A Arte E A Vida Social_george Plekhanov.pdf

  • Uploaded by: Beijo Se Liga
  • 0
  • 0
  • January 2021
  • PDF

This document was uploaded by user and they confirmed that they have the permission to share it. If you are author or own the copyright of this book, please report to us by using this DMCA report form. Report DMCA


Overview

Download & View A Arte E A Vida Social_george Plekhanov.pdf as PDF for free.

More details

  • Words: 73,351
  • Pages: 208
Loading documents preview...
A ARTE E A VIDA SOCIAL e

CARTAS SEM ENDERÊÇO

Revisão ortográfica EUCLIDES R. ROCHA

Capa de MARGUERITA BORNSTEIN

EMTôRA b r a s i l i e n s e sot- an. Rua Barão de Itapetininsa, 93 — 12." anda* Slo

РАШЛ



BRASIL

GEORGE

PLEKHANOV

A ARTE E A

VIDA S O C I A L 1.* edição: 1964 2 a edição

Tradução de EDUARDO SUCUPIRA FILHO

EDITÒRA

BRASILIENSE 1969

TÍTULO DO OKIGIN Ali ESPANHOL: E L ARTE Y L A VIDA SOCIAL

(Edicionee en Lenguae Extranjeraa — Moscou)

Introdução Na herança literária de George Plekhanov, eminente teórico e propagandiste do marxismo, ocupam lugar importante as obras sobre problemas de estética. O mérito histórico de Plekhanov na investigação dos problemas da teoria e história da arte consiste em que foi o primeiro marxista russo que aplicou fecundamente a teoria de Marx, sua concepção materialista da história, à interpretação das manifestações da arte. Uma de suas primeiras obras nesse campo são Cartas sem Endereço, onde investiga o problema da aparição e do desenvolvimento da arte nas fases iniciais da sociedade humana. A análise de abundantes dados concretos referentes aos períodos iniciais do desenvolvimento da humanidade lhe permite chegar à conclusão de que na sociedade primitiva a arte dependia diretamente da economia e que a fonte primária das necessidades espirituais dos homens (compreendidas as estéticas) reside nas condições materiais de vida. No trabalho — A Arte e a Vida Social — aparecido posteriormente, Plekhanov examina problemas tais como o lugar e o papel da arte na sociedade e a relação que guarda com o movimento de libertação e o realismo, método artístico mais fecundo. No mesmo artigo, submete a um crítica circunstanciada a teoria da "arte pela arte" e lhe contrapõe a missão social da arte.

O trabalho que oferecemos à atenção dos leitores é o texto reelaborado de uma conferência lida por mim, em russo, em novembro do presente ano de 1912, em Liège e em Paris. Por essa razão, conserva até certo ponto sua forma de leitura. No final da segunda parte serão examinadas as objeções que o Sr. Lunatcharski me dirigiu, publicamente, em Paris, no que respeita ao critério da beleza. Em sua oportunidade, respondi verbalmente a ditas objeções. Agora considero conveniente deter-me a examiná-las na imprensa. G. Plekhanov

A ARTE E A VIDA SOCIAL (1)

(1) Êste trabalho foi publicado inicialmente em novembro e dezembro de 1912 e janeiro de 1913. Posteriormente, foi incluído no tomo XIV da edição póstuma das obras completas de G. V. Flekbanov.

I O problema da relação entre a arte e a vida social desempenhou sempre um papel muito importante em todas as literaturas que alcançaram certo grau de desenvolvimento. Na maioria dos casos, esse problema tem sido resolvido e se resolve em dois sentidos diametralmente opostos. Alguns costumavam dizer e dizem: o homem não foi feito para o sábado, mas o sábado para o homem; a sociedade não foi feita para o artista, mas o artista para a sociedade. A arte deve contribuir para o desenvolvimento da consciência humana, para a melhoria do regime social. Outros rechaçam em bloco essa opinião. Segundo eles, a arte é um objetivo em si; convertê-la em um meio de alcançar outros objetivos que lhe são estranhos, mesmo que sejam os mais nobres, eqüivale a rebaixar o mérito da obra de arte. A primeira dessas duas opiniões teve sua brilhante expressão em nossa literatura avançada, da década de 60(1). Isso sem falar de Píssarev(2), que por sua extrema unilateralidade, converteu-a quase em uma caricatura, podemos (1) Referência aos democratas revolucionários Tchernishevski. Dobroliúbov, Píssarev, Saltikov-Scbedrin, Nekrássov e outros, inspiradores intelectuais do movimento revolucionário emancipador da década de 60, do século passado. Êsses "ilustrados" — que conferiam extraordinária importância ao papel das idéias avançadas na transformação da sociedade — exigiam que a arte participasse da luta de libertação. (2) D. I. Píssarev (1840-1868): democrata revolucionário russo, crítico e filósofo materialista. Em seus artigos de crítica literária pronunciava-se firmemente contra a teoria artepurista. A afirmação de Plekhanov de que ôle fôra defensor extremadamente unilateral e simplista da arte utilitária não é justa. Píssarev, que se opunha frontalmente a uma "arte pela arte" divorciada da realidade e que propugnou com tôda a energia por uma arte de profundo conteúdo, penetrada das idéias avançadas da época, jamais negou o valor estético das obras artísticas e literárias.

mencionar Tchernishevski e Dobroliúbov como seus mais acreditados defensores na crítica daqueles tempos. Em um de seui primeiros artigos de crítica, Tchernishevski dizia: "A arte pela arte é hoje em dia uma idéia tão estranha como a riqueza pela riqueza, a ciência pela ciência, etc. Todas as atividades humanas devem servir ao homem se não se quer que sejam vãs e ociosas ocupações; a riqueza existe para ser utilizada pelo homem; a ciência, para ser seu guia; a arte também deve ser de alguma utilidade essencial, e não servir de prazer estéril." Segundo Tchernishevski, a importância das artes, e em especial da mais séria delas, a poesia, reside na massa de conhecimentos que se difundem na sociedade. "As artes, diz êle, ou melhor a poesia (apenas ela, pois as demais artes muito pouco fazem nesse sentido ) difundem na massa dos leitores uma quantidade enorme de conhecimentos e — o que é mais importante — faz-lhes conhecer os conceitos elaborados pela ciência. Daí, a formidável importância da poesia para a vida"(3). A mesma idéia se expressa em sua famosa dissertação — As Relações Estéticas entre a Arte e a Realidade. De acordo com a décima sétima tese, a arte não só reproduz a vida, mas a explica; suas obras têm amiúde "o valor de um juízo sobre os fenômenos da vida". Para Tchernishevski e para seu discípulo Dobroliúbov, a principal significação da arte consiste em reproduzir a vida e o ajuizar de seus fenômenos(4). Os críticos literários e os teóricos da arte não eram os únicos em sustentar essa opinião. Em vão dizia Nekrássov que sua musa era "a musa da vin(3) N. G. Tchernishevski — Obras Completas, ed. de 1906 t. I, págs. 33-34. Trata-se do artigo — Acêrca da Poesia. As Obras de Aristóteles (Ver Obras Filosóficas Escolhidas, em três tomos, Gospolitizdat, t. I, pág. 313.). (4) Esta opinião é em parte uma repetição e em parte um desenvolvimento ulterior do ponto de vista adotado por Bielinski nos últimos anos de sua vida. Em seu artigo Visão da Literatura Russa de 1847, Bielinski dizia: "O supremo e mais sagrado dos interêsses da sociedade reside em seu próprio bem-estar, igualmente distribuído entre todos os seus membros. O caminho que conduz a este bem-estar é a consciência, a que a arte pode contribuir, tanto quanto a ciência. A ciência e a arte são igualmente necessárias, e nem a ciência pode substituir a arte, nem a arte a ciência". Mas a arte só pode desenvolver a consciência dos homens "ajuizando os fenômenos da vida". Assim é que a dissertação de Tchernishevski vem coincidir com a última opinião de Bielinski sobre a literatura russa.

gança e da dor". Em uma de suas poesias, o cidadão dirigiu-se ao poeta com estas palavras: E tu, poeta, eleito dos deuses, arauto de verdades eternas: Não сreias que quem não tem pão não merece tua lira profética; não creias que os homens caíram pra sempre. Deus não morreu na alma dos homens, e os soluços de um coração piedoso sempre serão ouvidos por êle. Sê cidadão, e servindo à arte vive para o bem de teu próximo. Submete teu gênio ao sentimento de amor por todo o universo(5). Com tais palavras, o cidadão Nekrássov exprimiu sua própria interpretação da missão da arte. E assim, exatamente, era como a entendiam também as mais destacadas figuras das artes plásticas, por exemplo, da pintura; Píerov e Kramskói anelavam, como Nekrássov, ser "cidadãos" servindo à arte; como êle, "ajuizavam em suas obras os fenômenos da vida"(6). O ponto de vista oposto sobre a missão da criação artística teve poderoso defensor na pessoa de Pushkin, à época de Nicolau I. Todo o mundo conhece, naturalmente, suas poesias: A Plebe e Ao poeta. O povo, que exigiu do poeta que melhore com seus cantos os costumes da sociedade, recebe dêle uma borrifada depreciativa e até, pode-se dizer, insolente: Fora! Ao pacífico em nada podeis

poeta interessá-lo.

Estais petrificados no vício; a voz da lira não vos despertará. Sois repulsivos como sepulturas; por vossa estultície e maldade tendes tido até agora chibatas, ergástulos e cadafalsos. Que mais quereis, escravos insensatos? (5) Extrato do trabalho de N. A. Nekrássov, O Poeta e o Cidadão. ( 6 ) A carta de Kramskói a V. V. Stássov, escrita de Menton, a 30 de abril de 1884, mostra a grande influência que sobre êle exerciam as idéias de Bielinski, Gogol, Fiedótov, Ivánov, Tchernishevski, Dobro-

Nos versos que seguem, tantas vêzes citados, Pushkin expõe o conceito da missão do poeta: Não nascemos para a agitação da vida, nem para o combate ou a ambição; nascemos para a inspiração, para as orações e as doces melodias(7). Aqui temos a chamada teoria da arte pela arte em sua expressão mais nítida. Não por acaso os adversários do movimento literário da década de 60 citavam Pushkin com tanto prazer e freqüência(8). Qual dessas duas opiniões diametralmente opostas sobre a a missão da arte deve considerar-se acertada? Antes de intentar resolver o problema, é preciso advertir que está mal formulado. Como todas as questões análogas, não pode ser considerado do ponto de vista do "dever". Se os artistas de determinado país fogem em determinado momento da "agitação da vida e do combate", e em outros momentos, pelo contrário, procuram ansiosamente o combate e a agitação que inevitavelmente o acompanha, isso não se deve liúbov e Píerov (Ivã NikoláievUch Kramskói, sua vida, sua correspondência e seus artigos de crítica de arte, São Petersburgo, 1888, pág. 487). É preciso advertir que os juízos acêrca dos fenômenos da vida que encontramos nos artigos de crítica de I. N. Kramskói são muito menos claros que os que nos oferece G. I. Uspenki, sem falar de Thernishevski e Dooroliúbov. (7) Êstes versos e os anteriores fazem parte da poesia de Pushkin, O Poeta e a Multidão. (8) A poesia — O Poeta e a Multidão — (publicada a princípio sob o título de A Plebe) e outras deixadas por Plekhanov (como O Poeta e Ao Poeta) tinham um caráter marcadamente polêmico. O próprio Plekhanov explicou de modo convincente o sentido de tais ataques de Pushkin à aristocracia cortesã e aos círculos governamentais, que procuravam submeter a arte do grande poeta a seus interêsses de classe. Na década de 60, os críticos liberais, que defendiam uma suposta independência da arte frente à vida social, apelavam para a autoridade de Pushkin em sua luta contra a democracia revolucionária. Interpretando errôneamente o sentido das poesias mencionadas, tratavam de demonstrar que Pushkin era um adepto da "arte pura". Os decadentistas russos de fins do século passado e começos do atual sustentavam o mesmo ponto de vita.

a que alguém imponha de fora, diferentes obrigações ("deveres") em épocas diferentes, mas a que em determinadas condições sociais apresentem certo estado de ânimo; e em condições outras, apresente-se diversamente. Por conseguinte, para focalizar, como se deve, a questão, não devemos encará-la do ponto de vista do que deveria ser, mas do ponto de vista do que foi e do que é. Assim, pois, apresentaremos a questão do seguinte modo: Quais são as condições sociais mais importantes dentre as que determinam nos artistas e nas pessoas quê se interessam vivamente pela criação artística o aparecimento e a fixação da tendência a fazer artepurismo? Quando tivermos a solução desse problema, não nos será difícil resolver outro problema, estreitamente relacionado com aquele, e não menos interessante: Quais são as condições sociais mais importantes dentre as que determinam nos artistas e nas pessoas que se interessam vivamente pela criação artística a aparição e fixação da chamada concepção utilitarista da arte, isto ê, a tendência a atribuir a suas obras "a significação de uma avaliação dos fenômenos da vida"? A primeira questão obriga-nos a recordar uma vez mais a figura de Pushkin. Houve época em que Pushkin não defendia a teoria da arte pela arte. Houve época em que não refugia ao combate, e, pelo contrário, procurava-o. Foi a época de Alexandre I. Então, êle não pensava que o "povo" devia contentar-se com chibata, ergástulos e cadafalsos. Ao contrário, em sua ode Liberdade exclamava indignado: AM Para qualquer lado que volta o olhar, látegos por toda parte, por toda parte cadeias, a ignomínia de leis nafandas, lágrimas impotentes de escravidão; por toda a parte o poder arbitrário na tenebrosa noite dos preconceitos, etc. Posteriormente, suas idéias sofreram radical mudança. Na época de Nicolau I, adotou a teoria da arte pela arte. A que se deveu mudança tão profunda?

O comêço do reinado de Nicolau I foi assinalado pela catástrofe do 14 de dezembro(9), que exerceu enorme influência sobre o desenvolvimento ulterior de nossa "sociedade" e sobre o próprio destino de Pushkin. Com os derrotados "decembristas" desapareceram de cena os representantes mais cultos e avançados da "sociedade" de então, o que não deixou de rebaixar consideravelmente seu nível moral e intelectual. "Ainda que eu então fôsse muito jovem — diz Herzen — recordo-me que com a ascenção de Nicolau I ao trono, a alta sociedade caiu a olhos vistos na degradação e submergiu ainda mais na abjeção e no servilismo. A independência aristocrática e a intrepidez cavalheiresca dos tempos de Alexandre desapareceram no ano de 1826(10). Era difícil a um homem sensível e inteligente viver em uma sociedade como aquela. "Em volta — diz Herzen em outro artigo — tudo era soledade, silêncio; nem um eco, nem um sentimento humano, nem uma esperança. E por acréscimo, tudo era extraordinariamente chato, néscio, mesquinho. O olhar que procurava simpatia não encontrava senão ameaça ou temor; ou fuga ou agravo". Nas cartas da época em que foram escritas A Plebe e Ao Poeta, Pushkin queixa-se do aborrecimento e da vulgaridade imperantes em nossas capitais. Mas o que fazia sofrer não era somente a grosseria da sociedade que o rodeava; amargavam-lhe também a vida suas relações com as "altas esferas". Na Rússia estava muito difundida a enternecedora lenda de que, em 1826, Nicolau I "perdoou" generosamente a Pushkin seus "juvenis devaneios" políticos e até se converteu em seu magnânimo protetor. Mas os fatos não ocorreram assim. A realidade foi que Nicolau e seu braço direito nessa classe de assuntos, o chefe de polícia, A. J. Benkendorf, nada "perdoaram" a Pushkin, e a "proteção" de ambos manifestou-se através de uma vasta série de insuportáveis humilhações. "Pushkin — informava Benkendorf a Nicolau, em 1827 — depois de ( 9 ) O autor refere-se à insurreição armada dos revolucionários aristocratas contra a autocracia czarista, a 14 de dezembo de 1825, em São Petersburgo ( de onde vem o nome de decembristas, aplicado aos insurretos). Após o esmagamento da insurreição, seus organizadores foram executados, e desterrados para a Sibéria muitos dos que dela participaram. (10) Referência ao reinado do Imperador Alexandre I (18011825). Extrato do livro de Herzen, Memórias e Pensamentos, Moscou, 1947, pág. 290.

haver falado comigo, manifestou no clube inglês grande entusiasmo por Vossa Majestade e obrigou as pessoas que comiam com êle a brindar pela saúde de Vossa Majestade. Nem por isso deixa êle de ser um malicioso notório, mas se conseguirmos dirigir-lhe a pena e as palavras, isso será de utilidadeA última frase desta passagem revela-nos o segredo da "proteção" dispensada a Pushkin. Quiseram-no converter num propagandista do regime. Nicolau I e Benkendorf se haviam proposto orientar a musa de Pushkin, rebelde em outros tempos, no sentido da moral oficial. Quando, depois da morte de Pushkin, o Marechal-de-Campo Paskévitch escreveu a Nicolau — "lamento o desaparecimento de Pushkin como escritor" — o czar respondeu: "comparto integralmente de tua opinião, mas pode-se dizer muito bem que nêle choramos o futuro e não o passado".(ll) Isso quer dizer que êsse inesquecível imperador não apreciava o desaparecido poeta pelas grandes obras que havia escrito durante sua curta vida, mas pelo que podia haver escrito sob a oportuna vigilância e direção da polícia. Nicolau esperava de Pushkin obras "patrióticas", segundo o estilo da peça A mão do Altíssimo Salvou a Pátria, de Kúkolnik. Até V. A. Zhukovski, poeta extramundo, e bom cortesão, tentou fazê-lo entrar em razão e infundir-lhe o respeito pela moral. Em carta datada de 12 de abril de 1826 diz: "Nossos jovens (isto é, tôda a geração que está amadurecendo), dada a má educação que lhes não oferece qualquer apoio ante a vida, conhecem teus rebeldes pensamentos, envoltos no encanto da poesia; a muitos causou dano irreparável. Isso deve surpreender-te. O talento não é nada. 0 essencial é a grandeza moral. . . "(12) Convenham comigo que ante tal situação, trazendo aos ombros as cadeias de tal tutela e obrigado a ouvir tais recomendações, era perfeitamente natural odiar a "grandeza" que a arte podia trazer, lançando em cara dos conselheiros e protetores estas palavras: Fora! Ao pacífico poeta em nada podeis interessá-lo. (11) P. E. Schógolev, Pushkin, Ensaios, Sâo Petersburgo, 1912, págs., 357. (12) Obra cit., pág., 241.

Em outros termos: dada a situação, era natural que Pushkin se tornasse partidário da teoria da arte pela arte e dissesse ao poeta, dirigindo-se a si mesmo: És soberano. Segue o livre caminho a que te impele a inteligência livre. Melhora os frutos de teus caros pensamentos, sem pedir recompensa por tuas nobres empresas. D. I. Píssarev objetar-me-ia que o poeta de Pushkin não dirige essas duras palavras a seus protetores, mas ao "povo" (13). Mas, o verdadeiro povo se encontrava completamente fora do campo visual da literatura de então. A palavra povo tem para Pushkin a mesma significação da palavra "multidão", freqüentemente usada por êle e que, naturalmente, não se refere às massas trabalhadoras. Em Os Ciganos, Pushkin assim define os moradores das cidades opressivas: Envergonham-se do amor y afugentam as idéias, traficam com a liberdade, inclinam ante os ídolos as cabeças e pedem dinheiro e cadeias. Ё difícil supor que essa caracterização se refira, por exemplo, aos artesãos das cidades. Se tudo isso é exato, ante nós desenha-se a seguinte conclusão: A tendência à arte pela arte surge quando existe um divórcio entre os artistas e o meio social que os rodeia. Podem dizer-nos, naturalmente, que o exemplo de Pushkin é insuficiente para fundamentar tal conclusão. Não rejeito nem discuto. Citarei outros exemplos da história da literatura francesa, isto é, da literatura de um país cujas correntes intelectuais encontraram pelo menos até meados do século passado, a mais vasta simpatia em todo o continente europeu. Os românticos franceses da época de Pushkin também eram, salvo poucas exceções, ardentes partidários da arte pela arte. Teófilo Gautier, talvez o mais conseqüente deles, apostrofava nos seguintes termos os defensores da concepção utilitarista da arte: ( 13 ) Extrato da poesia de Pushkin: Ao Poeta. 18 George Plekhanov

"Não, imbecis; não, cretinos e ignorantes: um livro não serve para fazer sopa de gelatina; uma novela não é um par de botas sem costuras. . . Pelo bandulho de todos os papas passados, presentes e futuros, não, e duzentas vezes não!. . . Sou daqueles para quem o supérfluo é o necessário; meu amor pelas coisas e pessoas é inversamente proporcional aos serviços que me prestam"(14). 0 mesmo Gautier, em nota biográfica sobre Baudelaire, dirigia grandes elogios ao autor de Flores do Mal, por haver este defendido "a autonomia absoluta da arte e não haver permitido que a poesia pudesse ter outro objetivo que não ela mesma e outra missão que não a de despertar na alma do leitor a sensação do belo no sentido absoluto da palavra" (autonomie absolue de Vart et qu'il re' admettait pas que la poésie eût d'autre but qu'elle même et d'autre mission à remplir que d'exciter dans l'âme du lecteur Ut sensation du beau; dans le sens absolu du terme). Pela seguinte declaração de Gautier, vemos о mal que lhe causavam ao espírito a "idéia do belo" e as idéias sociais e políticas: "Renunciaria alegremente (très joyeusement) a meus direitos de francês e de cidadão para ver um quadro autêntico de Rafael ou uma formosa mulher nua: a Princesa Borghese, por exemplo, depois de posar para Casanova, ou Júlia Grisi quando entra no banho"(15). Não se pode ir mais longe. Não obstante, todos os parnasianos(ló) certamente estariam de acordo com Gautier, em que pese a que talvez alguns dêles formulassem certas reservas à forma demasiado paradóxica por que se exigia, sobretudo nos anos de juventude, a "autonomia absoluta da arte". A que se deve semelhante estado de ânimo dos românticos e parnasianos franceses? Acaso também êles estavam divorciados da sociedade que os rodeava? Em 1857, em artigo escrito por motivos da representação no Théâtre Français da obra de Vigny — Chatterton — Teófilo (14) Prefácio à novela Mademoiselle de Maupin. (15) Obra cit., ibid. ( 16 ) Grupo de poetas franceses que publicavam o almanaque O Parnaso Contemporâneo (1866-76). Formavam parte desse grupo, Leconte de Lisle, J. M. Heredia e outros poetas partidários da arte pela arte. Foram os precursores dos decadentistas.

Gautier lembrava a primeira representação da peça, que tivera lugar em 12 de fevereiro de 1835. Eis o que dizia: "A platéia, diante da qual Chatterton declamava, estava repleta de pálidos adolescentes de cabelos compridos, os quais criam firmemente que não havia ocupação melhor do que escrever versos ou pintar quadros. . . e olhavam os burgueses com um desprezo que dificilmente podia equiparar-se ao que as rapôsas(ll) de Heidelberg e Iena sentiam pelos filisteus"(18). Quem eram esses "burgueses" desprezíveis? "Os burgueses — responde Gautier — eram quase todo o mundo: os banqueiros, os agentes da Bolsa, os notários, os negociantes, os tendeiros, etc., todos os que não formavam parte do misterioso cenáculo e ganhavam prosaicamente a vida"(19). Eis outro testemunho. Nos comentários a uma de suas Odes Funambulescas Teodoro de Banville reconhece que ele compartia também dêsse ódio ao "burguês". E explica quais eram os cognominados com êsse nome pelos românticos: na linguagem dos românticos, "burguês" era o "homem que não admirava senão as peças de cinco francos, que não tinha outro ideal que a conservação da pele e que, em poesia, amava ùnicamente o romance sentimental, e nas artes plásticas, a litografia em côres"(20). E ao recordar isso, Banville rogava a seus leitores que não se assombrassem de que suas Odes Funambulescas — as quais, notem bem, foram publicadas no último período do Romantismo — tratem de canalhas a pessoas cujo único delito era levar vida burguesa e não prosternar-se ante os gênios românticos. Êsses testemunhos mostram de modo assaz convincente que os românticos se encontravam realmente divorciados da sociedade burguesa que os rodeava. Certamente, tal divórcio não constituía qualquer perigo para as relações sociais burguesas. Os jovens burgueses que formavam parte dos círculos românticos não se opunham absolutamente a ditas relações sociais, mas ao mesmo tempo, sentiam-se indignados ante a abjeção, o tédio e a vulgaridade da existência burguesa. A nova arte, que tanto os entusiasmava, era para êles um refúgio contra essa abjeção, (17) alemães. (18) (19) (20) 20 George

Alcunha dos estudantes do primeiro ano nas universidades Histoire du Romantisme, Paris, 1895, págs., 153-54. Ibid., pág., 154. Les Odes Funambulesques , Paris, 1858, pág., 294-295. Plekhanov

tédio e vulgaridade. Nos últimos anos da restauração e na primeira metade do reinado de Luís Filipe, isto é, na melhor época do Romantismo, havia-lhes sido mais difícil acostumarem-se à abjeçao, ao prosaísmo e ao tédio burgueses, porquanto a França acabava de passar pelas terríveis tormentas da grande revolução e da época napoleônica que agitaram profundamente as paixões humanas. Quando a burguesia passou a ocupar posição dominante na sociedade e deixou de sentir-se inflamada pelo fogo da luta libertadora, à nova arte não restou senão idealizar a negação do modo de vida burguês. A arte romântica foi justamente essa idealização. Os românticos esforçavam-se por exprimir repulsa à moderação e ao escrúpulo burgueses, não só nas obras de arte, mas também na atitude. Já ouvimos de Gautier que os jovens que enchiam a platéia na primeira representação de Chatterton usavam cabelos compridos. Quem não ouviu falar do jaleco vermelho do próprio Gautier, motivo de escândalo entre a "gente de bem"? Os trajes fantásticos e os cabelos compridos eram recursos utilizados pelos jovens românticos para se contraporem aos odiados burgueses. A palidez do rosto era também uma espécie de protesto contra a sociedade burguesa(21). "Naquele momento — diz Gautier — era moda na escola romântica possuir-se um tom pálido, lívido, verdoso, e mesmo um pouco cadavérico. Isso dava um ar fatal, byroniano, como de pessoa atormentada pelas paixões e os remorsos. As mulheres sensíveis achavam isso interessante "(22). Gautier diz, (21)Alfredo de Musset descreve a situação, do seguinte modo: "Dès lors, se formèrent comme deux camps: d'une part les esprits exaltés, souffrants; toutes les âmes expansives qui ont besoin de Vnfini plièrent la tête en pleurant ; ils s'enveloppèrent de rêves maladifs, et l'on ne vit plus que de frêles roseaux SUT un océan d'amertume. D'une part, les hommes de chair restèrent debout, inflexibles, au milieu des jouissances positives, et il ne leur prit d'autre souci que de compter l'argent qu'us avaient. Ce ne fut qu un sanglot et un éclat de rire, l'un venant ae l'âme, Vautre du corps'. (Desde então se formaram dois campos: de um lado, os espíritos exaltados, doloridos; tôdas as almas expansivas que anelam o infinito inclinaram suas cabeças chorando; envolveram-se em sonhos enfermiços, e nesse oceano de amargura não se viram senão uns frágeis ramos. De outro lado, os homens materiais permaneceram de pé, inflexíveis, em meio aos gozos positivos, sem outra preocupação que a de contar o dinheiro que possuíam. Um soluço e uma gargalhada; aquele procedente da alma; esta, do corpo) (La Confession d'un Enfant du Siècle , pág. 10). (22) Obra cit., pág. 31.

ainda, que os românticos dificilmente perdoavam a Victor Hugo seu apuro no trajar, e nas conversações íntimas lamentava-se, amiúde, essa debilidade do genial poeta, que o "ligava à humanidade e inclusive à burguesia"(23). Em geral, é preciso assinalar que os esforços por adquirir esta ou outra aparência externa refletem sempre as relações sociais de uma época. Sobre êsse tema poder-se-ia escrever um interessante estudo sociológico. Dada sua atitude frente à burguesia, os jovens românticos não podiam deixar de indignar-se ante a idéia de uma "arte utilitarista". Converter a arte em algo útil era, a juízo dêles, obrigá-la a servir àqueles mesmos burgueses que tanto desprezavam. É o que explicam as insolentes facécias que acabo de citar de Gautier contra os partidários da arte utilitarista, aos quais tacha de "imbecis, cretinos, ignorantes", etc. Isso explica também o paradoxo de que o valor atribuído por ele às pessoas e às coisas fôsse inversamente proporcional à sua utilidade. Todas essas pilhérias e paradoxos têm exatamente a mesma significação que as palavras de Pushkin: Fora! Ao pacífico poeta em nada podeis interessá-lo. Os parnasianos e os primeiros realistas franceses (os Goncourt, Flaubert e outros) também sentiam desprêzo infinito pela sociedade burguesa que os rodeava. Êles também lançavam constantemente impropérios contra os odiados "burgueses". E se publicavam suas obras, não era, segundo diziam, para um público vasto, mas tão-sòmente para uns quantos eleitos, "para amigos ignorados", como dizia Flaubert em uma de suas cartas. Segundo o que pensavam, só um escritor de mediano talento podia agradar ao grande público. Leconte de Lisle cria que o grande êxito de um escritor era sinal de inferioridade intelectual. Releva dizer que os parnasianos, como os românticos, eram partidários incondicionais da teoria da arte pela arte. Poderíamos citar numerosos exemplos análogos, mas não é necessário. Está suficientemente claro que a tendência dos artistas ao artepurismo surge, espontaneamente, quando êstes se encontram divorciados da sociedade que os rodeia. Não é demais definir em detalhe a razão dêsse divórcio. (23) Ibid., pág. 32. 22 George Plekhanov

Em fins do século XVIII, na época imediatamente anterior à grande revolução(24), os artistas franceses de idéias avançadas também se encontravam divorciados da "sociedade" de seu tempo. Davi e seus amigos estavam contra o "velho regime". E o divórcio era evidentemente irremediável, porque a conciliação com o velho regime era inteiramente impossível. Ainda mais: esse divórcio era imcomparàvelmente mais profundo que o existente entre os românticos e a sociedade burguesa: Davi e seus amigos queriam a supressão do velho regime, ao passo que Teófilo Gautier e correligionários, como já disse mais de uma vez, nada tinham contra as relações sociais burguesas, e seu único desejo era que o regime burguês deixasse de engendrar os vulgares costumes burgueses(25). Insurgindo-se contra o velho regime, Davi e seus amigos sabiam perfeitamente que atrás dêles se avigorava aquêle terceiro estado que em breve, segundo a célebre expressão do Abade Sieyés(26), haveria de ser tudo. Por conseguinte, o sentimento de divórcio para com o regime imperante ia acompanhado de um sentimento de simpatia para com a nova sociedade que se estava gerando nas entranhas da velha sociedade e se dispunha a substituí-la. Em troca, nos românticos e parnasianos, vemos algo bem diferente: não esperam nem desejam mudanças no regime social da França de sua época. Por isso, o divórcio com a sociedade que os rodeia é absolutamente irremediável(27). (24) Referência à Revolução Francesa (1789). (25) Teodoro de Banville diz abertamente que os ataques dos românticos contra os "burgueses" não se referiam em absoluto à burguesia ccrmo classe social ( Les Odes Funambulesques , Paris, 1858, pág. 294). Essa sublevação conservadora contra os "burgueses", típica dos românticos e que de modo algum se fazia extensiva aos fundamentos do regime burguês, foi interpretada por alguns . . . teóricos russos contemporâneos (Ivanov-Ruzúmnik, por exemplo) como uma luta contra o espírito burguês, que por sua amplitude reduz consideràvelmente a luta social e política do proletariado contra a burguesia. Deixo que o leitor julgue por si a profundidade de tal interpretação. Ela mostra em realidade que os que falam da história do pensamento social russo nem sempre, desgraçadamente, se dão ao trabalho de estudar previamente a história do pensamento no ocidente da Europa. (26) Referência à famosa frase do Abade Sieyés, em seu folheto, Que ê o Terceiro Estado?, publicado em 1789: Que é o terceiro estado? Nada. Que deve ser? Tudo. (27) O estado de ânimo dos românticos alemães distingue-se pelo mesmo divórcio irremediável entre êles e o meio social que os rodeia, como o demonstra muito bem Brandese em seu livro Die Romantische

Nosso Pushkin, tampouco, esperava qualquer mudança da Rússia de então, e pode-se dizer que na época de Nicolau I até deixou de desejá-la. Daí, o pessimismo que lhe dominava as idéias acerca da vida social. Parece-me que agora posso completar minha conclusão e dizer: A tendência à arte pela arte dos artistas e das pessoas que se interessam vivamente pela criação artística surge à base de seu divórcio irremediável com o meio que os rodeia. Mas isso não é tudo. O exemplo de nossos homens da década de 60 que acreditavam firmemente no triunfo próximo da razão, assim como Davi e seus amigos, que acreditavam na mesma coisa com idêntica firmeza, mostra-nos que: A chamada concepção utilitarista da arte, isto é, a tendência a atribuir às obras a significação de uma avaliação dos fenômenos da vida, e o alegre desejo — que sempre acompanha dita tendência — de participar das lutas sociais, surge e se fixa quando existe simpatia recíproca entre uma parte considerável da sociedade e as pessoas que sob forma mais ou menos ativa se interessam pela criação artística, O fato seguinte demonstra, sem margem de dúvidas, até que ponto isso é verdadeiro. Quando estalou a tormenta vivificadora da revolução de fevereiro de 1848, muitos artistas franceses, partidários da teoria da arte pela arte, rechaçaram-na decididamente. Inclusive Baudelaire, a quem Gautier haveria de citar- depois como o exemplo de artista firmemente convencido da necessidade de autonomia absoluta da arte, começou desde o primeiro momento a editar a revista revolucionária Le Salut Public. Ë bem verdade que a revista logo deixou de circular, mas ainda em 1852, no prefácio a Chansons, de Pedro Dupont, Baudelaire qualificava de pueril a teoria da arte pela arte e proclamava que a arte devia perseguir fins sociais. Tão somente o triunfo da contraSchule in Deutschland, segunda parte de sua obra Die Hauptströmungen der Litteratur des 19-ten Jahrhundertes.

-revolução fêz com que Baudelaire e outros artistas de idéias análogas voltassem definitivamente à "pueril teoria da arte pela arte." Leconte de Lisle, um dos futuros astros do "parnasianismo", mostrou com extraordinária clareza o sentido psicológico dessa volta, no prólogo a seus Poèmes Antiques, cuja primeira edição veio à luz em 1852. Nêle diz que a poesia já não engendrará aç5es heróicas nem inspirará virtudes sociais, porque agora, como em tôdas as épocas de decadência literária, a língua sagrada só pode exprimir mesquinhas impressões pessoais. . . e já não está apta a orientar o homem(28). Dirigindose aos poetas, Leconte de Lisle diz que o gênero humano sabe agora mais do que êles, que em certa época foram seus mestres (29). Segundo o futuro parsaniano, o papel da poesia consiste agora em "dar vida ideal a quem já não tem vida real"(30). Nessas profundas palavras revela-se o mistério psicológico da tendência à arte pela arte. Teremos ocasião de voltar mais uma vez ao citado prefácio de Leconte de Lisle. Para terminar êste aspecto da questão, direi ainda que qualquer poder político prefere a concepção utilitária da arte, sempre e quando, é claro, se interesse por essa matéria. Isso se compreende facilmente: o poder político está interessado em pôr tôdas as ideologias a serviço da causa que êle mesmo serve. E como o poder político, às vêzes revolucionário, é, na maioria dos casos, conservador e até francamente reacionário, êsse único fato mostra-nos que não devemos crer que a concepção utilitarista da arte seja sustentada sobretudo pelos revolucionários ou, em geral, pelas pessoas de idéias avançadas. A história da literatura russa mostra com grande eloqüência que sequer nossos conservadores lhe tinham aversão. Eis alguns exemplos: Em 1814, apareceram as três primeiras partes da novela de V. T-

Narezhni — Gil Brás Russo ou As Aventuras do Gavrilla Simonovitch Christiakov( 31). A novela foi imediatamente, por ordem do ministro da Instrução Conde de Razumovski, que por êsse motivo expôs a opinião acerca da atitude da literatura ante a vida:

Príncipe proibida Pública, seguinte

(28) Poèmes Antiques, Paris, prefácio, pág. VII. (29) Obra cit., pag. IX. (30) Ibid., pág. XI. (31) V. T. Narezhni (1780-1825) - Escritor russo. Na novela aludida apresenta uma imagem satírica da sociedade aristocrática, assim como a vida e os costumes dos senhores feudais.

"Acontece comumente que os autores de novelas, mesmo tratando, aparentemente, de combater os vícios, apresentam-nos com tais cores ou os descrevem com tal minuciosidade que, por esse mesmo fato, fazem com que os jovens se sintam atraídos por vícios dos quais conviria não falar. Qualquer que seja o mérito literário das novelas, estas só podem ser publicadas se têm em vista um fim verdadeiramente moral." Já se vê como Razumovski considerava que a arte não pode ser um objetivo em si. Isso mesmo era o que opinavam os serviçais de Nicolau I que, por sua posição oficial, estavam obrigados a adotar certa atitude perante a arte. Estarão os leitores lembrados de que Benkendorf procurava levar Pushkin ao bom caminho? As autoridades, tampouco, deixaram de lado a Ostrovski. Em março de 1850, quando foi publicada sua comédia, Entre Amigos nos Entendemos, e certos amantes "ilustrados" da literatura.. . e do comércio começaram a temer que a obra ofendesse aos mercadores, o ministro de Instrução Pública (Príncipe P. A. Shirinski-Shikhamátov) ordenou ao diretor do ensino da circunscrição acadêmica de Moscou que chamasse o novel dramaturgo e "lhe fizesse compreender que a nobre e útil missão do talento não deve consistir ùnicamente em dar uma imagem viva do ridículo e do mau, mas também em sua justa condenação, não só sob forma caricaturesca, como também mediante a difusão de elevados sentimentos morais. Por conseguinte, deve-se opor o vício à virtude, e ao ridículo e delituoso idéias e aç5es que enobreçam a alma; finalmente, deve-se afirmar a convicção, tão importante para a vida social e privada, de que o mal encontra seu digno castigo mesmo na terra". O próprio Imperador Nicolau Pávlovitch também considerava a missão da arte de um ponto de vista eminentemente "moral". Como sabemos, Nicolau I compartia a opinião de Benkendorf de que seria conveniente domestícar Pushkin. Referindo-se à peça Não te Metas em Trenó Alheio — escrita na época em que Ostrovski, influenciado pelos eslavófilos, dizia em alegres regabofes que com ajuda de alguns amigos "faria retroceder toda a obra de Pedro"(32) — peça até certo ponto muito edificante, (32) Eslavófilos: uma das tendências do pensamento social russo da quinta e sexta décadas do século passado. Sustentavam a teoria de ue o desenvolvimento histórico da Rússia seguia um caminho próprio, iferente do do Ocidente e baseado em três aspectos supostamente ex-

3

o czar dizia elogiosamente: "Ce n'est pas une pièce, c'est une leçon". Para não multiplicar inùtilmente os exemplos, limitar-me-ei a assinalar, ademais, os dois fatos seguintes: 0 Moskovski Telegraf, de N. Polevói, atraiu definitivamente as iras do governo de Nieolau e foi proibido, quando publicou uma crítica desfavorável à obra "patriótica" de Kúkolnik — A Mão do Altíssimo Salvou a Pátria. Mas quando o próprio N. Polevói escreveu as obras patrióticas — O Avô da Frota Russa e O Mercador Igolkin, o imperador, segundo narra um irmão do autor, entusiasmou-se ante o talento dramático do autor: " 0 dramaturgo — disse — tem dotes extraordinários. Seu dever é escrever, escrever e escrever. Isso é o que deve fazer e não dedicar-se — acrescentou sorrindo — a editar revistas"(33). E não pensem que os governantes russos constituíam em tal caso uma exceção. Nada disso. Um representante típico do absolutismo, como Luís XIV de França, não estava menos convencido de que a arte não pode ser tun objetivo em si, mas deve coadjuvar na educação moral dos homens. Essa convicção tivera profunda repercussão em tôda a literatura e a arte da célebre época de Luís XIV. Analogamente, Napoleão I também teria considerado a teoria da arte pela arte como uma daninha invenção de incômodos "ideólogos." Êle também queria que a literatura e a arte estivessem a serviço de objetivos morais. E em grande parte o conseguiu. Assim, por exemplo, a maioria dos quadros exibidos nas exposições periódicas daqueles tempos (os Salões), representavam as proezas bélicas do consulado e do império. Seu "pequeno" sobrinho, Napoleão III, seguiu as pegadas do tio, ainda que com muito menos êxito. Êle também queria que a arte e a literatura servissem ao que chamava moralidade. Em novembro de 1852, o Professor Laprade, de Lião, escreveu uma sátira intitulada, Les Muses d'Etat, em que ridicularizava mordazmente essa tendência bonapartista à arte edificante, predizendo a pronta aparição de uma época em que as musas do Estado submeteriam a razão humana à disciplina clusivo dos eslavos: o regime comunal, a religião ortodoxa e a conjunção harmônica do poder czarista e do povo. Os eslavófilos eram inimigos da revolução e combatiam o materialismo. Fazer retroceder tôda a obra de Pedro: ao dizer "a obra de Pedro", Ostrovski referia-se à atividade reformadora de Pedro I, à sua luta contra o secular atraso russo, mediante a europeização do país. (33) Memórias de Xenofonte Polevói, São Petersburgo, Ed. Suvorin, 18888, pág. 445.

militar, o que significaria o triunfo da ordem, pois nenhum escritor se atreveria a exprimir o menor descontentamento. Il faut être content s'il pleut, s'il fait soleil, S'il fait chaud, s'il fait froid: "Ayez le teint vermeil, Je déteste les gens maigres, à face pâle: Celui qui ne rit pas mérite qu'on l'empale" (34), etc. Direi, de passagem, que essa engenhosa sátira valeu ao autor a perda de sua cátedra. 0 governo de Napoletão III não tolerava motejos à custa das "musas do Estado"

(34) "Ê preciso estar contente, chova ou faça sol, faça frio ou calor: Tende boas cores, que detesto gente magra e face pálida; o que não ri merece ser empalado".

Ii Mas abandonemos as "esferas" governamentais. Entre os escritores franceses do segundo império há os que, ao rechaçarem a teoria da arte pela arte, não o faziam devido a consideração de caráter progressista. Assim, Alexandre Dumas, filho, afirmava categoricamente que as palavras "arte pela arte" não tinham qualquer sentido. Ao escrever O Filho Natural e o Pai Pródigo perseguia determinados objetivos sociais, pois considerava necessário apoiar com suas obras a "velha sociedade", a qual, segundo as próprias palavras, rompia-se por todo os lados. Em 1857, Lamartine avaliava a obra literária de Alfredo de Musset, que acabava de morrer, lamentando-se de que esta não tivesse servido para exprimir fé religiosa, social, política ou patriótica, e reprovava aos poetas contemporâneos haverem esquecido o sentido de suas obras em aras do metro e da rima. Finalmente, citarei uma figura literária de muito menor significação, Máximo Du Camp, que, condenando o apego exclusivo à forma, exclamava: La forme est belle, soit! quand Vidée est au fond! Qu'est-ce donc qu'un beau front qui n'a pas de cervelle?{ 35) E também ataca o chefe da escola romântica na pintura, porque, "como certos literatos que criaram a arte pela arte, o Senhor Delacroix inventou a côr pela cor. A história e a humanidade não são para êle mais do que um pretexto para combinar matizes bem escolhidos". Segundo êsse mesmo escritor, (35) A forma é bela quando no fundo há uma idéia. Que cale fronte bela, se não há m.iolo atrás dela?

os tempos da escola da arte pela arte passaram para sempre(36). Lamartine e Du Gamp são tão pouco suspeitos de tendências subversivas como Alexandre Dumas, filho. Se rechaçavam a teoria da arte pela arte não era porque quisessem substituir a ordem burguesa por um nôvo regime social, mas porque queriam robustecer as relações burguesas, sensivelmente quebrantadas pelo movimento emancipador do proletariado. Nesse aspecto, diferençavam-se dos românticos, e em particular dos parnasianos e primeiros realistas, ùnicamente por lhes convir, muito mais que a êles, o gênero de vida burguês. Em face dos mesmos problemas, uns eram otimistas conservadores, enquanto outros eram, de igual modo, pessimistas conservadores. De tudo isso se depreende claramente que a concepção utilitarista da arte se compagina tão bem com o espírito conservador quanto com o espírito revolucionário. A única cousa que pressupõe necessariamente a tendência a esta concepção é um interêsse vivo e ativo por determinada ordem ou ideal social, qualquer que seja, e desaparece, sempre que por uma ou outra causa desaparece dito interêsse. Prossigamos agora, e vejamos qual dessas duas concepções opostas favorece mais o progresso da arte. A exemplo do que ocorre com os demais problemas da vida social e do pensamento social, êste não admite solução absoluta. Tudo depende das condições de tempo e lugar. Recordemos Nicolau I e seus lacaios . Eles queriam converter Pushkin, Ostrovski e outros artistas da época em servidores da moral, tal como a entendia o corpo de gendarmes. Suponhamos por um momento que tivessem logrado realizar êsse firme propósito. Qual teria sido o resultado? A resposta não é difícil. As musas dos artistas, submetidas até então a sua influência, ter-se-iam convertido em musas do Estado; teriam mostrado os mais evidentes sinais de decadência e perdido grande parte de sua veracidade, vigor e força de atração. A poesia da Pushkin — Aos Caluniadores da Rússia — não se pode situar entre suas melhores criações poéticas. A obra de Ostrovski — Não te Metas em. Trenó Alheio — benèvolamente reconhecida como "lição útil", tampouco é algum (36) Ver a respeito o excelente livro de A. Cassangne — La Théorie de l'Art pour l'Art en France chez les Derniers Romantiques et les Premiers Réalistes, Paris, 1906, págs. 96-105.

primor. E não obstante, nela Ostrovski apenas dá uns passos em direção àquele ideal por cuja realização anelavam os Benkendorf, os Shirinski-Shikhmátov e demais partidários de sua própria corte da arte utilitária. Suponhamos, ademais, que Teófilo Gautier, Teodoro de Banville, Leconte de Lisle, Baudelaire, os irmãos Concourt, os parnasianos e os primeiros realistas franceses houvessem aceitado o meio burguês que os rodeava e pôsto suas musas a serviço daqueles senhores que, segundo a expressão de Banville, sobrepunham a tudo a peça de cinco francos. Qual teria sido o resultado? A resposta não oferece dificuldades. Os românticos, os parnasianos e os primeiros realistas franceses decairiam consideravelmente. Suas obras apresentar-se-iam muitos menos vigorosas, muito menos verazes e muito menos atraentes. Que obra possui maior mérito artístico: Madame Bovary, de Flaubert, ou Le Gendre de Monsieur Poirier, de Augier?(37) A pergunta parece-me ociosa. Não se trata unicamente de diferença de talento. A vulgaridade dramática de Augier, verdadeira apoteose de moderação e escrupulosidade burguesas, pressupõe necessariamente outros recursos criadores que os utilizados por Flaubert, os Goncourt e outros realistas que viravam as costas, de modo desprezativo, a essa moderação e escrúpulo. Finalmente, a circunstância de que uma dessas correntes literárias atraísse mais autores de talento que a outra, tinha também suas causas. Que demonstra tudo isso? __ Demonstra que o mérito de uma obra artística depende em última instância da riqueza de seu conteúdo, cousa que de modo algum aceitaram os românticos, como Teófilo Gautier. Êste dizia que a poesia não só nada demonstra, mas sequer diz alguma cousa, e que a beleza de um verso depende de sua musicalidade, de seu ritmo. Mas isso é um profundo êrro. O que ocorre é justamente o contrário: a obra poética, e em geral a obra artística sempre dwem algo, porque sempre exprimem algo. "Dizem", claro está, à sua maneira. O artista exprime sua idéia por meio (37) Emile Augier (1820-1889) — Dramaturgo francês, nascido em Valence, criador de peças de sentido social. Além do drama citado, é autor das seguintes obras: Maître Guérin, Le Fils de Giboyer, Les Lionnes Pauvres, Les Effrontés, L'Aventurière, e Les Fouchambault (N. do T.)

de imagens, enquanto o publicista demonstra seu pensamento mediante deduções lógicas. E se um escritor, em lugar de operar com imagens, recorre aos argumentos lógicos ou se utiliza das imagens para demonstrar uma questão determinada, então não se trata de um artista, mas de um publicista, mesmo no caso em que não escreva ensaios ou artigos, mas novelas, relatos ou obras de teatro. Tudo isso é evidente, mas daí não se deduz que a idéia não tenha importância em uma obra artística. E mais: não é possível obra artística sem conteúdo ideológico. Inclusive as obras dos autores que se preocupam exclusivamente com a forma, sem fazer caso do conteúdo, exprimem, em que pese a tudo e de uma ou de outra maneira, uma idéia. Gautier, que se não preocupava com o conteúdo ideológico de suas obras poéticas, assegurava, como vimos, que estava disposto a sacrificar seus direitos políticos de cidadão francês pelo prazer de ver um quadro autêntico de Rafael ou uma bela mulher nua. Um estava ligado estreitamente ao outro: sua preocupação exclusiva pela forma determinava-se pela indiferença ante as questões sociais e políticas. As obras cujos autores só se preocupam com a forma exprimem sempre determinada atitude — irremediavelmente negativa — desses mesmos autores ante o meio social que os rodeia. Ë aí que reside a idéia comum a todos êles e que cada qual exprime de modo diferente. Mas se não há obra artística que careça por completo de conteúdo ideológico, nem toda idéia pode ser expressa em obra de arte. Ruskin diz muito bem que uma jovem pode cantar o amor perdido, mas um avarento não pode cantar o dinheiro perdido. E observa com muita justeza que o mérito de uma obra de arte depende da elavação dos sentimentos que exprime. w Interrogue-se você — diz — a respeito de qualquer sentimento que o domine fortemente: pode tal sentimento ser cantado por um poeta? Pode servir-lhe de verdadeira inspiração? Se a resposta é positiva, então se trata de um sentimento nobre. Se não pode ser cantado ou se apenas inspira zombaria, é porque se trata de sentimento inferior". Nem poderia ser de outro modo. A arte é um dos meios de comunicação espiritual entre os homens. E quanto mais elevado é o sentimento expresso pela obra de arte, tanto melhor pode ela desempenhar, em igualdade com as demais circunstâncias, seu papel de meio de comunicação. Por que o avarento não pode cantar o dinheiro perdido? Simplesmente porque, se cantasse a perda do dinheiro, sua canção não comoveria ninguém, isto é, não serviria de meio de comunicação com os demais homens.

Poderia alguém citar as canções guerreiras e perguntar: Acaso a guerra serve de comunicação entre os homens? Responderei que a poesia de guerra, ao exprimir o ódio ao inimigo, exalta ao mesmo tempo a abnegação dos guerreiros, sua disposição de morrer pela pátria, pelo Estado, etc. E, precisamente na medida em que essa poesia exprime tais sentimentos, serve de meio de comunicação entre os homens dentro de certos limites (tribo, comunidade, Estado) cuja amplitude depende do nível de desenvolvimento cultural alcançado pela humanidade, ou mais exatamente, pela parte concreta da humanidade. I. S. Turguéniev, que detestava os defensores da concepção utilitarista da arte, disse certa vez: "A Vénus de Milo é mais indiscutível que os princípios de 1789". E tinha absoluta razão. Mas que se deduz disso? Algo muito diferente do que I. S. Turguéniev queria demontrar. No mundo há muitas pessoas que não só "discutem" os "princípios" de 1789, como sequer têm a menor noção deles. Perguntai a um hotentote, que não passou pela escola européia, qual sua opinião acêrca de tais princípios. Ficareis convencidos de que o hotentote nunca ouviu falar dêles. Mas o hotentote não só desconhece os princípios de 1789, como também a Vénus de Milo. E se a visse, sem dúvida a "discutiria". Êle possui seu ideal de beleza, cuja representação se encontra freqüentemente nas obras de antropologia com o nome de Vênus hotentote. A Vênus de Milo oferece um atrativo "indiscutível", mas só para uma parte dos homens de raça branca, para os quais é efetivamente mais indiscutível que os princípios de 1789. A que isso se deve? Ünicamente, a que ditos princípios exprimem relações que só correspondem a determinada fase do desenvolvimento da raça branca — à época da afirmação do regime em sua luta contra o regime feudal(38) — ao passo (38) O artigo 2 da Déclaration des Droits de L'Homme et du Citoyen aprovada pela Assembléia Constituinte Francesa nas sessões de 20 a 26 ae agosto de 1789, diz: "Le hut de toute association politique est la conservation des droits naturels et imprescriptibles de l'homme. Ces droits sont: la liberté, la propriété, la sûreté et la résistance à l'oppression". ("O objetivo de tôda associação política é manter os direitos naturais e imprescritíveis do homem. Êsses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão"). A preocupação pela propriedade revela o caráter burguês da revolução que se estava realizando, e o reconhecimento do direito de "resistência à opressão" mostra que a revolução ainda se estava realizando, mas não havia

que a Venus de Milo representa um ideal da beleza feminina que corresponde a muitas fases dêsse mesmo desenvolvimento, A muitas, mas não a todas. Os cristãos tinham seu ideal de beleza feminina. Êsse ideal podemos vê-lo nos ícones bizantinos. Ë bem notório que os adoradores desses ícones consideram "discutíveis" a Vénus de Milo e outras Vênus, as quais qualificavam de diabas e destruíam sempre que podiam. Mas época veio em que as diabas da antigüidade voltaram a agradar aos homens de raça branca. Preparou o advento dessa época a luta da libertação dos habitantes das cidades da Europa Ocidental, isto é, precisamente aquêle movimento que encontrou sua mais clara expressão nos princípios de 1789. Por isso, podemos dizer — em que pese a Turguéniev — que a Vênus de Milo ia sendo tanto mais "indiscutível" na nova Europa quanto mais amadurecia a população européia a proclamar os princípios de 1789. Não se trata de um paradoxo, mas de um fato histórico puro e simples. Tôda a significação da história da arte na época do Renascimento — do ponto de vista do conceito de beleza — reside no fato de que o ideal monástico cristão de beleza humana vai sendo relegado, pouco a pouco, a segundo plano, por um ideal terreno, cuja origem se deve ao movimento de libertação das cidades e cuja colaboração se viu facilitada pela recordação das diabas da antigüidade. Já Bielinski, que no último período de sua atividade literária havia dito com tôda a razão que "o puro, o abstrato, o não condicionado, ou, como dizem os filósofos, o absoluto, jamais existiu em qualquer parte", admitia, não obstante, que "as obras pictóricas da escola italiana do século XVI se aproximavam em certo grau do ideal de arte absoluto", pois foram criação de uma época durante a qual "a arte constitui o principal e único interêsse da parte mais culta da sociedade" (39). E cita, como exemplo, a Madona, de Rafael, obra mestra da pintura italiana do século XVI, isto é, a Madona Sixtina, que se conserva na galeria de Dresde. Mas as escolas italianas do século XVI representam o têrmo de uma longa luta entre o ideal terreno e o ideal monástico cristão. E por exclusivo que fôra o interêsterminado e enfrentava a forte resistência da aristocracia secular e togada. Em junho de 1848 a burguesia francesa já não reconhecia ao cidadão o direito de resistência à opressão. (39) Ver V. G. Bielinski - Obras Filosóficas Escolhidas, Edit, de Literatura Política do Estado, Moscou, 1941, pág. 403.

se da parte mais culta da sociedade do século XVI pela arte (40), é indubitável que as madonas de Rafael constituem uma das mais típicas expressões artísticas do triunfo do ideal terreno sobre o ideal monástico cristão, O mesmo cabe dizer, sem o menor exagero, inclusive das madonas que foram pintadas na época em que Rafael se encontrava submetido à influência de seu mestre Perugino e cujas fisionomias refletem aparentemente sentimentos puramente religiosos. Atrás da aparência religiosa transluz tal vigor e uma alegria tão louça de vida puramente terrenal, que nelas já não resta nada que recorde as piedosas virgens dos mestres bizantinos(41). As obras dos artistas italianos do século XVI tinham tão pouco que ver com a "arte absoluta" quanto as obras de todos os mestres precedentes, desde Cimabue e Duccio Di Buoninsegna. Tal arte não existiu efetivamente em qualquer parte. E se Turguéniev refere-se a Vênus de Milo como a um produto dessa arte absoluta, isso se deve exclusivamente a que, como todo os idealistas, interpretava de modo errôneo o curso real do desenvolvimento estético da humanidade. O ideal de beleza que impera em momento dado em determinada sociedade ou em determinada classe da sociedade depende em parte das condições biológicas do desenvolvimento do gênero humano, que são as que determinam, entre outras cousas, as peculiaridades raciais; e em parte, das condições his« tóricas em que surgiu e existe essa sociedade ou classe. E por isso, precisamente, dito ideal é sempre muito rico de conteúdo inteiramente condicionado e nada absoluto. Quem rende culto à "beleza pura" nem por isso se liberta das condições biológicas e histórico-sociais que determinaram seus gostos estéticos. Ë cerrar mais ou menos conscientemente os olhos a tais condições. Isso é o que ocorreu aos românticos, entre outros, a Teófilo Gautier. Dissera eu que seu interêsse exclusivo pela forma da obra poética se encontrava em estreita relação causai com sua indiferença social e política. (40) Seu caráter exclusivo, que não pode ser negado, significava tão somente que no século XVI existia um divórcio irremediável entre as pessoas que amavam a arte e o meio social que as rodeava. Êsse divórcio também deu lugar então à tendência da arte pura, isto é, da arte pela arte. Em épocas anteriores, como por exemplo nos tempos de Giotto, não existiram êsse divórcio nem essa tendência. (41) É significativo que o próprio Perugino fôsse considerado suspeito de ateísmo por seus contemporâneos.

Essa indiferença elevava-lhe o valor das obras poéticas, porquanto o preservava da vulgaridade, da moderação e da escrupolosidade burguesas. Mas ao mesmo tempo reduzia êsse mesmo valor, pois lhe limitava o horizonte e o impedia de assimilar as idéias avançadas de sua época. Tomemos o já conhecido prefácio a Mademoiselle de Maupin, onde ataca com um arrebatamento quase infantil os defensores da concepção utilitarista da arte. "Deus meu — exclama Gautier — que cousa néscia é essa pretensa perfectibilidade do gênero humano com que nos aturdem os ouvidos! Dir-se-ia, em verdade, que o homem é uma máquina suscetível de ser melhorada, e que uma engrenagem melhor ou um contrapêso colocado de maneira mais conveniente podem fazê-la funcionar com mais facilidade" (42). Para demonstrar que não era assim, Gautier citava o Marechal De Bassompierre, que bebia de um trago a bota cheia de vinho à saúde dos treze cantÕes. E assinala que seria tão difícil superar o gesto dêsse marechal, no que à bebida se refere, como a um contemporâneo nosso ganhar em capacidade digestiva a Mílon de Crotona, que era capaz de comer um boi inteiro. Essas observações, em si muito justas, são típicas quando se consideram as teorias da arte pela arte, do modo por que são expostas pelos românticos conseqüentes. Ë de perguntar-se: Quem inculcou a Gautier essas doutrinas acêrca da perfectibilidade do gênero humano? Os socialistas, e em especial os partidários de Saint-Simon, muito populares na França à época que precedeu a aparição de Mademoiselle de Maupin. Contra êles são dirigidas essas observações — em si muito justas — a respeito da dificuldade de superar o Marechal de Bassompierre, embriagado, ou Mílon de Crotona, em voracidade. Mas êstes reparos, em si justos, ficam totalmente fora de lugar quando dirigidos contra os saint-simoniens. A perfeição do gênero humano, de que falavam os seguidores de Saint-Simon, nada tem a ver com o aumento da capacidade do estômago. Os saint-simoniens referiam-se à melhoria da organização social em benefício da parte mais numerosa da população — de sua parte produtiva, isto é, dos trabalhadores. Qualificar de necessidade semelhante tarefa e perguntar se realizada fará com o que homem seja capaz de encharcar-se mais de vinho ou de empanturrar-se de (42) Mademoiselle de Maupin, prefácio, pág. 23. 36 George Plekhanov

carne, é dar mostras daquela limitação burguesa que mexia com os brios dos jovens românticos. Gomo pôde ocorrer isso? Como pôde a limitação burguesa infiltrar-se no raciocínio de um escritor, para quem todo o sentido da existência residia numa luta de vida e morte contra essas mesmas limitações burguesas? Ëm mais de uma ocasião, ainda que por outro motivo, respondi a esta pergunta ao comparar as idéias dos românticos com as de Davi e seus amigos. Disse que os românticos, ao mesmo tempo em que se sublevavam contra os gostos e costumes dos burgueses nada tinham a objetar contra o regime social burguês. Agora, devemos analisar mais detalhadamente essa questão. Alguns ramântícos, como George Sand — na época de sua amizade com Pedro Leroux — simpatizavam com o socialismo. Mas eram exceção. Geralmente, os românticos, que se erguiam contra a vulgaridade burguesa, eram também inimigos dos sistemas socialistas, que mostravam a necessidade de uma reforma social. Os românticos queriam mudar os costumes da sociedade, sem mexer no regime social, o que, evidentemente, é de todo impossível. Por isso, a insurreição dos românticos contra os "burgueses" teve tão poucas conseqüências práticas como o desprêzo das "raposas" de Goettingen ou de Iena pelos filisteus. Dita insurreição foi completamente estéril do ponto de vista prático. Mas essa esterilidade prática teve conseqüências literárias bastante importantes, pois imprimiu aos heróis românticos êsse caráter irreal e artificioso que no fim de contas conduziu ao desmoronamento dessa escola. 0 caráter irreal e artificioso dos personagens não pode ser aceito de modo algum como mérito de uma obra de arte, pelo que, a par do aspecto positivo apontado mais acima, devemos indicar agora um aspecto negativo: ainda que tenha sido muito o que ganharam as obras de arte românticas com a insurreição de seus autores contra os "burguesesde outra parte perderam bastante, em conseqüência da vacuidade prática dessa insurreição. Os primeiros realistas franceses esforçaram-se por suprimir o principal defeito das obras românticas: o caráter irreal e artificioso de seus personagens. Na obras de Flaubert (com exceção, talvez de Salambô e Contos), não há sombra da irrealidade e artificialismo dos românticos. Os primeiros realistas também se sublevam contra os "burgueses", mas fazem-no à

sua maneira. Não opõem aos vulgares burgueses, heróis imaginários, mas procuram criar fiéis imagens artísticas desses mesmos tipos vulgares. Flaubert considarava de seu dever tratar o meio social que descrevia, com a mesma objetividade com que um naturalista se situa ante a natureza. "Ë preciso ver os homens — diz — como se vêem os mastodontes e os crocodilos. Ácaso pode alguém entusiasmar-se com as prêsas daqueles ou as mandíbulas dêstes? É preciso mostrá-los, convertê-los em espantalhos, metê-los em frascos de álccol, e nada mais. Mas não lanceis condenações morais, pois quem sois vós, rãs insignificantes?" Na medida em que Flaubert lograva ser objetivo, os tipos apresentados em suas obras adquiriam a significação de "documentos", cujo estudo é absolutamente indispensável para todo aquêle que queira fazer um estudo científico dos fenômenos de psicologia social. A objetividade era o lado forte de seu método, mas ainda sendo objetivo no processo da criação artística, Flaubert não deixava de ser muito subjetivo na apreciação dos movimentos sociais de sua época. Tanto êle como Gautier desprezavam profundamente os "burgueses", mas ao mesmo tempo eram acérrimos inimigos de todos os que de um modo ou de outro atentassem contra as relações sociais burguesas. E o próprio Flaubert, mais do que Gautier. Flaubert era decididamente contra o sufrágio universal, que qualificava de "vergonha da inteligência humana". "Com o sufrágio universal — escrevia a George Sand — o número prevalece sobre a inteligência, a instrução, a raça e inclusive o dinheiro, que vale mais que o número." Em outra carta diz que o sufrágio universal é mais estúpido que o direito divino. Para êle, a sociedade socialista é um monstro enorme que devorará tôda ação individual, tôda personalidade, todo pensamento, que tudo dirigirá e tudo fará por si só. Vemos por isso que sua atitude negativa ante a democracia e o socialismo faria coincidir êsse detrator dos "burgueses" com os mais limitados ideólogos da burguesia. E êsse mesmo traço se observa em todos os partidários da arte pela arte, contemporâneos de Flaubert. Em um ensaio sobre a vida de Edgar Poe, Baudelaire, que desde muito esquecera seu revolucionário Salut Public, diz: "Em um povo sem aristocracia, o culto da beleza só pode corromper-se, diminuir e desaparecer". Em outro lugar afirma que só existem três sêres dignos de respeito: "o cura, o soldado e o poeta". Isso já não é espírito conservador, mas reacionário. Tão reacionário quanto êle, era Barbey d'Aurévilly. Em seu livro Les

Poetes refere-se às obras poéticas de Laurent-Pichat e diz que este poderia ter sido um grande poeta "se tivesse tomado a decisão de pisotear o ateísmo e a democracia, esses dois opróbrios (ces deux déshonneurs ) do pensamento"(43). Desde que Teófilo Gautier escrevera seu prefácio a Mademoiselle de Maupin (maio de 1835), correra muita água. Os saint'simoniens , que, segundo suas palavras, lhe haviam atordoado os ouvidos com seus propósitos acerca da perfectibilidade do gênero humano, proclamavam aos gritos a necessidade de uma reforma social. Mas, do mesmo modo que a maioria dos socialistas utópicos — eram êles decididos partidários de um desenvolvimento social pacífico, e, portanto, adversários não menos decididos da luta de classes. Além disso, os socialistas utópicos se dirigiam sobretudo aos bem acomodados. Não acreditavam na atuação independente do proletariado. Mas os acontecimentos de 1848 demonstraram que essa situação independente podia chegar a ser muito ameaçadora. Depois de 1848 já se não apresentava a questão de se as classes possuidoras queriam ou não encarregar-se de melhorar a sorte dos despossuídos, mas de quem — possuidores ou desprotegidos — haveria de triunfar na luta travada entre uns e outros. As relações entre as classes da nova sociedade se haviam simplificado de modo extraordinário. Então, todos os ideólogos da burguesia compreenderam que o de que se tratava era de saber se essa classe conseguiria manter as massas trabalhadoras sob o jugo econômico. A consciência dêsse fato calara na mente dos partidários da arte para os ricos. Ernesto Renan, um dos mais notáveis dentre êles por sua significação científica, exigia em sua obra La Reforme Intelectuelle et Morale um governo forte "que obrigue os bons aldeões a realizar parte do trabalho enquanto nós especulamos "(44). Os ideólogos da burguesia compreendiam, com muito mais clareza que dantes, o significado da luta entre a burguesia e o proletariado, e êsse fato não podia deixar de influir de modo extraordinário sobre a natureza das "especulações" a que se entregavam êsses ideólogos. O Eclesiastes diz muito bem: "A calúnia perturba o próprio sábio". Ao descobrir o segredo da (43) Obra cit., 1893, pág. 260. (44) Citado por Cassangne em seu livro, La Théorie de Г Art pour l'Art chez les Derniers Romantiques et les Premiers Réalistes, págs. 194195.

luta entre sua classe e o proletariado, os ideólogos burgueses perderam gradualmente a capacidade de analisar serena e cientificamente os fenômenos sociais, o que reduziu grandemente o valor intrínseco de seus trabalhos mais ou menos científicos. Se antes a economia política burguesa pudera produzir um gigante do pensamento científico, como Davi Ricardo, agora, os que pontificam entre seus representantes são uns insignificantes palradores do tipo de Frederico Bastiat. Na filosofia, firmava-se gradualmente a reação idealista, cuja essência consiste na tendência conservadora a conciliar os progressos das ciências naturais modernas com a velha tradição religiosa, ou mais exatamente, a conciliar o oratório com o laboratório (45). A arte, tampouco, deixou de seguir o destino comum. E veremos mais adiante a que absurdos ridículos chegou a influência da atual reação idealista em certos pintores ultramodernos. Por ora limito-me a dizer o seguinte: 0 modo de pensar conservador e em parte reacionário dos primeiros realistas não os impediu de estudar a fundo o meio circundante e criar obras de grande valor artístico. Mas não há dúvida de que limitou consideravelmente seu campo visual. Ao voltar as costas, hostilmente, ao grande movimento emancipador de sua época, excluíram dentre os "mastodontes" e "crocodilos" submetidos à sua observação, os exemplos mais interessantes e de vida interior mais pletórica. Sua atitude objetiva diante do meio estudado por eles, significava a rigor uma ausência de simpatia para com êsse meio. E era natural que não sentissem simpatia pelo que, dado seu conservadorismo, era o único que podiam observar: as "idéias mesquinhas" e as "pequenas paixões" engendradas no "lodo impuro"(46) da (45) "On peut, sans contradiction, aller successivement à son laboratoire et à son oratoire." ("Pode-se, sem contradição, ir sucessivamente ao oratório e ao laboratório") — dizia há alguns anos Grasset, professor de medicina clinica de Montpellier. Essa sentença foi repetida com entusiasmo por teóricos do tipo de Júlio Soury, autor do Bréviaire de l'Histoire du Matérialisme, escrito segundo o espírito do célebre trabalho de Lange sôbre o mesmo tema. (Ver o artigo, Oratoire et Laboratoire na recopilação de Soury, Campagnes Nationalistes, Paris, 1902, págs. 233-266 ). Ver na mesma recopilação o artigo, Science et Religion, cuja idéia mestra encontra sua expressão nas célebres palavras de Du Bois-Reymond: ignoramus et ignorabimus. (46) As palavras aspadas são da poesia de Nelcrássov, Cavaleiro por uma Hora.

quotidiana existência burguesa. Mas essa falta de simpatia pelos objetos observados e representados ocasionou logo, como não podia deixar de suceder, a perda de interêsse por essa existência. O naturalismo, fundado por êles com suas magníficas obras, encontrou-se em pouco, segundo a expressão de Huysmans, em um "beco sem saída, em um túnel fechado". Tudo podia chegar a ser objeto de estudo, até a sífilis, como dizia Huysmans(47). Não obstante, o movimento operário contemporâneo era inacessível para êle. Sei, certamente, que Zola escreveu Germinal. Mas, deixando de lado os aspectos débeis dessa novela, não se deve esquecer que Zola se bem começasse a inclinar-se, como dizia, para o socialismo, seu chamado método experimental foi sempre muito pouco apropriado para o estudo e a representação artística dos grandes movimentos so-

ciais. Êsse método achava-se ligado do modo mais estreito àquele matérialisme, que Marx denominou materialismo naturalista, o qual não compreende que as ações, as tendências, os gostos e os costumes da mente social não podem encontrar uma explicação satisfatória na fisionomia ou na patologia, já que estão determinados pelas relações sociais. Fiéis a êsse método, os artistas podiam estudar e representar seus " mastodontes" e "crocodilos" como indivíduos, mas não como membros de um grande todo. E Huysmans dava-se conta disso quando dizia que o naturalismo se metera em um beco sem saída, e que o único que lhe restava era narrar uma vez mais os amores da tendeira com o taberneiro da esquina (48). Êsse tipo de relato só podia despertar interêsse no caso de que pusesse de manifesto certo aspecto das relações sociais, como ocorreu com o realismo russo. Mas o interêsse social se encontrava ausente nos realistas franceses. Daí a razão por que os "amores da tendeira com o taberneiro da esquina" perdessem todo o interêsse e se fizessem desagradáveis, e até repulsivos. O próprio Huysmans foi um naturalista puro em suas primeiras obras, como na novela Les Soeurs Vatard. Mas se cansou de apresentar "os sete pecados capitais" (são palavras suas) e renunciou ao naturalismo. Como dizem os alemães, com a água da banheira atirou fora também a criança. Em À Rebours, novela estranha, de passagens (47) Alusão de Huysmans à novela — Les Virus d'Amour, do belga Tabarant. (48) Ver Jules Huret, Enquête sur VÊvolution Littéraire, págs., 176-177.

extraordinariamente aborrecidas, mas cujos defeitos a tornam sumamente instrutiva, Huysmans apresenta, ou melhor, inventa, no personagem Des Esseintes, uma espécie de super-homem (um aristocrata completamente degenerado), cuja vida deve representar, tôda ela, a negação completa da vida do '"taberneiro" e da "tende ir a". A criação de tipos tais confirma ainda o pensamento de Leconte de Lisle de que, quando não há vida real, a missão da poesia é criar a vida ideal. Mas a vida ideal de Des Esseintes era tão vazia de conteúdo humano que sua criação não oferecia a menor escapatória ao beco sem saída. E Huysmans caiu no misticismo, que foi a saída "ideal" para uma situação da qual era impossível sair por uma via "real". Em tais circunstâncias, era o mais lógico. Muito bem, veja-se o que acontece. 0 artista que se torna místico não despreza o conteúdo ideológico, mas lhe dá um caráter particular. O misticismo também é uma idéia, mas uma idéia obscura, amorfa como a névoa e em luta mortal com a razão. O místico não só está disposto a relatar, mas a demonstrar. E o que relata é algo fantástico, e em suas demonstrações toma como ponto de partida a negação do senso comum. O exemplo de Huysmans mostra uma vez mais que a obra de arte não pode prescindir do conteúdo ideológico. Mas quando os artistas perdem a capacidade de ver as mais importantes correntes sociais de sua época, reduz-se consideravelmente o valor intrínseco das idéias expressas por êles em suas obras, o que inevitavelmente redunda em prejuízo destas últimas. Êsse fato tem tanta importância para a história da arte e da literatura que se impõe examiná-lo de vários ângulos. Mas antes disso, faremos um balanço das conclusões a que chegamos depois do estudo precedente. A tendência à arte pela arte surge e se afirma quando existe divórcio irremediável entre as pessoas que se dedicam à arte e o meio social que as rodeia. Êsse divórcio repercute favoravelmente na criação artística na medida exata em que ajuda os artistas a se situarem acima do meio ambiente. Assim aconteceu com Pushkin, na época de Nicolau I. Assim aconteceu com os românticos, os parnasianos e os primeiros realistas, na França. Multiplicando os exemplos, poder-se-ia demonstrar que sempre isso acontece quando existe tal divórcio. Não obstante, ao mesmo tempo em que se sublevavam contra a vulgaridade dos costumes do meio social que os envolvia, os românticos, 42 George Plekhanov

os parnasianos e os realistas nada tinham a manifestar contra as relações sociais que constituíam a base dêsses costumes vulgares. Ao contrário, enquanto maldiziam os "burgueses", tinham em grande apreço o regime burguês, primeiro, instintivamente, e depois, com plena consciência. E quanto mais força ia ganhando na nova Europa o movimento de emancipação dirigido contra o regime burguês, mais consciente se ia tornando o apego que os partidários franceses da arte pela arte manifestavam para com o regime. E quanto mais consciente era êsse apêgo, menos podiam permanecer indiferentes ante o conteúdo ideológico de suas obras. Mas sua cegueira em face da nova corrente dirigida no sentido de renovar a vida social fazia com que suas concepções fossem errôneas, limitadas e unilaterais e diminuía a qualidade das idéias expressas em suas obras. Tudo isso teve como conseqüência natural a situação desesperada do realismo francês que provocou arrebatamentos decadentes e uma tendência ao misticismo em escritores que haviam passado pela escola realista {naturalista ). Comprovaremos com mais detalhes a conclusão no artigo seguinte. E como é hora de concluir, direi, para terminar, algumas palavras acêrca de Pushkin. Quando seu "poeta" se volta contra a "plebe", percebemos em suas palavras uma grande cólera, mas não encontramos qualquer vulgaridade, por muito que fale D. I. Píssarev(49). O poeta condena a multidão mundana — precisamente esta e não o verdadeiro povo, que fica totalmente à margem do campo visual da literatura russa da época — por preferir a panela ao Apoio do Belvedere. Isso quer dizer que lhe era insuportável seu estreito espírito prático. E nada mais. Nega-se resolutamente a educar a multidão, mas isso não revela senão sua absoluta falta de fé, sem qualquer matiz reacionário. E essa é a enorme vantagem de Pushkin em face dos defensores da arte pela arte, como Gautier. A vantagem é, não obstante, relativa. Pushkin não zombava dos saint-simoniens. Mas é duvidoso que tivesse ouvido falar dêles(50). Era um homem honrado e generoso. Mas êsse homem honrado e generoso assimilara desde a infância certos preconceitos de classe. A su( 49 ) Referência ao artigo de D. I. Píssarev — Pushkin e Bielínski (1865). (50) Comprovou-se, posteriormente, que Pushkin conhecia as obras dos saint-simoniens.

pressão da exploração de uma classe por outra devia parecer-lhe utopia irrealizável e até ridícula. Se houvesse conhecido alguns planos práticos para pôr fim a essa exploração, e sobretudo se esses planos tivessem provocado tanto alvoroço na Rússia como os dos saint-simoniens na França, é provável que tivesse investido contra êles em violentos artigos polêmicos e em irônicos epigramas. Algumas observações — em seu artigo, Pensamento no Caminho — sôbre a vantajosa situação do camponês servo russo frente à do operário da Europa Ocidental obriga-nos a pensar que no caso indicado o inteligente Pushkin poderia ter raciocinado com tão pouca sorte como raciocinava o incomparàvelmente menos inteligente Gautier. O atraso econômico da Rússia salvou-o de cair nessa possível debilidade. Ë uma velha história, mas eternamente nova. Quando uma classe vive da exploração de outra classe situada em graus mais baixos da escala econômica, e quando aquela logrou dominar por completo na sociedade, todo avanço que faz representa uma incursão para baixo. Ë dêsse modo que se explica o fenômeno, à primeira vista incompreensível e até incrível, de que nos países economicamente atrasados a ideologia das classes dominantes seja amiúde muito mais elevada do que nos países avançados. A Rússia também alcança, agora, êsse nível de desenvolvimento econômico em que os partidários da teoria da arte pela arte se convertem em defensores conscientes de um regime social baseado na exploração de uma classe por outra. Por isso, também, em nosso país se dizem, agora, em nome da "autonomia absoluta da arte" tantas tolices reacionárias no campo social. Mas na época de Pushkin, isso não acontecia, o que foi uma grande sorte para êle.

III Já tive ocasião de dizer que não existe obra de arte que careça por completo de conteúdo ideológico. E acrescentei que nem tôda idéia pode servir de base a uma obra de arte. Só o que contribui para a comunicação entre os homens pode servir de verdadeira inspiração para o artista. Os limites possíveis dessa comunicação não são determinados pelo artista, mas sim pelo nível de cultura alcançado pelo todo social de que êle faz parte. Mas na sociedade dividida em classes, isso depende também das relações entre ditas classes e da fase de desenvolvimento em que no momento se encontra cada uma delas. Quando a burguesia mal começava a libertar-se do jugo da aristocracia secular e togada, isto é, quando era ela mesma uma classe revolucionária, então arrastava tôda a massa trabalhadora, que constituía com ela um mesmo esteio: o estado igual. Então os ideólogos avançados da burguesia eram também os ideólogos avançados " de tôda a nação, à exceção dos privilegiados". Em outros têrmos: naquela época era relativamente muito amplo os limites de comunicação entre os homens, servindo de instrumento as obras dos artistas que adotavam o ponto de vista da burguesia. Mas quando os interêsses da burguesia deixaram de ser os interêsses de tôda a massa trabalhadora, e em particular quando se chocavam com os interêsses do proletariado, êsses limites viram-se restringidos. Ruskin dizia que um avarento não pode cantar a perda de seu dinheiro; pois bem, havia chegado o momento em que o estado de ânimo da burguesia se ia aproximando do avarento que chora seus tesouros perdidos. A diferença residia apenas em que o avarento chora uma perda que já teve lugar, ao passo que a burguesia perde sua tranqüilidade de espírito ante a ameaça de uma perda futura. "A calúnia — direi com as palavras do Eclesiastes — conturba o próprio sábio". Êsse mesmo

efeito nefasto exerceria sobre o prudente (insisto sobre a palavra prudente!) temor de perder a possibilidade de oprimir os outros. As ideologias da classe dominante perdem seu valor intrínseco à medida que esta se aproxima do fim. A arte criada por suas emoções decai. 0 presente artigo tem por objetivo completar o que foi dito sobre a questão no artigo precedente, prosseguindo o exame de alguns dos sintomas mais evidentes, da atual decadência da arte burguesa. Vimos como o misticismo penetrou na literatura francesa contemporânea. A consciência da impossibilidade de limitar-se a uma forma sem conteúdo, isto é, sem idéia, e mais a incapacidade de elevar-se até a compreensão das grandes idéias emancipadoras de nossa época, conduziram ao misticismo. E essa mesma consciência e incapacidade trouxeram juntas também outras conseqüências que, analogamente ao misticismo, diminuem o valor intrínseco das obras de arte. 0 misticismo é inimigo irreconciliável da razão. Mas não só os que caem no misticismo estão em luta contra a razão. Também são hostis a ela os que por uma ou outra causa, de um modo ou de outro, defendem uma idéia falsa. E quando se toma por base da obra de arte uma idéia falsa, esta envolve contradições internas que diminuem inevitavelmente o valor estético da obra de arte. Falei da peça Knut Hamsun, .Äs Portas do Reino, como exemplo de uma obra de arte diminuída pela falsidade de sua idéia fudamental(51). O leitor perdoar-me-á que volte a falar dela. Diante de nós, surge como herói dessa peça ívar Kareno, jovem escritor que talvez não tenha talento, mas que tem de sobra auto-suficiência. Diz ser um homem de "idéias livres como um pássaro". Sobre que temas escreve êsse pensador livre como um pássaro? Sobre a "resistência". Sobre o "ódio". A quem aconselha a que se resista? A quem ensina a odiar? Aconselha que se resista ao proletariado. Ensina a odiar o proletariado. Não é verdade que se trata de um herói totalmente novo? Até agora, na literatura, havíamos encontrado muitos poucos heróis dêsse tipo, para não dizer nenhum. Mas o homem que prega a resistência ao proletariado é o mais indubitável ideólogo da burguesia. Ívar Kareno, êste ideólogo da burguesia, considera (51) Ver o artigo de minha autoria, O Filho do Doutor Stockman, em minha recopilação, Da Defesa ao Ataque.

a si mesmo — e é considerado por seu criador, K n u t H a m s u n — u m grande revolucionário. Já vimos no exemplo dos primeiros românticos franceses que existem tendências "revolucionárias", cujo principal traço é o conservantismo. Teófilo Gautier odiava os "burgueses" e ao mesmo tempo investia contra os que diziam que chegara a hora de suprimir as relações sociais burguesas. Evidentemente, ívar Kareno é u m descedente espiritual do célebre romântico francês. Não obstante, o descendente foi muito além do ponto a que chegou seu antepassado. Êle odeia conscientemente aquilo que em seu antepassado despertava apenas hostilidade instintiva ( 5 2 ) . (52) Refiro-me à época em que Gautier ainda não desgastara seu famoso jaleco vermelho. Porteriormente, nos dias da Comuna de Paris, era já um inimigo consciente, e dos raivosos — dos anelos de emancipação da classe trabalhadora. Cabe assinalar, também, que Flaubert pode ser considerado como um predecessor ideológico de Knut Hamsun, e talvez até com maior motivo. Em um de seus livros de notas encontram-se estas linhas notáveis: Ce n'est pas contre Dieu que Prométhée aujourd'hui devrait se révolter , mais contre le Peuple, dieu nouveaux. Aux vieilles tyrannies sacerdotales , féodales et monarchiques, on a succédé une autre, plus subtile, inextricable, impérieuse et qui dans quelque temps ne laissera pas un seul coin de la terre qui soit libre" ("Hoje em dia, Prometeu não deveria sublevar-se contra Deus, mas contra o Povo, nôvo deus. As velhas tiranias sacerdotais, feudais e monárquicas foram substituídas por outra tirania, mais sutil, inextricável, imperiosa, que dentro de algum tempo não deixará na terra um só rincão livre"). Ver o capítulo Les Carnets de Gustave Flaubert, no livro de Luis Bertrand, Gustave Flaubert, Paris, 1912, pág., 255. É o mesmo pensamento, livre como um pássaro, que inspira a lvar Kareno. Em sua carta a George Sand, datada de 8 de setembro de 1871, Flaubert diz "Je crois que la foule, le troupeau, sera toujours haïssable. Il n'y a d'important qu'un petit groupe d'esprits toujours les mêmes et qui se repassent le flambeau". ("Creio que a multidão, a manada, sempre será odiosa. O único que importa é um pequeno grugo de espíritos, sempre os mesmos que passam o facho uns aos outros. ) Na mesma carta encontram-se as linhas, por mim citadas mais acima, acerca do sufrágio universal, qualificado de vergonha do espírito humano, pois graças a êle o número domina "até o dinheiro"l (Ver Flaubert, Correspondance, 4me. série (1869-1880, Paris, 1910). ívar Kareno teria reconhecido certamente nesses conceitos suas idéias livres como um pássaro. Não obstante, não acharam ainda sua expressão direta nas novelas de Flaubert. A luta de classes na sociedade contemporânea teve que dar um grande passo adiante antes que os ideólogos da classe dominante sentissem a necessidade de exprimir diretamente na literatura ódio aos anelos de amancipação do "povo". E aquêles que com o tempo chegaram a sentir essa necessidade já não puderam defender a "auto-

Se os românticos eram conservadores, ívar Kareno é reacionário da mais pura água. E além disso, um utopista do tipo daquele selvagem latifundiário de Schedrin(53). Êle quer exterminar o proletariado, como êste queria exterminar os mujiques. Essa utopia chega ao cúmulo da comicidade. Ademais, tôdas as "idéias, livres como um pássaro", de ívar Kareno, chegam ao limite do absurdo. Para êle o proletariado é uma classe que explora as outras classes da sociedade. Esta é a mais errônea de tôdas as idéias, livres como um pássaro, de Kareno. E a desgraça consiste em que, aparentemente, Knut Hamsun comparte a errônea idéia de seu herói. Kareno sofre tôdas as desventuras precisamente porque odeia o proletariado e "resiste" a êle. Por isso não pode obter a cátedra e sequer editar seu livro. Em uma palavra, atrai tôda uma série de perseguições daqueles burgueses entre os quais vive e atua. Mas, em que parte do mundo, em que utopia vive essa burguesia que castiga tão implacavelmente a "resistência" ao proletariado? Tal burguesia não existiu nem pode existir em nenhuma parte. Knut Hamsun tomou como base de sua obra uma idéia que está em contradição irreconciliável com a realidade. E essa circunstância prejudicou de tal modo sua obra, que esta provoca riso justamente naqueles trechos que, segundo a intenção do autor, deviam adquirir um sentido trágico. Knut Hamsun possui um grande talento, mas nenhum talento é capaz de converter em verdade algo diametralmente oposto a ela. Os enormes defeitos do drama, Л s Portas do Reino, são uma conseqüência lógica da absoluta inconsistência da idéia que lhe serve de base. Essa inconsistência é devida à incapacidade do autor de compreender o sentido da luta de classes na sociedade contemporânea, luta da qual seu drama é um eco literário. Knut Hamsun não é francês. Mas isso não muda a questão. 0 Manifesto do Partido Comunista já assinalava com muito acêrto que nos países civilizados, e em virtude do desenvolvimento do capitalismo, "a estreiteza e o exclusivismo nacionais nomia absoluta" das ideologias. Ao contrário: apresentaram às ideologias o objetivo consciente de servir de arma espiritual na luta contra o proletariado. Mas disso falarei mais adiante. (53) No conto, "O Latifundiário Selvagem", Saltikov-Schedrin pinta de forma satírica um homem que queria resolver o problema camponês exterminando os mujiques.

tornam-se dia a dia mais impossíveis; das numerosas literaturas nacionais e locais forma-se uma literatura universal". Certamente, Hamsun nasceu e se educou num país da Europa Ocidental que está longe de pertencer aos países mais desenvolvidos sob o aspecto econômico. Assim se explica, evidentemente, a ingenuidade verdadeiramente pueril de suas idéias acerca da situação do proletariado combatente na sociedade em que vive. Mas o atraso econômico de sua pátria não o impediu de adquirir o mesmo ressentimento contra a classe operária e a mesma simpatia pela luta contra ela (pie agora aparecem logicamente entre a intelectualidade burguesa dos países mais avançados. ívar Kareno não é mais que uma variedade do tipo nietzschiano. E que é o nietzschianismo? Ë uma nova edição, corrigida e aumentada, de acordo com as exigências do período mais moderno do capitalismo, de algo que já conhecemos bem: aquela luta contra os "burgueses" que se compaginava perfeitamente com uma inquebrantável simpatia pelo regime burguês. E o exemplo de Hamsun pode muito bem ser substituído por outros tomados à literatura francesa contemporânea. Francisco De Curei é sem dúvida alguma um dos dramaturgos de maior talento e de idéias mais profundas — o que no caso é ainda mais importante — da França de hoje. Seu drama em cinco atos, Le Repas du Lion, que deve ser reconhecido sem a menor vacilação como a mais digna de destaque entre tôdas as suas obras, atraiu muito pouco a atenção da crítica russa. Em virtude de algumas circunstâncias excepcionais de sua infância, o personagem central da peça, Jean de Sancy, em dado momento se sente interessado pelo socialismo cristão. Depois, rompe resolutamente com êste e se converte em eloqüente defensor da grande produção capitalista. Na terceira cena do quarto ato pronuncia um discurso para demonstrar aos operários que "o egoísmo dedicado à produção (Végoisme qui produit) é para a massa trabalhadora o mesmo que a caridade para o pobre". E como os que o ouvem se mostram desacordes com êsse ponto de vista, se entusiasma progressivamente e mediante brilhante e gráfica comparação explica-lhes o papel do capitalismo e de seus operários na produção moderna. "Dizem que no deserto, os chacais seguem em grupo ao leão para se aproveitarem dos restos de sua prêsa. Demasiado débeis para atacar o búfalo, demasiado lentos para alcançar as gazelas, toda sua esperança está nas garras do rei da selva.

Nas garras! Percebem? À hora crespuscular, o leão abandona a cova e corre, rugindo de fome, em busca de presa. Ei-la a seu alcance ; um salto prodigioso, e começa uma luta feroz, um abraço mortal. A terra cobre-se de sangue, que nem sempre é da vítima. A seguir, vem o festim real, que é assistido com atenção e respeito pelos chacais. Quando o leão está saciado, os chacais comem. Crêem vocês que estariam melhor alimentados se o leão compartisse com êles a sua presa, em partes iguais, reservando para si uma pequena porção? Nada disso! Êsse bom leão já não seria um leão, mas um cão lazarento. Ao primeiro gemido da vítima, afrouxaria as garras e começaria a lamber-lhe as feridas. Falem-me de um animal feroz, ansioso de despojos e sonhando apenas em matar e destroçar. Quando ruge, os chacais se lambem". O eloqüente orador esclarece o sentido, já de si evidente, dessa parábola, com as seguintes palavras, muito mais concisas, e não menos expressivas: " 0 industrial faz brotar fontes de nutrição, cujas sobras são absorvidas pelos trabalhadores". Sei muito bem que o escritor não é responsável pelos discursos pronunciados por seus heróis. Amiúde, faz entender, por uma ou outra forma, sua atitude ante tais discursos, o que nos permite julgar suas opiniões. Todo o curso ulterior de Le Repas du Lion nos mostra que o próprio De Curei considera totalmente justa a comparação feita por Jean de Sancy entre o industrial e o leão e entre os operários e os chacais. Tudo nos indica que o autor poderia repetir, plenamente convencido disso, as seguintes palavras de seu herói: "Creio no leão. Inclino-me ante os direitos que lhe conferem suas garras". E está disposto a admitir que os operários são chacais que se alimentam dos restos do que o capitalista obtém com seu trabalho. A luta dos operários contra os patrões é para êle, como para Jean de Sancy, uma luta de chacais invejosos contra o poderoso leão. Nessa comparação está a idéia fundamental da obra, com a qual o autor liga os destinos de seu herói principal. Mas nessa idéia não há um pingo de verdade. 0 autêntico caráter das relações sociais da sociedade contemporânea aparece nela muito mais desvirtuada que nos sofismas econômicos de Bastiat e de seus numerosos seguidores, incluindo Bõhm-Bawerk. Os chacais nada fazem para conseguir o alimento do leão, que em parte serve para saciar sua própria fome. E quem será capaz de afirmar que os operários de uma emprêsa nada fazem para

criar sua produção? Em que pese a todos os sofismas econômicos, é evidente que essa produção é obra de seu trabalho. Naturalmente, o industrial também participa da produção, como organizador. E como tal, forma parte dos trabalhadores. Mas todo o mundo sabe que o salário do administrador de uma fábrica e os benefícios do dono dessa mesma fábrica são duas coisas diferentes. Se descontarmos dos benefícios o salário, obteremos um resto que corresponde ao capital como tal. Todo o problema consiste em saber por que êsse resto vai parar no capital. Mas para a solução do problema não encontramos o menor vislumbre nas eloqüentes disquisiçÕes de Jean de Sancy, que, diga-se de passagem, não suspeita que seus próprios ingressos — como grande acionista da emprêsa — não se justificariam sequer no caso de que fôra justa a totalmente falsa comparação do industrial com o leão e dos operários com os chacais. Êle nada faz pela emprêsa, limitando-se a receber dela, cada ano, grandes lucros. E se há alguém que se assemelhe aos chacais, que se alimentam do que outros obtêm com seu esforço, êsse é justamente o acionista, cujo trabalho se reduz exclusivamente a guardar as ações, e também o ideólogo da ordem burguesa, que não participa da produção, mas que recolhe os restos do esplêndido festim do capital. Por desgraça, o talentoso De Curei é um dêsses ideólogos. Ante a luta dos assalariados contra os capitalistas, êle se situa ao lado dêstes, apresentando sob forma inteiramente falsa suas verdadeiras relações com os que são por êle explorados. E que significa a peça — La Barricade — de Bourget, senão um apelo à burguesia, por conhecido escritor, também de indubitável talento, convidando a todos os membros dessa classe a se agruparem na luta contra o proletariado? A arte burguesa torna-se belicosa. Seus representantes já não podem dizer que não nasceram "para a agitação e o combate". Nada disso. Procuram a luta e não temem em absoluto a agitação que isso implica. Mas em nome de que se trava essa luta em que querem tomar parte? Ah! Em nome do "egoísmo". Não de um egoísmo pessoal, é claro, pois seria ridículo afirmar que homens como De Curei ou Bourget defendem o capital com a esperança de se enriquecerem. O "egoísmo" pelo qual sofrem "agitações" e procuram o "combate" é o egoísmo de tôda uma classe. Mas nem por isso deixa de ser ambição. E se assim é, vejamos o que acontece.

Por que os românticos desprezavam os "burgueses" de sua época? Sabemos a razão: porque os "burgueses" punham acima de tudo, segundo a expressão de Teodoro de Banville, a moeda de cinco francos. E que defendem em suas obras escritores como De Curei, Bourget e Hamsun? Defendem relações sociais que constituam para a burguesia uma fonte de muitíssimas moedas de cinco francos. Que longe estão esses escritores do romantismo dos bons e velhos tempos! E que foi que os afastou? Nada mais que a marcha implacável do desenvolvimento social. Quanto mais se iam aguçando as contradições internas inerentes ao modo de produção capitalista, mais difícil era aos artistas que permaneciam fiéis ao pensamento burguês continuar sustentando a teoria da arte pela arte, e viver encerrados em sua tôrre-de-marfim. No mundo civilizado contemporâneo não existe, ao que parece, um país cuja juventude burguesa não simpatize com as idéias de Frederico Nietzsche. Êste desprezava seus "sonolentos" (schläfrigen) contemporâneos muito mais que Teófilo Gautier aos "burgueses" de seu tempo. Qual era, aos olhos de Nietzsche, a culpa dos "sonolentos" contemporâneos seus? Qual era seu principal defeito, de que derivavam todos os outros? Êles não sabem pensar, sentir e, sobretudo, atuar como corresponde aos homens que ocupam na sociedade uma posição dominante. Nas atuais circunstâncias históricas, isso eqüivale a reprovar-lhes a carência de energia e de atitudes conseqüentes na defesa da ordem burguesa ante os atentados revolucionários do proletariado. Não por acaso fala Nietzsche com tanta ênfase dos socialistas. Pois bem, vejamos uma vez mais o que decorre de tudo isso. Enquanto Pushkin e os românticos de sua época reprovavam à "multidão" o apreciar demasiado a boa mesa, os inspiradores dos atuais neo-românticos lhe censuravam o não defendê-la com suficiente energia, isto é, não manifestar por ela bastante aprêço. E não obstante, os neo-românticos, do mesmo modo que os românticos dos velhos tempos, proclamam a autonomia absoluta da arte. Mas pode-se falar de autonomia de uma arte que, conscientemente, se propõe como objetivo defender as relações sociais existentes? Claro que não. Tal arte é, sem dúvida, uma arte utilitarista, e se seus representantes desprezam a criação que se orienta por considerações de tipo utilitarista, isso é devido simplesmente a um mal-entendido. Em realidade, as únicas considerações que êles não admitem —

não falo das considerações de interêsse pessoal, que nunca podem ter importância decisiva para quem esteja verdadeiramente entregue à arte — referem-se aos interêsses da maioria explorada ao passo que os interêsses da maioria exploradora são para êles lei suprema. Vemos, pois, que a atitude ante o utilitarismo na arte — seja o caso de Knut Hamsun ou de Francisco De Curel — é em realidade diametralmente oposta à que ante o mesmo problema sustentavam Teófilo Gautier ou Flaubert, embora êstes, como vimos, manifestassem veleidades conservadoras. Mas desde os tempos de Gautier e Flaubert, e por força do agravamento das contradições sociais, essas veleidades adquiriram tal desenvolvimento entre os artistas partidários do ponto de vista burguês, que agora lhes é incomparavelmente mais difícil se aterem, de modo conseqüente, à teoria da arte pela arte. Cometeria um grande êrro quem acreditasse que na atualidade já ninguém se agarra conseqüentemente a essa teoria. Aos neo-românticos — sempre sob a influência de Nietzsche — agrada verem-se situados "além do bem e do mal". Mas, que significa estar além do bem e do mal? Significa realizar uma obra histórica de tal magnitude que não pode ser julgada de acordo com os conceitos do bem e do mal que surgem à base de determinado regime social. Em sua luta contra a reação, os revolucionários franceses de 1793 estavam sem dúvida além do bem e do mal, o que quer dizer que suas ações se encontravam em contradição com os conceitos do bem e do mal que se haviam formado sobre a base do velho regime cujos dias já tinham passado. Tal contradição, sempre profundamente trágica, só encontra justificação no fato de que a atividade dos revolucionários, obrigados a se situarem temporalmente além do bem e do mal, faz que na vida da sociedade o mal retroceda ante o bem. Para tomar a Bastilha, teve que lutar contra seus defensores. E quem trava uma luta dêsse gênero se situa temporalmente e de modo inevitável além do bem e do mal. Mas como a tomada da Bastilha punha fim a um estado de arbitrariedade pelo qual se podia encarcerar "por prazer" (parce que tel est notre bon plaisir, segundo a célebre expressão dos reis absolutos de França), essa ação fazia retroceder o mal ante o bem na vida social do país, justificando assim a atitude de quem, ao lutar contra a arbitrariedade, se colocava temporariamente além do bem e do mal. Mas não podemos encontrar uma justificação análoga para todos os que se colocam além do bem e do mal. Ívar Kareno, por exemplo, certamente não duvidaria

um instante em pôr-se além do bem e do mal, sempre que pudesse ver convertidos em realidade seus "pensamentos livres como um pássaro". Mas, como já sabemos, todos seus pensamentos podem resumir-se no seguinte: luta implacável contra o movimento de emancipação do proletariado. Por isso, situar-se além do bem e do mal significaria para êle desprender-se do empecilho que para essa luta representam inclusive os poucos direitos conseguidos pela classe operária na sociedade burguesa. E se na luta tivesse obtido êxito, não teria reduzido o mal na vida da sociedade, mas aumentado. Portanto, sua passagem temporal a uma atitude situada além do bem e do mal não teria tido nenhuma justificação, como não a tem sempre que se realiza em aras de fins reacionários. Pode-se-me fazer a objeção de que, se bem que a atitude de ívar Kareno não tenha justificação do ponto de vista do proletariado, isso não quer dizer que não possa tê-la do ponto de vista da burguesia. Completamente de acordo. Mas o ponto de vista da burguesia é nesse caso o da minoria privilegiada, que aspira a perpetuar seus privilégios. Era troca, o ponto de vista do proletariado é o da maioria, que exige a abolição de todos os privilégios. Por isso, afirmar que a atividade de uma pessoa se justifica, vista do ângulo da burguesia, eqüivale a reconhecer que é condenada pelos que não estão dispostos a defender os interêsses dos exploradores. Isso me satisfaz, pois a marcha do desenvolvimento econômico é para mim a garantia de que o número dêstes últimos terá de crescer forçosa e ininterruptamente. Os neo-românticos odeiam os "sonolentos" porque querem que as coisas se movam. Mas o que êles desejam é um movimento conservador, oposto ao movimento de emancipação de nossa época. Aí é onde reside todo o segredo de sua psicologia, e também o segredo de que até os homens de mais talento entre êles não possam criar obras importantes como as que criariam se suas simpatias sociais estivessem orientadas em direção diversa e se fôsse outro seu modo de pensar. Vimos anteriormente a que ponto é falsa a idéia que De Curei toma como base para Le Repas du Lion. Mas uma idéia falsa não pode prejudicar a obra de arte, dado que falseia a psicologia de seus personagens. Custar-nos-ia trabalho demonstrar quanto há de falso na psicologia de Jean de Sancy, o herói principal dessa obra, mas isso obrigar-me-ia a uma digressão maior do que o permite o plano de meu artigo. Recorrerei a outro exemplo que me permitirá ser mais breve. A idéia fundamental da peça La Barricade é que na luta de classes cada um deve atuar ao lado de sua classe. Pois bem, 54 George Plekhanov

a quem considera Bourget como a "figura mais simpática" de sua obra? Ao velho operário Gaucherond(54), que não vai com os operários, mas com os patrões. A conduta dêsse operário está em aberta contradição com a idéia fundamental da obra e só pode parecer simpática a quem esteja totalmente cego pela simpatia para com a burguesia. O sentimento que impele Gaucherond é o de um escravo que contempla com veneração suas cadeias. Mas sabemos, desde os tempos do Conde Aléxis Tolstoi, quão difícil é despertar simpatia pela abnegação do escravo em quem não tenha sido educado no espírito da escravidão. Recorde-se Vassili Shibánov, que tão assombrosamente guarda sua "fidelidade servil"(55). Morre como um herói, apesar de horríveis torturas: Czar, diz apenas

uma

cousa:

glorifica a seu senhor. Não obstante, êsse heroísmo de escravo deixa indiferentes os leitores de hoje, que, com tôda a probabilidade, são incapazes de compreender como é possível que um "instrumento falante" (56) seja abnegadamente fiel a seu dono. Pois bem, o velho Gaucherond, da obra de Bourget, é uma espécie de Shibánov transformado de camponês servo em proletário moderno. Necessita-se estar cego para ver-se que é a "figura mais simpática" da obra. Em todo o caso, uma cousa é certa: Se Gaucherond parece simpático, isso mostra, a despeito de Bourget, que ninguém deve marchar com sua classe, mas com a que lhe pareça mais justa. Com sua obra, Bourget entra em contradição com seu próprio pensamento. E isso se deve, uma vez mais, à mesma causa pela qual, ao oprimir a outros, o prudente se torna néscio. Quando um artista de talento se inspira em uma falsa idéia, deita a perder a própria obra. E um artista contemporâneo não pode (54) São suas próprias palavras. Ver La Barricade , Paris, 1910, prefácio, pág. XIX. (55) É o herói da balada histórica, homônima, do poeta A. K. Tolstoi. Vassili Shibánov, servidor do Príncipe Kurbski, que fugira da Lituânia, sucumbe nas masmorras de Ivâ, o Terrível, depois de havei entregue a êste a mensagem de seu senhor. (56) Trata-se do instrumentum vocale, nome dado aos escravos na antiga Roma.

inspirar-se em шп idéia justa se quer defender a burguesia na luta que esta sustenta contra a proletariado. Disse antes, que aos artistas de agora que adotam o ponto de vista da burguesia lhes é incomparavelmente mais difícil que ontem se aterem conseqüentemente a teoria da arte pela arte. Assim o reconhece também, entre outros, Bourget, que se exprime, inclusive, de modo mais categórico: "O papel de registrador indiferente— diz — não é possível em um espírito que pensa, em uma sensibilidade que se comove quando se trata dessas terríveis guerras intestinas, nas quais parece, às vezes, estar em jogo todo o porvir da pátria e da civilização"(57). Mas aqui se impõe uma ressalva: o homem dotado de um espírito que pensa e de um coração sensível não pode ser, efetivamente, um espectador indiferente da guerra civil que se trava na sociedade contemporânea. Se seu campo visual está limitado por preconceitos burgueses, encontrar-se-á de um lado da "barricada"; se não está contaminado por esses preconceitos, estará do outro lado. Isso é tudo. Mas nem todos os homens da burguesia — e tampouco os de outras classes — possuem um espírito que pensa. E os que pensam, nem sempre possuem coração sensível. Para êles não é difícil, nem mesmo agora, serem conseqüentes partidários da teoria da arte pela arte. Esta é a que mais está em consonância com a indiferença pelos interêsses sociais, mesmo que sejam inteiramente classistas. E o regime social burguês pode contribuir, talvez mais que qualquer outro, para o desenvolvimento dessa indiferença. Quando gerações inteiras se educam no espírito do célebre princípio — "cada um por si e Deus por todos" — é muito natural que existem sêres egoístas que não pensem senão em si mesmos e não se interessem senão por si msmos. Com efeito, vemos que na burguesia moderna encontram-se talvez mais egoístas do que nunca. A êsse respeito temos o valiosíssimo testemunho de um dos mais destacados ideólogos: Maurício Barres. "Nossa moral, nossa religião, nosso sentimento nacional — diz êle — são cousas que decaíram e das que não podemos tomar emprestadas normas de vida. E enquanto esperamos que nossos mestres voltem a preparar verdades fidedignas, convém que nos atenhamos à única realidade: nosso eu(58). ( 57 ) La Barricade, prefácio, pág. XXIV. (58) Sous l'Oeil des Barbares, ed. 1901, pág. 18.

Quando o homem vê que tudo se desmorona, exceto seu próprio "eu", nada há que possa impedir-lhe atuar como aprazível registrador da grande guerra que se trava no seio da sociedade contemporânea. Entretanto, isso não é assim. Mesmo nesse caso, algo existe que lhe impede desempenhar tal papel. E é precisamente essa ausência de todo interêsse social, que com tanto bilhantismo vimos definida no trecho de Barrés, que acabo de citar. Que sentido tem para um homem que não se interessa pela luta ou pela sociedade dedicar-se a ser observador da luta social? Tudo o que a essa luta se refere provocar-lhe-á um tédio insuportável. E se é um artista, não encontrará em suas obras a menor alusão a ela. Não se ocupará senão da "única realidade", isto é, de seu "eu". E como, apesar de tudo, seu "eu" pode sentir-se aborrecido por não ter outra companhia que a si mesmo, inventará um mundo fantástico "no além", situado bem acima da terra e de todos os "problemas" terrenais. Assim é como procedem muitos artistas contemporâneos. Não é uma calúnia. Eles mesmos o reconhecem. Eis o que diz, por exemplo, nossa compatriota, a Senhora Z. Guíppius: "Considero que a oração é uma necessidade natural e imperiosa da natureza humana. Cada homem reza ou tende a rezar, e não importa que tenha consciência ou não disso; que reze de um ou de outro modo; que se dirija a êste ou àquele deus. A forma depende da capacidade e das inclinações de cada um. A poesia em geral, a versificação em particular, a música das palavras não são mais do que uma forma que a oração assume em nossa alma"(59). Semelhante identificação da "música verbal" com a oração não tem, evidentemente, qualquer fundamento. Na história da poesia houve períodos muito longos em que esta nada tinha a ver com a oração. Não há necessidade de discutir essa questão. O único que me importa neste caso é dar a conhecer ao leitor a terminologia da Senhora Guíppius, já que seu desconhecimento poderia despertar certa perplexidade ao 1er os seguintes trechos, cuja importância para nós reside em seu conteúdo: "Acaso temos culpa — continua a Senhora Guíppius — de que cada eu seja agora algo particular, solitário, desligado dos outros eus e, portanto, incompreensível e desnecessário para êles? Todos necessitamos, imperiosamente, de nossa oração, com(59)

Poesias, prefácio, pág. II.

preendemos e apreciamos nossa oração, todos necessitamos de nossa poesia, reflexo da plenitude fugaz de nossos corações. Mas os outros, os que têm seu sagrado eu, diferente do meu, esses não compreendem minha oração, estranha para êles. Л consciência da solidão separa ainda mais os homens, isola-os, obriga a alma a encerrar-se em si mesma. Envergonhamo-nos de nossas orações, e como sabemos que de todos os modos elas não nos permitirão fundir-nos com quem quer que seja, pronunciamo-las a meia voz para nós mesmos, falamos por meio de alusões que só nós entendemos"(60). Quando o individualismo chega a tais extremos, desaparece com efeito, como diz acertadamente a Senhora Guíppius, "a possibilidade de comunicar-se pela oração (isto é, pela poesia, digo eu); desaparece a comunidade no impulso à oração" (ou seja, a poesia). Mas isso não deixa de prejudicar a poesia e a arte em geral, que é um dos meios de comunicação entre os homens. O Jeová bíblico disse com todo o fundamento que não é bom que o homem esteja só. O exemplo da Senhora Guíppius confirma-o bem. Em uma de suas poesias lemos; Implacável é meu caminho, que à morte me conduz; mas amo a mim mesmo como a um deus, e o amor salvará minha alma. O sentido é duvidoso, pois quem é que "se ama a si mesmo como a um deus?" O egoísta consumado. E o egoísta consumado dificilmente pode salvar a alma de quem quer que seja. O de que se trata não é saber se se conseguirá salvar a alma da Senhora Guíppius e as de todos os que, como ela, "se amam a si mesmos como a um deus". O fato é que os poetas que se amam a si mesmos como a um deus não podem sentir quelquer interêsse pelo que acontece na sociedade que os rodeia. Suas aspirações terão, necessariamente, um caráter indefinido. Em sua poesia, A Canção, a Senhora Guíppius "canta": Ah! Em demencial tristeza morro, morro, (60) Obra citada, pág. III. 59 George Plekhanov

aspiro a algo que ignoro, que ignoro. . . Não sei de onde o desejo vem, de onde vem, mas meu coração anela e pede um milagre, um milagre. Oh! Suceda o que suceder, suceder. O pálido céu milagres promete, promete, mas choro sem lágrimas a falsa promessa, Necessito o que no mundo não existe, o que no mundo não existe. Aparentemente, não está mau. A uma pessoa que "se ama a si mesma como a um deus" e que perdeu capacidade de comunicar-se com os outros homens não resta senão "pedir um milagre e anelar pelo "que no mundo não existe", pois o que existe no mundo não pode interessar-lhe. Serguéiev-Tsenski pôe na boca do Tenente Babáiev(61): "a clorose inventou a arte"(62). Êste filosofante, filho de Marte, equivoca-se rotundamente ao supor que qualquer arte tenha sido inventada pela clorose. Mas é absolutamente indiscutível que uma arte que tende para "o que no mundo não existe" tenha sido engendrada pela "clorose". Tal arte representa a decadência de todo um sistema de relações sociais, pelo que com tôda a razão se denomina de decadente. É bem verdade que êsse sistema de relações sociais cuja decadência é expressa por dita arte, isto é, o sistema das relações capitalistas de produção, acha-se ainda em nossa pátria muito longe da decadência. Na Rússia, o capitalismo ainda não conseguiu liquidar definitivamente o velho regime. Mas a literatura russa está fortemente influenciada desde os tempos de Pedro I pelas literaturas da Europa Ocidental. Por isso, ela se impregna com freqüência de tendências que, embora correspondam plenamente às relações sociais existentes na Europa Ocidental, concordam muito pouco com as relações sociais relativamente atrasadas da Rússia. Houve época em que alguns de nossos (61) Tsenski. (62)

Personagem da obra homônima do escritor S. N. SerguéievContos, T. II, pág. 128.

aristocratas se apaixonavam pelas teorias dos enciclopedistas(63), que correspondem a uma das últimas fases da luta do Terceiro Estado contra a aristocracia em França. Na atualidade, muitos de nossos "intelectuais" se apaixonam por teorias sociais, filosóficas e estéticas que correspondem à época da decadência da burguesia na Europa Ocidental. Essa paixão se antecipa ao curso de nosso desenvovimento social do mesmo modo por que se antecipou a êle a paixão dos homens do século XVIII pelas teorias dos enciclopedistas(64). Mas o fato de que a aparição do decadentismo russo não possa ser suficientemente explicado por causas que poderíamos denominar domésticas, não modifica sua natureza. Vindo do Ocidente, tampouco na Rússia deixa de ser o que era em seu lugar de origem: um produto da clorose que acompanha a decadência de uma classe que hoje em dia é a classe dominante na Europa Ocidental. A Senhora Guíppius dirá, talvez, que lhe atribuo, sem qualquer fundamento, uma indiferença absoluta pelos problemas sociais, mas, em primeiro lugar, eu nada lhe atribuo, mas apenas me atenho às suas expansões líricas, limitando-me a definir-lhes o sentido. Deixo ao leitor o cuidado de decidir se eu entendi bem o sentido de tais expansões. Em segundo lugar, sei, naturalmente, que a Senhora Guíppius não tem agora qualquer inconveniente em também falar do movimento social. Assim, o livro por ela escrito em colaboração com D. Merezhkovski e D. Filosófov(64-A), editado na Alemanha em 1908, pode ser um testemunho eloqüente do seu interêsse pelo movimento so(63) Sabe-se, por exemplo, que a obra de Helvécio, De l'Homme, foi editada em 1772, em Haia, por um dos príncipes Golitsin. (64) A paixão dos aristocratas russos pelos enciclopedistas franceses não teve qualquer conseqüência séria. Não obstante, foi útil, porquanto contribuiu para depurar a mente de alguns nobres, de certos preconceitos aristocráticos. Pelo contrário, a atual paixão de alguns setores de nossa intelectualidade pelas idéias filosóficas e os gostos estéticos da burguesia decadente é prejudicial, dado que enche nossas cabeças "intelectuais" de preconceitos burgueses, para cuja aparição independente o solo russo ainda não fôra suficientemente preparado pelo curso do desenvolvimento social. Tais preconceitos penetram inclusive na mente de muitos russos que simpatizam com o movimento operário, provocando uma mistura assombrosa de socialismo com o modernismo engendrado pela decadência da burguesia. Êsse confusionismo ocasiona muitos prejuízos, inclusive na prática. (64-A) Conforme ao original (N. do T.)

eial russo. Mas basta 1er o prólogo para ver como os autores tendem exclusivamente para o "que ignoram". Ali se diz que a Europa conhece a obra da revolução russa, mas desconhece sua alma. E, provavelmente, para dar a conhecer à Europa a alma da revolução russa, os autores contam aos europeus o seguinte: "Parecemo-nos convosco, como a mão esquerda se parece com a direita. . . Somos iguais a vós, mas em sentido contrário. . . Kant havia dito que nosso espírito está no transcendente e o vosso, no fenômeno. . . Nietzsche teria afirmado que entre vós Apoio domina, e entre nós, Dionísio; vosso gênio reside na moderação; o nosso, no impulso. Sabeis vos deterdes a tempo; se esbarrais com um muro, parais ou o evitais, fazendo uma volta; nós, em troca, nos lançamos contra êle de cabeça ( wir rennen uns aber die Köpfe ein). Custa-nos mover-nos, mas uma vez em movimento, já não conseguimos parar. Não andamos, corremos. Não corremos, voamos. Não voamos, precipitamo-nos. Preferis o termo médio; nós, os extremos. Sois justos; para nós não existem leis de qualquer espécie. Sabeis conservar vosso equilíbrio espiritual; nós tendemos a perdê-lo. Possuis o presente, nós buscamos o futuro. No final de contas, colocais sempre o poder do Estado acima das liberdades que podeis obter. Nós, ao contrário, continuamos rebeldes e anarquistas, mesmo quando subjugados pelas cadeias da escravidão. A razão e o sentimento levam-nos aos últimos limites da negação, conquanto no mais fundo de nosso ser e de nossa vontade continuemos místicos"(65). Logo depois, os europeus se dão conta de que revolução russa é tão absoluta quanto a forma de Estado contra a qual é dirigida, e que se o objetivo empírico consciente de dita revolução é o socialismo, seu objetivo místico inconsciente é a anarquia (66 ).

Os autores terminam dizendo que não se dirigem aos burgueses europeus mas. . . ao proletariado — pensarão os leitores. Pois enganam-se! "Somente a algumas mentes da cultura universal, às pessoas que compartem a idéia nietzschiana de que o estado é o mais frio de todos os monstros frios", etc.(67). (65) Dmitri Merezhkovski, Zenaide Guíppius, Dmitri Philosophoff, Der Zar und die Revolution, München, K. Piper & Co. Verlag, 1908, págs. 1-2. (66) Obra cit., pág. 5.

(67)

Idem, pág. 6.

Ao citar essas passagens não tenho em mente fins polêmicos. Não polemizo, mas procuro apenas definir e explicar certos estados de ânimo de determinadas camadas sociais. Confio em que os trechos reproduzidos por mim mostrem com suficiente clareza que a Senhora Guíppius, ao interessar-se (finalmente!) pelas questões sociais, continua sendo o que era nos versos referidos mais acima: individualista consumada de tipo decadente, que anseia por um "milagie" baseada exclusivamente na crença de que não tem qualquer relação séria com a verdadeira vida social. 0 leitor não terá esquecido a idéia de Leconte de Lisle de que a poesia atual dá vida ideal a quem já não tem vida real. Mas quando alguém perde toda comunicação espiritual com as pessoas que a rodeiam, sua vida ideal perde todo contato com a terra. E então sua fantasia leva-o ao céu e converte-o em místico. 0 interêsse da Senhora Guíppius pelas questões sociais, penetrado de misticismo até a medula, é completamente estéril(68). Em vão, pensa com seus colaboradores que a ânsia com que se produz um "milagre" e sua negação "mística" da "política" "como ciência" são traços distintivos dos decadentistas russos(69). O "sereno" Ocidente deu antes que a "ébria" Rússia homens que se erguem contra a razão, em nome da grandeza irracional. 0 Eric Falk(70), de Przybyszewski atira-se (68) A senhora Guíppius e Merezhkovski e Filosófov não rejeitam em seu livro alemão o título de "decadentista". Limitam-se a dizer modestamente à Europa que os decadentes russos "alcançaram os cumes mais elevados da cultura universal" ("haben die höchsten Gipfel der Weltkultur erreicht"). ОЬга cit., pág, 151. (69) Seu anarquismo místico, naturalmente, não assusta a ninguém. O anarquismo não é, em geral, mais do que uma dedução extrema das premissas fundamentais do idealismo burguês. Essa é a razão por que os ideólogos burgueses do período da decadência simpatizam tão freqüentemente com o anarquismo. Maurício Barrés também simpatizou com o anarquismo na época em que afirmava que a única realidade é nosso eu. Mas agora é certo que não simpatize conscientemente com o anarquismo, pois já faz tempo que cessaram os impulsos supostamente tumultuários do individualismo "barresiano". Para êle, "restabeleceram-se" aquelas "verdades fidedignas" que em seu tempo proclamou como "destruídas". O processo de seu restabelecimento deuse ao adotar Barrés o reacionário ponto de vista do nacionalismo mais vulgar, que nada tem de estranho, pois do extremado idealismo burguês às verdades" mais reacionárias não há senão um passo. Aviso à senhora Guíppius e aos senhores Merezhkovski e Filosófov. (70) Personagem da novela Homo Sapiens, ища das mais conhecidas de Przybyszewski.

contra os sociais-democratas e os "anarquistas de salão, tipo J. H. Mac-Kay", apenas por sua suposta confiança excessiva na razão. "Todos êles — proclama êsse decadentista russo —pregam a revolução pacífica, a substituição da roda quebrada por outra nova, enquanto o carro está em movimento. Todo seu edifício dogmático, precisamente por ser tão lógico, é de uma supina estupidez, pois se baseia na onipotência da razão. Nada do que ocorreu até agora teve sua origem na razão, mas na estupidez, na absurda casualidade. Essa referência de Falk à "estupidez" e à "absurda casualidade" é de idêntica natureza à ânsia de "milagre" de que está tão penetrado o livro alemão da Senhora Guíppius e dos senhores Merezhkovski e Filosóv. Ë a mesma idéia com nomes diferentes. Sua origem explica-se pelo extremado subjetivismo de grande parte da intelectualidade burguesa de nossos dias. Quando alguém considera que a única "realidade" é seu próprio "eu", não pode admitir a existência de uma relação objetiva, "razoável", isto é, determinada por leis, entre êsse "eu" e o mundo que o rodeia. O mundo exterior deve parecer-lhe totalmente irreal, ou real em parte, na medida em que sua existência se apóia na única realidade verdadeira, ou seja, em nosso "eu". Se é afeiçoado à especulação filosófica, dirá que nosso "eu" ao criar o mundo exterior proporciona-lhe pelo menos uma parte de sua racionalidade; um filósofo não pode negar por completo a razão, sequer quando limita seu direitos por tais ou quais considerações, como por exemplo, em interêsses da religião(71). Mas se o homem que considera que a única realidade é seu próprio "eu" não se sente inclinado à especulação filosófica, de modo algum ocorrer-lhe-á pensar como êsse "eu" cria o mundo exterior. E então não estará disposto a ver no mundo exterior nem mesmo um mínimo de racionalidade, isto é, de obediência a leis. Ao contrário, êsse mundo parecer-lhe-á em tal caso o reino da "absurda casualidade". E se lhe ocorre simpatizar com algum grande movimento social, dirá necessariamente, como Falk, que seu êxito (71) Citamos Kant como exemplo de um pensador que limita os direitos da razão no interêsse da religião: "Ich musste ylso das Wissen aufheben , um zum Glauben Platz zu bekommen". ("Assim, pois, tive que suprimir a ciência para dar lugar à fé"). Crítica da Razão Pura, prefácio à 2. a edição, pág. 26, Leipzig, Druck und Verlag von Phillipp Reclam, 2. a edição melhorada.

de modo algum pode ser assegurado pelo curso regular do desenvolvimento social, mas unicamente pela "estupidez" humana, ou o que é o mesmo, pela absurda casualidade histórica. Mas como disse, a idéia mística que a Senhora Guíppius e seus dois correligionários têm do movimento russo de libertação não se distingue por sua essência da que tinha Falk das "absurdas" causas dos grandes acontecimentos históricos. Em seu afã de assombrar a Europa com a desmesurada amplitude do anelo de liberdade dos russos, os autores do citado livro alemão manifestam-se como puros decadentistas, capazes de simpatizar apenas "com o que nunca acontece", ou dito em outros têrmos, incapazes de sentir simpatia por nada do que ocorre na realidade. Seu anarquismo místico não reduz, portanto, a significação das deduções feitas por mim das expansões líricas da Senhora Guíppius. Já que falei disso, exporei meu pensamento até o fim. Os acontecimentos de 1905-1906 haviam provocado entre os decadentistas russos uma impressão tão forte como a que os acontecimentos de 1848-1849 provocaram nos românticos franceses. Despertam nêles o interêsse pela vida social. Mas êsse interêsse correspondia menos ao espírito dos decadentistas do que ao dos românticos, razão por que entre aquêles foi menos firme do que entre êstes. Não há, pois, qualquer razão para levá-lo a sério. Voltemos à arte contemporânea. Quando alguém está disposto a considerar que a única realidade é seu próprio "eu", então, do mesmo modo que a Senhora Guíppius, amar-se-á a si mesmo como a um "deus". Isso se compreende perfeitamente e é de todo inevitável. Mas se alguém "se ama a si mesmo como a um deus", em suas obras de arte não se ocupará mais da própria pessoa. O mundo exterior interessar-lhe-á tão somente na medida em que, de um modo ou de outro, tenha algo que ver com essa "única realidade", com êsse valioso "eu". Na interessante peça de Sudermann — Das Blumenboot — a Baronesa de Erfflingen diz a sua filha Thea, na primeira cena do segundo ato: "A gente de nossa categoria existe para fazer das cousas dêste mundo uma espécie de alegre panorama que desfila ante nossos olhos, ou melhor, que parece desfilar, porque em realidade, o que se move somos nós. Isso é indubitável. E não necessitamos de nenhum lastro". Tais palavras exprimem bem o objetivo da vida das pessoas que pertencem à categoria da Senhora Erfflingen e que com pleno convencimento podem repetir as palavras de Barres: 64 George Plekhanov

"A única realidade é nosso eu". Mas as pessoas que tenham êsse objetivo na vida considerarão a arte apenas como um meio de embelezar, de uma forma ou de outra, o panorama que "parece" desfilar diante de nós. E, ademais, também neste caso procurarão não carregar qualquer lastro. Desprezarão por completo o conteúdo ideológico das obras de arte ou tratarão de submetê-lo às exigências caprichosas e variáveis de seu extremado subjetivismo. Vejamos o que ocorre na pintura. Os impressionistas deram provas da mais completa indiferença pelo conteúdo ideológico de suas obras. Um deles, exprimindo com grande acêrto a convicção de todos, disse: a luz é a personagem principal do quadro. Mas a sensação da luz não é mais do que uma sensação, isto é, não é ainda um sentimento, não é ainda uma idéia. O artista, cuja atenção se limita a fixar-se nas sensações, permanece indiferente aos sentimentos e às idéias. Pode pintar uma bela paisagem. E, efetivamente, os impressionistas pintaram muitas paisagens excelentes. Mas é de ver que a pintura se não reduz à paisagem (72). Recordemos A última Ceia, de Leornardo da Vinci, e perguntemos se a luz é a principal personagem nesse famoso fresco. Sabe-se que o quadro representa o momento das relações entre Jesus e seus discípulos cheio de comovedor dramatismo, em que o mestre lhe diz: "Um de vós me trairá". O objetivo de Leonardo da Vinci era representar, tanto o estado de ânimo de Jesus, profundamente agoniado por sua terrível revelação, como o de seus discípulos, que não podiam crer que a traição houvesse pe(72) Entre os primeiros impressionistas havia muitos artistas de talento. É significativo que entre esses homens de grande talento não houvesse retratistas de primeira plana. Isso é compreensível, pois no retrato, a luz não pode ser o personagem principal. Ademais, as paisagens pintadas pelos grandes mestres do impressionismo são belas porque transmitem com acêrto os caprichosos e variados jogos de luz, mas têm pouca "alma", Feuerbach dizia muito bem: "Die Evangelien der Sinne im Zusammenhang lesen heisst denken". (Pensar é 1er coordenadamente o evangelho dos sentidos). Se levarmos em conta que Feuerbach entendia por "sentidos", por sensualidade, tudo o que se refere ao domínio das sensações, poderemos dizer que os impressionistas não sabiam nem queriam 1er "o evangelho dos sentidos". E êsse era o defeito principal de sua escola, que logo haveria de conduzi-los à degenerescência. Se bem que as paisagens dos primeiros e mais destacados mestres do impressionismo sejam belas, muitas das pintadas por seus numerosíssimos seguidores parecem caricaturas.

netrado em sua reduzida família. Se o artista acreditasse que a luz fosse o elemento principal do quadro, sequer teria pensado em representar o drama. E, em que pese a isso, tivesse pintado o fresco, seu principal interêsse artístico não estaria no que ocorre na alma de Jesus e de seus discípulos, mas no que ocorre nos muros da sala em que estão reunidos, na mesa atrás da qual estão sentados e em sua própria imagem, isto é, nos diversos efeitos de luz. E então não teríamos ante nós um comovente drama espiritual, mas uma série de manchas de luz bem pintadas: uma, por exemplo, no muro da sala; outra sobre a toalha da mesa; outra no nariz adunco de Judas; outra na face de Jesus, etc., etc. Mas isso faria com que a impressão produzida pelo afrêsco fôsse incomparavelmente menor, o que reduziria muito o valor da obra de Leonardo da Vinci. Alguns críticos franceses comparavam o impressionismo com o realismo na literatura. Tal comparação não carece de fundamento. Não obstante, se os impressionistas têm sido realistas, devemos reconhecer que seu realismo era completamente superficial, que não ia além da "periferia dos fenômenos". E quando êsse realismo chegou a consiquistar importante lugar na arte contemporânea — e é indubitável que o conquistou — aos pintores nêle educados não restaram senão duas saídas: elucubrar em torno da "periferia dos fenômenos", inventando novos efeitos de luz, cada vez mais surpreendentes e mais artificiais, ou tratar de penetrar além da "periferia dos fenômenos", compreendendo o erro dos impressionistas e reconhecendo que o personagem principal do quadro não é a luz, mas o homem com sua grande variedade de sentimentos. E, efetivamente, na pintura contemporânea vemos tanto uma cousa como outra. Quando a atenção se concentra na "periferia dos fenômenos", surgem essas telas paradoxais ante as quais os críticos mais condescendentes se quedam perplexos, reconhecendo que a pintura contemporânea está atravessando uma "crise de fealdade"(73). Mas, a consciência de que é impossível limitar-se à "periferia dos fenômenos" obriga a procurar um conteúdo ideológico, isto é, a adorar o que pouco antes se condenava à fogueira. Contudo, dar um conteúdo ideológico às obras não é tão fácil como parece. A idéia não é algo que exista independentemente do mundo real. A reserva de idéias de (73) Ver o artigo de Camille Mauclair — La Crise de la Laideur en Peinture — em sua interessante recopilação intitulada — Trois Crises de VArt Actuel, Paris, 1906.

um homem se determina e enriquece por suas relações com o mundo. E quem, em suas relações com o mundo real considera que seu "eu" é a única realidade, submerge, inevitàvelmente, na mais completa pobreza de idéias. Não só carece delas, mas, sobretudo, não tem a possibilidade de adquiri-las. E como à falta de pão, boas se tornam as tortas, a falta de idéias obriga a contentar-se com vagas alusões às idéias, com sucedâneos tomados ao misticismo, ao simbolismo e outros "ismos" que caracterizam a época da decadência. Resumindo, diremos que na pintura se repete o que já vimos nas belas-letras: o realismo derrui, como resultado de sua própria inconsistência; triunfa a reação idealista. O idealismo subjetivo sempre teve por base a idéia de que a única realidade é nosso "eu". Mas, foi preciso todo o ilimitado individualismo da época da decadência da burguesia para fazer dessa idéia não só a norma egoísta que regula as relações entre os homens que "se amam a si mesmos como a um deus" (a burguesia nunca se distinguiu por excesso de altruísmo), mas também a base teórica de uma nova estética. O leitor terá ouvido falar dos chamados cubistas, e se teve ocasião de ver as cousas que fazem, não me enganarei muito ao supor que o não entusiasmaram. Em mim, pelo menos, tais obras nada despertam que se assemelhe ao prazer estético. " 0 absurdo elevado ao cubo", isso é o que ocorre dizer a quem quer que contemple os exercícios pseudo-artísticos dos cubistas. Mas o "cubista" tem sua razão de ser. Qualificá-lo de absurdo elevado à terceira potência não é explicar sua origem. Não é êste, naturalmente, o lugar indicado para tal explicação, mas podemos indicar a direção em que deve ser procurada. Tenho diante de mim o interessante livro de Alberto Gleizes e João Metzinger, Du Cubisme. Os dois autores da obra são pintores e pertencem à escola "cubista". Fiéis à regra do audiatur et altera pars(74), vejamos o que dizem. Como justificam seus demenciais métodos de criação? "Fora de nós, dizem, nada existe de real. . . De modo algum nos ocorre pôr em dúvida a existência dos objetos que impressionam nossos sentidos; mas a única certeza razoável que podemos ter é da imagem que êsses objetos despertam em nosso espírito(75). (74) (75)

Ouçamos também a outra parte. Obra cit., pág. 30.

Disso os autores deduzem que não sabemos qual a forma dos objetos. E consideram que isso lhes dá direito a apresentá-los a seu bel-prazer. Fazem a ressalva, digna de levar-se em conta, de que, diferentemente dos impressionistas, não querem limitar-se ao domínio das sensações. "Procuramos o essencial, dizem, mas buscamo-lo em nossa personalidade e não em uma espécie de eternidade trabalhosamente elaborada pelos matemáticos e filósofos "(76 ). Como vê o leitor, nessas disquisições encontramos, antes de tudo, embora de forma atenuada, a idéia já bem conhecida de que nosso "eu" é "a única realidade". Gleizes e Metzinger dizem que de modo algum põem em dúvida a existência do mundo exterior. Mas, depois de admitir a existência do mundo exterior, nossos autores proclamam arbitrariamente sua incognoscibilidade. Isso significa que para êles tampouco existe o real fora do seu "eu". Se as imagens dos objetos surgem em nós como conseqüência da ação que estes exercem sobre nossos sentidos, é evidente que não se pode falar de incognoscibilidade do mundo exterior: conhecemos o mundo graças precisamente a essa ação. Gleizes e Metzinger enganam-se. Suas razoes acêrca das formas em si coxeiam também dos dois pés. Mas não se lhes pode imputar a falta por seus erros, dado que erros análogos foram cometidos por pessoas incomparavelmente mais versadas em filosofia. Não obstante, não podemos desprezar o fato seguinte: da pretensa incognoscibilidade do mundo exterior, nossos autores deduzem que o essencial deve procurar-se em "nossa personalidade". Tal dedução pode ser interpretada de duas maneiras: por "personalidade" entende-se, em primeiro lugar, todo o gênero humano em seu conjunto, e em segundo lugar, qualquer indivíduo isolado. No primeiro caso, chegaremos ao idealismo transcendental de Kant; no segundo, a reconhecer de modo sofistico que o indivíduo é a medida de tôdas as cousas. Nossos autores tendem precisamente à interpretação sofistica de dita solução. Mas, quando se aceita esta segunda interpretação(77), alguém pode permitir-se tudo quanto lhe dê na veneta, do mesmo modo que em pintura e no resto. Se em lugar de La Femme en Bleu, título de um quadro de F. Leger, exposto no último (76) Ibid., pág. 31. (77) Ver obra citada, particularmente as páginas 43 e 44, 68 George Plekhanov

Salão de Outono, pinto figuras estereométricas, quem poderá dizer-me que pintei um mau quadro? As mulheres são parte do mundo exterior que me rodeia. 0 mundo exterior é incognoscível. Para representar uma mulher, devo apelar para minha própria "personalidade", mas esta dá à mulher a forma de vários cubos, ou melhor paralelepípedos, em desordem. Êsses cubos fazem rir a todos os visitantes do Salão. Não importa. A "multidão" ri porque não compreende a linguagem do artista. O artista jamais deve ceder ante ela. "O artista que não faz qualquer concessão, que nada explica nem dá conta de nada, acumula força interior, cuja radiação ilumina tudo quanto se encontra à volta"(78). E à espera de que essa força se acumule, não resta senão pintar figuras estereométricas. Resulta, pois, uma espécie de divertida paródia à poesia de Pushkin, Ao Poeta: Estás contente com tua obra, exigente artista? Estás contente? Pois deixa que a multidão a [achincalhe, que cuspa no altar onde arde teu fanal, e em sua travessura infantil faça vacilar a trípode. O cômico da paródia reside em que o "exigente artista" está contente com a estupidez mais evidente. A aparição de tais paródias mostra-nos, entre outras coisas, que a dialética interna da vida social levou a teoria da arte pela arte ao mais completo absurdo. Não é bom que o homem esteja só. Os atuais "inovadores" da arte não se contentam com o criado por seus predecessores. Nada de mau existe nisso. Ao contrário: o afã do novo é amiúde uma fonte de progresso. Mas nem todos os que procuram o verdadeiramente nôvo o encontram. Ë preciso saber procurar o nôvo. Quem não é capaz de compreender as novas doutrinas da vida social, quem crê que não existe outra realidade que seu próprio "eu", ao buscar o "nôvo" não achará senão um nôvo absurdo. Não é bom que o homem esteja só. Resulta que, dadas as atuais condições sociais, a arte pela arte não dá frutos saborosos. 0 individualismo extremado da época da decadência burguesa cega todas as fontes de verda(78)

Obra cit., pág. 42.

deira inspiração do artista, impede-o de ver d que acontece na vida social e condena-o a estéreis manipulações com suas insubstanciais emoções pessoais e mórbidas fantasias. O resultado final de tais manipulações é algo que não tem a menor relação com qualquer tipo de beleza e que, ademais, constitui um absurdo evidente, que só pode ser defendido mediante uma desfiguração sofistica da teoria idealista do conhecimento. Para Pushkin, o "povo frio e altivo" ouve "sem compreender" o poeta que canta(79). Já tive ocasião de dizer que, para a pena de Pushkin, tal oposição tinha sua razão histórica. Para compreendê-la basta ter em conta que os epítetos "frio e altivo" não podiam ser aplicados de modo algum ao lavrador servo da Rússia de então. Em troca, isto sim, eram perfeitamente aplicáveis a qualquer representante daquela "turba" mundana que com sua estupidez aniquilou o nosso grande poeta. Os que a integravam podiam dizer de si mesmos, sem qualquer exagero, o que diz a "turba", no poema de Pushkin: Somos pusilânimes e pérfidos, desavergonhados, maus e ingratos eunucos de coração frio, caluniadores, escravos, néscios, cheios a transbordar de vícios. Pushkin viu que seria ridículo dar lições "audazes" a essa multidão mundana, sem alma, que nada compreenderia delas. Teve razão ao virar-lhe orgulhosamente as costas. E se em alguma cousa faltou-lhe razão, foi por não ter-se afastado completamente dessa gente mundana, o que foi uma infelicidade para a literatura russa. Mas, na atualidade, nos países capitalistas avançados, a atitude que adota ante o povo o poeta, e em geral o artista que não soube desfazer-se da velha natureza burguesa, é diametralmente oposta à que vemos em Puhskin. Assim, a quem se pode acusar de necedade não é ao "povo", não ao verdadeiro povo, cuja parte avançada adquire cada vez mais consciência, mas aos artistas que ouvem seus nobres chamamentos "sem compreendê-los". No melhor dos casos, a culpa dêsses artistas consiste em que o relógio se lhe atrasa de ointenta anos. Êles (79) As palavras aspadas pertencem à poesia de A. S. Pushkin, O Poeta e a Multidão.

rechaçam as melhores aspirações de sua época e crêem ingênuamente que são os continuadores da luta que os românticos haviam empreendido contra o espírito burguês. Os estetas da Europa Ocidental, e atrás dêles os estetas russos, são dados a divagar sobre o tema de espírito pequeno-burguês do atual movimento proletário. Que ridículo! Ricardo Wagner demonstrou, faz tempo, que tais censuras do espírito pequeno-burguês dirigidas por êsses senhores ao movimento libertador do proletariado não têm qualquer fundamento. Wagner considera com muita razão que um exame atento (" genau betrachtet" ) da questão mostra que o movimento libertador da classe operária não aspira à vida pequenoburguesa, mas tende a afastar-se dela e a aproximar-se de uma vida livre, de um "humanitarisme artístico ( "aum künstlerischen Menschentum" ). Ë a "tendência a um gôzo digno da vida, de uma vida na qual o homem já não terá que gastar tôdas as forças vitais, para conseguir os meios materiais de existência". Essa necessidade de malbaratar tôdas as forças vitais para obter os meios materiais de existência constitui precisamente hoje em dia a origem dos sentimentos "pequenos-burgueses". A constante preocupação por conseguir os meios de existência "fêz o homem fraco, servil, torpe e mesquinho; converteu-o num ser incapaz de amar e de odiar, num cidadão disposto a todo o momento a sacrificar os últimos vestígios de seu arbítrio, contanto que alivie essa preocupação". O movimento libertador do proletariado leva à supressão dessa inquietação que humilha e perverte o homem. Wagner considerava que só a sua supressão, só a plasmação dos anelos emancipadores do proletariado podiam converter em realidade as palavras de Jesus: não vos preocupeis pelo que tendes de comer, etc(80). E poderia acrescentar com justo direito que só então ficaria privada de todo fundamento sério a oposição entre a estética e a ética que encontramos nos partidários da arte pura, como por exemplo, Flaubert (81), que dizia que 1 "os livros virtuosos são aborrecidos e falsos" ("ennuyeux et faux"). E tinha razão, porque a virtude da sociedade atual, a virtude burguesa, é aborrecida e falsa. A "virtude" da antigüidade não era para Flaubert nem falsa nem aborrecida. (80) Die Kunst und die Revolution (R. Wagner, Gesammelte Schriften, Б. II, Leipzig, 1872, págs. 40-41. (81) Les Carnets de Gustave Flaubert (L. Bertrand, Gustave Flaubert, pág. 260).

Não obstante, o único que a distingue da virtude burguesa é que nada tem a ver com o individualismo burguês. Shirinski-Shikhmátov considerava, na qualidade de ministro da Instrução Pública de Nicolau I, que a missão da arte devia consistir "em afirmar a convicção, tão importante para a vida social e privada, que o mal encontra seu digno castigo na terra", isto é, na sociedade tão zelosamente submissa à tutela dos Shirinski-Shikhmátov Tratava-se, naturalmente, de grande mentira e de aborrecida trivialidade. Os artistas fazem muito bem em se afastar dessa mentira e dessa trivialidade. E quando ouvimos Flaubert dizer que, em certo sentido, "nada é mais poético que o vício"(82), compreendemos que o verdadeiro sentido dessa oposição consiste em contrapor o vício à virtude trivial, aborrecida e falsa dos moralistas burgueses e dos Shirinski-Shikhmátov. Mas, ao ser abolido o regime social que dá origem a essa virtude trivial, aborrecida e falsa, desaparecerá também a necessidade moral de idealizar o vício. A virtude da antigüidade, repito, não parecia a Flaubert trivial, aborrecida e falsa, em que pese ao insignificante desenvolvimento de seus conceitos sociais e políticos que lhe permitia admirar essa virtude e, do mesmo modo, entusiasmar-se pela conduta de Nero, que era sua negação monstruosa. Na sociedade socialista, a inclinação para a arte pura será logicamente impossível na medida mesma em que terá de desaparecer o envilecimento da moral social, que hoje é uma conseqüência inevitável do afã da classe dominante de conservar seus privilégios. Flaubert dizia: "L'art c'est la recherche de l'inutile" (83). Não é difícil reconhecer nessas palavras a idéia fundamental do poema de Pushkin, A Plebe. Mas o entusiasmo por essa idéia não significa senão que o artista se rebela contra o estreito utilitarismo de determinada classe ou casa dominante... Ao desaparecerem as classes, desaparecerá também êsse utilitarismo estreito, parente próximo da cobiça. A cobiça nada tem a ver com a estética: os juízos de valor pressupõem sempre em quem os emite, a ausência de considerações de interêsse pessoal. Mas, uma cousa é o interêsse pessoal e outra o interêsse social. 0 afã de ser útil à sociedade, em que a virtude se baseava na antigüidade, é uma fonte de abnegação, e os atos abnegados podem servir muito bem — e com efeito têm servido com muita freqüência, como nos mostra a história da arte — de objeto de representação es(82) Obra cit. (83) "A arte é a busca do inútil." 72 George Plekhanov

tética. Basta recordar as canções dos povos primitivos e, para não ir longe, o monumento de Harmódio e Aristogíton em Atenas (84); Os pensadores da antigüidade, como Platão e Aristóteles, haviam compreendido muito bem até que ponto o homem se anula quando tôda sua força vital é absorvida pela preocupação com a existência material. Do mesmo modo o compreendem na atualidade os ideólogos da burguesia. Êles consideram também que é preciso libertar o homem da humilhante carga das eternas dificuldades econômicas. Mas o homem a que êles se referem pertence à classe mais elevada da sociedade, que vive da exploração dos trabalhadores. Vêem a solução do problema do mesmo modo por que o vêem os pensadores da antigüidade: através da submissão dos produtores por um punhado de felizes eleitos, que se aproximam do ideal do "super-homem". Mas, se tal solução tinha já um caráter conservador na época de Platão e Aristóteles, hodiernamente é sobretudo reacionária. E se os conservadores escravistas gregos dos tempos de Aristóteles podiam confiar em que lograriam manter uma posição dominante, apoiando-se em sua própria "valentia", os atuais propugnadores da submissão das massas populares mostram-se céticos quanto à valentia dos exploradores burgueses. Por isso, são dados a sonhar com a aparição de um super-homem genial que, pôsto à testa do Estado, escore com férrea vontade o cambaleante edifício da dominação classista. Os decadentistas que não são alheios aos interêsses políticos se manifestam freqüentemente como ferventes admiradores de Napoleão I. Se Renan pedia um govêrno forte que obrigasse aos "bons camponeses" a fazer seu trabalho enquanto êle se dedicava à especulação, os atuais estetas necessitam de u m regime social que

obrigue o proletariado a trabalhar, enquanto êles se entregam a prazeres elevados... como desenhar e colorir cubos e outras figuras estereométricas. Orgânicamente, incapazes de realizar qualquer trabalho sério, mostram-se sinceramente indignados ante a idéia de um regime social em que não haja gente ociosa de qualquer classe. (84) Cidadão de Atenas que, no ano 514, antes de nossa era, acumpliciaram-se para matar os tiranos Hípias e Hiparco, que governavam Atenas. Ainda que a conjura obedecesse a motivos de ordem pessoal, Harmódio e Aristogíton perpetuaram-se na imaginação dos gregos como homens que haviam libertado a cidade da tirania.

Quem com lobos vive, lobo tem que ser. Ao mesmo tempo em que combatem... de palavra o espírito pequeno-burguês, os atuais estetas burgueses veneram o bezerro de ouro com a mesma paixão do pequeno-burguês mais vulgar. "Crê-se que existe um movimento no domínio da arte. O que existe realmente é um movimento na Bolsa de quadros, onde também se especula com os gênios inéditos"(85). Acrescentarei, de passagem, que essa especulação com os gênios inéditos obedece, entre outras causas, à busca febril do "nôvo", a que está entregue a maioria dos artistas contemporâneos. Há gente que tende sempre para o nôvo" porque o velho não lhe satisfaz. Mas, o problema consiste em saber por que não satisfaz. A muitíssimos artistas contemporâneos não satisfaz o velho unicamente porque, enquanto o público se atém a isso, seu próprio gênio permanece "inédito". O que os impele a rebelar-se contra o velho não é o amor a uma idéia nova, mas a essa mesma "única realidade", a êsse adorado "eu". Semelhante amor não pode servir de inspiração ao artista; o que pode é levá-lo a considerar de um ponto de vista utilitário, inclusive o Apoio do Belvedere. "A questão monetária — continua Mauclair — entrelaça-se de tal modo com a questão da arte que a crítica artística se encontra aferrolhada. Os melhores críticos não podem dizer tudo quanto pensam, e os outros só dizem o que é oportuno, pois é preciso viver de sua profissão. Não que tenham que indignar-se, mas é conveniente compreender a complexidade do problema "(86). Vemos, pois, que a arte pela arte se converteu na arte pelo dinheiro. E todo o problema que interessa a Mauclair se reduz a determinar a causa disso, que não é tão difícil. "Houve tempo como por exemplo na Idade Média, em que não se mudava mais do que o supérfluo, o excedente da produção sôbre o consumo. Houve logo depois outro tempo em que não somente o supérfluo, mas todos os produtos, tôda a vida industrial passaram à esfera do comércio, em que a produção inteira dependia da troca.. . Por último, a época em que tudo que os homens vinham considerando como inalienável se tornou objeto de troca, de tráfico e podia alienar-se. Ë o tempo em que tudo, inclusive a virtude, o amor, a opinião, o saber, a consciência, etc., isto é, as coisas que até então se transmitiam, mas nunca se trocavam, (85) (86)

Obra cit., pág. 321. Obra cit., pág. 321.

eram doadas, mas nunca vendidas; adquiriam-se, mas nunca se compravam, passaram a ser objeto de comércio. Ë o tempo da corrupção geral, da venalidade universal, ou para nos expressar* mos em termos de economia política, tempo em que cada coisa moral ou física, convertida em valor de troca, é levada ao mercado para ser apreciada em seu justo valor" (87). Pode-se estranhar que na época da venalidade geral a arte se faça também venal? Mauclair não quer dizer se isso deve provocar indignação. Eu, tampouco, tenho desejos de apreciar o fenômeno do ponto de vista da moralidade. Segundo a célebre expressão, não trato de chorar nem rir, mas de compreender. Não digo: os artistas contemporâneos "devem" inspirar-se nos anelos de emancipação do proletariado. Não. Se a macieira deve dar maçãs e a pereira, pêras, os artistas que adotam o ponto de vista da burguesia devem rebelar-se contra êsses anelos. A arte da época da decadência "deve" ser uma arte decadente. Ë inevitável. E seria inútil "indignar-se" por isso. Mas, como diz o Manifesto do Partido Comunista, "nos períodos em que a luta de classes se aproxima de seu desenlace, o processo de desintegração da classe dominante, de tôda a velha sociedade, adquire um caráter tão violento e tão patente que uma pequena fração dessa classe renega a si mesma e adere à classe revolucionária, a classe em cujas mãos está o futuro. E assim como antes uma parte da nobreza passou para a burguesia, em nossos dias um setor da burguesia passa para o proletariado, particularmente êsse setor dos ideólogos burgueses que se elevaram teoricamente até a compreensão do conjunto do movimento histórico". Entre os ideólogos burgueses que se passam para o proletariado vemos muito poucos artistas. A razão se deve talvez a que só os que pensam podem "elevar-se teoricamente à compreensão do conjunto do movimento histórico", ao passo que os artistas de hoje, diferentemente, por exemplo, dos grandes mestres do Renascimento, pensam muito pouco(88). Mas, seja o que (87) C. Marx, Miséria da Filosofia, S. Petersburgo, 1906, págs. 3-4. (88) Nous touchons ici au défaut de culture générale qui caractérise la plupart des artistes jeunes. Une fréquentation assidue vous démontrera vite qu'ils sont, en général, très ignorants ... incapables ou indiférents devant les antagonismes d'idées et les situations dramatiques actuelles, ils oeuvrent péniblement à l'écart de toute l'agitation intelectueüe et sociale, confines dans les conflits de techniques, absorbés par l'apparence matérielle de la peinture plus que par fia signification

fôr, pode dizer-se com pleno fundamento que o talento de qualquer artista se enriquece de modo considerável quando este se integra nas grandes idéias emancipadoras de nossa época. Requer-se unicamente que tais idéias cheguem a fundir-se com sua carne e sangue, para que possa exprimi-las como artista(89). Também é preciso que o artista saiba valorizar o modernismo artístico dos atuais ideólogos da burguesia. Л classe dominante encontra-se agora numa situação em que qualquer avanço significa retrocesso. E êsse triste destino é compartilhado por todos os seus ideólogos. Dêles, os mais avançados são precisamente os que caíram mais baixo que seus predecessores. Quando exprimi os conceitos expostos, o Senhor Lunatcharski(90) fêz-me várias objeçÕes. Examinarei agora as mais importantes. Em primeiro lugar, estranhou-se que, aparentemente, eu reconhecera a existência de um critério absoluto de beleza. Mas, tal critério não existe. Tudo flui, tudo muda. E também mudam, certamente, os conceitos que os homens têm da beleza. Por isso, não podemos demonstrar que a arte contemporânea esteja atravessando efetivamente uma crise de fealdade. A esta objeção respondi dizendo que, segundo minha opinião, não existe nem pode existir critério absoluto de beleza(91). genérale et son influence intelectueUe" . (Aqui nos encontramos com a falta de cultura generalizada que caracteriza a maioria dos artistas jovens. Uma assídua convivência mostrar-lhes-á que, em geral, são muito ignorantes . . . incapazes de compreender os antagonismos de idéias e as situações dramáticas atuais ou então indiferentes; criam com grande esforço, à margem de tôda agitação intelectual e social, confinados nos conflitos de técnica, absortos mai s pela aparência material da pintura do que por sua significação geral e sua influência intelectual"). Holl, La jeune Peinture Contemporaine, págs. 14-15, Paris, 1912. (89) Aqui me volto prazeirosamente para Flaubert. Em carta a George Sand, diz: "Je crois la forme et le fond ... deux entités qui n'existent jamais l'une sans l'autre." ( "Considero a forma e a fundo... como duas entidades que jamais existem separadas"). Correspondance, 4me. série, pág. 225. Quem crê possível sacrificar a forma "à idéia", se alguma vez foi artista, deixa de sê-lo. (90) Publicista, historiador de arte e dramaturgo, nascido em 1875 e falecido em 1933. Foi um dos destacados construtores da cultura socialista soviética. Primeiro comissário do povo para a Instrução Pública depois da Revolução de Outubro. ( 91 ) Não é o caprichoso juízo de um gôsto exigente que nos sugere o desejo de encontrar valôres estéticos originais, não submetidos às vaidades da moda nem à imitação servil. O sonho criador de uma

Os conceitos que o homem tem de beleza mudam indubitavelmente no eurso do processo histórico. Mas se não existe um critério absoluto de beleza, se todos os critérios com que ela é julgada são relativos, isso não significa que careçamos de tôda possibilidade objetiva de julgar se uma obra artística está bem feita. Suponhamos que o artista queira pintar uma "mulher de azul". Se o que representou em seu quadro se parece realmente a essa mulher, diremos que logrou pintar um bom quadro. Mas se em lugar de uma mulher vestida de azul vemos em sua tela várias figuras estereométricas coloridas em diversos lugares, com manchas azuis mais ou menos densas e mais ou menos grosseiras, diremos que pintou qualquer coisa, menos um bom quadro. Quanto mais corresponda a execução ao intento, empregando uma expressão mais geral; quanto mais corresponda a forma de uma obra artística à sua idéia, mais feliz é essa obra. Âí está uma medida objetiva. E só porque tal medida existe, podemos afirmar que os desenhos de Leonardo da Vinci, seja o caso, são melhores do que os do pequeno TemístocIus(92), que borra papéis para distrair-se. Quando Leonardo da Vinci desenhava um velho com barba, saía-lhe um velho com barba. E com que perfeição! Ao contemplá-lo não podemos deixar de exclamar: parece vivo! Mas quando Temístoclus vai pintar um velho barbado, o melhor que podemos fazer para evitar mal-entendido é pôr ao pé do quadro: isto é um velho barbado e não outra coisa. Ao afirmar que não pode haver uma medida objetiva da beleza, o Senhor Lunatcharski cometia o erro de tantos ideólogos burgueses, incluídos os cubistas: de beleza única, imperecedora, a imagem da vida, a que "salvará o mundo", iluminando e regenerando os desgarrados e os decaídos, nutre-se da exigência imprescritível do espírito humano de penetrar nos profundos arcanos do absoluto" (V. I. Speranski, O Papel Social da Filosofia, introdução, pág. XI wasc. L, S. Petersburgo, edição Shípóvnik, datada de 1913.) Os que raciocinam desse modo estão obrigados pela lógica a reconhecer a existência de um critério absoluto de beleza, Mas os que assim raciocinam são idealistas cabais, ao passo que eu me considero materialista não menos cabal. Não só não aceito a existência de uma "beleza única e imperecedora", como sequer compreendo que sentido se pode atribuir às palavras "beleza única e imperecedora". E mais. Estou convencido de que nem os próprios idealistas o compreendem. Tôdas as disquisições acêrca de semelhante beleza não são senão pura "retórica". (92) Nome de um dos personagens de Almas Mortas, de Nicolau V. Gogol.

extremado subjetivismo. Não compreendo em absoluto como um homem que se diz marxista pode cair em semelhante erro. Devo acrescentar, não obstante, que aqui emprego o termo "beleza" num sentido muito amplo, talvez demasiado amplo. Pintar um belo quadro que representa um ancião não significa pintar um ancião bonito, isto é, belo. A esfera da arte é muito mais vasta que a esfera do "belo". Mas em toda a sua amplitude pode aplicar-se com igual comodidade o critério que já indiquei: a correspondência entre a forma e a idéia. O Senhor Lunatcharski afirma (se não o entendi mal) que a forma também pode corresponder exatamente a uma idéia falsa, com o que eu não posso estar de acordo. Lembremo-nos da obra De Curei, Le Rapas de Lion, baseada, como sabemos, na falsa idéia de que as relações entre o patrão e os seus operários são as mesmas que as existentes entre o leão e os chacais que se alimentam das sobras que caem de sua régia mesa. Poderia De Curei ter refletido com fidelidade em seu drama essa falsa idéia? De nenhum modo! A idéia é falsa porque se acha em contradição com as verdadeiras relações entre o patrão e seus operários. Apresentá-la em uma obra astística é desfigurar a realidade. E quando uma obra artística desfigura a realidade, trata-se de uma obra infeliz. Por isso, Le Repas de Lion está muito abaixo do talento de De Curei, e pela mesma razão a peça, Portas do Reino, está muito além dos méritos intelectuais de Hamsun. Em segundo lugar, o Senhor Lunatcharski censurou-me por excesso de objetivismo na exposição. Aparentemente, estava de acordo em que a macieira deve dar maçãs e a pereira, pêras. Mas, fêz a observação de que entre os artistas que adotam o ponto de vista da burguesia há os vacilantes, e que a êsses é preciso convencer, e não deixar submetidos à força espontânea das influências burguesas. Para mim, essa censura é menos compreensível que a primeira. Em minha conferência(93) disse e demonstrei — assim quisera crer — que a arte contemporânea se encontra em decadência (94). Como causa dêsse fenômeno, ante o qual não pode (93) Como o autor esclareceu anteriormente, o presente trabalho é a reelaboração de uma conferência lida por êle em novembro de 1912, em Paris e Liège. ( 94 ) Temo provocar confusão. A expressão "em decadência" é utilizada por mim, comme de raison, no sentido de todo um processo e não de um fenômeno isolado. Êsse processo não terminou ainda, como tampouco terminou o processo de decadência do regime burgees.

permanecer indiferente qualquer pessoa que ame a arte verdadeiramente, assinalei a circunstância de que a maioria dos artistas atuais mantém o ponto de vista da burguesia e são completamente refratários às grandes idéias emancipadoras de nossa época. Que influência, pergunto eu, pode ter essa indicação sobre os vacilantes? Se a indicação é convincente, então deve levá-los a adotar o ponto de vista do proletariado. E isso é tudo o que se pode exigir de uma conferência dedicada a examinar o problema da arte, e não a expor e defender os princípios do socialismo. Last, but not least ( 95), o Senhor Lunatcharski, que considera impossível demonstrar a decadência da arte burguesa, crê que eu teria procedido de modo muito mais racional se tivesse oposto aos ideais burgueses um sistema harmônico — parece-me que essa foi a expressão usada por êle — de conceitos contrários. E comunicou a seu auditório que êsse sistema será elaborado com o tempo. Tal objeção reduz definitivamente minha capacidade compreensiva. Se êsse sistema tem de ser elaborado, ê evidente que ainda não existe. E se não existe, como poderia opô-lo eu às concepções burguesas? Além disso, que vem a ser um sistema harmônico de conceitos? 0 socialismo científico moderno constitui, sem dúvida, uma teoria perfeitamente harmônica, com a vantagem, ademais, de que já existe. Mas, como disse, seria sumamente estranho que eu, ao proferir uma conferência sôbre "arte e a vida social", me dedicasse a expor a teoria do socialismo científico moderno, por exemplo, a da maisvalia. Só é bom o que surge no momento oportuno e no lugar que lhe corresponde. Por isso, seria peregrino pensar que os atuais ideólogos burgueses sejam totalmente incapazes de produzir obras de realce. Tais obras, como ó natural, também são possíveis agora. Mas, as possibilidades de que apareçam diminuem fatalmente. Além disso, até as obras de destaque levam a marca da época de decadência. Tomemos como exemplo a referida trindade russa: se o Senhor Filosófov não tem talento para nada, a Senhora Guíppius tem, em troca, certo talento artístico, e o Senhor Merezhkovski e inclusive um artista de grande talento. Mas, é fácil comprovar que sua última novela, Alexandre I, por exemplo, se perdeu definitivamente por sua mania religiosa, a qual, é por sua vez, um fenômeno próprio de uma época de decadência. Em tais épocas, até os homens de grande talento não dão o que poderiam dar se as condições sociais fossem mais favoráveis. (95) "Por último, ainda que não menos importante".

Ë possível, entretanto, que pelo sistema harmônico de conceitos o Senhor Lunatcharski entendesse as considerações sôbre a cultura proletária expostas, não faz muito, na imprensa, pelo Senhor Bogdánov(96), um de seus mais afins correligionários. Em tal caso, sua última objeção se reduz a dizer-me que "muito ganharia se aprendesse de" Bogdánov(97). Grato pelo conselho, mas não tenho a intenção de aproveitá-lo. E ao incauto que demonstrasse interêsse pelo folheto de Bogdánov — Da Cultura Proletária — direi que foi ridicularizado com bastante acerto em Sovremenni Mir (98), pelo Senhor Alexinski, outro dos correligionários mais afins do Senhor Lunatcharski.

(9в) Pseudônimo do médico, filósofo e economista Malinovski, nascido em 1873 e falecido em 1928. Durante certo tempo estêve com os bolchevistas. Depois da revolução de 1905, adotou nova posição frente aos fundamentos teórico-filosóficos do marxismo, desenvolvendo o empiriomonismo, uma variedade de idealismo subjetivo. As idéias de Bogdánov foram submetidas a uma crítica rigorosa por Lenin e Plekhanov. No campo da cultura proletária, Bogdánov mantinha pontos de vista hostis ao marxismo e afirmava que a classe operária deve criar, por meios artificiais, uma cultura própria, "proletária", à margem de tôda a cultura anterior da humanidade. (97) "Muito ganharia se aprendesse d e . . . " , texto parafraseado de uma passagem da fábula de I. A. Krylov, O Burro e o Rouxinol. (98) O Mundo Contemporâneo, revista mensal que se publicou em São Petersburgo, de 1906 a 1918.

GEORGE

PLEKHANOV

CARTAS SEM ENDERÊÇO CINCO ENSAIOS SOCIOLÓGICOS SÔBRE ARTE 1.» edição: 1965

2. a edição

Tradução de

EDUABPO ÇyCUPIRA FILHO

TÍTULO DO ORIGINAL

ESPANHOL:

CARTAS SIN DIRECCIÓN (Edicionea en Lenffuaa Extranjeraa

— Moscou)

INDICE

PRIMEIRA CARTA

Relações Estéticas Entre a Arte e a Realidade

85

SEGUNDA CARTA

A Arte dos Povos Primitivos TERCEIRA

CARTA

Os Jogos Cênicos e o Trabalho QUARTA

142

CARTA

As Danças QUINTA

124

165

CARTA

Pintura e Escrita Primitivas

195

PRIMEIRA

CARTA

Relações Estéticas Entre a Arte e a Realidade Meu caro senhor: Falemos de arte. É preciso convir, de início, que, em toda investigação — por pouco exata que pareça, e qualquer que seja o objeto de seu estudo — é necessário atermo-nos a uma terminologia precisa. Por isso, antes de tudo, impõe-se que digamos o que se entende por arte. Ademais, não há dúvida que uma definição algo satisfatória da matéria só se pode deduzir de sua investigação. Resulta, pois, que ocorre definir o que ainda não podemos definir. Como sair dessa contradição? Creio que a saída é a seguinte: de momento, deter-me-ei em uma definição provisória e, a seguir, irei completando-a e corrigindo-a, à medida que a investigação vá esclarecendo o problema. Que definição escolherei de início? Em seu livro — Que é a Arte?( 1), Leão Tolstói alinha numerosas definições sobre arte, que lhe parecem contraditórias (|uão insatisfatórias. Em realidade, as definições citadas não diferem tanto entre si nem são tão equívocas, como o quer Tolstói. Mas, admitamos que, efetivamente, tôdas sejam más, e vejamos se se pode aceitar sua própria definição de arte. "Arte — diz Tolstói — é um dos meios de comunicação dos homens entre s i . . . A particularidade desse meio de comunicação, que o distingue da comunicação por meio da palavra, consiste em que por intermédio da palavra um homem transmite a outro seus pensamentos (o grifo é meu), ao passo que mediante a arte os homens comunicam uns aos outros os seus sentimentos" (também grifado por mim). Limitar-me-ei por ora a uma observação. (1)

De Leão Tolstói, escrito entre 1897 e 1898. Carta» Sem Enderêço 85

Segundo o Conde Tolstoi, a arte exprime os sentimentos dos homens, ao passo que a palavra exprime seus pensamentos. Isto não é exato. A palavra serve aos homens para exprimir, não só seus pensamentos, como também seus sentimentos. Uma prova está na poesia, cujo instrumento é precisamente a palavra. O próprio Tolstói adianta: "A atividade artísica consiste em despertar em alguém um sentimento já experimentado e, após havê-lo despertado, transmiti-lo mediante movimentos, linhas, cores, imagens expressas em palavras, de modo que os outros experimentem o mesmo sent i m e n t o " ^ ) . Disso se deduz que não é possível considerar a palavra apenas como um meio de comunicação entre os homens, diferente da arte. Tampouco é certo que a arte exprime tão somente os sentimentos dos homens. Não. A arte exprime tanto seus sentimentos quanto seus pensamentos, mas não os manifesta em forma abstrata, porém com imagens vivas. Nisto reside seu traço mais distintivo. Na opinião do Conde Tolstói, "a arte começa no momento em que o homem, com o fim de transmitir a outrem um sentimento experimentado, provoca-o de nôvo em si mesmo e o exprime por determinados sinais externos"(3). Eu creio, ao contrário, que a arte principia no momento em que o homem torna a provocar em si mesmo os sentimentos e as idéias experimentadas por êle sob a influência da realidade circundante e os manifesta mediante determinadas imagens. Compreende-se que na maioria dos casos o faz com o fim de transmitir a outros o pensado e o sentido por êle. A arte é um fenômeno social.

Estas são, por ora, as emendas que eu desejava introduzir na definição de arte formulada pelo Conde Tolstói. Ademais, eu rogaria, meu caro senhor, que também prestasse atenção à seguinte idéia do autor de A Guerra e a Paz: "Sempre, em qualquer época e em tôda sociedade humana, há uma consciência religiosa do que está bem e do que está mal, comum a todos os homens que integram dita sociedade, e essa própria consciência é a que determina, precisamente, a dignidade dos sentimentos transimitidos pela arte"(4). (2) Obras do Conde Tolstói - Trabalhos dos últimos anos. Moscou, 1898, p. 78. (3) Ibid., ob. cit., p. 77. (4) Ibid., p. 85.

Nossa investigação deve mostrar, entre outras cousas, até que ponto é justa essa idéia, que em todo caso merece a máxima atenção, pois nos leva de cheio ao problema do papel da arte ria história do desenvolvimento da humanidade. Agora que temos uma definição prévia, devo esclarecer meu ponto de vista acerca da arte. Direi sem ambages que considero a arte, como todos os outros fenômenos sociais, do ponto de vista da interpretação materialista da história. Que significa interpretação materialista da história? Sabe-se que em matemática existe o método da demonstração contrária ou de redução por absurdo. Recorrerei ao que poderíamos chamar método de explicação ao contrário. Começarei justamente por lembrar o que é a interpretação idealista da história, para mostrar depois em que se diferencia da oposta interpretação materialista. A interpretação idealista da história, tomada em sua forma pura, estima que o desenvolvimento do pensamento e dos conhecimentos é a causa última e mais remota do movimento histórico da humanidade. Essa concepção dominou totalmente o século XVIII, e se passou ao século XIX. Saint-Simon e Augusto Comte ainda se aferravam firmemente a ela, posto que suas idéias, sob certos aspectos, se opunham diametralmente às do século anterior. Assim, por exemplo, Saint-Simon pergunta como surgiu a organização social dos gregos(5) e dá a seguinte resposta: "o sistema religioso serviu-lhes de base ao sistema político... Êste foi criado à imagem daquele". E para demonstrar, remete-se ao fato de que o Olimpo dos gregos foi uma "assembléia republicana"; e as instituições de todos os povos da Grécia, por muito que diferissem umas das outras, apresentavam o traço comum de serem constituições republicanas(ô). Mas, isto não é tudo. Na opinião de Saint-Simon, o sistema religioso que constituía a base do sistema político dos gregos derivava, por seu turno, do conjunto de seus conceitos científicos, de seu sistema científico do mundo. Os conceitos científicos dos gregos eram, por conseguinte, a base mais profunda de sua vida social, e o desenvolvimento desses conceitos, a principal alavanca do desen(5) A Grécia tinha para Saint-Simon especial importância, porque, a seu ver, "c'est chez les Grecs que l'esprit humain a commencé a s'occuper sérieusement de l'organisation sociale". (6) Cf. com Mémoire sur la Science de F Homme.

volvimento histórico dessa mesma vida, a causa primordial da sucessão histórica das diferentes formas sociais. Augusto Comte pensava, analogamente, que "todo o mecanismo social descansa, no fim de contas, nas opiniões"(7). Isto é mera repetição do conceito dos enciclopedistas, segundo o qual c'est l'opinion qui gouverne le monde.

Existe outra variedade de idealismo, cuja manifestação extrema é o idealismo absoluto de Hegel. Como se explica, do ponto de vista hegeliano, o desenvolvimento histórico Ta humanidade? Esclarecendo com um exemplo: Hegel pergunta que causas influíram na decadência da Grécia, e apresenta várias. Mas, para êle a mais importante é a de que a Grécia foi a expressão de uma única fase do desenvolvimento da idéia absoluta, e devia cair, quando essa fase se tivesse superado. Ë evidente que Hegel, apesar de saber que a «Lacedemônia havia desmoronado em conseqüência da desigualdade

de bens",

considerava que as relações sociais e todo o curso do desenvolvimento histórico da humanidade obedeciam, em última instância, às leis da lógica, ao curso do desenvolvimento do pensamento.

O conceito materialista da história é diametralmente oposto. Enquanto Saint-Simon — que apreciava a história de um ponto de vista idealista — pensava que as relações sociais dos gregos se deviam a suas idéias religiosas, eu, partidário da concepção materialista, afirmo que o Olimpo republicano dos gregos era um reflexo'de seu regLe social'e, se à pergunta dT'ual foi a origem das idéias religiosas dos gregos, Saint-Simon respondia dizendo que estas derivavam de sua concepção científica do mundo, eu creio que a própria concepção científica que os gregos tinham do mundo estava determinada, em seu desenvolvimento histórico, pelo estado de desenvolvimento das forças produtivas de que dispunham os povos da Hélade(8). Tal é minha concepção da história em geral. Ë justa? Não é êste o lugar para demonstrar sua justeza. Rogo-lhe, porém, que o supunha justo e tome comigo esta suposição como ponto de partida de nossa investigação sobre a arte. (7) Cours de Philosophie Positive, Paris, 1869, t. I, p. 40/41. (8) Há poucos anos, publicou-se em Paris o livro de A. Espinas, Histoire de la Technologie, que era uma tentativa de explicar o desenvolvimento da concepção do mundo dos gregos pelo progresso de suas fôrças produtivas. É um ensaio de grande importância e interêsse, pelo ue devemos agradecer a Espinas, ainda que seu estudo se ressinta e muitos erros de detalhe.

â

Ë evidente que esta investigação do problema particular da arte será ao mesmo tempo uma comprovação do conceito geral da história. Com efeito, se êste conceito geral é errôneo, ao tomálo como ponto de partida, muito pouco conseguiremos explicar em matéria de evolução da arte. Todavia, se nos convencermos de que esta evolução se explica com sua ajuda, melhor do que com a ajuda de outros conceitos, teremos a seu favor nôvo e poderoso argumento. Mas, em chegando a êste ponto, prevejo uma objeção. Em seu livro •— A Origem do Homem e a Seleção Sexual, Darwin, como é sabido, cita numerosos fatos comprobatórios de que o senso do belo ( sense of beauty ) desempenha um papel de muita importância na vida dos animais. Apontar-me-ao esses fatos, aduzindo que a origem do senso do belo deve ser explicado biolò~ gicamente. Dir-se-á que não é permissível (que é pecar por estreiteza) fazer depender a evolução, tomada neste sentido, exclusivamente da economia de sua sociedade. E como a concepção darwinista do desenvolvimento das espécies é, indubitàvelmente, uma concepção materialista, dir-me-ão também que o materialismo biológico oferece um material excelente para a crítica do unilateral materialismo histórico (econômico). Compreendo a importância dessa objeção, e por isso determe-ei a considerá-la. Isso será para mim tanto mais útil porquanto ao refutá-la terei refutado tôda uma série de objeçÕes análogas, que podem ser tomadas do campo da vida psíquica dos animais. Antes de tudo, trataremos de definir com a máxima exatidão, a conclusão que devemos fazer dos fatos aduzidos por Darwin. Para isso, vejamos quais as conseqüências que o próprio Darwin deduz de tais fatos. No segundo capítulo da primeira parte (versão russa) de seu livro sobre a origem do homem, lemos: " 0 senso do belo também foi proclamado qualidade privativa do homem." Mas, se recordarmos que os machos de algumas aves estendem intencionalmente suas penas e alardeiam suas brilhantes côres ante as fêmeas, enquanto outros, que carecem de penas formosas, não se exibem por essa forma, naturalmente não duvidaremos que as fêmeas se deleitam, contemplando a beleza dos machos. E como as mulheres de todos os países se adornam com tais plumas, a ninguém ocorreria negar a elegância dêsse adorno. Os clamidóforos, que engalanam com refinado gôsto os lugares em que se reúnem, utilizando objetos de brilhantes côres, e alguns colibris, que enfeitam do mesmo modo

os seus ninhos, mostram-nos claramente que possuem uma idéia da beleza. O mesmo poderia dizer-se do canto dos pássaros. O canto delicado dos machos na época de cio agrada indubitavelmente às fêmeas. Se as fêmeas das aves não fossem capazes de apreciar as cores brilhantes, a beleza e a voz agradável dos machos, todos os esforços e afãs dêstes por seduzi-las com tais qualidades seriam vãos, cousa que não podemos supor. "A razão por que certas cores e sons, combinados de determinada forma, impressionam agradavelmente, é algo tão difícil de explicar como a causa de que tal ou qual objeto seja grato ao olfato ou ao gosto. Não obstante, pode-se afirmar com tôda segurança que as mesmas côres e os mesmos sons agradam tanto ao homem como aos animais inferiores'^9). Vemos, pois, que os fatos citados por Darwin atestam que os animais inferiores, do mesmo modo que o homem, são capazes de experimentar o gôzo estético e que, às vezes, nossos prazeres estéticos coincidem com os gostos dos animais inferiores (10). Mas, tais fatos não nos explicam a origem dêsses gostos. E se a biologia não nos esclarece quanto à origem de nossos prazeres estéticos, menos ainda poderá explicar seu desenvolvimento histórico. Entrementes, cedamos de nôvo a palavra ao próprio Darwin; "O conceito do belo — prossegue êle — pelo menos no que respeita à beleza feminina, não tem caráter absoluto entre os homens." Com efeito — e o veremos adiante — é muito diferente entre as várias raças humanas, e sequer é igual entre as diversas nações de uma mesma raça. Se julgarmos pelos adornos repulsivos e pela música igualmente repulsiva que provocam o entusiasmo da maioria dos selvagens, poderíamos dizer que suas idéias estéticas estão menos desenvolvidas do que em certos animais, como, por exemplo, nas a v e s " ( l l ) . Se o conceito do belo difere entre as várias nações de uma mesma raça, é evidente que as causas de tal diferença não (9) Darwin, A Origem do Homem, São Petersburgo, 1899, t. I, p. 45 (tradução do Prof. I. Séchenov). ( 10 ) Na opinião de Wallace, Darwin exagerou a imporância do sentimento estético em relação à seleção sexual entre os animais. Deixando aos biólogos a tarefa de dizer até que ponto Wallace está com a razão, parto do pressuposto de que a idéia de Darwin é inequivocamente justa. Convirá você comigo que êsse pressuposto é para mim o menos favorável. (11) Darwin, oh. cit.

devem ser procuradas na biologia. O próprio Darwin diz-nos que devemos orientar nossas buscas noutra direção. Na segunda edição inglesa do livro de Darwin, no parágrafo que acabamos de citar, deparamos com as seguintes palavras que não figuram na tradução russa feita por I. Séchenov, da primeira edição inglesa: "With cultivated men such sensations (isto é, as sensações estéticas) are however intimately associated with complex ideas and trains of thought" (12). Isto significa: "Não obstante, no homem civilizado, tais sensações se acham estreitamente associadas a idéias complexas e a processos discursivos." Trata-se de uma indicação sumamente importante, que nos leva da biologia à sociologia, pois é evidente que, para Darwin, a circunstância de que a sensação do belo esteja associada, no homem civilizado, a muitas idéias complexas, deve-se precisamente a causas sociais. E, perguntamos: terá razão Darwin quando crê que tal associação só se verifica entre os homens civilizados? Não. Não tem razão; e disso podemos convencer-nos muito facilmente. Tomemos um exemplo. Sabe-se que a pele, as garras e os dentes dos animais desempenham um papel muito importante como elementos de ornamentação entre os povos primitivos. Como se explica êsse fato? Pela combinação de côres e linhas que êsses objetos oferecem? Não. O que ocorre é que, ao adornar-se — ilustremos com o exemplo de que sejam peles, garras e dentes de tigre ou peles e chifres de bisão — o selvagem faz alusão à sua própria fôrça e agilidade: quem derrota os fortes é forte; quem vence os ágeis é ágil. É possível que, ademais, intervenha alguma superstição. Schoolcraft mostra-nos que as tribos de peles-vermelhas do oeste da América do Norte sentem especial predileção por adornos confeccionados com garras de urso cinzento, o mais feroz dos animais selvagens daquela região. O guerreiro pele-vermelha acredita que a ferocidade e a bravura do urso cinzento se transmitam aos que se enfeitem com suas garras. Deste modo, segundo observa Schoolcraft, as garras servem, em parte, de adorno e, em parte, de amuleto(13).

(12) The Descent of Man, London, 1883, p. 92. Provàveîmente estas palavras figuram na nova tradução russa, mas não a tenho à mão. (13) Schoolcraft, Historical and Statistical Information respecting the History, condition and prospects of the Indian Tribes of the United States, t. Ill, p. 216.

Neste caso, como é natural, não se pode supor que as peles, as garras e os dentes das feras agradassem, em princípios, aos peles-vermelhas tão somente por suas cores variadas e de linhas comuns a esses objetos(14). Não. É muito mais provável a suposição inversa, ou seja, de que a princípio portavam tais objetos ùnicamente como sinal de valor, agilidade e força, e só mais tarde, e precisamente por ser um traço de valor, agilidade e força, começaram a despertar sensações estéticas e passaram à categoria de adornos. Resulta, pois, que as sensações estéticas não só "podem associar-se nos selvagens" a idéias complexas, como também, às vezes, surgem precisamente sob a influência de tais idéias. Outro exemplo. Ë sabido que as mulheres de muitas tribos africanas carregam nos braços e nas pernas braceletes de ferro. As esposas dos ricos põem sobre si, às vezes, até uma arroba de adornos dêsse gênero(15). Isto, naturalmente, é muito incômodo, mais a incomodidade não as impede de usar com prazer essas cadeias da escravidão, segundo a expressão de Schweinfurth. Por que a negra gosta de carregar semelhantes cadeias? Porque graças a elas, parece bonita ante seus próprios olhos e ante os olhos dos demais. E por que parece bonita? Por uma associação bastante complicada de idéias. A paixão por êsses ornatos desenvolve-se precisamente naquelas tribos que, segundo Schweinfurth, passam agora pela idade do ferro, ou em outras palavras, nos grupos humanos para os quais o ferro constitui um metal precioso. E o valioso lhes parece belo porque implica na idéia de riqueza. Quando uma mulher da tribo dos dinkas, por exemplo, traz sobre si vinte libras de colares de ferro é porque quer parecer aos demais mais formosa do que quando só carregava duas, isto é, quando era mais pobre. £ evidente que, no caso, não se trata da beleza dos atavios, mas da idéia de riqueza que está associada aos mesmos. Terceiro exemplo. Entre os batokas, tribo do curso superior do Zambeze, considera-se feia a pessoa que não tenha extraído os incisivos superiores. Qual a origem dêsse estranho conceito de beleza? Êste conceito formou-se igualmente através de uma asso(14) Há casos em que os objetos dessa mesma natureza agradam ùnicamente por sua côr, mas disso falaremos mais adiante. (15) Schweinfurth, Au. Coeur de l'Afrique, Paris, 1875, t. I, fis. 148. Veja-se também Du Chaillu, Voyage et Aventures dans TAfiique Êquatoriale, Paris, 1863, p. 11.

ciaçSo bastante complexa de idéias. Ao arrancar os incisivos superiores, os batokas desejam imitar os ruminantes. Para nós, isto é um desejo um tanto incompreensível. Mas os batokas são uma tribo de pastores, e para êles as vacas e os touros revestem a significação de animais divinos(ló). Ainda uma vez vemos que o belo é o valioso, e os conceitos estéticos surgem à base de idéias de índole bem diversa. Eis, finalmente, um exemplo que o próprio Darwin cita, tomado a Livingstone. As mulheres da tribo dos macololo perfuram o lábio superior, e pelo orifício fazem passar um grande aro metálico ou de bambu, chamado pelele. Quando perguntaram a um dos caciques da tribo por que as mulheres usavam tais argolas —• "surpreso aparentemente por tão absurda pergunta" — respondeu: "Para ficarem belas!" Ë o único ornato de que dispõem as mulheres. Os homens têm barba; as mulheres, não. Que seria uma mulher sem pelele? Ë difícil dizer, de imediato, com certeza, qual a origem do costume de usar peleles, mas é evidente que essa origem dever ser procurada em alguma associação muito complexa de idéias, e não nas leis da biologia, com as quais de todos os modos não tem a menor relação (direta) (17). À vista dêsses exemplos, creio-me com o direito de afirmar que as sensações provocadas por certas combinações de côres ou formas dos objetos se associam, inclusive nos povos primitivos, a idéias muito complexas, e que pelo menos muitas dessas formas e combinações lhes parecem belas tão só em virtude de tal associação. Que é que motiva dita associação? Como surgem essas idéias complexas que se associam às sensações provocadas em nós pelo aspecto dos objetos? É evidente que a resposta não no-las pode dar o biólogo; o único que pode dá-la é o sociólogo. E se a interpretação materialista da história contribui mais do que qualquer outra concepção a dar uma resposta a tais indagações; se nos convencemos de que essa associação e essas idéias complexas se determinam e se criam, em última instância, pelo estado em que se encontram as forças produtivas da sociedade em questão e por sua economia — devemos reconhecer que o (16) Schweinfurth, obra cit. (17) Mais adiante, procurarei explicar o fato, tomando em consideração o desenvolvimento das fôrças produtivas na sociedade primitiva,

darwinismo não contradiz em absoluto a concepção materialista da história que procurei definir mais acima. Não posso estender-me em considerações quanto à atitude do darwinismo ante esta concepção. Não obstante, direi mais algumas palavras sobre êste particular. Queria você deter-se nas linhas seguintes: "Considero necessário deixar estabelecido, desde o início, que me encontro muito longe de crer que todo animal que vive em sociedade e cuja capacidade intelectual tenha de desenvolver-se até adquirir a atividade e o nível da capacidade intelectual do homem, chegará a adquirir conceitos morais análogos aos nossos." Do mesmo modo por que todos os animais possuem o sentido do belo — conquanto seu entusiasmo seja provocado por coisas muito diferentes — assim também podem ter uma noção do bem e do mal, apesar de que tal noção nos leve a realizar atos diametralmente opostos aos nossos. Se, por exemplo (tomo intencionalmente um caso extremo), tivéssemos sido educados exatamente nas mesmas condições que as abelhas de uma colmeia, não resta a menor dúvida de que nossas mulheres solteiras considerariam um dever sagrado, do mesmo modo que as operárias, o de matar seus irmãos; as mães tratariam de matar suas filhas fecundas, e a ninguém ocorreria protestar por isso. Não obstante, a mim me parece que a abelha (ou qualquer outro animal que viva em sociedade) teria no caso citado uma noção do bem e do mal, ou seja, teria consciência(18). Que se deduz disso? Deduz-se que nos conceitos morais dos homens não há nada de absoluto; que êsses conceitos mudam ao mudarem as condições em que vivem os homens. E, como se criam essas condições? Qual a origem das mudanças experimentadas por êles? Darwin nada diz a respeito, e se nós afirmamos e demonstramos que essas condições são produto do estado em que se encontram as forças produtivas, e que sua mudança é uma conseqüência do desenvolvimento dessas forças, não só não estaremos em contradição com Darwin, mas, ao contrário, completaremos o seu pensamento — explicaremos o que êle não chegou a explicar — e, ainda, aplicando ao estudo dos fenômenos sociais o mesmo princípio que tantos serviços lhe prestara no estudo da biologia. (18) A Origem do Homem> t. I, p. 52. 94 George Plekhanov

ú

E m geral, é estranho contrapor o darwinismo ao conceito da história que eu defendo. O campo das investigações de Darwin era totalmente diferente. Êle estudou a origem do homem como espécie zoológica. Os partidários da concepção materialista querem explicar os destinos históricos dessa espécie. O campo de suas investigações começa precisamente no mesmo ponto em que terminam as investigações dos darwinistas. Seus trabalhos não podem substituir o que nos dão os darwinistas, do mesmo modo por que os mais brilhantes descobrimentos destes não podem substituir as investigações daqueles, mas ùnicamente preparar-lhes o terreno, assim como o físico prepara o terreno para o químico, sem suprimir em nada, com seus trabalhos, a necessidade das investigações químicas propriamente d i t a s ( 1 9 ) . (19) Aqui, cabe um esclarecimento. Quando digo que as investigações dos biólogos darwinistas preparam o terreno para as investiaçÕes sociológicas, isto deve ser compreendido ùnicamente no sentido e que os êxitos da biologia — pois que ela trata do processo de desenvolvimento das formas orgânicas — não podem deixar de contribuir para o aperfeiçoamento do método científico da sociologia — dado que esta trata do desenvolvimento da organização social e de seus produtos: as idéias e os sentimentos do homem. Mas eu não compartilho dos conceitos sociais de darwinistas como Haeckel. Em nossa literatura já foi assinalado que os biologistas darwinistas não utilizam o método de Darwin em suas disquisições sôbre a sociedade humana, limitando-se a elevar à categoria de ideal os instintos dos animais (sobretudo das feras) que foram objeto das investigações do grande biologista. Darwin distava muito de ser um sattelfest (erudito) em questões sociais, mas os conceitos sociais que são nele uma conseqüência de sua teoria recordam muito pouco as conclusões, que tiram dela a maioria dos darwinistas. Darwin acreditava que o desenvolvimento dos instintos sociais "è sumamente útü para a prosperidade da espécie". Êste conceito não pode ser compartido pelos darwinistas que pregam a luta social de todos contra todos. Certamente Darwin diz: "a competência deve ficar aberta para todos os homens, e as leis e os costumes não devem impedir que os mais capazes tenham mais êxito e descendência mais numerosa" (they should not be prevented by laws and customs from succeeding best and reaching the largest number of offspring). Mas é inútil que os partidários da guerra social de todos contra todos se reportem a essas palavras. Não têm mais do que lembrar os saint-simonianos. Êstes diziam a respeito da competência o mesmo que Darwin, mas em áreas dessa mesma competência exigiam reformas sociais que dificilmente seriam defendidas por Haeckel e seus correligionários. Há competition e competition, assim como, no dizer de Sganarelo, há fagot et fagot. (Sganarelo é personagem de Molière, tipo de criado inteligente, hábil e malicioso).

O que ocorre nesse caso é que a teoria de Darwin representou em seu tempo um grande passo necessário ao desenvolvimento da biologia, passo que satisfazia plenamente às mais rigorosas exigências que esta ciência podia apresentar naqueles tempos a seus investigadores. Pode-se dizer algo semelhante a respeito da concepção materialista da história? Pode-se afirmar que esta concepção foi em seu tempo um grande passo necessário no desenvolvimento da sociologia? Ë esta concepção capaz de satisfazer agora a tôdas as exigências da sociologia? A tais perguntas, respondo com segurança: Sim, pode! Sim, é capaz! Além disso, confio em demonstrar — em parte também por correspondência — que essa segurança não carece de fundamento. Mas, retornemos à estética. As palavras de Darwin, que acabo de citar, mostram que êle considera o desenvolvimento dos gostos estéticos do mesmo ponto de vista que o desenvolvimento dos sentimentos morais. Os homens, como muitos animais, possuem o sentido do belo, isto é, são capazes de experimentar um prazer especial ("estético") sob a influência de determinadas coisas ou determinados fenômenos. Todavia, o caráter das coisas ou dos fenômenos que lhes causam êsse prazer depende das condições em que se educam, vivem e atuam. A natureza do homem faz com que este possa ter gostos e conceitos estéticos. As condições circundantes determinam que essa possibilidade se converta em realidade; a elas se deve que tal homem social (isto é, a sociedade, tal povo, tal classe) tenha precisamente esses gostos e conceitos estéticos e não outros. Tal é a conclusão definitiva que decorre espontaneamente do que diz Darwin sôbre êste particular, conclusão que, certamente, nenhum dos partidários da concepção materialista da história discutirá. Muito ao contrário. Todos verão nela uma nova prova em apoio dessa concepção, pois entre esses partidários a nenhum ocorreu jamais negar qualquer das propriedades universalmente reconhecidas da natureza humana ou entregar-se a interpretações arbitrárias sôbre a mesma. A única coisa que se disse é que se essa natureza é imutável, então não explica o processo histórico, que é uma soma de fenômenos que mudam continuamente, e se ela mesma muda com o curso do desenvolvimento histórico, então é evidente que suas mudanças devem obedecer a uma causa exterioT. Por conseguinte, tanto num caso como noutro a missão do histQrißdgr o do socióloga 96 George Plekhanov

ultrapassa de muito os limites das disquisiçÕes sobre as propriedades da natureza humana. Tomemos, por exemplo, essa qualidade humana que se chama tendência à imitação. G. Tarde, que escreveu um estudo interessante sobre as leis da imitação, vê nesta algo assim como a alma da sociedade. Segundo sua definição, todo grupo social é um conjunto de seres que em parte se imitam uns aos outros num dado momento e em parte imitaram antes a um mesmo modêlo. Que a imitação tenha desempenhado um papel muito grande na história de todas as nossas idéias, gostos, modas e costumes, é coisa que não oferece a menor dúvida. Sua enorme significação foi já assinalada pelos materialistas do século passado: o homem é pura imitação, dizia Helvécio. Mas, é igualmente indubitável que Tarde assentou sobre bases falsas o estudo das leis da imitação. Quando a restauração dos Stuarts devolveu temporalmente à velha nobreza o domínio na Inglaterra, essa nobreza não só não mostrou o menor afã de imitar os representantes mais radicais da pequeno-burguesia revolucionária, os puritanos, mas pôs de manifesto uma fortíssima inclinação pelos costumes e gostos diametralmente opostos às normas de vida dos puritanos. 0 rigor dos costumes puritanos foi substituído pelo mais incrível relaxamento. Então se considerava de bom-tom desejar e fazer tudo o que era proibido pelos puritanos. Êstes eram muito religiosos; a alta sociedade da época da restauração fazia alarde de ateísmo. Os puritanos perseguiam o teatro e a literatura; sua queda marcou o comêço de uma nova inclinação pelo teatro e a literatura. Os puritanos usavam o cabelo curto e condenavam o refinamento no vestir; depois da restauração aparecem as compridas perucas e os enfeites luxuosos. Os puritanos proibiam o jôgo de cartas; depois da restauração êste se converte em paixão, etc.,(20). Em uma palavra, o que atuava não era a imitação, mas a contradição, que, aparentemente, também tinha suas raízes nas qualidades da natureza humana. Mas, por que a contradição, baseada nas qualidades da natureza humana, manifestou-se com tal fôrça na Inglaterra do século XVIII, nas relações entre a burguesia e a nobreza? Porque o século XVIII foi uma época de extraordinária exacerbação da luta entre a nobreza e a bur(20) Cf. Alexandre Belrame, Le Public et les Hommes de Lettres en Angleterre du Dix-huitième Siècle, Paris, 1881, pp. 1/10. Cf. também Taine, Histoire de la Littérature Anglaise, t. II, p. 443 e ss.

guesia, ou menor, entre a nobreza e todo o terceiro estado. Podemos dizer, portanto, em que pese ao homem uma indubitável tendência à imitação, essa tendência só se manifesta em presença de determinadas relações sociais, como, por exemplo, as relações da França do século XVII, quando a burguesia se comprazia, ainda que não com muito êxito, em imitar a nobreza: recorde-se O Burguês Gentil-homem, de Molière. Mas quando existem outras relações sociais, desaparece a tendência à imitação, cedendo seu lugar a uma tendência oposta, a que, por ora, darei o nome de tendência à contradição. Mas não. Expressei-me inexatamente. Os ingleses do século XVII não perderam a tendência à imitação. Essa tendência manifestou-se, certamente, com a mesma força nas relações entre os indivíduos de uma mesma classe. Referindo-se à alta sociedade inglêsa daquela época, Belrame diz: "essa gente sequer é incrédula; negam a priori, para que não sejam tomadas por cabeças redondas e para evitar o dano de pensar" ( 21 ). Podemos dizer sem mêdo de equívoco, que essa gente negava por imitação. Mas ao imitar os mais acérrimos negadores, contradiziam os puritanos. A imitação foi, portanto, a origem da contradição. Mas nós sabemos que se a gente débil da nobreza inglêsa imitava a incredulidade dos mais fortes era porque a incredulidade se considerava de bom-tom, coisa que sucedia ùnicamente em virtude da contradição, apenas como reação ao puritanismo, reação, que, por sua vez, era o resultado da citada luta de classes. Isto quer dizer que toda essa complicada dialética dos fenômenos psíquicos descansava em fatos de ordem social, o que demonstra claramente até que ponto e em que sentido é justa a dedução por mim feita acima a respeito de algumas teses de Darwin: a natureza do homem faz com que êste possa ter determinados conceitos (gostos ou inclinações), e das condições ambientais depende que essa possibilidade se converta em realidade; tais condições concorrem para que no homem surjam precisamente êsses conceitos (inclinações ou gostos) e não outros. Se me não engano, isto já foi dito antes por um partidário russo da concepção materialista da história. Quando o estômago recebeu determinada quantidade de alimento, começa a trabalhar de acordo com as leis gerais da digestão gástrica. Podem essas leis ajudar-nos a responder à per(21) Alexandre Belrame, ob. cit., pp. 7-8. Cabeças redondas era o nome aplicado aos puritanos, por usarem o cabelo curto.

gunta de por que em seu estômago, a cada dia, vai parar uma comida saborosa e nutritiva, ao passo que o meu raramente é visitado por ela? Por acaso explicam essas leis a razão por que uns comem demasiado, enquanto outros morrem de fome? Pa« rece-me que a explicação deve ser procurada em outra esfera, na ação de leis de outra índole. 0 mesmo ocorre com o entendimento humano. Quando este se encontra em determinada situação, quando o meio ambiente lhe proporciona determinadas impressões, combina-as em obediência a certas leis gerais, com a particularidade de que nesse caso também os resultados são extremamente variados tonalizando-as com a variedade das impressões recebidas. Mas, que é que coloca o entendimento nessa situação? Que é que determina o afluxo e ó caráter das novas impressões? Ë esta uma questão que se não pode resolver com nenhuma lei do pensamento. Prossigamos. Imagine você que uma bola elástica caia do alto de uma torre. Seu movimento obedece a uma lei de mecânica, muito simples e de todos conhecida. Mas agora a bola choca-se com um plano inclinado. Seu movimento muda de acordo com outra lei mecânica, tão simples e conhecida como a anterior. Como resultado, obtemos uma linha quebrada do movimento, com respeito à qual se pode e se deve dizer que tem sua origem na ação combinada das duas leis que acabamos de mencionar. Mas, como surgiu o plano inclinado contra o qual se foi chocar nossa bola? Isto não é explicado pela primeira nem pela segunda lei, como, tampouco, sua ação combinada. Exatamente o mesmo ocorre com o pensametno humano. De onde procedem as circunstâncias em virtude das quais seu movimento se submete à ação combinada de tais ou quais leis? 0 fato não é explicado nem pelas diferentes leis do pensamento nem por sua ação conjunta(22). Estou firmemente convencido de que a história das ideologias só pode ser compreendida por quem tenha assimilado plenamente esta clara e simples verdade. Continuemos. Ao referir-me à imitação, mencionei a tendência diametralmente oposta, que denominei de tendência à contradição. Ë preciso que a eximanemos mais detidamente. (22) A citação é do próprio Plekhanov. Ver a obra Contribuição ao Problema do Desenvolvimento da Concepção Monist a da História. (N. do T.)

Sabemos da importância que tem — segundo Darwin — о "princípio da antítese" no que toca à expressão das sensações nos homens e nos animais. "Certos estados anímicos ( . . . ) provocam determinados movimentos habituais, que em sua primeira manifestação, e atual, pertencem à categoria dos movimentos úteis.. . Em um estado de ânimo diametralmente oposto manifesta-se um forte desejo involuntário de executar movimentos inteiramente voluntários, apesar de que estes nunca podem ser de qualquer utilidade"(23). Darwin cita numerosos exemplos que demonstram de modo muito convincente que na expressão das sensações, muitas coisas podem explicar-se realmente pelo "princípio da antítese". E, pergunto eu: não se adverte seu efeito na origem e no desenvolvimento dos costumes? Quando um cão se deita de barriga para cima diante de seu amo, esta postura, por mais oposta que se possa imaginar qualquer manifestação de resistência, serve para exprimir a submissão mais completa. Salta imediatamente aos olhos a ação do princípio da antítese. Creio, não obstante, que também salta aos olhos o caso seguinte, de que fala o viajante Burton. Os negros wanyamwezi, quando passam perto de uma aldeia habitada por tribo inimiga, não conduzem armas, para não irritar os adversários, mas vão todos armados, com pelo menos, um garrote(24). Se no caso citado por Darwin, o cão ao estender-se de pança para cima parece dizer ao homem ou a outro cão: "olha, sou teu escravo!", o negro wanyamwezi, ao desarmar-se no momento preciso em que, a rigor, devera estar mais armado, com isso quer dizer a seu amigo: "longe de mim qualquer idéia de ofensa; confio plenamente em tua magnanimidade". Num caso como noutro, o mesmo sentido é expresso da mesma maneira, isto é, mediante uma ação diametralmente oposta à que se produziria inevitavelmente se em lugar da submissão tivesse existido uma intenção hostil. Nos costumes que servem para exprimir dor, também se observa com surpreendente clareza a ação do princípio da antítese. Davi e Carlos Livingstone contam que as negras nunca (23) A Expressão das Sensações (Emoções) no Homem € поз Animais, traduzida para o russo, S. Petersburgo, 1872, p. 43. (24) Voyage aux grands Lacs de l'Afrique Orientale, Paris, 1862, p. 610.

gaem de casa sem adornos, exceto nos casos em que estão de luto( 25). Quando um negro da tribo Niam-Niam perde um de seus parentes, em sinal de luto corta o cabelo, a cujo trabalho dedicam habitualmente muita atenção, tanto êle quanto suas esposas (26). Segundo Du Chaillu, na África, ao morrer uma pessoa importante da tribo, muitos povos negros vestem roupas sujas( 27). Na ilha de Bornéu alguns indígenas manifestam вей pesar tirando a roupa de algodão que usam e substituindo-a pela roupa feita de cascas de árvores que usavam em tempos idos(28). Com o mesmo fim, em certas tribos mongóis, veste-se a roupa pelo avêsso(29). Em todos êsses casos, os sentimentos se expressam mediante ações opostas às que se consideram naturais, necessárias, úteis ou agradáveis quando a vida segue seu curso normal. Assim, em condições normais, considera-se útil substituir a roupa suja por outra limpa; mas quando se experimenta algum pesar, a roupa limpa, de acordo com o princípio da antítese, é substituída por roupa suja. Os citados habitantes de Bornéu trocaram com gosto a roupa feita com cascas de árvore pela roupa de algodão; mas a ação do princípio da antítese obriga-os a trajar a roupa de casca de árvore nos casos em que querem exprimir seu pesar. Os mongóis, como os demais povos, usam a roupa de modo natural, com a parte direita para o exterior e não ao contrário; mas precisamente porque isso parece ser o natural em condições normais, viram a roupa pelo avêsso, quando o curso normal da vida se vê alterado por algum acontecimento doloroso. E eis tun exemplo ainda mais frisante. Schweinfurth diz que muitos negros africanos exprimem a dor, amarrando uma corda ao pescoço (30). Nesse caso a dor se expressa por um sentimento diametralmente oposto ao que sugere o instinto de conservação. São muitos os casos dêsse gênero que poderiam ser citados. Por isso, estou convencido de que uma parte considerável dos costumes tem sua origem na ação do princípio da antítese. (25) p. 109. (26) (27) (28) (29) (30)

Exploration du Zambèze et de ses Affluents,

Paris, 1866,

Schweinfurth, Au Coeur de l'Afrique, t. II, p. 33. Voyage et Aventures dans l'Afrique Êquatoriale, p. 268. Katzel, Völkerkunde, В. I., Einleitung S. 65. Ratzel, 1. е., В. II. S. 347. Au Coeur de VAfrique, t. I, p. 151.

Se minha convicção tem fundamento — e a mim parece que tem — podemos supor que o desenvolvimento de nossos gostos estéticos se opera também em parte sob a influência dêsse princípio. Confirmam os fatos tal suposição? Creio que sim. Na Senegâmbia, as negras ricas usam sapatos tão pequenae que nêles não cabe todo o pé, e essas damas se distinguem por seu andar desajeitado. Mas nessa deselegância reside precisamente seu atrativo(31). Como pode ocorrer tal cousa? Para compreender, é mister ter em conta que as negras pobres e as que trabalham não usam sapatos que tais, e sua maneira de andar é normal. Elas não podem andar como andam as presumidas ricas, porque isso implicaria em grande perda de tempo. Pois bem. A razão do atrativo dêsse estilo de andar desajeitado das mulheres ricas reside justamente em que para elas o tempo não tem valor, pois estão livres da necessidade de trabalhar. Tal maneira de andar não tem em si o menor sentido e só adquire significação em virtude de seu contraste com o modo de andar das mulheres obrigadas a trabalhar (ou seja, pobres). A ação do "princípio da antítese" é, nesse caso, evidente. Mas, queria notar que seus determinantes são causas sociais: a existência da desigualdade de bens entre os negros da Senegãmbia. Como foi dito acima, a respeito dos costumes dos cortesãos inglêses à época da restauração dos Stuarts, não creio seja difícil convir comigo que a tendência à contradição é um caso particular da ação do princípio darwinista da antítese na psicologia social. Contudo, é necessário fazer a seguinte observação. O amor ao trabalho, a paciência, a sobriedade, a poupança, o rigor na vida familiar e outras virtudes eram muito úteis à burguesia inglêsa, que aspirava a conquistar uma situação social mais elevada. Mas os vícios opostos às virtudes burguesas mostravam-se, quando menos, inúteis para a nobreza inglêsa na luta que em defesa de sua sobrevivência sustentava contra a burguesia. Êsses vícios não lhe proporcionavam novos meios para tal luta e não eram mais que sua conseqüência psicológica. O útil para a nobreza inglêsa não era sua tendência aos vícios contrapostos às virtudes burguesas, mas o sentimento a que obedecia essa ten(31) L. J. Bérenger-Férand, Les Peuplades de la Sênégamble, Paris, 1879, p. 11.

dência, isto é, o ódio a uma classe cujo triunfo completo teria significado a destruição igualmente completa de todos os privilégios da aristocracia. A tendência aos vícios não era mais do que uma espécie de troca correlativa (se se pode empregar êste lêrmo que tomei a Darwin). Na psicologia social dão-se amiúde lais mudanças correlativas, e é preciso levá-las em conta. Mas é igualmente necessário recordar, também, que obedecem, no final de contas, a causas sociais. A história da literatura inglêsa mostra-nos com que força se refletiu nas idéias estéticas da nobreza essa ação psicológica do princípio da antítese que acabo de mencionar e cuja origem reside na luta de classes. A aristocracia inglêsa, que vivera em França durante seu destêrro, conheceu ali a literatura francesa e o teatro francês, que eram um produto exemplar, único em seu gênero, de uma sociedade aristocrática refinada, o que respondia muito melhor a suas próprias tendências aristocráticas do que o teatro inglês e a literatura inglêsa da época isabelina. Após a restauração se inicia o domínio dos gostos franceses na cena inglêsa e na literatura inglêsa. Shakespeare foi denegrido, do mesmo modo por que haviam de denegri-lo mais tarde, ao conhecê-lo, os franceses, firmemente aferrados às tradições clássicas: foi tachado de "selvagem bêbadoSeu Romeu e Julieta foi qualificado então de obra "má"; o Sonho de uma Noite de Verão, de "néscia" e ridícula; Henrique VIII, de "ingênua", e Otelo, de "medíocre" ( 32). Essa atitude para com Shakespeare não desaparece por completo sequer no século subseqüente. Hume dizia que, comumente, se exagerava o gênio dramático de Shakespeare, pela mesma razão por que parecem muito grandes os corpos disformes e desproporcionados. E atribuía ao grande dramaturgo um absoluto desconhecimento das regras da arte teatral (total ignorance of all theatrical art and conduct). Pope lamentava que Shakespeare tivesse escrito para o povo (for the people )t e que não houvesse buscado a proteção da corte nem o apoio dos cortesãos ( the protection of his prince and the encouragement of the court). Até o célebre Garrick, fervente admirador de Shakespeare, cuidava de enobrecer o seu "ídolo". Ao representar Hamlet, omitia, por demasiado grosseira, a cena dos coveiros. Ao Rei Lear agregou um desfecho feliz. Em compensação, a parte democrática do público continuava grande admiradora de Shakespeare. Garrick compreendia que ao reformar suas obras (32)

Belrame, ibid., pp. 40-41; cf; Taine, I. c., pp. 508-512. Varias Sem Endereço 103

corria o perigo de provocar ruidoso protesto dessa arte do público. Seus amigos franceses escreviam-lhe cartas elogiando o "valor" com que fazia frente a êsse perigo: "Car je connais la populace anglaiseacrescentava um dêles(33). A dissolução dos costumes da nobreza, durante a segunda metade do século XVII, também repercutiu, como é sabido, na cena inglêsa, onde adquiriu proporções realmente incríveis. As comédias escritas na Inglaterra de 1660 a 1690 pertencem quase sem exceção, como diz Eduardo Engel, ao gênero pornográfico (34). Por isso, podia-se dizer a priori que, tarde ou cedo, na Inglaterra haveria de aparecer, segundo o princípio da antítese, um gênero dramático que seria a apresentação e a louvação das virtudes domésticas e da pureza burguesa dos costumes. E, com efeito, êsse gênero foi criado mais tarde pelos representantes intelectuais da burguesia inglêsa. Mais adiante, terei ocasião de referir-me a êsse gênero de obras dramáticas, quando abordar a "comédia lacrimosa" francesa(35). Parece-me que foi Hipólito Taine quem observou melhor e com mais acuidade a significação do princípio da antítese, na história dos conceitos estéticos (36). Em seu engenhoso e interessante Voyage aux Pyrénées reproduz uma conversação com Monsieur Paul, seu 44 companheiro de mesa", que evidentemente exprime as idéias do autor: "Vá a Versalhes — diz Mr. Paul — e ficará indignado ante os gostos do século X V I I I . . . Mas deixe, por algum tempo, de julgar as cousas do ponto de vista de suas próprias necessidades e de seus próprios hábitos. . . " Temos razão ao entusiasmar-nos ante (33) "Pois conheço o populacho inglês". Veja-se a propósito, o interessante estudo de J. J. Jusserand, Shakespeare en France sous l'Ancien Régime, Paris, 1898, pp. 247-248. (34) Geschichte der Englischen Literatur, 3 Auflage, Leipzig, 1897, p. 264. (35) A "comédia lacrimosa" francesa constituía, segundo definição do A., um retrato da burguesia francesa do século XVII. Seu herói era o "bom" burguês e seu tema principal a vida familiar. ^ * investigar a ação psicoUniverselle, Essai сРипе Mas não a aproveitou, limitando-se a umas quantas observações — muito poucas — a respeito de dita ação. Certamente, Tarde diz (p. 245) que o livro não e um tratado de sociologia. Mas em um tratado dedicado especialmente à sociologia, Tarde teria fracassado, a não ser que houvesse abandonado seu ponto de vista idealista.

uma paisagem agreste, como tinham êles ao se sentirem aborrecidos em face dessa mesma paisagem. Para a gente do século XVIII não havia nada tão feio quanto uma montanha de verdade (37). Esta despertava nêles muitas idéias desagradáveis. Aos homens que acabam de viver a época das guerras civis e da semibarbárie, a vista de uma montanha fazia-os recordar a fome, as grandes caminhadas a cavalo sob a chuva e a neve, o péssimo pão negro, metade farelo, que lhes serviam nas imundas estalagens cheias de parasitas. Estavam cansados da barbárie, como nós estamos da civilização. . . Estas montanhas. . . nos permitem descansar de nossas ruas pavimentadas, oficinas e tendas. Por isso, ùnicamente apreciamos as paisagens agrestes. E se não fora por essa razão, parecer-nos-iam tão repulsivas como pareciam em seu tempo a Madame de Maintenon(38 ). A paisagem agreste agrada-nos pelo contraste que oferece com o aspecto das cidades, de que estamos fartos. A vista de uma cidade, com seus asseados jardins, era agradável aos homens do século XVII, por seu contraste com os lugares agrestes. Aqui, tampouco, oferece dúvidas a ação do "princípio da antítese". E precisamente por isso nos mostra com tôda a evidência, até que ponto as leis psicológicas podem ser a chave para explicar a história da ideologia em geral e a história da arte em particular. 0 princípio da antítese desempenhou na psicologia dos homens do século XVII o mesmo papel que desempenha na de nossos contemporâneos. Por que, então, nossos gostos estéticos são opostos aos dos homens do século XVII? Porque estamos em uma situação totalmente diversa. Chegamos, pois, a uma conclusão que já conhecemos: que a natureza psicológica do homem faz com que êste possa ter conceitos estéticos, e que o princípio darwinista da antítese (a "contradição" hegeliana) desempenha no mecanismo dêsses conceitos um papel de extraordinária importância, até agora insuficientemente apreciada. Isto pôsto, o fato de que determinado indivíduo social tenha precisamente tais gostos e não outros, que aprecie exatamente tais objetos e não outros, depende das condições que o rodeiam. 0 exemplo citado por Taine mostra muito bem, ao mesmo tempo, quais são essas condições: por êle vemos que se trata das condições sociais, cujo conjunto está determinado — (37) (38)

Não esqueçamos que se trata dos Pirineus, Voyage aux Pyrénées, Sème, édit, Paris, pp. 190-193.

por ora, expresso-me de maneira imprecisa — pelo desenvolvimento da cultura h u m a n a ( 3 9 ) . E m chegando a êste ponto, prevejo de sua parte a seguinte objeção: "Admitamos que o exemplo citado por Taine nos mostre que as condições sociais sejam a causa atuante das leis fundamentais de nossa psicologia; admitamos que os exemplos citados por você indiquem o mesmo. P o r acaso não se podem citar exemplos* que demonstrem o contrário? Acaso não conhecemos exemplos demonstrativos de que as leis de nossa psicologia são postas em ação sob a influência da natureza que nos rodeia?" Claro que os conhecemos — respondo eu — e no exemplo citado por Taine trata-se precisamente de nossa atitude ante as impressões produzidas em nós pela natureza. Mas o que ocorre é que a influência exercida sôbre nós por essas impressões mudam quando m u d a nossa própria atitude ante a natureza, e isto (39) Já nos graus mais baixos da cultura, a ação do princípio psicológico dà contradição é provocada pela divisão do trabalho entre o homem e a mulher. Segundo V. I. Iokhelson, "a contraposição do homem e da mulher como dois grupos separados é típica do regime primitivo dos yucagiros. Isto se manifesta nos jogos, em que homens e mulheres formam dois bandos rivais; no idioma, do qual alguns sons se pronunciam diferentemente pelas mulheres e pelos homens; no fato de que para as mulheres o parentesco por linha materna é mais importante, ao passo que para os homens é o parentesco por linha paterna; na especialização dos dois sexos em ocupações diferentes, o que cria para cada um dêles um campo de atividades diversas e independentes" (Por los Rios Yasáchnaia y Korkodôn. A Vida e a Escritura Antiga dos Yucagiros, São Petersburgo, 1898, p. 5). O Senhor Iokhelson parece não perceber, nesse caso, que a especialização dos dois sexos em ocupações diferentes foi justamente a causa, e não a conseqüência da contraposição por êle assinalada. Muitos viajantes indicam que esta contraposição se reflete nos adornos usados pelos dois sexos. Um exemplo: "Aqui, como em tôdas as partes, o sexo forte põe grande empenho em diferençar-se do outro sexo, e a toilette masculina é muito diferente da feminina" (Schweinfurth, Au Coeur de l'Afrique", II, p. 281), "os homens (da tribo NiamNiam) dedicam muito tempo à sua toilette, ao passo que o penteado das mulheres é sumamente simples e modesto" (Ibid., II, p. 5). Corn respeito à influência que exerce nas danças a divisão do trabalho entre o homem e a mulher, veja-se Von den Steinen, Unter der Naturvölkern Zentral-Brasiliens, Berlim, 1894, p. 298. Pode afirmar-se com tôda a segurança que o desejo de contrapor-se às mulheres surge nos homens antes do desejo de contrapor-se aos animais inferiores. Não é certo que as qualidades, neste caso fundamentais, da natureza psicológica do homem adquirem uma expressão bastante paradoxal?

está determinado pelo desenvolvimento de nossa cultura (isto é, da cultura social). No exemplo citado por Taine, fala-se da paisagem. Observe, meu caro senhor, que na história da pintura a paisagem não ocupa sempre o mesmo lugar. Miguel Ângelo e seus contemporâneos desprezavam-na. A paisagem tem verdadeira importância na Itália somente em fins do Renascimento, no momento da decadência. O mesmo ocorre com os pintores franceses do século XVII e inclusive do XVIII, para os quais a paisagem carece de valor substantivo. No século XIX, a situação muda por completo: começa-se a apreciar a paisagem como tal, e os jovens pintores — Flers, Cabat, Teodoro Rousseau — buscam na natureza, nos arredores de Paris, em Fontainebleau e em Melun, inspirações cuja única possibilidade de existência sequer suspeitavam os pintores da época de Le Brun e Boucher. Por que? Porque haviam mudado as relações sociais na França, e em conseqüência, havia mudado também a psicologia dos franceses. Assim, pois, nas diferentes épocas do desenvolvimento social o homem recebe da natureza impressões diferentes, porque a vê de diferentes pontos de vista. A ação das leis gerais da natureza psíquica do homem não se interrompe, naturalmente, em nenhuma dessas épocas. Mas como as diferenças nas relações sociais fazem com que em diferentes épocas a cabeça do homem receba materiais muito variados, nada há de estranho que os resultados da elaboração dêsse material sejam também muito variados. Outro exemplo. Alguns escritores exprimiram a idéia de que no aspecto exterior do homem nos parece feio tudo que lembra os traços dos animais inferiores. Isto é certo, no que respeita aos povos civilizados, ainda que neste caso existam muitas exceções: a ninguém parece horrível a "cabeça do leão". Não obstante, e em que pese a essas exceções, podemos afirmar neste caso que o homem — que se considera um ser incomparavelmente superior a todos os demais parentes do reino animal — teme assemelhar-se a êles, e inclusive procura dominar, exagerar sua dessemelhança(40). (40)7n dieser Idealisierung der Natur liess sich die Sculptur con Fingerzeigen der Natur selbst leiten: sie überschätzte hauptsächlich Merkmale die den Menschen von Tiere unterscheiden. Die aufrechte Stellung fürte zu grösserer Schlankheit und Länge der Beine, die zuneh-

Mas, aplicado aos povos primitivos, isto é de todos os modos falso. Sabemos que alguns deles arrancam os incisivos superiores para se assemelharem aos ruminantes; outros aguçam os dentes para se identificarem com as feras; outros, ainda, trançam os cabelos para formar com êles u n s chifres, e assim, sucessivamente, até o i n f i n i t o ( 4 I ) . Freqüentemente, êsse afã de imitar os animais aparece ligado, nos povos primitivos, a suas crenças religiosas(42). Mas, isto não m u d a e m nada a questão. Se o homem primitivo contemplasse os animais inferiores com nossos olhos, certamente os animais não teriam cabimento em suas idéias religiosas. 0 homem primitivo olha os animait* de outro modo. P o r quê? Porque se encontra em uma etapa mende Steile des Schädelwinkels in dem Tierreiche zur Bildung des griechischen Profils , der allegemeine schon von Winkelmann ausgesprochene Grundsatz, dass die Natur, wo sie Flächen unterbreche dies nicht stumpf, sondern mit Entschiedenheit tue, liess die scharfen Ränder der Augenhöhle und der Nasenbeine, so wie den ebenso scharfgerandeten Schnitt der Lippen vorziehen." Lotze, Geschichte der Aesthetik in Deutschland, München , 1Ü68, p. 568. ("Nesta idealização da natureza, exagerando a importância daqueles traços pelos quais o homem se diferencia dos animais, a escultura seguiu os ditames da própria natureza. A atitude erecta conduziu a uma maior esbeitez e a um maior comprimento das pernas; a crescente abertura do ângulo facial no reino dos animais, à formação do perfil grego; a lei geral descoberta por Winkelmann de que quando a natureza interrompe seus planos, não o faz de modo algum com suavidade, mas pretere os bordos cortantes das órbitas e dos ossos nasais, assim como as bocas nitidamente delineadas/') Lotze, História da Estética na Alemanha, Munique, 1868, p. 568.) (41) O missionário Heckewelder conta que, visitando certa ocasião um índio conhecido, encontrou-o preparando-se para a dança, que, como se sabe, tem entre os povos primitivos importante significação social. O índio pintara o rosto de um modo bem curioso: "Ao vê-lo de perfil notei que, por um lado, o nariz imitava muito bem o bico de uma águia, enquanto o outro lado representava o focinho de um porco... Aparentemente, o índio sentia-se satisfeito com seu trabalho, e como possuía um espelho, olhava-se com alegria, não isenta de orgulho." (Histoire t Moeurs et Coutumes des Nations Indiennes , qui habitaient autrefois la Pensylvanie et les États voisins, par le Révérend Jean Heckewelder, missionaire morave, trad, de l'anglais par le Chevalier Du Ponceau, Paris, 1822, p. 324). Apresento o título oompleto do livro porque contém muitos dados de sumo interêsse, e desejo recomendá-lo ao leitor. Mais de uma vez terei que fazer remissão ao mesmo. (42) Cf. J. G. Frazer, Le Totémisme, Paris, 1898, p. 39 e ss.; Schweinfurth, Au Coeur de l'Afrique, t. I, p. 381.

diferente do desenvolvimento cultural. Por conseguinte, se num caso o homem procura assemelhar-se aos animais inferiores e noutro a contrapor-se a êles, significa que tal atitude depende do estado em que se encontre sua cultura, ou seja, uma vez mais, daquelas condições sociais а que me referi mais acima. Agora posso exprimir-me com mais exatidão, dizendo que isso depende do grau de desenvolvimento de suas forças produtivas, de seu modo de produção. Б para que não me acusem de exagêro e de "unilateral", deixarei que fale por mim o sábio e viajante alemão, Von den Steinen, a quem citei anteriormente: "Só compreenderemos esta gente — diz, referindo-se aos indígenas brasileiros — quando os consideramos como um produto de sua vida de caçadores. 0 essencial de sua experiência está ligada ao mundo animal, e essa experiência é a base de sua concepção do mundo. Concordes com isto, seus temas artísticos são tomados, com exasperante monotonia, do mundo animal. Pode dizer-se que tôda sua arte, de uma riqueza assombrosa, baseia-se em sua vida de caçadores" (43). Em sua dissertação As Relações Estéticas entre a Arte e a Realidade, Tchernishevski(44) declara: "Nas plantas, apreciamos a frescura da côr, o esplendor e a riqueza de suas formas, reveladores de uma vida forte e louça. A planta raquítica desagrada; a planta que tem pouca seiva vital desagrada" (45). A dissertação de Techemishevski constitui um exemplo sumamente interessante e único em seu gênero de aplicação dos princípios gerais do materialismo de Feuerbach ao problema da estética. Todavia, a história sempre foi o ponto fraco dêsse materialismo, como o demonstram claramente as linhas que acabo de citar: "Nas plantas apreciamos.. . " A quem se refere ao dizer "apreciamos"? Os gostos são extraordinariamente variáveis, como assinala mais de uma vez o próprio Tchernishevski na aludida obra. Sabe-se que as tribos primitivas —• como os bosquímanos e os australianos — nunca se enfeitam com flores, apesar de viverem em países onde estas (43) Obra cit., p. 201. (44) Nicolau Gavrilovich Tchernishevski (1828-89), filósofo materialista, crítico e escritor. (N. do T.) (45) Ver N. G. Tchernishevski, Obras Filosóficas Escolhidas (Moscou, Editora de Literatura Política do Estado, 1950, t. I, p. 63). Na dissertação Atitudes Estéticas da Arte ante a Realidade, Tchernishevski submete a um rigorosa crítica a estética idealista de Hegel e formula os princípios fundamentais da estética materialista.

são abundantes. Diz-se que os tasmânios constituíam nesse sentido uma exceção, mas hoje já não podemos comprovar se efetivamente era assim, porquanto os tasmânios se extinguiram. 0 que sabemos muito bem é que em matéria de ornamentação nos povos primitivos — mais exatamente, dos povos que vivem da caça — cujos temas são retirados do mundo animal, faltam por completo as plantas. A ciência moderna também o explica pelo estado em que se encontram as forças produtivas. "Os temas de ornamentação, que os povos caçadores tomam da natureza, constam unicamente de formas animais e humanas — diz Ernesto Grosse — o que significa que escolhem justamente aquêles fenômenos que têm para êles maior interêsse prático. A recoleção de plantas também é necessária, naturalmente, para o caçador primitivo, mas êste a considera uma ocupação de tipo inferior e a deixa ao cuidado das mulheres, sem mais se interessarem por ela. Esta é a razão pela qual em seu ornamento não encontramos sombra dos temas vegetais, que tanto se desenvolveram nas artes decorativas dos povos civilizados. Em realidade, a transição dos adornos animais para os vegetais é um sinal de formidável progresso na história da cultura, pois marca a passagem da vida baseada na caça para a vida baseada na agricultura "(46). A arte primitiva reflete tão diàfanamente o estado de desenvolvimento das forças produtivas, que hoje em dia nos casos duvidosos julga-se pela arte o estado em que se encontram ditas forças. Assim, por exemplo, os bosquímanos são muito afeiçoados à pintura humana e de animais, cousa que fazem bem. Nos lugares em que habitam, algumas grutas constituem verdadeiras galerias pictóricas. Mas os bosquímanos nunca desenham plantas. Na única exceção que se conhece a esta regra geral — a imagem de um caçador que se esconde atrás de uma mata — o grosseiro desenho da mata mostra melhor que nada, o inusitado dêsse tema para o artista primitivo. Baseando-se nisso, alguns etnólogos chegam à conclusão de que se os bosquímanos possuíram em alguma época um grau de cultura algo superior à atual — o que em têrmos gerais não é impossível — certamente jamais chegaram a conhecer a agricultura (47). (46) Die Anfänge der Kunst , p. 149. (47) Veja-se a interessante introdução de Raul Allier ao livro de Frederico Christol: Au Sud l'Afrique, Paris, 1897.

Se isso é verdade, então podemos modificar do seguinte modo a conclusão que fizemos acima, a respeito das palavras de Darwin: a natureza psicológica do caçador primitivo faz com que êste possa ter em geral gostos e idéias estéticas, ao passo que o estado em que permanecem suas forças produtivas, sua vida de caçador, faz com que seus gostos e idéias estéticas sejam precisamente essas e não outras. Esta conclusão, que projeta luz sobre a arte das tribos caçadoras, é ao mesmo tempo um nôvo argumento a favor da concepção materialista da história. Entre os povos civilizados é muito menos freqüente a influência direta da técnica da produção sôbre a arte. Êste fato, que aparentemente vai de encontro à concepção materialista da história, é em realidade uma brilhante confirmação da mesma. Mas disto, falaremos em outra ocasião. Passo agora ao exame de outra lei psicológica que também desempenhou um grande papel na história da arte e à qual, tampouco, se deu a atenção que merece. Burton diz que os negros africanos que êle conhece têm pouco desenvolvido o ouvido musical, mas que, em troca, são muito sensíveis ao ritmo: "o remeiro canta ao compasso do movimento dos remos; o carregador canta enquanto caminha; a dona de casa trauteia enquanto mói o grão "(48). O mesmo conta Casalis acêrca dos cafres da tribo dos bassutos, cuja vida estudou a fundo. "As mulheres dessa tribo carregam nos braços braceletes metálicos que soam a cada movimento. Para moer o grão nos pilões de pedra reunem-se várias mulheres e acompanham os movimentos rítmicos de seus braços com cantos que correspondem rigorosamente ao soar cadenciado de seus braceletes (49). Os homens da mesma tribo — diz Casalis — quando se dedicam a curtir os couros, lançam a cada movimento um estranho som, cuja significação não pude compreender(50). O que mais agrada da música a essa tribo é o ritmo, e quanto mais acentuado é o ritmo de seu cantarolar, mais o apreciam(Sl). Durante a dança, os bassutos marcam o compasso com os pés e as mãos, e para reforçar os sons produzidos penduram no corpo um fieira de soalhas(52). Os índios brasileiros também (48) Obra cit., p. 602. O grão é moído a mão. (49) Les Bassoutos, par E. Casalis, ancien missionaire, Paris, 1863, p. 150. (50) Obra cit., p. 141. (51) Obra cit., p. 157. (52) Obra cit., p. 158.

demonstram em sua música um grande sentido do ritmo, mas são muito fracos quanto à melodia e, ao que parece, não têm a menor idéia de harmonia( 53). 0 mesmo pode-se dizer dos indígenas australianos(54). Em suma, o ritmo tem para todos os povos primitivos uma importância verdadeiramente colossal. A sensibilidade para o ritmo, assim como a capacidade musical em geral constitui, evidentemente, uma das qualidades fundamentais da natureza psicofisiológica do homem, e não só do homem. "A capacidade de deleitar-se com a musicalidade da cadência e do ritmo, ou quando menos de percebê-la, parece ser inerente a todos os animais — disse Darwin — e depende indubitavelmente da natureza fisiológica geral de seu sistema nervoso "(55). Por esta razão, parece que não há inconveniente em supor que quando se manifesta esta capacidade, comum ao homem e aos demais animais, tal manifestação não depende em geral das condições de sua vida vida social nem em particular do estado de suas forças produtivas. Ainda que esta suposição seja aparentemente muito natural, em realidade não resiste à crítica dos fatos. A ciência demonstrou que dita relação existe. E observe, meu caro senhor, que a ciência fêz tal demonstração na pessoa de um dos mais destacados economistas: Karl Bücher ( 56). Como o evidenciam os fatos citados por mim mais acima, a capacidade de o homem perceber o ritmo e de deleitar-se com o mesmo faz com que o produtor primitivo se submeta alegre a certo ritmo no processo do trabalho e acompanhe os movimentos produtivos do corpo com sons compassados da voz e com o som cadenciado de diversos objetos que leva pendurados. Pois bem, de que depende êsse ritmo a que se submete o produtor primitivo? Por que os movimentos produtivos de seu corpo obser(53) Von den Steinen, obra cit., p. 326. (54) V. E, T. Eyre, Manners and Customs of the Aborígenes of Australia and Overland, London, 1847, t. II, p. 229. Ver também Grosse, Anfänge der Kunst, p. 271. (55) A Origem do Homem, t. II, p. 252. (56) Carlos Bücher (1847-1930): economista burguês alemão, historiador da economia nacional e estatístico. Pertenceu à chamada escola histórica na economia política. No livro Arbeit und Rhythmus (Trabalho e Ritmo), citado por Plekhanov, Bücher analisa um abundante material etnográfico e chega a conclusões que confirmam os postulados do materialismo histórico.

vam precisamente essa cadência e nâo outra? Isso depende do caráter tecnológico do processo de produção, da técnica da produção dada. Nas tribos primitivas, cada tipo de trabalho tem sua canção, cujas cadências sempre se adaptam com grande exatidão, ao ritmo dos movimentos produtivos dêsse tipo de trabalho(57). À medida que se desenvolvem as forças produtivas, diminui a importância da atividade rítmica no processo de produção, mas inclusive nos povos civilizados — como, por exemplo, nas aldeias alemãs — cada época do ano tem, segundo a expressão de Bücher, seus particulares ruídos de trabalho, e cada labor, sua própria música(58). É preciso ter presente também que segundo a realização do trabalho — por um produtor ou por todo um grupo — surgem canções para um solista ou para um coro, com a particularidade de que neste último também existem várias subdivisões. Em todos êles o ritmo da canção sempre está rigorosamente condicionado pelo ritmo do processo de produção. Mas isto não é tudo. O caráter tecnológico deste processo igualmente exerce uma influência decisiva sobre o conteúdo das canções que acompanham o trabalho. O estudo da relação existente entre o trabalho, a música e a poesia levou Bücher à conclusão "de que, na primeira fase de seu desenvolvimento, o trabalho, a música e a poesia estiveram estreitamente ligados entre si, mas que o elemento fundamntal desta trindade foi o trabalho, tendo os outros dois uma significação secundária"(59). Considerando-se que os sons que acompanham a muitos processos de produção apresentam por si uma ação musical e que, ademais, o ritmo ê para os povos primitivos o principal na música, não é difícil compreender como os sons provocados pelo contacto dos instrumentos

de trabalho

com os objetos

em pro-

cesso de elaboração davam origem às não complicadas produções musicais dêsses povos. Isto se efetuava mediante o reforçamento de ditos sons, certa diversificação de seu ritmo e, em geral, mediante seu ajustamento à expressão dos sentimentos humanos (60). Para isso, houve primeiro que modificar os instruc t ) К. Bücher, Arbeit und Rythmus, Leipzig, 1896, pp, 21, 22, 23, 35, 50, 53, 54; Burton, obra cit., p. 641. (58) К. Bücher, ibid., p. 29. (59) Obra cit., p. 78. (60) Ibid., p. 91.

mentos de trabalho, que dêsse modo se foram convertendo em instrumentos

musicais.

Em primeiro lugar, deveram ter sofrido tal transformação aquêles instrumentos com os quais o produtor batia simplesmente o objeto de seu trabalho. Ë sabido que o tambor está muito difundido entre os povos primitivos, e para alguns dêles continua sendo até o presente o único instrumento musical. Os instrumentos de corda pertencem originàriamente a essa mesma categoria, já que os primeiros músicos os manejavam percutindo as cordas. Os instrumentos de sopro estão relegados a segundo plano. 0 mais comum é a flauta, com cujos sons se acompanham amiúde certos trabalhos realizados em comum, para imprimirlhes uma cadência rítmica(61). Não posso examinar aqui em detalhe as idéias de Bücher sôbre a origem da poesia. Fá-lo-ei em uma das cartas subseqüentes (62). Direi simplesmente que Bücher está convencido de que sua origem se deve aos enérgicos movimentos rítmicos do corpo, particularmente aquêles que denominamos trabalho, e que isso é certo não só pelo que afeta à forma poética, como também ao conteúdo(63). Se as notáveis conclusões de Bücher são acertadas, temos direito a afirmar que a natureza do homem (a natureza fisiológica de seu sistema nervoso) o fêz capaz de perceber a musicalidade do ritmo e de deleitar-se com êle, enquanto que a técnica de produção determinou os destinos ulteriores de dita capacidade. Os investigadores observaram desde muito a estreita relação existente entre o estado de desenvolvimento das forças produtivas dos chamados povos primitivos e sua arte. Mas como na imensa maioria dos casos se cingiam a pontos de vista idealistas, reconheciam de má vontade a existência dessa relação e explicavam-na erroneamente. Assim, o conhecido historiador de arte, Guilherme Lübke, diz que as obras de arte dos povos primitivos levam a marca da necessidade natural, ao passo que as das nações civilizadas estão penetradas da consciência espiritual. Tal contraposição não tem outra justificação senão um preconceito idealista. Em realidade, a criação artística dos povos civilizados depende da necessidade, e em não menor grau que a dos povos primitivos. A única diferença estriba em que nos povos civilizados desaparece a dependência imediata da arte a respeito da (61) (62) (63)

Obra cit., pp. 91-92. Plekhanov nunca levou à prática êsse propósito. (N. do T.) Obra cit., p. 80

técnica e do modo de produção. Sei, naturalmente, que se trata de uma diferença muito grande, mas também sei que ela se deve única e exclusivamente ao desenvolvimento das forças produtivas da sociedade, origem da divisão do trabalho social entre diferentes classes. Tal diferença não invalida a concepção materialista da história da arte, mas ao contrário, proporciona-nos um nôvo e convincente testemunho a seu favor. Assinalarei, ademais, a "lei da simetria". Sua significação é grande e incontestável. Qual seu fundamento? Certamente, a estrutura do próprio corpo humano, o mesmo que no corpo dos animais: só são assimétricos os corpos dos mutilados e dos monstros, que sempre deveram impressionar desagradàvelmente o homem fisicamente normal. Assim, pois, a capacidade de embevecer-nos com a simetria também nos é proporcionada pela natureza. Mas não sabemos em que medida se teria desenvolvido essa capacidade se ela não se tivesse afirmado e cultivado por fôrça do próprio gênero de vida dos homens primitivos. Sabemos que êstes eram caçadores por excelência. Tal gênero de vida faz, como já vimos, que em sua ornamentação figurem predominantemente os motivos retirados ao mundo animal. E isto obriga o artista primitivo a ter bem em conta desde muito tenra idade a lei da simetria (64). Que o senso da simetria é educado precisamente por êsses modelos, demonstra-o a circunstância de que, em seus atavios, os selvagens (e não apenas) se preocupam mais com a simetria horizontal do que com a vertical(65). É bastante atentar para a figura do primeiro homem ou animal que se nos depare (sempre que se não trate, naturalmente, de um ser disforme), e verse-á que o que o distingue é justamente a simetria do primeiro (64) Falo em tenra idade, porque os jogos infantis dos povos primitifs sáo ao mesmo tempo uma escola em que se educam seus dotes artísticos. Segundo narra o missionário Cnristol (Au Sud de Г Afrique, p. 95 e ss.), as crianças da tribo dos bassutos fazem elas mesmas, com argila, touros, cavalos e outros animais de brinquedo. Naturalmente, tais esculturas infantis deixam muito a desejar, mas, apesar de tudo, as crianças civilizadas não poderiam comparar-se nesse sentido com os pequenos selvagens africanos. Na sociedade primitiva, os jogos infantis estão intimamente ligados às ocupações produtivas dos maiores. Esta circunstância projeta luz sôbre o problema das relações entre os "jogos" e a vida social, como o demonstrarei em uma das cartas seguintes (Carta terceira desta edição (N. do T.). (65) Cf. os desenhos dos escudos australianos no livro de Grosse, Anfänge der Kunst, p. 145.

tipo, e não a do segundo. Além disso, é mister ter em conta que as armas e os utensílios, apenas por seu tipo e finalidade, deviam possuir amiúde uma forma simétrica. Finalmente, se de acordo com a muito justa observação de Grosse, o selvagem australiano que enfeita seu escudo reconhece a importância da simetria tanto como a reconheciam os altamente civilizados construtores do Parthenon, resulta evidente que o senso da simetria por si só não explica absolutamente nada na história das artes, e que nesse caso devemos dizer o mesmo que nos demais: a natureza proporciona ao homem a capacidade, ao passo que o exercício e a aplicação de dita capacidade são determinados pelo desenvolvimento de sua cultura. Intencionalmente, volto a empregar aqui um termo impreciso: cultura. Ao lê-lo, exclamará você, afogueado: "Mas quem negou tal cousa, e quando? Apenas afirmamos que o desenvolvimento da cultura não está determinado tão somente pelo desenvolvimento das forças produtivas nem, tampouco, só pela economia!" Ah! Conheço bem tais objeções e confesso que jamais pude compreender como pessoas inteligentes não suspeitam do tremendo êrro lógico que constitui sua base. Com efeito, pretende você que o desenvolvimento da cultura esteja determinado também por outros fatores? E eu pergunto então: figura a arte entre êles? E você responder-me-á, naturalmente, que sim. Nesse caso, teríamos a seguinte situação: o desenvolvimento da cultura humana é determinado, entre outros fatores, pelo desenvolvimento da arte, e o desenvolvimento da arte é determinado pelo desenvolvimento da cultura humana. E o mesmo terá você que dizer a respeito dos demais "fatores": a economia, o direito civil, as instituições políticas, a moral,

etc. Que teremos então? Teremos o seguinte: o desenvolvimento da cultura humana está determinado pela ação de todos os fatores mencionados, e o desenvolvimento de todo êstes fatores está determinado pelo desenvolvimento da cultura humana. Ë o velho êrro lógico, em que tantas vêzes incidiram nossos avós: •— Quem sustém a terra? — As baleias. — E às baleias? — A água. — E à água? — A terra. E à terra? — As baleias. E assim sucessivamente, na mesma ordem de peregrinação. Convirá você em que ao investigar problemas sérios acerca do desenvolvimento social, pode-se e deve-se tratar de argumentar com mais seriedade.

Estou firmemente convencido de que a crítica (mais exatamente: a teoria científica da estética) só poderá avançar daqui por diante se se apoiar na interpretação materialista da história. Creio, ainda, que também no passado a crítica foi adquirindo em seu desenvolvimento uma base tanto mais firme quanto mais se aproximaram seus representantes, da concepção histórica por mim defendida. Como exemplo, indicarei a evolução da crítica em França. Essa evolução acha-se estreitamente vinculada ao desenvolvimento das idéias históricas gerais. Como já frisei, os homens da ilustração do século XVIII focalizavam a história de um ponto de vista idealista. Para êles, a acumulação e difusão dos conhecimentos era a principal e mais profunda das causas do movimento histórico da humanidade. Mas se as realizações da ciência e, em geral, a evolução do pensamento humano constituem realmente a causa mais importante e mais profunda do movimento histórico, logicamente cabe perguntar: que é que determina a evolução do pensamento? De acordo com as idéias do século XVIII só cabia uma resposta: a natureza do homem, as leis imanentes do desenvolvimento de seu pensamento. Mas se a natureza do homem é a que determina todo o desenvolvivimento de seu pensamento, é evidente que ela mesma determina também o desenvolvimento da literatura e da arte. Por conseguinte, a natureza do homem — e só ela — pode e deve dar-nos a chave que explica o desenvolvimento da literatura e da arte do mundo civilizado. As propriedades da natureza humana fazem com que o homem passe por diversas idades: a infância, a adolescência, a maturidade, etc. A literatura e a arte também passam em seu desenvolvimento por essas idades. "Que povo não foi, primeiro poeta e depois pensador?" — pergunta Grimm em sua Correspondance Littéraire — querendo dizer com isso que o florescimento da poesia corresponde à infância e à adolescência dos povos, ao passo que os êxitos da filosofia são próprios da idade madura. Esta concepção do século XVIII foi herdada pelo século XIX. Até a encontramos no célebre livro de Madame de Staël — De la Littérature dans ses Rapports avec les Institutions Sociales — que ao mesmo tempo contém elementos consideráveis de uma concepção totalmente diferente. "Ao examinar as três épocas diferentes da literatura grega — diz Madame de Staël — observamos claramente nelas o curso natural da inteligência humana. Homero caracteriza a Cartas Sem Enderêço 117

primeira época; no século de Péricles percebemos os rápidos progressos da arte dramática, da eloqüência e da moral e os primeiros passos da filosofia; em tempos de Alexandre, o estudo mais profundo das ciências filosóficas passa a ser a ocupação principal daqueles que se destacam no campo da literatura. Precisa-se, sem dúvida, de certo grau de desenvolvimento do espírito humano para chegar à altura da poesia; mas esta parte da literatura deve perder, não obstante, alguns de seus traços brilhantes em uma época em que os progressos da civilização e da filosofia retificam todos os erros da imaginação"(66). Isto quer dizer que se um povo saiu da fase da juventude, a poesia deve, inevitavelmente, chegar a certo grau de decadência. Madame da Staël sabia que os povos modernos não deram, a despeito de todos os êxitos de seu raciocínio, uma só obra poética que possa considerar-se superior à Ilíada ou à Odisséia. Esta circunstância ameaçava a firmeza de sua segurança no constante e invariável aperfeiçoamento da humanidade, pelo que não quis abandonar a teoria das diferentes idades, que havia herdado do século XVIII e que lhe permita superar facilmente tal dificuldade. Vemos, com efeito, que segundo essa tearia, a decadência da poesia é um sintoma de maturidade intelectual dos povos civilizado do mundo moderno. Mas quando Madame de Staël, deixando de lado essas comparações, aborda a história da literatura dos povos modernos, sabe fazê-lo focalizando-a de um ponto de vista inteiramente diferente. A êste respeito, oferecem particular interêsse os capítulos de seu livro que se referem à literatura francesa. "A jovialidade francesa e o bom gosto francês eram proverbiais em todos os países europeus — observa em um de ditos capítulos; êsse gosto e essa jovialidade eram geralmente atribuídos ao caráter nacional; mas, que é o caráter de um povo senão o resultado das instituições e as circunstâncias que influem em seu bem-estar, em seus interêsses e em seus hábitos? Durante o último decênio, até nos momentos de maior calma revolucionária, os contrastes mais picarescos não deram origem a um só epigrama, a uma só facécia engenhosa. Muitas das pessoas que exerciam grande ascendência sobre os destinos da França careciam de graça na expressão e de brilho em sua inteligência. Ë bem possível, inclusive, que parte dessa (66) De la Littérature, etc., Paris, an VIII, p. 8. IIS George Plekhanov

ascendência se devesse a seu caráter sombrio e taciturno e a sua fria crueldade"(67). Aqui, não nos interessa saber a quem se alude nas linhas precedentes nem em que medida corresponde essa alusão à realidade. Ùnicamente, devemos observar que, na opinião de Madame de Staël, o caráter nacional é um produto das condições históricas. Mas o que é o caráter nacional senão a natureza do homem, tal como se manifesta nas qualidades espirituais de uma determinada nação? E se a natureza de uma nação é o produto de um desenvolvimento histórico, torna-se evidente que ela não pôde ser a causa original dêsse desenvolvimento. Disso se deduz que a literatura — reflexo da natureza espiritual nacional — é um produto das mesmas condições históricas que criaram dita natureza. Por conseguinte, não é a natureza do homem, não é o caráter de um povo, mas sua história e seu regime social os que nos explicam sua literatura. Êste é justamente o ponto de vista do qual Madame de Staël vê a literatura francesa. 0 capítulo dedicado por ela à literatura francesa do século XVII constitui um intento sumamente interessante de explicar o caráter preponderante dessa literatura pelas relações sociais e políticas existentes então na França e pela psicologia da nobreza francesa, considerada em sua atitude ante o poder real. Encontramos aqui muitas observações extraordinàriamente sutis acêrca da psicologia da classe dominante naquela época e algumas considerações muito acertadas a respeito do futuro da literatura francesa. "Com nova ordem política na França, qualquer que esta seja — diz Madame de Staël — já não veremos algo semelhante (à literatura do século XVIII), com o que ficará claramente demonstrado que o chamado engenho francês não era senão um produto direto e necessário das instituições e costumes monárquicos, tal como existiram em França durante vários séculos"(68). Êste nôvo conceito, segundo o qual a literatura é um produto do regime social, chegou a dominar pouco a pouco na crítica européia do século XIX. Na França, Guizot repete-o em seus artigos literários(69). Expõe-no também Saint-Beuve, conquanto o receba sob certas (67) De la Littérature, II, pp. 1-2. (68) De la Littérature, II p. 15. ( 69 ) As idéias literárias de Guizot projetam luz tão brilhante sôbre o desenvolvimento das idéias históricas na França, que vale a

reservas. Finalmente, encontra sua mais cabal e brilhante expressão nas obras de Taine. Taine estava firmemente convencido de que "qualquer mudança na situação dos homens modifica sua psicologia". Mas a literatura de qualquer sociedade e sua arte se explicam precisamente por sua psicologia, porque os "produtos do espírito humano, do mesmo modo que os produtos da natureza viva, se explicam tão só pelo meio que os envolve". Por consepena nos determos nelas, mesmo que seja de passagem. Em seu livro Vie des Poètes Français du Siècle de Louis XIV (Paris, 1813), Guizot diz que a literatura grega reflete em sua história o curso natural do desenvolvimento da inteligência humana, ao passo que nos povos modernos o problema se apresenta muito mais complicado: nelas deve-se levar em conta "um exame de causas secundárias". Quando passa a considerar a história da literatura na França e começa a estudar essas causas "secundárias", conclui que tôdas elas têm sua origem nas relações sociais de França, sob cuja influência se foram formando os gostos e os costumes de suas diferentes classes e camadas sociais. Em Essai sur Shakespeare, Guizot considera a tragédia francesa como um reflexo da psicologia de classe. Em sua opinião, os destinos do drama aparecem em geral estreitamente ligados ao desenvolvimento das relações sociais. Mas Guizot não abandona a idéia de que a literatura grega é um produto do desenvolvimento "natural" da inteligência humana, sequer na época em que se edita seu Essai sur Shakespeare. Ao contrário, esta idéia encontra seu pendant em suas próprias concepções histórico-naturais. Em Essais sur l'Histoire de France, publicado em 1821, Guizot expõe a idéia de que o regime político de um país se determina por sua "vida civü", e esta — pelo menos nos povos do mundo moderno — se acha ligada à agricultura, oomo a conseqüência à causa. Êsse "pelo menos" é sumamente significativo, pois mostra que a vida civil dos povos antigos, à diferença da vida civü dos povos do mundo moderno, é para Guizot um produto "do desenvolvimento natural da inteligência humana", e não o resultado da história da agricultura e, em geral, das relações econômicas. Temos aqui uma analogia total com a idéia do desenvolvimento excepcional da literatura grega. Se agregarmos a isto que Guizot, na época em que foram editados seus Essais sur l'Histoire cie France, expressava com grande calor e decisão em suas notas periodísticas a idéia de que a França "foi criada pela luta de classes", não nos restará a menor dúvida de que a luta de classes no seio da sociedade contemporânea chamou antes a atenção dos historiadores contemporâneos do que essa mesma luta no seio dos Estados da antigüidade. Oferece interesse o fato de que os historiadores da antigüidade, como Tucídides e Políbio, consideravam a luta de classes na sociedade de sua época como algo completamente natural e lógico, pouco mais ou menos como os camponeses de nossas comunidades consideram a luta entre os membros da comunidade que têm muitas terras e os que têtm poucas.

guinte, para compreender a história da arte e da literatura de tal ou qual pais é preciso estudar a história das mudanças operadas na situação de seus habitantes. Não há dúvida de que isso é uma verdade. E basta 1er Philosophie de l'Art, Histoire de la Littérature Anglaise ou Voyage en Italie para encontrar em grande número as mais brilhantes e geniais ilustrações de tal verdade. Mas Taine, como Madame de Staël e outros predecessores seus, mantinha, apesar de tudo, uma concepção idealista da história, o que o impediu de extrair de uma verdade indubitável, brilhante e genialmente ilustrada por êle, todo o proveito que poderia tirar dela um historiador da literatura e da arte. E como o idealista vê nos êxitos do intelecto humano a última razão do desenvolvimento histórico, resulta, segundo Taine, que a psicologia dos homens é determinada por sua situação, e que sua situação se determina por sua psicologia. Daí, uma série de contradições e escolhos, dos quais, Taine, como outros filósofos do século XVII, se livraria, apelando para a natureza humana, que nêle aparece como raça. O seguinte exemplo mostranos muito bem quais as portas que essa chave abria. É sabido que o Renascimento começou na Itália antes que em outra parte, e que, em geral, a Itália acabou, antes que os demais países, com a existência medieval. Qual foi a causa dessa mudança na situação dos italianos? As propriedades da raça italiana, responde Taine(70). Julgue você mesmo até que ponto é satisfatória tal explicação; enquanto isso, passarei a outro exemplo. Taine vê uma paisagem de Poussin no Palácio Sciara, de Roma, e observa através dêste motivo que os italianos, devido a certas qualidades particulares de sua raça, entendem a paisagem de um modo especial; que para êles esta representa também' a cidade, mas em ponto maior, ao passo que a raça alemã ama a natureza pela natureza mesma(7l). Mas em outro lugar, Taine, referindo-se às paisagens do mesmo Poussin, diz: "Para saber embevecer-se com elas é preciso amar a tragédia (clássica), o (70) "Comme en Italie la race est précoce et que la croûte germanique ne l'a recouverte qu'a demi, l'âge moderne s'y développe plus tôt qu'ailleurs", etc. Voyage en Italie, Paris, 1872, t. I, p. 273. ("Como os italianos são um povo precoce e a crosta da influência alemã não o recobriu senão a meias, a idade moderna desenvolve-se na Itália antes que nos demais países . . . " ) (71) Obra cit., t. I, p. 330.

verso clássico, a pompa da etiqueta e a grandeza senhorial ou monárquica. Tais sentimentos se encontram a infinita distância dos sentimentos de nossos contemporâneos"(72). Por que, nao obstante, os sentimentos de nossos contemporâneos diferem tanto dos sentimentos dos homens aos quais agradava a pompa da etiqueta, a tragédia clássica e o verso alexandrino? Acaso por que os franceses da época do "Rei Sol" — tomemos êste exemplo — eram homens de raça diferente da dos franceses do século XIX? Absurda perguntai O próprio Taine repetiu-nos com insistência seu convencimento de que a psicologia dos homens muda ao mudar sua situação. Não o esquecemos e, seguindo-lhe o exemplo, dissemos: a situação dos homens de nossa época difere extraordinariamente da situação dos homens do século XVII, e por isso seus sentimentos são tão diferentes dos sentimentos dos contemporâneos de Boileau e Racine. Resta-nos saber a causa dessa mudança de situação, isto é, por que o ancien regime cedeu lugar à atual ordem burguesa e por que a Bolsa dirige hoje êsse mesmo país, do qual Luís XIV pôde dizer quase sem exagêro: "o Estado sou eu". A esta pergunta dá-nos resposta plenamente satisfatória a história econômica de dita nação. Sabe você que os escritores de diferentes opiniões objetaram os pontos de vista de Taine. Ignoro o que você pensa a respeito, mas direi que nenhum dos críticos de Taine conseguiu fazer vacilar sequer a tese que condensa quase tudo quanto há de verdadeiro em sua teoria estética, e segundo a qual a arte é um produto da psicologia dos homens, ao passo que esta muda ao mudar sua situação. E nenhum dêles conseguiu, tampouco, descobrir a contradição essencial que impede o ulterior e fecundo desenvolvimento das idéias de Taine; nenhum dêles suspeitou que, segundo sua concepção da história, a psicologia dos homens, determinada pela situação dêstes, termina por ser ela mesma a causa última de tal situação. Por que nenhum dêles percebeu tal cousa? Porque essa contradição estava na própria medula de suas próprias concepções históricas. Mas que contradição é essa? De que elementos consta? Consta de dois elementos, dos quais um se chama concepção idealista e o outro, concepção materialista da história. Quando Taine dizia que a psicologia dos homens muda ao mudar sua situação, era materialista; mas quando o mesmo Taine dizia que a situação dos homens depende de sua psicologia, repetia as concepções idea(72) Ibid., t. p. 331. 122 George Plekhanov

listas do século XVIII. Ocorre acrescentar que não foi esta última idéia a que inspirou suas mais felizes considerações sôbre a história da litratura e da arte. Que se deduz de tudo isto? Deduz-se o seguinte: dessa contradição, que impedia o fecundo desenvolvimento das engenhosas e profundas idéias dos críticos de arte franceses, só poderia livrar-se uma pessoa que dissesse: a arte de qualquer povo está determinada por sua psicologia; sua psicologia é resultado de sua situação, e esta depende em última instância do estado de suas forças produtivas e de suas relações de produção. Mas a pessoa que tivesse dito tal cousa teria exposto com isso a concepção materialista da história. .. Observo, entretanto, que já é hora de terminar. Até a carta seguinte! Perdoe-me se lhe aborreceu a "estreiteza" de minhas concepções. Na próxima, tratarei da arte entre os povos primitivos e confio em demonstrar que minhas idéias não são tão estreitas como lhe pareceram e como, provavelmente, lhe parecem ainda.

SEGUNDA

CARTA

A Arte dos Povos Primitivos Meu caro senhor: A arte de qualquer povo, em minha opinião, sempre mantém estreitíssima relação causai com sua economia. For isso, ao passar ao estudo da arte dos povos primitivos, devo assinalar antes os mais importantes traços distintivos da economia primitiva. /' Segundo uma expressão muito gráfica de certo escritor, ó próprio dos materialistas "econômicos" começar pela "tecla econômica" (1). Ademais, no presente caso existe uma circunstância particular e de suma importância que me sugere a necessidade de adotar essa "tecla" como ponto de partida de minha investigação. Há muito pouco tempo, entre os sociólogos e os economistas familiarizados com a etnologia existe o firme convencimento de que a economia da sociedade primitiva era tuna economia comunista por excelência. " 0 historiador etnógrafo — dizia em 1879 M. Kovalieski — ao empreender hoje em dia o estudo da cultura primitiva, sabe que o objeto de sua investigação não são os indivíduos isolados que, aparentemente, chegam a um acordo para viver juntos sob a direção de autoridades por êles mesmos estabelecidas, nem tampouco as famílias isoladas que existem desde épocas remotíssimas e que pouco a pouco foram crescendo até se converterem em uniões gentílicas, mas os grupos de indivíduos de sexo diferente que vivem em manadas e em cujo seio se produz um processo lento e espontâneo de diferenciação, de ( 1 ) Referência ao publicista russo N. K. Mikhailovski, teórico do populismo liberal.

que resulta o aparecimento de famílias e de uma propriedade individual que, a princípio, é só de bens móveis(2). Em princípio, até os alimentos — esses "importantes e indispensáveis bens fungíveis" — são propriedade comum dos membros do grupo-manada, e a repartição do botim entre as diversas famílias não aparece senão nas tribos que se encontram em um nível de desenvolvimento relativamente mais elevado(3). 0 mesmo opinava, a respeito do regime econômico primitivo, o defunto N. Ziber, cujo célebre livro Ensayos sobre la Cultura Econômica Primitiva era dedicado à comprovação crítica "da hipótese. . . de que os aspectos comunais da economia são, em suas diferentes fases, formas universais da atividade econômica nas primeiras etapas do desenvolvimento". À base de amplo material elaborado, certamente, de forma que se não pode considerar, rigorosamente, sistemática, Ziber chega à conclusão de que "a cooperação simples do trabalho durante a pesca, a caça, o ataque, a defesa, o cuidado do gado, a derribada de setores boscosos para dedicá-los ao cultivo, a irrigação, o cultivo da terra, a construção de casas e de grandes utensílios, como redes, embarcações, etc., determina logicamente o consumo em comum de tudo o que é produzido e, portanto, a propriedade em comum dos bens imóveis e até dos bens móveis, na medida em que essa propriedade pode ser protegida frente aos atentados dos grupos vizinhos"(4). Poderia mencionar outros muitos investigadores, não menos prestigiosos, mas não é necessário, pois você os conhece. Por isso, não vou multiplicar as citações e assinalei, sem circunlóquios, que atualmente se começa a impugnar a teoria do "comunismo primitivoÂssim, Karl Bücher, citado em minha primeira carta, considera que essa teoria está em desacordo com os fatos. Segundo êle, os povos que realmente podem ser chamados primitivos se encontram muito afastados do comunismo. Sua economia deveria chamar-se mais adequadamente de individualista, ainda que tal denominação tampouco seja exata, já que os traços essenciais de uma "economia" nada têm que ver geralmente com seu modo de vida. (2) cuencias (3) (4)

La Propriedad Comunal de Ia Tierra; causas, curso y consede su descomposición, pp. 26-27. Obra cit., p. 29. Ensayos, pp. 5-6 da l . a edição, Moscou, 1883.

"Por economia — diz em seu ensaio, El Regimen Econômico Primitivo — entendemos sempre a atividade conjunta dos homens, dirigida no sentido de aquisição de bens. A economia pressupõe certa preocupação, não só pelo presente imediato, mas também pelo futuro; pressupõe o aproveitamento cuidadoso do tempo e sua adequada distribuição. Economia significa trabalho, valoraçao das cousas, ordenação de seu consumo, transmissão das aquisições culturais de geração em geração"(5). Mas na vida das tribos mais primitivas só se encontram os elementos mais rudimentares de tais traços. "Se omitirmos da vida dos bosquímanos ou dos vedas o emprego do fogo, do arco e da flecha, toda ela ficará reduzida a uma busca individual de alimentos. Cada bosquímano deve procurar alimento exclusivamente por seus meios. Nu e inerme, vaga com seus companheiros no estreito marco de determinada zona, como um animal selvagem. . . Cada um deles, homem ou mulher, come cru o que consegue alcançar com as mãos ou arrancar da terra com as unhas: animais inferiores, raízes ou frutos. Reunem-se em grupos insignificantes ou grandes manadas, separam-se, segundo abundem no lugar os alimentos vegetais ou animais, mas tais grupos não se convertem em uma verdadeira sociedade. Êles não aliviam a existência de cada indivíduo. Talvez êste quadro não agrade muito ao moderno portador da cultura, mas o material recolhido de um modo empírico obriga-nos realmente a apresentá-lo tal qual é. Nêle não há um só traço inventado; da vida dos caçadores primitivos omitimos tão só o que é universalmente aceito como um sinal de cultura: o emprego das armas de fogo" ( 6 ). Ê preciso reconhecer que dito quadro não se parece em nada à idéia que havíamos formado da economia comunista primitiva, sob a influência dos trabalhos de M. Kovalieski e N. Ziber. Não sei qual dos quadros é mais de seu "agrado". Mas isto pouco importa. Não se trata do que seja grato a você, a mim ou a qualquer outra pessoa, mas de saber se o quadro pintado por Bücher é exato; se está de acordo com a realidade; se corresponde ao material empírico recolhido pela ciência. Essas questões não só têm importância para a história do desenvolvimento (5) Cuatro Ensayos sobre la Economia Nacional, artigo publicado no livro Orígenes de la Economia Nacional, São Petersburgo, 1898, p. 91. (6) Obra cit., pp. 91-92. 126 George Plekhanov

econômico, como são de enorme significação para quem estuda tal ou qual aspecto da cultura primitiva. Com efeito, não por acaso se diz que a arte é um reflexo da vida. Se o "selvagem" é tão individualista como o apresenta Bücher, sua arte deverá reproduzir necessàriamente seus típicos traços de individualismo. Ademais, a arte é, essencialmente, um reflexo da vida social. E se você olhar o selvagem com os olhos de Bücher, agirá conseqüentemente ao observar que se não pode falar de arte quando predomina a busca individual de alimentos, nem quando os homens não realizam quase qualquer atividade conjunta. A tudo isto é preciso acrescentar o seguinte: Bücher pertence sem dúvida à categoria dos homens de ciência que pensam, cujo número, por desgraça, não é tão elevado quão seria de desejar, pelo que seus conceitos merecem atenção, mesmo nos casos em que se engana. Examinemos mais de perto o quadro traçado por êle, acerca da vida selvagem. Bücher descreve-a baseando-se em dados que se referem à vida das chamadas tribos caçadoras primitivas, das quais elimina unicamente os sinais de cultura: o uso das armas de fogo. Com êles, mostra-nos o mesmo caminho que precisamos seguir ao analisar seu quadro. 0 que primeiro devemos fazer é comprovar o material empírico utilizado por Bücher, isto é, ver como vivem realmente as tribos caçadoras primitivas e escolher depois as hipóteses mais verossímeis acerca de como viveram naqueles remotos tempos em que não conheciam o uso do fogo ou das armas. Primeiro, os fatos; depois, as hipóteses. Bücher refere-se aos bosquímanos e aos vedas do Ceilão. Pode dizer-se que a vida dessas tribos, que indubitavelmente pertencem à categoria das tribos caçadoras primitivas, esteja desprovida de qualquer vestígio de economia e que nelas o indivíduo esteja totalmente abandonado a suas próprias forças? Eu afirmo que se não pode dizer tal coisa. Comecemos pelos bosquímanos. Sabe-se que êles se reúnem amiúde para caçar em grupos de duzentos a trezentos homens. Nessas condições, a caça, que constitui, inegavelmente, um trato entre homens com fins produtivos, "pressupõe" ao mesmo tempo um trabalho e uma distribuição racional do tempo, já que em tais casos os bosquímanos constroem paliçadas que têm, às vêzes, várias milhas de comprimento; cavam fundas fossas, enterrando

troncos terminados em ponta, etc(7). Ë evidente que tudo isso não se faz unicamente para satisfazer às necessidades do momento, mas também com vistas ao futuro. "Alguns negam todo o sentido econômico — diz Teófilo Hahn — e quando se fala deles nos livros, uns autores copiam os erros de outros. Naturalmente, os bosquímanos não entendem de economia do Estado, mas isso não impede que se preocupem com o a manhã " ( 8 ) . E assim é, com efeito: com a carne dos animais mortos por êles, fazem suas reservas, que escondem em covas ou deixam nos desfiladeiros bem protegidos, ao cuidado dos velhos que já não podem tomar parte direta na caça(9). Também fazem reservas de bulbos de algumas plantas, que, recolhidos em grandes quantidades, são guardados pelos bosquímanos em ninhos de pássaros (10). Sabe-se também que os bosquímanos fazem reservas de gafanhotos e que para caçar êste inseto cavam buracos compridos e profundos(ll). Tudo isso demonstra a que ponto se equivoca Bücher ao afirmar, com Lippert, que nas tribos caçadoras primitivas ninguém pensa em acumular reservas(12). É certo que ao terminar a caça realizada em comum, os grandes grupos de caçadores bosquímanos se dividem em pequenos grupos. Mas, em primeiro lugar, uma coisa é ser membro de um grupo pequeno e outra ficar abandonado a suas próprias forças; e em segundo lugar — inclusive quando se separam — os bosquímanos não rompem suas relações recíprocas. Segundo conta Lichtenstein, os bexuanas lhe haviam dito que os bosquímanos se comunicam constantemente por meio de sinais luminosos e que graças a isso sabem, muito melhor que as demais tribos vizinhas situadas em um nível cultural muito mais elevado, tudo o que ocorre em torno, a grandes distâncias (13). Não creio que semelhante costume teria po(7) Cf. Die Buschmänner, Ein Beitrag zur Südafrikanischen Völkerkunde, von Theophil Hahn, Globus, 1870, n.° 7, p. 105. (8) Obra cit., n.° 8, p. 120. (9) Ibid., pp. 120-130. (10) Ibid., p. 130. (11) H. Lichtenstein, Reise im Südlichen Afrika in den Jahren 1803, 1804, 1805 und 180в, Zweiter Teil, p. 74. (12) Cuatro Ensayos, p. 75, nota. (13) Obra cit., t. II, p. 472. Sabe-se que as índios da Terrado-Fogo também se comunicam por meio de sinais luminosos. Ver Darwin, Journal of Researches etc., London, 1839, p. 238.

dido surgir entre os bosquímanos se os indivíduos estivessem abandonados a suas próprias forças e se entre êles predominasse a "busca individual de alimentos Passo agora aos vedas. Êsses caçadores (refiro-me aos que são inteiramente selvagens, denominados pelos inglêses de rock veddahs) vivem como os bosquímanos, formando pequenas associações consagüíneas, e, mediante esforços em comum, efetuam a "procura de alimentos". Certamente, os investigadores alemães, Paulo e Fritz Sarrasin, autores do mais moderno — e sob muitos aspectos mais completo — trabalho sobre os vedas (14), apresentam-nos como respeitáveis individualistas. Quando as relações sociais primitivas dos vedas — dizem os Sarrasin — ainda não haviam sido destruídas pela influência dos povos vizinhos de mais alto nível de desenvolvimento cultural, todo seu território de caça estava dividido entre as diferentes famílias. Mas esta é uma opinião totalmente falsa. Os testemunhos em que os Sarrasin fundamentam sua hipótese acêrca do regime social primitivo dos vedas não mostram de modo algum o que êsses investigadores vêem nêles. Assim, citam o testemunho de um tal Van Huns, governador do Ceilão, no século XVII. Mas o que conta Van Huns mostra ùnicamente que o território povoado pelos vedas estava dividido em setores, mas de modo algum que êsses setores pertencessem a famílias diferentes. Knox, outro escritor do século XVII, diz que os vedas tinham nos bosques "divisas que os separavam" e que "os grupos não deviam transpor êsses limites durante a caça ou a recoleção de frutos". Aqui se trata de grupos e não de famílias diferentes, pelo que devemos supor que Knox se referia aos limites de setores pertencentes a associações consangüíneas mais ou menos grandes, mas não a famílias diversas. Mais adiante, os Sarrasin se remontam ao inglês Tennent. Isto posto, que diz Tennent? Tennent diz que o território dos vedas está dividido entre clãs (clans of families associated by relationship ){15). Não são a mesma coisa clã e família. Naturalmente, os clãs dos vedas não são grandes. Tennent chama-os pequenos clãs (small clans). E compreende-se que assim seja. As associações (14) Sarrasin, Die Weddahs von Ceylon und die sie umgebenden Völkerschaften, Wiesbaden, 1892-93. (15) (Clãs de família unidas por vínculos familiares): Ceylon, an account of the Island, etc., London, 1880, vol. LI, p. 440.

consangüíneas não podem ser grandes, dado o baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas dos vedas. Mas não se trata disso. O que nos interessa neste caso não são as proporções dos clãs vedas, mas o papel que desempenham na vida dos diferentes indivíduos dessa tribo. Pode dizer-se que êsse papel é nulo? Que o clã não favorece a existência individual? De modo algum! Ë sabido que as associações consangüíneas dos vedas são dirigidas por seus chefes. Sabe-se também que nas longas noites, as crianças e os adolescentes dormem ao lado do chefe, ao passo que os membros adultos do clã se põem à volta dêle, formando assim uma cadeia viva, disposta a defendê-los dos ataques inimigos(16). Êsse costume favorece, sem dúvida, a existência do indivíduo como de tôda a tribo. Não a favorecem menos outras manifestações solidárias. Assim, por exemplo, as viúvas continuam recebendo sua parte de tudo quanto cai em mãos do clã(17). Se os vedas não tivessem qualquer união social, e se entre êles dominasse a "busca individual de alimentos", às mulheres que tivessem perdido o apoio de seus maridos estava reservada uma sorte bem diversa. Para terminar o assunto dos vedas, acrescentarei que êstes, como os bosquímanos, fazem reservas de carne e de outros produtos da caça, tanto para consumo próprio como para a troca com as tribos vizinhas(18). O Capitão Ribeiro chegou a afirmar que os vedas não comem em absoluto carne fresca, mas cortam-na em pedaços e guardam-na nos ocos das árvores, não tocando antes de transcorrer um ano(19). Certamente, trata-se de um exagêro, mas em todo o caso volto a rogar-lhe se detenha no exame dos vedas — que como os bosquímanos — refutam categoricamente com seu exemplo a opinião sustentada por Bücher de que os selvagens não fazem reservas. E a acumulação de reservas é, segundo Bücher, um sintoma dos mais indubitáveis da existência de uma economia. (16) Tennent, obra cit., t. И, p. 441. (17) Obra cit., t. II, p. 445. Entre os vedas impera a monogamia. (18) Ibid., t. II p. 440. ( 19 ) Histoire de l'île de Ceylon, écrite par le Capitaine }. Ribeiro et présentée au roi de Portugal en 1685, trad, par l'Abbé Legrand, Amsterdam, MDCCXIX, p. 179.

Os habitantes das ilhas Andamão — os mincopos(20) — levam certa vantagem aos vedas no que respeita ao desenvolvimento cultural, mas também vivem formando clãs, e amiúde empreendem caçadas coletivas. Tudo que é capturado pelos jovens solteiros é propriedade comum, que se reparte de acordo com as indicações do chefe do clã. As pessoas que não participam da caça recebem, não obstante, sua parte do botim, pois se supõe que a realização de algum trabalho em benefício de tôda a comunidade os impediu de tomar parte na caçada. No regresso à tribo, os caçadores sentam-se em tôrno do fogo, iniciando-se então o festim, as danças e os cantos. Do festim participam também os que costumam ter pouca sorte na caça e inclusive os folgazÕes, que preferem passar o tempo na ociosidade(21). Isto pouco se parece com a "procura individual de alimentos", e pode-se afirmar, portanto, que as associações consangíiíneas dos mincopos não favorecem a existência dos indivíduos? Não! É preciso dizer, pelo contrário, que o material empírico referente à vida dos mincopos não se adapta em obsoluto ao conhecido "quadro" de Bücher. Para caracterizar a vida das tribos caçadoras primitivas, Bücher utiliza a descrição que faz Schadenberg do modo de vida dos negroides das Filipinas. Mas quem 1er atentamente o artigo de Schadenberg(22) convencer-se-á de que, tampouco, os negroides lutam pela existência, individualmente, mas por intermédio das forças mancomunadas da associação consangüínea. Um sacerdote espanhol, cujo testemunho Schadenberg invoca, diz que entre os negroides, "o pai, a mãe e os filhos vão armados, cada qual, de suas próprias flechas, e caçam juntos". Com base nisso, poder-se-ia supor que têm uma vida individual ou que formam pequenas famílias. Tampouco isto é certo. A "família" dos negroides é uma associação consangüínea que abrange de vinte a oitenta indivíduos(23). Os membros de tal (20) Em Nature, de Londres, apareceu certa ocasião uma nota, afirmando que o nome de "mincopos", atribuído aos andamanitas, carece de todo fundamento e não é usado, quer pelos indígenas dessas ilhas, quer por seus vizinhos. (21) C. H. Man, On the Aboriginal Inhabitants of the Andaman Islands, "Journal of the Anthropological Institute of Great-Britain and Irland vol. XII, p. 363. (22) Uber die Negritos der Philippinen, in Zeitschritt für Ethnologie, В. XII. (23) Ver George Windsor Earle, The Native Races of the Indian Archipelago, London, 1853, p. 133.

associação caminham juntos, sob a direção de um chefe, que é quem marca as paradas, ordena as marchas, etc. Durante o dia, os velhos, os enfermos e as crianças permanecem em volta de uma grande fogueira, enquanto os membros adultos e sãos do clã caçam no bosque. À noite, todos se põem a dormir em torno do mesmo fogo (24). Além disso, não é raro que as crianças, assim como as mulheres — ao que se deve prestar grande atenção — vão juntos à caça. Em casos tais, seguem todos juntos, como uma manada de orangotangos que empreende uma incursão de rapina(25). Aqui, volto a não encontrar nada que se pareça à "procura individual de alimentos". No mesmo nível de desenvolvimento encontram-se os pigmeus da África Central, que até recentemente não haviam sido objeto de observações mais ou menos fidedignas. Todo o "material empírico" referente a êles, reunido pelos investigadores contemporâneos refuta categoricamente a teoria da "procura individual de alimentos". Os pigmeus caçam juntos animais selvagens e se dedicam, também juntos, a roubar nos campos dos agricultores vizinhos. "Enquanto os homens constituem a vanguarda, e em caso necessário lutam com os proprietários dos campos saqueados, as mulheres apoderam-se do botim, formam embrulhos ou feixes e os levam"(26). Não se trata, pois, de individualismo, mas de cooperação, e inclusive de divisão de trabalho. Não falarei dos botocudos brasileiros nem dos indígenas da Austrália, pois teria que repetir o que já disse com referência a outros muitos caçadores primitivos(27). Mais provei(24) Earle, obra cit., p. 131. (25) Earle, ibid., p. 134. (26) Caetano Casati, Dix Armés en Equatoria, Paris, 1892, p. 116. (27) Relativamente aos australianos, límitar-me-eí a observar que, do ponto de vista de Bücher, suas relações sociais apenas merecem o qualificativo de associação, ao passo qeu os investigadores libertos de idéias preconcebidas nos dizem outra cousa completamente diferente. Um exemplo: "An Australian tribe is an organised society, governed by strict customary laws, which are administered by the headmen or rulers of the various sections of the community, who exercise their authority after customary laws, which are administered by the headmen or rulers of sociedade organizada, governada por estritas leis consuetudinárias, que são aplicadas pelos chefes ou governantes das diversas seções da comunidade, os quais exercem sua autoridade depois de consulta entre si" etc. )— The Kamilaroi Class System of the Australian Aborigines, by

toso seria lançar um olhar à vida dos povos primitivos que alcançaram um nível mais elevado de desenvolvimento das forças produtivas. Na América há muitos povos assim. Os peles-vermelhas da América do Norte vivem em regime de gens, e a expulsão de um indivíduo da gens é considerado como castigo terrível, que se impõe ùnicamente por força de delitos muito graves (28). Só êste fato mostra claramente quão longe se encontram do individualismo, que segundo Bücher constitui o traço distintivo das tribos primitivas. A gens é para êles o dono da terra, o legislador, o vindicador quando se violam os direitos do indivíduo, e em muitos casos, seu herdeiro. A força, a vitalidade da gens depende inteiramente do número de seus membros, pelo que a morte de qualquer dêles representa dura perda para todos. A gens trata de reparar as perdas, acolhendo em seu seio novos membros. O perfilhamento está muito difundido entre os peles-vermelhas da América do Norte(29), o que demonstra a grande importância que tem para êles a luta pela vida, mediante o esforço conjunto de todo o grupo, ao passo que Bücher, confundido por sua idéia preconcebida, vê nesse fato apenas uma prova do débil desenvolvimento dos sentimentos paternais dos povos primitivos(30). A ampla difusão que têm a pesca e a caça em comum mostra também a grande importância que reveste para êsses R. H. Mathews, in Proceedings and Transactions of the Queensland Vranch of Royal Geographical Society of Australasia, v. V. Brisbone, 1895. (28) Com respeito à expulsão do gens, ver: Powell, "Wyandot Government in First Annual Report of the Bureau of Ethnology to the Smithsonian Institution, pp. 67-68. (29) Cf. Lafitau, Les Moeurs des Sauvages Américains, t. II, p. 163; cf. também Powell, obra citada, p. 68, Sôbre o perfilhamento entre os esquimós v. Franz Boas, The Central Eskimo, in Sixth Report of the Bureau of Ethnology, p. 580, (30) M. Kovalieski assinala o fraco desenvolvimento do costume do perfilhamento entre os svanetos e diz que isto se explica pela solidez do regime gentilício ("A lei e о costume no Cáucaso", t. II, pp. 4-5). Mas entre os peles-vermelhas da América do Norte e entre os esquimós, a solidez da associação gentílica não impede o forte desenvolvimento do perfilhamento (Ver sôbre os esquimós: John Murdoch, Ethnological Results of the Point Barrom-Expedition in Ninth Annual Report of the Bureau of Ethnology, p. 417.) Disso se deduz que, se os svanetos praticam; alguma vez o perfilhamento, a explicação deve ser buscada em outra causa qualquer, mas de nenhum modo na solidez do gens.

povos a luta pela vida mediante o esforço conjunto (31). Mas, pelo visto, essa forma de caça e de pesca está ainda mais difundida entre os índios da América do Sul. Assinalarei como exemplo os bororós brasileiros, cuja existência, segundo Von den Steinen, se mantinha por meio do constante trato entre os homens da tribo, que freqüentemente empreendiam juntos caçadas de grande duração (32). E cometeria um profundo êrro quem dissesse que a caça em comum só adquiriu extraordinária importância para a existência dos índios americanos quando êstes ultrapassaram a fase inferior da vida de caçadores. Uma das mais importantes conquistas culturais logradas pelo aborígenes do Nôvo Mundo foi, naturalmente, a agricultura, a que com mais zêlo e constância se dedicavam muitas de suas tribos. Mas a agricultura tinha que reduzir necessàriamente a importância que em sua vida representava a caça em geral e, por conseguinte também, a caça realizada através das forças conjugadas de muitos membros da tribo. For isso, as caçadas em comum dos índios devem ser consideradas como um produto natural e muito característico da vida baseada precisamente na caça. Tampouco, a agricultura reduziu o papel da cooperação na vida das tribos primitivas da América. Nada disso! Se bem que aparentemente a caça em comum tivesse perdido sua importância com o surgimento da agricultura, o cultivo dos campos criou um terreno nôvo e sumamente amplo para a cooperação: os índios americanos cultivam (ou pelo menos cultivavam) os campos com o emprego das forças conjugadas das mulheres, às quais estão afetos os trabalhos agrícolas. Em Lafitau(33), encontramos indicações sôbre êsse particular. E a etnologia americana contemporânea não deixa, a respeito, a menor dúvida. (31) Cf. a descrição da caça em comum de bisontes feita por Q. J. Catlin em Letters and Notes on the Manners , Customs and Condition of the North American Indians, London, 1842, t. I. (32) Unter den Naturvölkern Zentral-Brasiliens, Berlim, 1894, p. 481: "Der Lebensunterhalt konnte nur erhalten werden durch die gesschlossene Gemeinsamkeit der Mehrheit der Männer , die vielfach lange Zeit miteinander auf Jagd abwesend sein musste, was für den Einzelnen undurchführbar gewesen wäre". ("A existência só podia manter-se mediante uma coletividade cerrada da maioria dos homens, obrigados, durante as caçadas, a passar juntos a maior parte do tempo, o que teria sido impossível para o indivíduo isolado.' ) (33) Les Moeurs des Sauvages... II, 77. Cf. Heckewelder, His toire des Indiens, etc., p. 238.

Reporto-me ao mencionado trabalho de Powell — The Wyandot Government. "O cultivo da terra tem um caráter social — diz Powell — o que significa que todas as mulheres aptas para o trabalho participam do amanho de cada parcela familial " ( 3 4 ) . Poderia citar numerosos exemplos demonstrativos da grande importância de que se reveste o trabalho social na vida dos povos primitivos de outros continentes, mas a falta de espaço me obriga a apenas referir a pesca em comum entre os neozelandeses. Êstes, utilizando os esforços conjuntos de tôda a associação consangüínea, confeccionavam redes de vários milhares de pés de comprimento, e utilizavam-nas em benefícios de todos os membros da gens. "Êste sistema de ajuda mútua — diz Polack — tinha por base, aparentemente, todo seu regime social primitivo e existiu desde a criação até nossos dias" (35). 0 que foi dito basta, a meu ver, para formular um juízo crítico do quadro que nos traça Bücher da vida dos selvagens. Os fatos mostram de forma bem convincente que entre os selvagens não predominava a procura individual de alimentos, de que nos fala Bücher, mas a luta pela vida, mediante os esforços conjugados de tôda a associação consangüínea (mais ou menos ampla), luta de que nos falam os autores que se cingem ao ponto de vista de N. Ziber ou de M. Kovalieski. Essa conclusão ser-nos-á de suma utilidade na investigação sôbre a arte. Convém que a recordemos. Agora, sigamos adiante. 0 gênero de vida dos homens determina de modo natural e inevitável todo seu caráter. Se entre os selvagens predominasse a "busca individual de alimentos", logicamente teriam que ser uns inveterados individualistas e egoístas, uma espécie de encarnação do conhecido ideal de Max Stirner(36). E assim é como os considera Bücher. "A manutenção da existência, que é o que guia os animais — diz Bücher — é também a tendência instintiva que predomina nos selvagens. No aspecto espacial, a ação dêsse instinto limita-se aos (34) É de notar que essas parcelas não pertencem em propriedade a famílias isoladas, mas são concedidas em usufruto, pelo conselho do gens, o qual, diga-se de passagem, está integrado por mulheres (Powell, ibid, p. 65). (35) Manners and Customs of the New-Zealanders, vol. II, p. 107. (36) Max S timer (pseudônimo de Gaspar Schmidt — 1806-56): escritor alemão, anarquista, filósofo idealista. No livro, O Único e a Propriedade, defende um individualismo extremado e rende culto à personalidade forte.

indivíduos isolados, e no aspecto temporal, ao momento em que sente sua necessidade. Em outras palavras: o selvagem não pensa senão em si mesmo e no presente"(37 ) . Tampouco, nesse caso, perguntarei se aprecia êste quadro; unicamente perguntarei se os latos não estão em contradição com ele. Eu creio que estão em aberta contradição. Em primeiro lugar, já sabemos que a acumulação de reservas é conhecida ate pelas tribos caçadoras mais primitivas, o que demonstra que sequer elas estavam completamente livres da preocupação pelo futuro. Mas, se não fizessem reservas, disso se nao poderia inferir que pensam apenas no presente. Por que o selvagem guarda suas armas, mesmo que a caça tenha sido abundante? Porque pensa na caçada futura e em futuros encontros com os inimigos. E os sacos que as mulheres das tribos selvagens levam às costas durante suas constantes peregrinações? Bastaria deitar um olhar muito leve ao conteúdo desses sacos para ter-se um conceito bastante elevado da previsão econômica dos selvagens. 0 que não encontrará você néles! Pedras chatas para esmagar raízes comestíveis, pedaços de quartzo para cortar; pontas de lança, machados de pedra recompostos, cordões feitos com tendões de canguru, lã de sarigüéia, argila de côres variegadas, cascas de árvore, bocados de gordura e frutos e raízes recolhidos durante a caminhada(38). Tôda uma economia! Se o selvagem não pensasse no amanhã, para que iria obrigar a mulher a carregar tôdas essas coisas? iVaturalmente, do ponto de vista de um europeu, a economia da mulher australiana parece muito miserável. Mas, tanto na história, em geral, como na história da economia, em particular, tudo é relativo. Pois bem, o que aqui interessa, sobremodo, é o aspecto psicológico da questão. Dado que a procura individual de alimentos não predomina mesmo na sociedade primitiva, nada tem de estranho que o selvagem não seja tão individualista ou tão egoísta como o pinta Bücher. Assim o evidenciam claramente os testemunhos inequívocos dos observadores mais dignos de fé. Eis exemplos eloqüentes: "Quanto aos alimentos — diz Ehrenreich, referindo-se aos botocudos — predomina o comunismo mais rigoroso. 0 botim reparte-se entre todos os membros da horda, assim como os (37) Cuatro Ensayos, p. 79. (38) Cr. Ratzel, Völkerkunde, 136 George Plekhanov

1 Band, pp. 320-321.

presentes recebidos, ainda no caso em que a cada um não caiba mais que uma parte insignificante"(39). 0 mesmo observamos nos esquimós, entre os quais os alimentos e demais bens móveis constituem, segundo Klutschak, uma espécie de propriedade comum. "Enquanto no acampamento existir um pedaço de carne, esta pertence a todos, e ao reparti-la, leva-se em conta o conjunto de indivíduos, e em particular os enfermos e as viúvas sem filhos "(40). Este testemunho de Klutschak concorda plenamente com as observações feitas com anterioridade por Cranz, outro bom conhecedor dos esquimós, o qual nos diz que a vida destes se aproxima muito do comunismo. O caçador que volta a casa com um apreciável botim, reparte-o obrigatoriamente com os demais, e em primeiro lugar com as viúvas indigentes(41). Em geral, todos os esquimós conhecem muito bem sua genealogia, conhecimento que é de grande importância para os necessitados, "pois ninguém se envergonha de seus parentes pobres, e basta que alguém demonstre seu parentesco com algum dos ricaços, ainda que seja longínquo, para que lhe não falte comida"(42). Os etnólogos americanos contemporâneos, como Boas (43), assinalam êsse traço de caráter dos esquimós. Os australianos, tidos antes pelos investigadores como grandes individualistas — quando são bem conhecidos, surgem sob luz muito diversa. Letourneau diz, referindo-se a êles, que dentro da associação consangüínea tudo é de todos(44). Esta afirmação só pode ser aceita, naturalmente, cum grano salis(45), pois nos australianos existem já certos elementos indubitáveis de propriedade privada. Mas, daí ao individualismo relatado por Bücher dista grande distância. O próprio Letourneau, citando Fison e Howitt, descreve minuciosamente as normas imperantes entre certas tribos australianas, para repartição do botim(46). (39) Ueber die Botocudos der Brasilischen Provinzen Espiritu Santo und Minas Geraes, "Zeitschrift für Ethnologie", Band XIX, p. 31, (40) Als Eskimo unter den Eskimos von H. Klutschak, Wien, Pest, Leipzig, 1881, p. 233. (41) Cranz, Histoire von Groenland, 1770, В. I., p. 222. (42) Cranz, obra cit., В, I, p. 291. (43) Franz Boas, The Central Eskimo. Sixth Annual Report of the Bureau of Ethnology, pp. 564 e 582. (44) L'Évolution de la Propriété, Paris, 1889, pp. 36 e 49. (45) Com muita cautela. (46) Letourneau, obra cit., pp. 41-46.

Essas normas, que estão intimamente ligadas do sistema de parentesco, mostram persuasivamente com sua simples existência que o botim dos diferentes membros da associação consangüínea australiana não é propriedade deles. E se os australianos fossem individualistas, dedicados exclusivamente à "procura individual de alimentos", o botim teria que ser, forçosamente e sem qualquer limitação, propriedade privada dos diversos membros da associação consangüínea. Os instintos sociais dos caçadores primitivos têm, às vêzes, conseqüências bastantes inesperadas para os europeus. Assim, quando um bosquímano consegue roubar uma ou várias cabeças de gado, os demais bosquímanos se consideram com direito a participar do festim com que geralmente se celebram as felizes proezas dêsse gênero(47). Os instintos comunistas primitivos se mantêm ainda durante muito tempo em fases mais elevadas do desenvolvimento cultural. Os etnólogos americanos contemporâneos apresentam os peles-vermelhas como autênticos comunistas. 0 já citado Powell, diretor da secretaria norte-americana de etnologia, afirma categoricamente que entre os peles-vermelhas toda propriedade (all property ) pertencia à gens ou ao clã (gens or clan), e a propriedade mais importante, os alimentos, em nenhum caso (by no means) era posta à exclusiva disposição de indivíduos ou famílias isoladas. A carne dos animais caçados era distribuída entre as diversas tribos, de acordo com normas diferentes, mas na prática tôdas as normas se reduziam à distribuição por igual, do botim. " 0 índio faminto não tinha mais que pedir algo, para receber, por menores que fossem as reservas (do doador) e por pouco promissoras que fossem as esperanças postas no futuro" (48). E observe que êsse direito do postulante a conseguir o solicitado não fica limitado à associação consangüínea nem à tribo. "O que em princípio foi um direito baseado no parentesco, adquiriu posteriormente proporções mais amplas e se con(47) Lichtenstein, Reisen, И, p. 338. (48) "Indian Linguistic Families". Seventh Annual Report of the Bureau of Ethnology, p. 34. Aduzirei, de acôrdo com Matilde Stevenson, que entre os índios norte-americanos o forte não goza, em face da repartição, nenhuma classe de privilégios em relação ao fraco. ( "The Siou" by Matilde Coxe Stevenson, Seventh Annual Report, p. 12).

verteu em ilimitada hospitalidade " ( 4 9 ) . Sabemos por Dorsey que quando os índios omahas dispunham de muito cereal, e êste faltava aos ponca e aos paunis, os primeiros compartiam suas reservas com os outros. E o mesmo faziam os paunis e os ponca, quando os omahas sofriam de escassez de grão( 50 ). O velho Lafitau já assinalara tão louvável costume, observando ainda que "os europeus não agem assim"(51). No que respeita aos índios da América do Sul, bastará reportarmo-nos a Martius e Von den Steinen. De acordo com о primeiro, entre os índios do Brasil, os objetos elaborados mediante o trabalho conjunto de muitos membros da comunidade, eram propriedade dêstes, enquanto o segundo diz que os bacairis brasileiros — bem estudados por êle — viviam como uma só família, repartindo entre si o produto da caça ou da pesca (52). Entre os bororós, o caçador que matou um jaguar chama os demais caçadores e come com êles a carne do animal, entregando a pele e os dentes ao parente masculino ou feminino mais próximo do membro da comunidade morto anteriormente ( 53). Entre os cafres da África do Sul, o caçador não tem direito de dispor, a seu talante, da prêsa conseguida por êle, mas é obrigado a comparti-la com os demais(54). Quando algum dêles mata um touro, convida todos os vizinhos, que permanecem em sua habitação até que seja consumida tôda a carne. Inclusive, o "rei" se submete a êsse costume e obsequia pacientemente a seus súditos (55). Parodiando Lafitau, direi que os europeus não agem assim! Sabemos já por Ehrenreich que quando um botocudo recebe um presente, comparte-o com os demais membros de sua gens. O mesmo diz Darwin acêrca dos habitantes da Terra-doFogo(56) e Lichtenstein, dos povos primitivos da África do Sul. Segundo êste último, aquêle que não reparte com os outros (49) Powell, obra cit., p. 34. (50) "Omaha Sociology' by Owen Dorsey, Third Annual Report of the Bureau of Ethnology, p. 274. (51) Lafitau, Les Moeurs des Sauvages..., t. II, p. 91. (52) Von den Steinen, Unter den Naturvölkern Zentral-Brasiliens, pp. 67-68; Martius, Von dem Rechtzustande unter den Ureinwohnern Brasiliens, p. 35. (53) Von den Steinen, ibid., p. 491. (54) H. Lichtenstein, Reisen, I, p. 444. (55) H. Lichtenstein, Reisen, I, p. 450. (56) Journal of Researches etc., p. 242.

um presente recebido, é objeto das burlas mais vexatórias(57). Quando os Sarrasin davam a algum veda uma moeda de prata, êste tomava um machado e fazia como se quisesse parti-lo em pedaços, e depois dêsse gesto expressivo pedia outras moedas para poder dá-las aos demais(58). O rei dos bexuanas, Muligavang, pediu a um dos companheiros de Lichtenstein que lhe desse os presentes às escondidas, pois caso contrário sua negra majestade teria que comparti-los com os súditos.( 59 ). Nordenskjold diz que durante sua visita aos chukches, quando dava um torrão de açúcar a alguma das crianças da tribo, a guloseima começava a passar imediatamente de boca em boca (60). Ë bastante. Bücher comete um grande êrro quando diz que o selvagem não pensa senão em si mesmo. O material empírico de que dispõem os etnólogos contemporâneos não deixa a menor dúvida, no que tange a êste particular. For isso, agora podemos passar dos fatos às hipóteses e perguntar: como imaginar as relações recíprocas de nossos antepassados selvagens nos remotíssimos tempos em que ainda não conheciam o uso do fogo e das armas? Temos algum fundamento para supor que em tal época predominava o individualismo e que a existência dos indivíduos não se via favorecida em nada pela solidariedade social? Creio que não temos absolutamente nenhuma razão para supor tal coisa. Tudo o que está próximo dos costumes dos macacos do Velho Mundo me obriga a pensar que nossos antepassados já eram animais sociais na época em que só se "assemelhavam" ao homem. "As manadas de monos — diz Espinas — distinguem-se das manadas de outros animais, em primeiro lugar, pela ajuda mútua dos indivíduos ou solidariedade de seus membros e, em segundo lugar, pela subordinação ou obediência de todos, inclusive dos machos, ao chefe, que se preocupa com o bem-estar geral"(61). Como pode ver, trata-se de uma união social no pleno sentido da palavra. É bem verdade que os grandes símios antropomorfos não parecem muito inclinados à vida social. Tampouco, podem ser ( 57 ) (58) (59) (60) zig, 1882, ( 61 )

Reisen, I, p. 450. Die Weddas von Ceylon , p. 560. Lichtenstein, obra cit., t. II, pp. 479-480. Die Umsegelung Asiens und Europas auf der "Vega", LeipBand II, p. 139. Des Sociétés Animales, deuxième édition, Paris, 1878, p. 502.

chamados de individualistas completos, Alguns se reúnem amiúde e cantam em coro, batendo nas árvores ôcas. Du Chaillu viu grupos de gorilas de oito a dez indivíduos; também foram encontradas manadas de gibões de cem e inclusive de cento e cinqüenta cabeças. Ainda que os orangotangos vivam em pequenas famílias isoladas, devemos ter presentes as excepcionais condições de existência dêsses animais. Os macacos antropomorfos já não se encontram em condições de continuar a luta pela existência. Encontram-se em vias de degeneração, e são muito poucos os que vão ficando, pelo que, como observa acertadamente Topinard, seu atual gênero de vida não nos pode dar a mais remota idéia acêrca de como viveram antes (62). Em todo o caso, Darwin estava convencido de que nossos antepassados antropomorfos viveram em sociedade(63), e eu não conheço qualquer argumento que possa obrigar-nos a considerar errada esta convicção. E se efetivamente nossos antepassados antropomorfos viveram em sociedade, quando, em que momento do ulterior desenvolvimento zoológico e por que seus instintos sociais tiveram que ceder lugar ao individualismo, característico, segundo afirmam, do homem primitivo? Ignoro-o. Também Bücher o ignora. Pelo menos, não nos diz absolutamente nada a respeito. Vemos, pois, que suas concepções não encontram confirmação, quer nas considerações hipotéticas quer nos materiais concretos. (62) (63)

L'Anthropologie et la Science Sociale , 1900, Paris, pp. 122-123. The Descent of Man , 1883, p. 502.

TERCEIRA

CARTA

Os Jogos Cênicos e о Trabalho Como se desenvolveu a economia a partir da procura individual de alimentos? Segundo Bücher, quase nada existe do que hoje em dia sabemos acêrca dessa questão. Creio que podemos formar uma idéia disso, se levarmos em conta que a busca de alimentos teve, a princípio, caráter social, e não individual. De começo, os homens "procuravam" os alimentos, da mesma forma por que o "fazem" os animais que vivem em sociedade: as forças conjuntas de grupos mais ou menos numerosos dedicavam-se, a princípio, a apoderar-se dos bens já acabados da natureza. Earle, mencionado em minha carta anterior, observa com justeza, reportando-se a De la Gironière, que, quando os negros participam da caça por clãs inteiros, lembram uma manada de orangotangos entregue a uma incursão de rapina. Essas devastações recordam as anteriormente descritas e realizadas por forças conjuntas de pigmeus da tribo dos akas. Se por economia entendemos a atividade conjunta dos homens orientada no sentido da aquisição de bens, então devemos considerar que tais incursões representam uma das primeiras formas de atividade econômica. A forma inicial de aquisição de bens é a recoleção dos bens já acabados da natureza(l). Naturalmente, essa recoleção pode (1) Das Sammelvolk und nicht das Jägervolk müsste danach an dem unteren Ende einer wirtschaftlichen Stufenleiter der Menschheit stehen". ("Na fase inferior do desenvolvimento econômico da humanidade devia figurar um povo-recoletor e não um povo-caçador" ) — observa com justeza Panckow no Zeitschrift der Gesellschaft für Erdkunde zu Berlin, Band XXX, n.° 3, p. 162. Da mesma opinião são os irmãos Sarrasin, para os quais a caça é um importante "meio de conseguir alimentos, tão só em uma fase relativamente mais elevada do desenvolvimento". Die Weddahs, p. 401.

ser dividida em várias categorias, dentre as quais figuram a caça e a pesca. Seguidamente à recoleção vem a produção, ligada algumas vêzes àquela —- como nos mostra, por exemplo, a história da agricultura primitiva — por transições apenas perceptíveis. A agricultura, inclusive a mais primitiva, já possui, como é natural, todos os sinais de uma atividade econômica(2). E como, em princípio, o cultivo dos campos se efetua com grande freqüência mediante as forças conjugadas da associação consangüínea, aí tem você um patente exemplo de como os instintos sociais herdados pelo homem primitivo de seus antepassados antropomorfos puderam encontrar ampla aplicação em sua atividade econômica. O destino ulterior dêsses instintos fica determinado pelas relações recíprocas — constantemente variáveis — que se estabelecem entre os homens no curso dessa atividade, ou como dizia Marx, no processo da produção de sua vida. Tudo isto não pode ser mais natural, e não compreendo qual é a parte incompreensível dêsse curso natural do desenvolvimento. Mas vejamos. Segundo Bücher, a dificuldade reside no seguinte. "Seria bastante natural supor — diz — que essa transformação (a passagem da busca individual de alimentos à economia) começa no momento preciso em que a simples apropriação de bens da natureza para seu consumo imediato é substituída pela produção orientada para um objetivo mais afastado, quando o lugar da atividade instintiva dos órgãos é ocupada pelo trabalho como aplicação da força física para um fim consciente. Mas pouco sairíamos ganhando com a simples enunciação dessa tese puramente teórica. 0 trabalho, tal como aparece entre os povos primitivos, é um fenômeno bastante nebuloso. Quanto mais nos aproximamos do ponto em que começa seu desenvolvimento, mais se acerca, por sua forma e conteúdo, do jogo cênico(3). Vemos, pois, que o obstáculo para a compreensão da passagem da simples procura de alimentos à atividade econômica reside na dificuldade de estabelecer uma linha divisória entre o trabalho e o jôgo cênico. (2) Do mesmo modo, podem ver-se elementos de atividade econômica em certos costumes cios australianos, que demonstram uma vez mais que êles pensam também no futuro. Entre os australianos, era proibido arrancar pela raiz as plantas cujos restos se utilizavam como alimento, assim como destruir os ninhos das aves cujos ovos comiam, etc. Ratzel, Anthropo-Geographie, I, 348. (3) Quatro Ensayos, pp. 92-93.

A solução do problema da relação entre o trabalho e о jôgo cênico — ou se você prefere, entre o jôgo cênico e o trabalho — tem suma importância para o esclarecimento da gênese da arte. Por isso, convido-o a ouvir com atenção e a sopesar cuidadosamente tudo o que sôbre êsse particular diz Bücher. Deixemos que êle próprio exponha suas idéias: " 0 homem, quando ultrapassa os limites da simples procura de alimentos, fá-lo certamente impulsionado por instintos semelhantes aos que se observam nos animais superiores, sobretudo pelo instinto de imitação e pela tendência instintiva a tôda classe de experimentos. A domesticação dos animais, por exemplo, não começa pelos animais úteis, mas por aquêles que o homem mantém ùnicamente para seu prazer. 0 desenvolvimento da indústria elaborativa começa, aparentemente, em tôdas as partes, pela pintura do corpo, a tatuagem, a perfuração ou outras demonstrações de diferentes partes do corpo, depois do que se vai desenvolvendo pouco a pouco a elaboração de adornos, máscaras, desenhos sôbre cascas de árvores, hieróglifos e outras ocupações análogas. . . Dêsse modo, os hábitos técnicos forjam-se durante os jogos cênicos e só gradualmente vão adquirindo uma aplicação utilitária. Por isso, a sucessão das fases do desenvolvimento anteriormente aceita deve ser substituída por outra diametralmente oposta: o jôgo cênico é mais antigo que o trabalho, e a arte é mais antiga que a elaboração de objetos úteis"(4). Veja você: o jôgo cênico ê mais antigo que o trabalho, e a arte mais antiga que a elaboração de objetos úteis. Agora, compreenderá você por que lhe pedi que prestasse atenção às palavras de Bücher: elas têm íntima relação com a teoria histórica que eu defendo. Se o jôgo cênico é, efetivamente, mais antigo que o trabalho e se a arte é também mais antiga que a elaboração de objetos úteis, então a explicação materialista da história, pelo menos quanto à forma que lhe dá o autor do O Capital, não resiste à critica dos jatos e tôda minha argumentação deve ser virada pelo avêsso: tenho que falar da dependência da economia relativamente à arte, e não da dependência da arte em relação à economia. E então? Terá razão Bücher? Comprovemos o que foi dito antes acêrca do jôgo cênico. De arte, falaremos mais adiante. (4)

Cuatro Ensayos, pp. 93-94.

144 George Plekhanov

Segundo Spencer, o principal traço distintivo do jogo cênico é que não coadjuva diretamente os processos necessários à manutenção da vida. A atividade de quem joga não persegue um fim utilitário. Certamente, o exercício dos órgãos postos em movimento pelo jogo cênico é proveitoso para o indivíduo que joga como, em última instância, o é para toda a espécie. Tampouco, a atividade que busca um fim utilitário exclui o exercício. Do que se trata não é do exercício, mas de que a atividade utilitária, além do exercício do prazer que êste provoca, conduz também a algum fim prático — a conseguir alimentos, por exemplo — ao passo que no jogo cênico tal fim não existe. Quando o gato caça um rato, além do prazer experimentado pelo exercício de seus órgãos, obtém algo que lhe apetece, ao passo que, quando corre atrás de um novêlo que se faz rodar no solo, nada mais consegue do que o prazer proporcionado pelo jôgo. Mas, se isso é assim, como pôde surgir essa atividade desajustada? Sabemos qual a resposta de Spencer. Nos animais inferiores, tôdas as forças do organismo se destinam ao cumprimento das funções necessárias para a conservação da vida. Os animais inferiores não conhecem outra atividade senão a utilitária. Mas nos graus superiores da escola animal, as coisas ocorrem de outro modo. Aqui, nem tôdas as forças se destinam às atividades utilitárias. Graças à melhor alimentação, o organismo acumula um excedente de forças que exige saída, e quando o animal joga, submete-se precisamente a essa exigência. O jôgo cênico é um exercício artifical da fôrça(5). Tal é a origem do jôgo cênico. Mas, qual é seu conteúdo? Ou em outros têrmos: se o animal exercita no jôgo suas forças, por que uns animais as exercitam de um modo e outros de outra? Por que os animais de espécies diferentes têm jogos diferentes? Segundo Spencer, os animais carniceiros mostram-nos claramente que seus jogos consistem em simulacros de caça ou luta. Êsses jogos cênicos "não são senão uma representação dramática da perseguição de uma prêsa, isto é, uma satisfação ideal dos instintos destrutivos sem sua satisfação real"(6). Que significa isso? Significa que o conteúdo dos jogos dos animais (5)

Cf. Los Fundamentos de ia Psicologia, São Fetersburgo, 1876,

t, IV, p. 330 e ss. (6)

Obra cit., p. 335.

depende da atividade mediante a qual estes mantêm sua existência. Que vem primeiro: o jôgo cênico ou a atividade útil? Evidentemente, a atividade útil precede o jôgo; a primeira é "mais antiga" que o segundo. E que observamos nos homens? Os "jogos" das crianças — entretenimento com bonecas, etc. — são representações teatrais da atividade dos maiores(7). Mas que fins perseguem com sua atividade as pessoas maiores? Na imensa maioria dos casos, fins utilitários. Isso significa que também entre os homens, a atividade que persegue fins utilitários, ou em outros têrmos, a atividade necessária à manutenção da vida do indivíduo e de tôda a sociedade precede o jôgo cênico e determina seu conteúdo. Tal é a conclusão lógica que se deduz do que diz Spencer a respeito do jôgo cênico. Essa conclusão lógica coincide plenamente com as idéias de Guilherme Wúndt sôbre essa mesma questão. "O jôgo cênico é filho do trabalho — diz o célebre psicofisiólogo. Não existe nenhuma forma de jôgo cênico que não tenha seu modêlo em tal ou qual atividade séria, que, como é natural, precede-o no tempo. A necessidade vital compele ao trabalho, e neste o homem vai aprendendo, pouco a pouco, a considerar o emprêgo prático de suas fõrças como um prazer"(8). 0 jôgo cênico nasce do desejo de voltar a experimentar o prazer provocado pela aplicação prática das forças. E quanto maior é a reserva de fôrça, maior é a tendência ao jôgo cênico, naturalmente em igualdade das demais condições. Nada mais fácil que convencer-se disso. Nesse caso, como em todos os outros, demonstrarei e esclarecerei minhas idéias com exemplos. Ê sabido que os selvagens reproduzem freqüentemente com suas danças os movimentos de diversos animais(9). Como se explica isso? Precisamente pelo desejo de voltar a experimentar o prazer causado pelo emprêgo da fôrça durante a caça. Veja-se o esquimó que caça uma foca: aproxima-se dela, arrastando-se sôbre o ventre, tratando de manter a cabeça na mesma posição (7) Ibid., p. 335. (8) Ethik, Stuttgart, 1886, p. 145. (9) "So sprachen sie von einem Affentanz , einem Faultiertanz, einem Vogeltanz u.s.w." ("Assim é como falavam êles (os selvagens) da dança dos macacos, da dança do periquito, da dança dos pássaros, etc.") Schomburgk, Reisen in Britischer Guiana, Leipzig, 1847, erster Teil, p. 154.

em que está a cabeça do animal; imita todos os seus movimentos, e só ao chegar a curta distância se decide a disparar(lO). A imitação dos movimentos do corpo do animal constitui, portanto, parte essencial da caça. Nada tem de estranho, pois, que quando o caçador sente desejo de experimentar de nôvo o prazer porporcionado pelo emprego da fôrça na caça, volte a imitar os movimentos do corpo dos animais, criando sua original dança cinegética. Mas, que determina, nesse caso, o caráter da dança, isto é, a atividade diver siva? A índole de uma atividade séria, ou seja, o caráter da caça. 0 jôgo cênico é filho do trabalho, que necessariamente o precede no tempo. Outro exemplo. Von den Steinen viu numa tribo brasileira uma dança que reproduzia com impressionante dramatismo a morte de um guerreiro ferido(ll). Que crê você tenha sido o primário: a guerra ou a dança? Creio que primeiro foi a guerra e depois surgiram as danças como representação das diversas cenas da guerra. Primeiro, foi a impressão produzida no selvagem pela morte de seu companheiro ferido na guerra, e logo surgiu o desejo de reproduzir essa impressão mediante a dança. Se tenho razão — e estou certo de que assim é — então também, nesse caso, posso afirmar com todo fundamento que a atividade encaminhada a um fim utilitário é anterior ao jôgo cênico, e êste é configuração daquela. Bücher talvez tivesse dito que tanto a guerra como a caça são para o homem primitivo mais do que um trabalho, uma distração, isto é, um recreio. Mas dizer tanto, é jogar com palavras. Na fase de desenvolvimento em que se encontram as tribos caçadoras primitivas, a caça e a guerra são atividades indispensáveis para manter a existência do caçador e para sua defesa. Tanto uma como outra perseguem um fim utilitário bem concreto, e tratar de identificá-las com o jôgo cênico, que se caracteriza precisamente pela ausência de tal objetivo, só é possível se se abusa conscientemente dos têrmos. Ademais, os conhecedores da vida dos selvagens dizem que êstes nunca caçam pelo simples prazer de caçar (12). (10) Cf. Cranz, Histoire von Groenland, I, p. 207. (11) Unter den Naturvölkern Brasiliens, p. 324, ( 12 ) "The Indian never hunted game for sport" ( Os índios nunca caçaram por esporte"). Dorsey. Omaha-Sociology Third annual Report p. 267. Cf. com Hellward: "Die Jagd ist aber zugleich an und für sich Arbeit, eine Anspannung physischer Kräfte und dass sie als Arbeit, nicht etwa als Vergnügen von den wirklichen Jagdstämmen aufgefasst wird,

Acresce um terceiro exemplo que não deixa a menor dúvida acerca do ponto de vista que considero justo. Assinalei mais atrás a importância do trabalho social na vida dos povos primitivos que, além da caça, se dedicam à agricultura. Agora quero chamar a atenção sôbre a forma pela qual se fazem em comum os labores do campo entre os bagobos, uma das tribos aborígenes do sul de Mindanaus. Nessa tribo, os dois sexos dedicam-se aos trabalhos agrícolas. No dia da semeadura do arroz, homens e mulheres reúnem-se desde cedo e entregamse ao trabalho. Na frente vão os homens. Ao mesmo tempo que dançam, vão fincando na terra uma lança de ferro. Atrás, vêm as mulheres deitando grãos de arroz nos buracos abertas pelos homens, e tapando-os em seguida. Tudo isso se realiza num ambiente sério e solene (13). Aqui, vemos uma combinação do jôgo cênico (a dança) com o trabalho. Mas esta combinação não esconde « verdadeira relação entre os fenômenos. Se não crê você que os bagobos se dedicavam primeiro a enterrar suas lanças na terra e a semear arroz para distrair-se e só mais tarde começaram a cultivar a terra para manter sua existência, então deve convir em que o trabalho é, nesse caso, mais antigo que o jôgo cênico, e que êste foi engendrado pelas especiais condições em que os bagobos faziam a semeadura. O jôgo cênico é figuração do trabalho, e o precede no tempo. Observe que em tais casos as danças são simples reproduções dos movimentos do trabalhador. Para confirmar, Bücher, em seu livro Arbeit und Rhythmus refuta plena e brilhantemente por todo seu conteúdo a própria idéia de Bücher acêrca das relações entre os jogos cênicos e a arte, de um lado, e o trabalho, de outro, idéia que estou analisando agora. Assombra como o próprio Bücher não perceba essa flagrante contradição, que salta aos olhos. Evidentemente, o que o desorientou é a teoria do jôgo cênico proposta recentemente ao mundo da ciência pelo Prodarüher sind wir erst kürzlich belehrt worden (A caça é já рог si um trabalho, uma tensão das fôças físicas, e as verdadeiras tribos caçadoras não a interpretavam como prazer, mas como um trabalho, do [ue nos convecemos recentemente"). Kulturgeschichte, Ausgsburg, 1876, , p. 109. (13) Die Bewohner von Stid-Mindanao und der Insel S amai, von AI Schadenberg, Zeitschrift für Ethnologie, Band XVII, p. 19.

5

fessor Carlos Groos(14), de Giessen. Por isso, não é demais examinar essa teoria. Segundo Groos, os fatos não confirmam a idéia de que o jôgo cênico é uma manifestação de forças excedentes. Os filhotes de animais "brincam" entre si até o completo esgotamento e reencetam o jôgo cênico após um brevíssimo descanso, que lhes não proporciona um excedente de forças, mas só as necessárias para continuar o entretenimento. O mesmo acontece com nossas crianças. Por muito cansadas que estejam, como, por exemplo, depois de um comprido passeio, esquecem a fadiga logo que começam a brincar. Não necessitam prolongado descanso, nem acumular forças excedentes: "o instinto impele-as a atividade não apenas — e para falar, gràficamente — quando o vaso transborda, mas inclusive quando não contém mais do que uma gôta"(15). 0 excedente de forças não é conditio sine qua non do jôgo, mas uma condição muito propícia para o mesmo. Mas se isso não ocorresse assim, de qualquer modo a teoria de Spencer (Groos chama-a teoria de Schiller-Spencer) seria insuficiente. Essa teoria procura explicar a significação fisiológica do jôgo cênico, mas não nos esclarece quanto ao sentido biológico, que é muito grande. Os jogos, em particular os dos animais jovens, têm um fim biológico claramente definido. Da mesma maneira que os jogos das crianças, os dos animais jovens representam o exercício de qualidades úteis para o indivíduo e para tôda a espécie (16). 0 jôgo prepara o animal jovem para sua atividade vital. E precisamente porque o prepara para essa futura atividade, é anterior a ela, razão por que Groos não aceita que o jôgo cênico é filho do trabalho. Segundo seu ponto de vista, ocorre o contrário: o trabalho é filho da atividade diversiva(17). Como é de ver, são as mesmas idéias que encontramos em Bücher. Por isso, também se refere a elas tudo que foi dito acêrca das verdadeiras relações entre o trabalho e o jôgo cênico. Mas Groos focaliza o problema de outro ângulo: êle trata, antes de tudo, dos jogos infantis e não dos jogos cênicos das pessoas adultas. Que aspecto tomará a questão se nós, acompanhando Groos, a abordamos dêsse ponto de vista? (14) (15) (16) Ц7)

Cf. Die Spiele der Tiere, lena, 1896. Obra cit., pp. 19-20. Ibid., p. 125. Obra cit., p. 125.

Vtíltemos aos exemplos. Eyre diz(lB) que os filhos dos aborígenes australianos costumam fazer uma paródia de guerra, e que os maiores estimulam por todos os meios essa atividade diver si va, pois desenvolve a habilidade dos futuros guerreiros. 0 mesmo vemos entre os peles-vermelhas da América do Norte, e ocorre, às vezes, que em tais jogos tomam parte centenas de crianças dirigidas por experimentados guerreiros. Segundo Catlin, êsses jogos representam entre os peles-vermelhas o ramo material de seu sistema educativo(19). Aqui temos um caso patente dessa preparação dos indivíduos jovens para sua futura atividade vital, de que nos fala Groos. Pois bem, êste caso confirma sua teoria? Sim e não! O "sistema educativo" existente nos povos primitivos citados por mim faz com que na vida do indivíduo o simulacro de guerra preceda à participação real nesta(20). Resulta, por conseguinte, que Groos está certo: do ponto de vista do indivíduo, o jôgo cênico é, com efeito, mais antigo que a atividade útil. E, por que nesses povos se estabeleceu tal sistema de educação, em que a paródia da guerra ocupa um lugar tão importante? A razão é evidente: para êles tem grande importância dispor de guerreiros preparados, acostumados desde pequenos aos diversos exercícios bélicos. Por conseguinte, do ponto de vista da sociedade (da gens), a coisa oferece um aspecto bem diferente: primeiro é a guerra real e a necessidade, criada por aquela, de dispor de bons guerreiros, e depois vem a atividade diversiva com o fim de satisfazer dita necessidade. Em outras palavras: do ponto de vista da sociedade, a atividade utilitária resulta ser mais antiga que o jôgo cênico. Outro exemplo. A mulher australiana representa danças, entre outras coisas, a forma por que arranca as raízes comestíveis(21 ). Ao ver essa dança, a filha, a tendência à imitação própria das crianças, reproduz

com suas da terra seguindo os movi-

( 18 ) Manners and Customs of the Aborigines of Australia, p. 228. (19) Catlin, Letters and Notes on the Manners, Customs and Condition of the North American Indians, I, 131. (20) Letourneau, L'Evolution Littéraire dans les Diverses Races Humaines, Paris, 1894, p. 34. (21) "An other favorite amusement among the children is to practice the dances and songs of the adults." ("Outra distração favorita das crianças é imitar as danças e as canções dos adultos"). Eyre, obra cit., p. 227.

mentos corporais da mãe(22). £ o faz em uma idade em que ainda não precisa dedicar-se sèriamente à colheita de alimentos. Por conseguinte, o jôgo cênico (dança) que reproduz a coleta de raízes precede em sua vida à autêntica recoleção: para ela essa atividade é mais antiga que o trabalho. Mas na vida da sociedade, a verdadeira colheita de raízes precede naturalmente à reprodução dêsse processo nas danças dos adultos e nas distrações das crianças. Por isso, na vida da sociedade, o írabalho é mais antigo que o jôgo cênico (23). Parece que está bem claro. E se é assim, então não nos resta senão perguntar: de que ponto de vista deve o economista considerar, e em geral qualquer pessoa que se dedique à sociologia, o problema da relação entre o trabalho e o jôgo cênico? Creio que a resposta é clara: a pessoa que se dedica à sociologia não pode considerar esta questão — e tôdas as outras questões que surgem nesta ciência — a não ser do ponto de vista da sociedade. E, não pode, porque, ao adotar o ponto de vista da sociedade, acha-se mais facilmente a causa pela qual as atividades diversivas aparecem na vida do indivíduo antes do trabalho; e se não avançássemos além do ponto de vista do indivíduo, não compreenderíamos por que o jôgo cênico surge em sua vida antes do trabalho, nem por que se distrai precisamente com êsses entretenimentos e não com quaisquer outros. Isso se aplica com a mesma exatidão à biologia, só que em lugar do conceito "sociedade" devemos dar ênfase ao conceito "gênero" (ou mais exatamente, espécie). Se o jôgo cênico serve para preparar o indivíduo jovem com vistas à tarefa vital que o espera de futuro, é evidente que o desenvolvimento da espécie lhe apresenta primeiramente certa tarefa, pela qual se exige determinada atividade, e só mais tarde, como resultado da existência (22) "Les jeux des petitis sont l'imitation du travaâ des grands" ("Os jogos dos pequenos são uma imitação do trabalho dos grandes"). Dernier Journal du Docteur David Livingstone, t. II, p. 267. ' "Não há nada que distraia tanta as crianças pequenas como a imitação das atividades maternas. Os irmãozinhos têm por brinquedos... pequenos arcos e flechas" (Exploração do Zambeze por Davi e Carlos Livingstone). "The amusements of the natives are various but they generally have a reference to their future occupations" ("As distrações dos nativos são variadas, mas geralmente guardam relação com suaa ocupações futuras."), Eyre, p. 227. (23) "Êsses jogos constituem uma imitação exata do trabalho ulterior", Klutschak, obra cit., p. 222.

dessa tarefa, surge a seleção dos indivíduos, de acordo com as qualidades exigidas por dita tarefa, e a educação dessas qualidades na infância. Tampouco, nesse caso, é a recreação outra cousa que uma figuração do trabalho, uma função da atividade utilitária. A diferença entre o homem e os animais inferiores reduzse em tal caso a que o desenvolvimento dos instintos herdados desempenha em sua educação um papel muito menor do que na educação dos animais. O filhote do tigre nasce como um animal carniceiro, enquanto o homem não nasce caçador, agricultor, guerreiro ou mercador: converte-se em um ou outro sob a influência das condições que o rodeiam. Б isto é exato no que respeita aos dois sexos. A menina australiana, ao vir ao mundo, não traz inclinação instintiva quando arranca da terra as raízes ou pratica outros trabalhos de análoga significação econômica. Essa inclinação aparece nela pela tendência à imitação: em seus entretenimentos procura imitar o trabalho da mãe. Mas, por que imita a mãe e não o pai? Porque na sociedade a que pertence está definida a divisão do trabalho entre o homem e a mulher. Como pode você verificar, essa causa tampouco reside nos instintos dos indivíduos, mas no meio social que os rodeia. E, quanto maior é a importância do meio social, menos se pode abandonar o ponto de vista da sociedade e perfilhar o ponto de vista do indivíduo, como faz Bücher em seus raciocínios acerca das relações entre a atividade diversiva e o trabalho. Groos diz que a teoria de Spencer passa por alto a significação biológica do jôgo cênico. Com muito maior motivo se pode dizer que Groos não percebeu sua denotação sociológica. Ademais, é possível que essa omissão seja corrigida por êle na segunda parte da sua obra, em que tratará das preocupações diversivas dos homens. A divisão do trabalho entre os dois sexos dá-nos ocasião de examinar o raciocínio de Bücher de um nôvo ponto de vista. Bücher apresenta o trabalho do selvagem adulto como uma distração. Isto, já por si, constitui naturalmente um êrro: a caça não é para o selvagem um esporte, mas uma ocupação séria e necessária para a manutenção da vida. O próprio Bücher observa, acertadamente, que "os selvagens passam com freqüência grandes privações, e o cinturão que constitui sua única roupa lhes serve realmente de schmatriemen, segundo a expressão popular alemã, com que apertam o ventre 152 George Plekhanoc

para mitigar as torturas provocadas pela fome que os persegue" (24). Será possível que nesses casos "freqüentes" (como o reconhece o próprio Bücher) o selvagem continue sendo um esportista que caça por distração e não por penosa necessidade? Com Lichtenstein nos inteiramos de que os bosquímanos costumam ficar sem alimentos durante vários dias. Tais períodos de fome são, naturalmente, períodos de intensa busca de alimentos. Será possível que também essa busca continue sendo uma distração? Os peles-vermelhas da América do Norte entregam-se à "dança do bisonte", justamente quando estão muito tempo sem caçar um desses animais e se sentem ameaçados de morrer de fome (25). A dança prolonga-se até que apareçam os bisontes, e os índios estabelecem uma relação causai entre essa aparição e a dança. Deixando de lado a questão, que não nos preocupa no momento, acerca de como pôde surgir em sua imaginação a idéia de tal relação causai, podemos dizer, sem risco de incorreção, que em casos tais a caça que se inicia com o aparecimento dos animais não pode ser considerada como distração. Nesse caso, a dança mesma é uma atividade destinada a um fim útil e estreitamente ligada à principal atividade vital do pele-vermelha (26). (24) Quatro Ensayos, p. 77. (25) Catlin, obra cit., ï, p. 127. (26) Bücher pensa que o homem primitivo pode viver sem o trabalho. "É indübítável — diz — que o homem tem vivido durante período incomensuráveis de tempo sem trabalhar, e se se quer, é possível encontrar na Terra muitos lugares em que a palmeira sagu, a árvore-do-pão, o coqueiro e a tamareira lhe permitem ainda hoje subsistir com um gasto mínimo de fôrças" (Cuatro Ensayos, pp. 72-73). Se por períodos incomensuráveis de tempo Bücher entende a época em que o "homem" acabava de constituir-se em espécie (ou gênero) zoológica diferente, em tal caso direi que então nossos antepassados provàvelmente não "trabalhavam", nem mais nem menos que os macacos antropomorfos, dos quais não podemos dizer que em sua vida a distração ocupasse mais lugar que a atividade necessária à manutenção da existência. E no que respeita a certas condições geográficas que assegurariam ao homem sua existência com um gasto mínimo de fôrças, tampouco nesse caso deve-se exagerar. A natureza exuberante dos países quentes exige do homem não menores esforços do que a natureza da zona temperada. Ehrenreich supõe, inclusive, que a soma dêsses esforços nos países quentes é muito maior que a dêsses esforços em

Note, ademais, as atitudes da mulher de nosso suposto esportista. Durante a marcha, conduz pesadas cargas, arranca raízes, constrói a choça, acende fogo, raspa as peles, tece cestos e, mais tarde, entrega-se aos labores do campo(27). Acaso tudo isso significa diversão e não trabalho? Segundo F, Prescott, o índio dakota não trabalha no verão mais do que uma hora por dia. Se você quiser, poderemos dizer que isto é uma distração. Mas, na mesma tribo e na mesma época do ano, a mulher trabalha cêrca de seis horas diárias. Aqui é já mais difícil supor que se trata de uma "diversão". E no inverno, tanto o marido como a mulher têm que trabalhar muito mais: nessa época do ano, o marido trabalha umas seis horas e a mulher umas dez(28). Agora, podemos falar de "entretenimento". Trata-se, nem mais nem menos, de trabalho sans phrases, e ainda que êste trabalho seja menos intenso e menos fatigante que o dos operários da sociedade civilizada, nem por isso deixa de ser uma atividade econômica perfeitamente definida. Assim, pois, a teoria do jôgo cênico proposta por Grosse não salva a tese de Bücher que estou analisando. O trabalho é mais velho que as recreações, como os pais o são com respeito aos filhos, e a sociedade com respeito a seus diferentes membros. E já que falo de jogos cênicos, devo chamar sua atenção para outra tese de Bücher, em parte já de seu conhecimento. De acordo com êle as etapas mais distantes do desenvolvimento da humanidade, as realizações culturais não se transmitem de geração em geração(29), circunstância pela qual na existência dos selvagens falta um dos traços essenciais da economia. Muito bem; se o jôgo cênico, inclusive de acordo com clima temperado. ( Ueber die Botocudos, "Zeitschrift für Ethnologie", В. XIX, p. 27). Claro é que, quando começa o cultivo de plantas alimentícias, o fértil terreno dos países quentes pode aliviar de modo considerável o trabalho humano, mas tal cultivo não começa senão em etapas relativamente mais elevadas do desenvolvimento cultural. (27) "The principal occupation of the women in this village consists in procuring wooa and water, in cooking , dressing robes and other skins, in drying meat and wild fruit and raising corn" ("A principal ocupação das mulheres dêsse povoado consiste em recolher lenha e água, cozer, confeccionar roupa, preparar peles, secar carne e frutos silvestres e cultivar cereais") Catlin, obra cit. I, p. 121. (28) Cuatro Ensayos, p. 87 e ss. (29) Obra cit., p. 91.

Grosse, serve na sociedade primitiva para adestrar os indivíduos jovens no cumprimento de suas futuras obrigações na vida, é evidente que constitui um dos escalões que une entre si as diversas gerações e valem precisamente para transmitir as aquisições culturais de geração em geração. Bücher diz: "Naturalmente, podemos admitir que êste último (o homem primitivo) tenha especial carinho pelo machado de pedra, que talvez lhe tenha custado todo um ano de trabalho e enormes esforços, e que considere êsse machado como se fôra parte de seu próprio ser. Mas seria um êrro supor que essa valiosa propriedade fosse herdada por seus filhos e netos e teria de servir de base ao futuro progresso.' 1 Tão fidedigno é o fato de que tais objetos dão origem ao desenvolvimento dos primeiros conceitos do "meu" e do "teu", como são numerosas as observações no sentido de que êsses conceitos se ligam ùnicamente a pessoas isoladas e desaparecem com elas. "Os bens se enterram com o dono (grifado por Bücher) que em vida os possuíra como propriedade pessoal. Êsse costume está difundido em todos os continentes, e em muitos povos; inclusive nos períodos civilizados de seu desenvolvimento encontram-se vestígios dêle"(30). Isso, naturalmente, é verdade. Mas acaso com a desaparição do objeto desaparece também a habilidade para fazê-lo outra vez? Não, não desaparece. Já vimos como, inclusive nas tribos caçadoras primitivas, os pais procuram transmitir aos filhos todos os conhecimentos técnicos adquiridos por êles mesmos. "Logo que o filho do indígena australiano começa a andar, o pai leva-o à caça e à pesca, ensina-o e narra-lhe diversas lendas "( 31). E nesse sentido, os australianos não constituem qualquer exceção à regra geral. Entre os peles-vermelhas da América do Norte, o clã designava educadores especiais, cuja missão era transmitir à jovem geração todos os conhecimentos práticos (30) Obra cit., p. 88. ( 31 ) Ratzel, Völkerkunde, zweite Ausgabe, Band I, p. 300. О mesmo diz Schadenberg a respeito dos negroides da Ilhas Filipinas — Zeitschrift für Ethnologie , XII, p. 136. Sôbre a educação dos meninos entre os habitantes das Ilhas Anaamão, v. Maine, Journal of the Anthropological Institute, vol. XII, p. 94. A crer no que diz Emílio Deschamps, os vedas constituiriam a única exceção, pois, segundo nos diz êle, não ensinam aos filhos o manejo das armas (Carnet aun Voyageur. Au Pays des Veddas , 1892, pp. 369-370). Êste testemunho é muito pouco verossímil; ademais, Deschamps não dá a impressão de um investigador profundo.

que poderiam ser-lhes útil de futuro(32). Entre os cafres koosa, tôdas as crianças maiores de dez anos eram educadas juntas, sob a constante vigilância do chefe da tribo; aos varões se ensinava a arte da guerra e da caça, e às mulheres, diversos trabalhos domesticos(33). Acaso não significa isso um vínculo vivo entre as gerações? Não é uma transmissão das aquisições culturais de geração em geração? E, ainda que, efetivamente, os objetos pertencentes ao defunto se destruam sôbre sua tumba, a habilidade de produzi-los transmite-se de geração em geração, o que é mais importante que a transmissão dos próprios objetos. Naturalmente, a destruição dos bens do defunto sôbre seu túmulo impede a acumulação de riquezas na sociedade primitiva, mas, em primeiro lugar, não suprime, como vimos, os vínculos vivos entre as gerações e, em segundo lugar, dada a existência da propriedade privada social sôbre muitos objetos, os bens de cada indivíduo costumam ser muito pouco importantes. Êstes bens consistem, sobretudo, em armas, que no caçador-guerreiro primitivo se fundem tão intimamente com sua própria pessoa que mais parecem uma parte da mesma, razão por que não são úteis a outros (34). Daí porque o entêrro desses bens com o morto representa para a sociedade uma perda menor do que poderia parecer à primeira vista. Mais adiante, quando, com o desenvolvimento da técnica e da riqueza social, a destruição dos objetos pertencentes aos mortos representa uma séria perda para seus parentes, essa destruição se vai limitando pouco a pouco ou se suspende por completo, sendo substituída por uma representação simbólica (35). Nada tem de estranho que Bücher — que nega a existência de vínculos vivos entre as gerações dos selvagens — se mostre muito cético no que respeita a seus sentimentos paternais. (32) Powell, Indian Linguistic Families , Eleventh Annual Report, p. 35. (33) Lichtenstein, Reisen, I, p. 425. (34) Um exemplo entre outros: "Der Jäger darf sich keiner fremden Waffen bedienen; besonders behaupten diejenigen Wilden, die mit dem Blasrohr schiessen, dass dieses Geschoss durch den Gebrauch eines Fremden verderben werde und geben es nicht aus ihren Händen" ("O caçador não pode utilizar arma alheia; sobretudo o selvagem que atira com zarabatana afirma que sua arma se quebra quando usada por outros, razão por que não a abandona nunca")- Martius, obra cit., p. 50. (35) Letourneau, L'Évolution de la Propriété, p. 418 e ss.

"Os etnógrafos modernos — diz — dedicaram não poucos esforços a demonstrar que o amor materno é um traço comum a tôdas as fases do desenvolvimento cultural. E, efetivamente, custa-nos trabalho aceitar a idéia de que um sentimento manifestado em algum lugar de forma tão atraente entre muitas espécies animais, pudesse faltar nos homens. Não obstante, muitas observações mostram que os laços espirituais entre pais e filhos são um produto da cultura, e que entre os povos mais primitivos a preocupação pela conservação do próprio eu é mais forte que todos os outros impulsos espirituais, ou melhor, essa chega a ser a única preocupação.. . Êsse traço de egoísmo ilimitado manifesta-se também na crueldade com que durante as marchas muitos povos primitivos abandonam à sua sorte ou deixam em lugares solitários os enfermos e os velhos que poderiam ser um empecilho para os sãos" (36). Desgraçadamente, Bücher cita muito poucos fatos para confirmar essa idéia, pelo que ficamos sem saber quase nada acêrca de quais são as observações a que êle se refere. Portanto, só me resta contrastar suas palavras com as observações que conheço. Os australianos são catalogados com todo o fundamento entre as tribos caçadoras mais primitivas. Seu desenvolvimento cultural é insignificante. Por isso, seria lógico esperar que não conheço ainda essa "aquisição cultural" que denominamos carinho dos pais. Todavia, a realidade não confirma tal suposição: os australianos sentem verdadeira paixão por seus filhos; amiúde brincam com êles e os acariciam(37). Os vedas do Ceilão também ocupam o grau mais baixo de desenvolvimento. Bücher coloca-os ao lado dos bosquímanos, como exemplo de extremo selvagismo. Não obstante, segundo atesta Tennent, também êles "sentem notável apêgo aos filhos e parentes. . . " ( 3 8 ) . Os esquimós — representantes da cultura do período glacial — também "amam extraordinariamente a seus filhos"(39). (36)

Cuatro Ensayos, pp. 81-92.

(37) Eyre, obra cit., p. 241. (38) de P. e F. (39) Als Eskimo

Tennent, Ceylon, II, p. 445 (Cf. Die Weddas von Ceylon, Sarrasin, p. 469). D. Cranz, Histoire von Groenland, I, p. 213. Cf. Klutschak, unter den Eskimos, p. 234, e Boas, obra cit., p. 566.

Já o Padre Gumilla falava do grande carinho que sentem por seus filhos os índios sul-americanos(40). Waitz considerava que era êsse um dos traços mais notáveis do caráter dos indígenas da América(41). Entre as tribos negras da África, podem-se citar muitas que chamaram a atenção dos viajantes pela terna preocupação que demonstram por seus filhos(42). Vemos, pois, que o material empírico de que dispõe o etnólogo contemporâneo tampouco confirma, nesse caso, as idéias de Bücher. Qual é então a origem de seu êrro? O haver interpretado mal o costume, bastante difundido entre os selvagens, de matar as crianças e os velhos. Naturalmente, à primeira vista parece completamente lógico deduzir, do fato de que se matassem crianças e velhos, a ausência de um carinho recíproco entre filhos e pais Mas, isso assim parece, só à primeira vista. Efetivamente, o infanticídio está muito difundido entre os aborígenes da Austrália. Em 1860, foi morta a têrça parte das crianças recém-nascidas da tribo dos narrinyeri. Mataram todos os nascidos de famílias que já tinham filhos pequenos, os de má constituição, os gêmeos, etc. Mas isto não quer dizer ainda que os australianos da tribo mencionada carecessem de sentimentos paternos e maternos. Muito ao contrário. Quando decidiam que tal ou qual criança devia continuar vivendo, cuidavam-na "com ilimitada paciência" (43). Como se pode ver, a coisa não é tão simples como parece à primeira vista: o infanticídio não impedia os australianos de amar a seus filhos e cuidar dêles pacientemente. E isto não ocorre só com os australianos. O infanticídio praticava-se na antiga Esparta, mas acaso se deduz disso que os espartanos não haviam alcançado essa etapa do desenvolvimento cultural em que surge o carinho dos pais pelos filhos? ( 40 ) Histoire Naturelle, Civile et Géographique de VOrénoque, t. I, p. 211. (41) Die Indianer Nordamerikas, Leipzig, 1865, p. 101. Cf. о trabalho de Matilde Stevenson, The Siou, no 1 1 i n f o r m e anual do departamento etnológico americano à Smithsonian Institution. Segundo Matilde Stevenson, quando escasseiam os alimentos, as pessoas adultas passam fome, mas dão de comer às crianças. (42) Ver o que diz, por exemplo, Schweinfurth acêrca dos diurs em Au Coeur de l'Afrique , t. I, p. 210. (43) Ratzel, Völkerkunde, I, pp. 338-339.

No que tange ao sacrifício dos enfermos e dos velhos, é de se levar em conta, antes de tudo, as circunstâncias excepcionais em que se produz. Êsse sacrifício só se realiza quando os velhos chegam a um grau de prostração que os impede de acompanhar os demais membros da tribo nas marchas (44). Como os meios de que os selvagens dispõem para se trasladarem de um lugar a outro são insuficientes ao transporte dêsses membros da tribo que já não têm fôrças, a necessidade obriga-os a abandoná-los à sua sorte. E em tais circunstâncias, a morte proporcionada por mão amiga é o menor de todos os males. Ê de notar, ao mesmo tempo, que o abandono ou sacrifício dos velhos diminui cada vez mais, e só ocorre raramente, inclusive nas tribos que a êsse respeito adquiriram fama. Ratzel observa que, a despeito do tão propalado relato de Darwin acêrca dos habitantes da Terra-do-Fogo que comiam as mulheres anciãs, os velhos e as velhas dessa tribo são muito respeitados(45). O mesmo dizem Earle acêrca dos negroides das Ilhas Filipinas(46) e Ehrenreich (baseando-se em Martius) sôbre os botocudos brasileiros (47). Heckwelder assegura que os índios da América do Norte são o povo que mais respeita os velhos(48). Referindo-se aos diurs africanos, Schweinfurth diz que não só cuidam solicitamente de seus filhos, como também respeitam os velhos, coisa que salta à vista em qualquer de suas aldeias (49). E segundo Stanley, o respeito aos velhos é norma geral em tôda a África interior (50). (44) Ver I. F. Lafitau, Les Moeurs des Sauvages..., I, p. 490, e Catlin, Letters and Notes, I, p. 217. Catlin afirma que nesses casos, os velhos, em vista de sua decrepitude, insistem eles mesmos em que os matem (na mesma obra e na mesma página). Reconheço que êste último me pareceu duvidoso durante muito tempo. Mas diga-me, por favor, crê você que foge à verdade psicológica a seguinte passagem de O Amo e o Criado, ae Tolstói: "Nikita morreu, alegrando-se sinceramente de que sua morte libertasse o filho e a nora de uma bôca a mais", etc.? Creio que aqui não existe qualquer falsidade na afirmação de Catlin que acabo de citar. (45) Völkerkunde, I, p. 524. (46) Native Races of the Indian Archipelago , p. 133. (47) Ueber die Botokudos etc., Zeitschrift für Ethnologie, XIX, p. 32. (48) Obra cit., p. 251. (49) Au Coeur de l'Afrique, t. I, p. 210. (50) Dans les Ténèbres de ÎAfrique , II, p. 361.

Bücher considera de forma abstrata um fenômeno que só se pode explicar a partir de uma posição bem concreta. 0 que leva ao sacrifício dos velhos, como ao infanticídio, não são as peculiaridades do caráter do homem primitivo, não é seu suposto individualismo nem a falta de vínculos vivos entre as gerações, mas as condições em que o selvagem tem que lutar pela existência. Em minha primeira carta, lembrei-lhe o pensamento de Darwin de que se os homens vivessem nas mesmas condições em que vivem as abelhas, exterminariam os membros improdutivos de sua sociedade, sem o menor remorso de consciência e inclusive com a grata satisfação do dever cumprido. Os selvagens vivem precisamente era condições em que o extermínio dos membros improdutivos constitui um dever moral para com a sociedade. E porque se encontram em tais condições, se vêem obrigados a matar o excesso de crianças e os velhos decrépitos. Mas os numerosos exemplos que citei demonstram que nem por isso são tão egoístas e individualistas como os pinta Bücher. As mesmas condições da existência selvagem que forçam ao sacrifício de crianças e velhos, conduzem também à conservação de estreitos vínculos entre os demais membros da tribo. Essa é a razão pela qual o sacrifício de crianças e velhos tem lugar, às vêzes, em tribos que se distinguem ao mesmo tempo pelo grande desenvolvimento dos sentimentos paternais e maternais e pelo grande respeito aos velhos. Não se trata da psicologia do selvagem, mas de sua economia. Antes de deixar os raciocínios de Bücher acêrca do caráter do homem primitivo, devo fazer a respeito duas outras observações. Em primeiro lugar, uma das manifestações mais claras do individualismo atribuído por Bücher aos selvagens é, segundo êsse autor, o costume muito difundido de comerem sós. Minha segunda observação refere-se ao seguinte. Em muitos povos primitivos, cada membro da família possui seus próprios bens móveis, sôbre os quais não tem o menor direito qualquer dos demais membros da família que comumente não demonstram a êsse respeito nenhuma pretensão. Ocorre freqüentemente que diferentes membros de uma grande família vivem separados dos outros, em pequenas cabanas. Bücher vê nisso uma manifestação de extremado individualismo. Mas seria de outra opinião se conhecesse os costumes das grandes famílias camponesas que em outros tempos foram tão numerosas em nossa Rússia. A economia dessas famílias tinha uma base pura-

mente comunista, mas isso não era obstáculo a que alguns membros, como, por exemplo, as mulheres casadas e solteiras tivessem seus próprios bens móveis, que o costume salvaguardava firmemente contra todo atentado, inclusive dos "senhores" mais despóticos. Para os membros casados dessas famílias construíamse, amiúde, casas separadas no terreno que pertencia em comum a tôda família. (No governo de Tambov dava-se a essas casas o nome de jatkas). Ë muito provável que esteja você mais do que farto dessas elucubrações acêrca da economia primitiva. Não obstante, não me negará você que de modo algum poderia eu prescindir delas. Como assinalei antes, a arte é um fenômeno social, e se o selvagem é efetivamente um inveterado individualista, em vão te? remos que indagar como era sua arte, pois não encontraremos nêle qualquer traço de atividade artística. Mas a existência de tal atividade não oferece a menor dúvida: a arte primitiva não é nenhum mito. Êsse único fato pode ser uma refutação convincente, bem que indireta, das idéias de Bücher a respeito do "regime econômico primitivo". Bücher afirma em repetidas ocasiões que, "dada a constante vida nômade, a preocupação pelo alimento absorvia por completo os homens e impedia que, paralelamente, surgissem aquêles sentimentos que consideramos naturais "( 51 ). Б o próprio Bücher está firmemente convencido, como vimos antes, de que o homem viveu sem trabalhar durante um número incomensurável de séculos e, inclusive, que atualmente existem muitos lugares cujas condições geográficas permitem ao homem subsistir com um esforço mínimo. Ademais, nosso autor está também persuadido de que a arte é mais antiga do que a elaboração de objetos úteis, do mesmo modo que o jôgo é mais antigo que a arte. Segundo êsse ponto de vista, resulta: Primeiro: o homem primitivo mantinha sua vida à custa de um esforço insignificante; Segundo: êsse esforço insignificante absorvia por completo o homem primitivo, sem deixar lugar para qualquer outra atividade, mesmo para aquêles sentimentos que a nós nos parecem naturais; Terceiro: o homem, que só pensava em sua manutenção, não cogitou de elaborar objetos que fossem úteis sequer para (51)

Cuatro Ensayos, p. 82, Cf. também a p. 85. Cartas Sem Endereço 161

essa mesma manutenção, mas para satisfação de suas exigências estéticas. Como isso é estranho! A contradição é evidente. Mas, como sair dela? Dela não se pode sair senão considerando errôneas as idéias de Bücher relativamente às relações entre a arte e a atividade dirigida para a produção de objetos úteis. Bücher equivoca-se de ponta a ponta quando diz que o desenvolvimento da indústria elaborativa começa em todas as partes pela pintura do corpo. Não cita — naturalmente, não podia citar — qualquer fato que dê motivo a pensar que a pintura do corpo ou a tatuagem precedem à elaboração das armas primitivas e dos instrumentos primitivos de trabalho. Para certas tribos dos botocudos, o mais importante de seus escassos adornos corporais é o célebre batoque, isto é, o pedaço de madeira que insertavam no lábio (52). Seria extremamente estranho supor que êsse pedaço de madeira servisse de adorno ao botocudo antes de que aprendesse a caçar ou, pelo menos, a arrancar com um pau pontiagudo as raízes das plantas alimentícias. R. Semon diz que muitas tribos australianas não usam qualquer classe de adornos (53). Certamente, não sucede assim, pois em realidade o provável é que tôdas as tribos australianas usem diferentes adornos, ainda que sejam muito poucos e menos complicados. Tampouco, nesse caso, podemos supor que êsses escassos e pouco complicados adornos aparecessem entre os australianos antes e ocupassem em sua atividade maior lugar que a preocupação pelo alimento e os correspondentes instrumentos de trabalho, isto é, as armas e os paus afilados que lhes serviam para conseguir os alimento vegetais. Os Sarrasin crêem que entre os vedas primitivos, que não haviam experimentado ainda a influência de uma cultura estranha, nem os homens nem as mulheres nem as crianças conheciam adornos de qualquer classe, e que nas zonas montanhosas encontravam-se ainda vedas que se distinguiam pela ausência completa de enfeites (54). Êstes vedas sequer perfuram as orelhas, mas conhecem o emprêgo das armas, que êles mesmos fabricam. É evidente que, entre os vedas, a indústria da produção de armas precedeu a indústria de pro(52) Waitz, Anthropologie der Naturvölker, dritter Teil, p. 446. (53) Im Australischen Busche und an den Küsten des Korallenmeeres, Leipzig, p. 223. (54) Die Weddas von Ceylon, p. 395.

dução de adornos. É bem verdade que as tribos caçadoras situadas em um escalão muito baixo do desenvolvimento — como, por exemplo, os bosquímanos e os australianos — se dedicam à pintura: possuem verdadeiras galerias de arte, das que terei ocasião de falar em outras cartas(55). Os chukches e os esquimós distinguem-se por suas esculturas e entalhes(56). Não são menores as inclinações astísticas que distinguem as tribos que povoavam a Europa na época do mamute(57). Todos estes dados, muito importantes, não podem ser ignorados por nenhum historiador da arte. Mas donde se depreende que a atividade artística dos australianos, bosquímanos, esquimós ou contemporâneos do mamute precedeu à elaboração de objetos úteis? Que a arte dêsses povos era "mais antiga" que o trabalho? Isso não se depreende de nada. Muito ao contrário. O caráter da atividade artística do caçador primitivo mostra de modo absolutamente inequívoco que a elaboração de objetos úteis e, em geral, a atividade econômica precedeu à aparição de sua arte, a que impôs um sêlo inconfundível. Que representam os desenhos dos chukches? Diversas cenas da vida venatória(58). Ë evidente que os chukches começaram por dedicar-se à caça e logo se puseram a reproduzi-la em seus desenhos. Do mesmo modo, se os bosquímanos, salvo raras exceções, só pintam animais — pavões reais, elefantes, hipopótamos, avestruzes, etc.(59) — isso se deve a que os animais desempenham um papel enorme e decisivo em sua vida de caçadores. A princípio, o homem adotou determinada atitude ante os animais (começou por caçá-los), e só depois — precisamente por haver adotado tal atitude ante (55) Acêrca dos desenhos dos australianos, ver Waitz, Anthropologie der Naturvölker, sechster Teil, p. 759 e ss.; cf. também о interessante artigo de R. H. Mathews — 'The Rock Pictures of the Australian Aborigines" in Proceedings and Transactions of the Royal Geographical Society of Australia, ver vol. XI. Sôbre a pintura dos bosquímanos, ver o já citado trabalho de Fritsch acêrca dos indígenas da África do Sul t. I, pp. 425-427. (56) Ver Die Umsegelung Asiens und Europas auf der "Vega" — von A. E. Nordenskjöld, Leipzig, 1880, p. 463 e vol. II, pp. 125, 127, 129, 135, 141, 231. (57) Cf. Die Urgeschichte des Menschen nach Heitingen Stande der Wissenschaft, von Dr. M. Hörnes, erster Halbband, p. 191 e ss. e 213 e ss. Muitos dos fatos que se referem a isto foram citados por Mortillet em sua Le Préhistorique. (58) Nordenskjöld, vol. II, pp, 132, 133, 135. (59) Fritsch, Die Eingeborenen Süd-Afrikas, I, 426.

êles — surgiu nêle o desejo de pintar êsses animais. Que foi primeiro: o trabalho antes da arte ou a arte antes do trabalho? Sim, senhor; estou firmemente convencido de que não conseguimos compreender absolutamente nada da história da arte primitiva se não assimilarmos bem a idéia de que o trabalho é mais antigo do que a arte e que, em geral, o homem considera primeiro os objetos e os fenômenos do ponto de vista utilitário e unicamente depois adota sua atitude ante êles do ponto de vista estético. Muitas provas confirmatórias desta idéia, e a meu ver plenamente convincentes, serão apresentadas em minha próxima carta, na qual, entretanto, terei que examinar até que ponto corresponde ao atual estado de nossos conhecimentos etnológicos o velho e bem conhecido esquema que divide os povos em povos caçadores, pastores e agricultores.

QUARTA

CARTA

As Danças Meu caro senhor: No final de minha primeira carta dizia eu que na seguinte mostraria de como é fácil explicar a arte dos povos primitivos — chamados pelos alemães de Naturvölker — do ponto de vista da concepção materialista da história. Agora cumpro o prometido. Antes de mais nada, quero pôr-me de acordo com você a respeito da terminologia. Que são tribos primitivas? Que são os Naturvölker? Os Naturvölker compreendem comumente as numerosas e diversas tribos que em seu desenvolvimento cultural não chegaram ainda à civilização. Mas qual é o limite que separa os povos civilizados dos não civilizados? L. H. Morgan admite em sua célebre obra sôbre a sociedade antiga (Ancient Society^ que a época da civilização começa com a invenção do alfabeto fonético e a escritura. Eu creio que nesse caso dificilmente se pode estar de acordo com L. H. Morgan, a não ser que se façam algumas reservas substanciais. Mas não se trata disso. Por muito que logremos fazer retroceder os limites que separam os povos civilizados dos não civilizados, teremos de reconhecer que entre êstes últimos figura um número extraordinário de tribos que se encontram situadas em degraus muito diversos do desenvolvimento cultural. Por conseguinte, o material que teremos que tratar aqui é muito grande e variado. Certamente, a influência das peculiaridades raciais, mesmo que exista nesse caso, é tão pequena que é quase impossível captá-la: a arte de uma raça quase se não distingue da arte de outra raça. "A arte primitiva -— diz Lübke — êsse idioma universal da humanidade, cobriu a terra

de monumentos uniformes, cujas marcas se estendem geograficamente desde as ilhas do Pacífico até as margens do Mississipi e desde as costas do Mar Báltico até as ilhas do arquipélago grego"(l). Por isso, na imensa maioria dos casos podemos considerar que essa influência é nula, o que, naturalmente, alivia em grau considerável nossa tarefa. Mas, apesar disso, continua sendo muito complicada, pois entre os povos não civilizados figuram tanto os australianos como os polinésios e a imensa maioria dos habitantes da África, tribos que ocupam graus muito diversos do selvagismo e da barbárie. Como podemos ver claro em todo êste material? Por que examinamos a arte dos povos primitivos separadamente da arte dos povos civilizados? Porque entre êstes últimos a influência da técnica e da economia fica muito mais velada pela divisão da sociedade em classes e pelos antagonismos de classe que derivam desta. Por conseguinte, quanto mais longe se encontra uma tribo desta divisão, mais adequado é o material que oferece para minha investigação. Muito bem; quais são as tribos que se acham mais distantes do regime social próprio dos povos civilizados, isto é, da divisão da sociedade em classes? Aquelas tribos cujas forças produtivas estão menos desenvolvidas. E as que se destinguem pelo menor desenvolvimento das forças produtivas são as tribos chamadas caçadoras, que vivem da pesca, da caça e da colheita de frutos e raízes de plantas silvestres. Antes de tudo, recorro precisamente a essa tribo e às que lhes são afins por seu desenvolvimento cultural. As tribos situadas num grau superior de desenvolvimento, como, por exemplo, os negros africanos, servir-me-ão apenas na medida em que as observações acêrca dêles modifiquem ou confirmem os resultados obtidos do estudo das tribos caçadoras. Começarei pelas danças, que têm grande significação na vida de todas as tribos primitivas. " 0 traço distintivo da dança — diz E. Grosse — é a sucessão rítmica dos movimentos. Não há dança que não tenha ritmo"(2). Pelas linhas da primeira carta ficamos sabendo que a capacidade de perceber a musicalidade do ritmo e de deleitar-se com a música reside nas qualidades da natureza humana( e não só humana). Pois bem. Como se manifesta essa capacidade na dança? Que significam os movimentos rítmicos dos dançarinos? (1) (2)

Löke, Historia del Arte, Paris, 1892, p. 1. Die Anfänge der Kunst , p. 198.

Que relação guardam esses movimentos com seu gênero de vida, com seu modo de produção? Às vêzes, as danças são simples imitações dos movimentos dos animais. Êste é o caráter que têm, por exemplo, as danças australianas da rã, da mariposa, da ema, da équidna e do canguru. O mesmo acontece com as danças norte-americanas do urso e do bisonte. Finalmente, é possível que também haja que classificar entre êstes algumas danças dos índios brasileiros, como "o peixe", e a dança do morcego da tribo dos bacairis ( 3 ). Nessas danças se põe de manifesto a capacidade de imitação. Na dança do canguru, o australiano imita com tanto acêrto os movimentos dêsse animal, que sua mímica, como assinala Eyre, provocaria uma explosão de aplausos em qualquer teatro europeu(4). . . .a maneira por que sobe às árvores para caçar as sarigüéias ou como mergulha para pescar moluscos; o modo com que arranca as raízes comestíveis. Os homens também dançam coreografias análogas. Tal é, por exemplo, a dança australiana dos remadores ou a dança que em outros tempos executavam os neozelandeses e em que se imitava a construção de uma pirágua. Tôdas essas danças eram simples representações de processos de produção. Elas merecem que se lhes preste atenção, pois constituem um notável exemplo da íntima relação entre a atividade artística primitiva e a atividade produtora. Naturalmente, vão surgindo os correspondentes organizações sociais que entre os caçadores primitivos não podiam ser amplas, ainda que não fossem senão pelas próprias condições de sua vida de caçadores, isto é, porque os meios de subsistência proporcionados pela caça eram muito escassos e incertos. Eyre diz que o número de australianos que vagavam juntos mudava nas diferentes épocas do ano e dependia da quantidade de alimento que podiam conseguir ( 5 ). Em geral, as hordas australianas não compreendem mais do que cinqüenta pessoas. Os aetas das Filipinas vivem em hordas de vinte a trinta indivíduos; os bandos de bosquímanos constam de vinte a quarenta famílias; uma horda de boto(3) Von den Steinen, Unter den Naturvölkern Brasiliens, p. 30. (4) Journal of Expeditions of Discovery, t. II, p. 223. (5) The number travelling together depends in a great measure upon the period of the year and the description of food that may be in season. Eyre. Journal of Expeditions, etc., II, 218.

cudos compreende às vezes uma centena de membros, etc.(6). As hordas que abrangem até quarenta famílias, isto é, cerca de duzentos indivíduos são, apesar de tudo, de dimensões insignificantes. As mesmas condições de existência provocam freqüentes choques entre as hordas independentes de caçadores primitivos. Segundo T. Waitz, a maior parte das guerras travadas entre as tribos peles-vermelhas da América do Norte tiveram por causa o direito de caçar em determinado território(7). O seguinte diálogo de Stanley com negros da África Central mostra-nos muito bem qual a origem dessas guerras. "Combatem vocês os seus vizinhos?" — perguntou-lhes Stanley. "Não; mas às vêzes acontece durante as caçadas que algum dos nossos se enfia pelo bosque; os vizinhos apoderam-se dêle; nós corremos em sua ajuda; êles também se juntam, e então lutamos até que nos cansemos ou até que um dos bandos se declare vencido"(8). Êsses choques entre tribos primitivas, ao se repetirem com freqüência, despertam em seus membros sentimentos de ódio recíproco e de vingança insatisfeita, que por sua vez são causa de novos choques(9). Como resultado, surge para a tribo caçadora primitiva a necessidade de estar sempre preparada para repelir (6) Ver o interessante e importante trabalho de H. Cunow, Les Bases Économiques du Matriarcat. Le Devenir Social, de janeiro, fevereiro e abril de 1898. (7) Die Indianer Nordamerikas, p. 115» (8) Dans les Ténèbres de l'Afrique, Paris, 1890, t. II, p. 91. Ratzel observa, acertadamente, que o desejo de experimentar carne humana provocava com freqüência, guerras entre os noezelandeses ( Völkerkunde , I, p. 93), mas nesse caso as guerras devem ser consideradas como uma espécie de caça. É preciso assinalar que, entre os povos primitivos, as guerras surgem amiúde por motivos que entre nós seriam resolvidos ante um juiz de paz. Mas para que as partes litigantes reconheçam a autoridade do juiz, requer-se uma organização do poder público, completamente impossível no período em que a vida descansava na caça. (9) Referência de N. I. Ziber, Ensayos sobre la Cultura Econômica Primitiva sôbre invasão de território alheio como causa de guerra entre as tribos primitivas: "Cada tribo tem seu território, cujas fronteiras são bem conhecidas de todos os aborígenes. Todos os animais selvagens que se encontram nesse território são considerados propriedade da tribo que vive, ou melhor, que passa por dito território . . . Os membros de cada tribo consideram a invasão do território em que vivem por qualquer outra tribo como uma violação do direito que deve ser castigada pela fôrça das armas. Tais violações são causa de guerras indígenas com a mesma freqüência das guerras européias..

os ataques inimigos.(10) E como é muito pobre em homens e recursos para especializar a parte de sua gente na arte militar, cada caçador deve ser ao mesmo tempo guerreiro, pelo que o guerreiro ideal se converte também no homem ideal. Segundo Schoolcraft, tôda a força da opinião pública dos peles-vermelhas da América do Norte tende a fazer dos jovens, intrépidos guerreiros e a despertar neles a ânsia de conquistar glórias guerr e i r a s ( l l ) . Êste é o objetivo que perseguem muitos de seus ritos religiosos. Nada tem de estranho que também persiga êsse objetivo sua arte coreográfica. Se admitirmos que a plena correspondência da forma com o conteúdo é o primeiro e mais importante dos traços da verdadeira obra de arte, não podemos deixar de reconhecer que as danças guerreiras dos povos são artísticas no pleno sentido da palavra. A descrição que se segue sôbre danças bélicas observadas por Stanley na África Equatorial mostra até que ponto isso é certo: "Trinta e três filas de trinta e três homens pulavam e se agachavam ao mesmo tempo.. . Mil cabeças pareciam formar uma só cabeça quando, tôdas num só movimento, se alçavam primeiro com triunfante energia, e depois se inclinavam com um suspiro doloroso.. . Sua alma comunicava-se aos presentes; acesos os olhos e cheios de entusiasmo, andavam em círculos, agitando no alto o punho direito... E quando os guerreiros se espojavam em terra com a cabeça inclinada, enquanto a canção soava como dolorosa queixa, uma angústia indescritível oprimia nosso coração; era como se assistíssemos aos horrores de uma derrota, rapinas e assassinatos; ouvíamos os gemidos dos feridos; víamos as viúvas e os órfãos chorando entre as choças destruídas e os campos devastados..." Stanley informa que aquele foi, ( 10 ) Martius comenta a propriedade dos bens de raiz exposta no livro de N. I. Ziber: "Nas famílias de uma gens ou de uma tribo, que habitjm determinado setor, êste é considerado por cada um de seus membros como pertencente a tôda a comunidade. Essa idéia está arraigada no espírito dos índios com grande clareza e fôrça... Tão claro conceito de uma propriedade concreta de tôda a tribo se baseia principalmente na necessidade de ter uma zona boscosa como território de caça com caráter exclusivo . . . A violação das fronteiras dêsse território é uma das causas mais freqüentes de guerra." (11) Historical and Statistical Information Respecting the History, Condition and Prospects of the Indian Tribes of the United States, Filadélfia, 1851, t. II, p. 57.

sem dúvida, um dos espetáculos mais belos e impressionantes de todos que vira na África (12). Assim, pois, as danças guerreiras do povos caçadores primitivos são obras de arte que exprimem os sentimentos e ideais que necessariamente deviam desenvolver-se em vista de seu gênero de vida. E êste depende por completo do estado de desenvolvivimento de suas fôrças produtivas. Isto é tanto mais evidente porquanto, como já dissemos, cada guerreiro é ao mesmo tempo caçador e emprega na guerra as mesmas armas para a caça. Em íntima relação causai com o modo de vida das tribos caçadoras encontram-se também as danças exorcizantes e as danças fúnebres. 0 homem primitivo crê na existência de um número maior ou menor de espíritos, mas tôdas as suas relações com estas fôrças sobrenaturais se limitam a diversos intentos de explorá-los em benefício próprio(13). Para conquistar a vontade de tal ou qual espírito, o selvagem trata de fazer algo que lhe agrade. Suborna-o com alimentos especiais (os "sacrifícios") e dança em sua honra os passos que a si próprio trazem maior prazer. Quando os negros africanos logram matar um elefante, costumam dançar em tôrno dêle, em honra dos espíritos ( 14). A relação entre êste tipo de danças e a vida baseada na caça é evidente. A dependência das danças fúnebres com respeito a êste modo de vida manifesta-se não menos evidentemente se nos lembrarmos de que o morto se converte em um espírito, cuja boa vontade tratam os vivos de conquistar, assim como a de outros espíritos(15). As danças amorosas dos povos primitivos parecem, de nosso ponto de vista, o cúmulo da indecência. Subentende-se que êsse tipo de dança não tem a menor relação direta com qualquer classe de atividades econômicas. Sua mímica exprime sem rebuços uma necessidade fisiológica elementar e, provavelmente, (12) Dans les Ténèbres de l'Afrique, t. I, pp. 405/407. (13) Tal atitude encontra-se amiúde entre os negros africanos que, não obstante, no aspecto cultural já se encontram muito acima dos povos caçadores no verdadeiro sentido da palavra. Eis como define um missionário suíço a "religião" dos negros huamba, da Africa: "Le système se tient d'une façon, etc." (O. sistema sustenta-se com ajuda, etc., p. 59). (14) Voyages et Aventures dans Y Afrique Equatoriale, par Paul du Chaillu, Paris, 1863, p. 306. ( 15 ) Durante os enterros, os índios brasileiros entoam canções de caça (Von den Steinen, p. 493); outras canções seriam muito menos apropriadas para o enterro de um caçador.

tem não pouco de comum com a mímica amorosa dos grandes macacos antropomorfos. A vida baseada na caga não deixou, naturalmente, de exercer sua influência também sôbre estas danças, mas só pôde fazê-lo na medida em que determinou as relações entre os sexos na sociedade primitiva. Percebo que você esfrega as mãos de satisfação, e diz: "Olá! Então no próprio homem primitivo nem tôdas as necessidades estão ligadas a seus peculiares modos de produção e à sua economia. O sentimento amoroso demonstra-o com extraordinária clareza. E pôsto que admitamos, ainda que como uma exceção à regra geral, devemos reconhecer que por muito grande que seja a importância do fator econômico, não podemos aceitar sua exclusividade, com o que vem abaixo tôda a interpretação materialista da história." Apresso-me a esclarecer. A nenhum dos partidários de tal interpretação ocorreu afirmar que as relações econômicas dos homens engendram e determinam suas necessidades fisiológicas fundamentais. Nossos antepassados antropomorfos já possuíam naturalmente o instinto sexual, na remota época em que não existia entre êles o menor traço de atividade produtiva. As relações entre os dois sexos estão determinadas precisamente por êsse instinto. Mas nas difirentes etapas do desenvolvimento cultural dos homens, essas relações adquirem diferente forma, à medida que se desenvolve a família, a qual por sua vez, vem determinada pelo desenvolvimento das forças produtivas e pelo caráter das relações econômico-sociais. O mesmo pode-se dizer das idéias religiosas. Nada ocorre na natureza sem causa. Isso se reflete na psicologia do homem como uma necessidade de encontrar a causa dos fenômenos que o interessam. Com um acervo de dados sumamente insignificantes, o homem primitivo "julga por si mesmo" e atribui os fenômenos da natureza à ação deliberada de forças conscientes. Tal é a origem do animismo. A relação entre o animismo e as forças produtivas do homem primitivo manifesta-se em que a esfera de ação daquele se reduz em proporção direta ao aumento do poder do homem sôbre a natureza. Mas isso não significa ainda, como é natural, que a origem do animismo radique na economia da sociedade primitiva. A origem das idéias animistas reside na natureza humana, mas tanto seu desenvolvimento como a influência que adquirem na conduta social dos homens dependem, em última análise, das relações econômicas. Com efeito, as idéias animistas e, em particular, a crença na vida de além-

túmulo não exercem, originàriamente, qualquer influência sôbre as relações entre os homens, pois não se associam em absoluto à espera de um castigo pelas más ações e de uma recompensa pelas boas. Ùnicamente, se vão associando paulatinamente a moral prática dos homens primitivos. Êstes começam a crer, por exemplo — como é o caso dos habitantes das ilhas do Estreito de Torres — que as almas dos guerreiros mais valentes têm uma existência ultraterrena mais feliz que a dos simples mortais. Tal crença exerce influência indubitável, em ocasiões extraordinárias, sôbre a conduta dos crentes. Nesse sentido, a religião primitiva é um "fator" indiscutível do desenvelvolvimento social, mas tôda sua significação prática depende das ações prescritas por aquelas normas da razão prática com as que se associam às idéias animistas, o que, por sua vez, depende por completo das relações sociais que vão surgindo sôbre a base econômica dada(16). Isso significa que se a religião primitiva adquire o aspecto de um fator do desenvolvimento social, essa significação tem por base exclusiva a economia(17). Por isso, os fatos demonstrativos de que a arte se desenvolveu não poucas vêzes sob intensa influência da religião não menosprezam a concepção materialista da história. Considerei necessário chamar sua atenção para êste particular, porque quem o esquece acaba vítima dos mais cômicos mal-entendidos e a cada passo executa o papel de D. Quixote a lutar contra moinhos de vento. Assinalarei, também, o seguinte: a primeira divisão permanente do trabalho social é sua distribuição na sociedade primitiva entre o homem e a mulher. Enquanto os homens se dedicam à caça e à guerra, corresponde às mulheres recolher raízes (16) Emílio Bumouf referia-se certamente a esta circunstância quando dizia: "Si la morale des nations est un produit de leurs moeurs, comme cela est incontestable , il faut donc voir dans l'état social de thomme une cause de diversité religieuse" ( Se a moral dos povos é produto de seus costumes, cousa incontestável, então no estado social do homem devemos ver uma causa da diversidade religiosa".) La Science des ííeítgíons, Paris, 1872, p. 286. ( 17 ) Devo advertir, no entanto, que neste caso utilizo muito a contragosto o termo fator. A rigor, só existe um fator do desenvolvimento histórico, a saber: o homem social, que atua, pensa, sente e crê de uma ou outra forma, segundo se vai estruturando sua economia, à medida que se desenvolvem suas fôrças produtivas. Em suas discussões acêrca da significação histórica dos diferentes fatôres, os disputantes, muitas vêzes sem perceber, hipostasiam conceitos abstratos.

e frutos de plantas silvestres (e também moluscos), cuidar das crianças e, em geral, efetuar todos os labores domésticos. Essa divisão do trabalho reflete-se nas danças: cada sexo tem suas coreografias especiais; os dois sexos dançam juntos só em raras ocasiões. Áo descrever as festas dos índios brasileiros, Von den Steinen observa que, se as mulheres não participam das danças venatórias que se executam durante essas festas, isso se deve a que a caça não é uma ocupação feminina(18). Trata-se de uma observação muito justa, a que devemos acrescentar que, segundo o próprio Steinen, durante tais festas as mulheres costumam estar muito mais ocupadas nos afazeres domésticos do que em outras ocasiões, preparando as comidas com que obsequiar os convidados. Tive ocasião de dizer que as representações animistas não se vão associando à moral primitiva senão aos poucos. Hoje em dia, isto é uma fato universalmente conhecido(19). Mas êste fato notório acha-se em aberta contradição com a opinião do Conde Leão Tolstói, a respeito da qual chamei sua atenção em minha primeira carta, e segundo a qual, sem(18) Obra cit., p. 298. (19) Ver a respeito La Cultura Primitiva, de Taylor e La Survivance de l'Âme et l'Idée de Justice chez les Peuples non Civilisés, de Marillier, Paris MDCCCXCIV: "Um importantíssimo elemento da religião, justamente o elemento moral, que para nós constitui sua parte mais vital, aparece manifestado sob forma muito fraca nas religiões das raças inferiores. Não que careçam do sentimento moral ou de um ideal moral. Ambos as cousas existem, embora não plasmadas em doutrinas concretas, mas na consciência tradicional que denominamos opinião pública e que nos serve para definir o bem e o mal. O que ocorre é que a combinação da filosofia moral e animista, tão estreita e poderosa nas culturas superiores, parece iniciar-se apenas nas culturas inferiores."

À página 46 da segunda das obras acima mencionadas, de Marillier, é de notar a seguinte passagem: "A idéia que os homens formam da divindade mudou muito no curso do tempo, e assim a crença em Deus e na vida de além-túmulo baseia-se, entre os povos civilizados, sobretudo em argumentos tomados da necessidade de uma justiça que neste mundo se satisfaz insuficientemente, ao passo que, em princípio, a imortalidade da alma e a existência de espíritos e deuses foram conceitos que serviram ao intelecto humano fundamentalmente para explicar e compreender os fenômenos da natureza e da vida. No pensamento do homem primitivo, ocuparam o lugar que em nosso pensamento as randes fôrças físicas e as grandes hipóteses cosmogônicas. A moral se esenvolvia à medida que se ia complicando a vida social e os deuses se foram "moralizando" paralelamente à vida dos homens."

pre e em tôdas as partes ("em tôda sociedade") a consciência do mau e do bom, propria de todos os membros da sociedade, é uma consciência religiosa. As variadas e pitorescas danças dos povos primitivos, que ocupam tão importante lugar em sua arte, exprimem e representam sentimentos e ações de essencial importância para sua vida. Têm, por conseguinte, a mais direta relação com "o que é bom e o que é mau", mas na imensa maioria dos casos não guardam a menor relação com a "religião" primitiva. A idéia do Conde Leão Tolstói é errônea, mesmo aplicada aos povos católicos da Idade Média, nos quais a associação das idéias religiosas com a moral prática era já incomparavelmente mais sólida e se estendia a uma esfera muito mais ampla. Inclusive, nesses povos, a consciência do "mau e do bom" não foi sempre uma consciência religiosa, razão por que os sentimentos transmitidos pela arte não tinham, amiúde, nada que ver com a religião. Mas se a consciência do bom e do mau não é sempre uma consciência religiosa, não há dúvida de que a arte adquire uma significação social somente quando apresenta, desperta ou transmite ações, sentimentos ou acontecimentos de grande importância para a sociedade. Já vimos isso nas danças: a dança dos peixes dos índios brasileiros está tão ligada a fenômenos de que depende a vida da tribo como a dança da cabeleira dos peles-vermelhas norteamericanos ou a dança que representa a pesca de moluscos das mulheres australianas. Certamente, nem uma nem outra, nem a terceira trazem qualquer utilidade imediata aos que as dançam ou aos que as contemplam. Nesse caso, como em todos os outros, o belo agrada aos homens, à margem de qualquer consideração de tipo utilitário. Mas o indivíduo pode deleitar-se de um modo totalmente desinteressado com o que é muito útil à espécie (à sociedade). Aqui se repete o que vemos no caso da moral: se são morais os atos de um indivíduo realizados a despeito das considerações da utilidade pessoal, isso não quer dizer ainda que a moral não tenha relação com a utilidade social. Muito ao contrário, a abnegação do indivíduo só tem sentido na medida em que é útil à espécie. Por isso, é falsa a definição kantiana: Schön ist das, was ohne alles Interesse wohl gefällt (20). Mas como podemos substituí-la? Podemos dizer que é belo o que (20) veito

"Ê belo o que agrada, independentemente de qualquer pro-

nos agrada, independentemente de todo interêsse pessoal? Não, isso não é exato. Se para um artista — ainda que seja coletivo — sua obra é um fim substantivo, os que se deleitam ante uma obra artística (seja a Antígona, de Sófocles, A Noite, de Miguel Ângelo ou a "dança dos remeiros") esquecem todos os objetivos práticos em geral e a utilidade para a espécie em particular. Por conseguinte, o prazer que produz uma obra de arte é um deleite ante a imagem do que (obejto, fenômeno ou estado de ânimo) é útil para a espécie, à margem de qualquer consideração consciente de utilidade. A obra de arte, em imagem ou sons, atua sôbre nossa capacidade contemplativa e não sôbre a lógica, e esta é a razão de que se não produza o prazer estético quando a vista de uma obra de arte só desperta em nós considerações de proveito para a sociedade. Nesse caso, não existe senão um sucedâneo do prazer estético: a satisfação que nos causa esta consideração. Mas como essas considerações são sugeridas pela imagem artística em aprêço, surge uma aberração psicológica, em virtude da qual consideramos que a causa do deleite é justamente essa imagem, quando em realidade ela tem sua origem nas idéias que esta desperta, com referência, portanto, a nossa capacidade lógica e não a nossa capacidade contemplativa. O verdadeiro artista apela sempre para esta segunda capacidade, ao passo que a criação tendenciosa sempre procura despertar em nós considerações de utilidade comum, isto é, atua, afinal, sôbre nossa lógica. Decerto, é preciso levar-se em conta que, historicamente, a atitude utilitária consciente frente aos objetos precede não poucas vêzes à atitude estética. Ratzel, que não aprova em absoluto a tendência de muitos investigadores dos costumes primitivos de atribuir consciência ao que não podia tê-la(21), vê-se obrigado a apelar para ela em alguns casos de importância. Assim, é sabido que quase todos os selvagens untam o corpo com graxa, sucos de certas plantas ou simplesmente com lama. Êsse costume desempenha papel extraordinário na cosmética feminina. Mas, qual sua origem? Ratzel crê que os hotentotes untam o corpo com o sumo de uma planta aromática chamada buchu para se protegerem dos insetos. E acrescenta que se êsses hotentotes untam zelosamente o cabelo é no afã de preservar a cabeça (21)

Völkerkunde, 1, Einleitung, p. 69. Carta g Sem Endçréço 175

da ação dos raios soîares(22). A mesma hipótese foi formulada pelo conhecido jesuíta Lafitau acerca do costume dos peles-vermelhas da América do Norte de untar o corpo com graxa (23). Em nossos tempos, essa hipótese é defendida com especial energia e fôrça persuasiva por Von den Steinen. Ao referir-se ao costume dos índios brasileiros de untar o corpo com lama vermelha, Von den Steinen observa que os índios tiveram que perceber primeiro que a lama refresca a pele e os protege dos mosquitos, e só mais tarde repararam que o corpo untado ficava mais belo. "Eu mesmo sou de opinião — acrescenta — que o costume de enfeitar-se tem por base o prazer, do mesmo modo que o jôgo tem por base um excesso de forças acumuladas; mas os objetos que servem de adorno chegam a ser conhecidos originàriamente dos homens em virtude de sua utilidade. Entre nossos índios (os brasileiros), o que é útil está a par do que enfeita, e temos razões fundadas para supor que o primeiro aparece antes do segundo (24). Vê-se, pois, que, primeiro, o homem se untava com barro, graxa ou sucos vegetais porque isso era útil(25). Posteriormente, o corpo untado dessa forma, começou a parecer-lhe belo e o homem começou a untar-se para experimentar um prazer estético. Ao chegar êsse momento, fizeram sua aparição numerosos "fatores" de índole diversa, que, com sua influência, deter(22) Obra citada, t. I, p. 92. (23) Les Moeurs des Sauvages Américains, Paris, MDCCXIV, t. II, p. 59: "Les huiles dont les sauvages se graissent, les rendent extrêmement pûants et crasseux... Mais ces huiles leur sont absolument nécessaires, et ils sont mangés de vermine quand elles leur manquent.'' ("Os óleos com que os selvagens se untam tomam-nos mal cheirosos e sujos. Mas êsses óleos lhes são absolutamente indispensáveis, pois quando faltam, devora-os a vérmina." ) (24) Unter den Naturvölkern Brasiliens, p. 174. Cf. na mesma obra à pág. 186. (25) Hier liegen ja auch Beispiele aus dem Tierleben vor — diz com razão Joest — Büffel, Elephanten, Nielpferde u.s.w. nehmen häufig Schlammbäder mit der unverkennbaren Absicht, sich durch den irdnen Tanzer uor Fliegen — Mücken — u.s.w. Stichen zu schützen. Dass also der Mensch dasselbe tat bzw. es noch tut, ist naheliegend ( "Os mesmos exemplos oferece-nos a vida dos animais — búfalos, elefantes, hipopótamos e outros — que amiúde se chafurdam no lôdo para se defenderem com uma couraça de barro das picadas das môscas e outros insetos. Compreende-se que o homem haja feito e continue fazendo o mesmo"). Tätowieren, Narbenzeichnen und Körperbemalen, Berlim, 1887, p. 19.

minaram a evolução ulterior da cosmética primitiva. Assim, segundo conta Burton, os negros wajiji (África Oriental) gostam de cobrir a cabeça com cal, cuja côr branca realça belamente a negrura da pele. Os mesmos wajiji, por igual motivo, sentem afeição pelos adornos feitos de dentes de hipopótamo, que se distinguem por sua deslumbrante

brancura(26).

Do mes-

mo modo, os índios brasileiros, segundo Von den Steinen, preferem comprar colares de côr azul-celeste, que se destacam melhor do que outros sôbre a pele(27).

E m geral, a ação do contraste

(princípio de antítese) tem em tais casos uma grande significação(28). Naturalmente, tão grande, se não maior, é a influência que exerce também o modo de vida dos povos primitivos. O desejo de parecer temível ao inimigo pode ter sido — a par com o que foi dito — outra das causas que deram origem ao costume de untar e pintar o corpo. "Quando na caça ou durante uma luta vitoriosa contra o adversário — diz Joest — o selvagem se manchava de sangue e lodo, não podia deixar de sentir a impressão de horor misturado com a repulsa que provocava nos que o rodeavam, os quais, por sua vez, começaram a esforçar-se por provocar essa mesma impressão com vistas a seus próprios W(29). Sabemos, com efeito, que após uma caçada feliz, os membros de algumas tribos selvagens têm o costume de untar o corpo com o sangue dos animais caçados por êles(30). Sabemos também que os guerreiros primitivos se pintam de vermelho quando vão à guerra ou quando se dispõem a dançar uma dança guerreira. A origem e a afirmação gradual do costume de pintar-se de vermelho — côr do sangue — deve-se certamente ao desejo dêsses guerreiros de agradar às mulheres, as quais, dado seu gênero de vida doméstico, deviam tratar depreciativamente os homens que não possuíam aspecto guerreiro(31). Outras (26) Burton, Voyage aux Grands Lacs de l'Afrique Orientale, pp. 411-413. (27) Obra cit., p. 185. (28) Cf. Ratzel, Völkerkunde, 1, Einleitung, p. 69, Grosse, Anfänge der Kunst, p. 61 e ss. (29) Obra cit., p. 19. (30) Ratzel, Völkerkunde, II, p. 567. ( 31 ) "The fights are sometimes witnessed by . . . the women and the children. The presence of the females may be supposed probably to inspire the belligerents with courage and incite them the deeds of

causas originam o emprêgo de outras côres; algumas tribos australianas recobrem o corpo com argila branca em sinal de luto. De acordo com a interessante observação de Grosse (32), conclui-se que para os brancos europeus a côr de luto é o negro, ao passo que para os negros australianos é o branco. A que se deve isso? Creio que ao fato seguinte: as tribos primitivas cost u m a m estar muito orgulhosas de tôdas as particularidades físicas de sua r a ç a ( 3 3 ) . A pele branca parece muito feia aos povos n e g r o s ( 3 4 ) . Por isso, quando a vida segue seu curso normal, tratam, como já vimos, de destacar, de acentuar a negrura da pele. E se a dor obriga-os a se pintarem de branco, nisso se deve ver a ação do já conhecido princípio de antítese. Mas também se pode formular outra suposição. Joest acredita que o homem primitivo se pinta — quando lhe morre u m ser aparentado — unicamente para que a alma do morto não possa reconhecê-lo no caso de que lhe ocorra a importuna idéia de levá-lo também daring" ( Às vêzes, as batalhas são presenciadas por. . . mulheres e crianças. Provàvelmente, a presença das mulheres inspira valor aos combatentes e os anima a realizar proezas temerárias"). E y r e . . . obra cit., p. 223. "Les usages veulent aussi qu'avant de prendre une femme le jeune coffre ait accompli certains actes de courage ou ait reçu le baptême du sang: tant que sa sagaie n'a pas été lavée avec du sang de l'ennemi, il ne peut se marier; de là la véritable frénésie qui porta les guerriers zoulous jusque sur la gueule des canons anglais lors de la dernière guerre et leur fit commettre des actes d'une audace et dune témérité incomparables." "Os costumes exigem também que antes de tomar mulher o jovem cafre tenha realizado certos atos de valor ou tenha recebido o batismo de sangue: enquanto sua zagaia não tenha sido banhada no sangue inimigo não pode casar-se; dai o verdadeiro frenesi com que os zulus, durante a ultima guerra, se puseram à frenta da bôca dos canhões inglêses e a cometer atos de uma audácia e temeridade incomparáveis.") Du Cap au Lac Nyassa, par Edouard Foá, Paris, 1897, pp. 81-82.

(32) Anfänge der Kunst, p. 54. (33) "Il est notoire que sur presque tous les points du globe, les mères cherchent, par des moyens externes, à rendre les plus marqués possibles, chez leurs enfants, les signes de leur nationalité" (É bem sabido que em todos os lugares do mundo as mães tratam, por meios externos, de destacar o mais possível em seus filhos os sinais de sua nacionalidade"). Schweinfurth, obra cit., p. 256. (34) "Quereis maridos como êstes? — perguntava a umas negras o intérprete de Burton, mostrando seus acompanhantes brancos. "Com êstes espantalhos? Ah! — respondiam elas. Era a resposta unânime, acompanhada sempre de grandes risos, acrescenta Burton. ( Voyages etc., p. 58).

para o reino dos espíritos (35). Se essa suposição é acertada — e não é improvável — resulta que as tribos negras preferem a côr branca como o melhor meio de impedir que haja reconhecimento. Seja o que fôr, não há dúvida de que a ação de besuntar a pele se complica com a ação de pintá-la( 36). Inclusive, a primeira deixa de ser uma ação tão simples como o foi originàriamente. Algumas tribos negras da África, que se dedicam à criação de gado, consideram de bom-tom untar o corpo com uma camada de gordura de vaca (37); outros preferem utilizar com o mesmo fim resíduos de estéreo de vaca e urina do mesmo animal. A gordura, o estéreo e a urina constituem nesse caso um rótulo de riqueza, pois só os que possuem gado podem untar-se com êles (38). Talvez a gordura e o estéreo protejam melhor a pele que as cinzas de madeira. Se realmente é assim, então a passagem do uso da cinza para o emprêgo da gordura e do estéreo, ao desenvolver-se a criação de gado, se efetuou por considerações puramente utilitárias. Mas uma vez realizada essa passagem, o corpo besuntado de gordura de vaca ou com resíduos de estéreo de vaca começou a parecer mais agradável para o gôsto estético dos homens do que o corpo untado com sucos vegetais. Mas isso não é tudo. Ao untar o corpo com gordura ou estéreo, o homem primitivo demonstrava praticamente a seus aparentados que gozava de certa desenvoltura. Ë evidente que o prazer prosaico de fazer tal demonstração também precedeu, nesse caso, ao prazer estético de ver sôbre seu corpo uma camada de estéreo ou de gordura. Mas o homem primitivo não só unta e pinta a pele. Também grava nela desenhos às vezes muito complicados; emprega a tatuagem e a faz com evidente propósito de embelezar sua pessoa. Podemos dizer também no caso da tatuagem que a (35) Obra cit., p. 22. (36) "Os oiampi da América do Sul não só gostam de pintar-se de vermelho e amarelo, mas também pintam seus cães e macacos dorn esticados," Ratzel, Völkerkunde, II, p. 598. ( 37 ) "Une couche de beurre fondu . .. fait Vorgueil des puissants et des belles" ( "Uma camada de gordura derretida... constitui o orgulho dos poderosos e das belas"), voyages aux Grands Lacs de l'Afrique Orientale, par le Capitaine Burton, p. 265. (38) Schweinfurth diz que os chüuks pobres se untam com cinzas de madeira, ao passo que os ricos besuntam o corpo com estéreo de vaca (Au Coeur de Г Afrique, t. I, p. 82.).

atitude ante o objeto, do ponto de vista da utilidade, precedeu a atitude, do ponto de vista do prazer estético? Deve você, naturalmente, saber que existem dois tipos de tatuagens: a tatuagem propriamente dita e os desenhos traçados sôbre a pele por meio de cicatrizes. Em realidade, chama-se tatuagem a introdução mecânica na pele de certas substâncias colorantes que, dispostas em ordem, formam um desenho mais ou menos constante(39). Os desenhos traçados na pele mediante as cicatrizes de feridas causadas por cortes ou queimaduras denominam-se às vêzes, para diferençá-los das tatuagens, manha, palavra australiana(40 ). As tribos que praticam o desenho cicatricial não usam geralmente a tatuagem, e vice-versa. Mas, por que umas tribos preferem o desenho cicatricial e outras a tatuagem? Isto é fácil de compreender se se levar em conta que o desenho cicatricial está difundido entre os povos de pele escura e a tatuagem entre os de pele clara. Com efeito, se se corta a pele de um negro e se retarda artificialmente a cicatrização, de modo que a ferida se torne purulenta, o pigmento destruído pela formação do pus não se restabelece, o que dá lugar, ao fim de contas, ao aparecimento de cicatrizes brancas(41). Essas cicatrizes, que se destacam claramente sôbre a pele negra, permitem adorná-la com tôda a classe de desenhos. Por isso, as tribos negras podem contentar-se com o desenho cicatricial, tanto mais que os adornos feitos com a tatuagem não se destacam tão bem sôbre a pele negra. As tribos de pele clara encontram-se em outra situação. As cicatrizes não são tão atrativas sôbre o fundo da pele, mas esta, em troca, oferece melhores condições para a tatuagem. Vemos, pois, que nesse caso tudo depende da côr da pele. Mas essa circunstância ainda não nos explica a origem dos costumes do manha e da tatuagem. Que necessidade tiveram as tribos negras de fazer desenhos na pele por meio de cicatrizes, (39) Cf. Joest, obra cit., p. 8. (40) Cf. a comunicação de M. Haberlandt: Ueber die Verbreitung und den Sinn der Tätowierung, no tomo XV de Mitteilungen der Anthropologischen Gesellschaft in Wien. (41) V. as explicações de Von Langer na assembléia mensal da Sociedade de Antropologia de Viena, de 10 de fevereiro de 1885. ( Mitteilungen der Anthropologischen Gesellschaft in Wien).

e por que as tribos de pele clara consideraram necessário tatuar-se?(42). Os índios de algumas tribos da América do Norte representam, mediante tatuagem na pele, seus supostos antepassados do mundo animal(43). E os índios brasileiros da tribo dos bacairis fazem na pele dos filhos desenhos com pontos e pequenos círculos para que a mesma fique parecida a pele do jaguar, animal considerado como fundador da tribo(44). 0 curso seguido pelo desenvolvimento neste caso é muito claro: primeiro, o selvagem desenhava na pele certos sinais, e depois, por assim dizer, começou a gravá-los. Pois bem. Para que faziam isso? No que concerne à imagem do suposto fundador da tribo, a resposta mais lógica é a seguinte: o desejo de pintar ou gravar na pele tal imagem surgiu no selvagem sob a influência de sua veneração pelo fundador da tribo ou de seu convencimento de que existia uma relação misteriosa entre êste e seus descendentes. Em outros têrmos: é muito lógico supor que a tatuagem surgiu como produto de um sentimento religioso primitivo. Se tal hipótese fosse certa, deveríamos dizer que a vida baseada na caça deu origem à mitologia venatória, a qual, por sua vez, foi a base de um dos tipos de ornamentação primitiva. Isto, como é natural, longe de estar em contradição com a concepção materialista da história, constituiria uma brilhante ilustração para a tese de que o desenvolvimento da arte tem uma relação causai — ainda que nem sempre direta — com o desenvolvimento das fôrças produtivas. Mas esta hipótese, que à primeira vista parece tão natural, não se acha plenamente confirmada pelos resultados da observação. Os peles-vermelhas da América do Norte gravam ou desenham a imagem do suposto fundador da tribo em suas armas, piráguas, cabanas e inclusive nos utensílios domésticos(45). Pode-se afirmar que tudo isso o fazem por considerações de ordem religiosa? Creio que não. Poderíamos dizer que, ao proceder assim, fazem-no guiados simplesmente pelo desejo de indicar que tais objetos pertencem aos (42) Para facilitar, usarei o termo tatuagem para designar os dois tipos de ornamentação da pele, recorrendo a uma terminologia mais exata ùnicamente nos casos em que o exija a necessidade de evitar confusões. (43) J. G. Frazer, Le Totémisme, p. 43. (44) P. Ehrenreich, Mitteilungen -über die zweite Xingu Expedition in Brasilien, "Zeitschritf für Ethnologie", 1890, vol. XXII.

(45) Frazer, obra cit., p. 45.

membros dessa gens. Sendo assim, é de supor, do mesmo modo, que a índia brasileira que pinta a pele do filho à semelhança da do jaguar, deseja simplesmente representar suas relações de parentesco. Essa representação das relações de parentesco do indivíduo, que pode ser-lhe útil na infância, como por exemplo no caso de um rapto, é visivelmente indispensável quando êste chega à sua maturidade sexual. Sabe-se que entre os povos primitivos existe um complicado sistema de normas que regulam as relações entre os sexos. A infração dessas normas é castigada com rigor, pelo que se fazem determinadas marcas na pele dos adolescentes que chegaram à madureza sexual. Os filhos de mães que carecem de tab marcas se consideram ilegítimos, e em alguns lugares matam-nos(46). Compreende-se, portanto, que os jovens, ao alcançarem a madureza sexual, desejam ser tatuados, apesar da dor que lhes ocasiona tal operação(47). Mas, naturalmente, isto não é tudo. Tatuado, o selvagem não só representa suas relações de parentesco, mas, poderíamos dizer, tôda sua vida. Eis como Heckewelder descreve a tatuagem de um velho guerreiro pele-vermelha: "No rosto, no pescoço, nos ombros, nos braços, na pernas, assim como no peito e nas espáduas trazia reproduzidas várias cenas, ações e combates em que havia tomado parte. Em uma palavra, tôda sua vida estava no corpo"(48). E não é só a vida pessoal; a tatuagem reflete também a vida de tôda a sociedade, ou pelo menos todas as relações existentes em seu seio. Não falo já de que a tatuagem das mulheres se distingue sempre da tatuagem dos homens. Inclusive, a tatuagem dêstes não é sempre a mesma. Os ricos tratam de diferençar-se dos pobres; os senhores, dos escravos. Pouco a pouco chega-se, de acordo сот. o princípio da antítese, a que as pessoas de situação mais elevada deixam de tatuar-se, (46) J. S. Kubary, Das Tätowieren in Mikronesien , Speciell auf den Carolinen, no já citado livro de Joest, Tätowieren, etc. p. 88. ( 47 ) "The girls ... are always anxious to have this ceremony performed" ("As jovens sempre anelam por que se realize esta cerimônia"). Eyre. Nas Ilhas Carolinas, "sobald das Mädchen Umgang mit Männern pflegt, trachtet sie, die unentbehrlich "telengekel" — Tätowierung zu erwerben, weil ohne diese kein Mann sie ansehen würde " ("a jovem em estado núbil esforça-se por conseguir que lhe façam a tatuagem exigida ("telengekel"), sem o que nenhum homem olhará para ela"), Kubary, obra cit., p. 75. (48) Obra cit., p. 328. 182 George Plekhanov

para se distinguirem mais nitidamente da massa (49). Em uma palavra, o jesuíta Lafitau tinha tôda a razão quando dizia que os diferentes sinais "gravados" na pele pelos índios norte-americanos lhes servem de "escrita e de apontamentos"(50). E se essa "gravura" chegou a ser um costume geral, isso se deveu a sua utilidade prática, e inclusive a seu caráter necessário na sociedade primitiva. O selvagem viu primeiro a utilidade da tatuagem, e só depois — muito mais tarde — começou a experimentar um prazer estético à vista da pele tatuada. Por conseguinte, e de acordo com Haberlandt(51), rechaço categoricamente a idéia de que a tatuagem fôsse inicialmente um adorno. Mas, com isto não resolvo a questão de qual foi precisamente essa utilidade prática, pela qual o caçador primitivo começou a usá-la. Estou firmemente convencido de que a necessidade de recorrer à "escrita e lembranças" contribuiu extraordinariamente para a difusão e arraigamento do costume de "gravar" na pele certos sinais. Mas, tal costume teria surgido também em virtude de outras causas. Von den Steinen acredita que sua origem tem por base as incisões praticadas na pele até hoje pelos curandeiros selvagens, com vistas a reduzir a inflamação. Em seu excelente livro Unter den Naturvölkern Brasiliens, tantas vezes citado, reproduz a imagem de uma mulher da tribo dos iatahyes, em cuja pele foram feitas incisões com fins exclusivamente terapêuticos. Nada mais fácil que confundir essas incisões com as que fazem os índios brasileiros como adorno. Ë bem possível, por conseguinte, que a tatuagem se tenha desenvolvido a partir da prática cirúrgica primitiva, e que unicamente mais tarde tenha chegado a desempenhar o papel de certidão de nascimento, de documento de identificação, de "lembrança", etc. Em tal caso, compreender-se-ia perfeitamente a razão por que a "gravação" da pele vá acompanhada de ritos religiosos, pois os médicos e cirurgiões primitivos são freqüentemente também bruxos e feiticeiros. Mas seja o que fôr, é evidente que tudo quanto sabemos acêrca da tatuagem não faz senão confirmar a justeza da regra geral que acabo de citar: a atitude utilitária frente aos objetos precedeu à atitude estética. (49) Cr. Joest, obra cit., p. 27. (50) Moeurs des Sauvages Américains, t. I, p. 44. ( 51 ) Cf. comunicação retromencionada em "Mitteilungen der Anthropologischen Gesellschaft in Wien".

O mesmo observamos em outros ramos da ornamentação primitiva. No princípio, o caçador matava pássaros, assim como outros animais, para alimentar-se com sua carne. As partes dos animais mortos que não podiam servir de alimento nem satisfazer outras necessidades — peles, bicos, dentes e unhas de animais selvagens — serviam, em troca, como testemunho ou espécie de etiqueta de sua força, valor ou habilidade. Por isso, o caçador começou a cobrir o corpo com peles, a fixar chifres na cabeça, a pendurar garras e dentes no pescoço, e inclusive a enterrar penas nos lábios, no pavilhão da orelha ou no nariz. Ao fazer isso, não só o guiava o desejo de jactar-se de sua sorte, mas atuava também outro "fator": o afã de mostrar capacidade de resistência à dor física, o que constitui, naturalmente, uma qualidade muito valiosa em um caçador, que por acréscimo é também guerreiro. "Ao carregar seu Kleinod (52) no orifício praticado no nariz, no lábio ou na orelha — observa com razão Von den Steinen — o jovem deve parecer a si mesmo muito mais valente do que se usasse simplesmente um cordão"(53). Dêsse modo, pouco a pouco se foi desenvolvendo e afirmando o costume de perfurar o nariz e as orelhas, e a não observância do mesmo devia exercer um efeito desagradável sôbre o sentimento estético do caçador primitivo. O fato seguinte demonstra a que ponto é procedente essa suposição. Gomo já disse, os povos civilizados, durante suas danças, usam amiúde máscaras que representam animais. Von den Steinen encontrou entre os índios brasileiros muitas máscaras que representavam aves, inclusive peixes(54). Mas veja você que ao reproduzir, por exemplo, o desenho de um pombo, o índio brasileiro não se esquece de cravar-lhe uma pena no bico; é evidente que a doce "paloma" lhe parece mais bonita adornada com êsse troféu de caçador. Quando o troféu do caçador começa a despertar um sentimento agradável, à margem de qualquer consideração сопяciente acêrca da fôrça ou habilidade do caçador que se enfeita com êle, então se converte num objeto de prazer estético, adquirindo uma grande significação substantiva sua côr e forma. Os peles-vermelhas norte-americanos costumavam trazer na ca(52) (53)

Alfaia. Von den Steinen, obro cit., p. 179.

(54) Von den Steinen, obra cit., p. 305. 184 George Plekhanov

beça enfeites sumamente belos, feitos de penas de pássaros de vivas côres(55). Nas Ilhas da Sociedade, as penas vermelhas de uma ave da Polinésia constituíam importantíssimo artigo de comércio(56). Podem citar-se numerosíssimos exemplos como êste, mas todos êles devem ser considerados como fenômenos secundários originados das condições essenciais da vida baseada na caça. Por uma causa perfeitamente compreensível, isto é, pelo fato de que a caça não é uma ocupação feminina, as mulheres nunca carregam troféus. Mas o hábito de carregar troféus de caça nas orelhas, nos lábios ou no nariz originou'o costume de perfurar essas partes do corpo com ossos, pedacinhos de pau, palhas e até pedra. O batoque brasileiro teve, evidentemente, origem nesse tipo de adornos. E como êstes não se achavam obrigatoriamente ligados a uma ocupação exslusivamente masculina — a caça — não houve obstáculo a que a mulheres também o usassem. E mais. E muito provável que tenham sido precisamente as mulheres que introduziram o costume de usá-los. Na tribo africana dos bongos, todas as mulheres casadouras perfuram o lábio inferior e introduzem no orifício um pedacinho de pau. Outras perfuram também o nariz, em que colocam uma palha (57). Êsse costume surgiu, certamente, em uma época em que se não conhecia a elaboração dos metais e em que as mulheres, desejosas de imitar os homens, mas sem direito a se enfeitarem com troféus de guerra ou de caça, desconheciam ainda os adornos de metal. A elaboração dos metais abriu um nôvo período na história da ornamentação. Os adornos metálicos foram deslocando aos poucos aos que procediam da caça (58). Os homens e as mulheres começaram a cobrir as (55) Schoolcraft, cap. III, p. 67. Já mostrei em minha primeira carta que o enfeite predileto dos peles-vermelhas do oeste norte-americano são as garras do urso cinzento. Êsse fato denota claramente que os adornos venatórios primitivos são uma exigência da habilidade" do caçador, do mesmo modo que os cabelos cortados são testemunho de sorte militar. (56) Ratzel, Völkerkunde, II, p. 141. (57) Schweinfurth, obra cit., I, pp. 281-284. (58) Diga-se de passagem que êsses enfeites se distinguem por sua grande durabilidade; encontramo-los nas civilizações antigas do Oriente, nas vestes sacerdotais e dos reis. Os reis assírios, por exemplo, usavam coroas ataviadas de penas, e alguns sacerdotes egípcios cobriamse durante as cerimônias religiosas com peles de tigre.

extremidades do corpo e o pescoço com colares de metal. As penas, os pedacinhos de pau com que perfuravam os lábios, о nariz e as orelhas, foram substituídos por aros e brincos metálicos. As belas da citada tribo dos bongos costumam furar o nariz com tuna argola de ferro, de forma análoga à que fazem os europeus com os touros bravos(59). Argolas idênticas usamnas muitas mulheres da Senegâmbia(60). As mulheres da tribo dos bongos usam brincos às dúzias, para o que não só perfuram o lobo da orelha em vários pontos, mas todo o pavilhão. "Podem encontrar-se algumas elegantes — diz Schweinfurth — cujo corpo aparece enfeitado dêsse jeito em muitos lugares." Não há proeminência do corpo ou prega da pele em que se não encontrem orifícios(ól). Mas do anel do nariz não há senão um passo para o anel que atravessa o lábio superior, isso é, o pelele(62) de que falamos na primeira carta. Quando o velho chefe macololo dizia a Davi e Carlos Livingstone que as mulheres de sua tribo usam o pelele para se fazerem belas, tinha razão a seu modo, ainda que, é claro, não podia explicar por que o anel que atravessava o lábio superior era considerado pelos membros da tribo como um objeto de beleza. Em realidade, a explicação reside nos gostos herdados da época em que a vida se baseava puramente na caça e que posteriormente se modificaram de acordo com o nôvo estado das fôrças produtivas. A meu ver, êsse estado das fôrças produtivas explica também a circunstância de que no nôvo período o homem já não impede que a mulher use os mesmos atavios que êle(63). A (59) Schweinfurth, obra cit., I, p. 284. Ê curiosa a circunstância de que o uso de argolas de ferro no nariz se deixa à livre escolha das negras elegantes, ao passo que o uso de um pauzinho atravessado no lábio inferior é obrigatório para tôdas as mulheres da tribo dos bongos, detalhe que nos mostra que o segundo costume é mais antigo que o primeiro. (60) Bérenger-Féraud, Les Peuplades de la Sénègambie, Paris, 1879, p. 187. (61) Obra cit., t. I, p. 284. (62) Argola metálica ou de bambu (ver p. 93). N. do T. (63) Enquanto na tribo macololo, о pelele era um adômo especificamente feminino, às margens do Rovuma, Livingstone viu-o também nos lábios dos homens (Explorations du Zambèse, Paris, 1866, pp. 109 e 110). Isso nos mostra que o chefe macololo se enganava ao supor que о pelele era para as mulheres um substituto dos bigodes. Do mesmo modo, os anéis que atravessam o nariz estão longe de ser em todos

pena cravada no nariz ou no pavilhão da orelha testemunha a habilidade do caçador, e ao homem agradava vê-la usada pela mulher, que nunca se havia dedicado à caça. Mas os enfeites de metal não eram símbolo de habilidade, e sim de riqueza, e o rico proprietário, movido por vaidade, procurava fazer com que o maior número possível de enfeites dêsses gênero fosse usado pela m u l h e r , que então, e em muitos lugares, era cada vez mais propriedade sua. "Creio — diz Stanley — que, quando Chumburi ( u m régulo africano) adquiria certa quantidade de arame de cobre, ordenava imediatamente que o fundisse para transformá-lo em colares destinados a suas esposas. Calculei, aproximadamente, que todas as suas mulheres carregavam no pescoço até cêrca de oitentas libras de cobre, suas seis filhas não menos de cento e vinte e suas escravas-concubinas cêrca de duzentas. Acrescentem-se a isto as seis libras de arame de cobre necessárias para enfeitar pernas e braços de cada u m a de suas mulheres e filhas, e ver-se-á que Chumburi possuía em adornos femininos u m a reserva de perto de mil trezentas e noventa e seis libras de c o b r e ( 6 4 ) . os lugares um enfeite exclusivamente feminino; "assim, por exemplo, em alguns lugares do alto Niger os saracóis e bambaras (de ambos os sexos) costumam usar anéis metálicos que atravessam o tabique nasal" ( Bérenger-Féraud, obra cit., p. 384). O gôsto pelos atavios de metal tem às vêzes conseqüências inesperadas. Na tribo pastoril africana dos hereros, os ricos revestem as pernas de anéis de metal, e "a moda etxige que, ao caminhar, o homem se incline fortemente para um lado e outro, como se lhe custasse muito esforço o erguer as pernas" (Eliseu Reclus, NouveUe Géographie Universelle, t. XIII, p. 664). (64) A travers le Continent Mystérieux, Paris, 1879, t. II, p. 321. A submissão da mulher não deixa de ter influência sôbre o crescimento da população. Entre os macololos, "...les vieillards opulents, dont le bétail est nombreux, épousent toutes les belles filles . . . Les jeunes gens dépourvus de bétail, cest-à-dire sans fortune, sont obligés ae se passer d'épouse ou de se contenter de laiderons qui ne trouveraient pas d'homme riche. Cet état de choses est probablement la source d'une grande immoralité; et les enfants sont en petit nombre". (".. . os velhos opulentos cujo gado é numeroso, tomam por esposas tôdas as jovens bonitas . . . Os jovens que não possuem gado, isto é que não têm riqueza, ficam sem espôsa ou devem contentar-se com as feias que não encontraram marido. Tal estado de coisas dá origem, provavelmente, a uma rande imoralidade, razão por que o número de filhos é diminuto"). David et Charles Livingstone, obra cit., pp. 262-263). Tinha razão o escritor alemão (referência a Marx — N. do T.) que disse que as leis abstratas da multiplicação só são válidas para os animais e as plantas. Mas é de supor que esta acertada idéia, oomo outras, também

Vê-se, pois, que o adorno feminino se foi desenvolvendo e modificando sob a influência de vários "fatores", mas observe você que todos êles surgiram em parte unicamente como resultado de certo estado de desenvolvimento das fôrças produtivas da sociedade primitiva (um dêsses "fatores" foi, por exemplo, a submissão da mulher pelo homem), e em parte, em sua qualidade de elementos permanentes da natureza humana, atuavam precisamente de um modo e não de outro, em virtude da influência direta da "economia". Assim, ocorreu, por exemplo, com a vaidade, que impelia os homens a se vangloriarem dos ricos atavios das mulheres, como se fossem outras tantas qualidades espirituais análogas dos sêres humanos. O fato de que o gosto pelos enfeites de metal só tenha aparecido depois que os homens começaram a trabalhar os metais, não precisa ser demonstrado. O costume de usar adornos de metal ou imposição de que esposas e escravas o fizessem, obedecia ao desejo de fazer alarde de riqueza; isto também é evidente, e se fôsse preciso, poder-se-ia encontrar muitos exemplos que o demonstrassem. Mas não pense você que se não possam achar outras razões que tenham levado os homens a usar enfeites. Ao contrário, é bem possível que a princípio êsses adornos — por exemplo, os aros de metal nos braços e nas pernas — fossem usados em virtude de certas conveniências práticas; posteriormente, foram usados, ademais, como ostentação de riqueza, e paralelo a isso se foram formando, gradualmente, os gostos dos homens, de modo que as extremidades ataviadas com aros de metal começaram a parecer bonitas. A atitude ante os objetos, do ponto de vista de sua utilidade precedeu também, nesse caso, a atitude ante êles do ponto de vista do prazer estético. Talvez pergunte você que conveniências práticas envolvia o uso de aros de metal. Não me comprometo a enumerá-las tôdas, mas assinalarei algumas delas. Em primeiro lugar, já conhecemos o grande papel que desempenha o ritmo nas danças primitivas. As batidas cadenciadas dos pés no chão e as pancadas rítmicas servem em tais casos para marcar o compasso. Mas os dançarinos primitivos será rejeitada pelos senhores que se impuseram a meritória tarefa de "rever" sua doutrina. A "revisão" consiste em abandonar uma após outra essas teorias e substituí-las pelas teorias dos economistas burjgue» ses. Os senhores que se dedicam à "revisão" "progridem" para trás.

não se contentavam com isso. Para conseguirem o mesmo efeito, amiúde penduram ao pescoço grinaldas inteiras de objetos vários que fazem ruído. Em ocasiões — como ocorre, por exemplo, entre os cafres bassutos — tais objetos são saquitéis de couro seco cheios de pedrinhas(65). Naturalmente, podem ser substituídos com grande vantagem por objetos de metal. Os aros de ferro colocados nas pernas e nos braços podem desempenhar muito bem o papel de soalhas metálicas. E, efetivamente, vemos que êsses mesmos cafres bassutos se põem a dançar deliciadamente ao som de tais aros(66). Muito bem. Percutindo umas contra as outras, essas argolas emitem sons metálicos, não só ao dançar, mas também no ato de andar. As mulheres da tribo dos niam-niam trazem nas pernas um tão grande número de argolas, que sua marcha sempre se acompanha de um som que se ouve de longe(67). Êsse som, ao marcar o compasso, facilita a marcha, razão que pode explicar ter sido êste um dos motivos que deram origem ao uso de argolas: é sabido que na África os carregadores negros penduram às vêzes, na carga que conduzem, campainhas que os estimulam com sons constantes e cadenciados(68). 0 som rítmico dos aros metálicos também devia aliviar, sem dúvida, muitos labores femininos, como por exemplo, a moedura dos grãos no pilão(69). Esta também foi, provàvelmente, uma das causas iniciais de seu uso. Em segundo lugar, o costume de usar argolas nas pernas e nos braços precedeu o emprêgo de enfeites de metal. Os hotentotes fabricavam aros de marfim(70). Outros povos primitivos faziam-nos, às vêzes, de pele de hipopótamos. Esse costume se conservou até nossos dias na tribo dos drinkas, apesar de que, como sabemos, através da primeira carta, essa (65) Les Bassoutos, par E. Casalis, Karis, 1859, p. 158. Entre os índios da Guiana, os corifeus levam às vêzes hastes de bambu cheias de pedrinhas, com as quais batem no solo, provocando um som que regula os movimentos aos dançarinos. R. H. Schomburgk, Reisen in Guiana und am Orinoko, Leipzig, 1841, p. 108. (66) Casalis, ibid., p. 158. O brilho das argolas também tem, certamente, sua importância nesse caso, pois destaca nitidamente os movimentos dos dançarinos. (67) L'Afrique Centrale, Expéditions. .. par le Colonel C. ChaiU le-Long, Paris, 1882, p. 282. (68) Burton, obra cit., p. 620. (69) Casalis, obra cit., p. 150. Na primeira carta, eu havia assinalado essa circunstância, embora por outro motivo. (70) Ratzel, Völkerkunde, t. I, p. 91. Carta» S em Enderêço 189

tribo passa agora, segundo a expressão de Schweinfurth, por uma autêntica idade de ferro. Nos começos, tais argolas teriam podido ser usadas com o fim prático de proteger as extremidades inferiores da ação de ervas espíneas(71). Quando se iniciou e consolidou a elaboração dos metais, os aros de couro e osso foram substituídos aos poucos por argolas de metal. E como estas últimas se converteram em símbolos de riqueza, nada há de extraordinário que as argolas de osso e de couro começassem a ser enfeites menos refinados(72). Êsses enfeites refinados começaram a parecer também menos belos, seu aspecto era já menos agradável do que as argolas metálicas, afora qualquer consideração de ordem utilitária. Dêsse modo também, em tal caso, o praticamente útil precedeu ao esteticamente agradável. Finalmente, as argolas de ferro, ao cobrir as extremidades dos membros dos guerreiros — sobretudo os braços — protegiam-nas durante os combates dos golpes do adversário, e por isso, lhes eram úteis. Os guerreiros da tribo africana dos bongos cobrem os braços com aros de ferro, desde o punho até o cotovelo. Êsse adorno, denominado danga-bor, pode ser considerado como um rudimento da couraça de ferro (73). Vê-se, pois, que se alguns objetos de metal foram perdendo pouco a pouco seu caráter de objetos úteis e se converteram em objetos que provocavam, por seu aspecto, prazer estético, isso se deveu à ação dos "fatores" mais diversos, mas nesse caso, como nos demais examinados antes por mim, alguns dos fatores originaram-se, por seu turno, do desenvolvimento das fôrças produtivas; outros só puderam atuar dêsse modo, e não de outro qualquer, precisamente porque as fôrças produtivas da sociedade se encontravam em grau de desenvolvimento e não em qualquer outro. (71) Queira observar que não se trata de anéis para os dedos, mas de pulseiras para os braços e pernas. Já sei que falar de "pulseiras" para as pernas é um absurdo, mas neste momento não encontro outra expressão. (72) Cf. Schweinfurth, obra cit., t. I, pp. 150-151. Na tribo dos ukonju está muito difundido o costume de usar nos braços e pernas argolas de casca de palmeira. Mas os mais notáveis da tribo, em vez de tais argolas, usam outras, metálicas, que certamente já são consideradas mais bonitas, (v. Stanley, Dans les Ténèbres de Г Afrique, t.

И, p. 262).

(73) V. descrição em Schweinfurth, obra cit., t. I, p. 271. 190 George Plekhanov

Em 1885, o famoso Inama-Sternegg pronunciou na Sociedade de Antropologia de Viena uma conferência sôbre "as idéias político-econômicas dos povos primitivosna qual, entre outras cousas, perguntava: "Apreciam (os povos primitivos) os objetos que ostentam como adorno por que têm certo valor, ou pelo contrário, tais objetos têm certo valor unicamente por que servem de adorno?"(74). 0 conferencista não se atreveu a dar resposta categórica à pergunta. E seria difícil fazê-lo, dado o modo totalmetne equívoco da mesma. Antes de tudo, seria mister definir se se trata de valor de uso ou valor de troca. Se nos referimos ao valor de uso, então poderemos dizer com segurança que os objetos utilizados pelos povos primitivos, como adorno, primeiramente foram considerados úteis ou serviram de atributo das qualidades de seu possuidor, úteis para a tribo; e somente mais tarde começaram a parecer belos. O valor de uso precede o valor estético. Mas quando êsses objetos adquirem certo valor estético aos olhos do homem primitivo, êste trata de adquiri-los, tendo em conta unicamente êsse valor, esquecendo-se de sua gênese, inclusive sem mesmo pensar nela. Quando surge a troca entre tribos diferentes, as alfaias constituem os padrões mais importantes, e então a capacidade dêsses objetos de servir de adorno é em certas ocasiões (ainda que "nem sempre) o único motivo psicológico de sua aquisição pelo comprador. Quanto ao valor de troca, êste, como se sabe, é uma categoria histórica que se desenvolve muito lentamente e da qual os caçadores primitivos — por razões muito fáceis de compreender — têm uma idéia sumamente confusa, razão por que as proporções quantitativas em que se trocam os objetos são, a princípio e em sua maior parte, aleatórias. Se o estado de desenvolvimento das fôrças produtivas de que dispõem os povos primitivos determina a ornamentação própria dêsses povos, o caráter dos enfeites usados por uma tribo deve indicar por sua vez o estado de desenvolvimento de suas fôrças produtivas. E assipi é, efetivamente. Eis um exemplo: Os negros niam-niam preferem sobretudo os enfeites de dentes humanos e de feras. Os dentes de leão são sumamente apreciados, mas, pelo visto, a procura é maior do que a oferta, por cuja razão os niam-niam usam imitações de dentes de leão feitas de marfim. Schweinfurth diz que os colares feitos de (74)

Mitteilungen der Anthropologischen Gesellschaft

in Wien.

Carta» Sem EtuUréço 101

marfim sobressaem extraordinariamente sôbre a pele negra. Mas você compreenderá que o mais importante no caso não é o contraste de côres, mas o fato de que os pedacinhos de marfim representam precisamente dentes de leão. £ não hesitará você em responder, aos que lhe perguntarem, que gênero de vida levam os negros niam-niam. Com tôda segurança, e sem vacilar, dirá você que vivem da caça. £ responderá certo. Os homens dessa tribo são fundamentalmente caçadores, e não renunciam ao prazer de provar também carne humana. Não desconhecem a agricultura, mas essa ocupação se deixa a cargo das mulheres(75). Mas êsses mesmos niam-niam usam, também, como sabemos, enfeites de metal. Isso constitui um considerável avanço em comparação com outras tribos de caçadores, como os australianos e os bacairis brasileiros, que não usam atavios de metal. Mas que pressupõe êsse adiantamento na ornamentação? Pressupõe um adiantamento prévio das forças produtivas. Outro exemplo: os pisa-flôres(76) da tribo dos fans enfeitam os cabelos com penas de côres brilhantes, pintam os dentes de negro (princípio da antítese: o desejo de se contraporem aos animais, que sempre têm dentes brancos), trazem sôbre os ombros uma pele de leopardo ou de outra fera e penduram à cinta um grande punhal. Âs elegantes da mesma tribo andam nuas, mas em troca seus braços estão ataviados de pulseiras de cobres e ostentam no cabelo numerosas miçangas brancas (77). Existe alguma relação causai entre êsse tipo de adorno e as forças produtivas de que dispõe a tribo dos fans? Não somente existe, mas é evidente. Âs alfaias masculinas são típicas de um caçador. Os enfeites femininos — as miçangas e as pulseiras — não têm relação direta com a caça, mas se obtêm em troca de um dos produtos mais valiosas da caça: o marfim. O homem não tolera que a mulher se enfeite com troféus cinegéticos, mas em troca dos produtos de suas caçadas adquire para ela adornos confeccionados por tribos (ou povos) cujas forças produtivas se encontram em um nível superior de desenvol(75) (76) (77) toriale, p.

Cf. Schweinfurtb, obra cit., t. II, pp. 5, 7, 9, 15 e 16. Pisaverdes, no original (N. do T). Cf. Du Chaillu, Voyages et Aventures dans l'Afrique Êqua163.

vimento, o qual determina, portanto, os gostos estéticos de sua cara-metade(78). Terceiro exemplo: os habitantes da parte setentrional da Ilha Ubvari, no Lago Tanganica (África) usam uma espécie de capas de casca de árvore, preparadas de tal modo que parecem peles de leopardo. As pulseiras metálicas, que as tribos vizinhas ostentam, só são usadas pelas esposas dos ricos, enquanto as pobres se contentam com pulseiras de casca de árvore. Finalmente, em lugar dos arames de metal, que nas tribos vizinhas se utilizam para segurar o penteado, as mulheres dessa tribo usam ervas. Que tem a ver tudo isto com as forças produtivas dos habitantes da Ilha Ubvari? For que pintam seus mantos para imitar a pele de leopardo? Pois na ilha não há leopardos, e não obstante, a pele dêsse animal é considerada como o melhor ornamento para o guerreiro. As particularidades do meio geográfico fizeram mudar, por conseguinte, o material com que se confeccionam as capas, mas não puderam modificar os gostos estéticos, segundo os quais se elabora dito material (79). O mesmo meio, e devido a outra de suas particularidades — a ausência de metais na ilha — impediu a difusão dos atavios de metal entre seus habitantes, mas não pôde impedir que surgisse o gôsto pelos mesmos, pois ali já o usavam as esposas dos ricos. 0 que em outros lugares acontece mais rapidamente, ali em virtude das referidas particularidades do meio geográfico se produz mais lentamente, mas tanto num lugar quanto noutro o desenvolvimento dos gostos estéticos é paralelo ao desenvolvimento das forças produtivas, pelo que em um e em outro lugar o estado de desenvolvimento daqueles é um expoente certo do estado de desenvolvimento destas. Mais de uma vez eu disse que na sociedade primitiva baseada na caça, a técnica e a economia nem sempre determinam diretamente os gostos estéticos. Freqüentemente, entram em ação (78) Como na sociedade primitiva o homem tem em grande aprêço os troféus de caça e de guerra, resulta amiúde ser êle mais conservador em seus adereços do que a mulher, pois esta não tem nada que perder. (79) Uma pergunta que não carece de interêsse: foram êsses gostos herdados dos antepassados que viveram em lugares povoados por feras, ou os habitantes da Ilha Ubvari cederam nesse caso à influência dos vizinhos, que até hoje se dedicam à caça? Não sei qual destas duas suposições é mais verossímil, mas sei que nenhuma delas está em contradição com o que afirmo.

numerosos e variados "fatores" intermediários. Contudo, uma relação causai mediata não deixa de ser uma relação causai. Se no caso, A dá origem diretamente a C, noutro o origina através de B, ao que previamente deu origem, acaso se deduz disso que С não deve sua origem a A? Se um costume qualquer foi engendrado, seja o caso de uma superstição ou vaidade ou o desejo de atemorizar o inimigo, essa circunstância não nos explica ainda qual a procedência do costume. Em que pese a isso, teremos que perguntar se a superstição que deu lugar ao hábito não era uma superstição própria dêsse gênero de vida — por exemplo, a vida baseada na caça — e se não dependia do estado de desenvolvimento das fôrças produtivas da sociedade e de sua economia o modo pelo qual o homem satisfazia sua vaidade ou atemorizava os inimigos. Pois bem. Basta apresentar esta pergunta para que a lógica irretorquível dos fatos no obrigue a responder afirmativamente.

QUINTA

CARTA

Pintura e Escrita Primitivas Viu você alguma vez reproduzidos os pentes que usam, por exemplo, os índios do Brasil Central ou os papuas da Nova-Guiné? Tais pentes são pura e simplesmente alguns pauzinhos amarrados. Como se fora o primeiro grau de desenvolvimento dos pentes. . . Sua evolução ulterior é já uma tabuinha em que se fixam os dentes: os pentes que, por exemplo, usam os negros monbutu e os eafres borotsá. Nesse grau de desenvolvimento, os pentes são enfeitados, às vêzes, com grande esmêro. Mas o que distingue, pronunciadamente, sua ornamentação é a série de linhas paralelas entrecruzadas que se traçam nas tabuinhas e que, evidentemente, representam as ataduras que anteriormente serviram para unir os pauzinhos com que se formavam os pentes. 0 enfeite é, nesse caso, uma representação do que antes se usava com fim utilitário. A atitude ante o objeto, do ponto de vista de sua utilidade, precedeu a atitude ante êle do ponto de vista do prazer estético. O que vemos no caso dos pentes, pode observar-se também em outros variados exemplos. Sabe você, naturalmente, que a pedra serviu ao homem primitivo como material para preparar armas e instrumentos de trabalho. Talvez saiba também que, a princípio, os machados de pedra não tinham cabo. A arqueologia pré-histórica demonstra convincentemente que o cabo era uma invenção bastante complicada e difícil para o homem primitivo e que sua aparição corresponde a um período relativamente tardio da época quaternária( 1 ). De comêço, o cabo era mantido unido ao machado mediante ligaduras mais ou menos sólidas. Mais tarde, essas ligaduras mostraram-se desnecessárias, pois os homens (1)

Ver G. de Mortillet, Le Préhistorique, Paris, 1883, p. 257. Carta» Sem Enderêço 195

aprenderam a unir sólida e firmemente o machado ao cabo, sem ter que recorrer às mesmas. E então se prescindiu das ligaduras, mas no lugar que ocupavam apareceu sua representação em forma de uma série de linhas paralelas entrecruzadas, que se usavam como adôrno(2). O mesmo aconteceu com outros utensílios, cujas partes, que de comêço se mantinham juntas mediante ataduras, principiaram a ser unidas de outro modo. E também eram enfeitados com a representação das ligaduras indispensáveis de outros tempos. Dêsse modo, surgiram os atavios geométricos, que ocupam tão importante lugar na ornamentação primitiva e que podem encontrar-se nos utensílios da época quaternária(3). O ulterior desenvolvimento das forças produtivas deu nôvo impulso ao desenvolvimento dêsse tipo de adornos. Nisso, desempenhou um papel extraordinário a olaria. Sabe-se que a esta precedeu o trançado. Os australianos continuam até hoje sem saber fazer recipientes de barro e se contentam com o material trançado. Quando surgiram os objetos de barro, começou-se por lhes dar forma e aspecto dos recipientes trançados, que antes eram de uso geral, e a desenhar na superfície séries de linhas paralelas, análogas às que já me referi ao falar dos pentes. Tal ornamentação do vasilhame de barro, cuja aplicação se inicia desde os primeiros passos da olaria, continua tendo ampla difusão, inclusive entre os povos mais civilizados. Também são muitos os motivos ornamentais proporcionados pela arte de tecer. Os frutos de muitas plantas, como o do cabaceiro, também foram empregados e continuam sendo usados até hoje pelo homem primitivo como recipientes. Para maior facilidade de transporte, tais recipientes eram amarrados por correias de couro e plantas fibroses.

Quando os homens aprenderam a trabalhar os metais, nos objetos de barro, ao lado das linhas retas, começaram a surgir outras, curvas, por vêzes muito complicadas. Em uma palavra, aqui o desenvolvimento da ornamentação estava ligado de modo estreito e evidente ao progresso da técnica primitiva, ou em outros têrmos, ao desenvolvimento das forças produtivas. (2) Êsses enfeites podem ver-se também nos machados poünésíos reproduzidos no livro de Hjalmar Stolpe, Entwicklungserscheinungen in der Ornamentik der Naturvölker, Wien, 1892, pp. 29-30. . (3) G. de Mortillet, obra cit., p. 415. 196 George Plekhanov

Claro está que o uso de formas geométricas ou têxteis de ornamentação não se reduz necessariamente ao vasilhame de barro. Também são aplicadas aos objetos de madeira e inclusive de couro(4). Em geral, uma vez que aparecem, rapidamente adquirem grande difusão. Em seu informe apresentado na Sociedade Antropológica de Berlim sôbre a segunda expedição ao Rio Xingu, Ehrenreich diz que na ornamentação dos aborígenes "todos os desenhos feitos de figuras geométricas são em realidade representações simplificadas, e em parte até estilizadas, de coisas muito concretas, m» maioria dos casos, animais(5). Assim, a linha ondulada, rematada de ambos os lados de pontos, representa uma serpente; a figura romboidal com os ângulos sombreados, um peixe, e o triângulo eqiiilátero é, por assim dizer, a representação do traje nacional das índias brasileiras, que, como se sabe, não é mais, todo êle, que uma variante da célebre wfolha da parreira"(6). 0 mesmo acontece na América do Norte. Holmes mostrou que as figuras geométricas que recobrem os recipientes dos índios norte-americanos representam peles de animais. O vaso de barro da Senegâmbia, que se conserva na "Maison des Missions", de Paris, está adornado com a figura de uma serpente, pelo que se pode ver muito bem como os desenhos que representam peles de animais podem converter-se em figuras geométricas{7). Finalmente, se você tiver ocasião de ver a obra de Hjalmar Stolpe, (4) Ver o desenho de uma garrafa argelina d e p e l e de camelo à página XVIII do prefácio de R. Allier ao livro de Christol — Au Sud de l'Afrique. (5) Zeitschrift für Ethnologie, p. 89. (6) Essa variante da folha de parreira chama-se uluri. Quando Von den Steinen desenhava triângulos eqüiláteros diante dos índios bacairis, êstes riam e exclamavam: uluri! Von den Steinen observa, não sem ironia: "Der Lehrer der Geometrie braucht heute gewiss nicht mehr an einem Uluri besonders Vergnügen zu haben damit er einen Dreieck konzipieren könne. Das Uluri ist so eine Art Archéoptéryx der Mathematik" ("Agora o professor de geometria não necessita, naturalmente, para poder desenhar um triângulo, de haver experimentado o prazer especial do uluri. O uluri é, por conseguinte, uma espécie de arqueópterix das matemáticas"). Unter den Naturvölkern Zentral-Brasiüens , p. 270. (7) Ver pág. XXI do citado prefácio de R. Allier. Depois de assinalar que a ornamentação mais simples do último período da época quaternária consta de "linhas retas", que formam diferentes combinações, Mortillet observa que "atrás dêsses adornos sumamente simples vem uma série de linhas onduladas e outros frutos da fantasia" \Le

Entwicklungserscheinungen in der Ornamentik der Naturvölker (Viena, 1892), queira prestar atenção às páginas 37-44 e encontrará um surpreendente exemplo de desenvolvimento gradual de uma figura geométrica, a partir de outra que representa um homem(8). Pode-se dizer que a ornamentação dos australianos ainda não foi estudada em absoluto. Mas pelo que sabemos da ornamentação de outros povos, podemos supor, com fundamento, que as séries de linhas que enfeitam seus escudos representam também peles de animais(9). Diga-se de passagem, as linhas que adornam as armas dos australianos têm, por vêzes, outra significação: representam cartas geográficas (10). Pode parecer estranho e até inverossímil, mas se lembre de que os yucagiros da Sibéria também desenham mapas análogos(ll). Os homens que vivem da caça e levam uma vida nômade necessitam muito mais de tais mapas do que o necessitavam, por exemplo, nossos camponeses agricultores dos velhos tempos, que às vêzes não saíam nunca dos limites de seu distrito. E a necessidade cria mestres. Ela ensinou o caçador primitivo a desenhar mapas; ela foi também a que ensinou outras artes, que igualmente são desconhecidas de nossos camponeses agricultores: a pintura e a escultura. Efetivamente, o caçador primitivo Préhistorique, p. 415). Depois do que foi dito, pode-se duvidar, com muita razão, ae que tenhamos que ver-nos, neste caso, com frutos da fantasia. As linhas onduladas da época quaternária tiveram certamente uma significação mais ou menos igual à que têm hoje as dos índios brasileiros. (8) Segundo Stolpe, na ornamentação dos povos primitivos freqüentemente "rein lineare Ornamente von Menschen oder Tierfiguren hergeleitet sind. Die Pflanzenwelt — acrescenta. — scheint merkwürdigerweise bei den exotischen Naturvölkern ein viel geringeres Material zur Stilisierung geliefert zu haben" (p. 23). ("os ornamentos puramente geométricos tiveram sua origem em figuras que. representavam o homem e os animais. Em troca, o mundo vegetal, por estranho que pareça, proporcionou, pelo visto, aos povos primitivos muito menos material para as estilizações* ). Sabemos já em que medida êsse fenômeno realmente notável está ligado ao desenvolvimento das fôrças produtivas da sociedade primitiva. (9) Ver Anfänge der Kunst, de Grosse, pp. 118-119. (10) Grosse, obra cit., p. 120. (11) Ver V. I. Iojelson, Por los Rios Y asáchnaia y Korkodón. 198 George Plekhanov

é quase sempre, a seu modo, um hábil e às vezes apaixonado pintor e escultor. Von den Steinen diz que a ocupação vespertina predileta dos aborígenes que o acompanhavam em sua viagem era desenhar na areia diferentes animais e cenas da vida cinegética(12). Os australianos não ficam atrás, relativamente aos índios brasileiros. São afeiçoados ao mister de talhar desenhos na peles do canguru, — com as quais se defendem do frio — e com cascas de árvore. Philipp viu perto de Port Jackson muitas figuras que representavam armas, escudos, homens, pássaros, peixes, lagartos, etc. Tôdas essas figuras haviam sido talhadas nas rochas, e algumas constituem uma prova de que a mestria dos artistas primitivos era bastante alta(13). Grey encontrou na costa norte-ocidental da Austrália figuras que representavam pés, mãos e outras partes do corpo humano talhadas nas rochas e nos troncos das árvores. Os desenhos eram bastante maus, mas no curso superior do Glenelg encontrou várias grutas cujas paredes estavam cobertas de desenhos muito bem feitos(14). Alguns investigadores crêem que êsses desenhos não são obra de australianos, mas de alguns malaios que por vêzes costumam chegar àquelas paragens para comerciar. Mas, em primeiro lugar, é difícil aduzir em favor dessa hipótese provas decisivas(15). £ em segundo lugar, aqui não nos importa em absoluto saber quem fêz os desenhos que se encontram nas grutas do Glenelg. Bastanos a convicção de que aos australianos é prazeroso fazer tais desenhos, ainda que sejam mais toscos. E a êsse respeito não há a menor dúvida. A mesma cousa foi observada entre os bosquímanos, que desde muito tempo são famosos por suas pinturas e baixos-relevos. Fritsch viu em rochas situadas perto de Hopetow milhares de figuras de diferentes animais. Nas grutas habitadas pelos bosquímanos, Hutchinson encontrou numerosos exemplos rupestres. Höbner viu no Transval centenas de figuras talhadas pelos bosquímanos nos esquistos argilosos(ló). Em alguns pontos, os desenhos dos bosquímanos representam animais isolados; outras (12) Obra cit., p. 120. (13) Waitz-Gerland, Anthropologie der Naturvölker, sechster Teil, Leipzig, 1872, p. 759. (14) Obra cit., pp. 760, 761 e 762. Ver em Anfänge der Kunst, de Grosse, p. 159 e seguintes, a reprodução dêsses desenhos. (15) Ver argumentos contra, na referida obra de Grosse, p. 162 e seguintes. (16) Grosse, obra cit., p. 173.

vêzes, reproduzem cenas inteiras, como a caça ao hipopótamo ou ao elefante, homens disparando flechas ou combatendo o inimigo(17). Tem merecida fama o fresco achado em uma gruta próxima a Hermon e que representa um grupo de bosquímanos roubando gado aos cafres matabeles{ 18). Pelo que sei, ninguém manifestou dúvidas quanto à origem dêsse fresco: todos reconhecem que foi pintado precisamente pelos bosquímanos. Б dificilmente poder-se-ia duvidar disso, pois todos os negros vizinhos dos bosquímanos sâo maus desenhistas. Mas, as indubitáveis aptidões artísticas dos bosquímanos, por todos reconhecidas, constituem nôvo argumento a favor da hipótese de que os desenhos descobertos por Grey nas grutas situadas às margens do Glenelg pertencem a artistas australianos, pois sob o aspecto cultural êstes quase se não distinguem dos bosquímanos. Os pescadores-caçadores polares também mostram grande inclinação pelas artes plásticas. Os esquimós e os chukckes enfeitam as armas e instrumentos de trabalho com desenhos de pássaros e outros animais, que se distinguem por sua grande naturalidade. Mas, nãó se limitam a isso, e representam cenas inteiras que, como é lógico, são tomadas integralmente ao único gênero de vida que conhecem: a pesca e a caça(19). As obras escultóricas dos esquimós são realmente admiráveis (20). Nenhuma das tribos que vivem na atualidade pode comparar-se com êles. Apenas poderiam competir dignamente com os esquimós, provàvelmente, as tribos que povoaram a Europa Ocidental em fins da época quaternária. Essas tribos, que não conheciam a cria do gado nem a agricultura deixaram numerosos monumentos de sua arte sob forma de gravuras e produções escultóricas. A exemplo das atuais tribos caçadoras, basearam quase exclusivamente sua atividade artística nos temas tomados ao mundo animal. Mortillet não conhece senão dois casos de representação de vegetais. Dos animais, desenhavam fundamental mamíferos, e dêstes, com mais freqüência, renas (que então se encontravam por tôda a Europa Ocidental) e cavalos (que ainda não haviam sido domesticados); (17) Ver a reprodução dêsses desenhos no livro de F. Christol, Au sud de l'Afrique , pp. 143, 145 e 147. (18) Ver sua reprodução na citada obra de Christol, pp. 152 e 153. (19) Lubbok, Les Origines de la Civilisation, Paris, 1887, p. 38. (20) Ver sua representação em Anfänge der Kunst, de Grosse, pp. 180, 181 e 182.

seguem-se os urus, as cabras monteses, as camurças, os cervos, os mamutes, os javalis, as raposas, os lobos, os ursos, os linces, ás martas, os coelhos, etc. Em resumo, como diz Mortillet, tôda a fauna dos mamíferos de então.. . (21). Ë lógico perguntar em qual das fases seguintes de seu desenvolvimento, em que condições históricas e por que causas a arte se faz pela primeira vez idealista. Essa questão tem sido muito mal explicada até agora pela ciência. Voltarei a ela pròximamente. Dissera eu que a necessidade ensinou o caçador primitivo a pintar e a esculpir. Vejamos, pois, quais foram seus processos pedagógicos. Os índios da América do Norte recorrem com grande freqüência, para comunicar e intercambiar suas idéias, aos escritosdesenhos ou, como diz Schoolcraft, ao picturewriting. As idéias expressas por êsse modo referem-se à caça, à guerra e a outras relações de tipo habitual. Por conseguinte, os escritos-desenhos têm para êles um fim puramente prático, utilitário. O mesmo acontece com êste tipo de escritos na Austrália. "Austin achou no interior do continente africano, em umas rochas próximas a um arroio, desenhos de patas de canguru e de mãos humanas, com o evidente propósito de mostrar que os homens e os animais iam beber naquele arroio"(22). As já mencionadas figuras vistas por Grey na costa norte-ocidental da Austrália e que representavam diferentes partes do corpo humano (braços, pernas, etc.) também haviam sido desenhadas, provavelmente com o fim puramente utilitário de notificar algo aos companheiros ausentes. Von den Steinen conta que em certa ocasião encontrou na areia às margens de um rio do Brasil um desenho que representava um peixe pertencente a uma das espécies locais. Por ordem de Von den Steinen, os índios que o acompanhavam atiraram a rêde e retiraram vários exemplares pertencentes à espécie desenhada na areia(23). Ë evidente qeu ao fazer tal desenho o índio havia querido comunicar a seus companheiros que naquele lugar havia peixes daquela espécie. Mas, naturalmente, não são êstes os (21) O manuscrito está interrompido nesse ponto. (Nota de Ediciones en Lenguas Extranjeras, de Moscou). (22) Waitz-Gerland, Anthropologie der Naturvölker , p. 760. A representação de mãos humanas encontra-se também nos monumentos de arte da época quaternária (Mortillet, obra cit., pp. 365 e 473-474). Ë possível que tais representações também fôssem então simples escritosdesenhos. (23) Unter den Naturvölkern Zentral-Brasüiens, p. 248.

únicos casos que justificam a necessidade de os aborígenes utilizarem essa classe de escritos-desenhos. Tal necessidade era sentida por êles com muita freqüência; constantemente tinham que recorrer aos "escritos-desenhos", o que indica que êstes deveriam ser um dos produtos iniciais de sua vida de caçadores. "Pareceme — diz com fundamento V. I. Iojelson — que os rudimentos da expressão gráfica e fonética das idéias e dos sentimentos teriam surgido ao mesmo tempo. Inclusive no mundo animal vemos rudimentos de escritura. As pegadas orientam o lobo até o cervo. Êste comunica àquele, com suas patas, que passou por determinado lugar, bem como o caminho seguido. Na vida do caçador primitivo tinha grande importância o que os animais escreviam com as patas, e a marca podia ser o protótipo da escrita. Em uma tribo caçadora, como a dos yucagiros, a importância das "pegadas" se refletiu também em sua linguagem. No idioma dos yucagiros, cada verbo tem três conjugações. Uma delas, a que dei o nome de conjugação de evidência, exprime uma ação que se deduz por seus sinais. Por exemplo, se pelas marcas encontradas no bosque sabe alguém que por ali passou determinada pessoa, e em chegando a casa, quer contar a seus familiares, em russo teria que dizer: pelo rastro se vê que tal pessoa estêve no bosque; mas no idioma dos yucagiros a mesma coisa será dita com apenas uma palavra, que se distingue da forma verbal corrente "estêve" ùnicamente pelo sufixo jäl. Vemos, por conseguinte, que inclusive as formas da linguagem se acham em relação de dependência a respeito das "marcas". Portanto, a marca pode ter servido de modêlo para o uso de sinais conscientes no ato de comunicação a distância. Pois bem: a princípio, êsses sinais foram simples imagens do objeto ou da idéia representados por êles, e a exatidão da imagem estava estreitamente vinculada à arte(24). Assim, pois, na sociedade dos caçadores primitivos, a escrita era ao mesmo tempo pintura, e a vida baseada na caça tinha, lógica e necessàriamente, que despertar, fomentar e manter os instintos e as aptidões dos pintores primitivos(25). E assim é em. . . aptidões, e, naturalmente, come(24) Ver V. I. Iojelson, obra cit., pp. 33-34. Ver também pp. 34-35, pelas quais se vê a grande importância que tinha para os yucagiros tal gênero de escrita, dados os contínuos traslados próprios de sua vida nômade, em que tinham que saber escrever ante o temor de uma caçada infeliz. (25) As crianças australianas que chegam a estudar em escolas destinadas a europeus costumam revelar grandes aptidões para o dese-

Çou a utilizá-las, não apenas para a luta direta pela existência. Os yucagiros também recorrem à escrita para suas declarações amorosas(26). Tal luxo, que sequer está hoje ao alcance da maioria de nossos camponeses, aparece como simples e natural conseqüência da vida baseada na caça. Outra conseqüência, igualmente simples e natural, é que o homem primitivo adorna suas armas, instrumentos de trabalho e até o próprio corpo com figuras de animais(27). À medida que se vão estilizando, os desenhos dêsse gênero vão perdendo o aspecto original e com freqüência, devido a seu caráter em aparência totalmente abstrato, constituem o deleite dos investigadores idealistas. À estreita relação causai entre a ornamentação primitiva e as condições de vida baseada na caça não foi esclarecida até os últimos tempos, mas na atualidade essa ornamentação deve ser incluída entre os testemunhos mais convincentes a favor da concepção materialista da história. Segundo observa com extraordinário acêrto Von den Steinen, na palavra alemã zeichnen manifesta-se claramente a vinculação das origens da arte do desenho na sociedade primitiva. Essa palavra é, evidentemente, uma derivação do vocábulo Zeichen — sinal. Von de Steinen crê que os sinais destinados a comunicar algo são mais antigos que o desenho. Estou completamente de acordo com êle, pois — como sabe você — tenho o pleno convencimento de que a atitude ante os objetos (e também, claro está, ante as ações), do ponto de vista da utilidade precedeu a atitude ante êles do ponto de vista do prazer esténho. Semon observa que essa circunsância nada tem de estranho: "Denn auch die Alten sind Meister im Lesen aller der Zeichen, die das Wild auf flüchtiger Spur dem Boden, den Gräsern und Bäumen aufgedrückt hat. Ebenso geschickt sind sie aber auch, sich gegenseitig durch absichtlich hervorgebrachte Zeichen zu verständigen . Es gibt Stämme die darin geradezu Bewunderungswürdiges leisten" ("Também os adultos são mestres em decifrar todos os sinais, que ao passar, deixam as feras na terra, na esrva e nas árvores. Com a mesma habilidade se entendem entre si mediante sinais traçados para êste fim. Há tribos que sob êste aspecto realizam verdadeiros prodígios"). Im australischen Busche, p. 242.

(26) Iojelson, obra cit., p. 34. (27) Na Nova-Zelândia, a tatuagem chama-se Moko, que quer dizer lagarto, serpente. (Ratzel, Völkerkunde, vol. II, p. 137). É evidente que de comêço a tatuagem se limitava à representação dêsses animais. Sua imagem estilizada foi certamente a Dase daquelas figuras "geométricas" com que começaram os neozelandeses a se adornar.

tico. " 0 prazer causado pela imitação na imagem — acrescenta Von den Steinen — que condicionou todo o desenvolvimento ulterior, foi de certo modo a causa atuante também desde о comêço"(28). Em uma das próximas cartas veremos se efetivamente "todo" o desenvolvimento ulterior da pintura teve como causa determinante o prazer causado pela imitação na imagem. Mas é evidente que se essa imitação não houvesse produzido qualquer prazer, a pintura não teria passado da etapa dos sinais destinados a comunicar algo. O prazer foi sem dúvida, nesse caso, um elemento indispensável. Todo o problema reside em saber por que o prazer causado pela imitação na imagem se fêz sentir com tanta fôrça nos caçadores europeus da época quaternária, nos australianos e nos bosquímanos, nos esquimós e yucagiros, desenvolvendo em todos êles uma grande afeição pela pintura, e por que exerceu tão pouca influência, como por exemplo, entre os negros africanos habituados desde muito à agricultura. Só se pode dar uma resposta satisfatória a esta pergunta assinalando o diferente caráter da atividade produtiva dos povos caçadores e dos povos agricultores. Já vimos a grande importância que têm os escritos-desenhos na vida dos caçadores primitivos. Êsses escritos surgiram como uma condição do êxito na luta pela existência. Mas ao fazer sua aparição, necessariamente deveriam orientar em determinado sentido êsse afã de imitação que se estriba nas qualidades da natureza humana, mas que segue um ou outro desenvolvimento, segundo as condições que rodeiam o homem. Enquanto o homem primitivo vive da caça, seu afã de imitação torna-o, entre outras coisas, pintor e escultor. A causa é bem compreensível. Que necessita para ser pintor? Necessita capacidade de observação e habilidade manual. Isto é, exatamente as mesmas qualidades que necessita possuir como caçador. Sua atividade artística é, portanto, uma manifestação das mesmas qualidades que nêle desenvolve a luta pela existência. Quando a passagem para a cria do gado e a agricultura concorre para mudar as condições da luta pela existência, o homem primitivo perde em grau considerável a inclinação e a aptidão para a pintura que o distinguem no período da vida baseada na caça. "Ainda que o agricultor e o criador de gado estejam muito acima do caçador — diz Grosse — acham-se abaixo dêle em matéria de artes plásticas, o que mostra, entre outras coisas, que a relação entre a arte e a cultura não é tão (28) Obra cit., p. 244. 204 George Plekhanov

simples como supõem alguns filósofos." E o mesmo Grosse explica muito bem as causas dêsse fato, tão estranho à primeira vista: o atraso artístico dos povos de pastores e agricultores. "Nem os agricultores nem os pastores — diz — têm necessidade de tal desenvolvimento da capacidade de observação e da habilidade manual, razão por que, nêles, essas aptidões passam a segundo plano e com elas também o talento para criar imagens fiéis à natureza"(29). Não se pode dizer nada mais certo. Unicamente, é preciso levar em conta que a passagem à criação do gado e à agricultura... (30).

(29) Anfänge der Kunst, p. 190. (30) Aqui se interrompe o manuscrito (Nota de "Edidones Lenguas Extranjeras).

en

BIOGRAFIA DO AUTOR Teórico russo do marxismo, Georgy Valentinovich Plekhanov (1857-1918) aderiu ao movimento populista ilegal em 1875, enquanto estudante em São Petersburgo, tornando-se logo líder de movimentos trabalhistas e editor de publicações do partido. Quando em 1879 a maioria dos populistas decidiu realizar um golpe oontra o tzarismo, manteve-se fiel à minoria que apoiava o princípio de doutrinação socialista nas massas. Anos depois, entretanto, Plekhanov, então emigrado, renunciou ao populismo baseado nos instintos coletivistas do campesinato com aversão à ação política, em favor do socialismo marxista. Em seus planfletos publicados pelo Grupo Para a Emancipação do Trabalho, do qual tinha sido um dos fundadores, Plekhanov sublinhou a atitude revolucionária do proletariado; achava que só um maior desenvolvimento do capitalismo na Rússia, o que os populistas tentavam deter, fortificaria a classe operária criando as condições necessárias à realização do socialismo. A influência de Plekhanov na Rússia tornou-se aparente só em 1890 através de suas obras. As contribuições de Plekhanov à filosofia e estética marxistas deixaram em segundo plano seu papel de fundador do movimento trabalhista russo. Sua exposição sôbre o materialismo histórico é das mais lúcidas e detalhadas; nos círculos marxistas seus escritos são situados logo após os de Engels. Em sua teoria sôbre arte abriu novos caminhos. Em oposição às vulgarizações correntes de Marx, tentou passo a passo estabelecer uma ligação entre a arte e sua base econômica. Advertiu contra a tendência a minimizar a ligação entre êsses aspectos e a realidade social transformando-a numa linear reação de causa e efeito; nem pretendia tão pouco substituir a crítica estética pelos "equivalentes sociológicos" de uma produção literária ou artística, êste último sendo só o primeiro passo. Sua preocupação em esclarecer teorias levou-o a estudar os filósofos materialistas franceses do see. XVIII e sua influência sôbre Marx; para seus trabalhos sôbre crítica literária inspirou-se em Bielinki e Chershevsky, dois destacados representantes de tendência sociológica na Rússia. Sua história do pensamento russo, iniciada por uma exposição interpretativa da história social russa, foi interrompida por sua morte.

19 Este livro

foi composto e impresso na GRAFICA URUPÊS Rua Cadiriri, 1161 Fones 92-9729 92-3748 Caixa Postal 30.174 São Paulo - Brasil 1969

Related Documents


More Documents from "Aura La IloveYou"