me disse que o remédio “levou o rato embora”, e pôs a mão no peito. Levou o rato embora, o rato na gruta, na casa do carrasco nas florestas e morros onde ela se escondera com os outros! É, ela havia de associar um rato com a dor. O Dr. Kennedy estava pondo uma caixa na mão de Johnny. Disse, bruscamente, para encobrir sua emoção: — Ela deve tomar três por dia. Vai ficar mais confortável. E aqui está uma receita para mais. Johnny guardou a caixa no bolso; as mãos trêmulas dobraram a receita. — Não posso evitar, mas sabe de uma coisa? Ultimamente estou começando a sentir muito ódio. Mais ainda do que na Europa. Estou detestando muita coisa. Estou começando a não poder suportar a humanidade. E eu, que sou um ministro!

— Não se sinta culpado. Nunca soube que fosse ruim odiar o mal. Kathy apareceu, toda rosada, reluzente e loura, conduzindo Emilie com ar maternal. Johnny olhou para a pequenina, para sua pele pálida e translúcida, as olheiras lilases, a carne transparente. A única coisa saudável nela era aquela abundância de cabelos compridos e brilhantes, como um xale sobre os ombros, descendo pelas costas. Johnny estendeu os braços para ela é ela foi para junto dele, aninhando-se no seu joelho. O coração dele quase se partiu. Ele encostou a face em cima da cabecinha dela, olhando para a frente, sem expressão, sem conseguir rezar, só podendo sentir sua dor intensa.. E então ele tornou a ver a maré brilhando, incandescente contra o céu eterno e a paz o invadiu. Disse, em voz alta: — Eu tinha esquecido. Carregou Emilie, e, acompanhado pelas outras crianças, tornou a subir para o andar cirúrgico. O Dr. McManus, o padre e o Dr. Klein estavam conversando do lado de fora do quarto de Jean. Os olhos brutais do Dr. McManus foram logo para os de Johnny, pois ele já sabia. Viu que o rapaz estava muito pálido mas que estava sorrindo e o velho médico suspirou. — Bom, estávamos pensando que vocês não iam voltar nunca. Já tomou o seu chá? Ouvi dizer que os pastores têm mania de chá; meu pai tinha. Ou será que estou só me lembrando dos romances ingleses sobre os vigários. — A voz e o aspecto dele estavam azedos. — Podem entrar. Já demos um sedativo preliminar, por isso não o incomodem. Ele não vai saber de nada, durante pelo menos duas horas. Eles entraram, de mansinho. Jean parecia muito pequenino e afundado na cama branca, no meio daquele caramanchão incrível de rosas coloridas. Estava de olhos fechados. Mas abriu-os logo quando Johnny se pôs a seu lado. Mexeu com a mão e murmurou: — Papa? C’est tu? O sedativo já tinha produzido efeito; seus olhos claros estavam vidrados, cheios de sonhos. Johnny apertou bem a mão dele. — Oui, c’est moi, mon petit. O menino fechou os olhos de novo, sorriu tranquilo e dormiu. As crianças olharam para ele, assombradas. O sorriso ficou no rosto de Jean; ele estava de volta no sossego e calor ensolarado de alguma casinha esquecida, com o perfume do vinhedo entrando pela janela de venezianas e a luz caindo nos morros baixos e verdejantes. O pai estava lendo para ele. A mãe arrumava flores vermelhas e amarelas numa mesa velha e encerada. Ele virou a cabeça e ela lhe lançou um olhar doce. Ele murmurou, dormindo, consolado. Johnny ajoelhou-se ao lado da cama e as crianças se ajoelharam com ele, numa oração muda. Ele se levantou. — E agora temos de deixar Jean com seus bons amigos, os médicos, e, quando ele acordar, voltamos para vê-lo.

Mentalmente, ele se agarrou à visão da maré, o horizonte e os espaços perolados, e saiu com as crianças. O Dr. McManus e o Dr. Klein já tinham saído. Mas o padre estava esperando. Seus olhos preocupados procuraram o rosto do jovem ministro. — Que tal irmos a uma lanchonete e apresentar os guris a uns hambúrgueres, cachorros-quentes e milk-shakes? — Duas horas, eles disseram — murmurou Johnny. — Isso demora — confirmou o padre. — Então, garotada, que tal? Pegou a mão de Pietro. Pietro estava sempre pronto para novidades, e pulou, mesmo sob o olhar reprovador de Kathy. Max sorriu. Estava com um pouco de cor nas faces ressecadas. — Tenho uma paróquia — disse Johnny. — Primeiro tenho de ligar para casa, para ver se houve algum chamado de doentes… ou alguma coisa. O padre olhou para o lado e falou, animado: — Bom. Esperamos por você lá embaixo. Mas ninguém tinha ligado, informou a Sra. Burnsdale, com pena. Depois acrescentou: — Acho que todos sabem que o senhor hoje está no hospital. Ela não prosseguiu com a ideia, na sua cabeça, de que certamente alguém, qualquer pessoa, poderia ter telefonado para indagar de Jean, ou exprimir a aprovação ou reprovação do sermão da véspera, ou fazer algum convite amável. Johnny desligou. Lembrou-se do jantar de boas-vindas. Como o conselho tinha sido amável e entusiasta, naquele noite, e a Assistência Feminina tão ardente, e as outras senhoras,! No entanto, agora só havia silêncio. Fracassei, de algum modo, pensou o ministro. Como? Onde? Nada do que toco vinga. A dor em seu coração passou a uma corrosão doente e ardente, quando ele se lembrou de Jean e Emilie. — Acho que sou um pastor falso ou ineficiente — disse ele ao Padre Krupszyk, enquanto todos andavam pela rua cheia de escória para a lanchonete favorita do padre. — Talvez seja porque eu tenho dúvidas… De- repente, sinto que sou um fraco, de algum modo. Talvez que o meu primeiro sermão não devesse ter sido sobre o pecado, o arrependimento e a penitência. Talvez devesse ter sido um sermão de gratidão por minha congregação me ter aceito e talvez eu devesse ter prometido coisas para. fazermos juntos. O padre virou-se para ele: Emilie estava satisfeita, empoleirada nos ombros de Johnny. As crianças estavam andando perto dele. O padre falou: O Evangelho é sempre o amor, o arrependimento, a penitência, o sacrifício. Não há outro. — Não obstante… — começou Johnny. — Não pode haver consolo, nem consciência do amor de Deus, até o homem saber o que fez e se mostrar contrito. Não podemos dar o maior dos Sacramentos sem primeiro um ato de contrição. De que outro modo, senão pela humanidade e o conhecimento de nós mesmos, podemos nos aproximar de Deus?’— perguntou o padre. E acrescentou: —

Embora seja verdade que Deus saiu para as trevas e o deserto, em busca da ovelha desgarrada. Ele sabia que tinha um rebanho obstinado e desobediente. A ovelha não se teria desgarrado, para começar, se o rebanho tivesse cuidado dela, se o rebanho a tivesse abrigado e mantido segura. Ele afagou a cabeça saltitante de Pietro. — Oi, ovelha. Pietro ficou encantado. Deu uns pulinhos para a frente e então, para espanto e contentamento de Johnny, Max pulou atrás dele, o primeiro gesto de brincadeira que ele jamais vira. — Claro — concordou Johnny, e sua voz estava mais forte.

XIII Mas duas horas depois Jean continuava na sala de cirurgia. Johnny levou as crianças para casa no carro do padre, veículo animado, barulhento e antigo. — Estarei sempre em contato com o hospital — disse o Padre Krupszyk — e, quando chegar a hora, estarei lá com você. Então, agora era só esperar. Johnny contava à Sra. Burnsdale a respeito de Emilie, e a mulher chorou um pouco. Ela levou Emilie para a cama e Johnny e as três outras crianças foram andar no jardim despido. — Isso demora — dissera Johnny. — Enquanto estamos esperando, que tal escolhermos os lugares onde vamos plantar nossas árvores? Ele via a rua fria e cheia de cinzas por cima da cerca pequena e inclinada. Crianças estavam voltando da escola, correndo; donas-de-casa passavam por ali, os braços carregados de sacos ou empurrando carrinhos de bebê. A luz ficou mais embaçada; o cheiro penetrante de gases industriais ficou mais enjoativo. Johnny e as crianças andaram por cima da grama cortada e muitas ervas cortadas, planejando seriamente o futuro jardim. As árvores frutíferas iam cercar os fundos do terreno. Dos lados haveria arbustos de flores; no outro lado, roseiras trepadeiras e uma moita de lilases. As crianças estavam absortas. Discutiam com Johnny e entre si. Haveria realmente um jardim ali, um dia?, pensou Johnny. Olhou para o lado de sua igrejinha triste, as paredes sujas,’ a torre feia. Tudo era tão desolador. Projetava a desolação de seu espírito, a despeito de sua vontade. O silêncio de sua congregação era sinistro. Prestou atenção, ansioso, para ver se ouvia a Sra. Burnsdale chamar, mas a porta dos fundos permanecia fechada. Se ao menos alguém telefonasse, qualquer pessoa, pensou. Sinto-me só. Pior, sinto que cometi algum erro terrível, e que fui rejeitado. Ou — e então ele parou e seu corpo ficou frio — são as crianças que foram rejeitadas? Seriam rejeitadas para sempre, não só pelos assassinos do outro lado do oceano cinzento, mas também ali? Nunca teriam um lar, para afundar suas raízes, para se unirem ao resto da humanidade? Párias para sempre, esses inocentes que não tinham feito nada para merecer a tortura e o ódio? A vingança do homem sobre os inocentes nunca se satisfaria? Não, pensou Johnny, nunca se satisfaz. As crianças o tinham deixado para se empenharem numa violenta discussão acerca do local exato onde plantariam suas árvores especiais. Ele estava ali sozinho no centro da desolação do terreno árido, um vulto alto e negro contra o céu pálido. Não viu o grupo de meninas que se tinha juntado do outro lado da cerca, os livros escolares pendurados nos ombros. Estavam rindo para o ministro, com maldade, os olhos brilhando. Então um dos garotos gritou para ele, num grito de um ódio alegre: — Leva os judeus daqui, seu escravo preto! — Fora! — gritaram os outros, saltando na calçada em seu êxtase de ódio, sua ânsia quase voluptuosa de destruir e dilacerar, uma ânsia sempre urgente, nunca adormecida,

sempre se contorcendo sob uma superfície precária de civilização. — Fora! — gritaram. Crucifiquem-no, diziam em seus corações. Crucifiquem-no, pois tem compaixão e não fez mal algum. Johnny teve um sobressalto. Seu primeiro cuidado foi com as crianças. Tinham parado onde estavam, um silêncio gelado, os rostos parados. Kathy agarrou os dois meninos, abraçando-os com força. Ficaram ali, esperando. No entanto, a fúria dos meninos grandes agora não estava dirigida contra as crianças mas sim contra o símbolo visível daquilo que temiam e de que fugiam em todos os momentos de suas vidas. Johnny começou a andar em direção a eles, devagar e com firmeza, o rosto branco, os olhos azuis faiscando. Eles pararam de pular e gritar e ficaram esperando por ele, os lábios torcidos molhados, os olhos brilhando. — Quem são vocês? — perguntou ele, severo. — O que estão fazendo aqui?O líder dos meninos lançou aos outros um olhar ladino e cintilante. Suas mãos agarraram as estacas da cerca baixa e ele se curvou, como se se preparasse para saltar. — Esta é nossa igreja — disse, com uma voz que parecia um rosnido. — Pertencemos a ela. Você não. Queremos que dê o fora, sabe? Você e esses… — e gritou um palavrão. Johnny parou, a quase três metros da cerca. — Os seus pais é que lhes disseram isso? Eles lhe berraram uma afirmativa demente e recomeçaram a pular, como que alucinados com sua raiva orgíaca contra ele. Eram os dervises alucinados de toda a perversidade, girando em círculos. Mas o líder não se mexeu. Ficou com os olhos de basilisco pregados em Johnny, numa alegria ameaçadora. Johnny ficou calado. Não tinha palavras. O que se podia dizer a gente assim? O que seria eficaz? O que poderia desviar o ódio deles? O coração estava ardente de raiva. Aquele era seu rebanho; eram seus filhos, numa servidão espiritual. Eram os jovens que, amanhã, seriam homens; ali, naquela igreja, tinham sido batizados e crismados. Ali tinham-lhes ensinado… o cristianismo? Quem fracassara com eles, desde o momento em que nasceram? Ele deu toda sua atenção ao líder. Sua voz estava menos severa. — Você diz que pertencem a esta igreja. Então, deve ser cristão. Mas será mesmo um cristão? O rapaz lambeu os lábios e o brilho de seus olhos se intensificou. Estava-se divertindo. — Sou, claro que sou — respondeu. —·Um bom cristão americano branco. É o que sou. Não gosto de estrangeiros, gringos imundos, entende? Já temos bastantes nesta cidade, e não queremos os seus. Entende? Que tipo de ministro é você, afinal, trazendo-os para cá?

Johnny deu outro passo em direção à cerca. Os outros garotos correram para o lado de seu líder, com pedaços de ferro e um ímã. Juntaram-se em volta dele, as cabeças maldosas se sacudindo. — Sabe — falou Johnny, com brandura —, foi isso que o povo de Jerusalém disse de Jesus. Sabe o nome dele? Jesus. Era da Galileia. Era pobre e não tinha lar. Não… falava… a língua… direito. Tinha um sotaque, não como o povo de Jerusalém, que tinha certas vantagens. Era um estrangeiro. Como essas minhas crianças aqui. O rapaz tinha uma cara má, mas inteligente. Os olhos dele reluziram sobre Johnny. Ficou calado e as pálpebras piscaram-. — Pega ele — murmurou um de seus companheiros. O líder não fez caso. — O que Jesus tem a ver com esses estrangeiros que você trouxe para cá? — perguntou ele, com desdém. — Estrangeiros — disse Johnny, pensando. — Ah, sim. Era o que o povo em Roma chamava os Apóstolos de Deus. E o próprio Deus. Quando você reza, pede a um Estrangeiro para lhe ajudar? Se é que reza? O rapaz tornou a piscar e franziu a testa. Ninguém jamais lhe contou, pensou Johnny. Ninguém jamais lhe contou a verdade. Johnny continuou: — Deus escolheu uma moça judia para ser a Mãe do Filho Dele. E o Filho dela estava dentro de uma pele judia. Você não sabia? — É mentira — disse o garoto. — Nunca leu a Bíblia? — perguntou Johnny. — Nunca ninguém lhe deu uma Bíblia? — Nunca ouvi dizer que Cristo fosse judeu — respondeu o garoto, em tom de desafio. — Deus é cada homem, cada raça, cada cor. — Ele agora tinha chegado à cerca e pôs as mãos nas estacas. — Deus é cada católico, cada judeu, cada protestante, cada maometano, cada budista. Não ouviu falar disso? Onde estão seus mestres? Onde estão os seus pais? Onde estão os seus pastores? — Hein? — As mãos do garoto caíram das estacas. — Quem é que o traiu? — perguntou Johnny. — Traiu? — perguntou o garoto, por sua vez. Ele fechou a cara. Tinha seus 16 anos, os cabelos cortados rente, um rosto magro e cadavérico e estava vestido desmazeladamente de propósito. — Ah, quer dizer, quem me deixou na mão, é? — É, quem o deixou na mão? Quem deixou o mundo na mão? O menino olhou para ele, com um ar esperto. — Talvez fosse você — respondeu, rindo, com desprezo. Os garotos pularam em volta dele, sem compreender, os olhos dilatados. — É — concordou Johnny —, creio que tem razão. O garoto desviou o olhar, mordendo o lábio. Agarrou a cerca, nervoso. Estava com

um ar furioso e suas sobrancelhas se contorciam. Outro garoto disse, irrequieto: — Vamos logo. O líder mais uma vez não fez caso dele. — O que quer dizer, tenho razão? — perguntou, emburrado. — Você disse que fui eu — respondeu Johnny, a voz cheia de pesar. — Eu o traí. Cada pastor que você já teve o traiu. E seus pais e seus professores. Perdão, filho, pois sabíamos o que estávamos fazendo. — Ele fala feito doido — disse um dos meninos. — O que há com você, Lou? — Puxa, é biruta — falou outro. — Cala a boca! — gritou o líder, virando-se para os outros, num frenesi. — O que estão fazendo aqui, hein? Mas era tarde. Um dos garotos levantou a manzorra e atirou uma pedra em Johnny. A pedra o atingiu na têmpora e ele cambaleou. Uma chama explodiu num círculo em volta de sua cabeça. Então, pensou, aturdido, é assim que é uma coroa de espinhos, pontos separados de fogo furando o crânio. Ora, como é que Ele o suportou, o Inocente, o Sem Culpa? Uma escuridão repentina o inundou; no fundo do abismo ele via a Cruz erguida, escura contra uma luz forte. Bem, é, pensou, lá está; acho que me esqueci. Mas o que era aquela massa de rostos em volta dele, rostos como balões inchados, estufados, brancos, fitando com bocas abertas que soltavam gritos e berros? Vão embora, pensou dizer em voz alta. Estou muito cansado. Acho que podia dormir. Preciso dormir, para poder suportar o que está acontecendo com Jean e Emilie. Descansar, descansar. “Sono e repouso, sono e repouso. Vento dos Mares do Oeste”, cantava uma mulher, a voz suave de uma moça, mãe dele. Ele se tinha esquecido dela. Ela morrera quando ele tinha 12 anos. Cante para mim, mãe, disse ele consigo. Estou tão cansado. Uma mão quente tocou em seu rosto, e lágrimas caíram em sua face. O escuro girava em volta dele. Eu não devia pensar na minha mãe, pensou ele. Não devia me lembrar do amor, da suavidade e ternura. Como se chamam essas coisas hoje? Sentimentalismo? Verdades eternas. Vejam como se riem. Uma mulher estava gritando desesperadamente, num lugar longe no espaço. — Socorro, socorro — gritava ela. Sim, ele gritou de volta, mas ela não ouviu. Ela virou o rosto branco para ele, e ele viu os olhos cor de turquesa e eles encheram todo o universo, — Claro, claro — disse uma voz de rapaz. — Está bem, agora. Está tudo bem. Mas não está, pensou Johnny. Por que sempre dizem isso, quando é mentira? Ele abriu os olhos inundados. Viu um vasto mar de vermelhidão pelas linhas ondulantes de uma janela redonda. O pôr-do-sol, pensou. Estava deitado em sua cama, assustado. Virou a cabeça e encontrou os olhos preocupados mas sorridentes do Dr. Timothy Kennedy, e ficou mais espantado ainda. Perguntou, numa voz fraca: — Emilie?

O médico fez que sim. — Emilie, sim. Bem aqui. Os garotos estão bem aqui. E Johnny os viu, ao pé da cama: Emilie, Pietro, Kathy, Max, os rostinhos sérios e pálidos. Então, quando viram que ele os estava reconhecendo, abriram-se em sorrisos alegres e Pietro pulou, excitado. — Jean! — exclamou Johnny, tentando sentar-se. Mas sentiu uma dor monstruosa na cabeça e então todos os rostos ficaram duplos, e uma náusea horrível lhe subiu pela garganta. O Dr. Kennedy o fez deitar-se, embora ele resistisse. Enfiaram uma agulha habilmente em seu braço e ele viu que estava de pijama. O que lhe acontecera? Jean. Depois… os garotos, a pedra. Ele gemeu. A Sra. Burnsdale estava entrando no quarto, uma Sra. Burnsdale inchada, de duas cabeças e com ela vinha uma figura grotesca e terrível, também com duas cabeças, andando como um sapo imenso muito junto do chão. Ele mal reconheceu aquela criatura como o Dr. McManus. Virou-se daquela visão, enjoado, e aí num canto do quarto viu um menino grande encolhido numa poltrona, as mãos cerradas nos joelhos. Ele gemeu de novo, — Jean? Jean? O que… o que… ? O Dr. McManus pegou o pulso dele e contou as pulsações. Depois falou, com a voz esganiçada: — Não posso deixar você fora de minhas vistas por um minuto! Mete-se logo nas piores encrencas. Agora fique quieto. Está com uma concussão cerebral. Amanhã vai tirar uma radiografia. Talvez haja uma fratura, mas não creio. — Ele tocou uma atadura na cabeça de Johnny e disse, com uma voz mortífera: — Mas esse porco não vai se esquecer deste dia, até o fim da vida dele. O garoto no canto gritou: — Não vou! — e começou a chorar. — Cale a boca, seu porco — ordenou o Dr. McManus. — Jean? Jean? — murmurou Johnny, com urgência. A dor na cabeça estava diminuindo, mas ele sentia nela um fogo individual, pontos de fogo. — Bom — disse o Dr. McManus, sentando-se no lado da cama —, agimos bem a tempo. Ele estava ficando com osteomielite num dos ossos. Coisa infernal de curar. Mas tem uma boa possibilidade, com essa penicilina; quase desesperador sem ela. Tivemos de quebrar os ossos da perna, e um do braço. Mas conseguimos pô-los no lugar! Sim, senhor, aquele garoto vai ficar bom! Pode voltar para casa daqui a umas três ou quatro semanas. Estará novo na primavera; guarde isso na cabeça, com firmeza, pois ele tem um pedaço duro pela frente, ainda. Ele franziu as sobrancelhas grossas e grisalhas olhando para o Dr. Kennedy. — Seis pontos — disse o jovem médico. — Concussão, como pensei.

A Sra. Burnsdale tinha colocado uma jarra de água e gelo ao lado da cama. Seus olhos duros estavam vermelhos de tanto chorar. Ela afagou a mão de Johnny. — Está vendo, está tudo bem… meu bem. O doutor me disse que Jean já acordou e… — Tenho de ir já para junto dele — disse Johnny, lutando agora contra o efeito do sedativo. — Ele precisa de mim, ele me quer lá. — Quieto — respondeu o Dr. McManus, e havia força naquele braço curto que o empurrou, fazendo-o deitar. — Depois que a Sra. Burnsdale ligou para o hospital a respeito de você, dissemos a ele que um dos outros guris ficara doente e que você não podia deixá-lo, no momento. Ele compreendeu. É um garoto inteligente. Não está sozinho. Sol Klein está com ele. Deus, mas que trabalho ele fez! Vai fazer parte do pessoal desse hospital, do contrário eu mesmo o derrubo, pessoalmente, pedaço por pedaço. Ou melhor ainda, vou construir um hospital, três vezes o tamanho daquele, e pôr lá os melhores médicos. Isso ensina a eles. Agora, olhe aqui, pare de querer se sentar. Não pode — acrescentou o Dr. McManus, calmamente. — Está com uma concussão e pode ser grave. Em outras circunstâncias, eu o levaria para o hospital de ambulância, mas os garotos iriam morrer de aflição. Comporte-se, senão o pomos numa camisa-de-força e o levamos para o hospital mesmo. As cabeças flutuantes e duplas estavam-se juntando de novo, tornando-se uma só. Um latejar surdo e quente começou na têmpora de Johnny, mas a agonia aguda tinha passado. Ele tentou sorrir, mas os pontos tesos repuxaram sua carne. Fez uma careta. — Quanto… tempo? — perguntou Johnny, a voz fraca. O Dr. McManus pareceu muito displicente. — A coisa de sempre. Quando o hospital soube, mandaram Tim para cá de ambulância; ele se ofereceu. Mas você berrou por causa da ambulância; fez um escarcéu danado. Não pode se lembrar. Então os camaradas o carregaram cá para cima. Você tentou andar. Engraçado, essas concussões. Você até falou do porcaria de desgraçado que o atacou. Eles fugiram, claro. Mas esse criminoso ficou. — O Dr. McManus olhou furioso para o garoto que estava chorando no canto. — Por quê, não sei. E você disse que não era para chamar a polícia, só os pais. — O Dr. McManus pigarreou, de um modo horrível. — Bom, não estavam em casa. Os dois trabalham numa fábrica. Falei com o supervisor. O pai ganha mais de cem dólares por semana. Não basta para a mulher, se bem que só tenham este brutamontes aqui. Ela tem de ter todos os raios de aparelhinhos que vê anunciados, então vai trabalhar numa fábrica e deixa esse garoto dos diabos solto na rua, fazendo baderna. Também têm um carro grande e reluzente. Melhor do que o do supervisor. A velha história. Bom para esta terra. Casinha imunda, cheia de todo tipo de maquinaria que se possa imaginar, e móveis velhos e sujos. Ele continuou: — Ao todo, você esteve consciente e inconsciente por umas duas horas. Nada de muito grave, se bem que vá ficar com uma cicatriz no lado da cabeça. Como recordação. — A voz esganiçada ficou selvagem. — Talvez que acabe aprendendo como são as pessoas. Um calor suave inundou a carne fria de Johnny. Ele sorriu, sonolento.

— O garoto — pediu. O Dr. McManus virou a cabeça grande e desgrenhada, os cabelos grisalhos parecendo sapê. — Venha aqui, você — resmungou. — O pastor quer olhar para o tipo de desgraçado que faz arruaças e quase o mata. É, mata, foi o que eu disse. Uma diferença de um centímetro, e seria um assassinato. O garoto magro e encolhido, as faces cavadas cheias de lágrimas, esgueirou-se até a cama. Ficou ali, os olhos fixos na mão de Johnny. Ele engoliu em seco, uma ou duas vezes. Johnny disse, com brandura, por entre a névoa confortadora do sedativo: — Como se chama, filho? O menino tornou a engolir, e depois balbuciou, a voz rouca: — Eu… meu nome é Lon Harding. O garoto levantou a cabeça e olhou para ele, ali, branco, fraco e frouxo na cama. Depois fechou os olhos, convulsivamente. — E que idade tem? — A voz de Johnny abrandou-se mais ainda. — Tenho 16 anos — sussurrou. — E você não fugiu com os outros, Lon? O garoto abriu os olhos. — Não, senhor, não fugi. Não podia. Foi o que o senhor disse… de repente… não consegui. O senhor… caiu. Os garotinhos gritaram, e começaram a correr em círculos. Aí… essa senhora aqui saiu da casa e eu disse a ela para ligar para o hospital. Bem, o senhor estava sangrando, ali. Eu tinha um lenço limpo e o meti onde… aprendemos isso nos primeiros socorros, na escola. Apertei com força mesmo. — Ele soluçou, Remexeu no bolso e puxou o lenço. Estava uma bola dura, acastanhada e avermelhada. — O senhor sangrou muito. Mas o doutor aqui disse que eu fiz bem; parei uma artéria, ou coisa assim. O Dr. Kennedy olhou para ele calado e sério. — E o tempo todo, Sr. Fletcher, o senhor ficou ali deitado, dizendo que estava bem. — A voz do menino falseou. — Disse que não tinha importância. Eu… pus o meu casaco debaixo de sua cabeça, enrolado. Eu disse que sentia muito, o senhor respondeu que estava bem. Parecia que estava bem, também. — Um sorriso débil tocou a boca trêmula do garoto. — O senhor bem que tentou lutar com o pessoal da ambulância, ficou empurrando todos eles. E deixou que eu ajudasse a trazer o senhor para cá e eu ajudei a despir o senhor. — Você é um garoto muito esperto, Lon — Johnny levantou a mão com muito esforço e pegou o punho cerrado e sujo do garoto. — Em que ano do ginásio está, Lon? Um tom de orgulho apareceu na voz rouca do garoto. — Bom, já estou no último ano. Quase só tiro 10. Na primeira terça parte da turma. A professora quer que eu vá para a universidade. Quero ser engenheiro… mecânico. Mas não temos dinheiro.

— Claro, um garoto inteligente — disse o Dr. McManus, com ódio. — Tão inteligente que planeja um tumulto e traz outros assassinos com ele, para assustar as criancinhas e atacar um ministro inofensivo. Se isso é inteligência, então todos os cães assim deviam estar na cadeia. Mas Johnny o interrompeu: — Você não fugiu. Ficou. Sabia que ia se meter em encrencas, se ficasse. Mas não fugiu. — Não — sussurrou o garoto. — Como podia fugir? O senhor estava precisando de mim. A mão de Johnny apertou os dedos rígidos do garoto. — Por quê, Lon? — perguntou. O garoto corou; não tentou se afastar das mãos de Johnny. — Bem, sabe, meus pais não estão muito… bem, eles nunca tiveram muita instrução. Mas o cara escuta os pais, mesmo sabendo que eles não têm muita instrução. E o pai estava dizendo ontem: “Trazer todos esses estrangeiros, para tirar nossos empregos. É o que querem fazer, o tempo todo. Põem os americanos na rua e dão nossos empregos aos estrangeiros”. E a mãe disse: “Isso mesmo. Já está bem ruim, desde que acabaram com a guerra, quando a gente estava ganhando bastante dinheiro, e comprando todas as coisas que queremos. Pararam a guerra, depois de nos dizerem que ela ia continuar durante anos e anos, e a gente ia ficar rico. Mentiram pra gente”. Foi isso que a mãe disse. E ela e o pai continuaram falando que todo mundo ficou doente, doente mesmo, nos dias da vitória na Europa e no Japão. O supervisor tinha dito a eles para não se preocuparem com o dia da vitória na Europa. O governo ia continuar a guerra por muito tempo, com os japoneses. — Pelo amor de Cristo! — exclamou o Dr. McManus, olhando para o Dr. Kennedy, que meneou a cabeça. — Então, esses patetas pensavam que as guerras são travadas para beneficiá-los, para eles ganharem bons ordenados nas fábricas! — continuou o velho médico. Depois teve uma ideia e enrugou a cara. — E talvez sejam mesmo, talvez sejam! Lon interrompeu, aflito: — É tudo confuso. — Então, você escolheu os primeiros pobres coitados que encontrou, para endireitar a sua confusão! — falou o Dr. McManus, enojado. As crianças, pensou Johnny, em seu sonho, flutuando embora. São sempre as crianças — traídas, perplexas, assustadas, brutalizadas, esquecidas. Em algum lugar na escuridão morna, ele estava segurando uma mão. Ele apertou a mão e rezou: Que venham a mim. Que eu possa ajudá-las. — Por favor — pediu o garoto —, deixem-me ficar com ele.

XIV — Aquele pastor está metido em encrencas de novo — disse o Sr. Summerfield. — Tenho de conversar com o chefe de polícia. Talvez a gente consiga obrigá-lo a sair de Barryfield. Não queremos encrenqueiros aqui. Lorry, ainda não basta? — Não sei por que não podemos ir a Filadélfia na segunda-feira que vem — reclamou Esther Summerfield, mulher dele. — O Ballet Russo. Todos estão loucos por ele, MacDonald, veja as fotos, bem aqui no seu jornal. Tanta graça, tanta arte. Lorry, por que você parou com as aulas de balé? Ah, Lorry, por favor, basta de coquetéis. Era uma delícia atravessar a fronteira, onde tudo era dourado, macio, alegre, paz, entusiasmo, todo um significado vivido e incandescente. Lorry Summerfield estendeu o copo para outro martini grande. Ela pediu ao mordomo: — Vamos, George, não seja sovina. Não precisa da azeitona nem da cebola. Era quase possível suportar os pais, depois do quarto coquetel. Era quase possível suportar a vida. As recordações voltavam, quando a gente bebia. Nem sempre recordações feias. Recordações de ruas tranquilas, sombreadas pelos olmos e risos de criança e um pai que a gente amava e em quem confiava e flores num jardim verdejante e o amor de um irmão tão sério mas que a gente fazia sorrir e por vezes rir. — Estou pensando no Barry — disse ela, em voz alta, a voz cuidadosamente controlada. Esther Summerfield olhou para ela com uma aversão delicada. — Você sempre fala no Barry quando bebe demais, meu bem. Lorry, você não precisa disso, sabe? — Ora, como é que pode saber? — perguntou Lorry, — Quem lhe disse quanto eu preciso, só para continuar a viver? A névoa dourada estava zunindo cheia de abelhas. Os sinos da tarde repicavam por cima dos montes mudos, docemente, metálicos, solenes, chamando. Mas não há sinos em Barryfield, pensou Lorry, severa. Pelo menos, não muitos. Além disso, eu não os poderia escutar daqui. Os sinos repicavam deliciosamente e Lorry sorriu, satisfeita. Ela se deixou afundar mais na poltrona, escutando os sinos. Tinham um tom de Mozart, agudos, suaves, infinitamente harmoniosos. Como uma espineta. Nessas ocasiões ela sempre tinha uma visão misteriosa. Estava sentada contra uma parede de um dourado pálido, apagado e frio. À sua esquerda abriam-se largas portas para um jardim cinzento. Vultos de homens e mulheres estavam no vão da porta da sala, de perucas empoadas, casacos de brocado, saias cheias e farfalhantes, cumprimentando-se cerimoniosamente antes de entrarem naquele jardim nublado, de onde nunca mais voltariam. Lorry via as árvores além do jardim, formas difusas e vagamente luminosas, envoltas no vapor. E na sala em que ela estava havia o tilintar da espineta, melancólico, frágil, muito débil. Estou tão só, dizia ela para si, quando os outros desapareceram nas névoas do jardim. Ninguém me vê. A espineta continuava tilintando, aspergindo a sala grande e espectral com um perfume de uma

harmonia dolorosa. Ah, Deus, disse ela. Viu o vulto elegante de um homem de peruca branca desaparecer na neblina além das portas. Volte, meu amor, exclamou ela, em seu íntimo. Volte e olhe para mim. Já se esqueceu? A espineta tilintava, tristemente. — Realmente, querida, o que quer dizer? — perguntou Esther, impaciente, mexendo em seus ‘cortinados de “arte”. — Quem se esqueceu de você? MacDonald, já lhe disse vezes e mais vezes que Lorry não pode tomar mais de dois ou três copos. Olhe só para ela, Está com os olhos vidrados. Está fitando a parede como uma idiota. Se eu me levantasse, pensou Lorry, podia acompanhá-lo lá para fora, e pegar o braço dele e ele se viraria e olharia para mim com aqueles olhos azul-escuro e sorriria. Mas seu sorriso seria frio e reservado e assombrado, como se não me conhecesse. A mulher ao lado dele, figurinha delicada, pegaria nele, dizendo: “A gruta é tão linda, lá junto do riacho. As violetas tão fragrantes”. E então eles se iriam, e ela, Lorry, não seria mais lembrada. Ficaria ali, na névoa, a névoa rodopiante e sufocante, e não haveria mais nada no mundo senão aquela espineta triste, chorando no escuro envolvente. Nada, a não ser esse sofrimento profundo e eterno do coração. Ela murmurou: — Alguém aqui acredita na reencarnação? Eu acredito. Eu me pergunto por que voltamos. Não, é impossível. O cérebro com que eu poderia me lembrar disso hoje é lama e pó. O Sr. Summerfield estava ali de pé diante da filha, elegante, os cabelos dourados, ágil. Olhou para a moça e seu rosto mirrou e se entristeceu. — Lorry. Está ficando triste de novo, Não beba mais. Hoje não. O débil rumor da espineta morreu, A sala em que ela estava de repente surgiu diante de Lorry numa clareza terrível, todas as cores nítidas, todas as luzes brilhantes, ofuscantes. A sala mais feia no mundo, pensou ela, com ódio. Â mãe dela tinha “adotado” uma decoração chinesa, anos antes. Lorry duvidava que os chineses a reconhecessem. Era tudo na base de armários de laca vermelha brilhante com dragões pretos se arrastando por eles, cadeiras de ébano muito trabalhadas incrustadas de marfim, mesas de muitos lados igualmente torturadas, cômodas e pés de lâmpadas de laca preta, cortinas de bambu nas janelas, cortinados de cetim dourado em que tinham sido pintadas atormentadas árvores negras e tapetes amarelos em que folhas verdes e rosas cor de abricó se espalhavam num pesadelo mudo. A lareira monstruosa também era de laca vermelha e sobre o consolo da lareira havia grandes Budas de porcelana e um vaso cloisonné arroxeado cheio de crisântemos de um tom escuro de bronze. — Eu só estava pensando que esta sala é a mais horrorosa que já vi — disse Lorry, bebericando e sem tomar conhecimento do pai. Ela não suportava olhar para ele. Seu vestido cinzento diáfano acentuava seu corpo bem-feito, tornava sua pele alva luminosa, os cabelos dourados mais vistosos. Mas seu rosto estava puxado, amortecido, vazio. — Você já disse isso mil vezes, querida — suspirou a mãe. Esther Summerfield era uma mulher extremamente alta e angulosa e muito magra mas de certa beleza. Usava os cabelos pretos e duros no alto da cabeça, à moda chinesa, para a noite, prendendo-os com travessas de tartaruga. Estava com um roupão persa que, a despeito de sua artificialidade

absurda, combinava com seu rosto triangular, meio amarelado, os estreitos olhos pretos e a boca fina. Ela até estava com um leque chinês pintado e suas mãos compridas e macilentas o moviam, languidamente. — E torno a dizer que sinto muito. Outras pessoas a acham fascinante. — Horrorosa — repetiu Lorry. — Quero mais um drinque. — Ela acrescentou: — Por que temos de ter um toque de pratos anunciando o jantar? Ainda não quero jantar. Mais um drinque. — Lorry — chamou o Sr. Summerfield, com brandura. A filha olhou para ele, os olhos vidrados. — Vá-se embora, Mac. Voc… está atrapalhando a minha vista. O pai estava com esperanças de que Lorry tivesse parado com suas bebedeiras periódicas, pois houvera um intervalo de quatro semanas, depois da última vez. Mas agora lá estava ela de novo, pior do que nunca. Ele insistiu: — Lorry, eu estava falando com você sobre aquele pregador que trouxe aquelas crianças para esta cidade… o ministro do McManus. Está lembrada? Ele não quis lhe dar uma história. Pois bem, meteu-se em encrencas de novo. Está ouvindo, Lorry? Imagino que não seja muito importante. Um garoto qualquer jogou uma pedra nele, ontem. Um de nossos repórteres pegou a matéria do fichário da polícia. O que anda ele fazendo, para que as pessoas ataquem primeiro uma das crianças e depois ele? Isso agora não vale uma reportagem? Lorry empertigou-se, de repente. O copo de cristal caiu de sua mão e o conteúdo se derramou em seu vestido. — O quê? — exclamou ela. — Johnny Fletcher? — A consciência plena voltara aos seus olhos, como uma chama. — O que fizeram agora? O pai ficou muito aliviado. Deu a ela o jornal da tarde. As letrinhas pretas saltaram na página. Ela se debruçou sobre elas. Lorry leu a coluna curta e depois jogou o jornal para longe. Olhou para o pai mas os olhos ficaram muito grandes, dilatados. Sua boca estava se mexendo. — Ele está ferido. Muito ferido. Concussão cerebral! Está ouvindo? Ferido! — O que isso lhe interessa? — perguntou o Sr. Summerfield. Barry, pensou ela. Barry, que teria morrido — o Barry querido, tão parecido com o pai e a irmã e no entanto não era nada como eles. De jeito nenhum, pensou Lorry, sacudindo a cabeça, num gesto lento de desespero. A voz dela engrossou. — Não importa. Estou pensando no Barry, agora. Lembra-se quando recebemos aquele telegrama dizendo que ele estava gravemente ferido, em algum lugar da Normandia? Pai, por que mandou o Barry embora, como me mandou embora? Esther sacudiu a cabeça, significativamente. — Você sabe que não devia deixar que ela bebesse. Sempre que bebe, lhe faz essas perguntas tolas.

O Sr. Summerfield debruçou-se sobre a filha e pousou as mãos nos braços da poltrona dela. — Querida, eu nunca mandei você e o Barry embora. Você sempre tem essa ideia quando bebe demais. Lorry, por que você sempre diz isso? Nunca me responde. As narinas dela se dilataram. — Desta vez vou responder. Nós descobrimos sobre você. Os braços do Sr. Summerfield endureceram mas ele continuou debruçado sobre Lorry. —· O que descobriram, meu bem? — perguntou. Mesmo na sua bebedeira, a mente de Lorry lhe mandou um aviso. Ela disse: — O que é que interessa? — Interessa muito a mim — respondeu o pai, em voz tão baixa que a mulher não ouviu. — Você e Barry… são tudo o que tenho. Entende isso, Lorry; amo vocês dois. Você sabe disso. Mas o Barry quase nunca vem aqui, hoje em dia. Antes ele era meu filho. Antes você era minha filha. Lorry, conte. Você hoje me detesta, não é? Lorry, conte. — Por quê? — perguntou ela, com desprezo. — Eu a amo. Não sabia disso, Lorry? Ela olhou para ele, calada; através da nitidez aguda do álcool, via todas as linhas de seu rosto liso, as íris dos olhos, o nariz estreito e cinzelado. — Você se parece demais conosco — murmurou ela, irrequieta. — Barry não se parece com você, mas eu sim. Aquilo não bastou para o pai. Ele repetiu: — Lorry? O que descobriram sobre mim? — Por que é que nada basta, para você? — perguntou ela, mexendo-se na poltrona. — Por que mora nesta cidade? Os seus jornais? Só para escrever os editoriais? Poderia escrevê-los perfeitamente em Nova York, Londres ou Paris. Por que continua aqui? — A boca da moça se enroscou, de um modo feio. — Será porque não poderia ser tão poderoso em outro lugar? Há muitos outros milionários em Nova York, por exemplo, onde você desapareceria? Há muitos outros cavalheiros educados na Europa, onde você não apareceria? Ele corou. — Lorry, você sabe tão bem quanto eu que os jornais são importantes para mim. Para nós. Para você. Ficamos para… observar… tudo em Barryfield. Temos uma missão, sabe. Contar a verdade ao povo. — Ah, é — murmurou Lorry. — A verdade. Como vai indo a compra da Gazette de Nova York? Ele se endireitou.

— Recebi um telegrama esta tarde. Estão perdendo a circulação. Detestam o liberalismo, de modo que estão se agarrando, como um anacronismo remendado. Acrescentou, desanimado: — Então, é isso que quer dizer, quando diz que você e Barry descobriram a respeito de mim. Compreendo o Barry; está exposto há tempo demais às opiniões tacanhas da mãe e do padrasto. Mas você é diferente. Então… você detesta Barryfield, detesta os jornais. De certo modo, não posso culpá-la. As pessoas aqui são abaixo do par, mentalmente. Lorry — ele procurou sorrir —, você estava com esperanças na Gazette de Nova York, não estava? Pensou que poderia ser redatora dela. É, compreendo a sua ambição. Você é muito parecida comigo, como disse. Pensava que poderia levar, uma política liberal àquele jornal. E eu a decepcionei. E é por isso que está bebendo… Lorry não respondeu. O pai estendeu a mão e a tocou de leve na face. Ela se controlou para não recuar. — Lorry, farei tudo para conseguir esse jornal para você. Vou falar com o Swensen. Lorry ficou assustada. Obrigou-se a se levantar. — Não gosto da Gazette. Em Nova York há tantos jornais liberais quanto a população pode absorver. — Apertou os lábios, e sua cor desapareceu. — Deixe a Gazette para lá. Que vá para o diabo. — Lorry tem razão — disse Esther. —· Ah, meu Deus, tocaram os pratos de novo. MacDonald, por favor. Vamos para a sala de jantar. — Por que não publica os meus artigos sobre a poluição do ar devido às fábricas nesta maldita cidade? — perguntou Lorry. — Para nós, está tudo muito bem, cá em cima dos morros. Mas a cidade fica num vale. Um dia desses vai haver uma corrente de ar descendente, ou seja lá como se chama, e vai ser fatal para centenas de pessoas. Você sabe disso. — Quando o pai não respondeu, ela continuou: — Você está sempre atacando o capitalismo, de um modo simpático, educado. No entanto, cá está o capitalismo envenenando o ar, bem aqui em Barryfield. Ou não quer ofender os seus amigos? — Os olhos dela provocavam o pai. — Não se pode mudar as coisas de um dia para outro — ponderou ele, sem jeito. — É um processo demorado. — Por que não publica os meus artigos? Escrevi 10 deles, sabe? A voz de Lorry estava carregada de desdém. — Bem, são um pouco forte demais, meu bem. Digamos que você os reveja e modere um pouco? Então… Ela riu-se dele, e ele fez uma careta diante do latido que era o riso especial dela. — Não notei que os seus artigos sobre a delinquência juvenil fossem moderados. Não. Você ataca o assunto com cacetes em ambas as mãos. A situação das favelas. Berço do crime. Policiamento fraco. Não há locais de recreação para a juventude… como detesto essa frase! O sistema. A sociedade. Salários baixos; casas apinhadas e obsoletas; falta de moradias públicas. Ganância. Lembra-se? Você mandou fazer uma pesquisa. E essa

pesquisa descobriu… porque os homens que a realizaram são honestos — que a maioria de nossos jovens criminosos não vêm das classes trabalhadoras. Vêm das famílias com uma renda que começa com quatro mil dólares por ano e sobem bem. Então, o resultado da pesquisa não foi de seu agrado e você a suprimiu. No entanto, fica martelando nas mentiras, mentiras, mentiras. Ele olhou bem para ela e pensou: Swensen tinha razão. Ela não é de confiança. Não entende o que queremos. Acredita que um jornal deve contar a verdade. Como é ingênua. Pobre menina. — Não podemos continuar essa conversa ao jantar? — perguntou Esther, aborrecida. — Não quero jantar — respondeu Lorry. — Vou para o meu quarto. Diga que me deixem um sanduíche, ou coisa assim. — Lorry — insistiu o Sr. Summerfield, pedindo. Mas Lorry de repente lançou toda a força eletrizante de seus olhos desdenhosos sobre o pai, e ele recuou. Ela saiu da sala depressa, o vestido cinzento vaporoso esvoaçando em volta dela. Entrou no hall de azulejos, com sua decoração feia e apinhada de móveis chineses e subiu correndo a escura escadaria de carvalho. Os aposentos dela tinham sido mobiliados por ela e eram frescos e tradicionais, com cores formais e cristal. Ela foi logo para a secretária, depois de fechar a porta, e pegou o telefone. Ligou para a residência do Dr. McManus. — Então, o que há? — perguntou ele, irritado. — Já lhe disse hoje de manhã que o garoto está indo tão bem quanto se pode esperar. O que não é muita coisa. Estamos preocupados. Mas não houve modificação alguma, a não ser quando ele delira; tem febre alta. — Tio Al, não estou ligando para saber do Jean. Por que não me contou que o Johnny tinha sido gravemente ferido ontem, por algum criminoso juvenil? Fez-se um breve silêncio e depois o médico disse, em tom estridente: — Bom, você tem um jornal e repórteres, não tem? Pensei que ia logo saber disso, raios! Mas espere aí. Ele não está ferido tão gravemente assim. Concussão. Está se recuperando. Mas podiam tê-lo matado, foi por um triz que não o mataram. Ora, ele já está sentado na cama. Está se esforçando, quer ir para junto do garoto no hospital. Contamos umas mentiras ao Jean e ele está tão mal que não consegue pensar muito nelas, e estamos escondendo as más notícias do Johnny. — E o garoto culpado? — perguntou ela e começou a tremer. — O Johnny não quer processá-lo. Coisa esquisita. O chefe do bando só falta estar morando naquele raio de casa de paróquia. Hoje levou fumo e flores para o Johnny. Choramingas. Fica lá sentado chorando, olhando para Johnny. Devia ver os pais dele. Uns palermas, montes de sebo. Mas a mãe é melhor do que o pai. Foi lá e também chorou. Todo mundo chora! Coisa mais incrível que já se viu! A casa paroquial está inundada. Não suporto isso. — Adeus — disse Lorry, abruptamente, e desligou. Tirou o vestido e vestiu um costume escuro e uma capa de peles. Desceu a escada correndo, sem fazer barulho, foi para a garagem e pegou o carro dela. Saiu dirigindo furiosamente, descendo a estrada

sinuosa. Barryfield tinha uma rua elegante, com algumas lojas que abriam de noite. Lorry parou o carro defronte de uma loja muito requintada, que vendia “presentes fora do comum”. Entrou lá correndo e logo deixou o gerente e os dois vendedores num redemoinho de agitação. Corria pelas mesas, examinando tudo, o gerente atrás dela. — Isso? — perguntou ela, apontando para uma imagem de Madonna italiana, de vidro transparente azul e dourado. — São 200 dólares, Srta. Summerfield — informou o gerente, com respeito, pegando a imagem, que tinha uns 30 cm de altura. — Coisa linda, não? Muito bem-feita. A única no gênero. Ele a levantou para a luz, que a atravessava suavemente. O rosto jovem e sereno adquiriu vida, num brilho terno, como uma carne pulsante. O rosário, colar comprido e pálido, caía das mãos perfeitas. O dono olhou para a moça, com curiosidade. Para que haveria de estar comprando aquilo? — Embrulhe — ordenou ela. Recomeçou a perambular. Encontrou uma caixa oval, dourada, de cerca de 7 cm de diâmetro. A caixa tinha um desenho complicado de rostos nobres e pombos. Ela a abriu e de dentro emanou-se uma fragrância rica e vaga, como de atar de rosas. — Uma autêntica peça do renascimento — informou o gerente, com uma voz abafada. — Provavelmente foi usada, por último, para perfumes concentrados. Ainda se sente o perfume. Sugiro este presente para um cavalheiro, para abotoaduras ou jóias pessoais. Lorry sorriu, com um humor negro. Mas estava fascinada com a caixa. — São 250 dólares, Srta. Summerfield. Era de 500. Mas quem havia de comprar uma coisa dessas, nesta cidade? Eu já estava pensando em mandá-la de volta para a minha loja em Nova York, ou Filadélfia. — Embrulhe — disse Lorry. O gerente estava todo sorridente. — O Sr. Summerfield vai adorar isso! Aniversário dele, talvez? — Tenho certeza de que ele vai adorar — respondeu Lorry, com ironia. Ela levou os tesouros para o carro e foi para o hospital. Foi levada logo para o quarto de Jean. Flores frescas, que ela havia mandado naquele dia, enchiam o quarto, e uma enfermeira mocinha estava a postos. Embora ainda nem fossem 21h00, o hospital estava em silêncio, mas nenhum quarto estava tão silencioso quanto aquele. A enfermeira sussurrou: — Coitado do menino. Está com uma febre horrível, mais de 40°. Mas está sempre voltando a si e perguntando pela mãe. — Nenhuma melhora? — perguntou Lorry. — Não — respondeu a enfermeira, hesitando. — Aliás, está um pouco pior. O Dr. Klein esteve aqui há pouco, Vai voltar à meia-noite, com o Dr. McManus. Ele hoje tomou

500 mil unidades de penicilina e o Dr. McManus ligou para um hospital de Nova York, há umas duas horas, pedindo uma nova medicação que faz maravilhas. Lorry foi até a cama. Olhou para Jean, tão abatido, tão mirrado, tão pálido. Estava de olhos fechados, a respiração pesada e intermitente. Murmurava sem parar. Lorry olhou para a aparelhagem que mantinha a perna dele, num gesso pesado, inteiramente imóvel. Olhou para o aparelho no braço. Lorry pensou no pai, com uma onda de ódio parecendo uma explosão em seu coração. O inimigo nunca se satisfaz, pensou. Fizeram isso com ele. Estão se preparando para tornar a fazê-lo, amanhã. A enfermeira voltou para sua cadeira junto da janela, à sombra fraca da lâmpada. Olhou para Lorry com uma curiosidade imensa. Lorry, esquecendo-se dela, debruçou-se sobre o menino. — Jean? — cochichou ela, com força. — Jean? Ela nunca tinha visto nenhuma das crianças, mas o Dr. McManus lhe contara toda a história. Ela olhou para o rostinho distante, tão pouco infantil, tão cheio de uma sabedoria triste, tão severo. Mordeu o interior do lábio e sentiu um nó na garganta. Debruçou-se mais sobre Jean, encostou a boca na face dele e tornou a sussurrar. A dor em seu peito ficou mais forte, mais urgente. Ela o beijou de novo, murmurando no ouvido dele, com carinho. O menino murmurou, agitou-se, falou, debilmente, e depois abriu os olhos. Estavam no fundo do rosto, como um vidro pálido e turvo, por trás do qual flutuavam sonhos agonizantes. Ela flutuou para a consciência dele, um rosto branco e lindo, a luz fazendo um halo de seus cabelos dourados. Ele só viu Lorry e sua expressão aturdida passou a ser de um reconhecimento feliz. — Maman? — murmurou. — Maman? — É, querido — respondeu ela, alisando os cabelos pretos, — O papai me mandou. Ele mexeu a mão livre e ela a apertou com força. Ele não conseguia afastar os olhos de cima dela; os sonhos se tornaram calmos e suaves. — Maman — disse ele, de novo. Tentou sorrir e em seu rosto apareceu um vestígio de cor. — Jean tem de ficar bom logo — falou Lorry, com uma severidade terna. — Papai está precisando dele. Está-me ouvindo, meu bem? Os olhos dele ficaram fixos sobre ela, felizes. — Estou ouvindo — murmurou. — Para o papai. A enfermeira se aproximou depressa. Sob o perfume de Lorry ela sentia o cheiro acre do álcool. A enfermeira ficou ofendida; depois refez-se. As pessoas não se ofendiam com um Summerfield. Pegou o pulso de Jean, com habilidade, e olhou para o relógio, solene. — Ah! — exclamou, maravilhada. — Está… ora, está muito mais forte! Mas Lorry estava sorrindo para Jean e ele sorria para ela, sonolento. Então, de repente, ele suspirou profundamente e adormeceu, a cabeça virada para a moça. A

mãozinha fria se aqueceu na dela e descontraiu-se. Ela o beijou de novo, encostando a face na testa dele. Já não estava tão quente. Um leve suor se espalhava nela. Lorry desembrulhou a Madonna e a colocou na mesinha-de-cabeceira. Ela brilhava como uma jóia à luz fraca. — Quando ele acordar, diga que a mãe dele lhe trouxe isso — disse ela para a enfermeira, que piscou os olhos. — Mas ele não tem mãe. Lorry fitou-a com antipatia. Falou, numa voz baixa e dura: — Não seja tão materialista! Diga o que lhe disse. Ele vai compreender. E depois, como é que você sabe que não foi ela que me mandou aqui hoje? A moça ficou confusa. Olhou para Lorry com um misto de respeito e perplexidade. — Sim, Srta. Summerfield — respondeu, obediente. Alguém estava entrando no quarto e a enfermeira virou-se, aliviada. — O Dr. Kennedy — disse. O jovem médico era todo roupas brancas, olhos escuros e ligeiros. — Olá, Tim — cumprimentou Lorry, e corou. — Vim ver esse pobrezinho. Ouvi dizer que não estava indo muito bem. Pensei que devia vir. — Bom — respondeu o Dr. Kennedy. Se estava espantado, não o demonstrou. Viu a imagem brilhando e a examinou atentamente. — Pode mandar benzê-la, ou coisa assim — disse Lorry, sem jeito. O Dr. Kennedy tocou nos pezinhos que pareciam jóias, com respeito. As sobrancelhas pretas e grossas se contraíram. — Achei que ele podia gostar disso — continuou Lorry. — Pedi à enfermeira para lhe dizer que a mãe dele… a tinha trazido. O Dr. Kennedy ficou calado. Tomou o pulso do menino e tocou de leve na testa dele. Viu o leve rosado novo. — Ele está muito melhor — falou, e acrescentou, sem olhar para Lorry: — Como é que você sabe que não está benta? Claro que foi a mãe dele que a trouxe. — Obrigada, Tim — respondeu Lorry, pegando a bolsa e a capa. Ele foi com ela para o corredor. Falou, sério: — Há uma hora, eu estava preocupado. Dava-lhe pouca possibilidade de sobreviver. Está com alguma infecção grave. Mas já cedeu, creio. — Contemplou a moça por algum tempo. — Acho que você fez alguma coisa pelo garoto, Lorry. Ele não gostava nada dos Summerfield; detestava os jornais deles. Agora estava todo assombrado. Sabia que era quem estava pagando pelo quarto, as enfermeiras e as flores. Mal pudera acreditar, quando o Dr. McManus lhe contara. Mas nada disso o impressionara tanto quanto essa visita tarde da noite, o presente da imagem, aquela ternura estranha de parte de uma mulher que ele sabia ser displicente e de coração duro. Eles se conheciam desde a infância. Ele muitas vezes se perguntava o que teria transformado Lorry de uma garota alegre e entusiasmada numa amarga, perigosa e desiludida, uma réplica feminina do pai.

Ele a viu andando pelo corredor, a cabeça dourada erguida e dura. Disse consigo, baixinho: — Macacos me mordam… Embora os dias ainda estivessem quentes, as noites estavam muito frias. O ar nas montanhas estava clarificado como o conhaque, mas as ruas de Barryfield estavam fétidas e poluídas com os gases e lixo industriais e o próprio bafo da cidade limitada e apinhada. Em muitas noites, especialmente no outono e primavera, quando a névoa subia do solo úmido e se misturava com os gases, o ar ficava muito difícil de ser respirado. Ferroava os pulmões e ardia nas narinas e enjoava os estômagos. Espessava a neblina em que estava envolvido, inundando-a e envenenando-a. Essa noite era uma dessas. Lorry Summerfield tossiu e praguejou, dirigindo pelas ruas úmidas. As calçadas reluziam vagamente: os lampiões de rua estavam envoltos em espirais fantasmagóricas e rodopiantes, como se houvesse alguma peste espalhada. E é assim mesmo, pensou Lorry. Ela se lembrou dos artigos que tinha escrito sobre tudo isso. No dia seguinte, disse consigo severa, ia meter o primeiro artigo na segunda página do Press e o pai que se danasse. Ele explicasse aos amigos, nervoso ou apaziguante, a respeito do engano. Ele que repreendesse a filha. Ela o fitaria e diria: “Bom, diga a eles que demitiu o autor. Não assinei o artigo”. Quanto aos outros artigos, ela os introduziria habilmente de vez em quando. Deu uma risada. Ainda se sentia leve, poderosa e direta, consequência do que bebera naquela noite. O cérebro ainda estava muito esperto e ativo. Seu desânimo passara: era sempre assim — dentro de uma hora o desânimo voltaria, mais violento e desesperado do que nunca. Mas a essa altura pensou ela, já estarei em casa e tomo mais uns drinques. Ela parou o carro abruptamente na frente da casa paroquial de Johnny Fletcher, e ficou olhando para a casa, sombriamente. Algumas das lâmpadas horrorosas na sala ainda estavam acesas, e no andar de cima havia uma luz brilhando através de uma janela redonda. Lorry saltou do carro, tomando cuidado com a calçada escorregadia e mais cuidado ainda com a escada íngreme da varandinha. Abriu a porta da casa e foi acolhida pelo olhar espantado de uma porção de homens e mulheres arrumados, modestos e surrados. Estavam sentados pela sala, em atitudes de infelicidade e solenidade. Quando Lorry entrou, como um vulto de luz, eles tiveram um sobressalto, reconhecendo-a pelas fotos e de a terem visto rapidamente na rua. Lorry ficou alarmada. Perguntou em voz alta e rápida: — Aconteceu alguma coisa? Como está o Sr. Fletcher? Por que estariam ali reunidos, a não ser por um desastre, essas criaturas fatigadas e sem personalidade? Uma mulherzinha forte falou: — Não aconteceu nada, Srta. Summerfield. Sou a Sra. McGee. A Sra. Burnsdale está nos fazendo um café. Estávamos falando sobre o Sr. Fletcher… e as crianças. Pobrezinhas. Dê o seu lugar à Srta. Summerfield — acrescentou, severa para um homenzinho de cara vermelha, com muitos cachos brancos.

— Não — respondeu Lorry, e fez uma pausa. — Obrigada. — Ela olhou para o grupo desajeitado com certa curiosidade. Um por um os homens curvos se levantaram, encabulados, incitados por cutucadas das mulheres e olhares dominadores. Então, eram esses os paroquianos de Johnny. Não pareciam especialmente malvados ou cruéis ou burros, pensou, examinando as fisionomias mais atentamente. Eram apenas… pessoas. No entanto, alguns eram responsáveis pelos sofrimentos de Johnny. Alguns tinham corrompido as cabeças dos filhos, inspirando ataques como aquele ao meninozinho Max e ao próprio ministro. Mas mentiam aos filhos com toda a sinceridade, como os pais tinham mentido a eles. Ela tirou a capa e a jogou com displicência sobre uma cadeira vaga. Jogou as luvas sobre ela. Depois voltou o poder imenso de seus olhos para cima dos paroquianos, devagar. — Eu gostaria de escrever um artigo sobre isso — disse ela. — Gostaria de mostrar à grande Comunidade da Pensilvânia que tem uma cidade que pertence à Idade Média ou às selvas, ou como um anexo ao zoológico. Talvez as outras cidades pudessem mandar ônibus para cá, só para olharem para Barryfield, só para olhar para as casas e a gente que mora aqui. Um bom artigo de destaque que seria reproduzido pela imprensa nacional, e se tornaria editorial em todo o país. E talvez pudéssemos chamar a Guarda Nacional, para patrulhar as ruas para que os ministros ou as crianças não fossem mais atacados, nem suas vidas ameaçadas. O rosto do Sr. McGee ficou vermelho. — Ora, Srta. Summerfield, isso não seria justo. Eu… sou presidente do sindicato de mineiros. Nós… — O senhor realiza assembleias de propaganda para o seu pessoal e aponta os que devem ser expulsos desta maldita cidade, ou as crianças cujas gargantas devem ser cortadas, ou os homens que devem ser apedrejados? Realiza as suas reuniões no melhor estilo comunista, contando os que devem ser liquidados? Já ouvi muita coisa sobre esses sindicatos. O Sr. McGee se empertigou e a encarou diretamente, enquanto os outros, envergonhados, ficavam calados. — Srta. Summerfield, a senhorita sabe que está exagerando. Conhece esta cidade: nasceu aqui. Claro que temos uns comunistas, eu acho. Nunca se sabe, com esses sujeitos. Já preveni os meus homens sobre eles e eles detestam os comunistas, como eu. — Ele parou e seus olhos estavam brilhantes e duros, ao olhar para a moça. — Posso lhe dizer uma coisa, Srta. Summerfield, os seus jornais têm má reputação entre a gente honesta. Eu mesmo já estudei o comunismo. Tem muita coisa disso no Press, e vou lhe dizer que não gostamos e vocês estão perdendo a circulação e os mineiros só os usam para embrulhar as marmitas. Bem, não interessa. Talvez a gente não seja melhor do que os outros aqui de Barryfield e todo esse negócio do ministro e as crianças é terrível. Mas sempre há alguns em toda parte, em qualquer cidade grande ou pequena, que são assassinos natos. — Ele olhou bem para ela. — Alguns que querem acreditar em coisas como as do Press. Lorry apertou os lábios para conter um sorriso quase irresistível. O Sr. McGee estava ficando empolgado. Apontou um dedo rombudo para ela.

— Não gosto de dizer essas coisas a uma… senhora. Mas queria dizer e não há melhor momento do que o presente. Eu já fui mineiro, Srta. Summerfield. Trabalhei nas minas aqui durante mais de 30 anos. Conheço os homens: fui um deles e o meu pai também. Já esteve numa mina, Srta. Summerfield? Não esteve, não. O que o mineiro ganha não basta para o trabalho dele; mesmo que ganhasse 100 dólares por dia, não seria suficiente para trabalhar nas minas. Claro, temos sindicatos e bons. Por que não lê um pouco sobre a indústria de mineração? — Ora, McGee — falou a mulher, recriminando-o. Ele não fez caso dela. — Todos nós, presidentes de sindicatos, qualquer sindicato, queremos afastar os comunistas, o tipo de gente que provoca encrencas e põe os trabalhadores uns contra os outros, e contra os patrões. Que ajuda nos dão os jornais? Quase nenhuma. Expulsamos os comunistas de um sindicato e alguns dos jornais escrevem sobre “intolerância” ou “culpa por associação”, ou outra besteira igual. Que ajuda temos de parte do Press? Olhe, Srta. Summerfield, se temos gente como esses que machucaram o Sr. Fletcher e o garotinho, é por causa de gente como vocês dos jornais, provocando as pessoas e fazendo com que se detestem. Uma onda agradável de felicidade invadiu Lorry. Os olhos dela começaram a brilhar vivamente. Os outros que estavam escutando atentos se endireitaram em suas cadeiras e menearam as cabeças severamente, uns para os outros, não mais intimidados diante daquela bela Srta. Summerfield. O Sr. McGee continuava apontando para a moça, brandindo o dedo, a raiva fazendo sua testa suada ficar de um tom vermelho arroxeado. — Olhe, temos problemas em Barryfield. Os mineiros não querem fazer greve; eu não quero que eles façam greve; os proprietários independentes não querem a greve. Ninguém quer a greve. Não podemos nos dar a esse luxo, e nem os proprietários. Uma terça parte dos homens trabalha nas minas. Pense no que uma greve significaria para eles e os proprietários e todo mundo. Já vi os livros dos proprietários e mal estão cobrindo as despesas. Mantêm as minas abertas para os homens terem empregos. No entanto, há pouco tempo veio o Press dizendo aos mineiros que estão sendo explorados. E de repente aparecem estranhos nesta cidade, falando com os homens quando eles saem das minas, e dando folhetos citando o Press. E então, depois de terem causado todo tipo de problemas aqui com seus jornais, a senhora entra nesta sala e nos chama de zoológico ou coisa que o valha. — Isso mesmo — disseram os outros, em coro, meneando as cabeças. —·Temos uma cidade suja, o ar não presta para se respirar — continuou o Sr. McGee, a voz tensa de emoção. — O Press escreve sobre isso? O Press exige que as fábricas e usinas tenham controle de fumaça? Ah, não! O Sr. Summerfield tem muitos amigos que são donos desses malditos negócios. E ele se diz um liberal! Liberal para o quê, senhora? Liberal pata encrencas? Você não podia estar mais certo, amigo, pensou Lorry, cada vez mais satisfeita. Continue a pensar e a falar assim. McGee e todos os milhões de trabalhadores honestos

por toda parte hão de derrotar o que o meu pai está tramando para vocês. — Foi um belo discurso, Sr. McGee — respondeu Lorry. — Acho que o senhor tem alguma razão. Por falar nisso, pode ler o Press depois de amanhã. Acho que vai gostar, uma vez na vida. Ela meneou a cabeça para ele, alegre, e saiu da sala. Uma das mulheres falou, excitada: — O senhor disse umas verdades a ela, Sr. McGee! E sentiu o cheiro de bebida nela? Puxa! O Sr. McGee sentou-se devagar e contemplou o chão. Franziu a testa. — Sabe — disse, por fim —, há alguma coisa naquela moça… não sei o que é. Não posso precisar. Mas não é o que pensamos. Quando Lorry subiu a escada, sua exultação de repente passou e a depressão que ela sempre temia a dominou. Começou a subir mais devagar. Por que fora ao hospital? Por que estava ali? Ela sempre fazia as coisas mais irresponsáveis depois de beber demais. A claridade brilhante do álcool agora estava recuando; ela não se lembrava o quê a fizera sair naquela noite, como uma louca. Claro que fora Barry e esse ministro. Mas sem dúvida se Fletcher soubesse que o álcool é que a levara a esse sentimentalismo, ou mesmo se Barry soubesse, eles a desprezariam como uma mulher tola, instável e que não merecia confiança. A confusão que invariavelmente se seguia ao excesso de bebida turvou-lhe a mente. Ela fez menção de se virar para tornar a descer. Sacudiu a cabeça para si mesma; o crânio estava doendo muito. Preciso beber alguma coisa, pensou. Várias doses. Sentiu uma dor persistente no estômago. Depois, impaciente, concatenou os pensamentos. Uma tola não deve parar no meio do caminho, disse consigo, sardônica. Vá em frente, tola! A porta do quarto principal estava aberta: uma luz rosada jorrava de lá. Lorry ouvia o murmúrio de vozes masculinas. Ela parou no vão da porta e ficou horrorizada com a miséria triste do quarto, as paredes manchadas, os tapetinhos esfarrapados. O Dr. McManus lhe dissera que um ou outro dos garotos dormiam lá: ela viu o sofá-cama fechado. E lá estava Johnny Fletcher meio sentado na cama de casal vergada, a testa envolta em ataduras, o rosto pálido e puxado, um dos lados uma massa horrível de machucados, roxo, amarelo e verde. Mas estava sorrindo, escutando os dois homens perto dele, um deles um padre enorme e outro um velho com um barrete e uma barba comprida, como a luz do sol ondulante. Um abajur rosa horroroso era a única iluminação do quarto. Os três estavam absortos numa conversa muito séria. O padre estava dizendo: — Bem, temos essas três interpretações do Salmo. O rabino nos deu a versão original, hebraica, com a qual a igreja concorda, in totum. Mas você, Johnny… Foi Johnny quem viu Lorry primeiro e seus olhos sombreados se fixaram nela, espantados. O padre e o rabino se viraram e também ficaram espantados. — Estou atrapalhando? perguntou Lorry, como boba.

—·Ah, não — respondeu Johnny, devagar. A voz dele estava muito cansada. — Entre, Srta. Summerfield. Se está procurando outra história, não vai arranjá-la. Padre Krupszyk, Rabino Chortow, esta é a Srta. Summerfield. O padre olhou bem para Lorry e o velho rabino inclinou a cabeça, num gesto do Velho Mundo. Era menos dado do que o padre a examinar as pessoas com certo cinismo e desconfiança, pois era um estudioso simples e brando, que tinha alguma fé na bondade do homem, a despeito de todas as provas em contrário. Sua intelectualidade era abrandada pelo misticismo, por sonhos do passado antigo em que os homens inocentes andavam juntos num jardim verdejante e perdido e conversavam com Deus. Ele não se tornara mais querido de sua congregação escandalizada e assustada quando, durante a guerra, lhes pedira para rezarem pelos assassinos nazistas de seu povo, para que pudessem ser levados de novo à luz e humanidade, ao conhecimento do “Senhor nosso Deus” e à humildade da penitência. Para o Rabino Chortow, o pecado era mau, mas não o pecador. O Padre Krupszyk tinha outras opiniões, mais realistas, e concordava com Johnny de que, se havia o Corpo Místico de Deus, também havia o Corpo Místico de Lúcifer, ao qual pertence inteiramente toda uma multidão de homens, e com muito maior dedicação e devoção do que aqueles do outro lado da cerca espiritual; os três eram unânimes em sua convicção de que o pecado exige não só o arrependimento mas também a penitência. O Rabino Chortow sorriu suavemente para Lorry e, inexplicavelmente, pensou em Raquel, mãe de muitos filhos. Johnny ficou apenas desconfiado e perturbado com a presença dela. O ministro e o padre perceberam o cheiro de álcool quando a moça entrou no quarto, devagar, mas o rabino, paternalmente encantado com sua beleza extraordinária, só pensou em incenso e nas profetisas. Lorry parou de repente ao pé da cama. Johnny olhou para ela, calado, esperando. — Não vim procurar uma história — esclareceu ela. Bem, ela era uma idiota. O padre a estava contemplando com uma antipatia franca. O velho rabino sorria para ela, numa névoa. Ande logo, pensou ela. Continuou: — Soube do que lhe aconteceu, Sr. Fletcher. E sobre o Jean. Sabia que o senhor não podia ir ao hospital, e então fui lá para ver por mim. Os médicos são uns mentirosos tão convincentes! Johnny esperou: levantou-se nos travesseiros e sua expressão ficou tensa. — Foi bondade sua, Srta. Summerfield — respondeu inseguro. — Como… como está o Jean? Somente o padre, de repente alertado pela modificação ligeira no rosto expressivo da moça, percebeu a cuidadosa evasiva de suas palavras seguintes: — Quando o deixei… estava bem. O Dr. Kennedy disse que estava melhorando bem. A febre tinha baixado, o pulso estava quase normal. — O Padre Krupszyk se endireitou na cadeira e então seus olhos estavam muito atentos, pousados no rosto da moça. Lorry continuou:— Ele estava dormindo muito bem… quando saí. Johnny estava perplexo. Por que ela teria ido lá? O que era Jean para aquela moça dura? Mas estava aliviado e feliz. Afundou nos travesseiros. — Bom, bom — murmurou. — Eu sabia que ia dar tudo certo.

O padre mais uma vez viu que o rosto de Lorry se modificava. Ele escutou atentamente, quanto ela continuou: — O Tio Al disse que o menino era católico. Espero que não se importe, mas eu lhe comprei uma imagem muito bonita da Virgem e a pus na mesinha-de-cabeceira dele. Pedi… pedi à enfermeira para dizer a ele que a mãe dele a tinha mandado. Johnny virou a cabeça depressa no travesseiro, e então lhe pareceu estar vendo Lorry pela primeira vez. A voz dele estava meio trêmula. — Eu… não lhe posso agradecer o suficiente. Mas como sabia… quero dizer, como compreendeu? O Rabino Chortow falou, com muita brandura. — A compreensão será propriedade exclusiva do clero? Deus não move todos os corações humanos à compreensão… se eles pararem apenas um minuto para escutar? Ele indicara uma cadeira a Lorry, várias vezes, mas ela ignorou o gesto. Ficou ao pé da cama de Johnny, as mãos agarradas à coluna. Ela disse a Johnny, com um escárnio tranquilo: — Não está sendo um pouco egoísta? A compreensão… e talvez a caridade… serão propriedade exclusiva dos cristãos? Nós outros, fora dos limites da humanidade, não temos decência, ou os impulsos ou virtudes da humanidade? Perdão, Sr. Fletcher, mas como se pode ser tão estúpido? Ela se arrependeu logo, pois Johnny corou dolorosamente e seus olhos se dilataram, aflitos. — Desculpe — respondeu logo. — Tem razão em dizer isso. Muitas vezes sou estúpido. Sinto muito. Não sinta!, exclamou ela, em seu coração, Não sinta, Johnny Fletcher! Você salvou a vida de meu irmão; literalmente o trouxe do reino dos mortos. Não só fisicamente, mas espiritualmente! A ternura misteriosa e humilde que ela já sentira por ele quase a dominou. Todos viram a mudança de sua expressão, derretida, apaixonadamente emotiva. Johnny ficou comovido e envergonhado. Mas não compreendeu. Pensou consigo: Eu a julguei mal. Na verdade, é muito vulnerável, coitada da moça, para aceitar minhas desculpas com uma tal reação. Viu que os olhos dela estavam cheios de lágrimas e que sua boca tremia. Disse então: — Nunca lhe poderei agradecer o bastante por ter ido ver o Jean, Srta. Summerfield. Pediu à enfermeira para dizer a Jean que a mãe lhe enviara a imagem? Sabe, sinto que isso é verdade. Provavelmente foi mesmo, por seu intermédio, e isso é um passo a mais para o restabelecimento dele. E veio me contar que ele está melhorando bem. É a coisa mais bondosa que já ouvi. Não vou lhe agradecer, os agradecimentos não são muito apropriados, não é? — Não — murmurou ela, pensando: Agradecer a você, Johnny Fletcher, seria um insulto. Queria ir para junto dele, ajoelhar ao lado da cama e pegar a mão dele. O impulso

foi quase forte demais para ela resistir. Ela queria lhe contar do ódio pelo pai que estava dilacerando o tecido vital de seu espírito e o motivo do ódio, e o amor torturado pelo mesmo pai, em luta com o ódio. Queria contar-lhe o horror que era sua vida, o enjôo diário de viver, e sua sensação de perdida. Se estivessem a sós ela teria ido para junto dele, colocando sua face na mão dele, chorando. Não estava ventando lá fora, mas de repente a casa estremeceu, perceptivelmente. Passaram por ela vagos chiados e suas madeiras gastas gemeram um pouco. Johnny perguntou: — Foi um tremor de terra? — Não — respondeu o padre. — A cidade tem um verdadeiro favo de minas. Isso acontece sempre, especialmente nesta zona. Algumas das jazidas mais ricas estão aqui embaixo. Ele tornou a dar atenção a Lorry e pensou que alguma coisa estava perturbando a moça, uma coisa que ninguém naquele quarto sabia. Johnny fechou os olhos, exausto, e falou: — Fico contente que não tenha vindo em busca de uma história sobre mim. Estamos… estamos ficando conhecidos demais, assim mesmo. É mau para nós. — Não creio — disse o padre. — Uma parte de sua congregação está sentada embaixo, fazendo penitência, como você sabe. São pessoas que não sabem se expressar, e só podem ficar sentadas, sentindo pena. Johnny sorriu e abriu os olhos. — Sabe… no dia em que aconteceu… eu estava muito preocupado. Meu sermão… pensei que estava tudo acabado, comigo e as crianças, depois disso. Mas agora me dizem que a minha congregação está refletindo. Hoje o Sr. McGee disse que era daquilo exatamente que estavam precisando. Talvez eu tenha sido um pouco duro com eles. — Sorriu abertamente. — Eu também estava com medo de que nos mandassem embora. Para mim não tem importância, mas queria que as crianças lançassem raízes em algum lugar. A Sra. Burnsdale entrou com uma bandeja de madeira com várias xícaras de café. Ela parou e piscou quando viu Lorry. Depois largou as xícaras na mesa. — Acho melhor o senhor não tomar café, Sr. Fletcher. Eu lhe trouxe uma xícara de leite quente. Já está na hora de dormir — acrescentou, sem grandes sutilezas. O que aquela moça estava fazendo ali? Querendo arranjar uma história doida e tola? Ela olhou para Lorry com bastante antipatia. Mas tinha coisas mais importantes na cabeça. Dirigiu-se a Johnny: — Falei com o Dr. Kennedy, no hospital. Disse que tinha fechado todas as janelas, para não deixar entrar a neblina. Mas a Emilie está tossindo, a despeito do xarope para a tosse. Não consegue dormir. Dei-lhe outro comprimido. Lorry virou-se logo para ela. — A fumaça e a neblina? Isso afeta certas pessoas demais, especialmente crianças pequenas, se são fracas. Há alguma coisa com a menina? Johnny respondeu, a voz de repente fraca:

— Ela tem um coração doente. O Dr. Kennedy me disse que não pode Lorry estava horrorizada. Olhou para o padre e o rabino e viu seus rostos sérios. Exclamou, com amargura: — Sei de tudo sobre a fumaça! Pittsburgh conseguiu acabar com ela, mas Barryfield não! É muito caro… para os amigos de meu pai. — Seu rosto mudou de novo e ficou feio, com raiva e ódio. — Bem, podemos fazer alguma coisa a respeito. Se voltasse logo para o escritório, poderia inserir o artigo para o dia seguinte. Pegou logo a bolsa e sentiu o peso da caixa dourada, de que se esquecera. Ela parou. Uma coisa idiota. Mas ela queria dar um presentinho a ele, por causa de Barry. Na ocasião, parecera sensato, mas agora parecia absurdo. No entanto, hesitou. Então, afinal, querendo realizar toda a sua loucura, ela pegou o embrulho e o colocou abruptamente ao lado da mão de Johnny. O rosto dele flutuou para junto do seu, e por um momento trêmulo, eles se olharam bem nos olhos; Lorry virou-se, as mãos cerradas e duras ao lado do corpo. — Eu também lhe trouxe um presentinho — disse ela, numa espécie de desafio. — Na ocasião, quando o comprei, pareceu razoável. Agora, não sei bem. — As faces dela, em geral tão lisas e brancas, agora estavam vermelhas de constrangimento. — Se não quiser, eu levo embora. Johnny disse, assombrado: — Por que havia de me dar um presente, Srta. Summerfield? — Não sei! — exclamou ela. — Por que não vê o que é, pelo menos? Johnny desembrulhou a caixa devagar. Lá estava ela, na palma de sua mão, reluzindo com luzes douradas e sombras, maravilhosamente entalhada. Ele a abriu e logo o ar foi penetrado pela fragrância de unguentos esquecidos, de atar de rosas. Padre Krupszyk se debruçou para ver a caixa e por algum motivo sentiu um arrepio na nuca. Estava tentando se lembrar de alguma coisa; aquilo era conhecido demais para ser esquecido. Lorry falou, imprudente, no silêncio assombrado: — Francamente, nem sei o que vai fazer com isso. Pensei saber, quando a comprei, mas agora não sei. Para ser sincera, eu tinha bebido demais. — Acrescentou: — Podia usá-la para abotoaduras, ou alguma coisa, imagino. Johnny estava boquiaberto. Levantou a caixa para que o rabino e o padre pudessem examiná-la mais de perto. E então pensou: Foi muito cara, e não posso imaginar… Por que ela havia de fazer isso? E se queria gastar todo esse dinheiro há o salão paroquial sob a igreja e o dinheiro podia ser usado para equipamento de jogos e artesanato para as crianças da paróquia ou ajuda para as mães ou os idosos. Então o padre lhe murmurou: — “Os pobres sempre os tendes convosco.” Johnny virou-se logo para ele. O padre sorriu e meneou a cabeça. Johnny disse a Lorry: — É lindo. Obrigado, Srta. Summerfield. — Falou com simplicidade e sério e seu rosto machucado estava tranquilo. — Se queria que eu o tivesse, então só posso aceitá-lo

com gratidão. Todos tiveram um sobressalto ao ouvirem passos na escada despida, e sua correria pesada ao entrar no quarto. E lá estava o Dr. McManus, apressado, amarfanhado e exultante, mais desarrumado do que nunca, como se tivesse jogado as roupas amassadas no corpo curto numa pressa selvagem. Ele gritou, com sua voz esganiçada: — Um milagre, você disse! Bom, Johnny, conseguiu o seu raio de milagre! Estou vindo do… Aí ele viu Lorry e caiu num silêncio total. Esqueceu-se dos outros, olhando para a moça e suas pálpebras de pedra tremeram e o rosto ficou trêmulo também. Depois foi para junto dela, devagar, e a abraçou com força. Tentou falar e tossiu, rouco, e fungou. Ainda abraçado a ela, deixou seus olhos pousarem no padre, no rabino e em Johnny. — Um milagre. E quem o realizou? Esta menina aqui. Esta minha garota maravilhosa, a melhor moça do mundo. Faz a gente se sentir… diabos, não importa. Johnny, só posso dizer é que, há cinco horas, quase desistimos de salvar o Jean. A infecção… tudo era um choque para ele. Apareceu de repente: ele parecia estar se entregando, resolvendo-se a ir. E aí apareceu esta moça. Johnny sentou-se na cama, empalidecendo. — Quer dizer que não me contaram sobre o meu filho? Vocês… me mentiram? — De que adiantaria lhe contar? Você não podia ir para junto dele, rapaz. Não seja tolo. Estávamos fazendo todo o possível. Era o menino… ele estava se entregando, estou lhe dizendo. Só falava na mãe, e não em você, nem no pai, nem ninguém. Só na mãe. Sol Klein ficou com ele a maior parte do tempo, e eu também. Mas a coisa estava ficando séria. Ele queria a mãe. — Apertou mais o braço em volta de Lorry e virou a cabeça maciça para ela e a beijou na face, com delicadeza. — Lorry, você o salvou. Você o trouxe de volta. Ele pensou que você fosse a mãe dele. E agora passa o tempo todo olhando para a imagem e sorrindo, e depois, há uma meia hora, sentiu fome e está dizendo a todo mundo que a mãe foi vê-lo e deixou a imagem para ele. Vai viver, Lorry, por causa de você. O padre se levantara, devagar, grande e parado. Seu rosto eslavo, largo, estava muito branco. Ele foi para junto de Lorry e o médico e os contemplou, sem falar. O Dr. McManus sorriu para ele, com um sorriso de lobo. — Bem, Padre John Kanty, aí está o seu milagre. Mas o senhor sempre acreditou em milagres mesmo, não é? Talvez agora eu também acredite. — Ele se virou para Lorry, que estava tremendo. — Benzinho, o que a levou a ir lá? Estou curioso. — Não sei. Não me lembro. — Você tinha razão. A Mãe dele lhe enviou Sua imagem. Por meio de você — disse o padre. Persignou-se e saiu do quarto, a cabeça abaixada, meditando.

XV Nem mesmo o bom ar-condicionado do belo escritório de MacDonald Summerfield conseguia extinguir inteiramente o eflúvio venenoso do que o Press chamava levianamente de “uma inofensiva corrente descendente de uma fumaça industrial normal e o pesado ar do outono”. O cheiro acre e ardente se embrenhava pelas menores aberturas e o equipamento de ar- condicionado lutava valentemente, com rangidos anormalmente altos. A vista do vale, que se tinha das janelas largas, havia desaparecido numa irrealidade nublada: somente as serras mais altas à distância espiavam por entre o vapor flutuante e irrequieto, como picos de ilhas. Mas o mar cinzento de umidade venenosa e ar não tinha uma coloração uniforme: aqui e ali jorrava para cima em repuxos amarelados, de chaminés ocultas, ou uma mola monstruosamente grande e preta, como uma serpente, erguia-se pelas ondas cinzentas e mudas. O Sr. Summerfield assoou o nariz várias vezes num de seus delicados lenços de linho, enquanto lia irritado o artigo que a filha tinha escrito sobre o novo ministro daquela miserável Igreja do Bom Pastor. Era um artigo bem escrito, com muito colorido e vivacidade, o que aumentou a raiva do Sr. Summerfield, e estava apresentado em destaque, com certos parágrafos em negrito. “O dia de ontem marcou a volta ao púlpito do Sr. Fletcher, depois de ter sido atacado por jovens desordeiros, não identificados, há cerca de quatro semanas. Ele ainda estava pálido e magro, e via-se uma cicatriz comprida, horizontal, da têmpora direita até bem dentro dos cabelos. Essa cicatriz se destacava à luz das poucas velas na igrejinha pobre e esta repórter notou que a congregação olhava para ela, repetidamente. Talvez fosse mera curiosidade que tivesse lotado a igreja, até as portas, com pelo menos 20 pessoas de pé, depois que as cadeiras de emergência não puderam mais acomodar o afluxo notável de fiéis. Mas aqueles que compareceram por curiosidade ficaram para escutar. Se bem que esta repórter já tenha coberto muitos ofícios em várias outras igrejas, ficou muito impressionada com a atenção profunda que todos deram ao sermão do Sr. Fletcher. Quando a congregação se levantou, no final, foi menos um gesto mecânico antes da leitura dos responsos do que Uma ovação séria.” “O Sr. Fletcher é um orador eloquente, mas sem melodrama, inflexões ou gestos teatrais. Talvez fosse porque ele falou menos para impressionar ou fascinar do que para falar a verdade. É convicção desta repórter que a verdade em si tem um tal poder que não é necessário acrescentar a ela a ribombância ou fogos de artifício.” Bem, pensou o Sr. Summerfield, com certa satisfação azeda, pelo menos aqui Lorry falou acima do entendimento das massas imundas. “O Sr. Fletcher é quase um anacronismo entre o clero protestante, especialmente do tipo mais ‘progressista’ ou ‘esclarecido’”, continuava o artigo, com calma. “Não é um evangelista ou fundamentalista, de modo que o seu sermão foi ainda mais notável por isso. De certo modo, foi um sermão intelectual, digno de um presidente de seminário teológico, distinguindo-se, aqui e ali, por sua sinceridade profunda e sua paixão e crença sossegada naquilo que dizia. E convenceu sua congregação e aqueles que não eram de sua

congregação. Nenhum dos homens e mulheres que lotavam os bancos podiam ser considerados fiéis elegantes. Pareciam pertencer aos grupos de renda mais modesta, trabalhadores especializados, artesãos, lojistas e funcionários públicos. Compreenderam o Sr. Fletcher perfeitamente.” Será?, perguntou-se o Sr. Summerfield. Aquela ralé? “O Sr. Fletcher, cujo sermão se intitulava ‘A Antiga Tirania’, foi capelão nas forças armadas dos Estados Unidos na última guerra. Durante esses anos ele teve ampla oportunidade de colher informações para este sermão, e ele o pronunciou com rigidez. Segundo o Sr. Fletcher, a era que culminou com essa guerra, que terminou há pouco mais de um ano, foi apenas mais uma manifestação de um despotismo que remonta às orlas nebulosas da História do passado. E ele acredita que a atual ‘paz’ não passa de um intervalo de renovação de forças, para que os tiranos renovem seu antigo assalto à humanidade.” ‘Esse novo assalto pode ocorrer em 1947 ou 1949 ou 1950 ou 1957’, disse o Sr. Fletcher. ‘Dessa vez os déspotas secretos vão apostar tudo o que possuem, tudo em que cinicamente acreditam e todo o seu ódio pelos homens e a sua ânsia de poder, no golpe mais possante que há de vir. A bomba atômica é apenas mais uma arma no seu arsenal de ódio e destruição, pois eles sabem que nenhuma arma, por mais terrível que seja, pode trazer a paz à humanidade a não ser que a humanidade exija a paz.’ O artigo continuava, mais sobriamente: “No entanto, o Sr. Fletcher não perdeu muito tempo com os déspotas imortais, cuja história esboçou rapidamente. Disse ele: ‘O próprio povo é responsável pelos déspotas. Ele é que os cria. Dá-lhes o que desejam, ávidos, em muitos casos, passivamente em outros. O povo tem culpa por seus tiranos: fornece o ambiente em que a tirania pode vingar, com suas exigências, seus apetites, seus ódios em massa e sua inveja, seu ódio por seu semelhante, seus preconceitos e ignorância e falta de virtude, seu ateísmo que invade até mesmo suas igrejas, sua determinação obstinada de ter o que não conquistou e que não merece, sua ganância louca e sua falta de caridade e amor. Exaltam aqueles que prometem satisfazer o mal dentro deles, ou pelo confisco, revolução ou assassinato’.” O Sr. Summerfield cerrou os punhos sobre a mesa e em volta de sua boca apareceram traços brancos. Então, ela me mentiu o tempo todo, pensou. E ficou muito assustado, pensando em Swensen e todos os seus outros amigos. O que teria ela descoberto nestes escritórios? O que teria ouvido, e ouvido sem querer? Ali, naquela página, a filha o repudiava, o dissecava, o despedaçava, com um desprezo amargo, ódio e compreensão. Ali ela esclarecera o motivo por que o odiava e ele via seu rosto e seus olhos, voltados para ele numa acusação fria. No entanto, enquanto ele enrijecia de medo e raiva, uma voz gritava dentro dele: Lorry! Lorry! Minha filha! E então, com menos, mas só um pouco menos, de sofrimento: Barry, meu filho, meu filho! “‘Essa foi sempre a história do despotismo’, disse o Sr. Fletcher. ‘A história do despotismo é a história do ateísmo, materialismo e ódio do povo. Implantado na alma humana está o instinto inerradicável da adoração, selado nele pelo próprio Deus. O homem tem sempre de adorar alguma coisa: não pode fugir da dinâmica de sua alma. Não pode ser ateu, na verdadeira acepção da palavra. Nem pode ser agnóstico. Não pode, nem

por uma hora, ser indiferente ao apelo do seu espírito. Se não adorar a Deus, terá de adorar outra coisa. Não pode haver nele um vácuo de adoração, um espaço vazio. Se ele não adorar a Deus, vai adorar a Satanás. Tem de pertencer ao Corpo Místico de Deus ou ao Corpo Místico de Satanás, que é o mal absoluto.’” Ora, o idiota!, pensou o Sr. Summerfield, com certo alívio. Se alguém que o ouviu ontem tiver alguma inteligência, seu sermão fará dele motivo de riso, mesmo nesta cidade miserável. “‘Em toda era sangrenta de despotismo as pessoas têm adorado uma manifestação diferente do Mal imortal. Com o Manifesto de Karl Marx em 1847, começaram a adorar outra manifestação: o materialismo em sua forma mais profunda e ampla.’” “‘Todos os homens, desde os princípios da História, demonstraram um interesse normal pelo materialismo — isto é, as coisas da carne — pois o homem, embora sendo espírito, é revestido de roupas animais também, e é necessário satisfazer as necessidades animais com alimentos, abrigo, roupas. Foi o próprio Deus quem multiplicou os pães e peixes, quem alimentou a multidão, quem recriminou aqueles que oprimiam as viúvas e órfãos, deixando-os desabrigados, quem declarou que o trabalhador merece o que ganha, e quem disse que não se atasse a boca do boi que debulha o milho. O próprio Deus, que se tornou homem no Seu amor por nós, precisava comer e beber, encontrar abrigo contra a tempestade, vestir-se e aquecer-se. Daí a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, advertiu Ele ao povo, severo. Todos os que eram injustos, todos os que faziam o povo passar fome, miseravelmente, por falta de pão, ou lhe pagava pouco por seu trabalho, ou o obrigava a se abrigar em casebres miseráveis, ou o enxotava para as estradas, faminto, ou o explorava, merecia a Sua ira. Pois o espírito do homem deve manifestar-se ao seu semelhante por meio da carne, de modo que a própria carne tem sua santidade. Deus fez o homem do pó, e abençoou esse pó e nele soprou o fogo da vida.’” ‘Mas há cem anos, de repente o materialismo surgiu como um objeto total de adoração, sem o fermento do espírito. Tornou-se uma coisa absoluta em si, e o absolutismo foi invenção de Satanás. E essa doutrina foi singular na História e os déspotas, que sempre renascem em cada geração, viram nela a sua oportunidade final e mais poderosa.’” “‘Dessa doutrina de materialismo dialético nasceram Hitler e Mussolini e Stalin e muitos outros, com a marca de Satanás em si. Porém não foi Satanás quem criou o poder desses homens. Foi o povo, de toda nação do mundo. O materialismo de repente tornou-se para eles um objeto de veneração e passaram a adorar os homens que prometiam dar-lhes o que queriam. Em algum ponto, na chama vermelha da revolução industrial, o homem perdeu Deus’, ou O abandonou pelas coisas, as coisas do mundo. A fábrica e a usina, e não a igreja, é que continham o que era mais sagrado. O altar não era mais encimado pela cruz; não continha mais em si os pergaminhos sagrados. Acima do barulho da bigorna, que era o novo altar, erguia-se o novo incenso da fumaça industrial, e da nuvem ácida espiavam as caras brutais dos novos deuses que o povo criara para si.’ ” “‘Os novos deuses ofereciam ao povo ‘segurança’ em face de um universo violento e imprevisível, que só Deus pode controlar. Prometiam-lhe a faca da vingança contra aqueles que eles invejavam ou odiavam. Prometiam dar-lhes benefícios que não tinham

merecido. Criavam falsos inimigos do nada, para a raiva e destruição do povo. Ofereciamlhes o domínio do mundo, em nome do nazismo, fascismo ou comunismo, ou satanismo em alguma outra forma. O Estado, diziam todos, era o protetor do povo. Bastava que adorassem o Estado, completamente e com a devoção que antes davam ao ‘mito’ de Deus, e todos os seus problemas naturais seriam resolvidos. O leite e o mel da Terra Prometida estavam ali diante deles, à sua disposição, graças a seus novos deuses, e não como recompensa por levarem vidas virtuosas.’” “‘Em resumo, os novos deuses só pediam uma coisa ao povo — a renúncia àqueles direitos e liberdades inalienáveis que somente Deus lhes podia dar, porém que os homens perversos podiam tirar-lhes, se o povo o permitisse. E o povo nunca teria permitido se primeiro não tivesse concordado com o negócio mais incrível da História. ‘Dêem-nos deuses, e mais deuses’, disse o povo a seus tiranos, ‘e em troca renunciaremos a Deus e a todas as coisas do espírito.’” “‘Sim, os povos consentiram, em todas as partes do mundo, com uma só voz forte, unia longa devoção, um consentimento poderoso.’” “‘Não pensem’, disse o Sr. Fletcher à congregação, ‘que o fascismo era diferente do nazismo, ou o nazismo do comunismo. São a mesma coisa — são manifestações de Satanás, as manifestações do materialismo. Se os déspotas pareciam se atacar uns aos outros, isso foi sua loucura individual. Os homens por trás deles, os verdadeiros déspotas todo-poderosos, não tinham nenhuma briga entre si. Se um déspota ostensivo era derrotado, no dia seguinte os homens secretos podiam substituí-lo com facilidade, continuando ininterrupto o trabalho de subjugar e destruir a liberdade e a dignidade do homem, Pois o Mal estava ficando cada vez mais vitorioso e nunca, em toda a História, Satanás tinha conseguido uma tal vitória, em toda a nação do mundo.’” “‘Não acreditem, nem por um instante, que Hitler ou Mussolini ou algum outro homem causou a última guerra, e nem pensem que algum outro homem individual causará o próximo holocausto. Esses homens não passam de símbolos — de vocês, o povo. São apenas suas imagens. Vocês os criaram! Puseram as armas em suas mãos de ferro; deramlhes as suas motivações e seus ódios e sua falta de Deus. Lançaram seus filhos nesses braços incendiados; sacrificaram seus filhos a eles, nos seus altares de materialismo. As covas que enchem a Europa, os campos de concentração, as cidades destruídas, as crianças chorando, as mães perdidas, a agonia e angústia de todo um mundo — são seus atos, só seus. Contemplem-nos.’” “‘Sim, contemplem-nos. Olhem para os seus filhinhos ao seu lado, para suas filhinhas lindas. Já estão sacrificados à sua ganância, ao seu materialismo, ao abandono de Deus pela ‘segurança’, às bugigangas reluzentes e aos objetos. Amanhã não estarão mais a seu lado. Amanhã suas cidades estarão em cinzas de novo. Amanhã vocês vão criar novos déspotas, em seu nome e em nome do Mal.’” “‘Pois expulsaram de suas escolas, suas vidas e seus lares o luminoso nome de Deus. E que Deus, cuja Face vocês cobriram com fumaça, tenha piedade de suas almas!’” “O Sr. Fletcher”, continuava o artigo, “não participou da leitura dos responsos, que se seguiu. Saiu do púlpito abruptamente e não reapareceu. Isso era uma coisa sem precedentes, mas os homens e mulheres que enchiam a igreja parece que compreenderam.

A leitura dos responsos foi muito fraca, como se a congregação estivesse pensando. Saíram da igreja de semblantes muito suavizados. É opinião desta repórter que esse sermão há de ressoar em cada lar, durante muito tempo ainda.” O Sr. Summerfield ficou ali sentado muito tempo, a pele fina de sua testa se enrugando. Tudo o que esse idiota do Fletcher dissera era verdade. Portanto, ele tinha de ser destruído. Era mais perigoso do que um exército. Tinha sido apedrejado. Muito bem. Tinha de ser apedrejado novamente O Sr. Summerfield começou a escrever depressa, com sua letra miúda e precisa. Quando terminou o editorial, levantou-se e foi procurar a filha. Ele parou, a mão na maçaneta da porta do escritório dela Novamente foi acometido por sua ânsia doentia. Ele saiu a procura dela com raiva; agora ele parou. Ia apenas rir-se dela, brandamente, ridicularizando-a. E saberia para sempre que, por motivos dela só, ela o enganara e traíra. Ele lhe perguntaria por quê; tinha de saber. Ele mesmo estava em perigo, por causa dela. Os seus amigos saberiam de tudo; cópias desse artigo lhes chegariam quase imediatamente. Mas, mais que tudo, ele queria saber por que a filha o traíra e se aproveitara dele e o desprezava. Ele abriu a porta. Lorry estava de pé, ao lado da secretária. O pai a princípio não notou que ela empilhara em cima da mesa objetos das gavetas esvaziadas. Só viu seu vulto esguio no vestido preto justo, o brilho da cabeça lisa, o perfil ascético do rosto. — Lorry— chamou ele. Ela se virou para ele com aquele seu jeito rápido e ele viu-lhe os olhos ovais, grandes, brilhando com seu repúdio. — Vou embora. Agora — disse ela. E então ele viu os objetos na secretária —· a bolsa, os cosméticos, os cadernos. Havia a finalidade da partida no ar dela. — O quê? — murmurou ele, estupidificado. — Eu disse que vou embora. Agora, para sempre. Nunca mais vou voltar. Vou embora. Não quero saber de você. Se me escrever, não vou responder. Se for me procurar, fecho a porta na sua cara. — Parou e em seus olhos havia uma chama. — Não entendeu? Não sou sua filha; você não é meu pai. Esqueça-se de que eu já existi, assim como eu vou esquecer que o conheci. Ela estava ali diante dele, reta, alta, rígida, olhando para ele, e não havia misericórdia nela, nem amor, nem pesar. — Lorry, você está maluca? — Ele se esqueceu do artigo dela. Era a filha, a criatura que ele amava mais do que tudo no mundo, e ela o estava renegando, deixando-o, para nunca mais voltar. — Por quê? — perguntou ele, quando ela não respondeu. — Porque você é o que é. Porque descobri tudo sobre você. Porque não posso mais suportá-lo. Comecei a descobrir sobre você há cinco anos. Foi então que comecei a odiálo. — A voz dela estava forte e áspera na sala, e ela atirou as palavras a ele como pedras. — Não me pergunte mais nada. Acho que sabe perfeitamente o que quero dizer.

Ele pôs as mãos na mesa dela e se apoiou nelas, pois de repente estava abalado e desfeito. — Não se preocupe com a minha vida — continuou ela, com desdém. — Lembre-se, tenho três mil dólares por ano que meu avô me deixou… o seu pai. E dois mil que o pai de minha mãe me deixou. E vou trabalhar com o Barry, já falei com ele. Os ombros do Sr. Summerfield caíram. Tudo o que fiz, disse consigo, acreditando nisso, foi por você, minha filha. Queria o mundo para você. Ela já ia passando por ele, mas ele agarrou o braço dela. — Lorry — suplicou. — Escute um instante. Não, acho que não posso explicar. Estou pedindo que fique por mim, porque eu a amo, Lorry. Mas o rosto dela estava mais marmóreo do que nunca, eternamente fechado para ele, a boca branca e parada. — Não posso deixá-la ir, Lorry. Ela puxou o braço da mão dele e, sem mais uma palavra, saiu do escritório. Ele ficou ali, sozinho. O jornal da manhã estava em sua mão. Ele tornou a ler o artigo dela. E aí ele passou a ser uma avalancha gélida de ódio. De algum modo aquele ministro estúpido e detestável era responsável pela partida da filha. Ele, aquele ministro, escravizara a filha com aquela sua besteira mística, e a afastara dele, pai dela. Precipitara alguma coisa em Lorry que poderia ter ficado adormecido durante toda a vida dela. — Ele me paga — disse o Sr. Summerfield, em voz alta e tranquila —, nem que seja a última coisa que hei de fazer.

XVI — Você está maluca! — exclamou o Dr. McManus, gritando tanto quanto sua voz lhe permitia. — Lorry, você não pode ir embora agora… quando estava começando a agitar as coisas. E os seus artigos sobre a poluição, hein? Lorry estava sentada com ele na sua sala vitoriana monstruosamente feia, que não tinha sido modificada desde a morte dos pais dele. A moça sempre a achara uma das salas mais lindas que já vira, a despeito de seus veludos e pelúcias vermelhos e azuis, empoeirados, as porcelanas grotescas e retorcidas, os móveis de ébano ou mogno preto todos entalhados, os vasos de lareira cheios de folhas de outono duras ou amentos envernizados, as gravuras em branco e preto ou retratos monótonos e estáticos pendurados em paredes violentamente estampadas, e seu tapete de Bruxelas vermelho. Pois ali o médico tinha lido para ela, quando era menina, ou lhe contara histórias estranhas ou engraçadas e lhe dera imensos biscoitos doces, que ela comia escutando-o e olhando a luz verde que se filtrava pelas árvores espessas lá fora, entrando na penumbra da sala maciça. A luz agora não estava verde, pois dos olmos pendiam trapos amarelos e molhados e os farrapos vermelhos dos bordos esvoaçavam no vento úmido. Ela estava sentada dura em frente do médico, que a estava olhando irritado. Ela vestia um costume marrom, de viagem; as malas estavam trancadas no carro, lá fora. A luminosidade de seu rosto pálido era obscurecida pelo cansaço e sofrimento e- seus lábios estavam brancos. — Esses artigos nunca serão publicados — respondeu ela. — Descobri hoje de manhã que ele… ele… ordenou aos redatores assistentes que tudo o que eu escrevesse teria de ser submetido primeiro a ele, para sua aprovação. — Apertou os lábios. — Já não sou mais útil, Tio Al, acho que já fiz o bastante. E além disso… O Dr. McManus esperou, mas Lorry estava alisando as luvas na mão, a cabeça baixa. O velho médico sentiu uma forte pontada de compaixão. — Vai querer que lhe escreva, Lorry? Vai querer que lhe conte tudo? Vai querer saber do seu pai, é? — Vou — respondeu ela, com simplicidade. Agora não havia mais ódio em seus olhos. O médico acendeu outro cigarro naquele que tinha fumado, quase até o fim. Ficou fumando, olhando para â frente com uma expressão muito maligna. Depois falou: — Lorry, você é uma moça feita. Parte dos problemas entre você e o seu pai é culpa sua. Você o endeusou, até há alguns anos. Isso foi errado. Você não era mais criança; já tinha mais de 20 anos e devia saber das coisas. Não estou defendendo o Mac: acho que ele é nojento. Sempre o achei nojento. É um filho da mãe egoísta, posudo, mentiroso e elegante. Sim, senhora. Já era assim, desde menino. Estava ali, para você ver. Você não viu e o culpa por sua cegueira. Quando recuperou a visão, culpou-o por ele ser o que sempre foi. “Você conhece a origem dele. O pai era professor aqui em Barryfield, onde Mac

nasceu. Conheci bem o seu avô, sujeito ineficiente, de fala macia, pedante, cheio de dogmas de mestre-escola. Ele fazia mesuras e era humilde e, como se achava superior a todo mundo, detestava os poderosos, porque tinham mais dinheiro. Ele envenenou o Mac; era inevitável. Gostava mais do dinheiro do que de sua alma imortal… se é que tinha alma, o que duvido. Mas como não tinha dinheiro, fingia que não tinha valor, e ao mesmo tempo que aqueles que o tinham eram as únicas pessoas importantes no mundo. Mac podia ser um presunçoso desdenhoso e superior quando era menino, mas, como você, acreditava no pai. Esse tipo de fraqueza é de família, não é?” Ele riu para a moça, que tinha levantado a cabeça com um interesse atento. — Bem, Lorry, ele se parecia com você em mais de um sentido. Adorava aquele idiota daquele pai. A “sociedade” estava “fazendo alguma coisa” com o pai dele. Então, a sociedade tinha de ser castigada. O único meio de castigar a sociedade era ganhar o máximo de dinheiro possível e depois adquirir poder sobre a sociedade e fazê-la se dobrar a ele como o pai se dobrara a ela. Se você pesquisar qualquer desses ricaços pseudoliberais ou comunistas, encontrará uma história semelhante nas suas origens. Nunca houve um movimento que não se originasse com emoções humanas secretas, ou de amor ou de ódio. Mas, minha filha, na maior parte é por vingança. — Eu sempre pensei que a nossa família era rica há gerações — disse Lorry, assombrada. — Ah — riu-se o médico, sacudindo um dedo para ela, com malícia —, isso é a grande ilusão de Mac. Ele hoje chega a acreditar nisso, ele mesmo. Por que ele não lhe contou que o pai dele era um pobre mestre-escola, no princípio, e fez fortuna por acaso, no petróleo? Vou-lhe dizer por quê. Ele tinha vergonha de já ter sido pobre! Ele, o grande liberal, tem tanta vergonha, o idiota, que não suporta se lembrar. Para ele, isso foi uma vergonha. Para ele, era horrível ter algum dia vivido entre os benditos pobres que ele hoje finge defender naqueles seus pasquins. Ele detesta os pobres, os desprivilegiados, as massas. Como todos os outros do tipo dele, inventou uma coisa que não existe… o homem da massa. Por quê? Porque quer se utilizar do homem da massa não só para se vingar de seus “superiores” pela humilhação de pobreza que um dia sofreu nas mãos deles, mas ainda mais porque quer se vingar dos pobres por ter sido obrigado um dia a viver entre eles. “Ninguém — continuou o médico, para a moça tensa que o escutava — jamais revelou o fato de que Marx era um homem relativamente abastado, bem como os seus companheiros. Vinham de sólidas famílias de classe média urbana. Ser sólido e de classe média não bastava para eles, os brutamontes loucos. Queriam dinheiro e mais dinheiro e poder e poder e poder. Então, arranjaram as ‘massas’, pura invenção deles, para terem alguém a quem oprimir. E de quem se vingar.” O médico levantou-se e começou a andar de um lado para outro na sala atravancada. — É essa a história desses comunistas que nunca foram realmente pobres e dos que hoje são ricos. No entanto, não vamos simplificar demais. O seu pai e o tipo dele são uma parte do comunismo. Há outro tipo, e esse tipo há de acabar com o seu pai e- os amigos dele muito ligeiro, se algum dia assumirem o poder nesta terra, assim como liquidaram o seu pai e o tipo dele em todos os outros países, quando assumiram o poder.

“Falo dos fanáticos, os dedicados. Nascem em cada geração. Um médico inteligente identifica esses camaradas, tanto masculinos quanto femininos, já no jardim de infância, ou em todo caso nas primeiras séries. Um dia desses vamos ter verdadeiros psiquiatras procurando por eles, não os analistas freudianos que temos hoje, que são até favoráveis, alguns deles, ao tipo de mentalidade pervertida que têm os fanáticos. São favoráveis à inocência intensa e pervertida que esses loucos demonstram, pois não há nada tão perigoso e malditamente inocente, na aparência, quanto um homem que acredita fervorosamente no ódio.” O médico perguntou, ainda com a cara muito fechada: — Bem, Lorry, já lhe contei sobre o seu pai. Vai abandoná-lo agora, já que compreende? Ela ficou calada: seu rosto endureceu. O médico sacudiu a cabeça. — Sabe, pensei que você poderia ajudar Johnny e os guris. Você me pareceu gostar deles todos. Jean. Johnny. Foi a primeira vez que vi você vibrar, há anos. E agora você os abandona. Assombrado e interessado, ele viu Lorry corar violentamente. — Eu… não quero me envolver emocionalmente com… ninguém. É muito desgastante — respondeu ela. O Dr. McManus aproximou-se dela, apertando os olhos. — Ah. Então é isso. Não é só o seu pai, então. Você está é fugindo, garota. Alguma coisa a abalou? — perguntou ele, com um interesse maldoso, quando a moça se levantou de um salto. — O que foi? Johnny? Ela gritou para ele: — Diabos, Tio Al! Olhe para mim! Lembre-se de mim! Já me viu no papel de mulher de um ministro? Mesmo que ele pensasse nisso, coisa que não faria! Já me viu andando atrás dele, sentimental, de olho grande, fazendo “obras de caridade” para ele? Ora, cale a boca! Ela pegou a bolsa e as luvas e lançou um olhar furioso com os olhos azuis. — Vamos ser realistas. Não estou vivendo um romance. Johnny… e eu! Pelo amor de Deus! Ele é um fóssil, estou-lhe dizendo. Um anacronismo. — Bem ativo para um fóssil — respondeu o médico, com seu riso de mofa. — O que é um anacronismo? Uma coisa fora do lugar e do tempo. Claro que ele é, na opinião geral. Acredita no pecado, pelo amor de Deus. Sabia de uma coisa, benzinho? Existe o pecado, sim. Você tem de aceitar isso e reconhecê-lo. E depois tem de fazer algo a respeito. Johnny é o tal. Estamos precisando de mais alguns anacronismos neste mundo, isso é certo. Lorry pareceu abatida e cansada. — Tio Al, não sou do tipo que se sacrifica. Não sou mórbida. Não poderia ser mulher dele, e não vou ser empregada de ninguém. Em todo caso, não estou interessada em me casar com ninguém.

— Claro que não — disse o médico, com frieza. — Você ainda está apaixonada por seu pai. Bem no fundo dessa sua cabeça de tonta está o velho Mac, de armadura branca, ou coisa que o valha. A despeito de tudo, você não suporta ter uma visão dessas, e lá se vai para Nova York ou a Europa, ou seja lá onde for. — Veja só quem é o analista agora? — gritou Lorry, furiosa. — Por que não arruma um sofá? O médico deu uma risada. — Ei, espere, benzinho. Mas Lorry já tinha saído da sala correndo. A porta bateu com estrondo. O Dr. McManus via a moça se jogando no carro, alucinada. Ela deu a partida tão violentamente que sua cabeça caiu para trás e o chapéu lhe caiu sobre os olhos. O Dr. McManus roeu a unha, com azedume. Disse em voz alta: — Engraçado. Lorry nunca foi de fugir da verdade, batendo as portas. Devo ter tocado num ponto muito delicado na psique dela, ou coisa assim. Coitadinha. Bem, ela acaba pensando… talvez. Era a tarde em que fazia as visitas no hospital, mas ele foi à casa paroquial, que parecia singularmente fria e triste à luz baça do outono. Johnny ficou espantado ao vê-lo. O jovem ministro parecia muito desanimado e preocupado. Da sala de jantar vinha o ruído de vozes jovens e animadas, embora a porta estivesse fechada. — Sol Klein acabou de sair daqui, doutor — disse Johnny, levando o médico para a sala triste, onde estava trabalhando no próximo sermão. — Diz que Jean está indo muito bem. — Não vim ver o Jean, propriamente — respondeu o Velho, gemendo ao se sentar no sofá manchado. — Falando francamente, nem sei por que é que vim. Como vai a velha… senhora… que está ensinando aos guris? Progredindo? O rosto exausto de Johnny se animou e então a cicatriz na sua têmpora pareceu menos evidente. — O Padre John Kanty foi muito bom. Mandou sua velha professora aposentada aqui para ensinar a Jean e Pietro, e ela se recusa a aceitar um centavo. A Srta. Coogan. O Pietro vai cedo para a escola, para a aula de catecismo, e a Srta. Coogan ensina o catecismo a Jean. E sabe o que mais? Ela se ofereceu para ensinar a Max, Kathy e Emilie. — Por um instante seus olhos ficaram pensativos e cansados. — Ela diz que os meninos são de uma inteligência fora do comum. Max e Kathy estão aprendendo muito depressa e Jean e Pietro são verdadeiros gênios-! Pode ser exagero da Srta. Coogan, mas ela diz que Jean e Pietro já estão no nível da quarta série, nos estudos deles, e já deverão estar preparados para as turmas regulares, em setembro, se continuarem assim. Os garotos parecem achar que tudo isso é uma brincadeira muito interessante. O médico meneou a cabeça, aprovando, mas ao mesmo tempo estava preocupado com a expressão gasta e aflita de Johnny.

— Vamos, alguma coisa o está preocupando. Conte ao papai. Não é o Jean: ele está reagindo milagrosamente, me disse o Sol. Por que não? Tem o Sol, que baba por ele como se fosse filho dele: especial para o Sol. Johnny hesitou. — É a Emilie, doutor. Está decaindo. Cada vez que há o smog ela fica mais doente. A cada dia fica mais fraquinha. — Humm — falou o Dr. McManus, pensativo. — Imagino que o melhor para ela seria interná-la num hospital ou sanatório num lugar alto, longe daqui, onde ela pudesse respirar um ar puro. — É — respondeu Johnny, a voz triste. — Mas sabe, até mesmo o Dr. Kennedy… Tim… reconhece que ela não lucraria com isso, separada dos meninos e de mim. Podia até fazê-la piorar. — Olhe, Johnny, você já conhece o mundo; é realista. Conseguiu uma espécie de milagre com Jean, mas isso porque Sol Klein lhe deu tudo o que tinha… e a Lorry lhe deu uma coisa que ela nem sabia que tinha. Mas você não pode esperar outro milagre com Emilie. Viu as radiografias dela; Kennedy é um dos melhores cardiologistas do país. A Mayo queria que ele fosse para lá, há um ano, e ainda quer. Tim não tem qualquer esperança para o bebê. Você sabe disso. É só fazer tudo para ela ter conforto. Johnny, você não está querendo um segundo milagre, está? — Não. Há algum tempo, esperava, sim, mas agora não. Alguma coisa me diz que Emilie vai morrer; uma sensação de finalidade me veio uma noite, quando estava rezando por ela. Eu… sempre acreditei que até mesmo a morte tem um sentido, nas vidas das pessoas. Acho que agora não acredito. Fico pensando no que Emilie tem sofrido, desde que nasceu… por causa das feras. Por que não pode viver e crescer para ser uma mulher feliz e sadia, como vai ser a Kathy? O Dr. McManus se remexeu no sofá, sem jeito. — Johnny, eu não sei. Mas você é que é o pastor. Devia saber. Johnny respondeu, a voz se elevando num desespero e sofrimento: — Não sei! Deus me perdoe, mas não sei! Estou cheio de revolta. Grito com Deus. Só recebo o silêncio. Como posso falar para a minha congregação sobre a misericórdia divina quando Ele não me atende, quando rezo por Emilie? O médico olhou para ele, os olhos apertados. — Johnny, não sou do tipo religioso. Sou um realista duro; o mundo me fez ficar assim. Mas já o escutei falar. Talvez a resposta esteja esperando e apareça com o tempo. Talvez você agora não pudesse compreender. Diabos, eu mesmo estou falando que nem um pastor. — Acendeu um cigarro, olhou para o outro de cara fechada e murmurou: — A guerra acabou; por que as coisas ainda não estão parecendo certas? Johnny, você acredita na outra vida, não é? Eu não, claro. Johnny não respondeu. Aflito, virou-se e olhou pela janela. O médico soltou um enorme suspiro.

— Está bem, Johnny. Não precisa responder. Vejamos as coisas assim. A menininha… irá embora, antes mesmo de ter tempo de aprender alguma coisa sobre a morte. Pelo que Tim me conta, ela vai desaparecer aos poucos: adormecer. Então… nada de medo, nem aflição. E veja o que você lhe deu, enquanto isso. Amor, proteção, segurança. Pense nos milhões de crianças, até sadias, que não recebem uma décima parte disso! — Obrigado — respondeu Johnny, com uma humildade triste e tornou a sentar-se. Começou a bater na secretária com ambas as mãos, olhando para a frente, os olhos vazios. O médico continuou: — Diabos, o mundo não é um lugar assim tão agradável. Como é que dizem os chineses? “Cada homem leva uma vida de um desespero mudo.” Isso é certo: leva mesmo. A vida é uma coisa maldita e pouco satisfatória, nas melhores circunstâncias. As coisas lhe são emprestadas, se você tiver sorte. E depois lhe são tomadas. Johnny, nunca lhe falei muito sobre a minha mulher. A moça mais suave e boa do mundo: morreu quando nasceu a nossa filha. Além do meu pai, foi a única coisa que já amei. E então ela morreu e fiquei ali junto do túmulo, enquanto a baixavam; não queria sair dali, embora uns bobos me puxassem. E então amaldiçoei Deus. Por que Ann tinha de morrer, hein? E o bebê também? Eu me afastei daquele túmulo quando o último torrão de terra foi jogado nele, e não antes, e tudo em que acreditara me abandonou. Johnny levantara a cabeça e agora estava olhando atentamente para o médico. O doutor olhou para o teto, refletindo. — Sabe de uma coisa? Fiz uma espécie de voto comigo mesmo. Odiava Deus. Jurei que ia trabalhar o máximo para arrancar as pessoas do sofrimento e da morte. Passei a pensar em Deus como um Moloch que destruía o que havia de melhor e mais belo. Então, eu o derrotaria. Arrancaria Suas vítimas de Suas mãos ardentes. Eu O faria se arrepender de um dia ter-Se metido comigo! Sim, senhor. Ele ia se arrepender. — O médico deu uma risada irônica. — Então… nessa época eu não tinha muito dinheiro… peguei o dinheiro do seguro de Ann e fui para a Europa. Estudei em Heidelberg; estudei em Londres. Quando acabou o dinheiro, continuei a estudar. Meu pai me mandou algum. Passei fome. Mas estava na pista do Inimigo! Trabalhei nos hospitais de Edimburgo, de graça. Trabalhei em toda parte, de graça. Nunca contei isso a ninguém, até hoje. Está cansado dessa saga, é? — Conte — pediu Johnny. — Obrigado. Sabe o quê? Salvei uma porção de gente que estava in extremis! Especialmente moças e crianças. Chegava a eles quando já estavam em coma. Sim, senhor. Inventei técnicas cirúrgicas que nunca tinham sido vistas; hoje são muito usadas. Sabe de uma coisa? Operei até o coração! Um dos primeiros médicos a fazer isso. Homens à beira da cova; os parentes berrando; os médicos sacudindo as cabeças de burros. E eu então arregaçava as mangas e ia trabalhar. Tirei estômagos cancerosos, enquanto os médicos prendiam a respiração e falavam de assassinato. — O Dr. McManus se empertigou e brandiu o dedo para Johnny. — Sabe de uma coisa? Em 10 anos, só tive duas mortes, de qualquer causa que fosse! Um recorde, vou-lhe contar! Recebi elogios, dúzias deles! Coisas idiotas. Alguns dizem: “Na causa da humanidade”. Besteira. Eu só estava lutando contra Deus. — Sorriu. — Sabe, então eu ainda acreditava em Deus, de um modo

pervertido. Agora, não. Bem, não muito, em todo caso. Recebi centenas de cartas de pacientes agradecidos e das famílias deles. Sabe, estou pensando numa coisa. Talvez se Ann e o bebê não tivessem morrido, eu teria sido apenas um médico de família, cochilando confortavelmente nesta cidade desgraçada e depois herdando dinheiro de um tio e mais tarde me aposentando. E todas as pessoas que salvei, milhares delas, nesses anos todos, teriam morrido. — Resmungou. — Nem sei se lhes prestei um favor, afinal, mantendo-as vivas. Neste raio de mundo. — Mas o senhor continua, assim mesmo, embora não pense mais em Deus como o Inimigo — respondeu Johnny, com brandura. — Bem, é mesmo. Coisa maluca, não é? Mas não suporto a morte, o sofrimento e a dor. Alguma coisa me impede. — O médico riu, os dentes manchados aparecendo entre os lábios vividos. — Não entendo. Johnny olhou para as mãos dobradas. — Pois eu entendo. — E em seu coração, rezou: Pai, perdão. Dê-me força. Faça com que eu entenda. O Dr. McManus esperou, sabendo que ele estava rezando, e depois, na voz mais branda que Johnny jamais o vira usar, falou: — Vocês, os pastores, estão sempre dizendo que ninguém nasce em vão, e sim com um propósito. Emilie também. Ele parou e depois continuou: — Que tal achou a reportagem de Lorry sobre o seu sermão? Ouvi dizer que fez um rebuliço na cidade. Sol Klein e os outros rapazes espertos, luminosos, o discutem muito seriamente, no refeitório dos médicos. Você e Jean fizeram muito pelo Sol. Ele me disse que vai quase todas as noites de sexta- feira ao Templo. “Tenho de dar o bom exemplo para as crianças”, diz ele, olhando bem nos meus olhos, como se achasse que eu ia rir. “Klein”, disse eu, “então, por que vocês, rapazes e moças, implicam com o seu velho rabino?” E ele diz: “Andei tendo umas conversas com ele. Sou presidente do clube dos homens e fui assistente nas férias. Poderemos dar algumas novas ideias ao nosso rabino, talvez, se cooperarmos um pouco mais com ele”. E aí tive de rir e ele riu também. Johnny sorriu de leve, mas suas mãos morenas e fortes inconscientemente se torceram, no seu desespero secreto. — Achei que foi muita gentileza da… Lorry. — Ele abriu uma gaveta da secretária e tirou a caixa dourada, cuidadosamente embrulhada em papel de seda. Levantou a tampa e cheirou. — Tenho certeza de que é atar de rosas. O médico o estava observando atentamente. O rosto do rapaz se aliviara, inesperadamente. — Bem — respondeu o médico —, eu lhe disse que ela era uma boa moça. Muitas vezes desejei poder ter idade para me casar com ela. Tem a reputação de ser… bem… alucinada. Bebe. — Tossiu. — É o pai dela. Ela é uma idealista e ele a fez crer que também era. Não propositadamente; é o jeito dele. Acho que ela sonhou com uma imagem dele que não existe. Em todo caso, ela se foi de novo, e dessa vez não vai voltar.

— Não vai voltar? Por quê? O médico deu de ombros e sorriu, satisfeito consigo mesmo. — Está por aqui com o velho Mac. O que há, Johnny? De repente você também não está bem. — Nada — respondeu Johnny, abruptamente. Ele olhou para a caixa, e os nós dos dedos estavam brancos, segurando-a. Depois acrescentou: — Espero que ela volte. Eu… nós… se bem que não a tenhamos visto muitas vezes, ela nos causou uma impressão profunda… em todos nós. Ela veio algumas vezes visitar o Jean. Ele gostou logo dela. Mostrou-lhe a imagem, que guarda no quarto dele. Disse a ela que foi a mãe que a levou para ele. E Kathy está com uma postura reta, como a de Lorry, e fica falando o tempo todo que os cabelos dela são quase da mesma cor, e só falta arrancá-los, de tanto escovar. Pietro a adora e até o Max falou com ela sem ser mandado e Emilie sentou-se no colo dela. O Max está fazendo uma estátua dela; a Srta. Coogan lhe trouxe barro de modelar para ele. — Johnny tornou a se levantar, depressa. — Escreva-lhe. Diga que ela não pode largar os amigos dela assim. Nem veio se despedir! O médico meneou a cabeça, vezes e mais vezes. — Ela vai me escrever, eu acho. E então você pode escrever a ela, dizendo que precisa dela. Hein? Johnny corou. Dobrou o papel de seda em volta da caixa, com carinho, e a guardou, com relutância. Murmurou, quase sem se fazer ouvir: — O que posso lhe dizer? O que lhe posso… oferecer? — Fechou a gaveta, fazendo barulho. — Quer ver as crianças? Está na hora do almoço delas. Entraram na salinha de jantar escura. A mesa nova estava coberta com jornais e sobre ela havia pilhas de livros espalhados. Todas as crianças reunidas em volta dela, debruçadas sobre os cadernos, escrevendo solenemente, os lápis bem firmes. Jean estava ali, na sua cadeira de rodas, a perna engessada levantada, o rosto sabido cheio de uma concentração séria. Pietro, mais agitado ainda, escrevia muito depressa no seu papel e mordendo a língua entre os dentes. Kathy estava escrevendo com precisão, cada letra caprichada e redonda. Max, com um barretezinho preto, lia atentamente, sério, um lápis na mão, à espera. Até a pequena Emilie lá estava, brincando com cubos. Seu rostinho estava muito translúcido, como alabastro, e os olhos azuis, enormes, nele. Ela parecia muito menor, mas, quando levantou os olhos, sua expressão foi de uma alegria brilhante ao ver Johnny e. o médico. À cabeceira da mesa estava sentada uma mulherzinha muito pequenina, gorda e velha, com cabelos brancos esfiapados num coque na nuca, e com os olhos vivos e alegres de uma criancinha. Todas as crianças se levantaram logo, como a Srta. Coogan lhes ensinara, e ficaram esperando que os mais velhos falassem. Emilie estava tremendo; queria correr para Johnny, mas a Srta. Coogan lhe ensinara um respeito antiquado. O Dr. McManus cumprimentou-as com o seu jeito truculento de sempre, enquanto elas sorriam para ele. — Para que é esse barrete? — perguntou ele a Max, a cara fechada. O menino, cujos olhos, antes vazios, agora estavam cheios de serenidade, respondeu:

—·O Rabino Chortow usa isso. Ele me deu este. Disse que eu podia usar. Apontou para Jean. — Veja, o Jean também usa. — Bom! — disse o médico, a cara fechada. Jean olhou para ele com severidade. —·O Padre John Kanty diz que é… bom. Os bispos usam isso. Se eu quiser usar um, é bom. Sua Santidade também usa. Um branco. O médico deu uma risada de mofa. — Então, você é um papa, com a sua idade, é? — Virou-se para Johnny. ·— Nunca lhe perguntei, mas estive pensando como é que você explicou essa misturada religiosa a esses guris. Seria interessante saber. Johnny pôs a mão no ombro de Jean. — Meu bem, conte ao doutor o que lhes contei sobre Deus e a religião. Jean acomodou-se melhor na cadeira de rodas, com importância, enquanto as outras crianças continuavam de pé. — Papai nos contou de um grande Rei que era bom e cari-cari-doso. E tinha muitos meninos-santos. E um dia ele chamou e disse para eles irem para o pobre mundo e contar a todos sobre ele. O Rei. E os santos contaram. Eram todos… diferentes. Todos tinham… — ele se atrapalhou e olhou para Johnny, suplicando. — Todos viam o Rei de um modo diferente — ajudou Johnny. — Isso mesmo. Eles o amavam, mas todos o viam de modo diferente. Mas ele ainda era o único Rei. E eles foram para muitas… nações… povos e lugares e contaram a todos sobre o Pai deles, e como amavam Ele, e deram… mensagens a todo o mundo, do Pai deles para o povo. Como o Rei também amava eles, mais do que tudo, queria que eles conhecessem Ele e fossem felizes e depois fossem para o Reino Dele para ficar com Ele para sempre. E a maior parte do povo acreditou nos santos. Quase todos, eu acho, e não podiam se esquecer do Rei. — Muito bem — aplaudiu o Dr. McManus, esganiçado, com um sorriso irônico. — Já chegou às guerras de religião, Johnny, e todo mundo massacrando todos os outros em nome do Rei? — Continue, Jean — pediu Johnny, muito sério, escutando o menino. — Bom, e tem Satanás — disse Jean. — O Padre John Kanty também me contou sobre ele. E Satanás detesta as pessoas. Ele… agita elas… para se odiarem e se matarem. E tenta fazer com que se esqueçam de Deus. Então eles fazem guerras uns contra os outros e Satanás acha que isso é muito bom. Ele… fez o povo matar os santos. Não quer que as pessoas vão para o Reino e fiquem com Deus. Quer que vão para o… o… inferno, acho que é… para ficar com ele, e sem Deus. — Muito bem — repetiu o médico. — Parabéns, Johnny, Bem simples. Mas aposto que todos vão estar discutindo ferrenhamente sobre teologia uns com os outros, quando ficarem um pouco mais velhos. Espero que você se divirta com isso. — Ele olhou para Kathy, sua favorita. — Então, cara de lua, como vão indo as lições?

Ela lhe lançou o seu sorriso cerimonioso e os olhos de pervinca cintilaram. — Já sei fazer divisão. — Sabe, é? — perguntou ele, sinceramente surpreendido. — Parabéns. Vai ajudar o papai, para ele dividir o ordenadozinho dele entre vocês, guris. Esse vai ser um dos milagres dele. Os olhinhos jovens cintilaram mais ainda. —· Mamãe Burnsdale diz que o doutor devia pagar mais ao papai. — É mesmo? — perguntou ele, irritado. — O papai provavelmente também acha isso. Bem, com licença, estudiosos. Quero dar uma palavra à senhora com todas essas listas Infernais. Ele se retirou, pisando forte, a cara fechada, na direção da cozinha. Pietro não conseguiu mais se conter e gritou: — Acabaram os pirulitos! Preciso de mais pirulitos! A Sra. Burnsdale estava ocupada, pondo sopa numa imensa terrina rachada. Seu rosto pálido abriu-se num sorriso ao ver o médico e ela afastou uma mecha grisalha da testa. Era uma visão agradável e rechonchuda, no seu vestido de casa estampado e avental branco. — Então, doutor, fico contente em vê-lo. Estamos sem um pingo de farinha e açúcar e uma dúzia de outras coisas. Já tenho a lista pronta. Ia lhe mandar pelo correio hoje à tarde. Estou pensando num bom presunto para domingo. — Ah, está, é? — Ele pegou dois biscoitos grossos que estavam num prato e começou a mastigá-los. — Sabe quanto está custando um presunto? E como é que explica ao pastor de onde vêm todas essas gulodices? Ela riu. — Ele nem pergunta, o coitado. Pensa que são da verba da comida. Ora, ainda ontem ele disse que não sabe por que as pessoas reclamam tanto do custo de vida! Tudo é tão barato, diz ele. — Que bom — disse o médico. — Que tal parar de assaltar a minha carteira e deixar que ele descubra um pouco as verdades da vida? Vai lhe fazer bem. A Sra. Burnsdale pôs as mãos nos quadris. — Não, doutor. Ele já não tem bastantes problemas? — O rosto corado dela se anunciou, inquieto. — Talvez o senhor me ache supersticiosa ou coisa parecida, e talvez seja mesmo — falou ela, num tom de desafio. — Mas quando as coisas vão bem eu faço figa porque em geral alguma coisa má está para acontecer. E no momento as coisas vão indo bem demais para todos nós. O médico pegou mais uns biscoitos e a Sra. Burnsdale tirou logo o prato para um lugar mais seguro. O médico encostou-se na geladeira nova. — Não acho que seja supersticiosa, não. Descobri isso há muito tempo. Há alguma coisa no ar que possa precisar?

Ela sacudiu a cabeça, com tristeza. — Bom, há a Emilie, claro. O Sr. Fletcher não pára de se preocupar com ela. Isso é uma coisa. Mas acho que é mais alguma coisa, prestes a acontecer. — Ela estremeceu. — Se eu fosse católica, me persignava. — Pois faça isso — respondeu o médico. — Biscoitinhos danados de bons, por falar nisso. Bem, vá, se persigne. Não é cristã, também? Ele foi para um balcão e pegou outro biscoito. — Tem muito aí. Faça uns para mim, quando me mandar a outra lista. Vou levar a que já preparou. Ela pegou o envelope, já selado, e o entregou a ele. Ele o enfiou no bolso. A porta abriu-se e Johnny espiou para a cozinha. Estava muito sério. — Doutor, posso falar com o senhor um instante? Há uma pessoa aqui. O médico e a Sra. Burnsdale olharam bem para o rosto dele, que estava tenso. Aí o médico disse à Sra. Burnsdale: — Alguma coisa me diz que é bom começar a se benzer agora mesmo. — O quê? — perguntou Johnny, a voz surda e preocupada. Mas o Dr. McManus o empurrou para a sala de jantar, onde um silêncio estranho se abatera sobre as crianças, pois seu instinto anormal sentia o perigo. A Srta. Coogan, sentada com as mãos murchas dobradas sobre a mesa; o rosto igualmente murcho estava agitado. Ela olhou para a porta fechada que dava para a sala. — Aquela… aquela mulher, Sr. Fletcher — balbuciou. — Estou com medo. Ela… me fez sair das escolas antes de eu poder me aposentar. Não… não tenho diploma. — Engoliu em seco. — O Padre Kanty os fez me darem… uma pensão. — A voz fraca falseou e os olhos brandos se encheram de lágrimas. — Ela me viu aqui. Johnny parou ao lado dela; os olhos das crianças, de repente enormes, fixaram-se sobre ela, atentos, e, pela primeira vez, havia semanas, ele sentiu neles aquele alerta animal — o impulso de fugir, o flexionar das pernas para saltar, as mãozinhas cerradas, prontas para lutar e dilacerar. Isso deixou-o terrivelmente alarmado. Pôs a mão no ombro da Srta. Coogan e sorriu, apertando-o. — Não se preocupe, Srta. Coogan. Vai dar tudo certo. — Famosas derradeiras palavras — murmurou o médico, cheio de curiosidade. — Quem é que está lá fora, afinal? Medusa? A Srta. Coogan, agora sentindo a agitação rígida e misteriosa das crianças, sorriu e assoou o nariz. — Bom, é, sim, doutor. É Medusa. — Acho melhor a senhora dizer à Sra. Burnsdale para servir o almoço para a senhora e as crianças — disse Johnny, obrigando-se a se descontrair. Ele afagou a cabeça de Max.

— Vou demorar um pouco, de modo que você, Max, de barrete, você diz a oração de graças. — Eu também tenho barrete — disse Jean, ofendido. O médico levantou as mãos. — Os dois dizem graças, raios! E dêem graças a Deus por essa sopa deliciosa ali. — Piscou para Kathy e o brilho azul de seus olhos voltou e suas covinhas apareceram. Olhou para Pietro, que estava mostrando os dentes no meio dos lábios entreabertos. — Ei, você, Pete, come pirulitos demais. Hoje vou lhe mandar um saco, com pirulitos do tamanho de um prato. — Olhou para o menino com um ar feroz, sacudindo a cabeça. Pietro logo começou a saltar na cadeira, feliz. — Vermelhos! — exclamou. — Ah — falou o médico, em tom sinistro. — Vermelhos, diz ele. Ele e Johnny foram para a sala, fechando bem a porta. Uma mulherzinha dura, com um costume masculino, estava sentada na beira de uma das poltronas tristes, olhando para a sala com desagrado. Quando os dois homens entraram, ela girou depressa nas nádegas e o Dr. McManus viu as faces tensas e chupadas, o nariz aquilino e saliente, os olhos pretos fanáticos. Os cabelos pretos, manchados de grisalho, presos num coque parecendo madeira na nuca enrugada. Quando ela viu o Dr. McManus seus lábios se abriram, em consternação. — Muito bem — disse ele, com sua voz esganiçada, de bom humor —, vejam só, é a Gussie Guston, nossa famosa praticante de boas ações e psiquiatra amadora e garota da consciência social! Olá, Gus! Ele beliscou o braço de Johnny, disfarçadamente, e postou-se em frente à mulher. A Sra. Guston se refizera. O ódio apareceu em seus olhos, como um raio congelado. Mas sua voz estava assombrosamente conciliadora e ela chegou a sorrir. — Ora, Al — respondeu ela, com uma voz que parecia uma lata se rasgando. — Como você é exagerado. O médico deu um cutucão visível em Johnny e piscou. — Gussie gosta de mim, de verdade. Sabe que tenho promissórias de seu marido, no valor de 45 mil dólares. Ele tem uma serraria. Posso pedir o resgate das promissórias a qualquer momento. É sempre bom ser amável com um credor, é o que a Gussie acha. — Ora, Al, você sabe que o meu nome é Augusta, e não Gussie. Você é o único que me chama por esse nome nojento. — Duas rugas fundas apareceram entre os olhos dela. — Imagino que esteja aqui para ver uma dessas crianças infelizes que moram nesta casa? — Infelizes? — perguntou Johnny, ficando com raiva. Mas o médico tornou a beliscá-lo furtivamente e sentou-se. — Bem, para dizer a verdade, Gussie, estou sim. Estou preocupado com o menino que se operou há algumas semanas. Afinal, é meu paciente. Johnny sentou-se e se acalmou.

— Uma pena, esse menino — continuou o médico. — Agimos justo a tempo. — Ele olhou para a mulher, com simpatia. — Não ligue para as minhas piadas, Gussie. Sei que você tem um coração de ouro; é só que gosto de implicar com você. Quem lhe contou sobre o Jean? Imagino que tenha vindo para ver o que pode fazer, hein? Ela é presidente da Liga para a Melhoria Social, Johnny. Bem, estou do seu lado, Gussie. Uma pena, essas crianças — sacudiu a cabeça, dolorosamente. — Bom, continue, Gussie. De que se trata? Johnny virou-se para ele de novo e só viu o perfil vazio e espetado do velho. O médico fez um gesto. Ela lançou a Johnny um olhar da mais pura maldade. — Por nosso intermédio, o Conselho de Educação soube do caso dessas cinco crianças. Não foram matriculadas na escola, onde podem tornar-se bons cidadãos americanos. Estão todas em idade escolar: três meninos e duas meninas. Deviam estar no colégio. Johnny respondeu, a voz presa: — Já lhe disse que eles não estão preparados para a escola. Jean só vai conseguir andar daqui a meses. E Max, Pietro e Kathy, se fossem para uma escola normal, estariam em turmas com crianças muito menores do que eles. Já lhe dei uma ideia do caso deles, Sra. Guston. Já sofreram bastante, sem terem de suportar a troça de crianças menores na turma. Eles precisam… se orientar. Ela abanou a cabeça e olhou para ele com um triunfo frio. — Não concordo, Sr. Fletcher. Eles têm de aprender a se adaptar. Mas isso é irrelevante. Coisa muito pior está acontecendo aqui, na verdade. Cinco crianças, o senhor e uma governanta. Uma mulher idosa. — Isso mesmo — interrompeu o médico, feliz. — Ela não pode ser menos de oito anos mais moça do que você, Gussie. As narinas dela se dilataram. Ela forçou-se a adotar um tom paciente. — Al, não creio que você saiba de todas as circunstâncias. Afinal, é apenas um médico bondoso, fazendo o que pode, E um tal abuso, também! — Sorriu para ele. —· Sabe, Al, andamos investigando as coisas, nestes últimos dias. O Sr. Fletcher era capelão e apanhou esses… esses pequeninos… em algum lugar fascista horroroso na Europa e os trouxe para cá, nem sei como. Um telefonema para Washington esclareceu o método. Foi assumido um compromisso para eles não se tornarem encargos públicos. Mas — ela fez uma pausa teatral — eles já são encargos públicos! O menino Jean foi operado de graça e não cobraram nada ao ministro por sua internação no hospital. As enfermeiras, não sei quem pagou. Johnny exclamou, com uma raiva profunda e apaixonada: — Não sei de que se trata! O Dr. McManus aqui me disse que alguns amigos tinham uma grande dívida para comigo e se encarregaram de pagar as despesas neste caso! — Ele se virou para o Dr. McManus e perguntou, com mais raiva ainda: — Bem, por que não fala, doutor?

O Dr. McManus suspirou. — Continue, Gussie — murmurou. Ela estava mais confiante. Debruçou-se para o médico, ansiosa, e sua voz desagradável estava rápida: — E toda essa agitação. O menino Max foi atacado por outro menino; provavelmente provocou o ataque. Esses alemães são tão selvagens! Mas onde estava alguém que os protegesse? O Sr. Fletcher é ministro mas mostrou-se muito omisso. Todos concordamos nesse ponto. Onde estava a governanta? Afinal, uma mulher da… — Idade dela — ajudou o Dr. McManus, compreensivo. A Sra. Guston mordeu o lábio. — Tenho certeza de que ela é muito competente. Não ouvi queixas. Mas, afinal de contas, cinco crianças! Quase desprotegidas. O Sr. Fletcher não é casado; não pode esperar ter empregados para cuidar dessas crianças. Portanto, vão ser largadas, sua saúde e bemestar ignorados, a educação abandonada. Já vi que ele — ela tornou a olhar para Johnny com maldade — tem uma pessoa realmente horrível ensinando a eles, como diz. Ensinando! Ora, essa mulher está senil! Tem mais de 70 anos! Tivemos de obrigá-la a sair da — o rosto dela se contorceu, como se ela tivesse provado alguma coisa ruim — da escola pública, embora um padre fizesse uma fita de lhe arranjar uma pensão. Realmente! Ela não serve nem para tomar conta de um jardim de infância. Descobrimos que ela não tem um diploma de ensino moderno; frequentou alguma escola de freiras há mil anos, que não era nem oficializada; então, imaginem! — Horroroso — concordou o médico. — A Srta. Coogan fala, lê e escreve três idiomas — esclareceu Johnny, levantandose. Seu coração estava disparado. Continuou, a voz mais baixa: — Além do inglês. É boa em matemática. Conhece mais História e Literatura Inglesa do que a média dos professores universitários. O padre John Kanty me garantiu isso, pessoalmente. Ela se irritou e levantou para ele os olhos de besouro, de modo que o branco abaixo deles brilhou. — Com efeito, Sr. Fletcher! O senhor acredita na palavra de um padre polonês ignorante? Johnny teve vontade de bater nela. O rosto dele deve ter revelado esse desejo, pois ela recuou. Mas ele manteve a voz calma: — A senhora está mentindo ao dizer isso, Sra. Guston. Um padre polonês ignorante? Pensei que a senhora fosse uma das amantes da humanidade, como o seu tipo se intitula. O Padre John Kanty diplomou-se na Notre Dame. Já ouviu falar na Notre Dame, Sra. Guston? — O senhor está me chamando de mentirosa? — exclamou ela, indignada. — Estou, sim, senhora. Quando a senhora diz que aquele padre, meu amigo, é um ignorante, então ou é uma boba ou mentirosa. Pode escolher. Ela cerrou os punhos sobre a bolsa de couro duro. Era uma força de maldade

concentrada. — Recuso-me a discutir com o senhor sobre o padre. Aqui estão essas crianças, prestes a se tornarem encargos públicos, com um pai solteiro, que já demonstrou traços de caráter indesejáveis provocando um menino inocente, até ser atacado por ele! — Olhou para a cicatriz de Johnny. — Conhecemos os detalhes. Não quer mandar as crianças para a escola. Não toma conta delas. Posso lhe perguntar qual é o seu ordenado, Sr. Fletcher? Johnny respondeu com amargura, um bolo de ódio em sua garganta: — Creio que é de 2.500 dólares por ano. Ela soltou uma risada desagradável. — Bem, quanto dinheiro para sustentar sete pessoas! Embora a sua casa seja de graça, bem como a gasolina e o telefone. Como espera alimentar, educar, vestir e dar cuidados médicos a cinco crianças? — Ela se empertigou. — Al, você sabe que não sou dessas que apenas pensam. Eu ajo. Assim, apelei para a Sociedade de Assistência Infantil, e concordam comigo, no sentido de que o Sr. Fletcher deve ser intimado a comparecer ao Tribunal Infantil… o caro Juiz Bridges, sabe, que sempre leva a peito o bem-estar das crianças, e explicar por que essas crianças não podem ser colocadas em lares adotivos individuais, onde receberão a devida atenção, ou, se o tribunal julgar que isso as torne de fato encargos públicos, elas terão de ser deportadas para seus países de origem. — O caso já está nas mãos da Sociedade de Assistência Infantil, e o Juiz Bridges já sabe de tudo isso? — perguntou o médico, a voz macia. Johnny começou a tremer violentamente. O desespero fez seus olhos faiscarem. Ele se aproximou da mulher, triunfante, e disse, em voz baixa: — É um animal? Diz que sabe tudo sobre essas crianças. Sabe que vão morrer se se separarem? Mas ele não conseguiu continuar. Estava dominado pelo pavor. Aquilo era um pesadelo, não estava acontecendo de verdade. A sala desapareceu de sua vista e ele estava correndo de novo, pelos campos enluarados, em direção à casa do carrasco, com o bando de lobos à sua frente. Sentia o movimento de suas pernas, o bater forte e dolorido do coração, o som de suas orações nos ouvidos. Seus filhos estavam de novo ameaçados pela casa do carrasco, ameaçados de morte, de coisas piores do que a morte, a solidão, o ódio, o abandono. Não podia acreditar. Seus olhos contemplaram a Sra. Guston como os olhos de um moribundo. — Está condenando os meus filhos à morte — disse ele, e o gosto de morte estava em sua própria boca. — Não creio — respondeu a mulher, quase gorjeando. — Afinal, estamos mandando tanto dinheiro para a Europa, e há lugares. As crianças vão ser mais felizes no meio da gente delas. — Gussie, você disse que o caso já está nas mãos da Sociedade de Assistência Infantil, e em breve será levado ao Tribunal Infantil? — perguntou o médico. — É, Al. Achamos que devíamos agir depressa, pelas crianças.

O Dr. McManus então se levantou. Sua fisionomia continuava simpática. — Quem você quer dizer por “nós”, Gussie? Ela hesitou e umedeceu o vermelho pintado dos lábios. — Bem, Al, há pessoas, até em Barryfield… que você detesta… que levam a peito os interesses das crianças. Minha liga, por exemplo. E… outros. — Mas agora está fora de suas mãos, Gussie? — Receio que sim, Al. Ela pegou a bolsa e as luvas, sorrindo, satisfeita. — Estou pensando, Gussie — respondeu o médico, a voz mansa —, se um dos outros não será Mac Summerfield. Você é muito amiga do Mac. Não é? ·— O médico suspirou. — Muitas vezes eu já me perguntei por que o Ben se casou com você. Mas você tinha um pouco de dinheiro, não é? Muitas vezes olho para o Ben, com seu rosto triste, e tenho pena dele. Ela não conseguiu desviar o olhar de cima do médico, pois o rosto dele estava escuro de aversão. — Gussie, você nunca se interessou pelas pessoas em toda sua vida, a não ser quando podiam lhe favorecer ou lhe dar uma posição social. Gussie, sabe de uma coisa? Você detesta crianças; detesta todo mundo. Algum dia já tentou descobrir alguma coisa a respeito de alguém, sem ser para prejudicar os outros? Você me conhece há muito tempo, Gussie. Em todo esse tempo, nunca descobriu nada a meu respeito, a não ser que sou um reacionário, como diz o seu tipo de gente. Se você tivesse tido qualquer interesse por mim, saberia que esta é a minha igreja e este é o meu pastor, o Johnny Fletcher, aqui. — Sua… igreja? — sussurrou ela, quase sem se fazer ouvir. — Mas claro, Gussie… foi igreja do meu pai, também. Mas você não se interessa pelas igrejas, não é? Nunca entrou numa igreja, desde que se batizou. Aposto que, quando olha para uma igreja, pensa no dia em que, espera, serão todas demolidas. Johnny, olhando para ela, lembrou-se dos rostos das mulheres que tinham corrido ao luar para a casa do carrasco, para matar as crianças. Ele então lhes dissera: “Perdão”. Fechou os olhos. Não suportava olhar para aquela mulher. Não podia dizer, em seu coração: “Perdoa-lhe”. A voz do Dr. McManus não podia ser mais simpática e amável. — Gussie, desta vez você foi longe demais. Se tivesse esperado, e vindo aqui antes de pôr a Sociedade de Assistência Infantil e o Tribunal Infantil atrás do pastor, poderíamos ter resolvido as coisas entre nós de um modo bom e amigável. Então, vou lhe dizer uma coisa. Se o pastor perder as crianças, nesse dia vou cobrar as promissórias do coitado do Ben, todas elas. E o banqueiro dele é meu amigo. — Coçou o queixo, pensando. — Pobre Ben. Bem, vamos ver. O filho do Juiz Bridges é gerente geral da serraria. Conhece bem o negócio de madeira. Acho que vou financiá-lo, com o dinheiro que emprestei ao Ben. O juiz talvez escute a voz da razão. Não é mau sujeito. E esse filho é a menina dos olhos

dele. A mulher empertigou-se, o rosto azulado. — Não pode, não pode, não tem coragem! Ora, eu… conto ao Sr. Summerfield. Ora, não tem coragem! O médico respondeu, naquele tom sedoso: — Gussie, você me espanta. Mac Summerfield? Ora, Gussie, quando ele souber de uma coisa que estou pensando em contar a ele, vai expulsá-la da cidade, Gussie. Uma história mentirosa e escandalosa que você espalhou sobre a filha dele, Lorry, que é o coração da vida dele. Descobri que a origem era você. Johnny pôs a mão no braço do médico, dizendo: — As crianças! Às crianças vão dormir! — Espero que sim — respondeu o médico. — Vão ficar sabendo, de uma vez por todas, que gente como essa mulher não pode prejudicá-las, neste país. O Dr. McManus agarrou os ombros magros da Sra. Guston com as mãos fortes e a fez levantar-se. Sacudiu-a como se ela fosse uma boneca de pau. — Processe-me por bater em você, Gussie. Sei de muita coisa sobre você. Vai dar uma boa história. E agora, rua! Ainda segurando-a pelos ombros, ele a empurrou para a porta. Johnny a abriu para ela. O médico a empurrou para fora. E ela ficou ali, tremendo, com uma raiva impotente, medo e ameaças. — Vá contar ao coitado do Ben o que vai lhe acontecer, Gussie. Isto é, se realizar o seu plano. O médico bateu a porta com força. Espanou as mãos. — Bem, o que há com você, filho? Se vai vomitar, é bom correr lá para cima. Está verde. — Ah — respondeu Johnny, a voz trêmula. — Não creio que essa mulher seja humana. O que lhe fiz para que ela viesse aqui hoje, o que a levou a… ? O Dr. McManus sorriu, bufando um pouco. — Lembra-se do seu sermão no domingo, filho? Saiu nos jornais. Isso é que a provocou. Você é um perigo para ela, rapaz. Ele foi para a porta da sala de jantar. Johnny acompanhou-o. As crianças estavam comendo, caladas. A Srta. Coogan estava lendo para elas, o rosto idoso e bondoso ainda muito pálido e tenso. Ela olhou para o médico, com firmeza. — Continue a ler. — Bom — disse o médico. Ele examinou as fisionomias quietas das crianças. Era evidente que tinham ouvido demais. Pôs a mão no ombro de Johnny. — Ninguém tem nada com que se preocupar. Ninguém. Tenho os melhores advogados no Estado. Lembram-se do que disse o seu pai, guris? Aqui, temos a lei.

XVII O sábado foi um dia escuro e úmido. As árvores desbotadas, que na véspera tinham cintilado como lantejoulas douradas, agora estavam revestidas de farrapos sem cor. As montanhas se erguiam no meio da fumaça industrial num vago roxo sobre a cidade. E o ar tinha o fedor penetrante de uma fundição sufocante, acre e enjoativo. Johnny estava andando em volta dos lados do quintal dos fundos, acompanhado pelo jovem Lon Harding, que carregava um fardo pesado de mudas de árvores, as raízes frágeis embrulhadas em aniagem úmida. As crianças vinham atrás deles, atentas, ansiosas. Até Jean estava lá, empurrado pela Sra. Burnsdale, a cadeira de rodas balançando. Não houve nada que o impedisse de ir. Fazia caretas de dor, mas seus olhos claros brilhavam. Emilie, já muito mais fraca, estava agarrada à mão de Kathy. Pietro pulava pelo quintal como um fauno impaciente mas feliz, enquanto Max andava calmamente ao lado da cadeira de roda, ajudando a Sra. Burnsdale. — Jean, como mais velho, é o primeiro a escolher as árvores, e a dizer onde devem ficar — disse Johnny, que estava carregando uma pá. A triste luz do meio da tarde não lançava sombras; parecia a Johnny que todos se moviam num mundo sem som, abafado, de silêncio e irrealidade. Ao ouvir seu nome, Jean indicou à Sra. Burnsdale, bufando, e a Max, se esforçando, que deviam apressar-se. Triunfantes, eles conseguiram levar a cadeira para a frente. — Macieiras — disse Jean —, duas macieiras. — Está bem, garoto — concordou Lon Harding, com sua voz jovem e rouca. — Mostre onde. Ele tirou o casaco de couro e pegou a pá da mão de Johnny. Muito sério, começou a cavar no lugar que Jean mostrara, empolgado. Tiraram a aniagem das raízes tenras, e elas foram colocadas na terra. Jean debruçou-se para ver a terra molhada ser jogada no buraco e depois comprimida em volta da árvore. Quando as duas mudas ficaram retas, Jean suspirou, profundamente contente. Max foi o seguinte. — Peras — disse ela, num tom religiosamente solene. Aproximou-se, enquanto Lon cavava. Max, encabulado, tirou o barrete do bolso, colocou-o na cabeça e entoou em hebraico, muito baixinho: — Louvado seja Deus, Rei do Universo, que nos santificou por Seus Mandamentos, e que nos ordenou participantes da criação na plantação de árvores. Johnny escutou atentamente, seu conhecimento tênue da língua antiga mal traduzindo para ele. — O que ele está dizendo? —. perguntou Lon, enxugando o suor. — Está chamando atenção para o fato de que só existe um Deus e todas as coisas estão em Deus, mesmo essas arvorezinhas — respondeu Johnny.

Lon corou, encabulado. — É — concordou ele, pegando a pá de novo. — Acho que tem razão. Nunca pensei nisso. Sabe, depois de tudo o que o senhor tem me contado, eu me esqueço de que houve diferenças… nas pessoas e coisas. — Ele se apoiou na pá. — Se é assim, o que o garoto está dizendo, por que a gente não se junta? Fico dizendo isso pros outros garotos. Sabe uma coisa? Eles me olham como se eu estivesse maluco, ou coisa assim. — Riu, endireitou-se e flexionou os músculos. — A única coisa é que sou mais forte do que eles. Levo minha faca no bolso e eles sabem que eu sei puxar mais depressa do que eles. Assim, continuo a ser o chefe da turma. — Olhou bem para Johnny. — Talvez não seja direito, andar com minha faca e ficar vigiando os garotos, para não me passarem a perna? Johnny sorriu. — Ouvi dizer que os antigos profetas eram muito hábeis com os punhos e alguns também usavam espadas. Afinal, você tem de se proteger. As pessoas não gostam dos fracos, sabe. Um profeta, um líder, deve ser um homem audaz, como diziam os ingleses. — Isso é de Chaucer — respondeu Lon, começando outra cova. Johnny se espantou. — Claro, já li Chaucer — continuou Lon, displicente. — Se a gente lê nas notas de rodapé, entende o que ele quer dizer. Também escrevo poesia, às vezes. — Esfregou a mão na cabeça redonda e eriçada, encabulado. Seu rosto magro e rude tornou a corar. Ele puxou o blue jeans pela cintura e endireitou o cinto absurdo, largo, com sua fivela imensa. Olhou em volta, a cara fechada, como se enfrentando pilantras secundários. Disse com um ar tenebroso, para ninguém em especial: — Alguém que tenha ideias! Rapaz! Ele franziu a testa, com um ar imponente. — Depois vem a guria de cabelo amarelo? — Sou uma menina — respondeu Kathy, reprovando-o. — E você não passa de um garoto. — Está bem, está bem! — concordou Lon, estendendo os braços. — Não brigo com senhoras. Diga onde quer a árvore, e esse cubo aqui a planta. Pietro, que estava pulando por ali, gritou: — Cubo! Cubo! É quadrado! Quatro cantos! — Seus olhos pretos brilharam na luz sulfurosa. — Vê, eu sei! — Isso mesmo — disse Johnny, abraçando o ombro dele, brevemente, mas olhando para Lon Harding. — Quadrado. O garoto mais velho corou de novo e olhou para Kathy, a cara fechada. — Bom, o que você quer? — Pêssegos ·— respondeu Kathy, frisando seu ar maternal e de autoridade. — E neste lugar. — Ela o mostrou com a ponta do sapato novo, de verniz preto com uma tira sobre o peito do pé gordinho. — Está bem, pêssegos — falou Lon, com respeito.

Ela supervisionou o plantio das mudinhas. Quando Lori se abaixou para enfiar as raízes delicadas, ela enxugou a testa dele com seu lencinho limpo, com a calma e distração de uma mãe. Ele olhou para ela com seu olhar ladino e sabido. — Está certo, mãe? — perguntou, e acrescentou: — Você já parece um pêssego, também. Então, foi a vez de Pietro e ele estava quase fora de si de entusiasmo. Ficou pulando, rindo, batendo palmas. De repente cantou e sua vozinha brilhante, cheia de exultação, assombrou até Johnny. Não era uma canção que alguém ali conhecesse, vinha de alguma recordação perdida havia muito. — Esse guri é um bocado danado — comentou Lon, depois que o trinado final caiu por terra como uma chuva brilhante. — Bem, sim, ele é danado — comentou Johnny, em voz baixa. — Afinal, teve algumas experiências terríveis. Lon olhou para ele, com tolerância. — Não é isso que eu quero dizer, Sr. Fletcher. Quero dizer que ele tem alguma coisa nessa voz. Tenho uns discos velhos em casa: um é de Martinelli. Johnny riu-se diante do vocabulário da nova geração, mas anotou mentalmente para falar com o Padre John Kanty sobre a voz de Pietro: uma voz assim devia estar num coro. Ele pensou no seu coro e suspirou. — Cerejas! — declarou Pietro, afinal, pulando feito louco. Tinha provado cerejas em Paris, quando Johnny as comprara para ele. Lon afundou a pá na terra preta e rica. — Ei — gritou para Pietro —, pare de se meter no meu caminho. Esse guri também sabe dançar — comentou ele com Johnny, com admiração. As cerejas foram plantadas. Agora era a vez de Emilie. A menina parecia translúcida e exausta. De repente ela recomeçou aquela tosse horrível, tão conhecida, o rostinho mirrado ficando vermelho. Johnny a pegou no colo e ela comprimiu suas feições convulsionadas no pescoço dele. Lon escutou os sons sufocados, e virou a cabeça, olhando para longe. . Johnny falou baixinho: — É o coração dela. E este smog é ruim para ela. — É — murmurou Lon, que conhecia a história de Emilie. Entreabriu os lábios duros e respirou, assobiando. Esperou até que Emilie conseguisse respirar direito de novo e depois examinou a menina, os olhos apertados, amargos. Pôs a mão no bracinho, dentro de um suéter azul vivo que a Sra. Burnsdale fizera para ela. Sentiu os ossos frágeis tremendo sob a pele. Falou, com uma voz baixa e carinhosa: — Então, neném. Você fica com as ameixas. As faces de Emilie estavam cheias de lágrimas involuntárias, mas ela lançou um sorriso radioso a Lon e ele virou a cabeça, depressa. Kathy abotoou os botões do suéter quente com dedos hábeis; Max olhou para a menina, o rosto de Jean ficou tenso e até Pietro sossegou. Emilie se debruçou no colo de Johnny, pára ver suas árvores serem plantadas. Depois que acabou ela ficou toda feliz e insistiu em beijar Lon, para seu

constrangimento imenso mas comovente. — É bom ficar de olho nessa gatinha quando ela crescer — disse a Johnny, mas ele sabia. Havia ainda duas árvores ou arbustos. Lon olhou para ela, ali junto a seus pés. Então, sem olhar para Johnny, falou num tom displicente: — As árvores frutíferas não vão ser grande coisa durante alguns anos ainda. Os garotos maiores podem esperar. Mas tenho uma coisa para o neném: lilases. Lilases franceses, brancos, de verdade. Plantei uns o ano passado no nosso quintal, e precisava ver o perfume. Puxa! Vão florescer na primavera. Aquela dor aguda que já estava ficando tão conhecida de Johnny tornou a lhe percorrer o peito. Ele apertou Emilie contra si. Disse à menina: — Emilie tem ameixas, mas também tem flores. Flores lindas, só para Emilie. Ninguém disse nada, nem mesmo Pietro, tão ciumento. O menino olhou para Emilie, os olhos cheios de lágrimas. Então, pensou Johnny, até mesmo as crianças sabem. Sabiam pela sabedoria tortuosa que tinham adquirido na sua própria agonia. Agora estavam todos solenemente contemplando as plantinhas. Não havia um tronco que mesmo Emilie não pudesse encerrar nas mãos. Mas, assim mesmo, miúdos, estavam firmes num vento que aumentava, dobrando-se e balançando como varas. Dentro de alguns anos, pensou Johnny, essas coisinhas heróicas serão grossas, altas e fortes, florindo na primavera, animados com abelhas e pesados de frutas no outono. São como as crianças. De certo modo, são as crianças. Olhou para os arbustos de lilases e seu coração se contraiu de novo. Eles se lembrarão de Emilie em todas as primaveras, pensou, quando as flores brotarem. Tentou fazer uma oração, em sua angústia, mas não houve resposta a seu mudo grito de dor. As crianças estavam fascinadas com as árvores. Os rostos brilhando. Andaram por ali, tocando nelas com dedos delicados. Emilie ficou olhando, de seu ninho nos braços de Johnny. A Sra. Burnsdale, sem reclamar, empurrou Jean para junto da árvore dele. Foi difícil levar as crianças para dentro de novo, embora houvesse um bolo de chocolate quente esperando na cozinha e biscoitos grandes e uma tigela de maçãs vermelhas. — Eu queria — pediu Johnny — que você me deixasse pagar pelas árvores, Lon. A expressão do garoto ficou fria. — São baratas. Quase nada. E depois que o senhor arranjou aqueles serviços de lavar carros e lavar vidraças e armar as janelas de proteção no inverno, tenho bastante dinheiro. Eu queria dar alguma coisa aos guris. Também vou cuidar das árvores. São as primeiras que plantei, a não ser os lilases em casa. Ele olhou para Johnny com os olhos insondáveis dos jovens criados nas ruas. — A mãe agora fica em casa, o tempo todo. Consegui um trabalho, entregando compras de mercado num caminhão aos sábados. É quase suficiente, com o novo emprego do pai aos sábados, para pagar as prestações. O homem que nos vendeu o fogão está disposto a esperar até podermos pagar a ele. Não é um cara mau. E a mãe está cada dia

melhor, e temos cortinas novas. É gostoso ver a mãe, quando chego da escola. — Pegou outro biscoito e o mastigou, com naturalidade. — O Dr. McManus também me deu trabalho, para o inverno. — Mas quando é que faz os seus deveres de casa? — perguntou Johnny, aflito. O garoto soltou uma gargalhada grosseira. — Rapaz! Não faço. O que tem, e quando eu faço, é na hora da aula de adaptação à vida, por baixo da carteira, nos joelhos. É a Sra. Guston que dá essa aula… adaptação à vida. Johnny estava intrigado. — Bom, adaptação à vida não parece mau. Conte sobre isso, Lon. — Acho que as coisas mudaram, desde os seus tempos de garoto — respondeu Lon, olhando para ele com um ar sabido. Johnny sentiu logo uma pontada de senilidade. O garoto continuou: — O pai também não tem muita instrução mas depois que o senhor conversou com ele, há umas semanas, ele achou que devia se interessar em saber o que eu andava fazendo. Então, a primeira coisa que me perguntou foi sobre a escola. A gente via que ele estava sendo consciencioso, como o senhor falou, mas não estava interessado mesmo. Até olhou os meus livros. — Lon pegou outro biscoito e mastigou, pensando.— Engraçado, nunca pensei que o velho fosse muito inteligente. Mas ele começou a ler os meus livros da escola e então ficou uma fúria. Levantou de um salto, berrou e começou a meter os dedos nas páginas. A mãe teve as palpitações, como ela chama. E o pai disse: “Que diabos ensinam a vocês, guris, hoje em dia? Cadê a História? Cadê a Aritmética? Cadê o Inglês? Cadê George Washington e a Geografia? E o que é essa bosta”, desculpe, mas foi o que o pai disse, “economia do consumidor, e como ter um namoro bem-sucedido, e saúde emocional, e como manter os dentes brancos, e a dinâmica de dança em grupo?” E eu disse ao pai: “É o que chamam de aprendizagem dinâmica, funcional. Aí ele explodiu de novo. A fisionomia de Johnny ficou sombria. — É isso mesmo que estão lhe ensinando na escola, Lon? — Isso mesmo, ministro. —· O garoto sorriu para ele. — Bem, o pai foi lá ao sótão e trouxe os livros de escola dele, velhos. Bem sei por que guardou. Afinal, é um velhote, quase 40 anos. Berrou e jogou os livros na minha frente, dizendo: “Livros da nona série: 1918! Olhe só para eles!” — O rosto duro de Lon se aguçou. — Bem, ministro, eu olhei. E sabe o que descobri? Ora, os garotos na última série não poderiam fazer os problemas de álgebra daqueles livros, e não sabemos nada de História antiga, que ensinavam naqueles tempos, e tinha um compêndio de Francês, da primeira série secundária, e a História Americana em um livro, não o que temos agora, Ciências Sociais, e um livro de gramática inglesa que nem os mais sabidinhos de nossa turma iam entender. Diagramas e coisas. E Educação Cívica. Quem é que sabe de civismo nas escolas? E Geografia Comercial, com mapas grandes. Dou uma olhada na Educação Cívica, e é a primeira vez que vejo como os casos chegam ao Supremo Tribunal e as funções do Supremo Tribunal.

Lon estava falando de novo: — Temos um time de handebol na escola. Ah, eles nos ensinam muitos esportes! O pai adora esporte, mas diz que os esportes no colégio só tomam o nosso tempo, de modo que a gente não aprende nada nem quer aprender nada. Bom, jogamos contra os outros ginásios públicos. E depois, há uma escola particular na cidade, só uma. A Beaverbrook School for Boys. E essa escola particular nos desafia para um jogo. O diretor não queria isso, e recusa. Então os caras de Beaverbrook nos provocam. Então o diretor concorda, depois que a gente ameaça fazer greve. Queríamos mostrar a esses caras grã-finos com seus conversíveis e suas garotas de suéter de caxemira e rosa e tacos de golfe. Então o diretor nos reúne e nos fala pra surrar aqueles caras. Bom, ganhamos o jogo, sem nos esforçar. Mas é engraçado; alguns de nós passamos a conhecer uns caras daqueles e hoje um deles é meu amigo. O velho dele é o que os nossos professores chamam de proprietário ausente ou coisa assim; tem ações da New York Central e de outras estradas de ferro e só mora aqui porque nasceu aqui. E, é, outra coisa de que só me lembrei agora. O velho do Bob era mineiro, bem aqui em Barryfield, e inventou uma máquina automática de minerar carvão e um aparelho de alerta automático quando o carvão começa a ficar espesso. Bob tem orgulho do velho dele. Quem me dera que o meu velho inventasse um aparelho ou alguma coisa, para eu também poder ter um conversível e uma daquelas bonecas. — A sua voz jovem estava melancólica. Ele suspirou. — Acho que nunca vou ter a possibilidade de fazer coisa alguma. Só de farra, eu me candidatei a uma universidade onde tem uma ótima Faculdade de Engenharia, e me mostraram uma cópia de um exame vestibular antigo e, raios, não consegui responder à metade das perguntas! Talvez o pai tenha razão. Ele se esqueceu de Johnny e ficou ali, pensando, e seu rosto já não parecia jovem, mas cheio de raiva e frustração maduras, e os olhos brilhavam com um ressentimento furioso. Johnny viu isso e disse consigo: deve haver dezenas de milhares, talvez milhões, de meninos como este. As mãos de Lon começaram a brincar com aquela imensa fivela do cinto, que Johnny achara absurdamente comovente. E então ele viu que era uma arma, uma arma mortífera presa a um cinto grosso e largo, de couro. A voz aguda de Lon, tão sem dicção e com as consoantes tão indistintas, recomeçou. — Bom, o Bob e eu começamos a falar da escola. Ele também está na última série. Mostrou-me os livros dele. Sabe uma coisa? Eu andei pegando livros da biblioteca e estudando uma porção de coisas, sozinho, mas Cristo! Os livros de Bob eram grego para mim! Tinham todas as coisas que o pai disse que aprendeu na escola dele e eu não. Nada de “adaptações ao grupo e à sociedade”, “adaptação à vida” e máquinas e outras bostas. Ministro, dessa vez digo bosta e não peço desculpas. Nada sobre o que fazer com a namorada ou coisas insultuosas sobre escovar os dentes para eles ficarem bem brancos. Cristo, sabemos a respeito das escovas de dentes, não é? E as garotas são só garotas, não são? — São — respondeu Johnny. Lon levantou-se, alto e ágil, e prendeu os dedos no cinto, mantendo alta a cabeça fina e inteligente.

— Bom, o Bob me arranjou um exame de primeiro semestre do segundo ano de ginásio. Pois eu, no último ano do Ginásio de Lenox Street, só acertei sete em cada 10 perguntas do segundo ano! As outras três? Nunca ouvi falar. E Bob disse que não foi por acaso, foi planejado assim. Então ele me arranjou os livros do segundo ano e cá estou eu, no último ano do ginásio estudando por eles, e por fim passo nos exames de segundo ano. Bob me arranjou uma cópia. E este ano, me arranjou os livros do terceiro ano, e estou estudando. Ele ficou olhando pata a frente, perdido em seus pensamentos sérios e furiosos. — Sabe o que dizem, na nossa escola? Não deve haver exames competitivos! Nenhuma “criança”, dizem, devia ser levada a se sentir inferior, isso poderá prejudicá-la, em sua adaptação à vida. O simples conhecimento não basta. Mas também, nós só teremos de dirigir caminhões e operar máquinas, em todo caso. Ele pilhou Kathy olhando bem para ele, os olhos azuis muito sérios. — Olá, cabelo amarelo — chamou ele. Ela respondeu, com precisão: — Você é um bom menino. Acho que vou me casar com você, quando crescer. Ele fez um gesto expansivo com a mão suja e calejada. — Ah, claro. É só me ligar quando tiver 18 anos. Eu a levarei na minha entrega no caminhão e comeremos hambúrgueres. — Ele se virou para Johnny, cujo rosto estava tenso e pálido. — Um dia o Bob me levou ao colégio dele. Um colégio pequeno, de tijolos escuros, numa rua boa. Nada parecido com a nossa escola, de tijolo amarelo e vidros formando as paredes em volta. Carteiras velhas e estragadas, presas no chão: as nossas podem ser mexidas para ajeitar as coisa, quando os garotos bobos querem se exibir. As salas na escola de Bob são legais; assoalhos encerados, mas escuros e desiguais. Nós temos linóleos novos e alegres, com desenhos, e nossas salas são grandes como o diabo. Mas sabe de uma coisa, ministro? Tinha um cheiro na escola de Bob… — Eu sei — falou Johnny, tentando sorrir no meio de seu temor. — Chama-se o odor da ciência. Johnny mexeu uma colher no tampo de plástico da mesa. O que posso fazer por esse garoto? Pensou no dinheiro que tinha depositado no banco para as crianças, o dinheiro dado pelo Dr. Stevens e os soldados. “Para às crianças”, eles tinham dito. E ali estava outro, dos perdidos e traídos. Johnny tomou uma decisão rápida. — Lon, você me disse que queria ser engenheiro. Que tal ir para a escola de Bob para o seu último ano? Não é tarde para se matricular. Lon olhou para ele pasmo, e disse devagar: — Olhe, ministro, está maluco? — Não, Lon. Não importam as roupas. Tenho certeza de que tem outras além desses jeans e o cinto… e coisas. E eu ajudo, de algum modo. Escute, Lon. Vou ligar para o diretor da escola de Bob. Você vai entrar! E… tenho um amigo, o Dr. McManus. E depois, Lon, quando você se formar, com as notas que tiver, vai para uma boa universidade. Você

pode trabalhar para custear seus estudos. Foi o que eu fiz. Lon não conseguia falar. Olhou dentro dos olhos azul-escuro de Johnny, que estavam cheios de ardor e resolução. — Se eu conseguir salvar um de vocês — continuou Johnny — já vai ser alguma coisa. Um só. E você há de se lembrar, e mais tarde vai ajudar. — Papai é quem sabe — falou Kathy, com alguma recordação remota de disciplina. Os outros fizeram eco, sérios. Pietro gritou, impaciente: — Lon tem de fazer o que o papai diz! O menino temperamental não podia entender a quietude total do garoto mais velho, sua expressão fixa, as mãos frouxas e caídas. — O senhor está falando sério? — perguntou Lon, a voz rouca. Johnny levantou-se. — Estou, sim, Lon. — Pôs a mão no ombro magro e o sacudiu, com afeto. — Pense nisso. Telefone-me amanhã. Fale com seus pais. Está ficando escuro e você já devia estar indo para casa.

XVIII As crianças não falavam de outra coisa, a não ser as árvores. Estavam sentadas à mesa com Johnny, comendo com apetite, a não ser Emilie. As faces de Jean estavam coradas e até as de Max. Max era mesmo o assombro, pensou Johnny, com uma satisfação que quase venceu o seu desânimo. A expressão fechada e vazia tinha desaparecido de seus olhos castanhos; ele não falava muito mas olhava em volta de si com interesse e atenção e, quando encontrava o olhar de Johnny, sorria, encabulado. Kathy insistiu com Emilie para ela comer: — Não é ótimo, Emilie, essas flores? Nós não recebemos flores. O Lon deve gostar mais de você. Fez-se logo um silêncio e todos os pares de olhos infantis se voltaram para a menina, com pesar, mas ela estava sorrindo, radiante. Como eles sabem!, pensou Johnny. — Emilie dá flores — respondeu Emilie. É, pensou Johnny, o sofrimento novamente apertando seu coração, você vai dar flores, meu amor, por muitos anos. Então a sua revolta feroz o dilacerou de novo, e com ela ressurgiu o antigo ódio pelos que tinham quase arrasado as vidas dessas crianças, não só na Europa, como nos Estados Unidos. A maldade humana não tem limites, pensou ele, lembrando-se de que ainda havia pouco tempo ele tivera compaixão da humanidade pelo mal que ela abraçava cada hora de cada dia. Senhor, rezou ele, para si, por que vieste? Por que subsiste ao Calvário e foste crucificado? Passaram-se dois mil anos… e o homem não é mais bondoso nem misericordioso. Por amor, tomaste a carne dele, e no entanto, ele não te dá amor. Como deve ser solitário para Ti, aí nesses espaços, lembrando-Te! Ele pensou nessa solidão e foi dominado por uma tristeza nova e mais poderosa, e dessa vez por Deus. — Muito bem, comendo de novo, se empanturrando custa dos que trabalham! — exclamou uma voz esganiçada, muito conhecida. As crianças soltaram gritos de prazer mas não havia prazer no rosto de Johnny quando se virou e viu o Dr. McManus, mais desarrumado e desgrenhado do que nunca, e com a expressão mais temível. — Ainda sobrou torta de maçã? — perguntou o médico, depois de olhar depressa para Johnny. Johnny se levantou. — Acho que não. Além disso, quero conversar com o senhor, doutor. O velho levantou uma das sobrancelhas espessas. — Está bem, vamos. Ele acenou para as crianças e foi para a sala com Johnny, sentando-se. Johnny lhe contou tudo sobre Lon. Depois que Johnny concluiu, o médico ficou calado algum tempo, torcendo o cigarro na boca, refletindo. Depois exclamou:

— Pensei que o pouco dinheiro que você tem era para os seus guris! Essa sua ideia é a mais incrível que já ouvi! Claro que não está falando sério! — Estou, sim — respondeu Johnny, com firmeza. — É aí que o senhor entra no caso. Conhece o Sr. Beaverbrook. Queria que falasse com ele e tentasse conseguir que o Lon entre para a escola dele. Não me preocupo com o dinheiro. — Deus provê — respondeu o médico, com sarcasmo. Johnny olhou para ele, com firmeza. — Sempre fez isso. Deu o pouco dinheiro que tenho; mandou-me para cá; e nos deu a todos o senhor, Sol Klein, o Dr. Kennedy, e o Padre John Kanty e o Rabino Chortow e Lorry. Ainda não sei bem por que estou aqui, mas talvez acabe descobrindo. O médico olhou para o jornal. —— Talvez mais cedo do que imagina, rapazinho. Está bem. Vou falar com Roger Beaverbrook; você me faz fazer as coisas mais infernais e ridículas. Nem sei por que o apoio. Transtornou toda a minha vida. — Olhou em volta da sala, devagar. — Que sala horrorosa. Por falar nisso, o telhado está com goteiras? — Claro — respondeu Johnny, sorrindo. — Mas segui o seu conselho e usamos panelas. Mas o médico estava sério de novo. — Esta era a casa de meu pai. Sempre a achei pobre. Mas ninguém fazia nada a respeito. Em todo caso, não quero demoli-la. Talvez… A campainha tocou e Johnny se levantou e foi para a porta. Falou, por cima do ombro: — Mas ainda assim, teremos de fazer alguma coisa quanto à mediocridade propositada do currículo escolar e os garotos inteligentes. Ele abriu a porta, acendendo a lâmpada por sobre o alpendre. Havia três homens na entrada. Dan McGee, todo rosado, com o monte de ondas brancas na cabeça redonda, um homem alto e robusto, de olhos azuis muito claros, e um homem esguio, de altura média, de seus 55 anos, com um rosto aflito, singularmente espectral. — Olá, Sr. Fletcher — cumprimentou Dan e mostrou o último homem. — Este aqui é Glen Dowdy, um dos donos de minas daqui. E este — indicando o estranho louro e sorridente com as roupas muito bem-feitas e um ar de segurança sofisticada — é o Sr. Lars Swensen, que tem credenciais. Podemos entrar e conversar com o senhor? Johnny olhou para o Sr. Swensen, intrigado. Se era homem de sindicato, era uma espécie inteiramente nova. Olhou para as mãos do Sr. Swensen, grandes, lisas e brancas, e pensou: Esse homem nunca foi mineiro. Um homem “da cidade”. E no que chamavam de roupas de Brooks Brothers. O ministro deixou os três homens entrarem na casa, ainda perplexo. O Dr. McManus levantou as sobrancelhas imponentes, focalizou a atenção por um instante no Sr. Swensen e pensou: Então, esse é o Swensen de que Lorry me tem falado. Amigo de Mac Summerfield. Como é que se interessa pelas nossas minazinhas de nada daqui?

Johnny apresentou o Sr. Swensen ao médico e o Sr. Swensen murmurou, polidamente. O Dr. McManus resmungou e se mexeu na cadeira. — Já ouvi falar do senhor, Sr. Swensen. É amigo do Mac Summerfield, não é? O Sr. Swensen sorriu, o seu sorriso feliz. Por falar nisso, conheço o Sr. Summerfield, ligeiramente. Acho que nos encontramos Uma ou duas vezes, mas não me lembro dele. O médico ficou calado, acendendo um cigarro. Swensen estava mentindo. Por quê? Os homens em geral tinham um motivo urgente para mentir. Qual seria o motivo de Swensen? De repente McManus viu que Swensen estava olhando para Johnny demoradamente, avaliando-o, pesando-o, pensativo, e o médico se empertigou na poltrona. Uma sensação forte de inquietação lhe provocou um formigamento nas mãos e nos pés. — O que está fazendo aqui, Sr. Swensen? — perguntou o médico, de repente, com franqueza. O Sr. Swensen sorriu de novo. — O senhor poderia dizer, doutor, que me interesso pela justiça. — Hummm — fez o Dr. McManus, olhando para Johnny, que estava inteiramente perplexo, e depois para o Sr. McGee e o Sr. Dowdy, que estavam jogados desanimados em suas cadeiras. — Justiça. Parece que ouvi dizer que a justiça tem mil nomes. Também depende da sua política, religião, empregador ou empregadores, e até de sua mulher. É a palavra mais vaga da língua inglesa, que é uma língua muito vaga mesmo. Pode significar qualquer coisa, para qualquer pessoa. — Resmungou, como se achasse graça. — Estudei semântica. Devíamos ter uma língua mais precisa, como o francês, de modo que cada um soubesse o que o outro quer dizer. Ora, o que entende por justiça, Sr. Swensen? O Sr. Swensen parecia estar-se divertindo. Deu toda sua atenção ao médico. — Neste caso — respondeu, com delicadeza — a justiça significa o certo para os mineiros de Barryfield. O Sr. Dowdy tossiu, infeliz. O Dr. McManus pareceu espantar-se e disse: — Então, está interessado em obter justiça para os nossos mineiros, é? Mas isso é formidável de sua parte, Sr. Swensen! Mas como assim? Em que isso lhe interessa? De que se trata? Depois ele se virou depressa para Johnny, antes que alguém pudesse responder. — Ei! — exclamou. — Acho que estou tendo uma ideia sobre o Sr. Swensen aqui, que conhece Mac Summerfield “ligeiramente”, diz ele. Johnny, tem o jornal da tarde aí? Pegue-o. Sempre achei que eu podia dar um bom detetive particular. Johnny hesitou, piscando, perplexo, olhando para os três outros para um esclarecimento. Então, como ninguém falasse, foi para a secretária e pegou ali o último número do Press, que entregou ao Dr. McManus, sem dizer nada. O médico levantou-se, equilibrando-se em suas pernas curtas e grossas, o jornal ocultando a parte de cima de seu corpo.

— Johnny, cá está o seu último sermão. Mac comentou-o neste jornal. Foi por isso que vim aqui. Vou ler o editorial e aí vamos começar a entender as coisas, eu acho. Muito bem, escutem. Mac falando: “Uma certa raça de ditos liberais são os verdadeiros déspotas, disse o Sr. Fletcher, no domingo passado, com a voz bombástica do demagogo.” “Como os povos em todo o mundo estão exigindo moradias decentes à custa dos ricos, uma boa parte dos lucros do capitalismo, segurança social, medicina socializada e alguns dos frutos e prazeres da vida, o Sr. Fletcher os acusou de parasitas materialistas.” — Ora, o mentiroso desgraçado! — exclamou Johnny, com raiva. — Falei da liberdade, do direito do homem escolher. O médico disse, com pesar: — Filho, está perdendo o seu espírito de calma cristã. Ouvi o seu sermão. Você disse que o homem tem o direito de ser liberal de verdade; isto é, um homem que não quer ver o governo se intrometendo em seus negócios, desde que ele se comporte como um ser humano decente, e não querendo um governo vigiando-o como uma galinha canibal, esperando para bicar os olhos dele se ele se ressentir por ser um pinto indefeso a vida toda. Você disse que um verdadeiro liberal defende a liberdade, a dignidade humana, e o governo que não meta suas mãos sebentas. Eu me lembro. Mas o Mac não gostou do seu sermão. Cale a boca e deixe que eu continue. “Os povos”, percebeu, Johnny? Não somos mais gente no mundo, somos povos!, “não estão interessados em alguma recompensa mística para o sofrimento planejado para eles neste mundo, de modo que, segundo o Sr. Fletcher, merecem a ira dos deuses inventados por seus opressores. É liberdade o homem passar fome, ficar sem lar, morrer na miséria absoluta, ou ver os filhos passarem fome? O Sr. Fletcher insinua que seja isso. Se isso for a livre empresa, não queremos saber dela, e que o Sr. Fletcher tome nota disso. A função do governo no mundo moderno é cuidar do bem-estar de seus povos, dar alimento e abrigo, cuidados médicos de graça, de médicos que aprenderam a servir, e não a ganhar, e segurança do berço ao túmulo. O Sr. Fletcher, como um dos assalariados das forças da fortuna reacionária, nega que seja esta a função do governo. Por implicação, também ele denuncia todos os sindicatos, pois os sindicatos são organizações modernas instituídas para proteger os povos da fome e da miséria.” Johnny disse, tentando se controlar: — O homem não só é mentiroso, como ainda parece comunista. Eu me pergunto quantos de seus milhões ele está disposto a entregar ao governo, por todas essas coisas? — Ora — falou o médico, com calma —, nenhum. Só quer ser um rico commissar, com milhares de escravos dóceis. As doações serão feitas pelos que são obstinados e acreditam na liberdade e no direito de organizar suas vidas. Gente como você. Você está na lista dos que serão liquidados, filho. E eu também. Uma pena. Somos apenas americanos, como a maior parte do povo deste país. O Sr. Swensen estava achando graça, calado. Seus olhos faiscavam para o Dr. McManus. Ora, por que esse médico bobo e rico havia de se importar com o que acontecesse com as massas nojentas de americanos? Não era típico.

— Ninguém que pensa escuta o que diz Mac Summerfield — disse Dan McGee. — Bom, e quem disse que o populacho pensa? — perguntou o médico. O Sr. Dowdy suspirou. — Mac Summerfield já causou mais problemas nesta cidade do que qualquer outra pessoa, quase. Quer indispor todos contra seus semelhantes. — Sorriu de leve para Johnny. — Nunca teve muita oposição, até o senhor aparecer. — Isso mesmo! — concordou o médico. — Mac contrata desordeiros para provocar greves e se meter com os comunistas e ninguém ousa reclamar. Só o Johnny. Ele diz que é porque Deus está com ele. E talvez esteja mesmo, Sr. Swensen. E isso nos traz de volta ao senhor. O que tem a ver com tudo isso? Com Mac Summerfield e esse editorial nojento? Por que está aqui? O Sr. Swensen sorriu. Tinha dentes excelentes, notou o médico. E esse sorriso tinha por trás uma longa prática. — Vim trazer a paz a Barryfield. Mas ninguém me pediu para mostrar o que o Sr. McGee chama de minhas credenciais. Gostariam de vê-las? Abriu uma carteira de couro gravada em ouro e entregou um cartão ao médico, que franziu a testa um instante e depois leu em voz alta: — Fundação de Relações Industriais, Nova York, N.Y. Diretor, Lars Swensen. — Ele amassou o cartão e olhou para o Sr. Swensen. — Já ouvi falar da sua organização. Não lucrativa. Sustentada pelas fortunas dos velhos magnatas mortos, que chamavam de magnatas do roubo. É, já ouvi falar. Dizia-se uma organização de mediação e conciliação entre o capital e o trabalho, durante as disputas. Engraçado. — Os olhinhos de pedra do médico sorriram para o espaço. — Uma fundação criada pelos velhos canalhas durões que nunca pediam clemência, nem a davam, e foram responsáveis por massacres sempre que os pobres trabalhadores queriam se organizar, ou se revoltar, ou ousavam pedir um salário de vida! Belos tempos de exploração e sofrimento! Eu mesmo me lembro de um pouco disso. Agora os velhos diabos deixam fundações! Será consciência? Querendo comprar passagem para sair do inferno? O Sr. Swensen pareceu ficar meio espantado. Examinou McManus com mais atenção. O médico continuou: — Bem, existe a retribuição. Eu mesmo já vi. Eis uma fundação organizada pelos ladrões e assassinos para ajudar os filhos e netos de suas próprias vítimas. Isso é ironia. Mas eu mesmo gosto de fundações, quando tratam de subsidiar pesquisas na Medicina e Ciência e dar bolsas de estudo e adiantar dinheiro para moradias decentes e promover a tolerância e coisa e tal. Maravilhoso. O Sr. Swensen mostrou-se superior, delicado. — Ainda bem que aprova a nossa obra, doutor — respondeu, sorrindo. — Não me atribua palavras que eu não disse! — exclamou McManus, com aspereza. — Eu não disse que aprovava vocês. Estava falando de fundações legais. Muito bem, então vocês se intitulam uma fundação, mas só o que sei sobre sua organização é o que

acabei de dizer. Então, quem é você, em todo caso? E o que está pretendendo fazer aqui em Barryfield? Diga-nos. Tenho uma ideia, mas não vou revelar nada. Então vamos, Swensen. Conte. O Sr. Swensen conservou o ar de amabilidade geral, mas em seus olhos havia uma expressão bem mais dura ao olhar para o médico. — Bem, doutor — falou, amável —, já que é isso que deseja, vou-lhe contar, de bom grado. Somos o que se chama de quebra-galhos. É por isso que estou aqui. Ouvimos falar que há uma ameaça de greve. Consideramos todos os fatores e achamos que os mineiros desta cidade precisam de auxílio. Estou aqui para ajudá-los. O médico se levantou, e como um terrier gordo e velho, andou em volta do Sr. Swensen, analisando-o pensativamente. O Sr. Swensen conservou uma expressão divertida e delicada. O médico então postou-se diante dele. — Swensen, você é um mentiroso. Não está interessado nos mineiros de Barryfield. Quem é o seu verdadeiro alvo? O Sr. Swensen mostrou-se paciente. — Doutor, os nossos motivos são puramente humanitários. — Está bem. Pode mentir, se quiser — respondeu o médico, tornando a sentar-se. — Jamais vamos obter a verdade de você. Dowdy, vamos tratar de negócios. O Sr. Dowdy falou com muita apreensão. — Precisamos de fazer obras nalgumas das paredes das minas. Não temos o dinheiro. E agora Mac Summerfield está provocando os mineiros para fazerem greve, pedindo aumento de ordenado. Também não temos dinheiro para isso. Como estão as coisas, teremos sorte se conseguirmos ficar em casa. — O dono da mina sacudiu a cabeça, com pesar. — Talvez eu não seja muito esperto; mas não entendo o que está acontecendo. A Mina Sete está mal e a Mina Cinco também e temos de torná-las mais seguras, se quisermos mandar os homens trabalharem lá. São os nossos filões mais ricos, mas, se não tivermos dinheiro para explorar as nossas melhores propriedades, como é que vamos pagar os salários mais altos? Summerfield sabe disso, de modo que não consigo entender o que está havendo. — Pois eu consigo — falou o Dr. McManus, com animação. — Mas isso não faz sentido — interveio Johnny. — Se Summerfield sabe de tudo isso, então por que, em nome de Deus, ele escolheria justamente esta ocasião para incitar os mineiros a fazerem greve por aumento de salário? O doutor suspirou com paciência. — É exatamente isso. A sincronização dele é perfeita. Entenda isso de uma vez por todas. Summerfield não está interessado no bem dos mineiros. Isso é camuflagem. O que ele quer é encrenca. Por fim Johnny começou a compreender e voltou sua atenção para o Sr. Swensen. Seu rosto ficou sério e alerta. O Sr. Swensen retribuiu o exame dele com uma indiferença calma. Johnny não se iludiu. Disse consigo, alarmado: Ora, os olhos dele parecem os

olhos de alguns dos nazistas que vi na Europa! Vidro…, nenhuma emoção, nada, nada por trás deles. Nada senão o ódio. — Andei examinando os livros do Glen e de alguns outros donos de minas também — falou o Sr. McGee, numa voz aflita, passando a sentar-se na beira da cadeira. — Mal estão ganhando para pagar as despesas. Precisam de mais dinheiro pra tornar as minas mais seguras, e não o têm. Não podem pagar mais aos nossos homens, e é isso que estive dizendo ao Sr. Swensen, aqui. E então, hoje à noite, pensei no Sr. Fletcher. Pensei em virmos todos aqui e talvez o Sr. Fletcher pudesse ajudar e mostrar ao Sr. Swensen que na verdade não existe problema entre os mineiros e os donos das minas, só que alguns dos mineiros recebem panfletos de estranhos perto dos poços. O Sr. Swensen pareceu interessado. Sua expressão estava muito simpática. O Sr. McGee continuou: — Mas o Sr. Swensen diz que os homens têm de ganhar salários uniformes como nas minas grandes e benefícios maiores e melhores, e um grande plano de auxílio médico e de aposentadoria. Podem crer, eu bem que gostaria de vê-los conseguirem tudo isso! A mineração é o diabo. Se os homens ganhassem cem dólares por dia, ainda não seria o bastante. Eu fui mineiro, e sei. Bem, em todo caso, o que o Sr. Swensen diz que os mineiros deviam ter em Barryfield não é possível mesmo. Se Glen e os outros donos de minas tivessem ganho bastante nesses últimos 20 anos, poderiam ter aberto novas minas ou escorado as que já possuem. Mas não tiveram o dinheiro para isso, e essas minas que têm já estão muito exploradas e agora estão começando a funcionar com prejuízo. Mas continuam a trabalhar, na esperança de uma melhora, e as coisas só fazem é piorar. E eles sempre têm de responder a processos de gente que tem rachaduras nas casas por causa das explosões, e isso é outro sorvedouro de fundos. — Naturalmente — disse o Sr. Swensen, amável. — Os proprietários têm de assumir a responsabilidade dos prejuízos que causam. Mas isso não tem nada a ver com suas outras responsabilidades… dar um salário decente a seus mineiros. Johnny, que nunca podia se esquecer dos olhos de Swensen, falou irritado: — Deixe de ser idiota. Os donos de minas investiram tudo o que tinham nelas; eles é que correm os riscos, abriram as minas. Os mineiros recebem seus salários; não sofrem perdas como os donos. Trabalham por nada, como o Sr. Dowdy parece estar fazendo? O Sr. Dowdy e seus amigos não têm planos de aposentadoria para si, nem planos de doença, nem seguro de desemprego. Só têm a aflição, o esforço de manter todos esses planos, os impostos, as preocupações. E gente como o senhor aparece aqui só para armar encrencas. Ele olhou para Swensen com uma aversão franca e ardente e continuou: — Direitos iguais não significam recompensas iguais. No entanto, o senhor parece acreditar que, se o Sr. Dowdy periodicamente trabalha de graça, só para manter as minas em funcionamento, seus empregados têm direito a um aumento. Isso não é nem comunismo. Na Rússia, os mineiros trabalham em regime de trabalho escravo, com um açoite nas costas, e os burocratas ficam com todos os lucros. É isso que deseja, com toda a sua filantropia? — Claro — disse o Dr. McManus, dando risada.

— Não vamos ser pueris — respondeu o Sr. Swensen. — Estamos aqui para discutir os assuntos, e não para fazer acusações tolas. Não sou comunista, Sr. Fletcher. O Sr. Dowdy, sentindo-se mal, virou-se para o Sr. Swensen. Disse, em tom de súplica: — O senhor sabe da verdade. Já viu meus livros. Olhe, queremos manter os homens empregados. O senhor não tem coração? Não se importa com os nossos pobres mineiros? Não sabe o que vai lhes acontecer, se fizerem greve? Não podem tirar sangue de pedra e a maioria sabe disso: e Dan aqui sabe disso, e já disse a eles. Mas uma greve só significa que vão ficar sem trabalho, talvez permanentemente. Não quero fechar as minas, mas, se me forçarem, terei de fazer isso, e os outros donos também. Então, o que os mineiros vão fazer? — Ah, eles têm seguro de desemprego — respondeu o Sr. Swensen, com um leve sorriso. Podem esperar. Lançou a todos o sol de seu sorriso feliz. — Não foi John L. quem o mandou, isso é certo — interveio o Dr. McManus, pensando. — Não faria isso. Conhece o caso das minas em Barryfield. Você está atrás de alguma coisa ou de alguém, Swensen. O Sr. Swensen não fez caso dele. Esperou que o Sr. Dowdy continuasse. — Bom — disse o Sr. Dowdy —, se os homens esperarem… e quanto tempo dura o seguro?… vão ter de esperar para sempre, ou arranjar outros serviços. Eu não os culparia, se fizessem isso. Eu não voltaria a ser mineiro nem por 10 mil dólares por ano, coisa que não ganhei nunca em minha vida. Vou morrer muito breve. O Al aqui me disse. Tenho um pequeno seguro para a minha mulher se sustentar, se ela tiver cuidado, e tenho um filho na universidade, que em breve será médico. Portanto, não me preocupo muito com coisa alguma, a não ser os mineiros. Já está ficando muito difícil para mim agora trabalhar e tentar equilibrar as coisas. O Sr. Swensen continuava distante e achando graça. — Não obstante, não posso aceitar tudo isso. Os mineiros de Barryfield têm de ter justiça, têm de receber os mesmos salários que recebem os outros no ramo da mineração. Eu tinha esperanças — acrescentou, com pesar — que o Sr. Fletcher concordasse comigo, e o convencesse a aumentar os salários dos homens. Parece que essa conversa informal foi uma perda de tempo. Johnny aproximou-se dele depressa, mas o Sr. Swensen limitou-se a olhar para ele, pensativo, com seu sorriso maquinalmente simpático e disse: — Estou pensando sobre o senhor, Sr. Fletcher. Não é muito importante, é? Um ministro de cidade pequena, provavelmente com um ordenado muito baixo. No entanto, agiu como um catalisador perigoso aqui. O que me pergunto é o seguinte: por que está aqui? Quem o mandou? Como conseguiu unir elementos tão disparatados? Antes que Johnny pudesse responder, o Dr. McManus pôs a mão no ombro dele e sorriu. — Quem o mandou? Ora, Deus, diz ele. Johnny é o que a Bíblia chama de um homem justo, e é por isso que não o compreendo. Os homens justos podem fazer o diabo

neste mundo. Sempre fizeram. É por isso que estão sempre sendo crucificados, assassinados ou perseguidos e levados à excomunhão econômica por políticos ou seu próprio povo. Tipo de vida incômoda. O Sr. Swensen levantou a mão em concha ao rosto, escondendo a parte inferior, enquanto continuava a olhar para Johnny. — Sou o que o senhor vê, um ministro — falou Johnny. — Só isso. Não importa. Quer dizer que vai instigar os mineiros a fazerem greve? Então, vou lutar contra o senhor. Eu mesmo vou procurá-los. Vão me dar ouvidos. Já fui mineiro, conheço a linguagem deles. De repente o Sr. Swensen deu uma risada. — Pensa que vão escutá-lo, Sr. Fletcher? Quando é que aquilo que chama de razão venceu a ideia de mais dinheiro? A Sra. Burnsdale bateu à porta e depois a abriu um pouco. — As crianças querem dar boa-noite, Sr. Fletcher. — Seus cabelos grisalhos estavam úmidos e encrespados, com o calor e umidade da cozinha. Os olhinhos estavam tensos e ela olhou depressa para o Dr. McManus, sacudindo a caneca num sinal para ele. — Está bem, já vou — respondeu Johnny. O rosto da Sra. Burnsdale desapareceu, mas o Dr. McManus se levantou e foi atrás dela, com naturalidade. — Vou ajudar com a cadeira do Jean. Encontrou as crianças de pé muito quietas na cozinha, todas juntas num semicírculo em volta de Jean e o médico viu, com um curioso aperto no coração, aquela antiga expressão nos rostos delas, a expressão de um pavor gelado, ódio e desconfiança. Eram estranhas outra vez, perdidas e abaladas, preparadas para a fuga e a luta. Até mesmo o cabelo liso e louro de Kathy estava eriçado em volta de sua cabeça redonda, como uma juba. O pior de tudo, para o médico, era que a mão esquerda de Jean estava agarrando uma faca comprida e afiada e Pietro estava com um martelo na mão e os olhos de Max estavam vazios. Emilie estava escondendo o rosto no ombro de Kathy, tremendo muito. O Dr. McManus parou. — Bem — perguntou, numa vozinha fina — o quê, em nome de Deus? A Sra. Burnsdale, junto da janela da cozinha, lhe fez um sinal imperioso. O Dr. McManus já ia para junto dela, mas parou, a centímetros de Jean, que olhou para ele com os olhos claros agora cheios de ferocidade. — Jean — disse o médico, com aspereza —, largue essa faca. Estenda o braço para a mesa e largue-a. Já. Jean apertou mais a faca; as crianças se aproximaram mais dele. O Dr. McManus mal podia reconhecê-las. Estava terrivelmente consternado e pensou: Não adianta, todo o trabalho que Johnny teve, todas as orações, todo o sofrimento, toda a fé. Mas eu já sabia disso, desde o princípio. Quando é que ele vai aprender? O coração dele, tão velho, amargurado e calejado, de repente doeu por Johnny e as lágrimas encheram seus olhos.

— Não sei o que há com vocês, garotos — falou, e sua voz chegou a falsear. — Mas quando ficam assim, e agem assim, não são humanos. Não são mais filhos do seu pai. — Jean continuava a segurar a faca com força mas alguém, uma das meninas, chegou a choramingar. Tudo o que fizemos por vocês não é nada. A ferocidade selvagem acalmou-se nos olhos de Jean, mas ele ficou segurando a faca como uma baioneta. — O doutor não entende — respondeu ele. — É papai que está em perigo. Ele apontou a faca para a janela. — O doutor quer olhar, por favor? O Dr. McManus olhou para ele, espantado, e depois foi para a janela. A faca roçou na manga dele e ele ouviu seu silvar. A Sra. Burnsdale tinha puxado o estore rachado; estava chorando baixinho, e então afastou o estore do vidro preto. O doutor espiou para fora e não pôde acreditar no que via. A janela dava para o quintal e a cerca que o rodeava e além da cerca estava um muro de pessoas, em silêncio, homens e mulheres em fileiras imóveis e sinistras. Perdia-se de vista, aquele muro, dando a volta da casa, passando para a frente onde mais algumas dezenas deviam estar olhando pára a porta da frente, mudos. — O quê? — murmurou o médico, sem poder acreditar. — O que… o que querem? — Não sei — respondeu a Sra. Burnsdale, a voz falseando. — Ouvi um barulho lá, há alguns minutos; pensei que fosse trovoada, ou alguma coisa caindo, e pensei no carro do Sr. Fletcher e fiquei preocupada e espiei para ver. E aí vi toda essa gente! Kathy viu como eu fiquei assustada, olhou e contou aos meninos e aí Jean foi para a gaveta e pegou a faca e Pietro pegou o martelo… e tudo recomeçou. — Ela soluçou e as crianças olharam para ela, sérias, e Emilie gemeu. — Nunca vi uma coisa dessas! — exclamou a Sra. Burnsdale. — Estou com medo, doutor. Custo a ter medo, mas desta vez estou. É uma turba, doutor, e não posso saber por que, só que alguém está querendo machucar o Dr. Fletcher de novo. — Querem matar o papai — disse Jean. Pietro saltou e brandiu o martelo no ar, perigosamente. — Matar, matar! — gritou, a voz fina. — Nós matar eles! —·Deixe de ser burro — gritou o médico, saindo de junto da janela e plantando-se diante das crianças. — Estão pensando que isso aqui é a Europa? Esta terra não é uma terra de doçura e luz; é igual a todos os outros lugares. Só que temos a lei, e ela funciona, e vou chamar a lei neste minuto. Jean, a faca, por favor. Ele estendeu a mão e Jean, depois de um instante, a entregou a ele. Pietro jogou o martelo no chão. Kathy de repente sorriu e os soluços de Emilie cessaram. Max disse: — A lei. O Dr. McManus foi para a sala. Nenhum dos quatro homens estava falando agora. Johnny estava sentado sobre a secretária e olhando para o Sr. Swensen com um rosto escuro, com ódio gélido, coisa que o médico aprovou plenamente. O Sr. Swensen estava com um ar de espera aborrecida, a cabeça meio virada para a porta de saída. A pele velha

do médico se arrepiou e formigou, quando olhou para o outro. Mas era preciso ter calma. Dan McGee e o Sr. Dowdy estavam sentados lado a lado, numa atitude do mais total desânimo. — Onde estão as crianças? — perguntou Johnny, espantado, desviando a atenção de cima do Sr. Swensen, O Dr. McManus falou, pesadamente: — Eu as mandei para cima. E agora quero usar o telefone. — Ele passou pelo Sr. Swensen, indo para a secretária de Johnny, e disse, devagar e pausadamente: — Seu filho da puta assassino. — Pegou o telefone e disse: — Polícia, e depressa. Eis o número da casa… a rua… Ele examinou os rostos na sala. Três tinham ficado inteiramente desconcertados. Um não. O médico disse para essa cara: — Você sabia. Planejou tudo. Se… acontecer alguma coisa. .. não vai sair daqui vivo. Nem que eu mesmo tenha de tomar alguma providência. — O quê? — exclamou Johnny. — O que é isso? Está maluco, doutor? — Você era o alvo dele, desde o princípio, Johnny — respondeu o médico. — Eu já desconfiava disso. Agora sei. Uma pedra pesada bateu na porta e já de fora ergueu-se um grito enorme, um grito primitivo e selvagem. Instintivamente Johnny se dirigiu para a porta e o médico gritou: — Afaste-se daí, seu débil mental. Tem uma multidão lá fora. Swensen arrumou isso. Dan McGee, o rosto gordo tão espectral quanto o do Sr. Dowdy, levantou-se do sofá, devagar. O Sr. Dowdy também se levantou. Então Johnny, a meio caminho da porta, de repente se virou, correu para junto de Swensen e o agarrou pela garganta. A cara de Johnny estava terrível: — Você — gritou. — Você os trouxe aqui para assustar meus filhos, para apedrejar minha casa. Escute, seu. Se um de meus filhos for ferido, acho que o mato. Está entendendo? Eu o mato. O Sr. Swensen não estava mais sorrindo. Ficou muito quieto, nas mãos de Johnny, mas seu rosto afável se tornara uma efígie de mármore, desdenhosa. — Tire as mãos de cima de mim — falou com voz calma. — Você mesmo é que provocou tudo isso, pastor. Johnny recuou o braço direito grandão como um lampejo de um pistão e seu punho bateu no queixo de Swensen. Este cambaleou e nisso Johnny o esmurrou de novo e de novo e ele caiu no chão. A perna de Johnny recuou para dar um pontapé no lado do corpo do sujeito. E depois parou. Sua respiração ofegante encheu a sala, de modo estridente. Olhou para o homem meio inconsciente no chão e disse: — Quando você se levantar, vou esmurrá-lo de novo, e dessa vez vai ficar no chão. — Os olhos dele faiscaram pela sala como um relâmpago azul. — Sou um ministro mas também sou um homem.

O Dr. McManus estava-se refazendo de seu assombro. — Bom. Você está virando homem, Johnny. Os outros homens olharam para Swensen e depois para Johnny, sem poder acreditar, e esfregaram os rostos aturdidos com as mãos trêmulas. Ficaram olhando para Johnny enquanto ele abria a porta e se postava no limiar. O ar da noite entrou com seu fedor enjoativo e lá fora só houve um silêncio tenso, quando ele apareceu. Ele ficou ali com suas pernas compridas e musculosas separadas, as mãos agarrando os batentes da porta. Falou com muita calma: — O que vocês querem? Por alguns instantes, só o silêncio lhe respondeu, e depois elevou-se um rugido imenso, confuso, furioso, cheio de ódio e de ânsia de sangue. — Fora! Fora, seu nazista nojento! Fora, seu fascista imundo! Seu arrasa-sindicato! Seu fura-greve! Ah, pensou Johnny, claro. Esses arruaceiros são uma única gente, sejam quais fossem os epítetos! Sempre foram, desde os princípios dos tempos. O Dr. McManus, as possantes pernas velhas tremendo, foi para a porta e espiou por cima do ombro de Johnny. A luz fraca lá fora brilhava sobre pelo menos cem caras selvagens e desumanas, sobre os cabelos desgrenhados das mulheres, nas cabeças descobertas dos homens, sobre lábios abertos e olhos brilhantes. As sombras escondiamlhes os corpos; os rostos e cabeças flutuavam numa leve névoa amarelada, como pesadelos desencarnados. Então as mulheres começaram a rir, um riso de ódio, alto e demente, e palavrões e obscenidades ressoaram na noite úmida de outono. Johnny ficou ali, sem se mexer. Uma mulher gritou: — Tire esses malditos guris estrangeiros daqui já e já, senão vamos estraçalhá-los com nossas mãos! Duas mãos como garras dilacerantes se ergueram acima das cabeças, com gestos de rasgar. —·Não queremos fedelhos estrangeiros aqui na nossa cidade, seu filho da mãe nojento! Um rugido de aprovação fez eco a ela, Johnny já ia dando um passo à frente, o rosto mais terrível ainda, mas o médico agarrou o braço dele. — Deixe-me passar — pediu ele, rodeando Johnny e descendo para o alpendre. Postou-se ali, firme e imóvel como um rochedo, as mãos nos bolsos, a cabeleira cinzenta soprada ao vento. Olhou para a turba com um sorriso maléfico. Eles se tinham calado ao vê-lo, restando apenas um murmúrio baixo. — Então, seus porcos. Estou vendo muitas caras conhecidas. Operei alguns de seus corpos fedorentos. Vejo vocês embolados nos meus dias de ambulatório gratuito. Lembram-se? Não tornem a me procurar. Levem suas queixas e gemidos a médicos que cobrem de vocês, como homens sensatos.

Alguma coisa voou pelo ar, com um zunido, por pouco não atingindo o velho. Era uma faca e a lâmina se cravou no alizar da porta, pouco abaixo da mão de Johnny. Hábil e rapidamente, o médico puxou a faca da madeira apodrecida e a segurou. Houve alguns gritos alarmados. — Quem foi que atirou isso no doutor? Ei… você aí! — Bom — disse o médico —, agora tenho uma faca. Estou escolhendo uma cara entre vocês e, se fizerem mais alguma coisa, essa determinada cara vai levar essa faca bem entre os olhos. Não se mexam. Uma onda de medo passou pela massa de caras inquietas; eles lamberam os lábios; um rugido ergueu-se em muitas gargantas. Alguém berrou: — Não temos nada contra o senhor, doutor! Nem sabemos quem atirou essa faca! Mas saia do caminho, doutor! Não queremos encrenca, é só esse ministro sair da cidade com os gringos dele, hoje mesmo! A gente não tem direito de dizer quem vai morar nesta cidade? — Vocês — respondeu o médico, equilibrando a faca na mão — não têm nem o direito de viver. — Ele não afastou o olhar de cima deles, prendendo a turba com os olhos malignos. — Daqui a pouco a polícia vai chegar aqui e tenho influência, e vou dizer ao pessoal para atirar para matar, e usar os cassetetes também. Ele ouviu que o escutavam, nervosos. Mas só se ouvia o vento da noite soprando entre e por sobre as árvores; do outro lado um quarto crescente de lua amarela se elevava, muda. Então Johnny falou, em claro e bom tom: — Eu não vou embora. Nada nem ninguém vai me tirar do lugar para onde Deus me mandou. Vocês são pessoas, a minha gente, e não os odeio, mas vocês estão assustados e alucinados com as mentiras que lhes contaram. Quem os fez virem aqui hoje? Um uivo lhe respondeu, erguendo-se quase palpavelmente das caras reluzentes abaixo dele, mas vinha de lugares espalhados, e os homens e mulheres olharam, com medo, procurando quem uivava. Depois fez-se silêncio de novo, e o ruído de pés se arrastando. De repente um homem levantou um jornal no ar e o brandiu. — Está bem aqui, no jornal! — berrou. — Os grandes interesses é que o mandaram aqui para acabar com o nosso sindicato! — Quem é você? — perguntou um dos homens. — Em que mina trabalha? Alguém passou por Johnny, por baixo do braço dele e desceu; era Dan McGee. Ao verem o homenzinho gorducho que eles conheciam e amavam, ouviu-se um ruído de consternação e espanto de parte das caras. Dan levantou os braços e os homens gritaram para ele, reconhecendo-o. — É o Dan! Dan. Deixem o Dan falar! O que está fazendo aqui, Dan? —·Ele nos vendeu! — berrou um dos homens. As caras se voltaram furiosas para quem falara, em algum lugar no meio do povo.

— Dan não havia de nos vender! Ei, nunca vi você na vida! Quem mandou você aqui? — É — respondeu Dan, com brandura. — Quem o mandou, e os outros? O povo balançava, torcendo-se. — Uns caras. Uns camaradas. Disseram que eram pessoal do sindicato de Scranton — respondeu alguém, inseguro. Dan sorriu para eles, o rosto redondo e vermelho brilhando à luz do lampião. As janelas do outro lado da rua tinham sido abertas, e nela viam-se cabeças curiosas e alarmadas, a luz atrás delas de um amarelo pálido. Dan estava pensando. Nesta noite, haveria derramamento de sangue, se os agitadores não percebessem seu perigo e escapassem. E o sangue derramado inevitavelmente resultava em sentimento de culpa e sofrimento para quem o derramasse. Então Dan esperou e ficou aliviado ao ver que aqui e ali havia alguma agitação na turba, movimentos como de homens fugindo o mais depressa e jeitosamente possível. O povo estava tão atento a Dan que mal percebeu essas agitações e movimentos, traiçoeiros e rápidos. O bafo da turba se erguia como vapor acima de suas cabeças, na umidade. Agora, olhos sérios, envergonhados e encabulados, olhavam para Dan. Então o Dr. McManus gritou: — Que tal pegarem o homem responsável por fazer vocês virem aqui para fazer mal ao nosso bom amigo aqui e aos filhos dele, hein? E Dan também… ele queria que vocês estraçalhassem o Dan. A voz da multidão de repente ergueu-se num tom louco, jubiloso e ávido. — Cadê ele, doutor? Dê ele para nós, doutor! Vamos pegar ele, doutor! O coração de Johnny de repente inchou dentro dele, com um mal-estar tremendo. Uma turba era sempre uma turba — só queria uma vítima, fosse quem fosse. Ele agarrou o ombro de Dan, debruçando-se da porta. — Fale, fale! — pediu, com urgência. — E faça o doutor calar-se! Pelo amor de Deus! Dan olhou para ele e seu rosto bondoso mudou. — Vamos — disse Dan —, vamos esperar um instante e falar sobre isso, entendem? Quero dizer uma coisa importante a vocês. Não vai ter greve nenhuma, nem aumento tampouco. — Devo…? — começou o Dr. McManus, mas Dan levantou a voz, dominando, para abafar a voz dele. Ninguém notou que Johnny tinha desaparecido. Dan continuou: — Os donos das minas não podem dar o aumento. Tenho de falar depressa, porque a polícia já deve estar chegando. Estão ouvindo sirene? — O povo escutou, aflito. — Tenho uma notícia triste para vocês, caras. Sempre gostaram do Sr. Dowdy. Pois bem, ele está morrendo, gasto e doente. Mas deixou as minas para vocês… serão de vocês, muito breve.

Um rumor profundo de assombro e vergonha se ergueu do muro de homens e mulheres. Dan continuou depressa: — O Sr. Dowdy sabe que estão aqui. Não sabe por quê. Não vamos dizer a ele, hein? Ele ia se sentir muito pior, sabe. As sirenas estavam-se aproximando com gemidos fortes e primitivos. O povo se aproximou mais da casa, quando os três carros da polícia pararam ali. — Não queremos nada — disse uma babel de vozes, numa perplexidade real, esquecendo-se. — Nem sabemos por que viemos aqui. Tenho de prendê-los mais um pouco, pensou Dan, desesperado, ainda agarrando o braço do médico. As portas dos carros de polícia se abriram e o povo se acotovelou. Não fugiram. A maioria conhecia todos os membros da força policial de Barryfield e quando os rapazes vigorosos começaram a saltar dos carros, houve gritos de cumprimentos aliviados. — A gente não fez nada, Jim! Foi só que aqueles caras nos atiçaram… mentiras. A gente nem sabe quem são! Deviam matar eles! — gritaram algumas mulheres. Agora a turba toda estava gritando furiosa e com uma indignação virtuosa. Rodearam a polícia, alegando, incoerentes, sua inocência e indignação e olhando em volta à procura de estranhos. Não sei o que o Sr. Fletcher está fazendo, pensou Dan, mas espero que lhe esteja dando tempo. Johnny tinha corrido para dentro da sala. Encontrara Swensen sentado numa poltrona, fraco, enxugando o sangue que lhe escorria da boca e do nariz. Estava sacudindo a cabeça, como que para recuperar os sentidos. Johnny arrastou-o depressa da poltrona, dizendo, com uma voz feroz, reprimida: — A turba quer você. Querem dilacerá-lo, matá-lo. A polícia vai chegar daqui a pouco, mas não vai conseguir contê-los. Venha comigo! Fique de pé! Arrastou Swensen, aturdido, ensanguentado e não mais elegante, até o pé da escada e ficou escutando. A Sra. Burnsdale, sensatamente, tinha levado as crianças para os quartos e um vago murmúrio descia pelas escadas. — Venha! — instou Johnny, baixinho, empurrando o homem à sua frente, para a cozinha, sustentando seu corpo cambaleante, segurando-o com toda sua força. — A polícia não vai ajudá-lo — murmurou Johnny, ofegante com o trabalho além de suas forças. — Faça um esforço para ajudar,.. venha, com seus pés… vão matá-lo. Swensen estava respirando ofegante, com um medo confuso. Suas roupas estavam manchadas de sangue. Enquanto lutava para se sustentar, com as mãos de Johnny em suas costas e braços, ouvia o uivo da turba, e depois, fraco, a distância, o gemido das sirenas. — Depressa, depressa — instava Johnny, aflito.— Temos dois, três, quatro segundos… não mais. Aqui, passe os braços pelo meu pescoço. Isso. Juntos, foram para a cozinha deserta e em direção à porta dos fundos. Johnny espiou para a escuridão. Não havia ninguém lá. O povo estava na frente da casa e as sirenas

estavam mais próximas. Johnny abriu a porta dos fundos e o ar fresco de repente bateu em Swensen, tão aturdido, e começou a fazê-lo voltar a si. — Por quê? — perguntou Swensen, aspirando golfadas de ar fresco. — Por que está fazendo isso? Tem todos os motivos para me odiar. —· Por quê? — Johnny repetiu a pergunta. — Porque sou cristão. E porque sei que essas turbas nunca são impelidas por uma raiva verdadeira, ou um verdadeiro sentido de justiça. Só querem matar. Qualquer um serve. Há alguns minutos, queriam me matar. Agora querem matar você. — Olhou para o nariz de Swensen, de onde o sangue continuava a pingar. Suspirou e depois seu rosto ficou tenso. Estava ouvindo a polícia na frente e a voz furiosa e exigente da turba, ainda procurando uma vítima, ainda se justificando, — Já está bem? Já pode navegar? — Ajudou Swensen a descer os degraus para o quintal. — Pronto. Fique de pé sozinho. Já ajudei no que podia. De agora em diante, está nas suas mãos. Johnny tirou as mãos do vulto instável, que por um instante ficou ali vacilando, como um bêbado prestes a cair. — Mas por quê? — tornou a perguntar Swensen, saindo de seu torpor e virando-se para Johnny. — Não entendo. Por que me ajuda a escapar? — A resposta — respondeu Johnny, baixinho — está na diferença que há entre nós… a diferença no que acreditamos. Sei por que veio aqui. Veio com o ódio no coração e esse ódio em seu coração me levou a odiá-lo, ainda há pouco. Você para mim representava todo o mal que vi na Europa… os campos de concentração, os crematórios, coisas que nem posso mencionar. E então, de repente, você se tornou não o caçador, mas o caçado. Portanto, agora não me importa mais que você acredite numa coisa e eu noutra. Agora você é o perseguido, e uma turba é sempre uma turba e é sempre monstruosa. Tenho de protegê-lo contra ela. Por um instante, Swensen ficou ali, sangrando, imóvel, os olhos fixos sobre Johnny e esses olhos exprimiam expressões incrédulas de uma mofa forte, desprezo e perplexidade. — Sim, sim — disse Johnny, severo, pegando o braço dele. — Já sei, sou um fraco, você acha. O seu tipo é forte, e assim vai herdar a terra… é o que acha. Mas não vai, não vai! Porque o tempo todo são vocês os covardes, e não nós, pois não temos medo de nada, nem de vocês. Não achamos que seja necessário matar, só para sobreviver. — Por quê? — perguntou Swensen, enxugando a boca sangrenta com o lenço. Por que me salva dessa turba? — Você não poderia compreender — respondeu Johnny, com uma raiva amarga, puxando-o para a cerca. — Espere — pediu Swensen, resistindo, e então seus olhos estavam estranhos e atentos. — É, estou ouvindo aquela matilha de cães uivando… Eles já viam a turba além da cerca, envolta na névoa enjoativa e acobreada de smog sob o lampião de rua. — Lá está a cerca — apontou Johnny. — Pule por cima dela, de algum modo, para o quintal do vizinho e depois para a outra rua. O que está esperando? — exclamou, com

medo e irritação. — Dan McGee não vai conseguir contê-los por muito tempo mais! — Estou esperando pela resposta à minha pergunta. Há uma hora, eu não teria entendido a sua resposta. Mas acho que agora vou entender. — Sorriu para Johnny e sacudiu a cabeça, como que assombrado, e não com escárnio. — É, acho que sim. Ele passou por Johnny e depois tocou na testa, com um tipo de cumprimento humorístico, e desapareceu. Johnny ficou ali um instante e depois fechou a porta. Encostou-se nela, exausto, a testa franzida. Somos todos culpados por tipos como ele, pensou, aflito. Nós, a gente “boa”, os deixamos penetrar em nossas vidas porque nos faltava a força positiva da lei moral para mantê-los de fora. Sim, somos culpados. Culpados da traição de todo o mundo. Mea culpa. Mea maxima culpa. O médico estava na sala quando ele entrou e de repente Johnny se lembrou das crianças. Com uma nova força, correu para a escada e, acompanhado pelo médico, chegou ao andar de cima. As crianças estavam juntas, pálidas, agrupadas em volta da Sra. Burnsdale, no quarto do pai. Quando viram Johnny, correram para ele, até mesmo Jean, empurrando a cadeira de rodas furiosamente. — Está tudo bem, guris — falou Johnny, puxando-os para junto de si. Queria apaziguá-los com evasivas, mas quando viu os olhos sábios de Jean e o sorriso agudo de Pietro, viu que tinha de contar a verdade. — As pessoas às vezes são muito estúpidas. Vocês já sabem disso. Por vezes também são estúpidos. Mas hoje tivemos a lei, e a polícia veio e o povo se arrependeu muito. Devemos perdoá-los. Ele olhou para o rosto redondo e rosado de Kathy, agora muito obstinado. — Eu não perdôo a vocês, vocês todos, por mais impossíveis que fiquem, às vezes? Virou-se para Max, que disse, com sua voz insegura: — É, você sempre tem de perdoar. Jean disse, vexado: — Estou pensando na faca. Não sou melhor do que aqueles homens, papai. Não sou cristão. Como pode me perdoar? Johnny se debruçou e abraçou Jean. — Foi São Pedro, meu bem, que cortou a orelha de um soldado com a espada, quando os romanos chegaram para prender Nosso Senhor. Foi São Pedro quem negou Nosso Senhor três vezes. Deus o perdoou, pois Deus compreende os corações dos homens. Quando você se acusa de sua própria culpa, como fez agora, não precisa me pedir perdão, Deus já o perdoou. Pietro saltou como uma mola, rindo. — Ah, as coisas que vou contar ao Padre! Ele vai fazer uns olhos assim — e o menino alegre arregalou bem os olhos pretos e os girou para o céu, juntando as mãos, numa paródia de um pavor tremendo. Ficou encantado quando todos no quarto irromperam em risadas incontroláveis. Foi o Dr. McManus quem, sem comentários, levou a Johnny um número do New York Times, alguns dias depois, e lhe mostrou uma notícia. “O Sr.- Lars Swensen, diretor

da Fundação de Relações Industriais, demitiu-se de seu cargo nessa organização…”

XIX O domingo foi outro dia. Começou ao raiar do dia, com o sonho de Johnny. Primeiro, em seu sonho, ele sentiu uma grande tristeza dentro de si, sem qualquer motivo que pudesse descobrir, e uma grande ânsia. Tudo isso fazia parte de um caos grande e escuro, em que ele se encontrava. Depois o caos se evaporou e ele se viu de pé solitário num deserto, crestado, vazio e inteiramente silencioso, sob um céu sem sol. Não havia uma só árvore, grama ou’ flor. Aqui e ali o deserto apresentava rachaduras, num desenho complexo e sem significado, que se estendia até o horizonte. Johnny caminhou e seu passos não faziam barulho. Procurou montes e não encontrou. Procurou água e não encontrou. Tudo o que eu pensava que tinha não passava de um sonho, disse ele consigo, no seu sonho. Abaixou-se e pegou um torrão de terra: era da cor de um barro esbranquiçado; dissolveu-se em pó na mão dele e voou soprado por um vento que ele não sentia. Ele notou sua exaustão extraordinária, como se tivesse se esforçado ao ponto de morrer. Por fim parou de andar e ficou olhando para a desolação sem fim. Não tinha recordações; não pensava no futuro. Então, de repente, apareceu no horizonte uma mancha brilhante de um azul reluzente, uma manchinha não maior do que a mão dele. É o céu, pensou ele, com alegria. Mas não era o céu. Estava-se movendo em direção a ele, uma cor estranha e luminosa, e de repente o coração dele passou a bater com uma felicidade ansiosa. Começou a caminhar depressa em direção à cor, e aí viu que na verdade era um vultozinho, que lhe acenava, e ele levantou a mão, retribuindo o cumprimento. Ele se apressou. Então, notou uma coisa extraordinária. O deserto, como que tendo recebido um sinal misterioso, estava desabrochando num relvado de um tom verde forte. Chegou aos tornozelos dele e começou a subir, farfalhando, para os joelhos. Dentro de mais uns instantes, estava cheio de flores de todos os tons, vermelhas, amarelas, brancas, lilases, rosas e douradas e o perfume se emanava delas em nuvens. Johnny encheu-se de forças; chegava a sentir o fluxo mais rápido de seu sangue rejuvenescido. Ele não conseguia tirar os olhos de cima do vulto na distância. Então os pássaros começaram a cantar e o sol apareceu, num esplendor de luz. Brilhou sobre o vulto, e era uma moça com cabelos claros e luminosos e Johnny a reconheceu. — Lorry! Lorry! — gritou e começou a correr. De repente ela estava em seus braços e todas as flores, o canto dos pássaros, eram emanações dela. Ele jamais sentira um tal prazer, realização, êxtase. Segurou o rosto dela nas mãos e olhou dentro dos olhos dela, e não eram os olhos duros e inclementes de que ele se lembrava, mas sim olhos de uma suavidade pubiada e uma beleza terna e olhavam para ele com amor. — Pensei que você tivesse ido embora. Pensei que nunca mais a veria.

Lorry riu-se e encostou a face na dele. — Nunca fui embora. Como você pôde imaginar uma coisa dessas? — Eu a mandei embora, em meus pensamentos — respondeu ele, com humildade. — Tinha as crianças… Ela riu para ele, com amor. — As crianças? Johnny, são minhas também. Tantas crianças. Tantos milhares de crianças! Escute as vozes delas. Ele escutou, segurando a mão dela. Então o ar estava cheio do clamor de vozes de uma multidão de crianças, vozes que buscavam, vozes perdidas, vozes de bebês, vozes que chamavam. Johnny olhou em volta, perplexo, mas ali não havia mais ninguém, só ele e Lorry. — Por causa de você, são meus filhos, todos eles — falou Lorry, encostando-se nele. — Por causa de você… Então ele acordou, no seu quartinho triste. Ouvia Jean respirando, na semi-escuridão. As chuvas de outono, cinzentas e implacáveis, se despejavam pesadamente de céus deprimidos; ele as ouvia batendo nas ruas, lavando a sua janelinha. Johnny ficou deitado quieto, tentando agarrar-se ao seu sonho, mas ele escapou. Ficou ali com uma enorme sensação de perda e tristeza. Um sonho, disse consigo, um sonho que nunca poderia acontecer, pois ela jamais poderia me desejar ou gostar de mim. Ele não dormiu mais. Quando se levantou, a casa estava começando a se movimentar. Num estado de tristeza e melancolia, vestiu-se, foi à igreja e olhou lá dentro. Pelo menos estava limpa, à luz plúmbea vinda do céu. Tomou o café da manhã num estado de espírito exausto, mal falando com as crianças, que olhavam para ele sérias, de olhos arregalados. Kathy estava vestida com uma saia de escocês nova e blusa branca, pronta para a aula de catecismo mais tarde. Já era uma potência entre as meninas de sua turma e não deixava de corrigir a professora jovem e meio pálida, com uma voz precisa, quando a Srta. Fair errava alguma palavra das Escrituras. As outras crianças olhavam para Kathy com respeito, pois ela era muito ligeira e eficiente e distribuía os livros de orações com um ar de não-quero-tolices-e-vamosfazer-isso-direito. Pietro já voltara da missa cedinho e estava meio sossegado, A Sra. Burnsdale estava resfriada e meio brusca. O braço e a perna de Jean estavam doendo, nessa manhã úmida. Mas estava quieto demais e a pequenina Emilie estava de cama, com febre. Além disso, o sermão de Johnny não lhe agradava. Ele também teve um pressentimento de novas aflições futuras. Era dia de Comunhão, e Johnny não tinha certeza quanto ao número de copos que havia no armário empoeirado, e se bastariam. O vinho sacramental, como ele verificara, era de um tipo muito barato e de uma cor feia. Também tinha borra. Ficou sentado à mesa do café, olhando para a chuva, melancólico. — Havia muita gente na missa — disse Pietro. Johnny respondeu, com um sarcasmo raro:

— Imagino que eu não precise me preocupar com isso na minha igreja. A Sra. Burnsdale falou, com azedume: — O Senhor não tem velas que chegue. E aqueles castiçaizinhos de nada! Imagino que, se acendeu as luzes, vão reclamar da conta da luz. — A nossa igreja — disse Pietro, com certa superioridade — tem muitas velas. Em todos os altares. E imagens bonitas, também. Nosso Senhor tem um halo dourado, novo. Johnny refletiu, nervoso, sobre o que o Dr. McManus lhe dissera. Falou com cuidado: — Bom, Deus nos ouve com velas ou sem velas, desde que realmente rezemos a Ele. O telefone tocou e Johnny foi atender. Era Dan McGee. — Sr. Fletcher, que tempo horrível, não? Creio que não vai haver muita gente na igreja hoje. — Tossiu. — Mas foi ótimo como tudo se resolveu ontem à noite, não? Alguns mineiros me telefonaram para me dizer como o senhor foi maravilhoso. Mas sinto que não sejam seus paroquianos. Johnny esperou. Seu pressentimento agora estava muito forte. Dan continuou, depois de tossir de novo. — Mas acho que os nossos paroquianos não estão gostando. Também me ligaram. Acham que os mineiros são gente reles e nunca se misturam com eles. Queriam saber por que os mineiros haviam de marchar até a sua casa e fazer baderna. Acham que isso não é respeitável. — Tentou rir. — Alguns são presumidos nisso tudo. Eu lhes dei um fora. Johnny continuou a esperar. A gente nunca sabe, com as pessoas, Sr. Fletcher. Estavam todos excitados e furiosos com os mineiros. Eles… mais ou menos pensaram que de certo modo a culpa foi sua. Tentei explicar. Eles disseram que isso nunca tinha acontecido antes, com nenhum de seus outros ministros. Turbas e todas essas coisas. — Em outras palavras — respondeu Johnny — estou no ostracismo. — Ora, eu não diria isso, Sr. Fletcher. — Bem, o que é que diria, Dan? O presidente do sindicato hesitou. — É só levar as coisas na calma e não se preocupar, Sr. Fletcher. Se a igreja não estiver cheia boje, deixe que isso passe. A maioria dos membros do conselho estará lá, com as respectivas mulheres, para lhe dar um apoio moral. — Então, estou precisando de apoio moral? — Olhe, Sr. Fletcher, o senhor não parece muito animado. — É domingo de Comunhão — respondeu Johnny. — Ah, é mesmo! Talvez muita gente tenha esquecido Johnny voltou para a cozinha num estado de espírito menos do que feliz. Pegou o paletó e as calças que a Sra. Burnsdale tinha passado com cuidado.

— Estão muito verdes — disse a Sra. Burnsdale, recriminando-o. — É mofo — respondeu Johnny, e foi se vestir. Já estava quase na hora do ofício. O quartinho atrás do altar tinha um cheiro de ratos e poeira e madeira velha e a lâmpada nua no teto parecia especialmente triste. Johnny contou os copos. Haveria suficientes. O órgão tinha começado a gemer tristemente, hesitando duramente em algumas notas pois era de segunda mão e já fora barato ao ser comprado. Johnny fez uma careta, esperando que o coro de vozes esganiçadas do pessoal idoso começasse. E começou. Então, para sua surpresa, pareceu-lhe notar um tom feliz no hino. Ele pôs os copos numa velha bandeja laqueada e os levou para a igreja. Então, parou, pasmo. Em cada lado do altar tinham sido colocadas imensas cestas de crisântemos dourados, brilhando como bolas douradas esfiapadas num esplendor de luz de velas. Os pequenos castiçais tinham sido substituídos por dois gigantescos candelabros de sete braços, e cada um dos muitos bocais reluzia com belas velas brancas, a prata cinzelando, as bases brilhando com a luz refletida. O altar parecia ser um foco de um brilho incrível e vacilante, na igreja escura, lançando sombras claras nas paredes velhas e estendendo longos dedos de luz às arestas do teto de madeira. Não havia necessidade do grande lustre, e apenas algumas luzes elétricas estavam acesas nos fundos. Era uma coisa magnífica. Os olhos de Johnny se encheram de lágrimas. A graça da luz lhe fora concedida. Ele tinha visto aqueles candelabros enormes na mansão vitoriana do médico, em cima de uma cômoda imensa. Pôs os copos no altar com mãos trêmulas, Olhou para as flores; elas exalavam um aroma da terra viva. As 14 velas de cera de abelha, cada qual medindo pelo menos 60 cm, exalavam o seu cheiro limpo, enquanto as pontas douradas iluminavam o ar frio. Johnny virou-se para sua congregação, devagar. O Dr. McManus estava sentado encolhido no primeiro banco, olhando para o nada, recusando-se a encontrar o olhar de Johnny. Deus o abençoe, disse Johnny para si, numa névoa que quase o cegou. De repente não tinha importância só haver 40 pessoas na igreja, os bancos mais próximos cheios de senhoras de meia-idade, decididas, e seus maridos corretos e atrás deles um punhado de gente insegura, E Lon Harding, com os pais. Johnny ficou ali naquela vasta auréola de luz sem saber que tinha uma majestade jovem e que seu rosto brilhava e os olhos estavam cheios de um azul intenso. Então as vozes do coro, apesar da laringite crônica que em geral as afligia, elevando-se em exultação e a igreja quase vazia destacou a musica até ela vibrar de força, apesar da banalidade do hino. A chuva podia bater nas janelas e os ventos de outono uivar tristemente. O hino assumia algo da grandeza de um canto gregoriano. O sermão, terminado na véspera em circunstâncias horrorosas, não estava de acordo com o momento, ele sabia disso. Assim, ergueu um pouco as mãos e disse, numa voz de uma paixão forte e triunfante: — “E Deus disse, que se faça a luz: e fez-se a luz.” O coro murmurou suavemente e calou-se e só existiam a chuva e o vento e os candelabros com suas 14 velas atrás do ministro. E então as faces das mulheres estavam tocadas pelas lágrimas e as bocas dos homens se moviam num tremor. O Dr. McManus

levantou os olhos e olhou bem para Johnny. — Sempre há a luz de Deus — disse Johnny, e sua voz falseou. — A luz eterna que, quando criada, teve ordem de nunca mais se apagar, em lugar algum do universo. Os interstícios do espaço são iluminados por ela, as estrelas rolam nela, em sua passagem misteriosa; as galáxias vagueiam por ela. A alma se banha nela, embora encerrada nas trevas da carne. A luz que é o amor de Deus por tudo o que Ele fez nunca poderá ser extinta, nem o túmulo pode escondê-la, nem o ódio do homem enfraquecê-la, nem o sofrimento, nem a guerra, nem o sangue, nem a morte, nem a dor a podem diminuir. É o oceano ilimitado que corre em todas as coisas e funde os sóis e os corações dos homens num só corpo e ser, com Deus. Ele parou e as velas fortes se ergueram numa onda de fulgor. — Em todos os séculos terríveis que se passaram e neste dia terrível em que estamos agora e em todos os dias terríveis que estão por vir, a luz permanece. As obras do homem e suas confusões e receios, suas ambições e suas esperanças sombrias, suas desilusões e angústias, seus sofrimentos e amarguras, sua solidão, são como uma cidade escura, sem janelas e murada com pedras negras, fechada contra o céu e o amor de Deus. Moramos nessa cidade negra e pensamos nela como a única realidade e olhámos para as sombras escuras e as chamamos de vida. “No entanto, basta deixarmos essa cidade, pois os portões não estão trancados, se bem que acreditemos que estejam. Basta andarmos um passo e abrirmos uma porta. E lá está a luz, e o trovão retumbante de sua realidade e os reinos sem fim da paz cheia de sua radiosidade. “Ninguém nos faz parar nesse passo; nenhum carcereiro barra essa porta; nenhum mal pode nos desafiar. Nós, e só nós, é que pusemos as correntes em nossas mãos e tornozelos; somos nós, e só nós, que dissemos: ‘Não há luz além dessas paredes, além desses portões, além dessa porta’. Nós nos prendemos com nossa imaginação triste, nossa falta de fé, nossas depressões, nossos terrores, nossas invejas e nossas ganâncias. As ruas da cidade sem sol que fizemos são espectrais com os nossos vultos sem luz, e ressoam com nossas lamentações. Choramos pela luz, entretanto, não abrimos essa porta.” A igreja estava num silêncio absoluto. O Dr. McManus abaixou a cabeça e cobriu o rosto com a mão. Johnny se aproximou do degrau que dava para o altar. Estendeu ás mãos. — Também eu já fiz isso, embora saiba que a luz está à minha espera, aguardando o meu passo. — Sorriu. — Ainda há pouco eu estava na salinha atrás deste altar, me dizendo que não havia nada à minha espera aqui, nessa igreja, que eu estava abandonado, que tinha fracassado, que era inteiramente inútil e o trabalho que eu tinha tentado fazer tinha desmoronado à minha volta. Como Jó, duvidei do motivo de minha existência, e não tive resposta, pois os muros se tinham fechado em volta de mim, por minha própria vontade vacilante, minha própria fé duvidosa. “E no entanto… e no entanto, abri a porta daquela salinha e vim para cá, para junto de vocês, e lá estava a luz, a luz visível, brilhante, e sua confiança, e as flores; e a minha alma, presa no seu desânimo e desesperança, soltou-se novamente para a Luz Eterna de

Deus, e viu que estava ali, imutável, risonha, cheia do amor eterno e consolo.” Ele passou vários momentos sem conseguir falar. Como se tivesse vida própria e não fosse movido por mãos humanas, o órgão pronunciou-se numa alegria suave, e a música se prolongou nas sombras frias da igreja. Johnny continuou, a voz vacilante: — Não posso dizer mais nada. Não me resta mais nada a dizer, a não ser lhes dar a minha bênção e pedir a de vocês. Ele se virou para o altar e se ajoelhou diante dele, e a pequena congregação se ajoelhou. Uma mulher soluçou, e um ou dois homens pigarrearam. A luz de vela elevou-se e o órgão tocou de novo. Johnny não estava à porta, mais tarde, para apertar as mãos daqueles que tinham ido corajosamente para estar com ele e sustentá-lo, e nem eles haviam de querer que ele estivesse ali. Eles saíram para a chuva, enlevados, sem falar. Pela primeira vez em muitos anos, a Comunhão não fora para eles um simples ritual; fora um rito sagrado, cheio de um significado divino e felicidade. O ministro ficou na salinha atrás do altar, ele mesmo aturdido e muito comovido, esquecendo-se de tirar suas vestes. Ficou com as mãos dobradas diante de si, a cabeça baixa Teve um sobressalto quando ouviu a voz de Dan, baixinha: —·Bom, Sr. Fletcher, esse foi um sermão de verdade. Não, não um sermão. Foi como alguém falando, dizendo uma coisa de que nos esquecemos. Uma coisa de que não nos lembrávamos havia muito tempo, talvez desde que éramos meninos. O Sr. Schoeffel estava com ele, o rosto brando muito comovido. Ele estendeu a mão a Johnny e Johnny apertou-a. Dan McGee passou a mão larga de mineiro pelos cabelos brancos, sacudindo a cabeça, com assombro. Ele e o Sr. Schoeffel tinham levado os dois pratos de coleta usados nesse dia. — Olhe — mostrou —, um bocado de pratas e 20 notas de um dólar! Mas veja o que está em cima! Duas notas de 100 dólares! O velho Al jogou isso aí, como se não fosse nada. E esses candelabros! Ele nos disse hoje cedo, antes do ofício, para lhe transmitir que ia emprestá-los para o senhor, enquanto ficar aqui. Não pertencem à igreja, diz ele, só ao senhor, enquanto ficar aqui. Sabe, foi esquisito, Sr. Fletcher. Hoje, às 8h00, minha mulher me chamou: “Dan, tenho a impressão de que a Assistência Feminina hoje devia arrumar o altar bem bonito, com flores maravilhosas, em homenagem ao Sr. Fletcher”, e ela ligou para umas senhoras e as flores chegaram aqui uns 10 minutos antes do ofício, na hora em que Joe, o empregado do Al, estava trazendo as velas e os candelabros! — Foi como uma mensagem para o senhor — falou o Sr. Schoeffel, assombrado. Sabe, Sr. Fletcher, eu nunca tinha visto uma nota de 100 dólares. — Eu acho — respondeu Johnny — que em agradecimento à minha congregação, devia comprar um paletó novo para mim. E ele começou a rir baixinho, e os outros se juntaram a ele. Todas as crianças deviam ver os candelabros acesos, pensou ele, e as flores. Será uma mensagem para elas, também.

Naquela tarde, a despeito da chuva, o Padre Krupszyk e o Rabino Chortow foram visitar Johnny na casa paroquial, para consolá-lo por seu padecimento na noite da véspera. O rádio noticiara alguma coisa sobre o fato. Eles o encontraram brincando com Pietro, Kathy e Max na sala triste mas cheia de risadas. Nunca o tinham visto tão alegre e juvenil. Ele apertou-lhes as mãos com entusiasmo, para espanto deles. — Têm de ir já ver a minha igreja! Quero lhes mostrar uma coisa. — Alisou os cabelos e se soltou das mãos felizes de Pietro. — Não, não pode vir de novo, Pietro. Já viu tudo uma vez, e basta. Os três clérigos saíram na chuva e Johnny levou-os para a porta da frente, que não estava trancada. O padre tornou a comentar para si que nunca tinha visto uma igreja tão melancólica, nem mesmo quando era mocinho, com uma paróquia na roça. Ele perguntou. — A porta não fica trancada, de tarde? — Nunca fica trancada — respondeu Johnny, alegre. — A não ser de noite, claro. Dei ordens para a igreja ficar aberta não só o dia todo no domingo, mas todo dia. Sabe, já vi igrejas fechadas demais, e sempre pensei por que Deus tinha de estar sempre trancado a sete chaves. Ora veja — disse o Padre Kanty, satisfeito. O rabino meneou a cabeça, com um ar sabido. Na velha terra — falou, a barba delicada reduzindo com umas gotinhas de chuva — as portas, ficavam abertas para as orações, dos fatigados. Não há uma hora especial para os homens rezarem; precisam rezar quando aparecer a necessidade. E quem há de lhes negar o seu templo? Johnny abriu as portas com um floreio. A igrejinha escura estava cheia de uma luz dourada, pois os candelabros ainda estavam no altar e as flores brilhavam como sóis na iluminação. Se os outros dois clérigos ficaram espantados, Johnny ficou ainda mais, pois a igreja estava cheia pela metade com fiéis sentados ou ajoelhados, pela primeira vez na sua história, numa tarde de domingo, cheia de chuva e vento, ou em qualquer outra parte de domingo, aliás. Ora vejam só! murmurou Johnny baixinho, seguindo na frente, pela nave para o altar. Os homens e mulheres nos bancos estavam tão absortos que nem viram os clérigos passarem. As notícias têm asas, pensou. Viu perfis que nunca tinha visto, e crianças, rapazinhos e mocinhas. Ficou emocionado. Lindo — exclamou o Padre Krupszyk, olhando para as velas grandes, que quase nem se tinham gasto. Ele se aproximou mais e deu um vasto sorriso. — Ah, essas velas vieram da nossa loja de artigos religiosos! São importadas. Não me admiraria se fossem bentas! O velho rabino se aproximou bem dos candelabros e seus olhos cansados se arregalaram. — Esses são castiçais judeus! — sussurrou ele, agitado e pasmo. — Têm pelo menos 300 anos, ou mais! Vejam, eu os reconheço por isto aqui, e isto — apontou para os entalhes. — Eles têm uma história. Os rostos deles, acima de suas roupas escuras, flutuavam na luz forte e que se

elevava, como as cabeças de um quadro de Rembrandt, vivas, comovidas e cheias de expressão, num fundo escuro. Ficaram ali por muito tempo. O padre notou que não havia uma cruz na igreja. Johnny disse, em voz baixa: — Espero ter uma cruz grande, muito breve, acima do altar. Eles voltaram para a casa, onde a Sra. Burnsdale tinha mandado as crianças para a cama, tinha posto mais carvão na caldeira e agora estava preparando um chá, na cozinha. — Eu nunca teria imaginado isso, de parte de Al McManus — falou o padre, escolhendo uma poltrona na sala com cuidado, respeitando as molas quebradas. — E nem assim lhe dou crédito pelo simbolismo. Já vi aqueles candelabros na casa dele muitas vezes e ele me disse que os comprou na Europa e sei que não tem ideia do que sejam. Mandou buscar aquelas velas da nossa loja, pois somos os únicos que as vendemos. Acho que tudo isso é uma mensagem misteriosa de Deus para nós. A. Sra. Burnsdale lhes levou o chá e um prato de bolo, muito prosa. A porcelana era muito delicada e bonita e o Dr. McManus a mandara do estoque ilimitado da casa dele. O Padre Krupszyk era um homem de bom gosto e examinou uma das frágeis xícaras amarelas. — Antigas, e muito lindas — comentou. A Sra. Burnsdale disse ao rabino: — Esse bolo só leva manteiga sem sal, boa e fresca, senhor, e nada de banha. Ele sorriu para ela, com brandura, e tomou uma fatia de bolo. Provou-o. — Nem minha mulher faz melhor — garantiu ele. Os dois clérigos resolveram não mencionar o tumulto da véspera a Johnny, pois viram que aquilo não significava mais nada para ele. Era evidente que ele achava que agora tudo estava ótimo. O padre e o rabino, que tinham mais experiência com os homens, não eram tão otimistas. O leão pode lhe lamber a mão hoje, pensou o padre, mas amanhã lhe arranca a cabeça. Ele tomou seu chá e levantou uma das sobrancelhas louras, conjecturando. Só esperava que Johnny tivesse alguma trégua, por algum tempo, antes de tornar a enfrentar o mundo dos homens. Johnny falou-lhes de Lon Harding e uma ideia que tinha tido. — Há uma porção de igrejas que organizam esportes e danças e vitrolas automáticas nos auditórios das paróquias. Mas as crianças têm tudo isso, nessas escolas novas. O que não recebem, em algumas de nossas escolas públicas, é uma educação plena. Em vez disso, têm integração de grupo e adaptação à vida e um pouco de ofícios mecânicos nas escolas profissionais. Mas não na sua, Padre. — Não — respondeu o padre, pensativo. — Ainda acreditamos na educação, nas artes liberais, na religião, nas línguas. Latim e humanidades. “A criança total”, dizem os educadores. Mas o cérebro e a aprendizagem disciplinada também fazem parte da “criança total”. Eles se esquecem disso. Ou então — acrescentou, severo — talvez saibam bem demais e não queiram de fato uma “criança total”. Apenas robôs. O rabino concordou. Pegou outra fatia de bolo, olhando com aprovação.

— Não andei dizendo isso aos meus fiéis, os jovens? E eles me escutaram? Não. Olhou para Johnny com seus olhos luminosos. — Até recentemente, não. Temos o Sol Klein. Ele dirigia os jovens em seu modernismo. Presidente do clube de homens. Eles têm grupos de debates sobre a “educação moderna”. É tudo uma grande tolice; não sabem de nada. Johnny, você modificou o Sol. As nossas aulas de religião estão florescendo como nunca. Foi Sol quem abriu o caminho, com os filhos dele. Temos de construir uma escola dominical maior, diz o Sol. — O rabino mastigou o bolo e a luminosidade de seus olhos se acentuou com ternura, enquanto ele olhava para Johnny. — Você fez tanto bem, meu filho. Não ouviu falar? Os rapazes e as moças chegaram à conclusão, seriamente, depois de um grupo de debate dirigido por Sol Klein, de que o rabino deles não é assim tão burro e antiquado, afinal de contas, e que as ideias eternas não foram destruídas pelo progresso moderno. Resolveram que o rabino deles tem de ter uma sinagoga maior e mais bonita e uma boa casa nova. — Sacudiu a cabeça. — Eles me disseram, não me consultaram — acrescentou, com um sorriso de carinho. — Ficaram ali em volta de mim, como crianças em volta de um pai velho, querido e sábio, que tinha muitas coisas mais importantes a tratar do que a simples construção de um novo templo, e pediram minha opinião sobre muitas coisas e pareciam um pouco envergonhados, os jovens queridos. — Ele se riu, brandamente. — “Tenho de representar o meu papel”, disse eu comigo. Sou o velho sábio nos portões; não devo ter preocupações monetárias. Estou acima dessas coisas. Eles me informaram de que os meus sermões são muito inspiradores! — Suspirou, sorrindo. — Quanto tempo será que isso vai durar? — perguntou o Padre Krupszyk. — Não seja cínico — respondeu Johnny. O padre ficou calado e depois começou a sorrir. — Os pais do jovem Dr. Tim Kennedy já foram da minha paróquia. Hoje moram em The Heights, onde o jovem padre é muito ativo e moderno, no que acha que é devido à sua igreja e escola especiais. Nada de tolices com o Padre Frederickson. Bom, ele vai envelhecer com o tempo. Sorriu para Johnny e seu rosto largo se animou. — Eu queria lhe falar sobre o Tim Kennedy. Fez uma coleta dos rapazes que eram de minha paróquia, antes de irem para The Heights. Foram 800 dólares, para mim, para a igreja. E no domingo passado, foram todos assistir à Missa Solene. O sermão foi em polonês. Eles ficaram ali, como se estivessem entendendo todas as palavras, parecendo muito virtuosos e satisfeitos consigo mesmos. E depois disseram que nunca mais se esqueceriam de mim. Portanto, está vendo, Johnny, você também me ajudou. Johnny corou. Fingiu que estava muito ocupado servindo chá aos amigos, enquanto estes sorriam para ele. — Vamos voltar ao que eu estava falando. Quero transformar o salão paroquial numa biblioteca, com mesas e boa iluminação. E com professores, que depois das aulas vão lá ajudar os garotos e garotas, usando compêndios adiantados. É uma ideia sobre a qual conversei com o doutor e o conselho. As crianças aprenderiam coisas que nunca aprendem no colégio. Uns dois professores podiam ensinar Francês ou Alemão no salão da paróquia. Outros podiam exercitar os garotos em Inglês ou Literatura Inglesa e uma boa caligrafia. Os garotos não iriam, diz o médico. Não acredito nisso. Tenho certeza de que muitos irão.

— Levantou a voz, com certa veemência. — Vamos refutar a antiga noção europeia de que um trabalhador gera filhos burros e que esses filhos só deviam aprender ofícios, pois não têm a inteligência para mais nada! Quem disse que não? O Padre Krupszyk se levantou. — Johnny, seus problemas estão apenas começando. O padre olhou para a cicatriz na têmpora de Johnny, que estava clareando. Johnny respondeu: —·Padre, o senhor recuaria de alguma batalha em que se tivesse envolvido, em nome da liberdade, Deus e a justiça? O Padre Krupszyk pensou nos anos que passara numa luta sem fim, na sua paróquia. Como era, acima de tudo, um homem honesto, ponderou sobre a pergunta de Johnny. Seu rosto largo, eslavo, ficou muito sério. Começou a falar devagar: — Sou polonês. O meu povo sempre foi amante da liberdade e religioso. Foram traídos, entregues à Rússia pelos que tinham jurado protegê-los. A luta é séria, Johnny. E agora, respondendo à sua pergunta, posso dizer na verdade que nunca recuaria, nem recuarei. Vou lutar com você, Johnny, custe o que custar. O Rabino Chortow repetiu o suspiro dele, — Sou um velho. Há muito tempo, os meus anos me tornaram um homem de paz. Isto não é hora de paz, pois a paz se tornou uma traição. Os judeus, que são um povo antigo, prezam a paz acima de tudo, a cooperação em nome da paz. Meu caro filho, eu também vou lutar com você. Ele alisou de leve a barba grande e suspirou de novo. Pensou na sua biblioteca tranquila, e a esposa idosa, sempre tão aflita pela saúde dele, muito tímida, evitando todas as discussões. Ele tinha de compreender que até mesmo os velhos tinham de se esquecer de sua idade e seu amor à paz pois os tempos eram terríveis. Os velhos tinham muito a oferecer, em sabedoria. Se, em nome de Deus, eles fossem chamados de novo, para morrer, até, então teriam de morrer e oferecer um exemplo. Para o que mais nascia o homem? — Vou precisar de uns livros para a minha biblioteca —· pediu Johnny. O rabino olhou para o rosto dele, forte e confiante, e suspirou de novo, desta vez com uma compreensão idosa. O padre disse: — Tenho um estoque de compêndios adiantados no meu porão. Amanhã os mando para você. E outros… sobre Nosso Senhor. E o Seu amor pelo mundo. — Mas o amor — disse o rabino — é tudo o que há, e que haverá. O padre era mais prático. — Talvez você possa convencer o seu Lon Harding e os amigos dele a protegeremno. Vai precisar, Johnny. Johnny considerou pueril esse comentário muito sensato. — Então, posso ter todos os livros de que preciso. Obrigado, Padre, e tenho certeza

de que Sol Klein me arranja uma porção; todo o grupo dele e o clube são assinantes dos clubes de livros e lêem muitos outros e o rabino provavelmente tem dúzias também. E vou falar com a Assistência Feminina para pedir a suas amigas professoras para nos ajudarem na biblioteca, do salão paroquial, A única coisa — acrescento, como se fosse uma coisa sem importância — é armar as estantes e arrumar mesas de leitura, boa iluminação, cadeiras e uma ou duas secretárias para os professores. Ele estava muito entusiasmado. De repente, parecia muito mais jovem. O padre e o rabino olharam para ele com compaixão. O padre falou: — Você tem inimigos formidáveis. Não vão lhe dar uma folga. O caso de ontem não foi espontâneo, sabe; foi planejado. E podem acontecer coisas piores. — A única coisa realmente má para mim seria ser expulso de minha paróquia — respondeu Johnny. — E isso não vai acontecer. Tenho muitos amigos aqui. Ora, a Assistência Feminina vai oferecer um jantar de Ação de Graças, especial, para mim e as crianças; isto é, vão nos dar um grande peru, já recheado, pronto para assar, e todos os acompanhamentos. Para poupar o trabalho da Sra. Burnsdale, disseram; assim como a Kathy, ela se destacou muito na igreja. — Johnny sorriu, pensando nos comentários da Sra. Burns- dele sobre a falta de organização da Assistência Feminina. — Mas quanto ao caso de ontem, deu tudo certo, afinal. Nosso Senhor sempre consegue isso. O padre e o rabino foram para o automóvel surrado do Padre Krupszyk e o carro partiu numa nuvem de fumaça. A euforia de Johnny continuou. Nem mesmo a chuva constante conseguia desanimá-lo. O padre estava contando ao rabino, enquanto passavam pelas ruas encharcadas, sobre um padre de quem o avô lhe falara. — Era jovem como o Johnny, Rabino. E acreditava nas pessoas, isto é, em geral. Morava numa aldeiazinha miserável, de barro… já vi algumas dessas aldeias polonesas. Resolveu que o povo não só morava como porcos, mas também pensava como porcos. Não era culpa deles, dizia ele. Ninguém procurara inspirá-los, elevá-los, e ensinar que os senhorios eram homens e podiam ver a luz da razão e da justiça e deixar de, oprimir o povo. Então o padre fundou uma escolinha, para ensinar não só às crianças, mas também aos homens e mulheres, a ler e escrever. Os senhorios não gostaram daquilo. Mas o povo era tão dedicado ao novo padre que os proprietários tinham medo de importuná-lo… muito. “O pai dele tinha sido um camponês pobre. Mas o velho padre da aldeia notara uma vocação no menino, de modo que ele foi educado para o sacerdócio. Dedicaria a vida a seu povo, disse ele. E então começou.” — Uma velha história — disse o rabino, apreensivo. O Padre Krupszyk concordou, habilmente desviando o carro da sarjeta inundada. O carro deu uma guinada. — Não posso molhar o platinado — disse. — Desculpe. Um dia desses vou tentar descobrir como é que a gente consegue dinheiro de uma paróquia para comprar um carro que não enguice toda hora e fique sempre com o platinado molhado. Ainda bem que também sou mecânico. Bem, quanto ao jovem padre polonês, quando os adultos aprenderam a ler e escrever, o padre conseguiu livros para eles, se bem que ainda seja um

mistério como ele conseguiu isso. Então eles começaram a ler e quando começaram a ler começaram a pensar. O meu avô era bom nas descrições. Parece que eu via aqueles pobres camponeses, apinhados, homens e mulheres, na sala gelada do padre, com o fogão no canto e sementes de girassol secando em cima dele, e sem dar muito calor, pois os padres devem se aquecer com o êxtase divino, e o jovem padre com a sua batina surrada lendo para eles, conversando com eles, discutindo os assuntos com eles, e, mais tarde, dandolhes chá quente em copos grossos e talvez um pão preto com gordura de porco ou carneiro; o lampião de querosene vacilando e cheirando mal, e, nas janelas despidas, a neve caindo e caindo, misturando-se com a lama até ser apenas um fluxo, e o céu da mesma cor… bem, eu via as caras grandes dos camponeses voltadas para o padre jovem e magro, os cabelos das mulheres sob os lenços e todos, homens e mulheres, de botas de feltro altas, batendo os pés para aquecê-los. O rabino estava num devaneio. Conhecia bem aquelas aldeias. — O padre — continuou o Padre Krupszyk — tinha uma voz linda, contou-me meu avô. Cantava como um anjo. E tinha uma flauta. Depois das aulas, cantava para os “filhos” dele, se bem que a maioria tivesse idade de ser pai dele, e tocava a flauta. Era uma bela flauta de prata. Ele nunca disse quem a tinha dado. Os camponeses começaram a achar que o padre era um santo, e ficaram cada vez mais agarrados a ele. Começaram a levantar as cabeças. Então alguns dos camponeses que cultivavam a terra, encorajados pelo padre, começaram a exigir que os proprietários os tratassem um pouco melhor, e que consertassem suas cabanas de sapê e lhes dessem algum dinheiro. Ah — disse o padre, sacudindo a cabeça —, esse foi um dia triste para o nosso jovem padre. — Naturalmente — concordou o rabino, com pesar. — Por mais de uma ocasião — continuou o amigo — o jovem padre chefiou delegações às casas-grandes, falando moderadamente e com delicadeza com os donos, que o deixavam chegar só até a porta. Eles tinham sua própria igreja, a uns oito quilômetros de distância, e um padre muito capaz, que por mais de uma vez exprimira suas dúvidas acerca do padre jovem. Aliás, tinha escrito com veemência ao bispo, a respeito do Padre Ignatius. O bispo respondia às cartas apaziguando-o; era um velho muito justo, e não era muito querido entre os proprietários. Também fora filho de camponês, e era meio cético quanto ao outro padre, que era filho de proprietário, e que tinha pretensões de substituir o bispo num futuro não muito distante. Só muito mais tarde é que se descobriu que fora o bispo que dera ao Padre Ignatius sua linda flauta de prata. Ela hoje está numa igreja na Polônia — disse o Padre John Kanty, pensativo — a não ser que os nazistas ou os russos a tenham roubado. “Os proprietários chegaram à conclusão de que o Padre Ignatius constituía uma ameaça. Como se livrariam dele? Uma delegação, com belas carruagens, com cavalos negros e arreios de prata, foi procurar o bispo. O bispo sabia que eles iriam. De propósito, recebeu-os na cozinha, para horror deles, e enquanto lhes falavam, ele ia despedaçando sementes de girassol, pensativo, jogando as cascas no chão de azulejos. Depois disse-lhes: ‘Vão para casa, tratem a sua gente como irmãos cristãos diante de Nosso Senhor Divino e respeitem o Padre Ignatius como um padre dedicado’. Pode imaginar o que pensaram do bispo, então!”

— Não tenho dificuldade em imaginar — respondeu o rabino. — Então, eles resolveram que tinham de agir por conta própria. Nada tão óbvio como a polícia, claro. Isso deixaria as pessoas desconfiadas e elas resistiriam. Além disso, o povo dizia que o padre estava realizando milagres. Crianças que lhe eram levadas in extremis de repente se reanimavam. Homens tuberculosos em último grau se levantavam da cama e iam logo para os campos. Mulheres, que tinham dado à luz momentos antes se sentavam, pedindo chá quente. Essas coisas aconteciam durante uma visita do Padre Ignatius, ou pouco depois, o que alarmou mais ainda os proprietários. Seria muito mais difícil desacreditar um santo do que um pobre padre jovem. — Mas os santos morrem mais frequentemente — ajuntou o rabino e de forma mais terrível. O Padre Krupszyk meneou a cabeça, sério. — Nesse ponto o meu avô ficava meio obscuro e breve. Não sabia bem o que tinha acontecido. Mas de repente apareceram homens jeitosos, que discursavam para os camponeses nos campos. O padre estava mancomunado com o diabo. Eles, os camponeses, tinham nascido numa situação humilde, ordenado por Deus; sofreriam as torturas do inferno se se rebelassem e pedissem que seus estômagos humildes fossem cheios algumas vezes por semana. O padre os estava conduzindo ao abismo, ensinandolhes a revolta contra seus senhores ordenados. Era a anarquia. — Uma história muito antiga — comentou o rabino. O Padre Krupszyk habilmente parou o carro em frente da casa do rabino. Pronto, chegamos, se bem que eu tivesse dúvidas de que conseguiríamos chegar até aqui. — O que aconteceu com o Padre Ignatius? — perguntou, bastante interessado, o Rabino Chortow. — Ah, ele foi canonizado há alguns anos — respondeu o padre. — Afinal, era santo. Construíram-lhe um santuário, e os milagres continuaram. Pelo menos, foi a última notícia que tive, antes de os nazistas ou os russos chegarem lá. O rabino olhou para o perfil forte e rombudo do padre e viu a raiva latente ali. — Naturalmente, o Padre Ignatius venceu seus inimigos e viveu até bem velho, com honra. — Não — respondeu o padre. — Sabe, os camponeses incendiaram a casa dele, uma noite, e o mataram. — Ele acelerou o motor velho do carro. — Encontraram a flauta nas ruínas. Não estava nem manchada de fuligem.

XX — Não encontro nada no processo que mostre que o Sr. Fletcher tenha negligenciado a saúde ou a educação dos seus filhos de criação — concluiu o Juiz Bridges, puxando o nariz comprido e magro, de ponta vermelha. — A não ser algumas cartas anônimas e evidentemente maldosas. Os funcionários da Sociedade de Assistência Infantil realizaram uma investigação correta e eficiente. Ele olhou para o funcionário da Imigração e Naturalização dos Estados Unidos, vindo de Filadélfia, que disse: — Não encontramos qualquer base para uma notícia de que essas crianças se tenham tornado encargos públicos, ou que estivessem prestes a se tornar assim, no momento de sua entrada neste país. Um membro da Sociedade de Assistência Infantil concordou com tudo isso, depois que o Dr. McManus lhe lançou um olhar hostil. — O Sr. Fletcher prometeu que quando seus filhos de criação chegarem ao plano do grupo etário nas escolas públicas, ele os mandará para essas escolas. Concordamos com ele de que mandá-los agora seria prejudicial a essas crianças, psicologicamente, pois teriam de frequentar as aulas com crianças muito mais moças do que elas. O tribunal estava vazio e triste, mas cheio das sombras da chuvarada lá de fora. Um fotógrafo do Press tirou a foto de Johnny. — Verifico — disse o juiz — que o Sr. Fletcher fez um seguro de vida de 15.000 dólares, para prover essas crianças no caso de sua morte, e o Dr. Francis Stevens, de Nova York, um ministro muito eminente, me enviou uma declaração de que ele fez um fundo em custódia em benefício dessas crianças. Além disso — e aí o juiz tossiu — o Dr. Alfred McManus, desta cidade, me garantiu que fez um novo testamento, deixando uma importância muito considerável para essas crianças. Elas têm muita sorte mesmo. Johnny olhou assombrado para o Dr. McManus, que não fez caso dele. Então o advogado que representava o pastor e as crianças se levantou e agradeceu ao juiz, pegou sua pasta, apertou as mãos de Johnny e do médico e saiu correndo. — Lá se vão três mil dólares — resmungou o médico, irritado. — Não me aborreça, filho. Tenho de ir para o hospital. Cale a boca. Não vou falar de testamentos com uma pessoa burra como você. Como vai indo o Jean com as muletas? Johnny sorriu para ele, ainda assombrado e confuso. — O senhor sabe como ele vai indo. Esteve conosco ontem. Ainda não consigo entender como é que vocês médicos conseguem sarar os ossos hoje em dia, com pinos e coisas assim. O escriturário estava chamando outro caso e eles saíram. — Bom, isso está liquidado — falou Johnny, vestindo a capa de chuva. — Eu não podia deixar de me preocupar. Mas afinal…

— Deus provê — disse o médico, melancólico. — É bom que Ele tenha gente como eu por aí. Gostaria de ver como é que Ele se daria se neste mundo não houvesse tantos tolos… como eu, por exemplo. Bem, eu também tenho o meu preço. Sabia que eu ia à sua casa para o jantar do Dia de Ação de Graças? Não faço isso naquela casa desde que era menino. Mais tarde, nesse mesmo dia, Johnny compareceu ao Tribunal Regional, onde lhe deram documentos preliminares para a adoção. Lá ele encontrou uma ligeira dificuldade. Uma mulherzinha morena, que ele nunca tinha visto, levantou-se, os óculos rebrilhando, e disse que o Sr. Fletcher não era casado. O juiz, com sarcasmo, chamou a atenção dela para o fato de que o estado de solteiro não prejudicava a adoção, e que o tribunal já tinha investigado esse assunto. Ele olhou para Johnny e seus olhos brilharam. — E não há garantia de que o Sr. Fletcher escape ao casamento, com o tempo. Ele me parece bem saudável. Johnny saiu para o frio e vento tenebrosos. Quando ia atravessar a rua, uma moça passou por ele, com um passo alongado, a capa de chuva reluzindo, a cabeça loura erguida com altivez. O coração de Johnny bateu com uma esperança indizível. Mas não podia ser Lorry Summerfield! Então ele ficou incrivelmente desanimado, lembrando-se de seu sonho. Chegou ao seu carro velho, mas não o ligou logo, olhando para a rua triste através do pára-brisa molhado. Por que tivera aquela esperança, o coração saltando, de que aquela moça fosse Lorry? Por que só de pensar nela ele tremia e o rosto ficava ardendo? Ela estava em Nova York, trabalhando com o irmão, o Dr. McManus lhe contara. — Ela nem olharia para mim — concluiu Johnny, em voz alta, virando a chave para ligar o motor. — Na vida dela não há lugar para mim. Essa ideia é ridícula. E, pensando bem, na minha vida também não há lugar para ela. Ele chegou em casa muito deprimido, e só encontrou alguns telefonemas e nenhum de doente, para alívio seu. Era tudo sobre assuntos relativos a reuniões e da igreja. Suspirou, sentou-se à sua secretária e ficou escutando o ruído das vozes das crianças na sala de jantar, discutindo as lições com a Srta. Coogan. Abriu a gaveta da secretária e tirou a caixa dourada de Lorry, segurando-a com força. Ela parecia irradiar um calor terno, na sua carne. A Sra. Burnsdale, dando uma espiada maternal na sala, pensou consigo que ele estava precisando se casar. Ele dava tanto a todos, pensou ela, mas ninguém lhe dava nada. A não ser carinho, claro. Mas um belo dia — e ela sabia como o tempo corria — as crianças estariam crescidas e iriam embora e ele ficaria sozinho, e as crianças teriam suas vidas. Ela parecia vê-lo, grisalho, velho e só, nessa sala muito feia. Ele ainda era jovem, mas amanhã seria de meia-idade, depois idoso, depois velho, esperando as cartas dos filhos, escutando o vento e a chuva, levantando-se para visitar os doentes, voltando para uma sala de jantar vazia, lendo sozinho, depois indo para uma cama fria. E depois, por fim, um túmulo solitário num cemitério esquecido, como tantos ministros. Impelida por essas emoções, ela entrou na sala o mais depressa possível. Os abajures estavam acesos; Johnny estava escrevendo o sermão para o Dia de Ação de Graças. A caixa dourada estava junto de sua mão. Ele levantou os olhos e sorriu para a Sra. Burnsdale, quando ela entrou tão precipitadamente. — Aconteceu alguma coisa? —· perguntou. — Estão precisando de mim?

Ela ficou ali em frente dele, as mãos nas cadeiras. — O senhor sabe, é sempre isso que pergunta! E ninguém lhe pergunta isso. Ninguém! Ele largou a caneta do exército e olhou para ela, intrigado. — Como está o seu resfriado? — perguntou ela, num tom anormalmente forte. Depois de ter saído na chuva? — Meu resfriado? — Tossiu, experimentando. — Ah, já está quase curado, — Sorriu de novo. Ela se aproximou da secretária, suas feições rombudas agitadas. — Sr. Fletcher, estou muito preocupada com o senhor. Todas as coisas que aconteceram nesta cidade, Sr. Fletcher, o senhor não acha que devia arranjar outra paróquia, noutra cidade? — Ora, foi isso que o Dr. Stevens me perguntou na carta dele, há dias. — Johnny estava achando graça. — Está preocupado comigo. — Pois eu também estou! — respondeu a Sra. Burnsdale, de repente arquejando. — Tenho medo desta cidade, Sr. Fletcher! — Pois eu não tenho — ponderou Johnny. — As pessoas são as mesmas, em toda parte. E as crianças estão criando raízes, aqui. Pietro fez amizades na igreja dele, e Kathy tem amigas das aulas de religião e a é Max já trouxe uns guris para casa. Faz modelos, com o barro. Sabe, ele vai ser escultor! Está sempre trabalhando com o barro. Fez uma cabeça do Rabino Chortow, que é linda. E o Padre John Kanty manda crianças visitarem o Jean. E o Pietro esta no coro da igreja. Eles gostam da cidade. E eu também. A Sra. Burnsdale ficou calada, mas pavor não a abandonou. — O que há? — perguntou Johnny, com brandura. — Tem medo de que aconteça mais alguma coisa? Ela sacudiu a cabeça, muda, os olhinhos implorando. Depois disse: — Não sei, Sr. Fletcher. Eu estava pensando no senhor, na cozinha, e… bem, eu o vi nesta sala, velho, sabe, e os guris lá crescidos e indo embora e o senhor sem esposa, nem ninguém. Para aflição dele, duas lágrimas começaram a rolar pelas faces dela. — Sr. Fletcher, nós não podíamos viver sem o senhor. O senhor tem de se cuidar. Não é que eu não confie em Deus. — Ela pôs o lábio inferior para fora e depois sacudiu a cabeça, num desafio. — Bem, talvez não confie mesmo, de certo modo. A gente confia em Deus e aí acontece alguma coisa horrível e a gente nem sabe por quê. A gente deve confiar Nele, mas a confiança pode ser bem difícil para a gente. Ele afagou o ombro gordo dela. Estranhamente, sua solidão estava aliviada. Ele foi para a cozinha com a Sra. Burnsdale e cheirou as panelas, com gosto. — Ah! Costeletas de porco com chucrute! E torta de limão. Nessa altura Pietro entrou na cozinha, fixou os olhos alegres sobre o ministro, com toda a severidade possível, e declarou: — Meu nome é Peter.

— Ora, é mesmo, Pietro — concordou Johnny. — Quero dizer, papai, que agora não sou mais Pietro, sou Peter. Pietro, bolas! — Ele fez um gesto de desprezo com os braços. — Não é americano. — Quem é que disse isso? — perguntou Johnny, examinando outra panela, apreciando. — Largue essa torta! — gritou a Sra. Burnsdale, batendo na mão de Pietro. Ele lambeu o suspiro dos dedos e disse: — Eu digo, papai. — Um homem chamado Petrus ou Pierre ou Pietro ainda é Peter — esclareceu Johnny. — Além disso, gosto do seu nome. Por que você há de ter um nome que não é diferente dos outros? Não quer ser diferente? Pietro olhou para a torta, com vontade; depois para a cara ameaçadora da Sra. Burnsdale e depois para o fogão, com muito interesse. Como Johnny, foi verificar as panelas cheirosas. — Não — disse. —·Por quê? Pietro agora estava inseguro. Então, depois de pensar bem, respondeu: — Está bem, Pietro. Vou ser padre, papai. Acredita? — Não — disse Johnny. Pietro riu-se. — Não. Vou ser o grande cantor. Vou ganhar muito dinheiro. — Sem dúvida — disse Johnny. — E as moças vão me adorar — concluiu Pietro, satisfeito. — Ora, onde é que esse garoto arranja todas essas ideias terríveis? — perguntou a Sra. Burnsdale, reprovando. — Ele as tem naturalmente — respondeu Johnny — Os italianos são o único povo que sabe mesmo apreciar o sexo oposto. — Já pensei em me casar com a Srta. Summerfield — disse Pietro, sério. — Mas ela é muito velha. Kathy tem cabelos como os dela. Eu acho — concluiu ele, pensando bem — que vou me casar com a Kathy. Gosto de cabelos louros. — Se você não se afastar desses biscoitos — ameaçou a Sra. Burnsdale, levantando uma concha — vai ter uma cor diferente no traseiro, mocinho. — O que é um biscoito? — perguntou Pietro, com desdém, mastigando-o com vontade. — É, vou-me casar com a Kathy. Pelos cabelos dela. Kathy, que ouvira mencionarem seu nome, entrou logo na cozinha. — O que há com os meus cabelos? — perguntou,

Pietro a examinou, com admiração. — Acabei de descobrir que você é bonitinha. Kathy lançou-lhe um olhar terrível. — Um guri do seu tamanho — disse ela, com desprezo. — Por falar nisso, papai, tenho outro nome. — Você também? — perguntou Johnny. Kathy, vendo que a Sra. Burnsdale estava lavando umas louças, maquinalmente pegou um pano de pratos, e a Sra. Burnsdale lhe lançou um olhar afetuoso. — Conheci uma menina na aula de religião. O nome dela é Charmenz. Mas nós todas a chamamos de Charm. Então, agora sou Charm. Em casa, claro. Não adianta ter duas pessoas com o mesmo nome na aula de religião; faz confusão. — É uma bobagem — respondeu a Sra. Burnsdale, severa. — Não sei o que deu em vocês, guris. Pietro quer mudar de nome e você também. Kathy teve um sobressalto. Olhou para Pietro, que estava metendo a mão, disfarçadamente, de novo no vidro de biscoitos. Ela berrou: — Largue esses biscoitos! Você come tudo, seu porco! A Sra. Burnsdale, perita nesses assuntos, logo dobrou um pano bem dobrado e bateu nas pernas de Pietro com força. Aquilo o encantou. Deu saltinhos altos pela cozinha, enfiando biscoitos na boca, enquanto a Sra. Burnsdale o perseguia. Johnny riu-se ao ver aquele fauno moreno saltando à frente da Sra. Burnsdale, não muito ágil, enquanto comia com um prazer calculado. Por fim ele deu um salto muito comprido, abriu a porta da sala de jantar e desapareceu. — Eu acho — falou Kathy, com frieza — que vou continuar a ser Kathy. Tudo o que o Pietro queira fazer é errado. Claro. — Você é uma menina tão ajuizada — respondeu a Sra. Burnsdale. Havia um espelhinho por cima da pia. Kathy examinou a sua imagem, meio vaidosa, e viu com prazer que no calor da cozinha uns cachinhos se tinham formado em suas têmporas e as faces redondas estavam agradavelmente rosadas. — Espero que não — disse ela. Johnny, agora inexplicavelmente animado, saiu para a chuva. Não havia nada como crianças! Nada! Especialmente as dele. E como tinham mudado, nessas semanas todas. Agora era raro ver aquele antigo ódio brilhando nos olhos deles, o antigo medo. Por vezes reagiam um pouco demais a certas situações, mas mesmo essas ocasiões estavam-se tornando menos frequentes. Eram bem estudiosas, aprendendo com uma espécie de avareza devoradora. Os analistas, pensou Johnny, diriam que estão, se adaptando. Só estão começando a saber que o amor nunca lhes falhará. Ele passou pela igreja, onde os imensos candelabros estavam sobre o altar, a luz de vela dissipando as trevas que se amontoavam em cada pilastra de madeira. Dos lados, havia flores frescas. Acima do altar reluzia o dourado desbotado de uma grande cruz.

Ninguém protestara, ao que Johnny soubesse. Ele pagara 25 dólares pela cruz, de segunda mão. —·Senhor — disse ele —, sei que não importa onde o homem reze, mas fico contente que Tua casa esteja clara. Cantarolando, desceu ao porão, o salão paroquial, onde havia um martelar contínuo. Estantes de livros formavam as antigas paredes caiadas; a madeira era de um tom suave, lustroso e claro, sem falhas, raro. Johnny supunha vagamente que fosse pinho, mas de fato era o melhor mogno, na cor natural. Vários homens e meninos estavam fazendo mesas. O porão tinha um forte cheiro de serragem. Entre os homens estava George Harding, pai de Lon, e entre os garotos de cabeça raspada e cara magra estava o próprio Lon. Eles cumprimentaram Johnny com uma reserva amiga, e continuaram com o trabalho. Johnny perguntou a Lon: — Como vai a nova escola? — Eles fazem a gente estudar como o diabo — respondeu Lon, sério. — Ei, desculpe a palavra. Quero dizer, não se pode vadiar. Tenho de trabalhar mesmo. — Sorriu. — Estou aprendendo muita coisa. Então seus olhos opacos olharam para o ministro com muito afeto; ele pegou o martelo e começou a martelar numa mesa. Johnny passou a mão por cima dela. Era de uma madeira mais escura do que as estantes, tão macia, tão loura e bem-feita. Era carvalho. Bom, o carvalho era melhor do que pinho, para as mesas; não lascava. Johnny tornou a olhar para as estantes, com orgulho. — O melhor pinho que já vi. Um dos garotos se engasgou e depois tossiu de repente, com movimentos convulsos dos ombros. Johnny, distraído, lhe deu um comprimido para tosse. Esperava aprontar a “escola” para depois do Natal. Havia imensas caixas de livros nos cantos da sala, sob as lâmpadas nuas, e havia outras caixas contendo lâmpadas de leitura, que Johnny comprara em segunda mão. Ele via as estantes cheias, as lâmpadas acesas, cabeças de meninos e meninas debruçadas sobre os livros, estudando, professores sentados entre eles, montes de papel branco arrumado e muitos lápis junto deles. Ele foi a uma estante de livros e passou a mão pelo acabamento acetinado. A madeira fora doada por três amigos de George Harding, que trabalhavam nas serrarias de Ben Guston. Virou-se para eles, sorrindo, e pilhou suas expressões ansiosas, antes de eles tornarem a se debruçar sobre o trabalho. — Espero que isso não lhes tenha custado demais. E não preciso lhes dizer como sou grato. A Srta. Coogan ia ajudar de noitinha, se bem que Johnny tivesse protestado. A Assistência Feminina, com uma resolução férrea, de que Johnny nada sabia, praticamente forçara três professoras idosas e aposentadas a ajudarem ali. O Dr. McManus estava pensando em Johnny de novo, bebericando o conhaque depois do jantar, na sala da casa de MacDonald Summerfield. Também estava mais irritado do que de costume. “Aquele maldito analista”, o Dr. Sommer Granger, estava presente, e estava contando, indiscretamente e com risadas superiores, casos de seus pacientes, todos conhecidos dos donos da casa. O Dr. Granger usava uma linguagem chã,

mas sua menção franca de lugares delicados da anatomia humana não ofendia a Sra. Summerfield, que sorria. Tudo na vida do homem ou da mulher, insistiu o Dr. Granger, se ligava diretamente a essas zonas delicadas, e ele provava isso com seus casos. — Pois bem, então na sua vida houve um curto circuito — comentava o Dr. McManus, frequentemente. O Dr. Granger era solteirão. Diante disso, Esther Summerfield parecia divertir-se um pouco. Embora o marido e a filha e a maior parte das amigas a considerassem uma novidade inofensiva e não muito esperta, o Dr. McManus sabia que não era nada disso. Ela é a única na casa que não é tola, comentava ele consigo. Só havia um coisa que ele não entendia em Esther: a afeição pelo marido. Naquela noite, o Dr. McManus procurou não pensar em Johnny. Disse, como já o fizera muitas vezes: — Sommer, um dia desses vou me lembrar de minha ética médica e denunciá-lo à Associação Médica por revelar os nomes de seus pacientes, e então haverá um idiota a menos na profissão. O Dr. Granger riu-se muito; era amigo íntimo do Sr. Summerfield. — Os médicos não podem falar de seus pacientes, entre si? — perguntou. — Além disso, aqui somos todos amigos, e não faladores. — Pois você é, sua solteirona danada — responder o Dr. McManus, remexendo-se na poltrona. Não era a poltrona chinesa. O tema chinês desaparecera da sala. Agora era todo industânico, coisa que o médico achava pior ainda. Esther Summerfield estava com um sari rosa-claro, debruado de dourado, com um enfeite na cabeça, “como um raio de um guru”, comentou o médico para si. Nessa noite ela falara em ioga com muita animação. Estava tornando aulas por correspondência, de alguma organização de Los Angeles. Seus olhos escuros e inclinados bailaram para o Dr. McManus. — Imagine, Al. Mais tarde vou conseguir ficar sentada num silêncio absoluto e imóvel, por horas, mal respirando, se é que vou respirar. — Por que não ensina isso ao Sommer? — perguntou o médico. O psiquiatra estavadeclarando, com escárnio, que esperava que um de seus pacientes mais desesperados se suicidasse a qualquer momento. O Dr. McManus completou: — Talvez ele pare de respirar para sempre. O Dr. Granger, ouvindo seu nome, perguntou, impaciente: — O quê? O quê? —— Eu estava pensando no dia em que terei o prazer de assinar o seu atestado de óbito — respondeu o Dr. McManus. — Estávamos falando de ioga, Esther e eu. Pelo que ouvi, acho que você devia praticar isso, também. O Dr. Granger sabia de tudo sobre ioga. Era uma autoridade sobre o assunto, segundo alegava. Pomposamente, deu uma breve dissertação, abrangendo os mistérios do hinduísmo. A Sra. Summerfield escutava, desatenta. De repente o Dr. McManus se lembrou, enquanto a voz do Dr. Granger continuava, que alguém lhe dissera que Granger tinha “algum poder” sobre Summerfield. Ele fitou o Sr. Summerfield atentamente. Sempre o considerara um homem rico, que, talvez por motivos de tédio ou algo um pouco mais

sinistro, estava querendo bancar o Maquiavel em Barryfield. Mas de repente o médico pensou perceber uma modificação na expressão e maneira de seu velho conhecido, uma mudança um tanto aflita, confusa e vagamente angustiada. Tolice, disse ele consigo. Está igual ao que sempre foi. Depois olhou bem para o Sr. Summerfield e disse consigo, assombrado, que não era uma modificação, e sim uma coisa que sempre existira ali. Agora estou sendo fantasioso, disse o médico, mentalmente, irritado. É só conversa. — Depois — continuou o Dr. Granger — temos a Gita. — Ora, cale a boca! — exclamou o Dr. McManus — Você não sabe nada sobre esse assunto. Eu sei. Passei dois anos na índia, tentando descobrir por que é que os pobresdiabos que se banham no Ganges imundo não só não poluem a água com suas doenças, mas chegam a se curar delas. Nunca descobri; é um mistério médico, até o dia de hoje. — Psicossomático — respondeu o Dr. Granger, sem se ofender. — Não estão doentes de verdade, apenas… — Nunca ouvi falar de micróbio psicossomático — concluiu o Dr. McManus. — Por falar nisso, para não mudar esse assunto fascinante, o que aconteceu com Sloan Meredith, que foi procurá-lo quando eu disse a ele que tinha de extrair a vesícula biliar? O Dr. Granger abanou a mão grande e carnuda, com desdém. — Ele parou o tratamento, contra meus conselhos, há umas seis semanas. Eu estava chegando no fundo do seu subconsciente e a mulher .dele disse que ele estava com febre de seus ditos acessos, de noite. Parece que ele e a mãe… Os olhos do médico brilharam como que sob geada. — Não interessa a mãe de Sloan. Estou lhe perguntando pelo Sloan. — Já lhe disse, Al. De repente ele parou de ir ao meu consultório. A mulher disse que ele estava começando a se sentir pior. Isso porque eu o estava sondando fundo demais. — Com o quê? Um bisturi? O Dr. Granger parou. — O que quer dizer? O Dr. McManus se mexeu na cadeira incômoda de teca, incrustada com marfim. — Bem, parece que um cálculo biliar grande que ele não pôde expelir causou uma perfuração, ontem à noite. Ele morreu na mesa de operação hoje de manhã. Não consegui salvá-lo. — Com satisfação, ele viu o médico mais moço empalidecer. — O problema dele era com os cálculos biliares, e não o subconsciente. A voz dominadora do Dr. Granger falseou. — Mas… mas… ele estava muito perturbado… — Claro que sim! Já teve uma crise de vesícula, Sommer? Não? Pois vou me lembrar de pedir algumas para você, nas minhas orações. Não há nada como uma crise biliar para fazer até mesmo um psiquiatra se arrastar pela cama gemendo e berrando como um cachorrinho ferido. Pode lhe dar uma ideia do que um cálculo psicossomático pode fazer com seus nervos e seu subconsciente!

“Sommer — continuou o velho médico, endireitando o corpo maciço e brandindo o dedo em frente do psiquiatra. — Você sabe perfeitamente que sou um cirurgião conservador; nunca aconselho uma operação a não ser que seja um caso de salvar a vida de uma pessoa. Em geral não opero nem para curar um distúrbio moderado; a pessoa pode viver com isso, com algumas aspirinas de vez em quando. E o que é um distúrbio? Não sou um desses sujeitos loucos por dinheiro que levam o paciente correndo para o hospital com um apêndice que se manifesta um pouco, pela primeira vez. Assim, quando soube que o Sloan tinha ido procurá-lo, eu lhe telefonei e contei toda a história e lhe enviei as radiografias dele. Coisa que nunca fiz, sem que me pedissem, em toda a minha vida. Você é médico também, além de um raio de analista. Sabe ler uma radiografia. No entanto, só porque o Sloan estava ganhando muito dinheiro com a fundição dele, você o aceitou, embora pudesse ver com meio olho o que ele tinha de fato.” Os outros estavam escutando com avidez. O Dr. Sommer Granger engoliu em seco várias vezes. Era um homem grande, com pouco mais de 40 anos, atlético, de movimentos rápidos, e um rosto comprido e retangular, olhos azuis apertados, cabeça calva e um nariz arrebitado absurdo. Era sempre loquaz mas não conseguiu falar nada. — Você o matou, Sommer. Ah, não o podem enforcar por isso. Eu sei. Costumavam enforcar os médicos nas épocas mais saudáveis. Na Idade Média, quando eram culpados de imperícia no exercício da profissão. Hoje não, infelizmente. Olhe, não estou dizendo que a psiquiatria não tem o seu papel. Tem, positivamente, mas deveria estar sempre sob a jurisdição atenta do médico da família; deveria apenas complementar a clínica geral, e não substituí-la. E tenho toda a certeza, pela minha experiência, de que um padre ou um ministro ou rabino saberiam trabalhar melhor nesse sentido do que vocês. Vocês se tomaram os altos sacerdotes do esoterismo; têm um jargão de ioga de vocês. E isso é perigoso… para os tolos. Vocês deviam ser obrigados a usar o chapéu pontudo e as vestes amarelas zodiacais dos feiticeiros da Idade Média. Para que as pessoas os reconhecessem pelo que são. A despeito de toda a sua preocupação, o Sr. Summerfield de repente pareceu achar graça. Esther riu-se. O Dr. Granger não recuperara a cor, apenas a pose arrogante, que raramente lhe faltava. Respondeu, então: — Ora, Al, isso já é exagero. Vocês, cirurgiões, são todos pela cirurgia. Sim, olhei as radiografias de Sloan e o seu relatório, com muita atenção. Mas conheço dezenas de casos em que as doenças da vesícula biliar têm origem psicossomática; aliás, tenho quase certeza de que todos os casos têm essa origem. Personalidades agressivas e hostis, a maioria, desconfiadas e em geral obesas, pois tentam aliviar suas tensões abusando de alimentos fortes. Em muitos casos o tratamento psiquiátrico cura suas doenças, completamente. Como é que eu havia de saber que não curaria no caso do Sloan? Ele estava indo bem; emagrecendo, menos insônia, bem-estar geral. Só quando comecei a sondar a respeito da mãe… bem, desculpe. Vou visitar Molly amanhã cedo. — Eu não iria — respondeu o Dr. McManus. — Ela foi contra você, desde o princípio. E tem três irmãos grandões, que gostavam do Sloan. Não, eu não iria, não, se fosse você. — Olhou para o psiquiatra, sombrio. Depois falou, abruptamente: — Você

acredita em Deus, Sommer? — O quê? O quê? — O psiquiatra sorriu, com indulgência. — Estou vendo que não. Sabe o que eu faria, se tivesse o poder? Não permitiria que o psiquiatra praticasse a sua arte, se se pode falar assim, se ele não estivesse convencido da existência de Deus. Muitos de vocês sentem desprezo por seus pacientes; pois não teriam, se acreditassem na existência de Deus. São perigosos. O Sr. Summerfield interveio, com suavidade, sem expressão no rosto: — Al ficou religioso, depois que instalou aquele ministro encrenqueiro na igreja dele. Ficou de miolo mole, o nosso velho Al reacionário. Ele lançou um olhar comprido ao Dr. McManus. — Não se meta com o meu ministro, Mac — respondeu o médico, com uma raiva fria. O Sr. Summerfield riu-se. — Estou dizendo que o Al ficou religioso! Se não fosse ele, aquele ministro provocador da ralé teria sido expulso desta cidade, a essa altura. — Quando foi que ele algum dia provocou a ralé? — indagou o Dr. McManus, com raiva. — Foi você que ajudou a mandar aquela turba para a casa paroquial! Ninguém lhe respondeu. — Não se meta com o meu rapaz! — gritou o Dr. McManus, ficando roxo. — Um caso curioso — disse o Dr. Granger. — Um rapaz jovem, solteiro, e aparentemente não demonstra qualquer interesse em se casar. De algum modo, adquire cinco filhos, de origens diferentes. Ele os traz para esta terra, patrocina-os, prepara-se para adotá-los. Não o conheço pessoalmente, mas ele me interessa, como psiquiatra. Já conversei com muita gente que o conhece. Muito estranho. Conversei com o velho Juiz Bridges e o chefe da. Sociedade de Assistência Infantil, divisão de adoção. Estavam inquietos, quanto a ele. — Isso é mentira — respondeu o Dr. McManus. O Dr. .Granger sacudiu a cabeça, sério. — Não é, não, Al. Mas alguém os pressionou. Talvez não tenhamos de procurar muito para saber quem foi. Pelo que eu soube, o sujeito não é muito normal. Homens normais não são apedrejados, não provocam as multidões contra si, não agitam as pessoas. — Cristo fez isso — contestou o Dr. McManus. O Dr. Granger fez um gesto indulgente. — Bom, os psiquiatras também têm uma teoria a esse respeito. Os homens normais são ajustados, equilibrados, integrados. Esse homem não é, pois do contrário não teria provocado uma tal controvérsia em Barryfield. Ele se teria instalado aqui confortavelmente, tratando de criar aquelas crianças em circunstâncias médias e pacatas e ninguém teria ouvido falar dele. Parece que as crianças são inteiramente anormais.

O Dr. McManus ficou sentado inteiramente imóvel, os olhos duros, sem piscar. — Sabe, Al — continuou o psiquiatra, complacente —, já investiguei o caso. Isso vem da minha especialização em comportamento normal e anormal. Uma das crianças teve a garganta cortada por outra criança. Crianças normais não despertam esse tipo de hostilidade. Conversei com algumas das enfermeiras do hospital, onde um dos meninos foi operado… foi você que operou, Al? Disseram que ele estava inteiramente alucinado. Falava que a mãe falecida ia visitá-lo todas as noites, e falava em francês, sob sedativos, e por vezes gritava que os soldados iam matá-lo. Delírios. Tinha um complexo de perseguição declarado; eu diria que ele estava padecendo de esquizofrenia. Por vezes falava com as enfermeiras que a mãe tinha morrido a pontapés, ou outra coisa igualmente absurda. Positivamente sofrendo de alucinações. O Dr. McManus levantou-se, o corpo atarracado e possante tremendo. — Quem o mandou investigar um ministro obscuro e pobre e os filhos, Sommer? O Dr. Granger parou, os olhos tremendo. — O que o levou, você, um psiquiatra da Filadélfia, podre de rico, a se interessar por ele? — Ora, Al. Todo mundo anda falando dele. Então, investiguei, naturalmente. — Você é um mentiroso — respondeu o Dr. McManus, com brutalidade, respirando fundo, tremendo. Virou-se para o Sr. Summerfield e disse, com sua voz esganiçada e baixa, falando com ênfase, lentamente: — Mac, estou-lhe avisando. Não se meta com o Johnny. Está me ouvindo? Não se meta com o Johnny de hoje em diante. Porque, Mac — e ele deu um passo para junto do outro —, do contrário, vai sofrer por isso. — Al, você está-me ameaçando? — perguntou o Sr. Summerfield, sinceramente preocupado. — Ora, vamos. Somos velhos amigos, se bem que não tenhamos a mesma opinião quanto a certas coisas. — Não o estou ameaçando, Mac. Apenas lhe dizendo. Um dia desses você vai saber de uma coisa sobre o Johnny. Ainda não estou disposto a usar isso contra você, no momento, mas quando souber, vai ficar desesperado, Mac. Vai fazer você rastejar, Mac. O Sr. Summerfield olhou para ele, os olhos apertados. — Olhe, Al, não gosto do seu protegido. Mas tenho pena dele. Acha que vou ter mais pena dele, quando souber a respeito dele? — Não — respondeu o Dr. McManus, e então seus olhinhos se aqueceram, com pena. — Acho que vai ter pena de si mesmo. Os outros terão pena de você. Virou-se e saiu da sala. Já estavam acostumados com suas partidas repentinas, e só Esther Summerfield o acompanhou, pegando-o pelo braço. — Vamos até a sala de almoço, Al — chamou ela, e sua voz geralmente serena estava urgente. Ele a acompanhou. Sentaram-se na única peça normal da casa, na opinião do médico, pois era toda de chintz aconchegante e móveis dourados simples. Esther, envolta em seus panos diáfanos, parecia deslocada ali. Ela olhou séria para seu velho amigo.

— Você nem sabe o que representa para mim, bem, poder ver Lorry em sua casa quando ela vem à cidade para o fim de semana, de vez em quando. Acho que eu nunca conheci Lorry direito, antes. Não, Mac nem desconfia que ela vem a Barryfield. Escreve para ela aos cuidados de Barry, em Nova York, mas ela só responde a mim. — Esther virou a cabeça, triste. — Você sabe que já tentei falar com Lorry sobre o pai, mas cada editorial que ele publica, escarnecendo do Sr. Fletcher, ou mesmo alguma pequena indireta, a vira ainda mais contra ele. Um emocionalismo de pedra, imagino que se chame a isso. De certo modo — Esther sorriu, com carinho, pensando na filha — entendo o ponto de vista dela, levando em conta tudo o que o Sr. Fletcher fez por ela. Quem havia de imaginar isso de Lorry, que há alguns meses zombava da compaixão, misericórdia e interesse pelos outros, achando tudo isso um sentimentalismo fraco? O médico deu uma risada. — Bom, ela não estaria demonstrando isso agora se não o tivesse em si, desde o princípio. Sempre foi uma idealista; foi assim que começou a diferença entre ela e o pai, há anos. Sabe, começo a pensar sobre ela e o meu rapaz, o pastor, e me pergunto se não existe, afinal, o que ele chamaria de um desígnio nas coisas humanas. Ele pôs esta cidade numa agitação, pela sua inocência, e terá uma vida decente, se for orientada. Não concordo com isso, mas estou observando! Esther olhou para as mãos morenas e compridas, pensativa. — Al, quanto a Lorry e o Sr. Fletcher. Sei que ela vem aqui para ter notícias dele por você. Você acha… ? — Romance? — O médico sorriu. — Já existe, mas ambos são burros demais para perceber. Ah, está pensando no Mac. E Mac e Lorry, e como estão envolvidos. Não sei, Esther. — Ficou calado algum tempo. — Será a minha imaginação, ou coisa assim, ou Mac estará mudando? Ele sempre foi meio distante e reservado, e nunca, que me lembre, baixava a realidade. Lorry é muito como ele, toda emotiva sob… como se diz?… a pedra branca. Mas ela também tem bom senso. Agora, o Mac… parece-me que está mais longe da realidade do que nunca. Distraído. Olhando para a gente, às vezes, como se fosse cego, surdo e confuso. Tem sobressaltos, quando a gente o chama pelo nome. Estarei imaginando coisas? Esther olhou para a parede e seu rosto ficou tenso, aflito. — Não é sua imaginação. Lembra-se de quando MacDonald conheceu Sommer Granger? Foi em Filadélfia, sabe, e três dias depois convenceu-o a abrir um consultório em Barryfield, um dia por semana. E… nunca achei essa ligação saudável. Há uma morbidez em homens como Sommer e ele despertou a morbidez em MacDonald, coisa que eu nem sabia que ele tivesse. Foi então que começaram os problemas com Lorry e o pai; considero Sommer culpado disso. É uma coisa que não fica bem clara; não posso precisar o que é, mas existe. O médico franziu a testa e depois meneou a cabeça. — Sabe, quase todos os médicos com uma clínica antiga, que adquiriram uma percepção da natureza humana, e como esta funciona no corpo, desconfiam dos psiquiatras. Os médicos conhecem a medicina psicossomática desde o tempo de

Hipócrates, e mesmo antes dele, e levam tudo isso em consideração. Aí aparecem os analistas, pensando que estão com uma ideia nova e maravilhosa, e só os jovens diplomados em Medicina ou os médicos que não têm confiança em si é que se interessam por isso. Muitas vezes escuto o jargão deles. O pior é que está entrando no vocabulário dos tolos e causando muitos malefícios. Quando chegar à política, então Deus nos acuda! — Jamais conheci um psiquiatra que não tivesse algum problema mental ou emocional. Pode ser uma ou duas ou um milhão de coisas; as pessoas sadias também têm suas esquisitices, mas não dão importância a elas. Os psiquiatras não sabem lidar com elas; têm seus pacientes, e “projetam”, como dizem, seus próprios terrores e culpas e sofrimentos secretos nos pacientes. Ou, pior ainda, têm grande afinidade com pacientes que suportam os horrores deles, médicos. Então, há uma troca entre eles, como o pinguepongue, ou cada qual mergulhando na psique do outro, procurando alívio. Claro, de vez em quando um ou ambos ficam loucos. Esther levantou os olhos, com um medo súbito. — É, tenho certeza de que tem razão! MacDonald está piorando a olhos vistos. Está… mais depressa… agora. Você sabe que ele nunca foi a favor de todo esse radicalismo até conhecer o Sommer. Foi Sommer quem o levou a isso; Sommer dirige o que ele faz com os jornais! Como é que sei? Não tenho provas concretas, mas há sempre alguma coisa perversa e provocadora nos editoriais dele, depois de ter uma sessão com Sommer. Não, nenhum dos dois é comunista. Sommer é oportunista e MacDonald acha que é Deus. Ela se levantou, no seu medo. — Al, MacDonald nunca fala da mãe dele. Você a conheceu? — Ah, conheci, sim. Uma moça ótima, Esther. Garota saudável, espirituosa. Achava o pai de Mac um tolo pomposo e pretensioso, mas com carinho. Morreu quando Mac tinha seus 13 anos, eu acho. Já tinham ido embora daqui. — O médico fechou a cara, concentrando-se. — Foi um acidente. Eles tinham acabado de comprar uma casa grande em Filadélfia, e Evelyn estava ajudando os empregados a aprontarem a casa. Isso foi há muito tempo. Ela caiu do terceiro andar, no mármore do térreo. Veio nos jornais. Disseram que ela estava debruçada no corrimão, espanando o grande lustre que eles tinham importado, e perdeu o equilíbrio. O velho médico se levantou de repente e pegou o braço de Esther. Ela olhou para ele, meio apavorada. — O que é? — perguntou ele, a voz abafada. Ela respondeu, baixinho: — Não sei. É só que… bem, há muito tempo que MacDonald vem falando da mãe, quando está dormindo, Acho que ele a odiava. — Esther! — Não vá inventar coisas! Pare com isso, está ouvindo? Pare! Ela sussurrou: — Al, um dia ouvi MacDonald e Sommer conversando sobre a Sra. Summerfield.

Estavam no gabinete de MacDonald. Só peguei uma palavra: “culpa”. Al, estou com medo. O médico tentou sorrir. — Sei o que o Granger estava querendo fazer. Estava querendo convencer Mac de que ele se sentia culpado por ter odiado a mãe e talvez desejar que ela morresse ou coisa assim, e então aconteceu o acidente e ele ficou com aquilo na cabeça, e a mente dele ainda não amadureceu de verdade, achando que o seu desejo para com a mãe tinha alguma coisa a ver com a morte dela. Eu queria saber — acrescentou — até que ponto Sommer detesta a mãe dele. Esther suspirou. — Francamente, acho que o mundo inteiro está perdendo o juízo coletivamente. Ou foi a guerra que causou isso ou isso causou a guerra. Por vezes tenho pesadelos, e fico pensando como será o mundo quando os governos ficarem loucos… como o governo da Rússia. O que acontecerá com nós outros? — Ora, então vão arranjar uma porção de guerras. E quando encontrarem grupos de pessoas com juízo reunidas, eles as assassinam. Sempre fizeram isso. Mas, de algum modo, algumas pessoas com juízo conseguiram sobreviver. Eles foram juntos para a porta fechada. — Al, o seu ministro está correndo perigo, e os filhos dele também. MacDonald nunca vai deixá-lo em paz. Ele parece e age como um demente, quando se menciona o nome do pastor. MacDonald já arruinou outros homens, sabe. Quem vai proteger o seu ministro? — Ora — disse o médico com um sorriso sombrio —, é Deus. É o que diz o pastor. Espero que esteja certo.

XXI As crianças ouviram com o maior interesse a história que Johnny contou sobre o Dia de Ação de Graças. Mas depois que ele terminou, ficaram caladas, perplexas. Aquela não era bem a reação que Johnny esperara. Ele comprara para elas um livro grande sobre o assunto, cheio de ilustrações em cores, de índios, colonos puritanos, neve, perus, choças de índios e cabanas de madeira. Jean o segurou no colo, puxando o lábio claro, pensativo. As outras crianças se juntaram em volta da cadeira dele, para ver as figuras passarem, devagar. — Então — perguntou Johnny, sem entender —, não é uma história linda? — Acho que os índios foram estúpidos — respondeu Jean. — Estúpidos? — Ah, papai, talvez não estúpidos. — Jean lhe lançou aquele seu sorriso sabido e velho. — Eram como o senhor, talvez? Perdoaram os homens que lhes fizeram mal, foi? Os homens brancos vieram para esta terra, a terra desses índios, e derrubaram as florestas para construir as casas deles, na terra dos índios, e obrigaram os índios a ajudarem, querendo ou não, e, mesmo que o senhor não tenha dito isso, acho que eles pensavam que os índios não eram bons como eles. Não é isso? Andei lendo livros que a Srta. Coogan me traz sobre as guerras dos índios e estive pensando, e não acho o homem branco… heróico… é essa a palavra? Acho-o muito mau e sempre muito mau e muito pior do jeito que roubou a terra dos índios. E isso não bastou para o branco, toda a terra, montanhas, lagos e peixes, e caça. Ele teve de fazer escravos dos índios e matá-los, quando quiseram conservar a terra que Nosso Senhor deu a eles. — Nisso você tem razão — respondeu Johnny, pensando na índia e China e todas as terras do Oriente explorado, oprimido, onde o branco tinha instalado suas colônias e onde tratava os nativos como menos do que seres humanos. Havia alguma coisa fervilhando na Ásia, no momento, alguma coisa explosiva e terrível, e muito sinistra. Jean suspirou. Passou o dedo magro de leve pela figura nobre de um chefe indígena, oferecendo humildemente uma cesta de frutas a um puritano muito altivo e sua esposa severa. — Veja — apontou Jean. — O chefe dá o fruto de sua terra a um homem que devia estar de joelhos para recebê-lo, pois é um ladrão, e devia implorar perdão. O chefe deixou que ele guardasse a terra que ele roubou ou tomou pelo sangue, e perdoou-o. — Ele é muito bonito — disse Kathy. — A pele dele é mais bonita do que a do puritano. Ele parece um pássaro. O puritano é muito feio. — Por que os índios não expulsaram os brancos que tomaram as terras deles? — perguntou Pietro. Johnny respondeu, severo: — O branco tinha armas. Sempre tem. E agora tem a bomba atômica, e isso o torna

ainda mais superior. Max estava muito sério. — Quem disse ao branco que ele é melhor? — perguntou, com sua voz grave e insegura. — Foi ele mesmo — respondeu Johnny. Já estava quase chegando à conclusão de que sua história de Dia de Ação de Graças fora um fracasso ou que, pelo menos, tinha graves falhas. — Não se pode aprofundar muito as coisas — completou, sem muita convicção. Pietro lhe lançou um de seus sorrisos sabidos. —·Por quê? Por que, na verdade?, perguntou-se Johnny. — Bem, em todo caso — disse — imagino que devamos agradecer a Deus por nos permitir ficar aqui, na terra que roubamos dos índios. É uma terra linda. Kathy estava com um ar complacente. — A Srta. Coogan diz que os puritanos não gostavam das pessoas que não acreditavam no que eles acreditavam. Obrigaram os outros a largarem ás colônias e outros lugares quando esses homens queriam adorar a Deus do jeito de Jean e Pietro. Os puritanos mandaram-nos lá para o frio e o mato. Os puritanos — acrescentou Kathy — foram homens muito maus e não gosto nada deles e acho que nem gosto do Dia de Ação de Graças deles. Pietro tinha adquirido um bom vocabulário com as crianças de suas aulas de catecismo. — É uma tapeação. Johnny estava com Emilie no colo, alisando-lhe os cachos compridos enquanto ela cochilava, satisfeita, Olhou para as crianças triunfantes; seus olhos estavam meio acusadores, como se ele lhes tivesse oferecido alguma coisa falsa. Não tinha bem certeza de que não tinha feito isso. Disse então: — Bom, mas isso se tornou uma história diferente agora, na nossa pátria. Agradecemos a Deus por Ele ter tido misericórdia de nós, e por nos ter conservado… bem, seguros direi?… e por termos amigos e famílias que nos amam e comida para comer. É uma Ação de Graças geral, a Deus, — Só uma vez por ano? — perguntou Pietro, com uma humildade fingida. — Devemos agradecer a Deus só uma vez por ano? Ele tem de se contentar com isso? — Ora, vamos, garotos — falou Johnny, com certa severidade. — Vocês sabem que não é isso que quero dizer. Não agradecemos a Deus por toda refeição, nessa mesa mesmo? E quantas vezes podemos, na igreja e antes de dormir? Não podemos ter um dia especial para dar graças, também? Há alguma lei contra isso? Olhem para nós. Cá estamos, numa sala de jantar aquecida, depois de um bom jantar e nós nos amamos e vocês sabem o quanto amo vocês e lá está a Sra. Burnsdale na cozinha e camas lá em cima e calor e vocês têm roupas boas e muitas outras coisas. Não podemos ter uma ocasião especial mesmo para agradecer a Nosso Senhor num dia muito especial, sem toda essa

discussão? Vocês guris discutem por tudo mesmo. Não sei onde aprenderam isso. — OK — disse Pietro, indo para a cadeira de Johnny e dando-lhe um beijo carinhoso. — Temos um dia especial para agradecer a Deus. Se isso agrada ao papai. — Agradar a mim não tem nada a ver com isso — respondeu Johnny, em desalento. E continuou, num tom de reprovação: — Não sei bem se o Padre John Kanty está agindo certo, Pietro, deixando você ser sacristão dele. Você não tem a atitude correta. Pietro, teatral, dobrou as mãos, girou os olhos para cima e falou, com humildade: — OK, OK, tenho a atitude correta. Kathy correu em auxílio de Johnny, do seu jeito eficiente. — Pietro, está na sua vez de enxugar a louça, portanto vá para a cozinha. Max, leve embora os pratos da torta e todos os talheres. Andem, seus preguiçosos. Max e Pietro obedeciam a Kathy como nem sempre obedeciam à Sra. Burnsdale. Muitas vezes eram rebeldes e impacientes, e barulhentos com suas exigências e protestos. Johnny era profundamente grato por isso. Sentia uma alegria íntima especial quando Max reclamava por ter um quinhão muito grande nos serviços domésticos; por vezes Max chegava a bater uma porta e sair emburrado. A cada dia que passava as crianças estavam ficando mais normais e mais como crianças. Jean, mais velho, mais sábio e com uma memória mais longa, mantinha demais a sua reserva e pensava demais. Só ficaram na sala de jantar Jean, Johnny e a menina dormindo. Johnny disse, com brandura: — Jean, meu filho, às vezes não é muito bom fazer muitas perguntas em frente dos menores. Além disso, muitas dessas perguntas não têm resposta. Está entendendo? Jean pensou naquilo. Olhou para Johnny com seus olhos claros, sempre tão inescrutáveis, e no entanto por vezes ternos, como agora. — Às vezes é melhor fazer coisas, como a Kathy? — Bem, sim — respondeu Johnny. Pensou em Martha, que “se afadigava na lida da casa”. Ele muitas vezes achava que a pobre Martha não tinha sido suficientemente apreciada pelo clero. Jean dobrou as mãos com aquela sua quietude estranha, pousando-as no livro. Examinou Johnny por alguns segundos e seu rosto era de novo o de um homem que conheceu dor demais e tristezas demais. No entanto, era um rosto parado, sério e pensativo. Não era o rosto do “menino lobo” selvagem de um ano atrás. Johnny ficou esperando. Jean disse, baixinho: — Muitas vezes sonho com a estátua que minha mãe me mandou. Muitas vezes sonho com Nossa Senhora, de quem é a imagem. É imagem que se diz, não é? Vê como já sei falar o inglês direito. — Sorriu. — É notável mesmo. Vocês guris passam o tempo todo estudando. — Gosto muito da Senhora. A Srta. Coogan me traz livros sobre ela. Deus sabia que era Deus, mas Maria sabia que Ele era o bebê dela, filho dela. Talvez ela pensasse mais

Nele assim do que pensava Nele como Deus. Isso é coisa de mãe? — É — respondeu Johnny. — É coisa de todas as mães, eu acho. Jean repetiu: — Gosto muito dela. Penso nela quando o Dr. McManus manda o carro buscar a mim e ao Pietro, aos domingos, para irmos à missa. E assim, na missa, penso em Nossa Senhora. — Ficou algum tempo calado. — Quero ser padre. Já falei com o Padre John Kanty. Ele acha que tenho mais de 12 anos, mas eu não sei, nem tenho data de nascimento, a não ser o aniversário que o senhor me deu quando voltei do hospital. Johnny tinha dado aniversários a todas as crianças, para dar a cada uma um dia seu, e aumentar as festas. — Não creio que você tenha mais de 12 anos, Jean. Mas você estava falando em ser padre. O que o Padre Kanty diz a esse respeito? — Ele acha que tenho vocação. Papai, o senhor também acha? Johnny ficou calado. Olhou nos olhos de Jean, para as mãos paradas. Depois disse: — Acho, sim. — Não tem pena? — Não — respondeu Johnny, muito comovido. — Fico muito feliz. Se você tiver certeza, Jean. — Tenho certeza. — E então pareceu mesmo um menino de novo e seu rosto magro se iluminou, com malícia. — E então, amanhã vai ser nosso Dia de Ação de Graças e não vamos fazer muitas perguntas, papai. Johnny levou Emilie para a cama. Parecia-lhe que ela estava engordando um pouco e havia um pouco de cor no rostinho translúcido. O Dia de Ação de Graças, depois de toda a chuva, foi um dia forjado em ouro e destilado da luz. As montanhas douradas se inclinavam contra o céu brilhante, de tom ametista claro, e o vale em que ficava Barryfield, já não envolto no smog, aninhava a luz numa clareza pura. Nas ruas havia um ruído radioso e ressonante, criado pelas vozes das crianças, passos, buzinas e o barulho feito pelos carros. Mais cedo houvera uma geada forte. Seu brilho de lantejoulas se refletia das beiras das janelas, dos ramos cinzentos das árvores, de cada haste de grama, dos lados dos prédios. Era mesmo um dia digno de graças. Johnny não esperara que muita gente comparecesse seu ofício da manhã, pois havia muitos perus a serem recheados, muitas tortas de última hora a assar, muitas casas a receberem um último polimento e espanação. Mas, com prazer, viu que todos os bancos estavam ocupados ao máximo. Dirigiu-se para o altar, animado, no brilho e nas ondas da luz de velas. Sorriu para seus fiéis e eles lhe retribuíram o sorriso, não decorosamente mas com amizade. — A pessoa que observa a Ação de Graças, ou faz menção disso em apenas um dia por ano, não está dando graças, de todo — disse ele. A igreja estava fria, mas as pessoas escutavam a voz profunda e sonora de Johnny com uma atenção sincera. O Dr. McManus

estava presente, encolhido no sobretudo marrom mais volumoso e desarrumado que Johnny já vira; era impossível deixar de evitar o seu olhar fixo e insondável, ali do seu lugar costumeiro no primeiro banco. Por vezes esse olhar deixava Johnny desconcertado, e isso ocorreu nesse dia, enquanto ele pregava o sermão. Olhou para além do Dr. McManus. “Os judeus, na Páscoa deles — recomeçou —, declaram que Deus, tendo-os livrado do Egito, só isso já seria motivo para dar graças. Tendo Ele salvo os judeus do Egito e feito passar pelo Mar Vermelho em segurança, só isso já teria sido mais do que suficiente para merecer a gratidão reverente deles. Se Ele os tivesse salvo do Egito e feito atravessar o Mar Vermelho e dado maná no deserto, isso teria sido mais do que suficiente para que eles O louvassem e adorassem. A tudo isso, Ele acrescentara muito mais, sem ser solicitado, e por Sua mão, que nunca se esvazia de Seu amor. “E eu lhes digo — continuou Johnny, a voz aumentando, com júbilo — que se Deus nos tivesse permitido viver apenas um dia, para saber que Ele existe, e nos tivesse permitido ver uma alvorada ou um pôr-do-sol, isso teria sido mais do que suficiente. Se, além disso, Ele nos concedeu apenas uma hora de amor e de ser amado, como Ele nos abençoou! “Mas, com Sua bondade infinita, Ele nos deu milhares de dias para sabermos que Ele existe e para ver os nascentes e ocasos, e amarmos e sermos amados. Portanto, agora, com efeito, devemos dizer: ‘É suficiente, é mais do que suficiente, é um tesouro que transborda! Não há necessidade de mais nada’. “Mas Ele nos deu mais ainda. Deu-nos uma eternidade de beleza, amor e conhecimento Dele, não por uma hora, um dia, um ano ou mil anos. Mas para sempre. Não pelo nosso mérito, mas pelo Dele. Mas isso ainda não bastou, no amor que Deus nos deu. Tinha de nos dar o máximo. Teve de andar entre nós como homem, a fim de nos mostrar o caminho, dentro de nossa agonia, trevas e terror, feitos por nós… o caminho para Ele. Teve de morrer por nós e erguer a Sua cruz como uma luz deslumbrante sobre os montes negros de nossos pecados. “Não pelo nosso mérito — acrescentou Johnny, baixando a voz, numa meditação profunda — mas só pelo Seu mérito muito abençoado, só pelo Seu amor, que nós não merecemos e nunca poderemos merecer. Por esse amor de Deus por nós, demos graças. Tudo o mais é como nada, comparado com isso, pois contém tudo o que temos, e todas as dádivas cumuladas sobre nós. Não é possível agradecer a Deus devidamente por essas alegrias estupendas. Mas podemos tentar.” Depois do ofício, as portas da igreja foram abertas de par em par e a muitos pareceu que viam o sol pela primeira vez, em anos. Olharam para o céu, levantando os olhos cansados, presos à terra, os corações fatigados, a fé trôpega, as esperanças desbotadas. Já basta, disseram consigo, muitos dos que eram de meia-idade e estavam exaustos, que eu possa ver as montanhas hoje, as montanhas que sempre estiveram aí mas que eu não via há muito tempo. Os mais jovens se apressaram para casa, dizendo consigo: basta eu ter uma casinha quente e os filhos esperando e um peru no forno. E todos se disseram: é mais do que suficiente saber que Deus me ama e cuida de mim. — Então — perguntou Johnny, mais tarde —, como foi o sermão? Os olhos da Sra. Burnsdale estavam avermelhados.

— Lindo — respondeu. — E tão curto, também. Johnny deu uma gargalhada. — É essa a sua avaliação de um sermão? — perguntou. — Ora, o senhor sabe que não — respondeu ela, zangada. — Sabe, Sr. Fletcher, o senhor é bom demais para esta cidade e esta igreja. Devia ter uma daquelas catedrais que há em Nova York, em Riverside Drive. com que tocam hinos, bem no Hudson. SÍTIOS

— Perto do túmulo de Grant — confirmou Johnny. Olhou para o forno. — Como vai indo o peru? — A cozinha estava cheia de aromas divinos. A Sra. Burnsdale, com uma ostentação tranquila, abriu a porta do forno e Johnny viu, com prazer, um peru fervilhando com uma pátina úmida de manteiga dourada. — Ah — concluiu o jovem ministro —·sabe, até isso seria suficiente. Ele olhou feliz para o tabuleiro de tortas de abóbora e outras iguarias, para as batatas descascadas, à espera, o molho de uva-do-monte. — Pensar que estou tendo um almoço de Ação de Graças na minha própria casa. E com a minha família. É uma coisa que faz a gente pensar. Ele e as crianças tiveram licença para comer um sanduíche com leite, na sala de jantar. Pietro funcionara de sacristão pela primeira vez, naquela manhã. Estava cheio de novidades fascinantes e explicações. Falava com autoridade. Johnny o interrompeu: — Ouvindo você falar, até parece que você mesmo é quem instruiu o Padre Kanty. Foi você mesmo que disse a ele onde ficar e o que dizer? Pietro riu-se. Kathy falou: — Ele conta tanta história. Jean estava quase desfazendo de Pietro, pois também estivera na missa, mas pensou que isso não era bondade, da parte de um futuro padre. Em vez disso, explicou: — Pietro saiu-se muito bem. Nada perfeito, claro, mas bem. Só tropeçou uma ou duas vezes, e se atrasou, só uma ou duas vezes. Mas afinal, é novato. — Sorriu para Pietro. — Quando eu for padre, você pode ser meu sacristão. — Quando eu for um grande cantor, mando uma entrada para você — respondeu Pietro, condescendente. — Já vi figuras da Metropolitan Opera. Tem um balcão alto. Você vai gostar de ficar lá em cima. Max contou do ofício de Ação de Graças na sinagoga: — Tanta gente. O rabino ficou contente. Levaram cadeiras de metal para se sentar e em cima também estava cheio. Daqui a pouco vamos ter uma sinagoga muito grande. O rabino falou sobre esse assunto e disse que devíamos dar graças. O Dr. Klein mandou lembranças a todos nós. — Ninguém — disse Kathy — fala como o papai. As pessoas estavam enxugando os olhos. — Ela sorriu para ele, com amor. — Gosto do papai — falou a pequenina Emilie, aninhando a cabeça no braço de Johnny. Os grandes olhos azuis brilharam para ele e ele sentiu aquela antiga dor no

coração. Mas certamente, ela estava muito melhor. Tinha um pouco de cor nas maçãs do rosto. Ele estava com medo de rezar. Evitou tocar no rosto dela, pois receava que a cor fosse de febre. Todos saíram para olhar suas árvores. Também olharam para as grandes montanhas roxas e o céu fulgurante. Johnny estava cheio de um contentamento intenso. Não se lembrava de ter sentido tanta felicidade. Se ao menos Lorry estivesse ali, tudo estaria perfeito. De repente, em sua cabeça, os olhos dela apareceram muito vividos. Ele suspirou e se propôs a esquecer. Às 14h45 chegou o Dr. McManus, emburrado como sempre. As crianças o rodearam, enquanto ele fingia que as repelia. Tinha levado uma grande caixa de bombons, com formas de perus e abóboras. Os guris ficaram fascinados. Ele foi para a cozinha, levantando a caixa bem acima da cabeça, enquanto as crianças estendiam as mãos para ela. Deu a caixa à Sra. Burnsdale, que a colocou numa prateleira alta. — Só depois do almoço — recomendou ele. Também olhou para o peru e as tortas, satisfeito. As crianças, decepcionadas, saíram da cozinha. O médico encostou-se na geladeira e sorriu para a Sra. Burnsdale, com tolerância. A Sra. Burnsdale recomendou: — Não toque nessas tortas! O doutor mastigou uma, feliz. — Feita em casa. — Olhou para a Sra. Burnsdale, que usava um vestido preto muito arrumado, com gola e punhos brancos, redondos. Johnny lhe dera o broche de opala, modesto, que estava pregado no vestido, no aniversário dela, em outubro. Era incrustado em prata. Ela estava com o seu melhor modelador e o corpo roliço tinha curvas cheias e graciosas. Os cabelos grisalhos, bem penteados, tinham reflexos prateados e o rosto brilhava com um colorido natural. — Sabe — perguntou o médico — que é uma mulher de aspecto muito agradável, Sra. Burnsdale? Que idade tem, 57? Eu diria que está cinco anos mais moça do que quando veio para cá. O clima deve lhe fazer bem. — Olhou para a travessa de tortas e depois pôs as mãos nos bolsos. — A melhor cozinheira que conheço. Não pensaria em se casar comigo, não é? A Sra. Burnsdale deu uma gargalhada. — Bem, me peça quando o Sr. Fletcher se casar e os guris crescerem! Doutor, o senhor é um gaiato! — Não está atualizada na gíria moderna — respondeu o médico. — “Gaiato” é antigo. Estive aprendendo gíria com Pietro e Lon Harding e a turma dele, de jovens delinquentes, li interessante. Acho que diriam que essas tortas são frenéticas, ou coisa assim. Então, tenho de esperar até que o Johnny se case, é? Então, já serei um velho caduco e você só se casará comigo pelo meu dinheiro. E se casar agora, terei toda a minha juventude para lhe dar. Os olhos da Sra. Burnsdale estavam brilhando; um viço juvenil cobria seu rosto úmido. Ela respondeu:

— Isso me faz lembrar. Tenho outra lista. — Hoje não — respondeu o médico, fugindo. O almoço foi um grande sucesso. Johnny olhou para as carinhas jovens em volta dele, para a Sra. Burnsdale, para o médico e se assombrou que Deus tivesse sido tão excessivamente bom para ele, levando-o para aquela cidade, que estava precisando dele e que ele agora amava e em que os filhos estavam tentando enfiar suas raízes frágeis e danificadas. — Hoje de manhã recebi um telefonema do Dr. Stevens — comentou ele, ao destruir uma coxa do peru — da Flórida. Foi atacado por algum vírus e está lá, se restabelecendo. Já está velho e acho que está cansado. — E quem não estaria, neste mundo? — perguntou o Dr. McManus, pensativo, olhando para o recheio de castanhas. — Obrigado, aceito — disse à Sra. Burnsdale, enquanto ela raspava mais do recheio quente, aromático. — Como assim, “velho”? Não é muito mais velho do que eu, e não acho que eu esteja velho. — O senhor nunca foi ministro — respondeu Johnny. O Dr. McManus lançou um olhar penetrante ao rapaz. Seria sua imaginação ou no rosto de Johnny haveria mesmo rugas mais fundas, mais velhas? Johnny continuou: — Sei que é uma responsabilidade terrível ser médico e ter de cuidar dos corpos dos pacientes e pensar se está fazendo o que é certo. Mas ser clérigo é uma responsabilidade maior ainda, pois temos de tratar e cuidar das almas imortais dos homens. O senhor sabe como pode ferir eternamente, se cometer um erro, se descuidar, tiver dúvidas ou se tornar maquinal em seus tratamentos. O Padre Kanty me disse que a intimidade é poço em que qualquer clérigo pode cair, para prejuízo, terrível seu e de sua gente. A mensagem, embora não mude nunca e seja fixa na eternidade, no entanto é sempre nova, viva, nascida a cada instante, e nunca pode ser impedida pela pressa, pela suposição do certo. — Você me faz lembrar Sísifo — falou o médico, de coração duro. — Todo dia tenta empurrar a pedra imensa de sua mensagem até ao alto do morro, suando e sangrando nas suas consciências ternas, e cada dia lá está ela de volta à base e as pessoas passando despreocupadas em cima do morro. Pelo menos quando extraio uma vesícula biliar, ela fica fora e quando conserto uma perna, está consertada, e pronto. Se eu tivesse de repetir a mesma operação nas mesmas pessoas todo dia… bem, acho que pensaria que tinha chegado ao inferno ou teria um pesadelo perpétuo. Tornou a olhar para o recheio na travessa mas a Sra. Burnsdale sacudiu a cabeça. Ele resmungou. — Um dia desses — respondeu Johnny — vamos conseguir levar a pedra até o alto. Um rebanho, um pastor. Pietro, você sabe que não se chupam os dedos. — Não? — perguntou o garoto levado. — É… aprecia. — Apreço — falou Johnny, distraído. Parou e olhou para o prato. — A Srta. Summerfield veio passar o Dia de Ação de Graças em casa, doutor? — Não. Não tenho tido notícias dela — mentiu o médico, com calma. — Por que

esse interesse? — Bem afinal, eu a conheço, ela foi muito boa… fez uma coisa tão maravilhosa… as crianças a adoravam. — Johnny corou levemente. — Ah — exclamou o médico, habilmente pondo mais recheio no prato, enquanto a Sra. Burnsdale estava dando atenção a Pietro. — São as crianças! Por falar nisso, o Pietro está com a razão. Na Itália, onde as pessoas são civilizadas, considera-se um elogio à cozinheira lamber um ou dois dedos, delicadamente. Isso não quer dizer a mão inteira — falou, dirigindo o olhar para Pietro. — O que é esse futebol!? — perguntou Max, que se apaixonara pelo rádio grande e bonito que o médico tinha dado à família, semanas antes. — É muito empolgante, correria e chutes. — É um jogo — respondeu Johnny, com entusiasmo. — Eu já fui zagueiro. Kathy assumiu um ar distante e superior, mas os três meninos escutavam com uma atenção séria. Max, no entanto, tinha uma leve dúvida. — Mas as pessoas que assistem, e os homens que jogam… não é uma perda de tempo? — Em absoluto — respondeu Johnny, meio irritado. — Lembre-se, na vida há muito lugar para a alegria, risos e prazer, Max, bem como para estudos e orações. Além disso, Deus quer que apreciemos o mundo Dele. — Ele logo se arrependeu, pois a fisionomia de Max se tornara de novo confusa e um pouco perdida. — Aprecie as coisas, filho — falou Johnny, com mais brandura. — Você está aprendendo a brincar, mas precisa aprender mais um pouco. Vou comprar uma bola de futebol e ensinar vocês três a jogar. Por falar nisso, Kathy — disse ele, notando a expressão complacente da menina —, ouvi dizer que você está se dando bem no time de bola de suas aulas dominicais. Também soube que você inventou umas coisas muito engraçadas sobre regras novas, que não estão no livro. Você é uma tirana, Kathy. — Eu melhoro as coisas — respondeu Kathy, com um ar superior, pegando outra tortinha. — Não está melhorando o seu físico com toda essa comilança — repreendeu-a a Sra. Burnsdale. — Depois, a gente tem de obedecer às regras do jogo. Lembre-se disso, moça. Até Emilie estava comendo bem. Quando seu olhar encontrava o de alguém, lançava o seu sorriso radioso. Mas o médico a examinou com atenção e voltou a seus pensamentos melancólicos. A Sra. Burnsdale se levantou depressa. —· Se estão pensando que vou lavar toda essa louça sozinha, estão enganados, posso lhes dizer. Vocês, guris, só sabem é falar. Então? — O tipo franco — comentou o Dr. McManus. Kathy se levantou de um salto, com um suspiro de satisfação. Pietro e Max se levantaram com menos vontade.

— Lavar louça é coisa de mulher — disse Pietro. — Quem foi que lhe disse isso? — perguntou Kathy. — Você tem umas ideias bem esquisitas. Você comeu nos pratos, não foi? — O dever do homem é rezar, o da mulher é trabalhar — respondeu Max, sem grandes esperanças. — Fora — disse-lhe Kathy, e a Jean: — Vai querer bancar o adulto, de novo? Pode ficar sentado na cozinha e raspar e enxugar, também. Ela deu a Jean suas duas bengalas, com um ar duro, e o ajudou a ir para a cozinha. — Coitado do homem que se casar com essa garota. Nunca ouviu falar em igualdade de direitos, mas já os está inventando — comentou o médico. Emilie foi levada para cima, para sua sesta. Johnny ficou ali ao lado da cama. Ela apertou bem a mão dele e olhou para ele com eloquência, pois não tinha palavras para lhe dizer do seu amor. Johnny se debruçou sobre ela e a beijou de leve; rezou e de novo sentiu aquela misteriosa falta de resposta. Desceu para ficar com o médico na sala, e as rugas de seu rosto pareceram mais marcadas. — Deixe para lá o seu cachimbo — falou o Dr. McManus. — Experimente um charuto. Um dólar cada. — Olhou em volta, satisfeito. — As coisas tomaram um ar agradável, por aqui. Por falar nisso, estive tentando lhe arranjar uma caldeira nova. Mas só ouço falar de faltas. Talvez algumas pessoas estejam esperando uma outra guerra. Em todo caso, me prometeram uma caldeira para fevereiro. O céu estava mais escuro, soprava um vento gélido e agora o ar era frio e cinzento. Alguns flocos de neve esvoaçaram em frente das janelas. Os dois homens ficaram fumando, calados. Então o médico falou, sentindo-se oprimido, de repente: — Este é o melhor Dia de Ação de Graças que já passei. Obrigado, Johnny. Mas Johnny não ouviu. Estava cheio de um sentimento de desânimo e um pressentimento funesto. Olhou para a neve, que sempre amara, e então sentiu que o mundo inteiro estava vazio, para ele, e se sentiu inteiramente desolado, como estivera no seu sonho. Mentalmente, procurou aquela mancha de um azul radioso, mas ela não apareceu.

XXII Dezembro foi um mês de chuvisco e neblina. As melhoras de Emilie cessaram e a saúde dela começou a decair rapidamente. — Os sujeitos que produzem o smog não ligam — disse o Dr. McManus, com raiva. — Moram lá nos morros e seus escritórios têm ar-condicionado; portanto, o que isso pode lhes interessar? Conversei com. o prefeito e alguns outros, há dias, mas não são do meu partido político e insinuaram que eu era um intrometido. Bem, um dia desses vamos ter uma inversão de verdade e vão morrer uma dezenas de velhos, crianças e inválidos, e aí eles vão agir. Mas só então. Assim como instalam sinais luminosos depois que as pessoas morrem, umas depois das outras, em algum cruzamento. O que querem são provas. Pois bem, eles a terão. Enquanto isso, vamos ver o que se pode fazer por esse bebê. O Press não reclamou, nem o matutino de propriedade do Press. Publicaram algumas queixas brandas na “Coluna do Povo”. Nada de editoriais. Enquanto isso, as pessoas tossiam tristemente pelas ruas, nos escritórios e lojas, e as crianças tinham bronquite e asma. As ruas molhadas de Barryfield estavam arenosas com a fuligem, que não podia escapar sob as nuvens de umidade sufocante. As montanhas desapareceram; as pessoas quase se esqueciam de que existiam. O sol, se aparecia de vez em quando, era uma bola de um açafrão nublado, que lançava um amarelo doentio sobre as nuvens ao pôr-do-sol e manchava as casas sujas e outros prédios com sombras sulfurosas. Os aparelhos de ar-condicionado ainda eram escassos. — Quando é que vai acabar esse raio de guerra? — perguntou o Dr. McManus. — Já tem mais de um ano. Vou conseguir um aparelho de ar-condicionado de qualquer maneira! E conseguiu. Levou-o para a casa paroquial e ele foi instalado no quarto das meninas, para Emilie, que estava deitada, ofegante e azulada, na sua caminha. — Vai ajudar um pouco — falou o médico. — Mas é melhor trocar os filtros com regularidade, pois o smog os suja logo. — Ele aplicou uma injeção de adrenalina na menina. Ela havia olhado para a agulha, apavorada, até que o médico dissera, com carinho rude: — Vamos, você sabe que isso vai picar, e é só isso. — Fez uma careta feia para ela e enquanto ela ria, tossindo, ele habilmente enfiou a agulha no bracinho gasto. Então, antes que ela pudesse chorar, ele enfiou um pirulito na boca da garota. — Ela tem de ficar de cama. Essa adrenalina não foi a melhor coisa para o coração dela, mas era escolher entre o coração e os pulmões, que outra coisa posso eu fazer? Dêem-lhe cinco desses comprimidos do Tim por dia, em vez de três. — Afagou o rostinho pálido. — Minha garotinha — falou com sua voz áspera, ajeitando-a no travesseiro. Alisou os cachos compridos com a mão carinhosa e enxugou as lágrimas que ainda estavam nas faces dela. Ela começou a respirar com mais facilidade e chupou o pirulito fazendo barulho. Era o 18.° dia de smog. Todas as crianças e Johnny estavam tossindo, assoando os narizes e enxugando os olhos. Mas o Natal se aproximava e até mesmo o smog podia ser esquecido, diante do entusiasmo do primeiro Natal das crianças. Emilie, aliviada com o ar condicionado e os cuidados tanto do Dr. McManus como do Dr. Kennedy, ficou

empolgada. Johnny fez uma conspiração com as crianças, que lhes deu muito prazer e risadas. Ele as encorajou a fazerem listas, pensando, otimista, que 100 dólares seriam mais que suficientes para todos. Aos sábados, os quatro mais velhos saíam com a Sra. Burnsdale em missões misteriosas, só deles, pois agora tinham suas mesadazinhas. Voltavam com histórias entusiasmadas e fantásticas das lojas. Pietro dançava teatralmente, para demonstrar o maravilhoso cavalinho de pau de balanço, que custava só 50 dólares e que, ele resolvera, seria o seu presente principal. — Mas 50 dólares! — exclamou Johnny, em desalento. — O que são 50 dólares? — perguntou Pietro, com um belo floreio dos braços. Só uma semana de ordenado, pensou Johnny. — Uma boneca como um anjo, quase do tamanho de Emilie — escolheu Kathy. — Só 25 dólares. Fico com o coração partido se não ganhar. Max foi mais modesto, para o seu presente importante. Queria um estojo de modelagem completo; preço, 10 dólares. Lá se iam 80 dólares, de saída, pensou Johnny. Jean queria uma bicicleta, que poderia usar na primavera. A mais barata custava 30 dólares. Emilie, escutando as outras crianças, em êxtase, queria tudo, e Kathy fez uma lista para ela. — O Natal — lembrou Johnny — é o Aniversário de Nosso Senhor. Não consiste só de presentes. — Mas Ele nos deu o melhor dos presentes… a salvação… não foi? — perguntou Pietro, com seu sorriso brilhante e ladino. — Papai não pode ser igual a Nosso Senhor, e dar o que puder? — Há o assunto dinheiro — sugeriu Johnny. — Ora — perguntou Pietro —, o que é o dinheiro? —·Apenas um assunto de vida e morte para a maioria das pessoas — respondeu Johnny, aborrecido. Ficou mais aborrecido ainda com a Sra. Burnsdale, que estava calmamente recolhendo as listas, fazendo ouvidos moucos aos seus protestos. — Deixe que as crianças se divirtam — ponderou ela, serena. — E tenham triste despertar na manhã de Natal — respondeu Johnny. Estava muito preocupado. Em sã consciência, não podia retirar dinheiro das crianças para os presentes. Além disso, haveria outros Natais. Certo dia Pietro fez um comentário: — A Irmã Maria Bernadine disse que quando só pensamos nos presentes e não no sentido do Natal, fazemos mal. Ela se esquece — continuou o pequeno, com um sorriso sábio — que os Magos levaram presentes para o Menino Jesus. Ouro! — Ele rolou os olhos e esfregou as mãos, de modo muito significativo. — E mirra e especiarias — lembrou-lhe Johnny. — Há! — exclamou Pietro. — O que podiam comprar? A Santa Família não podia

ter ido para o Egito sem esse ouro, não é? Aquele jumento custou dinheiro, e os jantares deles também. Podiam ter comido a mirra e as especiarias? — Nunca pensei nisso — respondeu Johnny, achando graça, contra a vontade. — Penso em muitas coisas — disse Pietro, misterioso. — E tudo errado, também — acrescentou Kathy. Ela estava começando a lançar olhares preocupados a Johnny. A Sra. Burnsdale entregou as listas ao Dr. McManus. Ele deu um rugido quando as leu. — Não! — exclamou. — É ridículo! — O senhor nunca teve filhos. Pense como vai ser divertido comprar todas essas coisas. — Eu positivamente retiro a minha proposta de casamento, senhora. Esbanja demais o meu dinheiro. — Ela lhe entregou uma lata de biscoitos feitos especialmente para ele. — Imagino — continuou ele — que o pastor vai pensar que as coisas caíram do céu, como ele acha que caem os seus jantares. Já está na hora de ele conhecer a vida como ela é. O médico escreveu a Lorry Summerfield o seu relatório semanal de sempre. “Acho que não vou mais lhe escrever. Devia estar aqui para o Natal. Deixe o Mac para lá.” Uma tarde ele disse a Johnny: — Ainda não vi o seu “projeto”… raio de palavra!… nobre, mas gostaria de ver o salão paroquial pela primeira vez e ver o que você fez. Ele ficou estupefato. O trabalho estava todo pronto, as mesas e cadeiras arrumadas. As prateleiras meio douradas não tinham um só lugar vazio. Ele gritou: — Onde você arranjou esse belo mogno para as estantes? Deve ter custado uma fortuna! O melhor que já vi. — Mogno? — perguntou Johnny. — O mogno não é vermelho? Isso é de uma cor alourada. — Mogno louro! — gritou o médico, roçando o braço numa prateleira. — O melhor do Guston! Não vai me dizer que ele doou isso? Eu não ia acreditar! Onde foi que o arranjou, afinal? É precioso. Johnny sentou-se de repente, pálido. — Ah, três dos homens que trabalham no Guston a trouxeram, num período de várias semanas, de peça em peça. Disseram que não custou quase nada, que eram sobras. Madeira jogada fora. O médico estava feliz. — Macacos me mordam. Se essa madeira foi jogada fora, foi primeiro empilhada direitinho, escondida, antes de ser jogada fora. Filho, você é receptador de produto de roubo! — Bateu as coxas maciças no terno amassado. Cacarejou. — O pastor é um receptador!

Johnny perguntou, vexado: — Eles podem ser presos por isso? — Claro que sim! Olhe bem para o acabamento. Mogno polido. Mogno de mobiliário. Acontece que sei que Guston prepara isso para os melhores fabricantes de móveis de Nova York. O médico estava-se deliciando. Johnny se levantou, sério e branco. — Vou escrever contando ao Sr. Guston e perguntar quanto vale a madeira e depois vou tentar pagar, não sei como. De repente o médico ficou muito sóbrio. — Não vai, não. Em primeiro lugar, o Guston só está esperando uma oportunidade de se desforrar de você, por causa da mulher dele. A primeira coisa que ele faria seria avisar o Mac e os jornais publicariam uma história engraçadíssima a respeito. Mac tem um cômico de verdade na equipe dele. Fariam até você rir de sua mãe agonizante. E depois Guston mandaria prender os seus amigos. Por falar nisso, como conseguiram eles passar pelo chefe de turma, e como é que o chefe não deu parte, do desaparecimento? — Um dos homens é o chefe — respondeu Johnny, a voz fraca. Sacudiu a cabeça. — Tenho de pagar ao Guston, de algum modo. — E meter os seus amigos na cadeia? Seria uma boa retribuição, não é, por todo o trabalho deles, e pecando por você? Johnny ficou calado. Depois perguntou, zangado: — Então, o que vou fazer? — Nada, claro. É só ficar calado. E não toque no assunto com os homens. Eles acharam que você merecia mogno e isso é um elogio que eu não lhe faria. Não os desiluda. — O senhor é um criminoso mesmo, doutor. — Bom, claro. Quem não é? Além disso, não foi Deus mesmo quem perdoou na cruz o ladrão que se arrependeu? — Não creio que os meus rapazes vão se arrepender de nada — respondeu Johnny e teve de sorrir. — Acho que estão se achando muito espertos, tirando esse mogno de lá. Eles o trouxeram de noite. De caminhão. — Olhe — respondeu o médico —, o Guston não tem muita consideração com o pessoal dele. Arranca deles a última gota de suor e eles o detestam. — O senhor me faz sentir-me melhor mas, assim mesmo, essa madeira não é minha. — Pensando bem, nada é de ninguém mesmo, se quiser ser metafísico. Você um dia não disse que tudo nos era apenas emprestado? Muito bem. Isso lhe está sendo emprestado. E pare de falar tanto. — Não creio que eu esteja gostando muito dessas estantes,-agora.

— Claro que gosta. Deixe de ser hipócrita, Esses homens passaram semanas trabalhando nesses diabos de estantes para você. — Já sei! — exclamou Johnny, tendo uma inspiração. — Vou convidá-los para virem aqui, os três, para tomar uma cerveja comigo e depois vou olhar bem nos olhos deles e sugerir que cada um dê meio litro de sangue à Cruz Vermelha, durante um ano. Foi o que ele fez. Primeiro admirou muito as estantes, andando pelo salão, passando as mãos pela madeira. Agradeceu aos três homens felizes. Depois parou diante deles, fitou-os com seus olhos azul-escuro e disse devagar: — Rapazes, a Cruz Vermelha está precisando de sangue. Ora, vocês são todos sujeitos fortes. Não acham que deviam oferecer meio litro sempre que puderem? Digamos, por um ano? Sim, acho que um ano é o certo. Eles entenderam logo. Olharam para ele com admiração, evitando olhar para as estantes. Mais tarde lhe levaram seus cartões da Cruz Vermelha, e não se tocou mais no assunto. — E falam de Shylock — disse o doutor, com maior admiração ainda. — Nada diremos — respondeu Johnny. — Além disso, os rapazes estão pintando o mogno de vermelho. — Adequado e discreto — aprovou o médico. — E espero que toda vez que você olhar para as estantes tenha escrúpulos, ou coisa assim. Lorry telegrafou ao médico, laconicamente: “Espere-me dia seguinte ao Natal, querido”. A festa das crianças, realizada no salão paroquial dois dias antes do Natal, foi um grande sucesso. Todos os filhos de Johnny compareceram. Não se fartaram de admirar a árvore grande, os lindos enfeites, as luzes e tudo. Kathy, com eficiência, apresentou Jean, Pietro e Max a seus amigos da escola dominical e Emilie, parecendo ter recuperado a saúde, ficou sentada numa cadeira olhando radiosa para a estrela do alto da árvore. Por vezes apertava as mãozinhas numa convulsão de alegria. Ficou ali sentada, chupando um pirulito de hortelã. A Sra. Burnsdale lhe fizera um vestido de veludo azul com uma gola de renda e Johnny achou que a menininha parecia um anjo. Perambulando no meio de todos os pequeninos convidados, ele parava a toda hora para beijar a menina e enrolar nos dedos um de seus cachos compridos. O salão paroquial estava barulhento com as crianças entusiasmadas, cantando canções de Natal enquanto a Sra. McGee tocava o piano velho. Os adultos admiravam as estantes e os livros. As mesas reluzentes, agora cobertas, estavam sendo usadas para servir bolo, ponche e sorvete. Kathy teve algumas reclamações a fazer a respeito da quantidade de comida ingerida por Pietro, fazendo tristes previsões quanto ao estado do estômago dele no dia seguinte. Ela fiscalizou não só sua família, mas também as outras crianças, que estavam festejando a data, até que Johnny lhe disse, severo: — Olhe aqui, meu bem, você não é um guarda. Não é nem uma professora. Deixe que as crianças se divirtam. E se Max quer usar o solidéu dele, para se exibir ou coisa assim, apesar do rabino dizer que não precisa usá-lo o tempo todo, deixe que use. Isso lhe

dá um ar diferente e ele gosta de explicar o que é. Por que você não sossega e se diverte? Kathy perguntou: — A gente se diverte quando as pessoas fazem coisas erradas? — Às vezes — respondeu Johnny, com cinismo. Ela franziu a testa. — Quero dizer — acrescentou ele, depressa —, as pessoas muitas vezes podem gostar das coisas que lhes fazem mal, como as comidas erradas ou balas demais ou café. É só uma noite; deixe que fiquem doentes, se quiserem. Uma parte do preço da liberdade é pagar por ela, de um modo ou de outro, de um modo desagradável. Por falar nisso, o que é isso que você tem aí na mão esquerda nas costas? Chocolate? Você sabe que chocolate sempre lhe dá urticária. — É só uma noite, papai — respondeu Kathy, os olhos brilhando. — Está bem, papai, vou sossegar. Johnny foi passando entre as crianças e adultos movimentados e entusiasmados. A Sra. McGee estava tocando os hinos de Natal com vontade, acompanhando grupos vocais bem fortes. Ela murmurou para Johnny quando ele se aproximou: — Não sei bem quanto aos seus ofícios de Natal, Sr. Fletcher, o da meia-noite. O conselho o apóia mas algumas pessoas disseram que isso é coisa de católico e não estão muito satisfeitas. Já disse a elas que algumas igrejas protestantes aqui têm ofícios à meianoite, e algumas têm o bom senso de concordarem, e outras se mostram ofendidas e falam de John Knox. Quem é ele? — Um homem com ideias próprias, como eu — respondeu Johnny. Ele viu que Max estava olhando encantado para a estrela no alto da árvore e pedindo uma explicação. — É a estrela que guia — disse-lhe Johnny. Ele, no momento, estava tendo certa dificuldade em manter os olhos sobre essa luz. Perguntou-se se os paroquianos sabiam que os clérigos por vezes tinham suas próprias confusões. Na véspera de Natal, de manhã, Johnny recebeu um telefonema de uma paroquiana dizendo que sua velha mãe estava morrendo e queria vê-lo. O nome, Baxter, não lhe era conhecido. A mulher, com uma voz surda e emburrada, respondeu à pergunta dele. — Ah, nós vamos ouvir seus sermões de vez em quando. Não é como uma porção de ministros. Mas não acredito em nada do que diz. — Não? — perguntou Johnny, imaginando-a como uma mulher baixinha, roliça, de meia-idade e um rosto pálido e grosseiro, cabelos claros e desgrenhados, papada e um ar geral de desmazelo. — Então, para que vai? Ela alteou a voz, grosseiramente. — Como é que eu vou saber? O meu homem e eu achamos que devemos ir à igreja às vezes, mas não íamos até o senhor vir, e depois não fomos durante algum tempo. Até que o pessoal na cidade começou a falar muito no senhor e uns eram contra e outros a favor e nós fomos e o meu homem disse: “Gosto dele. Ele às vezes diz coisas que me fazem sentir esquisito por dentro! ” Johnny pensou um instante nesse elogio dúbio.

— Bem, e eu às vezes faço a senhora se sentir… esquisita por dentro? Ela custou a responder; depois falou, com ressentimento: — Como é que eu vou saber? Durante algum tempo eu me sinto diferente, como se o mundo não fosse o raio de lugar que é mesmo. Bem, vem ou não vem? Johnny pegou o seu velho carro e partiu à luz pálida e enfumaçada da manhã de dezembro. As ruas estavam cheias de mulheres fazendo compras e crianças empolgadas. Olhou para os rostos cansados, zangados, desesperados, satisfeitos ou preocupados, pensando consigo que, por mais que olhasse para o seu semelhante, achava que ele era sempre novo, sempre merecedor de amor e ternura, devendo ser olhado com compaixão. Uma neve levinha estava caindo, muito fina, mas misturados com ela havia flocos grandes e brancos, como borboletas esvoaçando de leve no ar. Aqui e ali tiniam sinos. Ele entrou numa rua muito modesta de casas ligadas, com janelas sujas, portas lascadas e escadas quebradas. Encontrou o número que estava procurando e a porta lhe foi aberta por uma mulher tão exatamente igual à que ele visualizara, que ele só conseguiu olhar para ela espantado, boquiaberto, por um momento. O corpo disforme estava envolto num roupão de uma cor indefinível, mais para o laranja desbotado, preso por um imenso alfinete de segurança e dela emanava um cheiro bolorento. — É o ministro? — perguntou, olhando para ele de cara fechada, como se ele fosse um intruso. — Está bem, entre. Ele a acompanhou para uma saleta escura, suja, cheia de jornais, garrafas de cerveja e pires cheios de cigarros da véspera. Ficou irritado. A pobreza é uma coisa, e algo que se pode respeitar. A imundície é outra coisa bem diferente. A mulher viu que ele olhava pela sala com uma expressão reprovadora e disse, desafiando-o: —·Bom, ontem vieram alguns amigos e não tive tempo de fazer a limpeza. Havia poeira por toda parte, sobre os móveis de pêlo marrom, da pior qualidade, e sobre o tapete verde e os abajures cambaios. Johnny não disse nada. Tornou a acompanhar a Sra. Baxter para um buraco preto de um corredor; ela abriu uma porta com um gesto de um carcereiro desdenhoso. Ele se espantou de novo, pois o quarto parecia uma sala de freira, cheio da luz vinda de uma janela alta, limpa e sem cortinas que dava para um quintal tristemente imundo. O chão estava esfregado até parecer quase branco, sem. tapete, e a velha cama de metal tinha uma colcha de retalhos branca e travesseiros alvos como a neve. Naquela cela pequenina e estreita não havia mais nada a não ser uma cadeira de cozinha e uma cômoda de pinho amarelo, em que estavam arrumados com precisão um pente, uma escova, uma Bíblia e um copo. O ar de austeridade era quase adstringente; Johnny nunca vira um quarto com uma tal dignidade. —·Bom, o ministro está aqui, mãe — falou a Sra. Baxter. — Sr. Fletcher, esta é minha mãe, Sra. Woodley. Uma mulher idosa estava meio sentada no travesseiro limpo, parecendo uma freira idosa e moribunda, pois o rosto macilento tinha um ar firme e altivo, os olhos azuis desbotados afundados acima das maçãs do rosto, o nariz saliente como um pedaço de madeira seca bem entalhada, a boca fina e distante. Os cabelos brancos, ralos mas escovados, tinham sido puxados para trás, esticados, e presos num coque.

Ela não respondeu ao cumprimento de Johnny. Olhou para ele com a indiferença distante dos moribundos; no entanto ele sentiu que ela o estava vendo inteira e completamente. Sentou-se ao lado dela. A Sra. Baxter fechou a porta e o deixou a sós com a mãe dela. Havia coisas que um ministro diz aos moribundos, coisas consoladoras, tranquilizantes, corajosas e piedosas. Mas de repente Johnny não encontrou o que dizer. Ele e a velha se olharam num silêncio prolongado. Ouvia a Sra. Baxter praguejando e resmungando na frente da casa, juntando garrafas, empurrando móveis, rosnando para alguém que bateu à porta e depois batendo a porta e fazendo todo o pequeno apartamento tremer, depois resmungando de novo. A Sra. Woodley não parecia ouvir nada; suas mãos de cera, gastas e com as juntas nodosas, estavam dobradas sobre a colcha branca, que não era mais descorada do que elas. Depois ela falou, a voz fina e fria: — Estou morrendo. Talvez amanhã não mais esteja viva. Ela falara com aquela indiferença distante. Acrescentou: — Leva um bocado de tempo pra gente morrer… desde a hora em que se nasce. Muito tempo. — Para muitos de nós, sim — respondeu Johnny. Ela suspirou. — Pelo que ouvi dizer, você botou esta cidade em polvorosa. — Ela então sorriu, com pesar, mas indiferença. Pensei que fosse diferente. Parece um estivador. Meu marido era isso, no cais. — Eu também já fui. Quando estava estudando. — Sempre gostei de um homem com cara de homem falou a Sra. Woodley. — Ora, você podia ir para o cais, nesse minuto mesmo, ou talvez para as minas. — Também já estive nas minas — respondeu Johnny. A voz dela não estava ofegante, nem falava com dificuldade. Ela meneou a cabeça. — Era isso que eu achava. A luz pálida entrando pela janela esfregada mostrava claramente a sombra cinzenta da morte pairando sobre seu tosto ascético. — Estou com câncer — disse, sem ênfase. Johnny se perguntou se ela estaria sofrendo. Seu rosto grande e forte exprimiu sua compaixão. Ela a viu e a dispensou, com uma das mãos, num gesto cansado. — O que importa? Sei o que pensa. Dói? Moço, dói mais que o inferno. A palavra, do jeito que ela a disse, era simples e um fato e ele a aceitou como tal. Meneou a cabeça. — Claro — respondeu ele.

— E foi por isso que pedi que viesse. Para me dizer por quê. Johnny apoiou o cotovelo na cômoda e o queixo na palma. — Se você tivesse a cara que eu tinha medo que tivesse, eu nem falava com você — esclareceu a Sra. Woodley. — Mas você é do meu tipo de gente. Foi o que pensei, pelo que Millie e Jack me contaram, e pelos jornais. Um homem como o meu homem. Ela parou de falar, fechou os olhos um instante e descansou. Johnny ficou ali sentado, calmo. Viu um espasmo passando como água pelo seu rosto descarnado, os lábios se contorcendo. Não conseguiu desviar os olhos, vendo aquela agonia nobre. Quando ela tornou a abrir os olhos, estavam vidrados com a umidade do tormento. — Eles lhe dão alguma coisa? — perguntou ele, com brandura. Ela sorriu pela primeira vez, um sorriso seco, de papel. — Sim, o médico deixou alguma coisa. Entorpecente. Não é para mim. Minha mãe me pôs neste mundo sem isso e vou sair dele sem isso. A dor não é nada para mim. Depois do que foi a minha vida. Então, tem de me dizer por que, para eu saber. — Olhou bem para ele. — Não acredito em nenhum Deus. Pensei ser honesta com você, desde o princípio. Johnny respondeu: — A senhora nunca poderia deixar de ser honesta, Sra. Woodley. E eu vou ser honesto com a senhora. Conte-me. Ela suspirou; pareceu afundar mais nos travesseiros. Com esforço, levantou as mãos e olhou para elas como se pudesse extrair sua história delas. — Não nasci aqui. Nasci numa cidadezinha no Estado de Nova York. Na roça. Éramos 10. Lembro bem da casa, quatro quartos. Era um sítio e nós todos trabalhávamos nele e eu dizia comigo que era trabalho demais e nada de vida de fazenda para a Sally. Sou eu. Filha do meio, bonitinha. — Olhou para ele. — Não dá para ver. Estou com 72 anos. Mas era. — Sorriu, não com um sorriso vazio, mas de repente tinha uma beleza antiga, como um velho retrato. — Eu ia ser atriz. “Há muito tempo. Mas tudo me volta. Então, um dia, arrumei uma mala feita de vime… engraçado, eu a estou vendo, toda amarela e a tampa cabia nela, como uma cesta de mercado. Era a única que tínhamos. Era da mãe. Pus nela meus dois melhores vestidos e escrevi um bilhete dizendo que ia ser uma dessas atrizes, sabe, como Lillian Russell, com champanha e brilhantes. Eu tinha cabelos amarelos e eram bem bonitos, quando os escovava”. Ela ficou olhando para a frente. — Bem, imagino que já ouviu essa história. Garota da roça indo pra cidade, nos vagões de carga. Levava o dia lodo. Estou vendo agora, com lampião de querosene e esteira no chão. Isso era pros pobres. Eu tinha oito dólares. Estava economizando havia muito tempo; tinha um pouco do dinheiro dos ovos. Devia ver Nova York naqueles tempos, moço. Era bem diferente do que vejo nas revistas hoje e tinha cheiro de gás de carvão e esterco, e era cheia de carruagens, carroças e carros. — Sorriu da imagem morta

havia tempos. — Eu tinha um medo mortal de toda aquela gente. Tinha 15 anos. — Sei — disse Johnny. — Bem, moço — continuou a Sra. Woodley —, eu não sabia para onde ir. Então perguntei a um guarda e ele me recomendou uma pensão e me pôs num bonde de cavalos e eu não podia acreditar que tinha tanta gente no mundo! Deus, mas eu era uma caipira. Ela agora não estava mais achando graça. O rosto cavado se tornou severo e parado. — Meu pai estava sempre lendo a Bíblia e eu fiquei ali naquele banco, e rezei. Deus ia cuidar de mim. Ia, sim! Johnny ficou calado. Então a voz da Sra. Woodley baixou. — É uma velha história. O guarda me tinha dado o endereço de uma casa. Um bordel. Sabe o que é isso, moço? — Sei — respondeu Johnny. Ela virou a cabeça e olhou bem para ele. — Não fica enojado? — Só pela senhora. Ela concordou. — Ah, não me deram essas drogas de que se fala, nem nada disso. A dona, Madame Le Fleur era como a chamavam, era boazinha e de bom senso. Perguntou se eu não queria voltar para casa, que ela me dava o dinheiro. Eu não podia voltar para casa. E não tinha para onde ir. Sabe, moço, Madame Le Fleur era muito melhor do que algumas das mulheres “decentes” de que a gente ouve falar. E eu pensei no sítio e nenhum de nós comendo muito e a mãe e o pai trabalhando que nem cavalos, só que mais duro, e os guris, Mary estava tuberculosa e os outros tinham alguma coisa, e pensei que talvez pudesse mandar um dinheiro para eles. Ah, eu sabia que era errado, não adianta dizer que não sabia. Sabe o que é o desespero, moço? Bem, era isso que eu sentia. — E tinha só 15 anos — concordou Johnny. — A casa estava cheia de moças da roça, que tinham fugido de casa, como eu, para serem atrizes; e a gente conversava sobre o jeito que a gente trabalhava de manhã à noite, e que não havia esperança para nenhuma de nós. E assim, fiquei. Ela tornou a olhar para as mãos, como que procurando uma resposta. — Não era uma casa elegante. Só iam marinheiros e soldados, trabalhadores, estivadores e cocheiros de carroças de cerveja e às vezes um- contador com uma tosse. Eles também queriam conversar. Não sabiam para que tinham nascido. Nem nós, as garotas. Um sujeito ficava falando disso o tempo todo e uma noite ele se matou, bem ali na casa. Você não havia de pensar que gente como nós ia pensar por que a gente nasceu, não é? — Nós temos mais motivos para perguntar do que qualquer outro — respondeu

Johnny. A Sra. Woodley se levantou mais no travesseiro e olhou para ele com uma tal penetração que ele se espantou. — Bom, é — falou ela, devagar. — Acho que você também tem, e é ministro. Ela se recostou no travesseiro. — Passei 10 anos lá. Quase nunca saía. Tinha medo das pessoas. E estava doente, doente mesmo. Passei muito ;tempo sem conseguir ganhar dinheiro. E quando eu tinha 25 anos, a doença fez alguma coisa na minha perna, esta aqui, e nunca mais consegui andar direito. Conheci o meu homem na casa, um estivador, como eu disse. Era um homem bom, de 40 anos, e nós passamos a nos gostar e ele me tirou de lá. E eu não estava mais tão bonita. Ela torceu as mãos num gesto patético. — Bom, moço, eu ainda acreditava em Deus e tinha o meu homem. Fomos casados por um ministro e fomos para o quarto de Larry, perto do cais. Parece que. estou ouvindo aqueles vapores apitando, até hoje, e vendo a neblina entrando e o cheiro da água e do peixe. Mas fiquei muito contente de estar com Larry. íamos trabalhar juntos e conseguir alguma coisa e ser gente de verdade. Eu sentia arrependimento pelo negócio da casa e pedi a Deus para me perdoar. — Ele perdoou — respondeu Johnny. Ela abriu a boca numa agonia da carne e do espírito mas não conseguiu falar, por um instante. Depois sacudiu a cabeça, devagar. — Não, senhor. Não perdoou. Mas isso não faz mal, porque não acredito mais Nele. Parei de acreditar quando Larry foi ferido. Estava descarregando um navio e um engradado grande caiu em cima dele. Depois disso ele não trabalhou mais: as pernas ficaram sem movimento. Não podia andar, um sujeito grande como você, e olhos como os seus também, e mãos bonitas e boas. Só tínhamos aquele quarto, com um fogão para cozinhar e aquecer e Larry ficava deitado na cama chorando por causa das pernas e por minha causa. Tornou a torcer as mãos. — Eu ia ter um bebê. Então voltei para a casa. Disse a Larry que estava trabalhando numas lojas, fazendo serão. Eu já tinha tentado essas lojas: me pagavam três dólares por semana, o suficiente para o aluguel; nada para a comida, nem remédios para Larry quando a dor era muito forte, nem o médico. Então, fui a casa. Madame Le Fleur olhou para mim; já disse que ela era boa. Falou que eu não podia fazer o que fazia antes. Deixou-me fazer a faxina e outras coisas, fazer camas e lavar e me pagava 12 dólares por semana. Para Larry e eu podermos comer, e Madame me dava uma cesta de ervilhas e pão e carne quando sobrava e, por pouco tempo, quando Larry não estava tão mal, foi bom de novo, e nós nos amávamos. O rosto velho e agonizante assumiu uma aura de recordação. Johnny não disse nada e ficou esperando, até que a aura passou. A Sra. Woodley disse, sem ânimo:

— Engraçado, posso pensar no que aconteceu e não sentir muito. Como se fosse um lugar paralisado dentro de mim. Voltei para casa certa manhã… era a véspera de Natal e eu tinha um presente para Larry… e a casa em que morávamos se tinha incendiado. Sim, senhor, até o chão, Ninguém havia pensado em Larry, incapaz, na cama. Não restou nem um osso dele. A cabeça dela rolou nos travesseiros, fraca. — Nem um osso. Eu desmaiei na calçada, e alguém mandou chamar uma ambulância. Levaram-me para um hospital dos pobres e Millie nasceu naquela noite. Há muito tempo, muito tempo. Era um hospital horrível; as camas encostadas umas nas outras, sujas. Moço, como era sujo e fedia e a gente nem podia pedir nada, eles empurravam a gente e mandavam calar a boca. Eu me levantei da cama em três dias e saí, com Millie. Estava nevando muito. — E para onde foi? — Ora, de volta para Madame Le Fleur. As garotas ficaram loucas com a Millie, se bem que ela não fosse nenhuma beleza. Fiquei numa das camas delas; chamaram um médico e o pagaram para mim, também. As garotas sempre pagavam tudo. Não eram garotas baratas, as de lá. Compraram roupas para a Millie, também. Eu só tinha uma manta velha para ela, quando a levei para lá; estava nua em pêlo. E quando pude, tornei a trabalhar na casa. Millie e eu ficamos lá cinco anos. — Então? — perguntou Johnny, depois que ela descansou mais um pouco. — Bem, moço, as moças e eu achamos que não era bom para a Millie ficar lá. Então eu a pus num orfanato e pagava cinco dólares por semana por ela e fiquei trabalhando na casa. Mas os tempos mudaram. Houve uma época ruim; foi em 1907, eu acho. Os homens pararam de ir e a polícia ficou danada porque não tinha dinheiro e fecharam a casa. E eu consegui um emprego de faxineira numa das casas grandes de pedra marrom e Millie foi crescendo e, quando tinha 14 anos, arranjou um emprego como o meu. Eu a via uma vez por mês, mais ou menos. Ela nunca soube da casa. — E depois? — perguntou Johnny, de mansinho. — Bom, não tem mais nada. Millie conheceu o leiteiro na casa em que tava trabalhando. Um rapaz de cidade pequena, aqui de Barryfield, era o Jack. Millie nunca chegou a gostar mesmo de mim. Mas Jack gosta. É meio parecido com o Larry; ria muito e nós tínhamos nossas brincadeiras. Millie não gostava de brincadeiras, nem gosta agora. Não há nada mau na Millie, só que ela parece que detesta tudo e eu nunca detestei; e ela briga com Jack porque ele ainda é leiteiro. E ele ganha bem, também, se bem que você pudesse pensar que não. Gosta de uma cerveja e a única coisa que o faz brigar com Millie é que ela não limpa as coisas. Ele é como eu; gosta de limpeza. E Millie bebe cerveja demais. Isso deixa Jack furioso. A Sra. Woodley olhou para ele, esperando. — Entende, não é? Eu estava pensando se podia me dizer para que é que eu nasci, só isso. Por que é que eu nasci? Johnny falou, com brandura e ponderação:

— Essa é a pergunta que fazem todos os homens e mulheres, em algum momento de suas vidas. É uma pergunta que já me fiz muitas vezes, também, e foi porque eu sabia que havia alguma resposta que fui ser ministro. Ele parou. As sombras cinza-arroxeadas passaram pelo rosto da mulher, que o escutava. — A senhora disse que não acredita em Deus. Ora, as pessoas que realmente não acreditam Nele acham que não passam de acidentes, nascidos neste mundo, de modo que não há resposta, pois não havia uma razão, para começar. Mas quando me pediu uma resposta, vi logo que no seu coração a senhora acreditava em Deus e que há uma resposta… para a senhora… e que sente que Deus a tem. “Deixe-me dizer uma coisa. Não existem acidentes em qualquer lugar deste mundo, nem no universo. Os cientistas provaram que tudo tem uma causa e um efeito. Ninguém igual à senhora jamais nasceu, e ninguém como a senhora jamais nascerá de novo. Ninguém levará exatamente a mesma vida que a senhora viveu. Portanto, como a senhora é tão… diferente… de qualquer outra pessoa, tinha de preencher um lugar na vida que ninguém mais poderia preencher”. Ele olhou para a Sra. Woodley. O rosto dela estava tão parado que ela parecia até estar em transe. Seus olhos apagados olhavam bem para a frente e as mãos estavam sossegadas no peito. — Quando eu trabalhava na mina — continuou Johnny, aproximando-se mais da mulher agonizante — houve uma explosão. Eu saí e tiraram de lá o Bill, meu melhor amigo. Ele tinha tido uma vida horrível. O pai morrera numa explosão de mina e ele tinha passado fome e dormido nas ruas e comido do lixo, até ter idade de trabalhar nas minas, pois a mãe morrera quando ele era pequeno e não havia ninguém para tomar conta dele e ninguém se importava mesmo. Eu só tinha 17 anos quando houve a explosão. “Bill estava com quase 50. Tinha casado com uma garçonete quando já estava bem maduro e eles se amavam muito. E nessa época tinham um filho na escola, mais ou menos da minha idade. Estavam economizando o que podiam para mandá-lo para a universidade. Lembro-me um pouco dele. — Johnny sorriu, lembrando-se. — Eu era um menino vivo e ativo, mas Joe não. Bill queria que ele fosse engenheiro; Bill metera na cabeça a ideia de que ser engenheiro era a melhor coisa do mundo. Talvez Joe não quisesse contar aos país que não tinha a menor vontade de ser engenheiro; tinha medo de decepcioná-los. “Bem, em todo caso, quando tiraram. Bill da mina ele estava morrendo. Ficou ali deitado no chão e começou a chorar. Sabia que eu queria ser ministro e me perguntou por que ele tinha nascido. Praguejou, disse palavrão e chorou, dizendo que tudo o que ele e a mulher tinham feito tinha dado em nada. Joe tinha saído de casa dois dias antes, dizendo que não ia voltar e que, em todo caso, não suportava o colégio. Então Bill queria saber de que tinham servido toda a sua fome e miséria e odiava Deus, se é que existia um Deus, pois não havia resposta alguma. Até o filho se fora”. Johnny pegou uma das mãos da Sra. Woodley. Estava fria e morta como cera. Mas ela virou a cabeça para ele e em seus olhos havia uma expressão estranha, de quem estava escutando.

— Eu disse a Bill — continuou Johnny — .que Deus nos mandara aqui para conhecêlo e servi-lo na terra, para podermos nos juntar a Ele no céu. Aquilo o consolou, eu acho. Foi só o que pude fazer. A Sra. Woodley falou: — Sim, senhor, foi só o que pôde fazer. Mas não foi uma resposta de verdade. Para que nasceu o seu amigo Bill? O verdadeiro motivo, além do que os ministros contam à gente? Johnny sorriu. Olhou para a frente e seus olhos azuis estavam cheios de luz. — Sabe, eu também estava pensando e fazendo perguntas, antes de Bill morrer, e tinha quase resolvido não ser ministro. Mas fui. Sabia que havia uma resposta, em algum lugar, e Deus a tinha, e era só esperar que a gente saberia a resposta. — Mas ninguém mais ouviu falar em Joe — falou a Sra. Woodley, com uma amargura fraca. — Ah, mas ouviram, sim — respondeu Johnny. — O mundo inteiro sabe dele, hoje. Acabou de receber o Prêmio Nobel, há dois meses. Por suas pesquisas médicas, Hoje, milhões de pessoas podem não morrer de câncer, por causa de Joe. Ele sempre quis ser médico. Quando foi embora, trabalhou e estudou Medicina. Agora está com 38 anos. Está começando. Se não houvesse o pai dele, Bill, não haveria Joe. E sabe de uma coisa? Quando recebeu o prêmio, disse: “Meu pai sempre me ensinou que a melhor coisa que o homem pode fazer no mundo é ajudar seu semelhante”. Há um monumento e tanto para Bill, no cemitério. Johnny segurou bem a mão da doente. — Então, Sra. Woodley, pode me dizer por que Bill nasceu? Ou foi um simples acaso e não há resposta? Ela olhou para ele com uma intensidade imensa, sem falar, — Vejamos o Larry, seu marido. Imagino que ele não tivesse ninguém que o amasse, só a senhora. Não é? Ela fez que sim, muda. — A senhora lhe deu amor. Talvez não pense que isso seja importante, mas é a coisa mais importante no mundo. Conte. Antes de ele perder o uso das pernas, vocês se amavam tanto quanto depois? A Sra. Woodley olhou para ele, parada. — Não. Depois daquilo, as coisas até pareceram mais lindas para nós, apesar de tudo. Sim, senhor. Não lhe contei. Larry ficava sozinho, enquanto eu trabalhava. Não era grande coisa nos estudos, mas sabia ler. Eu comprava livros velhos para ele e ele me contava histórias que eu não conhecia, dos livros. E ele gostava mais era da Bíblia. Sabe, ele passava o tempo todo em paz! Eu ficava lavando, costurando ou cozinhando e ele me lendo a Bíblia, e os outros livros, e eu pensava estar no céu. Ela olhou para Johnny, e alguma coisa se animara em seu rosto cavado.

— Larry disse que nunca se convertera. Não sabia nada sobre Deus, até perder as pernas. Ora, as pessoas vinham, na pensão, só para ouvi-lo falar sobre a Bíblia e Jesus e contar histórias da Bíblia! Gente pobre e miserável como nós, sem ter o que comer e sem esperanças, e saíam como se estivessem sonhando. E de algum modo, por causa de Larry, inventavam coisas para fazer para se ajudarem. Ora, tinha um sujeito que era ladrão. Todo mundo sabia. E aí ele não era mais ladrão. Foi para o Exército da Salvação. Johnny apertou mais a mão dela. Ela fez menção de se levantar dos travesseiros, em sua excitação, e seu rosto ficou bonito de novo. — Vê, se a senhora não estivesse ali para trabalhar e cuidar dele, ele não teria os livros que lhe comprou e a Bíblia, e tanta gente se teria perdido. Ela se recostou de novo nos travesseiros, a respiração ofegante. — Só a senhora podia ter ajudado Larry. É responsável pelo Larry e por todos os que ele salvou. — Eu! — sussurrou ela. Fechou os olhos e de repente adormeceu. Johnny saiu do quarto e foi procurar a Sra. Baxter, que estava sentada esparramada na sala, ainda suja. Ele se sentou ao lado dela e começou a falar. Depois de algum tempo, ela estava chorando. Ele pegou a mão dela e a levou para o quarto da mãe. A Sra. Woodley estava gemendo baixinho. Abriu os olhos e olhou para eles. A Sra. Baxter, suja e descabelada, sentou-se na beira da cama, chorando. — Mãe, eu não tinha palavras para lhe dizer. Verdade. Mas o ministro me disse para eu dizer à senhora. — Ela parou e as lágrimas escorreram pelo seu rosto grosseiro e sujo. — A senhora foi sempre tão esperta, mãe. E tão bonita, e ninguém nem pensava na sua perna. E a senhora sempre me disse para eu ser boazinha e eu não podia decepcionar a senhora. — Engoliu em seco. — Mãe, eu nunca contei, mas quando tinha 18 anos e trabalhava na cozinha da casa de alguém, passei a detestar a minha vida. Tinha meios de se ganhar a vida melhor, me diziam. Numa casa. — Ela parou, com medo, encolhendo-se. — Mãe, não sabe o que é uma “casa”? Um sorriso espectral passou pela boca da Sra. Woodley. — Já ouvi falar disso. A Sra. Baxter estava corando. Abaixou a cabeça desgrenhada como uma criança. — Bem, mãe, pensei nisso. Mas lá estava a senhora, tão esperta e tão boa, sem medo de nada. Sabe, mãe, a senhora nunca soube que eu amava a senhora! Mas eu amava, sim! E vi que não podia desiludir a senhora e ser má. Então, fiquei uma boa moça. A Sra. Woodley olhou para Johnny e seu rosto arrasado se iluminou de alegria. Ela pôs a mão na cabeça da filha e a puxou para seu peito. — Você me amava, Millie? Você me amava? A Sra. Baxter soluçou. — Ah, mãe, a senhora nem pode acreditar quanto! Mas eu não sabia que a senhora também me amava. Tão bonita e esperta e ligeira e fazendo tudo e cuidando de mim.

— Minha filhinha — disse a Sra. Woodley, e sua voz estava cheia de felicidade. — Ah, eu vivia por você, filhinha. Era tudo o que eu tinha. A Sra. Baxter chorou. — Eu não presto mesmo. Largando as coisas e entristecendo Jack com essa casa imunda. Mãe, vou melhorar. Vou ser o tipo de mulher que Jack quer. Tenho sido má, porque achava que nunca poderia ser igual à senhora, tão sabida, tão maravilhosa. — Pode, sim — falou Johnny, levantando a cabeça da Sra. Baxter e sorrindo para o rosto cheio de lágrimas. — Pode ser a mulher que a sua mãe quer que seja e sabe que pode ser. Pela senhora e pelo seu marido. — Serei, serei! — exclamou a Sra. Baxter, com ardor. Depois puxou a mão dele para os lábios e a beijou. — O senhor é tão maravilhoso, Sr. Fletcher. Nem sabe o que fez por mim e pela minha mãe. Vamos, estar na igreja o tempo todo, Sr. Fletcher. Vamos mesmo. Jack e eu. Johnny olhou para a Sra. Woodley, que sorria, na plenitude do saber.

XXIII Quando Johnny voltou para a rua, viu que a luz sombria de dezembro tinha passado a uma névoa espessa e amarelada, tão enjoativa e sufocante que ele começou a tossir violentamente. Seus olhos ardiam, a garganta estava apertada, os pulmões se rebelavam. Ele tateou até o carro, sentindo a umidade pesada e quente da mistura de neblina e fumaça comprimindo-lhe o rosto. A neve estava desaparecendo, nessa mudança nova e súbita. Ele tentou ver o céu, os olhos cheios d’água; estava da cor de enxofre. Seria essa a inversão de que falara o Dr. McManus, esse eflúvio mortífero e impenetrável que estava abafando a cidade? Tinha de dirigir com cuidado. Vultos nebulosos e apressados, sem forma nem sexo, surgiam à sua frente. Seu medo por Emilie aumentou e ele procurou se consolar com a ideia do ar refrigerado. Os carros se moviam com um ruído espectral, buzinando, avisando. Crianças gritavam e suas vozes estavam roucas. Levou muito tempo para chegar em casa. Largou o carro, aliviado, e correu para dentro. O Dr. McManus estava lá, o chapéu manchado no alto da cabeça, o sobretudo dependurado no corpo largo, ajudando as crianças entusiasmadas a enfeitarem sua arvorezinha. As crianças formigavam em volta dele, soltando exclamações, pendurando bolas reluzentes, douradas, azuis, prateadas e vermelhas; metros de fitas de ouropel cobriam uma cadeira, e tiras finas de lâmina dourada. Emilie não estava ali, tinha sido levada às pressas para a segurança de seu quarto. — Olá! — exclamou Johnny, feliz. As crianças estavam muito absortas na sua felicidade para lhe dar mais que uma resposta distraída. O Dr. McManus disse: — Passei por aqui, vindo do hospital. Sabe de uma coisa? Estão levando para lá crianças doentes e velhos; estamos com uma inversão de primeira ordem. Se não tivermos uma epidemia de mortes com isso, quero ser mico de circo. — Vou tomar uma providência a respeito logo depois do Natal — respondeu Johnny. — Ah, não vai, não! — exclamou o médico. — Lembre-se do que já lhe disse a respeito de dar a César. — Ele olhou para Johnny furioso, e o rapaz ficou calado. Depois ele se abrandou. — Não importa. Quero lhe contar uma coisa. — Puxou Johnny para mais longe e sussurrou: — Estou com todas aquelas coisas que as crianças queriam, lá no salão paroquial, debaixo da árvore grande. E umas coisinhas para elas, para esta árvore aqui. Pode levá-las para lá, depois que virem o que está aqui. — Ele levantou a voz. — Já ia me esquecendo. Tenho uma coisa para os guris, agora! As crianças, gritando, entusiasmadas, o rodearam. Ele enfiou a mão num bolso grande e puxou um cachorrinho cocker spaniel. As crianças ficaram loucas de alegria. Pietro estendeu as mãozinhas morenas, querendo agarrar, mudo, frenético; Jean tocou na cabecinha de miniatura com um dedo; Max só ficou olhando, com vontade. Foi a Kathy que o médico entregou o cachorro, e ela o abraçou, convulsamente. — Um cachorro! — exclamou Johnny, louco para pegar no cão.

— O que pensou que fosse? Uma pulga? Tem um nome idiota qualquer, registrado, com documentos, mas eu o chamo de Coffee, porque é a cor dele. — Vamos perder a Sra. Burnsdale, quando o vir — respondeu Johnny. — Ela não vai dar um pio. Depois de todas as listas que me tem dado, é bom calar a boca — falou o médico, feliz com o prazer e empolgação que provocara. — Garotos devem ter cães. Ei, você, cara-de-lua — chamou Kathy, sua favorita —, deixe os outros o segurarem também. Cuidado aí, Pietro. E um bebê, não um animal empalhado. Vamos, deixe que o Jean segure, e Max também. As crianças, absortas na criaturinha, se separaram, e o médico disse a Johnny: — Tenho uma bela surpresa para você, filho, no Dia de Natal. Ainda não posso contar. O que há? — perguntou, vendo que Johnny estava sério de novo. — Já lhe disse. Tenho de fazer alguma coisa quanto a esse smog. Está matando gente. Vou fazer o que puder. — Ah, vai, é? — perguntou o médico. — Da próxima vez que se meter em encrencas, o prefeito vai acompanhá-lo pessoalmente para fora da cidade. Avise-me a tempo de arranjarmos um novo ministro. O Dr. McManus tinha combinado que o chofer dele levaria Pietro e Jean à Missa do Galo. Mas antes disso, Johnny leu para as crianças o velho poema: A Noite Antes do Natal. As crianças escutaram, apinhadas em volta da cama de Emilie, de boca aberta, os olhos brilhando. Era o primeiro Natal delas; não se fartavam do prazer e assombro de tudo aquilo. As meias já estavam penduradas na lareira, na sala. A fragrância das tortas, das especiarias e do pinho enchiam a casa. Penduradas nas janelas e na porta havia coroas de ramos de azevinho. A arvorezinha estava ali valente, reluzindo de luzes e ouropel. A feiúra da casa paroquial fora aliviada por cordões e festões de papel vermelho e verde enrolados em todos os aposentos. Johnny pensou que a alegria e expectativa das crianças compensavam todos os longos anos de sua infância de privações. Esses anos agora estavam comprimidos numa essência que lançava um perfume incomparável, aliviando e sarando alguma coisa dentro dele. Para dar prazer às crianças, ele estava vestido com suas vestes pretas novas, que lhe davam mais dignidade e até um ar de majestade. O colarinho branco brilhava por sobre a casimira de preço módico. Ele era não só um pai de criação, mas um sacerdote, e até mesmo Pietro, cada dia mais saliente e levado, olhou para ele com respeito. O poema mal terminara e as crianças estavam pedindo para ouvi-lo de novo, quando a Sra. Burnsdale subiu a escada com uma carta de entrega rápida para Johnny. — Outro cartão para nós! — exclamou Johnny, satisfeito. Abriu o envelope e dele caiu um papel verde. — São 500 dólares! — murmurou Johnny, a voz fraca. — Do Dr. Stevens! — No cartão o Dr. Stevens tinha escrito, um tanto enigmaticamente: “Deus abençoe você e as crianças, querido Johnny, e os proteja a todos neste próximo ano e para sempre e para sempre lhe dê coragem e paz”. De repente, Johnny sentiu a garganta apertar-se num terrível pressentimento. Leu o

cartão para si. Por que essas simples palavras, de um ministro para outro, palavras comuns e banais nessa época do ano, deviam parecer tão sinistras? Coragem e paz. A pessoa sempre as possuía, com Deus. O pressentimento aumentou nele. Uma espécie de pavor amorfo invadiu-lhe o coração. Olhou para Emilie, refestelada contente em seus travesseiros, imune ao nevoeiro mortífero lá fora, os grandes olhos azuis meio cerrados, de sono. Até mesmo o Dr. Kennedy tinha reconhecido que ela estava melhor, e a atitude dele sugeria certa esperança. Ele se levantou de repente, o rosto moreno, pálido. A Sra. Burnsdale também se levantou. — O que é, Sr. Fletcher? — perguntou ela, com medo. — Não sei — confessou ele, devagar. — Alguma coisa me acometeu… Acho que as coisas têm andado tensas. — Olhou para o cartão na mão e as palavras “coragem e paz” saltaram diante dele, como que gravadas em luz. Ele piscou. As palavras caíram de volta no cartão e a luz desapareceu. Ele era um místico, como todos os verdadeiros sacerdotes, e novamente o pressentimento o acometeu, fortemente. Não podia aceitar aquelas palavras inocentes como uma promessa; pareciam-lhe uma advertência de algum terror próximo e uma exortação para ele ter fé no resultado final. Achegou-se a cada uma das crianças e lhes deu um beijo terno e paternal. — Pietro e Jean, é bom se aprontarem, pois vão cedo por causa do lugar de Pietro no coro, hoje. Kathy e Max vão para a cama daqui a meia hora. Estão vendo, já são quase 22h00. — Ele pegou Emilie no colo e ela se aninhou junto dele, macia e frágil como uma boneca. — Minha queridinha, minha queridinha — murmurou ele, no ouvido dela. Ela enroscou os bracinhos em volta do pescoço dele e suspirou, feliz. A respiração da menina estava normal e sossegada. A fragrância do corpinho miúdo, para ele, parecia o perfume mais maravilhoso do mundo. Tornou a pôr a menina na cama e ela adormeceu quase imediatamente, segurando a mão dele. Ficou ali debruçado sobre ela, esquecendo-se de tudo o mais, menos o seu medo indizível. Rezou, calado, pela pequenina, e pela primeira vez a sua urgência teve uma resposta. Ele sentiu aquela antiga onda de ternura conhecida se estendendo para ele do espaço exterior, quase doce e possante demais para ser suportada. Seus olhos se encheram de lágrimas. Tudo daria certo para Emilie e para todos eles. A Sra. Burnsdale ficou em cima para ajudar Pietro e Jean e fiscalizar a fim de que Kathy e Max fossem para a cama. Ela pensava muitas vezes que Max é que demonstrara a maior melhora. Os picos secos dos cabelos dele tinham sido domados por ela, com óleo e escova, formando um pompadour liso. O rosto quadrado tinha um colorido e, quando ele sorria, parecia um menino comum. Ele tagarelou com ela, confiante, enquanto vestia o pijama. — Eu também vou ganhar presentes de Natal — disse, numa antecipação feliz. — É mesmo? — perguntou a Sra. Burnsdale, fingindo severidade. — Quem foi que disse? Nós todos não lhe demos presentes de Festa das Luzes, e você não teve um… Menorah, o candelabro de sete braços e velas e tudo, e não rezou de solidéu? Isso é exploração, mocinho.

Max, para prazer dela, lhe lançou um sorriso ladino e cheio. — Não. Tenho sorte. Também ganho presentes de Natal. Eu sei. — É uma boa coisa que os católicos e protestantes comemoram as mesmas festas na mesma ocasião — respondeu a Sra. Burnsdale —, senão haveria três explorações de presentes nesta casa, em vez de duas. Vamos, ande, vá escovar os dentes e não se esqueça dos de trás. Johnny sentou-se à secretária, pensando em seu sermão. Olhou para a gaveta do meio da secretária e ficou muito parado. Por fim abriu-a e tirou a caixa dourada. Ficou com ela na mão. Ela parecia tornar-se quente e pesada. Depois de algum tempo ele a embrulhou no papel e a empurrou bem para o fundo da gaveta. Uma dor lenta e fraca o invadiu. A neblina havia ficado mais espessa. Johnny foi até uma janela e olhou para fora. Ele não via nada senão a névoa, girando como hordas de espectros malignos à luz da janela. O Dr. McManus dissera que os hospitais estavam cheios de crianças e velhos. Johnny endureceu o queixo. Sua próxima tarefa seria o smog. Não era mais possível esperar. Inversão. O teto quente de ar úmido pendendo sobre a cidade, pelo qual a fumaça industrial não podia escapar — mas não devia haver fumaça industrial. Havia meios de eliminá-la, se a ganância não interferisse. Olhou para o relógio. Ficou espantado ao ver que eram 23h45. Então pensou no sermão, afastando tudo o mais da cabeça. Mesmo que só comparecesse um punhado de pessoas, seria suficiente. No ano seguinte, haveria mais. Então os sinos das igrejas começaram a tocar, soando em ecos espectrais pela cidade. Os sons se juntaram recuando como as ondas do mar, depois avançando, mais límpidos e fortes, depois sumindo. Johnny ficou esperando ansioso pelo som de seus pobres sininhos em sua torre. Deviam estar respondendo agora, no coro alegre. Mas os sinos não responderam. Ele começou a andar pela sala quando ouviu, forte, límpido e majestoso, o carrilhão mais maravilhoso de todos, triunfante, vitorioso. Ele ficou ali pasmo, sem poder acreditar. O carrilhão estava tocando o hino antigo, Adeste Fidelis, numa harmonia longa e bela, tão perto que abalava a casa paroquial. As paredes estavam vibrando; as lâmpadas piscavam nas ondas de som. Os próprios pisos tremiam. “Vinde vê-lo!”, ordenavam os sinos, em tons possantes e lindos. “Nasceu o Rei dos Anjos!” — Ah, Deus — murmurou Johnny. — Ah, Deus, ah, Pai! Ele sentiu alguém a seu lado e, com um sobressalto, virou-se. Lá estava a Sra. Burnsdale, sorrindo e chorando. — Ah, Sr. Fletcher! Era uma surpresa para o senhor. Foi o doutor. Da Itália, diz ele. Passou o braço em volta dela e também em seu rosto havia lágrimas. Eles ficaram escutando, enquanto os sinos anunciavam as novas eternas de alegria e esperança e o Verbo que se fez Homem. Elevaram-se contra o céu perverso, desafiando-o. Elevaram-se contra todos os muros de ódio, ganância, fúria e terror no mundo. Clamavam aos céus e à terra.

XXIV Johnny foi para o altar, aturdido e abalado. A luz de vela, imensa e imponente, erguia-se alta sobre os bancos. Por um momento, Johnny não viu nada. E depois percebeu que a igreja não só estava cheia mas transbordando. Os bancos nunca tinham estado tão lotados. As pessoas estavam sentadas apinhadas e havia dezenas de caras estranhas. Os assistentes estavam aflitos. Tinham pedido e tomado emprestadas todas as cadeiras de armar, e ainda não bastavam. O povo estava chegando desde as 23h15. Agora estavam de pé dos lados da igreja e nos fundos havia um grupo compacto, E as portas abertas continuavam a mostrar cabeças e rostos se agitando, forçando a entrada, metendo-se em todos os cantinhos possíveis. A escada também estava cheia de gente. E, acima de tudo, os sinos clamavam a sua exultação fazendo a igreja tremer. “Vinde, fiéis!”, exortavam, num regozijo sempre crescente. E os fiéis chegavam e olhavam para Johnny e sorriam. Era como um mar sorrindo. Os sinos eram as ondas numa praia eterna. A luz de vela aumentou, como que em resposta. O coro respondeu em harmonia e, sem um gesto ou uma palavra, a congregação nos bancos se levantou espontaneamente e suas vozes se juntaram ao coro e aos sinos. As paredes tremeram e ressoaram. O êxtase estava em todos os rostos, Johnny ficou ali, sem poder acreditar, e repetiu consigo: — Ah, Deus, ah, Pai! Seu vulto alto, de roupas pretas, parecia uma estátua nas luzes, contra a cruz. Então, tremendo, murmurando, os sinos foram parando e só restou a luz de velas e flores e as pessoas e Johnny diante do altar, e um silêncio profundo. Ele começou: — Então, Deus amava tanto o mundo… O evangelho antigo e eterno foi pronunciado de novo e, como sempre, era novo, uma nova mensagem aos homens, brilhando como o sol, cheia de promessa, glória, perdão e amor, não velha, não gasta, não pesada com a idade, não obstinada com vozes cansadas e maquinais pronunciando um ritual sem sentido, empoeirado pelas eras idas, mas o chamado triunfante da hora imediata, nascida de novo, anunciada de novo, anunciada como a fanfarra de trompas do topo de um monte, ressoando nos palácios de reis, e nos mercados, as ruas apinhadas de homens. “Entre esta noite, nasceu um Rei. Um Rei de amor e misericórdia, salvação e compreensão, um Rei que há de sarar vossas feridas e tocar em vossos olhos cegos e afastar os vossos ódios e sofrimentos e consolar-vos e que só vos pede, em tons de amor eterno e compaixão: Segui-Me. “Para vós, o Verbo se fez Homem, por amor de vós, por misericórdia. Regozijai-vos, portanto, pois Deus nasceu na vossa carne e vos aguarda na Sua Manjedoura.

“Para vós, para todos os homens, Deus chegou para cumprir Sua promessa de todas as eras. Segui-me. Repiquem, sinos, dentro da noite! Nasceu um Rei que diz: ‘Estou entre vós, até o fim do mundo, Segui-Me’.”

XXV Era raro Johnny não conseguir dormir imediatamente e sossegado, depois de suas orações. Mas nessa noite, véspera de Natal, ele não conseguiu dormir. Estava oprimido com uma sensação de um temor profundo, que lhe viera no momento em que voltara à casa paroquial. Ele tentou analisá-lo; lembrou-se da alegria e entusiasmo das crianças, a chegada do cheque do Dr. Stevens, os sinos, a afluência incrível na igreja, as vozes felizes. Naquele dia, só lhe tinham acontecido coisas boas. Em toda parte lhe haviam oferecido amor. Consolara uma mulher moribunda e a aproximara da filha. Agradeceu a Deus por todos esses milagres que lhe tinham sido dados em algumas horas. Mas o temor persistia. Ele rolou na cama. Jean estava dormindo no sofá-cama ali perto; a respiração dele estava regular, no escuro. Johnny achou que um cachimbo poderia aliviá-lo e se levantou com cuidado, vestiu o velho roupão de lã marrom e saiu do quarto. Desceu tateando no escuro e acendeu a luz da sala com cuidado. Imediatamente a arvorezinha reluziu, resplandecendo como que encharcada de prata. Ele sorriu. As meias das crianças estavam cheias; debaixo da árvore havia o máximo de presentinhos possível. As crianças sabiam que presentes maiores e mais empolgantes as aguardavam debaixo e em volta da árvore grande do salão paroquial, pois não cabiam na casa. Ele ouviu um ganido baixinho e entrou na cozinha quente e asseada. Coffee, o cachorrinho, estava deitado numa caixa cuidadosamente forrada com uma manta velha e em volta havia jornais espalhados prudentemente. Ele levantou a cabecinha castanha quando Johnny o pegou no colo e o rabinho minúsculo abanou freneticamente. A cabecinha se enfiou na palma da mão de Johnny. Ele encostou o rosto no cãozinho e depois o pôs de volta, pegou uma panela e abriu a geladeira. Por um instante o seu desespero indizível passou, ao ver o conteúdo: o ganso, já recheado, as tortas e o sorvete, tudo esperando as festividades do dia seguinte. Pegou o leite, esquentou-o, pôs um pouco de açúcar e colocou o leite num pires. — Pronto — murmurou para o cachorrinho, pondo o pires sob o focinho aflito. O cachorrinho bebeu depressa e Johnny ficou ali olhando, fumando. Os velhos radiadores assobiavam e gorgolejavam num ruído confortador. Mas a casa parecia um pouco quente demais. Johnny desceu ao porão e verificou a caldeira. Estava-se alimentando satisfeita; a fornalha estava cor de cereja. Na escada, subindo, Johnny parou de repente. Teve a sensação de que não estava sozinho. Seu coração bateu mais depressa e ele tornou a descer e revistou, o porão, com uma acha de lenha comprida pesando em sua mão, tranquilizando-o. Mas no porão só havia as coisas de sempre. Ora, pensou, estou ficando neurótico. Olhou na sala de jantar escura, a despensazinha, fria como gelo, onde se guardavam os legumes. O cachorrinho gania aflito na cozinha. Johnny foi acalmá-lo e aquela sensação furtiva o acompanhou, como uma sombra. — Tolice — disse Johnny, em voz alta. Desligou todas as luzes e sentiu uma leve sonolência, muito bem-vinda. Mas quando se deitou de novo, o pressentimento de desastre se deitou com ele. Procurou controlá-lo,

com firmeza. Por fim, por fadiga pura, ele começou a cochilar, mas muito de leve, parte de sua mente ainda acordada. Uma vez pareceu-lhe ouvir uma porta se fechando de leve e achou que era uma criança indo ao banheiro. Então um vento começou a bater surdamente contra a janela. Jean estava dormindo. Johnny despertou de seu cochilo ouvindo o seu coração batendo descompassadamente. Foi então que sentiu o cheiro de fumaça. Sentou-se, cheirando. Não havia dúvidas, era fumaça mesmo. Levantou-se da cama de um salto e correu para a porta. O corredor estava quente e cheio de espirais de fumaça. Ele as sentiu, mais do que viu. Tossiu violentamente e fechou a porta. Correu para o abajur, acendeu-o, ofegante. Jean sentou- se na cama, piscando. — Olhe, Jean — falou Johnny, tentando controlar a voz —, vou ajudá-lo a se levantar e depois você se vista, depressa! Depressa, Jean! A casa está pegando fogo! Jean não disse nada; ficou muito branco. Johnny puxou-o para a beira da cama. Depois viu que a fumaça estava entrando por baixo. da porta. Era tarde para se vestirem. Jogou suas cobertas para Jean. — Espere! — gritou. Pôs um travesseiro contra o rosto e correu para o corredor, fechando a porta. Então gritou, enquanto as tábuas do assoalho mandavam ondas de calor nas solas de seus chinelos finos: — Fogo! Fogo! Bateu à porta do quarto de Kathy e da Sra. Burnsdale. Houve um murmúrio confuso lá dentro e depois a Sra. Burnsdale, percebendo de repente o que tinha ouvido, se levantou da cama. — Não abra a porta ainda! — gritou Johnny. — A senhora e Kathy vistam casacos. — Pensou em Max e Pietro, aflito, e depois lembrou-se de que, como Jean estava no quarto com uma leve dor de garganta, eles estavam dormindo num sofá no quarto com Kathy e a Sra. Burnsdale. — Depressa —· gritou. — Depressa, pelo amor de Deus. — Seus olhos estavam ardendo com o calor e a fumaça. — E ponham cobertores sobre as cabeças e os apertem contra os rostos. E sapatos, sapatos! Ah, Deus do céu, Emilie! — Ah, Deus! — exclamou a Sra. Burnsdale, simplesmente. — Ah, Deus! As crianças já estavam acordadas; Max tinha começado a berrar, num tom pavoroso. Kathy o estava consolando, a voz severa, e empurrando-o. Pietro soltou um grito e depois se calou. Johnny correu para o quarto de Emilie. O aparelho de ar-condicionado estava zunindo, firme. A menina estava dormindo e nem acordou quando Johnny acendeu a luz. Mesmo então ele parou um instante, olhando para aquele rostinho; ela estava sorrindo, no sono. Ele a pegou no colo, enrolou-a em mantas e antes de ela estar inteiramente desperta, já cobrira seu rosto. — Está tudo bem, amor — disse ele, o coração batendo tanto que mal podia falar. — É o papai. — Olhou para o aparelho de ar-condicionado, em desespero. Correu para a

porta com a criança choramingando e gritou: — Todo mundo para baixo! Para baixo e para fora, o mais depressa possível! Não parem para nada; corram de verdade! Ele ouviu um crepitar e um estalo. As paredes estavam gemendo. O fogo estava avançando através delas. Mas Johnny esperou até ouvir a Sra. Burnsdale correr, chorando, soluçando, tossindo, com as outras crianças. Depois abriu a porta de repente e correu para o corredor, onde as nuvens de fumaça agora estavam tintas de um leve vermelho. Emilie se debateu no colo dele, tentando respirar. Ele apertou o rosto dela contra seu peito, descendo a escada correndo. Incrivelmente, a Sra. Burnsdale se lembrara de acender a luz da sala. Ela agora estava lá fora, no alpendre, com as outras quatro crianças, tremendo. Ele via os rostos delas, alucinados, terríveis, os corpos embrulhados em mantas e casacos, os pés metidos nos sapatos que tinham podido encontrar. Por trás deles, como outro incêndio, jorrava o smog, juntando-se à fumaça. Agora a casa inteira estava estalando. E Emilie estava-se enroscando em convulsões no colo de Johnny, tossindo de modo estridente. Nesse pesadelo, que Johnny dizia consigo não poder estar acontecendo, ele correu para a Sra. Burnsdale e pôs Emilie no colo dela. A Sra. Burnsdale viu a cara dele e disse: — Ah! Sr. Fletcher! Sr. Fletcher! Ele gritou: — Saiam do alpendre. Estarei de volta num minuto! — Ele a empurrou e gritou para as crianças: — Para a calçada, todos! Levem Emilie para o vizinho; vão deixá-las entrar. Leve todas as crianças. Correu para sua secretária. O pesadelo era acentuado pelo brilho calmo da arvorezinha. Agora a sala estava cheia de fumaça. Johnny segurou parte do roupão contra o rosto. As bordas do tapete verde novo estavam-se enroscando, pretas, cheias de fagulhas. Johnny tossiu, sufocado, rezando. Então ouviu a voz zangada do médico: — Não vou sair para nenhuma dor de barriga nesta hora da noite! Quem é, diabos? — Doutor! — gemeu Johnny —, a casa paroquial. Está pegando fogo. — Olhou para o teto. Uma rachadura vermelha e terrível estava-se abrindo nele. Aí as luzes se apagaram. Johnny largou o telefone e correu para a porta. Mal chegou lá, o teto caiu ao chão, despedaçando-se com estrondo. Eram quase três horas da madrugada, mas o desastre levara pessoas vestidas às pressas para a rua. Johnny, os pulmões quase estourando, desceu correndo a escada do alpendre. As luzes da casa vizinha estavam acesas e ele foi para lá depressa. O smog a tornava irreal, oscilante, turva. Ele sentia as pernas pesadas e desajeitadas como ferro. Alguém abriu a porta quando ele subiu a escada do alpendre e, sem olhar para o dono ou dona da casa, correu para dentro. Numa salinha arrumada, sob uma luz central ofuscante, estava sentada a Sra. Burnsdale, com Emilie no colo, e as outras crianças em volta, em móveis modernos de carvalho dourado. O rosto dela estava cheio de lágrimas. Mas as crianças estavam ali num silêncio terrível, olhando para a frente, os olhos vazios. — Emilie? — perguntou Johnny, a garganta ardendo. Aproximou-se da Sra. Burnsdale e puxou a manta pesada do rosto da menina. Ela olhou para ele, os olhos

arregalados e vazios num rosto tenso. Mas não o reconheceu: os lábios cinzentos chupavam e soltavam o ar. Depois tossiu, vezes e mais vezes, encolhendo-se. — Neném, neném — chamou Johnny, numa voz como. uma oração, quando ela parou para respirar, com dificuldade. — Emilie, querida. Alguém pegara o braço dele e ele se virou, débil. Um homem idoso, de pijama, bem calvo; estava olhando para ele, preocupado. — Puxa, Sr. Fletcher, é horrível. Minha mulher está na cozinha, fazendo café. Estamos muito perto de sua casa, nos fundos. Sente-se, homem. — A igreja? — perguntou Johnny, afastando-se dele, correndo para a porta. Sentia uma angústia dilacerante no peito. Sem tomar conhecimento da gente lá fora, nem de sua casa em chamas, nem do smog ou o frio mais forte, ele correu pela calçada escorregadia para a igreja. Mas, embora o próprio telhado de sua casa estivesse vomitando fagulhas e lanças de chamas, é as paredes se curvassem e desabassem, a igreja ainda não estava correndo perigo. O fogo iluminava os rostos apinhados, os olhos empolgados, deixando-os vermelhos. O ar continuava acre, o que intensificava o smog. As pessoas estavam falando e apontando. — Lá está o ministro! gritou alguém. — Ei, é o ministro! Johnny olhou para a casa. E então lembrou-se do cachorrinho na cozinha. Maquinalmente, dirigiu-se para a casa paroquial. De repente uma das paredes desabou para dentro e toda a rua ficou iluminada pela torrente rubra. Johnny tapou o rosto com as mãos e por seu corpo passou um longo estremecimento. Depois a rua se encheu de sirenes, o rugido dos carros de bombeiro. De pé ali, não sentindo nada, Johnny viu os homens de capacetes saltarem dos carros e desenrolarem as mangueiras. A polícia tinha chegado, agitada, eficiente. Forçara o povo para trás. Depois viram Johnny, de roupão, ali de pé na calçada, olhando sem nada ver. Tinha perdido os chinelos, em algum lugar. Os pés descalços estavam no limo sujo. Ura policial correu para ele, pegou-o pelo braço e o puxou — Está atrapalhando, cara. — A rua inteira estava aos gritos. — Ei, é o ministro, não é? É melhor entrar numa casa por aí. Johnny olhou para ele, apalermado. — É o Dia de Natal. — Engoliu em seco, a garganta num espasmo. — É o Dia de Natal — repetiu. Johnny ficou sentado junto de Emilie, na aurora crepuscular. Ela estava deitada numa cama larga e quente no melhor quarto da casa do Dr. McManus, numa tenda de oxigênio. Uma enfermeira estava sentada junto de sua cabeceira, alerta, vigiando, os dedos nunca largando o pulso da menina. O Dr. McManus mantinha-se de pé, nas sombras feitas pelos abajures; de vez em quando o rosto dele se agitava, enrugando-se, apertando-se, comprimindo-se. Pois Emilie estava morrendo. O choque, o smog, o pavor tinham sido demais para o coração dela. O Dr. Kennedy

estava lá embaixo, tomando café com a Sra. Burnsdale. Não conseguia falar. Seu rosto jovem estava amargo. A Sra. Burnsdale chorava baixinho. As crianças estavam todas deitadas, mas não dormindo. Choravam pelo cachorrinho, a árvore, os presentes, o seu temor perplexo, o seu primeiro Natal perdido. — Olhem — lhes dissera o Dr. McManus —, a maior parte de suas coisas estão no salão paroquial. E vamos fazer o nosso Natal bem aqui, raios. Tenho uma casa cheia de empregados. Parem com essa choradeira. Você, Pietro, se não parar de guinchar que nem um rato furado, vou lhe dar um bom tabefe. Max, cale-se também. Kathy, ajude a pô-los na cama. Jean — e ele olhou para o menino calado, de cara dura, a bengala ao lado —, ajude Kathy, já que não pode fazer nada para esses guris pararem. Foi a Sra. Burnsdale quem olhou para ele com olhos frios, dizendo: — A culpa é sua. Foi aquela fornalha velha, caindo aos pedaços. Eu sempre tive medo dela. Ele não deu resposta, mas se virou para tornar a subir. O Dr. Kennedy dali a pouco subiu. No quarto não se ouvia som algum, a não ser o silvo ligeiro do oxigênio. A aurora amarela se aproximara das janelas e as luzes ficaram mais fracas. Johnny estava sentado como uma estátua, sem se mover, a cabeça abaixada, olhando para o rosto de Emilie, que mirrava, os olhos fechados, o peitinho arfando. A cor dela já era um cinza azulado; seus lábios abertos e as narinas lutavam, apertando-se, dilatando-se. O Dr. Kennedy olhou para a enfermeira, que sacudiu a cabeça, com pesar. Ela se levantou para ceder o lugar ao Dr. Kennedy. O jovem médico se vestira às pressas e seus cabelos estavam desgrenhados. Pegou o pulsinho de Emilie com os dedos delicados, fechando com cuidado as dobras da tenda de oxigênio em volta de sua mão. Depois pôs o estetoscópio nos ouvidos, debruçou-se sob a tenda e escutou o coração da menina. Muito devagar, endireitou-se. Olhou para Johnny e seu próprio coração teve um espasmo de compaixão. O Dr. McManus saiu das sombras, temeroso, e o Dr. Kennedy ergueu os ombros, num desespero mudo. Agora ouviam a respiração ofegante e insuportável da menina agonizante; o corpo dela enrijeceu, tremendo, Johnny se debruçou mais. Via as ondas das águas da morte correndo por aquela pele frágil. O rosto dele estava sem expressão. Emilie gemeu e parecia que o som doloroso vinha de alguma profundeza nela, e não da garganta. Depois abriu os olhos e olhou bem para Johnny. Os olhos estavam turvos e vidrados. — Querida — disse ele. — Neném. Amor. Os olhos pesados olhavam para ele, mudos. Os cachos compridos e emaranhados estavam espalhados sobre os travesseiros como uma seda brilhante, acentuando o aspecto mortal da cabecinha de onde se espalhavam. Então uma expressão muito exausta, sem esperanças, cega e de busca, apareceu no rosto da menina. Ela gemeu de novo. — É o papai, querida — chamou Johnny. — Veja, é o papai. Estou aqui. A menina estava ofegante e gemendo. Então, de repente seu rosto se encheu de luz e de um reconhecimento feliz. Muito claramente, no quarto sossegado, ela pronunciou uma palavra:

— Mamãe. O sorriso ficou, se bem que a menina morresse nesse instante, e os olhos continuavam a olhar num êxtase de reconhecimento e prazer. Johnny afastou a tenda de oxigênio. Pegou o corpinho no colo e sentou com ele, apertando-o ao peito. Alisou os cabelos compridos e lindos. Fechou os olhos azuis, enevoados. Ficou se balançando, sem fazer qualquer barulho. Não viu o Padre John Kanty Krupszyk e o Rabino Chortow entrarem no quarto. Não ouviu quando lhe falaram. O padre sentou-se, persignou-se e rezou, as lágrimas escorrendo por suas faces. E Johnny ficou se balançando, agarrado a Emilie. O Dr. McManus chegou-se a ele, sem dizer nada, e estendeu os braços. Johnny sacudiu a cabeça e depois ela parecia não poder parar de tremer, enquanto ele se balançava. Foi o padre, depois de muito tempo, quem tirou a menina do colo dele, delicadamente, e a deitou na cama, cobrindo seu rosto com o lençol. Johnny levantou-se. Olhou para todos e de repente seu rosto ficou terrível. — Pai — disse —, não os perdoeis, pois sabiam o que faziam. — Johnny — falou o padre, suplicando. O Dr. McManus estava num devaneio, seu rosto não menos mortal do que o de Emilie. Uma ou duas vezes ele soluçou, um soluço seco. O rabino estava sentado numa cadeira, murmurando as orações para os mortos. Johnny repetiu, com a voz mais forte: — Pai, não os perdoeis! Ele não sentiu a picada da agulha no braço, nem o álcool que lhe esfregaram. Não sentiu ninguém levando-o do quarto, para a luz amarelada da manhã em outro quarto. Alguém o empurrou, deitando-o na cama; alguém pôs seus braços flácidos nas mangas do pijama do Dr. McManus. Agora ele estava nadando em sombras cinzentas e negras. Quando levantaram suas pernas para cima da cama e sua cabeça caiu no travesseiro, ele continuou sem saber de nada. A enfermeira ficou com ele. Os médicos e clérigos desceram. Os empregados, apavorados, já estavam na cozinha. A Sra. Burnsdale tinha desaparecido. O café fumegava e estavam fritando bacon no grande fogão. Os homens ficaram sentados na feia sala vitoriana, olhando para o chão. Uma hora depois chegaram dois detetives da polícia. Levavam uma breve mensagem. Não fora a caldeira velha que ateara fogo na casa. Johnny sabia, no fundo de sua agonia. Havia provas de ação incendiária criminosa, provas que bastariam para qualquer pessoa. Só Johnny e o criminoso é que sabiam. Era o Dia de Natal. Em 10 mil casas em Barryfield, crianças cantavam, riam e brincavam, e nas igrejas os coros cantavam: “Alegria para o mundo!”

XXVI Lorry parou defronte da casa monstruosa do Dr. McManus e ficou sentada no carro, olhando para a porta distante, inteiramente aturdida. Não sentira nada, nos últimos 10 minutos, depois que, tendo parado para abastecer o carro, um homem no posto lhe contara a tragédia ocorrida com Johnny. Ficou ali sentada olhando, sem lágrimas nem emoção, para o ramo de lírios brancos e puros e a fita branca pendurada na porta, declaração linda e triste de que naquela casa havia uma criança morta num caixão. As crianças corriam pela rua, alegres, brincando com seus presentes de Natal, ainda entusiasmadas com a festa da véspera. Suas vozes ressoavam, estridentes e risonhas, na rua sossegada. Lorry começou a olhar para elas, maquinalmente, tão distante quanto se estivesse paralisada num pesadelo. Viu que havia muitos carros estacionados de um e outro lado da rua; um grupo de pessoas estava vindo da casa, quietas, e outro grupo entrava pelo caminho circular para a porta. Ela virou a cabeça: não queria ser reconhecida. Acendeu um cigarro e soprou uma grande nuvem de fumaça diante do rosto e, quando o grupo que saía chegou junto à calçada, fingiu que estava esperando um passageiro. Mas o grupo, absorto numa tristeza sincera, não a notou. Ela apoiou a cabeça na direção, por uns momentos, vencida pela exaustão do choque e da dor. Por fim, saltou do carro e subiu o caminho de cascalho até a casa, os saltos altos escorregando nas placas de gelo. Foi a Sra. Burnsdale, e não o empregado do doutor, quem lhe abriu a porta. O rosto da Sra. Burnsdale estava inchado e pálido, os olhos vermelhos de tanto chorar. — Srta. Summerfield — murmurou, com uma vaga surpresa. O médico se esquecera de que Lorry devia chegar nesse dia, quinta-feira, o dia depois do Natal, e não dissera a ninguém. Lorry falou, a voz fraca: — Soube agora, há 10 minutos. Não sabia de nada. O doutor estava me esperando. Será… será que alguém pode pôr o carro para dentro e pegar a minha bagagem? Eu… — ela parou e fechou bem os olhos, um momento. Murmurou, a voz vazia: — Ah, Deus! A Sra. Burnsdale pegou-a pelo braço e a levou brandamente para o hall imenso e escuro, com seu assoalho encerado e tapetes orientais. Um murmúrio de vozes, tão baixo que mais parecia um leve farfalhar de árvores, permeava a casa. A sala de visitas à direita de Lorry estava cheia de homens e mulheres, de pé e sentados, os paroquianos e amigos de Johnny. Ela via suas sombras indistintas na luz do anoitecer, o barulho do mogno escuro aqui e ali e os retângulos pálidos das janelas. À sua esquerda, as grandes portas de correr da grande sala vitoriana estavam fechadas, com uma finalidade palpável. A Sra. Burnsdale estava chorando de novo, sem poder se conter. — O ministro está lá, agora. Vai lá de vez em quando e não deixa ninguém entrar com ele, a não ser o Padre Krupszyk e o Rabino Chortow. Mas nem fala com eles. Não fala com ninguém, nem mesmo com as crianças, coitadinhas, e não quer deixar que elas entrem na sala. Não comeu nada desde a noite de ontem e já são mais de 17h00. Srta.

Summerfield, já vi sofrimento, mas isso é pior do que sofrimento. As únicas pessoas com quem ele fala são as da polícia. Vai ao telefone de meia em meia hora, mais ou menos, para perguntar se pegaram o sujeito. Ela levou Lorry para um quarto dos fundos, no andar de cima, escuro e frio. — Sinto muito — balbuciou ela. — O doutor não disse nada, de modo que pusemos as crianças em alguns dos quartos, e estou aqui, e o Sr. Fletcher, e este é o único quarto que resta. Amanhã ponho a Kathy aqui e a senhora pode… — Não, não — murmurou Lorry. — Não, não, não. Mas não estava dizendo isso para o quarto. Sentou-se na borda da cama de dossel, estreita, e seus olhos azul-esverdeados permaneciam nublados e sem expressão. — Tenho de expulsar as pessoas, quando o escuto descer a escada — falou a Sra. Burnsdale, levando aos olhos um lenço molhado e amassado. — É o que ele quer. Não quer que ninguém o console. Nem fala sobre… sobre a pobrezinha. Srta. Summerfield, talvez se a senhora entrasse de mansinho ele nem reparasse. Acho que o padre está com ele agora. Ajudou Lorry a tirar o casaco de vison pesado, e Lorry tirou o chapéu e as luvas. Depois ficou ali no meio do quarto, esquecendo-se de onde estava. O vestido de lã azulescuro parecia grande para ela, pois emagrecera. O rosto lindo tinha uma expressão abatida e havia sulcos sob as maçãs do rosto largas e a boca não tinha cor. Só o dourado claro dos cabelos iluminava seu aspecto fatigado. Coitadinha, ela está muito cansada, extenuada, pensou a Sra. Burnsdale. Puxou a campainha que despertaria alguma atenção na cozinha. — Quer tomar um chá? — perguntou. — Parece tão cansada, Srta. Summerfield. Ou — acrescentou, sem jeito, lembrando-se do que diziam sobre a bebida de Lorry — talvez gostasse de um… um… — Um uísque com soda — respondeu Lorry, ausente. Depois sobressaltou-se. — Não, o chá está ótimo. Qualquer coisa, não importa. Tornou a sentar-se na beira da cama e tapou o rosto com as mãos. Falou, por entre elas: — É, estou cansada. Sabe, meu irmão, que é editor, está na Europa, e só volta em março, e tenho de ajudar com o negócio em Nova York três dias por semana e trabalho em… Filadélfia… quatro dias. A voz dela estava abstrata e indiferente, por trás da parede fina de suas mãos. A Sra. Burnsdale via os sulcos no pescoço comprido e esguio, o peso da exaustão nos ombros largos. — Não quer se deitar? — perguntou a Sra. Burnsdale, com pena. — Não. Por favor, não — respondeu Lorry. — Não tem importância. Nada tem importância. — Deixou cair as mãos e ficou olhando de novo para a frente, para o nada. Ah, Johnny, disse consigo. Ah, Deus. Ah, Johnny, Johnny, Johnny, Johnny. Ela sentiu um sobressalto ao ouvir o barulho da louça do chá. Quando viu a bandeja,

de repente ficou enjoada e se levantou. — Desculpe, eu não poderia… posso descer, agora? Eu… quero vê-lo. Seus olhos enxutos imploravam à Sra. Burnsdale, que tornou a pegar o braço dela e a levou para baixo, como se ela fosse cega. Elas pararam um instante na escada sombria até que um grupo saiu da casa, fechando as portas sem barulho. Então a Sra. Burnsdale puxou a porta da sala para Lorry poder entrar e deixou-a lá. As cortinas de veludo vermelho tinham sido cerradas sobre as janelas imensas e a sala só estava iluminada pelos dois grandes candelabros que tinham sido trazidos da igreja. Na aura de um deles estava uma caixinha branca num caixão coberto de veludo branco. Todos os espaços disponíveis estavam transbordando de flores em tons de branco, amarelo-claro e rosa- claro, delicadamente perfumadas, em cestos, vasos e buquês. Lorry encostou-se à porta fechada, fraca e desfeita. Aquilo lhe parecia um sonho tenebroso e informe, só iluminado pela luz de velas vacilantes, pairando sobre o caixão como asas de anjo. Lorry via a cabecinha de Emilie no travesseiro de cetim branco, o leque de cachos vivos, os olhos adormecidos, o sorriso extasiado de sabedoria e alegria. O corpinho estava vestido com a roupa de veludo azul com rendas, que a Sra. Burnsdale lhe fizera para o Natal. Ela não está morta, pensou Lorry, e sentiu um nó na garganta. Só está dormindo, o bebê querido. Mas Lorry pensou nas crianças rindo e brincando na rua, e sentiu um escuro diante dos olhos. O primeiro Natal de Emilie fora o seu último. Ela nunca mais brincaria. Alguém estava tocando no braço dela, de leve, e sua vista clareou; viu o vulto alto e escuro do Padre Krupszyk junto dela. O padre grandão estava muito pálido, a boca puxada e tensa, mas ele estava tentando sorrir, com pena. Falou em voz baixa, e não um sussurro: — Srta. Summerfield, fico contente que tenha vindo. — Eu não sabia… — respondeu ela, os lábios brancos — soube somente há uma meia hora. O Tio Al estava me esperando. — Não conseguiu dizer mais nada. Olhou para além do padre e então, pela primeira vez, viu Johnny sentado nas sombras atrás das velas e atrás da cabeceira do caixão. Ele estava olhando para o chão, sem ver; uma de suas mãos mantinha-se pousada junto da cabeça de Emilie, cerrada sobre o lado sedoso da coisa que continha o corpo da menina. Lorry levou as mãos à garganta. — Não, não, não — repetiu, vezes e mais vezes. Johnny não a vira entrar, nem a ouviu. Não estava ouvindo nada. A luz das velas movia-se como que numa corrente de ar e Lorry viu o rosto dele, tenso, sem vida, mas severo, como se ele mesmo tivesse morrido, numa última agonia prolongada. — Ele está morrendo. Onde está o Tio Al? Por que o deixou? — perguntou ela. — Infelizmente, as pessoas precisam de operações de urgência, mesmo quando há uma morte — respondeu o padre. — E esse caso foi uma emergência, e o homem é um velho amigo, que não queria outra pessoa. — Johnny está levando isso tão mal… quero dizer… é um ministro. — E deveria erguer-se com uma fé segura e paz confiante para enfrentar a situação?

— A fisionomia do padre endureceu-se. — Muitas pessoas pensam que os clérigos não são homens, nem têm corações de carne, nem sofrimentos, nem angústias particulares. Esquecem-se de que até mesmo os santos sofreram, talvez mais do que qualquer homem médio poderia imaginar. — Desculpe, desculpe — sussurrou Lorry, com uma humildade piedosa. — É só que… ele parece que detestaria se lhe oferecessem algum consolo. — Não se esqueça das circunstâncias — respondeu o padre. — Esta não é uma morte comum. Isso atinge a alma dele: lembra-se do que a menina sofreu, em toda a vida dela. Não consegue se reconciliar… ainda. Falo com ele e ele não quer me olhar, nem me escutar. Temos de lhe dar tempo. — Mas… o Deus dele — balbuciou Lorry, torcendo as mãos. — Ele fechou todas as portas de seu espírito a Deus. Trancou as janelas. No entanto não ouve nada senão o que ouvia quando ficou com as crianças. Se essa menina tivesse morrido sossegadamente, conforme o previsto, não teria sido tão mau assim. Más sabe como e por que ela morreu, e ele não pode se esquecer disso. Não pode perdoar nem a Deus nem ao homem. — O padre suspirou. — Agora, tenho de ir. Não fale com ele, ele não vai responder. Eles tinham conversado perto da porta e Johnny, bem na frente da sala comprida, não os tinha visto nem ouvido. Continuava perdido nalgum sonho terrível, só seu. O padre aproximou-se e pôs a mão no ombro dele; esse gesto não obteve a menor reação. Depois o Padre Krupszyk ajoelhou-se ao lado do caixão e rezou pela alma da criança inocente que, até o fim, não conseguiu escapar da perversidade dos homens. Pouco depois Lorry ficou sozinha com Johnny, as flores e a menina morta. Ela andou, insegura, até o caixão, olhou para baixo e então, pela primeira vez, seus olhos se encheram de lágrimas desesperadas. Ela caiu de joelhos, apoiou a cabeça no caixão e chorou, sem parar, silenciosamente. Suas lágrimas escorriam pelas faces, livremente, caindo-lhe nas mãos. Pareciam brotar de algum poço sem fundo em seu espírito, que nunca tinha jorrado. Emilie estava dormindo e sorrindo, bem longe de todo o sofrimento e dor, sob sua manta de rosas e lírios brancos que o Padre Krupszyk mandara. Não havia a sombra da morte em seu rosto; as pestanas compridas estavam abaixadas delicadamente sobre a face. Ela não tinha nada a dizer ao homem abalado a sua cabeceira, nem à mulher chorando a seu lado. Afinal, ela fora livrada de tudo o que o mundo dos homens poderia lhe infligir. Lorry, chorando baixinho, ouviu um leve movimento perto de si e levantou o rosto desfigurado pelas lágrimas. Johnny estava ali muito perto dela e ela começou a tremer, pois os olhos dele não eram os olhos de que ela se lembrava, e aquele não era o rosto dele. Ele agora era um homem vingador, um homem com ódio e ela não pôde deixar de percebê-lo. — O que você está fazendo aqui? — perguntou ele, em voz alta, grosseiramente. A princípio ela teve medo de que ele não a tivesse reconhecido; depois viu que tinha, sim. Ela tentou falar no meio das lágrimas.

— Johnny, Johnny, acabei de saber. Eu… esperavam-me aqui. Ela levantou as mãos para ele, num gesto eloquente de súplica, como, há dois mil anos, uma mulher levantara as mãos a Deus. Mas Johnny agora não se lembrava de Deus, nem pensava Nele a não ser com uma raiva fria e apaixonada. Olhou para a mulher a seus pés e recuou; sua boca pálida se contraiu. — Não posso falar. Não quero ver ninguém. Quer fazer o favor de se retirar? Ela se endireitou, ainda de joelhos, deixando cair as mãos, os cabelos dourados descabelados em volta do rosto. Eles se fitaram, Lorry com tristeza e um apelo mudo e Johnny com a rejeição muda de todos que o queriam consolar e partilhar de seu sofrimento. Isso, para Lorry, foi mais horrível do que qualquer outra coisa, e ela se levantou. Ele recuou mais um passo e seu rosto ficou mais pálido. Quando ela chegou à porta e olhou para trás, ele estava de novo na cadeira, na sua vigília terrível, absorto nos seus pensamentos terríveis. Lorry subiu para o enorme quarto principal, onde, dissera a Sra. Burnsdale, as crianças costumavam se reunir. Ela as encontrou lá, sentadas num silêncio nada infantil, à luz dos abajures espalhados. A casa já se encontrava quase vazia das visitas e daquele farfalhar de vozes. Os móveis imensos e antigos quase engoliam seus corpinhos pequenos. Das mãos de Jean e Pietro pendiam rosários, frouxos. Max estava sentado muito perto de Kathy e ela estava agarrando a mão dele com força, pois ele estava de novo com aquela expressão cega, de quem busca, aquele ar arrasado. Ah, pensou Lorry, as pobres crianças. Compreendem tão mais do que Johnny. Elas olharam para Lorry em silêncio, pois seu sofrimento era grande demais para palavras. Aquele em quem tinham depositado toda a sua fé, confiança e amor as tinha abandonado, não as conhecia mais, e elas se sentiam inteiramente abandonadas. Elas notaram, com os olhos vermelhos que nunca perdiam nada, que Lorry tinha chorado e quando ela ficou ali entre elas, os braços caídos ao lado do corpo, Kathy soltou um soluço seco e deixou cair a cabeça no peito. Max gemeu um pouco; Pietro sussurrou alguma coisa mas Jean não se mexeu nem falou. — Olá, meus queridos — saudou Lorry, a voz trêmula de ternura. Sentou-se no chão no círculo de móveis agigantados. À distância estava a enorme cama branca, com suas colunas de ébano preto. Ela ansiava por se jogar em cima dela e se entregar à tristeza. Em vez disso, alisou os cabelos com as palmas e depois levantou a cabeça com seu antigo gesto de galhardia. Os olhos examinaram lentamente os rostos das crianças. Todos estavam muito pálidos e anormalmente tensos, até o de Kathy. Não eram crianças perplexas que estavam tristes, e sim almas que tinham conhecido um sofrimento e desespero incríveis, e tinham quase esquecido, e depois os tinham conhecido de novo. — Emilie — disse Lorry, tentando falar com uma segurança calma — está dormindo. Quando eu era menina, ouvia falarem que Deus disse que os anjos da guarda de pequeninos como Emilie olham para o rosto do próprio Deus. E agora o anjo da guarda

dela levou Emilie para a presença de Deus, e ela está segura lá, muito feliz, e está pensando em vocês e rezando por vocês e esperando que se lembrem dela, e que não fiquem muito tristes. Os olhos cegos de Max se voltaram para ela, recuperando a vista consciente. — Não é por causa de Emilie que estamos tristes. Sabíamos que Emilie ia para Deus, logo, mesmo antes do incêndio, como o papai sabia. Estamos tristes é pelo papai. Papai não se lembra… de nada, nem o que nos ensinou. Não foi mentira o que ele disse, mas ele se esqueceu da verdade. Pietro falou com a voz aguda e vacilante, com um tom de histeria: — Se o papai esquece, então talvez não seja verdade não é mesmo? Ê uma mentira o que a gente ouve? Jean falou, severo: — Pietro, você está sendo tolo de novo. Papai não diz coisas que não são verdade. O Padre Krupszyk não mente. Deus não mente. Kathy levantou as mãos caídas e olhou para Pietro, severa. — Se você acredita hoje e não amanhã, então não acredita nada. As coisas têm de ser felizes para Pietro, senão Pietro fica zangado e tudo é mau. Pietro começou a chorar e sua boca fez um beicinho de revolta. — Não é nada disso! — respondeu. — Mas o que vamos fazer com o papai? Por que o papai não quer nos ver, nem tocar, nem rezar? Por que se tranca no quarto e nunca responde e faz uma cara assim? É um estranho. A gente queria abraçá-lo e beijá-lo mas ele não está lá, Srta…. Lorry estendeu o braço esguio e pegou a mãozinha quente e úmida de Pietro. Ele soltou um grito, levantou-se logo da cadeira, jogou-se ao lado dela e enterrou o rosto no peito dela. Ela o apertou. — Sou Lorry para vocês, queridos, sua Tia Lorry, se quiserem me chamar assim. Kathy foi para o chão, junto de Pietro, e depois Max, e por fim Jean levantou-se da cadeira penosamente e caiu perto dos joelhos dela. Eles se agarraram a ela, chorando amargamente no seu sofrimento. Ela os abraçou e beijou seus lábios e faces. Havia tantas crianças que ela havia abraçado assim, nesses últimos meses, tantas crianças que a procuravam instintivamente. Consolou aquelas perdidas de novo, ao consolar estas. Pietro, comovido, passou as mãos pelos cabelos dela, procurando um consolo. Kathy encostou a cabeça no ombro de Lorry. Max estava junto dos joelhos dela e Jean apertou o braço dela com ambas as mãos. Ela os afagou, puxou-os para si, consolou-os. Sua cabeça se erguia no meio deles como um raio de luz. — Se vocês fossem crianças americanas comuns, eu não poderia lhes falar sobre o seu pai — disse ela, com firmeza. — Mas não são. Todos já conheceram o sofrimento, o desabrigo, o medo, a raiva e o ódio. São coisas que conheceram por muito tempo. E agora o seu pai as conhece, talvez, pela primeira vez na vida. Ele foi… abatido. Como vocês, fez perguntas, mas não quer escutar a resposta. Ele lhes deu tempo, e os amou quando vocês

estavam tentando encontrar o seu caminho para casa. Vocês devem ser bonzinhos com ele e dar tempo a ele para achar o caminho. — Mas papai é um homem e sempre foi forte — respondeu Kathy, com medo. — Se os homens não olham para Deus, e não são mais fortes, o que será de nós? — É a experiência que torna as pessoas fortes e fiéis — respondeu Lorry, com uma paixão dolorosa. — Vocês já tiveram suas experiências. Agora ele está tendo a dele. Vocês têm de tratá-lo como ele os tratou, e devem esperar até que ele os procure, como ele esperou pelo seu amor. — Papai está zangado, zangado mesmo! — exclamou Pietro, o intuitivo. — Assim como você estava zangado — respondeu Lorry. — No princípio, vocês não confiavam nele e ele era o seu pai carinhoso, que tinha paciência, e agora ele não confia em Deus, que é o pai carinhoso dele e tem paciência. — Depois de algum tempo, acrescentou: — Em algum momento, ele há de precisar de vocês, e vai chamar vocês. Tenham certeza disso. Eles pensaram naquilo com sua presciência de velhos e então brotou deles um coro espontâneo, trêmulo: — Papai, coitado do papai. Vamos esperar pelo papai. Gostamos dele. — Vimos a Emilie. Está tão linda — falou Pietro. — Ela nunca foi tão bonita. Brincava um pouco conosco, mas estava sempre tão cansada. Muito cansada. Ela sabia que ia embora. Mas o papai se agarrava a ela, quando era vontade de Deus que ela fosse para o céu. O padre nos disse isso. Então, por que o papai está tão zangado? Tornaram a chorar, agarrando-se a ela, chorando não por si, mas por Johnny. Lorry achou aquilo tão comovente que seus olhos se encheram de lágrimas de novo. — Porque ela havia sofrido tanto e ele esperava fazer com que ela fosse feliz, para ser alta e forte como vocês, mas Deus determinou outra coisa. Assim, o papai não quer aceitar a vontade de Deus. Depois, ela morreu quando não tinha de morrer, naquele momento. Tinha todos os brinquedos, e era Natal e… — E uns homens maus a mataram — replicou Kathy. — É por isso que o papai está zangado. Ele detesta Deus porque Ele deixou os homens matarem Emilie. Ouvimos a polícia. — O padre disse que Emilie era pura, e um bebê, e não precisávamos nos preocupar com o Purgatório — disse Pietro, esperançoso. — Tenho uma canção para Emilie. É a Ave Maria, Nossa Senhora, que ama as criancinhas. Por que o papai não sabe que a Mãe Santíssima está com Emilie no colo? Por que ele não… acredita? Lorry suspirou. — Ele vai acreditar. Um dia desses. Ele está doente; não pode perdoar. Está com ódio. Essas coisas nos cegam para Deus. Deixam-No de fora. Mas Deus também está esperando. Só recentemente é que ela aprendera a rezar, a pedir, a ver suas preces atendidas. — Vamos rezar nós todos, agora, não por Emilie, mas pelo seu pai?

Todos se ajoelharam juntos, com exceção de Max, que ficou de pé, rezando pela paz da menina morta e por Johnny. Ele falou, pensativo: — Mas Emilie tem paz. É só o papai. E não posso dizer Kaddish pelo papai. A oração curta e patética acabou. Pietro beijou Lorry nos lábios, — Tia Lorry vai ser nossa mãe, e não vai nos deixar. Duas empregadas apareceram com bandejas de comida quente para as crianças e Lorry. — Então — falou uma delas, com carinho — desta vez vamos comer, não vamos, e não vamos ser feios e piorar as coisas, não é? — Claro que vamos — respondeu Lorry, confiante. — Vamos nos sentar bem aqui, em volta dessa mesa grande. E… bem, Kathy, você serve a sopa, sim? Você é a mãe da família. — Não — replicou Pietro, olhando para Lorry com olhos límpidos, cheios de amor. — Tia Lorry é que é nossa mãe. As empregadas desceram à cozinha e informaram à Sra. Burnsdale, com alívio, que as crianças estavam comendo, por fim, e que tinham ouvido Pietro rir, e os outros tinham sorrido. — Gostaríamos de ver Emilie muitas vezes — disse Kathy. — Mas o papai não deixa. Quando ele descobriu que tínhamos visto Emilie, deu ordem para não irmos mais lá. Mas todo mundo vai, gente que nem amava nem via Emilie, e nunca soube de Emilie. — Estão vendo — respondeu Lorry, triunfante. — Ele ama vocês e se lembra de vocês, o tempo todo. Se não amasse, não se importava se vocês vissem Emilie uma porção de vezes. Ele quer lhes poupar sofrimento. — Mas nós sabemos tudo sobre a dor e a morte — respondeu Jean. — Podíamos até ensinar ao papai. Max acrescentou, a voz baixa e insegura: — Vimos a morte há muito tempo, e agora sabemos que não é nada. — Não podemos ir para o túmulo com Emilie — falou Kathy, com a tristeza da maturidade. — Não podemos nos despedir de Emilie. — O que importa? — perguntou Lorry. — Eu também não vou. E tenho certeza de que também não vão permitir que o seu papai vá. Seria mau para ele olhar para o túmulo dela, com toda a tristeza dele, seu ódio e esquecimento. Jean lembrou-se de alguma coisa. — Mas para mim é terrível que a imagem que a minha mãe me mandou, quando eu estava morrendo, se tenha perdido no incêndio. — Ah — disse Lorry, tomando nota mentalmente — a sua mãe há de lhe mandar outra imagem. Espere só. Ela ajudou a pôr as crianças na cama, junto com a Sra. Burnsdale. E ao lado de cada

cama Lorry Summerfield, antigamente áspera, impiedosa e amargurada, rezou uma oração simples e deixou as crianças que logo adormeceram, consoladas.

XXVII — Minha filha — falou o Dr. McManus, a voz falseando, abraçando e beijando Lorry —, você nem sabe como tenho sentido falta de você. — Lorry, alarmada, viu como ele tinha envelhecido e mirrado. Até a voz tinha perdido o guincho zangado e possante. — Imagino que lhe tenham contado tudo? Eles estavam sentados na antiga sala dos fundos, antes chamada de sala de almoço e estufa. Nas paredes havia muitas prateleiras, suportes de vasos e armações, mas agora não havia nada plantado ali. O médico, que não era contra flores “crescendo no raio de jardim, onde é o lugar delas, e não tendo os torsos cortados com uma faca”, era contra flores em casa, talvez, pensava Lorry, porque as amasse e inconscientemente acreditasse que as flores tinham o direito de permanecer onde viviam e que também elas sentiam dor. Estavam tomando café, embora já passasse muito da meia-noite. — Contaram, Tio Al — respondeu Lorry, procurando disfarçar a sua preocupação com ele. Enxugou as palmas das mãos com o lenço e sua nova magreza a fez parecer doente. — Ele… ainda está lá com a Emilie? — Está. É o único momento em que ele tem certeza de que as pessoas não vão entrar para ficar olhando para ele. As pessoas, mesmo as melhores, são curiosas. É uma coisa de espantar, mas até de noite, depois do trabalho, o povo, maldito, fica passando por aí, só para olhar a casa. E, sinto dizer, é por causa do Mac… está sempre publicando pequenas insinuações. Hoje tem uma aqui. — Ele abriu o jornal e o mostrou a Lorry, cujos lábios assumiram uma cor viva. “Ainda há uma porção de perguntas sem resposta sobre a infeliz morte de Emilie (sobrenome desconhecido), pupila do Reverendo Sr. John Fletcher desta cidade. Por que a menina não tinha sido removida para um hospital há tempos, quando se soube do seu estado? O ofício para a criança será realizado no sábado pelo reverendo Sr. Gordon Hemsmith, da Igreja Comunitária de Barryfield, pois dizem que o Sr. Fletcher continua num estado de colapso.” Lorry largou o jornal, calada. O médico disse: — Houve outra pergunta ainda hoje de manhã, sob uma foto dos destroços fumegantes da casa paroquial. “Mistério em torno da morte da menina Emilie, suposta órfã que morreu nesse incêndio. Quem é Emilie?” Tenho olhado as caras dos brutos que passam por aqui… não são nossos paroquianos … e lhe digo que parecem do tipo que lincha. Mas por quê? Por que hão de se incomodar com aquela coitadinha? Pois bem, Lorry, vou lhe contar, pois conheço a humanidade. O tipo que lincha é uma grande minoria em todo país. Eles não se importam com quem é que matam, contanto que possam matar. Quando estoura uma guerra, são os heróis que ganham medalhas, uma porção, por correr direto ao inimigo com granadas de mão. Pensa que a maioria está mesmo pensando em lutar pela pátria? Nada disso. A maior parte é de assassinos natos, e essa é a sua oportunidade. Já estudei os linchamentos, por curiosidade. E quando a polícia apanha os

lincha- dores, adivinha o que acontece? Alguns deles são heróis de alguma guerra! Lorry, pensando apavorada sobre o que o pai estava escrevendo a respeito de Johnny, que estava arrasado, quase morto, mal ouvia o que o médico dizia. — Ora — continua ele —, se eu fosse analista e empregado pelo exército, sabe o que faria? Não eliminaria os psicopatas e os neuróticos sanguinários. Seriam os primeiros escolhidos; até procuraria por eles. Fariam o melhor trabalho do mundo, e bem depressa. A moça sabia que ele estava tentando, com pena, distrair a atenção dela do sofrimento negro daquela casa e tentou sorrir para ele. — Tio Al, deviam fazer do senhor um general de quatro estrelas — respondeu ela. Mas estava pensando no pai com aversão, o pai que ela amava. Acrescentou: — Hoje liguei para a mãe. Ela vem me ver amanhã e pediu… implorou… para não deixar que outras pessoas saibam que estou aqui. Por… por causa dele. Como ela pode amá-lo é que não sei. Mas prometi que ficava escondida e não ia ao enterro, onde provavelmente estarão os fotógrafos dele. — É por isso que vamos aplicar uma injeção de algum tipo em Johnny, umas horas antes, para ele também não poder ir. Bom, coitada da Esther. — Suspirou e estendeu a mão para pegar a de Lorry. Seus olhos inchados piscaram, comovidos. — Minha filha, minha filha querida e maravilhosa. Lorry, eu não queria que você soubesse, até me esqueci de você. Mas é um consolo para mim, agora. Ela lhe contara sobre as crianças e ele tornou a piscar, os olhos úmidos. — Pobrezinhos. Seriam a melhor coisa no mundo para Johnny, e talvez ele saiba disso, e talvez ele pense que se falasse com elas, ia se render e se esquecer de que quer matar o homem ou homens que incendiaram a casa dele. Ah, sim, há provas de criminalidade. — Eu sei. A Sra. Burnsdale me contou. — Lorry levantou a cabeça abruptamente e sua voz ficou mais forte. — Essas insinuações no jornal! São insinuações…? Ah, Deus, não! Ele… não poderia estar pensando nisso! Não pode ser assim tão mau! — O seu pai pensaria em tudo, ou qualquer coisa, para se livrar do Johnny, de qualquer modo. Espere, amor… Sente-se. Ele não ousa dizer coisa alguma realmente difamante; existem leis. Está indo até onde pode. Estamos vigilantes. O enterro foi íntimo. O médico tinha providenciado para isso, de modo que só compareceram alguns amigos. Johnny não estava lá, quando se realizou o ofício na sala que parecia um museu; tinha sido dopado, não com sua concordância mas porque o médico lhe dera várias cápsulas de manhã, dizendo, em voz alta: — Johnny, se você quiser aguentar o dia de hoje, é bom tomar isso. Johnny, que não comia desde a noite da véspera de Natal, e já estavam no sábado, tomou as cápsulas, só para se livrar da insistência do médico, e depois subiu para o quarto, aos tropeções, e caiu de cara na cama. Só acordou às 22h00. As crianças tiveram licença de assistir ao ofício na casa e ficaram sentadas junto do caixão de Emilie, sem chorar. O médico pensou, com pena, no que estariam imaginando.

Estavam tão sérias, até Pietro. Ele e Jean se ajoelharam junto do caixão antes do ofício, as contas dos rosários passando por suas mãos. O ministro era um rapaz tímido, que estava dolorosamente perturbado com tudo aquilo. Tinha uma filha da idade de Emilie e cada vez que olhava para a carinha no travesseiro branco, pensava em sua Toby e seus olhos se enchiam de lágrimas. Um grupo se juntou na calçada, na rua, um grupo de homens carrancudos. O médico disse ao Padre Krupszvk e ao rabino: — Que diabo estão fazendo aqui? O rabino disse, com pesar: — É uma turma antiga, eu os conheço bem. As crianças não tiveram licença de ir ao cemitério. — Já sei, já sei! — gritou o médico, irritado, quando eles pediram. — Mas olhem, deixamos vocês assistirem ao oficio em casa e o seu pai também não gostaria disso. Não peçam mais. Isso é o que chamamos de concessão mútua. Meninos da aula dominical carregaram o caixão e entre eles estava o vulto alto e desengonçado de Lon Harding, o rosto tão inchado de lágrimas que estava quase irreconhecível. — Não me importo de parecer esquisito, ser tão maior do que aqueles guris — disse ele aos organizadores do enterro, teimando. — Eu adorava essa pequena. Era a minha queridinha. Plantei pés de lilases para ela. O médico o apoiou. Os fotógrafos já estavam esperando no cemitério solitário e desoladamente branco, quando chegou o pessoal do enterro, o carro fúnebre na frente. Bateram muitas fotos. Mais tarde, sob as fotos publicadas, havia umas três linhas: “Poucas pessoas compareceram ao enterro de Emilie (sobrenome desconhecido ) na manhã de ontem, que morreu no misterioso incêndio na véspera de Natal, enterrada hoje. A polícia continua procurando os supostos criminosos. Alguns dos incendiários conhecidos foram presos para interrogatório”. Emilie foi sepultada e o médico pensou: Bem, amorzinho, ninguém mais pode te fazer mal, nunca mais. Deus te abençoe, abençoe, abençoe. O rosto dele, os dos clérigos e dos Drs. Sol Klein e Tim Kennedy enchiam a foto. Lorry permaneceu na casa. Ficava no andar de cima, com as crianças, quando chegavam visitas, para atender ao pedido da mãe. Ninguém, fora daquela casa, sabia que ela estava ali. Ela disse à mãe: — Tenho de ficar. Tenho de esperar até saber que ele está melhor. O Tio Al diz que se ele não começar a comer direito dentro de uns dias, vai interná-lo no hospital e começar a alimentação forçada. E ele é capaz disso mesmo — acrescentou Lorry, com um leve sorriso. — O Tio Al diz que não há nada que faça as pessoas comerem bem tão depressa quanto um tubo no estômago ou uma agulha comprida no braço. — Nem sei o que eu ia fazer dessas crianças se não fosse a senhora, Srta. Lorry —

disse a Sra. Burnsdale. Ela estava meio perdida, até que Lorry e o médico sugeriram que talvez ela gostasse de ficar encarregada da cozinha. — Mas as outras empregadas ficariam ofendidas respondeu a pobre mulher, ansiosa. Mas isso foi arrumado com tato e a Sra. Burnsdale ficou tão ocupada que passou a achar seu sofrimento por Emilie e Johnny quase suportável. A noite de véspera de Ano-Novo chegou com céus purificados. Agora havia uma neve funda nos vales e nas montanhas. O Dia de Ano-Novo não foi uma comemoração, mas a Sra. Burnsdale tinha cozinhado um assado imenso e todos fingiram apreciá-lo a não ser Johnny, que raramente saía do quarto e não queria comer nada. Lorry distraía as crianças, cantando para elas baixinho ou contando histórias na sala dos fundos. Obrigava-as a saírem para tomar ar, experimentar os novos trenós e outros presentes que o médico e amigos lhes tinham dado de Natal, e que estavam a salvo, no salão paroquial. Lon Harding, que se sentia responsável por toda a família, os levava ao zoológico ou a um teatro ou até ao seu próprio ginásio no colégio para que admirassem seus talentos no basquete e outros esportes. Pois já estavam no dia 5 de janeiro e as aulas tinham recomeçado. Johnny estava comendo um pouco, no quarto. O médico lhe dissera: — Vou mandar interná-lo, que Deus me perdoe, criatura, se não colaborar conosco. Não lhe estou dizendo para sair, nem nada, nem retomar uma vida normal, pois sei o que está passando, mas se você não comer vou interná-lo no hospital e aí você vai ter de pensar noutra coisa, pode crer. Johnny não respondeu, mas entendeu vagamente que o médico não estava fazendo ameaças vãs. Ele não queria ver as crianças, mas sentia que não poderia deixar a casa onde elas estavam. Via-as de relance, a distância. Elas não corriam para ele porque o médico lhes tinha dito para não o fazerem. Mas ele nunca parava para olhar para elas, nunca ia à sala dos fundos onde a Srta. Coogan estava de novo ensinando a elas. Ele não voltara à sua igreja desde a véspera de Natal. Por vezes vagava mudo pela casa do médico, como que procurando alguma coisa, mal sabendo o que estava procurando. Mais ou menos de hora em hora ele se espertava o suficiente para ligar para a polícia e perguntar se tinham alguma notícia para ele. Seus olhos conservavam uma expressão fixa de preocupação, e as roupas lhe caíam disformes no corpo magro. Por vezes ele olhava em volta, piscando, como que se perguntando onde estava, Quando a Sra. Burnsdale lhe falava, ele não parecia ouvir. Quando dormia, era só a poder de algum sedativo. Só dizia uma coisa, quando o médico insistia: — Tenho de encontrá-los. Tenho de encontrá-los. E seu rosto ficava ainda mais terrível. Nunca falava de Emilie. Nunca perguntou pelo seu enterro. Os amigos dele, o padre e o rabino, iam vê-lo quase todos os dias. Outros ministros, quase estranhos, também iam. Ele escutava educadamente os pêsames deles, mas seu rosto, cada vez mais mirrado, lhes mostrava que ele não estava ouvindo nada. Parecia poder suportar com maior facilidade os ministros do que o padre e o rabino, pois sabia que

estes o amavam e no momento ele não podia suportar o amor. Isso constituía um temor para ele. Sentia que se o admitisse, ele racharia e seria arrasado e teria de começar o longo caminho de volta do ódio e sofrimento, e isso ele não queria fazer. Queria conservar a sua raiva, a sua repulsa a Deus. Outro ministro estava provisoriamente tomando o lugar dele. O Dr. McManus, numa tentativa patética mas vã de estimular Johnny, retirou os grandes candelabros da igreja e os colocou na sala, acintosamente, onde ele não poderia deixar de vê-los quando entrasse. Ele entrava nessa sala mais frequentemente do que em qualquer outra. Mas nunca olhava para os candelabros. Tinha um mundo pequeno mas imutável, como um túmulo, com apenas um desejo. Se via Lorry, não dava qualquer sinal de reconhecê-la. Ela se colocava no caminho dele e ele passava por ela sem um olhar. Ela falava com ele, a voz falseando, e ele não respondia. — Ele não sabe que estou aqui? — perguntou ela ao Dr. McManus. — Sabe, sim, amor — respondeu o médico. — Mas não quer saber de você, como não quer saber de John Kanty e o rabino. Porque sabe que você o ama e não quer amor. Quer ódio, Se você fosse procurá-lo no quarto agora e dissesse: “Pegaram o homem que fez aquilo”, ele se levantaria da cadeira de um salto e sairia desta casa em cinco minutos, correndo para a delegacia. Lorry disse, em prantos: — Bem, não o culpo, e compreendo. O médico, exausto de preocupação, exausto com seu trabalho, pois nesses dias tinha tido tantas operações, passou os dedos pelos cabelos, que nunca parecia pentear. — Ele às vezes fala comigo, de um modo meio amortecido, porque tem medo de mim, medo do que eu poderia fazer com ele, de modo que eu o fico assustando com hospitais e ele sente que tem de me apaziguar de algum modo. Deus, Lorry, não sei mais o que fazer. Ela ficou severa. — Tio Al, ele tinha tanta fé. A fé fazia parte dele, como os olhos, as mãos. Tinha tanto amor… por Deus. Em nome de Deus, ele perdoava tanta coisa. Por que não se vira para Deus agora? Não tem mais fé? — Talvez, só por um pouco. Conversei com John Kanty sobre isso. Ele disse que isso às vezes acontece, especialmente com homens como Johnny. Se alguém o tivesse cegado ou aleijado, por ódio ou loucura, Johnny estaria ali, consolando-o, perdoando, protegendoo, falando de Deus. Teria ficado pendurado na sua própria cruz, consolando o inimigo, esquecendo-se de sua própria agonia. Mas fica alucinado quando alguém ou alguma coisa faz mal a um de seus filhos. Ora, eu me lembro da vez em que cortaram o pescoço do Max. Ele ficou quase doido, por uns tempos. Não sei o que teria acontecido, se Max tivesse morrido. Alguma coisa assim, imagino. “De algum modo distorcido, ele está responsabilizando Deus por Emilie. Se Emilie tivesse desaparecido aos poucos, em paz, como era esperado, ele teria recuperado sua fé

em poucos dias. Mas do jeito que foram as coisas… — o médico sacudiu a cabeça. — Mesmo que todos tivessem tido uma vida feliz até agora… os guris… poderia não ser tão sério. Se algum dia encontrarem o homem que fez isso, é bom ficarem atentos. Johnny vai estraçalhá-lo. Acho que, bem no fundo, ele está odiando Deus.” Mas foi Lorry quem conseguiu a primeira reação da parte de Johnny. Ela o encontrou sentado na sala escura, ao crepúsculo, onde ele tinha ficado sentado à cabeceira do caixão de Emilie. Estava de cabeça baixa, os braços pendurados entre os joelhos. Ela se aproximou dele e pediu: — Johnny? Fale comigo, Johnny. — E estendeu os braços para ele, implorando. Ele levantou a cabeça devagar e os olhos cavados a contemplaram, aturdidos. Depois perguntou: — Lorry? — A voz dele estava muito fraca. — Lorry, Lorry. Não me aborreça, Lorry. Vá embora, por favor. — Ela recuou e então a agonia apareceu no rosto dele. — A caixa, a caixa que você me deu… também se foi. Ela contou o que acontecera ao Dr. McManus, que ficou entusiasmado. — Talvez ele esteja saindo desse estado! Ele ligou para o Padre Krupszyk e pediu que fosse lá nessa noite. Ligou para o velho rabino, que estava doente, em parte de gripe e em parte de sofrimento pelo amigo. Estava proibido de se levantar da cama. — Vamos atacar de uma vez, nós três — combinou o Dr. McManus, com o padre e Lorry, naquela noite. — Vamos dizer o diabo a ele; vamos pegá-lo desprevenido. O padre Krupszyk ficou na dúvida. — Que tal primeiro prendermos toda a atenção dele, doutor? A gente não açoita um cavalo moribundo, sabe. Mas talvez se possa dar-lhe alguma coisa que o esperte um pouco, para podermos alcançá-lo.

XXVIII As crianças estavam na cama e Lorry no quarto dela, rezando de todo o coração, as lágrimas escorrendo pelas mãos dobradas. — Foi por causa dele que vim a conhecer-Vos, a amar-Vos, Pai — implorou ela. — Todos precisamos tanto dele. Nós o amamos tanto. E precisamos dele e o amamos porque Vós o tornastes necessário a nós. Ajudai-nos, ajudai-nos, hoje! Ela mudou o vestido e pôs um de lã azul-clara, os cabelos presos frouxamente na nuca. Não havia nada a fazer com o rosto abatido, em que os olhos cor de turquesa pareciam muito grandes e dilatados. Depois ela desceu. Johnny estava sentado, como sempre, no seu lugar, calado como sempre, absorto em seus pensamentos, como sempre. Mas o médico lhe dera um estimulante, que o deixara irrequieto. Ele estava torcendo as mãos, apertando-as com força sobre os joelhos, mexendo a cabeça, como que sentindo alguma dor e por vezes levantava os olhos sem ver. O Padre Krupszyk já estava lá, e o médico. Johnny nada lhes dissera. Quando Lorry entrou, sem fazer barulho, Johnny levantou a cabeça e ela viu que ele a vira distintamente, antes de tornar a virar a cabeça. Ela se sentou ao lado do médico e ficou esperando. Não sabia o que pretendiam fazer. Teriam de aguardar algum sinal, ou de Johnny ou de alguma força misteriosa. Os lábios do Padre Krupszyk estavam-se movendo mudos, e ele tinha um livrinho de orações na mão. O Dr. McManus, quase tão agitado quanto Johnny, se movia na cadeira, sem parar. Os candelabros tinham, sido levados para a sala escura e estavam um em cada extremidade, enchendo a sala grande com uma radiosidade suave e móvel. Por vezes Johnny olhava para eles com um leve espanto, como que se perguntando o que seriam. Ele agora por vezes olhava para as três pessoas, e sua testa se franzia, como a de alguém sofrendo de amnésia, tentando lembrar-se. Em algum lugar um relógio fazia o seu tiquetaque, impiedoso, e o vento de inverno batia nas vidraças, zangado. Então o Padre Krupszyk se levantou e se aproximou. Esperou até Johnny olhar para ele e então tentou prender aqueles olhos febris. Começou a falar com força e uma segurança tranquila. — Johnny, sinto que Nosso Senhor nos mandou até você hoje, e que lhe deu uma ordem solene de escutar. Pois não estamos aqui por você, e sim pelos que o amam, e os que você abandonou totalmente na sua preocupação com o seu próprio sofrimento. “Os homens que são chamados para servir a Deus têm de servi-Lo de todo o coração e alma. Têm de ser compreensivos em tudo. Têm de conhecer a humanidade, perdoá-la e amá-la. Não podem pensar em si, nem em suas ideias de ódio ou… vingança”. Os olhos de Johnny vacilaram, mas em seu rosto não houve qualquer outro movimento. Ele começou a baixar a cabeça e então, como se alguém a tivesse pegado, levantou-a. — Você fracassou, Johnny — continuou o padre, severo.

— Fracassou com Deus e com os homens. Não precisamos de explicações, nem súplicas. Sabemos, e sofremos com você. Mas você, um ministro, falhou. Já pediu perdão por isso? — Olhou para o terno à paisana de Johnny. Apontou para ele. — Você tirou as vestes de sua fé, em ódio, desafio e raiva. Ofendeu a Deus, e isso agrada a você. Não pode deixar de crer Nele, de modo que O ofende. Você O expulsou de sua presença. Johnny, você está no inferno. A expressão de Johnny continuou imóvel, mas seus olhos estavam-se movendo depressa, não com vergonha ou tristeza, mas com uma cólera indizível. Uma vez chamejaram sobre o padre, e uma vez ele parecia que ia falar. Ficou observando, como um animal selvagem e desconfiado, a aproximação do padre, e se endireitou na cadeira, encostando as costas no espaldar como se procurasse uma fuga. O padre continuou em voz mais forte e límpida: — Nosso Senhor sabia o que teria de suportar neste mundo. Você, como ministro Dele, sabe perfeitamente que o Caminho da Cruz é o caminho daqueles dedicados ao serviço Dele. De tão boa vontade quanto Ele veio, assim você assumiu os deveres do serviço Dele… para levar os homens a Deus. “A tortura foi a dádiva que Nosso Senhor ofereceu a Deus, pois Ele amava os homens e Ele ergueu Sua agonia por eles. Foi crucificado na Sua cruz, sangrando das feridas da carne e das feridas de Seu Espírito. Levantou toda a Sua Paixão ao trono de Deus, em expiação dos pecados dos homens, pela salvação das almas dos homens. “Johnny, o que você ofereceu a Deus, na sua extremidade? A sua dor, a sua perda, o seu tormento… como uma dádiva, pela salvação das almas? Mostrou humildade e disse, como Nosso Senhor: ‘Seja feita a Vossa vontade?’ E depois, abriu a sua alma, aguardando a resposta que está pronta para você, mas que você não deseja?” A raiva de Johnny explodiu em seus olhos e ele abriu a boca. — Ah, graças a Deus! — exclamou o Dr. McManus. —·Não, escute-me — continuou o padre, ainda mais severo, apontando um dedo para reprimir Johnny. — Talvez você nunca mais me escute. Talvez, se rejeitar o que lhe digo agora, eu nunca mais pise nesta casa. Ele parou. As mãos de Johnny estavam cerradas. Não conseguia desviar o olhar de cima do padre, que de agora estava odiando quase tanto quanto odiava a Deus. — O que você entende de Deus, Johnny? Foi um bom ministro, um bom homem. Consolou os doentes e os moribundos. Salvou os indefesos. Rezou e acreditou em suas orações. É só isso que pode fazer? Um homem limitado? Um homem que não pode aceitar a própria agonia, não pode oferecê-la a Deus como um dom supremo, mas que sente que, acima de todos os outros ministros, todos os outros padres, tem uma proteção especial dos tormentos que nos afligem a todos, em algum momento da vida? Johnny, você é um homem de orgulho, de vangloria. Você cometeu um pecado mortal, Johnny, você não é um ministro. Ofendeu a todos, todo amor, todo misericordioso, com o seu orgulho, a sua pena por si, a sua falta de vontade de encontrar, pela oração e a esperança, o motivo de sua dor. Johnny, vou deixá-lo agora. Para mim, é doloroso demais ver um ministro se afastar de Deus.

Lorry, olhando para Johnny, viu a agonia extrema em sua fisionomia, apesar de toda a fúria em seus olhos. Ah, por favor, por favor, disse ela, intimamente, para o padre, está magoando-o demais, demais. As mãos de Johnny agarraram os braços da cadeira, o rosto ficou convulsionado, como o rosto de um moribundo. Lorry não pôde mais suportar aquilo. Levantou-se e correu para ele, caindo de joelhos na sua frente. Rompeu em prantos e pôs a cabeça no joelho dele. As mãos de Johnny aos poucos se descontraíram. Ele olhou para Lorry e a tortura de seu rosto foi substituída por uma expressão pasma de dor e uma revelação mística. O padre recuou e o Dr. McManus se debruçou na cadeira, tremendo com a certeza de que alguma coisa estranha e misteriosa estava ocorrendo. Não pôde acreditar quando viu a mão de Johnny se levantar, devagar e debilmente, e pousar na cabeça de Lorry. Ela havia prendido as mechas compridas muito frouxamente e os cabelos caíram sobre seus ombros, brilhando como fogo à luz das velas. Seu rosto estava escondido no joelho de Johnny, e seus soluços encheram a sala, ressoando para todos eles. O padre recuou para as sombras e fechou os olhos um instante, seu coração começando a bater descompassadamente. Então Johnny, com uma ternura e compreensão infinita, pôs as mãos nas faces de Lorry e levantou a cabeça dela e olhou dentro de seus olhos. Sorriu para ela, com um pesar profundo. Ela se encostou nele, chorando sem parar. — Johnny — falou ela, a voz falseando —, escute. Você sabe o que fez por mim? Salvou a minha alma. Sabe o que eu era antes de conhecê-lo? Eu detestava todo mundo, detestava a mim mesma, não acreditava em nada; queria… vingança… pelo que acreditava que alguém me fizera. Ele o fizera, sim, mas por causa de sua própria maldade e ignorância. Você me fez perdoá-lo, Johnny, quase perdoá-lo. Com sua ajuda, posso realmente perdoá-lo. “Eu era uma mulher amargurada e inclemente, Johnny, e você me pôs no rumo de fazer as coisas que você havia de querer que eu fizesse. Quatro vezes por semana, desde que saí daquilo, tenho trabalhado muito com a Comissão dos Amigos Americanos, os quacres, salvando as crianças da Europa, assim como você salvou os seus filhos. Dei dinheiro, mas mais do que todo o dinheiro, dei minhas mãos, a fé que você me transmitiu e o amor e a compreensão que você me deu”. Johnny estava segurando o rosto dela com força. Inclinou-se sobre ela, como para protegê-la e consolá-la. Os dedos dele estava enterrados nos cabelos dela e ela se chegou a ele, e o rosto dele estava cheio de luz e amor. Lorry se levantou um pouco e pôs o rosto no peito dele, e os braços dele a envolveram. — Por causa de você, Johnny — continuou ela, quase sem se fazer ouvir —, eu fiz tudo isso. Quando ficava muito cansada, pensava em você. Quando olhava para as crianças apavoradas, lembrava-me de você e dizia a elas o que você dizia aos seus filhos, e elas se consolavam e não ficavam mais assustadas. Por causa de você, Johnny, de você. O Dr. McManus, cujos olhos estavam meio doloridos, olhou para o padre, mas ele

ainda estava rezando. Johnny agora estava-se levantando da cadeira, abraçando Lorry. Ele a apertou bem e depois beijou-a na testa, com brandura. — As crianças — respondeu ele —, as pobres crianças. Deus te abençoe, Lorry, meu bem, meu bem. O padre virou-se de repente e saiu da sala. O Dr. McManus ficou ali sentado, olhando, enquanto Johnny consolava Lorry. Johnny estava dizendo: — Eu errei. Pequei, também, Lorry. Nem sei onde estive, todos esses dias. Será que Deus me perdoará, um dia? Será que tornará a me aceitar? Não sei. Pode ser que nunca mais me dê ouvidos. Ele agora estava cheio de um novo pesar e um remorso terrível… e humildade. Viu o Dr. McManus pela primeira vez e sorriu um pouco para ele, por cima da cabeça de Lorry. Então, ouviu-se um barulho rápido de muitos passos na escada e o padre tornou a entrar e com ele vinham as crianças vestidas com roupas de dormir, chorando, estendendo os braços. — Papai, papai! — exclamaram, em lágrimas, correndo para Johnny. Ele afastou Lorry, com meiguice, e as crianças o rodearam, e ele as abraçou, consolando-as. — Voltei para casa. Estive fora um pouco, mas voltei para casa. Ele agora estava vivo, desperto, ainda dilacerado pela dor, mas aceitando-a com humildade. Estendeu a mão para o padre, sem dizer nada, e o Padre Krupszyk apertou a mão dele, em silêncio. No domingo seguinte Johnny fez o seu primeiro sermão desde a véspera de Natal. Sua única mágoa era que Lorry tivesse de voltar para Nova York.

XXIX Pietro e Jean foram à missa cedinbo, para poderem ver Johnny antes de ele ir para sua igreja. Max também voltou cedo da escola dominical. Estavam felizes e entusiasmados, embora mais calmos do que em geral, lembrando-se de Emilie. Mas lá estava o pai de novo, sorrindo, se bem que de uma magreza e palidez anormais, esperando para recebê-los e perguntar pela igreja e a escola dominical. Os braços dele ansiavam pelo corpinho perdido de Emilie, e Pietro, com a sensibilidade aguda do italiano, sabia disso, fingiu estar impertinente e se meteu no colo de Johnny. Johnny sentiu a pressão do corpinho franzino e nervoso e ficou indizivelmente grato. As outras crianças também compreenderam e não lançaram a Pietro seus olhares normais de desdém pelo emocionalismo dele. Então eles souberam do amor do pai e Lorry e de um casamento futuro. — Mas não num futuro muito distante — acrescentara Johnny, depressa, ao ver a decepção nas fisionomias deles. — Sabe, a Tia Lorry fez uma promessa a Deus, há alguns meses, de ajudá-Lo com Suas crianças órfãs da Europa, crianças como vocês. E quem vai deixar de cumprir uma promessa a Deus? Ele pensou na sua própria promessa falhada, mas sabia que tinha sido perdoado. No entanto, apesar do sorriso, sua fisionomia estava mais sombria. — Às vezes — falou Pietro, pensativo, escovando um fiapo do ombro de Johnny, com a mão inquieta — não é bom fazer uma promessa a Deus que a gente não possa cumprir. Ou que seja tolice cumprir. — Isso não é tolice — respondeu Johnny. — A promessa da Tia Lorry só acaba no fim do verão, e vocês têm de ter paciência. Sim, Kathy, claro que você pode levar as alianças. E agora, benzinhos, tenho de deixar vocês e entrar na igreja. Eles o beijaram e o viram sair, e cada qual, a seu jeito, percebeu que uma mudança triste se operara nele. Eram novos demais para saber que era um crescimento espiritual. A congregação não pôde deixar de notar que o ministro estava de uma palidez mortal e muito abatido. A igreja estava apinhada, para dar-lhe consolo e compreensão. Eles viram os cabelos brancos nas suas têmporas e suspiraram, mas ele estava ali, digno, as mãos dobradas e frouxas à sua frente. Havia algo distante nele, e no entanto, paradoxalmente, algo carregado e iminente. A voz dele, quando veio, não era vaga nem fraca, mas forte e possante. — Nosso Senhor Divino falou do castigo que terão aqueles que ofendem os pequeninos que o amam. “Na minha casa havia uma pequenina assim, quase um bebê, que me escutava embevecida quando eu lhe contava do amor de Nosso Senhor por ela. Sabem, até eu encontrá-la, ela nunca conhecera o significado do amor, ou o que era o amor, ou a alegria e maravilha que é”. Parou, com um nó na garganta. Os olhos de muitas mulheres estavam molhados, e os homens baixaram as cabeças.

— Eu a amava e as outras crianças também, as que salvei da morte. Ela não se convencia. Quando eu a beijava, mesmo na noite em que ela morreu, quando a arrumei na cama como vocês arrumam seus filhos, ela sorria para mim assombrada… e feliz. Eu lhe ensinei a amar a Deus. Nessa noite, ela mal podia esperar pela manhã em que ia comemorar o nascimento Dele. Mas… nunca pôde fazê-lo. Ela Lhe dissera a sua última oração inocente, na confiança de que Ele a ouviria e a abençoaria. E sem dúvida Ele o fez. A boca se contorceu numa agonia amarga e ele não conseguiu falar, por alguns minutos. — Essa menina terá morrido em vão? Ouvi dizer que 96 pessoas idosas e pequeninas como a minha Emilie morreram durante o que os cientistas displicentemente chamam de uma “inversão”. Foram mortas por isso. Vejo que hoje faltam na igreja vários pais e mães. Estão em casa, ainda chorando seus mortos, seus pequeninos como Emilie, que não tinham feito mal algum e que tinham amado os pais e a Deus, e como ela, estavam esperando pelo Natal. Ele deu uns passos para se aproximar mais da congregação, que o escutava no maior silêncio. — Li os jornais, como vocês. Os médicos dizem, com muito cuidado, que o smog que afeta esta cidade foi apenas uma causa contribuinte para essas 96 mortes. “Apenas”, dizem eles. Esses homens e mulheres idosos e essas crianças mal se mantinham vivos, em todo caso. Provavelmente teriam morrido um dia depois, duas semanas depois, dois meses ou talvez um ano depois. A voz de Johnny ergueu-se, apaixonada. — E quem são esses que privaram essas 96 vítimas desses dias, dessas semanas, meses ou até anos? Quem nos dirá que não importa se perdemos mais alguns sorrisos, vozes, risos e amor nesta terra? Quem terá a arrogância de ousar dizer que o que perdemos e o que os nossos queridos perderam não é nada, porque as vítimas já estavam mesmo condenadas? Quem lhes deu o direito de envenenarem a tal ponto o ar e de serem os únicos juízes e nos dizer quanto tempo os nossos filhos e pais podem viver e por quanto tempo poderemos ver seus rostos queridos e ouvir suas vozes? Esses preciosos dias, horas, semanas, meses… pertenciam a nós e não àqueles que, por sua ganância monstruosa, espalharam a corrupção e a morte em nossa cidade. A congregação estava sentada atenta nos bancos, e a luz de velas mostrava o brilho de dezenas de olhos furiosos. — Quem deu a esses homens o poder de vida e morte sobre nós? Quem disse que têm o direito de nos infligir sofrimentos? Eu os conheço. Vocês os conhecem. Moram no alto dos montes, onde os filhos deles não morrem sufocados e os velhos pais e mães não sufocam. Essas coisas todas já lhes foram apontadas muitas vezes, mas eles se limitam a sorrir e não fazem nada. Ouvi dizer que um deles chegou a dizer que era um bom meio de se controlar a população! Um rumor de raiva percorreu a igreja. Johnny debruçou-se, as mãos cerradas. — Eles assumiram a prerrogativa que só pertence a Deus… o direito sobre a vida e a

morte. Ofenderam os pequeninos. Dizem que a eliminação da fumaça será muito dispendiosa. Qual a origem desse dinheiro? O dinheiro que foi ganho para eles por aqueles que têm sido obrigados a ver morrerem os filhos e os pais, sem poder fazer nada! “Tenho aqui as cifras que mostram exatamente quanto custaria para esses homens eliminarem a fumaça desta cidade, a fuligem e a sujeira das ruas, a sujeira em nossas casas e a morte de nossos jardins e gramados. Tenho as cifras que representam a vida e a morte dos indefesos. Não são pequenas. Mas tampouco são tão vultosas que uma criança não valha mais. O custo não prejudicaria os homens que poluem a nossa cidade, em suas fortunas. No entanto, eles se recusam a fazer o que devem fazer, para evitar que nos envenenemos, nos matemos. Por quê? O dinheiro será tão precioso, tão sagrado, que nossas vidas não representam nada, em comparação?” A congregação mexeu-se. Johnny levantou as mãos. — Se assassinos fossem pilhados envenenando o nosso abastecimento d’água, a justiça seria rápida e certa. No entanto, esses homens que tornaram o nosso ar uma fonte de mortes não são punidos. Não são sequer repreendidos! E por quê? Porque detêm o poder maravilhoso do lucro sobre os nossos políticos, porque os nossos políticos são criaturas deles, e graças à generosidade dos senhores, as criaturas também podem fugir da morte amarela que ronda as nossas ruas. Johnny avançou quase até a borda de madeira dos três degraus que levavam ao altar. Estava com o rosto em fogo. — A paciência do povo é longa e branda. Mas chegou o momento em que a paciência não é mais uma virtude, e sim um vício covarde. Se vocês, o povo, não fizerem alguma coisa agora quanto a essa morte em nossas ruas, então também estarão pecando pelo seu silêncio e covardia, e serão tão culpados quanto eles. A voz dele abaixou, exausta. — Nunca acreditei que o púlpito fosse o lugar para a discussão de assuntos materiais, e sim um lugar em que os ministros devam falar de Deus. Mas agora sou impelido a lhes falar para terem piedade dos doentes, dos agonizantes, das crianças… alguns dos quais podem estar em suas casas, neste momento mesmo. Quando saírem, na porta, encontrarão petições mimeografadas. Eu as preparei para vocês. Levem-nas, preencham com seus homens. Mandem-nas ao prefeito desta cidade. Peçam uma ação imediata; exijam-na. Vocês, homens que trabalham nas fundições, nas usinas e fábricas, declarem, por meio de seus representantes, que se a fumaça não for eliminada, vocês não se aproximarão de seus cadinhos, seus bancos, suas máquinas. Então será eliminada a fonte da morte amarela. “Podem estar certos — acrescentou — que esses homens que matam os nossos entes queridos nunca poderão suportar a ira de toda uma população. Pittsburgh e outras cidades já eliminaram esse mal sulfuroso que as estava envenenando. Fizeram isso porque seu povo o exigiu, com uma voz unida, forte, segura e resoluta. Vocês também podem fazer isso. “Podem começar amanhã mesmo. Talvez que a próxima inversão leve um ano para aparecer, ou dois anos. Mas pode surgir dentro de uma semana, ou um dia. Quem, sentado

aqui agora, pode dizer com certeza que em tão pouco tempo os seus lares não se podem tornar casas enlutadas? “Minha filha terá morrido em vão? Algumas de vocês, mulheres, a viram. Alguns se lembrarão dela, na véspera de Natal, sentada com o vestido bonito. Hão de se lembrar de seu rosto de criança, seus sorrisos, seu êxtase de antecipação, que nunca foi realizado. Eu lhes imploro, eu lhes suplico, não permitam que sua morte tenha sido em vão”. Ele não conseguiu mais falar. Olhou para eles, implorando, as mãos estendidas. E eles retribuíram o olhar com uma determinação rígida, ou em um silêncio choroso. Quando ele foi se encontrar com o Dr. McManus, teve a satisfação de ver que as petições tinham sido recolhidas, todas elas. Ele se recostou na limusine e fechou os olhos ardendo. O médico olhou para ele, debruçou-se e cerrou as sobrancelhas, que quase tocavam nas pálpebras. Estavam-se aproximando da mansão vitoriana, quando o velho médico falou: — Vão preenchê-las! Daqui a alguns dias, vão estar se empilhando na mesa desse maldito prefeito, você vai ver! — Espero que sim — respondeu Johnny. Seu coração palpitava e ele estava ofegante. O médico mordeu o lábio. — Nada como o momento presente. Gostaria de lhe contar a respeito de umas pessoas que conheço. Gente boa. O pai era empregado numa das lojas de artigos masculinos aqui. Morreu há dois meses. E há uma semana a mulher morreu, de parto. O bebê também morreu. Um casal jovem, bom, honesto, respeitável, independente, patriota, valente e esperançoso. Quero que você veja o que sobrou. — Agora não, pelo amor de Deus — murmurou Johnny, das profundezas de seu sofrimento e cansaço e seu desejo solitário por Lorry. — Agora, sim. Amanhã pode ser tarde. Alguém precisa de você mais do que você precisa de você. Johnny pensou na cadeira de Emilie, vazia para sempre. Pensou no rostinho translúcido e os grandes olhos azuis e as mãozinhas ávidas. Ela o chamava de um modo especial, quando ele chegava em casa vindo da igreja, ou de suas visitas aos doentes ou outros deveres, um grito extasiado, como se ela não acreditasse que ele voltasse um dia. Ele ficou de olhos fechados, ouvindo a voz de Emilie chamando-o, aflita. Não percebeu que a limusine tinha parado, até que o médico o cutucou, bruscamente. — Vamos — chamou o médico. — Não está morrendo. Pare de chafurdar no seu sofrimento. Estão precisando de você. Para que serve um ministro? Eles estavam diante de uma casinha cinzenta, limpa e arrumada, com um telhado vermelho e um gramadinho cheio de neve. Recorrendo a suas últimas forças, Johnny se arrastou da limusine e acompanhou o médico até os degraus. Fez um esforço final. — Não estou em estado de consolar ninguém, ainda. Ainda não sinto muito consolo em mim.

— A gente às vezes encontra consolo em lugares estranhos — respondeu o médico, tocando a campainha. A porta foi aberta por uma velhinha pequenina, de vestido xadrez cinzento, com um xale nos ombros. Era evidente que ela não estava nada surpreendida ao vê-los. Sorriu um pouco. — Entrem, por favor. — Ela olhou para Johnny numa expectativa que ele não pôde entender. — Espero que dê tudo certo, Sr. Fletcher. Espero que goste de Debby. — Debby? — repetiu Johnny. — Sua filha, sua neta? Está doente? — Você pergunta demais — disse o médico. Entraram na salinha mais arrumada, com tapetes trançados e móveis velhos. Um canário cantava numa gaiola, em algum lugar, e um gatinho desceu de uma cadeira. O médico pegou o gatinho com perícia. — Sempre tive horror a gatos — falou ele, aninhando o bichinho no ombro e afagando-o com carinho. — Nota-se — respondeu Johnny, sorrindo, contra a vontade. — Esse gatinho é da Debby — esclareceu a velha, que fora apresentada a Johnny como a Sra. Dietrich. — Bem, vá buscá-la — ordenou o médico. — O almoço está à nossa espera. A Sra. Dietrich saiu da salinha, que tinha um cheiro de pétalas secas e cera. Johnny olhou em volta, interessado, e viu o bricabraque num armário de canto. — A Sra. Dietrich é alemã? — perguntou. — Tem um sotaque. — Sim — respondeu o médico. — E aqueles dois de que lhe falei eram alemães. Vieram para cá em 1939, há oito anos. Alguma coisa a ver com a política. Não eram nazistas. Eram jovenzinhos, então. A Sra. Dietrich estava entrando na sala de novo, levando pela mão uma menina de seus cinco anos, com uma boneca de trapos agarrada ao peito. O coração de Johnny se contraiu num espasmo de dor. A menina era um pouco pequena para a idade, mas tinha um corpinho de bebê roliço, um rosto redondo e rosado com alegres olhos azuis e uma abundância de cachinhos castanhos. Tinha a boquinha rosada mais linda e estava sorrindo com firmeza, sob um narizinho gorducho e arrebitado. O vestido era de xadrez branco e preto com uma grande faixa vermelha no meio, saliente. Então, ao ver Johnny, ela molhou os lábios com uma linguazinha vermelha e agarrou- se à Sra. Dietrich. Mas o médico estendeu os braços e ela deu um gritinho e correu para ele, ainda agarrando a boneca. Ele a levantou no colo e olhou para Johnny. — Esta é Deborah Woltz. Que tal essa gracinha, hein? Ela faz de mim gato e sapato. Ei, pare de olhar nos meus bolsos, sua cavadora de ouro. — Cadê o meu bombom? — perguntou a menina, recriminando-o. Ela olhou para Johnny, encabulada. — Deixe o bombom para lá — respondeu o médico. Pôs a menina no chão e afagou a

cabeça dela. — Tenha modos. Este é o Sr. Fletcher, um ministro. A menina olhou para Johnny com um interesse acentuado mas encabulado. — Ele é o meu novo papai? — perguntou. — Ora, como é que ele pode saber? — perguntou o médico, irritado. — Você ainda nem apertou a mão dele. Vá, seja educada. A menina andou em direção a Johnny, insegura, chegou quase junto dele e fez uma reverência comovente. — O pessoal é bem-educado, lá na velha terra — disse o médico, com orgulho. — Ela nasceu bem aqui em Barryfield, mas os pais ensinaram como se comportar. Johnny estendeu a mão, sério, debruçando-se para a pequenina. Ela lhe estendeu sua mãozinha gorda e o contato trouxe de volta a dor que nunca o deixava, num nível mais alto e pungente. — Estou no jardim de infância. Também sei ler umas palavras… E sei o alfabeto — acrescentou, esperançosa. — Que ótimo — respondeu Johnny. — Tenho cinco… quero dizer, quatro… filhos. Eles gostariam de conhecer você, Debby. Uma menina tão esperta. — Da minha idade? Cinco anos? — perguntou Debby, com mais interesse. Johnny ficou calado. Olhou para a menina e os sulcos cinzentos em suas faces se acentuaram. O médico esclareceu: — Debby não tem ninguém nesta terra, e ninguém na Alemanha, tampouco. Morreram todos. Quando a mãe dela morreu, a Sra. Dietrich tomou conta dela, mas o Abrigo Infantil está atrás dela. — Ele fitou Johnny, com uma expressão significativa. — Você conhece o Abrigo Infantil. Parece uma cadeia. Não tem dinheiro. Depois vão mandála para um pensionato e depois outra casa adotiva e mais casas adotivas, ou talvez ela acabe num orfanato. Você já viu isso, filho. Boas perspectivas para uma menina boazinha, não é? E ninguém quer muito adotar uma menina desta idade. Ele fez um gesto. — Algumas casas adotivas são boas, outras más. Mas de qualquer forma, más para uma garotinha. Algumas pessoas as acolhem pelo dinheiro que a assistência social lhes dá. Vou-lhe contar, algumas das crianças que tenho visto no hospital foram levadas de casas de adoção. Mas não é boa ideia mesmo para qualquer guri que tem de ter raízes e uma sensação de pertencer a algum lugar. Especialmente meninas. As meninas são loucas por famílias. Eu, pessoalmente, não as suporto. Debby estava olhando para Johnny, ansiosa. — Sei tomar banho sozinha. E pendurar as minhas roupas. Mamãe me ensinou. Sou uma menina muito boazinha. — Levantou o vestido e mostrou a Johnny, com orgulho, a anágua engomada e as calcinhas brancas. — Sou limpinha — acrescentou. — Nunca amolo ninguém. Sou muito boazinha. O doutor suspirou, sem olhar para Johnny.

— Bem, espero que você seja mesmo boazinha numa casa de adoção. Espero que da próxima vez que vir você não seja num hospital, com a cabeça quebrada. E cachinhos tão lindos. — O senhor não é muito sutil — disse Johnny. Ele se sentou e estendeu os braços para Debby e ela correu logo para ele pulando para o colo dele. Ele fechou os olhos e a abraçou, e era como abraçar Emilie. Ele a beijou e ela o abraçou com força. — Você é um papai muito bom. — Sem dúvida tudo isso foi ensaiado de antemão — murmurou Johnny para o médico. — Bem — falou o médico, afetado —, não até o mínimo gesto em todo caso. Mas andei dizendo a Debby que ia lhe trazer um novo papai. Se não fosse você, então outro. Ela poderia escolher. Parece que escolheu você. E, por falar nisso, ela não é mendiga: O pai dela lhe deixou cinco mil dólares de seguro. — Ele brandiu o dedo para Johnny, advertindo-o: — Se Debby não tivesse gostado de você, filho, estava tudo acabado. Tinha outras opções. Debby deu um beijo muito molhado e entusiasmado na face de Johnny. — Gosto do meu novo papai — declarou ela, amável. — E a minha mala já está toda arrumada, também. O coração de Johnny estava pulando. Ele alisou os lindos cachinhos castanhos, com ternura. — Eu… não sei o que a Sra. Burnsdale vai dizer. Acho justo preveni-la. O médico achou muita graça naquilo. — Ora, a Sra. Burnsdale já veio aqui três vezes! Ela e a Debby se dão muito bem. Aliás, ela disse que se você não ficasse com a Debby, ela ficaria, e quando você fosse para a casa paroquial nova ela ficaria comigo e talvez se casasse comigo e nós mesmos adotaríamos a Debby. Johnny lançou-lhe um olhar eloquente que fez com que o médico e a Sra. Dietrich dessem uma gargalhada. — Estou sendo chantageado. O que me resta, senão me render? Ele enroscou o dedo num dos cachinhos reluzentes, que se agarrou a seu dedo como os de Emilie sempre se agarravam e por um momento ele pensou que ia gemer. O médico pôs o chapéu na cabeça. — Bom, isso está resolvido. Tomo conta das formalidades no Tribunal Infantil. Muito bem, dona, ponha o chapéu e o casaco. Vamos para casa. — Sim — concordou Johnny, a dor diminuindo um pouco em seu coração. — Vamos para casa.

O Dr. McManus ofereceu uma recompensa de 10 mil dólares pela apreensão e prisão do criminoso que tinha incendiado a casa paroquial, e toda a cidade começou as buscas, ativamente.

XXX Os meninos ficaram encantados com Debby, que, depois de examiná-los atentamente, parecia ter resolvido que conseguiria se haver com eles sem grandes dificuldades. Kathy era outro assunto. Não sucumbira aos encantos de Debby e seus jeitos animados e conversa confiante. Puxou Debby do círculo fascinado dos meninos, onde ela os estava regalando com histórias de seu jardim de infância, todas animadas e um pouco aumentadas, para maior efeito. Debby logo caiu num silêncio respeitoso, olhando com humildade para a menina mais alta. Mas seus olhos azuis bailavam. — Depois do papai e da Sra. Burnsdale, sou eu que tomo conta das coisas aqui — comunicou Kathy, severa. — Você será nossa irmã se se comportar. Eu ensino você a enxugar a louça e a tirar o pó. E não gosto de histórias, especialmente se não forem verdade. Está entendendo? — Eram verdade, sim — respondeu Debby, parecendo que ia chorar de encabulamento. (“Quero minha mamãe”, murmurou, mas ninguém ouviu.) — Já temos muitos contadores de histórias aqui, não precisamos de mais uma — continuou Kathy, dirigindo um olhar dominador para Pietro. Ela examinou Debby. — Acho que você vai dar certo — acrescentou. — Depois que estiver bem treinada. E podemos plantar umas árvores para você… se você se comportar. — Depois ela cedeu, abaixou-se e beijou a garotinha. — Acho que vamos amar você. — E eu — falou Pietro, com grandeza — vou me casar com você, Debby, quando você tiver idade. — Pensei que você fosse casar com a Kathy — estranhou Jean. Pietro desfez essa ideia absurda. — Os cavalheiros gostam das mocinhas. Kathy é muito velha para mim. A Sra. Burnsdale e Johnny escutaram aquilo, achando a maior graça. Então a Sra. Burnsdale explicou: — São essas revistas em quadrinhos que ele está sempre lendo. E as revistas de cinema que eu compro. — Se está pensando que eu me casaria com um garoto que nem sempre diz a verdade e passa o tempo todo fazendo caretas, está muito enganado — falou Kathy, com desdém. — Gosto mais é dos cabelos dela — disse Pietro, olhando para Debby. Debby tinha ideias próprias. Sacudiu os cachinhos reluzentes, decidida. — Vou casar com o meu novo papai — comunicou, lançando um olhar malicioso a Kathy. — Meus cachos são naturais. Kathy corou. Agora ela enrolava os cabelos de noite, com os rolos da Sra. Burnsdale. — Nossa! — exclamou a Sra. Burnsdale, com admiração.

— Imaginem um bebê de cinco anos saber se os cachos são naturais ou não. — Vai me mostrar como é sabida com um pano de prato — desafiou-a Kathy, enfiando um deles na mãozinha gorda de Debby. — Sou muito sabida — falou Debby, complacente. Johnny receara que, quando Debby tomasse seu lugar à mesa, ele sofreria novamente. Mas, para seu espanto, ela ocupou a cadeira sem lhe causar a menor dor. Era como se Emilie estivesse ali, uma Emilie forte, cuidadosamente impertinente, respeitosa, interessada, sadia e cheia de riso. Era como se Emilie lhe tivesse enviado essa criança vigorosa, ávida pelo seu amor, essa criança sem pais que ele salvara. Suas noites não seriam mais atormentadas pelo medo, por orações angustiadas e não atendidas. Ele tinha de novo seus cinco filhos, todos cheios de vitalidade. Até mesmo Jean estava engordando rapidamente. Johnny pensava, se Emilie tivesse vivido, eu não teria conhecido Debby e ela iria para algum lar de adoção ou orfanato, inteiramente abandonada. Emilie está segura; e agora Debby está segura. Ela foi aceita pelas outras crianças e as aceitou. Era cheia de curiosidade, de afeição, de histórias que sobrepujavam até as de Pietro. Tinha uma fada-madrinha, dizia, que a beijava todas as noites e tornava seus cabelos mais bonitos e os olhos mais vivos. Johnny conteve Kathy, que já ia pondo uma nota de realismo duro nessa alegre fantasia. — Tenho certeza disso, meu bem — concordou ele. — Mas chamamos a essas “madrinhas” de “anjos da guarda”. Ele comprou uma litografia para pendurar sobre a caminha de Debby, uma figura de um anjo bondoso com olhos amorosos e mãos estendidas. Isso comoveu Debby e amansou Kathy, que tinha mania pelos fatos. — Os anjos de papai e mamãe chamaram eles para casa — disse Debby, e seu lábio tremeu. Johnny a pegou no colo e viu seus esforços para se controlar e sorrir. Que neném tão valente, pensou, com uma pontada de dor. Ele registrou o nome dela para a adoção. Não sabia que o Dr. McManus tinha tido problemas para arrumar as coisas, pois mais uma vez a Sociedade de Assistência Infantil tinha querido criar dificuldades. Há um espírito de vingança latente nessa gente, pensou o médico. Mas, diabo, tenho muito dinheiro e uma espada dourada mantém os abutres à distância. Debby, ao ver a instalação dos estudos em casa, decidiu que preferia isso ao jardim de infância. Porém nesse ponto Johnny mostrou-se enérgico, a despeito das lágrimas dela. Ele a levava ao colégio todo dia. Ela voltava para as crianças que a esperavam impacientes, dando os relatos mais terríveis de suas experiências. A professora a empurrara; as crianças tinham querido brigar com ela, mas ela as enxotara a pontapés; ela derramara água pelo pescoço de outra criança; tinha rasgado um vestido; a professora tinha chorado; ela havia pisado nos dedos. Debby era um diabo. Só Kathy escutava tudo, a testa franzida. Um dia Johnny foi pessoalmente falar com a professora, que lhe garantiu, afetuosamente, que Debby era uma menina modelo, uma líder, cheia de vitalidade e

adorada pelas outras. No entanto, as histórias de Debby alegravam o jantar, de modo que ele resolveu não se intrometer. Ela possuía uma imaginação maravilhosa e mais ou menos acreditava em suas histórias, e não havia maldade nelas, só um desejo de distrair. A ferida estava cicatrizando depressa. As petições estavam se empilhando na mesa do prefeito, para irritação dele. Ele maldizia Johnny, o instigador. Seus amigos o recriminavam; ele lhes mostrava as petições, e as ameaças implícitas nelas. O redator assistente do Sr. Summerfield não pôde ignorar as petições. Ele mandou que seu escritor “cômico” escrevesse editoriais leves sobre o caso, ridicularizando as petições. De repente a circulação caiu de modo alarmante. O “cômico” foi substituído por um escritor de editoriais mais sóbrio. Ele introduziu o método de prós e contras, convidando o povo a escrever sobre as petições, e colocando as respostas na coluna “O Povo Escreve”. Infelizmente para ele, as suas eram as únicas cartas contra. O “povo” reagiu com invectivas violentas e respostas zangadas para as iniciais fictícias na coluna e para os editoriais. — Todo o povo de Barryfield está com o ministro — declarou Lon Harding, contente. — A não ser os que são filhos dos donos das fábricas e das usinas. Mas eles ficam de bico calado. Enquanto isso, a escola do salão paroquial de Johnny estava florescendo com rapazinhos e mocinhas querendo aprender o que não aprendiam no colégio. Os professores velhos, inclusive a Srta. Coogan, exultavam. Fevereiro já ia findando e ó tempo estava normalmente quente e as pessoas contavam que quando passavam pelo salão paroquial, quatro noites por semana, ouviam as vozes entusiasmadas dos jovens que estavam descobrindo o mundo da poesia, glória, patriotismo e literatura, que lhes fora negado, “no interesse da sociedade e pela causa da adaptação realista à vida”. O assassino da pequenina Emilie ainda não havia sido encontrado. Mas Johnny não perdia as esperanças. Uma tarde o chefe de polícia ligou para o Dr. McManus. — Não tenho certeza se temos alguma coisa aqui, Al, mas achei bom lhe contar. Está aqui uma mulher, de nome Sheila Gandy, de Wilkes-Barre. Ela diz que foi o marido quem tocou fogo na casa do seu ministro. Ele está à morte, diz ela. E ela quer a recompensa, pois ele quer que ela fique com a recompensa quando ele morrer. Uma mulher meio burra. Provavelmente é só mais um alarma falso. Mas tem uma coisa. Ela me disse que ele contou a ela que entupira os canos de ar quente da caldeira com trapos embebidos de gasolina; depois prendera cordões neles, ateara fogo e saíra da casa. Entrara pelo porão e se escondera atrás da caldeira quando o ministro estava revistando a casa. Isso confere. E você sabe que encontramos umas provas assim. Esse negócio saiu nos jornais? — Não! — gritou o médico. — Que diabo de memória você tem! Ninguém falou nisso, só talvez um de seus rapazes aí, mas não sei por quê. O seu departamento manteve

segredo. Ela disse se foram os comunistas que mandaram que ele fizesse isso? O chefe pensou um pouco. — Não disse, não. Por que você não vem aqui e traz o ministro, agora mesmo? O médico acabara de chegar da sala de operações. Embora cansado, pediu a uma enfermeira para ligar para Johnny e dizer a ele para ir para o escritório do chefe de polícia. Johnny foi, pálido como a morte, tremendo e sem poder falar. — Não vá ficando todo animado, filho — recomendou o Dr. McManus. — O chefe acha que não passa de um alarma falso. Ele me contou de vários outros, e resolvemos não incomodá-lo, pois eram falsos. Esse agora tem algo que parece um pouco verídico, mas não muito. Procure controlar-se. — Acho que é o próprio — respondeu Johnny, a voz abafada. — Bem, não vá se descontrolar, como sempre. Conheço as mulheres. Ficam histéricas e detesto mulheres histéricas. Eles entraram no gabinete do chefe, empoeirado e sujo de fuligem, cheio de arquivos e móveis velhos. Ao lado da mesa dele estava uma mulher gorda, com uma cara de massa, cabelos pretos e ralos esvoaçando pelo rosto, membros gordos e desajeitados, roupas gastas e um ar cauteloso e truculento nas feições sem expressão. As mãos grandes, cobertas por luvas de algodão preto, estavam dobradas juntas, apertadas. Ela olhou para Johnny e o médico sem demonstrar satisfação. — Por que o ministro? — perguntou, emburrada. — O senhor só disse dois amigos, chefe. — Depois a expressão dela mudou, ficando toda alarmada. — Este é o ministro, hein? — É, Sra. Gandy — respondeu o chefe de polícia. Fez um gesto para o jovem policial que estava sentado na ponta da mesa surrada e com o lápis pousado sobre um caderninho. — Sr. Fletcher, este é o Sargento Batson. Estava tomando notas. Sargento, queira ler, sim? A Sra. Gandy se dirigiu a Johnny, a voz falseando: — Puxa, pastor, sinto muito por aquela menina. Mas o meu homem… Johnny olhou para ela sem falar nada e ela piscou e desviou o olhar. O Dr. McManus sentou-se. — Muito bem, pode prosseguir, sargento., A Sra. Gandy ficou escutando e então seus olhos pretos e redondos se tornaram desafiadores e ela pôs a cabeça num ângulo arrogante e ficou escutando tão atentamente quanto os outros. Merrill Gandy, marido dela, tinha 39 anos; ela, 42. Moravam na cidade de WilkesBarre. O marido fora convocado em 1944. Não tinham filhos e Merrill era maquinista. Tinham-se casado em 1939 e por ocasião da convocação só tinham 200 dólares de economias. — O que se podia esperar, com a Depressão? — perguntou a Sra. Gandy.

Moravam numa rua modesta e não tinham amigos. Nunca tinham tido tempo para fazer amigos. A Sra. Gandy trabalhava numa padaria e, durante a guerra, numa fábrica de material bélico. No final da guerra ainda tinham um pouco de dinheiro. — Bem, compramos um rádio novo, uns móveis e um carro usado e fomos sempre jogar boliche; fizemos alguns amigos e o dinheiro se foi — dissera a Sra. Gandy, com ressentimento. — Cerveja e roupas e coisas custam caro. Merrill foi dispensado do exército na primavera de 1946. Voltou para trabalhar na sua fábrica. Em agosto de 1946, vários meses depois, queixou-se das costas. A princípio, pensou que era devido carregar muito peso. Mas o médico da fábrica disse que era uma lesão antiga, quatro hérnias de discos na coluna vertebral. Então Merrill, frustrado por não poder receber a indenização de trabalhador, de repente lembrou-se de que tinha sofrido essa lesão no exército. Nunca tinha chegado á sair do país. Tinha ficado no mesmo campo em que seus talentos de maquinista tinham sido apreciados, a Força Aérea. Uma porção de homens indo e vindo — dissera a Sra. Gandy. Um dia ele estava de pé bem atrás de um motor aberto em que estava trabalhando e algum “espertinho” se meteu no assento e começou a andar e duas rodas da direita passaram bem sobre o corpo do Merrill, “machucando” a coluna dele. O chefe de polícia perguntou por que ele não havia comunicado isso imediatamente. A resposta foi que ele tinha feito isso e tinha sido tratado na enfermaria. Mas Merrill não se lembrava do nome do médico, nem do nome de nenhuma das enfermeiras nem do “espertinho”. Estava tudo muito apinhado e todo mundo indo e vindo. Merrill tinha ficado no campo, depois de se ter restabelecido, aparentemente. — O problema só apareceu quando ele começou a trabalhar com coisas pesadas nas fábricas — dissera a Sra. Gandy. — Aí, não conseguiu mais trabalhar! Pediu indenização à Administração de Veteranos, mas não conseguiram encontrar as fichas. O escritório reconheceu que, na confusão dos anos de guerra, essas coisas aconteciam muitas vezes. Ele tinha sido recolhido a um hospital de veteranos. Enquanto a administração tornava a investigar os arquivos, ele tirou radiografias. Disseram a Merrill que não podiam fazer nada quanto à indenização até ficar provado que o caso dele estava ligado às forças armadas. Depois de várias semanas, Merrill disse à mulher que “não ia ficar mais naquele maldito hospital” e foi para casa, para a cama. Ah, às vezes ele se levantava e ia jogar cartas com a turma, e tomar uma cerveja, mas não podia trabalhar. As costas doíam muito. Então ele foi a um médico e tirou umas radiografias e lá estavam elas, na mesa do chefe, e o relatório do médico. O Dr. McManus estendeu a mão para pegar as radiografias. Examinou-as atentamente. Olhou para a Sra. Gandy, depois resmungou: — Bom, são os discos, sim, mas não é grave. Já vi pior em homens que trabalham todo dia. Não podiam doer muito, a não ser de vez em quando, e aí ele podia dormir no chão umas noites e tomar aspirina e se levantar de novo. Mas o problema não é esse. Olhe aqui essas sombras grandes. — Ele estendeu as chapas para Johnny, e sussurrou: — Câncer. Antigo. O homem está morrendo, e não é nada perto da coluna, e não tinha nada a

ver com ela. A Sra. Gandy perguntou, alto: — O que estão cochichando aí? Não sabe ler radiografias? Querendo armar alguma contra o Merrill? O Dr. McManus respondeu, sério: — Madame, concordo com a senhora que o seu marido está gravemente enfermo e concordo que ele não tem muito tempo de vida. O rosto dela mudou e ela começou a chorar. — Não me importo com coisa alguma, só o Merrill. E fizeram isso com ele e não querem dar indenização nem me dão nada, quando o Merrill morrer. — O seu marido tosse muito e se queixa de dores no peito? — perguntou o médico, preocupado mesmo. A mulher fez que sim, tão violentamente que o chapéu de veludo barato balançou. — Se tosse? O tempo todo. Tosse sangue, às vezes. São os discos. — Aconselho que mande o seu marido de volta ao hospital dos veteranos, imediatamente. Receio que ele não tenha muito tempo de vida. A história triste continuou. Merrill começou a detestar a Administração de Veteranos por ser tão mesquinha com ele, e não lhe dar indenização depois que o exército o deixou machucado, e ela ter de trabalhar o tempo todo na padaria e só ganhando 55 dólares por semana. Se Merrill fosse um camarada rico com pistolão, ele ganhava essa indenização, num ai! Ora, havia sujeitos com bons empregos e ganhando grandes indenizações, bem ali na fábrica de Merrill! ,

Johnny olhou para o rosto inchado e trêmulo e as lágrimas, e seu coração amoleceu, de pena. Mas ele o enrijeceu quase imediatamente. — Foi tudo culpa da sociedade — disse a Sra. Gandy. — Os caras ricos com os carrões grandões e lustrosos… eles não querem que os pequenos tenham nada. Não, nada. E então Merrill, que não tinha sido machucado no exército, e que estava morrendo de câncer, começara a odiar alguma coisa amorfa e inexistente, a “sociedade”. Ele não queria ficar na cama, em casa, e saía para tomar cerveja e jogar cartas enquanto a mulher trabalhava… e odiava. Os rapazes conversavam, e o ódio aumentava. Alguém deu a Merrill um número de um jornal comunista. Merrill o devorou e acreditou nele. Era uma conspiração contra ele, de parte da sociedade, uma conspiração dirigida contra todas as pessoas humildes e sem esperanças no mundo, especialmente Merrill. — Ele ficou de um jeito que não falava de mais nada — disse a Sra. Gandy, enxugando os olhos com a mão trêmula. — E é verdade. E Merril começou a ir a reuniões e escutar gente contando a ele que gente como nós nem tem direito de viver, dizem os ricos. E que um dia vai ter uma mudança e os ricos vão ter o que merecem e nós vamos ter alguma coisa e Merrill vai poder… O sargento continuou a ler. Leu a história sórdida do ódio ignorante e dirigido.

Merrill conheceu “um homem”. — Nunca descobri o nome dele. Encontrou numa cervejaria. Mas era um homem bom. Deu 25 dólares a Merrill, “só porque Merrill é um sujeito modesto e vítima da sociedade” — exclamou a Sra. Gandy. Merrill continuou a voltar ao hospital dos veteranos para ver se tinham encontrado alguma coisa, e os médicos diziam para ele ficar. Mas ele não queria. Tinha lido no jornal comunista que às vezes camaradas pobrezinhos como ele ficavam presos nos hospitais só para os médicos experimentarem coisas neles. Que nem ratos, é? Ou então camundongos. Merrill não ia fazer nada disso, não, senhor. E então um dia o homem que tinha pena de Merril falou com ele a respeito de um ministro que era um instrumento dos grandes interesses, um fascista, um homem rico, em Barryfield. Johnny, que estava escutando com pesar, endireitou-se e seus olhos faiscaram, num azul intenso. O Dr. McManus disse: — Calma, fique quieto e escute. Pois bem, o homem bondoso contou a Merrill muita coisa sobre Johnny, “O fascista”. Tinha acabado com um sindicato nesta cidade; combatia os trabalhadores; tinha acabado com uma greve. Era a favor da “sociedade”. Grandes interesses, caras grandes e ricos. Ora, ele tinha feito um sermão e tinha praguejado contra o homem pobre e fazia todo tipo de coisas horríveis, dominando os trabalhadores. Estava tudo nos jornais de Barryfield. Ele tinha de tomar uma lição. Era um homem perigoso mesmo. Quando esse trecho foi lido, a Sra. Gandy endireitou-se na cadeira e lançou a Johnny um olhar do mais puro ódio. — Claro que sinto pela pequenina, mas queria que você tivesse se queimado! — exclamou ela. — Era essa a ideia, mesmo. O Sargento Batson continuou a ler, calmamente. Então o homem bom tinha oferecido 500 dólares a Merrill “para fazer o serviço”. Para dar uma lição ao ministro rico, instrumento dos grandes interesses. Eram 250 de cara e 250 depois do serviço. E então o homem bom ia “obrigar” a Administração de Veteranos a dar a indenização de Merrill. Havia meios. Não. Merrill nunca conseguiu entender direíto o nome do homem. Nunca perguntou, talvez. Merrill agora odiava os grandões. E pessoas que nem o ministro, que ajudam a eles, ministros fascistas ricos, pagos com o dinheiro grande. Nem deviam poder viver. Não, a Sra. Gandy não sabia nada do plano. Merrill só lhe disse, na véspera de Natal, que tinha de sair da cidade, mas voltaria de noite. Tinha passagens de ônibus. Talvez um emprego, disse ele, tossindo de acabar com os pulmões. E foi embora. E alguns dias depois houve todas aquelas notícias nos jornais. A Sra. Gandy não associou essas notícias com o marido, que agora estava “muito mal” e não conseguia levantar-se da cama. Tinha-se resfriado em algum lugar. Não, não queria médico. Contra os médicos, que não querem saber dos pequenos. E então, na véspera, Merrill dissera à mulher que estava morrendo. Ele a amava. Não

queria que ela trabalhasse mais na padaria. Ele não tinha dinheiro, mas tinha aquela grande recompensa nos jornais. Ele lhe contara a história. Ela devia ir a Barryfield, à polícia, e contar a história dele e pegar a recompensa. Isso a ajudaria. Não adiantava mais se preocupar com ele. Estava morrendo. Não podiam fazer grande coisa com ele. A história continuava. A ideia, explicou Merrill, era conseguir tirar o ministro fascista e rico da cidade, incendiando a casa dele, e mostrando a ele que os sujeitinhos pequenos não querem saber dele. Merrill tinha ficado meio espantado ao ver como a casa paroquial era pequena e modesta, mas também, gente como “ele” é miserável mesmo. Ele entrou pela janela do porão e esperou que a família fosse para a cama. O ministro desceu ao porão e começou a remexer. Mas, no escuro, não olhou atrás da caldeira. Merrill levou um susto danado. Tinha posto carvão para a caldeira ficar bem quente e depois, quando o ministro voltou para cima, ele enfiou os trapos de lã nos canos, bem junto da caldeira, ensopados de gasolina. Merrill estava com medo de ser queimado também. Então, achou que ia demorar um pouco e ele podia subir e procurar algum dinheiro que o ministro tivesse. Não encontrou nada embaixo e não podia subir aos quartos. Então, saiu da casa, passou pelos quintais e fugiu. Era só isso. O homem tinha se encontrado com ele alguns dias depois e feito o resto do pagamento. O chefe deu sua opinião: — Liguei para Wilkes-Barre e falaram com Gandy, mas ele está incoerente. Levaram-no para o hospital e agora está em coma. Francamente, acho que ele leu tudo nos jornais. Deve ter havido um vazamento de informações. O pobre-diabo teve bastante tempo para pensar. Inventou tudo isso, sabendo que não poderia ser julgado e que estava morrendo e queria deixar muito dinheiro para a mulher… a recompensa. — Isso é mentira! — gritou a Sra. Gandy. — Merrill não é mentiroso! O médico sacudiu a cabeça. — Pode ser verdade, claro. Ele olhou para Johnny e este falou, inseguro: — Acho que é verdade. O chefe suspirou. — Sinto muito, mas eu não acho. — Ah, não acha, é? — perguntou a Sra. Gandy. — Bom, aqui está a sua prova. Ela abriu a bolsa de imitação de couro, pegou alguma coisa e bateu com ela na mesa, triunfante. Era a caixa dourada de Lorry, reluzindo, um perfume doce se emanando dela. Todos olharam para ela, num silêncio desesperado. — Foi só o que ele encontrou na sua casa, pastor. Nenhum dinheiro. Só isso na sua mesa, e ele pegou. Johnny tomou a caixa e a segurou com força. Então, por um instante, ele se esqueceu

do que tinha ouvido. Viu o rosto de Lorry e sorriu em seu íntimo, com uma alegria avassaladora. Depois largou a caixa e olhou para a Sra. Gandy, que o fitava com um ar assassino. Ele a examinou por alguns instantes. Por fim confirmou: — Sim, esta caixa é minha e foi tirada de minha casa e a história é verdadeira. Mas há uma coisa que a senhora deve saber. O seu marido não tinha nenhuma lesão adquirida no serviço. Está morrendo de câncer e ninguém sabe como nem por que isso aparece. — Não acredito — respondeu a Sra. Gandy, debilmente. — É verdade, sim. E não é culpa da “sociedade”. Ninguém a prejudicou, nem ao seu marido. O hospital dos veteranos queria que Merrill ficasse internado lá. Tiveram pena da senhora e dele; não contaram o que tinham verificado de fato. Mas estavam querendo ajudá-los de algum modo. Ele estava cheio de compaixão por aquela mulher chorando, e todos os milhões de ignorantes que tinham sido iludidos pelos assassinos comunistas, com toda a exploração de sua agonia. Continuou: — Sou um homem pobre. Tenho um ordenado muito pequeno. Não sou “instrumento dos interesses”. Não sou instrumento de ninguém. Apenas tento servir a Deus do melhor modo que posso. Sabe, estou tentando livrar a minha cidade do ódio, unir as pessoas para que se amem e a Deus. Por isso, eu devia ser destruído. Q seu marido não podia saber de nada sobre mim, a não ser o que lhe contaram, o que lhe davam para ler naquele jornal comunista. Ele acreditou, pois estava sofrendo, e não sabia por quê. Ela olhou para os olhos compadecidos, o rosto cheio de dor e ficou calada. — O seu marido foi usado, e outros como ele estão sendo usados, pelos comunistas. Para escravizar ou matar todos nós… a senhora, eu, o doutor aqui e o chefe de polícia. Todos os que se interpõem no seu caminho do mal. Sim, somos “sociedade”. Sim, a senhora é parte da “sociedade”. Sociedade significa o povo e nós somos o povo. Ela o fitou e piscou os olhos molhados. Ele falava com uma autoridade branda e com verdade e ela acreditou nele, embora tentasse resistir. _ — Somos todos trabalhadores, todos nós, ricos ou pobres — continuou Johnny, — Quem quer que trabalhe com as mãos ou o cérebro é trabalhador, ganhe mil dólares por ano ou cem mil. Os poucos que não trabalham não contam; são tão poucos. Entende? Ela fez que sim, aturdida. — Diga-me — pediu Johnny —, o seu marido teve… pena… quando leu que minha filhinha morrera por causa do incêndio? Ela engoliu em seco e enxugou os olhos. — Bom, eu me lembro que ele ficou muito aflito e disse que era horrível e piorou logo e foi piorando cada vez mais. Não parava de falar da menina. Nós nunca tivemos filhos. Ele… bem, ele disse… que o homem que fez aquilo devia morrer, matar um bebê. Ele parecia que não conseguia sossegar. — Ela soluçou amargamente. — Acho que é isso

que o está matando agora. Johnny se levantou e pôs a mão no ombro dela. Falou, com brandura: — Perdoe-me por detestá-lo, pois ele era ignorante e foi iludido por homens maus. Vá já para junto dele. E se ele puder ouvi-la, diga que está bem e que eu o perdoei também. Mas nunca encontraram o comunista oculto. Como seus irmãos, ele se movia nas trevas caladas, vigiando, esperando, sem nunca dormir.

XXXI Só no dia 1.° de fevereiro é que Johnny recebeu uma carta chocada e pesarosa do Dr. Stevens. “As notícias de Barryfield não chegam aqui à Flórida”, dizia a carta, “e, portanto, Johnny querido, eu não sabia nada sobre a sua grande mágoa até que o nosso amigo mútuo e pretenso Mefistófeles idoso fez a gentileza de me avisar, há alguns dias. A explicação dele é que queria que você ficasse “bem estabilizado” antes de me informar, insinuando que eu havia de correr para ajudá-lo e consolá-lo, se tivesse sabido mais cedo. Isso é bem verdade. Mas acho que ele foi muito arbitrário nesse assunto, pois você para mim é como um filho. Faça o favor de recriminá-lo por mim. E agora, escreva-me logo e conte tudo.” Johnny mostrou a carta ao Dr. McManus, que disse, com firmeza: — Meu Deus, já tinha gente demais aqui se metendo em… tudo… em todo caso. Pára que mais um? Assim mesmo, já tive de comprar um desumidificador para a casa. Ele tinha uma curiosidade ávida de ver as cartas de Lorry, que chegavam duas vezes por semana, mas Johnny, fazendo-se de duro, as trancava, com um ar complacente. — E o senhor me deixa ver o que ela lhe escreve? — perguntou. — Ou está interessado em romance, na sua idade? O mês de março chegou extremamente ameno, mas não suavemente, pois o smog estava sempre presente. Johnny levava as crianças para verem o jardim da casa paroquial e as árvores. Como a terra não estava muito dura, Lon Hardíng conseguira plantar duas cerejeiras para Debby, Ela ficou tão feliz que anunciou seu noivado com ele, sendo severamente repreendida por Kathy. Atrás do jardim encharcado, a casa paroquial estava subindo; os pedreiros trabalhavam rápido, bem como os carpinteiros. A família se mudaria em junho. Mas as crianças se interessavam menos pela casa do que pelas árvores. Johnny lhes mostrou como os brotos já estavam inchando, alguns rosados, outros ainda marrons. — Estão vendo, a vida nunca morre, pois vem de Deus. Eles olharam para os pés de lilases de Emilie. Aí os brotos eram maiores, os raminhos tensos. Johnny tocou nos arbustos com uma mão carinhosa e Pietro, o teatral, os beijou. Ninguém fez troça dele; pareceu um lindo gesto. O gatinho de Debby passara a ser o bichinho de estimação da família. E agora havia mais dois, o irmão de Coffee, também chamado Coffee, e um canário numa bela gaiola, ambos presentes do médico. — Isso aqui parece um jardim zoológico — resmungava ele, monopolizando os bichinhos quando chegava em casa. Como ele nunca tinha sido feliz na vida, não reconhecia que estava feliz agora. Atribuía sua aflição para chegar em casa “cedo” todo dia à “minha velhice que se aproxima. Parece que já não tenho mais o interesse que tinha em meu trabalho. Cada vez tenho de deixar mais trabalho para os rapazes”. Ele fazia uma cara feia para Johnny. — Queria que eles andassem bem depressa com essa casa paroquial, para você e os

guris e esses malditos bichos saírem daqui e a gente poder ter um pouco de paz. Johnny, sabendo de tudo, afagava o ombro dele. Mas quando o médico pensava no êxodo, ficava pesado e cansado e se sentindo só, mas não admitia que temia o dia em que a casa voltasse ao seu sossego. Ele resmungava com a Sra. Burnsdale, reclamando que os construtores estavam demorando muito. Ela sorria para ele, tomava conta da dieta dele e de vez em quando fazia um prato especial para ele comer de noite, antes de dormir. — Quase não tem calorias — dizia. Uma noite Johnny disse ao médico, com naturalidade: — Esta casa é muito grande, o senhor não precisa dela, está obsoleta e o senhor podia vender tudo por um bom dinheiro. Então, por que não vender e vai morar conosco? — Deus do céu! — exclamou o médico, com o que esperava ser uma expressão de horror. — Com toda aquela bicharada? Pensa que estou maluco? Mais tarde Johnny o viu consultando as plantas da casa e mais tarde o ouviu falando com o arquiteto, muito displicentemente, sobre “três ou quatro bons quartos, no terceiro andar”. Ele ficou irritado com a reunião que Johnny programara para a Prefeitura. — Vá, que vão linchá-lo — resmungou ele. — Eu não vou. Detesto ver sangue. Ele chegou 15 minutos depois de Johnny. Ficou abismado ao ver tanta gente enchendo os salões, os lados, todos os lugares possíveis. Os policiais estavam vigilantes, atentos. Mas o povo estava quase calado. Na plataforma estavam sentados o prefeito, Johnny, o Padre Krepszyk e o Rabino Chortow, além de “uma seleta delegação de cidadãos”. Uma luz pobre e lamacenta se filtrava pelas janelas altas e antiquadas e lá fora começara a chuviscar. As luzes do teto tinham sido acesas, acentuando o ar de uma melancolia intensa. Nas primeiras filas estavam os fabricantes locais e seus advogados e engenheiros industriais, uma sólida falange de homens alertas e de resistência passiva, cada qual com sua pasta. O prefeito parecia infeliz. O seu próprio dirigente político do município lhe dissera que seu futuro estaria liquidado se ele não acedesse às exigências do povo. Seus amigos lhe tinham informado que ele estava “frito” se acedesse às exigências do povo. O dinheiro, disseram com cinismo, era mais importante do que simples votos, pois, sem dinheiro, para a campanha do ano seguinte, ele perderia sua candidatura ao Senado. O seu dirigente que o apoiasse; eles, com o dinheiro deles, arranjariam um verdadeiro “candidato do povo” e esse candidato venceria. Os eleitores têm memória curta e paixões rápidas. No ano seguinte se esqueceriam de que ele ajudara a acabar com o problema da fumaça. Votos? O dinheiro compra votos, pela propaganda. Mas eles se tinham esquecido de uma coisa. O prefeito era católico e ali, à sua direita, estava o Padre John Kanty Krupszyk, que tinha um olho muito severo. O prefeito era um homem piedoso e de origem polonesa. Seus patrocinadores ricos lhe tinham dito que aquele seria um item que usariam contra ele, pela primeira vez.

O Dr. McManus arranjou um lugar nos fundos, onde ficou de pé, olhando para a plataforma. Johnny parecia distraído; o prefeito estava esfregando as mãos grandes, de trabalhador; o padre estava calmo; o rabino, que acreditava piamente na bondade intrínseca do homem, se mantinha mais calmo ainda. Todos estavam rezando baixinho, até o prefeito. Mais cedo, quando a sós e o prefeito em desespero exprimira seus receios, o padre lhe dissera: — Você confia demais em vão, Walter, se bem que eu o veja na missa todos os domingos e você se confesse regularmente (e que confissões, você devia ter vergonha!) e apareça sempre para a Santa Comunhão. O que você é, um católico por nascimento, ritual? É o que parece. Por que, uma vez na vida, você não entrega tudo a Deus e cumpre o seu dever para com Ele e Seus filhos? — É — respondera o prefeito, sombrio. — Mas e o dinheiro para a minha campanha? Imagino, padre, que o senhor tenha muito dinheiro escondido por aí e esse ministro e o rabino também? Pois bem, nenhum de vocês parece ter nada. Aquele seu carro velho… — Pode me dar um novo de presente no ano que vem, quando for senador pelo Estado — respondeu o padre. O prefeito sacudira a cabeça, com mais pesar e desânimo do que nunca. — Acho que gostaria de um Buíck — dissera o padre, com uma expressão de grande prazer. — Espero até você ser governador para ganhar um Cadillac. E, por falar nisso, há o assunto das imagens da Sagrada Família. Estão se desmoronando. Uma campanha de contribuições, pela Sociedade do Nome Sagrado, iniciada muito breve, ajudaria bastante. Vou-me lembrar de você especialmente, nas minhas orações. — Os padres não deveriam se omitir nesses assuntos? — indagara o prefeito. — Como o smog? O padre respondera, virtuosamente: — Estarei interferindo em assuntos terrenos? Walter, oito velhos e três crianças de minha paróquia morreram nesse smog. É dever do padre calar-se quando seu povo está aflito? Em todo caso, não o estou influenciando em absoluto na sua política. Prove-o. O prefeito não era homem para discutir as sutilezas da dialética. Mas ao rezar, nesse dia, sentiu ressentimento quanto ao Buick. E a campanha iniciada pela Sociedade do Nome Sagrado, para as novas imagens. Depois ele disse, intimamente: “Mãe do Céu, se intercedor por mim e não deixar que o meu nome vire lama, e me ajudar a ser senador pelo Estado, arranjo o Buick para aquele padre e uma bela estátua para você”. Ele era um homem grande, com cerca de 40 anos, um rosto largo, cabelos quase brancos e olhos azul-claros. Sorriu e seu sorriso era encantador. O povo, olhando para ele, sorriu de volta, com um calor repentino e o calor o percorreu todo, dando-lhe uma sensação de segurança. Talvez “aquele padre” tivesse razão. Talvez o povo não se esquecesse. Uma banda escolar começou a tocar o hino americano e todos se levantaram numa massa ruidosa, olhando para a bandeira na plataforma. Então todos cantaram, com fervor, e o prefeito também. O que diziam os “maiorais”? O patriotismo ia até a bolsa do homem,

não mais. De repente o prefeito não estava acreditando naquilo. A despeito da sua experiência na política, ele estava quase acreditando na virtude do povo. Todos se sentaram, menos o prefeito. Sobre a mesa diante dele estavam empilhadas as milhares de petições. Ele pôs as mãos calejada sobre elas. Nunca conseguira se livrar dos calos, depois de tantos anos, pois já faziam parte de sua carne. De repente, e pela primeira vez, sentiu orgulho dos calos. — Meus caros amigos e concidadãos — começou, com sua voz forte e com sotaque. — Vocês me pediram esta reunião hoje e estou aqui para servi-los. — Manteve os olhos afastados das duas primeiras filas, pelas quais estava sentindo uma forte animosidade e um desdém frio. — Eu também sou um trabalhador, embora me tenham feito seu prefeito. Ainda tenho calos em minhas mãos — e ele as levantou e mostrou. Um dos homens na primeira fila cochichou alguma coisa ao advogado e ambos sorriram, com escárnio. “Bem, em todo caso — continuou o prefeito, com simplicidade, pois dessa vez ninguém lhe preparara um discurso ressonante e ele estava perdido —, aqui estão e aqui estou eu e somos simples pessoas e temos uma… queixa. Uma queixa terrível. Eu não moro no alto dos morros; moro bem aqui no vale e minha mulher tem asma e o smog não lhe faz bem algum. E matou uma porção de velhos e crianças e talvez da próxima vez mate mais. Um verdadeiro massacre. Não queremos esperar por isso”. Houve um aplauso estrondoso, a não ser das duas primeiras filas. Os cidadãos exclamavam coisas incoerentes. O prefeito escutava, sua alegria aumentando. Esperou até que os aplausos morressem e continuou, sem rodeios: — Bem, senhoras e senhores, já me disseram que se eu apoiar vocês e forçar… as coisas… quanto ao smog, que estarei liquidado, acabado, frito. Acabou-se Walter Slavak como prefeito. Acabou-se Walter Slavak candidatando-se ao Senado por este Estado. É a volta às usinas para Walter… se é que consigo arranjar um emprego. Disseram-me que vocês eleitores não são muito inteligentes. Disseram que arranjam outro nome e me difamam de modo que vocês não votariam em mim, de modo algum. Muito bem. Vou arriscar. Se vocês se esquececem, talvez eu fique amargurado, tendo jogado fora o meu futuro para ajudar a nós todos. Mas talvez vocês não se esqueçam. Ele esperou o aplauso, mas nunca esperara aquele volume estrondoso, os gritos de apoio, os juramentos berrados, os pés batendo. As paredes tremeram; as luzes tremeram. Os homens das primeiras filas escutavam, consternados. — Não esqueceremos! — gritou um homem. Então, espontaneamente, o povo fez um coro: — Queremos Walter! Queremos Walter! A manifestação durou mais de cinco minutos. Os clérigos na plataforma se entreolharam e sorriram. O prefeito levantou a mão, encabulado: — Muito bem, pessoal, acredito em vocês. Mas vamos tratar de negócios. Espero — falou, calmamente, não fazendo caso das duas primeiras filas — que aqui haja gente que os tenha ouvido. Espero mesmo. Tentei ser um bom prefeito; às vezes, não foi possível.

Deixo para vocês adivinharem por quê. Agora vamos ao que interessa. — Seu rosto bemhumorado se enrijeceu. — Não vai demorar muito. Já vi todas as petições. Uma porção de vocês diz que não volta às usinas e fábricas se o smog não desaparecer. Creio que estão falando sério. Tenho certeza disso. Portanto — e então seus olhos faiscavam — cabe aos responsáveis, que não estão aqui hoje, estou vendo, assumirem a responsabilidade de tornar a nossa cidade segura para nossas mães, pais e bebês. A responsabilidade é deles. Talvez custe muito dinheiro, bastante mais do que 96 enterros e 96 covas ainda novas nos cemitérios. Já conversei com os representantes dos seus patrões, antes de vir para cá. Dizem que custaria quase dinheiro demais e pelo menos seis meses para eliminar o smog. Bom, eu sempre achei que a vida e a felicidade das pessoas valem mais do que dinheiro. Mais uma vez o salão rompeu num vulcão de gritos, exclamações e aplausos. O prefeito escutou, não mais sorrindo. Apoiou os braços na mesa, deixando que a manifestação seguisse seu rumo. Esperou durante muito tempo. — Muito bem, pessoal — disse o prefeito, por fim. — Agora vão para casa e pensem bem. Ele estava olhando só para as duas primeiras filas. — É só o que tenho a dizer, agora. Dou aos proprietários das fábricas e usinas apenas seis meses para limpar o smog. Se o smog não tiver desaparecido até essa data, vou ordenar o fechamento da usina que ainda estiver poluindo o ar, e não me importo se levarem o caso ao Supremo Tribunal! Esse smog tem de desaparecer… dentro de seis meses. Estou com as autoridades de saúde do meu lado. O salão tornou a irromper em vivas. Os homens tentavam abrir caminho para a plataforma, de mãos estendidas. A polícia os conteve. O prefeito levantou a mão. Fez um sinal para Johnny, chamando-o, e Johnny foi ter com ele. — Este é o ministro que perdeu uma filhinha — informou o prefeito. E é ele o responsável por essa campanha contra o smog. É a ele que vocês devem aplaudir e não a mim. O Sr. John Fletcher, ministro da Igreja do Bom Pastor. Então a polícia não conseguiu mais conter o povo. Eles avançaram em massa para a plataforma. Centenas de mãos se ergueram para Johnny, centenas de rostos sorridentes o confrontaram. Ele se debruçou e apertou todas as mãos que pôde, e não conseguia falar, de tanta emoção. O Press nem mencionou a reunião, a não ser duas linhas na última página no jornal da manhã, junto dos classificados. Mas tinha um artigo sobre Johnny, no jornal de sábado. “Há alguns meses o Sr. Fletcher foi obrigado a comparecer diante do Tribunal Infantil, para responder a acusações de que as crianças estavam sendo abandonadas. A Imigração, o Serviço de Naturalização e a Sociedade de Assistência Infantil estavam interessadas devido a várias reclamações recebidas. O Sr. Fletcher foi ‘absolvido’ pelo Juiz Foster Bridges. “O Sr. Fletcher chegou em agosto do ano passado com as crianças, para assumir seus deveres pastorais na igreja. Quase desde o princípio, ele foi o centro de controvérsias e fatos curiosos, incluindo o assalto de um jovem sem nome sobre uma das crianças, um assalto a ele por outro jovem sem nome e o atropelo de um grupo de cidadãos diante da

casa paroquial, incitados por um certo sermão proferido por ele, em que defendia os direitos de propriedade e insinuava que o progressivismo, o materialismo e o comunismo eram a mesma coisa. Parece que o Sr. Fletcher acredita que o programa de casa popular e outros progressos sociais, e a campanha de espalhar as riquezas do país por todos os cidadãos seja comunismo, e não uma democracia progressista. “Acredita-se que sua paróquia o apóie em todas as suas controvérsias públicas, com a assistência, alega-se, de pessoas desconhecidas. Dizem que ele induziu o prefeito desta cidade, o Sr. Walter Slavak, eleito por uma plataforma progressista, e atacar as nossas instituições e tentar provocar dificuldades indevidas a certos membros desta comunidade, que empregam grandes quantidades de homens e que são conhecidos por suas contribuições patrióticas a várias organizações locais e nacionais.” O Dr. McManus, fora de si, logo mandou um exemplar desse artigo para Lorry, em Nova York, sem comentários.

XXXII Não há nada tão deprimente quanto uma última nevada do ano, pensou Johnny, certa manhã, vendo a nevasca de um março cinzento às suas janelas. Espera-se a primavera, a explosão amarela das forsítias, o rosado forte das maçãs silvestres, as taças vermelhas e douradas das tulipas, a beleza frágil e etérea do narciso. A seiva invisível das árvores corria como sangue ávido até a última ponta de botão pálido e o sangue dos homens também corria mais depressa, em antecipação. Mas os homens viam a neve e suas esperanças se reduziam. Somente as árvores tinham fé na primavera, que nem a nuvem espectral nem a nevasca podiam fazer debilitar-se. Johnny tinha levado as crianças para o terreno amplo do Dr. McManus para lhes mostrar as flores de açafrão, alguns dias antes, e os punhaizinhos das tulipas furando o seio escuro da terra. — Em breve estaremos na primavera e o sol vai ser quente e um dia vocês vão se levantar e ver todos esses arbustos arrebentando em cores contra o céu azul. O hosana mudo da terra para Deus, pensou Johnny. Ele mostrou alguns tordos aventureiros ciscando no jardim. Parecia que as crianças nunca tinham visto a primavera, tão empolgadas estavam com a ideia. Na verdade, nunca tinham conhecido uma primavera. Ficaram esperando por ela, como os homens esperam por um milagre. Então… nesse dia, houve uma nevasca. — A primavera não chega nunca — reclamou Pietro, o cético eterno, falando com a voz calma de uma autoridade. Johnny estava irritado nessa manhã. Estava com medo de estar-se resfriando e, sendo um homem com uma saúde exuberante, detestava a ideia de doença em si. Além disso, tinha muita coisa a fazer. A primavera inevitavelmente trazia crises cardíacas e pneumonia para os velhos e seus chamados eram muitos. Ele respondeu, olhando para as caras tristes das crianças e para os olhos serenos de Pietro fixos nele: — Você sabe que não é assim, Pietro. Claro que a primavera vai chegar! Não precisa apontar para a neve. Eu também a vejo. O que querem que eu faça? Que saia e peça a Deus para fazer com que ela não caia? Pietro insistiu, os olhos agora bailando de malícia: — Houve o santo que rezou a Deus para chover nos campos… não havia trigo… e Deus mandou a chuva. Johnny quase gritou: — Não sou santo, raios! Nunca pretendi ser santo! Debby, pare de remexer com essa calda; ponha nas panquecas, mas não faça desenhos com ela. Não, não é nada bonito. E eu que passava sermão nos pais por ficarem impacientes com os filhos e baterem neles, que Deus me perdoe! Agora sei o que eles tinham de enfrentar. Kathy, não vou me desculpar por meu vocabulário; eu não estava praguejando, portanto, pare com esse ar frio e superior. Jean, você não vai mesmo comer mais ovos? Os do seu prato não estão moles

demais! Max, pare de tirar a nata do seu chocolate; essa nata é creme congelado e faz bem. Debby, está derramando o leite! O Dr. McManus, de chapéu e um pesado sobretudo, entrou na grande sala de jantar, tão escura. — Que tumulto é esse? — perguntou. — Estava ouvindo vocês lá do hall. Johnny respondeu: — Esses guris às vezes me enervam. Veja só a Kathy, se retirando com dignidade com uma porção de pratos pesados. Isso é para me mostrar que está ofendida. Que moralista. Não, vá embora — ordenou ele a Debby, que agora estava querendo subir para o colo dele. — Acho que estou me resfriando. — Ele a empurrou para baixo, a fez virar, levantou os cachos brilhantes e a beijou na nuca. Ela deu uma risada alegre e correu atrás de Kathy. — Ela parece uma brisa fresca nesta casa — comentou o Dr. McManus. — Uma verdadeira fedelha americana rija cheia de topete e alegria. Kathy voltou e olhou para o Dr. McManus com um ar crítico. — Não vai sair sem suas galochas, Tio Al — falou, num tom imponente. — Você não é minha mãe, sua cara-de-lua — exclamou ele. — E eu não vou… — mas Kathy, resolvida, foi ao armário do hall e voltou com as galochas, colocando-as junto dos pés do médico. Resmungando, ele as calçou. Entendo o que quer dizer — dirigiu-se a Johnny, piscando. — Por falar nisso, você não está resfriado. É alergia. — Tudo é alergia! O que vocês médicos estão querendo fazer? Livrar-se da teoria dos micróbios? A Srta. Coogan chegou e as crianças foram com ela para a biblioteca, e Johnny se preparou para levar Debby para o jardim de infância. Ela se postou ao lado dele, rosada e alegre, como um ursinho marrom com sua roupa de neve. Tinha resolvido não fazer fita nessa manhã, quanto à roupa e botas de borracha. Com a intuição feminina, viu que poderia ser perigoso. O Dr. McManus beliscou a bochecha firme e rosada e os olhos azuis da menina faiscaram para ele. — Acho que é o Tio Al quem vai me levar para o colégio — sugeriu ela, largando a mão de Johnny e indo se aninhar junto do sobretudo do médico. — Pronto, está vendo — reclamou Johnny, sorrindo —, ela está me castigando por não apreciar seu trabalho artístico com a calda. — Você é que não sabe nada sobre as mulheres — respondeu o médico. — Eu sou perito. Não caio nas lisonjas delas. — Pegou a mão enluvada de Debby. — Muito bem, levo você para o colégio. E vocês, garotos, não se esqueçam de que vou levar todo mundo ao zoológico hoje à tarde. A não ser que alguém resolva se operar ou coisa que o valha. Diabo de vida, a de médico. A gente tem de agarrar os momentos que pode. Saiu com Debby, resmungando. Johnny subiu para o seu quarto grande, que ele também usava como escritório, foi ao banheiro ao lado e gargarejou, sério. Depois sentouse à secretária, para preparar o sermão de domingo. A neve caía e agora uma ventania a

acompanhava, uivando nas janelas. Johnny largou a caneta e pegou a fotografia grande de Lorry, em moldura de prata, que ela lhe dera. Sorriu para o rosto esguio, com um leve sorriso, os olhos delicadamente cínicos e depois ficou cheio de saudade. Se ao menos pudesse tirar um ou dois dias para ir vê-la em Filadélfia; se pudesse se esquecer, como numa pausa para respirar, por algumas horas, que era ministro! Pensou na implicância de Pietro sobre o santo e tornou a sorrir. Como aquele dia era, supostamente, um dia santo especial — coisa de que. Johnny duvidava muito —, Pietro e Jean não tinham ido ao catecismo naquela manhã. Era feriado, informara Pietro a Johnny, com um ar superior. Johnny desconfiava de que fosse a prometida ida ao zoológico. Jean estava com uma cara solene demais para ser verdade. Às 11h00 uma empregada foi informar a ele que “uma senhora que está chorando” estava ao telefone, querendo falar com “o ministro”. Johnny pegou a extensão, com um suspiro. — Sr. Fletcher! — gritou uma voz de moça, histérica — Somos de sua paróquia, se bem que não vamos muito à igreja… Sr. Fletcher! Meu marido quer se matar! Está trancado no quarto. Por favor, Sr. Fletcher, venha já! Johnny conhecia a natureza humana bem demais para tentar acalmá-la, com palavras falsas. — Vou já para aí — falou ele, depressa. — Mas não diga a ele que estou indo; fique falando com ele através da porta, o mais calmamente possível. Não tenha medo de assustar as crianças; elas não se assustam facilmente. E a senhora não pode protegê-las contra a vida, sabe, Sra. Thorne. Deixe que elas também falem com o pai através da porta. Qualquer coisa. Saiu correndo na tempestade para a garagem e ligou o velho carro. Os pneus lisos derraparam e giraram na neve e então afinal o carro, rugindo e cuspindo, estava na rua e Johnny tinha partido numa dessas emergências que os médicos e sacerdotes conhecem bem demais. Ele não se lembrava dos Thorne. Provavelmente eram jovens “volantes”, que de vez em quando iam à igreja na sua vizinhança, com menos frequência ainda colocavam algumas moedas de prata no prato de coleta e mandavam os filhos à escola dominical de modo intermitente. Isso lhes dava o direito, na opinião deles, de dizer que “somos de sua paróquia”. Aí Johnny se envergonhou de si; era a dor de garganta, pensou, desculpandose. Não, acrescentou, é só que hoje estou normalmente rabugento e humano e me esqueci de que todos os homens estão numa Paróquia, e todos os sacerdotes são seus pastores. A neve se agarrava ao pára-brisa e os limpadores gemiam, protestando. Felizmente, Boone Street não ficava muito longe. Era uma rua pequena e tranquila, cheia de casas apinhadas e sossegadas, a maior parte casas isoladas de madeira, de uma família, com gramados curtos e quintais compridos. Uma rua respeitável, da classe média baixa, com cortinas brancas nas janelas e varandas em miniatura. Ele encontrou o número 98, parou o carro e subiu correndo a escadinha coberta de neve. Tirou o chapéu, sacudiu-o e espanou os ombros, enquanto esperava que atendessem à campainha antiquada. A porta abriu-se numa rajada de calor e limpeza e ele viu uma moça arrumada, chorando, com cabelos pretos lisos, um vestido estampado e um avental pregueado limpo. Tinha um rosto

bonitinho, sem nada de notável, no momento manchado de lágrimas. Calada, ela afastouse e deixou Johnny entrar numa salinha pequenina, muito cheia de coisas, mas muito confortável. Gente boa, pensou ele maquinalmente, gente moça com amor-próprio. Gente trabalhadora, também. Ora, o que levaria um homem assim a querer se matar? Jogou o casaco e o chapéu numa cadeira, mas a Sra. Thorne, apesar de todas as suas lágrimas e murmúrios incoerentes, os pegou, endireitou e pendurou num armário. O bom conceito de Johnny aumentou. — Depressa, diga-me, Sra. Thorne — pediu ele, esfregando as mãos geladas. Ela apontou para o teto, infeliz. — Howard está lá em cima, no nosso quarto. Com a Luger que trouxe da guerra Trancou a porta depois que me levantei e quando subi para chamá-lo para o café, porque ele não descia, ele disse, bem calmo, através da porta: “Trudie, não tenha medo. Mas eu tenho de morrer, e você fica com o seguro para você e as crianças”. Ela tapou o rosto com as mãos jovens e gastas pelo trabalho e soluçou desesperadamente. A casa estava num silêncio total. — Temos dois filhos, Joe e Elsie — balbuciou ela. — Joe tem sete anos, Elsie, cinco. Estão sentados no chão junto da porta, lá em cima, mas Howard não quer ouvi-los. Mas ele também não vai se matar, enquanto eles estiverem lá. — Ela enxugou o rosto com a simplicidade de uma criança, com as palmas das mãos, e olhou para Johnny com os olhos molhados. — Foi por isso que o senhor queria que elas falassem com ele? — É, claro — respondeu Johnny, com brandura. — Ele é um bom pai e não quer assustá-los. Fale sobre ele. Que idade tem? O que faz? Por que quer se matar? Howard Thorne tinha 34 anos. Ele e a mulher eram de uma cidade do interior muito pequena em West Virginia; tinham sido “namorados” a vida toda e se tinham casado quando Howard tinha 23 anos e Trudie, 20. Pouco depois tinham ido para Barryfield. Não tinham família em West Virginia, pelo menos, ninguém que fosse importante. A Sra. Thorne estava com a cabeça inclinada para o teto, apavorada, enquanto falava, sentada na beira de uma cadeira e torcendo as mãos. Eles eram metodistas, disse, mas tinham vistas largas e frequentavam a igreja do Sr. Fletcher. Apelou a Johnny para entender suas vistas largas, com uma expressão de súplica em seus olhos pretos bem bonitos. Johnny concordou, com a cabeça. — Bem — continuou a Sra. Thorne, a voz trêmula —, o Howard sempre trabalhou muito naquele grande posto de gasolina lá na Union Road e nós economizamos, pois Howard queria um posto dele. Ele tem muito jeito com ferramentas; sabe desmontar um carro e tornar a montar como ninguém. Depois Howard foi convocado, e ele e o governo me mandavam dinheiro, mas tive de arranjar um emprego de horário parcial para poder viver. Na verdade, eu não tinha mesmo de trabalhar; a gente dava um jeito, mas é que eu queria economizar o dinheiro de Howard para ele poder ter aquele posto, quando fosse desmobilizado. Uma vozinha de criança desceu pela escada. — Papai, papai, a gente quer entrar e falar com você, Papai, é o Joe. Por favor, papai.

Uma voz de criança chorou, de dar pena, e a Sra. Thorne se levantou de um salto. — Deixe as crianças sozinhas com o pai — recomendou Johnny, sentado no braço de uma cadeira de balanço velha mas encerada. — Continue, Sra. Thorne. Howard Thorne voltara das guerras — as guerras eternas e malditas, pensou Johnny com amargura — animado, feliz, ambicioso e sem um arranhão. Ele e a jovem esposa calcularam que levariam mais uns quatro anos de uma poupança cuidadosa, ou talvez só três, para terem seu sonhado posto de gasolina. — Não queríamos ficar sem dinheiro — continuou Trudie Thorne —, de modo que queríamos uma margem, para uma entrada para uma casa. Howard não aprova os empréstimos do governo. Sempre disse que a pessoa tem de se manter sozinha, pois, do contrário, o que vai ser deste país? Em todo caso, ele voltou, ao seu antigo emprego no posto grande, com um bom aumento, e o Sr. Judd ficou contente de tê-lo de volta. E então as pernas de Howard ficaram fracas. Mas não deu muita atenção. Isso já foi há dois anos, quase. As pernas foram ficando mais fracas e, quando ele chegava em casa, tinha de se sentar logo, não podia brincar com as crianças como antes e depois ficava cansado mesmo e ia para a cama cedo; nem ficava acordado para ouvir o rádio, nem mesmo as histórias preferidas dele. E então, quatro meses antes, as pernas de Howard pioraram muito e ele foi ao médico. Era esclerose múltipla, de um tipo especialmente rápido e inclemente. Nesses últimos dois meses ele não conseguira dar mais do que dois ou três passos de cada vez, e assim mesmo poucas vezes por dia. Teve de abandonar o emprego e de desistir da ideia de ter seu próprio posto de gasolina. Os médicos tinham dito que a doença estava temporariamente paralisada, e que os braços dele não estavam afetados, e poderiam não ficar afetados ainda por alguns anos. Mas o que o homem podia fazer sem as pernas, perguntou a Sra. Thorne, num novo acesso de choro angustiado. — E logo um homem grande e forte como o Howard, que gostava de esportes e não ficava parado um instante, mesmo depois de trabalhar duro o dia todo. Então, durante dois meses Howard ficara ali naquela casinha aconchegante, pensando, desesperado, passando horas sentado sozinho, calado, sem responder à mulher ou aos filhos, sem rir. — E ele tem uma voz tão linda — disse a mulher, chorosa. — A voz mais bonita e melhor do mundo. É como se ele tivesse morrido, há dois meses. É como ter um estranho em casa. E eu tento, tento mesmo! Pensei no meu antigo emprego, querem que eu volte, em horário integral, e eu disse a Howard que ia voltar a trabalhar, e ele podia tomar conta das crianças de uma cadeira, uma cadeira de rodas. Foi horrível para Howard eu dizer isso mas eu estava tentando animá-lo e mostrar que não era o fim do mundo, ou coisa assim, Mas depois que eu disse isso, ele não quis mais nem tomar o remédio nem deixar que o médico examinasse ou fizesse alguma coisa por ele. Parecia que queria morrer. Johnny concordou, com pena. É, Howard Thorne queria morrer. Sentia que era um peso morto, e para um homem assim, a ideia era intolerável. — Ele fica ali sentado com o talão de cheques — continuou a Sra. Thorne, engolindo em seco. — E todas as semanas vou e tiro um pouco do dinheiro, e ele torna a olhar para o

saldo. Claro, está baixando, mas isso parece que o faz sofrer muito. De vez em quando ele diz: “Bom, Trudie, lá se vai mais um pedaço do nosso posto de gasolina. E um dia desses, talvez dentro de uns dois anos, não sobre mais nada. E então? Assistência social? Nosso tipo de gente não pede isso; prefere morrer! — A Sra. Thorne levantou a cabeça, com orgulho. — E é verdade, e é por isso que sei como o Howard se sente. Tinham cinco mil dólares do seguro de pracinha, informou a Sra. Thorne, e Howard também tinha 15 mil dólares de outro seguro. Naquele dia ele dissera à mulher que isso a ajudaria, junto com suas economias de cinco mil dólares, por alguns anos, “até que os garotos possam se sustentar”. O pior de tudo, soluçou a Sra. Thorne, é que ele dissera à mulher que ela ainda era moça e bonita e podia se casar de novo “e ter um homem de verdade”. — Sr. Fletcher, foi isso que ele disse, um homem de verdade! Como se o meu Howard não fosse isso! Ora, eu nunca olhei para outro homem na minha vida e nem olharia, de jeito algum! Johnny levantou-se. Falou com brandura: — A situação do Howard não é tão desesperadora quanto ele pensa, Sra. Thorne. Aliás, nenhuma situação é tão terrível quanto pensamos. Sei que ele levou um golpe muito duro. Vou subir e falar com ele, e a senhora venha também. O pequeno hall do andar de cima era pouco mais que uma caixa com três portas dando para ele. Mas o assoalho, embora despido, estava bem encerado, brilhando mesmo à luz fraca. Agachados nele, num montinho infeliz, duas crianças muito louras, os rostos manchados de lágrimas e as cabeças encostadas a uma das portas. Estavam gemendo tristemente, cara a cara pela primeira vez com uma tragédia total. Nem levantaram os olhos para olhar para a mãe e Johnny. Quando Johnny se chegou para eles, com pena, o menino levantou o punho e bateu na porta, com tristeza, dizendo: — Papai, papai, sai daí! A menina chorava, esfregando os olhos com as mãos. O homem respondeu, a voz abafada: — Vá embora, Joe, filho. Vá embora, Elsie, amor. Vão procurar a mãe. Não chorem, não chorem. O papai não aguenta isso. Ele tem de fazer uma coisa por vocês, e vocês estão impedindo. — Howard, Howard querido! — soluçou a Sra. Thorne, debruçando-se por cima dos filhos e encostando os lábios na porta. — Não faça isso conosco, amor, não faça! A voz de Howard estava baixa, pesarosa: — Trudie, Trudie, é preciso. Você vai ficar com o dinheiro. Se eu não fizer isso, como é que você e os guris vão viver? Não presto para nada, diabos; nunca mais vou prestar para nada e você não sabe disso? Leve as crianças embora. Tenho de rezar um pouco, primeiro. Johnny falou, com firmeza: — Não reze, Howard. Não vai adiantar nada. Deus não o perdoará.

— É o ministro, o Sr. Fletcher — falou a Sra. Thorne, depressa. — O ministro, que está nos jornais, Howard, sabe, o que você gosta. Eu o chamei, bem. Ficaram todos calados durante algum tempo; depois, com um som de dilacerar o coração, Howard começou a soluçar, os soluços pesados e secos de um homem numa angústia total. — Não devia ter chamado, Trudie. Não devia ter incomodado o reverendo. O que ele pode fazer por algum de nós? O homem tem de enfrentar Deus sozinho. — Isso mesmo, Howard — falou Johnny. — Sozinho. Mas você não está enfrentando Deus. Não Lhe está contando seus problemas, nem pedindo Sua ajuda. Está odiando Deus, Howard. Está querendo vingar-se Dele, por causa de sua enfermidade. Vai mostrar a Deus, não é, que Ele não lhe pode fazer isso? — Isso é um raio de mentira! — gritou Howard, e ouviu-se o ranger de rodas e Johnny viu que o pobre rapaz se tinha aproximado da porta. — Eu só quero fazer uma coisa pela Trudie e os guris! Não posso mais fazer nada por eles! Vocês, ministros, ora, vocês…! Johnny esperou até que diminuísse o ruído daquela respiração ofegante junto da porta. Depois continuou: — Muito bem, Howard. Quer fazer com que sua família se sinta infeliz e culpada toda a vida, por causa, de você. Não é um homem valente; é um covarde. Não tem amorpróprio, pois acha que alguns milhares de dólares valem mais para sua família do que você! Quanto? Ao todo, 25 mil dólares! Ora, antigamente, o homem comprava dois escravos por isso! É esse o orgulho que você tem em si? Howard Thorne, vendido por 25 mil dólares! — Ministro ou não, essas palavras são de briga, moço! — A voz de Howard passou a um berro. — Se eu tivesse pernas, ia fazê-lo engoli-las, por Deus! Ele bateu na porta com os punhos, num frenesi, e parecia o rufar de tambores. As crianças levantaram as vozes num gemido de medo. Johnny sorriu diante da paixão violenta naquela voz sulina e respondeu, com cuidado: — Muito bem, deixe-me entrar e me faça engolir minhas palavras. Não me está convencendo de que vale nem mesmo 25 mil dólares. Se me convencer, eu… — parou, pois já ia cair numa pitoresca linguagem do exército. Tossiu. Howard ficou escutando e depois grunhiu. — É uma armadilha, um raio de armadilha. Provavelmente tem uns tiras aí com você. — Nada de tiras — respondeu Johnny. — Mas vou lhe avisar, sou um homem grande e enfrento dez como você, Howard. Dez como você, mesmo de pernas sãs. Ele sorriu de novo diante do grunhido zangado e desdenhoso. Era só enraivecer um pretenso suicida e metade do trabalho estava feita. Howard respondeu: — Posso surrar você, mesmo agora, com essas malditas pernas, e posso provar isso! — O que está fazendo numa cadeira de rodas? — perguntou Johnny.

A Sra. Thorne falou depressa: — Foi o Howard quem fez a cadeira para si, Sr. Fletcher! Fez mesmo! Quando as pernas ficaram ruins. Consegue descer a escada andando, mas aí anda por aí na cadeira. Tem rodas de borracha. — Para combinar com uma cabeça de borracha — completou Johnny. As crianças estavam olhando para ele, as lágrimas secando em suas faces. Aquele era um tom que as aliviava, um tom normal e feliz, dentro do horror incompreensível que se abatera sobre elas naquela manhã. Joe chegou a dar uma risadinha e a irmã, sem entender, riu com ele. Johnny se abaixou e mexeu nos cabelos deles e eles riram de prazer, encabulados. — Garotos simpáticos. Espertos, também. De quem será que herdaram a inteligência. Da mãe, imagino, e só dela. — Deixe os meus guris em paz! — rugiu o pobre rapaz, atrás da porta. — Só estou dando uma olhada neles — respondeu Johnny, acalmando-o, e piscou para a Sra. Thorne. — A mãe não vai poder tomar conta deles, depois que você der um tiro nesses miolos de mico. Vai ter de economizar para eles se educarem, de modo que providencio para eles irem para um orfanato. Temos um bem razoável aqui. — Papai não tem cabeça de borracha — disse Joe, rindo. — Tem cabelos vermelhos. A Sra. Thorne estava piscando, tentando compreender. O ministro devia estar falando de Deus e do pecado, tendo pena do pobre Howard, em vez de o atormentar. Mas lá estava o Reverendo, sorrindo para as crianças, quando Howard berrava e praguejava por trás da porta. Não era bom as crianças ouvirem aquele vocabulário. — Howard — pediu ela, quando o marido parou para respirar… e para maior efeito… depois de um trecho especialmente horripilante. — Os guris nunca o ouviram falar assim. Joe está escutando e rindo de morrer. Deixe o ministro entrar para falar com você, por favor, Howard. — Zombando de mim, meus próprios filhos — gemeu Howard. — Bom, você é engraçado mesmo — respondeu Johnny, — Por falar nisso, você me deu saudades do exército. Onde é que roubou a Luger? — Paguei 10 dólares por ela! — gritou Howard. — Ouçam só o…! — Está enganado — respondeu Johnny. — Meus pais eram casados. E os seus? Gente decente não anda por aí apavorando as mulheres, querendo despertar compaixão. E então? Deixe-me entrar e vou chorar no seu ombro. — Vou deixar você entrar! — concordou afinal Howard, cerrando os dentes. — E vou arrancar sua cabeça! Trudie, tire os guris de perto da porta; leve para o quarto deles. Tenho de ter uma conversinha com esse sujeito aí! Trudie fez as crianças muito interessadas se levantarem e as enxotou, olhando para Johnny por cima do ombro, os olhos arregalados e apavorados à luz fraca do hall. Ele fez um gesto com a cabeça, tranquilizando-a.

— Muito bem, Howard, já se foram. Por falar nisso, vai atirar em mim, quando abrir a porta? Uma chave girou na fechadura, a porta se abriu de repente e lá estava Howard na sua cadeira de rodas, ofegante, os dentes cerrados, as mãos enormes nos joelhos. Uma das mãos agarrava a arma fatal. Johnny via a cabeleira ruiva e emaranhada, o rosto largo e branco, os olhos castanhos enraivecidos, o nariz curto e forte e a boca grande, rosnando. Howard Thorne era um rapaz maciço, e as pernas penduradas da cadeira pareciam bem sãs, e Johnny desconfiava que fossem, mesmo. — Então! — disse Howard, afastando a cadeira da porta. — Entre, entre, seu pastor dos diabos! Ele empurrou a cadeira depressa para o meio do quarto, olhando para Johnny com ódio. Johnny postou-se ali, as mãos nos bolsos. Olhou em volta do quartinho reluzente, com prazer. Alguma coisa num nicho no canto atraiu seu olhar, e ele ficou espantado. Ainda olhando para o objeto falou: — Tenho de felicitar você e a Trudie. Gente boa, direita. Precisamos de mais uns milhões como vocês, por aqui. Filhos maravilhosos. Uma pena terem sido magoados desse jeito. Vão se lembrar disso a vida toda. Talvez Elsie possa ficar infeliz, alguma vez, quando for mais velha, e pensar em lhe contar tudo, mas depois vai se lembrar desta manhã e saber que você não a ajudaria. E Joe. Garoto grande e bonito. Não vai ter um pai de que se orgulhe. Talvez você devesse mesmo ter dado um tiro na cabeça. Claro, isso seria para as crianças um choque nervoso de que nunca se recuperariam. E iam culpar a mãe, embora ela não tenha culpa alguma, claro, Mas as pessoas são assim. Howard não deu resposta, se bem que sua respiração pesada enchesse o quarto. Johnny sentou-se na beira da cama de casal arrumada, com sua colcha feita em casa. Alisou a colcha, admirando-a. — Minha mãe Ane fez uma assim mesmo. Eu a tive durante anos. Aí alguém a roubou. Nunca me esqueci. Desenho de estrela, como este. Acho que se chamava Estrela de Belém. Olhou para Howard, com calma. — Quando você se matar, seus filhos vão se lembrar deste acolchoado para sempre. É assim que funciona a mente humana. Vão pensar no desenho dela, a Estrela de Belém, em todos os Natais, enquanto forem vivos. Você não estará suicidando só a si. Estará manchando todos os Natais das vidas deles com o seu sangue. E terá assassinado a fé nas almas deles. Howard tinha se calado e ficado muito parado. Olhou para a Luger em suas mãos e seu peito grande, sob a camisa branca limpa, arfava num soluço mudo de angústia. Depois ele jogou longe a Luger, que caiu no tapete de retalhos no chão. Ambos os homens olharam para ela, calados. Depois de uma pausa, Howard levantou a cabeça e falou, furioso: — Posso surrá-lo, mesmo você sendo grandão! Sou maior do que você.

A luz baça da janelinha com cortinas bateu em seus cabelos ruivos, formando um halo de raiva patética. Johnny sacudiu a cabeça, sorrindo para esconder a compaixão em seu coração. — Talvez. Mas não sabe atirar ferraduras tão longe quanto eu. Eu era campeão, lá onde morava. Ele olhou para Howard, sério. — Para que cadeira de rodas? Sei alguma coisa sobre esclerose múltipla. Não fez de você um aleijado, de repente, apesar de dois anos de fraqueza muscular. Ora, conheço meia dúzia de pessoas que têm isso há anos, e se trataram, e a doença pode ser paralisada, às vezes pelo resto da vida. Mas você teve de passar a usar logo uma cadeira de rodas! Querendo torturar Trudie, é? — Cale a boca! É mentira! Eu só queria que ela visse o que ia me acontecer depois, para não chorar muito por mim. O médico me disse que eu provavelmente ia ficar assim dentro de uns 8, 10 ou 12 anos, só isso! Ele se levantou da cadeira-de rodas, oscilando um pouco, mas levantou. Deu uns passos lentos, e Johnny o observou atentamente. É, as pernas positivamente estavam fracas, mas a inércia as estava enfraquecendo antes do tempo. — Veja só! — exclamou Howard, com repugnância. — Não consigo ficar de pé horas, como devia! Como posso dirigir o meu posto, ou de qualquer um? O médico disse que não poderia. Olhou para a cadeira de rodas e estremeceu, deu um passo para ela, olhou para Johnny, hesitou e depois ficou ali duro, as mãos cerradas num desafio ao lado do corpo. Havia marcas de sofrimento em volta de sua boca, seus olhos. Johnny meneou a cabeça. — Acho que concordo com você. Não pode mais ficar de pé o dia todo. Mas tenho um amigo, o famoso Dr. McManus. Gostaria que ele o examinasse; mas vou avisando que os honorários dele são caros. — Diabos — respondeu Howard, com desdém —, posso pagar. Tenho algum dinheiro. Dr. McManus, é? Bem, ele que venha. — Daqui a pouco ligo para ele. Mas vamos falar de você. Quer sentar? — Não! — berrou Howard, e começou a andar de um lado para outro, a princípio com dificuldade e dor evidentes, e depois com mais força. Johnny cruzou as pernas e disse, pensativo: — Quando uma pessoa quer se suicidar, nunca é pela causa imediata, como acha. Ele sente que está imprensado contra uma parede. Mas milhões de pessoas passam por isso todo dia e não dão um tiro nos raios das cabeças. Saem lutando, saindo da parede. Mas o homem que se mata não tem tutano; não consegue encarar o que tem de encarar. É só mais uma centena de coisas que ele tem tido de enfrentar, provavelmente, na vida. Não é só aquela coisa. Howard, quando foi a primeira vez que você se sentiu imprensado contra a parede? Quando era rapazinho adolescente no exército? Howard parou de andar, a cabeça baixa. Depois virou-se depressa para Johnny, o

rosto amargo e vivo. — Quando eu tinha 14 anos! Veja ali! Eu esculpi aquilo quando era garoto. Passei a vida toda esculpindo. Mas o meu pai disse que eu tinha de parar com isso e ir trabalhar e eu fui, e ninguém vai dizer que não ganhei bem a vida para minha mulher e filhos. Talvez o pai tivesse bom senso, mas eu nunca consegui perdoá-lo. Talvez ele não soubesse das coisas, e tinha sempre razão. Johnny se levantou e foi até a pequena peanha de madeira pendurada no canto. Pegou a magnífica estátua de madeira escura e a segurou com respeito. Howard a observava, e deu uma risada. — Trudie gostou disso. Foi presente meu para ela no aniversário, quando os dois éramos garotos. Sempre quero jogar fora, mas Trudie gosta dele, e os guris também. Coisa boba. A imagem, de 32 cm de altura, era incrivelmente bela e impressionante. Representava Cristo como rapaz jovem e viril, com uma veste simples, tão maravilhosamente bem entalhada que parecia esvoaçar, soprada para trás por um vento invisível e eterno. Ali se viam a força, poder e exultação. Não era um Cristo humilde e brando, mas um homem de força, cujas mãos tinham lançado sóis e mundos, galáxias e universos, faiscando de luz, num abismo negro e sem vozes, onde arderiam para sempre conflagrações de vida e glória. Ali estava o Deus que passava de constelação em constelação, deixando atrás de Si o Seu rastro brilhante, no tempo e no espaço. O rosto era vital e forte, calmo, sorrindo, com uma juventude imortal, erguido para ouvir o som da música que Ele criara por toda parte. As mãos pequenas, vigorosamente entalhadas, estavam meio erguidas, num gesto de criação iminente. Lá estava o simples Homem da Galileia, mas lá estava também o Deus triunfante e poderoso. — Foi você quem fez isso? — perguntou Johnny, a voz abafada, cheia de assombro. — Quando era menino? Howard ficou meio prosa. Aproximou-se de Johnny e olhou para a imagem, por cima do ombro dele. — Coisa boba — respondeu, com orgulho. — Eu era muito religioso, naquela época. Um sujeito lá onde eu morava me ofereceu 10 dólares por ele, quando eu era menino, mas eu dei para a Trudie. — Foi você quem fez isso? — repetiu Johnny. Teve de se sentar, ainda segurando a estatueta. Sacudiu a cabeça, sem poder acreditar. Depois olhou para as mãos de Howard, pela primeira vez, e viu que eram esguias e bronzeadas, os dedos compridos, sensíveis e calejados, nervosos e tensos. Suspirou e fechou os olhos. Ainda de olhos fechados, e como para se proteger contra uma luz intensa demais para ser suportada, ele começou a falar baixinho. — Sou ministro, e no entanto cada hora de minha vida é uma revelação para mim. De Deus e Seus assombros misteriosos e estranhos, e suas ordens. Ele lhe deu o gênio e a capacidade de criar coisas maravilhosas. Você foi impedido, em parte pelo seu pai, em parte por si mesmo, porque você tem um espírito de artista e isso nem sempre é

suficientemente forte para desafiar o mundo dos homens. Para cada artista que sobrevive e vive e cria, certamente 10 mil deles já se afundaram no pó da obscuridade, morrendo como metade de homens, nunca tendo vivido. Por quê? Porque lhes faltava a fé em si e em Deus? Porque tinham corpos frágeis, ou eram sensíveis demais? Não sei. Ele então abriu os olhos e olhou para Howard de repente, ali junto dele, de pé, escutando com pesar. — Conheço um escritor que hoje é famoso — continuou Johnny. — Mas ele jamais publicou um só livro antes dos 40 anos. Sempre foi escritor; a vida e as mesquinharias apenas o atrapalhavam, e ele levou muito tempo para superá-las e se livrar. Foi isso que aconteceu com você. Mas Deus não quis esperar até você estar na meia-idade e inteiramente esquecido. Não quis que você continuasse a trabalhar em coisas pequeninas. Então, tirou a força de suas pernas e ordenou que você tornasse a usar suas mãos, para fazer o trabalho que Ele lhe ordenara fazer. — Ora, vamos — respondeu Howard, encabulado. — Quer dizer que aquela coisa ali significa alguma coisa? Diabos, eu mostrei isso a alguns ministros, bem aqui nesta cidade, e eles disseram que era… o que foi mesmo?… blasfêmia. Um deles disse que não prestava, em todo caso. Outro falou que eu devia fazer outro, ajoelhado e rezando. Eu disse a Trudie que não prestava mas ela me obrigou a mostrar aos ministros, e depois eu me ri à beça dela! Estendeu a mão e pegou a estatueta de Johnny e a segurou, e de repente o rosto largo e pálido ficou terno, pensativo e cheio de pesar. — Mas gosto disso, sim — murmurou. — É assim que Ele ainda me parece. — E a mim também. Howard virou-se para ele, de repente, e não era mais um trabalhador, e sim um espírito de vida animada e de esperança. — Quer dizer que eu poderia ganhar a vida, esculpindo coisas assim? — perguntou ele, a voz tremendo. — Podia não só fazer uma fortuna mas ainda ficar famoso no mundo inteiro — respondeu Johnny. — Não lhe estou mentindo. Eu sei. Nunca vi trabalho como este, nem nos museus da Europa. Se eu não soubesse os milagres que Deus está realizando sempre, não poderia acreditar que você é que fez isso. — Ele riu, inseguro. — Você e o seu posto de gasolina! Você e gasolina! Por Deus! Howard olhou para ele, mudo, os olhos castanhos ardendo com um entusiasmo quase incontrolável. Depois balbuciou: — Não… não está brincando comigo, está? Johnny pôs a mão no ombro dele mas só conseguiu ficar ali e sacudir a cabeça, com assombro e alegria. Por fim acrescentou: — Tenho vontade de me ajoelhar e rezar. Howard, quando o Dr. McManus chegar, quero que lhe mostre esse trabalho. Quanto dinheiro você tem? Cinco mil dólares? Isso vai lhe durar até você começar. Tem de esculpir mais estatuetas, do que quiser, religiosas, seus

filhos, sua mulher… qualquer coisa. Uma meia dúzia. E depois as leva para Nova York. O Dr. McManus arranja para colocá-las; conhece todo mundo. Pode ser que você precise de algumas lições, muito poucas, pois provavelmente está enferrujado. Mas não lições demais, dadas por gente com menos gênio! Howard correu, não andou, até a cômoda e puxou a gaveta de cima. Pegou uma caixa comprida e despejou o conteúdo na cama. Era uma coleção de meia dúzia de estatuetas, de crianças e pássaros, animais e anjos, cada qual maravilhosamente perfeita e severamente delicada. Johnny as examinou, sem poder falar. — Nunca desisti de esculpir — explicou Howard. — Tenho de fazer alguma coisa com as mãos, o tempo todo. É como a gente ter fome e ter de comer. A Trudie queria pôlos em mesas, mas estou sempre ouvindo o meu pai dizer para eu parar com essa besteira e trabalhar feito homem, e tinha vergonha. Johnny estava examinando uma estatueta de uns 18 cm, de uma criança triste, esfarrapada e desanimada, Respirava abandono e infelicidade. No entanto, a cabeça meio virada tinha um ar de estar escutando, de uma esperança frágil. — Gosta desta? — perguntou Howard. — Vi uma garota assim na Europa. Uma refugiada. Ei, quer para você? Pode ficar com ela, se quiser. A voz dele estava segura, modestamente orgulhosa, a voz de um criador. — Obrigado — respondeu Johnny. Tocou no rostinho e pensou em Emilie. Howard pegou a estatueta dele com dedos delicados, como se ela tivesse vida, e a embrulhou com carinho num pedaço de papel de seda. Colocou-a na palma da mão de Johnny. E disse, olhando nos olhos do ministro: — Você me fez viver de novo! Puxa, parece que a vida me está voltando! Como se eu tivesse renascido! — E renasceu mesmo — respondeu Johnny. Mas Howard estava gritando em altos brados: — Trudie! Joey! Elsie! Venham aqui ouvir o Reverendo! Venham já! E Trudie, é bom começar a fritar essa galinha. Ele vai ficar para almoçar!

XXXIII Às 14h00, naquela casa de regozijo, risos e rostos jovens e gratidão, Johnny ligou para casa. Sim, disse a Sra. Burnsdale, havia três chamados de doentes para ele, um do hospital. O médico tinha levado as quatro crianças mais velhas para o jardim zoológico, mas Debby tinha sido mandada para casa, do jardim. Estava .com um pouco de febre, dissera a enfermeira do colégio. — Talvez seja sarampo — sugeriu a Sra. Burnsdale, com calma. — Sarampo! — exclamou Johnny, em desalento. — E todas aquelas outras crianças. — E acrescentou, sombrio: — E eu provavelmente também vou pegar, pois nunca tive. Meia hora depois uma empregada entrou na cozinha, onde a Sra. Burnsdale estava feliz, preparando a sobremesa favorita do médico para o jantar. — A Srta. Summerfield está aqui. A Sra. Burnsdale saiu da cozinha correndo acompanhada por Debby, que se recusara terminantemente a ir para a cama, preferindo o movimento da preparação das refeições num calor fragrante e fumegante. Lorry já estava tirando as luvas, o chapéu e o casaco quando a Sra. Burnsdale chegou junto dela e apertou as suas mãos frias, sorrindo para ela com prazer. — Resolvi vir para cá para o fim de semana, em vez de ir para Nova York — disse ela, abaixando-se para beijar o rosto da Sra. Burnsdale. — Então — acrescentou, pondo as mãos nos joelhos e se abaixando mais — essa é a Debby. Que bonitinha… — Você é a Tia Lorry — adivinhou Debby, pulando, alegre, abraçando Lorry. — Vi o seu retrato — falou a menina, depois de um beijo estalado, aninhando-se junto da moça. — Papai tem um retrato. Posso levar as alianças, o papai disse. Lorry pegou a menina no colo e a abraçou. O sorriso de boas-vindas da Sra. Burnsdale ficou meio fixo. Viu que Lorry estava extenuada, muito magra e a boca muito pálida. — Debby é muito pesada para a senhora. Uma menina grande, parecendo um bebê! Mas Lorry agarrou-se à criança, avidamente. Debby inclinou-se no colo dela e falou, com um ar importante: — Estou com sarampo! — Ah, pelo amor de Deus — Lorry assustou-se, largando-a depressa. — E eu que fico com crianças três vezes por semana, ou mais. Alisou os cachos castanhos brilhantes, suspirou e sorriu. Alguma coisa a está preocupando, pensou a Sra. Burnsdale, que sugeriu um chá quente e sanduíches, os quais Lorry aceitou agradecida, em frente da grande lareira da sala de visitas. Debby sentou-se ao lado dela, pulando de prazer. — Vamos ter uma casa nova — informou ela a Lorry. — E um quarto grande para

Kathy e eu. — Pulou de novo, os olhos azuis e brilhantes acesos, em antecipação. Lorry olhou para aquela sala velha e feia e suspirou de novo. Ela e Debby estavam sozinhas. Ficou ouvindo a tagarelice da menina, com certo contentamento. Era ótimo estar com uma menina que não tinha feridas espirituais nem físicas. Uma menina americana, que só conhecera o amor! Que maravilha, como era gratificante e dava esperanças. — Deixe pra lá o sarampo, se é que está mesmo com isso — falou Lorry, estendendo os braços. — Venha sentar no meu colo e me conte tudo sobre você. Era uma bênção as outras crianças poderem ter aquela por irmã, tão vibrante, tão saudável e fresca. Debby aceitou o convite, feliz. Sua voz doce de menininha continuou e Lorry concordava, séria, de vez em quando, apenas escutando aquela voz e tomando coragem com ela. Pensou nas outras crianças naquela casa e sua coragem aumentou. Se elas podiam ser salvas, só pelo amor, então as outras também podiam. Aliás, pensou, veja o que me fez. E veja o que poderia fazer por todo esse mundo desgraçado. Aí ela notou que Debby não estava mais falando. O rosto : da menina estava parado e reservado, os olhos virados na direção do fogo. — O que é, meu bem? — perguntou Lorry. Debby se encostou no seio dela. — Papai me contou do meu papai e mamãe, com os anjos — respondeu ela, com uma vozinha miúda. — Eu queria que eles fossem morar conosco na nossa casa nova. Lorry afagou-lhe os cachos, com amor. — Você não os vê, meu bem, mas eles vêem você e a amam. Sempre. Depois, o que o papai ia fazer sem você agora? Foi Deus quem mandou você para ele. Não sabia? O rosto rosado de Debby mudou e ela olhou para Lorry, encantada. — Foi mesmo? Foi porque levou Emilie? Kathy que contou da Emilie. Ela era mais boazinha do que eu? Lorry encostou a face na cabecinha redonda e quente. —·Todas as crianças são boazinhas. — Seus olhos cansados olharam para o fogo, vendo as crianças assustadas, solitárias e machucadas que ela classificava, consolava e tratava nesses dias tristes e amargos. E se houvesse outra guerra, com mais cidades destruídas, mais horrores, mais mortes, mais crianças dilaceradas, mais lares desfeitos? Nunca, nunca mais pode acontecer. Deus, rezou ela, cheia de medo. Agora havia homens demais como o pai dela no mundo, os homens cheios de ódio, que queriam vingança… de nada. Ou, pior ainda, homens que queriam lucros. Ela apertou bem as pálpebras, pensando no pai, não o detestando como antes, mas temendo-o. Debby estava cochilando no colo dela e Lorry recostou-se na poltrona de orelhas e de repente estava dormindo, numa atitude de exaustão total. Quando ela acordou já estava escuro e Johnny estava ali a seu lado, a mão dele na sua face, e Debby não estava mais. Sem uma palavra, ele se debruçou e a beijou nos lábios, depois sentou-se no braço da

poltrona, puxando a cabeça dela para seu peito. Ela teve uma sensação de repouso e felicidade, e uma vontade de chorar, não de dor, mas de paz. O fogo crepitava baixinho na lareira e sombras rosadas oscilavam nas paredes escuras. Então Lorry começou a falar. — Johnny, vim para cá porque estou muito cansada e precisando de você. E para lhe dar a oportunidade de ver as coisas… direito. Johnny, não creio que eu serei boa para você. Aliás, serei muito ruim para você. Estive pensando muito. — É tudo tolice — respondeu ele. — Como assim, ruim? — Você já me viu como mulher de ministro? Sinceramente, Johnny, Lorry Summerfield, Presidente da Assistência Feminina! É… incongruente. Para você. Esta cidade, e tudo. Não sou esse tipo, Johnny, e você sabe disso. Ele virou-se, agachou-se e pegou as mãos dela. — Não quer se casar comigo, Lorry? — perguntou. Ela olhou dentro do azul profundo e brilhante dos olhos dele e começou a chorar, as lágrimas escorrendo por suas faces abatidas. — Ah, Johnny — murmurou, encostando a cabeça na dele. — Mas o meu pai, Johnny. Nunca deixa você em paz. Nunca. O Tio Al me manda todos os sarcasmos e escárnios dele sobre você, até eu ter vontade de vir em casa e matá-lo. — Tentou rir, mas só conseguiu soluçar. — Imagine, casar com uma mulher com a morte no coração! Por causa de você. — Não me importo com o que o seu pai escreve sobre mim, querida — respondeu Johnny. — O que interessa? Ele que insinue o que quiser, quando quiser. Ninguém acredita, em todo caso. Ora, ele agora deixa o Padre John Kanty em paz, depois que eu apareci. Há homens que precisam de alguém para detestarem, e no momento sou eu o palhaço. Amanhã será outra pessoa, provavelmente. — É disso que tenho medo — disse Lorry. Johnny sorriu para ela, espantado. — Não faz mal — continuou ela. — Voltando ao nosso caso. Johnny, você precisa de mim, como eu sou, nada adequada para você, como sou? Johnny, eu nunca poderei ser uma mulher de ministro de fisionomia suave, cheia de tato quando os tolos falam, ajeitando as coisas no salão paroquial, organizando festas de crianças e almoços de missionários. Você me vê fazendo tudo isso com toda a sinceridade? — Não — respondeu Johnny. Ele se levantou, as mãos atrás das costas. — Você tem dotes especiais. Não pode confiná-los num âmbito restrito. É por isso que, mesmo depois de nos casarmos, você vai ter de continuar com o seu trabalho com os quacres. Todas aquelas crianças e, receio, haverá outras, agora em paz em casa em algum lugar do mundo… e amanhã perdidas e órfãs. Sinto isso com todos os meus instintos. Também eu andei pensando. Ela se levantou e ficou ao lado dele, passando a mão em seu braço. — Johnny, eu sabia que você ia entender. Já devia saber — falou ela, sentindo remorsos. — Devia saber o que você é. — Ela deixou cair a cabeça no ombro dele e eles

se abraçaram no escuro quente da sala. Ela estava inteiramente em paz, embora sabendo que os anos que tinham pela frente seriam difíceis e interrompidos. Havia tanta coisa a fazer. Mas ela e Johnny o fariam juntos. Eles ouviam as vozes das crianças nas salas do andar de cima, rindo, brigando, implicando. E os grunhidos do Dr. McManus. Lorry sorriu. —· Sinto que cheguei em casa. A Sra. Burnsdale tinha posto Debby na cama a despeito de protestos e lágrimas. Então, quando Debby viu a curiosidade assombrada das outras crianças, ela tomou a adquirir importância. Estava ficando com uma erupção visível. Kathy, Jean, Max e Pietro foram banidos para o limiar da porta, espiando uns por cima dos ombros dos outros e se acotovelando para um longo exame daquela criança importante. O Dr. McManus estava sentado na beira da cama de Debby, segurando a mão dela. — Sim — disse ele, irritado —, pode comer sorvete de morangos em todos os raios de refeições, e entre elas, se é o que quer. Mas um pulo fora da cama e você passa a leite e torradas. Está entendendo? Debby bateu a cabeça com tanta força que os cachos voaram. Os outros ficaram olhando para ela com inveja, e ela viu. — Nem todo mundo apanha sarampo — concluiu o médico, sombrio. — Espero. — Olhou feroz para as outras crianças e gritou: — Rua! Todos vocês. E não cheguem perto da Debby. Ela agora é minha filha especial, sabem? Pôs os brinquedos favoritos de Debby na cama, afagou sua face quente e desceu. A sala ainda estava acesa pelo fogo. Ele viu Johnny e Lorry de pé, juntos, quietos. Ficou contente. Encontrou a Sra. Burnsdale com a cozinheira na cozinha e lhe fez um sinal. Ela o acompanhou à sala de jantar, que já estava iluminada pelas velas, e com as melhores travessas de prata, em homenagem à visitante. — Então? — perguntou ela. — Se quiser um suflê decente, é bom falar depressa, pois é muito delicado. Ele a examinou, calado. O corpo roliço da Sra. Burnsdale estava enfiado num vestido da moda, de seda preta e uma gola de renda em volta do pescoço avermelhado. — Sabe, madame, a senhora está cada dia mais bonita, se está. É o clima. Ou será que sou eu, por acaso? — Ora, doutor — retrucou ela, rindo e corando. Ela apontou o dedo por cima do ombro em direção à sala. — Todo esse negócio de amor — resmungou — está me levando à segunda infância. Senilidade, é isso. Por falar nisso, quando é que nos casamos? Ela agora ficou séria e seus olhos cinzentos se turvaram. —·Ah, a qualquer momento… Al — murmurou. — Depois do ministro e da Srta. Lorry: Pensa que eu o deixaria? Ele lhe estendeu a mão hábil e ela a pegou. Ele hesitou e depois a puxou, com rudeza,

dando-lhe um bom beijo, e depois outro. — Tenho outro motivo, entre muitos, para querer me casar com você — disse ele, afastando-se. — Vamos estar todos juntos na casa paroquial e vamos ter de consolar Johnny um bocado. Lorry não quer largar o trabalho dela; ela me escreveu para preparar Johnny para o que ela chama de sua “decisão”. Não fiz isso. Isso é lá com eles. E acho que resolveram. O que ela pensava que o Johnny fosse, hein? Depois, você muito breve será Presidente da Assistência Feminina; já ouvi falarem. O que a Lorry ia fazer, para preencher o tempo? “E outra coisa — acrescentou, raivoso —, estou cansado dessas listas. Considere-se minha noiva, madame, e pare com as listas e compre o que precisar para essa maldita casa paroquial. Mande pôr na minha conta. Estou farto de ver essas listas enfiadas por baixo de minha porta de noite, como um billet-doux. Isso não é moral. Na minha idade!” As crianças nessa noite jantaram na sala de almoço. Lorry sentou-se à cabeceira da mesa encerada da sala de jantar, no lugar do médico. Seus cabelos lustrosos, os brilhantes olhos azuis esverdeados, o pescoço alvo e comprido e as mãos muito brancas formavam a imagem mais linda do mundo para o Dr. McManus, Johnny e a Sra. Burnsdale. Sua voz perdera a antiga aspereza; quando ela ria, agora, era o riso de uma mocinha. Johnny mostrou a estatueta que tinha ganho naquele dia. — Um amigo meu esculpe essas coisas — falou ele, com uma displicência estudada. — O que acha disso, Lorry? É só uma criança, entalhada num pedaço de mogno, eu acho. Lorry a pegou e examinou; depois levantou os olhos para os de Johnny, devagar. — Ah, é milagroso — respondeu, os olhos se umedecendo. — Eu as vejo todos os dias, essas crianças — murmurou. — Todos os dias. Como se chama o gênio que captou a expressão de uma criança perdida, e todo o seu sofrimento e infelicidade? O médico espiou. — Ora, macacos me mordam. Conheço essas coisas. Pastor, furtou isso da casa de algum ricaço, quando ele não estava olhando? Johnny então contou a respeito de Howard Thorne e eles ficaram escutando, com assombro, sem acreditar. — Não é possível! — exclamou Lorry, segurando a estatueta, maravilhada. Colocou o objeto na mesa e, iluminado pela luz de velas, ele adquiriu vida e expressão e pareceu mover-se. — Um homem assim! — É — respondeu Johnny — um homem assim. E quem sabe o que é o nosso próximo, afinal? Um santo, um anjo sem saber, um gênio, um artista, um demônio, um sonhador de grandes sonhos, ou um abscesso em forma de homem? Quem sabe? Nós nunca realmente nos vemos e isso é ao mesmo tempo o mistério e o terror da vida. Lorry ficou escutando e depois tornou a examinar a estátua, assombrada. Depois de um instante perguntou:

— Johnny, posso levar a estatueta comigo para Nova York? Conheço as pessoas certas, que se interessariam muito. Quantos ele tem no momento? — Alguns. Mas não quer ceder o Cristo. Mas você tem de ir lá, para vê-lo, comigo. — Um homem assim — falou o médico — precisa de todo o apoio possível, para começar. E eu sou exatamente o velho fi…, quero dizer, idiota sentimental, burro, esbanjador que vai fazer isso! — Tocou na estatueta com um dedo muito delicado. Pensou em Jean, em todas as outras crianças. Aquilo era sua essência. Acrescentou: — E é bom que ele vá à minha clínica para um exame geral. Há coisas que se pode fazer a respeito disso, não muitas, mas temos algumas pistas. E talvez, se pudermos provocar esse povo mais um pouco, consigamos dinheiro suficiente para vencer isso. Talvez. Eu mesmo andei trabalhando nesse assunto. Lorry levantou-se, foi para junto dele e beijou-o. Ele piscou e passou o braço em volta da cintura dela, com força. — Do jeito que vocês todos me exploram — reclamou, zangado — um dia desses acabo falido. — Coitadinho — provocou a Sra. Burnsdale, com um sorriso de carinho. Ele virou os olhos ferozes para ela e brandiu o dedo na cara dela. — Isso não é jeito de minha noiva falar! — ralhou. — Está começando bem. — O quê? — exclamou Lorry, encantada, olhando para Johnny, esperando vê-lo encantado também. Mas ele estava recostado na cadeira, ostensivamente caceteado. — Não é segredo. Eu já adivinhei isso há meses. Fico espantado com você, Lorry. O doutor e a Sra. Burnsdale andam se beijando atrás das portas há semanas, — Isso é uma mentira descarada! — gritou o médico. — A insinuação me ofende. Olhe para o rosto corado desta mulher e verá que está inventando. Foi só hoje que falei com ela. A Sra. Burnsdale falou, examinando a sobremesa com olhos críticos: — E isso também é mentira. Ele anda atrás de mim desde que vim para cá. Por fim, tive de ceder. Pareceu a Lorry que aquele fora o fim de semana mais feliz de sua vida. Não houve nada que o estragasse, nenhum tom de ansiedade em coisa alguma, a despeito do sarampo de Debby e do fato de as outras crianças estarem com sintomas sérios da mesma doença. A nevasca podia continuar intermitentemente, misturando-se com o smog menos intenso, e a última ventania do inverno podia abalar as paredes da casa velha. Lá dentro só havia paz, contentamento, calor, risos e amor. No domingo ela se sentou num banco lateral, sem chamar atenção, para ouvir o sermão de Johnny. Nesse dia ela lhe contaria sobre Barry. E depois ia telefonar a Barry e lhe pedir para ir lá. Sorriu para Johnny e escutou sua voz sincera e sonora. Talvez, a imagem da criança o tivesse comovido demais. Talvez algum

pressentimento terrível acometera seu coração. Ele falou dos Soldados do Senhor, “que tinham de militar sempre contra o mal e os homens maus, que estão nesse momento tramando a morte de todas as nossas esperanças, a destruição de nossas cidades, os gritos de morte de nossos filhos, a ruína de nossas capitais, o assassinato de nossa juventude. Estão planejando uma desolação e um deserto na terra, muda, aos mares desolados. Não podemos ser complacentes. Os homens de boa vontade são delinquentes. Os homens do mal são cheios de uma intensidade apaixonada. O próprio ar clama com a conversa de demônios”. Seu sermão foi noticiado no Press, na segunda-feira. Lorry, ajudando com as crianças, que já estavam positivamente com o sarampo, só leu o jornal de tarde. Lá estava o editorial do pai, e nunca uma acusação fora tão maligna, tão distorcida, tão cheia de ódio e desprezo. “Para um homem que fala tão constantemente na paz”, escrevera o Sr. Summerfield, “é estranho que se tenha tornado fomentador de guerras, um provocador de emoções ignorantes e inflamadas. O que queria que fizéssemos? Lançar a bomba atômica indiscriminadamente em qualquer nação que pudesse ser apenas suspeita, embora sem motivos positivos, de ‘tramar’ contra este país? Estamos numa época em que os homens devem usar a razão e ser calmos, tolerantes e ponderados. No entanto, esse ministro conduziria uma turba contra qualquer um, em qualquer lugar. Este jornal há muito desconfia de seus motivos. Está na hora de ele ir embora.” Lorry escapuliu da casa, sua fisionomia dura e branca.

XXXIV — Não, Sr. Fletcher, não vi a Srta. Lorry sair — comunicou a Sra. Burnsdale, aflita. — O carro dela não está aí? Pensei ouvir um carro sair da garagem há uns 45 minutos. Talvez ela tenha ido fazer alguma visita. — Ela não tem amigos íntimos em Barryfield — respondeu Johnny, decepcionado. Acabava de chegar de visitas a doentes. Sentiu-se um tanto magoado; no dia seguinte, Lorry ia embora. Ele olhou para as crianças estudando; estavam debruçadas sobre os livros, de modo que ele apenas sorriu e fez um gesto de cabeça para a Srta. Coogan. A casa estava quente e escura, na tarde de inverno, e muito sossegada. Era a hora em que os empregados descansavam em seus quartos no terceiro andar. Ele resolveu que mais valia trabalhar no sermão da semana seguinte e fazer alguma coisa a respeito de seu sermão da Páscoa. Este último estava-lhe dando trabalho. Refletiu que provavelmente já se dissera tudo sobre a Ressurreição. Além disso, a Bíblia o dizia muito melhor. Como ousar se comparar com uma tal grandeza? Subiu para o seu enorme quarto de dormir e olhou com desagrado para a secretária arrumada. Olhou para a cama, disfarçadamente, e depois foi para a secretária, severo, e sentou-se. A felicidade, pensou, era quase tão exaustiva quanto a infelicidade; o homem precisava da solidão para digerir a alegria, assim como precisava dela para se refazer do sofrimento. Olhou para o cabeçalho de seu sermão: “Aquietai-vos, e sabei que sou Deus”. Ele pensou sobre aquilo, olhando sem ver por uma das janelas grandes. “Aquietai-vos.” Mas ninguém parecia estar quieto nessa época. “Aquietai-vos” lhe lembrava o movimento grande e pleno de um mar noturno, suas vagas sem pressa, seu modo antigo não perturbado, imutável mesmo na tormenta, mesmo sob a lua. Falava de verdades eternas, de movimento eterno e repouso eterno. “Aquietai-vos.” Onde se podia encontrar a quietude nesses dias de fragmentação, de pedacinhos frenéticos que não pareciam nunca encaixarse num desenho que tivesse sentido? Quanto mais atividades, pensou ele, menos se realizava, menor era a serenidade, menor o sentido. O movimento em si, movimento frenético, vozes mais fortes e mais rápidas, mais saltos se movendo depressa mas sem um propósito real, ou objetivo real, mais barulho, mais martelar, mais, mais, mais, sempre mais, sempre “novidade”; isso se tornara a cacofonia frenética do estilo frenético da humanidade moderna. Onde, nessa confusão mecânica, o homem poderia ficar quieto, e “ saber que eu sou Deus”? Mesmo quando os homens ficavam sós consigo de noite, escapando dessa eterna exortação para “fazer alguma coisa”, não podiam repousar. Uma ansiedade indizível os dominava; eles se perguntavam, com um livro esquecido no colo, se teriam deitado de fazer alguma coisa importante nesse dia. E certamente tinham deixado de fazer alguma coisa importante: rezar, comunicar-se com Deus. A sombra brilhante de Sua asa pairava sobre seu inquieto horizonte espiritual, mas eles não a viam. Ou talvez a vissem, e tivessem medo. Contemplar Deus seria negar aquela insistência uivante da imprensa, do púlpito, dos livros, revistas e rádios, para se fazer coisas, por

inúteis que fossem. Apenas fazer. “Ocupem-se!”, exclamavam os psiquiatras, olhando com reprovação e desconfiança para os homens pensativos, sentados sozinhos num silêncio bendito, com seus pensamentos. Mais, mais, mais. As consciências dos homens não se perturbavam mais com os maus atos ou o, abandono de Deus. Também a consciência estava pervertida. Agora perguntava quantos “contatos” o homem fizera nesse dia, quanto dinheiro conseguira ganhar, se se “ajustara” bem, se tivera “consciência social” e se fora “caloroso nas relações humanas”. Estar propositadamente ocioso, só e contemplativo, era considerado anti-social, um sintoma de distúrbio emocional. Johnny disse, em voz alta: — É, o mundo positivamente está ficando louco. Os “novos valores” são a nova demência. Haveria nisso também um motivo sinistro, de se encher a vida de um homem de modo que não restasse mais, na casa de sua mente, lugar para Deus? Ele agora estava escrevendo com rapidez. A noite começou a cair. Ele não ouvia as crianças, tagarelando na sala embaixo. Não ouviu tocar a campainha. Uma empregada bateu à porta, de leve, abriu-a e disse que o Sr. Barry Lowell, irmão da Srta. Summerfield, chegara inesperadamente, para passar alguns dias. O Dr. McManus e a Srta. Summerfield não estavam em casa. O Sr. Fletcher poderia falar com ele? — Mas claro! — respondeu Johnny, empolgado. Então, Barry tinha vindo fazer uma surpresa à irmã! Vestiu o casaco, alisou o cabelo com as mãos e correu para baixo. Barry estava na biblioteca, junto de sua mala. Estava fumando sofregamente, olhando para as estantes de livros. Virou-se quando Johnny entrou. Johnny estava sorrindo, a mão estendida. Começou: — Sou Johnny Fletcher. Aí, parou. Estava pasmo com a semelhança de Barry com sua meía-irmã, apesar de o rapaz ser mais alto e ter ombros largos. O mesmo tom esquisito nos olhos, o mesmo formato de rosto, os mesmos cabelos dourados, o mesmo nariz! Era notável. E então os pensamentos de Johnny mudaram e sua expressão ficou perplexa. Em algum lugar, em alguma ocasião, ele já vira aquele homem. Alguma coisa importunava sua memória, alguma coisa que o importunava frequentemente, sem um nome ou pista, quando olhava para Lorry, sob certas luzes. Ele perguntou, inseguro: — Já nos conhecemos, Sr. Lowell? — Entrou mais na sala, intrigado. Barry estava ali parado como um poste, olhando para Johnny, o cigarro fumando sozinho no canto da boca. A luz pálida de inverno lá de fora o fazia parecer extremamente pálido. Seus olhos se fixaram sobre Johnny com uma intensidade estranha. Levantou a mão e tirou o cigarro da boca, depois o pôs de volta. Deu um passo para Johnny e Johnny sentiu a concentração feroz de seu olhar. — Johnny, Johnny Fletcher? — perguntou Barry, a voz rouca. — Sou, sim. Lorry não lhe falou a meu respeito? — perguntou Johnny, espantado. — Lorry — respondeu Barry. — Ela sabia, desde o princípio! Lorry! O que foi que disse? Sim, ela falou que ia se casar com um ministro, mas não me disse seu nome. Por

quê? ·— A voz dele falhou. —· Por que ninguém me contou, o velho Al, Lorry…? — Não sei — responde Johnny, mais intrigado ainda. — Em todo caso, não é importante. Lorry me contou sobre você, de ter trocado de nome. Mas assim mesmo, sei que já o conheço. Não é? Com muito cuidado e devagar, Barry apagou o cigarro num cinzeiro. Depois ficou ali, olhando para ele, a cabeça baixa. Johnny o examinou. Perguntou a mesma coisa que Barry: Por que Lorry não contara o seu nome ao irmão? Ela o deixara supor que Barry sabia. Johnny corou, vexado. Mas continuou: — Talvez Lorry tivesse seus motivos. Os nomes não têm muita importância, têm? Eu me lembro que em certa ocasião ela me perguntou se o seu nome me dizia alguma coisa, e eu não me lembrei. Barry continuava a olhar para o cinzeiro. Depois, falou muito quieto: — Não, e por que haveria de se lembrar? Provavelmente eu fui apenas um entre dezenas, para você. Foi uma coisa de todo dia, para você… naquela época. Mas para mim, não. — Levantou a cabeça depressa e olhou para Johnny. — Mas eu o «procurei durante anos; significava tudo para mim! Disseram-me que você tinha sido morto. Johnny, mais perplexo do que nunca, pensou, confuso: É só a minha-imaginação. Por que ele havia de estar com lágrimas nos olhos? — Eu, morto? — perguntou. Tentou rir um pouco. — Não, fui ferido gravemente na Batalha do Bolsão, mas sou forte e me restabeleci. Passei uns tempos num hospital remoto, improvisado. Foi lá que nos conhecemos? — Não — respondeu Barry, olhando para Johnny como quem olha para um milagre, estupefato. Johnny foi ficando cada vez mais sem jeito diante daquele olhar intenso, aquele rosto pálido virado para ele numa paixão muda e inexplicável de recordação. — Acho que a minha memória já não está tão boa — desculpou-se. — Mas pareceme que o conheço. Talvez seja a sua semelhança com Lorry. Ele sentia que Barry estava colocando Lorry num plano imperdoável, que Barry estava detestando a irmã, por um motivo incompreensível. Então Barry chegou-se a ele e pôs as mãos com força nos ombros dele, olhou dentro de seus olhos e sorriu. — Johnny, Johnny Fletcher! — falou, a voz trêmula. — ; O velho Pastor Johnny! O velho Santo Joe! Por que havia de se lembrar de mim? Você só salvou minha vida, só me arrastou de um buraco na praia na Normandia e me carregou nas costas, sob fogo cerrado! Só ficou ao meu lado quando eu estava morrendo e só suas rezas me fizeram viver! Foi só isso, Johnny Fletcher! — Não! — exclamou Johnny, sem poder acreditar. Ele agarrou os braços de Barry. — Não! — repetiu, com um prazer quase selvagem. — Mas claro, agora me lembro! Eu me lembraria logo, se você estivesse fardado, Barry! Mal posso acreditar. É impossível. — Você está vivo! — gritou Barry. — Deus do céu, está vivo! Depois de tantos anos,

está vivo! Deixe-me olhar para você. O mesmo Johnny! Vou matar a Lorry, vou matar o velho Al por não me terem contado! Procurei por você pela Europa toda. Disseram que você tinha morrido. — A voz dele falseou de novo e não havia como não ver as lágrimas em seus olhos. Johnny estava ao mesmo tempo encabulado e comovido com a emoção do rapaz, que lhe parecia estar-se descontrolando um pouco. — Bem, estou vivo, sem dúvida. Então, você é irmão da Lorry! Ela deve voltar logo; vai explicar por que não revelou o meu nome. — Qualquer explicação que ela tiver será idiota. Como é que a Lorry pôde me fazer isso? Ela sabia que eu estava procurando por você; sabia que fiquei infeliz quando não o encontrei. Sabia o que senti quando ouvi dizer que você tinha morrido. Mas ela me faz isso — Johnny tornou a corar, vexado, e Barry, sempre perceptivo, entendeu. Ele apertou mais os ombros de Johnny, — Não é nada contra você, Johnny. É alguma brincadeira boba que ela está fazendo comigo, se bem que não seja da natureza dela fazer essas coisas. Talvez ela tenha mesmo um motivo, e hei de saber qual é! — Vamos sentar — sugeriu Johnny. — Estou vendo que você ainda manca um pouco; aquela perna. Eu me lembro. Queriam amputá-la e você berrou que mais valia lhe amputarem a cabeça. — Tentou sorrir, se bem que seu rosto tivesse ficado escuro, de humilhação. — Lembro-me que fiquei ao seu lado e eles conseguiram salvar sua perna. Ela lhe incomoda muito… Barry? — Para o diabo com a perna — respondeu Barry, impaciente. Ele se sentou junto de Johnny, depois puxou a carteira e dela tirou com cuidado uma foto velha, eternamente selada entre duas camadas de plástico. — Veja isto. Lembra-se do Nie Nichols e a camarazinha dele? Tirou esta foto de vários companheiros nossos em Exeter, antes do Dia D. Aí está você — Barry sorriu, no meio de sua emoção — parecendo mais pracinha do que qualquer um de nós! Johnny olhou para o instantâneo, tentou sorrir de novo e ficou sério. Lá estavam oito jovens soldados americanos, com o seu capelão. Só ele e Barry tinham sobrevivido à praia da Normandia. Nie Nichols, do Tennesse, com os quatro filhinhos. E a sacola dele cheia das fotos que tinha tirado deles, guris de cabelos claros, os rostos magros divididos pelos vastos sorrisos. E aquele jovem negro, com o rosto majestoso moldado em bronze, que ajudava Johnny nos ofícios; estava no segundo ano da Faculdade de Medicina e também era poeta. — Eu podia ter-me isentado da convocação — dissera ele a Johnny — mas já estudei bastante, por mim, para saber que estamos de novo na era dos tiranos. Hitler pode ser o primeiro, mas não será o último! — Não pode ser assim — protestara Johnny, pois Charles Hartwick estava sombrio demais. — Esta certamente será a última guerra, a guerra pela liberdade. O jovem negro se rira, com amargura. — Mas todas as guerras que o homem tem travado têm sido pela “liberdade” — dissera. — E só foram guerras para trocar de tirania. Odeio a guerra; odeio as pessoas que fazem as guerras; odeio esta guerra também. As guerras são mentirosas. Sabe por que me

alistei? Para ajudar a nos livrar deste tirano. Amanhã lutaremos para nos livrar de outro, e depois outro e outro. Ah, como o senhor, pastor, no princípio eu achava que Hitler seria o último dos tiranos, mas hoje sei que não. É só o princípio, o princípio de todos os tiranos reacionários. Tem olhado para Stalin, ultimamente, o maior déspota reacionário de todos? Dê uma olhada, pastor, dê uma olhada. Então Johnny “dera uma olhada”, de fato. E começara a ver tantas outras coisas, de que antes nem sequer suspeitara. Ele disse, então: — Quando Charlie Hartwick morreu, perdemos um lutador pela liberdade. Todos nós outros éramos apenas patriotas, e isso bastava. Mas não basta mais. Não basta marcharmos nos nossos desfiles da Legião, mostrar a bandeira e repetir o Juramento de Fidelidade. Isso é apenas nacional. A luta agora se trava intimamente nas nossas escolas, igrejas, lares, nas nossas discussões com os outros. Os espíritos dos homens agora estão empenhados, e não apenas seus corpos e armas. — Ele sorriu para a foto com carinho, suspirou e a devolveu a Barry. “Lorry tem-me dado alguns livros que você tem publicado. Homens de coragem, que os escrevem. Homens valentes. Não é um comentário terrível sobre a nossa época, que quando os homens escrevem e falam a verdade são perseguidos pela imprensa e até pelos políticos? Antigamente era suposto que os homens tivessem liberdade de imprensa e que não era muito corajoso de parte deles atacarem os mentirosos. Não era mais que seu dever, como americano.” Distraído, aceitou um dos cigarros de Barry. Estava pensando nos jovens amigos mortos, e sacudiu a cabeça, com pesar. — Você está fazendo o que pode — respondeu Barry. — Lorry me citou alguns dos seus sermões… e as reações de meu pai a eles. Mas jamais me disse o seu nome. Perguntei algumas vezes, mas ela desviava o assunto. Não vou perdoar a Lorry. — Ela lhe contou sobre meus filhos? — perguntou Johnny, depressa, pois não estava gostando da expressão do rapaz. — Contou tudo — respondeu Barry, bruscamente. Ele olhou bem para o ministro. — Foi uma coisa formidável o que fez. Você influenciou Lorry mais do que pensa. Que… bem, que moça infeliz ela era, e agora está ajudando o tipo de crianças que você ajudou. De certo modo, você salvou a vida dela, e foi por isso que vim vê-lo pessoalmente, para ver que tipo de homem conseguiu transformar a minha irmã desse modo. E encontro você, Johnny Fletcher! — Sorriu para Johnny e sua boca se mexeu. — Olhe, talvez eu esteja enganado quanto a Lorry. Talvez ela quisesse mantê-lo em segredo para me fazer uma grande surpresa. Uma voz ganiu do vão da porta. — O que está acontecendo? Lá estava o Dr. McManus, com seu velho e triste sobretudo marrom e o chapéu amassado. Tentou espiar além de Johnny para ver quem era o outro. Barry se levantou e olhou para o médico.

— Seu filho da mãe mentiroso e conspirador! — falou, baixinho. — Seu velho impostor. — Barry! — Uivou o médico. Entrou na sala depressa e jogou os braços em volta do rapaz, abraçando-o. — Diabos, é o Barry! Deus, rapaz, como estou contente em vê-lo. Quando chegou? Deixe olhar para você, raios! Ele empurrou Barry, piscando, os olhos úmidos. Depois viu a expressão nos olhos de Barry e deixou cair os braços. Coçou a face e ficou meio arroxeado. — Humm, é — murmurou. Depois exclamou com raiva, e com um constrangimento evidente: — Onde está todo mundo? Cadê a Lorry? Ei, Barry, não me olhe assim tão furioso. Lembra-se de mim? Assisti sua mãe quando você nasceu e você era um garoto horrível. Ah, está querendo saber por que não lhe contamos; é uma história comprida. — Olhou para Johnny, que estava reservado de novo. — Não vá me olhar furioso também, Pastor. Nada contra você. Sentem-se, sentem-se! Vocês dois estão com um jeito de quererem me dar um soco na cara, eu, um velhinho. Como já disse, é uma história comprida. — Acho bom ser uma boa história — respondeu Barry. O médico ficou ali sentado, encolhido numa poltrona, enquanto os rapazes ficavam de pé junto dele, com um ar ameaçador. — Por que não se sentam? — perguntou ele, azedo. — E estou precisando de beber alguma coisa. Várias coisas. Johnny, puxe aquele cordão lá. Isso merece uma comemoração. Nada de vinho, nem xerez, nem conhaque. Uísque com soda. Você também, seu bandido — dirigiu-se a Johnny, tentando zombar dele. — O senhor esconde o uísque — respondeu Johnny, tentando sorrir, pois estava sentindo que Barry estava zangado de novo. — Eu sei. Já procurei por ele. Pensa que todo mundo é ladrão? — Ele puxou o cordão da campainha. — Se andou procurando o uísque, então é que é ladrão mesmo — falou o Dr. McManus, evitando o olhar de Barry. Ele jogou o chapéu velho no chão, tirou o sobretudo e depois sentou em cima dele. — Não sou mais o que era — resmungou. — Quase perdi este último caso de úlcera. Acho que vou me aposentar. Estou ficando muito velho, nervoso e exausto. — Uma pena — disse Barry. — Se está procurando consolo de minha parte, não o terá. Que tal um pouco de pena de mim? — Já lhe disse, é uma história comprida — respondeu o médico, ranzinza, e então passou à ofensiva: — Você é burro demais para ser tolerante, do contrário saberia que Lorry e eu tínhamos um motivo para nos calar. Ah, sim, May. Traga uma garrafa de uísque escocês… tome a minha chave, e a traga de volta… e três copos e gelo e soda. Eles ficaram esperando; o médico piscava para Barry, sério, como uma coruja. — Deus não lhes deu joelhos, é, para dobrarem e se sentarem? Olhe, não vou dizer uma palavra até beber alguma coisa. Acho que vou ter um colapso cardíaco. — Bom — agourou Barry. Mas o seu afeto profundo pelo Dr. McManus estava

começando a abafar o seu ressentimento irritado. Ele sentou-se. Johnny olhou de um para outro e então viu que o médico o estava fitando encabulado. Ali havia alguma coisa que ele não estava entendendo, e ele não sabia bem se ia gostar. — Talvez seja melhor eu deixar vocês dois, velhos amigos, a sós — falou, secamente. O médico riu-se, olhando para Barry. — O Pastor é sempre muito sensível. Delicado como uma flor. Todas as emoções dele são pragmáticas; coisa de garoto. Não tem imaginação. Talvez seja melhor você impedir esse casamento, Barry, do contrário vai ver que ele vai examinar cada livro que você publicar e berrar diante de certas coisas. Ele é todo amor fraterno; não acredita nos homens da machadinha. — Então ele mudou muito — respondeu Barry, vendo que Johnny estava sem jeito. — Sente-se, Johnny. Acho que a história do velho Al também vai ser uma revelação para você. Aí vamos dar uma boa risada. A empregada entrou com uma bandeja de prata, garrafas e copos. Serviu as bebidas com economia. — Ainda não estou falido, May — falou o médico, com sarcasmo. — De modo que vamos servir bastante. Um pouco mais, um pouco mais. Hoje aqui, amanhã desaparecido. Nesta casa, nunca se sabe. Já estou quase falido, mas ainda não. Ele passou os copos; Johnny vacilou, depois se aborreceu com o seu ressentimento e pegou um copo. Concentrou-se na quantidade de soda. Estava ouvindo as vozes felizes das crianças, libertadas, em outra parte da casa grande. Barry, ouvindo-as, também sorriu. Johnny estava com uma expressão orgulhosa e reservada e Barry então se arrependeu de sua raiva sem tato, que tinha precipitado aquele desentendimento. — Muito bem, Tio Al, vamos ao assunto. — Uísque bom, esse — disse o médico, lambendo os lábios. — Deve ser uma revelação para o pastor bebedor de cerveja, e para você, Barry, com seus martínis de Nova York. Nunca suportei bebidas misturadas. Fazem mal aos rins. — Deixe os meus rins para lá — respondeu Barry. Piscou para o médico, que, tornando a olhar para Johnny, meneou à cabeça, de leve. — Onde está a Lorry? — perguntou o médico. — Saiu, faz algum tempo — respondeu Johnny, num tom distraído e frio. — Vou acabar com a raça dela — disse Barry, displicente — a não ser que sua história seja boa. — Não sei de nenhuma história — confessou Johnny, irritado. — Bom, foi assim — começou o médico, mexendo o gelo no copo. — Chegou esse pastor, em agosto, todo empolgado, Inocente e entusiasmado como um maldito Adão saído do paraíso. Basta contar a verdade às pessoas, é o que ele pensa. Então, anda com explosivos no bolso. Quem lhe disse, raios, que as pessoas querem ouvir a verdade? Então, logo de saída, os guris se metem em apuros… os moleques e desordeiros os

atacam. Uma história comprida; Lorry lhe contou? Muito bem. Então, depois o seu pai entra em cena, o pastor é uma ameaça, o pastor é fascista, o pastor é contra os sindicatos, inimigo do povo. Ah, Lorry também lhe contou isso, foi? Não interrompa! O pastor tem de ir embora. Cadê o jornal de hoje? Estava bem aqui; não se pode ter uma coisa neste raio de casa. O editorial de hoje de seu pai acusa o pastor de ser um promovedor de guerras. Coisa engraçada. O seu pai era todo a favor de entrarmos na guerra contra Hitler, mas agora todo mundo que luta contra o comunismo é promovedor de guerras. Ele se dirigiu a Johnny, com amargura: — Vá, encha o meu copo, sim? Se eu morrer, onde é que você vai estar, com esses guris? No asilo, isso é que é. Johnny, um pouco apaziguado, serviu o uísque ao médico. O Dr. McManus olhou para ele e Johnny sorriu um pouco, vendo os olhos ferozes e afetuosos. — Uma coisa que a gente não pode fazer neste mundo, rapazes, é ser constante. A gente tem de ficar mudando de atitude para enfrentar as exigências uivantes dos maníacos. Uma guerra é boa, outra é má, dependendo de quem, no poder, quer a guerra, ou quem vai se aproveitar dela, ou qual a minoria que berra por ela. Sabe o que eu faria? Desnaturalizava todo filho da mãe nesta terra que gritasse que é minoria. Eu o mandaria para onde ele seria maioria, e quem é que ele ia culpar então? Ou a pessoa é americana, ou não é. Simples… “Bem, em todo caso, o que estamos fazendo aqui, nesse escuro? Alguém acenda uma luz. Então o pastor faz logo o sermão de arrasar e lá vai a Lorry, toda cheia de pó-de-arroz e batom e cinismo e saliência, para conseguir uma história do pastor, mas ele não dá, porque Deus lhe deu um pouco de bom senso… não muito, note bem. E então, de repente, alguma coisa acontece com Lorry e comigo também, quando estamos na casa paroquial, e percebemos que esse pastor é o seu Johnny Fletcher, e Lorry fica histérica. Foi, sim, Barry, e pare com essas malditas interrupções! Ela quer contar ao pastor. Mas eu tive uma ideia. Vamos guardar você para arrasar o seu pai, quando chegar o momento!’’ — O quê! — exclamou Johnny, indignado. — Então — protestou Barry — eu sou o cacete que vai quebrar a cara de meu pai. Que melodrama. Teria sido muito mais sensato se você ou Lorry lhe tivesse contado, e então, talvez, algumas das coisas que aconteceram não teriam acontecido. Imaginou que vocês nem pensaram nisso. — Olhou para Johnny, que estava ali de punhos cerrados. — Olhe, Johnny, é evidente que tanto o doutor quanto Lorry são dois imbecis. O doutor está senil e Lorry lhe deu ouvidos; ela sempre foi romântica mesmo. Pode perdoá-los? Eu já perdoei. A gente não fica furioso com crianças retardadas, não é? — Foi por causa dos ataques de seu pai a mim que a minha casa paroquial foi incendiada e a minha filha assassinada — respondeu Johnny, a voz fraca. Barry ficou calado. O médico estendeu a mão depressa para a garrafa. — Claro, você sempre foi um idiota. Você que começou tudo, com a sua maldita verdade. Se não fosse o Mac, a ordem teria sido dada pelos comunistas. Além disso, a sua filhinha estava morrendo mesmo. E você não tem a Debby, que precisa de você? Dois meses, três meses, um ano depois, já teria sido tarde para Debby. E vai ganhar uma

mansão por casa paroquial e tem a Lorry. Mas você é dos tais que nunca está satisfeito. Johnny abaixou a cabeça e olhou para os pés. Depois de um momento, falou: — Pareço ingrato. Talvez seja. Mas, pondo o resto de lado, não gosto da ideia de servir de instrumento para atingir homem algum, nem mesmo o Sr. Summerfield. Mas ele já estava se acalmando de novo e a tensão doentia dentro dele estava passando. Então, Lorry não sentira vergonha dele, afinal, como ele tinha receado, secretamente. Ela não revelara o nome dele ao irmão por seus motivos secretos, diante da insistência do médico. Sorriu, a despeito de seus esforços para manter uma cara severa. O médico deu uma risada e. apontou para ele. — Como é muito burro, ele estava pensando que Lorry não lhe tinha contado porque achava que você julgaria que um pastor não era bastante bom para ela. Como é que um homem pode ser tão obtuso? — A Srta. Lorry ainda não voltou e já está escurecendo. Estou meio preocupada. A Sra. Burnsdale chegou à porta da biblioteca, um pouco hesitante. O médico se levantou, foi até a Sra. Burnsdale e pegou a mão dela. — Barry — disse, solene —, quero apresentar a você a minha noiva. Uma mulher e tanto. Nós todos teríamos desmoronado sem ela, inclusive o pastor. A Sra. Burnsdale corou, quando Barry apertou-lhe a mão. — Sabe como o doutor é exagerado — comentou ela. Olhou para Barry com interesse. — Não é o irmão da Srta. Lorry? Uma das empregadas disse isso. Sou a Sra. Burnsdale. — Lorry já me falou muito sobre a senhora — respondeu ele, com amabilidade. — Sou Barry Lowell. Ela o examinou bem e disse: — Parece gêmeo da Srta. Lorry. O médico pôs a mão no ombro dela, com orgulho. — Ela vai casar comigo. Tive de pedir em defesa própria, senão ela me levava à falência, por causa do pastor. Agora, o dinheiro fica na família. Diabos, o que o homem tem de fazer para se proteger, não é? A Sra. Burnsdale tocou na face dele, de leve. — Eu nunca soube que neste mundo havia pessoas tão maravilhosas. Não conheci nenhuma, antes de conhecer o Sr. Fletcher e o doutor. Ela olhou para Johnny e ficou preocupada. Ele parecia irrequieto e aflito. Nesse momento o telefone tocou e o médico, praguejando, pegou o fone e disse: — Tome uma aspirina! Depois ficou calado, escutando, e seu rosto cinzento ficou de uma palidez mortal. Ficou olhando para Barry e depois para Johnny, e não conseguia falar.

— Está bem, Lorry. Fique calma. Vou já. Lorry? Seu irmão está aqui. É, o Barry, quem mais havia de ser? Sim. Olhe, benzinho, fique calma. Já estou indo. Desligou e agarrou o sobretudo e o chapéu. Barry estava ao lado dele. O médico sacudiu a cabeça. Vamos, rapazes, temos um trabalho a fazer. Nós três. E não temos um minuto a perder. — Lorry! — exclamou Johnny, com aquele sentimento conhecido de pavor. — Não aconteceu nada com a Lorry — respondeu o médico, feroz. — Não se preocupem, com ela. É uma coisa que ela fez, a imbecil.

XXXV Esther Summerfield, oscilando, entrou no escritório do marido, o sari híndustão esvoaçando em volta do corpo. Era azul-claro, com fios prateados. O rosto moreno e os olhos amendoados estavam com uma expressão pensativa, displicente. Carregava uma bandeja, onde havia uma coqueteleira e dois cálices. — Está na hora de nossos martínis, MacDonald — disse ela, afundando numa bela poltrona antiga. Olhou em volta do gabinete, mobiliado com os mais raros móveis antigos, e torceu o nariz comprido. Via a escarpa branca de uma montanha através de uma janela com cortinas de veludo rosa e pensou: deve ser minha imaginação achar que ele não está bem, embora ele agora passe tanto tempo em casa. O céu da tarde estava de um azul medieval, depois da neve. O Sr. Summerfield continuou a escrever. À mulher perguntou: — Esse é o artigo para o Gazzette-Express de Nova York? É tão importante assim? Está escrevendo furiosamente, meu bem. (Por que ele andava tão pálido e os olhos tão exaustos?) — É muito importante — respondeu ele, impaciente. — Vão publicá-lo na edição de domingo. Não interrompa, Esther. Ela se levantou, lânguida, e serviu um coquetel. — Você está parecendo tão satisfeito, meu bem, que quero que fique mais satisfeito ainda. Eu mesma fiz esses coquetéis, Bem secos. Ela olhou para a secretária e sua boca sorridente ficou tensa. Reconheceu a pilha de folhas ali, na caligrafia redonda, quase não formada, do Dr. Sommer Granger, a letra de uma criança extrovertida e maldosa pensou Esther, que havia pouco se dedicara à ciência da grafologia. Uma criança má, pensou, que é cruel por causa da exultação e o poder que a crueldade lhe dá. Viu que, como sempre, o marido estava usando aquelas notas como base para seu artigo. Seu olho rápido pegou algumas linhas: “O reacionário acredita que está agindo pelos ‘princípios americanos’ quando denuncia um homem progressista por sua ideologia democrática. Mas o seu ‘patriotismo’, como o reacionário chama a sua aberração, é apenas um medo paranóico de alguma coisa que ameace sua segurança no status quo. Em muitos casos a violenta rejeição das ideias progressistas pelo reacionário se baseia sobre uma hostilidade subconsciente para com o pai ou a mãe, durante a infância. A criança muito nova é ritualista; qualquer desvio de um ritualismo confortável, mesmo o desvio sendo necessário para o crescimento, desperta o seu medo e ódio pelo desconhecido… O reacionário, portanto, é de fato uma pessoa emocional e mentalmente perturbada, necessitando de tratamento psiquiátrico para aliviar suas tensões e hostilidades e restaurá-lo numa adaptação feliz.” Esther ficou junto do marido, relendo esse parágrafo em voz alta, numa voz pensativa, para aborrecimento do marido. Ela riu-se, com desdém. — Granger quer dizer atitudes de calma e aceitação com relação ao comunismo. Ele

nunca me enganou. Mas agora está começando a me assustar. É o tipo de psiquiatra que se considera progressista, mas, na verdade, não é. É ele um dos verdadeiros reacionários. Quer o poder, o poder para criar um estado de hilotas sem cabeça, ele na elite. Eu disse isso a Granger. É por isso que ele me detesta e quer convencer os nossos amigos e conhecidos, e você também, de que sou uma mulher idiota, cheia de modismos e superficial. E está conseguindo. Sabe que sei de tudo sobre ele. Esther sentou-se. Seu rosto moreno estava tenso, de raiva e ansiedade. O marido olhou para ela com um interesse súbito, como se a visse depois de uma longa ausência. — Olho para o poço da mente dele e vejo todo o inferno — continuou ela. — Não admira que os russos usem psiquiatras como Granger, o tempo todo. O que está acontecendo no mundo de hoje é o sacrilégio supremo, o assalto nas almas dos homens que estão querendo bancar Deus. Isso nunca aconteceu, em toda a história do mundo. O anticristo, por fim. O Sr. Summerfield sorriu, com indulgência, mas não respondeu. Esther pegou uma dobra do sari e olhou para ele. — Eu o amo, MacDonald, e é por isso que fico aqui com você, e banco a boba. Estou mortalmente caceteada, farta e cheia de tédio. Tenho essas fantasias só para aliviar o meu tédio. O pior de tudo é que estou começando a me cacetear com você. —· Levantou os olhos, que estavam cheios de um fogo escuro. — Pode sorrir, MacDonald, mas é verdade. E sei de mais uma coisa: você não é nenhum Sommer Granger. Não acredita em uma palavra do que ele lhe diz para escrever. Não é comunista; não é nem mesmo esquerdista. O que Granger tem a ver com você, MacDonald? Que tipo de chantagem ele tem sobre você que o leva a fazer as coisas que faz, a escrever o que escreve? A fisionomia dele mudou, enrijeceu, e aí ela viu um pavor passar pelas feições dele. Ele então, falou, em voz alta, fria e furiosa: — O Granger tem razão. Você é uma tola mesmo, Esther. Só disse uma coisa sensata: eu não sou comunista. Nunca fui. Sou apenas um homem democrata, progressista, que está querendo desagravar… — Desagravar o quê? — perguntou Esther, com calma. — O insulto ao seu pai, quando ele era pobre e sem importância? É assim que você quer racionalizar as coisas? MacDonald, você está precisando de ajuda, mas o Dr. Granger não é o homem que a pode dar. O pavor cinzento tornou a aparecer no rosto dele. Esther sacudiu a cabeça. — Não creio que seja o seu pai, não, afinal. É outra coisa, algo ainda mais terrível. Não creio que você tenha o que o Granger chama de complexo de culpa por ter herdado uma fortuna. Algum outro tipo, talvez. Afinal, que mal há com uma fortuna herdada, desde que o homem não use o dinheiro para se degradar e fazer coisas burras? Muitos poucos filhos de homens ricos fazem isso, em todo caso. Em geral levam adiante o trabalho dos pais e desenvolvem as oportunidades para todos. MacDonald, o Dr. Granger tornou a sua mente doente, embora ele chame a isso de “adaptação”. Ele o apavorou de algum modo e o levou a aceitar as mentiras dele, e fez suas as mentiras dele, de modo que você passou a acreditar nelas, você mesmo. Não posso suportar isso! Não posso ficar aqui,

vendo a sua desintegração! Ela começou a andar de um lado para outro, toda- a sua pose normal desaparecendo, torcendo as mãos, desesperada. — O que ele lhe fez? Que mentiras sobre você ele lhe contou? MacDonald, me responda! A cada dia você parece estar pior, mais irracional. Deixe-me ajudá-lo! Ele largou o copo, com violência, mas ela viu que os lábios dele estavam azulados. — Esther, pare de delirar. — Querido, ouça-me. Estive lendo sobre homens como o Granger. Praticam uma chantagem espiritual. Não se lembra daquela vez que ele nos contou de uns rapazes de universidade que foram procurá-lo e confessaram que tinham sido comunistas e que estavam envergonhados e doentes e cheios de sentimentos de culpa? Não se lembra como ele riu disso e nos disse que tinha consolado aqueles pobres rapazes, dizendo que não tinham motivo para se sentirem culpados, e que na verdade eram “amantes da humanidade”? Ele se divertiu tanto, nos contando isso. Mandou aqueles rapazes embora, doentes para sempre espiritualmente e loucos, para espalharem a sua infecção e corromperem os outros. Assim como ele corrompe você. Summerfield se levantou. — Esther, pare com isso. Você está perdendo o juízo. — Ele parou. Pela primeira vez, em muitos anos, viu lágrimas nos olhos da mulher e seu coração bateu com uma dor inexplicável. Ele abaixou a voz. — Você está dando importância demais ao Granger. Eu é que o estou utilizando, e não o contrário. Acredite. Ela sacudiu a cabeça. — Não posso, não acredito. Acho que você já passou do estado em que pode reconhecer a verdade. Ela foi depressa para a secretária, pegou as notas do Dr. Granger e as rasgou, em pedacinhos. Ele soltou uma exclamação, pegou as mãos dela e as prendeu. Ela abriu os dedos e deixou os pedaços voarem para o chão. Agora estava chorando abertamente e Summerfield a empurrou para longe, menos de raiva do que em desespero. — Pare de mentir, querido! — implorou ela. — Pare agora, e talvez você fique bom de novo. Você não é uma pessoa má; não é um homem perverso, como acreditam seu filho e sua filha. Como é que eles podem ser tão cegos? Você na verdade é o que era como se lembram de você, há anos, um homem honesto. Eles o amam, MacDonald, mas nunca voltarão, nunca mais falarão com você, porque você não os deixa. Porque, talvez, não possa deixar. Ele então exclamou, numa voz que ela nunca tinha ouvido: — Por que não me deixa em paz? Vá embora, pelo amor de Deus! Ela então ficou num silêncio absoluto, olhando-o. Ele sentou-se à secretária e ficou olhando para ela, sem ver, os músculos da boca se mexendo.

— Muito bem, MacDonald — respondeu ela, muito baixinho. — Fico contente que você deseje isso. Vou embora. Hoje mesmo. E nunca mais volto, nunca, até você afastar esse homem perverso de sua vida, até você parar de despejar o veneno dele nos seus jornais. Ele levantou a cabeça, de repente. — Esther, não seja boba. — A voz dele estava mirrada e fraca. — Você sabe que não posso nem quero deixar que você vá embora. Você…. apenas me irritou, por um instante. Ficou histérica. — Ah, querido — respondeu ela, cansada, — Você nem sabe dizer uma palavra sua. “Histeria, histérica”. Duas palavras favoritas de Granger, para explicar coisas perigosas para ele e para o que ele deseja. Mas é ele um dos verdadeiros histéricos, um dos verdadeiros incontroláveis. — Ela pôs a mão trêmula no ombro dele. — MacDonald, você me conhece há muito tempo. Sou a mãe de sua filha. Procure me responder com sinceridade, uma vez na vida. Você algum dia realmente já me viu histérica? Ele tornou a olhar para a mesa. Começou a falar, depois se calou. Ainda chorando, ela baixou a cabeça e beijou a face fria dele. — Querido, fico tão contente. Você ainda não perdeu totalmente sua faculdade de reconhecer a verdade. Ela pegou a mão flácida dele e a levou aos lábios. Ele não olhou para ela. Ela pensou, apavorada: ele está doente! Está muito doente! Barry, Lorry!. Voltem para me ajudar! Como podem ser tão cruéis para o seu pai? Voltem! Ela continuava segurando a mão esquerda dele e então, sem poder acreditar, viu a mão direita, movendo-se como por um impulso automático, pegar o que ele já tinha escrito e amassar tudo. Depois ele ficou ali, olhando com o olhar vazio. Ela se deixou cair numa cadeira ao lado dele, o coração martelando em seus ouvidos. Sua boca se moveu numa oração muda e grata, e ela fechou os olhos. Vagamente, ouviu a porta se abrir e fechar. Virou a cabeça para ver quem tinha entrado na sala, sem se fazer anunciar, e deu um grito de alegria: — Lorry! Lorry! Eu sabia que você viria! Ela se levantou e o marido também, sem acreditar. Lorry ficou à distância, rígida e branca, só olhando para o pai, numa acusação fria e terrível. — Lorry! — exclamou ele, e estava jovem de novo e em suas faces havia um rubor de vida. Ele foi para junto dela, as mãos estendidas, e ela recuou. — Não me toque. Nunca mais me toque. Eles ficaram ali, fitando-a, boquiabertos. E então, de repente, ela sentiu que alguma coisa tinha mudado. Estava cheia de raiva e ódio, mas sentiu que alguma coisa mudara. Os pais pareciam misteriosamente mudados, muito comovidos, emotivos. Mas era sua imaginação, pensou, quase assustada, e muito confusa. Aquele ali era seu pai, o inimigo de Johnny, seu inimigo, o inimigo de todos os homens de boa vontade e de honra. Ela devia

detestá-lo; na verdade, ela o detestava. Sua boca tremeu; por um momento, ela se sentiu tonta e doente. Apertou as mãos enluvadas e repetiu, vezes e mais vezes, intimamente: detesto-o, detesto-o. — Lorry, quando você chegou? Lorry, o que há? — perguntou o pai, com voz débil. — O que aconteceu? Lorry, fale comigo. O que é que eu fiz? — Virou-se para Esther, que estava olhando para Lorry de olhos arregalados, parados. — Fale com ela, Esther. — O que posso dizer? — perguntou Esther. — A nossa filha entra na nossa casa, a casa dela, e é nossa inimiga. Não é, Lorry? É nossa inimiga, MacDonald, porque não compreende, e nunca tentou compreender. Na verdade, é uma moça muito estúpida. Lorry desviou o olhar fixo no pai e o passou à mãe, com uma expressão chocada. — Como pode dizer isso? Sabe tudo sobre ele. Esther não respondeu logo. Pois de repente viu como a filha era vulnerável, jovem, amargamente magoada e sofredora, inclemente, cegamente apaixonada. O coração de Esther se encheu de pena. Ela pôs a mão no braço do marido e respondeu, com brandura: — Sim, meu bem, sei muita coisa sobre o seu pai… agora. Muito mais do que jamais soube. E você… você não sabe nada. Pareceu a Lorry que o chão atapetado se mexeu sob seus pés, tão forte foi seu assombro, e depois sentiu a raiva intensificar-se de novo. — Então, mãe, ele agora a corrompeu também, é? Já a convenceu. Logo você! — O que essa menina está dizendo? — exclamou o Sr. Summerfield. — Lorry, sou seu pai! — Não! — A voz de Lorry era quase um grito. — Não é mais! Nunca mais, enquanto você viver e eu viver! O seu medo indizível aumentou, e sua confusão e a velha dor lancinante. Por um instante ela era uma menina e queria romper em prantos cheia de terror e solidão, correr para o pai e deixar que ele a abraçasse, consolando-a. Uma terrível sensação de privação apertou sua garganta, Lima sensação horrorosa de sofrimento, de luto. Mas ele a traíra; ele a afastara, a ela e ao Barry. Ele nos detesta, de modo que nós o detestamos, continuaram seus pensamentos sombrios. Ah, Deus, dá-me forças para dizer o que tenho de dizer e depois me ajuda a sair desta casa para sempre. Ela olhou do pai para a mãe e em seus olhos verde-azulados havia uma angústia muda, uma expressão enraivecida mas indefesa na sua fisionomia. Esther não fora para junto dela, como ela esperava; Esther ficou ao lado do marido, o rosto estranhamente triste, estranhamente brando, esperando. Estou imaginando coisas, pensou Lorry de novo. Não compreendo… o que está errado aqui? O que mudou? Mãe, mãe. Não se lembra? Por que fica aí com ele, tão junto dele? E então as lágrimas fizeram arder as pálpebras de Lorry e ela pensou, sem querer… assim como eu queria estar junto dele, como antes, há tanto, tempo. Ela agora não conseguia tirar os olhos de cima do pai. Ele está velho, pensou, vagamente. De repente, está um velho. Eu o tornei velho, neste minuto. Ele não é temível;

eu só pensava que ele fosse. Engoliu em seco, com um nó na garganta e obrigou seus pensamentos a se dirigirem para Johnny e sua raiva ressurgiu, açoitada pelo seu sofrimento e sua consternação. — Vim dizer uma coisa. Não vai demorar. Barry em breve vai saber; deve estar aqui a qualquer momento, Ela fixou toda a sua atenção no pai; não entendia o silêncio da mãe, sua atitude distante, o ar misterioso, esperando. A carne de Lorry estava fria e rígida; ela não conseguia controlar o tremor constante que percorria o seu corpo em ondas, e a sensação de abandono, de uma desolação insuportável. — Sim? — perguntou o pai. — Barry? Sim, meu bem, o que tem o Barry? Era um pesadelo, claro. O pai estava-lhe falando como lhe falava quando ela era muito pequena, e acabava de despertar de um sonho mau. Mas ele estava velho… velho… eu o envelheci, pensou Lorry, e fechou os olhos para se proteger, e não ficar tonta. Fico contente que esteja velho; eu o detesto. Ela continuou, a voz fraca: — Vi o seu último editorial sobre Johnny Fletcher. — Então seus olhos faiscaram, ao som daquele nome querido. — Suas mentiras sobre ele. Sempre suas mentiras, desde o princípio. E agora quer destruí-lo inteiramente, não é? Porque ele fez uma coisa boa para esta cidade. Johnny Fletcher. O Sr. Summerfield, perplexo, pensou nesse nome. Parecia-lhe um nome desaparecido, nalguma distância sombria. Ele se encostou na secretária e tentou pensar. Se ao menos a cabeça parasse de doer; andava tendo tantas dores de cabeça terríveis. Sempre amorteciam seus pensamentos e lhe tiravam a força do corpo. — Que importância tem esse homem? — murmurou, a voz surda. Esther virou-se para ele, alarmada, e pegou o cotovelo dele com força. Ele nem sentiu que ela o tocava. — Há meses que você não vem aqui, Lorry. Ele provocou muitos distúrbios. Não posso me lembrar bem o que foram, neste instante, mas desorganizaram a vida desta cidade. Parece que me lembro de outra coisa. Ele a influenciou contra mim. Você largou seu lar e seus pais por causa dele. — Esfregou a testa com os nós dos dedos da mão direita. — Que importância tem esse homem? — repetiu. As palavras dele, que pareceram a Lorry desdenhosas, indiferentes e de dispensa, a incitaram a uma nova raiva. — Há uma coisa que você não sabe! Barry ainda não sabe! Quer saber? — Não posso atinar que alguma coisa sobre esse homem possa ter a ver com o meu filho e minha filha. — A voz do Sr. Summerfield sumiu. Não era a sua força que o estava sustentando. Havia um braço forte em volta dele, e ele se sentiu grato por isso. — Só sei que ele é um intrometido e um provocador da ralé. — Olhou para Lorry, desesperado, e quase podia ouvir o pânico crescente em seu coração. Estava quase convencido de que estava sonhando aquilo; pior ainda, não importava se ele estivesse sonhando ou não. Lorry, com seu costume turquesa e suas peles, assumira um ar plano, de papelão, como um pôster. A sala estava mais escura, mais estreita, mais curta. Ele estava muito cansado;

conhecia bem essas manifestações de sua fadiga; conhecera isso pela primeira vez havia alguns meses. Como Granger as chamava? “Fugas da realidade”. — Não estou querendo fugir da realidade — murmurou o Sr. Summerfield. — Acho que só estou muito cansado. — MacDonald — exclamou Esther. Ela o obrigou a se encostar na secretária, pois não estava conseguindo suportar o peso do marido. Olhou para a filha quase com ódio. — O que está querendo fazer com o seu pai? Freneticamente convencida de que a mãe a abandonara inteiramente, Lorry se descontrolou. — O que eu estou querendo fazer com ele? Como pode. E o que ele fez com todos nós? Cansado? Diz que está cansado! Como nós estamos cansados dele! O pavor dela voltou, mais frenético, mais lancinante do que antes. Alguma coisa estava errada! Aquilo não estava saindo como tinha esperado. Ela não sabia para onde se virar, que palavras escolher. Sentia um terror na sala, além de seu alcance. — Escutem. Não vou mais incomodar vocês, se me escutarem agora. Vou embora e nunca mais me verão. — A voz dela falseou. — Querem saber o que Johnny Fletcher tem a ver conosco? Não se lembram do que o Barry nos contou sobre o capelão que o salvou na praia da Normandia? Barry foi ferido, quase fatalmente… lembram-se… e estava nalgum buraco rochoso, e ninguém tinha licença de ir buscá-lo, pois o bombardeio estava terrível. Mas um homem foi, embora tivessem tentado impedi-lo. Foi para junto do Barry e se agachou no buraco com ele e lhe deu os primeiros socorros e o consolou. Lembramse? E depois carregou Barry nas costas, para um lugar seguro. Lembram-se? — Ah, não! — exclamou Esther. — Ah, não era o Sr. Fletcher! Ah, Lorry! Aquilo era terrível demais para ser verdade. Mas Lorry estava sorrindo, feroz, e meneando a cabeça; as lágrimas escorriam por suas faces. — Sim! Foi Johnny Fletcher! — Não é possível! — exclamou Esther, alucinada. — As coisas… não podem ser assim tão cruéis! Barry nos disse que o capelão foi morto na Batalha do Bolsão. O Sr. Summerfield arrastou-se de junto da secretária e da mulher, embora ela estendesse os braços, aflita, para segurá-lo. Foi para uma poltrona e afundou nela, as mãos caídas entre os joelhos trêmulos. — E um pesadelo — exclamou ele, num tom curiosamente agudo. — Não passa de um pesadelo. — Tentou umedecer os lábios secos, que tinham um gosto de metal, e então sua boca se abriu, sem fazer barulho. — Estão lembrados? — A voz de Lorry, numa acusação implacável, cheia de ódio, continuou. — Aonde Barry ia, o capelão ia atrás. Ele sabia que Barry não tinha muitas possibilidades de viver. Já viram as cicatrizes de Barry, que o fazem mancar às vezes. Houve uma noite, disse Barry, que sabia que estava morrendo, e os médicos e enfermeiras do hospital de campanha também achavam isso. Mas o capelão passou aquela noite ajoelhado ao lado do catre de Barry, pois sabia que Barry queria viver. Barry nunca tinha

ouvido alguém rezar; vocês nunca nos ensinaram a rezar… —: Lorry! — suplicou Esther. — Lorry, olhe para seu pai. — Estou olhando — respondeu Lorry, num lampejo verde e amargo, olhando para a mãe. Mas recuou um pouco quando olhou para o pai, de novo. Continuou: — Esse capelão, o homem que salvou a vida de seu filho, é o homem que você tem perseguido, difamado, atiçando o povo contra ele, querendo privá-lo até de sua própria vida e das pobres crianças que ele salvou. Fez isso a ele, em paga. Pagamento total, por ter salvo o Barry! Esther foi para junto de Lorry, postou-se na frente dela e disse: — Você sabia, desde o princípio, Lorry, não é? Podia ter impedida isso. Podia ter contado a seu pai, desde o início. Não soube disso agora, não é? Lorry tentou intimidar a mãe, mas estava tremendo de novo, e aquele enjôo a estava acometendo e seu medo do fator desconhecido naquela sala. — Sim — respondeu —, eu sabia. Mas eu queria ver até que ponto ele chegaria. Esther fez um gesto em direção ao marido, caído na poltrona. — Muito bem, Lorry. Foi até aí que ele chegou. Olhe para ele. Você algum dia tentou ajudá-lo, compreendê-lo? Nunca, nenhuma vez. Nem você nem o Barry. Uma vez sequer pensou que poderia haver alguma coisa na vida dele que o estivesse torturando, alguma coisa que um homem perverso usasse para seus próprios fins? — Não sei de que está falando — balbuciou Lorry. Foi para junto da mesa do pai e, como ele fizera, encostou-se nela para se apoiar. Sentiu um golpe duro, um choque no coração. — Eu… não devia ter vindo sozinha. — Olhou para o pai e tremeu e então chorou, tapando o rosto com as mãos. — Foi errado desde o princípio; devia ter trazido o Tio Al e Johnny. — Você devia ter contado a seu pai, desde o princípio. Poderia tê-lo salvo, então. Como você deve ter odiado seu pai, Lorry. Esther deu as costas à filha e correu para o marido, pois o rosto dele estava enrugado como o de uma múmia e ele parecia um moribundo. Ela se ajoelhou ao lado dele, pois sua cabeça começara a se mexer incontrolavelmente. Esther passou os braços em volta dele e puxou a cabeça dele para seu peito. Disse para a filha: — Nunca a perdoarei, Lorry, nunca! Lorry deu “um passo para junto dos pais, mas Esther, ajoelhada, a repudiou com um gesto apaixonado. — Vá embora. Vá embora e não volte mais, Lorry, Não posso perdoá-la. Nunca mais quero vê-la. O Sr. Summerfield levantou o rosto abatido do peito da mulher e virou os olhos angustiados para a filha. Começou a falar, numa voz distante e difícil. — Tanta conversa… de perdoar. Tantas mentiras. Nunca houve nada senão mentiras. É muito difícil explicar… se matou alguém… não creio que o tenha feito, de verdade,

agora. Devia ter contado. Mas era tudo mentira. Foi aí que começou, quando me contaram mentiras. — A voz dele de repente falhou e ele caiu nos braços da mulher, e ela não conseguiu mais segurá-lo. Ela gritou quando ele caiu no chão e ficou deitado de bruços, imóvel e silencioso. — Você o matou, Lorry! Matou seu pai! Não, não toque nele! Não ouse tocar nele! E Esther, em seu desespero e dor, bateu no ombro da filha com os punhos cerrados, enquanto Lorry se debruçava sobre o pai. — Vou pedir socorro — gritou Lorry, aflita, levantando-se. — Alguém vai ajudar. Eu não sabia. Tenho de ir pedir socorro!

XXXVI O Dr. McManus desceu, cansado, a curva comprida da escada de mármore e entrou na sala hindustânica, onde Lorry, Barry e Esther o estavam esperando. Olhou para eles por baixo das sobrancelhas salientes. — Ele está bem, agora. A enfermeira sabe o que fazer e o pastor está com ele. Lorry, Lorry — falou, com pesar —, poderia ter sido feito com misericórdia. Por que não me pediu para vir com você? Lorry respondeu, com um nó na garganta: — Eu quis contar a ele, desde o princípio, mas você me- fez prometer não contar. — Sim, sim, eu sei — confirmou o médico, evitando com cuidado os olhos frios e reprovadores de Barry. Virou-se para Esther, com pena; ela estava sentada, branca e imóvel, os cabelos desgrenhados, as mãos frouxas. — Não sei como vai ser, mas você vai ter de nos perdoar, Esther. Especialmente a mim. Lorry queria contar a Mac desde o princípio. — Eu sei — respondeu Esther. — Você não é muito sabido, Al, em certas coisas. MacDonald está doente há muito tempo. Eu via. A gente tem de amar a pessoa para ver as mudanças. Tentei fazer com que ele procurasse um médico, mas ele riu de mim, e lá estava, mudando todo dia, adoecendo. Eu sabia que ele estava com alguma coisa na cabeça, atormentando-o, uma coisa que estava ficando pesada demais para ele suportar, mas se recusava a confessar isso a mim, ou deixar que eu o ajudasse. Al, se você fosse um pouco inteligente, teria visto logo que havia alguma coisa com MacDonald nesses últimos anos, e teria tentado ajudar. — Nunca tive pretensão a ser inteligente. E estou cada vez mais burro. Esther tentou sorrir. Estava de mãos dadas com Lorry e apertou os dedos gelados da moça, animando-a. Mas Barry disse: — Eu queria que houvesse alguma lei para usar contra você e Lorry, pela sua burrice. Vejam o que aconteceu com Johnny e o meu pai, por causa de vocês dois. Nunca hei de me conformar com isso. — E eu não vou discutir com você — respondeu o médico —· pois não tenho argumentos.. Devia ver o pastor com o Mac! Aliás, o pastor também não fala mais comigo. Acho que vou embora para casa. O que eu sou, um criminoso? — É — respondeu, Barry. O rapaz estava extremamente abalado; acendia um cigarro depois do outro e rondava pela sala, infeliz, numa luz que agora estava cor de açafrão. Esther olhou para ele, aflita. — Barry, não leve isso tão a peito. Não me importo, contanto que não seja um colapso cardíaco ou apoplexia. Sabe, meu bem, amo o seu pai. Estou contente que não passe de um esgotamento nervoso. Humm, pensou o Dr. McManus. Seria melhor se ele tivesse quebrado as duas pernas.

Esgotamento nervoso! Pensam que não é nada. Só significa que a alma da pessoa fica mortalmente doente e ela não suporta mais viver! Só um esgotamento nervoso! Ele tossiu. — O pastor e eu escutamos Mac falar, antes de eu lhe dar a injeção de sedativo. Dá para a gente ficar de orelha em pé e enlouquecer de vez. Diabos — contou o médico, com simplicidade. — Há demônios neste mundo, demônios de verdade. Eu nunca acreditei nisso, mas agora acredito. Barry, tenho de falar sobre isso com você, portanto, sente-se. Está me deixando nervoso. Está bem, está bem! Cale a boca e ouça. Lorry, se você chorar mais, vai usar óculos o resto da vida. Seu rosto parece um pudim. Tome aqui o meu lenço. Meu Deus, as mulheres! E vou-me casar com uma delas. Deviam me trancar num hospício, por sequer pensar nisso. Bom, em todo caso, ela cozinha bem, de modo que talvez não seja tão mau assim. Barry, já que está de pé, que tal pedir a alguém umas bebidas? Estamos todos precisados. E nada de martínis! — Só um cianureto para você — respondeu Barry, mas tocou a campainha chamando uma empregada. — Al, você falou alguma coisa sobre o papel do Dr. Granger na doença de MacDonald — disse Esther, e seus olhos faiscaram com uma raiva fria. — Eu já sabia, mas nunca soube que influência esse homem tinha sobre o meu marido. — Pois vou lhe contar. Ele esperou até todos estarem servidos pela empregada. A moça parecia extremamente curiosa, de modo que o médico certificou-se de que ela se tinha retirado, antes de começar a falar. — Logo que examinei Mac, pensei que fosse coração; estava disparado e a pressão arterial estava caindo e ele estava com aquela respiração, e a dor. Parecia angina, que em geral é provocada por tensão mental. Bem, em todo caso, ele começou a falar comigo e o pastor; mesmo tendo tomado o sedativo, só falou depois que Barry se retirou, a meu pedido. Estava com vergonha do que tinha a contar, ou talvez achasse que o Barry poderia cometer alguma violência contra o Granger e se meter em apuros. Eu disse ao Mac — acrescentou o médico, olhando para Barry com uma expressão severa — que o filho dele tinha juízo. Espero. Barry não respondeu e ficou olhando para o copo sério. Bom — continuou o Dr. McManus —, não me admiraria se fosse uma história comum, especialmente com homens do tipo de Granger, que têm outras atividades, além da profissão. Por falar nisso, vamos internar Mac num sanatório, por algum tempo; vamos afastá-lo dessa família tão emotiva. Vai ficar onde possa ter um pouco de paz e sossego e, embora lá haja analistas, eles não se metem com a alma do sujeito, para pervertê-la. John Kanty me contou como é o lugar: é religioso e tratam do espírito do homem do modo certo, embora seja por métodos espirituais. “Granger tem um consultório aqui em Barryfield, se bem que o consultório principal seja em Filadélfia; ele só vem aqui duas vezes por semana, para tratar de pacientes locais. O seu objetivo importante era o Mac, o ricaço, com quem podia contar para os donativos, e que tinha jornais e escrevia para outros jornais. Sabe — continuou o médico —, estive pensando, o que leva tantos homens ricos a serem comunistas, ou simpatizantes, como o

Mac. Eles têm tudo a perder com o comunismo… mais ou menos se suicidando, só por serem ricos. Então, conversei com gente que sabe deles em Nova York e outros lugares. E sabem de uma coisa? Muitos deles acham que o povo americano é tão burro que vai permitir que os comunistas continuem a se infiltrar no governo em todos os nossos meios de comunicação pública e nossas escolas, indefinidamente! Mas o povo americano tem uma coisa: tem bom senso e deixa os seus criminosos irem até certo ponto e depois quebra as cabeças deles, quando se cansa de ser tolerante. Então, muitos desses ricaços, acreditando que o comunismo está aí, estão tentando fazer as pazes com ele, e o bajulam ou dão dinheiro ao partido. Depois, há os rapazes que herdaram o dinheiro, que o esbanjaram, sem trabalhar nem levar adiante a obra dos pais, e que se sentem culpados. E depois há os que odeiam, os que nascem odiando e as pessoas com queixas contra a sociedade, os incompetentes e irresponsáveis que querem os benefícios da terra sem trabalhar por isso, e que detestam os homens que aceitam a vida como ela é e que vencem na vida. — Sem falar nos loucos. E os pervertidos. E os desajustados. Esses adotam o comunismo de cara.” Barry parou diante do médico, furioso. — E a qual categoria pertence o meu pai? O Dr. McManus sorriu. — A nenhuma que eu já tenha mencionado. Ele é um caso especial, mas não é muito raro. — De repente parou de sorrir. — Não muito desconhecido. Mas o pior tipo. Barry, o seu pai foi vítima do Granger e se a lei não fosse tão exigente em caso de assassinato, eu mesmo ia atrás do Granger. Não que você queira ser tão idiota assim — acrescentou ele, depressa. — Quer dizer — exclamou Lorry, com a voz estridente da angústia total — que o nosso pai estava sendo chantageado pelo Sommer Granger? — Ora, vamos, benzinho — respondeu o médico, preocupado —, isso não é raro. Não vá se afligir demais. Estava, sim. A gente tem de manter a calma nessas emergências, e Mac está no pior tipo de emergência. Agora, cale a boca e deixe que eu continue. “Vocês dois sabem de que modo o Mac ficou rico; herdou todo esse dinheiro do pai, o mestre-escola, que o ganhou com o petróleo, quando Mac era menino. Então, foram morar em Filadélfia e construíram aquela grande mansão deles lá. Mac amava o pai; não achava que a mãe apreciasse o seu precioso papai. Mac tinha ciúmes; queria toda a atenção pomposa do pai. Evelyn atrapalhava, segundo o ponto de vista de Mac, como criança. “Evelyn e os empregados novos estavam arrumando a casa nova e Evelyn estava no alto do patamar, espanando o lustre novo. Mac devia ter seus 14 anos. A coitada da Evelyn perdeu o equilíbrio, caiu de três andares e morreu.” — Eu sei — concordou Esther. — Ele falava disso sonhando, coitado. — Mas há uma coisa que você não sabe. Mac estava na casa; seu novo quarto ficava bem defronte do patamar. Ele era um tipo de garoto sonhador, meio bobo, tinha fantasias e mania de grandeza e todos os outros traços desagradáveis do egocêntrico. Como o filho — disse o médico, olhando para Barry de cara fechada. — Claro que você é egocêntrico,

filho. Se não fosse, teria pensado no seu pai e procurado descobrir o que o tornava assim e tentado ajudar. Cale a boca. E pare de beber tanto uísque; lembre-se de seus rins. E não me olhe furioso; não fui eu que fiz o seu pai. “Mac não devia estar na casa naquela hora. Estava fazendo gazeta, para poder voltar para casa às escondidas e se deleitar. Lembrem-se, ele fora pobre, até então. Ele saiu do quarto, sem saber que havia alguém ali, pois tinha chegado lá antes da mãe e dos empregados, e estava no patamar quando a mãe estendeu o braço por sobre o corrimão para espanar o lustre novo.” Esther falou, com uma voz sossegada e penetrante: — MacDonald não empurrou a mãe por cima do corrimão, para ela morrer. Embora delirasse sobre isso, em seus pesadelos. — Lorry, se você não parar de pular e torcer as mãos e gemer, vou lhe dar umas palmadas — ameaçou o médico. — E pare de ficar batendo os pés pela sala o tempo todo, Barry. Isso aqui parece um hospício. “Vou terminar, ou querem que eu vá para casa? Muito bem, então, sosseguem. Agora chegamos a um ponto sério. Muitas vezes Mac desejara que a mãe morresse e o deixasse sozinho com o pai. Não é raro. Muitos filhos pensam isso sobre o pai ou a mãe. É meio natural, de modo distorcido. Uma fantasia. Mas Mac é um sujeito intenso. Ele sonhava com isso e pensava nisso e como seria bom se a mãe não estivesse ali. Ele e o pai iam viajar, pescar, caminhar juntos, andar de barco juntos, e teriam uma comunhão de almas. Mac era um garoto solitário e insuportável. Lembro-me bem. Nunca levou uma surra; quem não bate nos filhos faz deles desajustados, criminosos ou coisa pior. “Pois bem, ele sai do quarto, o fingido, e vê a mãe muito debruçada sobre o corrimão. Ela era pequenina, mas pesada, e começou a cambalear. O impulso de Mac, a despeito de seus ciúmes, foi de correr para ajudá-la. Mas não conseguiu, ficou ali, gelado. As pessoas como o Mac se apavoram com facilidade. Ora, os analistas diriam que ele não queria salvar a mãe, de todo. Bobagem; certa noite um sujeito avançou de carro sobre mim, na contramão, e tinha bastante lugar para ele virar para a direita, mas ele ficou ali, gelado. Nunca me tinha visto na vida; entrou em pânico; não queria me matar. Estava histérico, só isso. Uma sorte para mim que havia espaço para sair da estrada, e foi o que fiz. Ele apenas entrou em pânico, o idiota. Consegui que lhe cassassem a carteira de motorista e provavelmente salvei uma dúzia de vidas, se bem que ele me odeie até o dia de hoje. “Bom — o médico, lembrando-se, enxugou a testa úmida —, foi isso que aconteceu com o Mac. Queria salvar a mãe mas não conseguiu se mover. Ela caiu por cima do corrimão, e ele conseguiu forças para fugir para o quarto antes de ela chegar ao solo.” — Ah, meu Deus — murmurou Esther, e pela primeira vez começou a chorar. — Coitado do MacDonald. Coitadinho do menino. — Digo e repito, Esther, você é uma mulher sensata. Mac saiu da casa furtivamente, tremendo que nem varas verdes, e voltou para o hotel onde estavam hospedados. O pai já tinha recebido a notícia; Mac viu o pai chorando e então percebeu, sem fantasia nem nada, que tinha querido salvar a mãe. É simples, só isso. Então, seu espírito sossegou e ele pôde

consolar o pai normalmente e sentir pesar pela mãe. Simples. Até que o Granger o agarrou, há alguns anos. — Quando é que o Granger volta a Barryfield? — perguntou Barry, com naturalidade. — Ora, Barry, nada de besteira — respondeu o médico, alarmado. — Vou cuidar do Granger através da Associação Médica. Nada de heroísmo, hein? “Bem, ficou tudo bem com o Mac até que ele conheceu Granger. Ele hoje reconhece que o encontro não foi acidental, e que foi arrumado por outros. Granger inventou uma história e tanto para Mac, que sempre foi um cara vacilante e desconfiado, embora arrogante, o tipo de sujeito que não confia, bem sei, mas é vítima de mentirosos e charlatães que têm planos, como o Granger tinha… para os jornais de Mac, e seu dinheiro. Ele havia de conseguir algum domínio sobre Mac e como Mac, naquele determinado momento, estava mais instável do que o normal, Granger o ‘tratou’. Durante o tratamento, surgiu a história de Evelyn e sua morte; Mac só tocou no assunto porque o pai. dele nunca se conformou com a morte da mulher e só vivera alguns anos, depois disso. Pois bem, foi aí que começou o terror e a chantagem espiritual. “Não sei como, Granger convenceu Mac de que ele não tinha ficado congelado quando a mãe começara a cair, mas que correra para a mãe, às cegas, instintivamente, e que a empurrara por sobre o corrimão! Ele não se lembrava desse fato passado, disse Granger, mas tudo se revelara, sob o sodium pentathol! Segundo Granger, Mac estava em ‘conflito’ porque sua mente subconsciente se lembrava de tudo, mas sua mente consciente estava lhe cortando a memória e lhe contando mentiras para ele poder viver consigo. Então, agora o Mac tinha um complexo de culpa novo em folha, bem desenvolvido e foi aí que ele ficou mal mesmo. Como poderia expiar o assassinato involuntário da mãe? Ora, ajudando os ‘explorados, os não privilegiados, claro, na luta de classes, disse Granger. Além disso, existia o antigo ressentimento contra os que tinham esnobado o pai dele quando era pobre e o fato de que nem todo o seu dinheiro podia tornar Mac tão importante quanto achava que merecia ser. Ele sempre odiara e invejara os ‘aristocratas’ que tinham herdado dinheiro e nunca haviam sido pobres.” — Vou matar o Granger! — exclamou Barry. — Não vai, não, e pare de falar como idiota. Já lhe disse que tomo conta do Granger. Temos um homem sensato na Associação Médica. Então, o Granger dominou o Mac. Granger nunca chegou a conhecer o Johnny, mas gente como o Johnny constitui um perigo para os Grangers. Têm de ser eliminados. Daí os editoriais contra o Johnny, inspirados por Granger. — Mas o Johnny não passa de um clérigo, um clérigo obscuro, numa cidade desconhecida — falou Lorry, horrorizada. Por que um homem como Sommer Granger, tão influente, próspero, havia de se preocupar com o coitado do Johnny? — Benzinho — respondeu o médico, em voz baixa —, ninguém que lute contra o comunismo é humilde ou obscuro, segundo os comunistas. E ninguém é grande demais para atacar. Ele se levantou.

— O colapso de Mac, sob os cuidados de Granger, teria acontecido a qualquer momento, pois é contra a natureza de Mac ser um assassino. Eu o estive observando. Não se sinta culpada demais, Lorry, amor. Você apenas precipitou uma coisa que teria acontecido a qualquer momento, ou hora. Isso vai passar. Ele agora está compreendendo as coisas. Por falar nisso, o pastor já está lá em cima há muito tempo. Acho que vou dar uma olhada. As luzes estavam meio apagadas no grande quarto do Sr. Summerfield, em estilo francês provincial. O doente estava deitado, imóvel, respirando ruidosamente e inquieto, o rosto a lado tão sem cor quanto os lençóis de linho. Os olhos estavam fechados, cavados. Os cabelos claros e bonitos, tão parecidos com os de Lorry, brilhavam à luz do abajur, e suas feições tinham uma expressão distante, de uma austeridade fechada, expressão semelhante à dos filhos, em determinadas condições. Johnny, sentado junto do pé da cama, olhando para seu antigo inimigo, não conseguia sentir raiva mas apenas compaixão por ele. Ele era o pai de Lorry e Barry; esse homem seria avô dos filhos de Johnny. Era um homem que tinha sofrido, amaldiçoado por seu caráter imaginoso e instável, as suas dores e perplexidades secretas; era um homem incapaz de aceitar o amor com simplicidade e de dá-lo com simplicidade. Tudo para ele tinha de ser complicado e tortuoso, tinha de ter seus “motivos racionais”, suas explicações. Mas, Deus o fizera assim. Se ele algum dia tivesse tido fé, teria se reconciliado consigo mesmo e todos os elementos disparatados: a veemência oculta, a sensação de estar perdido, o desejo simultâneo de amor e a rejeição subconsciente do amor, tudo isso teria se juntado e se teria perdido numa serenidade e confiança maduras. Deus, pensou Johnny, leva ordem ao caos, luz às trevas e mostra o caminho ao viajante transviado. Mas, se os homens não podem aceitá-Lo como bússola, então estarão sempre vagando. A enfermeira estava sentada num canto distante, lendo, mas alerta para algum movimento ou suspiro do paciente. Tinha um rosto moreno e alegre e olhava a toda hora para Johnny, como que esperando um sinal. Era uma das paroquianas de Johnny e dizia consigo que, se havia alguém que pudesse ajudar o Sr. Summerfield, seria o Sr. Fletcher. Ele não a ajudara quando ela estava a ponto de desistir da enfermagem, em desespero, devido aos pacientes ingratos, o trabalho árduo e longo, não apreciado, mal pago? “Nem todos nós podemos ganhar muito dinheiro”, lembrara ele, com brandura. “Se você quisesse isso, desde o início, então não devia ter estudado enfermagem. Sabia o que significava. É só que você se esqueceu. Eu sabia que nunca seria um ministro elegante, e que jamais teria muito dinheiro, mas ainda assim quis ser ministro. Não que eu não me tenha perguntado por que, muitas vezes!” Ela então vira que ele e ela estavam quase no mesmo serviço, e voltara ao trabalho com uma dedicação e coragem renovadas. E, melhor de tudo, com uma inspiração renovada. Ele estará dormindo?, perguntou-se Johnny, observando o doente. Achava que não. O Sr. Summerfield estava pensando, por trás daquelas pálpebras crestadas, que se enrugavam nervosamente. Será que ele quer que eu vá embora?, pensou Johnny. Sabe que estou aqui. O Sr. Summerfield abriu os olhos e qualquer último vestígio de frieza que Johnny pudesse estar nutrindo contra ele desapareceu, pois os olhos eram os de Lorry, atentos e alertas. — Ainda está aqui, Sr. Fletcher? — perguntou o homem mais velho, a voz fraca. —

Por quê? Johnny sorriu. — Ah, pensei que o senhor e eu teríamos alguma coisa a conversar, sobre a Lorry. A não ser que esse sedativo esteja agindo muito sobre o senhor. O Sr. Summerfield sorriu vagamente, como resposta. — Há anos que venho tomando barbitúricos. O velho Al não sabia disso, de modo que os belos sedativos que me deu só me deixaram meio sonolento. — Ficou calado durante algum tempo. — Fico contente que tenha ficado, Deve ter um instinto para essas coisas. — Tenho, sim. Acho que todo pastor tem. O médico queria que eu saísse e o deixasse repousar, mas eu sabia que havia de querer me falar alguma coisa. Assim, fiquei. Afinal, vou me casar com a Lorry. — E nenhum de vocês dois se importaria se eu me opusesse? — Não — respondeu Johnny, com franqueza —, em absoluto. Mas gostaria que o senhor ficasse contente. O Sr. Summerfield olhou para a enfermeira e Johnny disse logo: — Nancy, você se importa de nos deixar a sós por uns 10 minutos? — A moça levantou-se logo, foi até junto do paciente, sorriu para ele e lhe tomou o pulso. — Ah, está ludo bem agora. Mas vou pedir ao médico um sedativo mais forte, já que este não está fazendo muito efeito. Dez minutos. Ela saiu do quarto e os dois ficaram sós. O Sr. Summerfield ficou olhando para Johnny durante muito tempo. — Jamais acreditei em coisas sobrenaturais — falou ele, por fim, numa voz mais forte. Tudo de inexplicável que acontece é mera coincidência ou pode ser explicado racionalmente depois de investigado. Assim, pode me contar como foi que você, de todos os milhares de ministros, logo você, o capelão que salvou a vida de meu filho, salvou minha filha para mim, e por fim salvou o meu juízo… como é que veio parar aqui em Barryfield? — É muito simples — respondeu Johnny. — Era para mim ter uma paróquia grande e importante em Nova York, com um ordenado umas cinco vezes maior do que o que ganho aqui. E, então, a paróquia não me quis. Em geral, há meia dúzia de outras vagas para os ministros, em qualquer ocasião. Mas, para espanto dele, o Dr. Stevens só conseguiu encontrar uma, Barryfield. Uma semana depois, conforme ele me escreveu, apareceram outras, de repente. A essa altura, senti que eu devia continuar em Barryfield, que tinha Uma missão aqui. Coincidência, sem dúvida. O Sr. Summerfield desviou o olhar, — Não, não foi coincidência. Não creio. — Virou a cabeça para Johnny e o examinou, com firmeza. — Não creio — repetiu. — E isso não é racional. No entanto, se você não tivesse vindo, eu provavelmente já estaria morto, a essa altura; Lorry continuaria

a ser uma moça desesperada e cheia de ódio e o meu filho continuaria a me desprezar; e a minha mulher sem dúvida me teria abandonado. Além disso, as pessoas aqui continuariam a morrer devido ao smog, e você nunca teria salvo aquela menina, Debby, e o velho Al continuaria a ser o velho violento e mau que era. Uma série de fatos… com um propósito. E isso é ridículo. Não é? — Não — respondeu Johnny. O Sr. Summerfield se remexeu inquieto nos travesseiros e Johnny logo se levantou e o ajudou, com mãos seguras e ternas. O pai de Lorry disse: — Isso é uma coisa que precisa de muito tempo para ser estimada, e eu terei tempo. — Logo após acrescentou: — Eu nunca o odiei, de verdade. Você nunca me viu, mas eu o vi muitas vezes na rua, no seu carro ou andando nas suas rondas. Mandei um repórter assistir a quase todos os seus sermões e li todos eles. E queria conhecê-lo. Parecia uma compulsão. Pensei que o odiava e pensei que se viesse aqui, a convite meu, eu o destruiria. Mas queria que viesse. — Eu teria vindo — respondeu Johnny. — Pensei em vir, também, várias vezes e… que Deus me perdoe… não vim. O senhor não era o único com uma compulsão. — Você me perseguiu, desde o dia do seu primeiro sermão — disse o Sr. Summerfield, inquieto. — Eu não conseguia compreendê-lo. Durante toda a minha vida, todo impulso forte que eu sentia era acompanhado por uma reação mais violenta. E sempre negativa. Negações. Minha mulher suportou isso por algum tempo, depois me largou. Casei-me com Esther pouco depois do divórcio. Eu a amava e a amo, mas nunca pude dizer isso a ela. Queria fazer isso, desesperadamente, e nessas ocasiões eu caçoava dela e a rejeitava. É assim que sempre foi, desde que eu me lembro. — O senhor sempre teve muito medo — respondeu Johnny. — Não só o senhor, mas todos nós. Nascemos com medo de tudo. Só Deus pode nos livrar do nosso medo. Pelo amor. Quando eu era menino, encontrei um tordo filhote, caído do ninho e abandonado pela mãe. Eu o adotei e fiz uma gaiola de madeira para ele. Dava-lhe comida e até cantava para ele. — Johnny sorriu, recordando. — Mas ele tinha medo, mesmo depois de duas semanas, quando já sabia voar na nossa cozinha. Conhecia o nome que eu lhe tinha dado, mas não chegava junto de mim, nem comia da minha mão. Se eu me aproximasse dele, fugia para a gaiola, todo encolhido. E então, pensei, isso é igual ao que acontece conosco e Deus. A mão de Deus estendida e nós fugindo dela e gritando no nosso pavor cego, enquanto aceitamos a comida, o abrigo e o amor que Deus nos deu. Eu me perguntei se éramos ainda mais burros, pois podíamos raciocinar. Foi aí que vi que tinha de ser ministro. — O que aconteceu com o tordo? — perguntou o Sr. Summerfield. — Ah, um dia eu estava tomando o café da manhã, antes de sair para entregar os jornais, e de repente ouvi o passarinho voando pela cozinha e aí ele estava no meu ombro, esfregando a cabeça no meu rosto. Não estava mais com medo. O Sr. Summerfield ficou calado, olhando para Johnny, que ainda estava sorrindo, lembrando-se do passarinho. Então o Sr. Summerfield disse:

— Não lhe posso agradecer pelo caso de Barry. Não o poderia insultar, agradecendo. Mas Johnny respondeu, como se não tivesse ouvido: — O passarinho sabia, afinal, que não havia nada de que ter medo. Estava tudo na sua mente desconfiada e ignorante. O Dr. McManus entrou no quarto, acompanhado por Esther, a enfermeira, Barry e Lorry. — Ah! — exclamou o médico —, então, andou tomando barbitúricos, é, Mac? Sujeito desesperado, hein? Mas agora vamos mesmo pôr você para dormir, por umas 12 horas. — Olhou para Johnny com uma cara feroz. — E vamos enxotar esse pastor falador, que andou amolando você. Nem sei como é que o deixei aqui. — O velho tomou o pulso do Sr. Summerfield, com habilidade, e se mostrou satisfeito. — O pastor é um sujeito simples mas a gente fica pasmo com as coisas que sabe dizer. A maioria é conto de fadas: eu nunca acreditei em nada disso. O Sr. Summerfield, porém, estava olhando para a filha e o filho, ali a seu lado. Barry pegou a mão do pai e Lorry se ajoelhou ao lado da cama, encostando a face úmida na do pai, sem dizer nada. Esther ficou ao pé da cama, os olhos cheios de lágrimas. O Sr. Summerfield sorriu para Johnny. — Estarei bem e de volta, para o casamento. — Deu uma risada fraca. — Lorry, mulher de ministro! Vou me divertir vendo isso. Mas estendeu a mão para Johnny, num gesto de quem pede perdão, e de quem se rende.

XXXVII O mês de abril chegou como a luz nas asas de um pombo, e a Páscoa se aproximava. Os lilases da Emilie estavam em flor, cheios e delicados, no jardim da paróquia e Johnny e as crianças os visitavam sempre. As pequenas árvores de frutas tinham solado as folhas como uma neve fragrante e a grama estava ficando verde depressa. Lon Harding e seus amigos tinham revolvido canteiros e deixaram as crianças ajudarem a plantar flores perenes. O Padre Krupszyk levou mudas de íris e bulbos de lírios e os plantou ele mesmo. Lorry estava dividindo seu tempo entre Filadélfia e Barryfield . — É muito exaustivo para você, meu bem — dizia Johnny, aflito. Mas ela agora estava ficando viçosa e cheia de um contentamento suave e pleno. Em Barryfield, ela ficava com a mãe, que estava sozinha, e lia as cartas do pai para Esther. Eram breves mas afetuosas e boas e cheias de uma tristeza intangível. Eram cartas de quem já esteve mortalmente doente e só aos poucos estava voltando à vida. Perguntava sempre por Johnny. Em outra ocasião, escreveu: “Barry veio me visitar ontem. É meu filho, de novo”. Sempre que Lorry ia a Barryfield, com o irmão, Johnny sentia que sua vida estava completa e que todos os anos que tinha pela frente seriam de uma felicidade profunda. Os filhos estavam florescendo. Jean, tendo voltado ao normal, falava em entrar para o time de basquete da Igreja do Rosário. A voz de Pietro adquiria mais brilho. Max fazia biscates misteriosos para o Rabino Chortow, que o achava um consolo pelos filhos que nunca tivera. Kathy lutava com a Sra. Burnsdale, em matéria de autoridade, o que divertia o Dr. McManus e Johnny, se bem que a menina não achasse a menor graça. — Afinal — dizia ela, com frieza — era eu que tomava conta dos garotos, antes de a gente ver a Sra. Burnsdale. Sou mais chegada a eles. Debby, com os cabelos castanhos lustrosos e olhos atrevidos, era a cruz especial de Kathy, pois os meninos a adoravam. Ela conseguia até desafiar a Sra. Burnsdale. Era então que Kathy se tornava defensora da Sra. Burnsdale. — Aquela menina — dizia Kathy — precisa de disciplina. Mas quem aqui vai fazer isso? Na opinião de Kathy, aquela família era organizada de modo muito relapso mesmo. Ela desabafava sua frustração sobre as meninas na sua escola dominical, onde a temiam e respeitavam. Pietro tinha tentado convencer Lorry a se casar com Johnny antes de setembro. — Para que esperar, quando o amor existe? — perguntava ele, ladino. Ela olhava para ele, com reprovação, e respondia, meio sorrindo: — Mas o dever vem primeiro, não vem?

Pietro não tinha muita certeza disso. O dever parecia uma coisa muito sem graça para ele, especialmente quando atrapalhava as festividades. — A paz é uma coisa maravilhosa — dizia o Dr. McManus. — Depois virava-se para Johnny com um olhar ameaçador. — Contanto que você não se intrometa nas coisas. Barry prometera a Johnny que estaria em Barryfield na Páscoa. A amizade dos dois rapazes era tão profunda que comovia até o Dr. McManus. — Lembro-me do dia em que ele chegou a esta cidade — disse o médico. — Você dois se abraçaram quem nem dois bobos, soluçando. Foi Barry quem insistiu em mobiliar a casa paroquial pronta em junho. Johnny protestara diante das despesas, mas o amigo insistira: — Você ainda não viu as lojas da Madison Avenue. São cheias de tesouros. E, afinal de contas, Lorry é minha irmã. —·A paz é uma maravilha — repetia sempre o médico. Foi tudo muito pacato, até a Quinta-Feira Santa, dia em que Barry chegou e foi para a casa da madrasta. Ele gostava de Esther e tinha pena de sua solidão valente. Barry Summerfield chegou em casa de tardinha, na Quinta-Feira Santa, com sua irmã Lorry. — De certo modo — disse Esther, beijando os dois — esta vai ser a Páscoa mais feliz da minha vida. Ela se esquecera das boas Páscoas de sua juventude, antes de se ter casado com MacDonald Summerfield, mas Lorry já a ouvira falar delas, e sentiu remorsos. Nós de fato fizemos a vida dela infeliz, pensou. — O seu pai sempre achou que não ficava bem eu cozinhar. Mas eu vou preparar o almoço de Páscoa, eu mesma! Sempre tivemos muito dinheiro, mas minha mãe sempre dizia que uma moça que não saiba cozinhar e fazer suas roupas é uma mulher inútil. Ela continuava com um ar exótico, pois era uma mulher exótica, embora tivesse passado a usar roupas discretas e convencionais, e estivesse pensando em redecorar a casa num estilo aceitável. A filha e o enteado olharam para ela com carinho, enquanto ela conversava com espírito e inteligência, ao jantar. Ninguém olhava para a cadeira do Sr. Summerfield, mas ele estava nos pensamentos deles. Um dia ele tornaria a se sentar ali, “cheio de saúde, a alma, a alma sarada e sossegada e todos sabiam que, se não tivesse sido Johnny Fletcher, ele poderia estar morto agora, pois tinham encontrado bilhetes de suicida na secretária dele. Johnny deixava sua marca por toda parte, pensou Lorry, com amor, quer ele soubesse disso, ou não. As janelas estavam abertas para as montanhas verdes e lilases e o perfume dos arbustos e árvores da montanha. Uma fatia de lua brilhava como um fogo prateado acima do topo do monte mais próximo. Esther de repente bocejou e desculpou-se, rindo: — Eu agora trabalho no jardim. O seu pai nunca me deixava fazer isso. Levanto me às 6h00; é a melhor hora, claro e fresco, e a terra está fresca. Assim, daqui a uma hora vocês meninos vão ter de me dar licença. — Sorriu para eles, contente.

Ela os deixou às 21h30. Lorry e Barry ficaram sozinhos na sala hindustânica, fazendo de conta que a mobília não estava ali. — Os novos redatores que contratei são muito bons — comunicou Lorry ao irmão. — O pessoal de Barryfield voltou a respeitar os nossos jornais. E a nossa circulação aumentou de um terço! Imagine! Ela olhou para o irmão, com afeto. Era igual ao pai, quando tinha cerca de 30 anos. — Os seus editoriais para os nossos jornais, quando você tem tempo de escrevê-los, são muito diplomáticos — continuou ela, suspirando um pouco. — Ah, sim, sei que não podemos inverter a política normal, de repente; tem de ser feito gradativamente. Mas você o está fazendo, e é por isso que a circulação está aumentando. Claro, todo mundo sabe a respeito do pai, e há certo cinismo quanto à nova política. E… os últimos comentários do pai sobre o Johnny não foram bons para Johnny. Mas pelo menos ele não é mencionado nos jornais, a não ser uma citação dos sermões dele, de vez em quando. Não publicamos as poucas cartas feias que por vezes nos chegam, sobre ele. Ela não mencionou que essas cartas por vezes eram violentas e incoerentes, testemunho do ódio insano que uma grande parte de Barryfield sentia por Johnny, por causa dos maldosos ataques do pai dela sobre ele, no passado. Muita gente, pensou ela, com tristeza, tem de odiar alguma coisa, ou alguém, a fim de dar à sua vida algum significado. Invariavelmente odiavam as coisas erradas e os homens errados, com uma perversidade singular. Talvez, em seus corações, soubessem disso e atacassem por maldade pura. Barry comentou: — Johnny me contou que uma porção de fiéis dele deixaram a igreja, depois da última joiazinha do pai. Ele já tentou falar com eles mas não adiantou. Imagino que vamos ter de continuar a ser diplomáticos. — Depois ele falou de um novo escritor que tinha “pilhado” na Inglaterra, pois viu que a irmã parecia deprimida. — Eu o convenci de que podíamos fazer mais por ele do que o antigo editor. — Riu-se. — Direitos autorais maiores não foram nem mencionados, embora estivesse entendido tacitamente. Só falamos de uma maior distribuição e levar a mensagem do homem a um público maior. Nada tão vulgar como o dinheiro, claro. Nós, americanos somos diretos, nisso; mas isso ofende os europeus, especialmente os artistas. Mas eles não deixam de examinar os nossos relatórios de direitos autorais com um microscópio! Lorry começou a rir. Aí ouviram o barulho mais sinistro que se pode ouvir numa região em que a mineração de carvão é tão importante. Sirenas de repente soaram em buzinas curta e rápidas, em pânico, parando um momento e depois buzinando de novo. Lorry e Barry só tinham ouvido aquilo uma ou duas vezes na vida, e se olharam, consternados. Os gritos mecânicos lhes chegavam finos e claros, mesmo na fralda da montanha. — Uma explosão! — exclamou Lorry. — Devem estar trabalhando de noite de novo! Esses chamados são por ajuda de qualquer tipo. Quantos homens será que… — Vou descer — disse Barry, levantando-se, resolvido — Não sei que auxílio posso prestar, mas sou um jornalista de coração e consigo uma historiar em todo caso. Escute

essas sirenas gritando! Deve estar um inferno lá embaixo. Pobres- diabos. Algumas dessas minas deviam ter sido fechadas há anos, ou então deviam ter escorado as paredes. Não espere por mim, Lorry. Johnny estava trabalhando no sermão de domingo, insatisfeito, alguns minutos antes da explosão na mina. Tudo o que escrevia lhe parecia inadequado, banal. Parou, batendo com a caneta nos dentes. O Deus de todas as inúmeras constelações, galáxias e universos olhara para um grãozinho de pó se agitando no rastro eterno de sóis ofuscantes e milhões de mundos oscilantes mais vastos do que jamais se poderia imaginar, e Ele descera sobre aquilo com Seus pés radiosos e morrera ali, em Sua pele humana. Por quê? Ah, a Bíblia explicava mas, para Johnny, o mistério continuava sem solução. E então, depois de Sua morte, Ele ressurgira dos mortos, para levar a vida às criaturinhas rastejantes chamadas homens — por quê? De um minuto a outro, como na queda de um pardal, somos menos inocentes, menos nocivos, menos belos até, do que os pardais, pensou Johnny, e menos úteis. E somos assassinos. A marca de Caim está em nossos rostos. A casa grande e velha estava muito quieta. O velho médico estava cansado e fora deitar-se. As crianças estavam dormindo, era o que Johnny esperava. Os assoalhos e paredes rangiam vagamente na noite cálida e agradável. Então, de repente, elas tremeram. As minas de novo, pensou Johnny, inquieto. Ele se levantou, sem motivo, foi até uma janela e olhou para fora. Não esperava ver nada; só queria se tranquilizar vendo os calmos lampiões de rua. Não viu ninguém na rua; só de vez em quando um automóvel passava pela casa. Depois teve um sobressalto. As sirenas estavam buzinando, de repente, violentamente, num clamor de pedido de socorro desesperado. Ele conhecia aquelas sirenas, Começou a tremer com o medo que só um mineiro pode sentir. Achava que estava até sentindo o cheiro do gás, o odor acre do carvão começando a arder e o bater de corações apavorados, cheios de medo, bem no fundo da terra. Conhecia tudo aquilo; já o experimentara pessoalmente. Agora, não era mais sacerdote, mas mineiro. As mulheres, as crianças. O bater de pés angustiados correndo para as minas, os gritos de terror, os berros por misericórdia, os gritos a Deus. E as ambulâncias, as luzes, os resgatadores… Ele já estava a meio caminho da porta quando viu o Dr. McManus descendo a escada correndo, vestindo-se no caminho. O Dr. McManus viu Johnny e parou, abotoando um último botão. — O que… olhe aqui, não vão deixar que você chegue nem perto do poço. Só médicos. Ouça essas malditas sirenas! Conheço todos os chamados; isso deve ser grave. Olhe, há cercas de arame em volta dos poços, para afastar os intrometidos, as mulheres e crianças, e trancam os portões. Os resgatadores não podem ser perturbados. Hoje, querem todos os médicos que puderem alcançar. Você só vai atrapalhar, você é um… — O senhor se esquece — respondeu Johnny, pálido e aflito — que também sou mineiro. Sei como salvar os mineiros; uma vez também fui resgatado. O senhor não sabe o que é, lá embaixo… e eu sei. Senti a explosão; outras virão. Nessas horas, é preciso trabalhar o mais depressa possível.

Ele destrancou a porta. — Você não vai chegar perto da mina! — gritou o médico, apavorado. — Vai ficar do lado de fora dos portões, junto com os outros pastores. É esse o seu trabalho, e não mergulhar nos buracos. Não vou permitir… Mas Johnny já estava lá fora, correndo para a garagem. O médico gemeu e o acompanhou, o mais depressa que suas pernas gigantes permitiam, e disse para a noite clara, enluarada: — Ah, o idiota, o idiota! Ele nunca pára para pensar. Mineiro, diz ele! Vai descer pelo poço afora… nunca pensa. Tenho de afastá-lo de lá. — Gritou para Johnny: — Não na sua lata velha, seu idiota! Tenho uma sirena no meu carro e vamos usá-la para abrir caminho! Veja todos os patetas já saindo para a rua nos seus calhambeques, atrapalhando as ambulâncias e carros de bombeiros e médicos! Entre, entre. E ligue essa sirena, e a luz extra. Não vai chegar nem perto daquela mina, raios! Cuidado com a minha maleta; afaste as patas daí. Fez essa curva depressa demais… está bem, em frente. Siga a próxima rua, vire à esquerda na esquina… não vai chegar perto daquela mina! O ar noturno virava com as buzinas das sirenas frenéticas, pedindo socorro. As casas estavam acesas, as pessoas nas portas e alpendres, farejando um desastre. Vozes gritavam de um lado para outro; carros saíam das entradas das casas. Mulheres começaram a gritar, as crianças choravam, excitadas. — Mais depressa, mais depressa — gritou o médico — mas não nos mate. Ligue essa sirena mais forte. Cuidado! Aquele raio de idiota quase o abalroou. Meu Deus! Você vai ficar do lado de fora dos portões… Mas Johnny estava rezando. Sua boca se movia, em súplica. — Pai, sei tudo sobre isso — rezou ele, baixinho. — A fumaça, o rugido dentro da terra, as paredes tremendo, o fedor de gás, o pavor, o pânico do espírito. Mas lembro-me de outra coisa, também. Eu ainda era menino, mas me lembrei de parar para rezar, enquanto os homens estavam correndo e gritando no escuro e me lembrei do que nos tinham ensinado, cair de quatro, tapar os rostos… eu tinha de ter a Tua ajuda para me acalmar, antes de poder me lembrar dessas coisas simples. E Tu me deste o poder, para eu gritar para os homens, encorajá-los a me acompanhar para a saída e Tu os fizeste me escutar e eles me acompanharam, cada homem rastejando com a mão nas costas do que estava à frente. Conseguimos sair, com a Tua ajuda, Pai, e só perdemos um homem que estava apavorado demais para ouvir e não perder a cabeça. Pai, aqueles homens lá na mina agora… acalma-os, tranquiliza-os, manda-lhes socorro. Conserva as almas deles; fala com suas famílias. Johnny respirou fundo e enquanto o carro disparava pelas ruas apinhadas e a sirena berrava com as vozes mais profundas e fortes das outras sirenas, ele rezava a oração para os mortos. — Por ali, agora — indicou o médico, guinchando. — Cuidado com aquelas ambulâncias! Diabos, por que a polícia não afasta esse povo? Malditos filhos da mãe intrometidos! Isso mesmo, Jack! — gritou para um policial que estava usando o cassetete para conter as turbas curiosas e empurrá-las para trás. — Rache a cabeça deles!

Agora o ar estava cheio do cheiro da primeira explosão. — Dê a volta, rapaz! — ordenou o Dr. McManus. — Lá por trás da cerca de arame! Temos de parar lá. Por que essas mulheres e crianças não param de berrar? — Os pais e maridos estão lá embaixo — respondeu Johnny, com dureza. Ele parou o carro atrás de uma porção de outros, abriu a porta e correu para a cerca com seus portões trancados e guardados. Aquilo era uma cena saída do inferno, pensou. Os holofotes estavam apontados para o poço, de onde saíam tufos de fumaça, mas Johnny, cheirando, não sentia mais o cheiro de gás. Então, ainda havia tempo de os homens serem retirados —. se a sorte perdurasse. Em volta dele reinava o rugido confuso dos ruídos humanos, os gritos de mulheres que rezavam e choravam, os uivos das sirenas, as vozes dos homens, roucas, avançando e recuando, o tocar de sinos, as ameaças da polícia e um som silvante. As ambulâncias estavam paradas perto dos portões; somente os funcionários dos hospitais tinham licença de chegar perto do poço, O clarão lateral dos holofotes mostrava a confusão misturada das caras de homens e mulheres espiando pelas fortes cercas de arame de corrente, as caras chorosas, de boca aberta, os rostos manchados e molhados das crianças. — O elevador está chegando de novo! — gritou um homem. — Olhem, mais dois! Johnny abriu caminho até a cerca. O elevador tinha subido do poço e os resgatadores, de máscara, estavam puxando dois mineiros inconscientes de lá. Jovens internos, médicos, inclusive o Dr. McManus, estavam debruçados sobre os homens. Agora as macas brancas estavam de fora, os homens foram colocados sobre elas, levados para as ambulâncias vigiadas pela polícia e as ambulâncias saíram berrando no escuro para um hospital. Johnny olhou em volta, aflito, procurando um rosto calmo. Homens, mulheres e crianças estavam se acotovelando em volta dele; ele estava comprimido contra a cerca, quase sem poder se mover. Viu os olhos brilhantes, as bocas abertas emitindo orações e gritos. Gritou: — Vocês não estão adiantando nada! Só estão piorando as coisas, berrando assim! Pelo amor de Deus, deixem-me sair! Mas ele teve de forçar o caminho para sair daquela massa de humanidade histérica. Encontrou uma clareira, cercada pelos curiosos. Nesse pequeno círculo viu o Padre Krupszyk ajoelhado ao lado de uma maca e viu que pelo menos aquele pobre mineiro não tinha mais salvação. O rosto largo do padre estava suado e os olhos cheios de lágrimas. Mas sua voz estava muito quieta; mantinha a cabeça abaixada sobre o rosto sangrento e quase sem feições do mineiro. E daquele buraco dilacerado e sangrando, sujo de fuligem, veio um leve sussurro. Johnny se aproximou do amigo e pôs a mão no ombro dele, abaixando-se, mas o padre não afastou a orelha, que estava ouvindo a confissão, de junto do rosto do mineiro agonizante. — E agora — murmurou o padre — diga um bom Ato de Contrição. Ali estava mais escuro e mais sossegado, e uma mulher soluçava baixinho; tinha ido ajoelhar-se ao lado do marido moribundo e os dois filhos se ajoelharam com ela. Johnny ouviu o sussurro borbulhante; então viu que as roupas rasgadas do mineiro eram uma só

massa de trapos vermelhos. — Eu me arrependo muito por Vos ter ofendido — murmurou o mineiro, lutando para viver mais uns momentos, pela sua alma. — Sois tão bom… Tende misericórdia de mim… pequei contra o céu e diante de Vós… não sou digno de ser chamado Vosso filho… misericórdia, Senhor… misericórdia… arrependo… Seu peito ferido arfou e o padre fez o sinal-da-cruz. A cabeça do homem rolou para o lado, os olhos mortos fitando, sem ver, a mulher e os filhos. O padre murmurou, persignou-se e murmurou de novo, e a família do mineiro rompeu na endecha triste e sem palavras pelos mortos. A mulher encostou a cabeça no ombro do marido e o padre virou-se para ela, consolando-a. Johnny recuou, chorando. Ato de Contrição. O mineiro se confessara, se arrependera, não fora sozinho para as trevas, sem consolo, sem uma mão amiga. Verdade, no fim o homem ficava só com seu Deus, mas era bom quando ele podia ser levado à Sua Presença com as palavras da contrição nos lábios. Ele sentiu que alguém o tocava e viu que era o Padre Krupszyk. Johnny balbuciou alguma coisa, incoerente, a garganta espessa. — Sou mineiro; tenho de descer lá. Sei o que fazer, ficar aqui não vai adiantar nada, é maravilhoso a gente saber se arrepender no último momento, mas ninguém ensina… eu queria, eu queria… tenho de descer lá! O padre apertou o ombro dele. Johnny virou-se, desesperado. Então, através da cerca, viu o rosto horrorizado do Sr. Dowdy e chamou-o, e o Sr. Dowdy virou-se e foi até a cerca. — Quantos? — perguntou Johnny. O Sr. Dowdy enxugou o rosto cheio de fuligem, e Johnny se lembrou de que ele estava morrendo. O outro disse, com simplicidade: — Eram 60 lá embaixo. Até agora, só houve uma explosão. Vai haver mais. Conseguiram retirar todos, menos 12. Lá está o elevador descendo de novo. Sr. Fletcher. Breve vai haver outra explosão; a gente sente, sob os pés. Johnny sentiu, de fato; agarrou-se ao portão. U elevador estava subindo de novo. Alguém gritou: — Quatro! As mulheres gritaram de alegria; a pressão contra a cerca quase a fez dobrar. Os resgatadores, grotescos em suas máscaras, estavam puxando os homens do elevador; uma ambulância uivou, os médicos examinaram os homens rapidamente; depois chegaram as macas, a ambulância rodando, depois outra. — Até agora só morreram dois, Sr. Fletcher — disse uma voz encabulada perto de Johnny e ele se virou para ver o rosto velho de um ministro que ele conhecia ligeiramente. — Isso é terrível, não vê, mas conseguiram tirar quase todo mundo, e lá vai o elevador de novo, de modo que há uma possibilidade para o resto. — Sou mineiro — respondeu Johnny, aturdido. — Não entendem, sou mineiro. Tenho de descer lá com eles! O ministro olhou para ele fixamente, tossiu e recuou um passo. Então Johnny viu o

Padre Krupszyk olhando para ele de modo estranho, com um sorriso ainda mais estranho. Johnny agarrou o portão trancado e o sacudiu, selvagemente, O Sr. Dowdy se aproximou dele. — Não estão entendendo! — exclamou Johnny. — Ainda há oito lá embaixo! Sou mineiro. Abram o portão — implorou. — Posso ajudar. Vai haver outra explosão a qualquer momento e não vai dar tempo… — Sei, sei — respondeu o Sr. Dowdy, a voz fraca. — Entendo. Olhe, Sr. Fletcher, o elevador está subindo de novo. Olhe! São cinco homens empilhados nele! Só restam três, só três… Ele se virou e foi para o elevador, onde os médicos estavam reunidos. Falou com os resgatadores mascarados e depois de repente levantou as mãos desesperado. — O que é? — indagou Johnny. — O que é? Os resgatadores só olhavam para o Sr. Dowdy, sacudindo a cabeça. O Sr. Dowdy enxugou o rosto com um lenço manchado e se virou, curvado, cambaleando. — O que foi? — perguntou Johnny, de novo. O Sr. Dowdy teve um sobressalto. — Sr. Fletcher — respondeu, em voz surda —, há três lá embaixo, só três. Bem no fundo. Não podemos tornar a mandar esses homens; vai haver outra explosão, quase imediatamente… se eles descerem, também serão mortos. Se ele tivesse gritado as palavras, as mulheres dos três mineiros não as poderiam ter ouvido mais claramente. Elas romperam em gemidos fortes, angustiados. Bateram na cerca com os punhos cerrados. Os filhos gemeram com elas. Seus gritos se ergueram acima das sirenas, quando viram os resgatadores tirarem as máscaras. Johnny, atormentado, olhava das mulheres para as crianças, para as turbas e massas de humanidade se comprimindo contra as cercas, para o brilho insuportável dos holofotes, para as ambulâncias reluzentes, a polícia, e depois para o poço além da cerca. Os resgatadores estavam sendo tratados pelos médicos, pois estavam exaustos. O Sr. Dowdy, como um cego, estava andando aos tropeções, sacudindo a cabeça, torcendo as mãos, uma alma perdida e esquecida. Os internos entraram correndo, por um portão aberto às pressas para apanhar os últimos cinco resgatados, que tinham sido colocados no chão; as macas formavam pontos brancos sob a luz dos holofotes. Eles se moviam tão depressa que quase jogaram os homens inconscientes nas macas, pois tinha sido dada ordem para todos largarem a abertura do poço. Johnny, gemendo, os dentes cerrados, sacudia a forte cerca, impotente. Alguém pegou o braço dele, falando, preocupado, e ele se virou para a pessoa, quase com fúria. — John Kanty, posso salvar aqueles homens! — exclamou ele. — Sou mineiro! Por que não querem acreditar em mim? Passei anos, todos os verões e três anos seguidos… Deus me ajude. John Kanty, procure me ajudar! Uma das macas estava saindo. Johnny afastou a mão do padre, que o restringia, agarrou vários ombros e braços que se interpunham em seu caminho e os jogou para o lado e abriu caminho para o portão. Antes que alguém o pudesse impedir, estava dentro do

recinto, acotovelando-se com os médicos que estavam saindo de lá, precipitadamente. De repente pareceu-lhe, naquele aperto, que todos os homens das vizinhanças estavam entre ele e o poço. Alguém puxou o seu paletó de clérigo e diante dele apareceu o rosto apavorado do Dr. McManus, aumentado, nesse momento, até as dimensões e a expressão de uma cara de gárgula. — Aonde é que você vai, raios? — guinchou o médico, tentando de novo agarrar Johnny. — Está maluco? Vai explodir… Johnny o afastou de seu caminho e correu para o poço e o elevador que estava ali à espera. Os tufos de fumaça lá de baixo agora estavam vindo em ondas. Um dos resgatadores, de boca aberta, estava ali perto, a máscara e a lanterna na mão. — Agora, Deus — disse ele, em voz alta —, ensina-me a fazer isso funcionar. Já faz anos. — Dê-me! — pediu Johnny, agarrando a máscara. Mas não sabia colocá-la: ela caiu de suas mãos. Ele agarrou a lanterna do mineiro apatetado e saltou para o elevador. Um rugido imenso, acompanhado por um silêncio maior, caiu sobre o povo quando os cones de luz foram focalizados sobre Johnny, entrando no elevador. Ele puxou os cabos, freneticamente. O elevador oscilou e começou a descer, preguiçoso. Então, no silêncio -terrível, ele ouviu uma voz lhe gritando: — Johnny, Johnny! Volte, volte! E, como um eco, vozes continuaram o grito: — É o ministro! É o ministro! É o Sr. Fletcher! A cabeça dele já tinha quase desaparecido, mas ele a virou e olhou bem para o rosto de Barry Lowell, comprimindo-se contra a cerca. E lá estava o padre, as mãos dobradas, rezando, e o Dr. McManus. Johnny acenou. — Já volto! :— e gritou, em triunfo. — Fiquem atentos! Os cabos foram deslizando pelas mãos de Johnny, queimando-as, pois o estavam fazendo descer ao poço negro depressa demais para ele poder controlá-los. Os elevadores que ele tinha conhecido não eram grandes como aquele; o piso balançava de um lado para outro e batia contra os lados do poço e ele era jogado de um lado para outro. Olhou para cima e o alto do poço era um retângulo de luz ofuscante, que o acompanhava. Viu algumas cabeças oscilando, cabeças de bonecos. A lanterna, que tinha enfiado no bolso, caiu e ele se abaixou e a apanhou justo a tempo. A fumaça, subindo, começou a sufocá-lo. Ele se lembrou do que devia fazer: tirou o paletó, embrulhou a cabeça nele e se agachou no chão do elevador. De repente o elevador bateu no fundo do poço, balançou, endireitou-se e nisso ele bateu a cabeça contra a parede, e seus ouvidos zuniram. Saltou do elevador, tonto. — Pai, fazei com que eu me lembre do que fazer — murmurou, das profundezas de seu paletó. — Que eu não me lembre de nada a não ser que sou ministro. Ele só deixara uma fresta para os olhos, que começaram a arder muito; estava num paroxismo de tosse. Então, como que por instinto, seus pés procuraram os trilhos estreitos

e os encontraram; sentiu-os quentes, através do couro. Alguém tinha voltado um dos holofotes bem para dentro do poço, e aquilo o deixou ofuscado. Segurou a lanterna e, tateando os trilhos com os pés, correu para a mina, descendo uma ladeira. Estava rodeado por paredes negras de carvão, reluzentes e facetadas. A lanterna dançava sobre as facetas, que reluziam, escuras. Johnny, o mineiro, estava recordando. Passou a se mover cada vez mais depressa, descendo, descendo; de vez em quando, puxava uma dobra do paletó do rosto e gritava. Só os ecos lhe respondiam. Tropeçou, caiu de lado, voltou aos trilhos. O calor estava ficando insuportável e o cheiro da primeira explosão fazia seus pulmões arderem. Ele estava agachado, andando depressa, respirando o mínimo possível. Disso se lembrava. Depois estava de joelhos, engatinhando, as pedras e pedacinhos de carvão rasgando a fazenda das calças, até a carne. Sentia a terra tremendo sob ele, cada vez mais fortemente. Em breve haveria outra explosão. Em breve toda a mina ia desmoronar. A oração era um centro forte de chama em sua cabeça. Ele havia de salvar aqueles homens; não morreria. Deus o protegia. Ouvia o carvão caindo por toda parte, em volta de si: um pedaço pesado lhe bateu nos ombros. Em algum lugar, nesse venenoso poço negro, três homens estavam prestes a morrer. Ele não se incluiu. Dois dos mineiros, aparentemente despertando pela consciência da iminência de sua sorte terrível, tinham chegado aos trilhos depois que os últimos resgatadores tinham deixado a mina. Johnny os encontrou sem quase o perceber. Ele soltou uma exclamação, em sua alegria. Às mãos pretas deles o agarraram; seus rostos negros balbuciaram coisas para ele. A voz dele saiu numa confusão abafada, das profundezas de seu paletó. — Ponham os paletós sobre os rostos! Fiquem com as cabeças para baixo! Engatinhem pelos trilhos; fiquem juntos, as mãos um no outro. Não larguem. Depressa, depressa! Eles estavam paralisados de terror, e não conseguiam se mexer. Ele bateu com a lanterna no ombro de um deles. — Andem, andem! — gritou. — Vamos, virem! Andem! Por aí! Não saiam dos trilhos! Prendam a respiração o mais possível! — Ele os empurrou e pôs em posição. Um dos mineiros estava gemendo. — Vamos morrer. — Não! — gritou Johnny, com violência. — Não, se não perderem a cabeça. Andem, andem! Isso mesmo, em frente, fiquem nos trilhos. Vão encontrar o poço. Tenho de ir buscar o outro. Eles pareciam animais disformes, tossindo, — envoltos em negrume, à luz fraca da lanterna. Começaram a engatinhar entre os trilhos, um agarrando o paletó do da frente. Johnny os acompanhou com o facho de luz da lanterna, enquanto ousou. Depois gritou, animando-os: — É só continuar assim; o elevador está lá, eles os puxarão para cima. Agora vou buscar o último. Os tremores na terra faziam toda a mina roncar. Johnny se levantou, sem sentir os

protestos de sua própria carne sangrando. Não era mais hora de engatinhar, de modo que ele se curvou e começou a correr para o fundo da mina. A fumaça estava mais espessa; o ronco foi se tornando sinistro, os trilhos oscilaram sob os pés de Johnny, aos tropeções. Ele virou a luz da lanterna para cada fresta enfumaçada; uma viga rachou e Johnny instintivamente saltou para o lado, quando a madeira pesada caiu, quase o atingindo. O piso estava cheio de fendas e sulcos e uma vez ele torceu o tornozelo de tal modo que soltou um grito. Agora sentia um cheiro enjoativo de fogo e gás. — Pai do céu — rezou alto, por trás do abrigo do paletó —, faz com que eu o encontre. Leva-me a ele. Tem mulher e filhos lá em cima. Seu ouvido, lembrando-se, o avisou pouco antes que um pesado deslizamento de carvão caísse nos trilhos. Ele o observou com a luz da lanterna: estava ardendo. Depois, endireitando-se, prendendo a respiração, saltou sobre o monte e pulou para o outro lado. Embrulhou mais o rosto no paletó. Um silêncio ardente, crepitante. Ele chamou e tornou a chamar. Sua voz parecia estar ficando mais fraca, e pela primeira vez notou o esforço de seus pulmões, o coração cansado, a exaustão de seus músculos, a dormência em suas pernas machucadas. — Por favor — implorou —, permite que eu o encontre. — Uma náusea terrível o estava dominando e a luz da lanterna parecia dançar loucamente diante de seus olhos. Estava suando em bicas. Teve de parar e se encostou a uma parede, para descansar, pois a galeria estava ficando cada vez mais estreita. Aí teve um sobressalto. Seria apenas o eco de sua própria voz ou seria um gemido, perto ou longe? Tornou a gritar e o gemido respondeu. Então, nas trevas distantes, ele viu um pontinho de luz, a luz de um boné de mineiro, no chão inclinado da mina. As paredes da mina estremeceram mas ele nem ouviu. A luzinha, parecendo um vaga-lume, se aproximou e ele correu mais. E ali, no chão, viu um homem semiconsciente, deitado, tentando sair de debaixo de uma imensa viga de madeira, que parecia estar fumegando. Dois olhos esbranquiçados olharam para Johnny no estreito facho de luz da lanterna e dois lábios pretos fizeram uma careta no rosto negro. — Espere — disse Johnny, largando a lanterna com cuidado. Rajadas de calor batiam-lhe no rosto, nas mãos, deixando seus pulmões em fogo. Dobrou as pernas fortes, como lhe tinham ensinado, e segurou a viga no meio, devagar, com segurança, com suas mãos de mineiro, e começou a levantá-la. A viga se moveu em suas mãos. O mineiro tinha desmaiado; estava deitado, estirado, sem saber de nada, sem se importar. — Agora, Deus — pediu Johnny —, me dá a força de que preciso. Um ronco profundo e trêmulo lhe respondeu, como a voz de um gigante enfurecido, despertando. Ouviu aquilo e viu que dentro de minutos, provavelmente, ele e o mineiro estariam presos, sepultados, perdidos para sempre. — Deus! Pensou nos filhos e viu seus rostos e ouviu suas vozes. Afastou essa visão, soluçando, e renovou seus esforços. Sentia suas costas e pernas estalando, os músculos cedendo, mas

se agarrou à viga. Então ouviu, um ruído vago, um tropel. Pedras, pensou, lutando com a viga. Vai haver um desmoronamento completo. A viga estava subindo em suas mãos; de repente, uma das pernas do mineiro estava livre, Johnny a chutou para o lado, girou com a viga e soltou a outra perna. Mas viu que estava girando, impotente, enquanto a viga continuava a girar, pois tinha perdido o equilíbrio. Então, em algum lugar, houve um estrondo e um lampejo rubro de agonia e uma sensação entontecedora, quando a viga girou sobre ele e o prendeu. Ele ficou ali deitado, parado, chocado; um de seus tornozelos estava preso. Estava completamente preso. Tinha livrado o mineiro, mas agora não havia solução para ele. Tentou sentar-se mas a dor no tornozelo o enjoou e ele de repente vomitou e respirou fundo, queimando os pulmões. — Socorro! — gritou, em desalento, e disse, gemendo: — Meus filhos! Meus pobres filhos! Pai, cuida de meus filhos! O tropel estava mais próximo e então, aos olhos lacrimosos de Johnny, chegou a luz de uma lanterna distante. — Socorro — murmurou, e então, sem poder acreditar, ouviu um grito: Ele recorreu às suas últimas forças e gritou de volta: — Aqui! Depressa, pelo amor de Deus! A lanterna saltava e dançava depressa nas mãos de seu resgatador ainda invisível. O ruído de passos ficou mais forte e a mina comprida ressoou. Johnny gritou de novo: — Aqui, bem aqui. Ele agora estava vendo um vulto vagamente, por trás da lanterna, um vulto alto, de máscara. Fechou os olhos, fraco, num novo acesso de agonia. Alguém estava empurrando a viga que o prendia? De repente ela foi erguida, rolou e caiu com uma série de ecos. O mineiro estava voltando a si; ele se esforçou e se sentou, gemendo. Uma voz lhe gritava: — Se puder fazer alguma coisa, ajude-me! — Minhas pernas estão quebradas — gemeu o mineiro. — Está bem — respondeu a voz, de longe —, comece a rastejar, ou alguma coisa, mas mexa-se, raios, mexa-se! Johnny, sem poder acreditar, reconheceu a voz. — Barry, Barry! — sussurrou para o rosto mascarado. — Vamos, Johnny, arraste-se até junto de mim, Isso mesmo; agarre-se. Apóie-se no meu braço; segure meu ombro. Vá andando — disse ele ao mineiro, que estava se arrastando com bastante pressa pelo piso da mina. — Johnny, segure a minha lanterna; se puder usar o tornozelo um pouco, use, mas não vá cair. — Barry — disse Johnny enquanto rastejavam pelo chão da mina. Estava com

vontade de chorar; esqueceu-se de sua dor e terror, naquele assombro. Apertou mais o paletó no rosto. — Não faz mal, conserve suas forças. O raio do ar está ficando pior a cada segundo. O seu chapa já avançou bastante. Muito bem, Johnny, continue a se mover. Eles então ouviram um estrondo às suas costas e o fundo da mina desmoronou. O estrondo os acompanhou, o pó e a fumaça mais espessa, cegando-os. A dor no tornozelo de Johnny passou a uma dormência enjoativa; estava conseguindo usá-lo um pouco melhor. Os dois homens foram se movendo pé ante pé pelo chão da mina, mantendo-se nos trilhos. Agora já viam um clarão de luz a distância, e a sua luz o vulto do mineiro, andando de quatro como um urso. — Pernas quebradas, coisa nenhuma — resmungou Barry. Seus antigos ferimentos de guerra estavam distendidos, numa tortura só; por vezes ele tinha de apoiar Johnny numa parede e parar um instante, de pura exaustão. O ronco estava mais próximo deles, a investida baixa de um touro possante, um Minotauro louco, para destruí-los. — Vamos conseguir — falou Barry, através da máscara. — Olhe, lá está o elevador; ele está entrando nele. Só falta ele fazer o sinal para o puxarem! — Não vai fazer isso — respondeu Johnny. — Não vai, não. Vai esperar por nós. Em seus ouvidos havia um zumbido forte e cantante e uma sensação de estar escorregando, escorregando para sempre. A voz de Barry estava a léguas de distância, chamando-o. E então ele se sentiu sendo puxado por cima de um corpo, sobre algo que lutava sob ele, e estava sendo carregado. Agora não podia ver, nem ouvir. Só sentia um esforço tremendo nos braços, como se alguém o tivesse puxado em volta de um pescoço. Pensou, vagamente, carreguei Barry assim… em algum lugar… não me lembro… Tinha uma sensação dilacerante nos pulsos. Ele estava subindo. Havia gritos e chamados e uma luz cegante; alguma coisa estava rangendo e oscilando debaixo dele. Ele estava vendo e ouvindo de novo. O poço da mina estava em volta dele, e acima um brilho como o do sol. Ele estava deitado no chão do elevador, o mineiro a seu lado e acima dos dois estava Barry, rindo pelos lábios enegrecidos, tendo tirado a máscara. — Então, Johnny, acho que isso nos deixa quites. Você me carregou do inferno, nas costas, e eu fiz o mesmo por você! O elevador chegou ao alto e mãos ávidas agarraram os três homens e os puxaram dali. Então os milhares reunidos nas redondezas levantaram as vozes numa ovação estrondosa. Um instante depois a mina desmoronou, e a terra tremeu, vomitando fumaça e fogo que subiam pelo poço vazio.

XXXVIII Na manhã de Páscoa, Johnny estava defronte do altar, de pé, apoiado em muletas. Nunca houvera uma manhã de Páscoa igual àquela, desde a primeira, pensou Johnny, cheio de alegria, gratidão e assombro. O altar resplandecia em avalanchas de flores que se despejavam até o chão, num clarão de cores e nuvens de perfume. A luz suave e oscilante dos poderosos candelabros jamais tinha sido tão penetrante. Mas, para Johnny, a visão mais bela e inspiradora de todas era dos inúmeros rostos voltados para ele, com amor e a atenção mais profunda. As portas estavam abertas ao doce ar da primavera e o povo se acotovelava nos degraus, para escutar. O sol se derramava na igreja por trás deles, acompanhado por um vento sem poluição. Sua voz forte e sonora alcançou o ouvinte mais distante, com todo o seu poder: — Não há um dia nem uma hora em que Deus não ressurja dos mortos, em que a pedra do Santo Sepulcro não seja novamente rolada do túmulo por mãos invisíveis, em que a Ressurreição, como o sol, não abale a alma numa adoração e não cegue os olhos com a glória. “Todo coração amortecido, todo coração perdido, todo coração esquecido, odiando e descrendo, é o túmulo em que Deus jaz, aguardando a Sua Ressurreição. E então, em alguma hora no meio da noite, em alguma volta numa vereda perdida, em alguma aurora fria e sem colorido, em que não há esperança, à sombra de uma árvore solitária em que repouse um homem só, ou talvez no próprio burburinho de uma cidade ou no silêncio de um monte, ou nos espaços vazios da dor e sofrimento, amargura e desolação, ou no coração clangoroso de uma prisão ou num quarto estreito de um cortiço, o coração contristado sente o silêncio terrível do Deus sacrificado e se lembra do que esqueceu, se arrepende e exclama: ‘Pai, perdoa-me, pois pequei!’ “É então que Deus se move no local pétreo em que o homem arrependido o abandonou, e os graves invólucros dos pecados do homem caem de cima Dele, e a pedra do sepulcro é rolada para o lado nas mãos apaixonadas da contrição e Deus aparece à Sua luz diante do coração aturdido e penitente — a Ressurreição sempre nova, sempre eterna. “Assim como no Natal Deus renasce, para o homem, assim também na Páscoa Ele ressurge dos mortos para o homem. Bendito seja o Seu Nome! Bendito seja o Seu Nome muito misericordioso, para todo o sempre!” Johnny olhou para as primeiras filas de bancos, enquanto as notas do novo órgão, presente do Dr. McManus à igreja, em nome de Johnny, ressoavam das paredes da igrejinha e se elevavam contra o teto estreito, de madeira. Lá estava o velho médico, olhando para Johnny com a plenitude profunda do amor que um homem dá a um filho que lhe nasce nos seus anos idosos, quando ele já perdeu as esperanças. E lá estava Lorry, parecendo a Johnny um anjo, com o seu costume de lã branca e chapéu branco, com o azul-turquesa dos olhos ternos brilhando com um amor puro e sincero. E lá, desviando o olhar, viu o seu velho amigo, Dr. Francis Stevens, cheio de orgulho e sem se envergonhar das lágrimas nas faces roliças. E lá estava Barry, cuja vida ele salvara e que lhe salvara a

vida, muito comovido e atento, e ao lado dele a madrasta, Sra. Summerfield, e ao lado desta, a Sra. Burnsdale. Como Deus me abençoou, e por nada, pensou Johnny. Sorriu para os McGee, para todos os amigos, para os fiéis apinhados ali, e levantou as mãos. Aquela era uma igreja em que a congregação se levantava para a bênção, mas então todos se ajoelharam e abaixaram as cabeças num gesto espontâneo, para receber a bênção dele. Os sinos repicaram triunfantes no ar luminoso. — Ele ressurgiu! O Senhor Deus ressurgiu!

XXXIX Johnny já estava podendo andar mancando, com cuidado, apoiado na bengala, pois o tornozelo fraturado já sarara. Era o mês de junho e a casa paroquial estava pronta. A família se mudara para lá havia alguns dias, pois os carpinteiros, pedreiros, bombeiros e estucadores tinham trabalhado com uma dedicação frenética para acabar a casa para aquele homem tão querido, para que ele pudesse ir morar lá o mais breve possível. Os horários impostos pelos sindicatos não os tinham atrapalhado; haviam trabalhado do nascer do sol até escurecer, de boa vontade, com o seu suor. Aliás, os delegados dos sindicatos, como os feitores que tinham vigiado os escravos com açoites na construção das Pirâmides, estavam sempre rondando, ameaçando, embora as ameaças não fossem necessárias. E agora a casa estava pronta, com belos móveis novos, louças reluzentes e assoalhos encerados, fazendas lindas e tapetes espessos. Os sindicatos tinham contribuído com a aldrava de metal importada da porta, que antes estivera pendurava numa porta senhorial inglesa, e as janelas de vidro laminado. O sindicato dos mineiros é que substituíra as cercas de madeira por uma grade de ferro preto trabalhado. — Por dentro, é uma verdadeira mansão — dizia Johnny. Da rua, parecia uma casa confortável, de tijolo amarelado, de três andares, com janelas amplas. — Nem sei por que todo mundo faz tudo isso por mim. Todo mundo plantou o meu jardim, todo mundo construiu a minha casa paroquial, todo mundo mobiliou todas as peças, todo mundo me deu tudo, e não sei por quê. Estou aqui há menos de um ano e já provoquei muitas controvérsias. Tenho sido importuno, de vez em quando, com o meu zelo, embora seja verdade que eu aprendi muitas coisas em Barryfield. Aliás, devo toda a minha vida a Barryfield. Quando Lorry sugeriu ao Dr. McManus que ele reconstruísse uma nova igreja, para estar condizente com a casa paroquial, foi Johnny quem interveio: — Não. Foi a igreja do pai dele, e como foi a igreja do pai dele, é linda e certa para mim. E também me pertence. Muito embora — acrescentou, sorrindo para o médico — um tapete novo não fosse má ideia. — Esses pastores — respondeu o médico — têm barrigas sem fundo. Tim Kennedy e os amigos deram a John Kanty uma decoração inteiramente nova pata a igreja… tudo, imagens importadas, toalhas de renda e linho da Irlanda, sinos novos, um altar novo, tudo. Limparam o exterior da igreja e instalaram portas novas, entalhadas. E então, o que ele pede? O prefeito lhe deu um Buick, e ele diz: “Bem, um padre com uma igreja tão bonita e um carro desses não deve ter de dirigir o carro, isso é humilhante”. Quer um chofer, diz ele, e, por Deus, é verdade! — E aposto que vai consegui-lo — respondeu Johnny. — E aquele velho rabino — continuou o médico, irritado. — Sol Klein e seus camaradas sabidinhos compraram taças de pratas enormes para a Páscoa dos judeus, douradas por dentro, e ele ficou contente. Por uns cinco minutos. E depois disse que o pai, que era rabino, possuíra um sobretudo de casimira forrado de pele e disse a Sol que já está

velho e no inverno não passa muito bem, e que apreciaria muito um casaco de casimira forrado de pele, como o do pai, para se aquecer. — Já sei —· respondeu Johnny. — No momento, está em Nova York, com o Sol, tirando as medidas. Vison, imaginem. — A culpa é toda sua — falou o médico, melancólico. — Você andou botando ideias na cabeça de seus amigos. — Um trabalhador vale o que ganha — respondeu Johnny, com um ar solene, piscando para Lorry. Você é caro demais. Imagino que vocês também tenham um sindicato — concluiu o médico, tenebroso. — Pela primeira vez na história, Barryfield acredita que o clero é sagrado e indispensável. O que, afinal, você é, Johnny? O delegado ambulante do clero? Era outro domingo, um domingo de junho, e Johnny estava andando pelo jardim com Lorry, olhando para ele, feliz. Tinha certeza de que rosa alguma florescera como aquelas ali, em buquês fragrantes, amarelos, brancos, cor-de-rosa, vermelhos. Os passarinhos, voando ao alto, lançavam sombras frágeis sobre a grama espessa. E o sol lançava uma catarata de luz sobre a cidade do vale. Viam-se as montanhas, com um manto de verde e lilás, destacando-se contra um céu do azul mais claro. As abelhas se apressavam por entre as flores do jardim, na sua faina antiga da polinização, e toda a atividade da vida. Johnny e Lorry pararam diante das árvores das crianças e ele tocou de leve nos lilases verdes de Emilie. — Nunca vou poder sair daqui. Este é o lar de meus filhos; são as árvores de meus filhos; e Barryfield é a vida de meus filhos. Olhou para Lorry e seus olhos azul-marinho se suavizaram. — Lorry, querida. — Os olhos dela brilharam para ele, e pareceu a ele que estava olhando dentro do coração dela, expurgando de toda a feiúra, o medo, a solidão e o pavor. — Acho que sempre a amei, Lorry, desde a primeira vez que a vi. Só a sua caixa se salvou daquele incêndio. Se eu fosse supersticioso, acharia que isso era um sinal. — E não foi? — perguntou. Ela pôs a mão sobre a dele. Johnny baixou a cabeça e a beijou na boca e eles se abraçaram com uma sensação de alegria e realização, na radiosidade amarela do jardim. Depois continuaram a andar, o braço de Johnny passado pela cintura esguia da moça. — Como é maravilhoso estar em paz — murmurou Lorry. Ele a apertou mais. Olhou para o céu e então um vento frio lhe percorreu os nervos, sem sentido, pensou. — Paz — disse. Paz, rezou. Por favor, Deus, que os nossos corações se voltem uns para os outros, em toda parte no mundo, e que haja entendimento e liberdade de novo para os oprimidos e escravizados, a multidão dos sofredores, e que aqueles que não Te conhecem sejam livrados das trevas e voltem a Ti. Que a mão de nenhum homem se levante contra o seu irmão, nem o trovão rubro dos canhões destrua a terra paciente, nem a

morte torne a se avolumar no céu eterno. Para que mais vive o homem?, perguntou-se Johnny. Só vive para conhecer a Deus e servi-Lo, neste mundo, e se alegrar com Ele para sempre depois da morte. O homem deve viver para Deus, ou morrer na sua alma e seu coração, pois nada existe senão Deus. As crianças saíram numa explosão da porta dos fundos da casa paroquial, os rostos alegres. Debby vinha dançando atrás dos outros, que corriam para Johnny e Lorry. Pietro não conseguia controlar sua exuberância. — Ah! — exclamou, abrindo os braços. — Ouçam só! Temos romance! — E verdade — respondeu Johnny, — Não é romance emendou Kathy, a precisa. — É amor. — E casamento — disse Jean. — Vão se casar — acrescentou Max, solene. — Vou levar as alianças! — gritou Debby, puxando o braço de Johnny, com um ar autoritário. — Kathy também… prometi — falou Lorry. — Depois, é só em setembro. Ela afagou os cabelos dourados de Kathy. — Não, não, vocês não entendem!.— gritou Pietro, entusiasmado. — O senhor vai casá-los, papai, mas não em setembro. Breve! Uma pena que eles já sejam velhos, não é? — A voz dele caiu, num tom trágico. Depois começou a saltar, como uma bola, impaciente. — É o doutor e a Sra. Burnsdale! Quem havia de ser? Nós os vimos se beijando na sala grande e eles nos contaram, e o Tio Al vai morar aqui conosco, para sempre! Debby e Kathy, os rostos brilhando de alegria, pareciam flores, pensou Johnny, com seus vestidos brancos e fitas azuis, e os meninos agora eram rapazes sérios, olhando para ele, esperando o comentário dele. — A família — disse Johnny, sorrindo para Lorry. As crianças os observaram com um prazer acanhado, quando Lorry virou a cabeça linda e beijou Johnny na boca. Pietro disse, com um suspiro dramático de satisfação: — É a nossa família. As crianças saíram correndo numa onda de cores e energia. Lá estava Jean correndo, agora. Jean que queria ser padre, e Pietro, o maior cantor, e Max, o escultor, e Debby, a mulher amada, e Kathy, mãe de muitos filhos. Johnny os via todos no futuro, com uma clareza súbita de luz e sabedoria. Ele apertou a mão de Lorry. Talvez tivessem outros filhos, também, para encher a casa antes que eles partissem, um por um, conforme o que Deus planejara para eles. — Eles me deram tudo o que tenho e tudo o que terei — Lorry se encostou nele. Ele tocou na face dela, e acrescentou: — O meu cálice transborda. * * *

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