Argumentos Ateológicos

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Argumentos Ateológicos

Este livro é uma compilação de artigos sobre Ateísmo e Filosofia obtidos pela Infidels.org e traduzidas pelo site Rebeldia Metafísica (www.rebeldiametafisica.wordpress.com). Todos os direitos são reservados a seus respectivos autores.

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Sumário 1. O problema lógico do mal (Pág. 04) • Apresentando o problema • Consistência Lógica • Consistência Lógica e o Problema Lógico do Mal • A Defesa do Livre-Arbítrio de Alvin Plantinga • Onipotência Divina e a Defesa do Livre-Arbítrio • Uma objeção: Livre-Arbítrio e o Mal Natural • Avaliando a Defesa do Livre-Arbítrio • Plantinga venceu com muita facilidade? • Outras respostas ao Problema Lógico do Mal • Problemas com a Defesa do Livre-Arbítrio • Referências e Leituras Adicionais 2. A dependência mente-cérebro como um duplo pilar para o ateísmo (Pág. 29) • Introdução • Respaldando a TDC e o ME • O Argumento da Mente Incorpóra (AMI) formulado • O Argumento do Pós-Vida Incorpóreo (API) formulado • Considerações Preliminares sobre o AMI e o API • A primeira premissa do API o 7.1 A premissa (2) do AMI e a premissa (2) do API o 7.2 A Objeção EQM (OQM) Formulada e Refutada o 7.3 A Objeção das EFC (OFC) Formulada e Refutada o 7.4 A Objeção das Aparições (OA) Formulada e Refutada o 7.5 A Objeção das Vidas Passadas (OV) formulada e refutada o 7.61. O ACH formulado o 7.62 A objeção do ACH (OACH) formulada o 7.63 A resposta do ônus da prova o 7.64 A resposta da invalidez o 7.65 As respostas da obscuridade e da inadequação o 7.66 A resposta da explicação ateísta (ou naturalista) o 7.7 A Objeção das Outras Mentes (OOM) Formulada e Refutada • Recapitulação 3. O ocultamento divino e a distribuição demográfica da crença teísta (Pág. 63) • Resumo • O argumento do ocultamento divino • A distribuição demográfica do teísmo • Respostas ao AOD • O Sensus Divinitatis • O ocultamento e o mal 4. Causação e a impossibilidade lógica de uma causa divina (Pág. 81) • Introdução • Definições causais e a Noção de uma causa originária divina o A definição de Hume de Causa o (a) Prioridade temporal

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o (b) Contiguidade espaço-temporal o Vínculo nomológico o A definição singularista de causa de Ducasse o A definição transferencial de causa o Definições contrafactuais de causação • Causas e condições logicamente suficientes o A teoria da causação de Sosa • Descrições analógicas e literais o Uma formulação literal da relação Divina com o Big Bang • Objeções ao argumento de que Deus não pode ser uma causa • Conclusão: Argumentos Cosmológicos e Teleológicos para a inexistência de Deus 5. Um argumento moral para o ateísmo (Pág. 105) 6. A rivalidade entre as religiões (Pág. 125) • Como se deve escolher entre diferentes religiões? • Jogando nos Deuses: A Aposta de Pascal • O Problema da Contrariedade • O Argumento da Contrariedade de David Hume • A Contrariedade Entre As Religiões Contestada • A objeção de John Hick à Contrariedade • A Objeção de John Mackie à Premissa da Contrariedade • A Premissa da Contrariedade Demonstrada • As Evidências Contra Todas e Cada Uma das Religiões: De Volta Ao Balcão de Apostas • A Contrariedade das Alegações Probatórias das Diferentes Religiões • O Problema da “Logicidade Desnorteante” mais uma vez • Diretrizes para uma Aposta Prudente e Sensata • Um Argumento Geral para a Provável Falsidade de Todas as Religiões • Apêndice: Exposição Formal do Argumento 7. Um argumento cosmológico a partir do Big Bang para a inexistência de Deus (Pág. 146) • Introdução • A Teoria Cosmológica Do Big Bang • Exposição Formal do Argumento • A Questão Da Intervenção Divina • A Questão da Realidade Da Singularidade • A Questão da Simplicidade Relativa das Hipóteses Teísta e Ateísta • A Questão Da Necessidade Metafísica De Um Universo A Partir do Big Bang • (Conclusão) A Questão Do Princípio Causal

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01: O Problema lógico do mal Autor: James R. Beebe Buffalo University Tradução: Gilmar Pereira Dos Santos A existência de males e sofrimentos em nosso mundo parece colocar um sério desafio à crença na existência de um Deus perfeito. Se Deus fosse onisciente, temos a impressão de que Deus teria conhecimento de todas as coisas horríveis que acontecem em nosso mundo. Se fosse onipotente, Deus seria capaz de fazer algo a respeito de todo o mal e sofrimento. Adicionalmente, se Deus fosse moralmente perfeito, então certamente Deus desejaria fazer algo a respeito disso. E ainda assim encontramos nosso mundo repleto dos mais variados graus de dores, misérias, desgraças e sofrimentos. Estes fatos a respeito do mal e do sofrimento parecem estar em conflito com a alegação teísta ortodoxa de que existe um Deus perfeitamente bom. O desafio colocado por esta aparente contradição veio a ser conhecido como o problema do mal. Este artigo trata de uma forma do problema que é notória em recentes discussões filosóficas _ que o conflito que existe entre as alegações do teísmo ortodoxo e os fatos sobre o mal e sofrimento em nosso mundo são de um tipo lógico. Este é o “problema lógico do mal”. O artigo esclarece a natureza do problema do mal e considera várias respostas teístas ao problema. Atenção especial é dada para a defesa do livre-arbítrio, que tem sido a mais amplamente discutida resposta teísta ao problema lógico do mal.

1. Apresentando o problema 2. Consistência Lógica 3. Consistência Lógica e o Problema Lógico do Mal 4. Defesa do Livre-Arbítrio de Alvin Plantinga 5. Onipotência Divina e a Defesa do Livre-Arbítrio 6. Uma objeção: Livre-Arbítrio e o Mal Natural 7. Avaliando a Defesa do Livre-Arbítrio 8. Plantinga venceu com muita facilidade? 9. Outras respostas ao Problema Lógico do Mal 10. Problemas com a Defesa do Livre-Arbítrio 11. Referências e Leituras Adicionais

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1. Apresentando o problema O jornalista e autor best-seller Lee Strobel encarregou George Barna, o pesquisador de opinião pública, de conduzir uma pesquisa de ambito nacional. A pesquisa incluiu a pergunta “Se você pudesse fazer uma única pergunta a Deus e soubesse que ele te responderia, o que perguntaria?” A resposta mais comum, oferecida por 17% dos entrevistados que conseguiram formular uma questão, foi “Por que há dor e sofrimento no mundo?” (Strobel 2000, p. 29). Se Deus é onipotente, onisciente e morlmente perfeito, por que ele permite a ocorrência de tantas coisas ruins? Esta pergunta evoca oque os filósofos chamam “o problema do mal”. Uma coisa seria se as únicas pessoas a sofrerem doenças debilitantes ou perdas trágicas fossem tipos como Adolf Hitler, Josef Stalin ou Osama Bin Laden. Mas, ao contrário, milhares de pessoas bondosas e inocentes são assoladas por crimes violentos, doenças terminais e outros tipos de males. Michael Peterson (1998, p.1) escreve: “Algo está desconcertantemente errado com nosso mundo. Um terremoto mata centenas no Peru. Um paciente de cancer pancreático sofre uma dor prolongada e excruciante e morre. Um pit-bull ataca uma criança de dois anos, furiosamente destroça seu corpo e a mata. Incontáveis multidões sofrem as selvagerias da guerra na Somalia. Um líder religioso enlouquecido induz 85 de seus seguidores ao suicídio em Waco, Texas. Milhões definham e morrem de fome na Coreia do Norte. Toda sorte de coisas horríveis acontecem em nosso mundo _ e assim tem sido desde a aurora da civilização.” Peterson (1998) alega que o problema do mal é um tipo de “protesto moral”. Ao perguntar “Como Deus pôde deixar isto acontecer?” as pessoas estão implicitamente afirmando “Não é justo que Deus tenha deixado isso ocorrer.” Vários ateus tentam transformar a existência de mal e sofrimento num argumento contra a existência de Deus. Eles alegam que, desde que haja algo moralmente problemático a respeito de um Deus sumamente benévolo permitindo todo o mal e sofrimento que vemos, não deve haver um Deus moralmente perfeito, afinal. A popularidade deste tipo de argumento levou Hans Küng (1976, p. 432) a chamar o problema do mal de “o alicerce do ateísmo”. Este ensaio examina uma das formas assumidas por este argumento que é conhecida como “o problema lógico do mal.” Na segunda metade do século XX, ateólogos (isto é, pessoas que tentam provar a inexistência de Deus) alegaram com frequencia que o problema do mal é um problema de inconsistência lógica. J. L. Mackie (1955, p 200), por exemplo, declarou

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Pode ser mostrado, não que crenças religiosas carecem de suporte racional, mas que elas são positivamente irracionais; que as várias e distintas partes da doutrina teológica essencial contradizem umas às outras. H. J. McCloskey (1960, p. 97) wrote: O mal é um problema, para o teísta, no qual a contradição envolve, por um lado a existência do mal, por outro, a onipotência e onisciência divinas. Mackie e McCloskey podem ser compreendidos como declarando que é impossível que todas as seguintes afirmações sejam simultaneamente verdadeiras: (1) Deus é onipotente; (2) Deus é onisciente; (3) Deus é perfeitamente bom; (4) O mal existe; Quaisquer duas ou três delas podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, mas não existe maneira pela qual todas sejam verdadeiras. Em outras palavras, (1) até (4) formam um conjunto logicamente inconsistente. O que significa dizer que algo é logicamente inconsistente? (5) Um conjunto de proposíções é logicamente inconsistente se, e somente se: (a) o conjunto inclui uma contradição direta do tipo “p e não-p”; ou (b) uma contradição direta pode ser deduzida do conjunto. Nenhuma das afirmações no conjunto (1) à (4) contradiz diretamente qualquer outra, então se o conjunto é logicamente inconsistente, deve ser porque podemos deduzir uma contradição dele. Isto é precisamente o que os ateólogos alegam ser capazes de fazer. Ateólogos afirmam que uma contradição pode facilmente ser deduzida de (1)-(4) tão logo pensemos nas implicações dos atributos divinos arrolados em (1)-(3). Eles raciocinam da seguinte maneira: (6) Se Deus é onipotente, seria capaz de prevenir todo o mal e sofrimento no mundo. (7) Se Deus é onisciente, conheceria todo o mal e sofrimento no mundo e saberia como elimina-lo e preveni-lo. (8) Se Deus é perfeitamente bom, desejaria prevenir todo o mal e sofrimento no mundo. As declarações (6)-(8), consideradas em conjunto, implicam que se o Deus perfeito do teísmo realmente existisse, não haveria nenhum mal ou sofrimento. Entretanto, como todos

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sabemos, o mundo transborda maldades e sofrimentos. Ateólogos alegam que, se refletirmos sobre (6)-(8) à luz dos fatos sobre o mal e o sofrimento em nosso mundo, deveríamos ser conduzidos às seguintes reflexões: (9) Se Deus sabe sobre todo mal e sofrimento em nosso mundo, sabe como elimina-lo ou preveni-lo, é poderoso o suficiente para preveni-lo, e ainda assim nada faz, ele não deve ser perfeitamente bom; (10) Se Deus sabe sobre todo o mal e sofrimento, sabe como elimina-lo e preveni-lo quer preveni-lo, e ainda assim não o faz, ele não deve ser onipotente; (11) Se Deus é poderoso o suficiente para prevenir todo o mal e sofrimento, deseja fazê-lo, e ainda assim não o faz, ele não deve estar informado sobre todo o mal e sofrimento ou não sabe como preveni-lo ou elimina-lo _ isto é, não deve ser onisciente. De (9)-(11) podemos inferir: (12) Se o mal e o sofrimento existem, então Deus não é ou onipotente, ou onisciente ou perfeitamente bom. Já que o mal e o sofrimento obviamente existem, temos: (13) Deus não é, ou onipotente, ou onisciente ou perfeitamente bom. Falando mais claramente, esta linha de argumento sugere que _ à luz do mal e do sofrimento que encontramos em nosso mundo _ se Deus existe, ele é ou impotente, ou ignorante ou perverso. Deve ser óbvio que (13) contradiz (1)-(3) acima. Para deixar a contradição ainda mais explícita, podemos combinar (1), (2) e (3) numa única sentença: (14) Deus é onipotente, onisciente e perfeitamente bom. Não existe maneira de (13) e (14) serem verdadeiras ao mesmo tempo. Estas afirmações são logicamente inconsistentes ou contraditórias. A declaração (14) é simplesmente a conjunção de (1) a (3) e expressa a crença central do teísmo clássico. De qualquer maneira, ateólogos alegam que a afirmação (14) pode ser derivada de (1)-(3). [As declarações (6)-(12) pretendem mostrar como isto é feito.] (13) e (14), de qualquer maneira, são logicamente contraditórias. Porque uma contradição pode ser deduzida de (1)-(4), os ateólogos afirma que os teístas possuem crenças logicamente inconsistentes.. Eles apontam que os filósofos sempre acreditaram não ser racional acreditar em algo contraditório. Então, a existência do mal e do sofrimento torna irracional a crença teísta num Deus perfeito.

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Pode o crente em Deus escapar deste dilema? Em seu best-seller “Quando coisas ruins acontecem a pessoas boas”, o rabino Harold Kushner (1981) oferece a seguinte rota de fuga para os teístas: negue a verdade de (1). De acordo com esta proposta, Deus não está ignorando seu sofrimento quando não age para preveni-lo porque _ como um Deus onisciente _ ele sabe sobre tudo oque você tem passado. Como um Deus perfeitamente bom, ele também sente a sua dor. O problema é que ele não pode fazer nada a respeito porque ele não é onipotente. De acordo com a descrição de Kushner, Deus é um tipo de velho broxa de coração mole. Ele gostaria de ajudar, mas não tem o poder para fazer nada a respeito do mal e do sofrimento. Negar a verdade de qualquer das sentenças (1)-(4) com certeza é uma maneira de solucionar o problema lógico do mal, mas não é uma opção muito palatável para a maioria dos teístas. No restante do artigo, examinaremos algumas respostas teístas ao problema lógico do mal que não requerem o abandono de qualquer dos pilares do teísmo. 2. Consistência lógica Teístas que desejem replicar ao problema lógico do mal precisam encontrar uma maneira de mostrar que (1)-(4) _ talvez a despeito das primeiras impressões _ são consistentes, afinal. Dizemos anteriormente que um conjunto de declarações é logicamente inconsistente se, e somente se, o conjunto contém uma contradição direta ou se uma contradição direta pode ser deduzida do conjunto. Isto significa que um conjunto de declarações é logicamente consistente se e somente se o conjunto não possui uma contradição direta ou se não for possível deduzir uma contradição direta do conjunto. Em outras palavras: (15) Um conjunto de enunciados é logicamente consistente se e somente se é possível que todos sejam verdadeiros ao mesmo tempo. Observe que (15) não diz que proposições consistentes devem ser realmente verdadeiras ao mesmo tempo. Elas podem ser todas falsas ou algumas podem ser verdadeiras e outras falsas. Consistência somente requer que seja possível que todas as declarações sejam verdadeiras em conjunto (mesmo que tal possibilidade nunca se efetive). (15) também não diz nada sobre a plausibilidade. Não exige que a conjunção dos enunciados de um conjunto seja plausível. Ela pode ser demasiado inverossímil ou improvável, mas improbabilidade não é o mesmo que impossibilidade. Contanto que não haja nenhuma contradição em sua conjunção, será possível (ainda que improvável) que todas sejam simultaneamente verdadeiras. Esta breve discussão permite-nos ver que a alegação ateológica de que as proposições (1)-(4) são logicamente inconsistentes é um tanto quanto forte. O ateólogo sustenta que as proposições (1)-(4) não poderiam possivelmente ser todas verdadeiras ao mesmo tempo. Em outras palavras:

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(16) Não é possível que Deus e o mal coexistam. O problema lógico do mal reivindica que os atributos divinos (onipotencia, onisciencia e bondade suprema) excluiriam completamente a possibilidade do mal e que a existência do mal faz o mesmo com a existência de um ser supremo. 3. Consistência lógica e o problema lógico do mal Como poderia um teísta proceder para demonstrar que (16) é falsa? Alguns teístas sugerem que talvez Deus tenha alguma boa razão para permitir todo o mal e sofrimento que vemos. Mas não estamos falando aqui de qualquer antiga justificação ou explicação. Genocidas e assassinos seriais nomalmente possuem razões que explicam porque eles cometem crimes tão horríveis, mas não são boas razões. É somente quando as pessoas possuem razões moralmente boas que as eximimos ou desculpamos seu comportamento. Filósofos da religião tem chamado este tipo de motivo que poderia justificar moralmente a permissão divina para o mal e o sofrimento de “razão moralmente suficiente.” Considere a seguinte proposição. (17) É possível que Deus possua uma razão moralmente suficiente para permitir o mal. Se Deus possuísse uma razão moralmente suficiente para permitir o mal, seria possível que Deus fosse onipotente, onisciente e perfeitamente bom, e ainda assim que o mal existisse? Vários teístas responderam “Sim!”. Se (17) fosse verdadeira, (9)-(12) teriam que sofrer um acréscimo: (9′) Se Deus sabe sobre todo mal e sofrimento em nosso mundo, sabe como elimina-lo ou preveni-lo, é poderoso o suficiente para preveni-lo, e ainda assim nada faz, ele não deve ser perfeitamente bom _ a não ser que ele possua uma razão moralmente suficiente paa permitir o mal; (10′) Se Deus sabe sobre todo o mal e sofrimento, sabe como elimina-lo e preveni-lo quer preveni-lo, e ainda assim não o faz, ele não deve ser onipotente _ _ a não ser que ele possua uma razão moralmente suficiente para permitir o mal; (11′) Se Deus é poderoso o suficiente para prevenir todo o mal e sofrimento, deseja fazê-lo, e ainda assim não o faz, ele não deve estar ciente de todo o mal e sofrimento ou não sabe como preveni-lo ou elimina-lo _ isto é, não deve ser onisciente _ a não ser que ele possua uma razão moralmente suficiente para permitir o mal; (12′) Se o mal e o sofrimento existem, então (a) Deus não é ou onipotente, ou onisciente ou perfeitamente bom; ou (b) Deus possui uma razão moralmente suficiente para permitir o mal.

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Considerando-se (9′)-(12′), não é possível concluir que Deus não existe. No máximo pode-se concluir que ou Deus não existe ou Deus possui uma razão moralmente suficiente para permitir o mal. Então, alguns teístas sugeriram que a verdadeira questão por trás do problema lógico do mal é se (17) é verdade. Se é possível que Deus possua uma razão moralmente suficiente para permitir a ocorrência de males e sofrimento, então o problema lógico do mal falha em provar a inexistência de Deus. Se, de qualquer maneira, não é possível que Deus possua uma razão moralmente suficiente para permitir o mal, então, aparentemente (13) seria verdadeira: Deus não é, Ou onipotente, ou onisciente ou perfeitamente bom. Uma suposição implícita por trás desta parte do debate sobre o problema lógico do mal é a seguinte: (18) Não é moralmente permissível a Deus permitir que males e sofrimentos ocorram a não ser que ele possua uma razão moralmente suficiente para assim proceder. (18) está correta? Vários filósofos pensam que sim. É difícil ver como um Deus que permitiu a ocorrência de coisas ruins sem qualquer motivo ou propósito em particular seria merecedor de reverência, fé ou adoração. Se Deus não possui nenhuma razão moralmente suficiente para permitir o mal, então se algum dia nos encontrássemos diante dos portões perolados e perguntássemos a Deus porque ele permitiu que tantas coisas ruins acontecessem, ele simplesmente sacudiria os ombros e diria: “Não houve nenhuma razão ou objetivo para todo o sofrimento que vocês suportaram, eu apenas deixei acontecer.” Esta imagem de um Deus insensível é difícil de reconciliar com a descrição teísta ortodoxa de Deus como um pai amoroso que se importa profundamente com sua criação. (18), combinada com a suposição de que Deus não possui razões moralmente suficientes para permitir o mal e o sofrimento, produz (19) Deus está fazendo algo moralmente inapropriado ou censurável ao permitir que o mal exista; e (20) Se Deus está fazendo algo moralmente inapropriado ou censurável, então Deus não é perfeitamente bom. Se (19) e (20) são verdadeiras, então o Deus do teísmo ortodoxo não existe. Com o que algo deveria se parecer se fosse uma razão moralmente suficiente para Deus permitir a existência do mal? Consideremos primeiro um exemplo prático e realista de uma razão moralmente suficiente para um ser humano antes de lidarmos com o caso divino.

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Suponha que uma vizinha fofoqueira te dissesse que a sra. Maria permitiu que alguém inflingisse dor desnecessária a seu filho. Sua primeira reação a isto deveria ser de horror. Mas tão logo você soubesse que a dor foi causada por uma injeção que imunizou o filho da sra. Maria contra a paralisia infantil, você não mais a veria como um perigo para a sociedade. Geralmente, acreditamos que seja verdadeiro o seguinte princípio moral: (21) Pais não devem inflingir dor desnecessária a seus rebentos. No caso da vacinação, a sra. Maria possui uma razão moralmente suficiente que sobrepuja ou supera este princípio. Uma obrigação moral mais elevada _ a saber, o dever de proteger a saúde de seus filhos a longo prazo _ ultrapassa a obrigação menor expressa em (21). Se Deus possui uma razão moralmente suficiente para permitir o mal e o sofrimento, os teístas alegam, ela provavelmente será algo do tipo. 4. Alvin Plantinga e a Defesa do Livre-arbítrio Qual poderia ser a razão pela qual Deus permite que o mal e o sofrimento ocorram? Alvin Plantinga (1974, 1977) ofereceu a resposta filosófica contemporânea mais notória a esta questão. Ele sugere o seguinte como uma possível razão moralmente suficiente: (MSR1) A criação, por Deus, de pessoas dotadas de livre-arbítrio moralmente significativo é algo de tremendo valor. Deus não poderia eliminar a maior parte do mal e do sofrimento neste mundo sem que com isso seja eliminado também a incomensuravelmente grandiosa realização de pessoas dotadas de livre-arbítrio com as quais ele pode se relacionar e que são capazes de se amarem e realizar boas ações. (MSR1) alega que Deus permite que alguns males ocorram que são inferiores em valor aos grandiosos benefícios aos quais estão intimamente conectados. Se o mal fosse eliminado por Deus, também o seria o bem superlativo. Deus é descrito numa situação similar à da sra. Maria: ela permite que um mal irrisório (a dor de uma agulhada) seja infligido a seu filho porque tal dor é necessária para produzir um benefício valiosíssimo (imunização contra a poliomielite). Antes que tentemos decidir se (MSR1) pode justificar Deus ao permitir a ocorrencia de males e sofrimentos, algumas palavras-chave precisam ser explicadas. Para

começar,

(MSR1)

pressupõe

a

concepção

de

livre-arbítrio

conhecida

como

“libertarianismo”: (22) Libertarianismo: (def.) a idéia de que uma pessoa é livre em relação a uma determinada ação se e somente se ela é livre para realiza-la tanto quanto é livre para abster-se dela; em outras palavras, tal pessoa não é determinada a agir ou abster-se por quaisquer forças causais superiores.

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Conquanto o termo libertarianismo não seja de uso comum, o conceito que ele expressa coincide com a compreensão de livre-arbítrio do leigo mediano. É a idéia de que

o

determinismo causal é falso _ que, ao contrário dos robôs ou outras máquinas, podemos fazer escolhas de forma genuinamente livre. De acordo com Plantinga, o livre-arbítrio libertário é um tipo de livre-arbítrio moralmente significativo. Uma ação é moralmente significativa somente quando é adequado avalia-la ou julga-la de um ponto de vista moral (por exemplo, imputando-lhe elogios ou censuras morais). As pessoas possuem livre-arbítrio moralmente significativo se são capazes de realizar atos moralmente significativos. Imagine um mundo possível no qual Deus criasse seres com um tipo muito limitado de liberdade. Suponha que as pessoas em tal mundo possam somente escolher as boas opções e sejam incapazes de optar pelas ruins. Então, se alguém se deparar com três possíveis cursos de ação _ dois dos quais são moralmente bons e o outro moralmente ruim _ esta pessoa não teria liberdade em relação à opção moralmente ruim. Isto é, tal pessoa não seria capaz de tomar o curso ruim nem mesmo se o desejasse. De qualquer maneira, nosso indivíduo hipotético teria completa e irrestrita liberdade para decidir entre os dois cursos de ação bons. Plantinga negaria que qualquer pessoa em tal condição teria livre-arbítrio moralmente significativo. As pessoas em tal mundo sempre levam a cabo boas ações, mas não merecem crédito algum por fazê-lo. É-lhes impossível proceder mal. Então, quando elas executam ações corretas, elas não devem ser elogiadas. Seria ridículo elogiar um robô por decartar uma latinha de alumínio no recipiente para reciclagem em vez do lixo comum, se é o que ele está programado para fazer. Dado o programa em execução nos circuitos do robô e sua presença diante de uma lata de alumínio vazia, ele irá recolhê-la e dispensa-la no depósito para reciclagem. Não há o que escolher. De maneira similar, as pessoas no mundo hipotético que estamos considerando não tem escolha entre serem ou não serem bons. Como são préprogramadas a ser boas, não merecem nenhum louvor por isso. Segundo Plantinga, as pessoas no mundo real são livres no sentido pleno e robusto da palavra. São inteiramente livres e responsáveis por suas ações e decisões. Portanto, quando fazem o que é certo, merecem ser elogiadas e admiradas. Ainda mais, quando agem mal, elas podem ser justamente repreendidas ou punidas por suas ações. É importante notar que (MSR1) está em conflito direto com uma suposição comum sobre que tipo de mundo Deus poderia ter criado. Vários ateólogos acreditam que Deus poderia ter criado um mundo habitado com criaturas livres e ainda assim isento de males e sofrimentos. Desde que tal mundo é algo que Deus poderia ter feito, e desde que um mundo com criaturas livres e nenhum mal é melhor que um mundo com criaturas livres e sofrimentos, este é mundo que

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Deus deveria ter criado. E, já que não o fez, Deus realizou algo censurável por não impedir ou eliminar o mal e o sofrimento _ obviamente, SE Deus existir. Em resposta a esta acusação, Plantinga sustenta que certos mundos Deus não pode criar. Em particular, Deus não é capaz de fazer o que é logicamente impossível. (MSR1) afirma que Deus não é capaz de desembaraçar-se da maior parte do mal e do sofrimento sem violar a significância moral do livre-arbítrio. (A questão da compatibilidade da onipotência divina com a incapacidade de fazer o que é logicamente impossível será tratada mais tarde.) Considere as seguintes descrições de diversos mundos. Precisamos identificar quais descrevem mundos possíveis e quais descrevem mundos impossíveis. Os mundos descritos serão considerados possíveis se suas descrições são logicamente consistentes. Se as descrições contiverem qualquer inconsistência ou contradição, o mundo em questão será impossível. W1: (a) Deus cria pessoas com livre-arbítrio moralmente significativo; (b) Deus não determina causalmente as pessoas em todas as situações a escolher o que é certo e a evitar o que é errado; e (c) Existe maldade e sofrimento em W1. W2: (a) Deus não cria pessoas com livre-arbítrio moralmente significativo; (b) Deus determina causalmente as pessoas em todas as situações a escolher o que é certo e a evitar o que é errado; e (c) Não existe maldade e sofrimento em W2. W3: (a) Deus cria pessoas com livre-arbítrio moralmente significativo; (b) Deus determina causalmente as pessoas em todas as situações a escolher o que é certo e a evitar o que é errado; e (c) Não existe maldade e sofrimento em W3. W4: (a) Deus cria pessoas com livre-arbítrio moralmente significativo; (b) Deus não determina causalmente as pessoas em todas as situações a escolher o que é certo e a evitar o que é errado; e (c) Não existe maldade e sofrimento em W4. Examinemos quais destes mundo são possíveis. W1 é possível? Sim. Na verdade, pressupondo-se a existência de Deus, esta parece ser a descrição de nosso mundo. As pessoas possuem livre-arbítrio neste mundo e há mal e sofrimento. Deus obviamente não controla as pessoas em cada situação de forma a fazê-las escolher o que é certo e a evitar o que é errado pois, se assim fosse, não haveria mal e sofrimento. Então, W1 é claramente possível. E sobre W2? Desde que aceitemos como verdadeira a suposição de Plantinga que os seres humanos são criaturas verdadeiramente livres, a primeira coisa a notar sobre W2 é que você

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e eu não existiríamos em um mundo assim. Somos criaturas com livre-arbítrio moralmente significativo. Se você tirou nosso livre arbítrio, já não seríamos o tipo de criaturas que somos. Não seríamos humanos nesse mundo. Voltando à questão principal, não parece haver nada de impossível na idéia de Deus determinando causalmente as pessoas em cada situação a escolher o que é certo e evitar o que é errado. Também parece inegável que, não importa que seres Deus criasse em tal mundo, nenhuma delas seria significativamente livre e que não haveria nenhum mal ou sofrimento. W2, então, também é possível. Agora vamos considerar W3, o mundo filosoficamente mais importante. W3 é possível? Plantinga diz: “Não.” As partes (a) e (b) da descrição da W3 são, segundo ele, logicamente inconsistentes. Em W3 Deus determina causalmente as pessoas em cada situação a escolher o que é certo e evitar o que é errado. As pessoas deste mundo não poderiam fazer coisas moralmente ruins, mesmo que desejassem. Mesmo que continue sendo parte do que significa para as criaturas ter livre-arbítrio moralmente significativo é possuir a capacidade para fazer coisas moralmente ruins sempre que desejarem. Pense em como seria viver em W3. Se quisesse dizer uma mentira, você não seria capaz de fazê-lo. Forças causais além de seu controle o fariam dizer a verdade em todas as ocasiões. Você também seria fisicamente incapaz de roubar pertences de seu vizinho. De fato, desde que W3 é um mundo sem o mal de qualquer espécie e, desde que apenas querendo mentir ou roubar é em si uma coisa ruim, as pessoas em W3 não seriam mesmo capazes de ter pensamentos ou desejos moralmente ruins. Se Deus vai determinar causalmente as pessoas em cada situação a escolher o que é certo e evitar o que é errado em W3, não há maneira pela qual conceder-lhes liberdade num sentido moralmente significativo. Peterson (1998, p. 39) escreve: se uma pessoa é livre no que diz respeito a uma ação A, então Deus não pode induzir ou determinar que seja o caso que tal pessoa faça A ou se abstenha de A. Pois se Deus induz ou determina a linha de conduta em relação a A, qualquer que seja o curso tomado, quer a pessoa faça ou não faça A, então a pessoa não é realmente livre. Deus não pode ter as duas coisas. Ele pode criar um mundo de criaturas livres ou ele pode determinar causalmente as criaturas a escolher o que é certo e evitar o que é errado sempre, mas não pode fazer ambos. Deus pode eliminar à força o mal e o sofrimento (como em W2) somente ao custo de eliminar também o livre-arbítrio. A impossibilidade de W3 desempenha um papel nuclear na defesa do livre-arbítrio feita por Plantinga. Alguns ateólogos, como vimos acima, afirmam que Deus está fazendo algo moralmente condenável, permitindo que o mal e o sofrimento existam em nosso mundo. Eles afirmam que um Deus bom poderia e deveria eliminar todos os males e sofrimentos. O

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pressuposto por trás dessa acusação é que, ao fazê-lo, Deus poderia deixar o livre arbítrio humano intacto. Plantinga afirma que quando pensamos integralmente no que o significado robusto de livre-arbítrio realmente engloba, vemos que os ateólogos estão (ainda que inconscientemente) exigindo que Deus faça algo logicamnte impossível. Afligir-se e frustrarse por Deus não ter feito algo logicamente impossível é, segundo Plantinga, equivocar-se. Ele diria: “É claro que ele não o fez! É logicamente impossível!” Como veremos na próxima seção, Plantinga sustenta que a onipotência divina envolve a capacidade de fazer qualquer coisa logicamente possível, mas não inclui a habilidade de fazer o logicamente impossível. Consideremos W4: é um mundo possível? Sim! A maioria das pessoas sente-se inclinada a responder “Não!” quando são apresentadas à esta descrição, mas analise-a com cuidado. Ainda que não haja mal e sofrimento neste mundo, tal fato não se deve à uma contínua e ubíqua intervenção divina nas escolhas humanas. Em tal mundo Deus concedeu à suas criaturas livrearbítrio moralmente significativo e irrestrito. Se não há nada ruim neste mundo, tal deve-se ao fato de que as criaturas livres que habitam este mundo sempre escolhem fazer a coisa certa, por sua livre e espontânea vontade. Este tipo de situação é realmente possível? Sim. Algo é logicamente possível quando pode ser concebido sem contradição. Não nada contraditório em supor que há um mundo possível cujas criaturas livres sempre fazem as escolhas corretas e nunca se comportam mal. Claro, é um mundo altamente improvável, dado tudo o que sabemos sobre a natureza humana. Mas improbabilidade e impossibilidade, como foi dito anteriormente, são coisas distintas. De fato, segundo o mito judaico-cristão de Adão e Eva, era a vontade de Deus que seres humanos significativamente livres vivessem no Jardim do Éden e sempre obedecessem suas ordens. Se Adão e Eva tivessem seguido o plano divino, W4 poderia ter sido o mundo em que viveríamos. É importante observar certas similaridades entre W1 e W4. Ambos os mundos são habitados por criaturas dotadas de lirev-arbítrio e em nenhum deles Deus intervém nas escolhas moralmente significativas. A única diferença é que, em W1, as criaturas escolhem fazer o mal ao menos em algumas ocasiões, e em W4, as criaturas livres sempre decidem moralmente bem. Em outras palavras, a existência de imoralidades em qualquer destes dois mundos depende somente dos habitantes _ não de Deus. Segundo a defesa do livre-arbítrio de Plantinga, existe mal e sofrimento em nosso mundo porque as pessoas fazem coisas imorais. As pessoas merecem a culpa pelas coisas ruins que acontecem _ não Deus. Plantinga (1974, p. 190) escreve: O essencial da defesa do livre-arbítrio é que a criação de um mundo contendo a bondade moral é um empreendimento cooperativo; requer a cooperação livre, sem coação, de criaturas

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significativamente livres. Mas então a efetivação de um mundo W contendo o bem moral não depende exclusivamente de Deus; também depende do que as criaturas significativamente livres de W fariam. Filósofos ateus como Anthony Flew e J. L. Mackie argumentaram que um Deus onipotente deveria ser capaz de criar um mundo contendo o bem moral e nenhum mal moral. Como Flew (1955, p. 149) colocou, “se não há nenhuma contradição aqui então a Onipotência poderia ter feito um mundo habitado por pessoas perfeitamente virtuosas.” Mackie (1955, p. 209) escreve: se Deus fez os homens de tal modo que, nas suas escolhas livres, eles por vezes preferem o que é bom e por vezes preferem o que é mau, por que não poderia ele ter feito os homens de tal modo que eles escolhessem sempre livremente o bem? Se não há nenhuma impossibilidade lógica no fato de um homem escolher livremente o bem numa ou em várias ocasiões, não pode haver uma impossibilidade lógica em ele escolher livremente o bem em todas as ocasiões. Deus não esteve, portanto, perante a escolha entre fazer autómatos inocentes e fazer seres que, ao agir livremente, escolheriam o mal por vezes: esteve aberta para ele a possibilidade obviamente melhor de fazer seres que agiriam sempre livremente mas seguiriam sempre o bem. Claramente, a falha dele em beneficiar-se a si mesmo com esta possibilidade é inconsistente com ele ser onipotente e sumamente bom. De acordo com Plantinga, Mackie está correto em pensar que não há nada impossível em um mundo no qual as pessoas sempre escolhem livremente agir corretamente. Este é o mundo descrito em W4. Ele também está correto ao dizer que as opções de Deus não eram somente “fazer autómatos inocentes e fazer seres que, ao agir livremente, escolheriam o mal por vezes.” Em outras palavras, mundos como W1 e W2 não são os únicos logicamente possíveis. Mas Platinga acredita haver um erro em pensar que W3 é possível e em deixar de reconhecer importantes diferenças entre W3 e W4. As pessoas podem escolher livremente fazer o que é certo somente quando suas ações não são causalmente determinadas. Podemos indagar por que Deus escolheria correr o risco populando sua nova criação com criaturas livres se ele sabia que havia uma chance de que a imoralidade humana poderia corromper, emporcalhar, emperrar e arruinar a coisa toda. C.S. Lewis (1943, p. 52) oferece a seguinte resposta a esta questão: Por que, então, Deus lhes deu livre-arbítrio? Porque o livre-arbítrio, ainda que torne o mal possível, é também a única coisa que faz possível qualquer amor ou bondade ou alegria que valham a pena. Um mundo de autômatos _ de criaturas que funcionam como máquinas _ dificilmente mereceria ser criado. A alegria que Deus planejou para suas criaturas mais

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elevadas é a alegria de exitir livremente, voluntariamente unidas a Ele e umas às outras… E para isto elas devem ser livres. Claro, Deus saberia o que aconteceria se elas usassem sua liberdade de maneira errada: aparentemente ele achou que valia a pena correr o risco. Plantinga concorda. Ele escreve: Um mundo habitado por criaturas que são ocasionalmente livres (e livremente realizam mais boas que más ações) é mais valioso, tudo o mais sendo igual, que um mundo habitado por criaturas sem nenhuma liberdade. Agora Deus pode criar seres livres, mas não pode induzir ou determina-los a fazer somente o que é correto. Pois se o fizesse, elas não seriam significativamente livres afinal; eles não agiriam livremente da maneira correta. Para criar criaturas capazes de bondade moral, então, ele deve criar criaturas capazes de maldade moral; e ele não pode deixar estas criaturas livres para fazer o mal e ao mesmo tempo impedi-las de fazê-lo… O fato de que estas criaturas as vezes procedem mal, de qualquer maneira, não depõe nem contra a bondade nem contra a onipotência divina; pois ele poderia impedir a ocorrência do mal moral somente extirpando a possibilidade da bondade moral. (Plantinga 1974, pp. 166-167) De acordo com sua Defesa do Livre-arbítrio, Deus não poderia eliminar a possibilidade do mal moral sem ao mesmo tempo eliminar vantagens e benefícios inestimáveis. 5. Onipotência divina e a Defesa do Livre-Arbítrio Alguns estudiosos afirmam que Plantinga rejeitou a ideia de um Deus onipotente, porque ele alega que existem algumas coisas que Deus não pode fazer _ isto é, coisas logicamente impossíveis. Plantinga, no entanto, não inclui na onipotência de Deus o poder de fazer o logicamente impossível. Ele raciocina da seguinte maneira. Deus pode criar um quadrado redondo? Será que ele pode fazer 2 + 2 = 5? Ele pode criar um bastão que não é tão longo como si mesmo? Será que ele pode fazer declarações contraditórias simultaneamete verdadeiras? Será que ele pode fazer uma rocha tão grande que ele não pode levantá-la? Em resposta a cada uma dessas perguntas, a resposta de Plantinga é “Não.” Cada um dos cenários descritos nestas questões é impossível: os objetos ou eventos em questão não poderiam existir. Onipotência, segundo Plantinga, é o poder de fazer qualquer coisa logicamente possível. O fato de que Deus não possa fazer o logicamente impossível não é, Plantinga afirma, uma limitação real do poder de Deus. Ele exortaria aqueles desconfortáveis com a idéia de limitações do poder de Deus a pensar cuidadosamente sobre as implicações absurdas de um Deus que pode fazer o logicamente impossível. Se você acha que Deus realmente pode fazer um quadrado redondo, Plantinga gostaria de saber a que se assemelharia tal figura. Se Deus pode fazer 2 + 2 = 5, então 2 + 3 seriam iguais a que? Se Deus pode fazer uma rocha tão

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grande que ele não pode levantá-la, exatamente o quão grande e pesada seria tal rocha? O que Plantinga realmente gostaria de ver é um bastão que não é tão longo quanto si mesmo. Cada uma dessas coisas parece ser absolutamente, positivamente impossível. Vários teístas sustentam que é um erro pensar que a onipotência divina exige que o espaço em branco na seguinte sentença jamais deve ser preenchido: (23) Deus não é capaz de __________________. De acordo com o teísmo ortodoxo, todas as seguintes proposições (e várias outras similares) são verdadeiras. (24) Deus não é capaz de mentir. (25) Deus não é capaz de trapacear. (26) Deus não é capaz de roubar. (27) Deus não é capaz de ser injusto. (28) Deus não é capaz de ser invejoso. (29) Deus não é capaz de não saber o que é certo. (30) Deus não é capaz de deixar de fazer o que ele sabe ser o certo. (31) Deus não é capaz de ter crenças falsas sobre qualquer coisa. (32) Deus não é capaz de ser ignorante. (33) Deus não é capaz de ser imprudente. (34) Deus não é capaz de deixar de existir. (35) Deus não é capaz de cometer um erro de qualquer tipo. Segundo o teísmo clássico, o fato de que Deus não é capaz de fazer qualquer destas coisas não é indicativo de fragilidade. Ao contrário, os teístas alegam, isto é um sinal de sua supremacia e unicidade. Estes fatos revelam que Deus é, nas palavras de Sto. Anselmo (10331109 A.D.), “o ser maior do que o qual nenhum pode ser concebido.” Plantinga acrescenta os dois items seguintes à lista de coisas que Deus não é capaz de fazer. (36) Deus

não

é

capaz

de

se

contradizer.

(37) Deus não é capaz de criar criaturas significativamente livres e determinar causalmente que elas sempre escolham o que é certo e evitem o que é errado. Tais incapacidades são consequência não somente de sua onipotência, mas de seu poder combinado com sua onisciência, perfeição moral e outras perfeições divinas que Deus possui. 6. Uma objeção: livre-arbítrio e mal natural

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A esta altura, alguém pode levantar a seguinte objeção: Plantinga não pode colocar toda a culpa pela dor e sofrimento existentes nos seres humanos. Ainda que uma parte considerável do mal neste mundo resulte das escolhas livres das pessoas, boa parte não. Cancer, AIDS, miséria, terremotos, tornados, e vários outros tipos de desastres naturais são coisas que acontecem sem que ninguém escolha invoca-los. A Defesa dp Livre-Arbítrio de Plantinga, portanto, não serve como uma razão moralmente suficiente para que Deus permita doenças e catástrofes naturais. Esta objeção leva-nos a formular uma distinção entre os seguintes dois tipos de males e sofrimentos: (38) Mal moral: (def.) mal ou sofrimento resultante de escolhas imorais das criaturas. (39) Mal natural: (def.)mal ou sofrimento resultante do livre curso das forças naturais ou efeito colateral da ação destas forças. Segundo Edward Madden e Peter Hare (1968, p. 6), o mal natural inclui a terrível dor, o sofrimento e as mortes prematuras causadas por eventos como incêndios, enchentes, deslizamentos de terra, furacões, terremotos, tsunamis e estiagens prolongadas, bem como por doenças como cancer, lepra e tétano, bem como defeitos congênitos e deformidades como cegueira, surdez, mudez, membros atrofiados, e demência, loucura e outros distúrbios psiquiátricos ou neurológicos devido aos quais inúmeros seres vulneráveis são privados da possibilidade de uma existência plena. O mal moral, eles continuam, abraange tanto os delitos morais como a mentira, a trapaça, o roubo, a tortura e o assassinato, como defeitos de caráter como a ganância, o fingimento, a crueldade, a devassidão, a covardia e o egoísmo. (ibid.) Ao que parece, mesmo que a Defesa do Livre-Arbítrio de Plantinga seja capaz de explicar porque Deus permite a ocorrência do mal moral, não explica porque permite o mal natural. Se Deus está permitindo que as pessoas sejam livres, parece plausível afirmar que é necessário que elas sejam capazes de cometer crimes e serem imorais. De qualquer maneira, não fica claro que a liberdade humana requer a existência de males naturais como vírus letais ou desastres naturais. Como a liberdade de minha vontade estaria comprometida se amanhã Deus eliminasse completamente o cancer da face do planeta? As pessoas realmente precisam morrer de ataques cardíacos e enchentes repentinas a fim de que tenhamos livre-arbítrio moralmente significativo? É difícil dizer que sim. Então, a objeção mostra que, mesmo que a

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Defesa do Livre-Arbítrio explique porque Deus permite o mal moral, ela não explica e não justifica o mal natural. Plantinga, não obstante, pensa que sua Defesa do Livre-Arbítrio pode ser utilizada para resolver o problema lógico do mal no que se refere ao mal natural. Eis uma possível razão que Deus pode ter para permitir a ocorrência do mal natural: (MSR2) Deus consentiu que o mal natural fosse introduzido no mundo como parte da punição de Adão e Eva por seu pecado no Jardim do Éden. (Aqueles familizarizados com a obra de Plantinga perceberão que esta não é a mesma razão que Plantinga oferece para o consentimento divino para o mal natural. Eles também serão capazes de descobrir porque uma razão diferente foi escolhida para este artigo.) O pecado de Adão e Eva foi um mal moral. (MSR2) alega que todo o mal natural sucedeu como resultado do primeiro mal moral do mundo. Então, se é plausível pensar que a Defesa do Livre-Arbítrio de Plantinga resolve o problema lógico do mal no que se refere ao mal moral, a sugestão atual é que também é plausível pensar que ela também resolve o problema lógico do mal no que concerne ao mal natural porque todos os males do mundo possuem sua origem no mal moral. (MSR2) expressa uma resposta comum ao Judaísmo e ao Cristianismo ao desafio colocado pela existência do mal natural. Morte, doenças, dor e até mesmo o trabalho extenuante envolvido na produção de alimentos vieram ao mundo como resultado direto do pecado de Adão e Eva. A dor emocional da separação, vergonha e relacionamentos rompidos também são consequências do mal de primeira instância (mal moral). De fato, de acordo com o primeiro capítulo do Gênesis, os animais do Jardim do Éden não matavam uns aos outros para obter alimento antes da Queda. Na descrição do sexto dia da criação Deus diz a Adão e Eva, “Eis que vos tenho dado toda a erva que dê semente, que está sobre a face de toda a terra; e toda a árvore, em que há fruto que dê semente, ser-vos-á para mantimento. E a todo o animal da terra, e a toda a ave dos céus, e a todo o réptil da terra, em que há alma vivente, toda a erva verde será para mantimento.” (Gen. 1:29-30) Em outras palavras, o Jardim do Éden é descrito como uma comunidade pacífica e vegetariana até que o mal moral aflorasse e trouxesse consigo o mal natural. Parece, então, que a Defesa do Livre-Arbítrio pode ser adaptada para refutar o problema lógico do mal, afinal. Alguns podem pensar que (MSR2) é simplesmente demasiado fantasiosa para ser levada a sério. [Se você pensa que (MSR2) é muito fantasiosa, veja a sugestão do próprio Plantinga (1974, pp. 191-193) sobre QUEM é responsável pelo mal natural.] Desastres naturais, alguns dirão, não exibem nenhuma conexão com a má conduta humana, então é absurdo pensar que

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o mal moral poderia de alguma maneira trazer o mal natural ao mundo. Ademais, (MSR2) teria que nos fazer crer que existiram pessoas reais chamadas Adão e Eva e que eles de fato cometeram o delito que lhes foi atribuído nos primeiros capítulos do livro do Gênesis. (MSR2) parece implorar-nos que acredite em coisas que somente um certo tipo de teístas acreditaria. A implausibilidade de (MSR2) é considerada por alguns um grave defeito. 7. Avaliando a Defesa do Livre-Arbítrio Que pode ser feito da Defesa do Livre-Arbítrio de Plantinga? Ela é bem-sucedida em resolver o problema lógico do mal no que concerne tanto ao mal moral quanto ao mal natural? A fim de responder tais questões, consideremos brevemente o que seria necessário para que uma resposta ao problema lógico do mal seja bem sucedida. Relembre que o problema lógico do mal pode ser resumido na seguinte asserção: (16) Não é possível que Deus e o mal coexistam. Quando alguém afirma que (40) A situação x é impossível o que seria o mínimo a ser provado a fim de mostrar que (40) é falsa? Se puder ser evidenciada alguma instância, algum exemplo real e concreto do tipo de situação em questão, então tal exemplo certamente provaria que (40) é falsa. Mas não precisa se atormentar procurando um x real. Tudo o que é preciso é um x possível. A afirmação (41) A situação x é possível. é a contraditória de 40. As duas são logicamente opostas. Se uma é verdadeira, a outra é falsa; se uma é falsa, a outra é verdadeira. Se for demonstrado que (41) é meramente possível, (40) estará refutada. Como se deveria proceder para encontrar um x logicamente possível? Os filósofos afirmam que basta usar a imaginação. Se um estado de coisas puder ser concebido sem que haja qualquer coisa contraditória no que está sendo imaginado, então o estado de coisas deve ser possível. Em uma palavra, conceptibilidade é o guia para a possibilidade. Uma vez que o problema lógico do mal afirma que é logicamente impossível para Deus e o mal coexistirem, tudo o que Plantinga (ou qualquer outro teísta) precisa fazer para refutar esta alegação é descrever uma possível situação em que Deus e o mal coexistam. Essa situação não precisa ser real ou mesmo realista. Plantinga não precisa de um mísero fragmento de evidência apoiando a veracidade de sua sugestão. Tudo que ele precisa fazer é dar uma

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descrição lógica e consistente de uma maneira que Deus e o mal possam coexistir. Plantinga afirma que Deus e o mal poderiam co-existir se Deus tivesse uma razão moralmente suficiente para permitir o mal. Ele sugere que a razão moralmente suficiente de Deus pode ter algo a ver com os seres humanos sendo beneficiados com livre-arbítrio moralmente significativo e com as inestimáveis vantagens que tal liberdade torna possível. Tudo o que Plantinga necessita reivindicar a favor de (MSR1) e (MSR2) é que elas são logicamente possíveis (isto é, não contraditórias). A Defesa do Livre-Arbítrio de Plantinga obtêm êxito na descrição de um possível estado de coisas no qual Deus tem uma razão moralmente suficiente para permitir o mal? Certamente que sim. Na verdade, parece que mesmo o ateu mais inflexível deve admitir que (MSR1) e (MSR2) são as possíveis razões que Deus poderia ter para permitir o mal moral e natural. Elas podem não corresponder às verdadeiras razões de Deus, mas para o propósito de bloquear o problema lógico do mal, não é necessário que Plantinga descubra os motivos reais de Deus. Na última seção, observamos que muitas pessoas vão achar (MSR2) extremamente difícil de acreditar, porque pressupõe a existência literal de Adão e Eva e a ocorrência literal da Queda. No entanto, uma vez que (MSR2) lida com o problema lógico do mal no que se refere ao mal natural (que afirma que é logicamente impossível que Deus e o mal natural para coexistam), ele só precisa traçar um caminho possível para Deus e o mal natural coexistirem. O fato de que (MSR2) seja implausível não impede que seja possível. Dado que a situação descrita por (MSR2) é claramente possível, parece que ele refuta com sucesso o problema lógico do mal no que se refere ao mal natural. Desde que (MSR1) e (MSR2), combinadas, parecem mostrar que, ao contrário do que afirma o problema lógico mal, é possível que Deus e o mal moral e natural coexistam, parece que a Defesa do Livre-Arbítrio anula o problema lógico do mal. 8. Plantinga venceu com muita facilidade? Alguns filósofos consideram que a aparente vitória de Plantinga sobre o problema lógico do mal foi, de alguma maneira, muito fácil. Sua solução para o problema lógico do mal deixou-os insatisfeitos e desconfiados de terem sido iludidos por algum tipo de prestidigitação filosófica. Por exemplo, J.L. Mackie, um dos mais proeminentes filósofos ateístas da metade do século XX e um expoente-chave do problema lógico do mal, disse a respeito da solução de Plantinga: Desde que esta defesa é formalmente (isto é, logicamente) possível, e seu princípio não envolve nenhum abandono real de nossa visão ordinária da oposição entre bem e mal, podemos admitir que o problema do mal não demonstra, afinal, que as doutrinas centrais do

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teísmo são logicamente inconsistentes umas com as outras. Mas se isto oferece uma solução real ao problema é outra questão. (Mackie 1982, p.154) Mackie admite que a defesa de Plantinga mostra como Deus e o mal podem coexistir, isto é, mostra que as “doutrinas centrais do teísmo” são, afinal, logicamente consistentes. De qualquer maneira, Mackie é relutante em atribuir muita importância à proeza de Plantinga. Ele expressa dúvidas sobre se Plantinga lidou adequadamente com o problema do mal. Parte da insatisfação de Mackie provavelmente tem origem no fato de Plantinga somente dar uma possível razão que Deus pode ter para permitir o mal e o sofrimento e não fornecer qualquer evidência para suas alegações ou tentar, de alguma maneira, fazê-las verossímeis. Mesmo que esboçar meras possibilidades sem prover-lhes qualquer suporte comprobatório seja algo tipicamente insatisfatório a se fazer em filosofia, não está claro que o desgosto de Mackie com Plantinga esteja totalmente justificado. Foi, apesar de tudo, o próprio Mackie quem caracterizou o problema do mal como um problema de inconsistência lógica: Aqui pode ser demonstrado, não que as crenças religiosas carecem de suporte racional, mas que elas são positivamente irracionais, que vários componentes da doutrina teológica essencial são inconsistentes umas com as outras. (Mackie 1955, p. 200) Em resposta a esta formulação do problema do mal, Plantinga mostrou que a acusação de inconsistência era equivocada. Mesmo Mackie reconhece que Plantinga resolveu o problema do mal, se o problema é entendido como um problema de inconsistência. É, portanto, difícil ver por que a Defesa de Plantinga deveria ser considerada insuficiente se essa defesa é vista como uma resposta ao problema lógico do mal. Como uma tentativa de refutar o problema lógico do mal, é notavelmente bem-sucedida. A insatisfação que vários sentiram com a solução de Plantinga pode ser produto de um desejo de ver a Defesa do Livre-Arbítrio responder de uma forma mais abraangente ao problema do mal e não somente a uma única formulação do problema. Como uma resposta completa ao problema do mal, a DLA não nos oferece muito em termos explicativos. Algumas das mais importantes questões sobre Deus e o sofrimento continuam sem resposta. O desejo de ver uma resposta teísta ao problema do mal que vá além da mera desconstrução de um argumento ateológico em particular é compreensível. De qualquer maneira, tenhamos em mente que ambas as partes concordam que a DLA obteve êxito em refutar o problema lógico do mal em sua versão formulada pelos ateístas da segunda metade do século XX. Se alguém precisa ser censurado e responsabilizado aqui, este alguém é Mackie e outros ateólogos por afirmarem que o problema do mal era um problema de inconsistência. A

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facilidade com que Plantinga solapou essa formulação do problema sugere que a formulção lógica não captura adequadamente a dificuldade e perplexidade relativas às questões sobre Deus e o mal que tem sido tão calorosamente debatidas por filósofos e teólogos. De fato, esta é precisamente a lição, tirada por vários filósofos, do debate entre Plantinga e os defensores do problema lógico do mal. Eles arrazoaram que há mais coisas envolvidas no problema do mal do que o que é apreendido em sua formulação lógica. Hoje há uma concordância ampla sobre a correção desta intuição. AS discussões atuais sobre o problema estão focadas no que é chamada “o problema probabilístico do mal” ou “o problema evidencial do mal”. Segundo esta formulação do problema, o mal e o sofrimento (ou, em alguns casos, a quantidade, a variedade e a distribuição do mal e do sofrimento) que encontramos em nosso mundo vale como evidência contra a existência de Deus (ou a torna bastante improvável). Responder a esta formulação do problema exige bem mais que simplesmente descrever um cenário logicamente possível no qual Deus e o mal coexistam. 9. Outras respostas ao problema lógico do mal A DLA de Plantinga foi a mais famosa resposta teísta ao problema lógico do mal, porque fez mais para esclarecer as questões que envolvem o problema lógico do que nenhuma outra. Não foi, porém, a única resposta. Outras soluções para o problema incluem a teodicéia do aprimoramento da alma de John Hick (1977). Hick rejeita a visão tradicional da Queda, que descreve os seres humanos como tendo sido criados em perfeição finita e acabada da qual eles desastrosamente caíram. Em vez disso, Hick afirma que os seres humanos estão inacabados e em processo de se tornarem tudo o que Deus planejou para eles. O longo processo evolutivo produziu humanos como uma espécie distinta dotada de razão e responsabilidade, mas eles devem agora (como indivíduos) passar por um segundo processo de “>(Stump 1985, p. 409). Ela escreve: O mal natural – a dor da doença, a destruição intermitente e imprevisível dos desastres naturais, a decadência da velhice, a iminência da morte, tira a satisfação de uma pessoa consigo mesma. Ele tende a humilhá-la, mostrar-lhe pela sua fragilidade, fazê-lo refletir sobre a transitoriedade dos bens temporais, e orienta suas inclinações para coisas extra-mundanas, distante das coisas deste mundo. Nenhuma quantidade de mal moral ou natural, é claro, pode garantir que um homem irá [depositar sua fé em Deus …]. Mas o mal deste tipo é a melhor esperança, eu acho, e talvez o único meio eficaz para trazer os homens para tal condição. (Stump 1985, p. 409) Stump afirma que, embora o pecado de Adão _ e não qualquer ato de Deus _ tenha introduzido o mal moral e natural neste mundo, Deus, providencialmente, faz uso dos dois tipos de mal

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para trazer o maior bem que um ser humano decaído e pecaminoso pode experimentar: uma vontade restaurada e a união eterna com Deus. As respostas de ambos _ Hick e Stump _ se destinam a cobrir não só o problema lógico do mal, mas também qualquer outro enunciado do problema. Assim, alguns dos insatisfeitos com a resposta meramente defensiva Plantinga para o problema do mal podem se sentir atraídos por estas construtivas respostas alternativas.Independentemente dos pormenores destas alternativas, o fato é que tudo que eles precisam fazer a fim de refutar o problema lógico do mal é descrever um cenário logicamente possível no qual Deus e o mal coexistam. Uma variedade de razões moralmente suficientes pode ser proposta como possíveis explicações para por que um Deus perfeito permite o mal e o sofrimento. Como as sugestões de Hick e Stump são inegáveis possibilidades lógicas, suas tentativas de refutar o problema lógico do mal também estão coroadas de êxito. 10. Problemas com Defesa do Livre-Arbítrio A. Mesmo que seja amplamente aceito que a DLA descreve uma situação logicamente possível, alguns dos detalhes de sua defesa parecem conflitar com outras doutrinas teístas importantes. Um ponto de conflito diz respeito à possibilidade do livre-arbítrio humano no céu. Plantinga afirma que se alguém é incapaz de fazer o mal, essa pessoa não possui livre-arbítrio moralmente significativo. Ele também sustenta que parte do que nos torna as criaturas que somos é o fato de que possuímos liberdade moralmente significativa. Se esta liberdade nos fosse tirada, poderíamos muito bem deixar de ser as criaturas que somos. No entanto, considere o tipo de liberdade usufruída pelos redimidos no céu. De acordo com o teísmo clássico, os crentes no céu sofrerão alguma transformação após a qual não mais cometerão qualquer tipo de pecado. Não que eles eventualmente farão sempre o que é certo e eventualmente evitarão o que é errado. De alguma maneira eles não mais serão capazes de fazer coisas erradas. Em outras palavras, seu bom comportamento será necessário, em vez de contingente. Esta concepção ortodoxa do céu apresenta os seguintes desafios significativos ao parecer de Plantinga: (I) Se os habitantes celestes não possuem o livre arbítrio moralmente significativo e ainda assim sua existência é algo de enorme valor, não fica claro que Deus está justificado pela criação de pessoas aqui na Terra com a capacidade para o estupro, o assassinato, o abuso sexual, tortura sexual, e guerra nuclear. Parece que Deus poderia ter realizado quaisquer grandes bens tornados possíveis pela existência de pessoas sem permitir as horríveis ocorrências de males e sofrimentos existentes neste mundo.

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(II) Se a posse de livre-arbítrio moralmente significativo é essencial à natureza humana, não está claro como os redimidos podem perder sua liberdade moral significativa quando chegarem ao céu e continuarem a ser as mesmas pessoas que eram antes; não fica claro como suas identidades serão mantidas. (III) Se, malgrado as primeiras impressões, os habitantes celeste possuem livre-arbítrio moralmente significativo, então parece que não é impossível para Deus criar criaturas genuinamente livres que sempre (necessariamente) fazem o que é certo. Em outras palavras, parece que a W3 não é impossível, afinal. Se W3 é possível, um pilar fundamental na DLA de Plantinga é removido. Nenhum desses desafios mina o ponto básico estabelecido anteriormente segundo o qual a DLA de Plantinga refuta com sucessoo problema lógico do mal. No entanto, eles revelam que algumas das afirmações centrais de sua defesa entram em conflito com outras importantes doutrinas teístas. Ainda que Plantinga alegue que sua DLA oferece apenas um possível e não necessariamente os motivos reais pelos quais Deus se justifica ao permitir o mal e o sofrimento, pode ser difícil para outros teístas aceitarem sua defesa se ela vai de encontro ao que o teísmo diz que realmente ocorre no céu . B. Outro problema que desafia a DLA diz respeito à questão do livre-arbítrio de Deus. Deus, ao que parece, é incapaz de fazer algo errado. Assim, não parece que, com relação a qualquer escolha de opções moralmente boas e moralmente ruins, Deus seja livre para escolher uma opção ruim. Ele parece constitutivamente incapaz de escolher (ou mesmo de desejar) fazer o que é errado. Segundo a descrição de Plantinga de livre-arbítrio moralmente significativo, não parece que Deus seja significativamente livre. Plantinga sugere que a liberdade moralmente significativa seja necessária para que nossas ações sejam avaliadas como moralmente boas ou más. Mas então parece que às ações de Deus não pode ser imputado qualquer significado moral. Eles jamais poderia ser louvável. Isso certamente contraria uma das doutrinas centrais do teísmo. Se, como os teístas certamente sustentam, Deus possui liberdade moralmente significativa, então talvez este tipo de liberdade não se oponha a uma incapacidade de escolher o que é errado. Mas se é possível que Deus possua liberdade moralmente significativa e seja incapaz de agir mal, então W3, novamente, parece ser possível afinal. Originalmente, Plantinga alegou que W3 não é um mundo logicamente possível porque a descrição deste mundo é logicamente inconsistente. Se W3 é possível, então a acusação apresentada por Mackie e Flee anteriormente, de que Deus poderia (e, portanto, deveria) ter criado um mundo cheio de criaturas que sempre fazem o que é certo não está respondida.

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Podem haver maneiras pelas quais Plantinga possa resolver as dificuldades resumidas acima, de modo que a DLA possa ser compatíbilizada com as doutrinas sobre o céu e a liberdade divina. Do jeito que está, no entanto, alguns desafios importantes à DLA permanecem sem resposta. Também é importante notar que, simplesmente porque o uso particular que Plantinga fez do livre-arbítrio em criar uma resposta para o problema do mal desemboca em certas dificuldades, isso não significa que as outras utilizações teístas do livre-arbítrio em tipos distintos de defesas ou teodicéias enfrentariam as mesmas dificuldades. Referências: * Clark, Kelly James. 1990. Return to Reason: A Critique of Enlightenment Evidentialism and a Defense of Reason and Belief in God. Grand Rapids, MI: Eerdmans. * Flew, Anthony. 1955. “Divine Omnipotence and Human Freedom.” In Anthony Flew and Alasdair MacIntyre (eds.) New Essays in Philosophical Theology. New York: Macmillan. * Hick, John. 1977. Evil and the God of Love, revised ed. New York: Harper & Row. * Küng, Hans. 1976. On Being a Christian, trans. Edward Quinn. Garden City, New York: Doubleday. * Kushner, Harold S. 1981. When Bad Things Happen to Good People. New York: Schocken Books. * Lewis, C. S. 1943. Mere Christianity. New York: Macmillan. * Mackie, J. L. 1982. The Miracle of Theism. Oxford: Oxford University Press. * Mackie, J. L. 1955. “Evil and Omnipotence.” Mind 64: 200-212. * Madden, Edward and Peter Hare. 1968. Evil and the Concept of God. Springfield, IL: Charles C. Thomas. * McCloskey, H. J. 1960. “God and Evil.” Philosophical Quarterly 10: 97-114. * Peterson, Michael L. 1998. God and Evil: An Introduction to the Issues. Boulder, CO: Westview Press. * Plantinga, Alvin. 1974. The Nature of Necessary. Oxford: Oxford University Press. * Plantinga, Alvin. 1977. God, Freedom, and Evil. Grand Rapids, MI: Eerdmans. * Strobel, Lee. 2000. The Case for Faith: A Journalist Investigates the Toughest Objections to Christianity. Grand Rapids, MI: Zondervan. * Stump, Eleonore. 1985. “The Problem of Evil.” Faith and Philosophy 2: 392-423. Leituras adicionais: * Adams, Robert Merrihew and Marilyn McCord Adams, eds. 1990. The Problem of Evil. Oxford: Oxford University Press. * Howard-Snyder, Daniel, ed. 1996. The Evidential Argument from Evil. Bloomington, IN:

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Indiana University Press. * Peterson, Michael L., ed. 1992. The Problem of Evil: Selected Readings. Notre Dame, IN: University of Notre Dame Press.

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02: A dependência mente-cérebro como um duplo pilar para o ateísmo Autor: Steven J. Conifer(*) 2001 Tradução: Gilmar Pereira dos Santos [Uma versão ligeiramente mais curta e significativamente diferente deste artigo, intitulada “Epifenomenalismo como um duplo pilar para o ateísmo”, foi entregue antes do encontro da West Virginia Philosophical Society no outono de 2000, ocorrido nos dias 20 e 21 de outubro na Wheeling Jesuit University in Wheeling, WV.] Sumário 1. Introdução 2. Respaldando a TDC e o ME 3. O Argumento da Mente Incorpóra (AMI) formulado 4. O Argumento do Pós-Vida Incorpóreo (API) formulado 5. Considerações Preliminares sobre o AMI e o API 6. A primeira premissa do API 7.1 A premissa (2) do AMI e a premissa (2) do API 7.2 A Objeção EQM (OQM) Formulada e Refutada 7.3 A Objeção das EFC (OFC) Formulada e Refutada 7.4 A Objeção das Aparições (OA) Formulada e Refutada 7.5 A Objeção das Vidas Passadas (OV) formulada e refutada 7.6 O ACH formulado 7.6.2 A objeção do ACH (OACH) formulada 7.6.3 A resposta do ônus da prova 7.6.4 A resposta da invalidez 7.6.5 As respostas da obscuridade e da inadequação 7.6.6 A resposta da explicação ateísta (ou naturalista) 7.7 A Objeção das Outras Mentes (OOM) Formulada e Refutada 8. Recapitulação

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1. Introdução Meu objetivo neste artigo é apresentar dois argumentos ateológicos do tipo probabilístico que utilizam como fundamento a plausibilidade de uma teoria dualista ampla que denominarei “Teoria da Dependência Cerebral” (abreviada como TDC). Segundo a TDC, a existência de mentes é dependente da de cérebros, isto é, sem cérebros, mentes não podem existir. A TDC é compatível com qualquer teoria dualista (por exemplo, epifenomenalismo, interacionismo, etc.) que considera a ocorrência de eventos cerebrais uma condição necessária para a ocorrência de eventos mentais. Deve-se observar desde o princípio que o que chamarei de “Materialismo Estrito” (abreviado como ME), a teoria de que tudo o que existe (isto é, todos os

existentes,

incluindo

pensamentos,

emoções,

sensações,

memórias,

proposições,

leis/princípios da lógica, teoremas matemáticos, etc) é redutível à matéria/energia (mais especificamente, a certos estados ou eventos cerebrais) também bastaria como um fenômeno sobre o qual fundamentar o par de argumentos em questão. Isto é, se for o caso de o ME (em vez da TDC) ser o ponto de vista correto, aqueles argumentos demandariam apenas algumas pequenas modificações para preservar sua solidez.

2. Respaldando a TDC e o ME Vários filósofos dos séculos passados e praticamente todos os filósofos e neurofisiologistas contemporâneos aceitam ou a TDC ou o ME. Entre os que endossam alguma versão da primeira incluem-se René Descartes, T.H. Huxley, Wilhelm Wundt, Laird Addis, Wilfrid Sellars, Frank Jackson, Jacques P. Thiroux, John Searle, David Chalmers, Thomas Nagel, Michael Tooley e Theodore M. Drange. Dentre os que esposaram o último estão Thomas Hobbes, Gilbert Ryle, J.J.C. Smart, U.T. Place, Herbet Feigl, Karl Vogt, Donald Davidson, Paul and Patricia Churchland, e Daniel C. Dennett. T.H. Huxley, o biólogo inglês do século 19 e epifenomenalista prematuro que cunhou o termo agnóstico, escreveu em 1874: É experimentalmente demonstrável… que uma forma de impulso do sistema nervoso é o antecedente imediato de um estado de consciência. Todos exceto os partidários do “Ocasionalismo”, ou da “Harmonia Pré-estabelecida” (se for o caso de qualquer destes ainda existir), devem admitir que temos tanta razão no que se refere à forma do impulso do sistema nervoso como a causa do estado de consciência, quanto temos em relação a qualquer outro evento como causa de outro. Temos tanto direito a acreditar que a sensação é um efeito de uma mudança molecular quanto temos a acreditar que o impulso é um efeito

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do impacto; e há tanta propriedade em dizer que o cérebro emite a sensação quanto há em dizer que um bastão de ferro, quando martelado, emite calor.[1] Numa tentativa de demonstrar a impossibilidade empírica de um pós-vida, o filósofo Theodore Drange construiu o seguinte silogismo ( que ele apelidou de “Argumento das Correlações Cerebrais”): (1) Estudos tem estabelecido uma correlação entre eventos cerebrais e eventos mentais de tal força que seria legítimo declarar os últimos empiricamente impossíveis na ausência dos primeiros. (2) Mas, num pós-vida, necessariamente ocorrem eventos mentais na ausência de eventos cerebrais. (3) Consequentemente, um pós-vida é empiricamente impossível.[2] Como Drange enfatiza, “os cientistas demonstraram que certos tipos de lesão cerebral invariavelmente resultam numa perda de funções mentais, o que implica que a total destruição do cérebro resulta na aniquilação total da mente. E outras correlações entre o cérebro e a mente tem sido descobertas, além da correlação ‘lesão cerebral'”.[3] Outro filósofo que subscreve este ponto de vista é Jacques P. Thiroux, que escreve: Quando pensamentos, imaginações ou experiências sensoriais ocorrem, processos (físicos) neurais estão acontecendo no cérebro – ninguém pode negar isto. De fato, parece ser verdadeiro que pensamentos nunca ocorrem na ausência de processos neurais e, mais ainda, que processos ou estados cerebrais neurais são absolutamente necessários para a ocorrência de pensamentos e outros eventos mentais.[4] O filósofo australiano e materialista J.J.C. Smart cita tanto a evolução biológica quanto o princípio da parcimônia como duas razões convincentes para adotar o ME: Como poderia uma propriedade ou entidade não-física subitamente surgir no curso da evolução animal? Que tipo de processos químicos poderiam trazer à existência algo nãofísico? Nenhuma enzima pode catalisar a produção de um espectro! Talvez seja dito que o não-físico venha a existir como um subproduto colateral: que sempre que exista uma estrutura física complexa específica, então, por uma lei extrafísica irredutível, também existe uma entidade não-física. Tais leis estariam muito além dos limites das concepções científicas ortodoxas e seriam bastante inexplicáveis: elas seriam, nas palavras de Herbert Feigl, “parasitas nomológicos”. Para dizer o mínimo, podemos simplificar vastamente nosso panorama cosmológico se pudermos defender uma filosofia materialista da mente.[5]

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No que talvez seja seu livro mais famoso, Consciousness Explained (1991), Daniel C. Dennett, diretor do Centro de Estudos Cognitivos da Tufts University, faz uma defesa vigorosa do ME. Ele é um crítico severo do dualismo, acerca do qual escreveu em 1994: Continua a me estarrecer o quão atraente este ponto de vista permanece para várias pessoas. Eu teria pensado que bastaria uma perspectiva histórica para torna-lo ridículo: ao longo dos séculos, todos os outros fenômenos de estranheza a princípio “sobrenatural” sucumbiram a uma explicação incontroversa dentro dos amplos limites das ciências físicas… Os “milagres” da própria vida, e da reprodução, são agora analisados sob o prisma da bem conhecida complexidade da biologia molecular. Por que deveria a consciência ser uma exceção? Por que deveria o cérebro ser o único objeto físico complexo no universo a possuir uma interface com algum outro domínio ontológico? Ademais, os problemas notórios com as supostas interações nessa interface dualista são tão bons quando uma reductio ad absurdum deste ponto de vista. O fenômeno da consciência é reconhecidamente deslumbrante, mas suspeito que o dualismo jamais seria seriamente considerado se não houvesse uma forte corrente de desejo de proteger a mente da ciência, supondo que ela seja constituída de uma substância em princípio inescrutável pelos métodos das ciências físicas.[6] Um filósofo que tem conduzido pesquisas amplas na área da dependência mente-cérebro é Michael Tooley. Ele tem apresentado cinco linhas de evidência para a dependência das mentes em relação aos cérebros, que podem ser resumidas da seguinte maneira: (1) Quando o cérebro de um indivíduo é diretamente estimulado e colocado num determinado estado físico, isto causa no indivíduo uma experiência correspondente. (2) Certas lesões no cérebro tornam impossíveis que uma pessoa tenha absolutamente quaisquer estados mentais. (3) Outras lesões no cérebro destroem várias habilidades mentais. As habilidades destruídas estão diretamente vinculadas à região específica do cérebro lesionada. (4) Quando examinamos as habilidades mentais de animais, elas se tornam mais complexas à medida em que seus cérebros se tornam mais complexos. (5) Dentro dos limites de qualquer espécie considerada, o desenvolvimento de habilidades mentais é correlacionado com desenvolvimento de neurônios no cérebro.[7] Keith Augustine coloca de maneira sucinta: “A ciência moderna demonstrou a dependência da consciência em relação ao cérebro, verificando que a mente deve morrer sem o corpo.”[8]

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Considerando-se tudo isto, e na medida em que nossa experiência está em causa, a conclusão de que nada mental acontece sem a ocorrência de eventos físicos correspondentes parece inevitável. Deve-se enfatizar que a dependência mente-cérebro observada é misteriosa e inexplicável numa mundivisão teísta (que tradicionalmente inclui como um de seus constituintes um apelo a algum tipo de “alma”, e sob a qual, à luz de sua ênfase considerável sobre a importância do reino espiritual, a existência de organismos físicos que residem nos limites de um universo ele próprio físico parece bastante peculiar, se não completamente sem sentido), enquanto o naturalismo tanto a prevê quanto a explica (através da bioquímica, da evolução biológica e da neurofisiologia). Voltemo-nos agora para o exame de nossos dois argumentos para a inexistência de Deus.[9]

3. O Argumento da Mente Incorpóra (AMI) formulado (1) Se Deus existe, então ele é uma mente incorpórea.[10] (2) Se a TDC é verdadeira, então uma mente incorpórea não pode existir. (3) A TDC é verdadeira. (4) Consequentemente, uma mente incorpórea não pode existir. (5) Portanto, Deus não pode existir.

4. O Argumento do Pós-Vida Incorpóreo (API) formulado (1) Se Deus existe, então existe um pós-vida incorpóreo.[11] (2) Se a TDC é verdadeira, então não pode existir um pós-vida incorpóreo. (3) A TDC é verdadeira. (4) Consequentemente, um pós-vida incorpóreo não pode existir. (5) Portanto, Deus não pode existir.

5. Considerações Preliminares sobre o AMI e o API A validade dos dois argumentos pode ser questionada. A forma lógica relevante é a seguinte: (1) G–> D (2) B–> ~D (3) B

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(4) Consequentemente, ~D [a partir de (2) e (3) por modus ponens ] (5) Portanto, ~G [a partir de (1) e (4) por modus tollens] Indiscutivelmente esta é uma forma válida. Assim, a questão óbvia é se os argumentos são sólidos. Dedicar-me-ei a esta questão nas seções 6-7.7 a seguir. Primeiro, contudo, o significado de certos termos precisa ser esclarecido. Por “incorpóreo” eu quero dizer completamente separado, ou isolado, do corpo físico (incluindo o cérebro). Portanto, por “pós-vida incorpóreo” refiro-me ao modo (ou estado) de existência subsequente à morte física ao qual a maioria dos teístas (por exemplo, cristãos, judeus e muçulmanos) geralmente subscreve. Seria um tipo de existência no qual ocorreriam eventos mentais na ausência de eventos cerebrais. Podemos chama-lo de um tipo pessoal de pós-vida, no qual a identidade, a consciência, as memórias, etc. de uma pessoa são preservadas continuamente, de uma ou de outra maneira, ao longo tanto de sua existência terrena quanto de sua existência no além.

6. A primeira premissa do API Consideremos brevemente a premissa (1) do API. Por que acreditar que ela seja verdadeira? Reconhecemos desde já que não existe nenhuma correlação logicamente necessária entre a existência de Deus e a existência de um pós-vida. Assim, certamente está aberta para o teísta a possibilidade de simplesmente negar a premissa (1) do API e assim se esquivar do argumento. Mas parece bastante improvável que mais do que alguns representantes atípicos (quando muito) realmente faria tal movimento. Como numerosas pesquisas de opinião pública tem mostrado, a vasta maioria dos que acreditam em Deus (especialmente aqueles dentro da tradição

judaico-cristã)

acreditam

que

as

duas

coisas

estão

de

alguma

maneira

indissociavelmente vinculadas, isto é, se uma delas não existir, então nenhuma delas existe. [12] Não há dúvidas de que se alguém for capaz de demonstrar a inexistência de um pós-vida que satisfaça tais teístas, então provavelmente a maioria deles reconheceria a insustentabilidade de seu (idiossincrático) teísmo, propriamente. E uma vez que o argumento é inegavelmente válido (como mostrado na seção 5 acima), enquanto o teísta aceitar a premissa (1) do API, a única rota remanescente pela qual ele pode razoavelmente tentar escapar da conclusão do argumento é rejeitar uma das ou ambas as premissas (2) e (3). Contudo, tal empreitada seria malsucedida, pois, como foi mostrado na seção 2 acima, a última premissa é poderosamente sustentada tanto pela ciência quanto pela filosofia; e, como será corroborado nas seções 7.1-7.7 a seguir, tentativas de contestar a segunda premissa de ambos os argumentos parecem imensamente desalentadoras. Deve ser observado que a existência de um pós-vida é fundamental para uma (clássica) mundivisão teísta. Consequentemente, se a idéia de uma existência posterior à morte física é

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removida desta visão de mundo, então a própria visão de mundo inevitavelmente desmorona. É bastante similar à situação de Adão e Jesus. como A. J. Mattill Jr. escreve em seu livro The Seven Mighty Blows to Traditional Beliefs (Os sete golpes mais poderosos contra as crenças tradicionais, numa tradução livre): Como Agostinho disse muito bem, a religião cristã inteira pode ser resumida na intervenção de dois homens, um para nos arruinar, o outro para nos salvar… Mas agora sabemos que o golpe da biologia dissolve o Adão histórico e o golpe apocalíptico desacredita o Jesus histórico… Consequentemente o sistema cristão inteiro entra em colapso, pois não há mais ninguém para nos arruinar, ninguém para nos salvar.[13] Analogamente, a TDC (“o golpe neurofisiológico”, poderíamos dizer) nocauteia o teísmo clássico com duas pancadas certeiras: o AMI desconstrói a noção de uma mente incorpórea (isto é, Deus) e o API a noção de um pós-vida incorpóreo (isto é, o Paraíso). Como Paul Kurtz escreveu recentemente sobre o tema, “Pois as grandes religiões sobrenaturais do mundo – o Cristianismo, o Judaísmo e o Islamismo – acreditam num pós-vida e a promessa de um Paraíso é fundamental.”[14] É aos adeptos destas religiões ( e às crenças dos mesmos) que meu API é dirigido. Para tais teístas (ou seja, a maioria esmagadora das pessoas que acreditam que acreditam numa divindade pessoal de algum tipo), eu asseguro que o API apresenta um vigoroso e potencialmente insuperável desafio.

7.1 A premissa (2) do AMI e a premissa (2) do API Como espero já ter estabelecido além de qualquer dúvida razoável a veracidade terceira premissa de ambos os argumentos da mente incorpórea e do pós-vida incorpóreo (na seção 2 acima), dedicarei o restante de meu ensaio à defesa da segunda premissa dos argumentos. Seria conveniente considera-los concomitantemente, já que eles são similares e assim podem ser defendidos de maneiras análogas. Como tanto a TDC quando o ME necessitam que um cérebro exista a fim de que uma mente também exista, essas premissas parecem-me indubitavelmente verdadeiras. Inevitavelmente, contudo, o teísta deve abordar a questão das “almas”, então permitam-me rapidamente descarta-la. Eu próprio não faço a menor idéia do que supõe-se que uma “alma” seja. A noção parece irremediavelmente obscura e nebulosa e assim carente de qualquer conteúdo ou significado real. Naturalmente, então, ela desafia qualquer tipo de escrutínio analítico ou avaliação substantiva. Como Theodore Drange escreve: Como último recurso, alguém pode introduzir o termo “alma”. Pode ser dito que cada um de nós possui uma alma e que não é o corpo mas a alma que nos individualiza e nos faz únicos.

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O principal problema com isto é que não está exatamente claro o que uma alma supostamente é. Quais são suas propriedades ou constituintes, se há algum? Como pode-se recorrer a ela para identificar uma pessoa? O que se deve procurar? Que teste pode ser realizado para determinar que a pessoa A, que existiu num determinado período, e a pessoa B, que existe num período posterior, possuem a mesma alma? Tais questões conceituais fundamentais nunca receberam um tratamento adequado, e até que recebam, a “Teoria da Alma” será inútil…[15] Michael Martin obviamente concorda, escrevendo: É muito difícil imaginar mesmo de maneira vaga e grosseira a que uma existência incorpórea se assemelharia no espaço e no tempo. Como uma alma se moveria de um lugar para outro? Como ela reconheceria outras almas? O que almas incorpóreas fariam ao longo do dia já que presumivelmente não haveria necessidade de dormir? O problema se torna insuperável quando combinado com a idéia de que o Paraíso está fora do espaço e do tempo. Todos os nossos conceitos mentais – por exemplo, pensar, querer, desejar – são noções temporais que levam tempo para serem realizadas e acontecem num momento particular. O desejo e o pensamento não-temporais são inconcebíveis.[16] Outro filósofo que partilha este ponto de vista é C.D. Broad, que diz o seguinte: Se não posso conceber claramente como seria ser uma pessoa incorpórea, eu acho quase incrível que as experiências de tal pessoa… poderiam ser suficientemente contínuas àquelas ocorridas durante sua vida por qualquer ser humano falecido de forma a constituirem em conjunto as experiências de uma e a mesma pessoa.[17] Mas o que dizer sobre a possibilidade de um pós-vida corpóreo? Pode ser demonstrado que como toda a doutrina cristã da ressurreição envolve não um pós-vida incorpóreo, mas corpóreo , essa doutrina poderia acomodar facilmente a idéia de que todos os eventos mentais que ocorrem num pós-vida acontecem dentro do contexto da ressurreição e portanto no interior de cérebros. Mesmo assim, como Theodore Drange explica, esta réplica é insuficiente, pois não leva em consideração o que acontece com a consciência no interim entre o modo de existência terreno (isto é, pré-ressurreição) e celestial (isto é, pós-ressurreição): Mesmo os cristãos que advogam a doutrina da ressurreição muitas vezes consideram a pessoa como existindo em algum tipo de estado intermediário enquanto aguarda que a ressurreição ocorra. De maneira que a idéia de eventos mentais ocorrendo na ausência de eventos cerebrais aparece novamente. A questão com o Argumento das Correlações Cerebrais é que a ciência tem estabelecido leis fisiológicas no sentido de que a vida mental cessa quando os processos cerebrais cessam. Pois para haver absolutamente qualquer vida

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consciente após a morte cerebral, não importa quão efêmera, teria de haver uma violação de tais leis.[18] Certamente isto está correto, e acho que a segunda premissa dos dois argumentos foi adequadamente amparada. Não obstante, o teísta deve quase indubitavelmente levantar pelo menos uma das seguintes três objeções (chamadas O1, O2 e O3): O1: Existe algum tipo de evidência empírica para um pós-vida e, portanto, contraevidência para a premissa em questão, o que lança dúvidas sobre ambos os argumentos. O2: A consciência humana não pode ser explicada adequadamente sem apelar à existência de Deus, um fato que categoricamente falseia ambos os argumentos. O3: A TDC mostra apenas que mentes humanas requerem um cérebro para existir, mas podem existir outros tipos de mentes (das quais não possuímos nenhum conhecimento atualmente) que não exigem cérebros, do que resulta que a premissa em questão pode ser falsa e por conseguinte ambos os argumentos podem não ser sólidos . Em relação a O1, as quatro fontes de alegadas evidências para um pós-vida que são citadas com mais frequencia são as EQM (Experiências de Quase-Morte), EFC(Experiências Fora do Corpo), relatos de aparições de espíritos ou fantasmas (isto é, avistamento de espectros), e supostos exemplos de reencarnação (isto é, “memórias de vidas passadas”). No que se refere a O2, ela tipicamente assume a forma de uma ou outra versão do que chamarei “Argumento da Consciência Humana para a Existência de Deus” (ACH), que tenta mostrar que seres sencientes não poderiam ter evoluído (ou vindo a existir) sem intervenção divina. E quanto a O3, não passa de um ridículo apelo à ignorância, embora seja uma objeção que todavia precisa ser considerada. A seguir, discutirei primeiro O1 dividindo-a em quatro objeções individuais (cada uma delas lidando com um dos quatro fenômenos parapsicológicos mencionados acima), então examinarei O2 e O3, e, finalmente, oferecerei uma breve recapitulação dos pontos de meu ensaio que julgo serem os mais relevantes.

7.2 A Objeção EQM (OQM) Formulada e Refutada A OQM pode ser formulada como um silogismo simples (modus ponens), assim: (A) Se as EQM são verídicas, então elas fornecem suporte probatório para a existência de um pós-vida incorpóreo e, desta maneira, contraevidência para a segunda premissa do AMI e do API. (B) As EQM são verídicas.

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(C) Portanto, as EQM constituem suporte probatório para a existência de um pós-vida incorpóreo e, desta maneira, são contraevidências para a segunda premissa do AMI e do API. (B) é a premissa a ser atacada aqui, é claro. Que razão existe para acreditar que as EQM são, de fato, verídicas? Eu diria que não existe uma sequer, e que, além disso, existem várias razões para acreditar que as EQM são inverídicas. Keith Augustine oferece uma explicação e uma refutação clara e minuciosa da OQM (como parte do que ele chama de “hipótese da sobrevivência”, que afirma que a personalidade humana continuará a existir de alguma forma após a morte do corpo físico) em seu artigo “O caso contra a imortalidade“, no qual escreve isto: Os proponentes da sobrevivência argumentam que o fato de os traços fundamentais das EQMs serem quase invariavelmente relatadas por todos que vivenciam as EQMs constitui uma evidência de uma realidade post-mortem objetiva. Entretanto, esses traços fundamentais podem ser explicados por modelos fisiológicos porque os mesmos processos cerebrais ocorrem no início do processo da morte (ex: privação de oxigênio, liberação de endorfina, descargas neurais aleatórias) daqueles que vivenciam EQMs, e portanto suas experiências subjetivas devem ser similares. Outro argumento é o de que EQMs são reais porque parecem reais; isto constitui uma evidência de que as NDEs refletem uma realidade externa tanto quanto o fato de alucinações parecerem reais constitui uma evidência de que são reais. Alguns pesquisadores alegaram que informações foram obtidas em EQMs através de meios não-sensoriais, mas não há evidência experimental respaldando tais afirmações… Não há corroboração para alegações de percepção exterior ao ambiente imediato do paciente ou de percepções precisas em EQMs no escuro, portanto o argumento paranormal não constitui evidência em favor da sobrevivência. Finalmente, o fato de que pessoas experimentaram transformações de personalidade após EQMs não indica uma experiência mística post-mortem. Um estudo conduzido por Kenneth Ring descobriu que transformações de personalidade ocorreram em pessoas que chegaram medicamente próximas da morte, tendo elas vivenciado a EQM ou não, sugerindo que a transformação resultou do confronto com a morte em vez da EQM.[19] Em seu livro de 1997 Why People Believe Weird Things: Pseudoscience, Superstition, and Other Confusions of Our Time, Michael Shermer apresenta a seguinte explicação a partir da similaridade atordoante entre os efeitos típicos de várias drogas e alguns dos elementos mais comuns das EQM: Uma… explicação (naturalista) provável (para as EQM) considera causas bioquímicas e neurofisiológicas. Sabemos… que a alucinação de voo é disparada pela atropina e outros alcalóides da belladonna… DMT (dimetiltriptamina) provoca a percepção de que o mundo

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está se dilatando ou se contraindo. MDA (metilenodioxianfetamina) estimula o sentimento de regressão temporal de forma a fazer emergir lembranças há muito esquecidas. E, é claro, LSD (ácido lisérgico dietilamida) provoca alucinações auditivas e cria um sentimento de unidade e harmonia com o cosmos… O fato de que existem sítios receptores no cérebro para tais substâncias artificilmente processadas significa que existem substâncias naturalmente produzidas no cérebro que, sob certas condições (o estresse traumático ou um acidente, por exemplo), podem induzir uma ou todas as experiências comumente associadas a uma EQM.[20] Shermer continua: A psicóloga Susan Blackmore demonstrou porque diferentes pessoas experimentariam efeitos similares, tais como o túnel. O córtex visual na parte de trás do cérebro é o local onde as informações oriundas da retina são processadas. Drogas alucinógenas e falta de oxigênio no cérebro (tal como às vezes ocorre próximo ao momento da morte) podem interferir com a taxa normal de ativação das células nervosas nesta área. Quando isto ocorre, “fitas” de atividade neuronal movem-se através do cortéx visual, que são interpretadas pelo cérebro como anéis concêntricos ou espirais. Estas espirais podem ser “vistas” como um túnel… Finalmente, a “transcendentalidade” das EQM é produzida pelo predomínio da fantasia de imaginar o outro lado, visualizar nossos entes queridos já falecidos, ver nosso Deus pessoal, e por aí vai.[21] Somadas a todas estas explicações alternativas (naturalistas) para as principais características das EQM, existe pelo menos uma dúzia de vários outros fatos (alguns relacionados com aqueles mencionados nas passagens do artigo de Augustine e do livro de Shermer acima) que sugerem fortemente que as EQM são quase certamente um fenômeno puramente natural, ou seja, elas não são verídicas: (1) Nenhum dos pacientes que relataram EQM’s poderia ter apresentado morte cerebral, pois a morte cerebral é irreversível. (2) EQM’s ocorrem em apenas um terço de todos os casos nos quais existe uma crise de quasemorte. (3) Os detalhes das EQM’s dependem quase que exclusivamente das experiências pessoais e culturais do indivíduo. (4) Fatores fisiológicos e psicológicos afetam o conteúdo das EQM. Ruídos, túneis, luzes brilhantes e outros seres são mais comuns em condições fisiológicas afetando diretamente o estado cerebral, como paradas cardíacas e anestesias, ao passo que euforia, sentimentos

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místicos, retrospectiva de vida e transformações positivas podem ocorrer quando as pessoas simplesmente acreditam que vão morrer. (5) As características fundamentais das EQM são encontradas em alucinações induzidas por drogas e ocorridas naturalmente. (6) A retrospectiva de vida panorâmica assemelha-se a uma forma de epilepsia do lobo temporal. Existem inclusive casos nos quais pacientes epilépticos tiveram EFC’s ou “viram” aparições de amigos e parentes mortos durante seus ataques. (7) Simulações computadorizadas de atividade neurológica aleatória baseadas no mapeamento olho-cérebro do cortex visual tem produzido o túnel e a luz característicos das EQM’s. (8) O fato de que o naloxonio – um opiáceo antagonista que inibe os efeitos das endorfinas no cérebro – interrompe as Experiências de Quase-Morte fornece alguma confirmação para a teoria das endorfinas para as EQM’s. (9) EQM podem ser induzidas por estimulação elétrica direta de áreas cerebrais ao redor da fissura Sylviana no lobo temporal direito. (10) Os túneis descritos nas EQM’s variam consideravelmente de formato. Se as EQM’s refletissem uma realidade externa, então se esperaria consistência nos relatos do formato do túnel experienciado. (11) Os casos de EQM tem sido relatados onde os pacientes identificaram os “seres de luz” como a equipe médica executando procedimentos de ressuscitação. (12) Crianças que sofrem EQM’s são mais prováveis de verem amigos e membros da família ainda vivos do que os que já morreram.[22] Como Augustine conclui, “No caso da imortalidade, a hipótese da extinção é apoiada por evidências fortes e incontroversas originárias de dados experimentais brutos da psicologia fisiológica, ao passo que a hipótese da sobrevivência é apoiada quando muito por evidências anedóticas fracas e questionáveis oriundas da parapsicologia.”[23] Claramente, então, a premissa (B) da OQM é falsa, o que torna o argumento não-sólido. Ao que parece os defensores de O1 precisarão buscar uma objeção diferente, para a qual voltome agora.

7.3 A Objeção das EFC (OFC) Formulada e Refutada A OFC, como a OQM, pode ser formulada como um modus ponens simples:

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(A) Se as EFC são verídicas, então elas constituem um suporte probatório para a existência de um pós-vida incorpóreo (ou, pelo menos, alguma forma de existência incorpórea) sendo, desta maneira, contraevidências para a segunda premissa do AMI e do API. (B) EFC’s são verídicas. (C) Consequentemente, EFC’s constituem um suporte probatório para a existência de um pósvida incorpóreo (ou, pelo menos, alguma forma de existência incorpórea) sendo portanto contraevidências para a segunda premissa do AMI e do API. Mais uma vez, a premissa controversa é (B). Existem quaisquer evidências melhores para as EFC’s do que as disponíveis para as EQM’s? Novamente, minha resposta é negativa. Além disso, como no caso das EQM’s, existe excelente corroboração para a hipótese de que as EFC’s são tudo menos verídicas. As evidências contrárias à veracidade das EFC’s são semelhantes às evidências contrárias à das EQM’s. Como Augustine escreve: A ex-parapsicóloga Susan Blackmore sumariza os resultados das investigações em EFC’s: “Não há evidências reais de psi nas EFC’s; não há evidências de qualquer coisa separando-se do corpo; e não há evidências de efeitos causados por entes extracorpóreos” (Blackmore, “Elusive” 132). Experimentos desenvolvidos para detectar a dupla [o indivíduo real e o desdobrado] durante as EFC’s tiveram resultados negativos: A magnitude de qualquer efeito detectado tem diminuído com o progresso da sofisticação experimental. Estudos mais recentes utilizaram magnetômetros, termistores, detectores ultravioleta e infravermelho, e assim por diante… mas ainda não foi encontrado um detector confiável (Blackmore, “Oxford” 572). Parapsicólogos “têm até mesmo utilizado ‘detectores’ animais e humanos, mas nenhum logrou sucesso na detecção de qualquer coisa confiável” (Blackmore, “Near-Death” 38). Outro tipo de experimento foi desenvolvido para determinar se indivíduos numa EFC podem obter informações de um local remoto. Blackmore conclui que: A evidência experimental é fraca. Foi pedido que os indivíduos visualizassem cartas, números ou imagens específicas colocados em salas distantes… [e] outros estudos tentaram descobrir se os indivíduos pareciam estar observando de um local específico durante as EFC’s; contudo, os resultados foram inconclusivos. Em geral estes estudos apresentam resultados confusos, e não está claro se há qualquer processo paranormal envolvido (Blackmore, “Oxford” 572). Parece que a evidência é mais consistente com um modelo psicológico das EFC’s:

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Se a estimulação sensorial é reduzida ou interrompida, o modelo normal do mundo baseado nos estímulos pode começar a tornar-se instável e evanecer. Neste caso o sistema cognitivo tentará restaurá-lo ao normal criando um novo modelo do mundo através da imaginação… [a partir] de uma visão panorâmica, como um “olho aéreo” (Blackmore, “Oxford” 573). De acordo com este modelo, “se a EFC ocorre quando o modelo normal da realidade encontra-se substituído pela visão panorâmica construída pela memória, então pessoas que têm EFC’s devem ser mais capazes de utilizar tais visões com memórias e com imagens” (Blackmore, “Elusive” 133). [24] Michael Shermer tem isto a dizer: EFC’s são facilmente induzidas por anestésicos dissociativos tais como as ketaminas… a EFC é uma confusão entre realidade e fantasia, como os sonhos pode ser quando do primeiro despertar. O cérebro tenta reconstruir os eventos e no processo os visualiza de cima – um processo normal que todos fazemos quando nos “descentramos” de nós mesmos ( quando você se imagina sentado numa praia ou escalando uma montanha, geralmente o faz de cima, olhando para baixo).[25] Somados a todos estes obstáculos empíricos à OFC, existe toda uma gama de problemas conceituais com a própria natureza das EFC’s. Por exemplo, é terrivelmente obscuro a que se assemelharia ver sem olhos, ou mesmo sem uma cabeça. Se não existe nenhuma cabeça para obstruir o campo visual do EFCador, então ele vê em todas as direções simultaneamente? Além disso, ele vê a partir de uma posição específica? Se assim for, o que é exatamente que ele utiliza para ver e que está situado neste local? Presumivelmente não existem olhos (ou qualquer coisa similar) com os quais faze-lo, então o que exatamente está lá naquele lugar específico que poderia faze-lo? Igualmente, como, na ausência de um corpo físico, pode ele distinguir entre sons (ou ruídos) reais e meras alucinações auditivas? Na verdade, como poderia ocorrer alguma comunicação sob tais condições, afinal? Será que o EFCador faz uso de algum tipo de telepatia mental? Se for o caso, então o que exatamente isso é e como é que esse processo supostamente funciona? Isso é, como o receptor da “mensagem telepática” (ou sejá lá o que isso possa ser) reconhece o remetente dessa mensagem, ou mesmo que isso absolutamente é uma mensagem? Estas não são questões triviais acerca de detalhes secundários ou irrelevantes; antes, são questões conceituais fundamentais. Como Theodore Drange comenta, “Existem tantas dúvidas enigmáticas para as quais as pessoas que relatam EFC’s ainda não providenciaram soluções.”[26] Em face de tudo o que foi exposto acima, parece mais razoável declarar que a premissa B da OFC é falsa, o que tira a solidez do argumento. Como a OFC não se mostrou mais promissora

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do que a OQM anterior, parece que os proponentes da O1 mais uma vez terão que concentrar seus esforços numa linha de ataque diferente. Vejamos agora como eles podem fazê-lo.

7.4 A Objeção das Aparições (OA) Formulada e Refutada A OA pode ser construída da mesma maneira que a OQM e a OFC, como a seguir: (A) Se relatos de aparições (isto é, “avistamentos de fantasmas”) são verídicos, então eles constituem suporte probatório para a existência de um pós-vida incorpóreo sendo, portanto, contraevidências para a segunda premissa do AMI e do API. (B) Relatos de aparições (isto é, “avistamentos de fantasmas”) são verídicos. (C) Ergo, relatos de aparições cosntituem suporte probatório para a existência de um pós-vida incorpóreo sendo, portanto, contraevidências para a segunda premissa do AMI e do API. Obviamente, a premissa (B) é o ponto no qual a OA, também, pode ser mais prontamente atacada. Augustine observa o seguinte: Relatos de aparições podem ser explicados em termos de fraudes e alucinações. Evidências fotográficas de aparições são dúbias(3)porque fantasmas notavelmente tendem a se assemelhar com exposições duplas (“Ghosts” 293). Ademais, aparições podem ser explicadas em termos de alucinações porque: Há uma tendência para que sejam “vistas” faces e formas humanas mesmo em formas bastante aleatórias… É possível que criações sensoriais desta natureza sejam ocasionalmente evocadas em estados de medo, e parece realmente haver fatores sociais determinando em certo grau as formas adotadas pelos fantasmas(4) [Itálicos meus]… [A] falta de evidências consistentes impossibilita a aceitação geral de fantasmas (293-4). Finalmente, o fato de que aparições “raramente comunicam alguma informação importante” sugere que experiências com aparições são alucinatórias (Beloff, “Anything” 261).[27] Em Weird Things, Shermer faz uma comparação bastante hilária entre fantasmas e leis científicas: A lei da gravidade… tem sido continuamente testada contra a realidade exterior, e assim tem sido confirmada. Fantasmas nunca foram testados com sucesso contra a realidade exterior (eu não considero aqui fotografias manchadas e de baixa resolução que podem ser explicadas e reproduzidas por distorções em lentes ou aberrações cromáticas). A lei da gravidade pode ser considerada um fato, significando que ela tem sido confirmada em tal extensão que seria razoável devotar-lhe uma confiança temporária. Fantasmas podem ser considerados não-fatuais porque nunca foram confirmados em qualquer grau. Finalmente,

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apesar da lei da gravidade não existir antes de Newton, a gravidade existia. Fantasmas nunca existiram isolados de suas descrições por crédulos.[28] Acho que é bastante seguro asseverar que a premissa (B) da OA é errônea, desta maneira tornando o argumento não-sólido. Considerando-se o fracasso da OQM, da OFC e da OA exposto acima, os defensores de O1, num esforço derradeiro para salva-la, podem vomitar uma última objeção, a qual devo agora submeter a um rigoroso escrutínio.

7.5 A Objeção das Vidas Passadas (OV) formulada e refutada Como suas predecessoras, a OV pode ser construída silogisticamente através de um modus ponens: (A) Se os relatos de reencarnação (isto é, “memórias de vidas passadas”) são verídicos, então eles constituem um suporte probatório para a existência de um pós-vida incorpóreo sendo, portanto, contraevidências para a segunda premissa do AMI e do API. (B) Relatos de reencarnação (isto é, memórias de vidas passadas) são verídicos. (C) Consequentemente, relatos de reencarnação (isto é, “memórias de vidas passadas”) constituem um suporte probatório para a existência de um pós-vida incorpóreo sendo, portanto, contraevidências para a segunda premissa do AMI e do API. Mais uma vez, (B) é de longe a premissa mais vulnerável, e portanto aquela a ser desacreditada. Augustine oferece estes comentários: A evidência [para “memórias de vidas passadas”], entretanto, é mais consistente com uma explicação alternativa — a criptomnésia. Melvin Harris descreve este fenômeno: Para compreender a criptomnésia precisamos pensar no subconsciente como uma vasto e confuso depósito de informação. Esta informação vem de livros, de jornais, de revistas, de palestras, de programas de televisão e rádio, de observação direta e até de fragmentos de conversas ouvidos por acaso. Sob circunstâncias normais a maior parte deste conhecimento não está sujeito à recordação, mas algumas vezes estas informações profundamente enterradas são revividas espontaneamente. Elas podem emergir de maneira obscura, pois suas origens foram complemente esquecidas (Harris 19). Há numerosos casos onde a informação das regressões a vidas passadas teve suas fontes mundanas rastreadas após investigações mais aprofundadas (Edwards, “Introduction” 9). De fato, Em todos os casos [de vida passada] evocados sob hipnose até o momento, ou nunca houve tal pessoa como descrita, ou o personagem em questão poderia ter sido conhecido pelo

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informante que… talvez não estivesse conscientemente ao corrente da fonte daquele conhecimento (Beloff, “Anything” 262). Outro tipo de memória de vidas passadas não envolve regressão hipnótica. “Memórias” de vidas passadas espontaneamente surgiram durante a infância em casos investigados na Índia por Ian Stevenson. Stevenson pesquisou casos onde crianças geralmente entre dois e quatro anos de idade começavam a falar sobre suas “vidas passadas” e suas “mortes passadas” (Edwards, “Introduction” 11). Normalmente as memórias desaparecem aos oito anos. Em vários casos as pessoas que as crianças alegaram ter sido numa vida passada de fato existiram e muitas descrições foram feitas com precisão (11). Stevenson descartou a possibilidade de fraude porque não encontrou motivos que a justificassem. Ian Wilson aponta que muitas crianças afirmavam ter pertencido a uma casta superior, deste modo uma motivação para melhores condições de vida é óbvia (Edwards, “Introduction” 12).[29] Em seu livro de 1990 Atheism: A Philosophical Justification, Michael Martin apresenta esta avaliação das alegações concernentes à reencarnação: Os reencarnacionistas muitas vezes postulam uma série de encarnações em corpos humanos retrocedendo indefinidamente no tempo. Entretanto, a ciência nos ensina que a vida humana veio a existir numa data relativamente recente. Mesmo se se postular… que as almas podem habitar os corpos de animais ou plantas, ainda haveria um problema, pois a ciência nos ensina que a vida teve um princípio e que não existiu eternamente. Além disso, os reencarnacionistas que acreditam que as almas podem ser reencarnadas em animais não acreditam que a sequencia da evolução biológica corre paralelamente à reencarnação. Por exemplo, a alma de uma pessoa pode ter sido encarnada milhões de anos atrás no corpo de um dinossauro e reencarnado apenas recentemente como um pássaro.[30] Theodore Drange resume as (muito provavelmente insuperáveis) dificuldades tanto com a OV quanto com a própria O1 da seguinte maneira: Algumas pessoas acreditam que foram encontradas provas empíricas que respaldam a existência de um pós-vida. Elas podem se referir a relatos de EQM’s ou de EFC’s ou de reencarnações ou de avistamentos de fantasmas… Mas do meu ponto de vista, tudo isto é um equívoco. EQM’s não são relevantes para o conceito de vida após morte dedutível, isto é, vida após a destruição do corpo e do cérebro de alguém, pois a situação nem mesmo envolve morte cerebral, muito menos0 a completa destruição do corpo e do cérebro. Quanto às EFC’s, desconheço quaisquer estudos que tenham estabelecido que aqueles que relatam EFC’s não poderiam ter estado apenas alucinando ou sonhando… Até que tais estudos sejam publicados, estou propenso a simplesmente descartar os vários relatos de experiências que

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supostamente ocorrem dissociadas do corpo. Esses relatos não provam absolutamente nada para aqueles dentre nós que nunca tiveram tais experiências, mesmo no que se refere à própria possibilidade da própria experiência. Por enquanto… somos obrigados a classificar a idéia de um pós-vida incorpóreo como algo incoerente ou inconcebível… e os alegados espíritos… tem sido expostos como fraudes em vários casos. É possível que eles sejam todos embustes ou explicáveis naturalisticamente de alguma outra maneira… Com as alegadas reencarnações, o principal problema tem a ver com identificar a pessoa como alguém que havia falecido… mas isto nunca foi efetuado satisfatoriamente em qualquer dos casos estudados… Não faz sentido tentar encontrar evidências que apoiem uma proposição antes que alguém tenha tornado inteligível o que supõe-se que a proposição signifique. Antes mesmo que o problema evidencial faça sentido (isto é, o problema de se existe ou não qualquer evidência favorável à hipótese de que há um pós-vida)), é necessário resolver o problema conceitual, que é o problema do que o termo “pós-vida” pode significar em termos operacionais, ou com o que um pós-vida poderia possivelmente se assemelhar se tal estado de coisas existisse.[31] Todas estas considerações parecem muito razoáveis. Claramente, então, a premissa (B) da OV é falsa, o que torna o argumento não-sólido. Assim, foi mostrado que a OQM, a OFC, a OF e a OV acima, são todas insuficientes para invalidar a segunda premissa do AMI e do API. Consequentemente, O1, como demonstrado acima, é um fracasso.

7.61. O ACH formulado Vários filósofos cristãos (por exemplo, Richard Swinburne) defendem um argumento favorável ao teísmo que tem angariado uma considerável popularidade na literatura ultimamente. O argumento é o da consciência humana, isto é, ele apela ao fenômeno da consciência humana como uma de suas premissas. Esse fênomeno, segundo o argumento, é de alguma maneira improvável ou talvez até mesmo impossível sob o pressuposto do ateísmo (ou naturalismo). Chamemos este argumento de “Argumento da Consciência Humana para a Existência de Deus” (ACH). Existem várias versões do ACH, alguns mais extensos que outros. Para os objetivos do presente ensaio, entretanto, o argumento será formulado simplesmente, da seguinte maneira: (A) É um fato que a consciência humana existe. (B) Este fato pode ser explicado adequadamente dentro de um arcabouço teórico teísta (isto é, que postula a existência de Deus), ao passo que não pode ser adequadamente explicado

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dentro de um arcabouço teórico ateísta (ou naturalista _ isto é, que negue a existência de Deus). (C) Consequentemente, existe um fato que apenas o teísmo pode explicar adequadamente. (D) Portanto, Deus deve existir.[32] Obviamente, o ACH representa uma ameaça direta tanto ao AMI quanto ao API no sentido de que a veracidade da premissa (B) do primeiro ipso facto invalidaria os últimos (isto é, o AMI e o API). Naturalmente, então precisaremos investigar o ACH, uma vez que ele pode ser invocado num esforço para refutar nossos dois argumentos ateológicos.

7.62 A objeção do ACH (OACH) formulada Utilizando o ACH como ponto de partida, a OACH pode ser derivada da seguinte maneira: (a) O ACH é um argumento sólido. (b) É logicamente impossível que existam dois argumentos sólidos cujas conclusões são incompatíveis. (c) As conclusões do AMI e do API e a conclusão do ACH são incompatíveis. (d) Segue-se que tanto o AMI quanto o API são argumentos não-sólidos.

7.63 A resposta do ônus da prova O ônus de provar a premissa (B) do ACH e, por sua vez, a premissa (a) da OACH, repousa diretamente sobre o defensor do ACH. Apenas apresenta-lo como uma indiscutível questão de fato é petição de princípio. Em outras palavras, uma vez que a premissa em questão está longe de ser obviamente verdadeira (na verdade, ela é profundamente controversa), o defensor do ACH deve de alguma maneira demonstrar que ele é verdadeiro. Até que o faça, os defensores do AMI e do API, à luz do substancial respaldo para a TDC e para o ME oferecido na seção 2 acima, estão simplesmente justificados em sustentar a veracidade da segunda premissa de cada argumento e, portanto, a solidez dos próprios argumentos.

7.64 A resposta da invalidez O passo (C) do ACH não é uma implicação logicamente necessária de sua premissa (B). Mesmo assumindo que o teísmo pode explicar adequadamente o fato em questão (isto é, a consciência humana) e que o ateísmo (ou o naturalismo) não pode, de maneira nenhuma resulta apenas disso que somente o teísmo pode explicar adequadamente este fato. Isto é, existem alternativas ao teísmo além do ateísmo (ou naturalismo) e não-teísmo em geral (a categoria

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a qual pertencem tanto o agnosticismo quanto o não-cognitivismo[33]) que também podem ser capazes de explica-lo adequadamente. Considere, por exemplo, o panteísmo, o deísmo e as miríades de ramificações do politeísmo que ainda abundam nas principais filosofias e religiões orientais. Como poderia ser que, digamos, a divindade deísta ou o deus hindu Vishnu (ou até mesmo o deus nórdico Thor) não poderiam explica-lo adequadamente? Não vejo qualquer razão que seja pela qual alguma destas divindades não seria uma explicação suficiente

para

ele,

apesar

de

nenhuma

delas

ser

o

deus

do

teísmo

clássico.

Consequentemente, a inferência a partir da premissa (B) do ACH para seu passo (C) é inválida, o que torna esse argumento não-sólido. Do que resulta que a premissa (a) da OACH é falsa, o que torna esse argumento não-sólido.

7.65 As respostas da obscuridade e da inadequação Não é absolutamente claro que a primeira parte da premissa (B) do ACH seja verdadeira, isto é, que o teísmo realmente pode

explicar adequadamente a consciência humana,

especialmente se levarmos em conta que a maioria dos defensores do ACH ( bem como a vasta maioria dos teístas m geral) concebem Deus como um ser transcendental; e supõe-se que seres transcendentais existam além do espaço e do tempo. Existe um certa dificuldade conceitual aqui, a saber, como um ser que está além do espaço e do tempo pode realizar absolutamente qualquer pensamento ou ação. Pensar e agir, segundo a compreensão comum, necessariamente (ou seja, por definição) envolve a temporalidade. Assim, a alegação de que Deus, assim definido, realiza alguns atos ou concebe alguns pensamentos que resultam na instanciação da consciência humana parece demasiado nebulosa, senão explicitamente incoerente. Mas o ACH pressupõe exatamente esta afirmação. Por conseguinte, o ACH padece de um certo tipo de obscuridade que o torna, na melhor das hipóteses, altamente duvidosa. Há também alguns questionamentos empíricos que precisam ser enfrentados, um tipo de problema com o modus operandi. Isto é, o ACH falha em fornecer qualquer informação a respeito de como Deus, presumivelmente um ser transcendental, supostamente originou o fenômeno em questão, isto é, a consciência humana. Portanto, é uma explicação escandalosamente incompleta (admitindo-se que seja mesmo possível adequadamente considera-la absolutamente uma explicação, o que certamente é discutível). Ao falhar em elucidar a questão de como exatamente Deus alegadamente realizou a proeza em questão, o ACH implicitamente a proclama “um grande mistério”. Porém, mas palavras de Theodore Drange, “o objetivo de uma explicação é dissipar o mistério,não introduzi-lo.”[34] Em virtude tanto de sua inadequação quanto de sua obscuridade, o ACH deve ser rejeitado, e junto com ele a OACH.

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7.66 A resposta da explicação ateísta (ou naturalista) Embora possa ser difícil ou mesmo impossível estabelece-lo conclusivamente, pode-se construir um caso forte respaldando que, ao contrário do que a última metade da premissa (B) do ACH declara, o ateísmo (ou naturalismo) pode, na verdade, explicar adequadamente o fato em análise (isto é, a consciência humana). Como Drange assinala: Vários cientistas vem contribuindo para este projeto. É um objeto de pesquisas em andamento em vários campos do conhecimento, incluindo a fisiologia do cérebro, a biologia, a química… apesar de ainda se encontrar incompleto, ainda não se defrontou com nenhuma dificuldade insuperável. Os cientistas mostram como a origem química da vida é compatível com certas leis naturais. Invocando as mutações e a seleção natural, eles explicam os mecanismos pelos quais a vida se desenvolveu do simples ao complexo. Eles possuem teorias sobre como a “razão” opera e como ela pode ter valor de sobrevivência… formulações de explicações matrialistas [da consciência] em termos tais como “tempo e acaso operando sobre a matéria”, “ativação aleatória de neurônios”, “mentes e inteligência surgindo por acaso a partir da matéria rudimentar”, etc. [o que muitas vezes caracteriza as críticas teístas a tais explicações] parece bastante equivocado e irrelevante, fora de escopo… A ciência percorre um longo caminho em direção a uma explicação da consciência em termos materialistas, e descartar todo este trabalho não é uma decisão a ser considerada seriamente.[35] Michael Martin partilha desta opinião, escrevendo: As dificuldades que Swinburne encontra nas explicações nomológicas científicas das correlações psicofísicas não são tão sérias quanto ele supõe ou são baseadas em malentendidos… o problema mais sério que ele encontra em tais explicações é que devido a natureza bastante diferente dos estados cerebrais e dos estados mentais, é difícil ver como meras leis científicas poderiam explicar as diversas correlações entre eles… Existe um problema aqui somente se não se compreender o tipo de leis que podem ser utilizadas em tal explicação. Analogamente, pode-se supor, a fim de explicar as correlações relevantes, que devem existir leis causais particulares relacionando explicitamente quedas de árvores a bloqueios de tráfego e rompimentos de circuitos elétricos, mas tal suposição é falsa. Leis acerca de corpos em queda podem ser utilizadas para explicar a correlação entre alguns dos termos abarcados pela descrição de “circuitos elétricos rompidos” e algum aspecto da queda de uma árvore. De maneira similar, leis acerca da eletricidade podem ser utilizadas para explicar a correlação entre os items e a falta de energia elétrica, e por aí vai. Em outras palavras, o todo complexo pode ser decomposto em suas partes constituintes, e estas

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podem ser explicadas separadamente. A mesma abordagem pode ser utilizada para explicar fenômenos mentais… Uma vez que olhemos para a situação desta maneira a montanha de obstáculos levantada por Swinburne desmorona.[36] Em relação à explicação teísta da consciência oferecida por Swinburne, Martin expõe suas falhas da seguinte maneira: Embora explicações pessoais sejam familiares e naturais na vida cotidiana, sabemos que o modo pelo qual intenção de alguém resulta em algum ato possui uma base fisiológica… quando eu intencionalmente movo meu dedo pode parecer que existe uma conexão direta entre a intenção e o movimento. Mas sabemos que esta conexão é possível somente em virtude de uma complexa relação fisiológica causal. No caso de Deus não existe tal relação. Segundo Swinburne, a relação entre a intenção de Deus e o ato intencional é direto e sem mediação. Considerando-se nosso conhecimento de fundo sobre como explanações causais funcionam na vida cotidiana, explanações pessoais de correlações psicofísicas em termos de intenções de Deus parecem improváveis. Todas as nossas evidências indicam que intenções não provocam efeitos físicos diretamente.[37] Somadas a tudo isto, mesmo que as explicações pessoais teístas em geral sejam aceitas, questões críticas permanecem concernentes às explicações pessoais teístas das correlações psicofísicas em particular. Como o filósofo J.L. Mackie colocou recentemente: Teria Deus de alguma maneira produzido as estruturas materiais que agora originam a consciência? Mas isto não é quase tão difícil de compreender quanto a hipótese de que as estruturas materiais o façam por si próprias? Ou estamos a considerar cada interface corpomente, por exemplo a ocorrência de cada estado de consciência perceptiva após o estímulo sensorial apropriado e a alteração neurofisiológica, como a efetivação de uma intenção divina recém-manifestada, de maneira que a percepção sensorial é, estritamente falando, um milagre indefinidamente repetido de modo que temos uma série interminável de intervenções divinas na ordem causal natural? Mas além disso… não poderia a onipotência sobreacrescentar uma faculdade pensante a um bloco de madeira tão facilmente quanto a um cérebro? Se o materialismo enfrenta a dificuldade de explicar como mesmo os mais elaborados sistemas neurais podem originar a consciência, o teísmo, com suas explicações pessoais e a realização intencional direta, tem uma dificuldade pelo menos tão grande quanto em explicar por que a consciência é encontrada apenas neles.[38] Ademais, uma explanação pessoal sobrenatural é perfeitamente consistente com as correlações entre estados cerebrais e estados mentais sendo ocasionados pela ação deliberada ou de uma divindade finita ou um de um número finito de divindades. Portanto, o ACH fracassa

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em mostrar que a consciência pode ser explicada somente postulando a existência de uma divindade onipotente, onisciente, onibenevolente e transcendente que criou e governa o universo inteiro, a saber, o Deus do teísmo clássico. Em seu livro de 1996 Is there a God?, Swinburne escreve o seguinte: Pode muito bem ser o caso de que certos estados cerebrais primitivos causem a existência de almas _ à medida em que o cérebro fetal atinge um determinado estágio de seu desenvolvimento ele origina uma alma vinculada a ele. Mas o que isto não deria causar é _ qual alma é vinculada a ele. Não poderiam ser os poderes deste cérebro, das moléculas deste feto orginadas por seus genes, que sejam a causa de minha alma estar conectada a este cérebro e a sua, àquele, em vez de o contrário. Seria igualmente compatível com todas as regularidades entre tipos de eventos (este tipo de organização cerebral e a existência de um tipo de substância – uma alma) que a ciência jamais seja capaz de descobrir que você e eu deveríamos ter sido conectados a cérebros de maneira contrária à que estamos agora conectados. Simplesmente não há descoberta científica possível imaginável por qualquer um que explicaria porque isto aconteceu deste modo em vez de daquele modo.[39] Existem diversos problemas com isto. Antes de mais nada, Swinburne aparenta, num grau considerável, simplesmente presumir a falsidade do ME, meramente declarando que “essa concepção parece obviamente falsa”[40] e que a veracidade do dualismo “contempla-nos face a face”[41]. Mas que o ME seja de fato falso (ou mesmo improvável) não é de maneira alguma óbvio . Como foi mostrado na seção 2 acima, inúmeros filósofos e cientistas, longe de considera-lo absurdo, acham-no extremamente convincente (especialmente à luz de sua simplicidade). O mais notável dentre eles certamente é Daniel Dennett, que indubitavelmente julgaria a rejeição marcadamente improvisada de Swinburne ao ME tanto escandalosamente infundada quanto bastante característica da indefensável propensão de vários filósofos teístas a descartar o ponto de vista como manifestamente falso quando ele é tudo menos isso. Tal abordagem dogmática pode ser eficaz quando dirigida a uma audiência cujos membros partilham do preconceito em questão, mas simplesmente não funciona como um argumento que pretenda possuir um valor dialético amplo e que vise persuadir um indivíduo neutro, ou mesmo com conhecimentos científicos limitados[42]. Em segundo lugar, o comentário de Swinburne (particularmente o último) fracassa em reconhecer o progresso significativo alcançado pelos cientistas em seus esforços para explicar a consciência num contexto estritamente materialista, como discutido por Drange acima. A afirmação de Swinburne de que “simplesmente não há descoberta científica possível imaginável por qualquer um que explicaria porque isto aconteceu deste modo em vez de daquele modo” é uma mera alegação, sem qualquer fundamento em dados científicos.

51

Tampouco



qualquer

coisa

intrinsecamente

contraditória

na

noção

de

que

tal

descoberta deva ocorrer. Ao que parece, sua afirmação é não apenas infundada, como também francamente falsa. Terceiro, imagine por um momento que a ciência seja realmente incapaz (mesmo em princípio) de tornar a descoberta disponível ( o que, obviamente, não é o caso). Não poderia simplesmente ser um fato bruto o que Swinburne descreve “aconteceu deste modo em vez de daquele”? Não vejo qualquer razão imediata para descrer nisso, e certamente Swinburne não oferece nenhuma razão efetiva. Não apenas parece intuitivamente correto supor que fenômenos específicos absolutamente não possuam qualquer explicação final, como a física quântica já demonstrou que ao menos um punhado de tais fênomenos realmente ocorrem (por exemplo, o momento no qual uma partícula subatômica começa a existir, o decaimento de um núcleo atômico num momento particular, etc). Portanto, mesmo supondo que Swinburne estivesse correto acerca do que diz na passagem acima (isto é, que é de alguma maneira inconcebível que a ciência deva descobrir uma explicação para o fenômeno em questão), ainda não existiria nenhuma razão para aceitar sua conclusão de que somente Deus poderia explicar adequadamente por que certos estados cerebrais originam certos estados mentais correspondentes (admitindo, é claro, que os últimos de fato existam). Em sua obra mais antiga e bem mais abraangente, The existence of God, Swinburne declara isto: Seja k a premissa de que existe um mundo ordenado (e belo). Seja ea existência da consciência. Seja h… a hipótese teísta _ de que existe um Deus. P(e|~h.k) é baixa _ é improvável que o mundo deva possuir precisamente o tipo de complexidade para a qual um repertório de conexões mente-corpo estaria equipado, sem alguma explicação… a regularidade em meio à complexidade clama por uma explicação… não parece absolutamente plausível supor que exista uma explicação científica deste fenômeno… por razões de simplicidade, a mais provável explicação pessoal é aquela em termos da atuação de Deus… porque tal explicação é em si mesma a o tipo mais simples de explicação pessoal…[43] Também existem numerosas dificuldades com esta linha de argumentação. A principal dentre elas é sua vulnerabilidade à respostas análogas às do “Ônus da Prova”, “Invalidez” e “Obscuridade e Inadequação” apresentadas acima. Uma falha quase tão grave que a infesta é a imensa obscuridade envolvendo o tipo de explanações pessoais teístas para as correlações psicofísicas às quais Mackie alude na passagem citada acima. Além disso, como o filósofo Quentin Smith sagazmente observou[44], também poderíamos simplesmente enunciar o h da fórmula de Swinburne (que é derivada do teorema de Bayes)

52

como a hipótese de que “existe uma divindade predominantemente malévola” em vez de deixa-la representar o teísmo, isto é, a hipótese de que “existe uma divindade onibenevolente”. Assim, substituindo h= existe uma divindade perfeitamente bondosa por h’= existe um deus predominantemente odioso e então modificando a fórmula dada para que ela declare P(e|h’.k) chegaríamos à conclusão de que h’ é mais provável do que ~h’ (isto é, um deus predominantemente odioso é mais provável do que a hipótese de que não existe tal deus. Ergo, se aceitarmos a afirmação de Swinburne de que a consciência é improvável exceto sob intervenção divina, então podemos dizer de h’ exatamente o que Swinburne diz de h, a saber, que P(e|h’.k)>p(e|k). E embora certamente não exista qualquer razão que seja para supor que h’ possua melhorrespaldo empírico do que sua negação ( uma vez que não há qualquer razão para aceitar a afirmação de Swinburne), considerando-se a vasta quantidade de sofrimento (ostensivamente) gratuito e de mortes prematuras no mundo e a ausência de uma teodicéia satisfatória, existe toda razão para julga-la melhor apoiada por evidências empíricas do que h[45]. Colocado de outra maneira, à luz dos dados disponíveis, h’ é claramente mais provável a primeira vista do que h. (Obviamente, um deus predominantemente malévolo não desejaria menos um universo com vida inteligente do que um onibenevolente, já que a efetivação do mal moral não necessita menos da existência de vida inteligente do que a efetivação do bem moral; um ser não pode exercer sua malevolência sobre a matéria inanimada, mas sem dúvidas o pode sobre criaturas inteligentes sujeitos ao sofrimento e à morte prematura.) Por conseguinte, podemos razoavelmente asseverar que P(e/h’.k) > P(e/h.k). Mas isto não soa paradoxal? Como poderia o mesmo corpo de evidências confirmar igualmente bem duas hipóteses incompatíveis? Como Quentin Smith explica: Se isto parece paradoxal, é porque se está a confundir confirmação relativa (a qual estou expressando aqui por ‘confirmação’) com confirmação absoluta (para a qual devo utilizar a expressão ‘torna altamente provável’). O mesmo corpo de evidências não pode tornar altamente provável cada uma das duas hipóteses incompatíveis, mas pode aumentar a probabilidade de cada uma das duas hipóteses incompatíveis (isto é, tornar as duas hipóteses mais prováveis do que seriam sem as evidências).[46]

53

Desnecessário dizer, contudo, que tal implicação de sua fórmula não foi antecipada por Swinburne; e, na verdade, seus esforços em provar que h é mais provável que ~h utilizando essa fórmula mostraram-se infrutíferos. Além

disso,

“h” não

precisa

representar

uma

hipótese

que

postula

a

existência

de qualquer divindade, benevolente ou não. Suponha, em vez disso, que ela expressasse o seguinte: h”= existe uma espécie de extraterrestres extraordinariamente avançados intelectual e tecnologicamente que de alguma maneira (secretamente) dotaram os seres humanos de consciência. Novamente, efetuando a substituição e a modificação apropriadas, podemos produzir a fórmula P(e/h”.k) e desta maneira chegarmos à conclusão de que P(e/h”.k) > P(e/h.k), a saber, que h” é mais provável do que h (isto é, que a hipótese de que existe uma espécie de alienígenas extraordinariamente avançados intelectual e tecnologicamente que de alguma maneira (secretamente) dotaram os seres humanos com consciência é mais provável do que a hipótese de que existe um deus perfeitamente bom). Uma vez que h” se equipara em escopo, simplicidade e fecundidade à h, porque a primeira é indubitavelmente menos obscura (ou conceitualmente

problemática)

do

que

a

última,

parece

razoável

o

bastante

declarar h” explanatoriamente superior a h e assim (ainda que ligeiramente) a mais plausívl das duas hipóteses. Segue-se que P(e/h”.k) > P(e/h.k), ou, pelo menos, que P(e/h”.k) = P(e/h.k). Claramente, então, a fórmula de Swinburne não faz absolutamente nada para favorecer o caso do sobrenaturalismo, quanto mais do teísmo clássico. Ademais, embora talvez algo plausível duas décadas atrás, a afirmação de Swuinburne de que os cientistas não podem vincular eventos mentais com estados neurofisiológicos tornou-se insustentável. Reconhecimedamente, devido à complexidade do cérebro e da dificuldade em observar processos num cérebro vivo, não é um tarefa simples. Não obstante, nos últimos anos tornou-se possível observar e mensurar certos processos mentais e os eventos químicos e elétricos correspondentes no cérebro. A localização de memórias de pensamentos específicos tem sido determinada, e o progresso nesse campo está se acelerando rapidamente (especialmente com o auxílio de tecnologias como os dispositivos de ressonância magnética), com descobertas importantes ocorrendo regularmente. Portanto, apesar de ainda não ser possível determinar com precisão as correlações entre alguns eventos mentais e estados neurofisiológicos, mesmo assim é praticamente indiscutível que elas de fato existem. Analogamente, embora não sejamos ainda capazes de compreender plenamente todas as interações complexas que ocorrem entre os padrões climáticos globais, seria absurdo declarar que essas interações não ocorrem realmente. Por exemplo, apenas porque não podemos prever com muita (se é que com qualquer) precisão o comportamento de um ciclone,

54

dificilmente deveríamos asseverar que inexistem regularidades meterológicas que governam esse comportamento, e que é impossível que um dias venhamos a descobri-los. De maneira similar, não podemos pressupor que apenas porque os cientistas ainda não são capazes de identificar todas as correlações entre eventos mentais e estados neurofisiólogicos, estas correlações inexistem. Na verdade, a gama de correlações mente-cérebro já estabelecidas é mais do que suficiente para apoiar a argumentação de que tais correlações existem mesmo nos casos em que elas não são prontamente discerníveis. Mais ainda, a afirmação de Swinburne de que “é improvável que o mundo deva possuir precisamente o tipo de complexidade para o qual um repertório de conexões mente-corpo estaria equipado, sem alguma explicação” padece tanto de uma certa indefinição própria quanto de uma (implícita) suposição infundada. Em relação à indefinição, ela surge de sua menção à “complexidade”, um assunto que certamente comporta uma considerável carga de subjetividade: o que uma pessoa considera complexo outra pode muito bem considerar bastante simples (e vice-versa), e parece não haver procedimento objetivo pelo qual qualquer delas possa provar que a outra está enganada. Em relação à suposição, é uma à qual me referi antes, a saber, que o fenômeno em questão (isto é, a maneira peculiar pela qual a mente e o cérebro interagem, assumindo que eles de alguma maneira o fazem) deve possuir alguma explicação. Entretanto, como foi explicado acima, esse simplesmente não é o caso, pois pode muito bem ser que esse fenômeno seja exatamente um fato bruto da mesma maneira que o comportamento acausal das partículas subatômicas e dos núcleos atômicos parece ser. No mínimo, Swinburne não considera esta possibilidade, o que ele muito seguramente deveria fazer. Outra objeção possível ao argumento de Swinburne acima é que vários filósofos, incluindo teístas eminentes, rejeitam incondicionalmente a noção de que qualquerhipótese possua qualquer probabilidade a priori que seja. Outros simplesmente negam que o teísmo e o naturalismo em particular possuam probabilidadesintrínsecas, a priori. Um exemplo dos primeiros é o metafísico cristão Alvin Plantinga, que rejeita a idéia de que hipóteses podem ter probabilidades puramente a priori[47]. Um exemplo dos últimos é o teólogo e filósofo cristão John Hick, que considera o teísmo e o naturalismo visões de mundo exaustivas, que a tudo englobam, e que, em virtude de sua abraangência, impedem a existência de padrões neutros sobre os quais possam ser ponderadas suas probabilidades relativas[48]. Swinburne fracassa em lidar adequadamente com tais objeções. Algo também precisa ser dito sobre a declaração de Swinburne de que “por razões de simplicidade, a mais provável explicação pessoal é aquela nos termos da atuação de Deus… porque tal explicação é em si mesma o mais simples tipo de explicação pessoal.” Primeiro, como indicadoo na seção 7.65 acima, devido à obscuridade colossal que aflige a própria

55

“Hipótese de Deus” , não é absolutamente claro, apesar de tudo o que Swinburne diz, que essa hipótese realmente constitua qualquer explicação que seja. Além disso, ainda que fosse o caso de essa ser “em si mesma o tipo mais simples de explicação pessoal”, não a vejo como a explicação mais simples de um modo geral. Na verdade, postular a existência de uma entidade aparentemente supérflua (por exemplo, Deus) viola o princípio de parcimônia independentemente de quão bem a entidade possa se encaixar em algum arcabouço alegadamente explanatório dentro do qual ocorra de alguém equivocadamente operar. E claramente, em vista de tudo o que foi dito, pode ser razoavelmente reconhecido que nenhuma entidade semelhante precisa ser postulada a fim de explicar adequadamente a consciência humana. Portanto, postular qualquer entidade similar na verdade exigiria desprezar a parcimônia, donde resulta que a alegação de Swinburne é errônea. Finalmente, independentemente do ACH ( seja a versão particular de Swinburne ou qualquer outra), não existem boas evidências objetivas de que Deus existe. Nenhum dos argumentos teístas que tem sido apresentados em arenas públicas é realmente bom[49]. Reciprocamente, existem dúzias de argumentos ateológicos que ainda esperam por ser definitivamente refutados, mais notavelmente o Argumento Probabilístico do Mal, os Argumentos da Descrença e da Confusão de Drange, e os variados Argumentos da Incoerência[50]. Como deveria estar indiscutivelmente evidente a esta altura, a premissa (B) do ACH é absolutamente sem valor. E, em qualquer caso, o ACH é inválido, como foi mostrado na seção 7.64 acima. Portanto, o argumento colapsa, levando a premissa (a) da OACH e por conseguinte o próprio argumento abaixo com ela. Consequentemente, O2, exposta acima, é um fracasso[51].

7.7 A Objeção das Outras Mentes (OOM) Formulada e Refutada A OOM pode ser formulada assim: (A) De acordo com a TDC, mentes humanas não podem existir a menos que cérebros também existam. (B) Entretanto, é possível que mentes humanas representem apenas um conjunto de uma classe inteira de mentes, sendo que alguns dos conjuntos desta classe podem consistir de mentes que podem existir na ausência de cérebros (isto é, de maneira incorpórea). (C) Portanto, é possível que a premissa (2) do AMI e do API seja falsa. (D) Assim, é possível que tanto o AMI quanto o API sejam argumentos não-sólidos.

56

A resposta mais óbvia à OOM é que ela é inaplicável ao AMI e ao API, uma vez que estes são apenas argumentos probabilísticos e como tais pretendem apenas mostrar que há boas razões para aceitar suas conclusões. Isto é, eles alegam que suas premissas são verdadeiras, mas de modo algum indubitáveis. Assim, objeções possibilistas tais como a OOM fracassam em debilita-los. Mas suponha que o defensor da OOM levasse a objeção um passo adiante e, em vez de sua premissa (B), apresentasse a afirmação (substancialmente mais ousada) de que não somente é possível que exista alguma mente (ou conjunto de mentes) que não requeira nenhum cérebro para existir, mas que é provável que exista tal mente (ou conjunto de mentes); e portanto que é não somente possível que a segunda premissa do AMI e do API seja falsa (e consequentemente possível que ambos os argumentos sejam não-sólidos), mas que é provável que essa premissa seja falsa (e consequentemente provável que ambos os argumentos sejam não-sólidos). Se o defensor mencionado de fato realizar tal jogada, então a OOM se tornaria um argumento totalmente diferente, e recairia sobre seu defensor o ônus de provar a afirmação em questão. Como ele deveria proceder para ter a mínima chance de ser bemsucedido é pouco claro. Contudo, parece provável que tal empreitada estaria condenada desde o princípio, uma vez que, pela própria natureza do caso, qualquer hipótese a que ele apelasse para apoiar sua afirmação seria puramente especulativa. Em constraste, a TDC é apoiada tanto por argumentos filósoficos cogentes quanto por dados científicos bem-estabelecidos. Por conseguinte, podemos concluir com segurança que mesmo esta forma mais audaciosa da OOM não representa nenhuma ameaça digna de consideração à segunda premissa do AMI e do API. Portanto, O3, exposta acima, é um fracasso. 8. Recapitulação Na seção 2, mostrei que os resultados de trabalhos nos campos da neurofisiologia e da filosofia da mente conferem um forte respaldo tanto para a Teoria da Dependência Cerebral quando para o Materialismo Estrito, citando vários especialistas naqueles campos de forma a corroborar essa afirmação. Na seção 6, defendi a primeira premissa do API, apresentando o que considero ser um caso convincente de que a (provável) impossibilidade de um pós-vida incorpóreo pode ser legitimamente invocada como um fundamento sobre o qual pode-se construir um argumento ateológico sólido: como a maioria dos teístas acredita que existência de Deus e a existência de um pós-vida estão indissociavelmente vinculados um ao outro, a inexistência do último, colocada além de qualquer dúvida razoável pelo AMI, implica a falsidade da crença da maioria dos teístas, pelo menos (isto é, na medida em que esses teístas subscrevem à existência de uma divindade cujas propriedades essenciais incluem ter dotado a humanidade com um pós-

57

vida, o AMI refuta seu gênero particular de teísmo em virtude de demonstrar que provavelmente a sobrevivência à morte dedutível é impossível, do que resulta que provavelmente tal divindade não existe); e, além disso, que porque a existência de um pósvida é indispensável à uma cosmovisão teísta clássica, pode-se argumentar convincentemente que, considerando-se a inexistência de um pós-vida, essa visão de mundo é propriamente infundada. Nas seções 7.1 a 7.5, eu primeiro expus e então passei a refutar a primeira de três objeções (O1-O3 acima) à segunda premissa do AMI e do API, mostrando serem falaciosas as afirmações de que existe alguma forma de evidência empírica para um pós-vida ( o que seria contraevidência para aquela premissa) que a invalidasse completamente. Como vimos nessas seções, todos os quatro fenômenos parapsicológicos examinados podem ser explicados naturalisticamente e, ergo, nenhum deles constitui qualquer prova que seja para a plausibilidade seja das mentes incorpóreas, seja do pós-vida incorpóreo. Nas seções 7.61 a 7.66, eu primeiro expus e então passei a refutar a segunda das três objeções supracitadas à segunda premissa tanto do AMI quando do API, apresentando quatro respostas ao ACH com as quais eu tanto ataquei sua premissa (B) quanto expus sua invalidez, desta forma demonstrando sua falta de solidez (e portanto a da própria OACH). Como foi sobejamente demonstrado, não somente é o teísta incapaz de provar que a consciência humana é de alguma maneira improvável (menos ainda impossível) sob o pressuposto ateísta (ou naturalista), como também é incapaz de sequer justificar as seguintes afirmações: (i) somente o Deus do teísmo clássico poderia ter originado a consciência humana, e (ii) o Deus do teísmo clássico (especialmente quando visto como um ser transcendente) poderia, de fato, originar esse fenômeno. Além disso, nenhum teísta ainda resolveu satisfatoriamente nem o problema conceitual de como um ser que existe fora do espaço e do tempo supostamente realizou qualquer ato ou concebeu qualquer pensamento (ambos os quais, por definição, envolvem o tempo) nem a dificuldade empírica sobre exatamente como Deus (transcendente ou não) teria realizado a proeza em questão (isto é, como, exatamente, ele procedeu ao dotar os seres humanos de consciência). Inválido, não-sólido e explanatoriamente irrelevante, o ACH é um nítido fracasso. Na seção 7.7 eu primeiro expus e então passei a refutar a terceira das três objeções supracitadas à segunda premissa do AMI e do API, demonstrando que a OOM é patentemnte indefensável, já que simplesmente não há o menor traço de evidência para qualquer mente

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ou conjunto de mentes que podem existir na ausência de cérebros, ao passo que a TDC é largamente justificada tanto em bases científicas quanto filosóficas. Em conformidade, concluo que tanto o Argumento da Mente Incorpórea quanto o Argumento do Pós-Vida Incorpóreo constituem poderosos argumentos probabilísticos para a inexistência de Deus[52]. Notas 1. T. H. Huxley, “On the Hypothesis that Animals are Automata, and its History” (1874), The Fortnightly Review, n.s.16:555-580. Republicado em Method and Results: Essays by Thomas H. Huxley (New York: D. Appleton and Company, 1898). 2. Theodore M. Drange, Nonbelief & Evil: Two Arguments for the Nonexistence of God (Amherst, N.Y.: Prometheus Books, 1998), p. 375. 3. Ibid., 375. 4. Jacques P. Thiroux, Philosophy: Theory and Practice (N.Y.: Macmillan Publishing Company, 1985), p. 87. 5. J.J.C. Smart, “Materialism,” Journal of Philosophy, 22 (October 1963), p. 660. 6.

Daniel

C.

Dennett,

“Consciousness

in

Human

and

Robot

Minds,”

(http://ase.tufts.edu/cogstud/papers/concrobt.htm). 7. Michael Tooley, “Opening Statement” in William Lane Craig and Michael Tooley debate, “Does

God

Exist?”

(http://www.leaderu.com/offices/billcraig/docs/craig-tooley2.html>,

1994). 8. Keith Augustine, O caso contra a imortalidade. 9. Gostaria de sublinhar que meus argumentos são meramente probabilísticos, ou seja, não afirmo que eles sejam argumentos dedutivamente válidos (ou conclusivos), mas, em vez disso, apenas afirmo que as inferências a partir de suas premissas (1)-(3) para suas etapas (4) e (5) são de um tipo indutivo forte. 10. Suponha que “mente” seja substituído por “ente”. O AMI preservaria sua solidez? Eu certamente pensaria que sim, pois até onde sabemos, um ser pode consistir no máximo de dois constituintes: matéria e mente. (Em relação a “almas” veja a seção 7.1 acima) E uma vez que, como demonstrado na seção 2, mentes não podem existir separadas da matéria (isto é, cérebros), todo ser consciente deve possuir um apêndice físico (isto é, um cérebro). Em relação à possibilidade de que Deus talvez possua algum apêndice físico (e portanto seja ele próprio ao menos parcialmente físico), duas considerações devem ser feitas: primeiro, praticamente nenhum teísta concebe Deus dotado de qualquer apêndice do tipo (físico), de forma que a questão é altamente controversa; e segundo, como uma divindade, por definição, difere dos

59

humanos não apenas em grau como também em natureza, a noção de Deus como um ser (parcialmente) corpóreo não somente diverge radicalmente do uso ordinário do termo, pouco se assemelhando ao que aproximadamente todos os teístas por ele significam, como também falha em apreender a essência da própria definição supracitada. 11. Isto pode ser visto como um tipo de definição estipulativa (ou seja, para os propósitos deste ensaio) de “Deus”, que poderia ser enunciada assim: “Deus = ” um ser que (entre outras coisas) dotou a humanidade com um pós-vida incorpóreo”. Se um teísta (por exemplo, uma Testemunha de Jeová) rejeitar esta definição estipulativa, deve-se reconhecer que o API é inaplicável a seu conceito particular de Deus, e portanto a seu tipo particular de teísmo (provavelmente genérico). 12. Veja, especialmente, o livro de Michael Shermer, How We Believe: The Search for God in an Age of Science (New York, N.Y.: W.H. Freeman and Company, 2000), pp. 22-23, 251. 13. A.J. Mattill, Jr., The Seven Mighty Blows to Traditional Beliefs (The Flatwoods Free Press: Gordo, Alabama, 1995), p. 53. 14. Paul Kurtz, “The New Paranatural Paradigm: Claims of Communicating with the Dead,” Skeptical Inquirer, Vol. 24, No. 6 (November/December 2000), p. 28. 15. Drange, p. 371. 16. Michael Martin, Problems With Heaven. 17. C.D. Broad, “On Survival Without a Body” (Immortality, Paul Edwards [editor], New York: Macmillan, 1992), p. 278. Veja também Keith Augustine, O caso contra a imortalidade. Augustine apresenta diversos argumentos filósoficos cogentes contra a possibilidade empírica e conceitual de um pós-vida incorpóreo neste excelente artigo. 18. Drange, p. 376. 19.Augustine, O caso contra a Imortalidade. 20. Michael Shermer, Why People Believe Weird Things: Pseudoscience, Superstition, and Other Confusions of Our Time (New York, N.Y.: W.H. Freeman and Company, 1997), p. 80. 21. Ibid., pp. 81-82. 22. Augustine, O caso contra a Imortalidade. 23.Ibid. 24.Ibid. 25. Shermer, pp. 80-81.

60

26. Drange, pp. 368, 377 27. Augustine, O caso contra a Imortalidade. 28. Shermer, p. 33. 29. Augustine, O caso contra a Imortalidade. 30. Michael Martin, Atheism: A Philosophical Justification (Philadelphia: Temple University Press, 1990), pp. 449-450. 31. Drange, p. 377. 32. Não afirmo que esta seja uma formulação precisa do argumento da consciência de Swinburne per se. Em vez disso, ela constitui meramente minha tentativa de construir uargumento que represente acuradamente uma forma mais genérica do argumento de Swinburne, isto é, qualquer argumento que parta da premissa de que, dado o ateísmo (ou naturalismo), a consciência humana é ou improvável ou impossível. 33. Veja Drange, Atheism, Agnosticism, Noncognitivism. 34. Drange, Writings Regarding the Bible (1998), p. 103. 35. Drange, The Drange-Wilson Debate: Dr. Drange’s First Rebuttal. 36. Martin, pp. 218-219. 37. Ibid., p. 220. 38. J.L. Mackie, The Miracle of Theism (Oxford: Clarendon Press, 1982), pp. 130-131. 39. Richard Swinburne, Is There a God? (New York, N.Y.: Oxford University Press, 1996), p. 89. 40. Ibid., p. 39. 41. Swinburne, The Existence of God (New York, N.Y.: Oxford University Press, 1979), p. 166. 42. Ao passo que mais tarde, em seu livro de 1996, Swinburne faz uma tentativa pífia de defender dois argumentos dualistas comuns (a saber, o que apela ao assim chamado “acesso privilegiado” que uma pessoa tem a seus estados mentais; e o argumento do transplante hipótetico de cérebros), ambos argumentos bastante controversos e cujas premissas principais são vulneráveis a desafios de materialistas estritos como Dennett. Presumi-los como verdadeiros (como Swinburne faz extensamente, argumentando em seu favor apenas de maneira rudimentar) é petição de princípio. Este também é o caso de seu argumento a partir das propriedades fenomenais (por exemplo, azul, dificuldade, cheiro de rosas), ao qual ele apela nas páginas 164-166 de sua obra mais ampla, The Existence of God.

61

43. Swinburne, The Existence of God (New York, N.Y.: Oxford University Press, 1979), pp. 173-174. 44. Quentin Smith, “The Anthropic Coincidence, Evil, and the Disconfirmation of Theism“ 45. Veja, especialmente, Nonbelief & Evil: Two Arguments for the Nonexistence of God, de Drange 46. Smith, “The Anthropic Coincidence, Evil, and the Disconfirmation of Theism” 47. Alvin Plantinga, “The Probabilistic Argument from Evil,” Philosophical Studies, Vol. 35, #1 (1979). 48. John Hick, Arguments for the Existence of God (London: Macmillan, 1970), pp. 32-33. 49.

Para

refutações

minuciosas

dos

argumentos

teístas

em

questão,

veja http://www.infidels.org/library/modern/theism/arguments.html 50.

Para

acessar

este

e

outros

argumentos

ateológicos,

veja http://www.infidels.org/library/modern/nontheism/atheism/arguments.html 51. Correndo o risco de chutar um cachorro morto, eu estaria sendo negligente se deixasse de mencionar a paródia potente e espirituosa que Michael Martin criou a partir do Argumento Transcendental para a existência de Deus (um argumento aparentado ao ACH) que ele chama de Argumento Transcendental para a Inexistência de Deus. Ele pode ser lido aqui. 52.Estou em débito com Theodore M. Drange, Jeffery Jay Lowder, Wes Morriston, e Keith Augustine por seus comentários úteis sobre rascunhos anteriores deste artigo. *Steven J. conifer é presidente da Rationalists United for Secular Humanism (R.U.S.H.) na Marshall University em Huntington, West Virginia.

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03: O ocultamento divino e a distribuição demográfica da crença teísta Resumo: Segundo o amplamente discutido argumento do ocultamento divino, a existência de Deus é refutada pelo fato de nem todas as pessoas acreditarem em Deus. O argumento provocou uma variedade impressionante de réplicas teístas, mas nenhuma superou — ou, como sugiro, poderia superar — o desafio colocado pela distribuição irregular da crença teísta ao redor do mundo, um fenômeno para o qual explicações naturalistas parecem muito mais promissoras. A “demografia do teísmo” frustra qualquer explicação sobre as razões pelas quais a descrença sempre é condenável ou sobre os motivos pelos quais Deus permite a descrença inocente. Tais dados também lançam dúvidas sobre a existência de um sensus divinitatis: o conhecimento de Deus que os epistemólogos reformados afirmam ser inato em todos os seres humanos normais. Finalmente, a distribuição demográfica torna o argumento do ocultamento divino, sob certos aspectos, um argumento ateológico ainda mais poderoso do que o mais conhecido e popular argumento do mal. O argumento do ocultamento divino De acordo com o argumento do ocultamento divino (AOD), a existência de Deus é refutada pelo fato de nem todas as pessoas acreditarem em Deus. O argumento provocou ao longo dos anos uma variedade impressionante de réplicas teístas, e tornou-se tema de um vigoroso debate contemporâneo. Entretanto, nenhuma destas respostas superou — ou, eu sugiro, poderia superar — o desafio colocado pela distribuição irregular da crença teísta ao redor do mundo, um fenômeno para o qual explicações naturalistas parecem mais promissoras[1]. A “demografia do teísmo” frustra qualquer explicação de por que a descrença sempre é condenável ou de por que Deus permite a descrença inocente. Ela também lança dúvidas sobre a existência de um sensus divinitatis: o conhecimento de Deus que os epistemólogos reformados alegam ser inato em todos os seres humanos normais. Além disso, tais fatos tornam o ADH, em certos aspectos, um argumento ateológico ainda melhor do que o mais conhecido argumento do mal. O ADH possui duas versões principais, que descreverei num grau de detalhamento suficiente para os própositos presentes. A primeira versão começa com a premissa de que o Deus pessoal descrito pelo monoteísmo tradicional é amor em grau insuperável[2]. A partir desta premissa

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deduz-se a conclusão intermediária de que Deus procuraria um relacionamento pessoal amoroso com cada uma das criaturas humanas sempre que tal relacionamento fosse cognitiva e afetivamente possível. A partir desta conclusão intermediária, infere-se que Deus traria cada ser humano à crença em sua existência, dado que a formação de uma relação amorosa genuína entre duas pessoas exige que cada pessoa acredite na existência da outra. O argumento então afirma o que seus proponentes consideram indiscutível: alguns seres humanos que falham em acreditar em Deus são, no entanto, cognitiva e afetivamente capazes de desfrutar de uma relação amorosa com Deus. Conforme o ponto de vista de seus proponentes , algumas pessoas que em todos os sentidos relevantes poderiam acreditar em Deus não o fazem, uma situação que Deus não permitiria se existisse. O argumento conclui, nestas bases, que nenhum Deus nos moldes do monoteísmo tradicional existe. A segunda versão começa com uma premissa mais particular a respeito do Deus descrito pelo Novo Testamento, especialmente sob a interpretação que o cristianismo evangélico faz desse texto[3]. De acordo com esta versão do AOD, o Novo Testamento (evangelicamente interpretado) deixa claro que Deus deseja que todas as suas criaturas humanas acreditem na veracidade da “mensagem do evangelho”, mensagem esta que possui como um de seus elementos decisivos a afirmação de que “o Soberano do universo enviou seu Filho para ser o Salvador da humanidade”[4]. A especificidade desta premissa inicial permite à segunda versão avançar mais rapidamente que a a primeira: o Deus descrito pelo cristianismo evangélico faria com que todas as pessoas cognitiva e afetivamente capazes acreditassem na mensagem do evangelho. Todavia, somente uma minoria de todos os seres humanos cognitivamente capazes acreditaram na mensagem do evangelho, incluindo a afirmação de que o soberano do universo enviou seu filho para ser o salvador da humanidade. Portanto nenhum Deus do tipo descrito pelo cristianismo evangélico existe. Descrevi as duas versões do AOD em termos grosseiros, mas espero que não tanto a ponto de obscurecer a plausibilidade ao menos aparente de cada versão. Na primeira versão, raciocinamos a partir do conceito de um Deus insuperavelmente amoroso para a afirmação de que qualquer Deus com esta característica desejaria um relacionamento pessoal recíproco com qualquer outra pessoa que tivesse criado: o amor de uma pessoa por outra, segundo este raciocínio, alcança sua expressão suprema somente numa relação pessoal recíproca, e assim se a Deus faltasse o desejo de se relacionar com pessoas humanas dessa maneira, o amor de Deus seria ultrapassável pelo de um ser como Deus que possuísse tal desejo. Em seguida assinalamos a impossibilidade conceitual de um relacionamento pessoal recíproco no qual ou uma das partes falha em acreditar, ou positivamente descrê, na existência da outra. Um Deus onisciente também reconheceria esta impossibilidade conceitual e assim reconheceria que a crença humana em Deus é necessária para o tipo de relacionamento com seres humanos que

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Deus deseja em virtude de sua essência insuperavelmente amorosa. Se Deus deseja o resultado, então por que, no caso de todo humano descrente, Deus não fez uso dos meios necessários para atingir seu objetivo? A segunda versão começa com a proclamação do Novo Testamento de que Deus quer que todos os seres humanos acreditem na mensagem do Evangelho, e desta maneira esta versão supostamente não precisa de nenhuma declaração sobre o amor insuperável de Deus, ou qualquer inferência a partir da afirmação de que Deus deseja formar relacionamentos amorosos, ou qualquer inferência a partir deste desejo para a ausência de descrença[5]. Se Deus deseja que todos acreditemos na mensagem do evangelho, então por que tantas, ou mesmo uma única pessoa que seja, não acredita nesta mensagem? A distribuição demográfica do teísmo A medida em que se tornaram mais cosmopolitas ao longo dos séculos, os teístas se conscientizaram de que uma parcela considerável da população mundial nunca compartilhou da crença teísta num Deus supremo e pessoal e de que em alguns locais os teístas nunca foram mais do que uma ínfima minoria. Atualmente é um conhecimento comum entre pessoas educadas que as perspectivas religiosas diferem largamente ao redor do globo e que a crença teísta de maneira alguma é disseminada de maneira homogêna entre todas as culturas. Um europeu do século XVI como João Calvino talvez poderia ser perdoado por seu paroquialismo a respeito da crença na existência do que ele chama “Deus o Criador”: Certamente, se existe qualquer região a respeito da qual seja possível supor que Deus é desconhecido, o mais provável é que tal instância exista entre selvagens o mais remotamente apartados da civilização. Mas, como um pagão [Cícero] nos diz, não existe nação tão bárbara, nem raça tão bestial a ponto de seus membros não estarem imbuídos da convicção de que existe um Deus[6]. Mas já faz algum que tempo estamos mais bem informados sobre isso[7]. Enquanto antropólogos nos dizem que a religião num sentido amplo do termo, é encontrada em todas as culturas, o mesmo não pode ser dito sobre “a convicção de que existe” o que Calvino reconheceria como Deus. Ademais, é claro, algumas civilizações bastante sofisticadas com histórias impressionantes nunca contiveram mais do que uma irrisória minoria de teístas. Lembremos que o problema do ocultamento divino resulta em primeiro lugar da natureza do Deus pessoal criador do teísmo, cujas perfeições incluem a amorosidade insuperável e que, de acordo com o cristianismo evangélico, deseja que todas as pessoas acreditem na mensagem do Evangelho. A descrença se torna enigmática se um ser definido desta maneira existe. Por conseguinte, interpretar o teísmo de forma mais genérica, de forma a significar, digamos, a mera crença no sobrenatural, não refuta o AOD; isso é uma mera mudança de assunto.

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Reconhecemos, a crença no sobrenatural é mais difundida e mais uniformemente distribuida do que a crença em Deus, mas o ocultamento divino é um problema para o teísmo em particular, não para o sobrenaturalismo em geral. Os dados demográficos contemporâneos esclarecem a distribuição desigual da crença teísta. A população da Arábia Saudita é pelo menos 95% muçulmana e portanto pelo menos 95% teísta, enquanto a população da Tailândia é 95% Budista e portanto no máximo 5% teísta. O total aproximado das populações é de 26 milhões de pessoas na Arábia Saudita e 65 milhões na Tailândia[8]. Presumivelmente estas amostras são grandes o suficiente para tornar as diferenças estatisticamente significativas e não apenas anomalias que desapareceriam se assumíssemos um ponto de vista adequadamente abraangente. Se esses dados estiverem mesmo que grosseiramente precisos, a distribuição da crença teísta é pelo menos altamente irregular e heterogênea entre estes dois países, e dificilmente eles são os únicos a apresentar esta disparidade. Discussões publicadas do AOD, entretanto, raramente se referem a tais disparidades, talvez porque o debate central esteja concentrado em se o teísmo pode explicar a mera existência da descrença, sem levar em conta sua distribuição. Na introdução de sua antologia Divine Hiddenness: New Essays (2002), os editores Daniel Howard-Snyder e Paul K. Moser aludem à disparidade somente uma vez e ainda assim indiretamente, ao longo da descrição da contribuição de J. L. Schellenberg à antologia, contribuição essa que se refere exclusivamente à disparidade[9]. Nenhum dos artigos na coletânea avalia plenamente o problema. Em vez disso, a maioria dos autores oferecem e avaliam explicações para o ocultamento divino sem considerarem o fracasso destas explicações em esclarecer as atordoantes diferenças geográficas na incidência da crença teísta. Os autores que explicam toda a descrença em termos de deficiências morais ou epistêmicas dos descrentes nunca lidam com a questão “Por que as deficiências variam dramaticamente segundo as fronteiras nacionais e culturais?”. Além disso, dada a pressuposição amplamente sustentada de que, grosso modo, deficiências epistêmicas e morais são distribuídas de maneira equilibrada entre as populações mundiais, é difícil

ver como esta questão poderia ser

respondida. Os autores que reconhecem a existência da descrença inocente, e tentam explicar por que Deus a tolera, nunca levantam a questão sobre o porque de Deus permiti-la de maneira tão desigual. Em suma, considerando-se a gama de explicações oferecidas por autores de ambos os posicionamentos, seus pressupostos parecem rastreáveis a um período da história intelectual européia no qual as crenças dos não-europeus eram ou desconhecidas ou ignoradas.

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Respostas ao AOD As respostas teístas sobre o consentimento da descrença por parte de Deus geralmente caem em três categorias: respostas (1) afirmando que os descrentes sempre são culpáveis por sua descrença; (2) admitindo a descrença inocente mas insistindo que Deus possui boas razões específicas para permiti-la; ou (3) fracassando em lidar com o desafio ou mesmo em considera-lo seriamente. Podemos ser bem breves em nossa discussão destas respostas, uma vez que ficará claro que todas elas falham em explicar os fatos demográficos que são a base de minha crítica. Na categoria 1, encontramos, por exemplo, a alegação de Jonathan Edwards (1703-1758) de que qualquer fracasso de seres humanos, normais em outras situações, em acreditar em Deus, deve refletir ‘ uma assombrosa estupidez mental, ocasionando uma insensibilidade ébria à verdade e à importância’ das doutrinas teístas. Porque, segundo Edwards, os seres humanos ‘tem atos voluntários sobre seus pensamentos’, eles são responsáveis por suas crenças e culpáveis se fracassam em acreditar em Deus[10]. Não me deterei para avaliar a suposição de Edwards de que alguém possui controle voluntário sobre suas crenças numa dada proposição, exceto para dizer que é altamente controversa: apenas tente acreditar voluntariamente que o número total de estrelas é par. Nem questionarei sua suposição de que alguém é sempre culpável por exibir ‘estupidez assombrosa’ ou ‘insensibilidade ébria’. Nada disso importa uma vez que, mesmo admitindo as suposições de Edwards, sua teoria deixa os dados demográficos inexplicados, pois a estupidez e a insensibilidade afligem os seres humanos em proporções iguais ao redor do globo. Edwards foi um calvinista convicto, e a categoria 1 inclui a igualmente inabalável explicação calvinista para o ocultamento divino: a descrença é causada por, e assim um sinal de, pecaminosidade não regenerada. Não é totalmente claro se Calvin atribui a descrença à pecaminosidade pessoal dos descrentes em particular ou, em vez disso, ao pecado original que conspurca ao nascer todo membro da humanidade decaída. Se ao último, então não é óbvio que os descrentes são culpáveis po estarem nesta condição, mesmo se, de acordo com a doutrina de Calvino, eles são condenados por isso. Ademais, considerando-se a doutrina de Calvino de que aqueles dentre nós que desfrutam de um relacionamento pessoal com Deus foram predestinados dessa maneira, não é óbvio que os descrentes merecem a culpa por sua condição mais do que os crentes merecem o mérito pela deles. Finalmente, mesmo se aceitarmos as explicações da categoria 1 e dessa maneira responsabilizar todos os descrentes

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por sua descrença, o problema do ocultamento divino ainda pode persistir. Muitas vezes podese esperar que um genitor amoroso ajude seu filho ou sua filha a sair de uma situação miserável, ainda que a criança seja de alguma forma responsável por estar em tal situação. Tanto mais para um Deus inultrapassavelmente amoroso: a culpabilidade dos descrentes não isentaria automaticamente Deus da obrigação de remediar sua descrença, nem depreciaria automaticamente a expectativa legítima de que Deus o fizesse. Em qualquer caso, contudo, nenhuma destas considerações teológicas importa para os objetivos presentes, uma vez que a explicação de Calvino para a descrença passa por cima dos dados demográficos. Por que razão sobre a terra (literalmente) deveria o território da Tailândia abrigar uma alta proporção de almas predestinadas à danação e o da Arabia Saudita ou (melhor, para Calvino) da Europa pós-Reforma uma proporção muito menor? As respostas bem mais populares da categoria 2 tentam explicar por que Deus pode permitir a descrença inocente. Em sua introdução, Howard-Snyder e Moser sumarizam várias de tais explicações[11]. Deus pode permitir a descrença inocente: (1) a fim de possibilitar que as pessoas livremente o amem, confiem nele e obedeçam-no; caso contrário, seríamos coagidos de uma maneira incompatível com o amor; (2) com o objetivo de impedir uma resposta humana baseada em motivos impróprios (como o medo de punição); (3) porque (caso contrário) os humanos se relacionariam com Deus e com seu conhecimento de Deus de maneiras arrogantes e presunçosas (e como consequencia fracassariam em desenvolver) as atitudes internas essenciais a um relacionamento apropriado com Ele; (4) Porque seu ocultamento nos leva a reconhecer o quão miserável e desamparada nossa vida é quando a conduzimos por nossa conta, sem Deus, e desta maneira nos estimula a procura-lo humildemente arrependidos; (5) porque se ele tornasse sua existência evidente o bastante para impedir a descrença inocente, o senso de risco exigido por uma fé passional seria reduzido de maneira censurável; (6) porque se ele tornasse sua existência clara o suficiente paa impedir a descrença inocente, a tentação para duvidar de sua existência não seria possível, a diversidade religiosa seria repreensivelmente reduzida, e os crentes não teriam tantas oportunidades para auxiliar outras pessoas em iniciar relacionamentos pessoais com Deus; ou

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(7) a fim de permitir aos descrentes inocentes a oportunidade de desenvolver a disposição para amar a Deus no momento em que se tornarem crentes ou em vez disso, se eles já possuírem essa disposição mas pelas razões erradas, com o objetivo de que eles a desenvolvam pelas razões corretas. Dois problemas confrontam as explicações desta categoria e qualquer outra similar a elas. Primeiro, excetuando-se talvez uma, elas falham em lidar com, muito menos explicar, a distribuição demográfica do teísmo. Segundo, em sua tentaiva de explicar o valor da descrença em termos dos bens que ela torna possível e dos males que ela evita, estas explicações arriscam tornar um mistério a crença em Deus. Se, por exemplo, permitir o importante ‘senso de risco exigido pela fé passional’ implica tornar possível a descrença inocente, então o que pode ser dito em favor do tipo de crença inabalável e inflexível em Deus que o clero frequentemente aplaude e exalta em seus paroquianos, especialmente quando os paroquianos o exibem em meio ao sofrimento? Mostrariam esses crentes resolutos uma atitude religiosa mais admirável se em vez disso eles permitissem que a falta de evidência teísta conclusiva enfraquecesse sua confiança? Outrossim, se as evidências que tornariam a crença em Deus irresistível também privariam os crentes de um tipo importante de liberdade, o que acontece com a liberdade daqueles inúmeros crentes que alegam que a existência de Deus lhes é certa como qualquer outra coisa em que eles acreditam[12]? Se a permissão de Deus para a descrença inocente nos traz tantos benefícios, então por que as principais escrituras monoteístas, especialmente do cristianismo e do islamismo, não somente exaltam a crença como também as vezes condenam veementemente a descrença? Por que condenar um inevitável subproduto do sábio plano divino? Considerando-se nosso foco na demografia do teísmo, estas questões sobre o valor relativo da crença e da descrença podem ser descartados como mera retórica. Das respostas listadas por Howard-Snyder e Moser, somente a resposta (6) chega perto de lidar com as disparidades geográficas da crença teísta, e somente porque levanta a possibilidade de que ‘a diversidade religiosa seria repreensivelmente reduzida’ se Deus estivesse menos oculto. Alguém pode previsivelmente questionar o valor líquido da diversidade religiosa encontrada no mundo atual, uma vez que boa parte dos conflitos ao redor do mundo, e indiscutivelmente uma parcela crescente deles, decorre ao menos parcialmente do choque de religiões que se contradizem umas às outras. Alguém também pode questionar o valor dos diversos

sistemas

de

crença

aos

olhos

daqueles

que

se

consideramdetentores

da verdade acerca de algum assunto crucial. Nenhuma pessoa sensata pensa que seria bom se o mundo abrigasse crenças divergentes sobre a inclusão de soda cáustica na dieta do leitor: ao contrário, há um conhecido fato sobre o assunto cujo conhecimento correto é importante

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que as pessoas possuam. O mesmo se aplica à questão da existência de Deus, particularmente a partir da perspectiva de alguém comprometido com o monoteísmo tradicional: ainda que uma diversidade de crenças nos auxilie a investigar quando não sabemos a resposta, os teístas acreditam conhecer de fato a resposta, perspectiva da qual a diversidade religiosa é apenas a proliferação de erros sobre um tema de importância capital. Mas ainda que alguém reconheça o valor da diversidade religiosa, a resposta (6) não faz nada para explicar porque esta diversidade se manifesta tantas vezes em aglomerados de crentes, vários dos quais existem isolados uns dos outros; por que esta tão valiosa diversidade não floresce no interior das culturas da Arabia Saudita e da Tailândia? As explicações teístas devem dar conta desta irregularidade geográfica em termos de razões que Deus pode possuir para permiti-la, e tais razões parecem difíceis de serem encontradas. Explicações não-teístas, incluindo explicações políticas e culturais oferecidas pelas ciências sociais, fazem isso brincando. De acordo com estas últimas explicações, a irregularidade da distribuição das crenças teístas tem tudo a ver com a dinâmica notoriamente aleatória da cultura humana e da política, e nada a ver com Deus: estes dados irregulares e confusos possuem causas irregulares e confusas, não-lineares. William J. Wainwright, o colaborador da antologia que mais se aproxima de confrontar o desafio demográfico, esboça uma potencial resposta para ele: membros de culturas não-teístas carecem do benefício da crença teísta não porque sejam mais pecaminosos que os membros das

culturas

teístas

e

assim

mais

merecedores

desta

privação,

mas

por

serem

epistemicamente desfavorecidos. Os San do Kalahari, o autor escreve, não possuem a sofisticação científica e moral relativa ao que encontramos nas culturas modernas, … e o que é verdadeiro sobre a ciência e a moralidade também parece ser verdadeiro sobre a religião. As religiões pós-axiais(*) são espiritualmente mais sofisticadas ou desenvolvidas que aquelas que substituíram… Nada disso implica que os San sejam menos inteligentes, menos morais ou mesmo menos espirituais do que os cristãos, muçulmanos ou hindus modernos. Isso de fato implica que era menos provável que eles viessem a alcançar várias verdades religiosas valiosas… Os San não eram, enquanto grupo, mais pecaminosos do que os cristãos, o muçulmanos ou os hindus modernos. Eles eram apenas menos afortunados[13] Por que deveriam os San, ou qualquer cultura, ser ‘menos afortunada’ neste aspecto? Por que Deus, como Wainwright coloca, ‘conferiu a graça salvífica a algumas culturas e não a outras’? A estas perguntas Wainwright oferece uma resposta especificamente cristã modelada em explicações encontradas em Calvino e Edwards: ‘A iluminação do Espírito Santo é necessária para o discernimento da bondade de Deus em Cristo sem o que a salvação não é um

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possibilidade real para ninguém. Esta iluminação é livremente outorgada somente a alguns.’[14] Contudo, precisamente por ser especificamente cristã, a resposta de Wainwright é incoerente com sua explicação em termos do atraso espiritual das culturas primitivas. De acordo com as explicações especificamente cristãs, Deus concede a graça salvífica aos cristãos, não aos seguidores do Judaísmo ou do Islamismo, apesar do fato de as duas últimas religiões teístas serem tão espiritualmente sofisticadas quanto o cristianismo. Wainwright invoca o atraso de uma cultura para explicar a ausência da crença em Deus entre seus membros, mas então ele explica a distribuição irregular da sofisticação espiritual de uma maneira que falha em contemplar a crença genuína em Deus entre judeus e muçulmanos, adeptos do que ele reconhece serem religiões espiritualmente avançadas. De forma que sua explicação desanda. Howard-Snyder e Moser concluem sua discussão sobre as respostas da categoria 2 lançando um desafio: Nenhuma explicação isolada pode ser a explicação completa para o ocultamento divino… De forma que não basta objetar que uma explicação não é aplicável a determinados tipos de pessoas; tampouco objetar que cada explicação falha em ser aplicável a cada candidato a descrente inocente. Uma objeção a tais explicações deve invocar algo como a afirmação de que elas falham tanto em conjunto quanto individualmente em explicar o que consideramos a primeira vista descrença inocente. Aqui se levanta um problema tipicamente epistêmico para os proponentes do argumento do ocultamento. Os humanos são seres de uma complexidade enorme, e não é uma tarefa fácil dizer se qualquer candidato em particular à descrença inocente possui ou fracassa em possuir as motivações, atitudes e disposições que supõe-se de boa fé explicar sua descrença inocente.[15] A objeção demográfica refuta esse desafio. Porque abstrai a partir de casos individuais e considera a distribuição em larga escala da descrença, ela não precisa perguntar ‘se qualquer candidato em particular à descrença inocente possui ou falha em possuir as motivações, atitudes e disposições que supõe-se de boa-fé explicar a descrença inculpável’. Em vez disso, a objeção demográfica pressupõe plausivelmente que os padrões de larga escala observados resolve o problema das diferenças individuais em relação a quaisquer ‘motivações, atitudes e disposições’ invocadas pelas respostas das categorias 1 ou 2, tais como a estupidez, a insensibilidade, arrogância, presunção, suscetibilidade ao medo de punição, falta de arrependimento ou humildade, e e até mesmo a predestinação de alguém como não-eleito. A objeção pressupõe que os indivíduos com essas características não se aglomeram por país ou cultura de maneira a mostrar-se vinte vezes mais frequentes na Tailândia do que na Arábia

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Saudita. Assim, estas disposições assemelham-se

a outras características humanas

fundamentais, como a capacidade de ouvir e prestar atenção; apesar de diferenças marcantes entre indivíduos, não encontramos países inteiros cuja população é quase toda surda. Finalmente, mesmo que deva ser o caso de que todos os que morrem na descrença inocente depois se tornem crentes, permanece inexplicada por que tão alta proporção daqueles precisando de conversão post-mortem pertença a determinados grupos culturais e não a outros: mesmo que a situação seja amenizada no fim, por que a distribuição da crença começa tão desigual e justo com o tipo de padrões que esperaríamos se somente forças naturais impessoais como a cultura e a política a estivessem impelindo? Agora vamos para a terceira categoria de respostas, a qual, como sugeri anteriormente, ou nega que o problema da distribuição exista ou se recusa a explica-lo. Elas incluem (a) a alegação de que várias pessoas ‘implicitamente’ acreditam em Deus ainda que possa aparentar (mesmo a elas próprias) serem descrentes, e (b) a estratégia que pode ser rotulada como ‘teísmo cético’. Acerca de (a), Howard-Snyder e Moser escrevem o seguinte: Outra sugestão é que todo ser humano pode acreditar em Deus implicitamente, apesar de não saber que é isto o que está fazendo. Isto pode ser feito buscando uma vida moral e assim se relacionando com Deus por intermédio da relação com seu atributo principal, a bondade. Alternativamente, alguém pode acreditar implicitamente ao agir como alguém agiria se acreditasse explicitamente nEle.[16] A força da estratégia (a) para os propósitos atuais seria negar que a crença teísta seja distribuída desigualmente ao redor do globo como parece ser. Se a mera busca de uma vida moralmente boa torna alguém um crente em Deus (monoteísta, pessoal), então há um número muito maior de pessoas que acreditam que Deus exista do que os que admitiriam isso; alguns acreditam que Deus exista ao mesmo tempo em que explícita e sinceramente o negam; e alguns acreditam que Deus exista sem compreender a proposição na qual alegadamente acreditam. Estas consequências não somente levantam dúvidas sobre a afirmação de que a busca de uma vida moral torna alguém um teísta implícito. Elas também dificultam conceber como a mera crença implícita permite que alguém ‘aja como se’ fosse um crente explícito e declarado, uma vez que um indício comum (ainda que imperfeito) de que alguém sustenta explicitamente a crença numa proposição p é a resposta afirmativa que esta pessoa fornece quando lhe é perguntado ‘Você acredita em p?’. Em tais casos, os crentes implícitos poderiam agir como explícitos somente respondendo insinceramente. Em vez disso, talvez a resposta da ‘crença implícita’ pretenda sugerir que qualquer um que busque uma vida moral esteja comprometido, ainda que as vezes apenas de maneira implícita, com a existência de Deus. Sugestões deste tipo aparecem em Kant, para quem a busca

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coerente de uma vida moral exige a ‘postulação prática’ tanto de Deus quanto da imortalidade da alma, e em versões do argumento moral, como o de C. S. Lewis, que raciocina a partir da existência de um senso moral interno para a existência de um legislador moral externo. Estas sugestões sobre os pressupostos ou as implicações da busca de uma vida moral são controversas, mas mesmo assim são mais plausíveis do que a idéia de que quem quer que busque uma vida moral automaticamente acredita em Deus em algum sentido de ‘acredita’. Além disso, mesmo se admitirmos a alegação controversa adicional de que, em termos dos objetivos de Deus, a crença implícita é um substituto adequado e satisfatório para a crença explícita, permanece misteriosa a razão pela qual Deus exige que populações inteiras de alguns países convivam com o substituto enquanto as populações de outros países desfrutem do artigo genuíno. Finalmente, se da perspectiva de Deus a crença implícita não é meramente um substituto adequado mas tão boa quanto a crença explícita, fica difícil explicar a exaltação encontrada nas Escrituras da crença explícita e a condenação de sua ausência referida anteriormente. A julgar pelo esforço filosófico empreendido em sua defesa, a estratégia (b) é uma réplica de importância crescente às versões ‘evidencialistas’ (ou ‘empíricas’) do argumento do mal, e é flexível o bastante para ser dirigida contra outros argumentos empíricos como o AOD. Em resposta ao argumento do mal, o teísmo cético concede à ateologia que nenhuma teodicéia conhecida funciona: nenhuma explica adequadamente — nenhuma oferece razões moralmente suficientes para — a permissão por parte de Deus para a ocorrência de sofrimento na quantidade e variedade encontrada em nosso mundo. Mas o teísmo cético insiste que o fracasso de todas as nossas teodicéias é previsível. De acordo com o teísmo cético, tanto teístas quanto ateus deveriam aceitar a afirmação condicional ‘Se Deus existe, então as razões moralmente suficientes para permitir o sofrimento podem muito bem estar fora de nosso horizonte cognitivo’, considerando-se o quão débeis nossas mentes são em comparação com a mente divina. Assim, da mesma maneira, em relação às razões de Deus para permitir a drescrença, como Howard-Snyder e Moser assinalam: Alguém pode reconhecer que Deus não torna a si próprio suficientemente cognoscível (especialmente aos descrentes inocentes) e admitir que desconhecemos qualquer boa explicação sobre porque Ele agiria assim. Talvez exista alguma razão que nós não conhecemos. De fato, quando lidamos com os propósitos envolvidos na permissão divina para algum estado de coisas (ruim), esta parece ser uma opção plausível, não somente uma possibilidade remota. Obviamente, não deveríamos ficar surpresos se fossêmos incapazes de explicar Deus não sendo mais nítido e inequívoco sobre sua existência[17].

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Que podemos dizer sobre uma resposta que se recusa a explicar os dados, além de objetar que ela se recusa a explicar os dados? O teísmo cético, de modo bastante evidente, posicionase de maneira bastante pessimista e sombria acerca da capacidade humana para discernir razões moralmente profundas para permitir o sofriment0 e a descrença, e alguns de seus críticos o acusam de sucumbir ao ceticismo sobre a moralidade em geral, incluindo o status moral de ações humanas indiscutivelmente imorais[18]. Outros críticos do teísmo cético o acusam de incitar não somente o ceticismo moral como também o ceticismo global[19]. Um tratamento apropriado destes temas complexos vai muito além do escopo deste artigo, mas quer tais críticas ao teísmo cético triunfem ou não, fica claro que tal postura — por um vício intrínseco — deixa a distribuição demográfica do teísmo totalmente inexplicada. Os teístas céticos fingem explicar o fracasso de todas as explicações teístas da demografia, mas para meus objetivos é suficiente que eles reconheçam o fracasso em primeiro lugar. O sensus divinitatis Alguns filósofos na tradição reformada asseveram que todos os seres humanos normais possuem uma faculdade inata projetada para produzir a crença em Deus, uma afirmação que eles alegam encontrar esboçada por Calvino: Que existe na mente humana e na verdade por um instinto natural, algum sentido da Divindade [sensus divinitatis], é algo que consideramos livre de controvérsias, uma vez que o próprio Deus, para impedir qualquer ser humano de fingir ignorância, tenha dotado todos os homens com alguma idéia de sua divindade… … esta não é uma doutrina aprendida pela primeira vez na escola, mas uma em relação a qual cada homem é, desde o ventre materno, seu próprio senhor; uma doutrina cuja própria natureza não permite que nenhum indivíduo dela se esqueça.[20] Esta faculdade, contudo, é frágil, e a pecaminosidade humana facilmente emperra seu funcionamento adequado, como Mark Talbot explica: ‘Deus, então, segundo Calvino, fez com que nos fosse natural acreditar nele. O pecado provoca a degeneração destas inclinações naturais até que elas deixem de ser espiritualmente frutíferas… Apenas seres humanos purificados do pecado a alcança [a crença genuína em Deus]; nenhum de nós a terá até que sejamos regenerados.[21] A demografia do teísmo, eu afirmo, torna improvável a existência de qualquer faculdade humana inata deste tipo, por mais corruptível que ela seja quando exposta à pecaminosidade. Faculdades humans inatas, como ouvir e prestar atenção, ou a capacidade de aprender uma linguagem falada, tendem a ser distribuídas de maneira uniforme pelos tipos humanos. Mais uma vez, entretanto, o tipo de crença em Deus para o qual esta faculdade alegadamente inata

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é projetada para produzir é distribuída de maneira bastante irregular entre as sociedades humanas. Seus defensores irão objetar que o pecado original impede a faculdade de realizar sua finalidade e que somente a graça regenerativa de Deus pode restaurar a faculdade às suas boas condições de funcionamento. Mas esta réplica somente faz a pergunta retroceder um nível: por que teria Deus outorgado sua graça regenerativa de maneira tão desigual, contribuindo para um padrão de descrença que, coincidentemente, os cientistas sociais afirmam poder explicar somente em termos culturais? Todos os autodenominados ‘epistemólogos reformados’ muitas vezes aludem ao sensus divinitatis para defender as credenciais epistêmicas da crença teísta contra o desafio colocado pelo evidencialismo, a visão de que a crença teísta é justificada somente quando baseada em evidências suficientes. Como Stephen J. Wykstra escreve, Sem sombra de dúvida, tal evidencialismo é razoável a respeito de coisas como elétrons. Mas isto porque não possuímos nenhum acesso não-inferencial aos elétrons (não podemos simplesmente percebe-los); por isso a crença em elétrons precisa de suporte inferencial a partir de coisas que podemos perceber. Mas por que deveríamos supor que os humanos não possuem nenhum acesso não-inferencial a Deus? As religiões teístas tradicionais ensinam, afinal, que Deus nos fez com a faculdade — que Calvino chama de Sensus Divinitatis — através da qual podemos, sob condições apropriadas, ‘sentir’ a presença, o caráter e a ação de Deus em nossas vidas.[22] Na medida em que os dados demográficos lançam dúvidas sobre a existência de tal faculdade inata em seres humanos, eles também enfraquecem esta defesa particular da crença teísta. O ocultamento e o mal Uma objeção por vezes levantada contra o AOD declara que ele não acrescenta nada ao mais conhecido e popular argumento do mal. Afinal, não seria o fato de Deus se esconder de alguns dentre aqueles que sincera e zelosamente o procuram apenas outra forma de sofrimento do tipo que os ateólogos afirmam que não deveríamos esperar ver se Deus existisse? Jonathan Kvanvig apresenta uma formulação vigorosa desta objeção do tipo ‘nenhuma novidade’. Segundo Kvanvig, o AOD aprimora o argumento do mal se, e somente se, o AOD evita pelo menos algumas das refutações — que ele chama ‘invalidadores delimitantes’ — que confrontam o argumento do mal: … é difícil divisar que força empírica poderia ser acrescentada pelo problema do ocultamento. Este problema poderia fazer a balança pender em favor do ateísmo se os invalidadores delimitantes para o problema do mal falhassem em delimitar as implicações do ocultamento divino. Desta maneira, o ocultamento constituiria um tipode problema para o teísmo diferente do usual problema do sofrimento… Ninguém demonstrou isso, e é difícil ver

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como tal argumento poderia ser bem-sucedido. Se considerarmos os candidatos plausíveis para tais invalidadores delimitantes… não há nenhuma razão em particular para pensar que tais respostas triunfariam somente para o problema do mal comum mas não para o problema específico do ocultamento divino[23]. Dentre os ‘invalidadores delimitantes’ típicos para o problema do mal Kvanvig inclui a ‘necessidade [do mal] para um bem maior [especificado], o aprimoramento da alma, a importância da liberdade, ou simplesmente o fato de que não sabermos quais são todas as coias boas’[24]. Pelo último ítem nesta lista eu suponho que Kvanvig pretenda se referir à resposta teísta cética, que eu descrevi como recusando-se a considerar seriamente os problemas do mal e do ocultamento divino. Os outros três itens na lista contam como respostas sérias, mas demonstrarei que Kvanvig está enganado em afirmar que elas neutralizam o AOD tanto quanto efetivamente neutralizam o argumento do mal. Por mais eficazes que elas possam ser em desarticular o argumento do mal, elas deixam o AOD incólume. Kvanvig não está sendo completamente honesto ao sugerir que ‘ninguém demonstrou’ que o AOD e o argumento do mal diferem de maneira crucial, se não ao menos em categoria[25]. Theodore M. Drange, por exemplo, menciona vários aspectos nos quais o ‘argumento da descrença’ (seu rótulo para o AOD) representa um grande progresso em relação ao problema do mal, incluindo o seguinte. Primeiro, a evidências das Escrituras, particularmente do Novo Testamento, estabelece que Deus deseja que o seres humanos acreditem em e amem a Deus mais claramente do que estabelece o desejo de Deus em reduzir ou eliminar o sofrimento humano ou animal. Segundo, eliminar a descrença parece uma meta mais fácil de alcançar num mundo governado por leis naturais do que a eliminação do sofrimento em tal mundo. Terceiro, o AOD evita a ‘objeção regressiva’ que confronta o argumento do mal: ‘se Deus fosse reduzindo a quantidade de sofrimento no mundo num esforço para deixar seus habitantes satisfeitos, em que ponto deveriam eles dizer, “Chega, estamos maximamente felizes agora”?’[26] Indiscutivelmente, qualquer universo regido por leis ideal contendo seres como nós irá conter algum grau de sofrimento inevitável no mínimo em decorrência das regularidades naturais; torna-se difícil especificar, ou mesmo conceber, o grau mínimo ideal. Tal não é o caso, afirma Drange, quando a eliminação da descrença é discutida: aqui o mínimo ideal – zero – é fácil de especificar, e assim torna-se mais seguro concluir que nosso mundo não contém o grau ideal de descrença do que concluir que ele não contém o grau ideal de sofrimento. De qualquer maneira, não é de meu conhecimento que alguém tenha argumentado em favor da superioridade do AOD em relação ao argumento do mal baseado em fundamentos demográficos. A diferença-chave, eu sugiro, entre o sofrimento e a descrença em Deus é que o sofrimento é muito mais bem distribuído do que a descrença. De fato, algumas pesquisas

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psicológicas sugerem que o sofrimento do tipo moralmente relevante — isto é, a experiência subjetiva do sofrimento, é, na verdade, distribuído de maneira bastante uniforme ao redor do globo, apesar das aparências iniciais em contrário[27]. Ainda que esta tese estritamente igualitária seja muito insensível para ser aceitável, certamente permanece verdadeiro que a soma total de sofrimento é mais uniformemente distribuída ao redor do globo do que a descrença em Deus. Esta alegação obtem credibilidade adicional se levarmos em consideração o sofrimento animal, uma vez que há razões para pensar que a pecuária industrial eleva enormemente o sofrimento total experimentado pelos animais somente naqueles lugares onde decresce o sofrimento advindo da experiência da fome. O sofrimento não respeita a geografia da maneira que a descrença o faz. Não temos nenhuma razão para pensar que os habitantes da Tailândia experimentam vinte vezes o sofrimento experimentado pelos habitantes da Arabia Saudita, mas eles exibem um índice de descrença no Deus monoteísta vinte vezes superior. Esta diferença é importante. Considere as três teodicéias genuínas que Kvanvig menciona: um bem maior específico, o aperfeiçoamento da alma e a liberdade. Uma hipótese que tente explicar o sofrimento em nosso mundo como necessário para produzir um bem alegadamente compensatório, tal como a compaixão, tem uma possibilidade de funcionar porque a hipótese é compatível com a distribuição de sofrimento observada. Indiscutivelmente, tal hipótese prevê uniformidade na distribuição do sofrimento: a compaixão é uma coisa boa onde quer que ocorra, e assim deveríamos esperar uniformidade universal no sofrimento do qual apenas a verdadeira compaixão se origina. De maneira similar para o aprimoramento da alma: o autodesenvolvimento moral e crescimento espiritual arduamente conquistado em geral são considerados valiosos pelas pelas pessoas, de maneira que o sofrimento que Deus consente como um gatilho que desencadeia esses processos deve ser difundido universalmente de modo uniforme, e indiscutivelmente o é. A teodicéia da liberdade também prevê a distribuição uniforme do sofrimento, sob a pressuposição plausível de que a possibilidade de fazer escolhas livres do tipo que produzem o sofrimento é uma faculdade humana uniformemente distribuída, não um privilégio especial de habitantes de algumas partes do planeta. Em contraste, a descrença em Deus pode ser qualquer coisa menos uniformemente distribuída pelo planeta, e consequentemente qualquer explicação puramente em termos de características, tal como a liberdade humana, que é uniformemente distribuída, não irá funcionar. Para usar a expressão de Kvanvig, os ‘invalidadores delimitantes’ para o problema do sofrimento falham em invalidar o AOD porque eles são aplicáveis apenas a características que, pelo menos de perspectiva panorâmica, são uniformemente distribuídas entre a população humana, e a descrença não é uma dessas características.[28] Notas

do

77

autor

1. Um problema similar pode surgir da distribuição irregular da crença teísta ao longo do tempo, uma vez que, especialmente quando comparada às explicações naturalistas, nenhuma das explicações teístas da descrença inocente ou culpável (veja a seção ‘Respostas ao AOD’ abaixo) explica porque a incidência global da crença teísta variou dramaticamente durante a existência da espécie humana. Em favor da simplicidade, contudo, e porque os dados atuais são mais prováveis de serem confiáveis do que os dados históricos, concentrar-me-ei na distribuição geográfica atual da crença teísta. Historiadores e cientistas sociais tem, é claro, oferecido várias explicaçõs naturalistas para a emergência e o estabelecimento das mundivisões teístas e não-teístas; para referências à literatura recente, veja a bibliografia em God Against the Gods : the History of the War between Monotheism and Polytheism, de Jonathan Kirsch (New York NY: Penguin, 2004). 2. Um dos principais proponentes contemporâneos da primeira versão do AOD é J. L. Schellenberg, cujas contribuições incluem Divine Hiddenness and Human Reason (Ithaca NY: Cornell University Press, 1993) ; ‘Response to Howard-Snyder ’, Canadian Journal of Philosophy, 26 (1996), 455–462; ‘What the hiddenness of God reveals: a collaborative discussion’, in Daniel Howard-Snyder and Paul K. Moser (editores) Divine Hiddenness : New Essays (Cambridge: Cambridge University Press, 2002), hereafter DHNE, 33–61 ; and ‘Divine hiddenness justifies atheism’, in Michael L. Peterson and Raymond J. VanArragon (editoress) Contemporary Debates in Philosophy of Religion (Malden MA: Blackwell Publishing, 2004), 30–41. 3. Um dos principais proponentes contemporâneos da segunda versão do AOD é Theodore M. Drange, que chamou o AOD de ‘Argumento da Descrença’. Suas contribuições incluem ‘‘The argument from non-belief ’, Religious Studies, 29 (1993), 417–432; ‘Nonbelief vs lack of evidence: two atheological arguments’, Philo, 1 (1998), 105–114; Nonbelief and Evil : Two Arguments for the Nonexistence of God (Amherst NY: Prometheus Books, 1998) ; and ‘McHugh’s expectations dashed’, Philo, 5 (2002), 242–248. 4. Drange Nonbelief and Evil, 59–60. 5. Eu digo ‘supostamente’ porque não é claro que qualquer versão possa, sem apelar à natureza amorosa de Deus, refutar a seguinte explicação calvinista a partir da predestinação: a razão pela qual existam tantos descrentes excluídos de uma relação pessoal com Deus é que Deus não deseja se relacionar pessoalmente com todos os seres humanos ou que todos os seres humanos acreditem em Deus; por razões inescrutáveis. Deus predestinou alguns seres humanos à salvação e o resto à danação. Num debate pela internet com Douglas Wilson, Drange considera e rejeita esta explicação, em parte por razões bíblicas mas também devido às pressuposições sobre a natureza de Deus: ‘Em geral, Wilson deveria esclarecer seu ponto

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de vista em relação a Deus e os não-cristãos. Estarão todos eles realmente condenados? E é realmente verdade que Deus os predestinou à danação antes mesmo que eles nascessem? Por que Ele faria tal coisa? E como foi que ele selecionou tão poucos para serem salvos e tantos para a danação? Ele mais me parece uma divindade desprezível do que o Deus maximamente excelente

do

Cristianismo

sobre

o

qual

ouvi

muitas

vezes.

Veja http://www.infidels.org/library/modern/theodore_drange/drange-wilson/drange3.html. 6. John Calvin Institutes of the Christian Religion (I, iii, 1), Henry Beveridge (tr.) (Edinburgh: Calvin Translation Society, 1845–1846). 7. Compare os dados etnográficos citados por Locke em seu Ensaio acerca do entendimento humano (1690), 1, iii, 8 (‘A idéia de Deus não é inata’) 8. CIA World Factbook 2004, http://www.odci.gov/cia/publications/factbook/index.html. 9. ‘ Introduction: the hiddenness of God’, DHNE, 12, aludindo ao artigo de Schellenberg ‘What the hiddenness of God reveals’, DHNE, 52. Drange alude à disparidade nas páginas 138 e 141 de Nonbelief and Evil e mais uma vez em seu debate na internet com Wilson (veja a nota 5), mas ele não desenvolve as consequencias da disparidade para as explicações típicas para o ocultamento divino. 10. Ambas as citações de Edwards aparecem no artigo de William J. Wainwright ‘Jonathan Edwards and the hiddenness of God’, DHNE, 102, 103. 11. As explicações de 1 até 6 são citadas palavra por palavra de DHNE, 9-19; a explicação 7 é minha paráfrase do último item em sua lista, DHNE, 10. 12. De acordo com Kai Nielsen, ‘Numa recente pesquisa realizada nos Estados Unidos, 88 por cento da população (se a amostra considerada era representativa) sustentaram que nunca tiveram qualquer dúvida sobre a existência de Deus’; Naturalism and Religion (Amherst NY: Prometheus Books, 2001), 14. Infelizmente, Nielsen omite a fonte de sua estatística. 13. Wainwright ‘ Jonathan Edwards and the hiddenness of God’, 114. 14. Ibid., 113. 15. ‘ Introduction: the hiddenness of God’, DHNE, 10–11. 16. Ibid., 9, ênfase no original. 17. Ibid., 11, ênfase no original. 18. Veja, por exemplo, o artigo de Michael J. Almeira e Graham Oppy ‘Sceptical theism and evidential arguments from evil ’, publicado no Australasian Journal of Philosophy 81 (2003), 496–516, respondido no artigo de Michael Bergmann e Michael Rea ‘ In defence of sceptical theism: a reply to Almeida and Oppy’, Australasian Journal of Philosophy 83 (2005), 241–251. 19. Veja Bruce Russell ‘Defenseless’, em coletânea editada por Daniel Howard-Snyder The Evidential Argument from Evil (Bloomington IN: Indiana University Press, 1996), 193–205; e na mesma obra ‘The problem of evil : why is there so much suffering? ’, na coletânea editada

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por Louis P. Pojman Introduction to Philosophy: Classical and Contemporary Readings (New York NY: Oxford University Press, 2004), 207–213. 20. Calvin Institutes, I, iii, 1 ; I, iii, 3. 21. Mark Talbot ‘ Is it natural to believe in God? ’, Faith and Philosophy, 6 (1989): 155–171, 159. 22. Stephen J. Wykstra ‘Toward a sensible evidentialism: on the notion of ‘‘needing evidence’’ ’, na coletanea editada por William L. Rowe e William J. Wainwright Philosophy of Religion: Selected Readings, 2nd edn (New York NY: Harcourt Brace Jovanovich, 1989), 426–437, 434. 23. Jonathan L. Kvanvig ‘Divine hiddenness: what is the problem? ’, DHNE, 161–162. 24. Ibid., 161. 25. Peter van Inwagen argumenta a favor da diferença em ‘What is the problem of the hiddenness of God? ’, DHNE, 24–32, um artigo original publicado no mesmo volume que Kvanvig; Kvanvig talvez ignorasse o conteúdo do artigo de van Inwagen. 26. Drange Nonbelief and Evil, 288. Todas as três vantagens do AOD listadas aqui são discutidas nas páginas 286–291. 27. Veja E. Diener, E. M. Suh, R. M. Lucas, e H. L. Smith ‘Subjective well-being: three decades of progress’, Psychological Bulletin, 125 (1999), 276–302, citado em Ronald de Sousa, ‘Paradoxes

of

happiness’,

disponível

em http://www.chass.utoronto.ca/%7Esousa/happinew.pdf. 28. Pelos comentários prestimosos, agradeço a Andrew Graham, aos membros do grupo Philosophy and Public Affairs da Acadia University, minha audiência na conferência anual da Atlantic Region Philosophers’ Association, e a um resenhista anônimo deste periódico. Nota do Tradutor: Era Axial, expressão cunhada por Karl Jaspers para descrever o período que vai de 800 a.C. a 200 a.C. durante o qual, segundo Jaspers, sistemas de pensamentos revolucionários similares surgiram na China, na Índia e no Ocidente.

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04: Causação e a Impossibilidade lógica de uma causa divina 1. Introdução Uma luz interessante é lançada sobre a natureza da causação, a origem do universo e os argumentos para o ateísmo se abordarmos a questão: é logicamente possível que o universo possua uma causa originária divina? Penso que praticamente todos os teístas, agnósticos e ateístas contemporâneos acreditam que isto é logicamente possível. De fato, a tradição filosófica predominante desde Platão até o presente presumiu que a sentença “Deus é a causa originária do Universo” não expressa uma contradição lógica, ainda que vários filósofos tenham defendido que esta sentença ou é sintética desprovida de sentido (por exemplo, os positivistas lógicos) ou declara uma falsidade sintética e a priori (por exemplo, Kant e Moore), ou declara uma falsidade sintética e a posteriori (por exemplo, defensores contemporâneos do argumento probabilístico do mal). Acredito que a prevalência desta pressuposição deve-se ao fato de que os filósofos não empreenderam o tipo necessário de investigação metafísica sobre a natureza da causação. Esta investigação é o objetivo deste artigo; mais especificamente, defenderei que a tese segundo a qual o universo possui uma causa originária divina é logicamente inconsistente com todas as definições existentes de causalidade e com uma exigência lógica destas e de todas as possíveis definições ou teorias da causalidade válidas. Concluirei que os argumentos cosmológicos e teleológicos para uma causa do universo podem possuir alguma força mas que estes argumentos, tradicionalmente conhecidos como argumentos para a existência de Deus, são na verdade argumentos para a inexistência de Deus.* 2. Definições Causais e a Noção de uma Causa Originária Divina Algo é uma causa contínua e permanente do universo se e somente se este algo causa cada estado do universo. Algo é uma causa originária do universo se e somente se este algo causa o primeiro estado do universo. Se o tempo é contínuo, “o primeiro estado do universo” pode se referir a um estado instantâneo ou (se a história do universo é semi-aberta na direção inicial) a um estado cronologicamente extenso de duração específica. Se a cosmologia do Big Bang é verdadeira, o universo começou a existir há cerca de 15 bilhões de anos atrás com o Big Bang. O Big Bang é o primeiro estado do universo; “o Big Bang” pode ser considerado como referindo-se a uma singularidade que constitui o primeiro estado

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instantâneo do universo ou ( se alguém “eliminar” a singularidade) a uma explosão que consitui o primeiro estado semi-aberto de breve duração, por exemplo, a duração de Planck, 10^-43 segundo. Em minha discussão, tratarei o Big Bang como um exemplo logicamente possível de um primeiro estado do universo. Considerações sobre causalidade agencial não são relevantes para nossa discussão; nosso tópico é a causa do começo da existência do universo, não a causa do ato de Deus de querer que o universo começasse a existir. Não estamos examinando a relação entre Deus (o agente) e seu ato voluntário (o efeito), mas a relação entre seu ato voluntário (um evento) e o começo do universo (outro evento). Portanto, definições de causalidade agencial são irrelevantes para nossos argumentos; estamos interessados somente em definições de causalidade eventual (relativa a eventos), nas quais causa e efeito são ambos eventos. A definição de Hume de causa A mais famosa e influente definição de causa é a definição de Hume; de fato, a maioria das definições contemporâneas incluem condições que são similares em algum aspecto a pelo menos uma das três condições presentes na definição de Hume: “Contiguidade no tempo e no espaço é portanto uma circunstância exigida para a operação de todas as causas… A prioridade no tempo é… outra circunstância exigida em todos os casos… [Uma] terceira circunstância [é] a conjunção constante entre a causa e o efeito. Todos os objetos como a causa produzem sempre algum objeto como o efeito. Além destas três circunstâncias da contiguidade, prioridade e a conjunção constante não posso descobrir nada nesta causa.”[1] A definição de Hume inclui três condições para algo ser considerado uma causa: prioridade temporal, contiguidade espaço-temporal e uma relação nomológica (“Todos os objetos como a causa produzem sempre algum objeto como o efeito.”) (a) Prioridade temporal Se o tempo começou a existir com o universo, a condição da “prioridade temporal” da definição de Hume implica que o universo não pode ser causado a começar a existir uma vez que não existe tempo anterior no qual a causa possa ocorrer. Mesmo que o tempo exista antes do universo, a condição da “prioridade temporal” exclui uma causa originária divina se todos os atos divinos forem atemporais. Entretanto, a condição da prioridade temporal mostra somente que o universo não pode ter uma causa originiária divina se o tempo começa a existir com o universo ou se todos os atos

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divinos forem atemporais. É logicamente possível que o tempo preceda o começo do universo, mesmo que não existam leis físicas conhecidas pelas quais a variável física t possa assumir valores anteriores ao momento em que o espaço e a massa-energia começaram a existir. Além disso, é logicamente possível que Deus exista no tempo e que o tempo anterior ao universo seja preenchido pela vida mental de Deus, que inclui suas volições. Assim, é logicamente possível para uma volição divina adequar-se à condição da “prioridade temporal” da definição de Hume. Os problemas insuperáveis começam com as duas outras condições. (b) Contiguidade espaço-temporal A de Hume e várias outras definições de causalidade requerem que o evento causal esteja espacialmente em contato com, ou espacialmente próximo, ao efeito. Diz-se que Deus é onipresente, mas isto significa que ele está consciente de e mantendo uma relação volitiva com cada particular físico. Isto não quer dizer que as volições divinas, que são não-físicas, tangenciam ou estão nas proximidades espaciais dos particulares físicos que são objetos destas volições. O ato de Deus de querer que o Big Bang ocorra não é contíguo espaço-temporalmente ao Big Bang uma vez que este ato da vontade não possui coordenadas espaciais. c e e são contíguos espaço-temporalmente somente se as coordenadas espaciais x, y e z que situam c em relação a múltiplos eventos são ou idênticas às coordenadas x’, y’ e z’ de e, ou situam c na vizinhança de e. (c) Vínculo nomológico A terceira característica da definição de Hume, a condição nomológica (“todo objeto como a causa sempre produz algum objeto como o efeito”), também é comum a várias definições de causalidade. A definição de Hume pertence à linhagem de definições redutivas que define causas em termos de leis da natureza de um conjunto de relações não-causais (como a prioridade temporal e a contiguidade espaço-temporal) entre dois particulares c e e.[2] De acordo com estas definições, c é uma causa de e se e somente se existe uma lei da natureza L que possibilita que a declaração de que e ocorre seja deduzida da premissa de que c ocorre e que é obtida a partir da lei L. Por exemplo, Carl Hempel escreve[3]: “uma ‘causa’ deve ser autorizada a ser um conjunto de circunstâncias ou eventos mais ou menos complexos, que podem ser descritos por um conjunto de enunciados C1, C2,…,Ck… Portanto a explicação causal afirma implicitamente que existem leis gerais — digamos, L1, L2, … Lk — em virtude das quais a ocorrência dos antecedentes causais mencionados em C1, C2,…,Ck é uma condição

suficiente para a ocorrência do evento

a ser

explicado.” Uma

lei

probabilística L também pode ser permitida, caso em que “ser deduzida da” seria substituído por “ser indutivamente respaldado por”.

83

Entretanto, a condição nomológica para algo ser considerado uma causa é logicamente inconsistente com uma causa divina do Big Bang, uma vez que Deus por definição é um ser sobrenatural e seus atos não são regidos por leis da natureza. Além disso, o fato de que a vontade de Deus é onipotente torna “o Big Bang ocorre” dedutível de “Deus quer que o Big Bang ocorra” apenas, sem a necessidade de qualquer premissa nomológica suplementar, dessa forma invalidando a condição de que uma premissa nomológica é uma condição logicamente necessária para a derivação da conclusão de que o efeito existe a partir das premissas uma das quais é que o evento causal ocorre. A esta altura, já descartamos praticamente todas as definições de causalidade existentes, uma vez que quase todas as definições incluem ou a condição da contiguidade espaço-temporal ou a condição nomológica. Ficamos com as definições de causalidade singularistas e nãocontiguistas. Uma definição não-contiguista não menciona a contiguidade espaço-temporal e não exige que a causa seja contígua tanto espacialmente quanto temporalmente ao efeito; variantes das definições não-contiguistas podem permitir atos divinos atemporais e/ou atos divinos temporais que não estejam espacialmente próximos ou em contato com o efeito. Uma definição singularista permite que um evento cause um efeito em um caso particular, sem que a causa e o efeito necessariamente instanciem alguma lei. Contudo, as formulações existentes que são definições singularistas e/ou não-contiguistas são poucas e pouco afins entre si e mostram-se problemáticas para um defensor da possibilidade lógica de uma causa originária divina. A definição singularista de causa de Ducasse A mais famosa definição singularista de causa é a de J.C. Ducasse. O conceito de Ducasse “define a causa de um evento particular em termos de uma única ocorrência dele, e assim de maneira alguma envolve a suposição de que ele, ou algum semelhante a ele, nunca tenha ocorrido antes ou jamais voltará a ocorrer. A suposição da recorrência é assim totalmente irrelevante para o significado de causa; essa suposição é relevante apenas para o significado de lei.”[4] Como a condição nomológica é explicitamente rejeitada, parece que esta definição é aplicável à vontade de Deus de que o Big Bang ocorra. Entretanto, uma inspeção adicional da definição de Ducasse mostra que ela não é aplicável, já que esta definição requer a contiguidade espaço-temporal. Ducasse afirma que a causa c é uma condição suficiente do efeito e e que c é suficiente para e se (i) c é uma mudança que ocorre durante um período e através de um espaço terminando num instante i numa superfície s de um objeto; (ii) a mudança e ocorre durante um período e através de um espaço começando no instante i na superfície s; (iii) nenhuma outra mudança além de c ocorre durante o período e através do espaço de c, e (iv) nenhuma outra mudança além de e ocorre

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ao longo do período e do espaço de e.[5] Assim, a explicação de Ducasse satisfaz o critério singularista, mas não o critério não-contiguista.

(Apesar de chamar sua explicação de

“definição” de uma causa, é somente uma definição parcial, já que ele começa sua definição com “se” e não com “se e somente se”.) A definição transferencial de causa Outra candidata possível a definição singularista e não-contiguista é baseada na definição transferencial de causalidade, oferecida por Hector-Neri Castaneda, Galen Strawson, David Fair, Jerrold Aronson e outros[6]. Castaneda declara que “o coração da produção, ou causação, parece ser, portanto, transferir ou transmitir.”[7] No mundo real, o que é transferido é energia (segundo Castaneda), mas ele utiliza a palavra “causidade” como um termo genérico para qualquer coisa que possa ser transferida. Pode a volição de Deus transferir causidade ao Big Bang? A teoria completa de Castaneda implica uma definição que inclui a condição nomológica: c é uma causa de e se e somente se (i) há uma transferência de causidade de um objeto O1 para um objeto O2 numa circunstância x, com o evento c sendo a transmissão de causidade de O1 e o evento e sendo a aquisição da causidade por O2; (ii) todo evento da mesma categoria que c que está numa circunstância da mesma categoria que x está associado a um evento da mesma categoria que e. A condição (ii) é formulada como uma condição nomológica e assim exclui causas sobrenaturais. Mas podemos isolar (i), “o coração da causação”, e demonstrar com sucesso que uma condição transferencial, não-contiguista e singularista é satisfeita por uma volição divina? Parece que não, uma vez que existe um problema com a causidade. A causidade não pode ser idêntica a energia (a afirmação de Castaneda sobre a identidade real da causidade), uma vez que não há energia em Deus (Deus sendo não-físico). Na verdade, a causidade não pode ser nada físico, já que Deus é não-físico. Tampouco pode a causidade ser algo não-físico, já que o Big Bang é completamente físico. Assim, parece não existir candidato viável para a causidade transferida. Definições contrafactuais de causação A definição de David Lewis envolve condições contrafactuais e parece funcionar como uma concepção singularista e não-contiguista. Segundo Lewis, c causa e se e somente se (i) c e e são eventos e ambos ocorrem e é o caso de que ou (ii) se cnão tivesse ocorrido, e não teria ocorrido, ou (iii) há uma cadeia causal ligando ce e e cada elo d na cadeia é tal que se d não tivesse ocorrido então e não teria ocorrido. Como não há cadeia causal entre uma volição divina e o Big Bang, a condição (iii) é inaplicável e podemos nos concentrar em (i) e (ii).

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Seriam a volição divina e o Big Bang eventos? Segundo J. Kim[8], uma evento é uma substância exemplificando uma propriedade n-ádica num dado momento. Mesmo que a existência do tempo não seja anterior a do universo, isto não necessariamente exclui a aplicabilidade da definição de Kim para a volição divina, já que podemos interpretar a volição de Deus como simultânea ao Big Bang. Também podemos acompanhar Brian Leftow[9] e permitir que a posição lógica ocupada por ” no tempo t” possa ser ocupada por “na eternidade” ou “atemporalmente”. Alternativamente, poderíamos seguir Davidson[10] e considerar um evento como um particular que não é mais definível e permitir que a volição divina seja um evento mesmo que atemporal. Esta rota, ou, seguindo Wolterstorff e outros[11], considerando um evento como a exemplificação de uma propriedade n-ádica de algo (sem especificação temporal), permitiria-nos considerar a volição divina como um evento que é ou atemporal, simultâneo ao, ou anterior ao Big Bang. (Nestas diversas definições, “evento” e “estado” podem ser considerados sinônimos). Entretanto, a definição contrafactual de Lewis não é instanciada pela vontade divina de que o Big Bang ocorra. Seja c o desejo divino de que o Big Bang ocorra e seja e o Big Bang. Se e não ocorreu, então c não teria ocorrido. Mas isto implica a falsa proposição de que e é a causa de c, uma vez que c é contractualmente dependente de e. Neste caso (usando as palavras de Lewis sobre um problema que ele observa por alto), “temos uma dependencia causal reversa espúria de cem relação e, contradizendo nosa suposição de que e não causa c“[12]. Lewis resolve este problema negando o contrafactual “se e não tivesse ocorrido, cnão teria ocorrido”. Em vez disso, Lewis sustenta que “c teria ocorrido exatamente como foi mas teria falhado em causar e“[13]. Mas isto implica que a definição de Lewis não pode ser instanciada pela vontade de Deus de que o Big Bang ocorra, uma vez que se c tivesse ocorrido (se Deus tivesse desejado o Big Bang) então isto necessariamente teria causado e (o Big Bang); Deus é onipotente e sua vontade é necessariamente efetiva. Resumindo, as considerações acima sugerem que não há definições existentes de causalidade que sejam satisfeitas pela vontade de Deus de que o Big Bang ocorra; acredito que uma investigação das definições adicionais existentes mostraria que a maior parte delas inclui pelo menos uma das condições mencionadas acima (contiguidade, uma condição nomológica, etc.) que são violadas pela volição divina. As que não incluem uma das condições supracitadas incluem alguma outra condição que é violada pela volição divina; por exemplo, a definição de J. Mackie de uma condição INUS implica que uma causa c não é nem necessária nem suficiente para seu efeito e mas é, em vez disso, uma parte insuficiente e não-redundante de uma desnecessária mas suficiente condição para e[14]. Deus desejando o Big Bang, entretanto, é suficiente para a ocorrência do Big Bang e desta forma viola a condição “não é nem necessária nem suficiente para seu efeito”.

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3. Causas e Condições Logicamente Suficientes Pode ser respondido nesta conjuntura que o fracasso da criação do Big Bang por Deus em satisfazer qualquer das definições existentes de causalidade não implica que o ato volitivo de Deus não é uma causa do Big Bang. Pode ser que a definição correta de causalidade ainda não tenha sido descoberta, e que a vontade de Deus de que o Big Bang ocorra satisfaz esta definição correta inédita. Meu argumento de que Deus não pode ser uma causa do universo é na melhor das hipóteses um “argumento indutivo fraco” baseado nas definições formuladas até o presente momento. Além disso, as considerações precedentes sugerem uma definição específica de causalidade que é satisfeita pela volição originatória divina, independentemente de se ou não esta definição tenha sido defendida por qualquer um. Esta definição declara: c é uma causa de e se e somente se c é uma condição suficiente de e e cé anterior a e. Esta definição inclui a condição da prioridade temporal de Hume, mas é tanto singularista quanto nãocontiguista. (Uma definição é contíguista somente se inclui tanto a contiguidade espacial quanto a temporal). Esta definição não pode ser satisfeita por uma volição originatória divina se todas as volições divinas forem atemporais ou se o tempo não existir antes do começo do universo. Mas é logicamente possível que o tempo exista antes do Big Bang e que uma divindade temporal realize uma volição que tanto ocorra antes do Big Bang quanto seja uma condição suficiente para a ocorrência do Big Bang. Também pode-se dizer que não precisamos nos valer do pressuposto de que a volição divina deve satisfazer uma definição de causa a fim de ser uma causa. É discutível que a causação seja uma relação simples, um conceito primitivo, e portanto que não exista definição que poderia apreender sua natureza[15]. Estas três respostas à minha discussão na seção 2 talvez não sejam desarrazoadas; na verdade, pelo menos a primeira resposta (sobre a seção 2 apresentar um “argumento indutivo” baseado apenas nas definições existentes) contém alguma verdade. Entretanto, todas as três respostas são ineficazes em face do seguinte fato decisivo: existe uma relação de implicação entre “c é uma causa de e” e “c não é uma condição suficiente para e“. É o caso de que: (1) Para dois eventos ou estados particulares x e y quaisquer , se x é uma condição logicamente suficiente de y, então x não é uma causa de y. Por exemplo, um corpo estar em movimento é uma condição logicamente suficiente para que o corpo ocupe espaço, mas o corpo estar em movimento não é a causa da ocupação do espaço

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pelo corpo. Contudo, a vontade de Deus de que o Big Bang ocorra é uma condição logicamente suficiente do Big Bang, pois as proposições expressas por “Deus quer que o Big Bang ocorra” e “o Big Bang não ocorre” são logicamente incompatíveis. A razão para isto é que Deus é onipotente e portanto sua vontdade é sempre bem-sucedida (por necessidade lógica); se um ser onipotente deseja x e x não ocorre, então x não é onipotente, o que é uma contradição. (Deus pode fazer tudo que é logicamente possível; Deus não pode criar uma pedra tão pesada que não possa ergue-la, mas criar tal pedra não é uma possibilidade lógica. Deus nunca desejaria que algo ocorresse se a ocorrência desse algo fosse logicamente impossível — Deus é onisciente e onibenevolente e não empreenderia intencionalmente qualquer esforço fútil.) As variáveis na proposição (1) abraangem eventos particulares ou estados; elas não abraangem eventos particulares tomados em conjunto com leis da natureza ou generalizações universais sob as quais os particulares são subsumidos. Como vimos, as definições nomológicas de causação determinística implicam que um evento particular c, conjugado com uma lei da natureza, torna logicamente necessário o evento e que é o efeito. A luz do sol incidir diretamente sobre uma pedra, conjugado com a lei de que qualquer coisa que é diretamente iluminada pelo sol é aquecida, torna logicamente necessário que a pedra seja aquecida. A proposição (1), contudo, implica apenas que a incidência da luz do sol sobre a pedra não torna logicamente necessário que a pedra seja aquecida. A incidência da luz do sol sobre a pedra é uma condição suficiente não-lógica para a pedra ser aquecida (é nomologicamente suficiente, na medida em que é logicamente suficiente para a pedra ser aquecida somente se for conjugada com alguma lei da natureza). Duas objeções podem ser levantadas contra meu argumento de que as volições divinas são condições logicamente suficientes e portanto não são causas. (Obj. 1) Pode-se objetar que toda causa pode ser descrita de maneira a implicar logicamente a ocorrência de seu efeito, e portanto que as volições divinas não são diferentes de causas. Por exemplo, a causa, a explosão que incendiou a casa, torna logicamente necessário seu efeito, o incêndio da casa, uma vez que é uma contradição lógica afirmar que “existe uma explosão que incendiou a casa e todavia não existe o evento da casa incendiada.” Mas esta objeção é falaciosa pois “a explosão que incendiou a casa” não se refere apenas a causa mas também ao efeito. Uma descrição precisa que se refere apenas ao evento causal pode ser satisfeita consistentemente com a não-ocorrência do efeito; por exemplo, a descrição precisa, “a explosão que ocorreu na casa”, pode ser consistentemente satisfeita com a nãosatisfação de “o incêndio da casa”.

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A falaciosidade desta objeção pode ser explicada mais acuradamente em termos de contextos referencialmente transparentes e referencialmente opacos. A descrição precisa, “a explosão que resultou no incêndio da casa”, é um contexto referencialmente transparente; isto implica que “o incêndio da casa” ocupa uma posição que está aberta à substituição e quantificação em “a explosão que resultou no incêndio da casa”. Uma descrição no formato “a explosão que resultou em F” permite expressões co-referentes substituíveis por “F” e se uma descrição neste formato é satisfeita, segue-se que existe um F. Como a descrição do efeito, “F”, ocorre num contexto referencialmente transparente, “a explosão que resultou em F” refere-se tanto à causa quanto ao efeito. Por outro lado, a descrição precisa, “a vontade divina de que o Big Bang ocorra”, é um contexto referencialmente opaco e refere-se apenas à volição divina. Esta descrição é referencialmente opaca uma vez que é uma construção de atitude proposicional, e posições internas a construções de

atitudes não

são

abertas à

substituição

e

quantificação[16]. Mais

especificamente, uma descrição precisa no formato “a vontade de x de que F ocorra” não permite substituições de “F” por expressões co-referentes, e “F” não é aberta a quantificação. Isto implica que se uma descrição no formato “a vontade de x de que F ocorra” for satisfeita, não se segue que exista um F. Como a descrição do efeito, “F”, ocorre num contexto opaco, “a vontade de x de que F ocorra” refere-se apenas à causa. Dada esta distinção, podemos dizer que uma definição precisa D de uma causa também se refere ao efeito se e somente se D inclui um termo para o efeito que é aberto à substituição e à quantificação. Uma descrição precisa D’ de uma causa não se refere ao efeito se e somente se D’ não contém um termo para o efeito ou contém um termo para o efeito num contexto opaco. Isto nos capacita a declarar nosso princípio (1) sobre causas e condições logicamente suficientes em termos semânticos: a satisfação de uma descrição precisa D de uma causa implica logicamente a existência do efeito se e somente se D inclui um termo para o efeito num contexto referencialmente transparente. Como a satisfação da descrição precisa “a vontade divina de que o Big Bang ocorra” implica logicamente que o Big Bang ocorra apesar do fato de “o Big Bang” não ocorrer num contexto referencialmente transparente, segue-se que esta descrição não se refere a uma causa. A razão pela qual a satisfação da descrição “a vontade divina de que o Big Bang ocorra” implica que exista uma Big Bang não decorre do formato lógico da descrição (a forma é opaca), mas do conteúdo da descrição. Este conteúdo é característico na medida em que torna as condicionais relevantes acerca da volição divina e do Big Bang verdades lógicas. A expressão

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“um ser onipotente” significa em parte um ser cujos atos da vontade necessariamente efetivarão o que é desejado. Assim, a sentença “se um ser onipotente deseja que o Big Bang seja efetivado, então o Big Bang é efetivado” expressa a mesma proposição que a sentença “se um ser onipotente, cujos atos da vontade necessariamente efetivam o que é desejado, deseja que o Big Bang seja efetivado, então o Big Bang é efetivado”, que é uma verdade lógica. O princípio (1) sobre causas e condições logicamente suficientes implica que nenhuma condição causal é um teorema lógico, onde uma condição causal possui a forma “se c ocorre, então e ocorre” e substituições de “c” são expressões que se referem à causa e não incluem um termo para o efeito num contexto referencialmente transparente. Estas reformulaçoes do princípio (1) em termos lógicos e semânticos bastam para refutar a primeira objeção a meu argumento de que a volição divina não é uma causa, a objeção de que “para cada causa c e efeito e, existe alguma descrição de c que logicamente implica a existência de e“. (Obj. 2) A primeira objeção a meu argumento sobre causas e condições logicamente suficientes era que as volições divinas não são únicas uma vez que toda causa pode ser descrita de maneira a implicar logicamente o efeito. Uma segunda objeção é que existe alguma descrição de Deus desejando o Big Bang que não implica logicamente que o Big Bang ocorra, e portanto (por esta razão diferente) as volições divinas não são diferentes de causas. A descrição “a vontade que tem por objetivo a efetivação do Big Bang” pode ser usada como uma definição precisa da volição divina relevante e “ocorre a vontade que tem por objetivo a efetivação do Big Bang, mas o Big Bang não é efetivado” não é uma contradição lógica. Seguese (a objeção continua) que a vontade de Deus não precisa ser considerada uma condição logicamente suficiente do Big Bang. O objetor pode argumentar que a existência de tais descrições implica que se a volição divina torna ou não logicamente necessária a existência de seu objeto volicional não é um fato propriamente sobre a volição divina, mas é relativo a como a volição é descrita. Mas esta objeção é inválida, uma vez que a existência de uma descrição da volição divina que não implica logicamente que o Big Bang ocorra é consistente com a volição divina possuindo necessariamente a propriedade relacional de ser associada à ocorrência do Big Bang. Esta consistência é uma exemplo do princípio mais amplo de que “algo que necessariamente possui uma propriedade específica F pode ser descrito por uma descrição precisa D que não inclui F entre suas condições descritivas, e D não implicará que o que quer que satisfaça D necessariamente possui F”. Por exemplo, o número nove necessariamente possui a imparidade e é descrito por “o número de planetas”, mas como “o número de planetas” não inclui a

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imparidade entre suas condições descritivas, isso não implica que o que quer que satisfaça esta descrição necessariamente possua a imparidade. Estas respostas às duas objeções (Obj. 1) e (Obj. 2) ajuda a justificar minha afirmação de que a proposição (1) Para quaisquer dois eventos particulares ou estados x e y, se x é uma condição logicamente suficiente para y, então x não é uma causa de y. é verdadeira e impede que as volições divinas sejam causas. A teoria da causação de Sosa Todo filósofo aceita que um evento particular c que causa um evento particular enão pode tornar e logicamente necessário? Ernest Sosa sugeriu uma teoria da causalidade que pode aparentar ser inconsistente com esta tese. Sosa distingue vários tipos de causação, causação nomológica, causação material, causação consequencialista, e causação inclusiva. De interesse para nós é a definição de Sosa da causação consequencialista, uma vez que esta definição é instanciada pela vontade de Deus de que o Big Bang ocorra. Nos casos de causação consequencialista, “a causa implica o resultado ou consequencia”[17]. Sosa enumera vários exemplos de causação consequencialista: (i) uma maçã sendo vermelha causa a maçã ser colorida; (ii) Tom estar no quarto causa o fato geral de que há alguém no quarto; (iii)Peter, Paul e Mary são altos e as únicas pessoas na sala, e isto causa o fato geral de todos na sala serem altos; (iv) uma maçã ser doce, suculenta, etc. causa a maçã possuir um valor positivo. Sosa reconhece não possuir nenhuma analise ou definição da causação consequencialista, mas diz que ela envolve uma consequencia derivando necessariamente de uma causa “que é de alguma maneira mais básica”[18]. A réplica imediata à teoria de Sosa é que seus casos de causação consequencialista não são casos de causação mas casos de derivação lógica, ou, mais exatamente, casos nos quais a instanciação de uma propriedade F torna logicamente necessária a instanciação de uma segunda propriedade G, ou se a obtenção de de um fato p torna logicamente necessária a obtenção de um segundo fato q. Quando Sosa diz que isto “parece ser uma forma genuína de causação”[19], ele parece estar equivocado. Na verdade, o homem ou a mulher na rua, os filósofos contemporâneos e os cientistas iriam todos enfatica e corretamente declarar que estes não são casos genuínos de causação. Mas em justiça a Sosa, ele reconhece este ponto, e faz algumas observaçõs plausíveis neste contexto: Pode-se objetar que muito do que foi mencionado acima não passa de um artifício terminológico, que simplesmente toma o que os filósofos tem há muito denominado

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causação, renomeia como ‘causação nomológica’, e prossegue classificando-a ao lado de relações completamente diversas que os filósofos até então não haviam chamado de relações causais. E talvez possa ser que a palavra ‘causa’ e seus cognatos tenham sido tão íntima e persistentemente associados com a causação nomológica pelos filósofos que eles devam capitular. Mas mesmo assim a questão básica permaneceria, pois a causação nomológica é uma relação entre uma origem e uma consequencia ou resultado, e assim é a causação material (por exemplo, geração), assim é a causação consequencialista (por exemplo, a maçã ser cromaticamente colorida como resultado de ser vermelha) e assim é a causação inclusiva… Todas estas são relações origem-consequencia ou relações resultado-produto.[20] Portanto, podemos concordar com Sosa na medida em que a causação pode ser classificada com outras relações resultado-produto, tal como a necessidade lógica de uma propriedade F em virtude de outra propriedade G, como um tipo de relação resultado-produto, mas ao mesmo tempo distinguir a causação destas outras relações resultado-produto não-causais. 4. Descrições Analógicas e Literais Eu sugiro que a considerações a seguir fornecem-nos uma boa razão para crer que não há nenhuma teoria ou definição correta da causalidade, real ou possível, que seja instanciada pela vontade de Deus de que o Big Bang ocorra. Como poderia o defensor da causalidade divina responder a estes argumentos? Uma resposta possível seria reconhecer que a vontade de Deus não é uma “causa” do início do universo, mas em vez disso é a “criadora” ou “produtora” do início do universo. Mas esta alteração terminológica não resolve o problema; “ccria e” e “c produz e” implicam “c causa e“, de forma que o problema não é evitado. Se desejarmos estipular que “c cria e” não implica “c causa e“, então privamos a palavra “criar” de qualquer inteligibilidade aparente. Se “criar” não mais significa o que normalmente significa, então estamos em dificuldades para dizer o que significa. Um problema semelhante afeta uma solução alternativa, a saber, que dizemos que Deus “decide” que o universo comece a existir, mas não “causa” que ele comece a existir. Eu usei provisoriamente a terminologia “vontade de Deus” e “volição divina” nas seções precedentes, mas este emprego exige uma reavaliação. “x deseja e e e ocorre devido à vontade de x” implica logicamente “a vontade de x causa e“. Se o ato divino de querer não é um ato de causação, é difícil dizer o que a palavra “vontade” significa quando aplicada a Deus. Não significa o mesmo que em sentenças como “John moveu seu braço quebrado por um simples ato da vontade”. Talvez possamos dizer que as palavras “vontade” e “causa” sejam usadas num sentido analógico ou metafórico quando aplicadas a Deus. Isto significa que Deus possui alguns

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atributos que são análogos aos atributos que normalmente significamos por “vontade” e “causa”, e também alguns atributos que são diferentes. A analogia para “vontade” seria esta: Se um humano deseja alguma coisa, esta vontade é um evento mental que tem por objetivo trazer outro evento à existência. De maneira similar, podemos dizer de Deus que ele ou ela experimenta um evento mental e que este evento mental tem por objetivo trazer outro evento a existência. Esta é a analogia. Também há uma diferença, na qual a vontade de Deus é uma condição logicamente suficiente para a existência de um evento que é desejado, ao passo que uma vontade humana não é logicamente suficiente para o evento que é desejado. Entretanto, este recurso do uso “analógico” das palavras ameaça solapar a inteligibilidade de nosso discurso sobre a vontade de Deus. A explicação do significado analógico destas palavras está em termos de outras palavras que também possuem um significado analógico. Dizemos que a vontade de Deus é um evento mental que “tem por objetivo trazer outro evento à existência”. Contudo, o significado literal da frase sobre tencionar um objetivo implica que “é logicamente possível que este objetivo não seja alcançado”. Quando dizemos que Alice tem a intenção de escrever um livro, queremos dizer, em parte, que é logicamente possível que ela não tenha sucesso em realizar sua intenção. Considerando-se o significado literal de “intenção”, uma declaração no formato “x tenciona realizar F e F é realizada” não é nem uma verdade lógica nem uma verdade analítica. Consequentemente, a explicação do significado analógico de “vontade divina” em termos de “tencionar fazer algo” não pode envolver um uso literal de “tencionar fazer algo”. Mas se “tencionar” é utilizada analogicamente, então nosso problema de explicar o que queremos dizer com nossas palavras ressurge. Este problema parece não ter solução; embarcamos numa regressão de explicações analógicas das palavras utilizadas em termos de outras palavras analogicamente utilizadas, sem nenhuma maneira de terminar esta regressão por uma explicação que envolva palavras em seu sentido usual e literal. Esta regressão é viciosa; a fim de compreender a frase 1, precisamos compreender a frase 2, mas a fim de entender a frase 2 precisamos entender a frase 3, e assim por diante. Isto sugere que não podemos atribuir qualquer significado preciso à asserção de que Deus causa, deseja ou tenciona trazer o universo à existência. Uma Formulação Literal da Relação Divina com o Big Bang Mas isto não é o mesmo que dizer que não podemos falar de forma inteligível sobre Deus e sua relação com o Big Bang. Parece que podemos dizer ao menos que existe alguma propriedade F n-ádica exemplificada por Deus, tal que em virtude de exemplificar esta propriedade, Deus está numa relação com o Big Bang de ser uma condição logicamente suficiente do Big Bang. Talvez possamos até mesmo ser mais precisos e dizer que F é alguma

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propriedade mental, onde “mental” é compreendido em termos de intencionalidade (na tradição de Brentano, Husserl, Chisholm e Searle). Além disso, podemos dizer que este ato intencional experimentado por Deus possui uma propriedade específica como seu objeto intencional, a propriedade, ser o Big Bang. A propriedade de ser o Big Bang possuirá assim uma propriedade de segunda ordem, a saber, ser o objeto intencional do ato intencional divino A, tal que ser um objeto intencional de A é uma condição logicamente suficiente de ser exemplificado. Falar de “ato intencional” aqui pode ser literal, uma vez que estes são termos técnicos na literatura filosófica e aqui “ato” possui um significado diferente de “ato” em “Jane agiu rapidamente para remediar a situação” ou “o último ato da peça foi decepcionante”. Se for objetado que “ato intencional” não possui um significado unívoco entre “humanos (corpóreos, não-oniscientes e

não-onipotentes) realizam atos intencionais” e

“Deus

(incorpóreo, onisciente e onipotente) realiza atos intencionais”, então podemos lançar mão de um nível mais geral de discussão. Podemos dizer que existe uma relação específica R a qual Deus mantém com a propriedade “ser o Big Bang”, tal que em virtude de Deus estar em R com ser o Big Bang, é logicamente necessário que ser o Big Bang seja exemplificada. Resumindo, estamos seguros em dizer que Deus não causa o Big Bang, mas R-iza o Big Bang, onde “Deus R-iza o Big Bang” significa que Deus está numa relação específica R com ser o Big Bang, tal que em virtude de manter esta relação com esta propriedade, é logicamente necessário que esta propriedade seja exemplificada. (Para facilitar, eu as vezes falarei grosseiramente nas seções seguintes de Deus mantendo R com o Big Bang, mas tal discussão deve ser estritamente analisada da maneira que analisei “Deus R-iza o Big Bang”.) 5. Objeções ao argumento de que Deus não pode ser uma Causa Primeira Objeção Pode-se objetar que a relação divina R não pode ser apenas a de ser uma condição logicamente suficiente do Big Bang. Deus manter esta relação lógica com o Big Bang não é similar ao sol ser amarelo estar em relação com o sol ser colorido como uma condição logicamente suficiente. A exemplificação pelo sol de ser amarelo em nenhum sentido acarreta ou produz a exemplificação pelo sol de ser colorido. Mas a exemplificação por Deus de R acarreta o Big Bang. Mas esta objeção é evidentemente uma petição de princípio. Eu já demonstrei que Deus manter uma relação com o Big Bang não satisfaz qualquer definição existente de causação (seção 2) e não satisfaz uma condição logicamente necessária de ser uma causa (seção 3). Assim, introduzir sinônimos de “causa”, como “acarreta” ou “produz”, etc. é simplesmente petição do princípio em discussão.

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Pode ser contraargumentado pelo objetor que existe uma importante diferença entre o caso do evento divino relevante e o caso de outras condições logicamente suficientes, a saber, que Deus estar numa relação com o Big Bang é um evento, um particular concreto, e o Big Bang é outro particular concreto, ao passo que as outras relações lógicas estão entre os objetos abstratos. Este contraargumento é incorreto. Segundo uma concepção de eventos ou estados, um evento ou estado é a exemplificação de uma propriedade por algo. A exemplificação por Deus da propriedade poliádica R é um estado, e também o é a exemplificação por Jane de correr e sua exemplificação de estar viva. O estado concreto da exemplificação por Jane de correr é uma condição logicamente suficiente do estado concreto da exemplificação por Jane de estar viva. Assim, há dois estados concretos coexistindo na relação de um ser a condição logicamente suficiente do outro. Neste aspecto, a situação é similar a Deus estar com o Big Bang na relação relevante. Ainda assim, pode persistir a intuição de que existe um ingrediente importante na relação de Deus com o Big Bang que o torna logicamente necessário que está ausente na relação em que a cor laranja do sol torna logicamente necessário que o sol seja colorido, ou na relação em que a corrida de Jane torna logicamente necessário que ela esteja viva, um componente que é metaforicamente capturado pela linguagem causal (“produz”, “acarreta”, etc.) O objetor pode simplesmente declarar que é intuitivamente óbvio que existe esta diferença entre os dois casos, mesmo que esta diferença não possa ser adequadamente expressa em palavras. Mas isto equivale a recuar para uma teoria da inefabilidade. Agora temos a teoria. “Deus não causa literalmente o Big Bang, mas em algum sentido metafórico causa o Big Bang, apesar de ser impossível especificar literalmente a analogia entre a causação e a relação entre Deus e o Big Bang que justifique a metáfora.” A teoria da inefabilidade é que Deus R-ando o Big Bang é uma relação com duas propriedades; uma das propriedades de Deus R-ando o Big Bang é que R-ar o Big Bang é uma condição logicamente suficiente para o Big Bang, e a segunda propriedade é uma propriedade indescritível, a qual podemos chamar uma propriedade X, tal que a propriedade X é uma propriedade de Deus R-ar que tornar R-ar análoga à relação causal num aspecto relevante. Entretanto, a teoria da inefabilidade falha por três razões. (i) Se a propriedade X torna a R-ação análoga a uma relação causal, então a propriedade X é alguma propriedade compartilhada pela relação causal e a relação R. Como a propriedade X pertence à relação causal, e podemos descrever literalmente a relação causal, deveríamos ser capazes de especificar literalmente a propriedade X da relação causal e dizer que é esta

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propriedade que a relação R possui em comum com a relação causal. Mas a teoria da inefabilidade fracassa em fazer isto. (ii) A teoria da inefabilidade não possui nenhuma justificativa para asseverar que esta propriedade X existe. A teoria da inefabilidade não menciona nenhum dado que a postulação da propriedade X é utilizada para explicar, e não introduz nenhuma premissa a partir da qual a presença da propriedade X é deduzida. A única justificação aparente pode ser que alguém tenha tido uma experiência mística e “contemplado” diretamente Deus R-ando o Big Bang e “contemplado” a propriedade X desta R-ação, mas que ao relatar esta intuição, apercebera-se de que não existem palavras adequadas e utilizadas literalmente que poderiam descrever a propriedade X. Contudo, se a teoria de que Deus metaforicamente causa o universo não equivale a nada além de declarações obscuras sobre o que foi contemplado numa experiência mística inefável, então esta não é uma teoria baseada na razão natural mas é um voo no misticismo e nas redenções da “razão sobrenatural”. Seria desprovida de qualquer interesse para um filósofo engajado na construção de uma visão de mundo baseada na razão natural. (iii) A melhor explicação das origens da “intuição” de que Deus metaforicamente causa o Big Bang, e não é uma mera condição logicamente suficiente do Big Bang, não implica que esta intuição seja verdadeira. A origem desta intuição é a duradoura e universal tradição (na filosofia, na religião e na “linguagem cotidiana”) de usar palavras causais, “causa”, “cria”, “decide”, etc. para descrever a relação de Deus com o início do universo. As associações psicológicas produzidas pela adoção desta tradição linguística origina a intuição de que deve existir uma propriedade X na relação entre Deus e o Big Bang que fundamenta a utilização metafórica de “causa”. Existem diferenças entre (por exemplo) a relação amarelo/cor e a relação R entre Deus e o Big Bang, mas nenhuma é do tipo causal. Amarelo é um tipo de cor, mas a relação entre Deus e o Big Bang não é um tipo de Big Bang. Além disso, a “amarelidade” é uma propriedade monádica da mesma coisa da qual ser colorido também é uma propriedade, mas a propriedade X é uma propriedade poliádica e interconecta objetos diferentes. Em terceiro lugar, ser amarelo e ser colorido são ambas propriedades físicas, ao passo que a relação divina é uma propriedade mental eser o Big Bang é uma propriedade física. Podemos também especificar características formais da relação R: ela é assimétrica, transitiva e irreflexiva, mas várias relações não-causais também possuem estas características formais. Segunda objeção

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O teísta, agnóstico ou ateu que acredita que é logicamente inteligível dizer que Deus é uma causa originária do universo pode pegar o touro pelos chifres e afirmar arrogantemente que Deus ser uma condição logicamente suficiente do Big Bang é um contraexemplo para as definições existentes de causação discutidas na seção 2, e mostrar que estas definições são errôneas, e que é também um contraexemplo válido para meu princípio (1) que declara que causas não são condições logicamente suficientes. O objetor proclama: “Todas as definições de causação, nomológicas ou contiguistas, reais ou possíveis, são falsas. A definição correta é uma definição não-contiguista e singularista que permite que algumas relações causais sejam relações lógicas.” O problema com esta objeção arrogante é que não há justificativa aparente para a crença de que existe uma definição correta de causação que seja não-contiguista, singularista e permita relações lógicas afora os alegados atos de causação de Deus. Mas estes são exatamente os eventos cuja natureza causal está em disputa. Presumir, diante dos argumentos que apresentei, que estes atos sejam relações causais é petição de princípio. A fim de demonstrar que a relação divina relevante é uma relação causal, devemos dispor de uma razão logicamente independente para acreditar que existe alguma definição correta de causação que a relação divina R satisfaça. Mas tal razão não existe. Considere o argumento: (2) Existe uma razão suficiente J para acreditar que existe uma definição correta de causação que seja singularista, não-contiguista e que permita relações lógicas. Portanto, (3) A relação divina R é uma relação causal. Se a razão oferecida J é (3), então o argumento de que a relação divina R é uma relação causal é circular. Pode ser objetado que o defensor da tese “não pode existir uma causa divina” se encontra numa situação de circularidade similar e portanto há um ‘impasse”. Pode ser dito que o defensor incorre em petição de princípio por presumir que (3) é falsa ou não pode desempenhar o papel da razão J. Esta objeção fracassa uma vez que o defensor da tese “não pode existir uma causa divina” possui um argumento não-circular para a falsidade de (3). O argumento é que todos os casos de causação que não estão em discussão são inconsistentes com a hipótese de que existe uma definição correta do tipo mencionado em (2). Ambas as partes em discussão concordam que eventos físicos causam outros eventos físicos, e que eventos mentais de organismos inteligentes causam outros eventos (presumindo-se uma filosofia da mente adequada), e esta

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concordância é o ponto de partida compartilhado pelo oponente e pelo defensor da tese “não pode existir uma causa divina”. Mas estes pontos de partida compartilhados são inconsistentes com a tese positiva, isto é, que “pode existir uma causa divina”, no mínimo pela razão de que existe uma propriedade logicamente nececessária dos casos de causação sobre os quais há consenso de que o evento causal não é uma condição logicamente suficiente do efeito. Como estes eventos causais necessariamente não são condições logicamente suficientes, uma definição de causa que englobe tanto os eventos causais quanto a relação entre Deus e o Big Bang incluiria a contradição “não é uma condição logicamente suficiente e é uma condição logicamente suficiente”. Os casos sobre os quais há concordancia podem também incluir condições nomológicas e contiguistas, e consequentemente podem haver contradições adicionais, por exemplo, “instancia alguma lei da natureza e não instancia qualquer lei da natureza” e “é espacialmente contígua ao efeito e não é espacialmente contígua ao efeito”. Terceira objeção Pode-se argumentar que uma definição disjuntiva pode resolver o problema. Suponha que temos esta definição disjuntiva de causação: c é uma causa de e se e somente se c é ou uma condição logicamente suficiente de e, ou c não é uma condição logicamente suficiente de e mas satisfaz (digamos) as condições humeanas. Um problema com esta definição disjuntiva é que ela classifica o sol ser amarelo como uma causa do sol ser colorido. De maneira que não funciona por esta razão, assim como pelas outras razões mencionadas em minha discussão da explicação de causação oferecida por Sosa. Mesmo que acresçamos a condição da prioridade temporal, esta definição disjuntiva não irá funcionar. Podemos dizer: c é uma causa de e se e somente se OU c é tanto uma condição logicamente suficiente de e quanto temporalmente anterior a e OU c não é uma condição logicamente suficiente de e e satisfaz (digamos) as condições humeanas. John ser um organismo vivo (ou John ser encarnado num corpo mortal no instante t) é tanto temporalmente anterior a quanto é uma condição logicamente suficiente para João estar morto, mas João ser um organismo vivo (ou João estar encarnado num corpo mortal no instante t) não é a causa de sua morte. Sua morte é causada, digamos, por um atropelamento ao atravessar a rua. O conceito expresso por “é um organismo vivo” analiticamente inclui o conceito expresso por “é mortal” e as verdades lógicas relevantes (por exemplo, “se x é um organismo que morre, então x morre”) podem ser obtidas por substituição de sinônimos. Suponha que nos tornemos ainda mais específicos e em vez disso digamos: c é uma causa de e se e somente se OU c é Deus na relação R com e OU c não é uma condição logicamente

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suficiente de e e satisfaz (digamos) as condições humeanas. Mas esta tentativa de produzir uma definição satisfatória fracassa por duas razões interrelacionadas: (i) Uma condição logicamente necessária para uma definição correta de um universal puramente qualitativo, seja uma propriedade monádica ou uma relação (como a causação ou a intencionalidade) é que a definição não inclua um disjunto que menciona um caso particular que não satisfaz as condições gerais descritas no outro disjunto. Um universal puramente qualitativo não inclui quaisquer particulares como constituintes. Um exemplo de universal qualitativo impuro é ser mais alto que o Monte Everest. Definições de universais puramente qualitativos mencionam condições gerais e não incluem referencias a qualquer caso particular, como o caso particular de Deus numa relação R com algo. (ii) Se se permitisse que esta condição lógica para as definições corretas de universais puramente qualitativos (isto é, a condição de não mencionar qualquer caso particular num disjunto) fosse violada, então o procedimento de testar definições pelo método dos contraexemplos (o método padrão para se testar a correção de definições) não mais seria utilizável. Qualquer contraexemplo para uma definição poderia ser tornado consistente com a definição adicionando-se à definição o disjunto que menciona o contraexemplo. Para salvar a definição “x é um planeta se e somente se x é um corpo grande que orbita uma estrela e não contém vida”, podemos expandi-la para “x é um planeta se e somente se x é um corpo grande que orbita uma estrela e não contém vida OU x é a Terra.” A distinção entre definições corretas e definições ad hoc desmoronaria. Quarta Objeção Um argumento final é que filósofos de Platão a Plantinga tem descrito o estado mental relevante de Deus como uma causa do universo, e portanto esta é uma noção aceitável. Há tanto um costume filosófico estabelecido de chamar a relação de Deus como universo uma “relação causal” quanto uma longa e venerável tradição que sustenta ser coerente descrever um estado mental divino como uma causa. Este argumento, que na verdade é um “apelo à autoridade”, é malsucedido, uma vez que se este argumento fosse admissível, ele poderia ser usado para rejeitar qualquer nova teoria que seja inconsistente com as teorias tradicionalmente sustentadas. Este “apelo à autoridade” na melhor das hipóteses nos motiva a examinar seriamente a noção de que os estados mentais de Deus são causas, em respeito ao fato de que praticamente todos os filósofos e leigos aceitaram esta noção como logicamente incontroversa.

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Para responder plenamente a esta objeção talvez precisemos também de uma explicação da razão pela qual esta tradição equivocada prevaleceu por tanto tempo e entre tantos filósofos. Acredito que a principal razão seja que uma investigação da conexão lógica entre o que é expresso por “o começo da existência do universo é o resultado de um ato divino” e o que é expresso por “o evento natural e é o resultado causal do evento natural c” não ter sido empreendida de maneira sistemática. (A principal exceção é a diferente mas esclarecedora discussão desta conexão nos escritos recentes de Adolf Grünbaum[21]. A maioria dos filósofos tem pressuposto de maneira implícita que “a causação divina é logicamente possível” é incontroversa, mas uma vez que esta tese seja examinada, a pressuposição revela-se falsa. 6. Conclusão: Argumentos Cosmológicos e Teleológicos para a inexistência de Deus À primeira vista, pode parecer que o argumento deste artigo nos diz mais sobre a natureza da causação e a natureza de Deus do que sobre a disputa ateísmo versus teísmo. “Um estado divino não pode causar o começo da existência do universo” não implica que Deus não existe ou que o Big Bang não seja o resultado lógico de um estado divino. Ele implica meramente que não podemos descrever um estado divino como a causa originária do universo. Não obstante, há implicações importante e talvez decisivas para o debate entre o ateísmo e o teísmo, a saber, que argumentos a partir de verdades necessárias, verdades apriorísticas ou verdades empíricas de algum principio causal não podem ser uma premissa relevante da qual deduzir ou induzir que o Big Bang é a consequencia lógica de Deus manter uma relação R com a propriedade de ser o Big Bang. Considere o seguinte argumento: (4) Tudo o que começa a existir tem uma causa. (5) O universo começou a existir. Portanto, (6) O universo possui uma causa. Este argumento fracassa em respaldar a tese de que Deus existe ou que existe uma causa divina para o universo. Na verdade, este argumento implica que a existência do universo é o resultado de algo distinto de um estado divino, ou seja, uma causa. Tampouco pode qualquer argumento indutivo baseado no fato de que todos os eventos observados tem uma causa ser utilizado para amparar a tese de que o Big Bang é o resultado de um estado divino, uma vez que este argumento indutivo em vez disso respalda a tese de que o Big Bang é o efeito de alguma causa. De fato, todos os variados argumentos cosmológicos e teleológicos a favor da existência de Deus são na verdade argumentos favoráveis à sua inexistência. Estes argumentos são

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argumentos para a tese de que o universo possui uma causa e se o universo possui uma causa, Deus não existe. Isto pode ser demonstrado da seguinte maneira: A definição tradicional de Deus é: x é Deus se e somente se x é onisciente, onipotente, onibenevolente e é a causa de qualquer universo que exista. Vimos que o que é tradicionalmente expresso por “Deus é a causa do universo”, se for logicamente coerente, deveria em vez disso ser expresso por “Deus R-iza o universo”. Assim a definição correta de Deus declara: x é Deus se e somente se x é onisciente, onipotente, onibenevolente e R-iza qualquer universo que exista. Desta definição resulta que é uma propriedade essencial de Deus que ele R-iza qualquer universo que exista. Como esta propriedade é essencial a Deus, não existe mundo possível no qual é verdadeiro tanto que Deus exista quanto que exista um universo com o qual Deus não mantém uma relação R. Nossa discussão da teoria da causação de Sosa sugeriu que a relação causal e a relação divina R são dois tipos diferentes de relações resultado-produto, tomando emprestado a expressão de Sosa. Se o universo é o resultado de uma relação causal resultado-produto, não é o resultado de uma relação resultado-produto do tipo R, e se o universo é o resultado de um ato divino de R-ar, não é o resultado de uma causa. Se existe um mundo possível no qual algum universo é o resultado de uma causa, segue-se que Deus não existe nesse mundo possível. Isto mostra como um argumento cosmológico para a inexistência de Deus pode ser explicitamente construído. As premissas e inferências são mencionadas no seguinte argumento: (4) Tudo o que começa a existir possui uma causa. (5) O universo começou a existir. Portanto, (6) O universo possui uma causa. (7) Se o universo é o resultado de uma causa, não é o resultado de Deus estar numa relação R com o universo. (8) É uma propriedade essencial de Deus que ele R-iza qualquer universo que exista. Portanto [a partir de #7 e #8], (9) Não existe mundo possível no qual seja simultaneamente verdadeiro que Deus existe e que existe um universo que é o resultado de uma causa.

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Portanto [a partir de #6 e #9] (10) Deus não existe. Se a cosmologia do Big Bang é verdadeira (e portanto #5 é verdadeira), parece que a premissa com o status epistêmico mais baixo ou fraco é a primeira premissa, “Tudo o que começa a existir tem uma causa”. Mas William Lane Craig diz sobre esta premissa: “a primeira premissa é tão intuitivamente óbvia, especialmente quando aplicada ao universo, que provavelmente ninguém em seu juízo perfeito realmente acredita que seja falsa.”[22] Se Craig estiver certo e meu argumento for sólido, segue-se que provavelmente ninguém em seu juízo perfeito que acredita que a existência do universo possui um princípio realmente acredita que Deus existe. As mesmas considerações se aplicam ao argumento teleológico, do qual uma versão declara: (11) Artefatos são causados a existir por algum(ns) ser(es) inteligente(s) com algum objetivo em mente. (12) O universo assemelha-se a um artefato. Portanto, é provável que: (13) O universo foi causado a existir por algum(ns) ser(es) inteligente(s) com algum propósito em mente. Se este é um argumento analógico apropriado, então é provavelmente verdadeiro que a relação resultado-produto envolvida na explicação da razão do universo existir é uma relação causal que algum ser inteligente mantém com o universo. Segue-se (considerando-se as proposições #7 e #9) que Deus provavelmente não existe. Uma vez que os argumentos cosmológico e teleológico tem sido tradicionalmente considerados os argumentos mais poderosos para a existência de Deus, e uma vez que eles respaldam o ateísmo em vez do teísmo, agora parece que o caso para o teísmo é realmente muito fraco. É difícil imaginar como se poderia estabelecer indutiva ou dedutivamente, ou se achar autoevidente, que o Big Bang é a consequencia lógica de algo mantendo uma relação R com o Big Bang. Talvez existam alguns argumentos honestamente plausíveis sustentando que o Big Bang tem uma causa, mas não há argumentos existentes ou plausíveis de que o Big Bang possui uma condição logicamente suficiente num estado mental acausal. Isto sugere que a crença na existência de Deus é consideravelmente menos razoável do que os mais cautelosos teólogos naturais tem tradicionalmente suposto. Notas

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*Versões anteriores deste artigo foram lidas na West Virginia University (Fevereiro de 1995) e na Southern Methodist University (Março de 1996). Os filósofos de ambas as universidades teceram comentários úteis sobre estas primeiras versões. Mark Aronszajn e William Lane Craig redigiram respostas críticas às primeiras versões que se mostraram úteis durante a redação da versão final. Também sou grato a Christopher Hill pelas inúmeras sugestões que permitiram-me melhorar uma versão anterior. A pesquisa para este artigo foi patrocinada pelo American Council of Learned Societies Fellowship de 1996, e pela National Endowment for the Humanities Summer Stipend de 1995. 1. David Hume, “An Abstract of A Treatise of Human Nature’, in An Inquiry Concerning Human Understanding (New York: Bobbs-Merril, 1955), pp. 186-7. 2. Vale a pena notar que a teoria de Michael Tooley implica que uma causa exige uma lei da natureza subjacente, mas que a causa não é especificada unicamente pela lei da natureza e pelos fatos não-causais. Apesar de a definição de Tooley diferir das definições redutivas tradicionais, sua inclusão de uma condição nomológica impede que ela seja satisfeita por uma volição divina. Veja Causation: A Realist Approach (Oxford: Clarendon Press, 1987). 3. Carl Hempel, Aspects of Scientific Explanation (New York: The Free Press, 1965), pp. 34849. 4. C. J. Ducasse, “On the Nature and the Observability of the Causal Relation”, in Causation, eds. E. Sosa and M. Tooley (Oxford: Oxford University Press, 1993), p. 129 5. Ducasse, p. 127. 6. Hector-Neri Castaneda, “Causes, Causity, and Energy,”, in Midwest Studies in Philosophy IX, eds. P. French et al (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1984); Galen Strawson, “Realism and Causation”, The Philosophical Quarterly 37 (1987), pp. 253-77; David Fair, “Causation and the Flow of Energy”, Erkenntnis 14 (1979), pp. 219-50; Jerrold Aronson,”The Legacy of Hume’s Analysis of Causation” Studies in the History and Philosophy of Science 7 (1971), pp. 135-36. 7. Castaneda, p. 22. 8. Jaegwon Kim, “Events as Property Exemplifications”, in Action Theory, eds. M. Brand and D. Walton (Dordrecht: Reidel, 1976). 9. Brian Leftow, Time and Eternity (Ithaca: Cornell University Press, 1993). 10. Donald Davidson, “Causal Relations”, in Causation, eds. Sosa and Tooley. 11. Nicholas Wolterstorff, “God Everlasting” in God and the Good, ed. C. Orlebeke and I. Smedes (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1975) 1979; Quentin Smith, Language and Time (New York: Oxford University Press, 1993).

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12. David Lewis, Philosophical Papers, Volume II (New York: Oxford University Press, 1983), p. 170. 13. Lewis, p. 170. 14. John Mackie, The Cement of the Universe (Oxford: Clarendon Press, 1974). 15. Eu defendo esta teoria em “The Concept of a Cause of the Universe”, Canadian Journal of Philosophy 23 (1993), pp. 1-24. Neste artigo anteiror, afirmei que casos de volições divinas são contraexemplo válidos para as definições existentes de causalidade. Entretanto, desenvolvi um contraargumento para esta alegação, o que me levou a abandonar a afirmação de que as volições divinas são causas. 16. Mais exatamente, uma ocorrência notacional de um termo numa posição interior a construções de atitudes não está aberta à substituição e quantificação; uma ocorrência relacional de um termo nesta posição é aberta à substituição e quantificação. “F” ocorre relacionalmente em “y deseja que exista um F” se isto for lido como “(Ex) Fx. y deseja que: (Ex) Fx. ” Ao contrário, “F” ocorre notacionalmente se “y deseja que exista um F” for lida como “y deseja que: (Ex) Fx. Veja David Kaplan, “Opacity”, em The Philosophy of W.V. Quine, ed. L. Hannard e P. Schlipp (La Salle: Open Court). Quando falo sobre “posições com construções de aitude”, tenho em mente apenas posições internas à construções de atitudes nas quais os termos ocorrem notacionalmente. 17. Ernest Sosa, “Varieties of Causation”, in Causation, eds. Sosa and Tooley, p. 240. 18. Sosa, p. 240. 19. Sosa, p. 240. 20. Sosa, p. 242. 21. Adolf Grunbaum, The Pseudo-Problem of Creation in Physical Cosmology“, in John Leslie (ed.), Philosophy and Physical Cosmology: New York: Macmillan, 1990, pp. 92-112; “Creation as a Pseudo-Explanation in Current Physical Cosmology”, Erkentniss 35 (1991): 233-54. 22. William Lane Craig and Quentin Smith, Theism, Atheism and Big Bang Cosmology (Oxford: Clarendon Press, 1993), p. 57.

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05: Um argumento moral para o Ateísmo [Apresentado na University of Western Washington em 27 de maio de 1999, e — numa versão revisada — na University of Auckland em 29 de Setembro de 1999. Raymond D. Bradley é professor emérito de Filosofia na Simon Fraser University, e atualmente vive na Nova Zelândia.] Preâmbulo para filósofos O argumento que estou prestes a apresentar é direcionado principalmente a um público leigo, sem formação filosófica. Filósofos profissionalmente treinados podem questionar o fato de eu dizer pouco sobre o Deus da tradição filosófica e bastante sobre o Deus do púlpito e dos bancos de igreja. Ofereço-lhes duas breves explicações. Primeira: há um amplo precedente para o que estou fazendo. Sócrates, por exemplo, examinou as crenças religiosas de seus contemporâneos — especialmente a crença de que devemos fazer o que os deuses nos ordenam — e demonstrou-lhes ser tanto mal fundamentada quanto conceitualmente confusa. Desejo seguir suas pegadas, mas sem compartilhar seu destino. Uma taça de vinho, não de veneno, seria a recompensa que eu escolheria. Portanto, como Sócrates, eu me posiciono contra o Deus da crença popular, não contra o Deus da teologia natural. E como Deus, na mente da maioria dos ocidentais, é predominantemente o Deus das escrituras judaico-cristãs[1], tenho poucas opções além de citar a Bíblia livremente de maneira a confrontar diretamente as crenças teístas que são meu alvo e me antecipar às acusações de ter compreendido ou interpretado mal minhas fontes. Segunda: o fato é que a maioria dos filósofos da religião renomados que publicam em periódicos acadêmicos como Faith and Philosophy creem no Deus da Bíblia, não somente no Deus dos filósofos. Para citar apenas alguns nomes, tenho em mente pessoas como William Alston, Peter van Inwagen e Alvin Plantinga. Todos eles são, como Plantinga coloca, “pessoas da Palavra que consideram as Escrituras um caso especial de revelação do próprio Deus“[2]. Nenhum deles reluta em citar capítulo e versículo das Escrituras Sagradas — os mais palatáveis, obviamente — tanto em suas publicações quanto no púlpito. William Alston, por exemplo, afirma: “…uma grande parcela das Escrituras consiste de registros de comunicações entre Deus e os homens“, e sustenta que Deus continua a se revelar

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a “cristãos sinceros” de hoje de maneiras que variam de orações respondidas a pensamentos que simplesmente pipocam na mente de alguém.[3] Peter van Inwagen confessa: “Aceito plenamente os ensinamentos de minha denominação segundo os quais ‘as Escrituras Sagradas do Velho e do Novo Testamento são a Palavra revelada de Deus’“.[4] E Alvin Plantinga sustenta que: “A Escritura é inerrante: o Senhor não comete erros; o que ele propõe para conteúdo de nossas crenças é o que devemos acreditar.“[5] Estes pontos de vista caracterizam o tipo de teísmo, a saber, o teísmo bíblico, a cuja refutação tenho me dedicado. Agora vamos a meu argumento para o ateísmo. Introdução: “Se Deus não existe, todas as coisas são permitidas.” Assim disse um dos personagens de Dostoievski na obra “Os irmãos Karamazov”. Ele estava afirmando que se Deus não existe, então os valores morais seriam uma questão meramente subjetiva a ser determinada por caprichos individuais ou pela contagem de cabeças no grupo social ao qual alguém pertence; ou talvez ele estivesse mesmo dizendo que valores morais seriam totalmente ilusórios e o niilismo moral prevaleceria. Resumindo — o argumento continua — se verdades morais objetivas existem, então Deus deve existir. A título de contraste, argumento que se verdades morais objetivas existem, então Deus não existe. Apresento um argumento moral para o ateísmo. A: Pontos de concordância com os teístas. A respeito de quatro pontos, dois terminológicos e dois substantivos, eu concordo com meus oponentes teístas. Primeiro: eu concordo com eles a respeito do significado do termo “Deus”, e nego que Deus exista. Não estamos falando de qualquer divindade obsoleta. Não estamos falando, por exemplo, sobre Baal (deus dos cananitas) ou Aton (deus egípcio), ou Zeus (deus grego), ou Brama (divindade hindu), ou Huitzilopochtli (deus asteca). Todos esses, junto com outros 200 ou mais, citados em obras sobre religião comparada, foram divindades supremas. Cada uma delas foi adorada e obedecida por milhões. Contudo, como H. L. Mencken colocou em seu artigo de 1922 “Serviço Memorial”, “todos estão mortos.” Apesar de o termo “teísmo” ser frequentemente utilizado num sentido amplo de forma a abraanger a crença em qualquer tipo de deus ou deuses sobrenaturais que se revelam para os humanos, eu o utilizarei — como a maioria dos filósofos e teológos agora fazem — num sentido

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um tanto mais estrito. O teísmo sobre o qual estarei falando a respeito não é somente a crença num ou noutro deus qualquer. É a crença no Deus das tradições ortodoxas judaicas, cristãs e islâmicas. É a crença num Deus que distingue-se de todos estes outros em dois aspectos principais. Primeiro, ele é santo (isto é, moralmente perfeito). Segundo, ele se revelou para nós nas Escrituras Sagradas. É em virtude de sua Santidade que ele é considerado digno de adoração e obediência. E é em virtude de ter se revelado a nós nas Escrituras que sabemos sobre sua natureza e quais ações ele nos permite ou proíbe fazer. O Deus do Teísmo, assim compreendido, é um ser sobrenatural robusto. Ele não deve, portanto, ser identificado com o Deus metafisicamente mutilado de teólogos liberais como Paul Tillich e o bispo Robinson, para os quais Deus é algo como “nossa mais profunda inquietação” e a Bíblia é apenas uma fábula inventada pelo homem, ou na melhor das hipóteses um romance quase-histórico. Nem deveria ser o Deus dos teístas identificado com o ser incognoscível dos deístas como Voltaire e Thomas Paine para os quais Deus era uma entidade hipotética invocada meramente para explicar as origens e a natureza do universo, e a Bíblia uma fraude moral e intelectual impingida sobre os crédulos pelos profetas, papas, padres e pastores. No sentido estrito da palavra, cada um dos quatro pensadores citados é um ateu. E, no mesmo sentido, também eu sou. Mas não vejo nenhuma necessidade de um deus ou qualquer coisa do tipo. Vejo apenas obscuridades semânticas na roupagem liberal de sentimentos humanistas (que eu aplaudo) combinadas com tagarelice piedosa (que eu deploro). E eu encontro somente inferências falaciosas na suposição de que podemos explicar porque

qualquer

coisa

existe

conjeturando

que

alguma

outra

coisa

existe

além

do explicandum; pois tal suposição segue rumo a uma regressão infinita. Segundo: penso que os teístas concordariam comigo sobre o que queremos dizer quando falamos de moralidade objetiva. Queremos dizer um conjunto de verdades morais que permaneceriam verdadeiras não importa o que qualquer indivíduo ou grupo social pensasse ou desejasse. A noção de moralidade objetiva é antitética a todas as formas de subjetivismo moral. Ela sustenta, primeiro, que possuímos crenças morais que são ou verdadeiras ou falsas; que elas não são meras expressões de emoções e sentimentos, similares a suspiros e gemidos de prazer e dor. Ela sustenta, em segundo lugar, que a falsidade ou veracidade de nossos julgamentos morais é uma função de se os objetos de apreciação moral, os agentes e suas ações, possuem as propriedades morais que lhes imputamos, ou não; que sua veracidade ou falsidade não é uma mera função dos pensamentos, sentimentos ou atitudes de indivíduos ou de convenções sociais. E ela sustenta, em terceiro lugar, que podem existir verdades morais que ainda aguardam pela nossa descoberta, pela revelação ( sob a interpretação teísta) ou

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através da razão e da experiência — combinadas, talvez, com nossa biologia cambiante — (sob a minha interpretação). Terceiro: concordarei com meus oponentes teístas em sustentar que ao menos alguns princípios morais são objetivamente verdadeiros. Admitimos que discordâncias sobre temas morais — sobre a permissibilidade do aborto ou da pena de morte, por exemplo —

frequentemente originam fortes reações emocionais. Mas isto não significa que tais

desacordos sejam nada além de rompantes emocionais. Pois consideramos um fato da psicologia moral que possuímos crenças bem como emoções a respeito de tais temas controversos. E uma vez que nada conta como crença a menos que seja verdadeiro ou falso, concluímos que nossas crenças morais — à semelhança de crenças a respeito do formato do planeta e da idade do universo — são verdadeiras ou falsas. Nem, a partir do fenômeno da discordância moral, segue-se que a verdade ou falsidade de um julgamento moral é determinável por cada indivíduo ou pela contagem de cabeças. Pois consideramos que a perspectiva relativista acerca de temas morais não é mais defensável do que o relativismo a respeito de questões de fato. Quarto: seria de se esperar que os teístas concordem comigo quando eu oferecer alguns exemplos concretos de princípios morais que eu considero serem objetivamente verdadeiros. A exigência de objetividade para os valores morais é estritamente uma: ela implica que eles devem ser universais no sentido de não admitirem exceção — isto é, de serem válidos para todas as pessoas, lugares e épocas. Assim, em meu ponto de vista, o princípio segundo o qual é moralmente proibido matar outras pessoas não é objetivamente verdadeiro uma vez que — como quase todos concordariam — ele admite exceções tais como matar um assassino em potencial em defesa própria ou de seus familiares. Formulado desta maneira é um princípio moral falso. Podemos ter uma obrigação prima facie de não matar outra pessoa. Mas pensadores morais sofisticados consentiriam que existem situações nas quais o princípio deveria ser colocado de lado em virtude de considerações morais compensatórias. Se formos apresentar princípios morais que sejam válidos sem necessidade de restrições, precisamos formula-los de forma a englobar adequadamente estas outras considerações. B. Exemplos de verdades morais objetivas Apresento agora alguns exemplos de princípios morais que considero serem paradigmas de verdades morais objetivas: P1:

É

moralmente

errado

assassinar deliberada

e

impiedosamentehomens,

mulheres e crianças que sejam inocentes de quaisquer transgressões graves. Uma violação flagrante deste princípio é encontrada nas políticas genocidas da SS nazista que, seguindo as ordens de Hitler, assassinaram seis milhões de judeus, junto com incontáveis

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ciganos, homossexuais, e outros assim chamados “indesejáveis”. Não é desculpa, da maneira como vejo, o fato de eles acreditarem estar extirpando um câncer da sociedade, ou que eles estivessem, como Hitler explicou em 1933, apenas fazendo aos judeus o que os cristãos vinham pregando por dois milênios[6]. Outra violação mais recente deste princípio pode ser encontrada nas práticas genocidas de Milosevic e seus capangas, para os quais não é desculpa dizer que estavam apenas corrigindo injustiças passadas ou, através da limpeza étnica, lançando os fundamentos de uma sociedade mais coesa e estável. P2: É moralmente errado guarnecer o exército de alguém com mulheres jovens feitas prisioneiras para serem utilizadas como escravas sexuais. Este princípio, ou algum similar a este, jaz por trás de nossa repulsa moral às políticas dos altos comandos japoneses e alemães que selecionavam jovens mulheres sexualmente atraentes, especialmente virgens, para proporcionar pretensos “confortos” a seus soldados. É irrelevante, quero dizer, que, historicamente, a maioria das sociedades tenha considerado tais “confortos” como espólios de guerra aceitáveis. P3: É moralmente errado obrigar pessoas a canibalizarem seus amigos e familiares. Talvez possamos imaginar situações — como a queda de um avião nos Andes — nas quais atos de canibalismo possam ser exonerados. Mas fazer as pessoas comerem os membros de sua própria família — como várias tribos polinésias são acusadas de terem feito — com o objetivo de puni-las, ou para horrorizar e impingir medo nos corações de seus inimigos, é inconcebível. P4: É moralmente errado imolar seres humanos em sacrifício, queimando-os ou por outros meios. Não há dúvidas, o sacrifício humano era largamente praticado pelas tribos contra as quais os filhos de Israel lutaram, e — do outro lado do Atlântico — pelos astecas e incas. Mas isto — espero que todos vocês concordem — não torna a prática aceitável, mesmo se fosse realizada para apaziguar os deuses nos quais eles acreditavam. P5: É moralmente errado torturar pessoas eternamente por suas crenças. Talvez possamos imaginar situações nas quais seria permissível torturar alguém que seja ele próprio um torturador de maneira a obter informações sobre a localização dos prisioneiros que de outra maneira morrerão como consequência das agressões que lhes estão a ser infligidas. Mas casos como o do Papa Pio V, que assistiu a Inquisição Romana queimar um acadêmico religioso dissidente por volta de 1570, ultrapassam o limite do moralmente aceitável; ele não

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pode ser isentado pelo fato de que pensava estar desta maneira salvando a alma do dissidente das chamas eternas do Inferno. A respeito de todos estes exemplos, gosto de pensar, teístas e outras pessoas moralmente esclarecidas concordarão comigo. E, além disso, também me agradaria pensar que os teístas concordariam comigo em sustentar que qualquer um que cometesse, causasse, comandasse ou tolerasse atos de violação de qualquer destes princípios — os cinco aos quais me referirei de agora em diante como “nossos” princípios” — é não somente cruel como abominável. C: As violações de Deus de nossos princípios morais. E agora vem o elemento decisivo de meu argumento moral contra o teísmo. Pois, como demonstrarei agora, o Deus teísta — como ele supostamente se revela nas Escrituras judaicas e cristãs — ou comete ele próprio, ou ordena que outros cometam, ou permite, atos que violam cada um de nossos cinco princípios. Em violação de P1, por exemplo, o próprio Deus afogou toda a raça humana exceto Noé e sua família [Gen. 7:23]; ele puniu o rei Davi por realizar um censo por ele ordenado e então atendeu a solicitação de Davi de que outros fossem punidos em seu lugar através do envio de uma praga que matou 70 000 pessoas [II Sam. 24:1-15]; e ele ordenou que Josué assassinasse velhos e jovens, pequenas crianças, virgens, e mulheres (os habitantes de uns 31 reinos) enquanto prosseguia em suas práticas genocidas de limpeza étnica nas terras que judeus ortodoxos ainda consideram parte da Grande Israel (veja o cap. 10 do livro de Josué em particular). Estes são somente três de centenas de exemplos das violações de Deus de P1. Em violação de P2, após ordenar que soldados chacinassem todos os homens, mulheres e garotos

midianitas

sem

piedade,

Deus

autorizou

que

os

soldados

dispusessem

sexualmente das 32 000 virgens sobreviventes. [Num. 31:17-18]. Em violação de P3, Deus repetidamente diz ter feito, ou que fará, pessoas canibalizarem suas próprias crianças, maridos, esposas e amigos para puni-los por sua desobediência. [Lev. 26:29, Deut. 28:53-58, Jer. 19:9, Ezeq. 5:10] Em violação de P4, Deus tolerou que Jeftá lhe ofertasse em sacrifício numa fogueira sua única filha [Juízes 11:30-39]. Finalmente, em violação de P5, o cordeiro sacrificial do próprio Deus, Jesus, observará impassível enquanto Ele tortura a maior parte dos membros da raça humana eternamente, principalmente porque não acreditaram nele. O livro do Apocalipse nos diz que “cada um cujo nome não tiver sido escrito desde a fundação do mundo no livro da vida do Cordeiro que foi

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morto” [Apoc. 13:8] irá para o inferno, onde “serão atormentados com fogo e enxofre na presença dos anjos sagrados e na presença do Cordeiro; e a fumaça de seu tormento subirá eternamente: e eles não terão descanso dia ou noite” [Apoc. 14:10-11]. D: Um dilema lógico para os teístas: uma tétrade inconsistente Estas — e incontáveis outras — passagens da Bíblia significam que os teístas são confrontados com um dilema lógico que atinge o âmago de sua crença de que o Deus das Escrituras é santo. Eles não podem, sem se contradizerem, acreditar em todas as quatro afirmações a seguir: (1) Qualquer ato que Deus realize, cause, ordene ou tolere é moralmente permissível. (2) A Bíblia nos revela vários atos realizados, causados, ordenados ou tolerados por Deus. (3) É moralmente inadmissível para qualquer um realizar, causar, ordenar ou tolerar atos que violem nossos princípios morais. (4) A Bíblia nos diz que Deus de fato cometeu, causou, ordenou ou tolerou atos que violam nossos princípios morais. O problema é que estas declarações formam uma tétrade inconsistente tal que a partir de quaisquer três delas alguém pode inferir validamente a falsidade da remanescente. Assim, alguém pode coerentemente afirmar (1), (2) e (3) somente ao custo de abrir mão de (4); afirmar (2), (3) e (4) somente ao custo de desistir de (1); e assim por diante. O problema para um teísta é decidir qual destas quatro declarações abandonar a fim de salvaguardar o requisito mínimo de verdade e racionalidade, a saber, a consistência lógica. Afinal, se alguém mantêm crenças que se contradizem então suas crenças não podem ser todas verdadeiras. E discussão racional com pessoas que se autocontradizem é impossível; se contradições são permitidas então qualquer coisa pode acontecer. Mas qual dos quatro enunciados irá nosso teísta negar? Negar (1) seria admitir que Deus ocasionalmente comete, causa, ordena ou tolera atos moralmente inadmissíveis. Mas isso significaria que o próprio Deus é imoral, ou até mesmo, dependendo da magnitude de seus delitos, que ele é maligno. Isso implicaria negar que ele é santo e digno de adoração; e negaria, adicionalmente, que sua santidade é o fundamento da moralidade. Negar (2), para o teísta, seria abandonar o principal fundamento da epistemologia religiosa e moral (maneiras de adquirir conhecimento religioso e moral). Pois se (2) fosse falsa, surgiria então a questão de como saberíamos da existência de Deus, ou, ainda pior, como ele nos

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serviria como referência moral. Afinal, é uma característica distintiva do teísmo, em oposição ao deísmo, sustentar que Deus se revela para nós e, de tempos em tempos, intervém na história humana. E a Bíblia, segundo os teístas, é o principal registro de suas intervenções revelatórias. Se a Bíblia, com suas histórias sobre Moisés e Jesus, não é sua palavra revelada e presumivelmente verdadeira, então como teremos conhecimento sobre ele? Se Deus não se revela através de Moisés no Velho Testamento e de Jesus no Novo Testamento, então através de quem ou de que ele se revela? A bem da verdade, um teísta poderia afirmar que Deus também se revela por outros canais além da Bíblia: razão, tradição e experiências religiosas sendo todas exemplos em questão. Mas negar que a Bíblia seja seu principal modo de comunicação seria negar que os principais personagens do Judaísmo e do Cristianismo possam realmente ser, afinal, conhecidos. Fora dos registros escriturais, saberíamos muito pouco, se é que saberíamos qualquer coisa, acerca de Moisés ou Jesus, sendo bastante questionável se a história secular possui qualquer coisa confiável a dizer a respeito de qualquer um deles. Afora os registros escriturais não teríamos conhecimento algum dos assim chamados Dez Mandamentos que Deus supostamente entregou a Moisés, ou dos princípios éticos que Jesus supostamente proferiu em seus sermões e parábolas. Negar (3) seria declarar que é moralmente admissível violar nossos cinco princípios morais. Seria tornar-se cúmplice de monstros morais como Ghenghis Khan, Hitler, Stalin e Pol Pot. Seria abandonar toda e qualquer pretensão a uma crença em valores morais objetivos. Mais ainda, se é permissível violar os princípios acima, então não é fácil ver que tipos de ações não seriam admissíveis. A negação de (3), então, seria equivalente a adotar o niilismo moral. E nenhum teísta que acredita nos Dez Mandamentos ou no Sermão da Montanha consentiria nisso. Isso deixa apenas (4). Mas negar (4) seria colidir com a realidade de fatos determináveis por qualquer um que faça uma leitura cuidadosa: fatos objetivos sobre o que Bíblia realmente diz. Adiante argumentarei que tanto (3) quanto (4) são verdadeiras; desta maneira confrontarei os teístas com a necessidade de abandonar (1) ou (2) — os dois pilares principais da crença teísta. Meus argumentos mostrarão que se Deus existisse então ele ou não seria santo ou as Escrituras não seriam sua palavra revelada. Devo, entretanto, lidar com os contraargumentos dos que defendem Deus e as Escrituras contra críticas como as minhas. Apologistas teístas possuem duas estratégias principais. Uma é tentar mostrar, contrariando (4), que a Bíblia ou não diz realmente o que eu afirmo que ela diz, ou que as passagens que cito não significam o que eu digo que significam. Esta tática envolve um certo tipo de maquiagem das passagens em discussão de modo a torna-las

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moralmente inócuas. A outra é tentar mostrar, contrariando (3), que nossos princípios morais são ou inaplicáveis às situações descritas em (4) ou que eles admitem exceções que absolveriam Deus por viola-los. Eu me ocuparei com estas duas estratégias apológeticas a medida em que surgirem em conexão com minha defesa da veracidade de (4) e (3), nesta ordem. E: Uma defesa de (4): O que a Bíblia de fato diz sobre as violações de nossos princípios morais por Deus. P1 e a matança de inocentes. Primeiro: considere a história, nos capítulos 6 e 7 do livro de Genêsis, do Grande Dilúvio e da Arca de Noé. É uma história conhecida o bastante para me dispensar de reconta-la detalhadamente. Basta dizer que por causa da perversidade que Deus viu sobre a terra, ele decidiu — em suas próprias palavras — “Destruirei o homem que criei de sobre a face da terra, desde o homem até ao animal, até ao réptil, e até à ave dos céus; porque me arrependo de os haver feito” (Gen. 6:7). As únicas exceções humanas foram Noé e sua família. Segundo: considere a estranha história sobre Deus ordenando ao Rei Davi que fizesse um censo de seu povo. É estranha por três razões. Da maneira que a história é contada em 2 Samuel, cap. 24, é-nos ditos que Deus expediu Davi com a ordem “Vá, conte Israel e Judá”; que após cumprir esta ordem, Davi chegou à estranha conclusão de que havia por esse meio “cometido um grande pecado”; que Deus então ofereceu a Davi escolher entre três castigos: sete anos de fome e escassez, três dias de peste, ou três meses sendo perseguido e importunado por seus inimigos; que nosso nobre rei escolheu a fome ou a peste para os outros em vez de expor a si próprio; e que Deus aquiesceu: “o Senhor enviou uma praga sobre Israel…”; e “setenta mil homens do povo que habitava desde Dan até Beersheba morreram.” É intrigante que um Deus justo desejaria punir Davi por obedecer suas ordens. Mais intrigante é o fato do Deus santo derramar sua fúria sobre outros matando setenta mil homens (e um número indeterminado de mulheres e crianças, que parecem não ser considerados na maioria das narrativas bíblicas). É ainda mais intrigante que quando a história é recontada em I Crônicas, cap. 21, descobrimos que foi Satanás, não Deus, que incitou Davi a empreender o censo. A inconsistência já é ruim o bastante uma vez que pelo menos uma destas histórias deve ser falsa. É ainda pior que, em ambas as versões, é Deus — não Satanás — que assassina quem não tinha nada a ver com o suposto pecado de Davi. Terceiro, considere o caso no qual Deus manda Josué matar virtualmente todos os habitantes da terra de Canaã. A história começa no capítulo 6 do livro de Josué, contando como o herói e seu exército conquistou a antiga cidade de Jericó onde eles “tudo quanto havia na cidade

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destruíram totalmente ao fio da espada, desde o homem até à mulher, desde o menino até ao velho, e até ao boi e gado miúdo, e ao jumento.” Então, do capítulo 7 até o 12, somos brindados com uma crônica arrepiante sobre os 31 reinos e todas as cidades que continham, que caíram vítimas das políticas genocidas de Deus e de Josué. Vez ou outra lemos as frases “ele destruiu completamente cada pessoa que havia nela”, “não deixou sobreviventes”, e “nenhum foi deixado respirando”. E a título de explicação da razão pela qual apenas um dos povos autóctones selou a paz com os invasores, é-nos dito “Pois de Jeová veio o endurecimento dos seus corações, para saírem à guerra contra Israel, a fim de que fossem destruídos totalmente, e não achassem piedade alguma… [Josué 11:20]. A ocasião e a justificativa para matar fora forjada pelo próprio Deus. O que é moralmente preocupante sobre cada um destes três casos é que Deus aparentemente não teve escrúpulos em ordenar a matança de pessoas que, em qualquer sentido ordinário das palavras, eram “inocentes de transgressões sérias.” Afinal, é uma questão fatual empírica explícita que crianças recém-nascidas, e menos ainda aquelas não-nascidas, não são capazes de fazer os tipos de coisas que justificam punições como afogamentos, ser morto no fio da espada, arrancado do útero de sua mãe[7], ou morrer de uma praga enviada por Deus. A Bíblia, contudo, relata despudoradamente que elas estavam dentre as incontáveis vítimas das ações ou das ordens de Deus. P2 e a entrega de virgens capturadas para as tropas O livro dos Números, cap. 31, começa com o Senhor dizendo a Moisés, “Vingue-se plenamente pelos filhos de Israel dos midianitas”, então dizendo como — em obediência às ordens de Deus — doze mil guerreiros primeiro “mataram todos os homens” [vers. 7], e “aprisionaram todas as mulheres de Midian e suas crianças” [vers. 9]. Mas nós lemos, “Moisés estava furioso com os oficiais do exército … e perguntou-lhes, Vocês pouparam todas as mulheres?… Agora, pois, mate todos os meninos dentre as crianças, e mate toda mulher que tenha conhecido intimamente um homem. Mas todas as jovens que não conheceram um homem intimamente, poupem-nas para vocês.” [vers. 15-18] Agora, deve ser admitido que em nenhum lugar desta história de violência e escravização énos dito explicitamente que as tropas dos exércitos do Senhor usaram as virgens capturadas para sua própria satisfação sexual. Então não chega a surpreender que alguns apologistas amparem-se nesta omissão a fim de argumentar que P2 absolutamente não foi violado. Um apologista deste tipo afirma implicitamente que os soldados levaram as mulheres somente como “esposas ou servas”. Afinal, ele nos tranquiliza, “a lei de Deus dizia que qualquer um que mantivesse relações sexuais fora do casamento heterossexual seria condenado à morte”

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e que “qualquer homem que cometesse fornicação… seria forçado a casar com a mulher e nunca lhe seria permitido se divorciar dela.”[8] Mas isso não resiste uma ánalise mais detalhada. A Bíblia narra numerosos casos de assim chamados “homens de Deus” que fornicaram e não casaram — e as vezes até casaram — e não foram punidos seja pelos homens seja por Deus. Exemplos incluem os encontros sexuais de Abraão e sua escrava egípcia Agar; o relacionamento adúltero do rei Davi com Bathsheba; e o rei Salomão, fruto deste relacionamento, e suas trezentas concumbinas. Alguém teria que ser extraordinariamente ingênuo para supor que, dos doze mil soldados, não houve nenhum que não tirou vantagem sexual das trinta e duas mil virgens — mais de duas para cada soldado — que Deus lhes concedeu para uso próprio. P3 e fazer com que pessoas canibalizem seus parentes. Há ao menos cinco passagens nas quais Deus diz a seu povo que se eles não o obedecerem eles serão punidos sendo reduzidos uma penúria tão extrema que verão-se obrigados a canibalizarem uns aos outros: filhos, filhas, maridos, esposas, pais, mães, e irmãos, para nada dizer dos meros amigos[9]. O livro de Jeremias é especialmente revelador. No capítulo 19, versículo 9, o próprio Deus reivindica responsabilidade direta por estes horrores quando diz: “E eu os farei comer a carne de seus filhos e a carne de suas filhas…” Para estas passagens os apologistas costumam oferecer duas racionalizações principais. Uma é que Deus está meramente ameaçando seu povo escolhido com a fatalidade que lhes sucederá se eles não obedeceram a seus mandamentos. A segunda é que ele está meramente prevendo a sina que lhes sobrevirá durante os iminentes cercos a serem realizados por seus inimigos. O problema com a hipótese da ameaça é que, em cada exemplo, os Filhos de Israel na verdade desobederam seus mandamentos, apesar das graves ameaças. Assim, se Deus não faz o que ameaçou fazer, suas ameaças eram vazias e ele repetidamente falhou em manter sua palavra. E o problema com a hipótese da profecia, é que se as coisas não saíssem como Deus previu, então ele teria feito uma falsa profecia. Mas em qualquer caso nenhuma das explicações ajudaria com a passagem do livro de Jeremias, na qual Deus não está simplesmente prevendo o que os inimigos de Israel o forçarão a fazer, mas declarando o que ele próprio o obrigará a fazer. Não há contradição no fato de que se a palavra de Deus é verdadeira, então ele força os outros a violar P3. P4 e a tolerância com o sacrifício de crianças No capítulo 11 do livro de Juízes, somos afrontados com um conto cauteloso sobre a quebra de um juramento e suas consequencias. Jeftá, é-nos dito, foi um homem poderoso que foi

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usado por Deus para dar continuidade à tradição de Josué, eliminando da terra de outro povo etnicamente distinto, os filhos de Amon. Lemos que Jeftá “fez um juramento a Deus, e disse, se me entregares nas mãos os filhos de Amon, a pessoa, seja ela qual for, que sair da porta da minha casa ao meu encontro, quando eu voltar vitorioso dos filhos de Amon, será de Jeová e eu a oferecerei em holocausto.” (vers. 31-32) O Senhor, ao que parece, achou isto perfeitamente aceitável. Ele manteve sua parte da barganha entregando os amonitas e suas vinte cidades “com uma grandiosa matança” nas mãos de Jeftá. Então foi a vez de Jeftá de cumprir sua parte no acordo. Mas, lamentavelmente, foi sua filha quem saiu-lhe ao encontro para cumprimenta-lo. Jeftá percebeu, no entanto, que devia manter a fé e a palavra dada a Deus. Assim lemos: “Passados os dois meses, tornou ela para seu pai, o qual lhe fez segundo seu juramento…” Em outras palavras, Jeftá manteve sua promessa oferecendo sua amada filha em sacríficio numa fogueira para seu Deus implacável. Assim Jeftá angariou para si uma menção honrosa na Epístola aos Hebreus[10] onde ele é citado junto com quinze ou mais homens de “grande fé” como Noé, Abraão, Moisés, Sansão, Davi e Samuel. A melhor interpretação que pode ser feita desta história horripilante é que ela é um tipo de fábula, um conto inventado por homens com a intenção de nos ensinar uma lição sobre a necessidade de reflexão e ponderação antes de assumir compromissos com os outros, especialmente com uma divindade. Tal exegese, entretanto, dificilmente pode ser aceitável para um teísta que creia piamente na Bíblia. Mas em qualquer caso, não deveríamos ficar realmente surpresos com a aceitação, por Deus, do sacrifício de Jeftá. Afinal, o próprio Deus — os teístas cristãos acreditam — ofereceu seu próprio filho Jesus como um sacrifício de sangue pelos pecados da humanidade. P5 e a tortura eterna que Deus reserva para os que não acreditam que Jesus é o Senhor e Salvador A sorte da filha de Jeftá esmaece até a insignificância quando comparada com a que o Deus cristão reserva para ateus sinceros como eu; e não somente para os ateus, mas para todos que falham em aceitar Jesus Cristo como seu salvador pessoal. Jesus, que possui a duvidosa reputação de haver inventado a doutrina da danação nas chamas do inferno, descreve nosso destino vividamente. No Evangelho de Mateus sozinho ele o caracteriza em termos que os evangelistas adoram: “fogo inextinguível”, “inferno ardente” (duas vezes), “tormento”, “queimado com fogo” “fornalhas do inferno” (duas vezes), “choro e ranger de dentes” (cinco vezes), “fogo eterno”, e “o fogo eterno que foi preparado para o demônio e seus anjos.”

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Presumindo que Jesus soube como dizer precisamente o que ele quis que fosse entendido, a sina dos descrentes é indubitável. Não é um mero arremesso honroso no esquecimento. Não é simplesmente a angústia de uma alma apartada de Deus. É o tormento e a agonia de um corpo ressurreto, tortura que difere da experimentada pelas vítimas da Inquisição somente pelo fato de que dura não somente por minutos mas por toda a eternidade. Ao contrário de Auschwitz, o Inferno não oferece nenhuma finalidade para aqueles de nós que preencherão seus fornos. Ninguém escapará de seus horrores, e suas torturas — a serem levadas a cabo diante da platéia divina — continuará indefinidamente[11]. Fosse este destino escaldante reservado apenas para os impenitentes genocidas e outros perpetradores do mal que tem manchado a história humana, tal violação de P5 já seria ruim o bastante. Mas Apocalipse 13:8 vaticina que este destino recairá sobre “todo aquele cujo nome não tiver sido escrito desde a fundação do mundo no livro da vida do Cordeiro…” E Apocalipse 20:15 confirma a profecia quando nos diz que “se o nome de qualquer pessoa não foi encontrado escrito no livro da vida, ele foi lançado no lago de fogo.” Quem são os predestinados à danação eterna? São todos aqueles que — como os evangélicos gostam de colocar — não são cristãos “renascidos”. Segundo Lucas, o pretenso autor dos Atos dos Apostólos, “E em nenhum outro há salvação, porque também debaixo do céu nenhum outro nome há, dado entre os homens, pelo qual devamos ser salvos.” (Atos 4:12). E São Paulo torna ainda mais claro quando nos diz que “E a vós, que sois atribulados, descanso conosco, quando se manifestar o Senhor Jesus desde o céu com os anjos do seu poder, como labareda de fogo, tomando vingança dos que não conhecem a Deus e dos que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo; os quais, por castigo, padecerão eterna perdição, ante a face do Senhor e a glória do seu poder” (2 Tessalonicenses 1:7-9). A esta altura, pode ocorrer a alguns de nós que como é uma condição necessária da crença no nome de Jesus que vocês tenham tanto ouvido o nome quanto compreendido seu significado, ninguém pode ser salvo do inferno se não tiver ouvido o evangelho. É esta, portanto, a origem da motivação dos missionários. Mas o que dizer daqueles que viveram em épocas ou lugares nos quais o nome de Jesus era desconhecido? Estão todos os que viveram antes da época de Cristo já condenados? E acerca daqueles que viveram, ou ainda vivem, ignorantes da história cristã? Estão eles — a maior parte da raça humana — condenados pela ausência de uma crença que, por razões históricas ou geográficas, estavam impedidos de possuir? Esta conclusão chocante é o que a Bíblia implica. Certamente, o próprio Jesus parece te-la aceitado tranquilamente: “E porque estreita é a porta, e árduo o caminho que leva à vida, e poucos há que a encontrem.” A exclusão da maior parte dos seres humanos — não importa

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quão virtuosamente eles vivam — pela única razão de que eles não acreditam em Jesus como Salvador, é uma consequencia do fato de que a maioria da população que já habitou o planeta até o presente sequer ouviu falar dele. Se formos levar o próprio Jesus a sério, pouco conforto pode ser encontrado na sugestão de São Paulo de que alguns podem encontrar a salvação como resultado da assim chamada revelação geral. Como um dos mais hábeis apologistas cristãos, Wlliam Lane Craig, reconhece, tais exceções à regra da “salvação por nenhum outro nome” podem na melhor das hipóteses serem raras. É por isto que Craig não dissimula o fato de que em sua visão, e na de Jesus, mesmo os mais sinceros adeptos de outras religiões mundiais estão “perdidos e morrendo sem Cristo”[12]. Contudo, toda esta conversa sobre o numero de pessoas que serão torturadas no inferno é um aspecto secundário do assunto. Que é a questão de se os tormentos do inferno são finitos ou infinitos em duração. Se houver uma pessoa sequer sofrendo as torturas dos condenados, então o principio moral que consagramos como P5 é desse modo violado pelo próprio Deus. E em virtude de Deus viola-lo — junto com nossos outros princípios morais — sua alegada santidade está indiscutivelmente comprometida. Assim como seria incoerente dizer que Hitler foi moralmente perfeito apesar do fato de ter enviado pessoas para as câmaras de gás pelo “pecado” de não possuírem a ancestralidade correta, também seria incoerente supor que Deus é moralmente perfeito apesar do fato de que ele irá enviar pessoas para assar no inferno pelo “pecado” de não possuirem as crenças corretas. Ao contrário, qualquer um que seja culpado de tais atrocidades é, sem meias palavras, simplesmente mau, cruel, perverso, vil. Pouco surpreende, então, que Deus diga sobre si mesmo não apenas “Eu faço a paz” como também “Eu crio o mal” (Is. 45:7).[13] Vale a pena notar que, comparado com Deus, Satanás é retratado na Bíblia como um relativo paradigma de virtude. Satanás é culpado de apenas três delitos principais. Primeiro, segundo uma passagem que estabelece a tom moral da Bíblia, Satanás — disfarçado de serpente — tenta Eva com o fruto proibido do esclarecimento moral, fruto do que é descrito como “a arvóre do conhecimento do bem e do mal”[14]. Alguém pode ter pensado nisso como uma coisa boa pois Satanás, desta maneira, colocou-a no caminho da educação moral. Mas Deus não queria que seus olhos fossem “abertos”, como Gen 3:5 coloca; ele desejava obediência cega. E assim Deus reagiu de maneira característica. Ele não somente puniu Eva por um ato que ela só soube que era errado após realiza-lo. Ele também puniu Adão, e todos os seus descendentes, incluindo você e eu. Ele impôs a todos nós o fardo do que os teólogos chamam Pecado Original: ele assegurou que nenhum de nós pudesse começar a vida sem esta insuperável desvantagem.

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A próxima aparição de Satanás é no primeiro livro de Crônicas, onde ele desempenha o mesmo papel atribuído a Deus em 2 Samuel. Então, onde foi que ele errou desta vez? Se é bom o suficiente para Deus ordenar a Davi que realizasse um censo, por que Satanás estaria sendo moralmente condenável ao faze-lo? A terceira aparição é no Livro de Jó, onde ele torna difícil a vida do protegido de Deus. Mas isso, deve-se notar, ocorre somente porque Deus lançara-lhe um desafio. Depois disso, Satanás não faz quase nada de natureza questionável exceto por tentar o próprio Deus, na pessoa de Jesus, durante seu retiro de quarenta dias no deserto — um exercício fadado ao fracasso. O que é extraordinário, à luz da subsequente difamação sofrida por Satanás, é que Satanás, ao contrário de Deus, não violou sequer um dos importantes princípios morais listados de P1 a P5. F: Uma defesa de (3): a inadmissibilidade das violações de nossos princípios por Deus A segunda estratégia apologética é argumentar que nossos princípios admitem exceções que, quando levadas em consideração, absolvem Deus da culpa. O principal dentre os estratagemas apologéticos nesta categoria é o que eu devo chamar “Exceção da Soberania”. Nas palavras de um apologista, ele sustenta que “Deus é soberano sobre a vida” e pode por conseguinte fazer conosco o que desejar, “de acordo com sua vontade”.[15] Mas este argumento contém um equívoco fatal a respeito da palavra “pode”. É uma verdade trivial que se Deus é — como os teístas acreditam — soberanamente onipotente, então ele “pode” fazer seja o que for que ele desejar no sentido de possuir o poder ou a potência para faze-lo. Mas poder, refletimos, não confere o direito. Certamente não se segue que Deus “pode” violar princípios morais no sentido de ser moralmente admissível ou correto para ele proceder assim. Se assim fosse, os monstros morais da história humana que reinaram soberanamente sobre seus impérios poderiam igualmente ser inocentes de transgressão. Uma segunda tática é argumentar que Deus é isento das proibições de nossos princípios. Pode ser dito que conquanto estes sejam obrigatórios para seres humanos, não o são para Deus. Mas isso seria introduzir um padrão duplo e portanto comprometer a universalidade dos princípios morais. Relativizaria a moralidade a indivíduos ou épocas e a privaria da validade objetiva e absoluta com a qual os teístas estão comprometidos. Pior ainda para o caso teísta,

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colocaria em discussão a santidade de Deus. Pois santo é o que age de maneira santa. Isto é, se é para qualquer um ser apropriadamente descrito como moralmente perfeito, então seus atos de instrução, de comando e de autorização também devem ser moralmente perfeitos. Dizer que Deus é santo apesar da natureza perversa do que ele faz seria brincar com as palavras: seria privar a palavra “santo” de seu sentido usual e torna-la sinônimo de “mau”. Um terceiro estratagema é afirmar que em todas as situações que consideramos Deus está agindo em concordância com o que alguns podem sustentar ser o princípio moral absoluto e primordial segundo o qual o pecado deve ser castigado. Pois a partir disso, junto com a doutrina teológica do Pecado Original — a doutrina de que todo ser humano, mesmo os fetos recentemente concebidos nos úteros de suas mães, herdam o pecado, ou ao menos a inclinação para o pecado, de Eva — segue-se que Deus tem o direito, não apenas o poder, de nos punir como lhe aprouver. Como um apologista coloca: “Como o fardo do pecado é a morte, Deus tem o direito de conceder e de tomar a vida.”[16] Coloco de lado as questionáveis pressuposições desta doutrina: que o pecado é genetica ou espiritualmente herdado; e que há justiça em nos considerar responsáveis por disposições para o pecado herdadas ou não colocadas em prática. Existe uma objeção mais importante a esta alegação apologética. Pois suponha que admitamos como verdadeira a afirmação implausível de que é em virtude da ausência universal da inocência humana que Deus deve ser desculpado por suas práticas genocidas. Então teremos que dizer que não há circunstâncias imagináveis, nem mesmo a inocência das vítimas, nas quais é moralmente errado massacrar homens, mulheres e crianças. Teríamos que abandonar P1 como uma verdade moral objetiva uma vez que seria totalmente vazia, inaplicável. E isso nos daria, como a Deus, autorização para chacinar impiedosamente qualquer um que nos aprouver. Tudo o que precisamos fazer é invocar a Exceção da Punição do Pecado Original. Afinal, a menos que adotemos o relativismo de um padrão duplo, se é bom o bastante para Deus também deve ser bom o bastante para nós. Se uma sequer das exceções listadas acima aos nossos príncípios fosse sólida, tais princípios não seriam verdades morais mas falsidades morais. Na melhor das hipóteses, eles enunciariam meramente proibições morais prima facie, proibições que — a fim de torna-las moralmente obrigatórias — teriam que ser restringidas e modificadas de maneiras que autorizariam alguns dos comportamentos mais moralmente abomináveis dos quais qualquer pessoa poderia ser culpada. Em resumo, se reformuladas para acomodar Deus, elas igualmente acomodariam o Diabo e outras personificações do mal. G: Consequencias para o teísmo: a falsidade de pelo menos um de seus pilares, (1) ou (2).

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Retornemos agora à tétrade inconsistente que eu afirmei colocar tais problemas para a crença teísta. Eu demonstrei, primeiro, que (4) é verdadeira, isto é, que a Bíblia de fato nos diz que Deus viola nossos princípios morais; segundo, que (3) é verdadeira, isto é, que é moralmente inadmissível para qualquer um — incluindo Deus — violar estes princípios. Mas se estou certo, então os teístas não possuem uma escapatória de seu dilema lógico que não destrua o núcleo da crença teísta. Eles tem uma escolha. Eles devem, sob pena de contradição, abandonar ao menos um, se não ambos, entre (1), a crença de que todos os atos de Deus são moralmente permissíveis, ou (2), a crença de que a Bíblia nos revela o que vários destes atos são. Ainda, como vimos, se eles abandonarem (1), com isso também abandonarão a crença na santidade de Deus; ao passo que se abandonarem (2), também se desfazem da crença na Bíblia como sua revelação. E aqui eu termino a exposição de meu caso contra o teísmo: meu argumento moral para o ateísmo. H: Um corolário de meu argumento: a falsidade da teoria ética teísta Antes de terminar, entretanto, desejo chamar a atenção para um corolário de meu argumento. Considere, mais uma vez, a tétrade inconsistente pela qual o edifício inteiro do teísmo desmorona. Mas desta vez substitua as declarações (1), (2), (3) e (4) da tétrade inconsistente original por seus respectivos corolários: (1)* Qualquer ato que Deus nos ordene realizar é moralmente admissível. (2)* A Bíblia nos revela vários dos atos que Deus nos ordena realizar. (3)* É moralmente inadmissível para qualquer um cometer atos que violem o princípio P1. (4)* A Bíblia nos diz que Deus nos ordena realizar atos que violam o princípio moral P1. Então um dilema lógico paralelo surge para a crença do teísta de que Deus, como revelado na Bíblia, é a fonte da moralidade objetiva ou, no mínimo, é um guia confiável para o que deveríamos ou não deveríamos fazer. Em vez de desenvolver o argumento novamente, apresentarei este indiciamento adicional da crença teísta citando a Bíblia e então endereçando uma série de questões para aqueles que, como o filósofo Alvin Plantinga, afirmam que “o que [o Senhor] tenciona que seja o conteúdo de nossas crenças é o que devemos acreditar.” Pois deveria ser evidente que, se Plantinga e outros teístas bíblicos estiverem certos, então, uma vez que as crenças que o Senhor propõe

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incluem aquelas sobre o que devemos fazer, se o Senhor propõe que deveríamos fazer assim e assim, então assim e assim é o que devemos fazer. Considere 1 Samuel 15:3 onde o Senhor ordena a seu povo: “Vai, pois, agora e fere a Amaleque; e destrói totalmente a tudo o que tiver, e não lhe perdoes; porém matarás desde o homem até à mulher, desde os meninos até aos de peito, desde os bois até às ovelhas, e desde os camelos até aos jumentos.” Agora pergunte-se: 1. “…matarás desde o homem até à mulher, desde os meninos até aos de peito…” foi a palavra do próprio Deus que você adora? 2. É concebível que seu Senhor possa expedir novamente a mesma ordem em nossa época? 3. Se você acreditasse que recebeu tal ordem de seu Senhor, poderia e deveria você obedecelo? Se você responder “Não” à questão 1, você nega a autoridade da assim chamada palavra de Deus, a Bíblia. Se você responder “Não” à segunda pergunta — talvez porque você pense que seu Senhor possa ter corrigido e aprimorado suas maneiras — você nega que os mandamentos de Deus possuem o tipo de aplicabilidade universal que é condição necessária para que sejam concordantes com, para não mencionar a fonte de, verdades morais. Se você responder “Não” à terceira pergunta, você deve pensar que algumas vezes é correto, ou talvez obrigatório, desobedecer a Deus. Desta maneira você admite que as verdades morais são independentes, e podem até mesmo colidir com, as ordens de Deus. Você admite que a ética é, como a maioria dos filósofos tem há muito insistido, autônoma; e que devemos, portanto, pensar moralmente por nós mesmos. Mas se você responder “Sim” a cada questão, então eu acuso sua crença no Deus do teísmo bíblico de ser não somente equivocada mas moralmente abominável. Pois, nas palavras de meu amigo, John Patrick, que pediu demissão do ministério presbiteriano da Nova Zelândia depois de descobrir quantos de seus paroquianos também responderam “Sim” às três perguntas: uma doutrina que afirme que as Escrituras contém a Palavra de Deus, o governante supremo da fé e do dever, tem o poder de transformar pessoas que, em outros contextos são ponderadas, gentis e amáveis, num grupo disposto a aprovar o genocídio em nome do Senhor que eles adoram.[17]

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1. Para os objetivos presentes não digo nada sobre o Deus do Alcorão. Basta dizer que meu argumento, se sólido, também é aplicável contra o teísmo islâmico. 2. Alvin Plantinga, “When Faith and Reason Clash: Evolution and the Bible,” Christian Scholar’s Review, Vol. XXI, No. 1, (Setembro de 1991), p. 8. 3. William Alston, “Divine-Human Dialogue and the Nature of God,” Faith and Philosophy, (Janeiro de 1985, p.6). 4. Peter van Inwagen, “Genesis and Evolution,” in Reasoned Faith, ed. Eleonore Stump, Cornell University Press, 1993, p.97. 5. Alvin Plantinga, p.12. 6. Rod Evans and Irwin Berent, Fundamentalism: Hazards and Heartbreaks, Open Court, La Salle, Illinois, 1988, pp. 120-1. Também James A. Haught, Holy Horrors: an Illustrated History of Religious Murder and Madness, Prometheus Books, Buffalo, New York, 1990, p.163. 7. Veja Oséias 13:16: Samaria virá a ser deserta, porque se rebelou contra o seu Deus; cairão à espada, seus filhos serão despedaçados, e as suas grávidas serão fendidas pelo meio. 8. Brad Warner, “Deus, o Mal e o Professor Bradley” (manuscrito divulgado em caráter privado em resposta a meu debate com o representante da Cruzada Acadêmica por Cristo, Dr. Chamberlain, sobre o tema “Pode existir uma moralidade objetiva sem Deus?”). O debate aconteceu na Simon Fraser University em 25 de Janeiro de 1996. [9] No Levítico, cap. 26, vers. 28-29, lemos: “Também eu para convosco andarei contrariamente em furor; e vos castigarei sete vezes mais por causa dos vossos pecados. Comereis a carne de vossos filhos, e a carne de vossas filhas.” No Deuteronômio, cap. 28, após o Senhor listar as dezenas de desastres e infortúnios que sucederão a seus povo se ele não observarem todos os seus mandamentos e estatutos, ele diz (nos vers. 53-58): “E comerás o fruto do teu ventre, a carne de teus filhos e de tuas filhas… Quanto ao homem mais mimoso e delicado no meio de ti, o seu olho será maligno para com o seu irmão, e para com a mulher do seu regaço, e para com os demais de seus filhos que ainda lhe ficarem; De sorte que não dará a nenhum deles da carne de seus filhos, que ele comer…” E mulheres refinadas e delicadas, também nos é dito, farão o mesmo. Em Jeremias, cap. 19, vers. 9, o show de horrores continua quando o Senhor diz: “E lhes farei comer a carne de seus filhos e a carne de suas filhas, e comerá cada um a carne do seu amigo, no cerco e no aperto em que os apertarão os seus inimigos, e os que buscam a vida deles.” Finalmente, em Ezequiel, cap. 5, vers. 10, a dieta divina é extendida aos pais quando Deus diz: “Portanto os pais comerão a seus filhos no meio de ti, e os filhos comerão a seus pais; e executarei em ti juízos, e tudo o que restar de ti, espalharei a todos os ventos.” 10. De autoria desconhecida apesar de erroneamente atribuída a São Paulo.

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11. [Apocalipse 14:10-11] Verdade seja dita, o versículo continua identificando aqueles que sofrem essa sina com “aqueles adoram a besta e sua imagem, e qualquer pessoa que receber a marca de seu nome.” Mas eles já haviam sido identificados, no capítulo anterior, 13, vers. 8-18, como aqueles que não foram predestinados para a salvação. 12. William Lane Craig, “Nenhum outro nome: uma perspectiva do conhecimento médio sobre a exclusividade da salvação através de Cristo”, Faith and Philosophy, Abril de 1989, p. 187. Em seu ponto de vista, Deus está justificado em enviar descrentes voluntários e involuntários para o inferno porque ele sabe — antes de cria-los — que eles não teriam acreditado em Jesus como Salvador mesmo se tivessem ouvido sobre ele. 13. O termo hebraico que é traduzido aqui como “mal” é “rah”. Os tradutores da New American Standard, entretanto, preferem traduzi-lo como “calamidade” na passagem de Isaías e como “aflição” na passagem das Lamentações. Mas tal sanitização do original não ajuda realmente. Proporciona ao crente pouco alívio ouvir que Deus é a origem e a fonte das calamidades. E “aflição” — aprendemos com o New Collegiate Dictionary do Webster — é apenas um sinônimo de “mal”. 14. Genesis 2:9. 15. Brad Warner, p.15. 16. Brad Warner, p.14. 17. John Patrick, “Por qual autoridade?” publicado em Setembro de 1984 num boletim a seus companheiros clérigos da Igreja Presbiteriana da Nova Zelândia

explicando por que se

demitiu. Minhas três perguntas são derivadas das que ele colocou a seus paroquianos.

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06: A rivalidade entre as religiões A rivalidade entre as religiões é patente em várias linhas de frente: nas guerras entre cristãos, muçulmanos e hindus; na violência sectária entre católicos e protestantes, ou entre os xiitas e os sunitas; na perseguição aos hereges doutrinários; na fragmentação de novas seitas paralelamente à das linhas doutrinárias majoritárias; nos esforços proselitistas; e assim por diante. O que impulsiona estas rivalidades? Fatores sociais, políticos, econômicos, dentre outros, podem desempenhar seus papéis. Mas subjacente a todos eles está um tipo bastante profundo e diferente de rivalidade. É a rivalidade lógica, a incompatibilidade lógica, que existe entre as doutrinas que definem cada uma destas religiões. Isto coloca problemas colossais para qualquer aspirante a peregrino espiritual em busca da verdade religiosa . 1. Como se deve escolher entre diferentes religiões? De cara, somos confrontados com uma quantidade vertiginosa de possíveis candidatos a sistema de crenças. Em qual religião deveria alguém depositar sua fé? A qual delas alguém deveria consagrar sua vida aqui e agora e, eventualmente, no pós-vida? Ao Cristianismo, ao Judaísmo, ao Islamismo, ao Budismo, ao Hinduísmo, ao Confucionismo, ou ao Taoísmo, talvez? A lista de candidatas não termina aqui, obviamente. Nenhuma religião carece de seus cismas e suas seitas. Escolha uma das principais — o Cristianismo, por exemplo — e a questão permanece: qual versão? A Católica Romana, a Grega Ortodoxa, a Russa Ortodoxa, ou a Protestante? Suponha que você se decida pelo Protestantismo. Então surge a questão: você aceita o Evangelho de acordo com os anglicanos, o unitaristas, os metodistas, os presbiterianos, os batistas ou os pentecostais? Deve você adotar a “verdade” como apresentada por curandeiros como Peter Popoff, cujas “mensagens dos anjos” foram desmascaradas como transmissões radiofônicas clandestinas feitas a partir de um trailer para um minúsculo receptor auditivo em sua orelha esquerda, ou a verdade oferecida pelos evangelistas da Casa Branca como Franklin Graham (filho de Billy Graham)? (Franklin Graham explicitou a origem doutrinária da guerra neoconservadora no Iraque quando afirmou: “Não estamos atacando o Islã mas o Islã nos atacou. O Deus do Islã não é o mesmo Deus. Ele não é o Filho de Deus da fé cristã ou judaico-cristã. É um Deus diferente, e acredito ser o Islã uma religião perversa e imoral.” De modo semelhante, o Tenente-General William “Jerry” Boykin vangloriou-se de sua vitória sobre um líder militar somaliano dizendo “Eu sabia que meu Deus

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era maior do que o seu. Eu sabia que meu Deus é um Deus real e que o seu era um falso ídolo.”) Nem tampouco deveria alguém ignorar religiões não tão bem estabelecidas, como a Baha’i, a Teosofia, as Testemunhas de Jeová, a Ciência Cristã, ou a Igreja dos Santos dos Últimos Dias. Ou as religiões mais recentes, ainda em sua primeira geração, como a Igreja da Unificação, a Consciência Krishna, a Cientologia, a Missão Divina Luz, a Fundação Urantia, e a Fundação Rajneesh. Bem mais do que 500 cultos estão atualmente ativos apenas na América do Norte. Por que razão não estaria a verdade com um ou outro deles? Ou com uma das religiões arcaicas e hoje esquecidas? O artigo de H. L. Mencken “Cerimônia Memorial“[1] lista 138 deuses, cada um dos quais foi “o maior e mais digno em estatura… adorado e acreditado por milhões.” Todos, ele ressalta, “eram teoricamente onipotentes, oniscientes e imortais. E todos estão mortos.” Embora todos estes deuses, e todas as religiões estabelecidas em seus nomes, tenham sidos forças potentes nas vidas de seus devotos, satisfazendo o que Bertrand Russell chamou “a sede cruel por adoração”.[2] Eles foram deuses capazes de ordenar a devoção e o sacrifício; deuses em cujos nomes templos eram construídos, hereges perseguidos e guerras travadas. Como podemos estar seguros de que algum destes deuses não retornará para se revelar como o único e verdadeiro deus? Seria alguém capaz de, com confiança justificada, imaginar que as circunstâncias de seu próprio nascimento, educação, ou suas investigações subsequentes, são singularmente privilegiadas de modo a produzir a correta visão sobre qual destes deuses, se algum houver, realmente existe? Para os que estão confinados à tradição em que nasceram e cresceram, ou de algum outro modo cerceados por suas crenças, a questão é facilmente respondida: não caia no que o filósofo americano oitocentista William James chamou “logicidade desnorteante” de tentar decidir entre alternativas concorrentes. Considere somente a religião que seja uma “alternativa viva” para você — a religião de seus pais, ou de seus pares — e aposte sua vida na possibilidade de que ela venha a revelar-se verdadeira. Caso contrário, James afirma, pode-se perder a única chance na vida de “ficar do lado vencedor.”[3] Mas qual será o lado vencedor? Como alguém pode prudentemente fazer sua aposta antes de ter examinado cuidadosamente as credenciais das candidatas rivais — não apenas as favoritas mas também das incógnitas imprevisíveis?[4]Como, neste assunto, pode alguém estar seguro de que todos os candidatos, e a própria competição, não são uma impostura fraudulenta? A logicidade desnorteante não pode ser descartada tão facilmente.

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2. Jogando nos Deuses: A Aposta de Pascal Embora a idéia de apostar suas fichas em matéria de crença religiosa tenha se originado com os pensadores islâmicos, ela foi apresentada mais persuasivamente pelo fundador da teoria das probabilidades, o matemático seiscentista francês Blaise Pascal. Num argumento que veio a ser conhecido como a Aposta de Pascal, Pascal defende que se apostarmos nossas vidas na hipótese de que Deus existe e isto se revelar verdadeiro, então ganharemos e seremos recompensados com a bem-aventurança eterna; ao passo que se a hipótese se revelar falsa, perdemos a aposta e nada mais. Se, por outro lado, apostarmos nossas vidas na hipótese de que não existe tal Deus, temos muito pouco a ganhar se estivermos certos, mas sofreremos o tormento eterno se estivermos errados. Em suas palavras: “Ponderemos o ganho e a perda ao apostarmos que Deus existe. Estimemos estas duas possibilidades. Se você ganhar, ganhará tudo; se perder, não perderá nada. Aposte, então, sem hesitar, que Ele existe.”[5] O “Ele” a que Pascal se referiu era, não supreende, o Deus do católicos romanos, não o dos Protestantes. O principal problema com o argumento de Pascal é que ele assume que somente uma religião é digna de consideração. Ele nos oferece apenas duas possibilidades de escolha, duas crenças contraditórias, crenças que são mutuamente exclusivas e que esgotam todas as possibilidades: acreditar no Deus do Catolicismo Romano ou não acreditar nesse Deus. Mas seu raciocínio (e o de James, similarmente) está seriamente comprometido. Não existem apenas duas possibilidades — duas alternativas, cada uma das quais é a contraditória da outra. Existem incontáveis alternativas religiosas, cada uma das quais é contrária a cada uma das outras. Exatamente o mesmo tipo de argumento poderia ser apresentado em favor de cada uma destas religiões: não somente as 240 ou mais provavelmente listadas em um bom livro de religião comparada, mas cada uma das outras religiões que indubitavelmente serão inventadas no futuro. 3. O Problema da Contrariedade[6] Cada religião faz suas próprias reivindicações de veracidade distintivas, alegações que rivalizam logicamente com as de todas as outras religiões. Elas são contrárias umas às outras. Sendo assim, no máximo uma religião pode ser inteiramente verdadeira, e todas as outras devem conter crenças que são falsas. Na verdade, surge a questão a respeito da possibilidade de que todas sejam falsas. Isto é não somente possível como provável. Pois, quando consideramos suas respectivas credenciais, parece que cada religião possui alegadas evidências para citar em apoio às suas alegações de verdade: evidências na forma de eventos miraculosos em praça pública, de grandes mudanças operadas nas vidas dos crentes, de orações respondidas, de revelações

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divinas, e similares. Adicionalmente, se cada religião é contrária a todas as outras, qualquer evidência que possa ser citada em apoio às alegações de verdade de uma deve por conseguinte ser considerada debilitante das alegações de verdade de todas as outras. Mas como os adeptos de qualquer religião específica são ultrapassados em número pelos de todas as outras, as evidências empíricas que enfraquecem qualquer religião em particular deve portanto ser superior às que a respaldam. Se alguém “estimar as probabilidades”, como Pascal recomendou, será obrigado a concluir — baseado nas evidências empíricas — que as chances de qualquer religião individual ser a verdadeira religião é vastamente sobrepujada pela chance de ser falsa. Consequentemente, as probabilidades de ter “apostado” corretamente e estar “do lado vencedor” são baixíssimas. E a própria idéia de existir absolutamente qualquer ganhador começa a parecer artifical e extravagante. Além disso, se cada religião é contrária a todas as outras, qualquer evidência que corrobore uma delas deve lançar dúvidas sobre o mérito ou a autenticidade das alegadas evidências de qualquer uma das outras religiões; e as outras, reciprocamente, devem lançar dúvidas sobre a autenticidade ou mérito das alegadas evidências para a primeira. Consequentemente, podese vir a duvidar da solidez das alegadas evidências em favor de qualquer religião. 4. O Argumento da Contrariedade de David Hume Que esta, ou algo nestas ao longo destas linhas, é a lógica da situação, foi originariamente assinalado pelo filósofo escocês setecentista David Hume[7]. Em seu ensaio intitulado “Dos Milagres”, ele escreveu: …em questões de religião, tudo o que é distinto está em oposição; e… é impossível que as religiões da antiga Roma, da Turquia, do Sião e da China estejam todas estabelecidas sobre alguma fundação sólida. Todo milagre, portanto, que se suponha produzido em qualquer dessas religiões (e todas elas abundam em milagres), dado que seu objetivo direto é consolidar o sistema particular ao qual é atribuído, terá o mesmo poder, embora de maneira mais indireta, para derrubar todos os demais sistemas. Ao destruir um sistema rival, ele destrói do mesmo modo o crédito dos milagres sobre os quais esse sistema foi erigido, de tal modo que todos os prodígios das diferentes religiões devem ser considerados como fatos que se contrariam, e as evidências destes prodígios, sejam elas tênues ou vigorosas, devem ser tomadas como opostas umas às outras.[8] A fim de avaliar o escopo e o poder do argumento de Hume, precisamos primeiro compreender o que ele entende por “milagre”. Ele não está utilizando o termo no sentido vago em que alguém poderia dizer, “foi um milagre eu ter sobrevivido à queda.” Um milagre, para Hume, não é apenas algo incomum ou extraordinariamente afortunado.

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Numa definição que figura em vários dicionários, e é amplamente aceita por teólogos e filósofos, Hume diz que um milagre é qualquer evento que supostamente envolva uma violação das leis da natureza instigada por alguma divindade ou outro agente sobrenatural. Ele escrece: “Um milagre pode ser acuradamente definido como uma transgressão de uma lei da natureza por uma volição particular da divindade, ou pela intervenção de algum agente invisível.” Com efeito, um evento constituirá um genuíno milagre se e somente se sua ocorrência não for atribuível a causas inteiramente naturais. Como Hume coloca: “Nada é considerado um milagre, se já aconteceu no curso comum da natureza.“ Agora considere a gama de acontecimentos que esta definição engloba. Ela abraange todos os atos pelos quais um deus pode se autorrevelar: todas as supostas comunicações com a humanidade nas profecias ou escrituras divinamente inspiradas; todas as exibições públicas de poder divino, e todas as revelações privadas aos devotos. Para enfatizar este ponto: o termo “milagre” se aplica não somente aos milagres publicamente realizados, como também aos experienciados privativamente. Dentre os primeiros podemos listar exemplos como a abertura do Mar Vermelho, uma virgem dar à luz, a transformação de água em vinho, ressuscitar alguém dos mortos, curas pela fé, e eventos como as ocorrências relatadas quase diariamente em Lourdes. Cada um destes eventos poderia em princípio ser testado pelo exame público habitual. Entretanto, alguns pretensos milagres são de natureza mais privada. Exemplos incluiriam supostos eventos como: visões de Jesus, da Virgem Maria ou de Krishna, ouvir a voz de um deus ou de um anjo lhe dizendo o que ele deseja que você faça; uma vívida consciência da presença de Deus na natureza; uma consciência mística do inefável; uma garantia íntima do amor e do perdão de Deus; comunhão com Deus em oração; experienciar o que alguns descrevem como “a visita do Espírito Santo”, sentimentos de estar em sintonia com o infinito; experiências de conversão do tipo “nascer de novo”; e similares. Estes últimos exemplos não se prestam tão prontamente ao escrutínio público. As próprias experiências são subjetivas. Mas porque elas são atribuídas à intervenção de algum ser sobrenatural ou divino na vida privada de alguém, ou pelo menos a interação com algum agente do tipo, supõe-se que estas experiências subjetivas representam uma janela pela qual alguém pode se familiarizar com uma realidade objetiva “superior”, situada fora ou além do mundo natural. Como os eventos do tipo público, igualmente com os eventos do tipo privado: se um pretenso milagre admitir uma explicação naturalista, não contaria como um milagre “real”.[9] A definição de Hume de um milagre, então, abraange toda categoria concebível de evidências empíricas que podem ser citadas em corroboração da crença na existência de algum tipo de agente sobrenatural, ou em respaldo das reivindicações de veracidade de alguma religião específica.

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Quão bom é o argumento de Hume? Comecemos com a premissa de que religiões distintas são contrárias umas às outras: que elas não podem ser todas verdadeiras mas poderiam ser todas falsas. Esta premissa é correta? 5. A Contrariedade Entre As Religiões Contestada A premissa crucial, como Hume a formulou, é a afirmação de que “em questões de religião, tudo o que é distinto é oposto.” A menos que isto seja verdade, o resto do argumento desmorona. Mas ela é verdadeira? Com modificações apropriadas sobre o que Hume quis dizer com “tudo o que é distinto”, penso que a resposta é sim. Pois, a partir do contexto, fica claro que ele está falando somente sobre aquelas diferenças que são distintivas de cada religião, aquelas que a delimitam de todas as outras. São estas diferenças distintivas que ele afirma serem contrárias umas às outras. A verdade da premissa da contrariedade de Hume é reconhecida por teólogos da tradição assim chamada “exclusivista”. De acordo com o teólogo suiço Karl Barth, por exemplo, “não devemos hesitar em dizer que a religião cristã é a verdadeira religião.”[10] Similarmente, outro teólogo, Karl Rahner, escreve: “O Cristianismo compreende a si próprio como a religião absoluta, projetada para todos os homens, que não pode reconhecer qualquer outra religião além dela própria como de igual direito.”[11] A vasta maioria dos teólogos e crentes comuns em todas as outras religiões fariam alegações exclusivistas similares em relação às suas próprias doutrinas tão sofregamente acalentadas. Contudo, a premissa da contrariedade esteve recentemente sob ataque de ambos os lados, de dentro e de fora das cidadelas da fé. 6. A objeção de John Hick à Contrariedade Um dos mais influentes filósofos da religião, John Hick, é bem consciente dos aparentes conflitos entre as reivindicações de veracidade das diferentes religiões. Mas ele nos encoraja a pensa-las como explicações complementares (em vez de contrárias) de uma única realidade divina. Ele tenta nos seduzir a aceitar esta visão contando-nos a bem conhecida história dos cegos e o elefante: Um elefante foi trazido até onde se encontrava um grupo de homens cegos que nunca antes haviam estado diante deste animal. Um deles apalpou uma de suas pernas e disse que um elefante é uma grande coluna viva. Outro apalpou sua tromba e dise que um elefante é uma grande serpente. Outro apalpou uma de suas presas e disse que um elefante é como um grande arado. E asim por diante. E então eles iniciaram uma grande discussão, cada um afirmando que sua própria explicação era a verdadeira e portanto todas as outras eram falsas.

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Na verdade, obviamente todas eram verdadeiras, mas cada uma se referia a um aspecto da realidade total e todas expressas em analogias bastante imperfeitas. [12] Hick nos teria feito concluir que a aparente contrariedade entre diferentes religiões é apenas isso — aparente, mas não real. Como um apelo implícito à tolerância religiosa, a parábola de Hick é tão louvável como necessária. Mas como uma refutação da premissa da contrariedade, ela fracassa. Ele diz que as explicações rivais dos cegos eram “todas verdadeiras”, e portanto compatíveis. Embora, numa reflexão cuidadosa, torne-se óbvio, primeiro, que elas eram de fato incompatíveis, conforme acusado, e segundo, que elas eram todas falsas. A afirmação de que um elefante é uma coluna viva é inconsistente com a afirmação de que um elefante é uma grande serpente, e ambas são inconsistentes com a afirmação de que um elefante é como um arado. Ademais, como um elefante (distinto de certas partes de um elefante) não é, nem é como, qualquer uma destas três coisas, todas as três afirmações são falsas. Tivesse cada homem cego afirmado somente discernir um aspecto parcial do elefante, nenhuma discordância e nenhuma discussão se seguiria. O mesmo vale para as diferenças religiosas. O fato em questão é que os homens cegos da religião não consideram suas próprias doutrinas como “analogias imperfeitas”, visões parciais de uma única realidade transcendente. Antes, como Barth e Rahner, cada um deles afirma que apenas sua perspectiva oferece a verdade completa e absoluta. 7. A Objeção de John Mackie à Premissa da Contrariedade A veracidade da premissa da contrariedade foi questionada não somente por um punhado de apologistas religiosos como Hick, como também por alguns céticos em relação à religião. Numa passagem de um desleixo atípico, o filósofo ateu australiano John Mackie comentou sobre o papel da premissa no argumento de Hume da seguinte maneira: Este argumento… tem menos força agora do que tinha quando Hume o escreveu. Confrontado com corpos influentes de opiniões céticas ou atéias, os adeptos de diferentes religiões atenuaram sua hostilidade mútua. O defensor de uma religião muitas vezes permitirá agora que várias outras tenham pelo menos alguns elementos de verdade e até mesmo, talvez, alguma medida de autorização divina.Não mais é “O pagão em sua cegueira”, mas antes “Adoramos o mesmo deus, mas sob diferentes nomes e de diferentes maneiras.” Levada longe o suficiente, esta tendência moderna permitiria aos milagres cristãos corroborarem, não debilitarem, a crença nas realizações sobrenaturais dos curandeiros e feiticeiros da Idade da Pedra, e vice versa. É como se alguém houvesse cunhado o slogan “Milagreiros do mundo, uni-vos!”[13]

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Mas Mackie errou feio aqui. Para começar, a questão em discussão é se as crençasdistintivas de uma religião são logicamente hostis às, isto é, inconsistentes com, as crenças distintivas das outras. Embora de certo modo Mackie permita a si próprio substituir esta questão pela irrelevante sobre se os crentes de uma religião são patentemente hostis aos crentes de outras religiões. Ele ousa propor a afirmação duvidosa de que um novo espírito ecumênico paira no ar e que ele promete reconciliar os crentes. Mas, ainda que isto fosse verdade, não faria nada para mostrar que é possível reconciliar as crenças centrais às quais eles subscrevem.[14] Segundo, a questão em discussão não tem nada a ver com se os defensores de uma sistema de crenças permitirão “alguns elementos de verdade” em outro sistema de crenças. O fato, se é que é um fato, de que eles não discordam sobre todas as coisas não faz nada para mostrar que eles não discordam sobre absolutamente nada. A consistência parcial entre diferentes sistemas de crenças está muito longe da consistência plena. O que está em debate, deve ser lembrado, é apenas se existe qualquer crença em um sistema de crenças cuja veracidade demanda a falsidade de, porque é logicamente inconsistente com, qualquer crença no outro sistema de crenças. Se assim for, então os sistemas de crença são, afinal, realmente contrários, possivelmente até contraditórios.[15] Terceiro, precisamos dar uma olhada mais cuidadosa no uso de Mackie da descrição ” mesmo deus… sob diferentes nomes.” Isto aparenta conferir algum apoio à afirmação inclusivista de Hick de que qualquer aparente contrariedade entre os sistemas de crença de diferentes religiões é apenas verbal, não real. Mas qualquer uma delas é correta? 8. A Premissa da Contrariedade Demonstrada Considere as três religiões que aparentam corresponder melhor a descrição de “adorando o mesmo deus… sob diferentes nomes.” Estas são o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo. Todas as três religiões podem concordar que existe um ser supremo que é o criador e o mantenedor de todos nós, que este ser supremo é o Deus de Abraão; que o deus de Abraão, conhecido pelos diferentes nomes (ou descrições) “Yaweh”, “Deus Pai”, ou “Alá”, é um deus pessoal; que os principais dentre seus atributos são sua onipotência, onisciência e perfeição moral; que Ele se revelou à humanidade através de profetas como Moisés, Elias, Amós, Oséas, Isaías e Jeremias; que as escrituras do Antigo Testamento são sagradas; e assim por diante. Mas, como já vimos, isto não significa que o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo não sejam contrárias umas às outras. Essa questão somente pode ser respondida determinando-se se existem reivindicações de veracidade, essenciais ao sistema de crenças distintivo de qualquer uma delas, que não podem, sem inconsistência lógica[16], serem aceitas dentro do sistema de crenças distintivo das outras.

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Tais reivindicações de veracidade não são difíceis de serem encontradas: alegações de verdade sobre a natureza e o status de Jesus de Nazaré, por exemplo. Jesus Cristo é a figura central do Cristianismo, que os cristãos afirmam ser não apenas mais um dos profetas de Deus, mas o próprio Deus encarnado. Os judeus ou os muçulmanos aceitam a afirmação de que Jesus é um e o mesmo com Deus? Eles nunca o fizeram, nem estão autorizados a faze-lo logicamente. Pois aceitar esta afirmação seria abanadonar suas próprias religiões e se tornarem cristãos. Dizer que esta afirmação é “contrária” aos pilares básicos de sua própria fé é um eufemismo. De acordo com ambas, ela é não apenas falsa como blasfema. O fato de que estas religiões fazem alegações contrárias concernentes a Jesus mostra o quão frívola é a visão de que todas elas adoram o mesmo deus sob diferentes nomes. Pode muito bem ser verdade que todas as três religiões alegam acreditar no mesmo deus: o assim chamado “Deus de Abraão”. Mas elas estão equivocadas. O que elas acreditam são três diferentes deuses “de Abraão”. Para o Cristianismo, o deus de Abraão é identificado com a unidade mística de seres: a Santíssima Trindade, Deus-Pai = Deus-Filho = Deus-Espírito Santo. Para o Judaísmo e para o Islã, ele não é um deus triuno. Para o Islã, o deus de Abraão é identificado com o deus que se revelou mais plenamente a Maomé. Para o Cristianismo e o Judaísmo, ele não é. Para o Judaísmo, o deus de Abraão é identificado com o deus cujo prometido messias até hoje não foi enviado. Para o Cristianismo e para o Islã, ele não é este deus. Mas o deus de Abraão não pode ser idêntico a cada um destes três deuses diferentes; e ele não pode ser simultaneamente idêntico a e diferente de qualquer um deles. Colocando a questão de outro modo: um e o mesmo deus não pode possuir e carecer de um atributo que pelo menos uma das religiões lhe atribui e que outra nega que ele possua. Ele não pode ser mais plenamente representado exclusivamente por Moisés, exclusivamente por Jesus, e exclusivamente por Maomé. Consequentemente, não existe um “deus de Abraão” único que é adorado pelos adeptos de todas as três religiões. Da mesma maneira que podemos dispor de uma série de nomes ou descrições diferentes para um mesmo objeto, igualmente podemos utilizar um mesmo nome ou descrição — “deus de Abraão”, por exemplo — para objetos completamente distintos. Falar de adoração ao mesmo deus sob diferentes nomes dissimula uma confusão lógica sobre as diferentes identidades dos deuses adorados nestas três religiões. Não faz absolutamente nada para atenuar o golpe da premissa da contrariedade. A veracidade da premissa da contrariedade é evidente mais uma vez quando deixamos o domínio das religiões teístas e as comparamos com as não-teístas: o Hinduísmo Advaita Vedanta e o Budismo Theravada, por exemplo. Nenhuma das últimas aceita a proposição, comum a todas as religiões teístas, de que a realidade última é pessoal[17]. E ambas possuem suas próprias explicações diferentes e contrárias da natureza da realidade última.

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Naturalmente, pode-se afirmar — como John Hick faz — que, teístas ou não, estas religiões, e igualmente todas as outras, “representam uma consciência diversa da mesma realidade transcendente ilimitada.”[18] Mas embora a escorregadela terminológica em direção a generalidades abstratas elevadas possa parecer promissora, ela serve apenas para obscurecer a situação lógica. Precisamos manter em mente que esta afirmação não é em si parte do sistema de crenças de qualquer destas religiões, propriamente. Assim como sua afirmação de que cada um dos homens cegos está “se referindo somente a um aspecto da realidade total” é em si diferente das, e contrárias às, afirmações de cada homem cego conhecer o que o elefante é, igualmente sua própria visão de mundo religiosa universalista e inclusivista é diferente das, e contrárias às, visões de mundo destas outras religiões. A religião inclusivista de Hick promete reconciliar as religiões rivais mas termina por nos oferecer uma nova para rivalizar todas as outras. 9. As Evidências Contra Todas e Cada Uma das Religiões: De Volta Ao Balcão de Apostas Uma das implicações da contrariedade entre as religiões, como Hume ressaltou, é que “todo milagre, portanto, que se suponha produzido em qualquer dessas religiões (e todas elas abundam em milagres), dado que seu objetivo direto é consolidar o sistema particular ao qual é atribuído, terá o mesmo poder, embora de maneira mais indireta, para derrubar todos os demais sistemas. “ A lógica do argumento de Hume torna-se clara quando a traduzimos nos termos que Pascal e James aprovariam no balcão de apostas. Imagine, primeiro, que você acredita que existem evidências de que um cavalo de corrida foi favorecido de modo que é 100% certo que seu cavalo, C, vencerá. Então, baseado nesta evidência, você está logicamente obrigado a concluir que todos os outros cavalos — H, I, J, etc. — perderão. Obviamente, a maior parte do tempo você não tem o que acredita ser evidências conclusivas de que o seu favorito será o ganhador. O que Hume chama de o “escopo” de suas evidências pode ser menos do que conclusivo. Se assim for, você está limitado a fazer uma estimativa de probabilidades. Agora se as evidências de que você dispõe são fortes o bastante para te persuadir de que C possui uma chance maior do que 50/50 de vencer — isto é, você pensa que é mais provável C vencer do que perder — então será mais racional de sua parte apostar de acordo com estas evidências. Suponha, por exemplo, que você acredita que as evidências oferecidas pelo aspecto exterior de C ao entrar na corrida são fortes o bastante para garantir uma aposta de 4 para 1 em sua vitória. Então, baseado nestas evidências, você pode inferir validamente que existe uma probabilidade de 80% de todos os outros cavalos, H, I, J, etc., perderem.

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Traduzindo essta analogia na linguagem do balcão de apostas religioso, seja C o Cristianismo, H o Hinduísmo, I i Islã e J o Judaísmo. Então, no primeiro caso, se acreditarmos que as histórias da ressurreição de Cristo nos municiam com completa certeza da veracidade do Cristianismo, estaremos justificados em concluir que todas as outras religiões são perdedoras, isto é, que a soma de suas crenças é falsa. Se, por outro lado, você acredita que as histórias da ressurreição de Cristo deixam a desejar como provas, mas ainda assim conferem alguma probabilidade à veracidade da religião cristã, então, pelo mesmo corpo de evidências, você está comprometido a dizer que as evidências para a ressurreição de Cristo conferem alguma probabilidade à falsidade do Hinduísmo, do Islã, e todas as outras religiões no cassino religioso. Tudo depende de sua estimativa do escopo, ou força, das evidências das quais você se vale: de você considera-las o que Hume em outro lugar chama de “uma prova ou uma probabilidade”. A afirmação de Hume, de que as evidências para cada religião solapam todas as outras religiões, mostrou-se, portanto, verdadeira. Não importa qual você considera ser a força das evidências na escala que vai de “torna a religião R mais provável de ser verdadeira do que falsa” a “torna R absolutamente certa” ou “prova R”, você por esse modo avalia que foi demonstrado que todas as outras religiões são provavelmente ou certamente falsas. 10. A Contrariedade das Alegações Probatórias das Diferentes Religiões Hume não afirma meramente que qualquer evidência favorável a uma religião deve contrariar todas as outras religiões. Ele também afirma que qualquer evidência favorável a uma religião deve enfraquecer qualquer evidência para estas outras religiões. Para cita-lo novamente: “Ao destruir um sistema rival, [um milagre] destrói igualmente o crédito dos milagres sobre os quais aquele sistema foi estabelecido; de modo que todos os prodígios das diferentes religiões devem ser considerados fatos contrários, e as evidências destes prodígios, sejam fracas ou fortes, como opostas umas às outras.”[19] Mais uma vez, podemos ilustrar aonde Hume deseja chegar voltando-nos para o balcão de apostas. Se você afirma que as evidências de que C será o vencedor da corrida são de , digamos, 80%, então sua afirmação é contrária à afirmação de outra pessoa que alega possuir evidências de que é mais provável algum outro cavalo vencer do que perder. Isto é, não somente as evidências de que você se vale enfraquecem a afirmação de que algum outro cavalo, digamos J, vencerá — ela também enfraquece a afirmação de que existe uma probabilidade melhor do que 50/50 de que J será o vencedor. Agora deixem-me mais uma vez traduzir isto no vocabulário do cassino religioso e dos tipos de evidências que podem ser citadas como fundamentos da veracidade de uma religião em oposição à outra. Suponha que um cristão afirme tanto que o milagre da ressurreição ocorreu

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e que sua ocorrência prova ou torna altamente provável a veracidade do Cristianismo. Suponha, além disso, que um judeu afirme tanto que as histórias do Antigo Testamento sobre os milagres realizados por Moisés diante da corte do Faraó são verdadeiras como que elas estabelecem a verdade do Judaísmo. Suponha, ainda, que um muçulmano afirme que o milagre do Arcanjo Gabriel ditar o Alcorão para Maomé estabelece a veracidade do Islã. Cada uma destas “afirmações fundadoras”, como as chamarei, contraria a veracidade das outras. Na melhor das hipóteses, apenas uma de tais alegações sobre o escopo de um determinado milagre para estabelecer sua religião pode ser verdadeira. E, naturalmente, é logicamente possível que todas estas alegações fundadoras sejam falsas. Com um pouco de reflexão, podemos ver que qualquer alegação fundadora concernente a um milagre assume a forma “Porque o milagre M ocorreu, a veracidade da religião R é provável ou provada.” Como tal, uma alegação fundadora possui dois elementos: Ela repousa sobre a asserção ou pressuposição de que M de fato ocorreu. E ela assevera que a ocorrência de M torna provável (ou prova) a veracidade de R. Segue-se que existem duas bases sobre as quais podemos contestar o mérito de tais alegações fundadoras. Primeiro, podemos questionar se M de fato ocorreu e se as evidências citadas para sua ocorrência são em si verídicas ou ilusórias. Segundo, podemos questionar se, mesmo se elas forem verídicas, elas de fato ajudam a estabelecer a veracidade de R com probabilidade ou certeza. Você pode acreditar que o cavalo C será o vencedor baseando-se em boatos de que as condições da corrida foram manipuladas a seu favor. Embora o que você ouviu possa em si ser falso: as evidências podem se revelar pouco confiáveis. Mais uma vez, mesmo se as evidências forem de fato confiáveis, ainda assim pode ser questionável que o fato de as condições da corrida serem manipuladas provê razões suficientes para se concluir que não existe a menor chance do cavalo C não vencer. Afinal, alguém pode assinalar, é bastante possível que C possa tropeçar, pisar em falso ou quebrar uma perna, e que sua certeza na vitória de C revele-se imprudente. Aplique isso, agora, ao caso do Cristianismo. Considere o caso da ressurreição de Jesus, o Cristo. A crença de que ele ressuscitou dos mortos é sustentada por vários cristãos como absolutamente central ao Cristianismo. “Se Cristo não ressuscitou”, disso São Paulo, “nossa fé é vã.” O milagre da ressurreição é considerado por vários cristãos para estabelecer que Jesus era divino. Mas existem boas razões para acreditar que a ressurreição de fato ocorreu? E se ela de fato ocorreu, ela estebecele sua divindade?

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A ressurreição ocorreu? Alguém disposto a explorar as credenciais desta crença pode se sentir desencorajado ao descobrir que os Evangelhos fornecem relatos diferentes e inconsistentes da ressurreição; que estes relatos não são mencionados, e aparentemente eram desconhecidos, pelos Padres da Igreja primitiva até por volta do segundo século d.C.; que não existem registros independentes e de autoria bem estabelecida de Jesus sequer ter vivido, muito menos de ter morrido e voltado dos mortos; ou, mais uma vez, que vários dos cristãos primitivos dos quais possuímos um registro histórico, os assim chamados docetistas (cujas concepções prevaleceram de 70 d.C até 170 d.C.), consideraram Jesus não mais do que um espectro, um espírito sem qualquer corpo físico capaz de morrer, ou consequentemente, ressuscitar. Mas imagine um cristão não tenha cruzado com estas objeções ou escolha coloca-las de lado. Imagine, isto é, que ele ou ela ainda sustente que a ressurreição de fato ocorreu de maneira similar à relatada nos Evangelhos. Ainda assim, o mérito probatório deste evento (supostamente) miraculoso pode muito bem ser questionado em outras bases. Pois por que, pode-se perguntar, os cristãos pensam que ressuscitar dos mortos estabelece a divindade da pessoa que morreu e voltou à vida? Certamente eles não concluiriam isso a respeito de Lázaro, por exemplo. Tampouco pensariam isso a respeito daqueles outros de que nos fala São Mateus (cap. 27:52-53), no momento da morte de Jesus, “as sepulturas se abriram; e vários corpos dos santos que dormiam se levantaram, e saíram para fora de suas sepulturas após sua ressusrreição, e dirigiram-se à cidade santa, e foram vistos por muitos.” Mas se não, por que não? Podemos também levantar questões similares sobre as evidências citadas em apoio de outras religiões. No caso do Judaísmo, podemos começar perguntando: as histórias do Antigo Testamento sobre os milagres de Moisés são realmente verdadeiras? Por que a história do Egito — ricamente detalhada no período em questão — não contém o menor indício da presença dos Filhos de Israel em seu meio por 430 anos, especialmente considerando-se que os israelitas escravizados supostamente totalizaram 600 000 homens adultos (de um total estimado em torno de um ou dois milhões incluindo mulheres e crianças) na época de sua libertação? Por que os arqueólogos e historiadores não encontraram o menor traço de evidência da existência de Moisés, ou da presença de tantos Filhos de Israel no deserto do Sinai por 40 anos? Segundo: ainda que estas histórias eventualmente fossem verdadeiras, apesar da falta de evidências, possuiriam elas a importância que lhes é atribuída? Afinal, se o capítulo 3 do livro do Êxodo é verdadeiro, então os feiticeiros da corte do Faraó também eram capazes de replicar a maioria dos milagres de Moisés — milagres como transformar um bastão numa serpente,

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transformar todas as águas do Egito em sangue, e invocar uma praga de rãs — fracassando somente quanto à produção de piolhos. Um judeu religioso diria que os milagres destes mágicos egípcios — certificados como igualmente verídicos pelo Antigo Testamento — estabelecem a veracidade da religião dos egípcios? Questões similares surgem para o Islã. Os muçulmanos acreditam que o anjo Gabriel ditou o Alcorão a Maomé. Este texto sagrado realmente veio a existir desta maneira? E que significância deveríamos atribuir a esta alegação? Que verdade, ou significância, para esse assunto, deveríamos atribuir às alegações dos mórmons sobre as visitas do anjo Moroni a Joseph Smith, ou às alegações sobre a origem divina do livro de Mórmon? Poderíamos, em princípio, prosseguir e levantar perguntas semelhantes sobre a veracidade e a significância de todas as revelações miraculosas que são consideradas fundacionais para todas as religiões ao longo do amplo espectro da crença religiosa. Hume tem razão mais uma vez. Se fôssemos aceitar qualquer uma destas alegações probatórias como sendo tanto bem embasadas como dotadas das alegadas relevância e significância, estaríamos logicamente obrigados a rejeitar todas as outras reivindicações probativas concorrentes. Estaríamos logicamente obrigados, isto é, a dizer de cada religião rival que ou suas supostas evidências são espúrias, ou que elas carecem da significância reivindicada. Quaisquer reivindicações probatórias “destroem a credibilidade”, como Hume colocou, das evidências para todas as outras religiões. 11. O Problema da “Logicidade Desnorteante” mais uma vez William James, vocês talvez se lembrem, aconselhou seus ouvintes a ignorar o que ele chamou de “logicidade desnorteante” de tentar decidir em qual religião apostar a própria vida aqui e agora. Sua recomendação? Aposte na religião que é uma alternativa acessível para você. Ou seja, aposte na veracidade da religião em que você foi criado. Mas esta estratégia é mal concebida. Ele se dirigia aos crentes protestantes na Nova Inglaterra e poderia estar confiante, portanto, de que eles responderiam sancionando o sistema de crenças que já possuíam. Mas suponha que ele, ou alguma outra pessoa, exortasse os crentes de alguma outra religião, como o Islã, por exemplo, com o mesmo tipo de raciocínio. Se eles aceitassem este raciocínio, o efeito mais uma vez seria a consolidação de sua fé já arraigada. E assim por diante, para todas as outras religiões rivais: Judaísmo, Hinduísmo, Mormonismo, Adventismo do Sétimo Dia, e todas as demais. Seu conselho, resumindo, não faz absolutamente nada para evitar a logicidade desnorteante que nos confronta se, na busca da verdade, tentamos decidir qual das inúmeras religiões opostas é verdadeira, se alguma o for. Se seu raciocínio conta a favor de uma religião, então contaria igualmente em favor de todas

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as outras. Mas isto quer dizer que seu raciocínio não conta a favor de nenhuma delas. A logicidade desnorteante não desaparece. Na verdade, a lógica do argumento de Hume desfere-lhe um golpe duplo. Pois não somente as diferentes religiões rivalizam logicamente umas às outras, como as evidências citadas para respaldar uma religião contrariam cada uma das outras religiões; e as evidências para cada uma destas outras religiões contrariam as evidências para a primeira. Mais uma vez, então, elas estão em pé de igualdade. De maneira que somos deixados na desagradável situação de ter que decidir qual delas, se houver alguma, é baseada em evidências fortes o bastante para justificar a crença. A expressão enfatizada, “se houver alguma“, é particularmente perturbadora. Pois considerando-se que as pretensas evidências são contrárias, não apenas contraditórias, existe uma possibilidade distinta de que nenhumadelas seja verdadeira. É possível, isto é, que todas elas sejam meras invenções da imaginação humana, originadas de sentimentos de inadequação, talvez, ou pela necessidade de adorar, ou a partir do simples desejo de não se alienar da comunidade religiosa na qual se foi educado. 12. Diretrizes para uma aposta prudente e sensata Como, então, devemos proceder? Bem, considere como uma pessoa prudente continuaria se confrontada com uma situação algo análoga, não obstante envolvendo ocorrências que ninguém pensaria serem miraculosas. Imagine, por exemplo, que você não é o único apostador valendo-se de evidências de que a corrida foi manipulada em favor de seu cavalo. Você descobre que os apostadores em todos os cavalos rivais também fiam-se na crença de que a corrida foi manipulada em favor dos cavalos deles. Como cada um deles alega possuir evidências de que você está errado, as evidências sugerem fortemente que você provavelmente está errado. Agora, como a corrida não pode ter sido manipulada de modo a fazer com que todos os cavalos vençam, você percebe que alguma coisa está seriamente errada e que é possível que todos vocês, você incluído, tenham sido tapeados. Em tal situação, você — como um apostador racional — dirigiria um olhar crítico sobre as evidências para sua própria crença de que seu cavalo vencerá. Talvez você estivesse confiando no relato de alguma outra pessoa sobre a manipulação da corrida. Neste caso, você desejaria examinar a credibilidade dessa pessoa mais cuidadosamente e inquiri-la sobre seus motivos para fazer tais declarações. Ou talvez você não estivesse se baseando em relatos de segunda mão. Talvez você dispusesse de evidência em primeira mão: você próprio estava lá quando os treinadores e/ou os jóqueis aparentemente conspiravam para fazer seu cavalo vencer. Nesse caso, você desejaria questionar sua própria ingenuidade. Poderia ter sido tudo um grande embuste da parte deles?

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Ou poderia seu desejo de uma “grande vitória” ter sido tão forte que você interpretou erroneamente o que ouviu e assim caiu na armadilha do autoengano? E, pela paridade do raciocínio, não poderia ser o caso de que todos vocês, não apenas você como também os outros apostadores, tenham igualmente sido enganados ou se autoenganado? Após refletir, você pode concluir que isto é não somente possível, como provável. Agora traduza este raciocínio no domínio religioso e considere a situação diante do proponente de um candidato particular — digamos do Cristianismo — nas apostas religiosas. Assim como o apostador precisará investigar se a aparente manipulação da corrida foi “pra valer” ou apenas uma “armação”, da mesma maneira um cristão racional precisará investigar se um evento que supõe-se ser um milagre respaldando as crenças cristãs realmente é miraculoso, ou se pode ser explicado em termos naturalistas. A fim de empreender tal investigação, o crente precisará investigar os fundamentos para sua crença de que o suposto milagre de fato ocorreu. Estaria ele baseando-se em relatos de segunda mão, uma crença transmitida por seus antepassados, talvez, ou crenças tidas como verdadeiras pelos membros da comunidade religiosa à qual ele pertence atualmente? Se assim for, ele precisará checar as credenciais destas crenças, sempre consciente da propensão da maioria das pessoas a acreditar no extraordinário e no maravilhoso, da propensão a aceitar os ditames da autoridade, e do opróbrio social e pessoal à espreita de qualquer pessoa que questione o que é considerado sagrado. Uma investigação diligente ao longo destas linhas pode muito bem revelar que o que é aceito como verdadeiro está longe de ser certo e pode até mesmo ser evidentemente falso. Mesmo o crente ortodoxo mais fervoroso pode descobrir que, em sã consciência, ele está então compelido a concordar com as crenças desmistificadas dos assim chamados teólogos modernistas como Rudolph Bultmann. Ele pode até mesmo ir mais longe a ponto de perguntar — com Albert Schweitzer e outros — se existem boas evidências históricas para a existência de um Cristo Jesus, e terminar meramente adotando a assim chamada “ética” associada ao mito de Jesus. Quando se trata de investigar as credenciais de suas próprias experiências de primeira mão do divino, a tarefa revela-se ainda mais desencorajadora. Nossas próprias experiências imediatas sempre carregam consigo uma convicção de sua própria veracidade, isto é, de sua natureza não-ilusória. Pode ele realmente duvidar de que teve uma visão da Virgem Maria, por exemplo, ou que Deus lhe disse para deflagrar uma cruzada em defesa da “verdadeira” fé? Difícil. Mas não impossível. A dúvida pode começar a erodir sua convicção quando ele, como católico romano, digamos, descobre que a Virgem raramente aparece em visões aos

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protestantes, e nunca aos judeus, muçulmanos ou hindus. Mais uma vez, ele pode começar a duvidar se Deus realmente lhe deu instruções quando aprende que os defensores mais dedicados das outras religiões alegam, com uma sinceridade igualmente passional, que Deus lhes disse para deflagrar uma cruzada contra sua seita ou religião. A mais forte certza subjetiva, ele pode refletir, pode impulsionar os crentes de todas as fés e seitas a tirar as vidas de outros em guerras religiosas, e até mesmo a renunciar à suas próprias vidas “em nome de Deus”. Mas tal convicção subjetiva, ele pode concluir, nunca pode proporcionar uma garantia da veracidade das doutrinas que cada lado está tentando defender. Ele pode vir a observar o fato de que embora Deus, como lhe parece, frequentemente lhe ordena executar as ações que ele já está disposto a fazer, Deus aparentemente nunca emite instruções contrárias lhe dizendo que ele compreendeu errado Sua mensagem e deveria parar a matança na qual embarcou. É provável, ele pode se perguntar, que as visões ou vozes em sua cabeça, ou nas cabeças de seus oponentes religiosos, sejam sempre autênticas? Refletindo, nosso peregrino em busca da verdade religiosa pode vir a perceber que nem mesmo um único de seus encontros pessoais com o divino resiste ao escrutínio crítico sério. Ele pode até mesmo vir a pensar que nenhuma de suas experiências pode ser invocada para lhe dizer qualquer coisa sobre a realidade exterior ao funcionamento de sua própria mente. E o que vale para nosso adepto do Cristianismo vale igualmente para adeptos de outras fé. Cada um, após uma investigação séria, pode se sentir compelido a concluir não somente que é provável que os crentes de outras religiões estão errados, como que ele também está. Afinal, se você tem boas razões para pensar que os outros foram induzidos à crenças falsas por se apoiarem em evidências de um determinado tipo, e você tem se valido de evidências exatamente do mesmo tipo, você possui então boas razões para pensar que elas provavelmente também te induziram a manter falsas crenças. Até agora eu defendi e elaborei em cima do argumento de Hume para a contrariedade lógica entre religiões rivais e a consequente contrariedade lógica entre suas evidências. Desta contrariedade segue-se imediatamente que as religiões rivais não podem ser todas verdadeiras, que no máximo uma pode ser verdadeira, e que é possível que todas sejam falsas. E eu fui além, argumentando que é não apenas possível que todas sejam falsas — à luz das evidências, é provável. 13. Um Argumento Geral para a Provável Falsidade de Todas as Religiões

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Hume possui um argumento bastante independente para sua poderosa conclusão. É um argumento muito mais geral, concernente à natureza miraculosa dos eventos citados para respaldar as crenças religiosas, em vez de sua contrariedade. Sucintamente formulado, ele é aproxidamente assim. A fim de que uma declaração seja considerada uma lei da natureza, a melhor evidência que a experiência humana e a investigação científica cuidadosa pode fornecer deve atestar sua veracidade. Resumindo, a veracidade de uma lei da natureza deve possuir o mais elevado grau de probabilidade possível para qualquer enunciado (exceto uma tautologia, uma verdade por definição, uma verdade da lógica, ou uma verdade matemática). Agora, por definição, um evento deve ser considerado um milagre se e somente se sua ocorrência é contrária às leis da natureza. Se ele não é contrário à estas leis, não haveria nada de extraordinário a seu respeito e ele não teria nenhum valor de prova como suporte para a crença em alguma coisa além do mundo natural. Mas em virtude de ser contrário às — porque envolve uma violação das — leis da natureza, um milagre deve por conseguinte ser improvável no grau máximo em que um evento pode ser. Todavia, cada fragmento de evidências empíricas citado em apoio de qualquer religião em particular deve envolver algum tipo de milagre: ou do tipo público ou do tipo privado. Portanto todo fragmento de evidência empírica citado para apoiar qualquer religião deve ser o mais improvável que uma evidência pode ser. E a veracidade de qualquer religião em cujo apoio ela é citada deve ser igualmente improvável. Nada no argumento da contrariedade, ou neste outro argumento mais geral, demonstra a impossibilidade de qualquer religião ser verdadeira. Mas estes argumentos demonstram o alto grau de improbabilidade de qualquer delas ser verdadeira. Somente com o reconhecimento deste fato a logicidade desnorteante da tentativa de escolher entre religiões rivais desaparecerá. Ela desvanecerá se, e somente se, percebermos que todas são provavelmente falsas e que nenhuma delas é um candidato remotamente plausível a ser adotado como sistema de crenças. Apêndice O argumento a seguir requer um conhecimento mínimo de lógica. Assim, como Ted Drange assinalou, os leitores com uma queda por exposições mais formais podem apreciar a análise a seguir da estrutura geral do argumento: 1. As doutrinas distintivas das diferentes religiões expressam afirmações contrárias. 2. Portanto, qualquer evidência em favor de uma religião é evidência de que todas as outras religiões

são

falsas.

3. Se uma religião é falsa, então as alegadas evidências para ela também são falsas (ou

142

espúrias). 4. Assim, qualquer evidência em favor de uma religião implica que todas as evidências para todas

as

outras

religiões

são

falsas

(ou

espúrias).

[a

partir

de

2

e

3]

5. Por conseguinte, para qualquer alegação específica de evidência E de parte de uma religião, todas as alegações de evidência de todas as outras religiões implicam que E é falsa. [a partir de

4]

6. Assim, para que E seja verdadeira, seria preciso que E provavelmente fosse algo especial, diferente de todas as outras alegações de evidência, e particularmente forte. [a partir de 5] 7. Mas todas as inúmeras alegações de evidência oferecidas por todas as religiões são do mesmo

tipo.

8. E nenhuma das alegações de evidência oferecidas por qualquer religião são particularmente fortes. 9. Segue-se que qualquer alegação específica de evidência em favor de qualquer religião é provavelmente

falsa.

[a

partir

de

6-8]

10. Como as alegações de evidência são contrárias [a partir de 4], e não contraditórias, é possível

que

elas

sejam

todas

falsas.

11. Consequentemente, provavelmente todas as alegações de evidência de todas as religiões são falsas. [a partir de 9 e 10] Notas [1] H.L. Mencken, Cerimônia Memorial. A lista de Mencken está longe de ser exaustiva. W. Matthews, em sua obra World Religions (1991), lista dezenas de deuses e deusas mais, alguns pertencentes a apenas uma religião. [2] Bertrand Russell, “A adoração de um homem livre” in Mysticism and Logic (New York: Doubleday Anchor Books, 1957), p. 44. [3] William James, “A vontade de acreditar”, in The Will to Believe and Other Essays, 1897. [4] O conselho de William James não somente levanta todas estas questões importantes; por sua atitude calculista, a solidez ética e religiosa de seu conselho é suspeita, como a da Aposta de Pascal, a que ele se assemelha. [5] Pascal, Pensamentos, nº 233. [6] Contrariedade é a relação lógica mantida entre proposições contrárias, isto é, entre duas proposições quaisquer que não podem ser ambas verdadeiras mas podem ser ambas falsas. Obviamente, se duas proposições ou conjuntos de proposições são contrários, a veracidade de um implica a falsidade da outra (já que não é possível que ambas sejam verdadeiras), mas a falsidade de uma não implica a veracidade da outra (já que é possível que ambas sejam falsas).

143

[7] Veja o livro de Michael Martin Atheism: A Philosophical Justification págs. 199-202, para uma interpretação diferente de Hume sobre o valor probatório das alegações de milagres de religiões opostas. [8] David Hume, Uma Investigação Acerca do Entendimento Humano. [9] Verdade, os próprios exemplos de milagres de Hume pertencem todos ao domínio público. Todavia, ele distingue entre relatos de histórias públicas e privadas, e a dificuldade cada vez maior de detectar a falsidade nestes relatos conforme seu distanciamento no espaço e no tempo. E ele reconhece implicitamente a categoria de milagres privados quando, na última sentença de seu ensaio “Dos Milagres”, diz que qualquer um que seja movido pela fé a aceitar a religião cristã deve estar “cônscio de um milagre contínuo em sua própria pessoa.” Esta conversa sobre milagres neste último caso não é apenas sarcasmo. Ela é autorizada por sua definição de “milagre”. [10] Karl Barth, The Revelation of God as the Abolition of Religion,” in Christianity and Other Religions, eds. John Hick and Brian Hebblethwaite (Glasgow: Collins, 1980), p. 44. [11] Karl Rahner, “Christianity and Non-Christian Religions” in Christianity and Other Religions, p. 56. [12] John Hick, God and the Universe of Faiths (London: Macmillan, 1977), p. 140. Hick é melhor descrito como um “apologista religioso” em vez de um “apologista cristão”, devido a seu largamente defendido apelo por uma concepção inclusivista de diferentes religiões: uma que as conceberia como representantes de “diferentes percepções da e respostas humanas à mesma realidade divina infinita”, como ele coloca em seu Philosophy of Religion (Englewood Cliffs, New Jersey: Prentice-Hall, Inc., 3rd edition, 1983), p. 121. [13] John Mackie, The Miracle of Theism (Oxford: Clarendon Press, 1982), p. 15. [14] O fracasso de Mackie em distinguir entre o sentido de “crença” em que a crença é uma atitude psicológica relativa a uma proposição, e o sentido em que usamos a palavra para nos referirmos à proposição acreditada, é tão surpreendente quanto infeliz. Mas talvez seja compreensível. Pois parece que a maioria dos filósofos torna-se inclinada a ela quando escrevem sobre questões da filosofia da religião. [15] Ao passo que proposições são contrárias se não não é possível que ambas sejam verdadeiras mas é possível que ambas sejam falsas, proposições são contraditórias se não é possível que ambas sejam verdadeiras e não é possível que ambas sejam falsas, isto é, se a veracidade de uma exige a falsidade da outra e a falsidade de uma exige a veracidade da outra. Disso resulta que, como existem diversas religiões cujas reivindicações de autenticidade entram em conflito com outra, qualquer inconsistência entre elas deve assumir a forma da contrariedade, não contradição.

144

[16] Crenças e conjuntos de crenças são logicamente inconsistentes se e somente se as proposições acreditadas são ou contrárias ou contraditórias de uma outra. [17] Veja John Hick, Philosophy of Religion (Englewood Cliffs, New Jersey: Prentice-Hall, Inc., 3rd edition, 1983), p. 116. [18] John Hick, Philosophy of Religion (Englewood Cliffs, New Jersey: Prentice-Hall, Inc., 3rd edition, 1983), p. 119. [19] O modo como Hume expressa o ponto não está isento de falhas. Estritamente falando, é um disparate falar de “fatos contrários”. Se por “fatos” queremos dizer, como a maioria de nós atualmente,

o

que

é

enunciado

por

proposições

verdadeiras,

então

Hume

foi

terminologicamente inepto aqui. Fatos não podem ser contrários uns aos aoutros, conquanto alegados fatos possam. Portanto, interpretemo-lhe como querendo dizer algo como “alegações factuais contrárias”.

145

07: Um argumento cosmológico a partir do Big Bang para a inexistência de Deus Introdução: O advento da cosmologia do Big Bang no século XX foi um divisor de águas para os teístas. Desde os tempos de Copérnico e Darwin, vários teístas consideraram a ciência hostil à sua visão de mundo, exigindo defesa e retração contínuas da parte do teísmo. Mas a cosmologia do Big Bang reverteu efetivamente esta situação. A ideia central desta cosmologia, que o universo explodiu na existência num ‘big bang’ há aproximadamente 15 bilhões de anos atrás, pareceu feita sob encomenda para uma perspectiva teísta. A cosmologia do Big Bang aparentou oferecer evidências empíricas para a doutrina religiosa da criação ex nihilo. As implicações teístas pareceram tão óbvias e excitantes que até mesmo o Papa Pio XII foi levado a comentar que ‘A verdadeira ciência num grau cada vez maior descobre Deus como se Deus estivesse à espera atrás de cada porta aberta pela ciência.‘[1] Mas a interpretação teísta do Big Bang recebeu não somente sanção oficial e ampla divulgação na cultura popular como também uma sofisticada articulação filosófica. Richard Swinburne, John Leslie e sobretudo William Lane Craig [2] formularam poderosos argumentos para o teísmo baseados num conhecimento bem embasado dos dados e das ideias cosmológicas. A reação de ateus e agnósticos a esta formulação foi comparativamente fraca, com efeito, quase imperceptível. Um desconfortável silêncio parece ser a regra quando a questão é levantada entre descrentes ou então o assunto é rapida e epigramaticamente descartado com um comentário no sentido de que ‘a ciência é irrelevante para a religião’. ´Não é difícil descobrir a razão do aparente constragimento dos não-teístas. Anthony Kenny sugere nesta declaração sumária: Segundo a Teoria do Big Bang, toda a matéria do universo começou a existir num instante particular no passado remoto. Um proponente de uma teoria assim, pelo menos se ele for um teísta, deve acreditar que a matéria do universo veio do nada e por nada. [3] Esta ideia perturba a muitos pela mesma razão que perturba C. D. Broad: Devo confessar que tenho uma dificuldade muito grande em imaginar que houve uma primeira fase na história do mundo, isto é, a fase imediatamente anterior na qual não existiu nem

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matéria, nem mentes, nem qualquer outra coisa… Eu suspeito que minha dificuldade em relação ao primeiro evento ou fase na história do mundo decorre do fato de que, não importa o que eu possa dizer quando tento dificultar as coisas para Hume, não sou capaz de realmente acreditar em qualquer coisa começando a existir sem ser causada (no sentido obsoleto de produzido ou gerado) por alguma outra coisa que existia antes e no momento em que a entidade em questão começou a existir… Eu… acho impossível abrir mão deste princípio; e, com esta confissão de impotência intelectual decorrente de uma idade avançada, abandono este tópico.[4] Motivados por preocupações como as de Broad, alguns dos poucos não-teístas que se pronunciaram sobre esse tema chegaram ao ponto de negar, sem uma justificação apropriada, pilares centrais da cosmologia do Big Bang. Entre os físicos, o exemplo mais célebre é Fred Hoyle, que rejeitou veementemente a sugestão de um Big Bang que aparentasse implicar um criador e tentou sem sucesso interpretar as evidências para um Big Bang como evidências para uma ‘bolha’ em expansão dentro de um universo imutável e infinitamente velho (refirome a sua teoria pós-estado-de-equilíbrio da década de 1970)[5]. Um exemplo deste tratamento em sentido contrário entre filósofos é patenteada por W. H. Newton-Smith. Newton-Smith sentiu-se compelido a sustentar, em franca contradição com os teoremas da singularidade da cosmologia do Big Bang (que implicam que não pode existir nenhum estado mais antigo do universo do que a singularidade do Big Bang) que as evidências de que eventos macroscópicos tem origens causais nos dão ‘motivos para pensar que algum estado anterior do universo levou à produção desta singularidade específica‘.[6] Parece-me, contudo, que a cosmologia do Big Bang não coloca os não-teístas em tal beco sem saída. As alternativas dos não-teístas não se limitam ao silêncio constrangedor, à confissões de impotência, recusas epigramáticas ou a ‘negação’ pura e simples quando confrontados com as implicações aparentemente radicais da cosmologia do Big Bang. É meu objetivo nesta série mostrar isto estabelecendo uma interpretação ateísta coerente e plausível do Big Bang, uma interpretação que não somente é capaz de equiparar-se à interpretação teísta mas que na verdade é melhor justificada do que a interpretação teísta. Mas meu argumento pretende estabelecer ainda mais do que isso. Em outra ocasião elaborei o caso de que a cosmologia do Big Bang não fornece quaisquer subsídios ao teísmo, mas aqui eu desejo construir o caso mais robusto de que a cosmologia do Big Bang é efetivamente inconsistente com o teísmo. Defenderei que se a cosmologia do Big Bang é verdadeira, então Deus não existe. A teoria cosmológica que discutirei neste artigo é a assim chamada ‘teoria padrão do Big Bang quente’, baseada nas soluções de Friedmann para as equações da Teoria da Relatividade Geral de Einstein e nos teoremas da singularidade de Hawking-Penrose. Explicarei estas ideias de

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uma maneira introdutória e não-técnica no próximo capítulo, de modo que os filósofos que não tenham familiaridade com esta teoria possam acompanhar meu argumento. Um ponto que desejo enfatizar logo de início refere-se ao estatuto provisório da teoria do Big Bang. Os cosmólogos acreditam que esta teoria um dia será substituída por uma cosmologia baseada numa teoria quântica da gravidade e, consequentemente, às conclusões teístas ou ateístas derivadas da ‘teoria padrão do Big Bang quente’ deve ser atribuído um estatuto igualmente provisório. Após minha explicação introdutória da cosmologia do Big Bang no capítulo a seguir, delinearei meu ‘argumento cosmológico a partir do Big Bang para a inexistência de Deus’ no capítulo subsequente. A maior parte da série, compreendendo os 5 capítulos finais, é reservada para responder às objeções contra o argumento delineado no segundo capítulo.

02. A teoria cosmológica do Big Bang Neste capítulo os aspectos relevantes da teoria do Big Bang são explicados em quatro etapas. Estes aspectos constituirão as quatro premissas científicas do argumento em favor do ateísmo que formularei no próximo capítulo. (i) A primeira etapa é a apresentação da assim chamada ‘equação de Einstein’, que é o núcleo da Teoria da Relatividade Geral de Einstein.[8] A equação de Einstein diz, em termos simplificados, que a geometria (curvatura) do espaço-tempo é determinada pela distribuição de massa e energia no espaço-tempo. A equação pode ser expressa de forma simplificada como (curvatura do espaçotempo) = 8*pi*(densidade da matéria) Esta equação sugere que se a matéria no universo for suficientemente densa, a curvatura do espaço-tempo aumentará tanto que o espaçotempo será reduzido a praticamente um ponto, como o vértice de um cone. A história de uma partícula ou raio de luz é uma trajetória no espaçotempo, e se o espaçotempo se curvar até ficar praticamente reduzido a um ponto, estas trajetórias no espaçotempo convergirão e se interceptarão neste ponto. Se esta intersecção ocorrer em algum momento no futuro, o ponto de intersecção constituirá o fim do espaçotempo. Se a intersecção ocorreu no passado, de modo que as trajetórias no espaçotempo emerjam de um ponto de intersecção e afastem-se gradualmente umas das outros, o ponto de intersecção pareceria constituir o começo do espaçotempo. Esta possibilidade leva a uma discussão do próximo aspecto relevante da cosmologia do Big Bang. (ii) A equação de Einstein admite várias soluções e qual solução descreve nosso universo é uma questão empírica. As soluções de Friedmann (primeiro obtidas por Friedmann em 1922 e

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1924[9] são as consideradas válidas para nosso universo. H é a solução que descreve um universo perfeitamente isotrópico (parece o mesmo em todas as direções) e perfeitamente homogêneo (a matéria encontra0se distribuída uniformemente). Se aplicarmos à equação de Einstein uma métrica que descreve um universo perfeitamente isotrópico e homogêneo, as soluções de Friedmann são obtidas, que podem ser expressas numa forma simplificada como -3*(aceleração da expansão ou desaceleração da contração do universo) = 4*pi*(densidade da matéria) As soluções de Friedmann nos dizem que se existe matéria uniformemente distribuída pelo universo, então o universo deve estar se expandindo numa taxa decrescente ou se contraindo numa taxa crescente (exceto no instante, se algum houver, em que a expansão para e reverte para uma contração). Para ver isto, observe que o lado direito da equação (simplificada) acima representa a densidade da matéria multiplicada por 4*pi. Se existe matéria no universo, então a densidade da matéria do universo é positiva. Isto implica que o valor para a aceleração da expansão ou para a desaceleração da contração é multiplicado por -3 e o resultado deve ser igual ao número positivo representado pelo lado direito da equação. Se o valor da aceleração da expansão é negativo, isto significa que o universo está se expandindo a uma taxa cada vez menor. Se o valor da desaceleração da contração é negativo, isso significa que o universo está se contraindo a uma taxa cada vez maior. Este resultado é de uma significância crucial, pois implica que se o universo contém matéria uniformemente distribuída então sua existência é temporalmente limitada. Se o universo está se contraindo a uma taxa cada vez maior, então ele não pode se contrair eternamente mas deve eventualmente alcançar um ponto final, quando se curva até ficar reduzido a um ponto e seu raio se torna zero. Se o universo está se expandindo a uma taxa cada vez menor, então ele não pode estar se expandindo eternamente, mas deve ter começado a se expandir em algum momento no passado, quando seu raio começou a crescer a partir de zero. Consideremos também o caso da expansão, estado em que o universo encontra-se atualmente. Quanto mais recuamos no passado seguindo a trajetória no universo, mais rápida é a taxa de expansão que encontramos. À medida em que a taxa de expansão aumenta, a curvatura do universo e a densidade da matéria aumentam e o raio do universo diminui, até que se atinge um ponto em que a curvatura do universo é infinita, a densidade da matéria infinita e o raio do universo é zero. Devido a esta curvatura infinita, as trajetórias rumo ao passado das partículas no espaçotempo convergem, tal que cada trajetória no espaçotempo termina em algum ponto no qual outras trajetórias no espaçotempo também terminam. Se as equações de Friedmann descrevem um universo esférico, o universo é finito em extensão e

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consequentemente todas as trajetórias no espaço tempo no sentido do passado se interceptam em um ponto. Toda a matéria é comprimida neste único ponto, que possui zero dimensões espaciais. Este ponto existe instantaneamente antes de explodir no Big Bang. O ponto instantaneamente existente é uma singularidade, o que significa que é um ponto final do espaçotempo; não existe momento mais antigo do que o instante da singularidade pois a própria singularidade é o primeiro instante do tempo. Por outro lado, se o universo é plano (não-curvo) ou hiperbólico (curvado como uma sela) ele é infinito em extensão, o que implica que as trajetórias no espaço tempo orientadas para o passado terminam numa singularidade espacialmente unidimensional. Apenas um volume finito de espaço pode ser comprimido num ponto; consequentemente, se existe um número infinito de volumes espaciais de qualquer tamanho finito determinado (o que seria o caso se o universo fosse plano ou hiperbólico), então deve haver um número infinito de pontos constitutivos da singularidade. Estes pontos existem instantaneamente (no primeiro instante do tempo) e então explodem num Big Bang infinitamente prolongado. Entretanto, as soluções de Friedmann para as equações de Einstein por si próprias não mostram que nosso universo começou numa singularidade do Big Bang. Há uma certa incongruência

entre

suas

soluções

e

as

propriedades

globais

de

nosso

universo,

uma incongruência que pode tornar inaplicável sua previsão de uma singularidade do Big Bang. O enunciado e a resolução deste problema levam a um terceiro aspecto da cosmologia do Big Bang que é pertinente para meu argumento. (iii) As soluções de Friedmann são baseadas na hipótese de que o universo é perfeitamente isotrópico e homogêneo. Mas esta hipótese é inconsistente com as evidências observacionais, que revelam que o universo consiste de aglomerados ou superaglomerados de galáxias separados por vastas extensões de espaço vazio ou aproximadamente vazio. O universo é isotrópico e homogêneo somente de um ponto de vista estatístico, calculando-se a média ao longo de distâncias de bilhões de anos-luz. (Por exemplo, podemos assumir que diferentes regiões cúbicas do espaço diferem quanto a sua massa por menos de um porcento somente se se considera que estas regiões tenham três bilhões ou mais de anos-luz de diâmetro.) Isto pode sugerir que a previsão de uma singularidade do Big Bang é inaplicável ao universo já que esta previsão é baseada nas hipóteses de perfeitas homogeneidade e isotropia. A hipótese de perfeita isotropia implica que o movimento relativo de qualquer par de partículas é puramente radial e a hipótese de perfeita homogeneidade implica a inexistência de gradientes de pressão. O fato de que nosso universo é imperfeitamente isotrópico e homogêneo implica que as trajetórias espaçotemporais orientadas para o passado de partículas exibem velocidades transversas e aglomerações que produzem agregados de matéria. Isto sugere que as

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trajetórias divergirão em vez de convergir num único ponto. Isto por sua vez sugere que a atual fase de expansão do universo resulta de um ‘ricochete’ que terminou uma fase de contração anterior do universo. Mas esta sugestão de um universo oscilante foi contestada no final da década de 1960 pelos teoremas da singularidade Hawking-Penrose, [9A] que demonstram que sob certas condições imperfeitamente isotrópicas e homogêneas universos também se originam numa singularidade do Big Bang. Formulados com precisão, os teoremas enunciam que uma singularidade é inevitável dadas as cinco condições a seguir: a) A Teoria da Relatividade Geral de Einstein é verdadeira em nosso universo. b) Não existem curvas de natureza temporal fechadas (isto é, viajar no tempo rumo ao próprio passado é impossível e o princípio de causalidade não é violado). c) A gravidade é sempre uma força de atração. d) A superfície do espaçotempo não é demasiadamente simétrica; isto é, toda trajetória de uma partícula ou raio de luz no espaçotempo encontra alguma matéria ou curvatura aleatoriamente orientada. e) Existe algum ponto p tal que todas as trajetórias espaçotemporais orientadas para o passado (ou futuro) partindo de p começam a convergir novamente. Esta condição implica que existe matéria suficiente no universo para concentrar toda trajetória espaçotemporal orientada para o passado ou futuro a partir de algum ponto p. As soluções para os teoremas Hawking- Penrose mostram, como Hawking observa, que “em geral existirá uma curvatura-singularidade que interceptará qualquer linha do mundo. Portanto, a relatividade geral prevê um começo do tempo.’[10] (iv) O último aspecto da cosmologia do Big Bang que preciso como premissa em meu argumento em favor do ateísmo é o princípio de ignorância de Hawking, que declara que singularidades são inerentemente caóticas e imprevisíveis. Nas palavras de Hawking, Uma singularidade é um lugar em que os conceitos clássicos de espaço e tempo, bem como todas as leis conhecidas da física, são inaplicáveis porque são todas formulados num contexto de espaço-tempo clássico. Neste artigo afirma-se que esta inaplicabilidade não é meramente uma consequência de nossa ignorância da teoria correta mas que constitui uma limitação fundamental à nossa habilidade de prever o futuro, uma limitação análoga porém suplementar à limitação imposta pelo princípio da incerteza da mecânica quântica ortodoxa.[11] Uma das relações de incerteza da mecânica quântica refere-se à posição q e ao momento p de uma partícula. Esta relação declara que (delta p)*(delta q) = h/(4*pi), que implica que se a posição de uma partícula é definidamente previsível então seu momento não o é, e vice versa.

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O princípio da ignorância é mais forte no sentido de que implica que não se pode definidamente prever nem a posição nem o momento de qualquer partícula emitida por uma singularidade. Na verdade, este princípio implica que nenhum dos valores físicos das partículas emitidas são definidamente previsíveis. De acordo com este princípio, a singularidade do Big Bang “emitiria todas as configurações de partículas com igual probabilidade.”[12] A imprevisibilidade da singularidade implica que deveríamos esperar um transbordamento caótico de seu “interior”. Esta expectativa está alinhada com a representação feita pelos cosmologistas do Big Bang dos estágios primordiais do universo, pois estes estados são concebidos como maximamente caóticos (envolvendo a mais completa entropia). A singularidade emitiu partículas com microestados aleatórios, e isto resultou num macroestado global de equilíbrio térmico. A significância do princípio de ignorância pode facilmente passar despercebida. Ele implica que a singularidade do Big Bang possui um comportamento completamente imprevisível no sentido de que nenhuma lei física governa seu comportamento. A imprevisibilidade da singularidade não é simplesmente uma questão epistêmica, significando que ‘nós humanos não somos capazes de prever o que surgirá dali, mesmo que haja uma lei governando a singularidade que, se conhecida, nos habilitaria a fazer previsões precisas.’ William Lane Craig assume que a imprevisibilidade é meramente epistêmica; ele escreve que ‘a imprevisibilidade [é] uma questão epistêmica que pode ou não resultar de indeterminismo ontológico. Pois claramente, seria inteiramente consistente manter o determinismo no nível quântico mesmo se não pudéssemos, mesmo em princípio, prever com precisão tais eventos.’[13] Agora, eu reconheço que há usos legítimos do termo ‘imprevisibilidade’ que são meramente epistêmicos em sentido, mas este não é o sentido em que a palavra é utilizada na formulação do princípio da ignorância de Hawking. A imprevisibilidade que diz respeito ao princípio da ignorância de Hawking é uma imprevisibilidade derivada da ausência de leis, não da incapacidade humana de conhecer as leis. Não há nenhuma lei, nem mesmo uma lei probabilística, governando a singularidade que coloque restrições sobre o que ela pode emitir. Hawking escreve que Uma singularidade pode ser considerada um local em que há um colapso do conceito clássico de espaço-tempo como uma superfície com uma métrica pseudo-Reimanniana. Porque todas as leis da física são formuladas num contexto de espaço-tempo clássico, todas irão entrar em colapso numa singularidade. Este é um resultado crítico para a física; pois significa que não é possível prever o futuro. Não é possível saber o que surgirá de uma singularidade.[14] Leis deterministas ou mesmo probabilísticas não podem vigorar em nível quântico no interior da singularidade, pois não há nenhum nível quântico no interior da singularidade; a superfície do espaço-tempo que os processos quânticos pressupõem ruiu. A singularidade é um violento

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e aterrorizante caldeirão de anarquia. Como Paul Davies observa, ‘qualquer coisa pode surgir de uma singularidade aberta – no caso do Big Bang o universo surgiu. Sua criação representa a suspensão instantânea das leis físicas, o lampejo de anarquia nomológica abrupto e repentino que permitiu que alguma coisa surgisse do nada’.[15] A questão que examinarei é se esta anarquia nomológica primordial é consistente com a hipótese de uma criação divina. Argumentarei contra esta hipótese.

03. Exposição formal do argumento Utilizarei os quatro aspectos da cosmologia do Big Bang explicados na última seção como premissas científicas de meu argumento ateológico. As três primeiras premissas científicas articuladas na última seção, a equação de Einstein, as soluções de Friedmann para esta equação e o teorema da singularidade Hawking-Penrose, nos municiam com as duas premissas (1) A singularidade do Big Bang é o estado mais antigo do Universo. (2) O estado mais antigo do universo é inanimado. (2) segue a partir de (1) já que a singularidade possui temperatura infinita, curvatura infinita e densidade infinita, condições estas hostis à vida. A quarte ideia científica explicada na última seção, o princípio da ignorância, nos dá a premissa concisa (3) Nenhuma lei governa a singularidade do Big Bang e consequentemente não há garantias de que ela emitirá uma configuração de partículas que se desenvolverá num universo animado. (1)-(3) Implicam (4) Não há garantias de que o estado mais antigo do universo evoluirá num estado animado do universo. Meu argumento é que (4) é inconsistente com a hipótese de que Deus criou o estado mais antigo do universo, já que é verdade a respeito de Deus que se ele criou o estado mais antigo do universo, então ele teria assegurado que este estado seria animado ou evoluiria num estado animado do universo. É essencial à concepção de Deus na tradição judaico-cristã-islâmica que se ele criou o universo, ele criou um universo animado, e portanto que se ele criou um primeiro estado do universo, ele criou um estado que é animado ou que seguramente evoluiria até um estado animado. Se alguém diz, ‘não faz diferença para Deus se o universo que ele criou é animado ou inanimado’, esta pessoa está operando com um conceito de Deus que está em conflito com o teísmo clássico. Penso que seria reconhecido por praticamente todos os teístas contemporâneos na tradição analítica (M. e R. Adams, Craig, Menzel, Morris, Plantinga, Quinn, Schlesinger, Swinburne, Wainwright, Wolterstorff e vários outros) que, se Deus cria um

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universo, ele tenciona que sua criação seja animada. Richard Swinburne escreve, por exemplo, que ‘universos ordenados’ são aqueles requeridos por criaturas animadas e que ‘se Deus cria um universo, então Ele tem razões supremas para criar um universo ordenado.’[16] A formulação acima do ‘argumento cosmológico a partir do Big Bang para a inexistência de Deus’ é obviamente apenas um ponto de partida, já que o teísta tem à sua disposição numerosos contraargumentos ou objeções. No restante da série algumas destas objeções serão formuladas e respondidas.

4. A questão da intervenção divina Uma objeção ao argumento da seção 3 é que ele não leva em conta a possibilidade de uma intervenção divina. Se a singularidade do Big Bang é anômica, então é possível para Deus intervir no instante da singularidade e força-la sobrenaturalmente a explodir de um modo específico, nomeadamente, explodir emitindo uma configuração de partículas maximamente produtora de vida. Deste modo, Deus pode garantir que o estado mais antigo do universo evoluirá até um estado animado. Mas não nem um pouco é óbvio que esta objeção seja consistente com a concepção teísta clássica da natureza divina. Deus é onisciente, onipotente e perfeitamente racional e não é um indício de um ser com estes atributos criar como primeiro estado do universo alguma entidade inerentemente imprevisível que demande uma intervenção ‘corretiva’ imediata a fim de que o rumo do universo seja retificado. Se Deus almeja criar um universo que em algum momento não especificado de sua história abrigará seres vivos, não há razão para Ele começar o universo com uma singularidade completamente imprevisível. Com efeito, escolher tal começo é tanto irracional como ineficiente. É um sinal de incompetência planejar ou projetar grosseiramente como o primeiro estado natural do universo algo que requeira, ‘de cara’, uma intervenção sobrenatural que assegure que o resultado desejado seja alcançado. A coisa racional e eficiente a se fazer é criar algum estado que por sua própria natureza nômica evolua até um universo contendo vida. O problema a que aludo não é que Deus institua leis que ele deve imediatamente violar se suas intenções devem ser realizadas. O problema refere-se à intervenção de Deus em sua criação, não à violação das leis que a regem. ‘Deus viola a lei natural L’ implica ‘Deus intervém em sua criação’ mas não há nenhuma implicação no sentido contrário, já que Deus pode intervir em eventos ou processos naturais que não são governados por leis. Como a singularidade do Big Bang não é regida por nenhuma lei, a restrição imposta por Deus para que sua singularidade emita uma configuração produtora de vida seria uma instância de

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intervenção que não é uma violação nomológica. Consequentemente, a objeção de que ‘Deus pode intervir na explosão da singularidade de modo a faze-la emitir uma configuração de partículas produtora de vida sem violar as leis que ele próprio determinou’ é uma ignoratio elenchi, já que, em vez disso, meu argumento é que esta intervenção implica um primeiro estado planejado com incompetência ou desleixo. Eu também observaria que meu argumento não pressupõe que exista uma ‘maneira mais racional, competente ou eficiente de criar um universo animado’ e por conseguinte não sucumbe à um análogo da teodiceia do ‘nenhum melhor mundo possível’, tal como a desenvolvida por George Schlesinger.[17] Meu argumento pressupõe apenas que existem maneiras eficientes e ineficientes, onde uma maneira eficiente é uma através da qual estados animados evoluem previsivelmente de acordo com leis naturais e uma maneira ineficiente é uma pela qual estados animados não evoluem de acordo com leis naturais mas exigem intervenções divinas.

5. A questão da realidade da singularidade Pode ser objetado que uma premissa crucial do argumento ateológico, a premissa (1), que afirma que ‘a singularidade do Big Bang é o estado mais antigo do universo’, é falsa, pois incorre numa reificação da singularidade. A singularidade não é um estado físico real mas uma ficção matemática. O estado físico mais antigo universo é a explosão do Big Bang, que é governado por leis físicas. Esta explosão leva, através de uma evolução natural e regida por leis, a um estado do universo que contém criaturas vivas. Consequentemente, somos capazes de concluir que Deus criou como o estado mais antigo algum estado que por sua própria natureza nômica evoluiu até alcançar o estado de um universo animado. Minha resposta a esta objeção é que ela é baseada num interpretação errônea da cosmologia do Big Bang, pois esta cosmologia representa a singularidade como uma entidade física real. Por exemplo, Penrose escreve que ‘concebemos a singularidade inicial como um único ponto que dá origem a uma infinidade de regiões causalmente desconexas no instante seguinte’,[18] o que implica que o ponto é mais antigo que a explosão e portanto real. Mas esta resposta pode passar ao largo do questionamento mais importante da objeção, que não é que os cosmólogos do Big Bang representam a singularidade como irreal, mas que a singularidade é irreal, considerando-se os princípios razoáveis para a interpretação de teorias científicas. Esta é a posição de William Lane Craig e Richard Swinburne. Craig observa que a singularidade do Big Bang é representada como possuindo volume zero e duração zero e que isto é razão suficiente para considera-la irreal. Ele assevera que ‘um estado físico em que todas as dimensões espaciais e temporais são zero é uma idealização matemática cuja contraparte

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ontológica é nada.’[19] Mas Craig não oferece nenhuma justificação para esta alegação. Os cosmólogos não encontram nenhuma dificuldade no conceito de um espaço que possui zero dimensões (um ponto espacial) e que existe por um instante e uma mera alegação de que um espaço 0D não pode existir instantaneamente parece ser uma expressão de um ceticismo injustificado. Richard Swinburne também acredita que o ponto singular é uma idealização matemática. Ele fornece um argumento para isto, qual seja, o de que é logicamente necessário que o espaço seja 3D. Swinburne apresenta um argumento contra a possibilidade lógica de objetos 2D e sugere que argumentos análogos podem ser construídos contra objetos 1D e 0D. Ele solicita que consideremos uma superfície bidimensional que contém objetos bidimensionais: …claramente, é logicamente possível que ‘objetos materiais’ bidimensionais sejam elevados acima da superfície ou afundados abaixo dela… a possibilidade lógica existe mesmo se a possibilidade física não existe. Como é logicamente possível que os ‘objetos materiais’ sejam movidos para fora da superfície, devem haver locais, e portanto pontos, fora da superfície, já que uma localização está seja lá onde for que seja logicamente possível que um objeto material possa estar.[20] Por conseguinte, Swinburne conclui, se existem objetos ou superfícies bidimensionais também deve existir uma terceira dimensão espacial. O argumento de Swinburne instancia a seguinte forma argumentativa inválida: (1) Fx é logicamente possível (isto é, é logicamente possível que x possua a propriedade F). (2) C é uma condição necessária de Fx. (3) x existe. (4) Portanto, C existe. O fato de que o argumento de Swinburne possui esta forma torna-se patente se o enunciamos da seguinte maneira: (1A) É logicamente possível que qualquer objeto numa superfície bidimensional possua a propriedade de mover-se acima ou abaixo da superfície. (2A) Uma terceira dimensão espacial é uma condição necessária do movimento de qualquer objeto numa superfície bidimensional acima ou abaixo desta superfície. (3A) Existe um objeto numa superfície bidimensional. (4A) Portanto, existe uma terceira dimensão espacial. Se (1A)-(4A) prova que objetos em superfícies bidimensionais exigem uma terceira dimensão espacial, então o argumento a seguir prova que existe um paraíso celestial:

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(1B) É logicamente possível que qualquer corpo humano seja ressuscitado após a morte e ocupe um espaço celestial. (2B) Um paraíso celestial é uma condição necessária para a ressurreição de qualquer corpo. (3B) Corpos humanos existem. (4B) Portanto, existe um paraíso celestial. A falácia, caso o leitor ainda não a tenha percebido, é a pressuposição de que uma condição necessária para que um objeto possua uma certa propriedade deve ser real se o objeto é real. Obviamente isto não é o caso; a condição necessária precisa ser real somente se a posse da propriedade pelo objeto for real. Concluo que Swinburne não nos deu nenhuma razão para acreditarmos que é impossível que exista uma singularidade do Big Bang que ocupe menos de três dimensões espaciais. Dado que o argumento de Swinburne fracassa, e que nenhum outro argumento contra a coerência da singularidade do Big Bang tenha sido apresentado (pelo menos até onde sei), as considerações acima garantem a conclusão de que não há nenhuma razão para negar a realidade da singularidade do Big Bang. Portanto, o problema da imprevisibilidade permanece.

6. A questão da simplicidade relativa das hipóteses Teísta e Ateísta Pode não haver nenhuma verdade a priori que exclua de consideração a singularidade do Big Bang, mas existe um argumento probabilístico que respalda a visão de que o universo começou com uma explosão divinamente criada em vez de com uma singularidade incompatível com a concepção ortodoxa de Deus. A hipótese da criação divina é mais simples e por esta razão é mais provável de ser verdadeira do que a hipótese ateísta. O argumento de que a hipótese teísta é mais simples foi formulado por Swinburne. Ele afirma que Deus é mais simples do que o universo físico e portanto é mais provável do que o universo físico de existir inexplicado. ‘Se algo tem que ocorrer inexplicado, um universo físico complexo deve ser menos esperado do que outras coisas (por exemplo, Deus).’[21] Se o universo físico é criado por Deus então ele tem sua explicação em Deus e consequentemente não existe inexplicado; neste caso, somente Deus existe inexplicado. Como a hipótese de que Deus existe inexplicado é mais mais simples do que a hipótese ateísta, é mais provável de ser verdadeira. O princípio a que Swinburne está recorrendo é (1) Quanto mais simples um existente é, mais provável é que ele exista inexplicado. Eu acredito, contudo, que mesmo se concedermos a Swinburne esta e outras de suas premissas, pode-se demonstrar que considerações de simplicidade favorecem o ateísmo em vez do teísmo. O critério de simplicidade de Swinburne é que existe uma simplicidade ‘relativa

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ao zero e ao infinito ausente em números finitos particulares.’[22] Por exemplo, ‘a hipótese de que alguma partícula tenha massa zero, ou velocidade infinita, é mais simples do que a hipótese de que ela tenha uma massa de 0.34127 de alguma unidade, ou uma velocidade de 301 000 km/seg.’[23] Igualmente, uma pessoa com poder, conhecimento e bondade infinitos é mais simples do que uma pessoa com um certo grau finito de poder, conhecimento e bondade. Além disso, uma pessoa com poder, conhecimento, etc., infinitos é mais simples do que um objeto físico que tem valores finitos particulares para seu tamanho, duração, velocidade, densidade, etc. Assumindo estas premissas, examinemos a hipótese de que um universo finito começa com uma singularidade incausada. A singularidade em questão possui volume espacial zero e duração temporal zero e não possui valores finitos particulares para sua densidade, temperatura ou curvatura. Parece razoável supor que em virtude destes valores zero e não-finitos este ponto instantâneo é o objeto físico mais simples possível. Se concedermos a Swinburne que Deus é a pessoa mais simples possível e mantermos que Deus e a singularidade incausada não podem ambos existir (pelas razões enunciadas no argumento ateológico da seção 3), então nossas alternativas são supor que ou a pessoa mais simples possível existe e criou o universo espaçotemporal quadridimensional ou que o objeto físico mais simples possível existe e emite o universo espaçotemporal quadridimensional. Se usamos o critério de simplicidade, existe alguma razão para preferirmos uma destas hipóteses em detrimento da outra? Parece razoável supor que o objeto físico mais simples possível é igualmente tão simples quanto a pessoa mais simples, de modo que não há razão para preferir um em detrimento do outro com base na simplicidade intrínseca. Swinburne sustenta que Deus existe inexplicado e portanto Deus e o mais simples objeto físico também se equiparam neste aspecto. Mas a hipótese de que o universo espaçotemporal quadridimensional começou a partir do mais simples objeto físico é, em um aspecto decisivo, mais simples do que a hipótese teísta. É mais simples imaginar que o universo físico 4D começou a partir da instância mais simples possível de uma mesma categoria básica a que pertence o próprio universo, qual seja, a dos objetos físicos, do que imaginar que este universo começou a partir da instância mais simples possível de uma categoria básica diferente, qual seja, a das coisas não-físicas e pessoais. A explicação ateísta da origem do universo 4D postula fenômenos de apenas uma categoria básica (fenômenos físicos), ao passo que a explicação teísta de sua origem postula fenômenos de dois tipos básicos (fenômenos físicos e fenômenos pessoais incorpóreos). Assim, por razões de simplicidade a postulação de uma singularidade que explode num Big Bang prevalece sobre a postulação de uma divindade que cria a explosão do Big Bang ex nihilo.

7. A questão da necessidade metafísica de um universo a partir do Big Bang

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De acordo com o essencialismo, as leis naturais, tal como a lei de que a água é H 2O, são metafisicamente necessárias; elas vigoram em todos os mundos possíveis, de modo que Deus não poderia ter criado um universo em que elas são violadas. Consequentemente, se é uma lei natural que um universo sujeito às soluções de Friedmann para a equação de Einstein e aos teoremas da singularidade de Hawking-Penrose começa numa singularidade, então Deus não poderia ter criado um universo Friedmann-Hawking-Penrose (FHP) de outra maneira que não primeiro criando uma singularidade imprevisível. Dado isto, e dado seu desejo de que o universo fosse animado, ele então seria obrigado a intervir para assegurar que o universo fosse animado. Isto não seria um sinal de ineficiência ou incompetência já que este seria o único modo possível pelo qual se poderia garantir que o universo fosse animado. Minha resposta a esta objeção é que mesmo se esta hipótese essencialista for sólida, não se segue que Deus deve criar uma singularidade do Big Bang se ele almeja criar um universo animado. Pois o fato de que certas leis naturais são metafisicamente necessárias não implica que elas sejam necessariamente instanciadas. Se pegamos emprestado o simbolismo, se não o ponto de vista, de D. M. Armstrong,[24] podemos dizer que uma lei natural metafisicamente necessária possui uma forma como (L) [ ] (N(F,G)) onde F e G são universais e N uma relação entre eles. N é a relação da necessitação nômica. Armstrong considera N primitiva, mas penso que podemos definir N em termos de coexemplificação. (L) significa que em todos os mundos possíveis em que F é exemplificado, G é coexemplificado. Se F é água e G H2O, então (L) declara que em cada mundo possível em que ser água é exemplificado, ser H2O é exemplificado por seja lá o que for que exemplifique ser água. Mas (L) não implica que F ou G são exemplificados. O fato de que água é H2O em todos os mundos possíveis em que há água não implica que exista água em todos os mundos. Analogamente, o fato de que um universo que satisfaz as leis FHP começa numa singularidade do Big Bang em todos os mundos possíveis em que tal universo existe não implica que exista um universo FHP em todos os mundos. Pois outras espécies de universo também são possíveis, universos que satisfazem outros conjuntos de leis, incluindo conjuntos de leis que permitem que o estado mais antigo seja, ou evolua previsivelmente até, um estado animado. Se Deus existe e almeja que exista um universo animado, ele teria criado um destes universos (ou um universo animado sem princípio). Esta resposta à objeção essencialista pode ser rejeitada com base em que o essencialismo e a teoria FHP conjugados implicam que os únicos universos metafisicamente possíveis são universos FHP. Seja F a propriedade ser um universo e G a propriedade ser um universo FHP.

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De acordo com (L), ser um universo não pode ser exemplificada a menos que ser um universo FHP seja coexemplificada. Acredito, contudo, que podemos conceder até mesmo esta objeção consistentemente com a solidez do argumento ateológico. Para ver porque isto é possível, devemos refletir sobre as evidências aduzidas para a necessidade metafísica das leis naturais. Kripke, Putnam e outros pioneiros do essencialismo reconhecem que alguma razão deve ser dada para sustentar que uma lei natural seja necessária que anule a razão usual para considera-las contingentes, nomeadamente, que pode-se conceber coerentemente que elas não vigoram. A razão para sustentar que alguns princípios sejam necessários, tal como as tautologias (todos os homens não casados são homens), princípios analíticos (todos os homens não casados são solteiros) e princípios sintéticos a priori (todos os objetos completamente verdes não são simultaneamente completamente vermelhos) é que não se pode conceber coerentemente que eles sejam falsos. Mas este não é o caso das leis naturais. Como Putman assinala, ‘podemos nos imaginar perfeitamente bem tendo experiências que nos convenceriam (e que tornariam racional acreditar que) água não é H2O. Nesse sentido, é concebível que água não seja H2O.’[25] Mas neste caso, a conceptibilidade de ser um caso diferente é um guia anulado para a contingência, pois considerações de como a referência de ‘água’ é estabelecida, em conjunção com observações científicas, mostram que ‘água’ é necessariamente ‘H2O’. Mas eu não seguirei Putnam à risca ao apresentar “o argumento a partir da rigidez de ‘água’” já que formulações subsequentes proporcionaram versões aprimoradas. Keith Donnellan[26] ofereceu uma versão melhorada em relação à de Putnam e Nathan Salmon[27] aprimorou a versão de Donellan. Mas Paul Copeck[28] recentemente refinou a versão de Salmon e tomarei parcialmente emprestada a versão de Copeck na seguinte declaração resumida deste argumento. A primeira premissa é uma formalização do significado rígido de ‘água’ em termos da definição ostensiva da palavra e a segunda premissa é retirada da teoria científica corrente: (1) É necessariamente o caso que: alguma coisa é uma amostra de água se e somente se tal coisa exemplifica d-isso (as propriedades P1, …Pn tal que P1, …Pnsão causalmente responsáveis pelas propriedades observáveis [por exemplo, ser incolor, inodora e insípida] da substância da qual isso é uma amostra). (2) Isto (amostra líquida) possui a estrutura química H2O, tal que ser H2O é a propriedade causalmente responsável pelas propriedades observáveis de ser incolor, inodora, insípida, etc. Portanto, (3) É necessariamente o caso que: todas as amostras de água possuem a estrutura química H2O.

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O termo ‘d-isso’ na premissa (1) é o operador rigidificante de Kaplan, que opera sobre ‘isso’ para produzir uma referência demonstrativa que é rígida. Agora se construirmos um argumento análogo para a necessidade de um universo ser FHP, ele seria como (4) É necessariamente o caso que: alguma coisa é uma instância de um universo se e somente se tal coisa exemplifica d-isso (as propriedades P1,…,Pn tais que P1,…,Pn são causalmente responsáveis pelas propriedades observáveis [por exemplo, aglomerados de galáxias se afastando, a radiação de micro-ondas de fundo de 2.7 K] de cujo tipo isso é uma instância) (5) Esta instância de um universo tem uma estrutura FHP, tal que ser um universo FHP é a propriedade causalmente responsável pelas propriedades observáveis de aglomerados se afastando, radiação de fundo, etc. Portanto, (6) É necessariamente o caso que: toda instância de um universo tem a propriedade de ser um universo FHP. Não desafiarei a solidez de (4)-(6) mas meramente mostrarei que sua solidez é consistente com a solidez do argumento cosmológico a partir do Big Bang para a inexistência de Deus. Será útil esboçar um paralelo com o exemplo da água. Como Putnam assinalou, há outro mundo possível em que uma substância possui uma certa estrutura química, XYZ, tal que XYZ é causalmente responsável pelas propriedades observáveis da substância de ser um líquido incolor, inodoro e insípido. Esta substância mão é água mas algo cujas propriedades observacionais são indistinguíveis das da água. Esta substância pode ser chamada ‘água 1’, tal que é metafisicamente necessário que água1 é XYZ. Analogamente, há outro mundo possível W em que a estrutura cósmica responsável pelas propriedades observáveis de aglomerados se afastando, radiação de fundo, etc. não é uma estrutura FHP mas alguma outra estrutura, digamos ABC. Aquilo que tem esta estrutura não é um universo, já que ‘universo’ refere-se rigidamente a alguma coisa com uma estrutura FHP. Mas podemos chama-lo de ‘universo1’, assim como podemos chamar XYZ de ‘água1’. Ainda existem outros mundos em que as propriedades observacionais relevantes não incluem aglomerados se afastando e radiação de fundo mas propriedades como as que se considera que os sistemas de Ptolomeu, Copérnico ou Newton exemplifiquem. O que é causalmente responsável por estas propriedades pode ser chamado ‘um universo2’, ‘um universo3’, etc. Consequentemente, o proponente do argumento ateológico pode conceder que Deus não poderia ter criado um universo animado sem criar uma singularidade do Big Bang, mas ele ressaltará que Deus estaria sendo irracional e incompetente ao criar um universo animado; a coisa racional a ser feita seria criar um universo1animado, ou um universo2 animado, etc., tal que estes sistemas não exigissem intervenções divinas para garantir estados animados.

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8. (Conclusão) A questão de um princípio causal O teísta pode retorquir a esta altura que a interpretação ateísta da cosmologia do Big Bang padece de um problema mais grave do que os problemas do projeto ineficiente e da menor simplicidade que assolam a interpretação teísta. O ateu deve supor que o universo começou a existir incausado e esta suposição viola o princípio de causalidade (P1), segundo o qual tudo o que começa a existir tem uma causa, uma condição suficiente de seu vir-à-existência. Admitir-se-á que esta objeção aparenta possuir alguma força, visto que alguns não-teístas consideram-na convincente (como C. D. Broad, citado na introdução) e tem-lhes provocado reações que variam entre a negação, o embaraço e o silêncio quando confrontados com as implicações da cosmologia do Big Bang. Entretanto, acredito que esta objeção seja insustentável. Uma razão é que se o princípio causal (P1) é considerado uma generalização empírica ele é falso, já que a mecânica quântica tem mostrado que inúmeras partículas (partículas virtuais) começam a existir sem serem causadas a faze-lo. Se (P1) for considerado sintético e a priori, cuja evidência é sua obviedade intuitiva, então mais uma vez a mecânica quântica o solapa fornecendo diversos casos intuitivamente claros de partículas vindo a existir incausadas. Se (P1) fosse verdadeira a priori, então a mecânica quântica, a teoria científica mais bem sucedida elaborada até o momento, deveria ser jogada no lixo, uma possibilidade que nenhuma pessoa racional cogitaria. O teísta, contudo, pode recuar para uma de duas posições mais conservadoras, cada uma das quais contorna o problema levantado pela mecânica quântica. Uma destas posições é permitir que coisas particulares dentro do universo possam começar a existir espontaneamente, mas que o próprio universo não possa começar a existir espontaneamente. O princípio causal que é sinteticamente a priori é não (P1), mas o mais fraco (P2), segundo o qual é impossível para o ser surgir incausado a partir de absolutamente nada. A segunda posição mais conservadora consiste em preservar a afirmação original sobre todos os começos de existência mas redefinir ‘causa’ de modo que o termo não mais signifique uma condição suficiente mas uma condição probabilística em algum grau. Uma teoria probabilística da causalidade, como as de Wesley Salmon, Patrick Suppes, Richard Ottes ou David Papineau[29], pode ser adotada, em que x é uma causa de y se e somente se x é antecedente ou simultâneo a y e x tem uma probabilidade, que pode ser baixa, de estar associado de certo modo com y. (As definições de Salmon et al. são, obviamente, consideravelmente mais complicadas e precisas mas não é necessário explicar os detalhes aqui.) Considere partículas virtuais que começam a existir num vácuo. Poderia ser dito que o vácuo tem uma probabilidade de grau muito baixo de estar associado ao nascimento de um par específico de partículas

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virtuais e, neste sentido, é uma causa das partículas virtuais. Estas reflexões sugerem um princípio causal que não é violado pela mecânica quântica mas é violado pela singularidade do Big Bang ateisticamente interpretada, nomeadamente, (P3), segundo o qual tudo o que começa a existir tem uma causa probabilística, com a probabilidade relevante sendo maior que zero e possivelmente um. Meu comentário sobre (P3) é que se tal princípio é uma generalização empírica, ele é baseado em observações da categoria de eventos para os quais é logicamente possível que existam causas naturais e, portanto, que não existe nenhuma justificação para supor que (P3) se aplica a eventos de uma categoria diferente, a eventos para os quais é logicamente impossível que existam causas naturais. Por definição, o estado inicial do universo não tem nenhuma causa natural, e por conseguinte situa-se fora do escopo de (P3). Entretanto, se (P3) fosse sinteticamente necessário sua aplicação não seria restrita a um domínio empírico específico mas poderia ser interpretado como aplicável a tudo, até mesmo à singularidade do Big Bang. (P3), assim como (P2), poderia ser utilizado para excluir em bases a priori a interpretação ateísta da cosmologia do Big Bang. Mas será qualquer um destes dois princípios sinteticamente a priori? As evidências de que um deles seria sinteticamente a priori seria sua ‘obviedade intuitiva’. Esta é a posição de Craig, por exemplo; ele insiste que ‘é intuitivamente óbvio que qualquer coisa que começa a existir, sobretudo o universo inteiro, deve ter uma causa para sua existência’.[30] Minha resposta é negar que qualquer destes dois princípios seja intuitivamente óbvio. Sugeri numa seção anterior que há quatro espécies de verdades necessárias, quais sejam, (1) tautologias, (2) verdades analíticas, (3) verdades sintéticas a priori e

(4) verdades metafisicamente

necessárias a posteriori. Verdades

sintéticas a priori são exemplificadas por ‘Nada que seja completamente verde num momento t é completamente vermelho no momento t’ e verdades metafisicamente necessárias a posteriori são exemplificadas por ‘Água é H2O’. Agora a questão com a qual estamos a lidar concerne às verdades sintéticas a priori, já que as proposições causais devem alegadamente ser deste tipo. Como sugeri na seção anterior, a evidência de que uma proposição é uma verdade sintética a priori é que não se pode conceber que ela seja falsa (em qualquer mundo possível) e ela não é tautológica ou analítica. Este é claramente o caso de ‘Nada que seja completamente verde num instante t é completamente verde no mesmo instante t.’ Não se pode conceber ser possivelmente o caso que alguma coisa, digamos, uma porção de capim, seja completamente verde em t e além disso seja simultaneamente vermelha. Mas este não é o caso de nossas proposições causais. Posso conceber a possibilidade do universo começar a existir incausado. Este começo

incausado

pode ser

completamente desconcertante,

mas pode ser concebido que ele possivelmente ocorra, ao contrário de uma folha de capim sendo simultaneamente tanto completamente verde como completamente vermelha.

163

Craig responde a esta linha de argumentação da seguinte maneira: ‘Podemos representar no olho da mente o universo saltando na existência incausado, mas o fato de que podemos construir e identificar tal quadro mental não quer dizer que a origem do universo poderia realmente ter acontecido desta maneira.’[31] Mas esta resposta não se sustenta já que é baseada num fracasso em distinguir entre verdades metafisicamente necessárias a priori e a posteriori. É verdade acerca das necessidades metafísicas a posteriori que a concepção delas como possivelmente não vigorando não é evidência de que elas não são necessárias. Posso conceber que a água seja XYZ em vez de H2O, mas essa não é uma razão para pensar que não é metafisicamente necessário que a água seja H2O. Mas é um traço distintivo das necessidades metafísicas a priori que não se pode conceber que elas possivelmente não vigorem; é exatamente por isso que se diz que elas são ‘conhecidas a priori’. Se é possível conceber que o universo possivelmente comece a existir incausado, então isto é evidência conclusiva de que “o universo não pode começar incausado” não é uma proposição sintética a priori.

Negar

isto

é

supor

que

este

princípio

causal

é

uma

verdade

necessária

metafisicamente a posteriori, e ninguém, até onde sei, sustentou ou sustenta essa hipótese implausível. Portanto, penso que é racional acreditar que o universo pode começar incausado e , consequentemente, que a objeção baseada no ‘princípio causal’ fracassa. A título de conclusão, eu ressaltaria que mesmo que meus argumentos neste artigo sejam sólidos, isso não implica que Deus não exista. Pois a cosmologia do Big Bang pode ser falsa. Mas mesmo se ela for verdadeira, o ateísmo não se segue, já que há outras objeções a meu argumento que não considerei. Contudo, algumas destas objeções não consideradas foram discutidas em outras ocasiões. Por exemplo, eu defendi[32] que não faz sentido imaginar que Deus sabe, logicamente antes da criação, que se o universo começasse com uma singularidade, esta singularidade emitiria uma configuração de partículas produtora de vida, já que a hipótese de que este contrafactual seja verdadeiro logicamente antes da criação é inconsistente com as propriedades semânticas essenciais dos contrafactuais. Mas há também outras objeções que não considerei em nenhum outro lugar (incluindo, obviamente, as que até agora nem mesmo foram formuladas). Portanto, minha posição final é que, para ser sustentada racionalmente, à conclusão ateísta deste artigo deve atribuído um caráter provisório.[33][34]

Notas: 1. Veja o Bulletin of the Atomic Scientists 8 (1952), 143-146. 2. Veja Richard Swinburne, The Existence of God (Oxford: Clarendon Press, 1979) e Space and Time, 2nd. ed. (New York: St. Martin’s Press, 1982). Swinburne duvida que a previsão

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de um primeiro evento pela cosmologia do Big Bang seja provavelmente verdadeira, mas não obstante mostra como esta previsão pode ser teologicamente interpretada. Veja também John Leslie, ‘Anthropic Principle, World Ensemble, Design’, American Philosophical Quarterly 19 (1982), 141-151, ‘Modern Cosmology and the Creation of Life,’ em E. McMullin (ed.), Evolution and Creation (South Bend: University of Notre Dame Press, 1985), e vários outros artigos. Leslie, é claro, trabalha com uma concepção neoplatônica de Deus, mas seus argumentos são obviamente relevantes para o teísmo clássico. A mais bem elaborada interpretação teísta da cosmologia do Big Bang é a de William Lane Craig. Veja seu The Kalam Cosmological Argument (New York: Harper and Row, 1979), ‘God, Creation and Mr. Davies,’ British Journal for the Philosophy of Science 37 (1986), 163-175, ‘Barrow and Tipler on the Anthropic Principle vs. Divine Design,’ British Journal for the Philosophy of Science 39 (1988): 389-95; ‘What Place, Then, for a Creator?,’ British Journal for the Philosophy of Science, 41 (1990): 473-91; “The Caused Beginning of the Universe: A Response to Quentin Smith,” (1989). 3. Anthony Kenny, The Five Ways (New York: Schocken Books, 1969), p. 66. 4. C. D. Broad, ‘Kant’s Mathematical Antinomies,’ Proceedings of the Aristotelian Society 40 (1955), 1-22. Esta passagem e a passagem de Kenny foram extraídas das páginas 142 e 141-142, respectivamente, de The Kalam Cosmological Argument, de Craig. 5. Veja Fred Hoyle, Astrophysical Journal 196 (1975), 661. 6. W. H. Newton-Smith, The Structure of Time (London: Routledge and Kegan Paul, 1980), p. 111. 7. Quentin Smith, ‘The Anthropic Principle and Many-Worlds Cosmologies,’ The Australasian Journal of Philosophy 63 (1985): 336-348, ‘World Ensemble Explanations’, Pacific Philosophical Quarterly 67 (1986): 73-86, ‘The Uncaused Beginning of the Universe,’ Philosophy of Science 55 (1988), 39-57, ‘A Natural Explanation of the Existence and Laws of Our Universe,’ Australasian Journal of Philosophy 68 (March 1990): 22-43. 8. Veja ‘The Foundation of the General Theory of Relativity’ de Einstein e ‘Cosmological Considerations on the General Theory of Relativity’ em Einstein et al., The Principle of Relativity (London: Dover, 1923). A equação de Einstein expressa Rab – 1/2*R*gab + lamda*gab = (8*pi*G/c2)*Tab Rab é o tensor Ricci da métrica gab, R é o escalar Ricci, lambda é a constante cosmológica (provavelmente zero), c é a velocidade da luz e G é a constante gravitacional de Newton. 9. Alexander Friedmann, ‘Uber die Krummung des Raumes,’ Zeitschrif fur Physik 10 (1922), 377-386; uma tradução deste ratigo aparece em A Source Book in Astronomy and Astrophysics: 1900-1975, eds. by K. R. Lang and O. Gingerich (Cambridge, MA: Harvard

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University Press, 1979). O segundo artigo de Friedmann sobre modelos com curvatura negativa foi publicado originalmente em Zeitschrift fur Physik 21 (1924), 326. As soluções de Friedmann, com a constante cosmológica omitida, são -3*(d2a/dt2 = 4*pi*G*(p+3*P/c2)*a 3*(da/dt)2 = 8*pi*G*pa2 – 3*k*c2 Nestas equações, a é o fator escalar representando o raio do universo num dado instante. da/dt é a taxa de variação de a com o tempo; é a taxa em que o universo se expande ou se contrai. d2a/dt2 é a taxa de variação de da/dt; é a aceleração da expansão ou a desaceleração da contração. G é a constante gravitacional de Newton e c a velocidade da luz. P é a pressão da matéria e p sua densidade. k é a constante que assume um dos seguintes valores: zero para um espaço euclidiano plano, -1 para um espaço hiperbólico ou +1 um espaço esférico. 9A. Veja Penrose, ‘Gravitational Collapse and Space-Time Singularities,’ Physical Review Letters 14 (1965), 57-59; S. W. Hawking, ‘Singularities in the Universe,’ Physical Review Letters 17 (1966), 444-445 e ‘The Occurrence of Singularities in Cosmology. III. Causality and Singularities,’ Proceedings of Royal Society of London A, 300 (1967), 187-201; S. W. Hawking e R. Penrose, ‘Singularities in Homogenous World Models,’ Physical Letters 17 (1965), 246247 e ‘The Singularities of Gravitational Collapse and Cosmology,’ Proceedings of the Royal Society of London A, 314 (1970), 529-548. 10. S. W. Hawking, ‘Theoretical Advances in General Relativity,’ Some Strangeness in the Proportion, ed. H. Woolf (Addison-Wesley, 1980), p. 149. 11. S. W. Hawking, ‘Breakdown of Predictability in Gravitational Collapse,’ Physical Review D, 14 (1976), 2460. 12. Ibid. 13. W. L. Craig, ‘The Caused Beginning of the Universe: A Response to Quentin Smith,’ op. cit., p. 29, n. 2. 14. S. W. Hawking, ibid. 15. P. Davies, The Edge of Infinity (New York: Simon and Schuster, 1981), p. 161. 16. Swinburne, The Existence of God, op. cit., p. 147. A definição completa de Swinburne é que universos ordenados são aqueles exigidos tanto pela beleza natural como pela vida. Cf. p. 146. 17. George Schlesinger, Religion and Scientific Method (Boston: D. Reidel, 1977). Para uma crítica sólida da teodicéia de Schlesinger, veja Keith Chrzan, ‘The Irrelevance of the No Best Possible World Defence,’ Philosophia 17 (1987): 161-167. 18. R. Penrose, ‘Singularities in Cosmology,’ in Confrontation of Cosmological Theories with Observational Data, ed. M. S. Longair (IAU, 1974), p. 264.

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19. W. L. Craig, ‘The Caused Beginning of the Universe: A Response to Quentin Smith,’ op. cit., p. 8. 20. R. Swinburne, Space and Time, op. cit., p. 125. 21. R. Swinburne, The Existence of God, op. cit., p. 130. 22. Ibid., p. 94. 23. Ibid. 24. D. M. Armstrong, What Is A Law of Nature? (Cambridge: University Press: 1983), p. 163. Armostrong rejeita a ideia de que as leis da natureza são metafisicamente necessárias. Alfred J. Freddoso, por outro lado, argumenta que as leis naturais são corretamente representadas por (L). Veja seu ‘The Necessity of Nature,’ em Midwest Studies in Philosophy XI, ed. P. French, et al. (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1986), pp. 215-42. 25. Hilary Putnam, Philosophical Papers, Vol. 2 (Cambridge: University Press, 1975), p. 233. 26. Keith Donnellan, ‘Substance and Individuals,’ APA address, 1973. 27. Nathan Salmon, Reference and Essence (Princeton: University Press, 1981). 28. Paul Coppock, ‘Review of Nathan Salmon’s Reference and Essence’, em The Journal of Philosophy 81 (1984): 261-270. 29. Wesley Salmon, Scientific Explanation and the Causal Structure of the World(Princeton: University Press, 1984); Patrick Suppes, A Probabilistic Theory of Causality (Amsterdam: North-Holland,

1970);

Richard

Otte,

‘Indeterminism,

Counterfactuals,

and

Causation,’ Philosophy of Science 54 (1987): 45-62; David Papineau, ‘Probabilities and Causes’, The Journal of Philosophy 82 (1985): 57-74. 30. W. L. Craig, The Kalam Cosmological Argument, op. cit., p. 148. Itálicos meus. 31. Ibid., p. 145. 32. Quentin Smith, ‘Atheism, Theism and Big Bang Cosmology,’ Australasian Journal of Philosophy 69 (March 1991): 48-66. 33. Esta conclusão ateísta não precisa ser tomada como uma rejeição de uma visão de mundo religiosa (num sentido amplo de ‘religião’). Pois pode-se em vez disso rejeitar a pressuposição tradicional de que se Deus não existe, nada é sagrado. Se o ateísmo é verdadeiro, incontestavelmente ainda haverá algo que é sagrado, nomeadamente a existência do universo. Cf. Quentin Smith, ‘An Analysis of Holiness,’ Religious Studies 24 (1988): 511-528. Além disso, o próprio universo é alvo de ‘emoções religiosas’ num senso amplo. Cf. Quentin Smith, The Felt Meanings of the World: A Metaphysics of Feeling (West Lafayette: Purdue University Press, 1986). 34. Gostaria de agradecer a William P. Alston e a um resenhista anônimo por críticas úteis a uma versão preliminar deste artigo, embora considerações editoriais e de espaço exijam que minhas respostas a algumas de suas críticas sejam reservadas para publicação futura.

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