Trabalho Pauliteiros

  • Uploaded by: Vera Lúcia Azevedo
  • 0
  • 0
  • February 2021
  • PDF

This document was uploaded by user and they confirmed that they have the permission to share it. If you are author or own the copyright of this book, please report to us by using this DMCA report form. Report DMCA


Overview

Download & View Trabalho Pauliteiros as PDF for free.

More details

  • Words: 5,083
  • Pages: 20
Loading documents preview...
EXTENSÃO EM MIRANDA DO DOURO

O HOMEM E A DANÇA: ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DE UM GRUPO FOLCLÓRICO - GRUPO DE PAULITEIROS DE FONTE DE ALDEIA -

Trabalho elaborado no âmbito da disciplina Técnicas de Elaboração de Relatórios por: David dos Santos Samões n.º 18116

Miranda do Douro, 19 de Dezembro de 2003

Agradecimentos Nas várias etapas que ditaram este trabalho, foi necessário e importantíssimo o contributo de algumas pessoas, que responderam sempre de forma positiva e entusiástica aos diversos pedidos de ajuda e convites que lhes foram feitos. O meu primeiro agradecimento vai para o Grupo de Pauliteiros de Fonte de Aldeia (ACReFA), especialmente para o Moreira, que acedeu desde logo ao convite que lhes fiz de se constituírem como objecto de estudo da analise antropológica subentendida na realização deste trabalho. Durante todo o período de tempo em que acompanhei o grupo foi deveras notável a entrega e disponibilidade dos elementos que dele faziam parte, essencialmente pela forma como me receberam e me integraram no seu meio. Para todos eles um bem haja. A revisão bibliográfica deste trabalho só foi possível graças ao contributo dos professores Domingos Raposo e António Mourinho, que me providenciaram a maioria dos itens que fazem parte da bibliografia. Para eles um grande obrigado. Quanto à captação de algumas das imagens audiovisuais que fazem parte deste trabalho, quero agradecer a alguns colegas universitários, especialmente à Carla Barroseiro, à Lia Zara e ao Edgar, não só pelo esforço dispendido, mas também pela entrega e motivação com que o fizeram. Quero agradecer , mais uma vez, ao Edgar por se ter deslocado até à cidade de Rio Tinto, no dia da actuação do grupo de pauliteiros, auxiliando-me na anotação de alguns apontamentos e dados etnográficos recolhidos. O meu agradecimento também para a docente da cadeira de Técnicas de Elaboração de Projectos, a Dr. Margarida Preto, pelo incentivo que me transmitiu e pela valiosa ajuda que prestou na orientação das várias etapas do projecto. Por fim, quero agradecer aos meus pais, não só pelo apoio financeiro, mas essencialmente pela dedicação e confiança que me transmitiram.

2

Índice

Introdução 4 Breve Contextualização Demográfica e Económica de Fonte de Aldeia 5 A Origem e História da Dança dos Paulitos 6 Composição e Características da Dança dos Pauliteiros 9 As Funções Desempenhadas pela Dança dos Paulitos 11 Apresentação do Grupo 12 Bibliografia 16

3

Introdução O presente trabalho abordará alguns aspectos relacionados com a dinâmica de um grupo de pauliteiros, enquanto actores de um evento cultural, de forma a compreender a interiorização/interpretação que este mesmo grupo faz de um costume enraizado na própria cultura local há milhares de anos. Para tal, foi feita uma investigação, essencialmente de cariz antropológico 1, acerca do Grupo de Pauliteiros de Fonte de Aldeia, com o intuito de perceber, por um lado, a relação que o indivíduo 2 estabelece com a dança e com o grupo de dança, e por outro lado, a relação do grupo com a comunidade local. Os dois momentos fulcrais da investigação ocorreram durante as duas actuações realizadas pelo grupo, aquando do II Encontro de Autores e Criadores de Trás-os-Montes e Alto Douro, em Rio Tinto, e do I Congresso: Perturbação de Identidade de Género, em Miranda do Douro, das quais será feita uma breve análise etnográfica. A dança que os pauliteiros das Terras de Miranda exibem, denominada de dança dos paulitos, é deveras motivo de atracção local, não só devido ao formato e tipo da dança/coreografia, do padrão cultural em que se insere ou da sua origem, mas também por ser um episódio revelador, quer de significado, manifestação, performance ou simples experiência do facto. Para além disso, esta dança desempenha um papel preponderante na promoção da cultura local. Posto isto, e para uma melhor compreensão do estudo que foi feita acerca do grupo de pauliteiros supracitado, será feita uma breve contextualização demográfica e económica de Fonte de aldeia e algumas referencias bibliográficas acerca da origem e caracterização da dança dos paulitos, da sua perenidade ao longo dos séculos e do contexto demográfico em que se desenvolveu e ainda se verifica, tendo em conta as diferentes variações que esta dança assume nas várias regiões da Península Ibérica, especialmente no Planalto Mirandês, única região de Portugal onde existe este tipo de dança e de onde é proveniente o Grupo de Pauliteiros de Fonte de aldeia.

1

Através do método de observação participante e descrição etnográfica e do uso de entrevistas não

estruturadas. 2

A palavra indivíduo diz respeito neste caso, aos dançadores e tocadores músicos que constituem o

Grupo de Pauliteiros de Fonte de Aldeia.

4

Breve Contextualização Demográfica e Económica de Fonte de Aldeia Fonte de Aldeia é uma pequena povoação do concelho de Miranda do Douro, pertencente à freguesia de Vila Chã de Braciosa, que se situa 15 Km a Sul da sede do concelho. O povoado que hoje tem este nome, provavelmente nasceu do castro romano que existiu no monte da Trindade e do qual quase não há vestígios. O documento mais antigo onde figura o nome de Fonte de Aldeia encontra-se na Torre do Tombo [Livro VI dos contratos, fls. 74-v. (D. João III, 1528) segundo Dr. Leite de Vasconcelos]. Esta aldeia rural vive essencialmente da agricultura e da pecuária, onde é bem presente um exemplo de comunitarismo (o uso do extenso baldio, que ladeia ao longo de 2 Km a estrada Nacional 221, para apascentamento dos animais). É possível ainda observar a forma artesanal do cultivo da terra, embora esta prática esteja a ser preterida por outras mais rentáveis e de menor esforço físico, como é o caso da agricultura mecanizada. Fonte de Aldeia teve outrora uma confraria das almas bastante rica e extensa, que possuía até irmandades no vizinho reino de Leão. Cada irmão desta confraria oferecia uma predeterminada quantia de cereal (esmola das lutuosas) que era depositado numa tulha (que ainda hoje existe), e que servia de empréstimo às famílias que o solicitavam. Além das doze missas anuais, em sufrágio das almas dos irmãos defuntos e que ainda se mantêm, fazia-se também um ofício com grande número de sacerdotes. De acordo com os CENSOS de 20013, a freguesia de Vila Chã de Braciosa é constituída por 302 alojamentos familiares e a população residente é de 391 pessoas (202 homens e 189 mulheres). Tendo em conta que desta freguesia fazem parte duas anexas, Freixiosa e Fonte de Aldeia, é possível adiantar que a população residente em Fonte de Aldeia não excederá as cem pessoas.

3

Dados recolhidos do Instituto Nacional de Estatísticas (INE), com base no Recenseamento Geral da

População e Habitação, relativo aos resultados definitivos de 2001.

5

A Origem e História da Dança dos Paulitos A dança dos paulitos está enraizada num facto ou factos verdadeiros, mesmo longínquos, e por isso passou a fazer parte da vida dos povos nas suas manifestações culturais. Trata-se de uma ”manifestação bizarra de raiz anónima, com seus instrumentos típicos, suas regras, ou seu canto próprio” (Mourinho, 1984:453), que se tornou popular, justamente por ter nascido no povo. Com razão e direito absolutos, podemos considerar a dança dos paulitos uma dança folclórica, “pois toda ela é um verdadeiro e rico facto folclórico, a que se ligam ainda outras manifestações institucionais de carácter social, religioso e comunitário” (Mourinho, 1984:453). Dada a sua natureza guerreira, esta dança exclusivamente masculina, é considerada por António Mourinho como um baile triunfal de vitória. Ao contrário do que se possa pensar, a dança dos paulitos não é apenas adstrita ao Planalto Mirandês, não só pelo facto de se tratar de uma Dança Ibérica, mas também por ter ainda continuidade em várias regiões de Espanha, embora com variações diferentes das registadas no Planalto Mirandês. Em Terra de Miranda, esta dança chama-se simplesmente “la dança”. Em Espanha, é conhecida por “Danza de Palos” ou de “Palotéo”, e ainda se conserva em quase toda a região que faz fronteira com Portugal, menos na parte que esteve sujeita ao antigo reino mouro de Granada. As tradicionais danças dos pauliteiros evocam-nos uma luta guerreira cujas armas foram substituídas pelos pequenos paus que conferem o nome aos seus executantes - os pauliteiros. É dançada com paus nas mãos, pequenos bastões de madeira rija de carvalho ou freixo, seco e resistente, de forma a suportar as pancadas dos outros paus. O tamanho destes é, em geral, de 0.40 centímetros de comprimento, por 0.03 de diâmetro. Quanto à origem da dança, o Abade de Baçal refere, no IX volume das suas Memórias, que o Padre João Manuel Pessanha foi o primeiro a afirmar que esta dança era a pyrricha dos Gregos. No entanto, José Leite de Vasconcelos, um dos patriarcas da Etnologia Portuguesa, não era partidário desta teoria, referindo que “sem se apresentarem mais provas que na fortuita coincidência de alguns passos, não se poderá dizer tão

6

peremptoriamente que a dança dos paulitos é a dança pírrica” ((Mourinho, 1984:461). Durante a primeira metade do século XX, uma respeitável série de escritores e etnógrafos em Portugal seguiram e transcreveram a opinião de João Manuel Pessanha. Na década de 50, Manuel Garcia Matos, distinto folclorista e musicólogo espanhol, referiu que era muito difícil estabelecer definitivamente a origem desta dança, advertindo que ela seria, no início, uma dança de fertilidade. Em “Lírica Popular de Alta Estremadura, (folk-lore musical, coreográfico y costumbrista)”, Garcia Matos faz uma análise muito cuidadosa desta dança (“danza de palos”), em toda a sua manifestação, adiantado que a sua origem estaria ligada á dança dos Curetes e Curibantes da Tartéssia, dançada por homens em trajo militar e também por mulheres, ao som do aulo e que nasceu com o carácter religioso que ainda hoje mantém. Segundo alguns etnólogos, tais como Schulten, Bosch Gimpera, Mendes Correia e Maluquer de Motes, os Curetes de Tartessos eram povos ibéros com nível político e cultural já na Península pré-histórica, que terão dado aos gregos e romanos algo da sua cultura. No que diz respeito ao trajo, os termos de comparação que Garcia Matos apresenta, entre o dançador de Almaraz e o trajo do soldado greco-romano são bem expressivos, e têm bastantes similaridades com o trajo dos pauliteiros. Por isso, a sua origem está num trajo militar longínquo. José González Matellán adianta que a origem da dança dos paulitos assenta basicamente em duas correntes de pensamento: os animistas, defensores do espirito primitivo, “mimético e vegetalista de los actos religioso-culturales de los humanos”, e aqueles que defendem uma relação directa com a cultura grega “en la que hallan mitos y costumbres suficientes para afirmar la paternidad total de nuestras danzas de palos y espadas; tesis que predomina en la mayor parte de los estudios locales y cancioneros” (Actas das Primeiras Jornadas de Língua e Cultura Mirandesa, 1987:44). Caro Baroja, refere-se a este assunto da seguinte forma: “Ignoramos el mecanismo de la creación, difusión y evolución de todos estos ritos tiguos y modernos, que incluso en sus menores detalles ofrecen semejanzas. No podemos determinar si todas ellas se deben a un origen común viejísimo o si, por el

7

contrario, son la suma de detalles reunidos en diferentes épocas y venidos de distintos puntos, o si, lo cual parece más probable, sobre una serie orgánica de elementos antiguos se han ido acumulando otros, dándose lugar luego a la eliminacíon local de unos u otros, o a su conservacíon má pura.” (Baroja, 1984:215)

Desta complexa manifestação cultural fazem parte a função sagrada e a função festiva, o simbolismo guerreiro e o de fertilidade, a relação com a estrutura social, através de dádivas e ofícios, a procedência antiga e as alterações de cada época. Assim, é da opinião de António Mourinho “que algo de romano com tradições gregas, algo de ibérico e doutras procedências, com os séculos cristãos posteriores, completaram o que ainda hoje encontremos vivo entre nós, na Península – uma dança perfeita de paus, um trajo especial para ela, uma letra própria para cada número de dança, uma expressão musical e uma expressão coreográfica particular, para cada uma das suas inúmeras variantes.” (Mourinho, 1984:465)

Luis de Hoyos Sain e D. Nieves de Hoyos alegam que esta dança teria origem medieval e que os primeiros documentos que a ela se referem, remontam ao ano de 988, num documento da Coroa de Aragão, citado no Cartulário do mosteiro de San Cugat, na Catalunha. Mesmo que tenha sido assim, não é possível determinar como teria chegado às Terras de Entre Douro e Sabor. Em Miranda do Douro, o documento mais antigo que se refere a esta dança é do século XVII, um livro de contas da Confraria de Santa Bárbara de Fonte de Aldeia, que anota a despesa feita nesse ano com a dança dos pauliteiros.

8

Composição e Características da Dança dos Pauliteiros As danças tradicionais populares dividem-se basicamente em três categorias, a saber: as de carácter social, de natureza espiritual e religiosa e finalmente as de espírito guerreiro. Seguindo esse princípio, temos a considerar que as danças dos paulitos ou dos pauliteiros é predominantemente uma dança de carácter guerreiro, provavelmente devido à localização fronteiriça das terras de Miranda e ás constantes lutas ali travadas desde os tempos mais remotos. Recheada de todo um conjunto de características reveladoras de interesse cultural, como é o caso da identidade indumentária, dos instrumentos musicais utilizados, especialmente no que diz respeito à gaita de fole e à flauta pastoril ou tamboril, e da coreografia encenada, a dança dos paulitos faz parte da genuína literatura popular. Os pauliteiros das Terras de Miranda interpretam as suas danças, designadas por laços4, (lhaços, em mirandês), ao som da gaita de foles, da flauta pastoril, do tambor e do bombo. Os paus substituem o escudo e a espada. Porém, esta dança também pode ser interpretada ao som do canto, uma vez que, quase todos os laços têm música e letra adequada. Na falta de instrumentos é entoada pelo mestre5, na cadência adequada a cada número. Contudo, são raras as actuações em que os grupos de pauliteiros se fazem acompanhar dos cantores. Para além dos laços dançados com paus, há os bailados de castanholas, sem paus. Mesmo durante a dança com os paus, existem determinados momentos em que os dançadores fazem uso das castanholas, guardando os paus debaixo dos braços. Os motivos das letras dos laços são vários. Assim, existem temas de carácter religioso, amorístico, venatório, de descrição geográfica, agrícola, profissional, histórica, etc. A letra dos laços permite aprender e recordar as figuras de cada laço, portanto, a sua existência depende de um fim nemotécnico, não literário.

4

Cada número da dança dos paulitos chama-se laço, por causa das passagens entrecruzadas dos

dançadores. 5

Este estatuto é conferido a alguém do grupo, que tenha aprendido a dançar em todos os lugares. É,

normalmente, o ensaiador e o chefe do grupo.

9

Quanto aos passos inerentes à dança, número por número, volta por volta, cada número de dança, ou lhaço, tem várias partes distintas que podem ir de uma, até cinco ou mais. De acordo com António Mourinho, “estas partes ou passes, têm denominações consagradas: quadrata, guias adentro e piões afora, guias afora e piões adentro, guias em volta, passagens cruzadas, corrida, desvolta por dentro ou por fora, ou ainda passes próprios exclusivos deste ou daquele lhaço. Cada parte é ainda executada quase sempre, batendo com os paus em posições diferentes, por isso temos o pau picado por baixo e o pau picado por cima, ou o pau simples, os paus juntos, os paus em cruz, o pau de corrida e o pau simples em cima e em baixo.” (Mourinho, 1984:480)

A organização dos grupos obedece a uma pragmática antiquíssima, verdadeira instituição local que sempre se cumpria com todo o protocolo tradicional de direitos e deveres, tanto no que diz respeito aos ensaios, como em todo o processo relacionado com a selecção dos dançadores. Em Terras de Miranda, os grupos de pauliteiros são constituídos só por homens, três tocadores e oito dançadores, dos quais fazem parte quatro guias e quatro piões, que usam trajos característicos, quase sempre saias brancas, retiradas das arcas do bragal; debaixo destas, um saiote de baeta para fazer roda; sobre elas ainda quatro lenços de seda; meias de lã brancas, com ramos pretos e botas de bezerro grossas na sua cor natural; na cabeça, chapéu enfeitado com fitas multicolores. Vestem ainda camisa branca de linho ou pano cru curado, com colarinho de cantos redondos e colete enfeitado na frente e nas costas com fitas de diversas cores. Sobre os ombros um lenço garrido estampado de franja. Em Espanha, o numero de dançadores varia em algumas regiões, porém, o numero generalizado é de oito, quase sempre homens, ainda que possam ser substituídos por crianças. A indumentária usada pelos grupos espanhóis na dança dos paus é algo diferente da dos grupos de pauliteiros do nordeste transmontano. “la vestimenta más común de los danzantes es de color blanco, adornada com bandas cruzadas y cintas de colores; los mozos van tocados com sombreros o pañuelos enrolados. Los arreos femeniles como medias , faldillas, corpiños, etc., también son usuales en las danzas de algunos pueblos.” (Alvarez, 1985: 25)

10

As Funções Desempenhadas pela Dança dos Paulitos A dança dos paulitos assume um papel importante em algumas das festividades, mesmo aquelas de cariz religioso, que ocorrem ao longo de todo o ano. No entanto, a participação dos grupos de pauliteiros nessas festividades, tanto em Portugal como em Espanha, tem vindo a diminuir de forma significativa nos últimos anos. No Planalto Mirandês, a principal função da dança dos paulitos é juntar a esmola para a festa, correndo todas as casas da povoação, e acompanhar a procissão do Santíssimo. Nas festas de Santa Bárbara, os quatro guias carregam o andor do padroeiro. Se a festa é em honra de outro santo, os quatro piões levam o andor de Nossa Senhora. Esta é a dança comunitária dos Paulitiros de Miranda na sua área geográfica, na antiga e medieval terra de Miranda e na maior parte de Espanha. Cada aldeia mantinha o seu grupo que se renovava nas festas sempre que algum elemento saía por motivos óbvios. Nas duas primeiras décadas do século XX, tal como refere José Maria Neto numa pequena monografia de Miranda, “Rabiscos”, os dançadores de muitas aldeias mirandesas tomavam parte da procissão do Corpo de Deus na cidade de Miranda do Douro. Em finais do século XIX, os párocos começaram a proibir esta dança nas procissões, com o pretexto de que “distraiam os fieis!...”. É evidente que a Igreja Católica, na sua prudente acção de elevação do homem e conservação de valores culturais de cunho educativo e recreativo, tolerou nas festas dos santos esta dança, mesmo participando na liturgia das procissões porque nela não havia, como não há, nada contrário à fé cristã e aos costumes fora dos actos litúrgicos e da participação nas festas, é profundamente humano e social, com beleza e verdade artística, e foi temperada pelos séculos em que a vida em todas as suas expressões era religião, quer entre as populações rurais quer entre as urbanas.” (Mourinho, 1984:473)

Em Espanha, as danças dos paus também desempenhavam um papel importante nas festas, especialmente nas de cariz religioso. O Arquivo Municipal de Zamora, por exemplo, contem dados interessantes sobre as “fiestas del Corpus y la Sacramental”, nas quais as danças dos paus tinham um papel essencial. 11

Apresentação do Grupo À semelhança de todas as outras aldeias do concelho de Miranda do Douro, Fonte de Aldeia teve, desde tempos imemoriais, um grupo de pauliteiros (aliás o primeiro registo escrito sobre este tipo de dança alude precisamente a Fonte de Aldeia) que dançava especialmente na festa de Santa Bárbara, percorrendo as ruas da povoação pedindo esmola para a referida festa. A partir de finais da década de 50 esta tradição extingue-se, vindo a recuperar-se em 1998 através da Associação Cultural e Recreativa de Fonte de Aldeia (ACREFA), que reorganizou o grupo agora existente. Nesta localidade existe ainda outra associação cultural, denominada de Galandum Galundaina (GGAC), essencialmente de caracter etnográfico, mais vocacionada para a recolha de músicas tradicionais locais e para o folclore. Tendo em conta que os grupos de pauliteiros das Terras de Miranda são constituídos por oito dançadores e três músicos, parecerá tarefa fácil a apresentação do grupo. No entanto, a forma como este se organiza pode diferir de actuação para actuação, caso não haja disponibilidade por parte de um ou mais elementos do grupo, tal como aconteceu nos últimos dois eventos culturais onde o grupo participou. Para além de poderem actuar pessoas diferentes em cada evento, a troca de posições entre os dançadores também é frequente. Embora haja posições fixas entre os oito dançadores, quatro guias e quatro piões, qualquer um dos dançadores deste grupo pode variar de posição e de companheiro. Há entre estes, também, alguns que podem substituir os habituais tocadores do tambor ou da caixa, caso estes não possam estar presentes numa das actuações do grupo. Pode parecer complicado entender esta constante alternância, ainda mais se levarmos em conta que o grupo raramente se reúne para ensaiar, no entanto a destreza e facilidade com que cada um dos elementos executa a dança, independentemente do seu posicionamento no grupo, podendo ser guia ou pião, e da pessoa com quem dança, é deveras notável. Estamos pois, perante um grupo constituído por pessoas polivalentes, que assimilam os movimentos da dança e os compassos da música de forma tão natural que, tal como referiu uma das minhas informantes, “parece que eles nasceram para aquilo”.

12

Durante o período de tempo em que acompanhei o grupo não houve qualquer tipo de ensaio, nem mesmo antes dos dois eventos culturais onde este participou. Um dos elementos do grupo referiu que “é muito complicado para eles conseguirem reunir-se para ensaiar, uma vez que alguns deles estão a estudar noutras regiões do país”. Este facto constitui-se também como um entrave à presença dos mesmos elementos do grupo em diferentes actuações, o que faz com haja um ajuste permanente do mesmo, solicitando-se para tal outras pessoas, quase sempre oriundas de outras aldeias, uma vez que, são poucos os jovens residentes na aldeia. Esta tradição, arreigada nestas gentes ao longo dos séculos, corre o risco de desaparecer, face à desertificação das aldeias do concelho e às dificuldades logísticas e financeiras com que os grupos se deparam. Os incentivos que o grupo recebe para fazer face a tais obstáculos são quase nulos. Nas últimas duas actuações do grupo, apenas foram custeados alguns gastos. Na ida a Rio Tinto, a Câmara Municipal de Miranda do Douro, assegurou o transporte e a organização do evento cultural encarregou-se da alimentação. Na segunda actuação do grupo, em Miranda do Douro, a organização responsável pelo evento ofereceu apenas o jantar. Os três músicos que estiveram presentes em Rio Tinto, foram os seguintes: na gaita de foles, o Sr. António Jorge, no bombo, o Sr. Henrique e na caixa, o Sr. Nascimento Alves. Todos eles são oriundos de aldeias diferentes do concelho de Miranda do Douro, embora nenhum deles seja de Fonte de Aldeia. Com idades compreendidas entre os 50 e os 70 anos, todos eles tocam os respectivos instrumentos desde a sua adolescência. No entanto, fazem-no esporadicamente, quase sempre em alturas de festa nas suas aldeias, ou quando o grupo de dançadores os convida para actuarem num determinado evento cultural. Nem sempre são estes os músicos que acompanham o grupo, uma vez que, qualquer um deles pode não ter disponibilidade para actuar num dado momento, ou então, porque em alguns casos o grupo de dançadores requisita ou é requisitado pelo grupo de músicos de Fonte de Aldeia, os Galandum Galundaina. Como é raro haver ensaios no grupo, a maior parte das vezes os músicos só se encontram com os dançadores em dias de actuação. Talvez por isso, tenha notado um certo desfasamento entre músicos e dançadores, a que não será alheio também o facto de haver uma clara diferença de idades entre ambas as partes, isto porque a idade dos habituais dançadores do grupo ronda os 25 anos.

13

Quanto aos oito dançadores que estiveram presentes em Rio tinto, apenas cinco viajaram no autocarro cedido pela Câmara Municipal de Miranda do Douro. Os outros três, que estão a estudar no Porto, encontrar-se-iam com o grupo, em Rio Tinto. A escolha dos guias e dos piões, assim como dos respectivos companheiros de dança foi feita durante a viagem, de forma natural e espontânea. Não lhes é confusa a ideia de ter que “bater pau” com qualquer um dos elementos do grupo. Assim, durante a actuação, o Carlos Moreira, o Carlos Diego, o Filipe Porto e o José Luís Meirinhos foram guias. Por sua vez, o Sérgio Meirinhos, o Leandro António, o José Manuel e o Manuel José ocuparam a posição de piões. Nesta actuação, todos os dançadores eram de Fonte de Aldeia. Porém, são poucas as vezes em que lhes é possível actuarem juntos. As actuações do grupo permitem aos seus elementos uma forma de convívio e diversão. No dia 21 de Novembro de 2003, quando o grupo actuou no encerramento do I Congresso: Perturbação de Identidade de Género, que teve lugar no Auditório da Câmara Municipal de Miranda do Douro, o José Manuel e o Manuel José, não puderam estar presentes, e foram substituídos pelo Carlos Rodrigues, natural de Sendim, e o Luís Santos, de Fonte de Aldeia. Como o Sr. Henrique, habitual tocador do bombo, não pode estar presente, o Leandro António, que havia sido um dos piões, na actuação do grupo em Rio Tinto, teve de o substituir. Por sua vez, José Preto ocupou a vaga deixada em aberto por Leandro António, actuando pela primeira vez no grupo, sem nunca ter ensaiado com o grupo, nem sequer ter dançado com Luís Santos, o seu companheiro de dança, durante aquela actuação. Apesar de todos estes contratempos, o grupo não dá sinais de quebra anímica, nem sequer demonstra qualquer tipo de receio em dançar, sabendo de antemão que um movimento menos conseguido, ou uma falha com o pau, pode causar danos físicos num dos elementos do grupo, e fazer fracassar a actuação. O facto de os elementos do grupo demonstrarem ser polivalentes, não apaga da minha memória uma das frases com que iniciei o meu diário de campo, antes da actuação do grupo em Rio Tinto, e que se ajusta bem a este grupo de pauliteiros muito bem intencionados mas pouco organizados.

14

No entanto, quando chega a hora de actuarem, é impossível não prestar atenção àquelas iluminadas presenças e deixar de contemplar tão grandioso valor artístico. A julgar pelos aplausos que arrancam da plateia e pelos olhares atentos e satisfeitos daqueles que, tal como eu, não resistem a deixar de admirar o fulgor e elogiar a destreza de movimentos, que o grupo evidencia em cada laço, esta tradição terá forçosamente de continuar ligada a estas gentes. Entusiasmo, amizade, diversão e álcool. Estas parecem ser as palavraschave para caracterizar a relação dos vários dançadores do grupo de Pauliteiros de Fonte de Aldeia. A forma como os dançadores se entregam à dança, parece ser a mesma em relação ao álcool e à diversão, nomeadamente após as várias actuações do grupo. Tendo em conta, as conversas que tive com os dançadores e aquilo que pude observar, parece haver no grupo uma forma ritualizada, no inicio e no fim de cada concerto, de rumar até um “tasco”, um restaurante, um bar, uma discotecas ou, até mesmo, um bailarico, para encontrar formas de diversão. Nestas alturas, o grupo aproveita para confraternizar, no entanto, lá para o fim da noite, o excesso de álcool e o uso de drogas leva-os a cometer alguns excessos, que muitas vezes são deplorados pela comunidade local. Todavia, o grupo tem uma boa relação com a comunidade local. “são filhos da aldeia”, refere uma idosa, “e por isso é normal que lhes queiramos bem”. O senhor do Café, diz que eles são o “baluarte” da aldeia, uma vez que dão continuidade “às tradições deste povo e às memórias presentes em todos os habitantes da aldeia”, revitalizando-as, concerto após concerto, numa busca de prazer e satisfação que só a música e a dança lhes dá.

15

Bibliografia Actas das Primeiras Jornadas de Língua e Cultura Mirandesa, Miranda do Douro, 1987 – Os Laços na Dança dos Paus: Uma Literatura Popular que Une a Terra de Miranda e a Província de Zamora. Lisboa: Sociedade Gráfica Ocidental, Lda., 1987. Alvarez, Juaco Lopez. – La Fiesta Patronal en Bimeda (Cangas Del Narcea) Danza de Palos y Teatro Popular, Astúrias: Gráficas Apel de Gijon, 1985. Braga, Teófilo – Romanceiro Geral Português, Vol. II, Lisboa: Ed. Facsimil, Vega, 1982. CARO Baroja, J. – El Estio Festivo, Madrid: Taurus , 1984. MOURINHO, António M. – Cancioneiro Tradicional e Danças Populares Mirandesas, Vol. 1, Bragança: Escola Tipográfica de Bragança, 1984. MOURINHO, António M. – Cancioneiro Tradicional Mirandês de Serrano Baptista, Vol. 2, Bragança: Escola Tipográfica de Bragança, Edição da Câmara Municipal de Miranda do Douro, 1987. MOURINHO, António M. – Grupo Folclórico Mirandês de Duas Igrejas (Pauliteiros de Miranda), Braga: Oficinas Gráficas da Livraria Cruz, Edição da Câmara Municipal de Miranda do Douro, 1983.

16

ANEXOS

17

Gaitas em Miranda do Douro A ACREFA (Associação Cultural e Recreativa de Fonte de Aldeia) em conjunto com a Galandum Galundaina Associação Cultural, organizam a 5ª edição do Festival de Cultura Mirandesa Rezosa 2002, que se realiza em Fuônte Aldé (Fonte de Aldeia), concelho de Miranda do Douro, no dia 21 de Dezembro. Este ano tem como pano de fundo a discussão sobre o Impacto Ambiental, o tradicional encontro de Gaiteiros e o lançamento do primeiro disco do Grupo de Música Tradicional Mirandesa Galandum Galundaina. A abertura deste festival tem lugar às 14:00 horas, com uma conferência sobre o Impacto Ambiental em Miranda do Douro. Em seguida, no final da tarde, o encontro de Gaiteiros junta mais uma vez os velhos mestres da gaita e os novos seguidores da tradição como tem sido feito de há cinco anos para cá, altura em que esta organização pela primeira vez fez um encontro desta natureza nas Terras de Miranda. Depois da ceia comunitária, o grupo Galandum Galundaina apresenta ao público um trabalho discográfico gravado há dois anos com a antiga formação que inclui temas tradicionais das Terras de Miranda que habitualmente interpreta nos seus concertos. Para dar relevo à publicação deste trabalho o grupo vai realizar um concerto em palco, onde vai apresentar algumas músicas do CD, acompanhado pelo seu grupo de pauliteiros. Finalmente, um concerto do grupo convidado deste ano, os Convinha Tradicional, do Porto, encerra este festival.

18

Emblema da Associação Cultural e Recreativa de Fonte de Aldeia

19

APÊNDICES

20

Related Documents


More Documents from ""

Iso 10642 (din 7991)
January 2021 1
February 2021 0
March 2021 0