Etica Do Novo Testamento

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ÉTICA DO NOVO TESTAMENT~ I

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Ética do Novo Testamento uma introdugáo

HEINZ-DIETRICH WENDLAND traduzido por Werner Fuchs

EDITORA SINODAL

1981

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Título do original alemão: "Ethik des Neuen Testaments. Eine Einfuhrung", publicado como volume 4 na série "Grundrisse zum Neuen Testament. Das Neuen Testament Deutsch. Erganzungsreihe", editada por Gerhard Friedrich. Copyright

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Vandenhoeck I Ruprecht, Gottingen 1970.

CONSIDERAÇ6ES SOBRE O CONCEITO DE ÉTICA

1981 Editora Sinodal Rua Epifânio Fogaça, 467

93000 - São Leopoldo

-

RS, Brasil

O conceito de ética que nos é familiar, proveniente do pensamento grego, pode ser aplicado ao Novo Testamento somente sob determinadas condições. Em nenhuma parte do Novo Testamento encontramos uma ética filosófica que se entenda como uma doutrina das normas e virtudes e se oriente segundo um conceito da razão moral, do espírito ético, do imperativo categórico ou algo semelhante. Além disso, não encontramos no Novo Testamento nenhuma análise ou legitimação ética das ordens sociais, por exemplo, do matrimônio ou do Estado, que esteja situada num contexto sistemático, se bem que haja algumas (como, p. ex., Rm 13 e I Co 7) no contexto de exortações (parêneses). Não existe, no Novo Testamento, uma filosofia cristã acerca do Estado e da sociedade. Somente mais tarde, quando, sobre o solo da Igreja primitiva, foram implantados na teologia conceitos filosóficos, tornou-se possível desenvolver pensamentos ético-sistemáticos. O Novo Testamento, no entanto, fala dos bens deste mundo e das ordens sociais somente no âmbito de parêneses, ou seja, de admoestações concretas a comunidades específicas. Nesse sentido toda a ética neotestamentária tem caráter parenético. Suas normas não são extraídas da razão, nem tampouco de um "lógos" que governa o mundo ou de um reino de idéias transcendentais, como acontece na filosofia estóica ou platônica. Por isso pcdemos traçar provisoriamente as premissas peculiares à etica do cristianismo primitivo, como seguem: 1 . Fundamental é a té numa revelação da vontade de Deus, uma revelação com a qual estão comprometidos todos os fiéis. Sobre essa fé baseia-se, por exemplo, o relato de Mateus sobre o Sermão do Monte (cap. 5-7): Jesus proclama a absoluta e definitiva vontade de Deus. No mesmo sentido também o evangelho de João (1 3, 34) fala, interpretativamente, do "novo mandamento" que Jesus dá a seus discípulos.

2. A revelação da vontade de Deus foi realizada e concluída pelo envio de Jesus Cristo. E bem verdade que ele não atua como "segundo Moisés", conforme disse Lutero com acerto, mas como reconciliador e redentor escatológico que liberta os pecadores do pecado e da morte e os conduz a uma nova vida. Todavia isso não nos deve fazer esquecer que, em todas as partes do Novo Testamento, Cristo se coloca diante da comunidade como o Senhor imperante, que exige obediência e serviço. Todos os cristãos são, segundo a compreensão de Paulo, "escravos" de Cristo. Cristo institui sobretudo o supremo mandamento do amor, do qual ainda falaremos amiúde. Podemos designar a ética no Novo Testamento "teonômica" ou "cristonômica". Ela está sempre condicionada a premissa fundamental, cristológica, de que na cruz e ressurreição de Cristo se realizou o evento decisivo para a salvagão de todo o mundo. E nesse sentido especifico que se deve falar de ética "cristã".

3. Uma terceira premissa e vinculaçao essencial da ética no Novo Testamento é a existência da Igreja. A ética neotestamentária é fund. mentalmente ética eclesiástica. Reside nisso também uma limitaçãc Todas as exortações são dirigidas a comunidades e a cristãos, s resp.:r:tivamente - antes da Páscoa, na prédica de Jesus - aqueles aos quais se anuncia a aproximação do reinado de Deus. Com a parênese, Paulo quer servir a "edificação" da comunidade. Pressupõe sempre que ela tenha sua existência a partir da fé em Cristo.

ex., na forma dos catálogos ne normas para a vida doméstica (*) ou da tradição de Rm 13. Também nos ditos de Jesus aparecem provérbios, inseridos agora num novo contexto. Sob esse aspecto a ética do Novo Testamento é aberta, e não conclusa em si. Evidentemente isso se deve a uma decisão prévia muito significativa: O que naquele tempo era considerado por todos como virtude, como comportamento louvável, como justo e benigno, isso é retido e conservado pela ética das comunidades cristãs (cf., p. ex., FI 4, 8). A ética da sociedade não é simplesmente rejeitada, mas recebe um novo prefixo, no sentido das três primeiras teses acima. Desse modo i6 no Novo Testamento nos confrontamos vivamente com a pergunta pela relação com as éticas judaica e helenista daquela era. Aqui, pois, o conceito tradicional, profano da Btica, a despeito do que afirmávamos no início, conquista seu justo lugar nas nossas considerações. Contudo as tradições adotadas constituem a moral popular cc'idiana, a ética média da sociedade da época, não uma ética repensada filosoficamente. No sentido dessas considerações preliminares deve ser entendido, no que se segue, o conceito "ética".

4. A proclamação de Cristo não é apenas fundamento mas também limite da ética. Em primeiro lugar, porque ela nunca pode ser autônoma e nunca absoluta, no sentido filosófico das palavras; pois tem validade unicamente em virtude da salvação iá manifestada. Em segunda lugar, o limite é de natureza escatológica, futura. Ética existe somente dentro do período deste mundo, até a inauguração do reino de Deus. Em outras palavras: A ética cristã vale somente para a época da Igreja. As quatro teses acima, que descrevem o caráter cristão da ética neotestamentária, não devem ser compreendidas como se a ética do Novo Testamento tivesse, por assim dizer, "caído do céu". Semelhante concepção tem por base, primeiramente, uma compreensão errônea, a saber, a-histórica da revelação e, além disso, ela simplesmente não B realista. Assim como nós e todas as pessoas que vivem historicamente, as primeiras comunidades cristãs vivem no tempo e no espaço, na Palestina e na Síria. Estão sujeitas, como tudo no rnundo, a influências históricas, tanto judaicas como helenistas, e a influgncias que procedem das mesclas de judaísmo e helenismo ocorridas nas sinagogas dispersas pelo mundo a fora. Desses âmbitos o Novo Testamento recebeu regras de conduta ética e ditos de sabedoria, p.

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N. do T.: Náo existindo no portugues um termo especifico para os trechos que a pesquisa alemá den~mina "Haurtafeln", adotaremos nesta obra o termo descritivo "catálogos de normas para a vida dombstica".

J E S U S A proclamação da aproximação do reinado de Deus como 6tica escatológica.

Nota prévia metodológica

Como Jesus não nos legou nada por escrito, encontramo-nos numa situação bem diferente para apresentar sua proclamação ética do que para relatar a de Paulo. Dependemos da tradição sobre Jesus como foi conservada e diversamente articulada nos três primeiros evangelhos. Cada um dos evangelistas fala como membro da comunidade dos fiéis e possui, além disso, uma concepção teológica pr6pria. Não há, em nenhum lugar, anotações estenográficas dos pronunciamentos de Jesus. Os evangelhos, portanto, não são relatórios históricos que nos dizem: Assim foi, isso ele fez e isso ele disse. . . Porém são testemunhos da fé da comunidade, expressos em diversas concepções teológicas que, por sua vez, procuram corresponder as diferentes situações históricas das comrinidades e aos problemas e as tarefas que a elas se apresentam. Uma premissa dos sinóticos - a decisiva - é a Páscoa e a fB pascal no Senhor ressurrecto. Unicamente através da Páscoa torna-se possível para o evangelista Falar de Jesus e considerar seus feitos e suas palavras dignas de serem relatadas e transmitidas. Que teria sido Jesus sem a Páscoa? Um fracassado, confinado ao passado, em vão seguido por alguns adeptos até o trágico desenlace. Tradição sobre Jesus existe somente a partir da Páscoa, no poder da fé pascal. Porque Jesus ressuscitou, torna-se imensamente importante para os seus saberem o que ele disse e fez. O "o que", ou seja, os conteúdos históricos de modo algum desaparecem! Os evangelistas não falam de um ser celestial nem do simples "fato" de ele ter estado presente, mas do Jesus histórico, de seus feitos e suas palavras. Mas iluminam e legitimam tudo isso a partir da Páscoa.

A primtrira comunidade, portanto, legitima e absorve a tradição corrente sobre Jesus; o que ele afirmou é válido e compromissivo para a comunidade, que se formou apenas por meio da Páscoa, e isso porque ela crê em Jesus como o Ressurrecto. Por conseguinte ouvimos nos evangelhos a vüz da comunidade que delega a si mesma e a todos os crentes dos tempos posteriores a palavra de Jesus. O Ressurrecto é o Jesus histórico de Nazaré. A respeito dele a comunidade quer ouvir, suas palavras ela transmite, porque ele é o Ressurrecto. Em síntese, ouvimos a palavra de Jesus sempre através da voz da comunidade e de seus representantes. Mas justamente através dessa mediação ela se torna atual e existencialmente significativa dentro da comunidade e para a comunidade - até o dia de hoje. Logo, podemos ler e interpretar os evangelhos de duas maneiras distintas: em primeiro lugar, compreendendo-os como a palavra da comunidade acerca de Jesus numa determinada situação histórica; em segundo lugar, procurando, mediante um exame crítico das diferentes formas de tradição, uma aproximação à palavra "verdadeira" ou original de Jesus. Nesse mister é necessário, por um lado, ter consciência da relatividade dos resultados de tal análise históricocrítica da tradição sobre Jesus. Por outro lado, porém, existe nos sinóticos um largo acervo comum que, embora tenha sido formado e trabalhado diferentemente pelas suas concepções teológicas, não foi simplesmente destruído. (A literatura para a pesquisa acerca de Jesus e dos sinóticos encontra-se em H. Conzelmann, Grundriss der Theologie des Neuen Testaments, Munique, 2.O ed. 1968 - Quanto a s questões específicas, cf. também as Introduções ao Novo Testamento de Feine-Kümmel, Heidelberg, 16.O ed. 1970 e W. Marxsen, Gutersloh, 3.a ed. 1965, bem como as obras sobre a história das formas nos evangelhos.)

A proclamação ética de Jesus seguramente tem muito pouco a ver com uma ética filosófica ou, com palavras de H. Conzelmann (Grundriss, p. 135), ética "formal". Por isso falamos de "proclamação ética". Essa "ética" é mensagem do reinado de Deus que ora se aproxima (Mc 1, 15 par.; Mt 5, 3ss). Nesse sentido ela é uma ética estritamente escatológica. Todavia devem ser excluídas aquelas regras que constituem elementos de uma ordem comunitária incipiente (póspascal), e também as instruções que já pressupõem e denotam uma certa situação de perseguição da comunidade. Por mais compreensível que seja que se tenha recorrido a autoridade de Jesus iustamente por causa das necessidades, tais instruções ou regras não podem fazer parte da proclamação ético-escatológica de Jesus propriamente dita.

E bem claro que elas resultam da situação pós-pascal das comunidades primitivas palestinense ou helenista. 1.

Reino de Deus e "meia-volta"

A proc1ama;ão ética de Jesus é idêntica à escatológica, i. é, do anúncio da aproximação do reino de Deus. Somente porque o senhorio de De~sestá irrompendo, porque esse tempo de salvação começa agora ("kairós"), pode ser formulada a exigência: "Dai meiavolta" (Mc 1, 1 5 AAt 3, 2; 4, 17). Por levar a mal-entendidos, evitaremos o empreg3 da tradução de "me-tánoia" por "arrependimento". Começou uma siwação histórica completamente nova, porque o reino de Deus está prjxirno. Com isso o momento histórico é qualificado como tempo de salvação, no sentido escatológico. Deus provoca o início do seu reinado. Nessa situação e em nenhuma outra vale a exigência: "Dai neia-volta!" É uma exigência total, pois não visa a prestação de certos atos culturais ou morais, mas a uma volta de 180 graus: adesgo total ao reinado de Deus, aceitação incondicional, obediência radical. A proclamação do reino de Deus é, em primeira e principal instânca, anúncio e adjudicação da salvação (como em Mt 5, 3ss), mas simultaneamente é também interpelação e exigência dirigidas ao agir dos homens, pois foi a eles que se abriu a nova situação. Mas eles não são submetidos a um poder coercitivo divino. Instrutiva vem c ser uma comparação com II Co 6, 2: "Eis agora o tempo sobremcao oportuno, eis agora o dia da salvação!" Essa graça os coríntios não devem recebê-la em vão. Assim, pois, o chamado também se diriçe aos cristãcs após a Páscoa. Eles se encontram no "kairós" (tempo de salvação) e devem proceder de acordo com ele. O imperativo ccncretiza uma conseqüência do anúncio da salvação. A pessoa que cuve a mensacjem é colocada numa nova posição, e isso por causa da proclamação de que Deus "assumiu o poder". 0 s "súditos", para continuar na linguagem do antigo ritual oriental de entronização, aqui empregada, são agora engajados no serviço ao novo soberano. Por isso faz parte da natureza dessa proclamação ou pregação que ela contenha também uma exigência. Apesar de que as bem aventurancas (Mt 5 , 3ss; Lc 6, 20ss) nUo falam de "meia-volta", também nelas se expressa claramente o câmbio na existência do ser humano, pois Mt 5, 7 e 9 falam de praticantes, de misericordiosos e pacificadores - eles receberão os benefícios do reinado de Deus. Trata-se aqui, portanto, de um certo conteúdo dessa "meia-volta", do qual ainda nos ocuparemos mais tarde. De qualquer modo, agora, na aproximação do reinado de Deus que tudo transforma, existem tais pessoas ativas. Surge, por assim dizer, uma nova "espécie" de pessoas, simultaneamente ouvintes e praticantes da mensagem do reino de Deus.

O chamado à "meia-volta" não é uma exigência "moral", nem no estilo da interpretação judaica da lei daquela época, nem no sentido da ética filosófica grega. Mas o elemento "transmoral" da exigência engloba também o moral, como a tradiçáo do Sermão do Monte em M t 5-7 no-lo revela com clareza: amar, ser perfeito, obedecer integralmente (Mt 5, 21ss). O paradoxo teológico que está por detrás talvez transpareça da melhor maneira nas três parábolas do perdido (Lc 15, lss). Em 15, 7 e 10 fala-se do pecador que se arrepende. f i ISSO correspondem a "meia-volta" e o retorno do filho pródigo (15,l 1 s ) . As duas primeiras parábolas, no entanto, não tratam de "meia-volta", mas do fato de se achar o que estivera perdido. No centro está, portanto, um ato de Deus que sem dúvida é ao mesmo tempo um ato do homem. Precisamente esse é o mistério e o paradoxo da "meia-volta". De acordo com Lc 5. 32 Jesus afirma aue veio isara chamar a "meia-volta" os pecadorei, e não os justos. ~katamenteassim é rompida a barreira da ética legalista. O reino de Deus não é uma recompensa pelos méritos piedosos dos fariseus e rabinos, mas a oferta da graça aos pobres e miseráveis, os quais estendem as mãos vazias em direção da salvação do reino de Deus. Esse desejo, no entanto, já é em si o ato da "meia-volta". Eles dizem sim ao que agora se aproxima e Ihes é concedido. Naturalmente isso acarreta que se cumpra a vontade do Pai celestial (Mt 7, 21ss). Os que dizem "Senhor, Senhor" são rejeitados pelo Juiz, que os designa como "praticantes da ilegalidade" não obstante terem realizado maravilhas em seu nome. O chamado de Jesus a "meia-volta" apresenta as características do incondicional e radical. Não são importantes os feitos milagrosos ou outros rendimentos máximos, mas decisivo é única e cixrlcsivamente que a pessoa se entregue totalmente ao reinado de Deus e confie nele. O caráter incondicional da exigência da "meia-volta" manifesta-se, na prática, principalmente desfazendo os vínculos sociais e históricos em que as pessoas se encontram. É preciso abandonar praticamente tudo quando se ouve o chamado a "meia-volta" (Lc 9, 57ss par.). O mandamento da piedade filial deixa de vigorar (9, 59), e não há mais tempo para a despedida (9, 61). Todos os vínculos com casa e pátria, dinheiro e bens precisam ser rompidos, quando impedem o homem a decidir-se pelo Reino de Deus. Mas não é somente isso. O principal laço, na verdade, é o vínculo da pessoa a si mesma. O homem precisa negar-se a si mesmo, sim, "odiar-se" (Lc 14, 26 par.). Essa atitude não tem nada a ver com o ódio próprio, de um cínico ou alguém desesperado da vida. Trata-se, porém, da liberdade escatológica do homem de si mesmo. Para essa liberdade ele é chamado e, concomitantemente, recebe o poder. Quem se rende total-

mente e Deus adquire a nova liberdade para consigo. O exemplo é dado pelo publicano no templo que confessa perante Deus o seu pecado (Lc 18, 3 par.). Uma ilustração do processo da "meia-volta" e, por isso, da relação do homem para com o reino de Deus é a palavra do tornar-se criança: "Se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus (= reino de Deus)" (Mt 18, 3 par.). Devemos saber receber, permitir que sejamos presenteados, como uma criança, que é inteiramente dependente de aiuda. E a atitude certa em face do reino de Deus iminente. Não há, porém, nesse texto, a mínima indicação de uma exaltação de "virtudes" especiais da criança, por exemplo, a muito discutível "inocência". Ademais, temos que afirmar que o chamado a "meia-volta" é universal, se bem que essa intenção se revele de modo total somente após a Páscoa, na prédica endereçada a todos os povos (cf. M t 28, 18s). Mas também no âmbito historicamente limitado da proclamação de Jesus ele vale para todos, aos quais se anuncia a nova mensagem da salvação. Jesus, por conseguinte, quebra as barreiras entre "justos" e pecadores, levantadas pelos piedosos. Dirige-se justamente aos pecadores, que não cumprem a lei. O reino de Deus deita por terra as barreiras que a interpretação judaica tardia estabelecera por meio da lei. Diante dele todos são iguais, a saber, todos necessitam a salvação e o perdão. Não devemos identificar a "meia-volta" com experiências de arrependimento nem reduzi-la a determinados fenômenos psicológicos. Também não é esse- o caso em Lc 15, 1 lss, o colorido relato do procedimento do filho pródigo. A "meia-volta" pode conter "arrependimento", mas há muitos que se arrependem de um ou outro ato sem jamais mudar de rumo. "Meia-volta" é, antes de tudo, obediência (cf. o item sobre o discipulado), uma obediência que se manifesta em ações. Esse traço foi ressaltado com especial clareza principalmente na formulação da tradição sobre Jesus em Mateus, presumivelmente porque na comunidade judaico-cristã a controvérsia com o judaísmo o requeria. Contudo os rudimentos para a compreensão da "meia-volta" como ação já se encontram na própria proclamação de Jesus, pois ele compartilha a antropologia do Antigo Testamento .e do iudaísmo, que entende o ser humano sobretudo como aquele que age. JB em Lc 15 notamos o caráter de gratuidade da "meia-volta". Foi J. Schniewind quem o ressaltou de maneira especialmente bela e insistente. "Meia-volta" é alegria. Uma festa de iúbilo com a reintrodução solene em todos os direitos filiais encerra o retorno do filho perdido. Alegria anima todo o reino de Deus quando um único pecador retorna (Lc 15, 7 e 10), pois a "meia-volta" é uma vitória

do reino de Deus e do amor que procura o que está perdido. No lugar da auto-segurança piedosa e moralista surge, com a "meia-volta", a auto-entrega, no lugar da perdição surge o pleno direito de filho, a participação no reino de Deus por meio do amor complacente do Pai.

2.

A lei de Deus

Considerando-se a exigência total e radical de dar meia-volta, surge logo a pergunta pela posição de Jesus frente a lei mosaica e a interpretação rabínica da lei no seu tempo. Se Jesus proclama o início do reinado de Deus, não devem mudar, então, a importância e o significado da lei? Pode ela ser ainda a última revelação da vontade de Deus, de validade exclusiva? A ética judaica no tempo de Jesus indaga pelos atos que são neLessários para corresponder a lei de Deus e fazer do homem um "justo" ("díkaios"). Assim, o jovem rico pergunta a Jesus: "Que farei para herdar a vida eterna?" (Mc 10, 17ss par.), sendo remetido por Jesus aos mandamentos do Decálogo. É uma pergunta judaica e (inicialmente) também uma resposta judaica, a qual pressupõe a vigência da lei mosaica como a vontade revelada de Deus. Jesus de modo algum rejeita a pergunta pelo que fazer. Na pergunta ele está de acordo com o judaísmo. Tanto mais precisamos ponderar que para o judeu a lei é o caminho para a salvação e a vida. Andar nos caminhos da lei torna a pessoa como Deus a quer, correspondendo a sua exigência de justiça. Ainda é possívei, porém, que a lei seja caminho de salvação, ou melhor, caminho para a justiça exigida por Deus, quando o reino d e Deus se aproxima? Essa é agora a questão, na qual em última análise também está radicada a doutrina de Paulo acerca da lei, sua mensagem de liberdade diante da lei. (Em Rm 2, 17ss Paulo descreveu magistralmente o orgulho do judeu pela lei.) Todavia Jesus não se ocupa apenas com a lei de Moisés, mas sobretudo com a tradição da progressiva interpretação da lei, pois os rabinos se viam obrigados a atualizar a lei mosaica e adaptá-la a novas situações. Com inumeráveis mandamentos e proibições, essa tradição atinge um volume extraordinário. Por meió de &tis prescrições ela regulamenta a vida cotidiana até nas minúcias mais insignificantes. Segundo a concepção rabínica, todas as interpretações e ampliações da lei são legitimadas pela autoridade de Moisés. A primeira vista, a atitude de Jesus perante a lei parece ser extremamente contraditória. Em primeiro lugar, ele reconhece lei e tradição como sendo compromissivas e válidas. Já vimos como ele reage à pergunta do

rico. Diante da mesma pergunta por parte de um mestre da lei, Jesus replica: "Que está escrito na lei? Como interpretas?" (Lc 10, 26). Jesus evita, outrossim, o contato com os pagãos, corno a lei o prescreve. Isso se reflete também sobre a instri~çãodada aos discípulos no Sermão Missionário, a saber, de não tomarem o rumo aos gentios (Mt 10, 5). Do mesmo modo Jesus se atém a ordem litúrgica, ao culto judaico (Mc 1, 21s par.). Contudo o reconhecimento da autoridade dos mestres da lei e a ordem: "Fazei e guardai tudo o que eles vos disserem" (Mt 23, 1s) provavelmente foram uma formulação extremada da comunidade judaico-cristã após a Páscoa. A ela também devem ser atribuídas as palavras em Mt 5, 17-19, de acordo com as quais não se dissolverá nem um i ou til da lei aié o fim do muodo. Um caso diferente, porém, encontramos em Mc 1, 44: Jesus envia o leproso curado ao sacerdote, a fim de que ofere;a o sacrifício pela purificação. Assim Jesus reconhece a ordem jurídico-cultual. No evangelho de Marcos não se pode notar nenhuma predominância de tendências judaico-cristãs, visto que a situação histórica do autor e sua concepção teológica do Evangelho e da pessoa de Jesus, a sua cristologia, apontam em outra direião do que a teologia judaico-cristã de Mateus. Por isso temos que considerar Mc 1, 44 provavelmente como uma tradição que não foi influenciada pela luta em torno da lei, travada entre os iudaico-cristãos. Em segundo lugar e em contradição a isso, no entanto, Jesus faz uma distinção sumamente crítica, sim, comparada com a concepção judaica, uma distinção revolucionária entre a vontade de Deus e as tradições dos escribas e fariseus. "ínvalidastes a palavra de Deus pela vossa própria tradição" (Mc 7, 13). Na disputa sobre a santificação do sábado Jesus desrespeita a ordem vigente, pois importa fazer o bem e salvar vidas. A santificação do sábado, até então obrigatória, não deve impedi-lo (Mc 3, l s s par.). Evidentemente existe, portanto, uma vontade superior de Deus que deve ser cumprida a revelia das leis para o sábado. O mesmo vale para a questão do jejum (Mc 2, 18ss par.). A resposta com uma ilustração tem, ao que parece, um sentido escatológico: Os convidados nupciais não podem jejuar enquanto o noivo está entre eles. Surgiu uma nova situação. Por isso "ninguém põe vinho novo em odres velhos" (Mc 2, 22). A observação tirada da experiência diária recebeu, aqui, um significado escatológico; ern outras palavras: O início do tempo da salvação modifica a posição perante a lei, liberta da lei. A liberdade, portanto, já está contida na proclamação do reino de Deus por Jesus, apesar de ter sido Paulo quem, mais tarde, desenvolveu teologicamente de modo genial toda a dialética desse tema (cf. cap. ill, item 2). A mulher que há dezoito anos estava atormentada pela doença, é curada por Jesus num sábado, não obstante ser proibidc trabalhar no sábado (Lc 13, 10ss). Do

mesmo modo, na disputa com os fariseus, Jesus responde afirmativamente a pergunta, por ele próprio formulada, se é lícito curar no sábado ou não (Lc 14, lss). O sábado foi estabelecido por causa do homem, e não o homem por causa do sábado (Mc 2, 27 par.). São investidas contra a interpretação rabínica da lei, as quais necessariamente tinham que ser interpretadas por eles como ação contra a lei de Deus. Razão por que surge uma profunda dissidência nesse ponto. Contudo Jesus não critica somente a prática do sistema construído pelos rabinos, mas também a própria lei de Moisés. Na discussão sobre o puro e o impuro (Mc 7, l s s par.) Jesus dirige o ataque contra os "preceitos dos homens", os quais se observam, enquanto o mandamento de Deus é negligenciado (7, 8). É uma diferenciação crítica que atinge profundaniente, pois a legislação de pureza está radicada no Antigo Testamento, na lei de Moisés. A partir daqui já podemos compreender por que mais tarde, no cristianismo prirriitivo, a legislação cultual judaica não tem mais nenhuma importância. E a divisão entre coisas "puras" e "impuras" que Jesus elimina. Com isso, porém, cai por terra todo o sistema de lavagens e purificações cultuais e das proibições de não tocar isso e aquilo. Unicamente o que sai do homem, a maldade do coração, o contamina (Mc 7, 15.17s~). Anulada está, pois, a velha separação entre sagrado e profano. Sem dúvida alguma são atacadas, desse modo, a própria lei e a autoridade de Moisés. Naturalmente seria simples demais afirmar que Jesus colocou no lugar do comportamento cultual um comportamento moral. Seria uma alternativa moderna que não deve ser aplicada aos nossos textos. Para Jesus trata-se da "radicalização" da lei (R. Bultmann), da vontade de Deus pura, incondicional, que transcende também a lei mosaica. Igualmente seria uma simplificação ilícita afirmar que Jesus se opõe à tradição, mas não a lei. Nas antíteses de M t 5, 21ss uma nova autoridade entra em cena: "Eu, porém, vos digo:. . ." Ela está em contradição ao que foi dito aos antigos, sem que fossem anulados mandamentos tais como "não matarás". O agir do homem contra Deus é perseguido até as últimas recâmaras do coração, radicalizando-se, assim, a lei. A simples aversão contra o próximo é má (Mt 5, 22). Independentemente de como seja respondida a controvertida questão da legitimidade do "chamado do Salvador" em M t 11, 28-30, certo é que aqui foi corretamente entendida uma intenção da ação e pregação de Jesus: Ele retira dos homens uma carga imensa, "meu jugo é suave e meu fardo é leve". Mas em última análise está em questão não o simples ser libertado, mas que se obedeça realmente a vontade de Deus. Obviamente é possível que haja nisso uma necessária "eticização" do agir. Reconcilia-te primeiro

com teu irmão e então faze a tua oferta sobre o altar (Mt 5, 23s). Com o adversário no tribunal é preciso fazer acordo enquanto ainda houver tempo (5, 25). Da mesma maneira é evidente a radicalização da proibição do adultério (5, 27s). Tudo isso representa uma superação e radicalização da lei pela escatologia. Em Mc 10, l s s par. Jesus toma posição frente a legislação mosaica do divórcio, contra a possibilidade da carta de divórcio. Moisés a prescreveu somente em vista da dureza do coração humano. Jesus, no entanto, retorna ao "princípio da Criação", a história da Gênese: Deus criou homem e mulher e os designou para se tornarem "uma só carne", razão pela qual o matrimônio não deve ser dissolvido (Mc 10, 6s). Novamente é invalidada a regulamentação humana. Na questão, porém, é instrutivo especialmente o retorno ao agir do Criador. ~ ã será ó que essa abertura em direção da vontade e instituição do Criador tem algo a ver com a proclamação do reino? Acreditamos que somente ela liberta de novo o olhar para a Criação. Apenas com a inauguração do reinado de Deus é possível afirmar: Foi Deus quem criou isso e assim quis! A escatologia descerra a "protologia" i. é, o falar das "primeiras coisas" da Criação. Afasta-se todo obscurecimento da vontade do Criador. Após todas as exposições acima, surge naturalmente a pergunta se Jesus tem direito de falar assim. A essa pergunta todos os três evangelistas respondem "sim", sendo que cada um fundamenta o sim com a sua cristologia. Mas, deixando de lado as cristologias particulares e sistematizadas dos evangelistas, vemos que, em todos os casos, existe no agir de Jesus uma cristologia indireta, implícita, a saber, na sua reivindicação de ter autoridade para falar e agir dessa forma. Jesus reinvidica para s i estar articulando a vontade de Deus de modo claro, puro e incondicional. Contudo pode-se entender mal o que acabamos de dizer, e falar de Jesus como o "novo legislador". Mas semelhante cargo não existe na nova situação salvífica escatológica. Portanto, Jesus de fato não é nenhum "segundo Moisés". Indistintamente se o judaísmo esperou para o futuro uma "lei do Messias" ou não - uma questão que não podemos investigar aqui é certo que, em sua concepção do Sermão do Monte, Mateus expressou claramente que o anunciador do reino de Deus proclamou, conjuntamente, também a vontade definitiva e genuína de Deus. Assim, reletivizou-se a autoridade de Moisés. Por isso não há dúvida de que - segundo Mateus - Jesus se coloca acima de Moisés. Evidentemente o judaico-cristão Mateus estava existencialmente interessado nessa problemática. Lucas, no entanto, não deparou mais com esse problema do confronto direto com a interpretação da lei pelo judaísmo devoto. Não ocupava mais um lugar central na sua pregação a pergunta pela justiça "melhor", i. é, a justiça perfeita e

que supera toda a iustiça judaica (Mt 5, 20). Para Lucas ela h6 tempo havia sido decidida. É uma questão de fé se Mateus tomou a decisão correta e se n6s nos submeteremos com ele ao "eu, porém, vos digo". Será necessário partirmos da pregação escatológica de Jesus referente ao reino. Em virtude do advento do reino de Deus a lei mosaica recebe um valor completamente diferente do que até então, no judaismo. Ela não é mais a revelação definitiva de Deus. No "kairós" do tempo de salvação a "verdadeira" vontade de Deus é entendida e descerrada de forma radical. Por isso se exige uma justiça nova, melhor (Mt 5, 20). Na nova situação a exigência decisiva e conclusiva somente pode ser: "Buscai em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas" (a saber, as coisas terrenas que os homens necessitam; M t 6, 33). Esse é o novo mandamento de Jesus, porque resulta da prédica da iminência d o reino de Deus. Veremos no trecho sobre o mandamento do amor (item 3) que ele ainda possui outra forma. Aquelas partes da lei que correspondem à justiça d e Deus, como os mandamentos do Decálogo, permanecem em vigor. Também o ouvinte da nova mensagem do reino de Deus não deve roubar nem matar. Contudo isso são proibições, dadas para proteger a comunidade dos homens. Agora é preciso que elas sejam radicalizadas, e a ética de Jesus precisa transcender para o positivo a forma negativa do Decálogo. Surge, simultaneamente, um conceito radical do mal: O mal situa-se no centro da pessoa, no coração, e corrompe a partir dali todo o agir. A árvore má produz maus frutos (Mt 7, 17ss). Por isso a exigência da "meiavolta" também precisa ser radical (veja acima). Tão certo como Jesus não falou pessoalmente de um "novo mandamento", tão certo é também que a intenção do mesmo está contida em M t 5, 2 1 s . A continuação em M t 5, 43ss, sobre o mandamento do amor, deixa transparecer tal intenção ainda mais nitidamente. Mais tarde João a resumiu, acertando bem o conteúdo, na fqrmula do "novo mandamento" (Jo 13, 34; 15, 12). Portanto, a versão judaico-cristã em M t 5, 17-19, que fala do "cumprimento" da lei e visa a livrar Jesus da suspeita de que ele seja um destruidor da lei, acerta somente um lado da questão. A "moralidade transmoral" de Jesus (P. Tillich) radicaliza e revoluciona a lei a partir de Deus. Nesse sentido permanece válida a afirmação de que Jesus não foi nenhum legislador. Com o advento do reinado de Deus começa uma existência nova, escatológica. Aqui há mais do que Moisés! Anúncio da salvação e exigência perfazem uma unidade indissolúvel. Separados um do outro, perdem o significado. Nisso reside uma etapa preliminar para a fundamentação teológica do imperativo

dada mais tarde por Paulo. A mensagem do reino de Deus atinge o Iiomem com uma ponta, a qual consiste. na exigência radical. Mas precisamos empenhar-nos, a seguir, para constatar o conteúdo da mesma.

3.

O mandamento do amor

Jesus deu pessoalmente uma resposta a pergunta pelo conteúdo da nova justiça, tanto em Mt 5, 43-48 como nas palavras sobre o duplo mandamento do amor a Deus e ao próximo (Mc 12, 28ss): dedicação total a Deus bem como ao próximo. É verdade que houve também i-ia teologia rabínica sínteses da lei que recorriam a esses dois mandar~entos, mas somente Jesus os interpreta e aplica de forma radical: No lugar do antigo amor próprio é colocado o amor ao próximo. O cumprimento do mandamento pressupõe a mudança escatológica das coisas, pressupõe a nova existência dentro do advento do reino de Deus. Ambos os mandamentos se equiparam. Jesus na verdade não reflete sobre a forma de sua interrelação, mas a equiparacão a contém: Não há amor verdadeiro e pleno do coração toclo a - ~ e u s sem o amor ao próximo. Mas tampouco é possível uma simples moral e humanitarismo: O amor ao próximo permanece entrelaçado corn o amor a Deus. Mt 5, 23ss revelam que somente a reconciliação com o próximo torna autêntica e pura a devoção a Deus. No mesmo contexto podemos elucidar o ataque de Jesus contra os fariseus, que corrompem seu culto a Deus por devorarem as casas das viúvas (Mc 12, 40; Mt 23, 14). Jesus acaba com semelhante separação entre culto (oração) e ética. No lugar da hipocrisia piedosa precisa aparecer a singeleza e a intenção unívoca do coração. Essa transparência caracteriza também o amor ao próximo. Na versão de Lucas, o mandamento do amor reza como segue: "Sede misericordiosos, como também é misericordioso o vosso Pai" (Lc 6, 36). A estrutura do dito corresponde a Mt 5, 48: "Sede perfeitos, como perfeito é vosso Pai celeste". Anteriormente (em 5, 45) se falou da benignidade livre e gratuita de Deus, o qual faz nascer o seu sol sobre maus e bons. Visto que não se deve cogitar num conceito nem judaico-legalista nem gnóstico de perfeição, será correto dizer: A perfeição de Deus é o seu amor. Quem ama é perfeito como Deus. Ser correspondente a Deus no amor, é essa a exigência suprema que se pode imaciinar. Em Mt 5, 43ss o característico é que o amor é transbordante. Amar aos que nos amam os publicanos também fazem. Que há de especial em saudar os irmãos? Os pagãos também o fazem! Mais importante é que o amor seja transbordante. Ele não pode ser retido dentro de quaisquer demarcações. Ele rompe os limites familiares

e de pertinência a um povo. A concepção antiga restringia o amor aos compatriotas, ao povo judeu. Por isso lemos na última antítese que fora dito aos antigos: "Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo" (Mt 5, 43). A segunda parte da frase é interpretação. Não a encontramos em Lv 19, 18, onde topamos com o mandamento veterotestamentário do amor ao próximo (Lá o próximo é o compatriota). Contrapondo-se a essa interpretação ampliada da antiga lei, Jesus diz: "Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem", pois somente assim vos podeis revelar como filhos de vosso Pai celestial (Mt 5, 44ss). Transparece da maneira mais nítida que não há limitações para o amor ao próximo, que ele rompe até mesmo os limites do desprezo religioso e d o ódio, como demonstra a ação d o Bom Samaritano (Lc 10, 29s). Patenteia-se dessa forma também que o amor dá tão gratuitamente como o próprio Deus. Ele é o protótipo desse amor que não calcula com reciprocidade e retribuição, que é criativo e livre, como Deus. Por conseguinte, ele também não depende dos sentimentos do coração humano, seiam eles o amor erótico, a simpatia, a amizade ou outras formas de afeto entre os homens. O amor ao próximo não deve ser confundido com tudo isso. Sua origem reside na bondade e misericórdia criadora e doadora de Deus. Posteriormente, com a penetração da Igreia no mundo, o amor como Jesus o entendia combinou-se com todos os sentimentos do coração humano, p. ex., até com o amor à pátria. Tais sínteses, porém, muitas vezes expuseram o amor de que falam os evangelhos a grandes perigos, mormente ao perigo de perder seu caráter universal e radical que transcende qua-lquer limite. Ao escriba que resume os dois grandes mandamentos e os contrapõe ao sacrifício cultual, Jesus responde: "Não estás longe do reino de Deus" (Mc 12, 34). Quem sabe o que é o amor sabe também o que é o reino de Deus, e vice-versa vale o mesmo. Por isso procederam bem todos os que compreenderam o amor como a magnacarta do reino de Deus. Que significa "amar como a ti mesmo"? A controvérsia sobre essa pergunta é antiga, tendo preocupado já Agostinho e Lutero. Por causa de influências da antropologia e ética greco-helenistas, a doutrina eclesiástica católico-romana desenvolveu a concepção d e que o amor próprio fosse o padrão para o amor ao próximo. Mas, em vista de toda a tradição sinótica sobre Jesus, é impossível que Jesus tenha pensado assim. Em nenhuma ocasião Jesus faz depender o amor ao próximo de padrões humanos e terrenos. Ele o formula de modo radical, porque pensa no amor de Deus. Com a mesma dedicação e totalidade com que o homem "de natureza" ama a si

mesmo, ele c(-ve amar agora, ao iniciar-se o reino de Deus, o outro, o próximo. Jesus não pensa numa -'ntese entre um amor próprio legítimo e O amor ao próximo. O amor ao próximo toma o lugar do amor a si, pois que seu reverso é a negação de si mesmo (Lc 14, 26 par.) e sua culminância o amor ao inimigo (Mt 5, 44s~; cf. Lc 6, 27s). O amor ao próximo tampouco pressupõe uma idéia ou uma imagem ideal daquele que se deve amar. Pelo contrário, ele é totalmente "não-idealista". Importam-lhe as pessoas concretas, reais, que cotidianamente encontramos. O amor ao próximo tampouco pressupõe valores inerentes ao homem que se devam amar, tal como faz o "éros", o qual segundo Platão ama o belo e o bom no homem e é atraído por esses valores. Perguntar por valores significaria destruir o alcance irrestrito do amor ao próximo. Ele não indaga pelo que o outro vale. Não está condicionado às qualidades e virtudes humanas do outro, em conformidade com o que ocorre com o amor de Deus. Essa verdade se demonstra principalmente no fato de que o amor ao próximo se dirige a todos os necessitados. É verdade que falta a palavra "amor" na grande narração do Juízo em Mt 25, 31ss, mas evidentemente está sendo tratado do seu conteúdo, pois os justos são aqueles que saciaram famintos, deram de beber a sedentos, vestiram nus e visitaram presos. A.ssim serviram - conforme as palavras do Juiz cósmico - ao próprio Cristo. Importante é o serviço ativo aos miserandos, que são os "pequeninos" dentre os seus irmãos. A profundidade da angústia não é limite para o amor. Ao mesmo tempo constatamos: Amor não é mera mentalidade e não tem nada a ver com compaixão barata ou inativa. Amor é atos de amor. Sobretudo, porém, não existe uma "ética de intenção" na proclamação de Jesus. É claro que os atos brotam do "coração" (Mc 7, Iss). Encara-se a pessoa como uma unidade de coração e ação (Mt 7, 17s~). Justamente por isso, porém, lemos: "Pelos seus frutos os conhecereis" (Mt 7, 16.20). De igual modo, os "praticantes da ilegalidade" são condenados (Mt. 7, 21 ss). Cumprindo-se o mandamento do amor, cumpre-se a exigência central de Deus. Por isso também não é possível entender a ética de Jesus segundo o esquema de um antionomismo, seia ele antigo ou moderno. O discípulo encontra-se sob o mandamento e a exigência de Deus. Nisso Jesus prrmanece "judaico". Porém agora trata-se do mandamento radical do amor a Deus e ao próximo. Tal "simplificação" e concentração das ordens de Deus não atenuam a exigência mas a intensificam. A indagação do escriba sobre quem seria, afinal, o prbximo não é respondida com uma classificação, nem conforme a lei de

Moisés: que o próximo é o compatriota e aquele que desfruta o direito da hospitalidade em Israel. Com essa definição estão excluídos todos os outros grupos. Contudo a narração do Bom Samaritano (Lc 10, '29s) revela que Jesus anula esse modo de perguntar. O próximo daquele que havia caído entre os salteadores foi o que praticou a misericórdia para com ele (10, 36s). Portanto, não devemos perguntar: Quem é meu próximo? - na intenção de diferenciar, desse modo, os diversos grupos, mas: Para quem eu pessoalmente estou sendo o próximo? - e agir de acordo. Foi o que fez o Bom Samaritano. Pela miséria do outro eu me torno o seu próximo. Conseqüentemente náo é possível decidir prévia e sistematicamente quem pertence a classe do próximo. Jesus, portanto, inverteu e transformou a maneira de perguntar tipicamente judaica em seu oposto. O Bom Samaritano foi a pessoa desafiada para o serviço ao próximo e que lhe correspondeu com sua ação. Embora não sendo nenhum judeu piedoso, mas um apóstata, e muito menos sendo um cristão (de acordo com os padrões daquela época), ele cumpre o mandamento do amor. Transparece aqui que o mandamento rompe também os "limites eclesiásticos," de outrora como de hoje. Embora não se reflita teologicamente em nenhuma parte da tradição acerca de Jesus, sobre a unidade de mensagem salvadora e mandamento, ela é constantemente pressuposta. Mateus a articulou indiretamente em sua cristologia: Jesus, o Messias de Israel, é o intérprete plenipotenciário da vontade divina. No que se refere a essa unidade, precisamos considerar que ela possui uma longa história prévia no Cl.ntigo Testamento: A aliança de Deus com o seu povo é salvação e diretriz ao mesmo tempo. A unidade de salvação e mandamento é o amor de Deus. Mas, onde a mensagem do reino de Deus atinge a pessoa, ambos precisam tornar-se visíveis, a salvação e o mandamento. O mandamento assumiu, agora, também um caráter escatológico. O homem liberto e salvo está comprometido com a vontade de Deus. No irromper da salvação são nascidos novos praticantes dessa vontade (Mt 5, 7.9). Aceitando a decisão cristológica fundamental dos evangelistas, de que o Jesus de Nazaré que assim fala é o Senhor ressurrecto de sua comunidade, podemos acrescentar: Na pessoa e autoridade de Jesús, anúncio da salvação e mandamento formam uma unidade. O pregador do reinado de Deus liberta e prende ao mesmo tempo.

4.

O sentido do Sermão do Monte

Já abordamos tangencialmente o problema, quando falamos da questão se Jesus deveria ser entendido como um novo legislador. Diante da vasta literatura sobre o Sermão do Monte, é quase impossível estabelecer novos pontos de vista. Não obstante, os principais

problemas e interpretações do Sermão do Monte precisam ser apresentados em breves traços também no presente contexto (cf. o Índice de literatura). O Sermão do Monte (Mt 5-7) é uma composição teológica e literátia do evangelista, tendo como base o "Sermão do Campo" da fonte Q (Lc 6, 20s). Nele está resumida grande parte das tradições éticas. Possui grande significância teológica que ele inicia com as bem-aventuranças (Mt 5, 3ss par.), i. é, com a mensagem de salvação de que o reinado de Deus se aproxima dos pobres e miseráveis, dos humildes, dos que têm fome da justiça de Deus. Somente a partir desse fundamento passa-se a falar do envio dos discípulos (5, 13-16), da lei e do novo mandamento de Jesus (5, 17ss. 21ss) e do amor (5, 43ss). Do mesmo modo não é coincidência, mas expressão duma concepção teológica uniforme, que as advertências e o anúncio do Juízo se situam no final (Mt 7, 15s). Primeiramente trataremos das mais importantes interpretações do Sermão do Monte na história da Igreia e da teologia. a) A tradicional interpretação católica compreende os mandamentos radicais de Jesus como "conselhos" ("consilia evangelica") para os "perfecti", ou seja, para aqueles "perfeitos" que se submetem às ordens duma vida ascética. Dessa maneira o Sermão do Monte torna-se regra monástica. Os "cristãos mundanos", porém, que vivem na terra, no matrimônio, no trabalho e no Estado, não podem cumprir os mandamentos radicais. Por exemplo, não podem prescindir da posse de bens terrenos. Precisam ater-se, para dizê-lo resumidamente, aos Dez Mandamentos, o mínimo indispensável de observância de preceitos. O que obviamente não significa que os cristãos mundanos não devam amar ao próximo, mas eles podem fazê-lo apenas dentro dos limites terrenos das estruturas sociais em que vivem. Unicamente quem se retira do mundo tem condições de cumprir os mandamentos radicais do Sermão do Monte. Foi essa a ética de dois degraus, ou ética d e duas classes, da Igreia Católica Romana antes do II Concílio do Vaticano. b) Em contraposição a antiga interpretação católica, a luterana parte com acerto da compreensão de que a exigência radical de Jesus vale para todos os cristãos. Ela é entendida segundo o 'usus elenchticus legis", ou seja, segundo a função da lei de pôr a descoberto o pecado. O Sermão do Monte impele para o arrependimento. Todo ele 6 um chamado ao arrependimento e um espelho para a confissão. O homem é convencido de sua pecaminosa incapacidade de fazer o bem. O mandamento do Sermão do Monte 6 tido como inexequível. Esse esboço da concepção da ortodoxia luterana não deve ser simplesmente identificado com a interpretação pessoal de Lutero do Sermão do Monte (veja abaixo). Ainda em 1925 o teólogo

dogmático luterano Carl Stange defendeu tal concepção. A intenção central dessa interpretação é que o Sermão do Monte não se torne uma lei e Cristo, um "segundo Moisés". No próprio Cristo, e somente nele, foi cumprida vicariamente para todos a exigência absoluta do Sermão do Monte. A intenção é, sem dúvida, legítima. Por outro lado, porém, ignora-se completamente que o Sermão do Monte sempre demanda, em 5, 13ss, 21 ss; 6, 1ss; 7, 1 ss, etc. até o fim, um agir, boas obras, atos de amor, cumprimento efetivo da vontade de Deus; e tudo isso, dos próprios discípulos. Em parte alguma os textos se restringem a afirmação de que o Sermão do Monte fosse cumprido, em nosso lugar, unicamente por Cristo. Muito pelo contrário, no Sermão do Monte Jesus está diante de nós claramente como aquele que exige e ordena (com exceção de 5, 3-12). É verdade, o Sermão do Monte revela quem somos (cf. principalmente 5, 21s). Contudo, a partir da nova situação escatológica da salvação, ele requer um novo agir. Dar meia-volta sern praticar a vontade de Deus, em todos os casos não resulta, para o Sermão do Monte, na justisa "melhor" dos discípulos ao irromper-se o reino de Deus. Também não é possível remeter-se a Paulo nessa questão, como o demonstram nitidamente Rm 6, 1 l s s (cf. também II Co 5, 10). Não podemos fugir da verdade de que o Sermão do Monte demanda o bom fruto, as diferentes boas obras, a prática do amor. Toda interpretação do Sermão do Monte que não tiver em conta essa verdade é falha. C) O mesmo vale também para a terceira interpretação, segundo a qual Jesus teria professado uma nova "ética de intenção" em contraposição ao judaísmo. A interpretação é proveniente de Kant e da filosofia idealista. Defendem-na os teólogos liberais dos séculos XIX e XX. E conservada a tradição de que o Sermão do Monte não deve ser entendido como lei. Jesus exige uma mentalidade boa, um bom coração. Devem ser afastadas também as raízes do mal do coração do homem. Evidentemente isso está correto. Mas já temos constado: Coração e ação não podem ser separados. É preciso reconhecer sobretudo o seguinte: De acordo com o Sermão do Monte simplesmente não entra em cogitação uma justificação do homem por causa de sua intenção, sua boa vontade, pois que isso seria apenas uma paralela moderna para a doutrina judaica da justificação pelas obras. Ademais, não é admissível introduzir o conceito moderno de autonomia e mentalidade em textos sinóticos e neotestamentários. Não basta ter intencionado o bem. O Sermão do Monte insiste no agir. d) Uma interpretação oposta ao modelo acima é a que fala nas pessoas de Johannes Wsiss e Albert Schweitzer - de uma "ética de ínterim" apocaIíptico-escatológica. ISSO significa qi;e as exigências radicais d e Jesus se destinam somente para curto espaço de tempo

antes do fim iminente do mundo, por assim dizer como "legislação de exceção" para o último tempo. No prazo exíguo até o fim do mundo requerem-se feitos extraordinários, heróicos. Decisivo e acertado é que esses pesquisadores partem da proclamação escatológica do reino de Deus. Ainda assim, compreenderam erroneamente a ética de Jesus e sua relação com a escatologia. Os textos em lugar algum falam de uma restrição do mandamento de Jesus para um tempo breve, "último". " 'Amai-vos uns aos outros' não é nenhum mandamento especial para o tempo derradeiro" (H. Conzelmann). O conteúdo da exigência é compreendido a partir da natureza e vontade de Deus (Mt 5 , 43ss; 7, 21ss), mas não deduzido da proximidade do fim do mundo. Depois, não se denota em parte alguma que se trata de exigências heróicas, pelo contrário, exige-se de todos os ouvintes do Sermão do Monte que cumpram o mandamento do amor. Em contraposição ao heroísmo de feitos especiais (doar toda sua propriedade, sofrer martírio), Paulo, mais tarde, podia afirmar que, sem a "agápe" (amor), tais feitos são vazios e infrutíferos (I CO 13, lss), e com certeza ele entendeu o amor corretamente. Todo discípulo ou, após a Páscoa, todo cristão deve e pode amar. A cena do Juízo cósmico (Mt 25, 31ss) deveria iustarnente excluir que saciar famintos, etc. tenha validade apenas para o fina! dos tempos. A relacão entre escatologia e ética, porém, é esta: Ao iniciar-se O reinado de Deus, anunciado agora por Jesus, a vontade de Deus é ressaltada de forma clara e exata. Todas as "normas humanas" são reconhecidas como tais e nitidamente distinguidas da vontade de Deus. Caem por terra todas as relativizações da vontade divina. Nesse "kairós" realiza-se a revelação definitiva da vontade de Deus. Sua vontade é o amor. Todos devem amar, não apenas, formulando-o uma vez assim, os "heróis dos últimos dias"! e) Uma solucãn do problema do Sermão d o Monte, muito freqüente na história eclesiástica, é a espiritualista-entusiasta, que foi defendida ainda no nosso século pelo conde LEO Tolstoi sênior e, em parte, pelo socialismo religioso. Considera-se o Sermão do Monte como o modelo de uma nova sociedade de amor e de paz, do reino de Cristo sobre a terra. 0 s mandamentos do Sermão do Monte precisam ser cumpridos literalmente, então a nova sociedade poderá ser estabelecida. Poderio estatal, polícia e exército, judicatura e disposições legais - tudo isso são instituições que precisam ser abolidas, a fim de que haja lugar para o reino definitivo do amor, da iustiça e da perfeição. Por conseguinte a interpretação entusiasta adquiriu muitas vezes um caráter revolucionário: Acabem com toda a velha sociedade, para que possa imperar o amor! É compreensível que essa interpretação podia adquirir novamente traços legalistas, uma vez que o Sermão do Monte era compreendido como estatuto da

o cristão sempre está comprometido com outras pessoas. Para proteger o próximo, é necessário que, como pai ou estadista, se faça uso dos meios dd ordem terrena, muitas vezes até da força. A ordem jurídica, por exemplo, precisa ser mantida diante do infrator da lei. Não podemos admitir a injustiça que é praticada contra nosso próximos; precisamos protegê-lo com os recursos da ordem iurídica. Contudo devemos suportar a injustiça que é praticada contra nós mesmos. Se meu próximo é assaltado por ladrões, precim protegê-lo, também mediante a força. O amor, portanto, pode e deve adquirir no mundo também a forma do rigor, sim, da violência, quando está em jogo o próximo ou toda uma sociedade. Lutero explicitou a gravidade do conflito. O ministério do amor também é capaz de castigar. O que parece contradizer o amor, a saber, o emprego da.violSncia pode tornar-se, segundo Lutero, um instrumento do amor. Lutero, porém, não conhece a possibilidade de que as ordens mundanas anulem o mandamento do amor. Foi completamente errado designá-lo, às vezes, de "escravo das autoridades" ou dos soberanos de seu tempo. Não obstante, há qcie se admitir uma pergunta crítica a Lutero. Os escritos confessionais luteranos rezam que devemos "praticar o amor dentro de tais ordens (as mundanas)". Isso, sem dúvida, tem bom fundamento em Lutero. Mas será o suficiente? Não precisa o amor transformar também instituiçõi.~, por causa do próximo? Ademais, não deve ele estar livre para servir ao próximo fora do nosso Estado, de nossa raça etc., carente de nossa aiuda? O amor transcende e rompe todas as limitações mundanas. Sua universalidade resulta d e sua radicalidade. O amor também deve ser capaz de questionar a forma atual das ordens dc mundo. Os entusiastas perceberam corretamente a sua tarefa de critica a sociedade. Acaso não transluz através do Sermão do Monte um questionamento do cosmos todo e da sua duração? A esse fafo Lutero não deu a devida atenção, pelo menos não na interpretaçãa do Sermão do Monte. Talvez tenha sido impedido de fazê-lo pela sua oposição compreensível aos entusiastas e pela insurreição dos camponeses em 1525. Deve ser acrescentado também que a redescoberta da pregação escatológica de Jesus ocorreu somente no fim do século passado por intermédio de Johùnnes Weiss e Albert Schweitzer. Quando o reino de Deus se aproxima, o presente inundo precisa perecer, não possuindo mais nenhuma duracão própria como ordem ontológica eterna. O fim do mundo está próximo. Assim o entendeu também a comunidade primitiva, como demonstra o chamado Sermão Apocalíptico em Mc 13 par., assim o entendeu Paulo (I Co 7, 29ss; Rm 13, 1 lss). E preciso contrapor sempre as ordens deste mundo o mandamento do amor, entendido de modo radical e absoluto, e reconhecer que

I

I

ele indica para muito além deste mundo, para o novo mundo d o reino de Deus. Uma segunda pergunta critica a Lutero refere-se à id6ia da transposição ou transformação do amor dentro das instituições mundanas. Caso seia possível que o amor adquira a severidade do castigo e do emprego da violência, deve haver, não obstante, um limite para tal transformação, a fim de que o amor não perca o seu caráter de amor de Cristo, e não venha a se tornar um possível subterfúgio para a maldade. Se amor é amor ao inimigo, se ele 6, como costumamos dizer, amor aos desgraçados, então isso deixa suficientemente claro que ele leva para além do status quo da respectiva sociedade, bem como para além dos limites de povo e Estado. Depois, aplicar a violência pode ser pecado, o qual o amor precisa de se negar a cometer. Por isso os limites da transposição devem ser sempre de novo traçados, para que o amor não se dissolva em modos de proceder mundanos. Ele deve permanecer sempre uma instância crítica diante do que acontece no mundo. Unicamente dessa maneira pode ser preservado o mandamento radical de Jesus.

5.

Reino de Deus

e mundo

É necessário que investiguemos mais a fundo a questão que desdobramos acima com aiuda d e Lutero. Que acontece com os bens e as grandezas terrenas na proclamação de Jesus? a) Façamos inicialmente uma observação preliminar sobre a concepção do homem e de como ele vive no mundo. Jesus náo elabora nenhuma doutrina do homem nem do pecado. Mas em sua prédica está contido um iuízo sobre o homem. Já o constatamos ao falarmos sobre a "meia-volta" (item I), bem como nas antíteses em M t 5, 21ss. O homem necsssita a libertação e salvação, porque, como pecador, está sujeito ao juízo de Deus. Sim, bom 6 um s6, Deus (Mc, 10, 18). Também as três parábolas do perdido em Lucas 15 apresentam o h6mem como o pecador que precisa dar meia-volta. Somente pelo amor paternal de Deus ele pode recuperar a existencia humana verdadeira e plena. Jesus vem, para chamar à meia-volta os pecadores (Lc 5, 32). O publicano no templo confessa: "6 Deus, se propício a mim, pecador!" Pedro reconhece a mesma coisa em seu encontro com Jesus (Lc 5, 8). De toda palavra inútil os homens hão de prestar contas no dia do Juízo (Mt 12, 36). Quando os membros de nosso corpo humano, entendidos como portadores de nossos atos, querem incitar-nos à maldade, eles precisam ser decepados (!,,\c 9, 43s). Toda árvore que não traz bons frutos é cortada e lançada ao fogo (Mt 7, 19; cf. 7, 2 1 4 . A simples pronunciaçáo de palavras maldosas contra o próximo está sujeitá ao Jt~ízo(Mt 5 , 22). ISSO

significa que o chamado a "meia-volta" e o anúncio do Juízo abordam a pessoa diretamente como pecadora. A afirniação acerca do homem é imanente a mensagem escatológica. Apenas em Paulo é possível falar de uma "doutrina" do pecado. De acordo com Mt, 6, 12s, os discípulos devem orar pelo perdão de suas dívidas e pela libertação do mal. Em Mt 7, 1 i os homens sào sem mais nem menos designados maus. O endividamento é tanto culpa perante Deus, cuja vontade não é cumprida, como perante o próximo. A parábola do credor incompassivo acentua o dever de perdoar ilimitadamente ao irmão (Mt 18, 21s). Contudo o dualismo de reino de Deus e pecado, por mais radical que seja, não anula a fé no Criador. Evidentemente o reinado de Deus precisa de vir, para trazer a salvação aos pecadores, e a toda a Criação, a libertação do poder demoníac~. Incluída está também a libertação da propensão pelo mundo, que emaranha o homem numa dependência de bens e grandezas terrenas. Jesus não foi nenhum reformador ético nem um revolucionário social, nem tampouco um asceta inimigo do mundo, embora tenha pessoalmente renunciado ao matrimônio e a propriedade. Suas curas de enfermos não iniciam nenhuma reforma da higiene e da medicina. Tampouco faz sugestões quanto a posição e ao tratamento dos escravos. Por outro lado, porém, ele tainbém não se tornou dependente dos poderes e partidos político-religiosos de seu tempo. Diante dos fariseus, dos saduceus e dos zelotas ele tem uma posição livre e crítica. Nega-se também a servir de juiz e repartidor de heranças (Lc 12, 13s). Isso está aquém de sua missão. Teólogos modernos lamentaram que não se pode encontrar em Jesus nenhuma valorização positiva dos "valores culturais". Friedrich Naumann ficou profundamente abalado ao conctatar a enorme distância entre o Jesus histórico e o moderno mundo secular. Todavia, para quem precisa anunciar o advento do reinado de Deus, a cultura não pode ser nenhum problema decisivo e, sobretudo, nenhum valor absoluto. b) Surge, então, a pergunta séria, se Jesus deve ser entendido, apesar de tudo, como um asceta, tendo-se em vista principalmente o seu próprio modo de vida. Verdade é que não podemos constatar em parte alguma que ele tenha instituído um regulamento ascético para os seus discípulos. Se Mt 19, 12 fala dos que se castraram por amor ao reino de Deus, devemos entendê-lo seguramente como ilustração. Porém é indubitável que Jesus exigiu desistências e sacrifícios reais, não no estilo de um programa ascético, mas por causa da decisão pelo reino de Deus (Mc 9, 43ss par.). De acordo com essa orientação Jesus solicita ao rico que dê todas as suas propriedades aos pobres não por oposição fundamental a propriedade, mas porque o rico é impedido pela sua riqueza de aceitar livremente o reinado de Deus.

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Naturalmente pode haver também outros vínculos que precisam ser rompidc~,os da família e do respeito ao pai, a fim de que a pessoa se torne "apta" para o reino de Deus (Lc 9, 57s). Podem ser os bens deste mundo que prendem o homem, pelo que lemos: "Não acumuleis para v6s tesouros soLre a terra" (Mt 6, 19), "porque onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração" (Mt 6, 21). Ou, então, é o espírito pagão da preocupação que subjuga as pessoas (Mt 6, 25ss). Contra ele é dito: "Buscai em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça" (Mt 6, 33). Deus sabe o que o homem necessita para viver. Assim, afirma-se a relatividade dos bens e vínculos terrenos, eles perdem o caráter de poderes absolutos. Existe apenas um senhor sobre os homens, que é Deus! A ruptura do poder terreno é possível porque o reino de Deus se aproxima. Portanto, não temos diante de 116s um sistema ascético por princípio. A exigência de Jesus dirige seu ataque sempre e de modo atual contra aquilo que prende e impede o homem a tomar a decisão pelo reinado de Deus, razão pela qual se tornam necessários sacrifícios concretos. Não há valores ou poderes que possam fazer concorrência ao reino de Deus. E ele tampouco está destinado a emprestar-lhes um brilho religioso. O homem, pois, é atingido por um imperativo concreto. O chamado à "meia-volta" recebe cor e conteúdo. O homem é alcançado pela exigência de Jesus numa situação determinada. Jesus está separado das numerosas formas de vida ascéticas de seu tempo principalmente pelo ato de que a ascese lhe é desconhecida como meio para a salvação - salvação é concedida unicamente e de autoria própria pelo reinado de Deus! - e, em segundo lugar, porque ele não institui nenhuma lei de vivência ascética, não funda nenhuma seita ascética. Contudo não se deve olvidar, em vista dessa negação, a gravidade de suas exigências de renúncia. Dessa forma explica-se também por que não ouvimos nada acerca de uma ascese sexual ou alimentar na tradição sobre Jesus, embora ele próprio viva solteiro. Mas a exigência da "meia-volta" pode, concretamente, tornarse também ascética, a saber, quando algo se coloca como empecilho entre a pessoa e o reino de Deus. E uma exigência ascética "de caso para caso", na hipótese de. . ., condicional. Por conseguinte, também nessa questão, Jesus não é nenhum doador de leis. Por esse motivo - e alicerçado sobre a fé veterotestamentária no Criador - Jesus não pode depreciar, de princípio, o mundo. Ele está sobremaneira afastado da gnose negadora do mundo, do final da Antiguidade. Pelo contrário, somente no início do reinado d e Deus, o Criador e sua criação tornam-se novamente visíveis de forma clara e plena. O senhorio de Deus inclui também a onipotência do Criador. Por isso podemos ler que todas as coisas necessárias para

viver "serão acrescentadas", desde que esteja certo em primeiro lugar o seguinte: a aspiração pelo reino de Deus (Mt 6,33). "O pão nosso de cada dia dá-nos hoje" (Mt 6, 11). Não, tais questões terrenas não s60 condenáveis. Apenas não Ihes devemos atribuir, através do espírito pagão da preocupação, um peso errado, ou seja, absoluto, nem tios sujeitar a elas como a algo que possui poder sobre os homens. Naquele tempo chamou atenção aos contemporâneos também a diferença entre as atitudes de João Batista e de Jesus. O último é chamado por seus adversários de "glutão e bebedor de vinho" (Mt 11, 19). Criticam-no também porque seus discípulos não jejuam. c) Neste contexto é importante a palavra sobre o matrimônio e o divórcio em Mc 10, I ss. No trecho sobre a lei (item 2) já mencionamos que Jesus retorna a vontade e ação do Criador, que fez homem e mulher, designando-os para formarem "uma só carne" (cf. Gn 1, 27 e 2, 24). O agir do Criador é a razão pela qual o matrimônio não deve ser dissolvido. Jesus opõe-se a prática judaica, baseada na lei de Moisés, segundo a qual é permitido dissolver o matrimdnio (carta de divórcio). Não há nenhum indício d e uma difamação do matrimônio e do relacionamento sexual. Aqui e hoje tem validade o agir do Criador. A partir dessa posição Jesus ataca a legislação mosaica do divórcio. O reino de Deus que se aproxima não leva à dissolução do matrimônio, mas preserva a sua instituição pelo Criador. Grandes dificuldades para a exegese oferece a assim chamad' "cláusula do adultério", ou melhor, da impudicícia, que é apresentada exclusivamente por Mateus (Mt 19, 9; 5, 32): O divórcio é inadmissivel "exceto em caso de impudicícia". Evidentemente ela estabelece uma exceção. Estranho é o emprego do termo genérico "impudicíciaU* ao invés de um mais esoecífico oara "adultério". como se deveria esperar. A explicação ;ais provavel é que ~ a k u se sua comunidade se viram compelidos a constatar e admitir essa exceção, porque depararam com 6 fato de um matrimônio destruído bela impudicícia ou pelo adultério. Tais e outros fatos deram origem a necessidade de elaborar novas normas comunitárias e de interpretar continuadamente os mandamentos de Jesus. Seria errado falar,, por isso, desaprovativamente de uma "casuística". Também na comunidade cristã surgiu o caso de que determinados matrimônios de fato estavam destruídos. Ultimamente alguns exegetas pretendem associar a expressão "impudicícia" com matrimônios incestuosos, ou seja, matrimônios entre parentes de determinados graus, proibidos conforme a lei de Moisés e que teriam ocorrido na comunidade de Mateus. N. do T.:

O autor refere-se ao terino "pornéia", do original grego.

Contudo não exisie ainda nenhuma explicação historicamente segura dessa "cláusula de impudicícia". Segundo a concepção de Rlateus a exceção nãc parece estar em contradição com a exigência radical de Jesus, visto que se trata de um acontecimento na vida matriinonial, o qual a comunidade procura levar em conta divorciando um matrimónio destruído pela impudicícia (adultério). Foi justamente Mateus quem procedeu, no Sermão do Monte (fia sua concepção e composição!), a uma radicaiização da lei, até mesmo em 5, 32! Importante para ele é a pureza da comunidade, a pureza do matrimônio. É. óbvio que esse divórcio somente em caso de exceção permanece uma solução emergencial. A tradição de Marcos também deixa transparecer que em Mc 10, 1 1 s uma nova siiuação da comunidade tornou-se influente. O trecho pressupõe nitidamente a ordem iuridica romana, inexequível para o judeu, segundo a qual também a mulher tem a possibilidade de provocar pessoalmente a dissoluçáo de seu matrimônio: "E se ela repudiar o seu marido. . .". A exigência de Jesus, portanto, é estendida e aplicada por Marcos a comunidades que vivem sob o direito romano. Tais afirm3ções de Jesus têin todas um motivo concreto numa situação específica. Não existe uma "doutrina" sobre o matrimônio, mas apenas a decisão clara de uma pergunta com a qual ele é confrontado. d) O mesmo vale com relação ao Estado. E preciso ter em mente que Jesus vive num país que está ocupado por uma potCricia estrangeira. Encontrava-se igualmente diante do fenômeno do . ,210tismo, um movimento de resistência, com fundamentação messisnológica, contra a dominação estrangeira dos romanos. Jesus, no entanto, não podia ser nenhum zelota, pois não é possível implnqtar o reino de Deus mediante o emprego da violência e das arrias. No mundo dominam os soberanos e exercem autoridade, porém entre os discípulos vigora a ordem inversa: Quem quiser ser o primeiro, seja servo de todos (Mc 10, 42ss). Marcos fundamenta o servir, cristologicamente (Mc 10, 45). Com realismo e sobriedade Jesus constata o que acontece no mundo do poder e dos poderosos. Ele não se apresenta como reformador estatal. Contudo com aqueles que servem e não domii-iam, com os discípulos de Jesus, a nova ordem do reino de Deus se manifesta, como sinal, neste mundo. Da mesma forma Mc 12, 14ss deve ser entendido escatologicamente. Então se evidenciará o "paralelismo irônico" (M. Dibelius) entre Deus e César. Afinal, eles nem se encontram no mesmo plano! Tampouco Jesus pensa numa separação de duas esferas, o Estado e a Igreja. Ele nem sequer fala da Igreja. O que de direito cabe a César é a moeda e o imposto, por conseguinte o imposto deve ser

pago. A Deus, porém, dai o que lhe pertence e lhe cabe. Jesus não diz o que isso seria. Mas a partir do contexto de sua proclamação torna-se claro: A Deus pertence a pessoa toda. O César e apenas uma grandeza do mundo passageiro. Em suma, Jesus não toma nem o partido dos opositores a potência de ocupação, nem se bandeia para o lado dos adeptos dela. A pergunta era embaraçadora, pois a potência estrangeira estava no país. Jesus subtraiu-se a seus adversários que queriam "apanhá-lo". Mas fê-lo a partir de sua mensagem, não por meio de uma fórmula diplomática. Não se envolve numa "revolução messiânica", mas tampouco se torna um "colaborador" como os herodianos. Novamente nenhuma "doutrina" acerca do Estado, mas a decisão concreta de uma pergunta. Nisso reside, com certeza, um impulso decisivo para uma nova reflexão teológica, a saber, para limitar escatologicamente o Estado e o poder, uma limitação que uma doutrina cristã sobre o Estado jamais deveria esquecer. Por isso a posição de Jesus está além das posições antagônicas na Palestrina da sua época. Será necessário acrescentar que tal posição também se encontra acima de difamação ou divinização do Estado. A mensagem escatológica destrói a antiga unidade de religião e Estado. Pela primeira vez na história o Estado aparece em seu caráter mundano. Mas Jesus tampouco apregoa a anarquia e a hostilidade "religiosa" ao Estado, como a encarnaram mais tarde movimentos entusiastas. Todas as instituições como matrimônio, família e Estado permanecem e valem somente para este mundo, não são "eternas", não Ihes compete uma divindade direta. A mensagem de Jesus é o fim para as divindades cósmico-políticas da Antiguidade e de sua cosmovisão numinosa. Por isso uma comunidade que, após a Páscoa, aceitava a palavra de Jesus, não podia prestar culto ao César.

6.

A exequibilidade do mandamento

Ao falarmos das diversas interpretações do Sermão do Monte, citamos também a afirmação de que os mandamentos do Sermão do Monte são inexeqüíveis. Assim pensa a tradição luterana, segundo a qual esses mandamentos estariam apenas destinados para a função de conduzir o ouvinte ao reconhecimento do seu pecado ("usus elenchticus legis"). O mandamento tem por finalidade levar à "meiavolta". Ignora-se, desse modo, porém, que os mandamentos de Jesus sempre visam a ser cumpridos. Que outro sentido teria, então, o mandamento do amor? Ele poderia ter sido omitido, uma vez que para* o~reconhecimentodo pecado teriam sido plenamente suficientes a advertência diante do Juízo e o camado à "meia-volta". É bem óbvio que a exigência de se reconciliar com o irmão (Mt 5, 23s) deve

ser cumprida, caso contrário ela seria absurda. Parte alguma dos diierentes tipos e estágios da tradição sobre Jesus menciona, sim, nem mesmo sugere a impossibilidade de cumprimento. Jesus sempre pressupõe como natural que o cumprimento seja possível, e não duas coisas: impossível. É necessário distinguir a) que os mandamentos podem ser cumpridos; b) que eles, na realidade, muitas vezes náo são cumpridos. Mas não devemos dar ao fato de que não são cumpridos o sentido de que não podem ser cumpridos. Condenados são aqueles que não fizeram a vontade do Pai no céu (Mt 7, 21ss), embora deveriam e poderiam tê-la cumprido. Não se é condenado por causa de um mandamento inexequível. Em M t 5, 13-16 pressupõe-se que os discípulos fazem boas obras e que eles podem ser o sal da terra e a luz do mundo. M t 5, 7 e 9 falam das pessoas que são misericordiosas e promovem a paz. Depreende-se que, ao iniciar-se o reinado de Deus, existem tais pessoas. Jesus na verdade não se limita a exigência: "Crede no Evangelho" (Mc 1, 15), por mais fundamental que ela seja, mas dá - especialmente no Sermão do Monte - mandamentos concretos, a fim de que sejam preenchidos. Os homens, enfim, devem glorificar a Deus em virtude das boas obras dos discípulos (Mt 5, 16)! Por isso R. Bultmann tem razão ao afirmar: Porque o mandamento é exequível, não cumpri-lo é pecado. Uma ilustração para o não-cumprimento é o rico que não corresponde a exigência radical de Jesus: "porque era dono de muitas terras" (Mc 10, 1 7 s . 22). Acresce que Jesus ressalta claramente a gravidade da decisão exigida pelo reino de Deus, como, por exemplo, nas parábolas da construção da torre, e do rei que pretende sair para a guerra (Lc 14, 28-33): É necessário ponderar cuidadosamente se temos capacidade para executar a obra planejada! Recordemos, outrossim, o dito da porta estreita e do caminho apertado que conduzem a vida (Mt 7, 13s). Inexequível o mandamento é para o pecador que persiste na resistência contra Deus. Contudo quem aceita a mensagem do reino de Deus torna-se livre para um novo modo de agir, para amar. O discípulo recebe o poder para ser sal da terra e luz do mundo. Essa 6 a nova possibilidade de viver e agir que têm os discípulos, as pessoas que aceitam o reino de Deus. 0 s que como o rico possuem muitas propriedades dificilmente poderão entrar no reino de Deus. Todavia está em vigor que "para os homens é impossível, contudo não para Deus", pois "para Deus tudo é possível" (Mc 10, 27). Podese dizer que, de modo indireto, transparece na história do rico o problema se a exigência é exeqüível ou não, porque se constata nela o quanto é preciso abandonar e doar, para que se possa cumprir a exigência de Jesus.

Tudo isso revela: O Sermão do Monte, como as exigências de Jesus em geral, não consistem em princípios morais genéricos, mas de "instrução para os discípulos", isto é, de exigências aos que aceitam a salvação do senhorio de Deus, que ingressam na nova aliança de Deus com os homens. Portanto, o mandamento resulta da comunicação da salvação (cf. as bem-aventuranças em M t 5, 3ss par.). O imperativo está baseado sobre o indicativo da salvação incipiente. Para esse assunto é importante a parábola da árvore boa que traz bons frutos. Na versão do texto de Lucas lemos: "pois toda árvore se conhece pelo seu fruto" (Lc 6, 43s; cf. M t 7, 16ss). A boa qualidade da árvore é a pré-condição para a boa qualidade dos frutos (cf. M t 12, 33). Mais uma vez está, assim, respondida indiretamente nossa pergunta pela possibilidade de curiiprir os mandamentos. Talvez seja lícito coordenar neste contexto também as palavras sobre o pedir e o receber (Mt 7, 7ss), sem, contudo, pretender interpretá-las unicamente nesse sentido. Mas a promessa pelo pedir na certa também vale para os que devem e querem obedecer ao mandamento. Até aqui analisamos o cumprimento como conseqü,ência da salvação e da nova existência escatológica. Todavia existem também outras afirmações, nas quais o cumprimento, o agir se apresenta como a condiçáo prévia para se conquistar a salvação escatológica. Tal é o caso em Mt 6, 14s: "Se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celeste vos perdoará." Encontramo-nos diante de um profundo paradoxo na proclamação de Jesus, pois aqui se fala na forma de uma frase condicional: se o homem . . .então Deus fará! O agir de Deus responde a uma determinada ação humana. Ou lembremos a parábola do servo malvado ("credor incompassivo", Mt 18, 23s). O servo malvado soçobra porque, tendo recebido perdão, se nega a perdoar o irmão. Por não perdoar, é submetido ao julgamento divino. Existe, por conseguinte, uma finalidade, isto é, um "para que": fazer boas obras, perdoar, para livrar-se do Juízo. De acordo com M t 25, 32ss os que praticaram a misericórdia entram para a vida eterna. A parábola dos talentos (Mt 25, 14s) demonstra que é necessário trabalhar com os dons que o senhor distribui a seus servos, é preciso multiplicá-los. O servo que não o fizer é submetido ao castigo. Portanto: Recebemos uma recompensa pelo nosso agir? Sem dúvida essa é uma acentuação muito nítida da necessidade de boas obras. Deus quer ter pessoas ativas a seu serviço. Um conceito deturpado, protestante da fé obscureceu inteiramente essa faceta da pregaçáo de Jesus. Apenas a exegese moderna a trouxe novamente a luz.

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Vemos nitidamente como o discípulo é colocado diante da exigência pelo agir e diante do fato do Juízo vindouro. Na verdade, pois, não existe uma lei natural que, obrigatoriamente, provocasse boas obras de um modo quase que orgânico. Temos à nossa frente uma trindade: salvação - exigência - advertência do Juízo. A exigência está ligada às duas outras. O imperativo indica também para o Juízo. Contudo não persiste a desolação de que ele seja inexequível. Também o discípulo se encaminha para o julgamento segundo as obras, o qual foi mantido pelo próprio Paulo (I1 Co 5, 10; cf. Rm 14, 10). O discípulo não é perfeito, mas, enquanto viver, permanecerá sob o mandamento. Deparamos, pois, com uma dúplice motivação do mandamento:

a)

o indicativo da salvação presente ou em vias de concretização,

b) o futuro do Juízo em aproximação. Procedei de tal maneira que entrareis no reino de Deus - tendes capacidade para tal, pois o domínio absoluto do mal está quebrantado. A pregaçã3 ética do julgamento parte precisamente do fato de que a vontade de Deus pode ser cumprida e de que não há mais a coação de pecar quando o reino de Deus se aproxima. Deus cria uma nova base para o agir dos homens, mas ele também responde, no Juízo e na graça, ao que eles fazem, porque os discípulos e todos os ouvintes da mensagem do reino não são apenas receptores passivos, mas gerados e chamados para um agir responsável.

7. O discipulado Precisamos de conscientizar-nos de que a palavra e o fenômeno do "discipulado" causam espécie e são incomuns. Significam uma radicalização pessoal da exigência de Jesus, como não a podemos encontrar nem na ética helenista nem na judaica. Jesus chama pessoas a que o sigam. A palavra aparece na tradição sinótica com um sentido duplo. Originalmente possui o significado bem literal de "ir atrás dele". Os discípulos são aqueles que acompanham Jesus em suas caminhadas, que, como Pedro, abandonaram tudo para atender ao chamado de Jesus (Mc 1, 16ss; Lc 5, Iss). Mas ao que parece o sentido original da palavra não bastou. Um segundo significado, figurado, passa a impor-se, que podia ser aplicado aos discípulos que não acompanhavam Jesus nas Liagens de proclamação. Provavelmente houve desde o início duas formas de discipulado: Uns andam com Jesus pela região, tendo abandonado casa e profissão. Outros, no entanto, permanecem em sua localidade, em sua casa, etc. Também para esses últimos vale a exigência que se entreguem total e obedi-

entenmente ao reinado de Deus - veiam-se Maria e Marta (Lc 10, 38ss). Aqui reside a raiz daquele emprego da palavra "discipulado" que se tornou usual na comunidade após a Páscoa e que continua sendo empregado até o dia de hoie. No chamado ao discipulado é peculiarmente estranho que ele ocorre sem qualquer fundamentação. Evidentemente ele contém em si mesmo a autoridade e legitimação por partir de Jesus. Os convocados seguem-no obedientes, sem fazer restrições nem impor condições (Mc 1, 17s). No chamamento de Levi lemos: "Segue-me! Ele se levantou e o seguiu" (Mc 2, 14). O chamado de Jesus tem validade absoluta. Por trás desse relato está a concepção de que Jesus tem poder para proceder assim, uma idéia que naturalmente está estreitamente entrelaçada com a cristologia. Quando as pessoas chamadas ou dispostas a seguir estabelecem condiçóes (Lc 9, 5 7 4 , essas são radicalmente repelidas. Não há mais tempo para despedidas quando o reino de Deus requer ser anunciado. Ninguém que não se liberta de tudo o que possui (Lc 14, 33) pode ser um discípulo de Jesus. Discípulo e mestre estão unidos também pelo destino comum: Aos discípulos sucede o mesmo que ao mestre (Mt 10, 24s). Essa passagem, contudo, foi cunhada pelas primeiras experiências de sofrimento da comunidade primitiva, da mesma forma como também outros ditos do Sermão Missionário foram influenciados por elas. Objetivamente é compreensível que se formulou o discipulado com a analogia de senhor e servo. De maneira alguma é possível compreender o fenômeno do discipulado a partir do conceito antigo ou moderno do exemplo moral. Há mais de uma geração (1921) Ernst Lohmeier apontou com razão que a relação entre os discípulos e Jesus possui uma estrutura completamente diversa das relações de professor e aluno no mundo antigo. Os alunos do filósofo encontram-se no mesmo plano que o seu mestre, perscrutando em conjunto a verdade. Sócrates e seus alunos estão equiparados diante da mesma tarefa de indagar dialogicamente pelo bem e pela verdade. Ao rabino do judaísmo tardio, bem como ao seu aluno, está sobreposta a lei, a qual eles interpretam em conjunto. Naturalmente existe em ambos os casos a primazia pedagógica do mestre. Mas no caso de Jesus a situacão é totalmente diferente. Ele é o pregador do reino de Deus e o proclamador definitivo da vontade de Deus. Como tal ele chama os discípulos para que o sigam, e por isso seu chamado é incondicional: "Segue-me!" O chamado sempre é também - de múltiplas maneiras exigencia de uma renúncia. Já o vimos nos ditos sobre o seguir a Jesus em Lc 9, 57-62 (cf. M t 8, 19s). Diante do chamamento de Jesus não 6 possível recorrer aos costumes, aos deveres filiais, a tradições e vínculos terrestres. A razão disso é que Jesus encarna em

sua pessoa a vontade de Deus e a causa do reino de Deus. Daí ter primazia absoluta a exigência de segui-lo. Desse chamado não podia provir nenhuma escola filosófica ou rabínica, com certeza, porém, um "discipulado". C próprio discípulo é comprometido com a causa do reino de Deus. Ele recebe a incumbência: "Tu, porém, vai, e prega o reino de Deus" (Lc 9, 60). Do mesmo modo, dá-se a promessa da vida eterna àqueles que "deixaram tudo" e o seguiram (Mc 10, 28ss par.) O compromisso do discípulado, portanto, não é somente pessoal, mas também "objetivo", a saber, participação no anúncio do reinado de Deus. Pelo menos foi assim que os evangelistas compreenderam o discipulado. Em correspondência o chamado Sermão Missionário reza também: "A medida que seguirdes, pregai que está próximo o reino dos céus" (Mt 10, 7; 6.Lc 9, 2). Todas essas concep~õestiveram que sofrer uma profunda transformação na comunidade após a Páscoa ou ser substituídas por outras, por exemplo, o estar "em Cristo", o "andar conforme o Espírito" em Paulo etc. Discipulado nos moldes do tempo do Jesus histórico agora não era mais possível.

8.

Sumário: ética escatológica

A proclamação escatológica da proximidade do reinado de Deus e a exigência ética de Jesus constituem uma unidade. Podemos distingui-las, mas não separá-las uma da outra. A vinda do reinado de Deus traz consigo também a revelação definitiva da vontade de Deus. "Venha o teu reino - faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu" (Mt 6, 10). Essa vontade precisa ser executada. Não basta apenas a submissão à vontade divina. Não é lícito, em resultado, transformar Jesus em mero pregador de moral, como fez o Iluminismo do século XVII, nem em simples "apocalíptico" que apregoa o fim do mundo. O "kairós" do reino vindouro de Deus qualifica a pessoa de tal maneira que ela pode receber agora a salvação do reino de Deus e tornar-se, simultaneamente, portadora e praticante da vontade divina no amor. Todavia constatamos que a formulação e fundamentação escatológicas da ética não a tornam numa "ética de ínterim" para os últimos dias. Justamente por esse motivo a comun dade após a Páscoa pôde adotar a ética de Jesus e considerá-la v ' ida e compromissiva para si própria; por isso os evangelistas puderam aceitar a tradição sobre Jesus e atualizá-la para as suas comunidades. Não é suficiente procu'rar ver a conexão entre escatologia e ética sgmente no chamado a "meia-volta" ou na radicalização da lei. Toda a ética de Jesus é ética escatológica do reino de Deus, a

d

qual fundamenta e possibilita a partir do "kairós" o "novo" modo de agir. A unidade em parte alguma é exposta teologicamente, mas está, implicitamente, contida e dada na proclamação de Jesus. Quando se vê essa unidade, emerge também a pergunta cristológica: Quem é esse pregador do reino de Deus? Quem é o homem que ultrapassa radicalmente a lei de Moisés? Os evangelistas ouviram a pergunta, e cada um a respondeu a seu modo. A unidade de escatologia e ética tem para eles natureza escatológica, o que, aliás, os reúne a Paulo, a despeito das diferenças terminológicas. Jesus foi para eles mais do que um pregador do reino de Deus, ele foi, em sua pessoa, o portador da salvação, o detentor do reino de Deus. A partir dessa convicção eles interpretavam o mandamento de Jesus e seu chamado ao discipulado. Na plenitude do reino de Deus obviamente não serão mais necessárias nem exigência nem ética. Nesse sentido a palavra "ínterim" de fato possui uma componente verdadeira. Para os discípulos (ou, após a Páscoa: a comunidade) a ética escatológica vigora até a consumação do reino de Deus e até o fim do mundo. Na plenitude do reino de Deus igualmente não existem mais a contraposição ao mal, nem tampouco as "ordens" mundanas como matrimônio e Estado. Por fim, é preciso romper a interpretação puramente individual da ética de Jesus, que ainda vigora em larga escala na Igreja evangélica, e destacar a relevância ético-social da sua proclamação. Em primeiro lugar, a ética escatológica de Jesus significa o questionamento de todo o "éon" em vias de se findar, isto é, do período deste mundo com ;odas as suas formas de vida, instituições e valores. Com o início do reino de Deus anula-se o peso metafísico de ordens ontológicas supostamente eternas. Advém daí estabelecimento fundamental de sua relatividade. Da aproximação do reinado de Deus resulta uma nova qualificação de tcdas as instituições, os poderes e os bens "mundanos", a qual a filosofia helenista desconhece. Em segundo lugar, a investida de Jesus contra a interpretação rabínica da lei e contra a lei de Moisés não é apenas um ataque "religioso" a uma teologia e praxe jurídica, mas a comunidade de f é judaica como um todo e, desse modo, a sociedade judaica da época em seus alicerces, pois que sistema social e comunidade de fé são, no caso judaico, idênticos. Nesse particular os entusiastas e os socialistas dos séculos XIX e XX reconheceram corretamente que na proclamação de Jesus, por menos que ele possa ser denominado reformador social ou revolucionário no sentido moderno dos termos, estava oculto e implícito um poder de transformar o mundo. Um poder que transcendia em muito a fundamentação de uma nova

ética individual e que sempre de novo se desprendeu e se tornou "virulento" na história da Igreia. O mandamento do amor contém mais do que uma norma para a ação de cristãos dispersos. Ele é o agente "perturbador" da estática das ordens sociais e eclesiásticas vigentes. Põe a descoberto todas as injustiças e todo abuso de poder neste mundo. Possui um poder e uma função de criticar a sociedade.

"O significado ético-social da radicalização dos mandamentos no Sermão do Monte é pelo menos tão grande quanto o ético-individual" (P. Noll, Jesus und das Gesetz, 1968, p. 23). O autor que acabamos de citar diferencia rigorosamente entre a proclamação do mandamento por Jesus e todas as filosofias e teologias da "ordem", antigas, medievais e modernas, inclusive a dos epígonos de Lutero (op. cit., pp. 28s). Jesus não compartilha a sua "supervalorização acrítica de ordens estáveis" (p. 28). Na realidade tais teologias da "ordem" sempre de novo conduziram, na história da Igreia e da teologia, a suavizações, abrandamentos ou alterações - sejam elas individualistas, sejam espiritualistas - do significado do Sermão do Monte e da universalidade dos mandamentos radicais de Jesus, em especial do mandamento do amor ao próximo. Isso aconteceu, por exemplo, nos séculos XIX e XX, mediante o recurso a uma deformação da doutrina dos dois reinos e conjuntamente mediante a declaração de que todos os setores do mundo possuem "autonomia própria". Há que convir em que os conceitos dessa problemática moderna não devem ser introduzidos na exegese da tradição sinótica acerca de Jesus, mas, por outro lado, também não devem ser obnubiladcs ou até esquecidos o Sermão do Monte e sua dinâmica de abalar e limitar, de maneira realista-escatológica, todas as estruturas sociais humanas. Nesse ponto o "entusiasmo" e o "quiliasma", tantas vezes difamados, revelam-se acertados, em contraposicão a ética de intenção (cf. acima, o item 4c sobre o Sermão do hlonte), integrada na sociedade constituída e que fez desaparecer a reivindicação universal e quase que provocativa dos mandamentos de Jesus.

qual fundamenta e possibilita a partir do "kairós" o "novo" modo de agir. A unidade em parte alguma é exposta teologicamente, mas está, implicitamente, contida e dada na proclamação de Jesus. Quando se vê essa unidade, emerge também a pergunta cristológica: Quem é esse pregador do reino de Deus? Quem é o homem que ultrapassa radicalmente a lei de Moisés? Os evangelistas ouviram a pergunta, e cada um a respondeu a seu modo. A unidade de escatologia e ética tem para eles natureza cscatológica, o que, aliás, os reúne a Paulo, a despeito das diferenças terminológicas. Jesus foi para eles mais do que um pregador do reino de Deus, ele foi, em sua pessoa, o portador da salvação, o detentor do reino de Deus. A partir dessa convicção eles interpretavam o mandamento de Jesus e seu chamado ao discipulado. Na plenitude do reino de Deus obviamente não serão mais necessárias nem exigência nem ética. Nesse sentido a palavra "ínterim" de fato possui uma componente verdadeira. Para os discípulos (ou, após a Páscoa: a comunidade) a ética escatológica vigora até a consumação do reino de Deus e até o fim do mundo. Na plenitude do reino de Deus igualmente não existem mais a contraposição ao mal, nem tampouco as "ordens" mundanas como matrimônio e Estado. Por fim, é preciso romper a interpretacão puramente individual da ética de Jesus, que ainda vigora em larga escala na Igreja evangélica, e destacar a relevância ético-social da sua proclamação. Em primeiro lugar, a ética escatológica de Jesus significa o questionamento de todo o "éon" em vias de se findar, isto é, do período deste mundo com iodas as suas formas de vida, instituições e valores. Com o início do reino de Deus anula-se o peso metafísico de ordens ontológicas supostamente eternas. Advém daí estabelecimento fundamental de sua relatividade. Da aproximação do reinado de Deus resulta uma nova qualificação de tcdas as instituições, os poderes e os bens "mundanos", a qual a filosofia helenista desconhece. Em segundo lugar, a investida de Jesus contra a interpretação rabínica da lei e contra a lei de Moisés não é apenas um ataque "religioso" a uma teologia e praxe jurídica, mas a comunidade de fé iudaica como um todo e, desse modo, a sociedade judaica da época em seus alicerces, pois que sistema social e comunidade de fé são, no caso judaico, idênticos. Nesse particular os entusiastas e os socialistas dos séculos XIX e XX reconheceram corretamente que na proclamação de Jesus, por menos que ele possa ser denominado reformador social ou revolucionário no sentido moderno dos termos, estava oculto e implícito um poder de transformar o mundo. Um poder que transcendia em muito a fundamentação de uma nova

ética individual e que sempre de novo se desprendeu e se tornou "virulento" na história da Igreja. O mandamento do amor contém mais do que uma norma para a ação de cristãos dispersos. Ele é o agente "perturbador" da estática das ordens sociais e eclesiásticas vigentes. Põe a descoberto todas as iniustiças e todo abuso de poder neste mundo. Possui um poder e uma função de criticar a sociedade.

"O significado ético-social da radicalização dos mandamentos no Sermão do Monte é pelo menos tão grande quanto o ético-individual" (P. Noll, Jesus und das Gesetz, 1968, p. 23). O autor que acabamos de citar diferencia rigorosamente entre a proclamação do mandamento por Jesus e todas as filosofias e teologias da "ordem", antigas, medievais e modernas, inclusive a dos epígonos de Lutero (op. cit., pp. 28s). Jesus não compartilha a sua "supervalorização acrítica de ordens estáveis" (p. 28). Na realidade tais teologias da "ordem" sempre de novo conduziram, na história da Igreja e da teologia, a suavizações, abrandamentos ou alterações - sejam elas individualistas, sejam espiritualistas - do significado do Sermão do Monte e da universalidade dos mandamentos radicais de Jesus, em especial do mandamento do amor ao próximo. Isso aconteceu, por exemplo, nos séculos XIX e XX, mediante o recurso a uma deformação da doutrina dos dois reinos e conjuntamente mediante a declaração de que todos os setores do mundo possuem "autonomia própria". Há que convir em que os conceitos dessa problemática moderna não devem ser introduzidos na exegese da tradição sinótica acerca de Jesus, mas, por outro lado, também não devem ser obnubiladcs ou até esquecidos o Sermão do Monte e sua dinâmica de abalar e limitar, de maneira realista-escatológica, todas as estruturas sociais humanas. Nesse ponto o "entusiasm~" e o "quiliasma", tantas vezes difamados, revelam-se acertados, em contraposicão à ética de intenção (cf. acima, o item 4c sobre o Sermão do hlonte), integrada na sociedade constituída e que fez desaparecer a reivindicação universal e quase que provocativa dos mandamentos de Jesus.

Capitulo II A COMUNIDADE PRIMITIVA Formas e fórmulas novas da 6ticr

Nota prévia metodológica Não possuímos escritos ou outros documentos da época das primeiras comunidades antes de Paulo. Por isso é extremamente difícil relatar e apreender a ética das primeiras comunidades, seja a de Jerusalém, seia a de Antioquia. Dependemos de inferências a partir das cartas paulinas, dos Atos dos Apóstolos e dos evangelhos, e não podemos ir além de conieturas na maioria dos casos. Além do fato de oferecerem muito pouco material, também os Atos dos Apóstolos não podem ser utilizados como fonte direta para as comunidades pré-paulinas. Sem dúvida o livro contém tradições mais antigas, contudo deu-lhes forma e estilo em conformidade com a concepção teológica de Lucas. A imagem da Igreia primitiva que Atos dos Apóstolos esboçam foi desenvolvida a partir dos pontos de vista de uma época posterior. Material importante está contido nas cartas de Paulo, por exemplo, a confissão comunitária pré-paulina em I Co 15, 3ss, a tradição acerca da Santa Ceia em I Co 11, 23ss, o hino cristológico pré-paulino em FI 2, 5ss, referências a mandamentos de Jesus em Rm 12, 14 (cf. I Co 4, 12) e I Co 7, 10. Também o catálogo de normas para a vida doméstica em CI 3, 18ss foi adotado por Paulo da comunidade em que ele próprio se tornou cristão. Todo esse material, entretanto, não é suficiente para que se possa conseguir um quadro real, e muito menos completo, da ética das primeiras comunidades.

1.

Situação pré e pós-paxoal

Em sua "Teologia do Novo Testamento" (1 ed. 1953, 6.a ed. 1968) Rudolp Bultmann apresentou uma brilhante reconstrução da teologia das comunidades helenistas antes e no tempo de Paulo, que é

admiravelmente completa. Contudo, em vista da natureza fragmentária dos escritos apresentados no Novo Testamento, também ela se baseia em um número considerável de inferências, cujos graus de probabilidade e cuja importância podem ser avaliadas de maneiras bem distintas. A ética do Novo Testamento está bem A margem da apresentação de Bultmann da teologia do Novo Testamento. No campo das tradições éticas nas comunidades pré-paulinas as induções a partir das cartas paulirias ou dos Atos dos Apóstolos devem ser feitas com cautela especialmente grande e com cuidado crítico. O historiador d; cristandade primitiva tem razão ao constatar que os escritos de Lucas devem ser tratados após as cartas paulinas, porque pertencem a uma época muito posterior da história da cristandade primitiva. Desviar-nos-emosdessa regra somente pelo motivo de poder, talvez, descobrir e retratar material tradicional de origem e características anteriores a Lucas. A Páscoa constitui a origem da comunidade cristã. Ela resulta das aparições do Ressurrecto e da pregação das testemunhas pascoais. A comunidade que se forma a partir da Páscoa devemos a coleção do material sobre Jesus nas diferentes formas dos três primeiros evangelhos. A comunidade pós-pascoal é uma comunidade que ouve e interpreta. Aceitando as palavras d e Jesus e reconhecendo-lhes a autoridade, ela também as interpreta e aplica a suas perguntas e necessidades nas novas situações históricas. Para Mateus ocupa o lugar central a disputa em torno da lei e a controvérsia com a religiosidade iudaica; para Lucas a situação é totalmente diversa (Compare-se, p. ex., o Sermão do Campo em Lc 6, 20ss com Mt 5-7). Acentuam-se, pois, e aplicam-se diferentemente as palavras de Jesus nas situacões históricas distintas da comunidade. O aue Jesus disse e fez antes da Páscoa aparece, depois dela, sob uma no'va perspectiva, ao ser validado na comunidade dos que crêem em Cristo. Conseqüentemente existe uma profunda cesura entre a proclamação de Jesus e a ética da comunidade pós-pascoal: a Páscoa. Os evangelhos vêem à luz da Páscoa tudo o ave houve antes da Páscoa. O mandamento do Jesus histórico passa a ser agora o mandamento do Senhor ("kyrios"), do "Filho do Homem", isto é, o Juiz universal e redentor do mundo, por cuja vinda a comunidade espera. Segundo a formulação joanina (Jo 13, 34) o mandamento de Jesus, por isso, é agora o "novo mandamento". Sem a Páscoa não haveria tradição das palavras de Jesus e, por conseguinte, também não dos mandamentos de Jesus, do Sermão do Monte em Mateus e do "Sermão do Campo" em Lucas. A comunidade após a Páscoa, no entanto, não enveredou pelo caminho de desenvolver, por assim dizer, diretamente a partir da

Páscoa uma cristologia e ética de modo independente e criativo. Não, ela indaga pelas palavras de Jesus, coleciona.as. Portanto podemos dizer que o conteúdo da situacão de anies da Pbscoa é introduzido na situação pós-pascoal, por exemplo, o contiecirriento da vinda do reino de Deus. Não é indiferente, mas tem máxima importância o que Jesus afirmou acerca do sábado, das leis de purificùçSo, do ii-nposto para o César, do amor para com o próximo, etc. A ressurreição como que projeta a sua luz também para trás, por sobre os feitos e as palavras de Jesus antes da Páscoa. O próprio Paulo, tantas vezes apresentado erroneamente como gênio teológico solitário, sabe que está vinculado a palavra de Jesus sobre q divórcio (I Co 7, 10) e explica o mandamento de Jesus sobre o amor (Rm 12, 14ss). Situa-se, desse modo, dentro da tradição da comunidade após a Páscoa. Muito embora pudesse remeter-se a "posse" do Espírito Santo [I Co 7, 40), a palavra do Senhor detém, para ele, autoridade máxima e compromissiva. Naturalmente não devemos em absoluto entender essa afirmação como se não tivesse havido uma evolução da ética depois da Páscca! Ocorre justamente o contrário, como o comprovam de modo mais convincente Paulo e, dentre os seus escritos, sobretudo a primeira epístola aos Coríntios. Agora é que se apresentam situações históricas novas, e para grande número, se não para a maioria delas não existem palavras de Jesus. E preciso tomar decisões novas, próprias, a partir da fé em Cristo. Ou, então, necessita-se dar nova interpretação ao mandamento do amor, como Paulo o faz em I Co 8 e 10, ao lutar com os gnósticos coríntios. Era preciso combinar a dádiva do Espírito divino com as exigências da ética, com o mandamento do amor, o que Paulo também fez (p. ex., I Co 12-14). Necessitavam-se orientações referentes ao matrimônio, a posição frente ao poder político, sendo que a situação era completamente outra do que a de Jesus e seus discípulos antes da Páscoa. Empregaram-se sabedoria de vida e normas éticas dos iudeus e gregos, tal como nos catálogos de vícios e virtudes ou de normas para a vida doméstica. Nesse aspecto a comunidade estava livre de qualquer sorte de purismo cristão (como se nas instruções éticas tudo tivesse que ser pura e originalmente "cristão"). Toma-se aquilo de que se tem necessidade. Quanto mais tempo a Igreja precisa, após a Páscoa, de conviver com o mundo, tanto mais intensa torna-se essa necessidade. Afinal, não se pode cogitar em citar exclusivamente palavras de Jesus. Principia, portanto, na Páscoa aquela época da evolução da ética cristã, da ética comunitária, que continua até o dia de hoje. É uma ética que a) provém da mensagem da salvação e da cristologia, e que b) se encontra em constante confronto com o mundo, com a érica de pagãos e judeus, com novas perguntas e situações históricas.

Pela Páscoa, pois, inicia-se um novo desenvolvimento da dtica cristã ou, primeiramente, da ética da cristandade primitiva. Ela trilha novos caminhos, embora se considere vinculada ao mandamento d o amor, dado por Jesus. A existência simultânea e alternada de tipos diferentes de éticas - Paulo, João, Tiago, cartas pastorais, etc. - revela nitidamente um grande espaço de liberdades e possibilidades: Não se prende ninguém a um códice de leis morais prontas. Podemos dizer realmente: Também nisso se concretiza a multiplicidade dos dons espirituais. Por isso, outrossim, é impossível reduzir a dtica da Igreja primitiva a uma ou duas fórmulas. Temos que levar em consideração essa multiplicidade, evitando toda sistematização sob um único conceito central. Somente no fim poderemos levantar a questão da unidade da ética npotestamentária. Está claro que o desenvolvimento da ética neotestamentária também se pode processar de tal modo que a fé pascoal e a nova situação histórica influenciem sobre a tradição das palavras d e Jesus. Assim essas últimas tornam-se expressão e orientação da ética comunitária pós-pascoal. O Sermão Missionário em M t 10, 5ss, por exemFIO,não é apenas palavra de Jesus, mas também palavra da comunídade judaico-cristã após a Páscoa, ao falar, entre outras, de sofrimento e perseguição (Mt 10, 1 7 s . 26s). Em M t 18, 15ss encontramos parte de uma ordem de comunidade que regulamenta o procedimento perante um irmão pecador. Estabelecem-se, por assim dizer, as vias de tramitação. A última instância é a comunidade - precisamente esse termo é empregado, apesar de que nem havia nem podia haver uma comunidade antes da Páscoa. A autoridade para perdoar os pecados foi transferida, no caso, de Jesus para a comunidade. Era uma medida possível somente por meio e a partir da Páscoa, fato que tambdm a tradição de João 20, 21ss deixa transparecer claramente. Surgem, agora, forçosamente novas autoridades éticar: a) A comunidade, o povo eleito e agraciado d e ~ e u i .Segundo I Co 5, lss a comunidade precisa de decidir sobre um grave incidente de devassidão ocorrido em Corinto. Paulo censura que a comunidade ainda não interferiu pessoalmente. b) O apóstolo, p. ex., Paulo, que reivindica a posição de orientador das comunidades, visto ser ele o pai espiritual das mesmas (cf., p. ex., I Co 4, 14s). Incluída está também a autoridade de admoestar e dar instruções. A todas as comunidades ele ensina os seus "caminhos em Cristo" (I Co 4, 17), a saber, seus preceitos, a parênese, que tem por objetivo auxiliar as comunidades a concretizarem uma vivência cristã. Considerando que tal parênese sempre fez parte da prédica missionária, devemos supor que outros apóstolos e missionários procederam de modo semelhante a Paulo. Quando

alguém se tornava cristão, quando surgia uma comunidade, tais instruções eram necessárias e inevitáveis. c) Aos apóstolos, missioná'rios e fundadores de comunidades agregam-se mais tarde os dirigentes de comunidades, que estão incumbidos da proclamação do Evangelho e que ocupam o cargo de "pastores" do "rebanho". A proclamação ética, enfim, não podia parar com a morte dos apóstolos e discípulos dos apóstolos. A comunidade pós-pascoal dela carece constantemente. Mas acima de todos encontra-se, como autoridade suprema e última, o Senhor divino, que também será o Juiz universal. Todos os cristãos são, em terminologia paulina, seus "escravos". Em retrospecto divisamos, portanto, três formas do desenvolvimento da ética depois da Páscoa: 1) a palavra de Jesus, adotada e acatada, que pela Páscoa recebe nova legitimação e vigência; 2 ) a palavra de Jesus reinterpretada, uma interpretação condicionada pela situação histórica da comunidade depois da Páscoa; 3) c desdobramento posterior da ética cristã primitiva com novos conceitos, tais como na ética pneumática de Paulo, na fundamentação cristológica da ética, na parênese batismal e no confron:~ com as grandezas e estruturas mundanas. Também na ética a Igreja progride, a partir da Páscoa, em direção de uma nova era. Quem considera o Espírito como o elemento novo decisivo na comunidade pós-pascoal, poderia achar que o desenvolvimento da ética foi baseado unicamente sobre o princípio do Espírito. Contudo nem mesmo em Paulo isso acontece, uma vez que podemos encontrar várias fórmulas com as quais ele fundamenta as instruções éticas. O Espírito é sempre o "Espírito do Senhor'' (I1 Co 3, 17). Conseqüentemente ele não pode ser a-histórico nem estar em contraposição à palavra de Jesus. Tendo em vista que o Espírito é a presença do Senhor, não havia possibilidade de se desenvolverem a partir dele quaisquer conteúdos éticos a bel-prazer. Não tiveram influência, sobre a evo. lução da ética cristã primitiva, entusiastas corno os de Corinto, que deduziam a liberdade total do fato de possuírem o Espírito. Por natureza faltam à ética de Jesus antes da Páscoa várias formas éticas que podiam surgir somente após a Páscoa. Cite-se sobretudo a parênese do batismo, que pressupõe a prática do mesmo. Ela se salienta com muita nitidez em Paulo (cf. R r n 6, 2ss com 6, 1 lss; I Co 6, 11: "mas vós vos lavastes. . ."). O mesmo vale principalmente também para todas as fundamentações c.ristológicas da ética, que voltam o olhar para a cruz e ressurreição de Cristo e fundamentam o imperativo sobre o indicativo do evento da salvação iá rea!izada (cf. cap. III, item 1). Damos apenas um exemplo: "pois.. . Cristo, nosso Cordeiro pascal, foi imolado" (I Co 5, 7). Por isso se

exige da comunidade que "lance fora o velho fermento"; é a exigência da pureza. Apresenta-se aqui um modelo da nova fundamentação do mandamento que na verdade se torna possível somente a partir da Páscoa (cf. I Co 6, 11). Podemos denominá-lo de um chamado de volta a Cristo, de uma memória de Cristo: Recordai-vos do que já sois, do que Cristo fez de vós; adotai-o em vossa vida e em vosso agir! Falar dessa forma, no entanto, é possível somente após a Páscoa. Na ética pré-pascoal, em contrapartida, pode-se falar somente assim como nas bem-aventuranças (Mt 5, 3ss par.) ou nas parábolas do reino de Deus: O reino de Deus vem agora, ele está próximo, por isso "dai meia-volta'' (Mc 1, 15 par.). Por isso existe agora liberdade perante a lei, e :, homem está acima do sábado. Na nova conjuntura da salvação a lei é radicalizada e as ordens humanas que os rabinos e fariseus colocaram no Iugar da vontade de Deus, são abolidas. Tudo isso se reporta à salvação que, naquele instante, irrompe, transpondo o limiar para o presente. Devido a situação da proclarnação de Jesus, está fora de cogitação a possibilidade de uma visão retrospectiva antes de sua morte. Revela-se, portanto, mais uma vez que a Páscoa e a fé pascoal iniciaram e embasaram iniportitnles evolu~õesda ética cristã primitiva, as quais nos cabe analisar mais detalhadamente nos capítulos subseqüentes.

2.

A primeira comunidade judaico-cristã e a lei

Como já indicamos acima, é bastante reduzido o êxito quando nos dirigimos aos Atos dos Apóstolos para descobrir algo a respeito da ética da comunidade primitiva em Jerusalém e na Palestina. Se apontássemos para os conhecidos "sumários" dos Atos dos Apóçtolos, isto é, para os breves resumos que pretendem caracterizar a vida da primeira comunidade (At 2, 42s; 4, 32), haveria que dizer com referência a eles que fornecem uma imagem ideal da primeira comunidade tdl qual as comunidades no tempo de Lucas a conceberam. Nem por isso a imagem precisa de carecer de qualquer fundamento na realidade histórica, embora deva ser utilizada com c;rcunspeção. O mesmo vale para a afirmação de que os primeiros cristãos tinham tudo como propriedade comum (At 4, 32). Evidentemente ela é antes de tudo uma generalização do fato de que alguns cristãos renuncia,ram à sua propriedade, como, p. ex., Barnabé (At 4, 36s; cf. também 5, l s s , a história sobre Ananias e Safira). Constituiu uma interpretação infeliz e completamente errônea designar esse procedimento "comunismo da Igreja primitiva", pois não tem absolutamente nada a ver com comunismo. O comunismo é um sistema social

completo que se apóia sobre a extinção da propriedade p ~ i v a d anos meios de produção. Na comunidade primitiva, entretanto, não verificamos um movimento para revolucionar a ordem social da propriedade. Ele seria totalmente inconcebível naquela época, ainda mais no contexto judaico. Em segundo Iugar, não se fala de uma regulamentação geral d o regime de posse por lei. Portanto, não é estatuto da comunidade "ter tudo em comum". Trata-se, porém, de u m a ilustração do poder do amor. Alguns oferecem um sacrifício de sua propriedade. Certamente isso ainda é o suficiente para se enaltecerl Igualmente foi e é de todo enganoso falar em "comunismo de amor". Se a questão for amor, não poderá tratar-se de comunismo, e o mesmo vale para a recíproca! O sistema social comunista não 4 baseado sobre amor, porém sobre poder revolucionário. O amor, por sua vez, não pode ser transformado em lei, nem no estatuta de uma sociedade. Contudo é muito provável que Lucas foi influenciado por uma concepção antiga sobre a "vida em comunhão". A o que parece, existe também uma relação com Dt 15, 4: "para que entre ti (Israel) não haja pobre". Ademais, a ameaça ao homem por causa da riqueza ocupa um papel considerável em Lucas. A parábola do rico fazendeiro (Lc 12, 16ss) mostra-nos a falsa segurança de um homem que confia na abundância dos bens terrenos, em sua colheita copiosa, mas que repentinamente é chamado perante o Juízo de Deus. Contudo a única coisa que importa é ser rico "para Deus" (Lc 12, 21). Assim o revelam também os "ais" sobre os ricos e fartos (Lc 6, 24s) que "têm a sua consolação", isto é, que são submetidos a julgamento. Por se abandonarem a sua riqueza, os ricos são, portanto, os principais representantes do mundo que vive em oposição ao reino de Deus. Na mesma direção aponta a narração do rico que não se consegue decidir a distribuir seus bens aos pobres e atender ao chamado para o discipulado (Lc 18, 18ss par.). Lucas acentua, de modo visivelmente mais intenso do que Mateus, a condenação do rico. Estar preso a riqueza significa ser incapaz de tomar a decisão a favor do reino de Deus vindouro e do discipulado de Jesus. Com clareza se reconhece, pois, que, do ponto de vista escatológico, posses e fortuna constituem um impedimento para o homem. Todavia mesmo Lucas não elabora uma teoria "anticapitalista" da propriedade. A pergunta pelo significado da exigência de Jesus para a economia daquele tempo nem é levantada. O interesse dirige-se unicamente à libertação do homem que está preso às posses e riquezas. Do mesmo modo Mateus diz em 6, 19ss que não se devem aiuntar riquezas sobre a terra, mas "no céu". Também para ele estão em jogo a correta prontidão para o reinado de Deus e a primazia de aspirar por ele (cf. M t 6, 33). O pronunciamento sobre o espírito pagão da

ppboeupaçao (Mt 6, 24ss) mostra que nesse texto a questão não é apenas a riqueza, mas a própria relação errada para com propriedade, patrim8ni0, alimento e vestes. "Ninguém pode servir a dois senhores" (Ml 6, 24), a saber, a Deus e à riqueza (propriedade). Apenas é posslvel devotar-se ou a um ou ao outro, de modo que está claramente formulada a pergunta decisória entre reino de Deus e os bens terrenos, ou melhor, a dependência desses últimos. O tema em pauta não é a revolução social que desalojaria os ricos de sua posição privilegiada, mas a instrução da ética escatológica para todos, visto que também uma propriedade de pouca monta pode impedir o homem a seguir a Jesus. Digna de nota é a diferença entre Lucas e Mateus, que reside em que no último faltam os "ais" sobre os ricos. Vemos que na concepção de Mateus já se inicia aquela evolução da tradição ética que levou à espiritualização e ao abrandamento da critica aos ricos e poderosos em sua relação com os pobres e fracos. Cabe no presente contexto que sejam ressaltados ainda OUtras afirmações do Novo Testamento referentes a propriedade, pobreza e riqueza. E conhecida comumente e repetida há decênios a seguinte delimitação: Assim como Jesus não foi um reformador social ou, até, um revolucionário social, assim o Novo Testamento também desconhece quaisquer exigências para a mudança do sistema econômico e da ordem social; não se abordam, como temas, as questões da filosofia social. Inexistem no Novo Testamento para o "Estado" de Platão ou a "Polí-tica" de Aristóteles. Não é função do Novo Testamento analisar cientificamente as realidades do mundo. Por isso perguntas como a da avaliação de propriedade, pobreza e riqueza emergem quase exclusivamente no contexto da parênese, a saber, quando a situação dos ouvintes ou leitores requer uma orientação concreta. Além do mais, o Novo Testamento encara todas essas grandezas e poderes do mundo escatologicamente, isto é, a partir do reino vindouro de Deus, o que quer dizer, ao mesmo tempo, a partir da relação Deus homem, que é a única que importa. Por isso lemos que não devemos ajuntar riquezas terrestres, as quais são corroídas pela traça e pela fkrrugem (Mt, 6, 19ss). Não se pode servir simultaneamente a dois senhores, a Deus e à riqueza (propriedade, M t 6, 24). O senhorio de Deus sobre o homem exclui qualquer outro senhorio. Não se combate a propriedade "como tal", isto é, como uma grandeza econ8mica dada, mas ela é pressuposta como algo bem natural para o mundo dos homens. Em alternativa, os escritores neotestamentSrios dirigem frequentemente sua atenção à relação propriehomem. A posse exerce poder sobre o coração do homem. dade Foi isso o que já constatamos no exemplo do iovem rico que foi incapaz de corresponder .ao chamado do discipulado, porque possvla

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muitas propriedades (Mt 1 9, 16s~). O homem abandona-se ao poder da riqueza. O Novo Testamento considera essa uma das principais formas de manifestação da descrença, razão pela qual os ricos são os principais representantes do "mundo" contraposto ao reino de Deus. Daí os "ais" por sobre os ricos que iá têm o seu salário; a sentença divina já foi proferida sobre eles. A mesma orientação segue Tg 5, lss: Aos ricos, ateístas, anuncia-se com grande veemência o iuízo escatológico de Deus, porque viveram regalada e luxuosamente e acumularam tesouros terrenos ainda nos dias derradeiros. A recíproca de semelhante procedimento é a injustiça social, que Tiago estigmatiza, pois os ricos retiveram aos trabalhadores da colheita o salário merecido. Tiago junta-se, desse modo, a Jeremias 22, 13: Não devemos deixar nosso vizinho trabalhar de graça; ai daquele que não paga ao trabalhador o seu salário. Porque Jesus se apercebe do poder inaudito que a propriedade exerce sobre o coração e conjuntamente sobre o agir prático do homem, é concebível a sua severa palavra de que antes um camelo passaria pelo fundo de uma agulha do que um rico entrasse no reino de Deus (Mc 10, 25 par.). Assim, a "sedução das riquezas" também faz parte dos poderes que sufocam a palavra de Deus nos corações (Mc 4, 19, na explicação da parábola do semeador). Esse tipo de considerações é ético apenas em sua conseqüência, secundariamente, a saber, ao ser escatológico-critico e revelar como é perigoso para o homem o poder da propriedade. Todas essas declarações são apenas o reverso da exigência central positiva que Mateus apresenta da seguinte forma: "Buscai em primeiro lugar o reino de Deus e sua justiça. . ." (Mt 6, 33). Afirmações correspondentes podem-se fazer com respeito à pobreza. Conforme já acontecia no Antigo Testamento, ela é muito bem conhecida ao Novo Testamento como uma realidade econômica que faz parte da vida diária. Não é glorificada nem sublimada na forma do "ideal da pobreza" dos ascetas, mas, assim como posse e riqueza, ela é submetida a luz escatológico-crítica. Os pobres como tais não são ainda detentores da salvação, pelo contrário, o reino de Deus precisa de ser-lhes anunciado e prometido (Lc 6, 20s). Acrescentando-se "no espírito" em Mt 5, 3 ("pobre de espírito" Lutero), é evitado o mal-entendido de que a pobreza como tal possuiria qualidade religiosa. O que acontece, porém, é que se adota a "piedade inspirada na indigência", veterotestamentária e judaica, e se encara o pobre como aquele que depende total e exclusivamente de Deus de sua aiuda e aspira pela justiça de Deus. Na miséria e no desamparo os pobres podem ter esperança apenas em Deus. Assim o pobre é o protótipo do homem que alme,ja pela salvação escatoIbgica. Torna-;e, pois, simultaneamente relativa a diferença entre O economicamente pobre e o economicamente rico. Também um rico

pode encontrar o caminho do discipulado, também ele pode receber participação no reino de Deus, como demonstra o exemplo do publicano Zaqueu (Lc 19, 2 ss). Ele faz com que aquilo que lhe aconteceu seja acompanhado de uma ação própria: Dá a metade de sua propriedade aos pobres e restitui com juros múltiplos os bens injustamente extorquidos (Lc 19, 8). E provável que Lucas entendeu a narração em sentido parenético: Assim devem proceder membros ricos da comunidade de Jesus. Estabelece-se, portanto, também uma conexão com os sumários dos Atos dos Apóstolos, brevemente abordados acima. A ilustração contrária é fornecida pela parábola do fazendeiro rico, que se torna seguro de si em vista da colheita; mas Deus interfere e o chama ao Juízo (Lc 12, 16s). Ali de nada lhe valem as riquezas terrenas. Em ambas as tradições, portanto, o rico é colocado com sua riqueza na dimensão da decisão, na qual estão em jogo Deus e a salvação divina. Podemos depreender de I Co 1, 26ss que nas comunidades missionárias de Paulo os ricos, bem como os detentores do poder ou os intelectuais, não exerciam nenhuma influência. A cena de Tg 2, lss, no entanto, nos introduz numa época em que acontecia que também ricos visitavam ocasionalmente as reuniões da comunidade. Um rico ornado com anéis de ouro e vestido com trajes luxuosos visita a reunião da comunidade e recebe a solícita indicação de um bom lugar. O pobre que entra na mesma ocasião é designado para um lugar em pé ou para assentar-se no chão. Tiago adverte a comunidade diante de tal "acepção de pessoas". É inadmissível que na comunidade de Cristo se façam semelhantes discriminações. Tiago combina esse relato com uma caracterização dos pobres em contraposição aos ricos, no estilo da "religiosidade inspirada na indigência" (2, 5ss): Os pobres são eleitos por Deus e ricos em fé. Os ricos os oprimem, arrastam-nos para os tribunais e até blasfemam o bom nome que foi invocado por sobre os pobres. Encontramos, pois, mais uma vez o protótipo do rico ateu. Tanto ele como o pobre não podem ser definidos econômica ou socialmente, embora tais características não faltem. Trata-se antes de uma concepção escatológico-crítica. Mas, como podemos constatar no exemplo de Zaqueu, não se procede apenas a uma crítica teórica do rico. A concepção escatológicocrítica, pelo contrário, é ao mesmo tempo instrução para o agir dos discípulos de Jesus. No Novo Testamento, é verdade, existem também escritos, em cujo horizonte não aparecem riqueza nem pobreza, p. ex., os joaninos. A prática ascética da Igreja posterior derivou daqueles textos que se deve viver de modo pobre e sem posses. Existindo um direito relativo do celibato na comunidade de Cristo (I Co 7), realmente não há por que negar a possibilidade de existir na Igreja a renúncia à propriedade. O que não significa que a po-

breza econômica como tal já representasse um atestado para ingressar no reino de Deus. Problemas bem outros se apresentam quando recorremos ao evangelho segundo Mateus como fonte. Mateus pertence à comunidade iudaico-cristã e escreve para ela. A Igreja é para ele o Israel verdadeiro. Em Jesus, Messias de Israel, cumpriram-se todas as promissões salvíficas de Deus ao seu povo. Sobre essa base Mateus faz sua apresentação dos feitos e ditos de Jesus. A comunidade primitiva judaico-cristã vive ainda englobada pelo judaísmo. Não se desprende de seu povo. Isso, contudo, acarreta uma intensa controvérsia sobre o problema da lei e com a interpretação da lei e a doutrina da justiça rabínicas. Com efeito, o evangelho de Mateus nos permite também observar essa disputa. Era possível que a comunidade judaico-cristã permanecesse totalmente fiel à lei, com exceção de sua mensagem de que Jesus fora o Messias de Israel? Mateus nos dá uma resposta a essa pergunta. Em evidente contraposição às acxações judaicas contra Jesus ele constata expressamente que Jesus não é extintor da lei. Não veio para revogar, mas para cumprir (Mt 5, 17). Sim, até o fim do mundo não deverão passar nenhum i ou til da lei (5, 18). Com essa declaração reconhece-se a autoridade irrestrita da lei, uma formulação que é impossível na boca de Jesus. Em M t 5, 17-19 fala a nós a comunidade judaicocristã. Ao que parece Mateus vê o perigo do antinomismo. Uma correlação para o trecho encontramos na introdução do grande sermão contra os fariseus e escribas, pois ali se aceita expressamente a autoridade doutrinária daqueles que ocupam a cátedra de Moisés: "Fazei e guardai tudo quanto eles vos disserem" (Mt 23, lss). Ressalvas fazem-se às suas "obras"; por elas não nos devemos deixar orientar. Após semelhantes declarações poderíamos considerar a comunidade primitiva como uma seita especial dentro do judaísmo (talvez como uma espécie de farisaísmo radical) que se distingue de outras correntes judaicas meramente por meio de sua fé no Messias Jesus. E, com efeito, ela foi por vezes assim descrita. Em contraposição, W. G. Kummel destacou corretamente a autocompreensão escatológica da comunidade primitiva: Considera-se a comunidade salvífica do fim dos tempos. Com esse "conceito d e Igreia" ela l a n ~ o uos alicerces para todas as evoluções posteriores da Igreja cristã primitiva e da doutrina da Igreja. Todavia até mesmo nos textos acima referidos, ou nas suas continuações, podemos demonstrar como a comunidade primitiva não permanece na obediência tradicional à lei. M t 5, 20 formula a exigência fundamental de Jesus por uma justiça melhor ou, mais

exatamente, "transbordante", que precisa exceder a justiça dos fariseus e escribas quando se pretende entrar no reino de Deus. Segue-se imediatamente a radicalização da lei nas antíteses (5, 2 1 s ) e sua aguçadura no mandamento do amor (5, 43s). Mateus, portanto, nem sequer cogita de abrandar ou mesmo suprimir o radicalismo de Jesus. Numa comunidade judaico-cristã isso é de todos os modos admirável, pois ela podia pôr em jogo a própria existência. Em M t 23 seguem-se a introdução mencionada os "ais" sobre os fariseus, a denúncia de sua hipocrisia, sim, de sua ilegalidade, e a ameaça do Juízo contra eles (Mt 23, 15ss). Precisamos de questionar realmente até que ponto, afinal, a continuação coincide com a introdução. A singular bilateralidade de: a) reconhecimento da autoridade da lei e de Moisés, respectivamente, de seus seguidores, e b) ultrapassagem radical daquilo que foi dito aos antigos (por conseguinte, não apenas dzs tradições de posterior interpretação da lei) - essa bilateralidade provavelmente foi ditada a Mateus pela realidade de sua comunidade, que ainda não era capaz de conquistar liberdade plena perante a lei e que, por outro lado, se sabia comprometida com o mandamento radical de Jesus. O verdadeiro sentido da lei parece ser, tanto para ela quanto para Mateus, o mandamento do amor (cf. também M t 22, 34s). Tipicamente judaico e iudaico-cristão é também o emprego das palavras "justi-a" e "justo" (Mt 5, 6.20; 6, 1; 25, 46). Na última das passagens citadas, é significativo que os "justos" são os que praticaram a misericórdia, que serviram aos irmãos pequeninos de Jesus. Transparece, como lambém em 5, 6 e 20, uma reinterpretação do conceito judaico de justiça: Ela é dádiva escatológica de salvação (5, 6) e, concomitantemente, o cumprimento do mandamento do amor e a obediência radical do coração diante de Deus (5, 20s). Da mesma forma a d o u t r i n ~do julgamento segundo as obras é legado judaico (Mt 7, 21s; 25, 31ss). Contudo ela é conservada em todo o Novo Testamento, também por Paulo (I1 Co 5, 10). Nem Mateus nem Paulo sentem uma contradição entre essa doutrina e a mensagem da salvação escatológica. A doutrina do julgamento segundo as obras ensina que a pessoa é levada a sério e examinada como praticante, em seus atos, e que também o discípulo e O cristão de dar provas de sua obediência e responder por sua ações. O afirmado demonstra que não se pode falar de "legalismo" e "nomismo" em Mateus, nem tampouco na comunidade por ele representada. Também a agudeza dos "ais" contra os escribas e fariseus em M t 23, 13ss não corrobora semelhante tese. Pelo contrário, também aqui é reconhecível a tendência central do evangelho de Mateus de que tudo depende de que realmente se cumpram os

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mandamentos de Deus; e as ameaças de Juízo, sempre de novo claramente ressaltadas por Mateus, fundamentam e aguçam essa exigência que atravessa todo o evangelho. A comunidade primitiva judaico-cristã transmite as palavras de Jesus, porque ele é para ela o Messias de Israel. Ela as legitima, porque Deus da sua parte legitimou esse Jesus pela ressurreição. Sua luta em torno do sentido da lei é naturalmente explicável dentro da época, de modo que para as primeiras comunidades helenistas em Antioquia ou Damasco, e muito menos para as comunidades missionárias de Paulo, não havia mais o problema da lei nessa forma. O "convite do Salvador" (Mt 11, 2 8 s ) igualmente torna visível que Mateus não entendeu a exigência de Jesus "nomisticamente". Endossa-o, enfim, também a sua compreensão do perdão dos pecados (Mt 18, 21ss). A autoridade para tal foi transferida, segundo a compreensão de Mateus, de Jesus para a comunidade (18, 18). A lei, porém, não possui mais senhorio e autoridade absolutas onde se anuncia e partilha o perdão dos pecados. Mateus, conseqüentemente, não ampliou ou substituiu o antigo legalismo iudeu por um novo. Nesse aspecto ele também não está em oposição a Paulo e, se Mateus ressalta tão fortemente a necessidade de praticar as boas obras, então também Paulo exige uma vivência na pureza, na humildade e no amor. Admitimos que no horizonte da comunidade iudaico-cristã ainda não era possível fazer-se uma crítica teológica fundamental da lei como caminho de salvação; ela foi elaborada somente por Paulo: Cristo é o fim da lei (Rm 10.. 4). Contudo Paulo não quis, de forma alguma, anular a exigência de Deus, ele está longe do antinomismo, no sentido negativo. Transmite pessoalmente a tradição do Sermão do Monte (Rrri 12, 14; 1 Co 6, 7). Nisso o cristianismo paulino e helenístico permanece unido ao judeucristianismo de Mateus, Acima de ambos está, para ambos vigora a exigência de Jesus.

3.

As primeiras comunidades helenistas

As primeiras comunidades helenistas como, por exemplo, Antioquia, na Síria, constituem-se no lugar e na origem da passagem do Evangelho para o mundo, a cultura e a sociedade helenistas. Esse fato empresta-lhes grande significância histórica. Tanto mais lamentável, do ponto de vista histórico, é que não possuímos documentos dessas comunidades e dependemos de inferências. Ao que tudo indica, foram desenvolvidas nessas comunidades tradições importantes e, em parte, novas, tais como as que adotou, p. ex., Paulo. Devernos incluir aqui, entre outras, a parênese batismal. A diferença entre a comunidade judaico-cristã e a helenista é muito grande. Ela se estabelece simplesmente com a nova situação histórica. Aquelas

comunidades originam-se da missão dos pagãos. Por outro lado h6 que considerar que também na comunidade de Jerusalém houve um grupo de judeus helenistas, conforme vemos em At 6. Por conseguinte, as comunidades helenista e judaico-cristã não devem ser imaginadas como totalmente alheias uma da outra. As comunidades helenistas, por um lado, adotam com a tradição sobre Jesus a condensação da lei e o Decálogo, mas, por outro, desenvolvem, no demais, um cristianismo livre da lei, constituindo a premissa histórica para a teologia e ética paulinas. Assim, puderam estabelecer-se relações com a moral helenista. Podemos afirmar que, sem a mediação das comunidades helenistas, as premissas históricas da obra e do pensamento de Paulo necessariamente permaneceriam enigmáticas. Todavia é muito duvidoso se já podemos falar de uma nova teologia nessas comunidades. Fato seguro, no entanto, é que a passagem para o ambiente cultural e Iinguístico helenista reclamava, tanto para a prédica missionária como para o culto, a criação de novos termos, tais como, p. ex., "Evangelho" e o verbo correspondente, "cháris" (graça), "agápe" (amor) e outros. Presumivelmente os conceitos éticos como "areté" (virtude) e "syneídesis" (consciência) foram empregados pela primeira vez nessas comunidades (cf. FI 4, 8; Rm 2, 14s). Fato é que agora se produziam encontros com as concepções e formas literárias da ética helenista que tinham possuído validade e poder determinante para os que antes haviam sido pagãos. Podemos admitir com segurança que com a prédica missionária e o batismo também estava ligado o primeiro ensino ético. A parênese batismal em Rm 6, 2ss. Ilss, teologicamente bem desenvolvida, sem dúvida alguma teve nessas comunidades os seus precursores. A pergunta por regras cristãs para a condução da vida precisava de ser respondida com clareza muito maior, considerando-se que tais comunidades se encontravam sob a pressão de um poderoso contexto pagão. Fazem parte do ensino ético os assim chamados catálogos de víclos e virtudes como os encontramos em Paulo (I Co 6, 9s; G1 5, 19ss.22). Eles arrolam uma série de transgressões que devem ser evitadas, tais como impudicícia e adultério, idolatria, discórdia, avareza, etc., ao passo que o catálogo de virtudes Ihes contrapõe benignidade, longanimidade, pacifismo, pureza, etc. Tudo transmitido em formas fixas. Observa-se também que se trata de conceitos éticos gerais, que não possuem nenhum caráter especificamente cristão. Os catálogos eram muito adequados para uma instrução ética popular. A filosofia moral helenista conhece semelhantes catálogos, e o judaísmo da diáspora os assumiu. Nesse último, porém, bem como no cristianismo, os conceitos morais profanos evidentemente recebem

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um novo prefixo: o mandamento de Deus. Os pecados enumerados impedem o homem de "herdar o reino de Deus" (I Co 6, 10). Essa é uma terminologia pré-paulina que denota claramente que Paulo adotou aqui uma fórmula parenética proveniente da tradição a ele transmitida. Contudo o que ocorre é muito mais do que uma "cristianização" exterior dos catálogos de vícios e virtudes. É necessário obter consciência de que a própria pregação missionária, o anúncio do único e verdadeiro Deus, Criador, Juiz e Senhor do Mundo, do único Salvador divino, inaugurava praticamente uma revolução ética. Finavam-se as antigas divindades e com elas as antigas autoridades éticas. Tanto mais importante era que as comunidades missionárias helenistas fossem capazes de apresentar, nessa situação de crise, orientações éticas sólidas e inequívocas. Para essa finalidade serviam, outrossim, os catálogos de normas para a vida doméstica, que contêm instruções éticas para esposos, esposas, pais, filhos e escravos, ou seja, para os distintos grupos existentes nos lares de então (cf. CI 3, 185s; Ef 5, 22s; I Pe 2, 13ss). O seu conteúdo será abordado no capítulo 111, item 4, e nos trechos sobre a epístola aos Efésios e a primeira epístola de Pedro. Como rio caso dos catálogos de vícios e virtudes, topamos aqui com uma forma estilística fixa que não pode ser atribuída a um escritor específico. A exigência central para mulheres, crianças e escravos é a obediência; com O que se adota na ética cristã primitiva mais uma categoria mundana genérica. Simultaneamente estabelece-se por meio do "éthos" dos catálogos de normas para a vida doméstica, uma relação muito estreita entre a comunidade e o lar, que se espelha nas cartas pastorais. Em se aceitando o catálogo de normas para a vida doméstica na ética da comunidade, foi tomada uma decisão de enormes consequências, a saber, a decisão contra o ascetismo radical daquele tempo, como o gnóstico, que difama o matrimônio e a sexualidade, sim, toda a esfera terrestre e material. Recebe e engloba-se o matrimônio na vida comunitária como uma.ordem "mundana" básica. Tal decisão era de se esperar, considerando-se que as comunidades helenistas receberam o Antigo Testamento na tradução grega da Septuaginta e, com ela, a fé no Deus Criador, cuja Criação é boa, e não maligna, como sustentava a gnose. Acresce o impacto da declaração de Jesus referente a instituição divina do matrimônio (Mc 10, l s s par.). Em conformidade com esse princípio foi posteriormente possível avaliar outras estruturas sociais e relacioná-las com a comunidade de Cristo, como, p. ex., o domínio político (Rm 13, lss). A tradição de Rm 13, l s s (cf. I Pe 2, 13s), que fala da submissão obrigatória ao poder político, é igualmente pré-paulina e está profundamente enraizada no iudaísmo, o qual tinha aprendido a atribuir

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também o domínio pagão à vontade de Deus. Em suma, surgem já antes de Paulo impulsos para a continuação do desenvolvimento da ética cristã após a Páscoa, não havendo receio algum em adotar normas vivenciais judaicas e helenistas. A esperança da proximidade escatológica não impediu esse processo. Por conseguinte o cristianismo primitivo não podia tornar-se uma seita apocalíptica destituída de ética.

O mais importante dessa evolução sempre foi, no entanto, que as comunidades eram confrontadas com o mandamento radical de Jesus. Nesse ponto estão unidas as comunidades iudaico-cristãs. Por meio de tal evolução de sua ética a comunidade cristã gozava de grande superioridade frente as religiões de mistérios e à mística do helenismo. A ética de Jesus oferecia, em sua crítica ao legalismo judaico, um excelente ponto de partida para a confrontação crítica com todas as éticas religiosas e filosóficas daquele tempo, bem como de tempos posteriores, visto que elas tendem, ou também para o legalismo, ou para um falso princípio de liberdade e para o libertinismo. Ademais, precisamos de considerar que a prédica missionária sempre foi e continuou sendo anúncio do Juízo, o que é de extrema importância para a ética. Por meio dela se impossibilitam qualquer justiça própria e orgulho baseado na virtude, inclusive qualquer presunção "farisaica" dos cristãos. Mesmo em At 17 se conserva o chamado ao arrependimento e o anúncio do Juízo (At 17, 30~1,não obstante a estreita conexão com terminologia e religiosidade helenistas contida nesse "modelo" de prédica missionária. Resultado idêntico obtemos de Rm 1, 18-3, 20, pois mais uma vez foram aproveitados aspectos da prédica missionária pré-paulina, como p. ex., na crítica ao paganismo (Rm 1, 21s) por ser uma idolatria que coloca as criaturas no lugar da glória do Deus imperecível. Por fim, deve ser destacada a grande importância da proclamaíão de Cristo e da cristologia para a ética. Tanto faz se ela trata da fé no "Filho do Homem" que se aproxima e que, na comunidade primitiva judaicocristã, é identificado com Jesus, ou do "kyrios" (Senhor) divino nas comunidades helenistas, sempre a proclamação de Cristo representa a proteção e o abrigo decisivos contra toda ética legalista ou autônoma que se baseia sobre a razão e a capacidade moral do homem. A pessoa agora não é mais colocada simplesmente diante de uma lei ou um dever ético, mas diante de Cristo. Dele ela recebe salvação e vida, ou seja, uma nova existência. Não obstante, ela permanece dentro de um compromisso ético. A tradição sobre Jesus protegeu as comunidades helenistas do perigo de se perderem numa mística e religião redentora a-ética. Veremos como em Paulo os imperativos da graça emanam da mensagem da graça. A parênese batismal, que

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se apoiava sobre o ato da "meia-volta" e a renovação da existência, foi um dos mais importantes pontos d e partida para o desenvolvimento da ética cristã primitiva, não por último também em sentido teológico, e desse modo foi igualmente uma das premissas da ética de Paulo. Embora os catálogos éticos liguem a comunidade ao "mundo" e a sua moral, a ética cristã é desde o início orientação para cristãos, ética da comunidade para a comunidade. A comunidade é o "lugar vivencial" dessa ética. Ela necessita as regras para uma conduta cristã depois e a luz do batismo. Muito mais tarde, após o reconhecimento do cristianismo como religião do Império, as massas fluem para dentro da Igreja, e então a ética comunitária se transforma em ética para todos, para uma sociedade toda que se deixa determinar pela Igreja. Por vezes encarou-se a relação entre esperanía exatológica imediata e ética como se as primeiras comunidades determinadas pela esperança do fim dos tempos, não tiveram sequer necessidade de uma ética; teriam desenvolvido a ética somente quando diminuía a esperança imediata do fim do mundo, a fim de poderem estabelecer-se dentro do mundo. Isso seria ética como substituto para a escatologia! Nossos textos, no entanto, não apóiam semelhante construção, antes pelo contrário. Paulo elabora uma parênese e uma ética cuidadosamente pormenorizadas, apesar de viver sem dúvida alguma na esperança imediata (cf. I Co 7, 29s; Rm 13, 11). Exatamente o mesmo vale para a primeira epístola de Pedro. A comunidade primitiva acatou as exigências éticas de Jesus. Como vimos no capítulo I, escatologia e ética estão firmemente entreligadas no Sermão do Monte. Em conseqüência, deve ficar claro que nunca houve proclamação escatológica que não fosse ao mesmo tempo proclamação da vontade de Deus, das exigências de Jesus. Assim como nas primeiras comunidades nunca houve uma escatologia a-ética, assim jamais tiveram uma ética não-escatológica. Vale o mesmo para as missivas do Apocalipse de João (cf. capítulo VII). Esperança imediata e parênese ética, em resultado, não devem ser imaginadas numa subsequência temporal, elas não se revezam. A escatologia é imaginada eticamente, e a ética, escatologicamente; pois o decisivo sempre é fazer a vontade de Deus, ser realmente obediente, fazer boas obras. O que vigora tanto antes como depois da Páscoa. Também o Ressurrecto está diante da comunidade como o Senhor que ordena e exige.

Capítulo III

P A U L O

O evento salvifico em Cristo como fundamento e alvo da ética

1.

A estrutura básica: acontecimento salvífico e ética

Paulo é o primeiro grande leólogo da cristandade. É também o primeiro grande ético cristão, tendo em vista que ele fundamenta teologicamente exigências éticas de diferentes formas e estabelece uma estreita relação entre o acontecimento da salvação e a ética. a) Quem está influenciado pelas tradições evangélico-reformatórias espera sem mais nem menos que Paulo tenha fundamentado sua ética com a doutrina da justificação. Contudo, se olharmos para as fórmulas e os conceitos empregados por Paulo, não transparece nenhuma conexão direta entre doutrina da justificação e ética, com exceção do fato de Paulo combinar as vezes justificação e santificação, por exemplo, em 1 Co 6, 11, onde se equiparam ablução, santificação e justificação. Do mesmo modo ele pode falar da fé que atua pelo amor (GI 5, 6). Não obstante, semelhantes combinações são raras. Paulo não deduz diretamente do agir da graça justificante de Deus a exigência de um procedimento "justo" do cristão, pela provável razão de que temia que, se assim falasse, novamente seria entendido mal, no sentido do legalismo judaico, o qual rejeitara. Por isso foi que Albert Schweitzer, no livro " Die Mystik des Apostels Paulus" (1930),estabeleceu a tese de que em Paulo não existe nenhuma ligação entre doutrina da justificação e ética. Essa tese, porém, é insustentável, particularmente em vista de Rm 6 e 8. Precisamos somente de atentar para a liberdade de Paulo em formular a doutrina da iustificação também de outras maneiras do que com os termos "justificar"', "justiça d e Deus", etc. Ele sabe expressar a mesma mensagem salvífica também em fórmulas cristológicas e pneumatológicas, e é precisamente o que ocorre em Rm 6 e 8, e de modo idêntico em GI 5 (veja abaixo).

O ponto de partida correto e o centro que une tudo devem ser encontrados na mensagem de Cristo. A própria doutrina da justificação é uma determinada, embora não a única, forma de expressão teológica da mensagem de Cristo, da proclamação de cruz e ressurreição do Senhor como sendo os acontecimentos da salvação que revolucionaram o mundo (cf. I Co 1, 18s; 15, 3s). Paulo tem possibilidade de dar diversas formulações à doutrina da justificação. Ergue-a, p. ex., em Rm 8, l s s para dentro de uma nova dimensão, ao introduzir o conceito do Espírito e compreendendo-o tanto como poder libertador quanto compromissivo, U-m poder que reclama o cristão para um novo serviço: "Se vivemos no Espírito, andemos também no Espírito" (GI 5, 25; "andar" refere-se a conduta prática da vida). b) Obviamente não devemos supor que Paulo seja um criador livre e isolado de ética cristã. Pelo contrário, também Paulo depende em grande escala de tradições que recebeu ao entrar para a comunidade helenista. As principais tradições são: 1) a prédica do único e verdadeiro Deus em contraposição à fé nos deuses pagãos (herança iudaica); 2) a prédica escatológica do Juizo, a qual Paulo combina com a tradição sobre Jesus, mais tarde formulada por escrito nos sinóticos; 3) os primeiros modelos da "parênese" ética (admoestação e instrução), na forma da parênese batismal, transmitida aos candidatos ao batismo. Um desdobramento especificamente paulino da mesma encontramos, p. ex., em Rm 6. Provavelmente ela também estava associada a uma renúncia a pecados concretos, tais como são enumerados nos chamados catálogos de vícios (cf., p. ex., GI 5, 20s). Além do mais, é preciso observar na compreensão da ética paulina que o apóstolo combate em duas frentes distintas: Em primeiro lugar ele luta com a doutrina iudaica da justiça e da lei (nomismo). Segundo Paulo, a lei não constitui nenhum caminho para a salvação. A salvação surgiu em Cristo, Cristo, porém, é o fim da lei (Rm 10, 4). Cristãos vivem no "agora" da salvação (I1 Co 6, lss), que transforma radicalmente a sua relação com Deus e seus semelhantes. O homem não conquista a salvação pelo agir pio ou moral, Deus lha concede "gratuitamente" em Cristo (Rm 3, 24). Portanto, a ética não tem nada a ver com a obtenção da salvação. Contudo a salvação realizada e presente engaja o seu usufrutuário como pessoa toda: Ele deve "revestir-se de Cristo" (Rm 13, 14; GI 3, 27). Isso é um imperativo! Partindo daqui, podemos afirmar que a fórmula básica da ética paulina consiste em que o cristão deve, no agir, na conduta prática, apropriar-se da salvação para viver como

pessoa "em Cristo". Corresponde-lhe também a fórmula "andar no Espirito" (GI 5, 2d). Como um paralelo configura-se a declaração em Rm 8, 4: Cristãos vivem segundo o padrão do Espírito, mas não da carne. Desse modo cumprem a reivindicação válida da lei. O pensamerito de Paulo, por conseguinte, parte totalmente do feito salvífico de Cristo. Todavia a nova existência do cristão não é a-ética, pois ele permanece sob o mandamento de Deus (I Co 7, 191, o qual pode cumprir no Espírito. Nesse sentido a ética de Paulo é uma ética puramente cristã. A graça inclui, pois, e não exclui 0 mandamento. Paulo de forma alguma é um "antinomista". Suas cartas enxameiam de advertências e instruções para a atuação das comunidades. São, no entanto, sempre imperativos da graça, não da lei, cujo domínio foi quebrantado por Cristo. C) A segunda frente de combate revela-se pela entranhada controvérsia de Paulo com o gnosticismo que se infiltrara sobretudo nas comunidades de Corinto e Colossos. Rejeitando radicalmente o mundo todo como mau e demoníaco, a gnose, como reconhecimento libertador, propõe-se soltar a centelha divina existente no homem de seus vínculos ao corpo e ao mundo, a fim de reconduzí-Ia de volta à pátria de luz, situada totalmente na transcendência. Em Corinto tal "sophia" (sabedoria) gerou o entusiasmo dos que se julgavam já na posse plena do Espírito e, por conseguinte, da salvação. Por isso Paulo afirma em I Co 4, 8, com respeito a esses entusiastas gnósticos, que eles i6 se apoderaram do reino de Deus. Claramente se manifesta também em ~ o r i n t ouma consequência ética da gnose: "Todas as coisas me são lícitas" (I Co 6, 12; cf. 10, 23). Por possuir o Espírito, o gnóstico acredita que goza de liberdade absoluta. Por isso é-lhe possível, p. ex., visitar uma prostituta (I Co 6, 15ss), o que para Paulo est8 completamente fora de cogitação devido a que o Cristão pertence a Cristo; pois o corpo faz parte de Cristo e é o santuário, a moradia do Espírito Santo (I Co 6, 15-20). Em conseqüência é necessária a advertência: "Fugi da impureza!" (I Co 6, 18). A admoestação, por conseguinte, estS fundamentada tanto cristológica quanto pneumatologicamente. Além disso Paulo argumenta - em I Co 4, 8ss e 15, 12ss rigorosamente contra o gnosticismo com o "ainda não" escatológico. Ainda não aconteceu a consumação do reino de Deus, razão pela qual os cristãos são pessoas que aguardam e têm esperança. Precisamente o Espírito Santo os ensina a esperarem e ansearem pela redenção que ainda está por vir (Rm 8, 18ss. 26). Assim, torna-se impossivel, segundo Paulo, a glorificação própria, tão característica para os entusiastas gnósticos. Unicamente é possível, pois, gloriar-se do Senhor (I Co 1, 31). Essa é uma consequência direta da teologia da cruz (I Co 1, 18ss) e, por isso, também da doutrina da justificação.

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A localização da ética cristã, portanto, é, segundo Paulo, o tempo entre a ressurreição de Cristo (Páscoa) por um lado e, por outro, a parusia (aparição definitiva do Senhor). uma ética para esse tempo intermediário, para o tempo da Igreia. A ética de Paulo, no entanto, também pode ser denominada "ética da comunidade", pois suas instruções e advertências provêm da comunidade e valem para ela. Conseqüentemente ela também não é em primeira linha uma ética para todos os homens, como a ética dos estóicos no mundo helenista. d) Podemos elucidar a fundamentação cristológica da ética igualmente em I Co 5 , 7s. A exigência de pureza, dirigida aos coríntios, é justificada com a morte sacrifica1 de Cristo; do imperativo da admoestação Paulo retorna ao indicativo do evento salvífico. Em termos abstratos a exortação reza: Transformai-vos naquilo que na realidade (a saber, por Cristo) já sois - ou seja, a nova existência a partir e por meio de Cristo! O dever consequentemente se deriva da nova existência escatológica em Cristo. Não se trata, pois, de uma ética do dever no sentido de Kant, mas tampouco de uma deduçáo da nova vivência cristã a partir do estar em Cristo, como se ela emanasse dele, por assim dizer, de modo orgânico. Pelo contrário, requer e mobiliza-se a ação responsável da comunidade e dos cristãos! Eles não são objetos passivos ou recipientes do agir de Cristo. "Andar" e agir, amar o próximo, isso eles próprios têm que fazer. Não são, portanto, privados de sua maioridade. Aqui reside, sem estar formulado, um novo conceito ético de pessoa, a saber, o do ser humeno que atua a partir de e em Cristo. A nova existência não anula o dever, muito pelo contrário, ela é justamente o seu fundamento. O imperativo resulta do indicativo do acontecimento salvifico. e) Como segundo modelo para a fundamentação teológica ?a ética, no qual a cristologia é diversificada e concretizada, temos o modelo sacramental. Encontramo-lo em Rm 6, 355, 1 lss. O batismo, que nos une com a morte e ressurreição de Cristo, libertou os cristãos do domínio opressor do pecado. Livres, podem viver e agir para Deus (6, 1 I ) . O batismo é a inauguração de uma nova existência. Novamente, no entanto, não devemos entendê-lo entusiasticamente. A forma futura em 6, 5 e 8 denota nitidamente que a comunhão com Cristo conserva seu caráter futuro-escatológico. O movimento da existência cristã em direção do alvo escatológico está iniciado, mas ainda não concluído. Agora, libertado do pecado, o agir cristão, juntamente com os membros do corpo, pertence a Cristo, ou melhor, a Deus. Não se encontra debaixo da lei, mas da graça (6, 14). Entretanto graça não quer dizer liberdade para o pecado ou para a carne (cf. GI 5 , 135s). Pelo contrário, os cristãos agora podem e devem pôr os seus membros, compreendidos como portadores das

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ações do homem, como armas ,i disposição de Deus e da sua iustiqa graciosa (6, 12). Dessa forma o conceito da "iustiça" - q u e nos cap. 3-5 da epístola aos Rorranos servira para designar o agir da graça divina, um agir que não se pode ccnquistar por méritos, - recebe um novo enfoque: 0 s cristãos devem servir a iusliça de Deus. A justiça é acentuada, portanto, também no sentido ético. Conio contrastes citamse injustica e pecado, aos quais os cristãos não devem mais servir. O que se realiza na comunhão com Cristo necessita ser expressado na ação, na ética. Novamente o imperativo revela que o mandamento divino não foi anulado. A existência sob a graça precisa de cumpri-lo. O movinlento da "nova obediència" perante Deus leva ao alvo da santificação (6, 19). Uma nova relagão de serviço assumiu o lugar da antiga, que estava sob o pecado (6, 15ss). O emprego reiterado do termo "membros" denota que se pensa tia ação física concreta. Toda a pessoa, inclusive seu corpo, ingressou, mediante o batismo, no novo "serviço de escravo" para Deus e sua justiça. f) Com base em Rm 6 será correto falar de uma compreensão ético-crítica do batismo em Paulo. Ele se alinha com a tradição da comunidade que, pelo que parece, combinara desde muito cedo, quando não desde o início, o batismo e a parênese. Todavia a explicação e fundamentação teológicas são obra de Paulo. Tomam como ponto de partida a realidade da incorpcração do crente em Cristo (cf. a paralela I Co 10, Ibs, no tocante a ceia do Senhor). Essa realidade, porém, exige ser assumida pelo cristão no agir pessoal - na obediência ativa. Por meio do batismo o cristão é engajado no serviço. A lei transformou-se agora na exortação e orientação prestòdia que não condena nem anatematiza. Cristãos são pessoas atuantes a serviço do seu Senhor. Mas, visto que ainda vivem na carne, necessitam, até a parusia, a admoestação norteadora. É o elemento crítico da ética sacramental. Ele igualmente transparece muito bem na conceituação dos coríntios em I Co 3, l s s , embora não esteja, nesse caso, relacionado com o batismo. E preciso, pois, que os cristãos tenham a sua frente ainda uma exigência que os convoca a concretizarem sua nova existência em Cristo. Retornamos, assim, a fórmula imperativo da graqa". Porque o domínio opressor do pecado foi destruido, não mais existe para os cristãos a coação de pecar. Por outro lado, o apóstolo de modo algum incorre em perfeicionismo. Com realismo ele vê que as comunidades estão ameaçadas por tentações e recaídas. Sua ética, pcr isso, representa sempre um chamamento de volta a Cristo, ela é proclamação de Cristo. Evidentemente a existência cristã não é nenhum sobe-e-desce sem esperança, nenhuma I,.

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guerra sem vitória, mas a vitória de Cristo sobre todos os poderes demoníacos está também acima do agir do cristão. No que tange a doutrina da justificação, Rm 6 demonstra-nos que o batismo. como acontecimento salvífico historicamente concreto, liga a justificação (como sentença de Deus) e a ética, conduzindo desse modo também a ênfase ética no conceito da justiça de Deus. A justificação, concedida pelo batismo, acarreta consequências éticas concretas para a vida do cristão. g) A terceira modalidade da fundamentação teológica da ética é a pneumatológica. Aparece sobretudo em Rm 8, l s s e GI 5, 13ss. A presença do Espírito e a vivência nele possibilitam o "andar" no Espírito, ou seja, o andar em conformidade com a norma do Espírito (GI 5, 25; Rm 8, 4), e produzem o "fruto" do Espírito (amor, benignidade, mansidão, paz, cf. GI 5, 22). Em suma, o Espírito cumpre a lei, a exigência de Deus - mas não a revelia dos cristãos, porém por intermédio do agir deles (Rm 8, 4). A lei não é contra os que agem motivados pelo Espírito, afirma Paulo expressamente em GI 5, 24, o que concorda com Rm 8, 4. Onde atua o amor, todos os mandamentos são cumpridos (Rm 13, 8-10; cf. GI 5, 14). No agir pneumático do cristão o agir justificador de Deus alcança o seu alvo. Mesmo como "pneumatólogo" o ,apóstolo permanece o realista que conhece muito bem o poder sedutor do pecado e da carne. Os gnósticos coríntios oferecem-lhe um exemplo visível de como é facil tirar falsas consequências da certeza do Espírito. Os entusiastas menosprezam o irmão "fraco". Não compreenderam, portanto, que a verdadeira gnose inclui o amor. Em I Co 8 e 10 Paulo expõe que, sem a "agápe", Espírito e liberdade pneumática não têm sentido e valor. Ela em verdade precisa, segundo I Co 13, lss, de inspirar todos os dons do Espírito, para que não se tornem vãos e infrutíferos. Espírito sem amor é totalmente inconcebível para Paulo, o que os três capítulos há pouco citados comprovam incontestavelmente. Talvez seja até correto no sentido de Paulo dizer-se: Espírito é amor. Andar segundo o Espírito significa amar. Conseqüentemente, Rm 8, l s s e GI 5, 13ss constituem, em seu conteúdo, uma evidente paralela para Rm 6, 1 lss, apenas revestida de outra terminologia: A nova relação de serviço do cristão é idêntica ao andar no Espírito. O Espírito é o renunciar prático às "obras da carne" (GI 5, 19ss). Destaca-se aqui com nitidez o caráter normativo do Espírito divino. Ele é força e vida nos cristãos, demonstradas por ele no amor, contudo não é uma substância de ação mágica. Espírito e mandamento, portanto, perfazem uma unidade indissolúvel. Por esse motivo os gnósticos fracassam no correto agir cristão quando transformam o Espírito no objeto de arrogância pia e defendem uma liberdade absoluta. Para Paulo, no entanto, existe somente aquela

liberdade que é capaz de se transformar, por causa do irmão, a qualquer hora em amor (1 Co 8 e 10). Também segundo GI 5, 13s a liberdade dos cristãos reside em que eles servem um ao outro em amor. Não h6 dúvida de que, com tal fundamentação pneumatológica homogênea e clara da ética, o apóstolo ultrapassa longe a tradição parenética que ele encontrara. Ademais, a unidade de fé e ética se evidencia também pelo fato de que a exposição sobre o "fruto" do Esplrito rompe o círculo das "virtudes" morais, ao serem designados por fruto do Espírito tanto a fé como o amor, a benignidade etc. (GI 5, 22). "Pneuma" é fé e "éthos" numa só grandeza. Diferenciações modernas, tais como culto e ética, ou dogmática e ética, são completamente desconhecidas a Paulo. Ele raciocina numa dimensão acima de tais separações modernas, a saber, na dimensão pneumático-escatológica. Será acertado falar, em conexão com GI 5, de "virtudes" ou modos de procedimento "pneumáticos"? Na verdade, não transparece em Paulo de modo algum uma concepção puramente punctiforme da maneira pela qual atua o Espírito. Amor, longanimidade, mansidão etc. são efeitos contínuos do Espírito. A expressão "fruto" em lugar de "obras", porém, dá a entender que toda idéia de um mérito moral precisa de ser mantida distante do conceito das atitudes pneumáticas. A pessoa age no Espírito, mas não como se produzisse suas próprias obras, distintas de Deus e do seu Espírito. E o amor pneumático não calcula com méritos. O pensamento de Paulo está em correspondência com a tradição (cf. os sinóticos), quando ele fornece uma fundamentação escatológicofutura da ética e adverte os cristãos diante de pecados antigos e novos, apontando para o Juízo vindouro. Isso ocorre em I Co 6, 9, onde ele afirma que os injustos - e os coríntios praticam a injustiça, quando brigam e depois correm para os tribunais pagãos - não herdarão o reino de Deus (cf. também a menção do Juiz, Cristo, em II Co 5, 10). A terminologia ("reino de Deus", "herdar") revela claramente que Paulo está lidando com os conceitos da tradição comunitária. Contudo as outras formas de fundamentação que chegamos a conhecer no apóstolo sem dúvida alguma ocupam uma posição preponderante. Importante é que a situação histórico-salvífica foi fundamentalmente alterada com a morte e ressurreição de Cristo. Razão pela qual os cristãos agora vivem no presente da salvação e não exclusivamente diante do futuro do Juízo vindouro. Assim tornaram-se possíveis as fundamentações cristológica, sacramental e pneumatológica da ética.

2.

Lei e liberdade

Não é a nossa tarefa expor aqui toda a doutrina da lei em Paulo e sua relação com a cristologia, a doutrina da iustificação e a pneumatologia. Uma tarefa que, na verdade, cabe a "teologia do Novo Testamento". A nós interessam, no entanto, os principais aspectos éticos. Costumamos falar de liberdade iurídica, social e política, de liberdade de consciência e de imprensa, e assim por diante. Todas essas liberdades "mundanas" Paulo desconhece. O seu conceito de liberdade requer ser entendido de modo puramente teológico, pois se refere a liberdade escatológica, concedida aos filhos de Deus pela graça. De acordo com Rm 8, 31ss ela é, por isso, a liberdade de todos os poderes e autoridades demoníacas, sendo que se origina do amor de Deus manifesto em Cristo. O homem, portanto, n ã o detém tal liberdade pela sua natureza humana, ao contrário, ele é chamado a liberdade por Deus (GI 5, 13). No contexto da controvérsia com a gnose a liberdade pode ser denominada "exousía" (p. ex., I Co 8, 9). Palavra essa que significa o poder de realizar algo, um poder baseado sobre o Espírito Santo. Os "fortes" em Corinto, remetendo-se ao Espírito, estão nesse caso com razão, malgrado desconhecerem o vínculo entre liberdade e amor e desconsiderarem, por isso, os irmãos fracos. Os capítulos Rm 5-8 mostram deialhadamente que essa liberdade escatológico-pneumática possui quatro componentes. Constitui-se de: a) liberdade do pecado, b) liberdade da "carne", isto é, da estruturação e orientação global antidivina da existência humana, c) liberdade da morte que representa o resultado final obrigatório de uma vida na carne e no pecado. A morte não deve ser entendida apenas biologicamente, como término natural da vida humana, mas como Juízo, isto é, como separação definitiva do homem d e Deus. O contrário de morte nessa acepção seria, portanto, vida eterna. d) O quarto aspecto da liberdade do cristão é a liberdade frente à lei, como a proclama sobretudo a carta aos Gálatas (3, lss). Se o lugar da lei, que não pode proporcionar a salvação, for ocupado pela condição de filho, os cristãos estarão livres do serviço escravo debaixo da lei. Contudo, na liberdade, não devem dar nova ocasião i carne (GI 5, 13). A liberdade cristã não é uma liberdade para pecar, mas para amar (GI 5, 13ss), para o serviço ao próximo, para toda sorte de boas obras. O que significa, portanto, que o cristão também está eximido, pela liberdade, da sujeição ao próprio eu, que é característica para a existência sob o poderio do pecado e da

carne. Cristãos pertencem a Cristo, O Senhor, e vivem para ele (Rm 14, 7s; cf. I Co 6, 19: Não mais pertencem a si mesmos). Resulta daí uma equação característica para o pensamento de Paulo, qual seja: A liberdade é serviso sob o senhorio de Cristo ou da graça (cf. Rm 6, 14ss). Tal senhorio ocupou o lugar da lei (cf. Rm 10, 4; GI 3, 1 3 s : Cristo nos ridimiu da maldição da lei). O "escravo" de Cristo é a pessoa verdadeiramente livre. € filho e herdeiro de Deus, para o qual se cumprem todas as promissões divinas (GI 3, 15ss; 4, 1s). A ecjuacão referida naturalmente vigora apenas sob a condição da salvação que se realiza em Cristo. Ambos os lados da questão adquirem sua expressão clássica na confissão universal da liberdade em Cristo, em I Co 3, 21-23: "Tudo é vosso" - até mesmo o mundo, a vida e a morte -, "vós, porém, sois de Cristo, e Cristo de Deus". A dependência do serviço a Cristo faz, por conseguinte, dos cristãos senhores do mundo. O serviço da justiça (Rm 6. 165s) realiza-se na liberdade, que é idêntica com a obediência da fé, ensinada por Paulo. O "nómos" (lei) perdeu, pois, todo o seu poder, tanto o de condenar o pecador quanto o de regulamentar o agir como se fosse obrigatório fazer "obras da lei". No lugar da condenação aparece a graça, e a regulamentação da vida dos que crêem em Cristo é assumida pelos imperativos da graça, os quais expressam a santa vontade de Deus, preservando assim a lei "pneumática" de Deus (Rm 7, 12 e 14). Comprova-se de novo que Paulo está muito longe de qualquer antinomismo, isto é, de qualquer rejeição absoluta da lei entendida como orientação divina. Nem os entusiastas gnósticos nem os modernos podem reportar-se a ele. Paulo até é capaz de declarar que circuncisão ou incircuncisão nada valem, mas que o decisivo é "guardar os ordenanças de Deus" (I Co 7, 19). Pelo mesmo motivo o apóstolo dirige numerosas ordens específicas as suas comunidades, sem que, no entanto, lhe ocorra o pensamento de que por meio delas poderia estar ameaçada a liberdade cristã, pois que os mandamentos orientam para o emprego adequado, para a aprovação da liberdade de uma pessoa cristã. Não a expõem, pois, ao perigo. A liberdade pneumática é obediência diante dos mandamentos de Deus. Acatando a sugestão de Paul Althaus, diferenciaremos, portanto, claramente entre lei e mandamento: Como "mandamentos denominaremos agora os imperativos da gral;a, as ordenanças pneumáticas, como as analisamos até aqui. Transpareceu, assim, a singular dialética da conceito de lei em Paulo. Ela pode ser descrits em poucos traços, como segue: a) A !ei ritual e cúliica do Antigo Testamento e do iudaísmo não prende mais de forma algurna a comunidade de Cristo. Foi substituída pela proclainação do Evangelho e pelos novos sacra-

mentos de Cristo, o batismo e a ceia do Senhor, em suma, pelo novo culto. Por isso também é impossível que o cristão se deixe circuncidar (carta aos Gálatas). b) Persiste a submissão aos mandamentos éticos do Decálogo. Contudo eles são radicalizados num sentido positivo por meio do amor, conforme já acontecia na proclamação do próprio Jesus (cf. capítulo I, item 2). O amor é o "cumprimento" de todos os mandamentos (Rm 13, 8-10; GI 5, 14), que deve ser entendido no sentido da execução prática dos mandamentos. Obviamente isso também é uma sinlplificação e concentração da lei toda: "Quem ama ao próximo tem cumprido a lei" (Rm 13, 8). Em face da humanidade pecadora, de judeus como de pagãos, continua em vigor a prédica do Juízo juntamente com o poder condenatório da lei divina (Rm 1, 18-3, 20). Unicamente a fé em Cristo e o batismo podem libertar do Juízo. Deles resulta a nova ética em que a lei condenetória é transformada no mandamento da graça, que auxilia e ampara. c) A função permanente da lei é a seguinte: Ela mantém os cristãos vinculados a vontade de Deus. Proporciona conteúdo e sentido a liberdade, de modo que ela não pode ser mais liberdade para a carne e o pecado (GI 5, 13; Rm 13, 14; cf. I Co 8, 9). O amor ao próximo, p. ex., ao irmão fraco, é o cumprimento da liberdade. Gnose e "exousía" (poder) sem amor não são reconhecimento do Deus verdadeiro (I Co 8, lss). Anula-se dessa forma a perigosa ambigüidade da fórmula libertária gnóstica "tudo me é lícito" (I Co 6, 12; 1 O, 23). Certamente continua em vigor que a liberdade é liberdade de todas as submissões e poderes intramundanos - nesse sentido lhe é próprio o que P. Tillich chama de elemento "extático" -, contudo não é liberdade do próximo, porém para ele. A liberdade de amor não busca o interesse próprio (I Co 10, 24), razão pela qual também assume por vezes a forma de abnegação e renúncia. Paulo não quer "comer carne nunca mais" se tal ato for motivo de escândalo para o irmão fraco (I Co 8, 13). Não posso aproveitar inescrupulosamente para mim próprio a liberdade que me é concedida pela gnose (cf. I Co 8, 9ss e 10, 23s). A liberdade para comer a chamada "carne sacrificada aos ídolos", consagrada pelo culto pagão às divindades, não é uma liberdade absoluta. Pelo contrário, ela é limitada pela consideração pelo irmão fraco, ditada a nós pelo amor. Minha liberdade não se pode tornar um tropeço para o irmão nem oprimir sua consciência. Em GI 6, 2 encontramos uma fórmula que resume a questão: Levai ds cargas uns dos outros, e assim cumprireis a lei de Cristo." A "lei de Crisio" conseqüentemente é o mandamento do amor. Não está situada

no mesmo nível que a lei de Moisés, motivo pelo qual não pode figurar como um tipo de substituta para ela. Seria correto afirmar que essa é uma fórmula precisa para condensar as exigências do Sermão do Monte, as quais o próprio Paulo interpreta e faz valer para a nova situação após a Páscoa (cf. Rm 12. 13s). O termo "lei de Cristo", por sua vez, é compreensível somente depois da Páscoa. E muito provável que Paulo o recebeu da tradição da comunidade helenista. Evidencia-se, pois, que a proclamação ética de Jesus é reconhecida após a Páscoa também por Paulo e aceita para a comunidade, embora ela se torne agora mandamento do Senhor crucificado e ressurrecto. Donde se deduz que a palavra "nómos" em GI 6, 2 nada tem a ver com lei na acepção judaica. Situa-se, portanto, num nível diferente do que a lei em Rm 7, que salienta e desmascara o pecado. Estreitamente relacionada com isso está a expressão do apóstolo em I Co 9, 19ss. Nessa passagem ele afirma com respeito a si mesmo que não é um "sem-lei", mas um "énnomos" de Cristo, ou seja, uma pessoa que vive na lei de Cristo. O português permite-nos apenas circunscrever o significado da expressão grega. Concluímos que para Paulo não existe sequer a alternativa "ou lei ou nenhuma lei", visto que ele está incorporado a lei de Cristo. Paulo é uma pessoa livre, capaz de tornar-se concomitantemente um iudeu para os judeus e um grego para os gregos, no intuito de servir-lhes com a proclamação do Evangelho. O que evidentemente não significa que a lei poderia adquirir novamente a função de caminho para a salvação. Verdade é, porém, que Paulo está preso a vontade e ao mandamento de Cristo, não sendo, por isso, nenhum "sem-lei". Fórmula essa criada pelos judeus para designar os pagãos. A lei de Cristo, "na" qual o apóstolo vive e anda, é o mandamento do amor, ora em vigência. Mais difícil de entender é a frase seguinte: "A lei do Espírito da vida em Cristo Jesus te livrou da lei do pecado e da morte" (Rm 8, 2). Não se impõe a suposição de que, da primeira vez, "nómos" foi empregado apenas figuradamente, podendo também ser omitido? O Espírito da vida em Cristo, não uma lei qualquer, provoca a libertação mencionada. Não obstante, preferimos interpretar essa formulação com ajuda de GI 6, 2, simplesmente porque ela continua com a afirmação de que os preceitos da lei se cumprem "em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito" (Rm 8, 4). Portanto, Paulo fala do cumprimento da lei pelo homem espiritual. Razão por que o termo acima, "lei do Espírito da vida", dificilmente pode ter sentido apenas figurado. Pelo contrário, desempenha uma boa função teológica, em analogia a fórmula por nós analisada, "lei de Cristo". Tal "lei" é idêntica ao Espírito da nova vida, ou, a Cristo. Por isso é que o mandamento de Deus pode

agora ser cumprido na "nova" obediência por pejsoas cheias do Espírito. Podemos recorrer a uma paralela do evangelho de João: A lei do Espírito é o "novo mandamento" que Jesus dá aos discípulos (Jo 13, 34; cf. I Jo 2, 7s. 10; 3, 1 1 .23; 4, 10.19). Dessa maneira a lei do Espírito vem a ser a lei verdadeira por excelência, que pode manifestar-se somente com Cristo pelo fato de pressupor a salvação nele concedida. Cristo, na verdade, não é nenhum "alter Moisés' (segundo Moisés; Lutero), mas bem poderíamos designar Cristo como novo "legislador" escatológico, visto ser ele o Senhor que rege a sua comunidade. Em tais fórmulas, pois, foi guardada e conservada a verdade da santa e justa lei de Deus (Rm 7, 12 e 14), que, afinal, não perde seu valor pelo fato de que os judeus lhe atribuíram o caráter de mediadora da lei. Precisamente esse "conservar" - muito embora a "lei do pecado e da morte" tenha passado e não esteja em vigor para o cristão revela muito bem a natureza "dialética" da doutrina paulina acerca da lei, em especial das fórmulas "lei de Cristo" e "lei do Espírito da vida em Cristo Jesus".

3.

0. amor como norma máxima da ética

No item anterior já constatávamos que não é possível falar de lei e liberdade no sentido paulino sem defini-las pelo amor. Ao que precisamos de acrescentar mais alguns pontos. Partimos da circunstância de que Paulo adotou o mandamento do amor a partir de e junto com a tradição da comunidade (cf. Rm 12, 1 3 ~ scom M t 5, 39.44). A continuação do trecho acima denota claramente os dois elementos: a transmissão e a nova interpretação para a comunidade de Roma, A qual Paulo escreve, na situação depois da Páscoa. Observação idèntica permitem os três capítulos de I Co 8; 10 e 13. Do mandamento do amor do Jesus histórico resultou, em poucas palavras, o mandamento do amor de Cristo e do seu apóstolo. a) Em decorrência disso Paulo pode colocar "pneuma" e "agápe" na mais íntima relocão, como acabamos de constatar com auxílio de I Co 8 e 10. Segundo I Co 13 o amor é ainda muito mais do que o maior de todos os dons espirituais, pois sem ele todos os carismas são sem valor e infrutíferos. O amor é até maior do que fé e esperança (I Co 13, 13; quanto à exegese, cf. Heinz-Dietrich Wendland, Die Briefe an die Korinther, NTD vol. 7). O amor é o "fruto do Espírito" (GI 5, 22) ou amor gerado fio Espírito (C1 1, 8). Pode ser chamado de "amor do Espírito" (Rm 15, 30). Foi "derramado em nossos corações pelo Espírito Santo" (Rm 5, 5). Por isso é e cria nova vida, no

sentido escatológico. E o amor divino, que une primeiramente Deus e o homem e depois se concretiza nas ações dos cristãos. Conseqüentemente, ele é divino e humano ao mesmo tempo. Pode ser exigido dos cristãos e ao mesmo tempo descrito como o seu procedimento - como acontece em I Co 13, 4-7. Poderíamos afirmar que Paulo copiou a natureza do amor da cruz de Cristo: E um amor que se sacrifica, se entrega, se põe a serviço. Aqui a ética e a teologia da cruz estão intimamente interligadas em Paulo. O amor é a lei orgânica da comunidade e do apostolado (I Co 9, 19~s;II CO 6, 6; 11, 28s). Impele o apóstolo ao serviço dos judeus e pagéos. Desse modo o apóstolo desenvolveu e reinterpretou teologicamente a tradição do mandamento do amor a partir de sua concepção teológica global, isto é, sobretudo a partir da teologia da cruz e do Espírito Santo como a presença de Cristo e de sua graça (cf. Rm 8, lss; GI 5, 13s). b) Após a Piscoa, torna-se possível para Paulo fundamentar cristologicarnente o mandamento do amor, como demonstra a inserção do hino cristológico (FI 2, 5ss) na parênese. Cristo esvaziou-se de sua natureza divina, tornou-se servo e foi obediente até a morte na cruz. Como pessoas em Cristo os filipenses devem demonstrar a mesma humildade e submissão voluntária como Cristo. Em tal humildade igual à de Cristo cada qual deve considerar o outro superior a si próprio. A comunidade toda deve estar possuída do amor e o indivíduo não deve pensar no que é seu, mas ter em vista o que é dos outros (FI 2, 1 ss). Semelhantes admoestações fazem transluzir com clareza o protótipo da cruz-de Cristo, revelando também a nova interpretação que Paulo dá ao mandamento do amor após a Páscoa. Ser conhecido e amado de Deus é o que constitui a verdadeira gnose, que, por sua vez, se concretiza no amor aos irmãos fracos (I Co 8, 1 SS). Toda a parênese de Rm 12 e 13 é introduzida e fundamentada com a alusão à misericórdia de Deus (12, 1). No contexto segue-se também a mencionada explicação do mandamento do amor (12, 13-13, 10). c) A propósito, a passagem denota também que as fundamentações teológicas do mandamento do amor, quer uma cristológica, quer uma pneumatológica, não excluem a compreensão correta da dimendo mundana do amor, mas muito antes a incluem. Em Rm 13, 1-10 Paulo compreende o próprio enquadramento dos cristãos sob o poderio político como um ato de humildade da comunidade, o qual inclui também concretamente o pagamento de impostos (13, 6s). I Co 13 também trata do amor como uma realidade escatológica e pneumática que não desaparecerá com a consumação escatológica (13, 8-13). No fundo, a amor de Deus, de Cristo e dos cristãos C um só. Se é de Deus e de Cristo, ele se patenteia da mesma forma

como agir e proceder dos cristãos (13, 4-7). A "agápe" divina transfornia pessoas, para serem seus portadores e praticantes. Por um lado ela é absolutamente transmoral, porque pneumática, e tudo menos do que "simples moral". Por outro lado, porém, ela sem dúvida se transforma em "moral", ao provocar ações concretas de auxílio por parte dos cristãos, dentro e fora da comunidade. Visando em GI 5, 6 a relação entre fé e amor, Paulo fala da fé que atua por meio do amor - nesse sentido as obras estão, para Paulo, incluídas na fé. Ele dosconhece um amor que não seja atuante. É outro ponto em que ele está acorde com a tradição de Jesus. Não podemos encontrar vestígio algum de que ele cogite simplesmente de uma "intenção" de amor. Uma vez que a "agápe" é uma realidade divinohumana, ela resiste a tcda sorte de espiritualizações. É a única maneira pela qual ela pode tornar-se também a rainha e o cumprimento dos demais dons (! Co 13, lss). Sem o amor atuante e prático sabedoria, conhecimento, profecia, fé operadora de milagres, doação de esmola e até martírio são fúteis. Uma tal ética de amor contrasta de modo marcante com toda a Antiguidade e sua ética de variações múltiplas. O amor por certo não é a virtude aristocrática dos sábios. Ele não resulta da razão do homem que participa no "lógos" que rege o mundo. Não é a virtude do cidadão da "pólis" ou do Império. O amor tampouco pode ser inculcado, de modo que fosse fruto de um processo educacional, pois e!e é a dádiva de Deus em Cristo, é realização da salvação. A "agápe" tambkm não é "éros", no sentido de um amor pelas idéias do bem, do verdadeiro e do belo, e pela manifestaçáo das mesmas nas pessoas humanas, muito embora a "agápe" possa englobar e moldar todas as formas de interdependência humana a medida que vai penetrando no mundo. Todavia essa força da "agápe" Paulo ainda não tinha condições de enxergar, porquanto na sua época a ética da "agápe" apenas acabara de subir ao palco da história da sociedade humana. De forma semelhante a ética cristã abordou somente mais tarde a relação entre "ògápeU e a justiça como virtude ético-social, considerada pela ética da Antiguidade a virtude suprema. Para tanto podia oferecer um irrpulso a observação de Paulo de que o amor não se alegra com a iniuçtica, mas com a "verdade" (I Co 13, 6). Seguindose O modo de pensar veterotestamentário e judaico, verdade aqui quer significar a justiça, não no sentido de uma virtude humana, mas d e uma atitude exigida por Deus, uma atitude conforme a Deus. De qualquer modo está certo que a "agápe" não encobre as diferenças entre justiça e injustiça, bem e mal. Ela é capaz de não apenas respeitar o bem no moral da sociedade constituída, mas até de proteger e exigi-lo (Rm 13, 3s). Assim inclui-se já aqui na "agápe"

a virtude que demanda bom comportamento social. Paulo diz aos filipenses que os cristãos se devem aplicar A virtude e a tudo que é de boa fama e causa louvor entre os homens (FI 4, 8). Semelhante admoestação, sem dúvida acorde com a moral vigente na sociedade, e cuja citação por parte de tão grande teólogo bem poderia causar espécie, encontra-se sob o título do mandamento do amor: "Seia vossa benignidade conhecida de todos os homens" (FI 4, 5). O chamado ao amor em todas as direções está por sua vez relacionado com a proclamação escatológica: "Perto está o Senhor" (FI 4, 5). Deparamos, portanto, com o fato altamente significativo de que a exortação de Paulo, de não se aiustar a este mundo (Rm 12, 2), não conduz de forma alguma à indiferença diante das virtudes mundanas e socialmente aceitas da justiça, do comportamento disciplinado, etc. Temos, pois, no próprio Paulo, e não somente nas posteriores cartas pastorais, um ponto de partida importante para que mais tarde se desenvolvesse uma ética cristã integrada na sociedade. Pôde partir desse ponto também a posterior conexão das três "virtudes principais" cristãs, fé, esperança e amor, com as quatro virtudes cardinais da Antiguidade. Resultou e ainda resulta daí um dos principais problemas da ética cristã em todos os tempos: Como deve ser concebida a relação da "agápe" para com tais virtudes? Em semelhante síntese, pode ela continuar sendo o que é, e sob que condições? Obviamente o Novo Testamento ou Paulo não podiam responder essa questão, surgida somente mais tarde. Claro está apenas que Paulo considera necessário que o amor se expresse e concretize também na aceitação e adoção das virtudes da sociedade. d) Outro problema da ética cristã posterior é a pergunta pela relação entre amor próprio e amor a Deus, respectivamente, ao próximo. Um problema que Paulo também não levantou. Tornou-se candente pelo contato mais estreito com a ética filosófica, mais ou menos a partir da metade do segundo século da era cristã. É patente, no entanto, a clara oposição da "agápe" contra toda sorte de querer ou servir-se a si próprio. Em parte alguma Paulo faz do amor próprio um padrão para o amor ao próximo, como fizeram éticos cristãos posteriores tomando acriticamente como base uma concepção do eu, da pessoa, proveniente da filosofia grega. Se, como em Paulo, o amor de Cristo for a norma suprema, será por natureza d e todo impossível empregar justamente o amor próprio como o referido padrão. Provavelmente Paulo teria considerado a pergunta pela validade do amor próprio como sendo um pensamento carnal. Em todos os casos, ele não reflete sobre ela em lugar algum. Confrontou-se com ela, é verdade, expressada em forma religiosa, no egoísmo grosseiro e na glorificação própria dos gnósticos coríntios (I Co 8 e 1O),

ocasião em que entrava em cogitação unicamente uma condenação unívoca. e) P, "agápe", como Paulo a encara, precisa, outrossim, de ser protegida diante do mal-entendido do heroismo. O amor não consiste em feitos excepcionais de heróis. I Cor 13, 4-7 são palavras endereçadas a todos os cristãos e descrevem uma atuação possível para cada cristão. Autora desse procedimento não é uma classe especial de cristãos heróicos. 0 s feitos do amor são cotidianos, não-heróicos e não-espetaculosos. 0 cristão justamente não os pratica para brilhar e sobressair. Pelo contrário, deixa-se determinar completamente pelo outro: O que o irvão ou, num sentido lato, o próximo necessitam, isso precisa de ser feito. Conforme já vimos, Paulo demonstra em I Co 8-10 que é totalmente descabido remeter-se a reconhecimento e liberdade, em contraposição a esse amor. A necessidade do irmão deve reger a ação do cristão, mesmo na forma da renúncia. Pensamento idêntico Paulo expressa numa situação semelhante, em Rm 14, lss e 15, l s s onde ele se defronta também com os grupos dos fortes e dos fracos. Sem dúvida a liberdade de comer existe com razão. Nisso Paulo concorda com os fortes. Mas exclusivamente o amor edifica a comunidade, não o comer ou o deixar de comer. Por isso é preciso levar em consideração o irmão fraco na fé. O irmão é o limite de nossa liberdade! Exclui-se a interpretação "carnal" da liberdade. Embora não sejam~sobrigados a esposar a convicção dos fracos, não devemos sobrecarregar nossa consciência. Quando, porém, não se apresenta nenhum risco para o irmão, a liberdade conserva sua validade. - De forma análoga é preciso, segundo Rm 14, lss, que os membros da comunidade se abstenham do falso julgamento mútuo, porque contraria o 2mor. Isso é válido para ambos os grupos. Por isso os cristãos devem acolher-se mutuamente, assim como Cristo os acolheu a todos (Rrn 15, 7). Todos vivem e morrem para o seu Senhor (Rm 14, 7s). Os fortes têm a obrigação de suportar a fraqueza dos outros (Rm 14, 13-15, 6), embora esteja certo que nada (nenhum alimento) é impuro em s i (Rm 14, 14; cf. I Co 10, 26: "DO Senhor é a terra e a sua plenitude"). Quem, no entanto, leva O irmão a conflitos de consciência por causa do seu alimento, não anda segundo o amor (Rm 14, 15). O conteúdo da fórmula "sequndo o amor" é exatamente paralelo ao "viver no Espírito" de GI 5, 25, ou ao andar "segundo o Espírito" (Rm 8, 4; veja acima).

f) Fato é que Paulo não procedeu a uma elaboração sistemática da anteposi~áodo mandamento do amor a todos os mandamentos isolados - afinal, não escreve nenhum tratado de ética! A anteposição, contudo, transparece em alguns lugares com nitidez, quais seiam, Rm 13, 8-10, no que se refere ao Decálogo; igualmente em GI 5, 22 e Rm 12-13 bem como 14, lss. Conseqüentemente torna-se compre-

ensível por que Paulo pode enaltecer o amor como o caminho que conduz muito mais longe que todos os demais (I Co 12, 31) e por que ele o distingue como o "vínculo da perfeição" (C1 3, 14), maneira pela qual resplandece novamente sua natureza transnioral. A partir dessas afirmações igualmente se poderá entender por que Paulo vê no amor o cumprimento da lei (Rm 13, 8ss; GI 5, 14). Paulo interpreta, por princípio, a lei a partir do amor, e não o amor a partir da lei como o judaísmo. No que tange a função dos mandamentos isolados, a anteposição do mandamento do amor de modo algum os dissolve ou desvaloriza (cf. I Co 7, 19). Pode-se afirmá-lo, p. ex., em relação a cada mandamento do Decálogo. O mesmo vale para as instruções específicas a cônjuges, viúvas, esposos num matrimonio misto, e noivos, em I CO 7. Os mandamentos específicos delimitam a ação cristã contra a impureza, impudicícia, avareza e outros pecados enumerados nos catálogos de vícios. Designam, portanto, perigos concretos que ameaçam a comunidade e simplesmente por essa razão são de todo imprescindíveis. Os pecados são concretamente citados - o que ocorre também com Paulo. Preserva-se, desse modo, o conceito do pecado de tornar-se abstrato, característica tão freqüente para a proclamação pecado possui sempre uma forma concreta "nos" de nossos dias. "0" pecados (plural). Recordando a tradição dos chamados catálogos de vícios, será lícito afirmarmos que a enumeração de um maior número de delitos foi transmitido a Paulo pela tradição, enquanto que constitui obra do próprio Paulo a interpretação teológica rigorosa "do" pecado e de seu poder de dominar sobre o homem, pois que esse conceito já revela um grau superior de abstração e reflexão teológicas.

4.

A ética de Paulo como ética comunitária

A ética paulina tem em comum com outras formas da ética neotestamentária o fato de ser ética comunitária. Que significa isso? a) Significa em primeiro lugar que essa ética pressupõe a realidade histórico-social da comunidade, da Igreia. Ser cristão significa estar na Igreja. Com a parábola do corpo em I Co 12, 4ss Paulo descreveu a ligação de todos os membros do corpo entre si como uma unidade indissolúvel de carismas e serviços distribuídos a cada um. Todas as exortações sempre pressupõem essa realidade da Igreja. Como o lugar e a comunhão da concretização da salvação, a Igreja está nitidamente desj-acada do "mundo" que, sem a salvação, está subjugado pelos poderes do pecado, da carne e da morte, dos quais Cristo libertou a comunidade (Rm 5-8). Paulo sabe naturalmente muito bem, e também o diz aos coríntios, que não se pode "sair do mundo" (I Co 5, 10s). Não obstante, os cristãos não devem viver em comunhão com impuros ou idólatras, roubadores, etc., nem tam-

pouco com irmãos que se abandonam a semelhantes pecados. São eles "os de fora" (I Co 5, 12)) isto é, os que estão do lado de fora da comunidade. Por esse motivo é necessário que se exclua da comunidade aquele pecador que - uma ocorrência pior do que entre os pagãos - tem como mulher a esposa de seu pai (I Co 5, lss). Visto que a comunidade fracassou nessa questão, o apóstolo logo procede pessoalmente à condenação e ação (I Co 5, 3s). Para o apóstolo é a comunidade que cabem tais decisões éticas. Se ela não as toma, recebe severa reprimenda do apóstolo. Desse modo sua ética se patenteia como ética para a comunidade, com a finalidade de manter essa última junto de Cristo e, simultaneamente, instruí-Ia a tirar as corretas consequências de sua existência em Cristo. Intenção idêntica transparece em I Co 6, lss: Cristãos de Corinto contendem em torno de suas propriedades e levam a questão a tribunais pagãos. Paulo declara que semelhante procedimento é absolutamente impróprio para uma comunidade de Cristo, porque os "santos" um dia hão de iulgar o mundo (I Co 6, 2). Os coríntios devem, pois, decidir tais questões jurídicas dentro da comunidade, tomando por árbitro um "sábio". Sim, Paulo dá mais um passo decisivo, em comum acordo com o espírito do Sermão do Monte: Cristãos não devem exercer injustiça, mas sofrê-la (I Co 6, 7ss). Adverte-os lembrando que quem cometer injustiça não herdará o reino d e Deus (I Co 6, 9). Tal fundamentação escatológica é acrescida, em seqüência, por uma segunda, cristológica, a saber, aquela "anamnese de Cristo" que até aqui denominamos chamamento de volta a Cristo. Os coríntios sem dúvida foram impuros, adúlteros, idólatras, ladrões, etc., "mas vós vos lavastes, mas fostes santificados, mas fostes justificados, em o nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus" (I Co 6, 11). Está dada, previamente, a realidade da iustificação e santificação. Cabe agora aos coríntios tirarem as consequências éticas e apropriarem-se eticamente, no agir pessoal, da salvação que Ihes foi concedida no batismo ("lavar-se"). Transparece, pois, também a vinculação estreita entre batismo e parênese. A comunidade encontra-se face ao mundo como uma grandeza social e ética independente e tem que limitar-se, por meio de seu comportamento, diante dos pecados deste mundo passageiro. Essa é, por assim dizer, a característica contramundana da comunidade, que constitui uma premissa de toda a ética do apóstolo. A norma máxima do agir contramundano da comunidade é, como vimos no item 3, o mandamento do amor, em vigência por causa da aceitação e do reconhecimento da tradição sobre Jesus.

O fato de que o apóstolo emprega continuamente as palavras "nós" e, respectivamente, "vós" revela como a comunidade é sobremaneira encarada como uma unidade, como "corpo". Paulo nada sabe da autonomia ética do indivíduo, pois que o processo moderno

de individualização começou somente muitos séculos mais tarde. Sem dúvida O cristão pode e até deve agir, amar, evitar a injustiça, etc. como indivíduo - Paulo não é coletivista -, mas fará tudo isso como membro da comunidade. A s contraposiçòes modernas, tais como "cristão - Igreja" ou "indivíduo - sociedade" são completamente estranhas a Paulo. Cada uma de suas afirmações sobre a comunidade o demonstra. Contudo, uma vez que o Espírito de Deus vivifica e orienta a comunidade, inexiste também a heteronomia (domínio estranho) do todo sobre o indivíduo. A pessoa, portanto, não é escrava de uma hierarquia. Se Paulo por vezes exige categoricamente suhmissão de suas comunidades, fá-lo como apóstolo de Cristo e por causa da obediência a Cristo (I1 Co). Em resultado, a ética comunitária também desconhece a moderna distinção entre ética individual e ética social. No que se refere a relação dos cristãos para com as pessoas fora da comunidade, verificamos que eles devem evitar os pecados do mundo. A comunidade precisa de distinguir-se do mundo, dando provas disso pela sua vivência. O mundo será futuramente colhido pelo juízo de Deus, no qual a comunidade dos santos há de participar. O que não impede, conforme vimos, uma relativa aceitação da moral da sociedade constituída daquela época (FI 4, 8; Rm 13, 15s). Caso idêntico se apresenta na adoção da tradição dos catálogos de normas para a vida doméstica por intermédio de Paulo (veja abaixo). O objetivo da ética comunitária, dirigido para dentro da comunidade, poderia ser descrito da maneira mais adequada pelo termo "oikodomé", isto é, edificação (termo derivado da palavra para "casa"). Em prol da edificação Paulo luta na controvérsia com os gnósticos, em I Co 8-10. 0 s "fortes", cônscios de sua liberdade e de seu conhecimento (p. ex., de que se pode comer a carne consagrada aos deuses), devem permanecer na unidade amor da comunidade. não se contrapondo, vaidosos, como aristocracia religiosa, aos "fracos", que não possuem o mesmo discernimento. Todos os dons espirituais precisam de ser medidos pela contribuição que dão a edificação da comunidade (I Co 12 e 14). Resulta daí a diferença entre o valor do chamado "falar em línguas" (glossolalia), extático, e a profecia, mais apreciável. Todos os dons espirituais e todos os portadores do Espírito devem contribuir para a edificação da comunidade. A comunidade vive da pluralidade d e tais carismas (I Co 12, 4ss), dos quais nenhum tem o direito de desaloiar ou substituir o outro. Na unidade do corpo todos os diferentes órgãos são necessários e indispensáveis. A comunidade não consiste somente em apóstolos, ou em profetas, ou em professores, ou em faladores de línguas, etc. (1 Co 12, 12ss 28s). Todos precisam de inserir-se no edifício ricamente subdividido da comunidade. Também os dons mais modestos são honrados. Por isso Paulo não cogita,

p. ex., em proibir o falar em línguas extático. Pelo contrário tanto o amor como a crdem requerem que cada pneumático tenha consideração para com o outro nas reuniões de adoração a Deus. Não devem falar em conjunto nem confussmente. Deve reinar na comunidade a boa ordem da paz (I Co 14, 26ss), pois Deus não é o Deus da confusão, mas da paz (I Co 14, 33). Por isso Paulo também coloca sabiamente a "agápe" num nível muito mais elevado que OS outros carismas. Unicamenie o amor é capaz de preservar a unidade fraternal da comunidade e, no entanto, indicar a cada um dos caiismas O seu justo lugar. Em Paulo náo podemos encontrar a coloraiáo cinzenta de um cristianismo genérico e indiferenciado que torna as comunidades de hoje frequenterrienie tão enfadonhas e paralisadas. Por fim, deve-se apreciar o fato de que no fenômeno da comunidade de Cristo se rnanifestarani tia história uma ordem social absolutamente nova e uma estrutura sócio-religiosa até então desconhecida. Segundo a sociologia cultural de Alfred Weber, podemos caracterizá-la como a estrutura de comunidades missionárias dinâmicas e pneumáticas que possuíram, não por último devido ao reduzido número de membros, uma proporção espantosa de integração social e poder de fusionamento. Fato que se expressa nitidamente na consciência dessa Igreia de serem eles os santos, ou melhor, os por Deus santificados, betn como, simultaneamente, na auto-separação da comunidade diante do mundo. Aqui devem ser procuradas a sede e a origem do poder da lyreia de conquistar o mundo, da Igreja que haveria de infiltrar-se paulatinamente, subindo de baixo, na sociedade do Império. Igualmente devemos avistar aqui a raiz de muitos problemas da ética cristã e ética social posteriores. "Igreja e Estado", "Igreja e sociedade", ,,lgreia e nasão" etc. são questões que podiam surgir somente quando a nova grandeza social "igreja" se colocava diante do "mundo" e de todas as suas ordens sociais (matrimônio, família, Estado, sistema econômico, etc.). Ern proporção cada vez maior tal acontecimento veio a ser um fator dinâmico e transformador da história da sociedade até os dias atuais. A "ética comunitária" sofreu, por isso, uma série de mutações e novas sínteses com a moral mundana, principalmente desde o séc. IV, quando a fé cristã se tornou religião oficial do Império e as massas afluíram à Igreja. Evidentemente não se pode ainda falar de tais problemas na época de Paulo. Contudo o apóstclo expressou com a máxima clareza e firmeza a premissa de que a comunidade de Deus e de Cristo está no mundo, convocada para levar o Evangelho ao mundo dos povos e autorizada a amar. Desse modo tanto o fenômeno da Igreia como a concepção paulina de Igreia constituem-se na base e na pré-condição da ética de Paulo. Por conseguinte, a ética de Paulo é parênese

concreta, possuindo de ponta a ponta caráter poimênico, quer esteja o apóstolo cuidando d e comunidades inteiras, como as da Galácia ou de Corinto, quer ocupe-se ele principalmente com grupos distintos dentro de uma comunidade, como em I Co 7-10. Também em sua ética Paulo é, portanto, um pensador fundamentalmente "eclesiástico", o que se revela também na sua relaçãa para com a tradição parenética. O apóstolo acolhe, conforme vimos, em I Co 6 e Rm 12, o elemento-mais importante da tradicão do Sermão do Monte, o mandamento do amor, juntamente com a exigência de suportar a injustiça (I Co 6, 7s). b) Em segundo lugar Paulo assume da tradição a ética do catálogo de normas para a vida doméstica, já firmemente moldado (C1 3, 18-4, 1) e que mais tarde, na carta aos Efésios (5, 22s) e na primeira epístola de Pedro (2, 13ss), foi desenvolvido através de fundamentações cristológicas (cf. o cap. IV, sobre os escritos dêuteropaulinos). Trata-se, no caso, de instru;ões para o lar e seus diferentes grupos: esposas, maridos, crianças e escravos, ou, respectivamente, proprietários de escravos. Pressupõe-se e ao mesmo tempo se aceita a estrutura da casa configurada de forma hierárquica e patriarcal. Motivo pelo qual predomina a exigência da obediência. Ela vale para mulheres, crianças e escravos. Representante legal da casa é exclusivamente o homem. Apesar de algumas tentativas de emancipação, não era possível naquela época falar de "igualdade de direitos" da mulher, na moderna acepção da palavra. Também no judaísmo a mulher estava subordinada ao homem, tanto do ponto de vista cultual como jurídico. As exortações dcs catálogos de normas para a vida doméstica são, pois, mundanas e social-seculares. Pagãos como judeus têm possibilidade de reconhecer-lhes a validade. Por outro lado, porém, pode-se constatar o processo de cristianização na piópria forma do catálogo de normas para a vida doméstica, reproduzida por Paulo. As mulheres devem estar sujeitas aos maridos, "como convém no Senhor" (C1 3, 18). As instruções para os diversos grupos da casa são generalizadas quando se afirma: "Tudo quanto fizerdes, fazei-o de todo o coração, como para o Senhor, e não para homens.. . A Cristo, o Senhor, servi" (C1 3, 23s). Mesmo que se aceite, pois, o conteúdo da moral d o iudaísmo helenista, ela passa a ser legitimada agora por uma nova autoridade, a saber, por Cristo, o Senhor divino. Dessa maneira, no entanto, principia-se o processo de relativização das autoridades e dos poderes sociais, um processo como a Antiguidade não o conhecia. O patrão da casa, o pai, o proprietário de escravos, doravante não possui mais autoridade absoluta. Aos senhores é dito que eles possuem um Senhor no cku (C1 4, I), razão pela qual devem tratar os escravos "com

justiça e eqüidade". Todos são agora responsáveis perante o "kyrios" Cristo. Para esse Senhor toda a ação na casa deve ser realizada, ele, e não os homens recebem a obediência no verdadeiro sentido da palavra. Os membros da comunidade servem a Cristo, quando mantêm a ordem na casa. Dessa forma a relativização da autoridade dos homens e proprietários de escravos traz consigo a legitimação e fundamentação de sua autoridade. Nesse sentido é que se pode falar, no que se refere aos catálogos de normas para a vida doméstica, de um "patricarcalismo relativizado" (Friedrich Karl Schumann). Impõe-se sobretudo ainda a pergunta do que significa "amar" na admoestação aos maridos: "Maridos, amai as vossas esposas" (C1 3, 19). Ela se refere apenas ao amor natural, matrimonial entre homem e mulher? Distinguindo-se da tradição original, Paulo talvez tenha lido a palavra "amar" com os seus olhos. Entende-a no sentido do amor ao próximo, da "lei de Cristo". Então 3, 19 seria, em seu conteúdo, paralelo a 3, 18, onde lemos: "como convém no Senhor". Ademais, com o amor "natural" provavelmente não é necessário preocupar-se especialmente. Compreendido desse modo, o catálogo de normas para a vida doméstica inicia a grande luta contra o egolsmo que é próprio ao prazer sexual e ao "éros", e que ameaça, por meio deles, o relacionamento matrimonial. A nova autoridade do Senhor divino influi igualmente sobre a posição dos escravos, embora não altere nada na sua sorte, do ponto de vista legal. Seus senhores, contudo, estão agora sujeitos a Cristo, possuem acima de si um Juiz divino, ao qual precisam prestar contas. Por isso devem tratá-los com iustiça e eqüidade. No sentido ético os escravos conseqüentemente não são mais desprovidos de direitos. Merece ser mencionado que o catálogo de normas para a vida doméstica nem sequer menciona os direitos do homem, sobre os quais a sociedade antiga na verdade tinha tanto o que falar. Hans Conzelmann realçou corretamente (no excurso "Die Haustafeln", sobre CI 3, 18ss, em NTD, vol. 8) que os catálogos de normas para a vida doméstica se baseiam sobre uma premissa escatológica, razão pela qual podem relativizar as autoridades mundanas. "A cidadania é o exercício da relação escatológica diante do mundo" (op. cit., p. 152). Impossibilitou-se, assim, ao mesmo tempo todo tipo de entusiasmo: Os cristãos permaneceram no matrimônio e na casa e não enveredaram pelo caminho do ascetismo radical, como uma parte dos gnósticos. Não colocaram o reino de Cristo em lugar das ordens sociais mundanas. O amor de Cristo, no entanto, pode agora influir sobre o amor dos côniuges, sobre a relação entre pais e filhos, etc.

O "éthos" cristão-civil dos catálogos ae normas para a vida doméstica constitui realmente a origem e fonte de toda a ética cristã posterior, pois também ela tinha a tarefa de proceder a uma aceitação crítica da tradição, uma aceitação que conjuga entre si a relativização e a legitimação dos vínculos sociais. Os catálogos de normas para a vida doméstica tornaram-se dessa maneira o modelo da ética cristãmundana posterior até o dia de hoje. Por intermédio dos catálogos de normas para a vida doméstica a Igreja primitiva ingressa, pois, - um momento histórico sumamente significativo! - pela primeira vez numa relação concreta com uma das instituições sociais mais importantes de todos os tempos, a saber, matrimônio e família, inclusive os escravos. Evidencia-se que a Igreja não pretende ser uma comunidade ascética à margem da sociedade, mas que ela engloba os matrimônios e as casas, como, aliás, tamMm se batizaram famílias inteiras durante a missão. Inicia aqui a história do matrimônio e da família "cristãs", de amplas repercussões, e que se desenvolveu no sentido da aceitação crítica acima descrita. Como uma ordem social mundana está sendo integrada dentro da comunidade, pode-se notar também desde logo o problema da natureza mundana de tais estruturas sociais, pois não foi a Igreja quem criou matrimônio e família, mas encontrou-as como realidades históricas e sociais iá existentes. Por conseguinte, ela teve de tomar posição diante do fato de que seus membros eram casados, tinham filhos ou pertenciam à classe dos escravos. Não é possível eliminar tudo isso do mundo. O próprio Paulo não podia fazê-lo, apesar de que ele - conforme ainda veremos - pessoalmente vivia asceticamente e tinha motivos para aconselhar a outros o celibato (cf. o próximo item 5). A união com matrimônio e família provavelmente seja a mais importante, por ser a mais estreita e densa, que a Igreja fez com o mundo. Em múltiplas variações históricas ela também se conservou até o dia de hoje. Aceitando a tradição dos catálogos de normas para a vidú doméstica e alterando e fundamentando-a no sentido cristão, a Igreia primitiva antes de Paulo tomou uma decisão de enorme alcance histórico. Paulo reconheceu para si e para as comunidades por ele fundadas a legitimidade de tal decisão, dandolhe apoio com a sua autoridade apostólica.

5.

As ordens sociais do mundo

Precisamos de começar novamente na estrutura fundamental escatológica do pensamento paulino. Entendemos o conceito do "escatológico" em Paulo num duplo sentido: 1) futuro, significando o fim do mundo que está por vir, com o Juizo, a ressurreição dos mortos e a consumação do reinado de Deus (cf. I Co 15, 12ss);

2) presente, no sentido da salvação escatológica que já irrompeu e se manifestou em Cristo. Esse enfoque confere a Igreja e a existência cristã igualmente um caráter escatológico, visto que pertencem a época entre a Páscoa e a parusia do Senhor e se encaminham para o Juízo e a perfeicáo. Prevalece por vezes a pr'imeira componente, por vezes a segunda, contudo elas permanecem sempre ligadas uma a outra. a)

Comunidade e mundo

No que se refere a relação da comunidade com o mundo como um todo, o mais conveniente é tomarmos como ponto de partida I CO 7, 29ss, ou seja, o "como se" dialético de Paulo: utilizar-se do mundo como se não se fizesse uso dele. Cristãos possuem esposas como se não as tivessem; choram como se não chorassem; alegram-se como se não se alegrassem; relacionam-se com o mundo como se não se relacionassem; pois é breve o tempo até o Fim; razão pela qual é conveniente esse estranho distanciarnento da comunidade diante do mundo. Cristãos por certo não deixam de viver e agir no mundo, contudo eles relativizam essa atuação, não como céticos, não como pessimistas gnósticos, porém como pessoas que vivem uma existência escatológica. Paulo está tão longe da fuga do mundo quanto da paixão por ele. O "como se" dialético, no entanto, é apenas o reverso da afirmação de II Co 5, 17: Cristãos são "nova criatura (Criação)", "as coisas antigas já passaram, eis que se fizeram novas!" E o câmbio escatológico dos tempos, pois com Cristo o novo "éon" da salvação irrompeu no "éon" passageiro deste mundo. A presença incipiente do "éschaton" e a nova situação dos cristãos baseiam-se sobre o feito reconciliador de Deus (I1 Co 5, 18s). Na Igreja o senhorio de Cristo já está presente, como início de uma recriação universal por intermédio de Cristo (C1 1, 15s; 2, 10.20). Cristo é o "cabeça" de todos os domínios e poderes do mundo, uma realidade que está em vigor já agora. Ela constitui o fundamento da liberdade cristã diante de todos os poderes do cosmo (cf. I Co 3, 21ss e Rm 8, 37s). Em vista disso o "como se" de Paulo não deve ser entendido no sentido de um desprezo cínico, ou cético, ou gnóstico pelo mundo, porquanto tem atrás de si o fator posi.tivo, a presença da salvação. Evidencia-se de modo surpreendente que justamente a distância escatológica perante o mundo, há pouco mencionada, confere à comunidade a liberdade de aprovar o bem e a justiça no mundo, a virtude e os valores sociais dignos de louvor (FI 4, 8). Como já vimos, não é possível, portanto, falar de uma negação total da ética da sociedade por parte de Paulo. O "éthos" civil é incorporado na

ética cristã. Todavia é necessário lembrar constantemente a premissa permanente desse processo: Cristo destronou os velhos deuses falsos e desendemoninhou o mundo. Apenas depois e por causa disso o mundo pode sobressòir com a sua própria ética, em sua natureza "mundana" ou de Criação de Deus. Se os poderes demoníacos estão despojados de seu domínio, o mundo não precisa mais de ser temido, ele se apresenta para os cristãos, por assim dizer, livre e aberto. p Por esse motivo vigora também que: "Do Senhor é a terra e sua plenitude" (I Co 10, 26). Tudo é puro (Rm 14, 14 e 20) e, em conseqüência, pode ser desfrutado. - Uma combinação do amor com o "éthos" civil é viável pelo fato de que ele não se conduz inconvenientemente e exclui a prática da injustiça (I Co 13, 5s). Em I Co 11, 3ss Paulo adota 'como válido e adeauado um costume amplame'nte difundido, qual seja, o de que as'rnulheres soem e, respectivamente, devem vestir uma mantilha por ocasião do culto. Sim, ele até se remete uma vez a "natureza" ("physis"): "A natureza vos ensina", o que corresponde exatamente a fórmula "natura docet" em Cícero. Ela provém do pensamento estóico. Contudo a natureza evidentemente não é para Paulo nenhuma grandeza absoluta. Ele a encara sobretudo a partir da fé veterotestamentária na Criação. Porque Cristo pôs a descoberto o acesso a Criação, Paulo pode adotar despreocupadamente essa fórmula contemporânea. Um pequeno sinal de sua grande liberdade espiritual! Desse modo a "natureza", bem entendida, é capaz de dizer o que convem e o que não convém para a mulher cristã. Nesse contexto são objeto de intensa discussão as afamadas frases de Rm 2, 14s, nas quais Paulo parece aproximar-se do chamado direito natural, ao falar da lei que está inscrita na consciência dos pagãos - quase que uma paralela pagã para a lei de Moisés revelada na história, porém na forma da razão moral do homem natural. 'Portanto também os pagãos, embora não possuam a lei de Moisés, fazem "por natureza" ("physei") o que a lei exige. Eles são "lei para si mesmos", e as obras desmandadas pela lei Ihes estão "gravadas nos seus corações" (Rm 2, 15). Por conseguinte, também os pagãos são capazes de procederem eticamente, um fato que realmente se constata na prática. Portanto, é correto falar de um cumprimento natural da lei pelos pagãos, condicion~dopela consciência. De forma semelhante Paulo menciona em Rm 1, 32 que eles têm conhecimento da exigência jurídica de Deus. o único motivo pelo qual podem ser declarados culpados quando não a cumprem. Sua imoralidade encontra-se, então, em contradição com seu conhecimento ético da lei. Contudo não B de uma lei moral autônoma que o apóstolo trata em Rm 2, 14s, mas da exigência do Juiz divino. O que transparece nitidamente na intenção zscatol6gica do trecho 2, 15s. Ele fala do

dia em que Deus há de revelar os segredos dos corações, e da controvérsia de acusações e desculpas em faze do Juízo Final. A lei não-escrita da consciência e do coração, conseqüentemente, se encontra numa relação escatológica com Deus, o Juiz. E evidente que semelhante pensamento seja tão importante para Paulo porque desse modo os pagãos não podem ser desculpados nem eximidos de responsabilidade quando não cumprem a exigência de Deus. Paulo, portanto, transfere sobre Deus, o Criador e Juiz, a idéia de uma lei cumprida "por natureza" e inscrita nos coraqões. Integrou-a, por conseguinte, na sua teologia escatológica, como também está comprovado que ele adota e utiliza, no trecho em pauta, conceitos helenistico-estóicos. No que tange às suas formas de expressão, Paulo decididamente não foi nenhum purista, urna vez que incluiu nas duas cartas aos Corintios também termos gnósticos, tais como o "perfeito", a "pessoa anímica", etc. Contudo coração e consciência justamente não constituem a instância suprema. Essa é representada pelo Juiz divino com seu Juízo futuro. Os pagãos são, como os judeus, responsáveis perante Deus e estão sujeitos ao seu julgamento. Os conceitos "coração" ("kardía") e "consciência" ("syneidesis") permanecem claramente separados do conceito da fé, que é despertada pela graça. Em Rm 2, 15 Paulo trata da consciência dos pagão: não-convertidos bem como de sua ética. O pensamento cristão de um direito natural poderá basear-se em Paulo somente quando essa Última distinção e a perspectiva escatológica global forem nitidamente conservadas. Ao contexto ds relação da Igreja para com o mundo pertence também a insistência no mandamento do trabalho (I Ts 4, 11s). Paulo dirige-se contra pessoas negligentes e preguiçosas na comunidade de Tessalônica. Presumivelmente se trata de entusiastas que abusam da esperança pelo fim iminente a referida maneira. Não obstante, o mandamento veterotesiòmentário do trabalho de modo algum foi abolido, para Paulo, por meio da esperan;a escatológica. Em II Ts 3, 6ss Paulo também aponta para o seu próprio exemplo: Ele trabalha pessoalmente e não permite que outros o sustentem. Não nos devemos fiar no auxílio dos outros, mas providenciar nosso pão pelo trabalho das próprias mãos (I Ts 4, Ils). Essa ordein é necessária também porque as comunidades devem ler um comportamento ordeiro aos olhos dos que estão de fora. De acordo com CI 3, 22s o trabalho dos escravos, exercido em obediência, é agora feito para Cristo, e não para homens. Deparamos aqui com a origem de um "éthos" trabalhista totalmente oposto à aversão que a Antiguidade tinha em relação ao trabalho. O cristão noo despreza o trabalho físico, como o cidadão livre da Antiguidade, que o deixava somente a cargo do artífice e do escravo. Mais {arde foi desenvolvido, a partir da admoestação

de Paulo, o pensamento de que o trabalho é o método mais nobre do controle e da educação (disciplina) cristãs. O trabalho foi relacionado com as virtudes seculares do zelo, da poupanqa e da parcimônia, sobretudo nas éticas luterana e puritana. Já o próprio Paulo, porém, não diz nada d e que o trabalho fosse realizado somente por causa da aquisição e d o lucro. Naturalmente não podemos falar em Paulo d e uma "ética do trabalho" elaborada. Quando ele trata do trabalho, ou do poder político, ou do matrimônio, sempre o faz dentro de situações concretas das comunidades e em vista de incidentes especificos que tornam necessária uma orientacão. Nesse sentido o apóstolo é um "ético de situação", se bem que não cogite nem um pouco de submeter as normas a uma situação. Não devemos esperar de Paulo uma ética sistemática do matrimônio e da política. Ele não foi influenciado pela filosofia social e estatal da Antiguidade ou do final dela. O encontro intelectual entre ela e a Igreja deu-se somente mais tarde. Paulo raciocina de maneira completamente parenética e escreve instruções para membros da comunidade por causa de perguntas formuladas pela comunidade (I Coríntios) ou por causa de incidentes específicos nas suas comunidades. Também os catálogos de normas para a vida doméstica não possuem natureza teórica, embora se possa afirmar com razão que suas instruções têm validade fundamental e geral na Igreja. C) mandamento de que os homens devem amar suas esposas não e restrito a uma situação apenas, mas vigora para qualquer comunidade, onde quer que ela esteja. Afinal, ele é uma ampliação e aplicação do mandamento do amor, da "lei de Cristo".

b)

A autoridade política

Rm 13, 1-7, o trecho em que Paulo se ocupa com a posição dos cristãos romanos diante dos funcionários e das autoridades do Império daquele tempo, também possui, do princípio ao fim, um caráter parenético. A exegese mais recente o constatou com acerto. Paulo pressupõe o Império como um dado existente. Ele não discute a sua legitimidade nem se interessa por como o César conseguiu O cargo e o poder. Não encontramos em Paulo nenhuma "teologia do Estado" nem uma reflexão sobre a "essência" do Estado, mas apenas a exortação: Integrai-vos nesse domínio, porque Deus instituiu os poderes políticos existentes. Deveis encará-los como servidores de Oeus. Por isso também tendes de pagar vossos impostos de acordo com a ordem. Nesse apelo, Paulo emprega toda a terminologia política e jurídico-estatal em curso naquela época, de modo que OS leitores em Roma o podiam entender imediatamente. Desperta a atenção que o trecho está redigido na linguagem de uma teologia generalizada da lei (M. Dibelius). Não podemos

descobrir o mínimo sinal de uma fundamentação cristológica do Estado. Mas é preciso observar, em primeiro lugar, que essa exorta$50 sóbria e realista de submeter-se ao senhorio político se encontra no contexto de uma explicação do mandamento do amor (Rm 12, 13ss). Mesmo que "cada qual" (13, I), íudeu como pagão, precisa de submeter-se ao poder estatal, é importante para os cristãos encararem semelhante ato como uma conseqüência lógica do amor e da humildade, pois com certeza não é por acaso que precisamente nesse contexto podemos ler que o amor é o cumprimento dos mandamentos do Decálogo (13, 8-10). "Quem ama ao próximo tem cumprido a lei" (13, 8). Pelo que constatamos, Paulo também considera a submissão dos cristãos ao poder estatal como um daqueles mandamentos cumpridos pelo amor. Em segundo lugar é necessário observar que Rm 13 finaliza com uma perspectiva para a salvação escatológica cada vez mais próxima (13, 11 ss). Por isso os cristãos devem deixar das "obras das trevas" e revestir-se das "armas da luz". Esse mandamento, fundamentado inequivocamente na escatologia, não exclui para Paulo a admoestação anterior, de submissão a autoridade estatal; um ato que, portanto, de modo algum faz parte das obras das trevas, como também não faz parte delas o poder político, apesar de se tratar de "autoridades" pagãs e apesar de naquele tempo não haver nenhum cristão num cargo governamental. Por conseguinte, pode-se cumprir um mandamento de Deus em acordo com um costume moral da sociedade constituída. De que maneira, porém, Paulo justifica a sua exortação? Ele encara os magistrados e as autoridades como mandatários e servidores de Deus, seguindo desse modo uma tradição judaica antiga, também adotada pela sinagoga helenista da diáspora. Em acordo com ela, o apóstolo afirma que as autoridades políticas foram ordenadas por Deus (13, 1s). Isso é evidentemente uma declaração teológica, de amplas conseqüências, sobre o Estado. Ela apenas não deve ser entendida mal, no sentido do conceito moderno, e de forma alguma paulino, das "ordens criacionais". Mas Deus aparece antes como o legislador universal no sentido global da palavra, pois "cada qual" sobre a terra precisa de submeter-se ao poder político. Em todos os casos, o Estado não se origina da vontade humana ou da natureza social do homem. Nada podemos verificar a respeito da fundamentação secularizada do Estado no sentido do direito natural, muito embora a Antiguidade já tenha elaborado semelhantes pensamentos muito antes de Paulo. A delimitação é muito significativa para toda ética política cristã até hoje. Somente quem procura aqui uma doutrina acerca do Estado pode admirar-se de que Paulo não reflete sobre a origem do Estado

nem sobre a ascensão ao poder por parte dos atuais detentores do poder. Para a admoestação concreta a que ele visava, isso na verdade nem era necessário. Ele podia orientar-se na autoridade existente, o que bastava para alcançar o seu objetivo. Já dizíamos que Paulo não filosofa sobre a essência do Estado. Ao inves disso ele declara algo muito importante sobre a tarefa e a finalidade da autoridade política, a saber: Ela é a guardiã do direito e da ordem jurídica. Ela castiga o que transgride a lei, que pratica a maldade; porém, quem faz o bem não precisa temê-la (13, 3s). Bem e mal são, no presente caso, conceitos da moral geral da sociedade, tais como todos os entendem. Outra coisa do que aquilo que seria socialmente benéfico, o Estado, afinal, nem pode exigir. Ele se empenha por legalidade, por manutenção das ordens e pelo bom procedimento dos cidadãos. Finalidade do Estado é impor esses objetivos, motivo pelo qual Paulo fala nos termos da moral civil sobre o dever dos cristãos. Evidentemente o seu "Estado de direito" não é igual à moderna democracia com seu tesouro de direitos dos cidadãos à liberdade, contudo é muito provável que ele avaliou positivamente o direito do Império Romano. Com grande ênfase 13, 4 ressalta o poder punitivo do Estado. Dado que os detentores do poder político são instituídos por Deus, devemos cumprir nosso dever diante deles por causa da consciência, p. ex., pagando corretamente os impostos (13, 5s). Ao que parece, a exortação foi tão adequada naquele tempo como o é hoje. Paulo fortalece a "moral tributdria". Portanto, não se deve agir corretamente apenas por medo do castigo. A consciência une o cristão com o Estado, pela evidente razão de que ela sabe da determinação de Deus. Novamente temos diante de nós a teologia generalizada da lei. Nesse sentido podemos ver com razão prefigurado em Paulo o "primus seu politicus usus legis", isto é, a função política da lei, como reza a terminologia reformatória. E evidente que o Estado terminará juntamente com todo o mundo. Ele não é eterno nem divino. Paulo não deixa entrever nenhum vestígio de uma glorificação religiosa do Estado ou do reinado como nos impérios vétero-orientais ou no culto helenista-romano ao imperador. Pela natureza de sua fé em Deus, bem como pela sua escatologia, semelhante glorificação foi impossível. Ambas tornaram o Estado algo mundano. Muito embora não conheçamos o motivo concreto para essa exortação, certamente não 6 por acaso que ela aparece justamente na carta aos Romanos, que se encontravam no centro do poder do Império. Após experiências terríveis nós hoje precisamos de fazer muitas perguntas que Paulo desconhecia: pela relação entre poder e moral,

pela ~erversão do poder e pelos seus motivos, pelos meios de controlar o poder estatal que aumenta constantemente, e outras perguntas mais. Não devemos supor que Paulo não tenha tido conhecimento de violências políticas e de procedimentos injustos dos poderosos, porque em Rm 1 e 8 ele fala com grande severidade e clareza dos pecados dos pagãos ou dos poderes demoníacos. No entanto, isso não muda nada no fato de que foi Deus quem instituiu o poder estatal, e Paulo deve ter tido bons motivos para dizê-lo precisamente aos cristãos de Roma. A intenção e tarefa parenéticas do apóstolo limitam a área de seus pensamentos. Por isso ele não fala da perversão do Estado pelo culto ao imperador, como o faz Ap 13. É verdade também que o culto ao soberano alcançou pleno desenvolvimento e se impôs somente no tempo depois d e Paulo. Portanto é preciso abordar também Ap 13, a fim de dar realce a toda a amplitude das afirmações do Novo Testamento nessa questão.

I Co 6, I s s demonstram que, quando necessário, não faltava absolutamente a Paulo a devida distância frente ao Estado. Ele veda energicamente aos cristãos de Corinto que se dirijam aos juízes pagãos nas contendas que ocorrem entre eles, com o que menosprezam tanto a disnidade da comunidade quanto o mandamento do amor. De modo algum Paulo está pondo em dúvida a soberania jurídica do Estado. Contudo afirma que a comunidade deve resolver ela própria tais casos de litígio, pois contradizem a santidade da comunidade e o mandamento do amor. Não se coloca, pois, em dúvida a legitimidade da judicatura estatal. Mas Paulo, afinal, não se ocupa com as contendas iurídicas entre pagãos, porém unicamente com as existentes entre cristãos. Elas contrariam a essência do amor fraternal e a conduta irrewreensível aue convém aos cristãos. Paulo constata, pois, em ~grint; uma situaião em que vale para a comunidade: "Tua res agitur", aqui precisas de agir pessoalmente! O apóstolo procede em sua admaestacão em concordância com tal constatação. O Estado e sua judicatura não são nem criticados nem restringidos. Assim como em Rm 13 Paulo não discorre sobre a essência do Estado. assim também não o faz em I Co 6 com respeito à natureza e aos limites do direito. Seria correto denominar a wosicão de Paulo "lealdade" frente ao Estado? A expressão poderá ser admissível, se entendermos o termo não no sentidc de mera adaptação ou de um cálculo interesseiro, mas no sentido da fundamentação do procedimento cristão segundo a ordenança de Deus e por causa da consciência. Ela é, no entanto, por demais estreita e superficial para que possa ajustar-se às afirmações de Paulo. I Co 6, lss denotam também que o apóstolo não foi simplesmente um positivista realisia que se adaptava a tudo que, no momento, constituía o status quo. O apóstolo, pelo contrário, 8

conhece a profunda diferença escatológica e histórico-salvifica entre Igreja e Estado, entre a salvação divina e o direito terreno. Não apagou as fronteiras entre eles, o que permanece conio exemplo para toda a ética cristã. Do afirmado resulta, por fim, que não se deve superinterpretar Paulo exigindo-se dele unia resposta direta para nossos problemas atuais. Ele não tem possibilidades de dá-la. Não obstante, suas afirmações sobre a ordem de Deus e o dever dos cristãos frente ao Estado continuam válidas como premissas para novas e necessárias decisões e formulações de conceitos na ética política de hoje. A diferença entre Paulo e nós reside sobretudo eni que naquele tempo não havia nenhuma possibilidade para uma atividade e colaboracão políticas responsáveis dos cristãos no Estado. Os cristãos daquele tempo viam-se colocados na relação de simples súditos. Nesse aspecto uma ética política para cristãos precisa hoje de ter uma configuração totalmente diferente do que na Igreja primitiva, pois que tem de desenvolver uma dou,rina das virtudes políticas sob o ponto de vista de uma participa;ão responsável dos cristãos no Estado. C)

O matrimônio

Na questão do matrimônio dependemos ein primeira instância de I Co 7. Também esse trecho nos apresenta uma parênese concreta com respostas a perguntas específicas, confrontando-nos com instruções para determinados grupos dentro da comunidade.

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Pelo que se depreende, Paulo se encontra em duas frentes de combate, contra tendências libertinistas e ascéticas radicais. Ambas foram provocadas pelo gnosticismo. Paulo não adere a nenhuma dessas divisas. Constatamos acima que ele rejeita severamente o contato com a meretriz por ser uma destruição da comunhão com Cristo (I Co 6, 125s). Delimita a liberdade do cristão, a qual não deve dar ocasião para a carne (GI 5, 13). Por outro lado, porém, Paulo não transforma a comunidade numa seita de ascetas que vivem celibatariamente. O que é tanto mais notável que ele próprio vive solteiro e recomenda também aos outros cristãos o celibato como a condição melhor. Que o impede, então, de impor a comunidade a lei costumeira da ascese sexual? Evidentemente o motivo é a tradicão judaica e cristã primitiva, radicada no Antigo Testamento, que encara o matriniônio como uma boa instituição do Criador, o qual determinou que homem e mulher formassem uma comunhão. Devem ser "uma só carne", como o expressa também a tradicão existente em Mc 10, 1ss. 8, empregada por Jesus para responder a pergunta do divórcio. Na mesma tradição está embasado I Co 7, lss: Por causa da impudicícia tcdo homem deve

ter sua própria esposa, se bem que na concepção de Paulo seria melhor não ter relações com nenhuma mulher. Contudo a recomendação ao celibato - cujas razões conheceremos logo a seguir - não quer ser uma lei para a comunidade. Paulo se recusa a pôr um laço no pescoço dos coríntios (7, 35). O matrimônio, por conseguinte, é necessário como prevenção contra a impureza. Possui, portanto, um caráter antidemoníaco. Não se afirma, com isso, que Paulo tenha encarado o matrimônio como comunhão meramente sexual. Ele vai muito mais a fundo. Nenhum dos cônjuges não é mais senhor sobre o seu corpo, pois cada um pertence ao outro (7, 4). O exercício da comunhão matrimonial não deve ser interrompido, a não ser por causa da oração (7, 5). Paulo não possui nenhum interesse em experimentos ascéticos artificiais dentro do matrimônio. O apóstolo igualmente está cônscio de que nem todos possuem o carisma do celibato assim como ele (7, 7). Está em acordo com a tradição sinótica o fato de que Paulo se refere expressamente à proibição do divórcio pelo Senhor (7, 10s; cf. MC 10, 11 e par.). Por conseguinte não é possível afirmar que Paulo tenha menosprezado o matrimônio. Quem se casa não peca (7, 28); a frase encontra-se ao lado da reiterada recomendação ao solteirismo. Essa justaposição caracteriza a atitude peculiar do apóstolo nessa questão. A tradição permanece válida, contudo existe além dela o caminho do celibato. Em todos os casos é melhor casar-se do que ser consumido pelo desejo (7, 9). Paulo não trata especificamente da monogamia. No entanto ele aceita simplesmente e pressupõe como natural a monogamia, que já era a forma básica na sociedade de sua época. O matrimônio é, como o Estado, uma ordem mundana, e não uma instituição sacral. Compreensão essa que serviu mais tarde como ponto de partida para a Reforma. No entanto não podemos declarar que seja um mandamento obrigatório de Deus ingressar no matrimônio, como pensaram alguns teólogos luteranos. Pelo menos Paulo está muito longe disso. O matrimônio não é nenhuma ordem compulsória. Também os solteiros fazem jus ao pleno valor de seu carisma na comunidade. Por outro lado, porém, Paulo não faz dos que vivem solteiros uma classe religiosa privilegiada. Portanto eles não são "perfecti" (pessoas perfeitas) no sentido do posterior monasticismo. É bem verdade que também Paulo fala dos perfeitos, referindo-se, contudo, a todos os cristãos, uma vez que possuem o Espírito de Deus e vivem em conformidade com o Espírito (1 Co 2, 6ss; 3, lss). Quais são, pois, os motivos que levam Paulo a recomendar com tanta insistência o celibato aos diversos grupos, tais como os que ainda não casaram e as viúvas?

A primeira razão é a escatológica: O tempo é cada vez mais breve (7,29s). O apóstolo deseja que, tendo em vista a proximidade do Fim, os coríntios não assumam preocupaçòes (7, 32). Evidencia-se que ele acredita que o matrimônio as acarreta. "A aparência deste mundo passa" (7, 31), razão pela qual não é recomendável sobrecarregar-se agora ainda com fardos terrenos. Acrescenta-se a isso logo o segundo argumento, o cristológico. A pessoa casada está com o coração repartido e cuida de coisas do mundo, pois homem e mulher procuram agradar-se urn ao outro (7, 32ss). Todavia o decisivo é cuidar da causa do Senhor e servir, com um coração não-dividido, exclusivamente ao Senhor. Sobre isso está dirigida a intenção de Paulo. Com urn olhar realista ele reconheceu as preocupações que o matrimônio traz consigo. A expectativa escatológica não provoca em Paulo conseqüencias entusiastas, mas realistas. Uma justificação gnóstica da exortação ao celibato teria um aspecto totalmente diferente, declararia o corpo e a sexualidade como demoníacas e malignas. Paulo depara, portanto, com novos problemas que ainda não se apresentavam a proclamação de Jesus. Por isso ele precisa de apelar para a sua própria autoridade. Uma questão corno a do divórcio está decidida de forma absoluta quando existe uma palavra do Senhor (7, 10). Novas perguntas, porém, como matrimônio, abstenção do matrimônio, casamento de quem ainda é solteiro, cônjuge num matrimônio misto com pagãos - elas precisam ser decididas de modo diferente. Por isso Paulo recorre a que ele possui o Espírito divino (7, 40). Ele é uma pessoa que "recebeu a misericórd~ide ser digno de confiança" (7, 25). Em conseqüência, o seu juízo tem o caráter de uma autoridade pneumática, se bem que relativa e secundária. A presente argumentação de Paulo é muito instrutiva para reconhecermos a necessidade da formação de novas autoridades na Igreja primitiva após a Páscoa. Nas comunidades paulinas não era mais scficiente citar palavras de Jesus. A autoridade que Paulo reivindica para si interfere, segundo I Co 7, também na vida ética das comunidades. Paulo tem um iuízo, uma opinião, mas não uma ordem. Nisso reside sua limitação. Ele sabe muito bem distinguir entre a sua autoridade e a do Senhor (7, 10; cf. 7, 35). De mais a mais, Paulo não diz que matrimônios existentes pudessem ser dissolvidos por causa do Fim iminente. Aconselha, porém, os solteiros a permanecerem nessa situação sem casar. Até mesmo os matrimônios mistos entre cristãos e pagãos - um fato muito significativo, por revelar, a tolerância de Paulo! - devem continuar em vigor, a não ser que o parceiro pagão deseje a dissolução de semelhante matrimônio (7, 12s). Conscientizemo-nos da grande dificuldade da questão para o cristão daquela época! Será realmente

Hans von Campenhausen afirma (em "Tradition

possível que um crente e uni incréu vivam juntos no matrimônio? Hoje há muitas pessoas que procuram impedir um matrimônio entre cristãos evangélicos e católicos, apesar de que eles crêem no mesmo Senhor. Naquele tempo, toda a vida dos pagãos estava repassada de ritos cultuais e práticas religiosas. O apóstolo o sabia e, não obstante, se empenha pela conservação dos matrimônios mistos. Os filhos de tais uniões fazem parte da comunidade, eles são santificados (7, 14ss). Evidentemente Paulo conhece uma graça divina santificadora, que age para além de cada cristão, mas não há nenhum motivo para lhe imputarmos concepções mágicas nesse ponto. E necessário levar em consideração a vontade do cônjuge pagão, pois se sabe: "Deus vos tem chamado à paz" (7, 15). Por isso deve ser rejeitado um matrimônio imposto ao outro por coação. Em síntese, Paulo relativizou a tradição judaica e cristã primitiva por meio de sua recomendação ao celibato, por meio de seu próprio ascetismo, o qual também era apenas relativo. Cristo abre o caminho para a liberdade diante das formas de vida terrenas. O matrimônio não é nenhuma ordem absoluta, tão pouco como também o Estado não o é. Não temos mais cond~çõesde determinar exatamente a corrente ascética daquele tempo, pela qual Paulo foi influenciado. Dificilmente entraria em cogitação o gnosticismo. Precisamos de contar também com a possibilidade de que a própria entrega total a Cristo tenha conduzido Paulo à tendência para a ascese. Digno de nota é, enfim, um princípio ético geral que Paulo introduziu no capítulo sobre o matrimônio. E o seguinte: "Continue a viver cada um segundo o Senhor lhe tem distribuído" (7, 17; cf. 24). Quem foi chamado como incircunciso (pagão) não se deve deixar circuncidar. O escravo deve permanecer escravo, mesmo quando poderia tornar-se livre (7, 21). Isso porque, como cristão, ele é agora um "liberto do Senhor" (7, 22). É ó h i o que o que induz o apóstolo a fazer essa admoestação é novamente a expectativa escatológica. Portanto, não é necessário que derrubemos nossa condição social por causa do chamamento para a fé. O chamamento de Deus não arranca o homem de sua situação histórica e social. Não existe, por conseguinte, nenhuma "revolução cristã". O senhorio de Cristo, p, ex., não é idêntico a uma igualdade social perfeita. Conseqüentemente o chamamento na graça engloba, na unidade da comunidade, as mais diversas posições sociais, de judeus e gregos, de homens livres e escravos. Era de se esperar que a estrutura de unidade e comunhão da Igreja mais tarde também fosse exercer influências na sociedade, a saber, no sentido do aiustamento e da paz. Não deveríamos - já por causa da fundamentação escatológica - misturar a concepção de Paulo com o conservantismo social e político maderno, o qual possui fundamentos espirituais totalmente distintos.

und Leben",

p. 146) que Paulo realça a validade da tradição do discipulado evangélico radical (cf. Lc 14, 26ss par.), dando-lhe uma interpretação ascética. Trata-se de obediência a Cristo na forma de vida celibatária. Vimos acima que a validade do matrimônio não é atacada por meio dessa interpretação. Os cônjuges não devem nem dissolver o matrimônio, nem transformá-lo no tipo fictício de um matrimônio ascético (o chamado matrimônio espiritual). Quem vive no matrimônio, deve exercê-lo também. A explicação do sentido do amor matrimonial e o seu embasamento cristológico em Ef 5, 22s, no entanto, seguramente não são paulinos, representando um desenvolvimento autônomo da tradição dos catálogos de normas para a vida doméstica. A recomendação ao solteirismo não se encontra mais em parte alguma do Novo Testamento além de Paulo, um fato que provavelmente deve ser tributado à necessidade de combater o ascetismo gnóstico (cf. abaixo, o trecho sobre as cartas pastorais, no cap. IV).

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Em I Ts 4, 3s encontramos, num sentido limitado, uma provável paralela para I Co 7. A vontade de Deus é quc a coinunidade seja santificada. Isso exclui a impudicícia, as paixões libidinosas, as quais estão sujeitos os pagãos. Cada um deve conseguir (ou ter) a sua própria esposa, em santidade e honradez. A fórmula ultrapassa visivelmente I Co 7. A santificação, portanto, também pode acontecer no matrimônio. Não está restrita a uma forma de vida ascética. Para nbs isso hoje parece muito natural, porém no tempo de Paulo havia bons motivos para sublinhá-lo. Em suma, o relacionamento sexual como tal não impossibilita a santificação, como pensava o gnosticismo ascético. Poderíamos descobrir agora a seguinte contradição em Paulo: O cristão tem a liberdade de comer e beber. Todas as coisas são puras. Todos comem e bebem para o Senhor. Por que, então, Paulo não fala nos mesmos termos com respeito ao matrimônio? Por que o conselho para permanecer solteiro? Com efeito, as questões do matrimônio e da impudicícia são tratadas diferentemente do que as da ascese alimentar em I Co 8 e 10, respectivamente em Rm 14 e 15. Isso é surpreendente. Ao que parece, elas se situam em outra dimensão, pela justa razão de que tratam do relacionamento mútuo de pessoas. Está em jogo a unificação de homem e mulher, mesmo nas relações com a meretriz (I Co 6, 12). Tal situação possui um peso bem diferente do que a relação dos cristãos para com alimento e bebida. A união sexual com a meretriz, na verdade, destr6i a comunhão com o Senhor. Isso, no entanto, não vale para o caso de alimento e bebida. Por isso Paulo tem bons motivos para encarar as questões do matrimônio e do celibato de maneira diferente do que as do alimento e do comer de carne sacrificada a ídolos. Ele não

refletiu sistematicamente sobre essa diferença na avaliação, mas I Co 6, 12ss revela claramente o motivo decisivo. O corpo do homem é mais do que o estômago, pois pertence ao Senhor e é moradia do Espírito Santo. Toda a Igreja antiga foi profundamente influenciada pelo problema da ascese. No Novo Testamento, porém, não existe nenhum ascetismo absoluto, radical, não obstante João se aproximar tanto do dualismo gnóstico e atacar severamente a sujeição ao cosmos. Mesmo o ascetismo "relativizado", como Paulo o defende, não encontra adeptos. O camintio conduz, porém, como denotam as cartas pastorais e eclesiais, a uma cidadania cristã distanciada do mundo e, não obstante, próxima dele. Contudo não deve ser esquecido ou subestimado o contrapeso que o culto, a presença da libertação diante do mundo, oferecia a comunidade contra todo tipo de escravização ao mundo. A "solução intermediária" peculiar que Paulo defendeu em I CO 7, deve-se provavelmente ao encontro do ascetismo de sua época (o qual não existia apenas na gnose helenista, mas também no judaísmo que pensava de forma dualista) com a tradição veterotestamentária e judaica (cf. Gn 1, 27s; 2, 24; Mc 10, l s s 6-8 par.) de que ele estava imbuído e que o cristianismo pré-paulino já tinha acolhido.

d) A posição da mulher Nas epístolas de Paulo são mencionadas somente as esposas, as viúvas e as moças solteiras ou noivas. A mulher independente e a esposa que exercem uma profissão são fenômenos da sociedade moderna e provocaram problemas éticos novos. No tempo de Paulo, no entanto, as mulheres apenas apareciam na casa. Quando muito, havia alguns cultos femininos especiais, como, p. ex., o culto a Isis. Tendências de emancipação não foram capazes de alterar o quadro daquela sociedade, na qual a mulher significava um ser inferior, dos pontos de vista cultual, jurídico e social. Todavia em Paulo a questão é bem diferente. Decisiva é a declaração em GI 3, 28: Em Cristo não há mais o judeu nem o grego, o escravo nem o homem livre, o homem nem a mulher, porque são todos um em Cristo (cf. CI 3, 11). Isso não vem a ser uma abolição entusiasta das diferenças sociais e sexuais, mas a aceitação e o enquadramento das mesmas na unidade em Cristo e, assim, na Igreja, pois estar em Cristo significa estar na Igreja. Representa para as mulheres que elas participam tão plenamente da salvação como os homens e que são servas do mesmo Senhor que os homens. Ambos os sexos estão subordinados ao mandamento do amor. Isso é uma nova igualdade de homem e mulher em Cristo. Estava, pois, eliminada a inferioridade religiosa da mulher, se bem que não a jurídica

e social. Mas a partir da igualdade em Cristo também pôde ser despertada mais tarde uma nova visão da humanidade da mulher. Como nos revelava o catálogo de normas para a vida doméstica, em C1 3, 18ss, homem e mulher possuem agora ambos um novo Senhor, Cristo. Nesse fato estão contidas novas possibilidades, ainda que a nova igualdade tenha significado inicialmente apenas uma "revolução silenciosa". De qualquer modo, foi quebrantado o patriarcalismo, a posição de domínio total e absoluto do homem. Um procedimento tirânico agora transgride o mandamento de que os homens deverri amar as suas mulheres (C1 3, 19). Em I Co 11, l s s revela-se que Paulo segue novamente uma tradição judaica, que considerava' decoroso que a mulher usasse véu durante o culto. Paulo tenta, no trecho em questão, apoiar esse costume com os mais diversos argumentos, sem todavia cons@uir ser realmente convincente. Emprega, por exemplo, uma seqüência hierárquica: Deus - Cristo - homem mulher (sobre cuia origem histórica não há unanimidade), com o propósito de afirmar que a mulher é apenas "reflexo" do homem. O homem é o "cabeça" da mulher (I Co 11, 3). Ele pode apontar igualmente para a natureza ("physis"; 11, 13) para justificar o referido costume como sendo conveniente. Talvez seja porque Paulo procura combater pretensões emancipatórias gnósticas. Para a mesma finalidade é citado também o costume eclesiSstico (1 1, 16). Por outro lado, porém, o apóstolo pressupõe como fato dado que em Corinto também mulheres possuem e exercem o carisma profético (cf. as filhas do evangelista Felipe, em At 21, 9). Com isso transparece especialmente nítida a superação da inferioridade cultual da mulher. Contudo 11, 5 parece estar em contradição com I Co 14, 33-35, onde se deduz uma conseqüência diferent= da tradição judaica, a saber, de que a mulher deve.calar-se nas reuniões eclesiásticas. No entanto, não se está proibindo o profetizar - quem poderia impedir o Espírito Santo de falar por intermédio de uma mulher? -, mas que as mulheres lancem perguntas na reunião quando nao entenderam pronunciamentos de portadores de "pneuma". Elas devem, em tais casos, perguntar seus maridos em casa, de modo que não seja transtornada a ordem do culto. Quando os próprios oiadores ~neumáticos~recisamde ater-se a essa ordei (não falando simultane~mente),tant; mais naturalmente as mulheres (cf. a exegese de H.-D. Wendland, NTD, vol 7). Portanto a posição de GI 3, 28 e I Co 11, 11, segundo a qual homem e mulher são um em Cristo e conseqüentemente podem receber os mesmos dons espirituais (cf. I CO 11, 5), foi apenas aparentemente revogada em I Co 14, 33s. Na realidade 14, 33ss referem-se a um f a\ar bem diferente do que o f a\ar profético em 11, 5. Assim Paulo não retorna de todo A tradição iudaica, que indicava para a mulher um lugar subordinado na sinagoga.

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Na própria continuação da argumentação em I Co 11, 3ss destaca-se nitidamente uma restrição da seqüência hierárquica inicialmente enunciada: Embora a mulher se origine do homem, e não vice-versa Paulo tem em mente a história da Criação -, ambos provêm de Deus. A mulher não é nada sem o homem, nem o homem, sem a mulher, "no Senhor" (I Co 11, 11s). Deus é Criador e Redentor de ambos. Dessa forma, a ordem hierárquica de 11, 3 é, se bem que não abolida, pelo menos relativizada. Porque agora o novo "kyrios", Cristo, reina em sua comunidade, a tradição judaica (ou gnóstica?) de prioridade do homem sobre a mulher necessita ser corrigida, e o princípio crítico "no Senhor" (1 1, 11) corresponde exatamente a GI 3, 28. Também com referência às mulheres Paulo dá preferência, em I Co 7, ao estado de solteiras (7, 25s. 39s). Dentro do matrimônio, entretanto, Paulo não mais conhece uma dependência unilateral da mulher diante do marido, pois declara literalmente que os cônjuges pertencem um ao outro (7, 4). Cada um é senhor sobre o corpo do outro. Isso é devido ao fato de que também mulheres são chamadas à fé. recebendo o batismo e o Es~íritoSanto. Por isso sucede também que mulheres se tornam colaboradoras do apóstolo e lhe prestam serviços (cf. Rni 16, 1 e 3; At 18, 1. 18). Desse modo tem início na comunidade de Cristo a libertação da mulher de sua inferioridade e dependência cultuais e iurídicas, uma libertação que naturalmente levou apenas muito mais tarde a uma colaboração independente em cargos da comunidade (diaconisa, auxiliar de comunidade). Sem nenhuma dúvida a prédica de Jesus acerca do reino de Deus foi um dos fatores -- ao lado da dotação do Espírito - que tornaram possível a nova posição da mulher. Entre os discípulos de Jesus iá encontrar mulheres. Cura e perdão dos pecados são dispensados às mulheres da mesma forma como aos homens. Em Rm 16, 3 Paulo denomina Priscila a sua colaboradora. Ainda na Igreja antiga, nos pais da Igreia, podemos reparar nas duas linhas principais do Novo Testamento: em primeiro lugar a subordinação da mulher ao homem no matrimônio e, em segundo lugar, a plena participação da mulher na salvação, na dotação com o Espírito, e seu serviço de auxiliar na comunidade. Sob o aspecto histórico verifica-se que a tradição dos catálogos de normas para a vida dom6ctica, a qual encontramos em CI 3, 18ss, teve grande repercussão. Também eles se dirigem às mulheres. Devem ser sujeitas a seus maridos. Todavia agora homem e mulher possuem um único Senhor, Cristo. Por isso o catálogo ordena que os maridos devem amar as suas mulheres. é o ponto do qual parte o desenvolvimento cristológico dessa tradção. O catálogo de normas para a vida doméstica em Ef 5, 22ss deixa patente que se trata do amor de Cristo, daquele que se entregou em favor de sua comunidade (cf. abaixo, o item sobre a carta aos Efésios, no capítulo IV). Apontávamos antes que

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os catálogos de normas para a vida doméstica não falam dos direitos de dominio do homem. Embora os direitos seiam pressupostos, não são submetidos a uma fundõmentação ética especial. Assim o catálogo de normas para a vida doméstica está em harmonia com o material restante encontrado em Paulo. É verdade, porém, que em parte alguma se fala de reivindicações para reformar a posição social e jurídica da mulher. A simples expectativa do Fim imediato id excluía semelhantes concepções e objetivos, acontecendo, porém, o mesmo também por causa da estrutura social da sociedade daquele tempo.

J6 foi brevemente mencionado o mandamento contido no catálogo de normas para a vida doméstica em CI 3, 18ss, de que os escravos devem ser obedientes a seus senhores em todos os sentidos. A obediência não deve ocorrer para agradar a homens, mas na singeleza do coração e no temor ao Senhor (3, 22). 0 s proprietários são denominados senhores "segundo a carne", maneira pela qual se expressa claramente que o Senhor divino está acima deles. Por isso é seu dever tratarem os escravos "com justiça e eqüidade" (C1 4, I), com o que se adotam mais uma vez conceitos da moral da antiga sociedade. Encarados a partir da comunidade, e como membros da comunidade, os escravos, portanto, não são mais desprovidos de direitos. Assim como no caso das mulheres, também não se fala de libertação ou de reforma das condições e das disposições iurídicas no caso dos escravos. Há que lembrar também que o trabalho escravo era c fundamento econômico de toda a sociedade antiga. Somente com o Imperador Constantino I se procedeu às primeiras reformas da legislação escravista. A epístola a Filemom, que versa sobre o destino de Onésimo, escravo foragido e convertido a fé por Paulo, apresenta-nos um quadro idêntico. Paulo pede a Filemom, proprietário do escravo Onésimo, que receba esse último como irmão em Cristo (v. 14s). Nisso, Paulo respeita expressamente os direitos senhoris de Filemom, pois, apesar de que gostaria de reter Onésimo como seu auxiliar, ele o envia de volta ao seu proprietário. Não quer agir nesse interesse sem o consentimento do proprietário (v. 12-14). O apóstolo fala com amabilidade a respeito do escravo, embora ele tenha sido "inútil", como declara o próprio Paulo. Diante do proprietário Filemom Paulo se porta como um irmão que respeita os direitos do outro e que, não obstante, precisa de insistir em que o escravo agora se tornou alguém diferente, um rnembro da comunidade, um irmão em Cristo. "Como se fosse a mim mesma1<(v. 171, diz Paulo, Filemom deve receber o Onésimo que ele

lhe envia de volta. É a diplomacia honesta do amor, em sua forma mais persuasiva. Que harmonização dos enormes contrastes sociais ocorre na comunidade de Cristo! O ato de Paulo como tal iá representa um feito social de primeira grandeza. É espantoso que isso teve êxito. Não durou muito tempo e escravos se tornavam até bispos, presidentes de comunidades. Com efeito, a cristandade primitiva soube superar as diferenças "carnais" pelo poder do amor, sem, no entanto, pensar e sem poder pensar em reformas na sociadede. Gálatas 3, 28 inclui na nova unidade em Cristo também os escravos. Em conseqüência, a Igreja de Cristo será "comunidade" no verdadeiro sentido da palavra somente enquanto for e permanecer comunidade para as camadas mais inferiores da sociedade. A Igreja primitiva e, com ela, Paulo, encontravam-se no lugar certo: ali, onde estavam os pobres e os desgraçados. Foi isso o que o próprio Paulo testemunhou a respeito da composição da comunidade de Corinto: "Aquelas coisas que nada são, Deus escolheu" (I Co 1, 26-28). A Igreja primitiva iniciou a sua jornada como uma Igreja dos "ioões-ninguém", dos estivadores, dos artesãos e escravos, dos que eram tidos como socialmente insignificantes. Uma circunstância muito abençoada, pois que, no processo invertido, ela em breve teria acabado como uma escola filosófica e uma seita de intelectuais. Obtemos uma diferença digna de nota ao compararmos a conceituação do matrimônio e do poder político. Em parte alguma a escravatura como instituição social é embasada numa instituição e na vontade divinas. No tocante a escravatura falta uma paralela de Rrri 13, l s s ou Mc 10, l s s . Portanto não se legitima e fundamenta pela religião e estrutura da sociedade de então, a hierarquia de pessoas livres e escravos. Esse fato tornou-se importante mais tarde como premissa negativa para a Igreja, quando ela se viu forçada a combater o mercado de escravos e defender por princípio uma abolição da escravatura. Afinal, a escravatura não era nenhuma ordem e instituiçãc de Deus, o Criador, e, conseqüentemente, nenhuma ordem absoluta e sacrossanta que não pudesse ser violada. A atitude de Paulo na epístola a Filemom abre a possibilidade de redescobrir no escravo, irmão em Cristo, também o ser humano. Isso porque sobre os alicerces da comunidade de Cristo e dentro dela ele goza de plena participação na graça de Deus e é um irmão entre irmãos.

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- A validade universal dos mandamentos e sua relação com o Espirito

Neste tópico queremos partir daquela validade geral que as exigências de Paulo possuíam para ele próprio e suas comunidades, ou seja, não partiremos da pergunta se elas têm validade também

hqs. Tal pergunta teria de ser respondida por uma ética sistemática pare os cristãos de hoje. Sem dúvida alguma existe um tipo de instruções que, do ponto de vista histórico, iá passaram, como a respectiva situação. Outras comunidades não se defrontam mais com o comer de carne sacrificada a idolos, nem tampouco com mulheres que, em Corinto, perturbavam c culto por falarem no meio. E possfvel que no tempo de Paulo tenham existido comunidades que niio necessitavam de tais exortações. A instrução em I Co 5, lss, de afastar imediatamente da comunidade o pecador que cometera grave impudicicia, referia-se naturalmente apenas a esse único caso em Corinto. O mesmo vale para a desobediência ' dos coríntios contra Paulo, contra a qual ele luta energicamente na segunda epistola aos Corlntios. Nem todas as comunidades estavam ameaçadas pela gnose, nem todas incorriam em desobediência ao ap6stolo. Por isso h4 um sem-número de admoestações bem restritas, que não podiam ter validade geral no tempo do prbprio Paulo. Outras questões são por sua vez limitadas por causa de seu conteúdo. Isso vale, p. ex., para a recomendação ao solteirismo em I Co 7: Ela, na verdade, nem pretende impor uma lei A comunidade. Pressupóe até, em 7, 7, um carisma especial. Não é possível, portanto, cogitarmos de uma validade geral. Recordemos, contudo, mais uma vez I Co 8 e 10. Talvez a pep gunta se é lícito comer carne consagrada As divindades não tenha sido em toda parte tão candente como em Corinto. Aquilo, entretanto, que Paulo afirma com respeito ao Espírito e a liberdade em sua relação para com o amor, e com respeito A necessária consideração do irmão fraco, isso tem validade fundamental para todas as comunidades. Pode ser aplicado a outras situações do que a que se apresentava, então, em Corinto. Principio semelhante vale também para I Co 6, lss. Nem todos os cristãos se terão dirigido com contendas aos juizes pagãos. Todavia é valido para todas as comunidades que a natureza da comunidade como fraternidade requer um comportamento especifico, e que um cristão deve ser capaz de suportar injustiças. O mesmo podemos dizer de Rm 12, 13ss: Não paguemos o mal com o mal, ou: Abençoemos aos que nos perseguem. E esse o mandamento de Jesus. Aproximamo-nos, com isso, do mandamento que é a norma m6xima em toda parte e em todos os tempos, o mandamento do amor. A ele compete validade universal e ilimitada. E evidente que ela precisa sempre de novo ser concretizado, conforme Paulo o realiza em Rm 14 e 15, em I Co 6, 8. 10, ou em GI 5, 22. ConstataçBo idhntica podemos fazer em Rm 12, 13ss, inclusive Rm 13. J6 em Paulo pode-se verificar: Toda situação histórica nova requer uma nova aplicação e concretiza-

s h

H6 naturalmente também outros mandamentos que reivindicam validade em todas as comunidades, por exempto: "Fugi da impureza!" (I Co 6, 12ss), ou a exortação: "Não vos ajusteis ao tempo deste mundo" (Rm 12, 2). Era algo que Paulo podia escrever igualmente a todas as demais comunidades, não apenas aos romanos e coríntios. Exatamente o mesmo vale para a exigência de que os cristãos, porque batizados, devem pôr seus membros a serviço da iustiça divina (Rm 6, 1lss). A exigência de santificação não se dirige apenas aos tessalonicenses (I Ts 4, 31, mas a todos os cristãos e a todas as comunidades; possui validade geral. Se Paulo fala, em I Co 4, 17, dos seus "caminhos", ou seia, dos mandamentos éticos que ele ensina em todas as comunidades, o apóstolo ressalta pessoalmente o caráter de obrigatoriedade eclesiástica geral das suas instruções. Visto que anteriormente ele se denominou o pai espiritual da comunidade de Corinto (I Co 4, 144, está claro que sua parênese se fundamenta sobre sua autoridade apostólica e por causa da mesma compromete a comunidade. O que certamente vale também em outras comunidades com respeito a outros apóstolos. Em conseqüência disso, não nos defrontamos com uma ética originária da razão humana, como a da filosofia greco-helenista, mas com uma 6tica que nasce do evento salvífico em Cristo (veja acima, item 1) e que se torna concreta na proclamação do apóstolo, que é responsável pela edificação da comunidade. Desse modo não está excluído, mas incluído que os cristãos devem e podem apropriar-se das instruções mediante um juízo racional. Eles devem pessoalmente examinar qual é a vontade de Deus (Rm 12, 2). Têm capacidade para avaliar racionalmente a sua situação, a saber, que eles agora são - pelo batismo - "vivos para Deus" (Rm 6, 11) e que por isso podem dispor-se ao serviço dele (Rm 6, 12s). Trata-se, portanto, não de uma autoridade heteronômica (de lei estranha), nem tampouco da autonômica, como na ética filosófica da Idade Moderna, mas de autoridade "cristonômica" do cargo apostólico, a qual é a autoridade que funda e conduz a Igreia. As suas instruções abrangem toda a existência cristã e, por conseguinte, também os valores éticos que regulamentam a conduta da vida. Novamente comprova-se, assim, que em Paulo encontramos uma ética da comunidade (cf. item 4). Hans von Campenhausen chamou atenção para o fato de algumas instruções no Novo Testamento possuírem caráter universal. Podemos afirmá-lo sobretudo com respeito a Rm 13, lss: ''Todo homem" deve sujeitar-se ao poder político, seja ele pagão, judeu ou cristão. - É uma ordem para todos. Existem, pois, exigências bem gerais que são acolhidas pela ética da comunidade. Do mesmo modo a advertência contra a impudicícia não tem um caráter especificamente cristão. Ela é familiar também ao judaísmo. Mais tarde ocorreu o processo inverso,

a saber, de que exigências cristãs assumiram um carálter humano generalizado, isso quando a Igreja e a sociedade se fusionaram e grandes massas ingressaram na Igreja. Deixaram de vigorar, então, algumas das antigas regras vinculadas a uma situação específica, como, p. ex., a regulamentação de Paulo no que tange aos matrimonios mistos (I Co 7, 12ss), visto que se tornavam cada vez mais raros, até que, por fim, o batismo assumiu o caráter de um costume social geral. De forma idêntica o problema da carne sacrificada a Idolos perdeu sua atualidade, bem como outras questões mais. Em vigor permaneceram, no entanto, os valores éticos dos catálogos de normas para a vida doméstica, pois ainda existiam conjuges, pais, filhos e escravos. As suas orientações, aliás, podiam ser facilmente aplicadas à estrutura social da sociedade medieval. - Considerando que o Esplrito não A oiitorgado a uma aristocracia religiosa, mas que todos os cristãos o receberam mediante o batismo, permanecem também em vigor e obrigatórias para todos os cristãos as exortações de andarem "no" ou "segundo" o Esplrito (GI 5, 25; Rm 8, 4). Patenteia-se, portanto, para arredondar o afirmado com uma observação genérica, que a contraposição moderna, sempre altamente questionável, de "ética de normas" e "ética de situação" nem pode ser atribuída a Paulo. A situação não oferece nenhuma norma, contudo as normas da ética paulina são sempre relacionadas com a situação e aiustadas a ela. Mesmo que o mandamento do amor esteja acima de todos os mandamentos e seja compromissivo para todos em geral, existem, não obstante, a partir dele normas de aplicação concretas e sempre novas, numa metamorfose criativa. Por assim dizer, ele se multiplica. Importam normas pare situações concretas nas comunidades. Encarando a acentuada natureza pneumática do cristianismo pauIino, poderíamos naturalmente chegar a pensar que o recurso ao Espirito de Deus ou de Cristo seja suficiente para a fundamentação da ética. Poderíamos tentar demonstrá-lo com I Co 8 e 10 e com GI 5, 16ss. Vimos, contudo, na profusão de mandamentos especificas, que Paulo justamente não se remete apenas ao Espírito, mas também a normas, tais como o Decálogo, o mandamento do amor e suas concretizações, em síntese, à vontade de Deus. Instrui as comunidades a indagarem por ela. Em Paulo inexiste a alternativa: mandamento ou Espírito. O Espírito é unânime com a vontade de Deus e a torna manifesta. Sendo conferido aos cristãos, o Espírito lhes concede possam compreender e apropriar-se da vontade divina. Espírito sem mandamento levará forçosamente à anarquia moral, como deixa transparecer o exemplo dos gnósticos, os quais presumem que ''tudo Ihes é'llcito". Mandamento sem Espírito, por outro lado, conduziria A recaída na ética judaica; sem o Espírito haveria novamente o mero esforço moral

por obras da lei. A unidade de mandamento e Espírito em Paulo está caracterizada, p. ex., pela simultaneidade de I Co 7, 19 e GI 5, 25. Ambas as afirmações não estão de forma alguma em contradição recíproca, por mais tradicional que pareça a primeira fórmula. O Espírito é a quinta-essência na nova vida e, conseqüentemente, também de todos os mandamentos. Esse Espírito fala através d e mandamentos, ainda mais que ele está repleto do amor. Os cristãos carecem d a linha diretriz dos mandamentos enquanto ainda estiverem na carne, enycianto, pois, também a nova vida precisa de ser constantemente arriscada, adquirida e posta em prática (cf., p. ex., I Co 3, lss). Espírito para Paulo é essencialmente força e princípio básicos da nova vida e do novo procedimento. Tal embasamento da ética sobre o "pneuma" é tipicamente paulino (Wolfgang Schrage). Tanto menos, porém, entra emcogitação nesse caso a formulação d e uma contradição d e mandamento e Espírito. Pelo contrário, o andar no Espírito justamente cumpre os preceitos jurídicos de Deus (Rm 8, 4). Tão certo como o conceito pculino de Espírito inclui os fenômenos extáticos "transmorais", tão errado seria ;u~or uue ele fosse um conceito ~uramentemiraculoso. Paulo defende,'antei de tudo, uma pneumatol&ia ética. Com o amor dá-se um caso semelhante. Também ele é, por u m lado, graça, dádiva divina (Rm 5 , 5; GI 5, 22) e, por outro lado, também o riiandamento (I Co 14, 1; 16, 14; GI 5, 13) que requer ser concretizado pelos cristãos. Como já nos mostrava a fórmula "andar segundo o Espírito", o Espírito, no caso, vem a ser ao mesmo tempo norma, assim como ele é, por outro lado, graça e dom de Deus aos que crêem (Rm 5, 5). O imperativo do Espírito é um imperativo da graça. Em oposição mutuamente excludente encontram-se, entretanto, lei e Espírito. Onde a lei foi abolida (Rm 7, 7ss. 24; 8, Iss; 10,4), onde reina a liberdade escatológica em Cristo, ali também se encontra o Espírito, pelo qual o amor de Deus é derramado nos nossos corações (Rrrr5, 5). Aquilo que o homem sob a lei não é capaz de realizar, o Espírito concretiza, a nova obediência, a prática dó amor, o cumprirnento dos mandamentos. Espírito é a vida "nova" (no sentido escatológico, para cuja criação a lei é completamente impotente (cf. Rm 7 e, e m contraste, 8, I ss). A antinomia lei-graça corresponde exatamente a antinomia lei-Espírito. Em GI 5, 23 é dito expressamente que a lei i750 é contrária aos homens espirituais e aos "frutos do Espírito", pois rieles está cumprido o mandamento, de modo que a lei não tem nada que condenar e desmascarar: Perdeu a sua função. Acaso Paulo levantou também, ao falar do Espírito e dos mandamentos, a pergunta pela possibilidade de cumprirem-se os mandament ~ s ? Não encontramos pronunciamentos diretamente sobre essa questão, mas de toda a condução dos pensamentos do apóstolo resulta de maneira inequívoca que: É possível cumprir o mandamento. Não

existe para Paulo a problemática da exequibilidade, muito discutida desde a Reforma. E isso pela simples razão de que ele acredita no poder do Espírito e da nova vida. Todavia certo é que a lei, que se contrapõe como condenadora ao pecador, não pode ser cumprida. A pessoa batizada, no entanto, o homem em Cristo, o homem espiritual tem capacidade de cumprir o mandamento de Deus. E capaz de amar (cf. Rm 8, 4). Rm 6, 11 ou GI 5, 13ss ou as exigências de Paulo em I Coríntios (p. ex., 6, l s s . 12s) não deixam surgir sequer a mínima dúvida de que o cristão não fosse capaz de cumprir esses mandamentos. Isso porque ele, na verdade, vive na "lei de Cristo", como Paulo afirma com respeito a si mesmo (I Co 9, 21). Na nova vida não mais existe o abismo entre pecado e lei. Cristo fechoi~o abismo, e O cristão vive agora em vista dessa nova situação. Em contrapartida, ele necessita no presente "éon" ainda os constantes imperativos da graça, que corrigem e amparam, as orientações pneumáticas. Não possuem, contudo, o caráter de lei, porque pressupõem o acontecimento da justificação e reconciliação por meio de Cristo. A partir da iustificação, pois, nâc h6 mais o fardo ameaçador do irrealizável. Por isso a ética de Paulo também não é pura ética do dever, mas uma ética do poder, a qual combina o dever com o poder sob a premissa do Espírito e da nova vida. Ela não nos diz: "Podes, porque deves", mas: Podes, porque recebeste a nova vida. Não é, porém, um poder fundado sobre a natureza moral do homem - essa acaba antes na incapacidade de cumprir a lei -, mas é um poder escatológico e pneumático, próprio aos batizados. Portanto a ética de Paulo não é nem naturalista (poder por natureza) nem rigorista (poder a partir da lei). Enquanto houver realmente uma ética cristã que faça jus a esse nome, será preciso permanecer na linha de pensamento de Paulo. Não podemos ser nem discípulos de Kant nem naturalistas. Constatamos anteriormente que essa nova situação escatológica já principia com o próprio Sermão do Monte (cf. as bem-aventuranças), como, aliás, com a proclamação ética de Jesus propriamente dita. Está aqui um fator que une Paulo e Jesus, sem que, no entanto, se apoucasse a significância do evento pascal.

Capítulo I V OS ESCRITOS DEUTEROPAULINOS

Na maioria das exposições da teologia do Novo Testamento de autoria protestante - excetuando-se Adolf Schlatter - Paulo aparece nitidamente como figura predominante em primeiro plano. Semelhante tradição foi iniciada pelos Reformadores. Contudo não lhe advém melhor qualidade do fato de possuir tão ilustres autores. A unilateralidade da exposição necessita ser corrigida. É um imperativo justamente para uma apresentação da ética do Novo Testamento. As cartas pastorais e a epístola de Tiago não são resultantes de uma "queda" do cristianismo, por mais que se possam constatar diferenças de importância teológica entre elas e Paulo. O nível teológico de Paulo foi conservado, ao lado das concepções totalmente diferentes de Joãc, unicamente pela carta aos Efésios. Os documentos que passaremos a analisar se defrontam, em boa parte, com outras situações e tarefas históricas do que Paulo. O Fim, antes esperado para breve, tarda a chegar, e a vida mais longa da Igreia no mundo traz consigo, por natureza, constantemente novas perguntas. A ordem da Igreja precisa de ser solidificada e ampliada. A segunda e terceira gerações dos cristãos começam a manifestar-se. Agora a tradição apostólica adquire um significado eminente. Destaca-se cada vez mais o aspecto da conservação dessa tradição. Por isso se nos apresentam quadros que desconhecíamos de Paulo. Mas Paulo não foi o único apóstolo e teólogo da cristandade primitiva. Conseqüentemente é necessário fazer valer também o pensamento ético depois de Paulo ou, respectivamente, ao lado dele. Não se podem resolver todos os problemas exclusivamente a partir de Paulo nem reduzi-los a fórmulas paulinas. É inaceitável que se declare o que não é paulino como de validade inferior ou teologicamente impossível. Semelhante tentativa terá de fracassar imediatamente em João. Esse reconhecimento, porém, não nos impedirá de ver o duplo perigo da rejudaizaçáo e da helenizaçáo (gnose, sacramentalismo) que ameaçavd a novel Igreja.

Teremos d e levanwr as seguintes perguntas criticas: 1. Como se apresenta a relação entre evento da u l v i g i i o e &ic i ? Que se diz das boas obras? 2. Como se avaliam as instituiçoes sociais mundanas depois de Paulo? 3. Que posição se assume agora diante da awese? A atitude de I Co 7 é mantida ou abandonada? 4. É preciso perguntar o que sucede com os rudimentos de uma cidadania cristá que encontramos em Paulo. Continuam eles a ser desenvolvidos? Nessa ocupação não podemos utilizar como padrão crítico o paulinismo dos séculos XVI ou XX, baseado unilateralmente sobre determinadas fórmulas da doutrina da justifica~ão,pois esse paulinismo se estriba em uma seleção dogmática questionável de ensinamentos paulinos, e não reproduz todo o Paulo histórico. Assim, nunca foi feito jus nesse paulinismo protestante, por exemplo, a ética de Paulo, o que se deve, entre outros motivos, a uma interpretação unilateral da doutrina da justificação e da lei em Paulo. Devido à grande diversidade dos textos torna-se impossivel uma caracterização geral dos escritos deuteropaulinos. Eles divergem acentuadamente também em sua relação com a teologia de Paulo. Fato que, por sua vez, influi sobre a ética. 1.

A epistola aos Efésios

O "éthos" na unidade do corpo de Cristo. Situamos a epístola aos Efésios no início, porque ela permanece em grande proximidade com Paulo e conservou o nível teológico das cartas genuínas de Paulo. Toda a segunda parte da carta possui conteúdo ético-parenético. "O trecho 4, 1-6, 2 pode ser chamado quase que de 'fundamentação da ética'. Ela é desenvolvida a partir da eclesiologia que, por sua vez, foi desenvolvida da cristologia O ponto de convergência reside na concepção do 'sõma' (corpo)" (W. Marxsen). A "extraordinária unidade interna" dessa carta foi igualmente destacada com razão por Willi Marxsen. Podemos utilizar suas frases como linhas mestras. a) De início deparamos com que a ética é motivada de uma maneira extremamente rica, uma circunstância que nos faz lembrar diretamente Paulo. No autor da carta aos Efésios Paulo encontrou um "aluno" congenial. A parênese da carta aos Efésios é iniciada com a ex~osição histórico-salvífica da grande incisão provocada pelo envio salutar de Cristo. Com ela todo o tempo do mundo foi cortado em duas partes,

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o "outrora" e o "agora" (4, 17ss). No passado os ouvintes andaram como pagãos na vaidade dos seus pensamentos. Sendo eles agora cristãos, isso não entra mais em cogitação, pois agora irrompeu com Cristo a mudança decisiva dos tempos. Em conformidade com esse evento os cristãos devem, pois, agir. Agora está em vigor a exigência basilar: Despojai-vos do "velho" homem e revesti-vos do "novo" (4, 22ss), "criado segundo a imagem d e Deus, em verdadeira iustiça e pureza" (4, 24). O contraste é escatológico, e com ele transparece novamente a inequívoca estrutura fundamental do pensamento paulino, inclusive a peculiar unidade de imperativo e indicativo: Devemos fazer o que Cristo efetuou, o que Deus criou. A unidade é retratada com a ilustração da troca de roupa. Vestimos, por assim dizer, o "novo homem" que está a nossa disposição (cf. o mesmo exemplo em G1 3, 27; Rm 13, 14). Em CI 3, 9ss Paulo pode considerar a troca como efetuada: Tendes vos despojado do velho homem e revestido do novo. A afirmação, portanto, assume tanto a forma do indicativo da salvação como também a forma do imperativo ético. Em CI 3, 55s é o imperativo que precede a asserção em 3, 9. A nova existência escatológica constitui também na carta aos Efésios a base para que o cristão ande em pureza, verdade e justiça. É preciso realizar a nova existência no agir pessoal. A renovação pode suceder unicamente através do Espírito Santo, razão pela quai o imperativo em 4, 30 pode assumir também a seguinte forma: "Não entristeçais o Espírito de Deus, no qual fostes selados para o dia da redenção." Portanto, o autor também está familiarizado com a fundamentação pneumatológica da exortação. Seria correto falarmos, em analogia à anamnese de Cristo, de uma anamnese do "pneuma". O contraste essencial "outrora - agora" é também formulado da seguinte maneira, em 5, 8: "Outrora éreis trevas, porém agora sois luz no Senhor." Essa é a contraposição dos dois "éons" que se excluem. Cristãos não podem mais ser escuridão. São afirmações a respeito do ser, contudo não no sentido do dualismo gnóstico, pois sua validade provém de Cristo. A elas segue-se imediatamente o imperativo: "Andai como filhos da luz - o fruto da luz (consiste em) toda a bondade, e justiça, e verdade" (5, 8s). Isso corresponde a declaração de Paulo em GI 5, 22 sobre o fruto do Espírito. Como em Paulo, topamos novamente com a ética do poder pneumático. "Verdade" deve ser entendida aqui no sentido do linguaiar judaico, isto é, como algo que o justo faz (cf. Jo 3, 21). Andando na luz, 0 s efésios são capacitados a examinar e decidir o que é agradável a Deus (5, 10). Mais uma vez a pessoa do cristão, seu pensar e agir, não é excluída, mas incluída e solicitada. Ele se constitui, por dizê-lo assim, no segundo sujeito da ação ética.

O imperativo de 5, 8 adquire, no entanto, uma forma ainda mais expressiva, porque o autor cita um velho hino de batismo (5, 14): "Levanta-te de entre os mortos, e Cristo te iluminará!" Isso é uma inversão realmente admirável da seqüência que havíamos conhecido até aqui, pois designa-se nitidamente o agir do cristão como a premissa para a posterior ação de Cristo. Portanto, uma recaída no modo de pensar judaico ou grego? Todavia o contexto elimina semelhante suposição. O batizando atua pessoalmente também no batismo; não sofre somente uma ação em si mesmo; pois o batismo não é nenhum fenômeno da natureza nem tampouco uma coação mágica que o homem apenas tivesse que tolerar. A mudança da morte para a vida ou das trevas para a luz precisa de ser também ato do batizando. A conexão, ao que parece antiquíssima, de batismo com parênese encontrou aqui uma formulação clássica, bem aguçada. O autor, que espera tudo do mistério da salvação contido em Cristo (cf. 1, 3ss; 2, tss), não tem receio algum em citar essa parênese de batismo! E evidente que ele não sente nenhuma contradição diante da doutrina da graça, na forma como gerações posteriores a sentiram. No próprio chamado, na verdade, reside ao mesmo tempo a habilitação para proceder daquela maneira, ou seja, despertar do sono dos pecados, levantar-se da morte, optar pela vida e agarrá-la, para expressá-lo com uma ilustração diferente. O contexto de que falávamos apresenta em 4, 32 e 5, 2 fundamentação cristológica da ética: "Andai no amor, como também Cristo vos amou" (5, 2); "Perdoai-vos uns aos outros, como também Deus em Cristo vos perdoou" (4, 32). Isso constitui praticamente o contraponto de 5, 14. Contudo estamos cônscios de que o autor provavelmente nem sequer teceu pessoalmente essas considerações. De qualquer modo, não devemos entender o apelo do hino de batismo num sentido moral perfeicionista. Toda a teologia da carta aos Efésios torna-o impossível. Em 5, 15 e 6, 12 fala-se do caráter de luta escatológica da situação da comunidade. Razão pela qual os cristãos devem tornar-se "fortalecidos no Senhor" (6, 10) e revestir-se da "armadura de Deus" que está à sua disposição. Ela é descrita nos detalhes em 6, 13ss. (A origem histórica do material ilustrativo não pode ser aqui analisada; cf. os comentários exegéticos). O agir de Deus e a atuação da comunidade estão, novamente, entrelaçadas numa unidade inseparável. ' O agir de Deus é o precedente e o fundamental. As armas de Deus servem para que a comunidade resista nos "dias maus" e se mantenha irlabalável, ainda mais que ela não tem de enfrentar carne e sangue, mas poderes demoníacos (6, 1 1 e 16). A comunidade tem condições para sair vitoriosa dessa luta, mas não há espaço para otimismo nem perfeicionismo. O mundo, por conseguinte, não

é o material dócil e maleável da ação cristã, ele se opõe à Igreja. Nessa luta vigora a lei de combate entre Cristo e os demônios, entre a luz e as trevas. Não obstante, esse "realismo" não tem nada a ver com desesperança, pois a comunidade pode revestir-se das eficazes armas de Deus. Cristão devem combater como os "soldados de Deus". P.s armas são a palavra de Deus, a mensagem salutar da paz, o Espírito e a fé; o que bem merece ser observado. Nada é dito a respeito das forças e dos feitos morais do homem. Eles, na verdade, nem poderiam oferecer resistência as potestades demoníacas. A maneira de Paulo, a carta aos Efésios também assimilou material da tradição, a saber, em 5, 3-7 um catálogo de vícios e em 5, 8-21 um catálogo de virtudes. A renúncia aos pecados concretos e a citação deles provavelmente terão sido partes do "catecismo" de ensino batismal. Era necessário dizer iustamente aos batizandos o que era bom e mau segundo a acepção cristã, bem como imbuí-to sempre de novo às jovens comunidades. Citam-se, pois, entre outros, indecência, avareza, piadas frívolas e palavras vãs. Os cristãos não devem ser co-participantes dos pecadores nem dos pecados (5, 7). As trevas - como vimos - contrapõe-se a luz, ou seja, no nosso caso as virtudes "pneumáticas" da bondade, da justiça, da verdade, da sabedoria e da compreensão da vontade de Deus. Por meio delas eliminam-se as "obras infrutíferas das trevas" (5, 1 1). Isso tudo são variações dos catálogos que conhecemos de GI 5, 19ss, nos quais são citados ainda uma porção de outros vícios e virtudes. Dessa forma a velha e a nova vida são radicalmente contrapostas, não podendo haver nenhuma dúvida quanto ao caminho da comunidade de Cristo. Como em Paulo, também na carta aos Efésios não existe o problema da exeqüibilidade, pois do poder do Senhor pode ser produzido o "fruto da luz". A luz é sempre também fruto da luz. b) A carta aos Efésios acolheu também um catálogo de normas para a vida doméstica (5, 22-6, 9) que revela modificações apreciáveis em comparação com C1 3, 18ss em particular uma sólida fundamentação cristológica. Esclarece de forma unívoca o que se deve entender por amor dos maridos às esposas: Ele é o amor de Cristo, o qual se entregou pela comunidade a fim de santificar e purificá-la (5, 25s); os homens devem amar suas esposas como "seus próprios corpos" (5, 28). Com esse amor justifica-se, portanto, a submissão da mulher ao homem, não, porém, o direito de que o homem a domine. As relações "naturais" entre ambos, bem como o fato do matrimônio, são subentendidos e transferidos agora para o nível do corpo de Cristo, daquele corpo cuja cabeça é Cristo. As normas para os cônjuges são deduzidas do mistério da unidade que envolve Cristo e sua comunidade. Por isso submissão e amor não se excluem, principalmente porque a "agápe" é mais do que obediência. A trans-

formação pode ser constatada de maneira bem palpável em 5, 24, onde se diz que as esposas devem estar sujeitas aos maridos assim como a Igreja o é ao seu Senhor. O "grande mistério" do matrimônio (5, 3 1 s ) consiste em que no corpo de Cristo ele se torna uma reprodução da comunhão entre Cristo e a comunidade, uma comunhão vivencial divina. Ela toma conta do matrimônio entre cristãos e lhe dá sua configuração. Premissa evidente dessa concepção, que pertence à eclesiologia peculiar da epístola, é a eficácia real de Cristo em seu corpo. Em oposição à doutrina matrimonial católica, a carta não fala em parte alguma de um "sacramento" do matrimônio; o matrimônio não "é" um sacramento em si, dado pela sua natureza, nem tampouco se torna um através do influxo do corpo de Cristo. A malfadada tradução de "mystérion" (segredo) por "sacramentum", na Vulgata, constitui-se num mal-entendido de conseqüências funestas. Se compreendermos o adjetivo "cristão", obviamente desgastado, em seu sentido profundo e correto, podemos afirmar: O presente catálogo de normas para a vida doméstica foi quem transformou o matrimônio de fato no "matrimônio cristão" (envolvido pela comunidade, pelo corpo de Cristo!) e por esse exato motivo tornou-se uma força capaz de modificar a história, No entanto, não foi Cristo quem instituiu o matrimônio, mas Deus, o Criador. Como ordem social do amor entre os sexos, o matrimônio é um fenômeno pré-cristão, no qual vivem também judeus e pagãos. No Novo Testamento não encontramos nenhum sacramento que as pessoas - no caso em questão, os cônjuges - poderiam administrar a si mesmas. Os escravos devem servir aos senhores terrenos como se o fizessem a Cristo. Eles são "servos de Cristo" (6, 5ss). Resulta daí a admoestação para a docilidade, "como ao Senhor, e não como a homens" (6, 7). O divino Juiz está acima de senhores e escravos. (Não nos é possível abordar aqui detalhadamente a importante diferenciação dos termos "suieição", "submissão" e "obediência", feita por Else Kahler no livro "Die Frau in den paulinischen Briefen" - cf. o índice de literatura para o cap. 111.) O material tradicional do catálogo de normas para a vida doméstica, portanto, foi integrado na cristologia e eclesiologia da carta. Circunstância pela qual a frase que o introduz, em 5, 21, reza: "Sujeitai-vos uns aos outros no temor de Cristo." É esse o critério válido para todos, independente da posição em que cada um se encontra. Não se altera, com ele, a posiçáo jurídica do homem, da mulher e dos escravos. Constata-se, pois, que o catálogo de normas para a vida doméstica na carta aos Efésios ultrapassa de longe CI 3, 18ss, em primeiro lugar devido à fundamentação cristológica do amor e, em segundo

lugar, pela integraçdo do matrimônio no corpo de Cristo, na comunhão da comunidade do Senhor. O catálogo de normas para a vida doméstica, da carta aos Efésios, é um dos rudimentos mais significativos para a origem e O desenvolvimento das grandezas sociais cristãs-mundanas, tais como o "matrimônio cristão", a "casa cristã" e mais tarde também o "povo cristão". Portanto, aquelas formações sociais em que penetrou o "éthos" da Igreia, dando-lhes nova configuração e unindo da maneira mais estreita a Igreja com as ordens "profanas". Ao analisarmos as cartas pastorais conheceremos mais um rudimento dessa espécie. O que a carta afirma sobre a luta escatológica não foi, com isso, revogado, mas essa luta antes é extravasada para a amplitude das ordens sociais. C) Toda a ética dessa epístola pode ser resumida também na simples fórmula: "andar de modo digno na vocação" (4, I), ou: aceitar-se mutuamente no amor (4, 2), ou: preservar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz (4, 3). A paz possui, evidentemente, uma qualidade dúplice, a saber, a qualidade escatológica da salvação, e a qualidade ética, da comunidade fraternal. Podemos verificar aqui como soteriologia e ética perfazem originalmente uma unidade. Em comparação com essa constatação, nossas distinções hodiernas são decididamente secundárias e por isso precisam de ser sempre de novo transpostas criticamente, quando queremos compreender declarações neotestamentárias. O mesmo vale para os conceitos d e justiça e verdade em 5, 9, ou para o conceito do Espírito em 4, 30. Em conformidade com Paulo a carta aos Efésios conclama os cristãos para formarem juizo próprio, a fim de examinarem o que é agradável a Deus (5, 10). Eles devem entender qual é a vontade de Deus e possuem as capacidades para tanto (5, 17; cf. Rm 12, 2). A faculdade de discerni-Ia têm aqueles que são "luz" (5, 8s) e possuem o Espírito. Constitui a atividade da razão renovada pelo Espírito Santo (4, 23); o que também pode ser expresso na forma imperativa. Por isso 5, 18 diz paradoxalmente: "Enchei-vos do Espírito!" Em resultado, a forma básica da parênese paulina foi preservada na carta aos Efésios. Da mesma forma continua em vigor a compreensão escatológico-ética do batismo. A mais importante fórmula sumária que incorporou em si a quinta-essência do pensamento paulino, encontra-se em 2, 8-10: Pela graça sois salvos, não por força humana, e essa graça é unicamente dádiva (cf. Rm 3, 24). "Somos criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas." É decididamente impossível expressar de maneira mais clara e exata a unidade de cristologia, doutrina da graça e ética. Deus em Cristo é o verdadeiro autor das boas obras. A justiça é presente de Deus e, concomitantemente, ato do cristão. Ou, em concordância

com 4, 32 e 5, 2, poderíamos afirmar: Como amados, os cristãos amam (cf. Paulo, em CI 3, 12). A situação na carta aos Efésios é idêntica à paulina: O "éthos" está localizado, por assim dizer, entre o "perfectum praesens" (evento salvífico consumado e ao mesmo tempo presente) da salvação, por um lado (cruz, ressurreição, batismo, dotação gratuita do Espírito), e o "futurum" da salvação, por outro. Essa ética, por conseguinte, existe somente no "tempo da Igreja", não antes, no paganismo e judaísmo, nem "depois", na plenitude do reinado de Deus. O dia da salvação é ao mesmo tempo o dia da luta ética, do amor e das boas obras, do "fruto da luz". Aqui está o lugar, ou melhor, o tempo da ética cristonômica, pneumática, de Paulo e da carta aos Efésios.

2.

As cartas pastorais

A ética do cristianismo integrado na sociedade Se analisarmos agora as cartas pastorais, constataremos logo a grande diferença no nível teológico. É mister que desçamos das altitudes da teologia de Paulo e da carta aos Efésios. O "paulinismo" das cartas pastorais é incomparavelmente mais modesto, mais simples e, por assim dizer, mais pacato do que na carta aos Efésios. Quase não se pode falar de uma fundamentação teológica profunda da ética nas cartas pastorais. Elas estão interessadas em oferecer exortações e motivações sólidas para a organização das comunidades. Contudo transmitem também fórmulas corretas da doutrina paulina da justificação. Anuncia-se com elas uma nova era da Igreia. Ela se vê obrigada a instalar-se no mundo por um prazo mais longo. Não é possível conservar a alta tensão da esperança imediata. As perguntas da segunda e terceira gerações são outras do que as dos primeiros convertidos. Na história das igrejas resultantes da missão no séc. XIX pode-se estudar exatamente a mesma translação. E também os novos problemas da ordem eclesiástica e da ética, estreitamente entrelaçados nas cartas pastorais, têm sua justa razão de ser. Não é lícito que os desqualifiquemos precipitadamente do ponto de vista teológico. As razões para isso são tanto mais óbvias, porque nossas comunidades atuais se assemelham em muito maior proporção ao cristianismo das cartas pastorais do que ao paulino. Por essa razão precisamos de recusar-nos a aplicar às cartas pastorais a categoria protestante-pietista da "apostasia" de Paulo, ou do "catolicismo primitivo", no sentido pejorativo da palavra. As cartas pastorais dão continuidade à linha da tradição que encontramos nos catálogos de normas para a vida doinéstica e em

Rm 13: Consiste numa cidadania cristg ou num cristianismo igrado na sociedade (Martin Dibelius). A tarefa histórica que transparece nas cartas pastorais 8 consolidar a Igreja no mundo por meio de regulamentos ectesibticos, pelo fo*aleclmm das cargos eclesiásticos, por meio de instruções éticss para uma vida cristã "ordeira" e pacífica da casa. Em todos os aspectos visa-se i criação de tradição e costumes. Essas cartas i6 se encontram no meio do processo de formação de tradição. E evidente também que elas se dirigem i6 aos discfpulos de Paulo, portanto, a um segundo grupo de autoridades eclesiásticas. Para o autor desconhecido são importantes a preservação da "sã doutrina", a afirrnlrçáo e proteção da Igreja contra as heresias gnbsticas, a ordem interna da comunidade e os pré-requisitos para o exercício de cargos eclesieis, tais como de bispo e diácono. Devido a tais tendências, as cartas pastorais exerceram uma influência histórica muito relevante. Efat representam o primeiro estágio da Igreja tal qual ela existe hole, isto é, da Igreia "instituída", ordenada pela tradição, pelos cargos e pelo direito eclesiástico. Para as cartas pastorais é particularmente característica a cõmbC nação do testemunho de Cristo, ou da doutrina paulina da justificação, reproduzida em fórmulas corretas (cf. II Tm 1, 9; Tt 3, S), com a ética da ordem da sociedade - uma combinação que pode ser encontrada ainda hoje em muitas comunidades evangélicas. Semelhante "síntese" provoca a pergunta se a doutrina da graça não 6, apesar de tudo, ameaçada pelas concepçôis morais vigentes. Por outro lado é preciso reconhecer que, p. ex., as exortações a Timóteo, para que dê testemunho inabalado da fé (11 Tm 1, 6ss; cf. I Tm 1, 18ss) são vigorosas e não permitem nenhum tipo de transigência no tocante A verdade divina do Evangelho. Nesse sentido também esses documentos traçam uma linha divisória muito clara diante do mundo. Evidencia-se que ela foi necessária devido ao perigo do gnosticismo, uma religião redentora que, aos olhos do homem da Antiguidade tardia, tinha que parecer extraordinariamente semelhante ao cristianismo. Que é, pois, a cidadania cristã já por vezes mencionada? Característica para ela 6, por exemplo, o postulado de que os cristaos devem viver uma vida tranqüila e pacífica, em piedade ("eus6beia" - um termo típico para esses escritos) e honradez (I Trn 2, 2). Ou, então, lemos em Tt 2, 12 que os cristãos devem viver "sensata, justa e piedosamente" - o que são conceitos basilares da moral e religiosidade helenistas da época. A graça de Deus, que traz a salvação a todos os homens (Tt 2, 1 I), é atribuído um caráter pedag6gico: Ela "nos educa" a vivermos conforme é dito em Tt 2, 12. Educa também para a renúncia aos desejos mundanos, aos quais os

cristãos precisam de abdicar. O limite com o "mundo", portanto, é traçado sobretudo com conceitos morais. A verdadeira vida cristã se manifesta nas boas obras (1 Tm 2, 10). Para as mulheres elas consistem principalmente em submissão ao marido, castidade e decência (I Tm 2, 9). Muito estranha é, entretanto, a assertiva que se segue logo depois, de que a mulher é salva mediante o "dar à luz", caso persevere na fé, no amor e na santificação (I Tm 2, 14s). Isso está relacionado com uma interpretação específica, judaica, da história da queda: Não Adão, mas Eva, a mulher, foi quem se deixou seduzir - que suporte excelente para o patriarcalismo! A frase sobre o parir salvífico pode ser judaica, mas não é cristã. Ela é absolutamente incompatível com as fórmulas da doutrina da graça, proveniente de Paulo, fórmulas essas relatadas nas mesmas cartas - e isso apesar das condições cristãs referentes a conduta das mulheres, que Ihes são acrescentadas. Permanece espantoso que um autor que luta de maneira tão severa contra a heresia nem sequer tenha notado essa contradição irreconciliável. Patenteia-se aqui claramente a ameaça de uma moral civil iudaizante para a "sã doutrina" de Cristo e da graça. Nada mais podemos sentir da enorme amplitude do pensamento paulino, da superabundância do Espírito e dos carismas, dos paradoxos de Paulo, tais como poder e fraqueza, viver e morrer, sofrimento e alegria. O autor das cartas pastorais não gosta dos extremos, seiam eles de caráter pneumático ou ascético. Ele se empenha por moderação e disciplina, as quais para ele fazem parte bem natural da devoção. Tt 1, 9 demonstra que nesse estágio histórico é possível manter a união entre a graça e a obra cristã: O apego à "palavra fiel de Deus" da parte aos presbíteros precisa de estar relacionado com diversas virtudes sociais, como a irrepreensibilidade. Não devem ser bebedores, nem procurar brigas, etc. Devem dar exortações embasados na "sã doutrina" (p. ex., I Tm 1, 10; 11 Tm 4, 3; Tt 1, 9). Na realidade nada encontramos das fundamentações teológicas de Paulo e da carta aos Efésios. É pressuposta como já existente a conexão entre graça e procedimento ético. Por outro lado, porém, não se procedeu simplesmente a uma adoção de uma ética secular, pois o autor pensa com seriedade poimênica na vivência cristã, em especial naturalmente na dos que exercem um cargo. A doutrina é quem fornece a norma da vida cristã, nisso o autor persevera. Di-lo em formulações simples, muitas vezes compactas, e compreensíveis por todos. De forma correspondente é formulada também a posição contrastante, a saber, a ligação entre ateísmo e desregramento. Os hereges são apresentados como pessoas depravadas (I Tm 6, 3ss; II Tm 3, 8). Está dada, com isso, a possibilidade de que aquele

que se sabe melhor, caia em moralismo. A ética das cartas pastorais, entretanto, prefere o caminho intermediário. Razão pela qual se rejeita também o rigorismo ascético. As viúvas iovens, por exemplo, deveriam casar novamente (I Tm 5, 14). Evidentemente os adversários gnósticos proibiam o matrimônio (I Tm 4, 3). O bispo deve ser casado, se bem que esposo de uma só mulher (I Tm 3, 2; Tt 1, 6). - Todos os alimentos devem ser desfrutados mediante agradecimento. Tudo que Deus criou é bom, e não condenável (I Tm 4, 3ss). A Palavra de Deus e a oração o santificam. Assim, o "éthos" das cartas pastorais é determinado por entendimento, sensatez e moderação cristãs. É uma ética sóbria e ao mesmo tempo praticável, que se mantém independente tanto do libertinismo como do ascetismo da época. Digno de nota é que, em contraposição ao ascetismo, se fala da boa Criação de Deus. Recorre-se desse modo a fé veterotestamentária na Criação, para dar combate à gnose. E com efeito, ela deu excelentes resultados na dura luta da Igreia primitiva com a gnose. Inicia, portanto, já nas cartas pastorais a validação da instituição do Criador, da qual faz parte sobretudo também o matrimônio. É óbvio que com isso se tornou impossível dar continuidade ao ascetismo parcial de Paulo (recomendação do celibato espontâneo), como o destacamos em I Co 7. Nessa questão existe um contraste considerável entre Paulo e o autor das cartas pastorais, de modo que podemos afirmar partindo somente dele que: Quem redigiu I Co 7 de maneira alguma pode ter escrito as cartas pastorais. No quadro provisório até aqui delineado inserem-se agora perfeitamente os rudimentos de uma ética cristã da família, que as cartas apresentam. Sim, elas manifestam até mesmo tradição familiar cristã, por exemplo, em II Tm 1, 3.5, onde se citam os ascendentes e a f é da avó e da mãe. É o fenômeno de uma fé herdada, tal como ela é característica para a terceira geração. É o início da nossa situação cristã, uma vez que todos nós provimos do cristianismo legado a nós. Circunstância idêntica apresenta-se em II Tm 3, 15: "que desde cedo conheces as sagradas letras". Aqui está o inicio da educação cristã, da orientação dos filhos e da juventude para a fé herdada e para uma vida em obediência e disciplina (I Tm 3, '4.12; 5, 10; Tt 1, 6). As mulheres cristãs devem dar a luz filhos (I Tm 2, 15; 5, 14). As crianças devem ser bem educadas (I Tm 3, 4.12; 5, 10; Tt 1, 6). Ressalta-se, outrossim, o dever de cuidar dos membros mais idosos da família e da comunidade (I Tm 5, 4 . 8 . 16). Virtudes da família são disciplina, obediência, moderação e simplicidade. As mulheres não devem ostentar vestidos e atavios preciosos (I Tm 2, 9s). Seu verdadeiro adorno são boas obras. É preciso honrar as viúvas e os velhos. Quem não cuida de sua família é um renegador da fé (I Tm 5, 8). Não se nota mais nenhum

cristãos precisam de abdicar. O limite com o "mundo", portanto, é traçado sobretudo com conceitos morais. A verdadeira vida cristã se manifesta nas boas obras (I Tm 2, 10). Para as mulheres elas consistem principalmente em submissão ao marido, castidade e decência (I Tm 2, 9). Muito estranha é, entretanto, a assertiva que se segue logo depois, de que a mulher é salva mediante o "dar à luz", caso persevere na fé, no amor e na santificação (I Tm 2, 14s). Isso está relacionado com uma interpretação específica, judaica, da história da queda: Não Adão, mas Eva, a mulher, foi quem se deixou seduzir - que suporte excelente para o patriarcalismo! A frase sobre o parir salvífico pode ser judaica, mas não é cristã. Ela é absolutamente incompatível com as fórmulas da doutrina da graça, proveniente de Paulo, fórmulas essas relatadas nas mesmas cartas - e isso apesar das condições cristãs referentes a conduta das mulheres, que Ihes são acrescentadas. Permanece espantoso que um autor que luta de maneira tão severa contra a heresia nem sequer tenha notado essa contradição irreconciliável. Patenteia-se aqui claramente a ameaça de uma moral civil judaizante para a "sã doutrina" de Cristo e da graça. Nada mais podemos sentir da enorme amplitude do pensamento paulino, da superabundância do Espírito e dos carismas, dos paradoxos de Paulo, tais como poder e fraqueza, viver e morrer, sofrimento e alegria. O autor das cartas pastorais não gosta dos extremos, sejam eles de caráter pneumático ou ascético. Ele se empenha por moderação e disciplina, as quais para ele fazem parte bem natural da devoção. Tt 1, 9 demonstra que nesse estágio histórico é possível manter a união entre a graça e a obra cristá: O apego a "palavra fiel de Deus" da parte dos presbíteros precisa de estar relacionado com diversas virtudes sociais, como a irrepreensibilidade. Não devem ser bebedores, nem procurar brigas, etc. Devem dar exortações embasados na "sã doutrina" (p. ex., I Tm 1, 10; 11 Tm 4, 3; Tt 1, 9). Na realidade nada encontramos das fundamentações teológicas de Paulo e da carta aos Efésios. É pressuposta como já existente a conexão entre graça e procedimento ético. Por outro lado, porém, não se procedeu simplesmente a uma adoção de uma ética secular, pois o autor pensa com seriedade poimênica na vivência cristã, em especial naturalmente na dos que exercem um cargo. A doutrina é quem fornece a norma da vida cristã, nisso o autor persevera. Di-lo em formulações simples, muitas vezes compactas, e compreensíveis por todos. De forma correspondente é formulada também a posição contrastante, a saber, a ligação entre ateísmo e desregramento. Os hereges são apresentados como pessoas depravadas (I Tm 6, 3ss; II Tm 3, 8). Está dada, com isso, a possibilidade de que aquele

que se sabe melhor, caia em moralismo. A ética das cartas pastorais, entretanto, prefere o caminho intermediário. Razão pela qual se rejeita também o rigorismo ascético. As viúvas jovens, por exemplo, deveriam casar novamente (I Tm 5, 14). Evidentemente os adversários gnósticos proibiam o matrimônio (I Tm 4, 3). O bispo deve ser casado, se bem que esposo de uma só mulher (I Tm 3, 2; Tt 1, 6). - Todos os alimentos devem ser desfrutados mediante agradecimento. Tudo que Deus criou é bom, e não condenável (I Tm 4, 3ss). A Palavra de Deus e a oração o santificam. Assim, o "éthos" das cartas pastorais é determinado por entendimento, sensatez e moderação cristãs. É uma ética sóbria e ao mesmo tempo praticável, que se mantém independente tanto do libertinismo como do ascetismo da época. Digno de nota é que, em contraposição ao ascetismo, se fala da boa Criação de Deus. Recorre-se desse modo à fé veterotestarnentária na Criação, para dar combate à gnose. E com efeito, ela deu excelentes resultados na dura luta da Igreja primitiva com a gnose. Inicia, portanto, iá nas cartas pastorais a validação da instituição do Criador, da qual faz parte sobretudo também o matrimônio. É óbvio que com isso se tornou impossível dar continuidade ao ascetismo parcial de Paulo (recomendação do celibato espontâneo), como o destacamos em I Co 7. Nessa questão existe um contraste considerável entre Paulo e o autor das cartas pastorais, de modo que podemos afirmar partindo somente dele que: Quem redigiu I Co 7 de maneira alguma pode ter escrito as cartas pastorais. No quadro provisório até aqui delineado inserem-se agora perfeitamente os rudimentos de uma ética cristá da família, que as cartas apresentam. Sim, elas manifestam até mesmo tradição familiar cristã, por exemplo, em II Tm 1, 3.5, onde se citam os ascendentes e a f é da avó e da mãe. É o fenômeno de uma fé herdada, tal como ela é característica para a terceira geração. É o início da nossa situação cristã, uma vez que todos nós provimos do cristianismo legado a nós. Circunstância idêntica apresenta-se em II Tm 3, 15: "que desde cedo conheces as sagradas letras". Aqui está o início da educação cristã, da orientação dos filhos e da juventude para a fé herdada e para uma vida em obediência e disciplina (I Tm 3, '4.12; 5, 10; Tt 1, 6). As mulheres cristãs devem dar à luz filhos (I Tm 2, 15; 5, 14). As crianças devem ser bem educadas (I Tm 3, 4.12; 5, 10; Tt 1, 6). Ressalta-se, outrossim, o dever de cuidar dos membros mais idosos da família e da comunidade (I Tm 5, 4.8.16). Virtudes da família são disciplina, obediência, moderação e simplicidade. As mulheres não devem ostentar vestidos e atavios preciosos (I Tm 2, 9ss). Seu verdadeiro adorno são boas obras. E preciso honrar as viúvas e os velhos. Quem não cuida de sua família é um renegador da fé (I Tm 5, 8). Não se nota mais nenhum

vestfgio da possibilidade de que a exigência do discipulado de Jesus rompa também com os laços familiares, quando a decisão pelo reinado de Deus é dificultada pela piedade filial. Deus se torna, numa formul q o o extrema, o conservador e patrono da família, assumindo desse modo o lugar dos deuses domésticos pagãos. Contudo ele permanece ao mesmo tempo o Deus da graça, que faz proclamar a salvação a todos os homens, e o Criador do mundo. Ocorre uma junção singular de universalismo c patriarcalismo cristão. Toda a ética das cartas pastorais é realista e realizável, a mais afastada possível do idealismo utópico. Tanto na educação como na organização da vida doméstica ela é muito bem aplicável. Todavia falta-lhe a fundarrientação escatológica e pneumatológica, que é característica para Paulo. Isso não quer dizer que a expectativa escatológica tenha sido abandonada de completo. Em Tt 2, 12s mencionam-se expressamente a "bendita esperança" e a espera pela manifestação de Deus e do Salvador Cristo Jesus. No entanto não se pode mais falar de uma esperança imediata. C necessário instalar-se no mundo. Obviamente falta de todo a "dialética da existência escatológica" como Paulo a desenvolveu. Por outro lado não se depreende nada a respeito da grande crise da esperança imediata que supostamente teria abalado a Igreja primitiva depois de Paulo. Por muito tempo tal crise foi defendida na pesquisa neotestamentária, sem que, no entanto, houvesse provas suficientes nos textos. Ela se deveu a uma valorização demasiadamente alta da chamada esperança imediata, que não raro assumiu o caráter de uma "lenda entre os estudiosos". Mas é bem verdade que as pessoas passaram a viver mais acentuadamente da presença da salvação manifesta do que do futuro, o que por sua vez eleva a importância da ética. Faz parte desse contexto também o acento dado ao mundo como Criacão de Deus em contraposição à gnose. Ele adquire simplesmente um peso maior, quando nem amanhã nem depois de amanhã não acontecerá mais o fim do mundo. Por isso matrimenio e relações sexuais não são maculados (veja acima). Ps cartas pastorais adotam uma posição diretamente oposta à asserção dos gnósticos de que Jesus teria vindo "para destruir as obras do gênero feminino". O cristianismo das cartas pastorais seguramente deu uma contribuição considerável para proteger a Igreja diante da dissolução no gnosticismo. De mais a mais, é preciso constatar como sendo característico para semelhante posição uma estreita ligação de ordem eclesiástica e btica. Bispo, diácono e presbítero têm de preencher certas condições morais, p. ex., devem ser "maridos de uma só mulher" e bons chefes de familia. O mesmo vale para as assim chamadas viúvas a serviço

da comunidade, que devem ser experimentadas em toda boa obra (I Tm 3, 1ss; 5, 9s). Em Tt 2, 3ss deparamos também com uma ampliação do catálogo de normas para a vida doméstica: Homens idosos, mulheres velhas e mulheres jovens, moços e escravos são estimulados à sensatez, A disciplina e às boas obras. A tônica de todas as exortações é a mesma: Devoção, obediência e probidade devem distinguir os cristãos. Em Tt 3, 1 e I Tm 2, l s s é ordenado que se ore pelo imperador e pelas autoridades estatais, às quais se deve obedecer. É a continuação de Rm 13, que também é testemunhada em I Pe 2, 13ss, agora complementada pelo incentivo à oração. Com isso é adotado um costume judaico. Nem judeus nem cristãos podiam tomar parte no culto pagão ao imperador. O contraste radical contra o culto a César naturalmente se evidencia somente no Apocalipse de João, na úhirna década do século I, sob o imperador Domiciano. Por exemplo, o cap. 13 encara o culto a César como o endemoninhamento e como a "hybris" do Império. A oração pelo imperador passa a ocupar o lugar da veneração das imagens de César. É essa a lealdade positiva dos cristãos. A oração a eleva acima da simples moral de súditos, de natureza secular. A ética de honestidade pia e de boa cidadania contém também um perigo: a acomodação Aquilo que todo o mundo considera bom e correto. Perde-se o caráter do amor de Cristo e da sua comunidade, o qual transcende qualquer moral. O argumento de que todas as coisas forani criadas puras pode facilmente obnubilar a oposição entre pecado e Criação, oposição essa que constitui a essência deste tempo do mundo. O pecado transforma-se, então, em mera transgressão de regras morais, ele é "aburguesado". A ética de Paulo e da carta aos Efésios, ao contrário, seguramente não estava ameaçada desse perigo. O resultado é uma simplificação do antagonismo escatol6gico de Igreja e mundo (cf., p. ex., Ef 6, 1Oss) em um contraste meramente moral. O pecado torna-se corrupção, e santificação e pureza transformam-se em honestidade. Por outro lado, porém, deve ser ressaltada também a intenção legítima dessa ética: Ela oferece normas praticáveis, com as quais é possível criar ou, respectivamente, manter a ordem na comunidade. As normas são adequadas para a educação cristã. Quem pode ser nomeado bispo e diácono? Uma pergunta que precisa de ser respondida com regras inequívocas. Não é possível dispensar, então, a fixação de certas qualidades humanas e morais. O bispo também tem que ter condições de pregar e ensinar. Capacitação "teológica" e social justapõem-se (o que é válido ainda hoje). Será, portanto, que a Igreja já está iniciando aqui o caminho no qual ela se transformará em "instituição moral", e no fim do qual aparecerá como a chamada

Igreja nacional ou Igreja estatal? A Igreja das cartas pastorais não sucumbiu a esse perigo. Atendo-se ao Senhor divino, Jesus Cristo, à graça de Deus e à substância da "sã doutrina", ela foi preservada de degenerar numa instituição moral. É verdade, porém, que essa Igreja não foi capaz de manter vivo o cristianismo carismático da plenitude do Espírito - que podemos chamar, em síntese, cristianismo "extraordinário", em contraposição àquele integrado na sociedade. E isso que a separa de uma comunidade paulina como, p. ex., a coríntia. Do ponto de vista da ética social como da história social possui máxima importância, promissora para o futuro, a estreita e íntima conexão entre a Igreja e a casa, exibida pelas cartas pastorais. Ela se constitui, ao lado dos catálogos de normas para a vida doméstica, no segundo ponto de partida para a formação das ordens sociais quase que bipolares, cristãs-mundanas, de que falávamos acima, no inciso sobre a carta aos Efésios. Dessa união de Igreja e casa partiram muitas forças de ordem ética para a sociedade. Por outro lado, é compreensível que ainda não se constatam relações igualmente estreitas com outras grandezas sociais, p. ex., o Estado. Os cristãos daquele tempo não eram nem magistrados nem soldados, e uma atividade política existia unicamente de cima para baixo, no Império estruturado hierarquicamente. Sem dúvida podem ser chamados não-paulinos o destaque dado à idéia da Criação bem como a moral natural-cristã e a educação racional-cristã. A soteriologia e a doutrina da graça, no entanto, estão muito mais enraizadas na tradição paulina do que, por exemplo, as da primeira carta de Clemente. Também nas cartas pastorais é possível verificar uma investida contra o ultrapaulinismo gnóstico, a qual se expressa no apego à ordem vigente da Criação. A.nuncia-se, por conseguinte, mas sem o emprego desta fórmula, o posterior tema da "nova lei". Conhecem as cartas pastorais ainda os imperativos da graça ou apenas uma lei de costumes instituída pela Igreja? Seria por demais unilateral defender essa última afirmação, porque as cartas pastorais persistem na doutrina da salvação, na verdade divina do Evangelho de Cristo. Cristo não é transformado de novo num "segundo Moisés", ele continua sendo o Redentor divino, doador de salvação e vida. Contudo transparece o perigo de que a f é salvífica da Igreja e a moral secular poderiam, um dia, desagregar-se.

3. A primeira epistola de Pedro Cristo, o protótipo do amor e do sofrimento

O nível teológico de I Pedro é consideravelmente superior ao das cartas pastorais. O "paulinismo" de I Pedro não apenas vive de

fórmulas herdadas, mas representa um desenvolvimento autônomo da teologia de Paulo. Esse documento consiste principalmente num sermão exortativo, mas os imperativos são justificados teologicamente por indicativos da mensagem da salvação. No centro está, al6m do mandamento do amor, a exortação para uma conduta santa. a) Diversos estudiosos defendem a opinião de que 1, 3-4, 11 (onde se verifica uma cesura) estão baseados sobre uma parênese batismal, e a absorveram. Dirigida originalmente a recém-batizados, ela assumiu, na presente carta, a forma de uma lembrança do batismo. Ao falarmos das primeiras comunidades helenistas (cap. 11, item 3), apontávamos para o significado do batismo e da parênese batismal para o surgimento da ética cristã primitiva. Se nossa carta fala em 1, 3 do acontecimento de que Deus "regenerou" os cristãos "para uma esperança viva", ela não faz uma declaração genérica e abstrata sobre a ação salvadora de Deus, mas uma concreta, pois ela descreve exatamente aquilo que aconteceu no batismo. A redenção assumiu nele sua forma histórica concreta, tornou-se um acontecimento na vida dos antigos pagãos, atualmente cristãos. Também a exortação d e despojar-se de toda a malícia (2, 1s) deve ter pertencido desde sempre ao conteúdo central das parêneses batismais. Em 3, 21 cita-se expressamente o batismo: Ele salva pelo poder da ressurreição de Jesus Cristo (cf. Rm 6, 3ss; Ef 5, 26). Seu efeito é duplo: por um lado, salvação do pecado e da descrença, da veneração dos ídolos pagãos, mas também, por outro lado, purificação e santificação, nova conduta em lugar da velha (cf. I Co 6, 11). A afirmação pode receber, como em Paulo, a forma de exigência (1, 13s). Exige-se um comportamento santo, contraposto aos desejos que dominaram os atuais cristãos antes, no tempo da "ignorância". O contraste entre outrora e agora (cf. o item 1 deste capítulo, sobre a carta aos Efésios) foi provocado justamente pelo batismo. Ele demarca a mudança, o câmbio existencial da perdição para s salvação, do pecado para a santificação. A exortação da santidade é fundamentada em 1, 16 com o mandamento central veterotestamentário ao povo de Deus: "Sede santos, porque eu sou santo" (Lv 1 1 , 44). Esse Deus, porém, julga cada um segundo a sua obra, motivo por que se requer um "procedimento em temor" - o que vem a ser um embasamento escatológico para a exortação (1, 17s). A isso se acrescenta imediatamente a menção do evento salvífico manifesto: Os cristãos foram resgatados pelo precioso sangue de Jesus Cristo (1, 19s). Assim como o novo comportamento é, graças ao batismo, simultaneamente ato de Deus e exigência, pode-se falar do amor fraterno também de uma dbplice maneira: A purificação para o amor ao irmão resulta do estar regenerado, ao mesmo tempo, porém, ela é novamente solicitada (1, 22s).

O que aconteceu no batismo deve ser apropriado e realizado pelo agir da comunidade. Do imperativo que exorta ao amor fraternal retorna-se fogo em seguida à fundamentação com o indicativo da salvação, pois os cristãos foram regenerados de semente incorruptível pela Palavra de Deus viva (1, 23). Tal relação estreita e íntima de imperativo e indicativo corresponde à estrutura da ética paulina (cf. capítulo III, item 3). Fazer o bem pode ser simplesmente designado como a vontade de Deus (2, 15). Nesse contexto deparamos com um paradoxo, o qual igualmente nos lembra Paulo: Como os verdadeiramente livres os cristãos são ao mesmo tempo os escravos de Deus (2, 16). %r isso não devem fazer de sua liberdade um "pretexto para a maldade" (cf. Rm 6, 1lss e GI 5, 13ss). É significativo que semelhante asserção é feita no contexto do catálogo de normas para a vida doméstica, no qual pouco antes se exigiu a submissão ao imperador e a seus magistrados (2, 13s). b) No que respeita, pois, a esse catálogo, ele se aproxima muito do da carta aos Efésios (Ef 5, 22ss), porquanto também está ampliado e enriquecido por fundamentações teológicas e cristológicas (2, 15s; 2, 19ss; 3, 4s): A disposição diverge da de Cl 3, 18ss e Ef 5, 22s. No início encontra-se a admoestação para a sujeição ao imperador e As autoridades (2, 131, o que, aliás, coincide com catálogos helenistas de normas para a vida doméstica. Seguem-se primeiramente as exortações aos escravos (2, 18ss), que são estimulados a servirem também aos senhores "perversos". Isso porque representa graça perante Deus que alguém sofra injustamente em tribulações (2, 19s). A declaração é justificada com a indicação do sofrimento de Cristo, que não cometera nenhum pecado. Deixou com isso um "exemplo" para o discipulado dos cristãos (2, 21ss). Por intermédio dele os cristãos foram libertos do pecado - a saber, pela sua cruz -, a fim de que vivam para a justiça (2, 24). A linha de pensamento faz lembrar direta e vivamente Rm 6, 11 e 18, tanto no que se refere à concepção da Iíbertação quanto ao emprego d~ palavra justiça. Partindo da exortação aos escravos, o autor penetrou profundamente na teologia da cruz. O pensamento do sofrimento inocente de escravos cristãos constitui a ponte para a cristologia. Somente depois dessa exposição cristológica segue-se a admoestação às esposas (3, lss). Em concordância com os demais catálogos de normas para a vida doméstica o mandamento é que elas sejam submissas a seus maridos. A explicação mais detalhada, no entanto, é peculiar para o autor de nossa carta. As mulheres são remetidas ao exemplo de mulheres santas da velha aliança, como, p. ex., Sara (3, 5ss). Esboça-se um tipo de imagem da mulher crist6: A cristã não sobressai por enfeites exteriores ou vestidos luxuosos,

mas pele pessoa interior do coração e pela natureza impereclvel de um espírito manso e tranqüilo (3, 3s). Os homens devem conviver sensatamente (com discernimento) com suas esposas, porque elas d o a parte mais frágil, tratando-as com honra, porque são "co-herdeiras da graça da vida" (3, 7). É expressivo que aqui a exigência é justificada pelo pensamento de igual participação na graça. A i n f e rioridade social da mulher, como nos demais catálogos, não é nem criticada nem abolida, mas a relação homem - mulher dentro da comunidade 6 profundamento modificada pela igualdade de coherdeiros. A conseqüência obrigatória foi que a mulher não mais podia ser meramente um objeto da dominação e do desejo de posse do marido. Em todos esses elementos por n6s destacados o catálogo de normas para a vida doméstica, de I Pedro, aparece como uma evolução singular e independente da antiga tradição. O trecho 5, l s s oferece um acréscimo ao catálogo de normas para a vida doméstica, com exortações para os prerbíteros e os mais iavens. Os presbíteros devem ser bons pastores e exemplos para o "rebanho de Deus" (a comunidade); são advertidos diante da ganância; devem desempenhar sua função com alegre prontidão e dedicação. Não foram instituídos como "dominadores" sobre a comunidade (5, 3) - uma exortação memorável para todos os tempos e todas as igrejas! Novamente não falta uma breve fundamentação cristológica: Quando o "Supremo Pastor" se manifestar, eles receberão a imarcescível coroa da glória (5, 41, a saber, caso tiverem sido exemplares para o rebanho a eles confiado. De maneira similar As cartas pastorais, também aqui o "éthos" do catglogo de normas para a vida doméstica e a ordem eclesiástica se misturam. Não nos é possível investigar aqui se o preparo para sofrimento futuro desempenhou um papel importante já na parênese batismal original e mais antiga. Encarado a partir da situação dos recémbatizados, a idéia é bem admissível. As dificuldades e os fardos, aos quais eles se expunham no seu meio-ambiente, sua parentela e seu clrculo de conhecidos pagãos, precisavam de ser no mínimo consideráveis. Para novos cristãos era sábio e útil um preparo que fazia compreender o sofrimento como conseqüência necessária da aceitação da mensagem salvifica. Em nossa carta, no complexo 1, 3-4, 11, tal preparação exerce, pelo menos, uma função importante (2, 13s; 3, 13s; 4, lss). Caso o autor tenha sido impelido para essas exortações de prontidão ao sofrimento por meio de uma situação especifica, isso não comprova que não poderia ter havido formas mais antigas de parênese batismal que procurassem alertar cristãos recém-batizados para sofrimentos iminentes e prepará-los mediante exortações A paciência e perseverança. A primeira epístola de Pedro compreendeu - e também nisso ela é semelhante a Paulo - que agir

e sofrer estão inseparavelmente entrelaçados na existência cristã; e que essa unidade possui como protótipo o próprio amor e sofrimento de Cristo. Uma vez que nessa "carta" está viva também a consciência escatológica: "O fim de todas as coisas está próximo" (4, 7; cf. 1, 20 e 5, 8ss), será acertado afirmar, por fim, que as exortações de I Pedro representam uma vigorosa evolução da parênese de Paulo e que possuem, particularmente como sermão de lembrança batismal, para nós um imenso valor tanto histórico quanto teolbgico.

Capitulo

v

A justiça ativa das boas obras No ponto mais distante de Paulo, na paisagem do Novo Testamento, encontramos a "carta" de Tiago. Na realidade nem se trata de uma carta, mas de um escrito essencialmente parenético que, nesse aspecto, é único no Novo Testamento. Por esse motivo ele sempre de novo provocou a indignação daqueles que, como Lutero, provêm de Paulo. Amantes da estatística calcularam que nos 108 versículos desse escrito se encontram nada menos de 54 imperativos. A epístola de Tiago compõe-se de ditos isolados e séries de ditos, ou de pequenos "tratados". Seu único objetivo é instruir cristãos para a prática de boas obras e, em conexão, enunciar também as necessárias exortações. Para o autor importam os cultos de ação. Nesse mister ele utiliza muitíssimo material da parênese judaica e helenista, que naquele tempo era mundialmente difundida e ciltrapassava as fronteiras de religiões e culturas. Certamente não se poderá esperar de tal coletânea de ditos parenéticos uma esquematização sistemática. A concatenação das frases é solta. Sobretudo inexiste na quase totalidade o embasamento teológico, e os imperativos aparecem na maioria destituídos dos indicativos da salvação que os fundamentam, conforme o conhecemos de Paulo e da carta aos Efésios. Sem nenhuma dúvida toma vulto com isso o perigo de uma "ética isolada", uma mera moral. Sempre chamou a atenção dos exegetas que o nome Jesus é mencionado apenas duas vezes (1, 1; 2, 1). Não obstante, Lutero incorreu em injustiça ao designar a carta de Tiago uma "epistola de palha". E necessário, entretanto, que entendamos a peculiaridade da carta a partir de sua intenção sem dúvida unilateral - uma intenção que também tem um justo lugar na Igreja, onde o decisivo é a vida cristã, e-não apenas convicções teológicas. Na carta de Tiago manifesta-se energicamente a neces-

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sidade existencial da Igreia em formação, de enfrentar as tarefas da vivência cotidiana. Unicamente a partir desse enfoque é possível fazermos jus a peculiaridade desse escrito. Tiago trata de perguntas práticas do dia-a-dia, tais como os "pecados da língua", a pobreza e riqueza, a sabedoria falsa e verdadeira, fé e obras, etc. Não descobrimos nele nenhuma interpretação rabínica da lei, nem tampouco a ética filosófica grega, mas, em contrapartida, múltiplas tangênciss com a literatura de sabedoria judaica e o acervo de ditos dos sinóticos. A sabedoria de que ele fala conduz a uma vivência em boas obras. Ela nos enriquece com compaixão, pacifismo, sinceridade e outros "bons" frutos (3, 13s. 17s). De importância decisiva é o "fruto da justiça" (3, 18; cf. também M t 5, 7.9.20; cap. 23). É bem compreensível, por isso, que a pergunta pela relação de fé e obras possui uma importância especialmente grande para o autor, ou melhor, o redator do acervo de ditos (2, 14-26), Seria c.ompletamente desacertado emitir prontamente um juízo a partir .de conceitos paulinos. Em primeiro lugar Tiago deve ser compreeíidido a partir de sua singularidade e das tradiç6es que lhe são peculiares e que por ele foram assimiladas. Existe naturalmente o problema teológico "Pauio e Tiago". Mas ele na verdade surgiu epenas porque encontramos os dois autores no cânone d o Novo Testamento. Se Tiago não estivesse no cânone, mas se fosse arrolado fora dele, iuntamente com o "Ensino dos Doze Apóstolos" (Didaquê) ou a primeira carta de Clemente, na literatura da era pós-apostólica, ~ i ã ose teria chegado a idéia de comparar de modo especial Tiago i o m Paulo, ou até de encará-lo como um crítico de Paulo. A tese central do autor é: Fé sem obras é morta! Vida cristã cii~~cretiza-se em boas obras. Tiago, no entanto, emprega um cor?ceito de fé bem diverso do de Paulo, para quem a fé é fé justificadora no feito salvífico de Deds em Cristo, uma fé que engloba em si a obediência vivencial ativa dos "escravos" de Cristo. Tiago, por sua vez, fala, em comparação com Paulo, de uma fé racional, a saber, de que existe apenas um Deus, e semelhante fé os demônios também possuem ( 2 , 19). Tendo-se, pois, como pressuposto esse conceito teórico de ié, a fé, sem obras, realmente é morta, e torna-se urgentemente necessário acrescentá-las. Uma fé teórica pode ser tão ciesapiedada como mostra o exemplo de 2 , 16s. Não existe a mínima menção, em Tg 2, 1 4 s ' de um "andar no Espírito" (GI 5, 25) que integra fé e agir numa unidade indissolúvel. Tiago vê diante de si a dicotornia de ambos c a degeneração da fé. Como, porém, não se reporta a fé plena em Cristo para solucionar o problema, resta-lhe apenas o recurso ao acréscimo das obras a fé. Justamente por isso nos parece fora de cogitação que;. Tiago tenha polemizado contra Paulo. Afinal, ele desconhece completamente a compreensão de f é

daquele1 Se tivesse pretendido discutir pelo menos com um poucc de seriedade com Paulo, ele teria que ter enfocado a sua fé em Gisto e o seu conceito de Espírito, deveria ter entrado em di61ogo com Rm 6 e 8 e com GI 5 . Não, Tiago nem sequer se defronta com Paulo, mas com a pergunta do seu próprio tempo. E somente nosso paulinismo protestante que introduz aqui d e contínuo uma "polêmica contra Paulo", para a qual faltam na realidade todas as premissas. Isso porque o estranho monoteismo teórico não é absolutamente uma base para dialogar com Paulo. Tampouco está comprovado que a problemática de 2, 14ss se tenha tornado possível somente depois de Pauk. O problema bem poderia ter surgido já na cristandade primitiva helenista antes d e Paulo, visto que qualquer conflito cristão com a Btica judaica teria que conduzir forçosamente a essa pergunta. Nas cartas pastorais também não temos um conceito de fé- igúal ao d e Tg 2. Todavia, como advertência contra uma consciência teóricoracional d e Deus, a sua antltese permanece legítima, o que não deveria ser obscurecido. Nesse sentido, portanto, a f é é aperfeiçoada pelas obras (2, 21ss). Hoje somos sumamente críticos, quando ouvimos de uma "ação conjunta" de f é e obras (2, 22) e levantamos logo uma acusação por causa d e sinergismo, porém, encarada a partir da situação e posição d e Tiago, essa formulação é absolutamente compreensível, pois ela combate um conceito degenerado de fé. Da mesma forma é também exagerada a incriminação d e "nomismo", sobretudo porque outras afirmações d e Tiago o excluem. Tiago não é um nomista judciku, porém possui uma concepção d e justiça muito similar à de Mateus. Dificilmente se enquadraria n o "nomismo" o fato d e que em Tiago a legislação ritual não possui nenhuma importância. Ele, porém, fala da "lei da liberdade" (1, 25; 2, 12). Ela é a lei "perfeita" ou "régia". No seu conteúdo, ela\ provavelmente poderá ser designada como o mandamento d o amor (cf. M t 22, 39s). Para a misericórdia não há juízo; quem não usou de misericórdia é submetido ao julgamento (2, 13). De semelhantes frasbs podemos deduzir o conteúdo da "lei da liberdade". É nesse sentido que os cristãos devem ser praticantes da palavra (1, 19s~). Serviço genuíno a Deus é "visitar viúvas e órfãos na sua angústia, e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundo" (1, 27). A renúncia pertence também para Tiago ao cumprimento positivo do mandamento do amor. Muito próximo esta aqui Mt 25, 31s: Os justos que herdam o reino são aqueles que saciaram os famintos, visitaram os presos, etc., enfim, que serviram a todos os miserhveis. Ao que parece ocorre aqui a mesma conceritração e simplificação do processo como na tradição sinótica de Jesus, especialmente no evangelista Mateus. Isso não pode realmente ser

chamado de nomismo, isso é antes d e tudo a pregação legítima do mandamento do amor. Falta naturalmente, como já dizíamos, a argumentação teológica, exceção feita a declaração de 1, 18, de que somos gerados "pela palavra da verdade" como as "primícias de suas criaturas"; destacam-se aqui conjuntamente a volição de amor e o poder criador de Deus. Ao que parece, a "nova" criação é imaginada como o restabelecimento da primeira. Não foi ainda esclarecida satisfatoriamente a origem histórica do conceito "lei da liberdade". De acordo com 2, 12 ela é uma lei que julga, o que denota proximidade com o pensamento judaico. Ela não tem nada a ver com os conceitos modernos da liberdade e da autonomia, independentemente de que Tiago não a entende como uma lei pesada, coerciva. O que o distingue, novamente, do pensamento judaico. Ela quer significar provavelmente, como Mt 5, 20, a justiça melhor e superior, no sentido do cumprimento do mandamento do amor. Foi acentuada com razão a proximidade de Tiago com os pais apostólicos. Ela se baseia sobre o fato de ele haurir da larga corrente da tradição parenética, que na época era "internacional". Não se deveria falar de um caráter "judaico-cristão" da parênese de Tiago, apesar das reminiscências do livro de Provérbios, Jesus Siraque e a sabedoria. O grego correto e culto que o autor escreve não pode ser a linguagem de um palestino. Contudo é preciso acrescentar mais algumas características teológicas do modo de pensar de Tiago. Em 2, 5 lemos a respeito da eleição dos pobres por Deus (cf. Mt 5, 3 e par.). Esse elemento coincide em particular com o cunho que a tradição de Jesus adquiriu em Lucas, denotando, porém, que Tiago também sabe falar do prévio ato salvífico de Deus. Os pobres escolhidos serão os que herdarão o reino de Deus. O conceito "pobre" não admite ser espiritualizado, como resulta do drástico anúncio do Juízo iminente aos ricos (5. . , lssl., Sabe-se que também Paulo fala de que Deus escolheu aquilo que nada é no mundo (I Co 1, 26s). Os eleitos, no entanto, precisam de ser os praticantes da palavra (Tg 1, 19ss; cf. M t 5, 13ss; 7, 21 ss). A isso correspondem as palavras de iuízo contra os ricos que negam aos trabalhadores o seu justo salário (5, lss). O Juiz torna sua a causa dos pobres. Isso corresponde, por sua vez, aos "ais" de Lucas contra cs ricos (6, 24ss; cf. 16, 19ss). Tais palavras de Tiago estão plenas da consciência escatológica da proximidade do Fim. O Juiz divino já está diante da porta (5, 7 e 9). A advertência recebe uma fundamentação escatológica. Também nesse ponto existe uma convergência de conteúdo com a tradição sinótica. Acumular tesouros nos ÚItimos dias, como os ricos (5, 3), leva a condenação.

Também Tiago combate os desejos dos homens (cf. os catálogos de vícios). É um elemento comum a toda a parênese cristã e também Paulo não o desconhece. Em Tiago deve-se apontar em especial para 4, 1-12. Todos os delitos como inveja, contendas, vaidade, palavras rancorosas, etc. são atribuídos a que o homem está preso aos "desejcs". "Amizade com o mundo é inimizade com Deus" (4, 4; cf. I Jo 2, 15). Nessa questão Tiago, tal como Paulo ou João, conhece apenas uma alternativa radical. Isso na realidade representa mais do que simples moral, isso é reconhecimento cristão de que o homem está ameaçado pela sua rendição aos bens e poderes terrenos ou, respectivamente, pelo deselo por eles. 0 s eleitos devem ser encontraveis nc lado d e Deus, uma exigência que vale também para os seus atos. A graça é concedida aos humildes, não aos arrogantes (4, 6). Ela está próxima unicamente dos que se sujeitam a Deus. Perguntamo-nos: Acaso a obediência se torna condição para a obtenção da graça? Contudo, d e forma semelhante às exigências sinóticas aos discípulos, isso é apenas um lado da questão. A eleição, o ser gerado pela Palavra (cf. acima) são pressupostos. A purificação das mãos do pecador e a santificação dos corações, no entanto, precisam de ser evidentemente ação pessoal do cristão. Tiago não unificou num só conceito teológico essas duas afirmações, pois não se interessa nisso, e muito menos é um te61ogo no sentido mais restrito da palavra. Em todas as variantes importa para ele a exigência de uma justiça de atos. E necessário ser "praticante da lei" (4, 11). Essa lei exclui que se julgue e calunie com desamor o irmão - e então ela pode ser unicamente a "lei" d a amor (cf. M t 7, 1; Rm 14, 4). Somente a Deus compete salvar e condenar; ele é o único "Legislador" e Juiz (Tg 4, 12). O cristão está debaixo, e não acima da lei d e Deus (4, 11). Em Tiago encontramos a chamada terminologia jurídica condicional. Sua forma é a seguinte: Se fizerdes isso e aquilo, p. ex., praticardes a misericórdia e fordes pacíficos, Deus se aproximará de vós. Também esse ponto corresponde ao pensamento sinótico. Segundo M t 5, 7 e 9 são os misericordiosos e os pacificadores que alcançam o reino de Deus. A linha de ataque de Tiago dirige-se sempre contra uma fé pervertida, portanto, contra algo que Paulo nem sequer chamaria d e fé. Tiago está, pois, objetivamente de acordo com aquela t r a d i ç ã ~sinótica que resume a lei no duplo mandamento do amor a Deus e ao próximo (Mt 22, 35ss, par.). Quem a cumpre é um justo. Constitui culpa do homem se ele separa a sua fé do agir obediente. Também em T i ~ g onão se pode verificar nada a respeito do problema da exequibilidade. A lei foi dada para que fosse cumprida. Quem sabe, talvez exista também na fórmula "lei da liberdade" uma reminiscência ou, até, uma adesão à tradição sobre Jesus? Poderíamos recordar palavras como M t 7, 12 e 11, 28ss. A melhor ajuda para a interpre-

tação, porém, é oferecida por Barnabé 2, 6: "a nova lei de nosso Senhor Jesus Cristo sem o jugo da coerção". Provavelmente Tiago terá retirado sua fórmula da tradição, interpretando-a depois conforme o seu pensamento. Talvez a fórmula proceda da sinagoga helenista. Em Tiago nada mais se evidencia acerca de uma luta em torno da lei. A combinação de lei e liberdade poderia representar uma redefinição e concornitantemente uma delimitação intencionais. Fora de cogitação permanece que alguém se eleve acima da lei e a julgue. Ele deixaria de ser, então, praticante da lei (4, 11s). Afinal, ela é o mandamento de Deus, e nisso reside sua dignidade. A conexão com a proibição de falar com hostilidade contra o irmão e de julgá-lo demonstram novamente com clareza que se trata do mandamento do amor. Em 2, 8 o mandamento do amor é expressamente citado segundo Lv 19, 18, ele é a "lei régia". Se lemos em 2, 13 que "a misericórdia triunfa sobre o Juízo", isso quer dizer que justamente ela cumpre a lei. O desapiedado, no entanto, é submetido ao Juízo. O amor está em concordância com a vontade de Deus (cf. Mt 25, 31~s). Em conseqüência, a importância de Tiago - embora unilateral - reside em que ele se constitui num pregador incansável da lei "régia" no sentido do mandamento do amor ao próximo. Sob esse aspecto, passam para o segundo plano os defeitos daquilo que ele expõe, de forma "aditiva", sobre fé e obras. No que se refere a Paulo podemos dizer que Tiago, sem defrontar-se sequer com ele, deu relevo a apenas um elemento da existência cristã, a saber, a obediência nas boas obras e, em destaque, na prática do amor. Isso não pode ser uma correção a Paulo, pois ninguém falou disso de maneira mais clara do que Paulo! Em contraposição Tiago é ainda hoje uma correção salutar a toda fé que degenerou em teoria, em puro saber de Deus, em "teologia", uma correção a toda religiosidade egoísta, que desconsidera o próximo e que sempre representa uma grande tentação da comunidade cristã. A seu modo, também Tiago é um "apóstolo" do amor.

. CAPITULO VI OS ESCRITOS JOANINOS

O amor fraterno como a passagem da morte para a vida Enquanto a carta de Tiago representa um documento puramente parenético, os escritos joaninos constituem o seu pólo oposto. Poderiamos até perguntar: Será que tem algum sentido procurar por uma "ética" em tais escritos? O que em Tiago e Paulo assim chamamos, inexiste quase totalmente em João: parênese múltipla e pormenorizada, instruções para as mais diversas situações da comunidade ou de grupos. Provindo de Paulo ou da carta aos Efésios, temos a impressão de uma enorme redução de perguntas e afirmações éticas. Contudo precisamos de avaliar imparcialmente também o tipo joanino em sua peculiaridade, uma tarefa que não é realizada se julgarmos precipitadamente João a partir de Paulo ou mesmo a partir da tradição sinótica. Sobretudo está fora de cogitação incorrer numa "paulinização" de João. Ele age ao seu modo e fala a sua própria linguagem. Não é necessário que, por isso, deixemos de ver as estreitas tangências de conteúdo entre Paulo e João. No que concerne à ética, elas consistem em particular numa opinião essencialmente idêntica sobre o homem no mundo. Toda a teologia de João é cristologia; isso terá influências tambbm para a ética, para cujo estudo precisamos de ater-nos em primeira linha A primeira epístola de João. Cristo é o enviado de Deus para o mundo. O envio significa redenção. Cristo é a ressurreição, a verdade e a vida. Nas palavras "eu sou" o Revelador divino manifesta o seu ser, o qual é ao mesmo tempo sua missão, pois quem nele crê possui a vida e escapou do julgamento. Cristologia vem a ser aqui soteriologia. Em torno desse centro giram, com formulações sempre diferentes, todas as meditações de João. Sob esse aspecto ele representa o pólo oposto mais extremo a Tiago. Em confronto com hereges gnbsticos, a primeira epístola de João afirma que o decisivo é a confissão ao Cristo que se mani-

festou na carne (I Jo 4, 2). Nessa confissão nota-se o Espírito de Deus. O que a comunidade tem "ouvido desde o começo", isso deve permanecer nela. Transparece aqui uma paralela ao pensamento da tradição nas cartas pastorais. A origem última do evento salvífico é o amor de Deus, que se expressa no envio de seu Filho ao mundo (4, 9s). Ele é a reconciliação pelos nossos pecados (2, 2 e 4, 10). Ele superou o mundo ("kósmos"; cf. Jo 16, 33: "Eu venci o mundo"). 1. Sob "kósmos" deve ser entendido: a) a Criação toda, todas as coisas feitas por meio do "lógos" (Jo 1, lss); b) o mundo como escuridão e mentira, sem vida e verdade num paralelo ao conceito paulino do mundo do pecado e da morte (Jo 1, 4s; cf., p. ex., I Jo 2, 15ss); O Iugar da missão do Filho (Jo 3, 16) e, com isso, da igreja. C) Da vitória de Cristo sobre o "kósmos" participa tudo o que é "nascido de Deus"; isso supera o mundo (I Jo 5, 4). Razão por que a vitória pode ser tanto atribuída a Cristo como A fé (5, 4). Resulta daí também a renúncia ao inundo, que é expressada com enérgicas palavras dualistas, originárias da gnose. Não se deve amar o mundo (I Jo 2, 15ss). Naquele que ama o mundo não está o amor do Pai. A "concupiscência da carne" e dos olhos não provém de Deus. Mas o mundo perece, e da mesma forma, as suas concupiscências; "aquele, porém, que faz a vontade de Deus, permanece eternamente" (2, 17). Essa última expressão surpreenda talvez aquele que não se familiarizou com o pensamento de João, que parte de cima (envio do Revelador, ser nascido d e Deus, etc.). O crente, ou o que é nascido de Deus, "de cima" (cf. também Jo 3, lss!), contudo, é ao mesmo tempo um agente que ama os irmãos. Nesse sentido é correto dizermos que a doutrina da salvação inclui, em João, a ética - o que mais uma vez forma uma paralela substancial com Paulo e a carta aos Efésios. No evangelho de João 3, 20s, fala-se por isso da "prática da verdade". Quem pratica o mal, odeia a luz. Há, pois, obras realizadas "em Deus" (3, 21; cf. I Jo 1, 6). Como vemos, o conceito de mundo possui também uma faceta moral: O mundo é o Iugar dos maus, dos que não fazem a vontade de Deus. Os discípulos de Cristo, em contraposição, não pertencem a esse mundo. Eles não são "do mundo", não participam do seu ser. Cristo elegeu os discípulos, ordenando-lhes que dêem "frutos" (sem maiores especificações; Jo 15, 16). O mundo odeia os discípulos, assim como odiou anteriormente a Cristo. Se os discípulos fossem "do mundo", o mundo os amaria como algo que lhe é pertinente. No entanto Cristo os elegeu para fora do mundo (Jo 15, 18ss). Sem a "prática da verdade" (ou da justiça) é inconcebível para João uma vida a partir de Deus. Conforme sua compreensão é lícito

dizer: FB sempre é também ação. Em João não é necessária, por conseguinte, uma adição no estilo da carta de Tiago. Fé 6 amor para com os irmãos. Isso porque amor, amor fraternal, é o conteúdo do agir. Ser nascido de Deus e amar são a mesma coisa. "Passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos (I Jo 3, 14). Isso foi dito no sentido de uma existência de fato e real, o que não exclui que haja nisso também uma "exortação indireta" (R. Bultmann). O amor é o sinal da mudança escatologica da existência. Nele se verifica o que aconteceu com a pessoa. João não estagna no dualismo de declarações ontológicas. A vida a partir de Deus significa o agir daqueles que amam. Quem odeia seu irmão está na morte, separado de Deus, e não possui a vida eterna (3, 14ss; 2, 11). Todo aquele que pratica o pecado é seu escravo, mas Cristo liberta dessa escravidão (Jo 8, 34). Quem permanece na palavra de Cristo, será libertada pela verdade (i. é, por Cristo pessoalmente; 8, 32). 2. Em João pode-se falar de um tríplice sentido da palavra amor: a) o amor de Deus pelo mundo (Jo 3, 16); b) o amor de Cristo, que deixa sua vida em favor de seus amigos (Jo 10, 11; 15, 13; 1 Jo 3, 16); C) O amor do cristão nascido de Deus, pelos seus irmãos. Quem não vivencia esse amor também não é nascido de Deus (veja acima). Foi totalmente suspensa qualquer separação entre salvação e mandamento, entre cristologia e ética. O novo ser é amor. O amor é uma única realidade divina, a semelhança de I Co 13, que flui de Deus através de Cristo em direção dos seus, e de um irmão para o outro. Amando, os membros da comunidade cristã situam-se dentro do acontecer do amor divino. Ética é teologia, e vice-versa. Estar na dimensão da luz divina é amor (I Jo 2, 7 s ) . Quem ama seu irmão permanece na luz (2, 10). Quem, no entanto, afirma estar na luz mas odeia seu irmão, esse se encontra nas trevas (2, 9). Tudo isso causa a impressão de que João seria capaz de falar de amor apenas ontologicamente, isto é, no sentido de afirmações acerca de sua essência divina. Não obstante, ele fala também do "antigo" e "novo mandamento" do amor (2, 7s): Ele é antigo, porque a comunidade o possui "desde o princípio", e novo, porquanto é verdade divina e porque agora brilha a luz verdadeira. Conseqüentemente, é novo no sentido escatológico. Igualmente o evangelho de João, em 13, 34 e 15, 12, cita o novo mandamento do amor. O imperativo, portanto, não é absorvido pela ontologia. O que corresponde em substância (não na forma de expressão) a ética de Paulo. O novo mandamento do amor C! fundamentado com o amor de Cristo: "que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei" (13, 34; 15, 12). O "assim como"

possui um sentido causal. E nisso visa-se a auto-entrega de Jesus na cruz: A partir da cruz define-se o que é amor. Todavia João fala permanentemente apenas do amor de irmãos, como que voltado para dentro. Não trata do amor universal ao próximo, dirigido a todos. Os homens no mundo parecem ter-se desvanecido diante dos olhos de João Em comparação com o Sermão do Monte e com o agir do Bom Samaritano (Lc 10, 2 9 s ) isso constitui uma considerável redução e unilateralidade. Do amor de Deus pelo mundo o olhar deveria com certeza dirigir-se tanto a todos os homens como aos que crêem. Na primeira epístola de João também se constata tal restrição. Ademais, inexistem também quaisquer diferenciações e "aplicações" do mandamento para grupos ou situações específicas dentro da comunidade, algo em que Paulo é sobejamente rico. Embora seja possível que se fala, no plural, de "guardar os mandamentos" (2, 3), isso não passa de uma fórmula tradicional. No fundo trata-se unicamente do mandamento do amor. Instrutiva, porém, é a declaração em 2, 3 de que o conhecimento é identificado com o cumprimento dos mandamentos. Sob esse aspecto o cristianismo de João não é sob hipótese alguma místico, mas de todo ético-prático. Naquele que não cumpre os mandamentos não está a verdade (2, 4). Ter comunhão com Cristo e andar nas trevas, i. é, sem amor, excluemse mutuamente (1, 6). Assim também lemos em 4, 120: Quem assevera que ama a Deus, mas odeia seu irmão, é um "mentiroso". 3 que não deve ser compreendido com respeito à veracidade subjetiva, mas à constituição existencial do homem, a seu ser separado da verdade divina. 3. Em comparação com as cartas pastorais é surpreendente que nos escritos joaninos não se encontram quaisquer vestígios da moral de cidadania cristã. João não é impulsionado por semelhante interesse na conformação da vida secular-cotidiana no matrimônio e na casa. O contraste radical com o mundo ,não permite que surjam tais tendências. Em correspondência, também não aparecem as ordens sociais mundanas. Por outro lado, porém, não se formulam tampouco mandamentos ascéticos. Para a comunidade toda vale o mandamento d e não amar o mundo (2, 15), mas não se deduzem daí consequências ascéticas concretas. Poderia ser que essa exortação aponta em direção de uma "ascese intramundana" que não demanda nenhuma ascese alimentar e sexual e conserva a pessoa integrada em sua existência dentro da sociedade, sem contudo atribuir qualquer valor positivo a essa atitude. Sob essas condições também não se fala da relação do amor para com os vínculos terrenos. O poder político aparece apenas em Jo 18, 28ss, no confronto de Jesus e Pilatos, porém nesse momento não entram em questão instruções éticas.

Uma tradição relacionada com Rm 13, l s s , no entanto, transparece da resposta de Jesus a Pilatos: "Nenhuma autoridade terias sobre mim, se de cima não te fosse dada" (Jo 19, 11). AO que parece havia as seguintes duas possibilidades por volta do final do primeiro século ou do inicio do segundo: a de João, com SeiJ afastamento do mundo, e a da ética de cidadania cristã das cartas pastorais. Contudo seria totalmente insuficiente se quiséssemos carãcterizar essas duas atitudes com "negação do mundo" e "afirmação do mundo", pois os termos são por demais genéricos. A atitude sócio-centrada das cartas pastorais não tem nada em comum com aquilo que o homem moderno designa como afirmação do mundo, com o seu otimismo racionalista ou naturalista, isso porque permanece crítica. João, por sua vez, não é pessimista, porquanto o Filho de Deus se manifestou na carne; a luz verdadeira resplandece agora (Jo 1, 14s; I Jo 2, 8). A salvação está no mundo. Com a referida diferença de João em comparação com a ética das cartas pastorais, toda ética cristã posterior, também a de hoje, está colocada diante de uma decisão importante, a qual, no entanto, não podemos perscrutar aqui. Ocorre uma certa diferenciação da comunidade em I Jo 2, 12ss, onde são endereçadas crianças, jovens e pais. Contudo verifica-se logo que isso nada tem a ver com a parênese individual concreta no estilo paulino. O único mandamento dirigido a todos é: Não amai o mundo (2, 15). 4. Constitui um problema a parte a questão da ausência de pecado no cristão, levantada por afirmativas de I João. Em 5, 18 lemos que quem é nascido de Deus não vive em pecado; e em 3, 9, que não pode pecar quem é nascido de Deus. É a conseqüência direta do dualismo escatológico entre Deus e mundo, que João expressa de forma absoluta, sem relativizações nem delimitações. Por outro lado, porém, 5, 16 fala de que um irmão comete pecado, e 1, 9, do perdão dos pecados, de que os membros da comunidade carecem, encontrando-o em Cristo, que purifica de toda a injustiça. Em resultado, existe o pecado do cristão, a despeito da tese acima enunciada! Sobre esse fato baseiam-se, na verdade, as inúmeras exortações do Novo Testamento. Sem ele toda a parênese seria supérflua. Em 1, 8 lê-se até muito clara e enfaticamente: Se dissermos que não temos pecado nenhum, a verdade não está em nós. Encarar o pecado do cristão como uma "exceção" seria uma saída que não se justifica em absoluto pelos textos. Deparamo-nos, então, com uma contradição interna em João? E evidente que João vê o dilema na existência cristã. Recordemo-nos de Paulo em 1 Co 3, l s s , onde ele responsabiliza os coríntios por sua carnalidade e lhes demonstra que o viver no Espírito

deve ser acompanhado também do andar no Espírito. O cristão é nascido de Deus e, não obstante, necessita o perdão, nunca pode prescindir da graga. Isso está em concordância com a descrição da luta entre "Espírito" e "carne" feita por Paulo em Rm 8, 45s e GI 5, 135s. A solução do dilema, no entanto, é o perdão dos pecados para cristãos através d e Cristo. Esse é o paralelo joanino para o chamado de volta a Cristo, em Paulo. Devido ao dilema, a comunidade necessita também o mandamento. Devemos amar os irmãos (3, 1I), não agindo ao modo de Caim, que assassinou seu irmão. Poderíamos falar também do paradoxo da dádiva da liberdade diante do pecado: De um lado está o crente realmente gerado de Deus, de outro, a sempre necessária confissão dos pecados pelo cristão. João foi o primeiro na cristandade primitiva - conforme a opinião de R. Bultmann - que compreendeu e formulou com clareza esse paradoxo (cf. 3, 6.9 e 1, 6-10). Outra particularidade do pensamento joanino na primeira epístola é a diferenciação dos pecados. Ela se revela tão pouco compreensível a partir do dualismo escatológico de João que se externou a suposição de que essa ordem gradual dos pecados deva ser atribuída a um "redator eclesiástico" da primeira carta de João. Em 5, 16 é mencionado um pecado que não conduz à morte. Como dizíamos, tal distinção é estranha em vista do forte dualismo escato!ógico em João. Oposto ao pecado perdoável encontra-se o pecado que leva à morte e não é remissível. Pelo segundo não se devem fazer intercessões. Ao que parece, a prática da vida comunitária tornou necessária a diferenciação. Já em Paulo descobrimos um início dela: O que pecou por impudicícia é excluído da comunidade em I Co 5, lss, por causa da gravidade de seu delito, e "entregue a Satanás" (I Co 5, 5); uma sentença condenatória que, tcdavia, de forma alguma era proferida sobre todos os pecadores. Por exemplo, não acontece o mesmo com os cristãos que se dirigem a tribunais pagãos (I Co 6, 15s). Lamentdvelmente João não nos diz o que seria um pecado que leva ou não leva à morte. Citou-se a blasfêmia contra o Espírito Santo, que é imperdoável (Mc 3, 29). Evocou-se Hebreus 6, 4ss, a apostasia da fé, que torna impossível um segundo arrependimento. Será que João também tem em mente a renegação da fé? Asas0 ele a enxerga na heresia cristológica, na forma dos "anticristos" (2, 18s) que surgiram da comunidade? Isso seria possível, visto que João condena categoricamente tais hereges porque negam a encarnação do Filho de Deus. O que, com efeito, significava a negação da graça e do Evangelho. A Igreja aceitou por base que existem pecados remissiveis, construindo sobre ela a sua disciplina penitencial. Por isso começa em 5, 16 a tentativa de uma graduação dos petados. A advertência diante da idolatria (5, 21) igualmente faz com que con-

cluamos que o pecado para a morte possa significar a negação total de Deus e Cristo. A frase d e 5, 16, de que não se deve interceder por aqueles que cometem um pecado de morte, está em flagrante contradição com o mandamento universal do amor, do Sermão do Monte, que culmina na exigência de õmor ao inimigo e de intercessão pelos perseguidores dos discípulos (Mt 5, 44). O pecador "para a morte", afinal, k o que mais precisaria da intercessão da comunidade. A tentativa de isolar-se vence aqui a livre abertura do mandamento de amor de Jesus, representando, assim, novamente uma forma peculiar de redução da compreensão do amor segundo o Sermão do Monte (de Mateus). Quando Jo 15, 3 e 17, 19 falam d e que Cristo purifica e santifica os discípulos santificando-se a si próprio em favor deles, e quando Cristo ora em Jo 17, 15 pela proteção dos discípulos diante do mal, isso demonstra mais uma vez que João tinha plena consciência do problema e do conflito do pecado dos cristãos dentro da comunidade. Possuem importância ética em João alguns elementos da tradição iudaica, os quais o distinguem da gnose helenista. Ele fala, conforme vimos, de "manter os mandamentos" e do "novo mandamento", do cumprimento da vontade de Deus. Emprega o antagonismo justiça - injustiça tanto no sentido cristológico como ético. Na vida a partir de Deus, receber e fazer constituem uma unidade. O novo nascimento de cima é ao mesmo tempo amor para com o irmão. Superou-se assim toda a ética meritória e de obras, tão perfeitamente como em Paulo. O elemento novo em João, entretanto, revela-se justamente em que é amor a Deus cumprirmos os seus mandamentos e em que seus mandamentos "não são penosos" (I Jo 5, 3), ao que parece, devido à nova realidade escatológica de sermos cristãos. Os mandamentos não são penosos para aquele que é nascido de Deus. A lei outorgada por Moisés foi abolida pela revelaíão do Filho de Deus (Jo 1, 17). O mandamento agora reza: crer e amar (I 10 3, 23). No fundo a ética joanina, portanto, consiste nessas duas partes: renegar o mundo e amar os irmãos. O imperativo e o indicativo estão na mais estreita vinculação: O novo ser é simultaneamente dever. Isso distingue João de Tiago e o coloca ao lado de Paulo. Contudo João carece daquela abundância de instru;ões pormenorizadas que é característica paqa Paulo. Por isso não admira que a ética da Igreja se nutriu mais da parênese concreta e que seguiu concomitantemente o caminho da ética de cidadania cristã, oferecendo por outro lado, mais tarde, na forma do monasticismo também uma resposta ascética à exigência de João de não amar ao mundo. Duas modalidades de vida cristã já se nos apresentavam em I Co 7 . Contudo o Novo Testamento não fala da posterior ordem hierárquica,

isto é, da sobreposi~ãodos "perfecti" (perfeitos), ou seja, dos monges, aos cristãos "comuns" que vivem no mundo. Há apenas uma classe de cristãos, sem detrimento das autoridades eclesiásticas de apóstolos e dirigentes de comunidades A exigência joanina de renunciar ao mundo refere-se, em verdade, a comunidade toda, e não a uma parte dela. A resposta parcial ascética da Igreja posterior se constitui, portanto, numa redução da ética joanina. Em contrapartida é preciso conscientizar-se de que o ressentimento do protestantismo moderno contra a ascese é inadequado para proporcionar uma compreensão de I Co 7 ou I Jo 2, 1 5 s . A ascese é legítima aos olhos do Novo Testamento quando é entendida como ascese de obediência, e não com finalidade de redenção (como na gnose), livre de toda iustiça pelas obras, bem como da presunção de uma perfeição especial, em suma, é legítima como uma expressão da entrega total a Cristo. Ela estabelece iim sinal para o fato de que a Igreja não pode comprometer-se, unificar-se com o mundo. Nesse ponto a palavra da ética joanina é digna de toda a atenção.

AS MISSIVAS DO APOCALIPSE DE JOAO

O chamamento à segunda "meia-volta" Dado que o Apocalipse de João aparece apenas a margem nos compêndios da teologia do Novo Testamento, motivo pelo qual a sua teologia não foi ainda avaliada suficientemente, queremos pelo menos tentar transmitir uma idéia acerca do "éthos" das missivas de Ap 2 e 3, concluindo dessa maneira a nossa exposição. O autor do Apocalipse de João vê a situação da Igreja de seu tempo - os anos 90 do primeiro século - caracterizada pela circunstância de que ela se encaminha para a perseguição e o martírio. Seu intuito é prepará-la para essa aflição, para essa luta. Começa a grande batalha entre Cristo e o poder demoníaco oposto do Anticristo. Sofredora e perseguida, a Igreja está do lado de Cristo. O reino antagônico demoníaco é representado historicamente pelo Império Romano, que se absolutiza no que concerne a religião mediante o culto ao imperador, incorrendo na "hybris". Novamente deparamos com um contraste importante dentro do Novo Testamento, a saber, com uma grandeza oposta à Igreja que inicia a se instalar no mundo, com uma posição contrária à ética cristã integrada na sociedade (cartas pastorais). É que no Apocalipse de João avistamos uma Igreia ameaçada pelo poder demoníaco, que se descobre conduzida para o sofrimento e que não se pode instalar no mundo. Essa Igreja não cresce para dentro do mundo, pois que o mundo procura destruí-Ia e a ameaça com a morte. Numa situação de perseguição pelo Império, não é mais possível abordar os temas da ética cristã na sociedade, das virtudes do cidadão cristão, da ordem comunitária, da configuração da vida familiar, do comportarnento das mulheres, etc. Agora é preciso oferecer resistência, pelo sofrimento, ao endemoninhamento do mundo por um Império que a si mesmo se diviniza. O sangue dos santos é derramado. Resta unicamente a possibilidade de observar, os mandamentos de Deus e preservar o testemunho de Jesus (Ap 1'2, 17).

Duas perguntas preocupam o autor do Apocalipse, um profeta cristão desconhecido: Que é? e: Que há de ser? A primeira pergunta respondem as sete missivas a comunidades da Asia Menor, que, ao parece, devem representar vicariamente toda a Igreja. PO; intermédio da palavra profética Cristo põe a descoberto a verdadeira realidade e situação dessas comunidades, ele louva e reprova as comunidades de diversas maneiras (Quanto à estrutura das missivas, cf. a explanação de Eduard Lohse, NTD vol. 11). Que resulta, pois, no tocante à verdadeira situação da Igreja? Como em Paulo ou nas cartas pastorais, a gnose ameaça também aqui a Igreja. Segundo Ap. 2, 15 e 2, 20 ela aparece às comunidades na pessoa dos chamados nicolaítas e dos adeptos da falsa profetiza Jezabel. João rebate energicamente em nome d e Cristo qualquer mescla, qualquer sincretismo com tais movimentos. As heresias ele anuncia o Juizo (2, 16.22). A culpa das comunidades é tolerarem essas correntes gnósticas. A acusação é dirigida contra a idolatria e contra o comer de carne ofertada a ídolos. Cita-se um lugar-comum gnóstico: "reconhecer as profundezas de Satanás" (2, 24). O reconhecimento serve provavelmente à superação do demoníaco, mas é encarado pelo vidente "João" como a abominação por excelência da idolatria e apostasia. A essa última refere-se também a figura do "praticar a prostituição", presente em ambas as passagens. Ao lado do perigo de contemporizar com a gnose, o que equivaleria a um abandono da fé em Cristo, assoma outra ameaça, ética, r10 sentido mais restrito: A comunidade d e Éfeso decaiu da altitude em que no início se encontrava. "Tenho contra ti que abandonaste o teu primeiro amor" (2, 4). Em Ap 3, 1 lemos com referência à comunidade de Sardes que ela está "morta", uma sentença profética que sempre de novo revivesceu e foi repetida na história da Igreja. Acerca da comunidade de Lsodicéia declara-se em 3, 14ss que ela é tépida, nem quente nem fria. A comunidade vive numa falsa segurança (3, 15). O Cristo que se aproxima a vomitará da sua boca. Ele arrasará essa pia auto-segurança. Em semelhantes pronunciamentos constatamos que não se pode pensar nem de longe numa contemplação idealista da situação da Igreja. Arrefece o calor do "primeiro amor". Ocorrem acordos altamente perigosos com os gnósticos, tais pessoas são toleradas nas comunidades. É essa a realidade das comunidades cristãs ap6s 45-50 anos de história eclesiástica na Asia Menor. Representa como que um modelo daquilo que sucede sempre de novo na Igreja. Como soa, em face disso, a exigência do profeta cristão? Ela se chama "meia-volta" (cf. 2, 5.16.21; 3, 6 e 19). O apelo é levantado em todas as missivas. Evidentemente é pressuposta a possibili~ dade de tal segunda "meia-volta". Não se trata da conversão da

idolatria do paganismo para o Deus vivo e para Cristo, mas da "meia-volta" dentro da comunidade de Cristo, por causa do pecado que nela foi cometido. Portanto, trata-se de retorno a Cristo, negação da heresia, retorno ao primeiro amor. Assiin também os coríntios segundo II Coríntios tiveram que ser trazidos de volta, da desobediência à obediência. A "segunda meia-volta" é o retorno de cristãos para Cristo. - Isso vem a dar um novo sentido a essa palavra, em comparação ao uso de "metánoia" ("meia-volta") na proclamação de Jesus. O chamado dessa segunda meia-volta é a reação a história de decadência das comunidades. É uma graça de Cristo que os cristãos e as comunidades pecadoras recebem a oportunidade do retorno. Por conseguinte, ouvimos no Novo Testamento não apenas um chamado à "meia-volta" dirigido a iudeus e pagãos, mas também a cristãos. E conseqüentemente não existe uma história da fé e das normas da Igreja que transcorresse sempre no mesmo nível. H$ rupturas, apostasias, entibiamentos, atrofiamentos - mas também há a possibilidade de obter nova vida mediante a "meia-volta". Neste ponto é necessário e útil que tenhamos presente a posição cposta da carta aos Hebreus. Em 6, 4-6 ela declara cam toda a agudeza e radicalidade que não existe mais a possibilidade d e um segundo arrependimento e de uma renovação, por meio dele, para os apóstatas, os quais uma vez se tornaram participantes do Espírito Santo e provaram os poderes do mundo futuro. É que esses renegadores da fé crucificam mais uma vez o Filho de Deus. A queda da nova existência escatológica do cristão no abismo da descrença e do pecado é definitiva e irreparável (cf. R. Schnackenburg, Christliche Existenz nach dem Neuen Testament I, pp. 54s). No exemplo de Esaú Hb 12, 17 expressa o mesmo pensamento, ao que parece, para ressaltar a enorme importância da decisão por Cristo e pela fé cristã. Temos diante de nós um dos casos em que precisamos de decidir-nos pessoalmente, entre afirmações contrapostas uma a outra nos textos, a favor de um ou outro caminho, de uma ou outra forma de proclamação ética, porque aqui uma fórmula de conciliação seria impossível e inimaginável. H6 que levantar agora a questão: Como, afinal, essa nova "meia-volta" é praticável? Naturalmente não se apela à livre força de decisão moral do homem autônomo. Não se incorre em pressuposições idealistas iudaicas nem modernas. A possibilidade para a segunda "meia-volta" reside exclusivamente no próprio Cristo, ele a oferece às comunidades, o que se patenteia em 3, 1 9 s . O amor de Cristo significa castigar a comunidade. Cristo está diante da porta da comunidade. Nessa presença d e Cristo a nova decisão pode ser tomada, o retorno pode ser consumado. Abre-se assim o caminho para o triunfo, para o "vencer" no sentido escatológico; cf. os

ditos sobre o vencedor no fim de cada missiva. Na hipótese contrária existe apenas o Juízo. Por isso o apelo insistente: "Quem tem ouvidos ouça o que o Espírito diz às igrejas!" (3, 22; cf. 2, 17). Também as missivas falarn das obrar: "Conheço as tuas obras" (2, 2.191, contudo não no sentido judaico-legalista. Em foco está antes a vida toda da comunidade, que s e configura nas obras. No lugar em que Paulo emprega "andar segundo o Espfrito", lemos em Ap 2-3 o termo resumido "as obras". É nesse sentido que o Senhor diz à comunidade, julgando-a e prometendo-lhe a graça: "Conheço as tuas obras." Ap 19, 8 fala positivamente dos "atos de justiça dos santos", que os ornamentam. Com respeito aos mártires que "morrem no Senhor" lemos: "As suas obras os acompanham" (14, 131, a saber, rumo à vida eterna. São elas as "boas" obras, dignas do reino de Deus (6.M t 25, 31ss, onde os "justos", isto é, os que praticaram ajuda em amor, herdam o reino de Deus). As boas obras constituem a realidade escatológica da existência cristã. Segundo 3, 2 as obras da comunidade de Sardes não são "íntegras (perfeitas) na presença do meu Deus". Existem naturalmente definições ou circunscriçÓes mais concretas dessas obras. No Apocalipse de João emprega-se com freqüência o termo "hypomoné", o qual não deveria ser traduzido por "paciência". "Paciência possui uma conotação muito moral, muito conforme a esforço humano. Trata-se, porém, de uma "virtude" escatológica, qual seja, a perseverança no sofrimento, dirigida para o alvo escatológico. Tal perseverança somente é possível porque o dia de Cristo se aproxima. Nessa perspectiva "perseverança" pode designar a atitude global da comunidade que se encaminha para o Fim. Em 1, 9 João se denomina irmão e companheiro dos cristãos a que se dirige, participante das suas tribulações e da sua perseverança. Sofrimento, tribulações (no sentido da aflição dos últimos tempos) e perseverança perfazem uma unidade. Como a comunidade de Filadélfia "guardou a palavra da perseverança", também ela será resguardada "da hora da tribulação" (3, 10). Indagamos agora: Como são fundamentadas as exigências da "meia-volta" e das obras? O pensamento do Apocalipse revela-se não menos fiel à cristologia do que o de Paulo ou dos escritos ioaninos. Cristo é o divino Senhor da Igreia e do mundo. Ele é o "Rei dos reis e o Senhor dos senhores" (19, 16; cf. 17, 14). Nos capítulos 2-3 ele se-nos apresenta tanto como o Senhor da Igreja, que ordena e julga, como o que concede graça e vida. Vimos como é ele quem oferece às comunidades a nova possibilidade de vida com a "meia-volta". colocam As palavras introdutórias das missivas, "estas coisas diz.. diante da comunidade o Cristo em toda a sua glória e autoridade divinas. O mesmo vale para os ditos finais das missivas. J6 agora

.",

o divino Juiz universal inicia com o julgamento das comunidades. Se combinássemos as palavras de autoridade no início das missivas entre si, a cristologia se apresentaria a nós em toda a sua plenitude. As comunidades agem diante do Vencedor escatológico vindouro. No Espírito o Senhor e Juiz da Igreja já está presente. Ele não é apenas o que se aproxima, mas também o que já agora está presente. Embora a conexão de futuro salvífico e imperativo ou de presente salvífico e imperativo seja expresso somente de maneira figurada, a saber, nas palavras do próprio Cristo, é acertado falarmos de uma fundamentação escatológica e cristológica da exigência. Razão pela qual também não se pode encontrar nenhum vestígio de ética meritória. Uma concepção singular e característica para esse escrito encontra-se nos chamados ditos sobre o vencedor, no final das missivas, a concepção do "triunfar": "Ao vencedor, dar-lhe-ei. . . ", seguindo-se depois a promessa da salvação escatológica, de participação na vida eterna, no senhorio de Cristo, etc., nas mais diversas ilustrações. O vencedor da tribulação "derradeira", que se conserva fiel a Cristo, recebe a recompensa celestial. O triunfar, no entanto, não se realiza a partir da força religiosa ou moral do indivíduo, mas por causa de sua comunhão com Cristo, a qual ele confirma ~ersistindono testemunho e na prática de obras. Em última análise é, portanto, um vencer em conjunto com o Vencedor Cristo, o qual prostra ao chão todos os poderes demoníacos. A contraposição dos dois agentes, o vencedor e Cristo, contudo, expressa condizentemente que o cristão e comunidade são pessoas que agem com responsabilidade, e não títeres nem instrumentos totalmente passivos de um poder divino coercivo. Para as bem-aventuranças (Mt 5, 3ss), aliás, vale o mesmo, no que tange a relação de ação e anúncio da salvação. Em Jo 16, 33 o termo aparece atribuído a Cristo: "Eu venci o mundo." Na primeira epístola de João falava-se da fé que venceu o mundo (5, 4). A diferença entre a asserção das missivas e a dos escritos ioaninos reside em que a primeira está relacionada de maneira escatológicofutura com a promessa da salvação vindoura, ao passo que nas fórmulas joaninas predomina nitidamente o "perfectum praesens": A vitória foi definitivamente conquistada. Assim como os sinóticos ou Paulo, também o Apocalipse se atém à antiga concepção da recompensa. Todavia recompensa é graça, porque Cristo é o doador, porque não se premia nenhum esforço. Pode-se evocar a parábola dos trabalhadores da vinha (Mt 20, lss), em que o salário é fixado pela livre e soberana benignidade do senhor (Mt 20, 14s). A cristologia do Apocalipse exclui qualquer recaída no moralismo judaico. Na cristologia está fundada, por assim dizer, a pureza de sua ética. Apesar de todas as tribulações e tentações podemos triunfar - através de Cristo. Isso é ao mesmo tempo

admoestação e consolo para uma Igreja que precisa de encaminhar-se ao sofrimento. Demais disso, o Apocalipse está imbuído de máximo realismo. Nos cap. 13 e 17s ele mostra que a maioria da humanidade adere ao reino do Anticristo. Aos santos se contrapõem os "habitantes da terra", os quais não sabem achar o caminho da fé. Apesar disso, Ap. 4 permanece em vigor: a saber, a glorificação da maiestade divina do Criador que fez o universo. Não existe, por conseguinte, uma depreciação gnóstica do mundo no livro do Apocalipse. Ao cap. 4 correspondem os cap. 21s com sua mensagem escatológica da "nova" Criação. Compare-se com isso a importante fórmula do "reino sobre o mundo" ("kósmos"; 11, 15). O senhorio de Cristo é senhorio sobre o mundo. A Criação não é abandonada pelo Criador. Em contradição extrema com o gnosticismo, o Criador e o Redentor constituem um só Deus. Assim Cristo responde não apenas a pergunta da culpa, mas também à pergunta do poder, quem será o Senhor do mundo. E nisso está, em última análise, o sentido da ética cristã. Todo o amar e perseverar, todo o sofrer e todas as boas obras não serão infrutíferas e em vão. Partindo desse ponto, podemos tomar posição frente a muito controvertida questão do quiliasma (Ap 20, 4), a estranha visão do domínio provisório de mil anos do Senhor sobre a terra. Sairemos com isso do âmbito das missivas pelo fato de que épocas posteriores deram uma interpretação ética a 20, 4. A passagem acolheu uma concepção da expectativa futura do judaísmo tardio que trata de um estágio prévio (de caráter "citerior") a consumação definitiva. Contudo o cerne da afirmação de 20, 4 é o domínio coniunto de Cristo e dos mártires, aos quais, então, se faz iustiça. Em relação com isso está o motivo de que Cristo não desiste de seus direitos sobre este mundo, mas os concretiza. Não se trata de um reino universal de Cristo resultante da força de vontade cristã de estruturar o mundo, como mais tarde o idearam sonhadores e entusiastas. Tais concepções, igualmente chamadas quiliastas, estão completamente fora do pensamento escatológico do Apocalipse. Não existe, portanto, - ao contrário dos quiliastas dos sécs. XVI e XVII - uma ética quiliasta. Por outro lado o trecho deixa bem claro - numa ilustração mitológica que: O reino de Cristo não é nenhum Além celeste. Pelo contrário, como em 11, 15, está em questão o senhorio de Cristo sobre o mundo. Por meio de tal declaração, porém, o Apocalipse presta indiretamente um serviço importante à ética cristã: Tornam-se visíveis o horizonte escatológico e, concomitantemente, a limitação da ética. Ela recebe um quadro de referência e, assim, também seu sentido. E óbvio que necessita ser sublinhado o caráter simbólico de semelhantes concepções apocalípticas. Em afirmações escatológicas sempre é inadequado empregarmos nosso conceito de tempo, visto que elas versam

justamente sobre o "fim" do tempo do mundo. Decisiva, por6m. é a asserção cristológica feita através de 20, 4. Também o reino do Anticristo é "citerior", não do Além. Realizase sobre esta terra ccino domínio sobre pessoas. Somente vista a partir desse reino, torna-se evidente a importancia escatokgica da comunidade de Cristo, que se opõe ao domínio do Anticristo e que preserva também o testemunho do Criador. Ambas, Igreja como anti-igreja não mais existirão no reino perfeito de Deus (cap 21; cf. 23, 1 I), contudo essa afirmação precisa ser modificada, porque na forma do povo redimido de Deus, congregado de todo O mundo, também a Igreia alcança a sua perfeição. Nesse reino não mais se necessitam parênese nem ética. O reino de Deus é o cumprimento ilimitado de tudo aquilo que a ética do Novo Testamento se propõe: a santidade, a iustiça, a paz e o amor. Isso, no entanto, significa ao mesmo tempo que as obras da comunidade não são algo perdido (14, 13). No Apocalipse de João a éiica igualmente demarca o estado intermediário da Igreja entre a Páscoa e o fim do mundo. A antinomia entre Criação e poder demoníaco em que a Igreja se vê inserida, não se dissolve numa fórmula teológica. Para ela existe unicamente a resposta da redenção escatológica.

CONCLUSÃO A unidade da ética neotestamentária

São surpreendentemente amplas as envergsduras na ética d o Novo Testamento, de Mateus a Paulo, de Paulo a Tiago e das cartas pastorais até João. Em face de rai vsriedade de formas - muitas das quais ainda nos são desconhecidos por carência de fontes! - é necessária e justifiiada a pergunta pela unidade da ética neotestamentária. Quem aplica meros critérios históricos pode naturalmente contentar-se com simples justaposições e con:raposições de formas, de "confissões" éticas. N65, entretanto, visamos a uma apreciação cristã-teológica quando perguntamos pela unidade da ética do Kovo Testamento que engloba e transpassa multiformidùde e contrastes. Sem dificuldades podemos constatar essa unidade mais ou menos nos seguintes quatro pontos: 1 . no que respeita ao mandamento do amor, que representa sempre, nos sinóticos e em Paulo, em Tiago e João o centro e a norma máxima da ética. Todos os escritos por nós analisados evidenciaram-se como presos a esse mandamento d e Cristo, o "novo" mandamento. Sua concretização nas mais diversas situações históricas, porém, é múltipla e deixa aberto um amplo espaço de opções. Dois traços destacam-se, no entanto, dentre essa multiplicidade ccmo os mais importantes: a) o amor como amor pelos pobres, miseráveis e oprimidos de toda espécie (cf. M t 25, 31 ss; Lc 10, 29ss); b) o amor pelos irmãos na comunidade, vínculo da unidade e da fraternidade (I Jo passim; CI 3, 14; cf. Ef 4, 3. 32). Vimos na verdade que qualquer esqueniatização dos textos é impossível, pois João, por exeinplo, se restringe unilateralmente a exigência do amor f r a t ~mal. 2. O segundo ponto principal em que podemos constatar uma unidade essencial é a relagão crítica, distanciada, diante d o mundo. Sem dúvida há múltiplas variações e diferenças. A compreensão crítica

do mundo pode ser concebida de forma rigorosamente teológica e escatológica, como em Paulo e João, ou pode ter conotação moral, como nas cartas pastorais, na proporção em que elas visam determinados vícios e delitos. Em Paulo verificamos que ambas as posições não se precisam em absoluto excluir mutuamente. Mesmo quando a esperança imediata passa para segundo plano, o mundo não se torna um valor perene ou um cosmos de duração eterna. A relação com o mundo continua crítica. A ética da cidadania cristã e a perçpectiva escatológica delimitam-se mutuamente (cf. H.-D. Wendland, Kirche und Welt im Neuen Testament; veja o índice de literatura). No próprio Tiago a parênese preservou o pano-de-fundo escatológico. Diante dos ricos ela pode assumir a forma de anúncio do Juízo. 3. O terceiro fato, em relação ao qual podemos verificar uma unidade essencial, é que em todos os escritos do Novo Testamento se trata de ética da comunidade para a comunidade, cuja purificação e santificação está em pauta. Essa ética não possui o caráter de uma reflexão sistemática, tal como foi elaborada mais tarde com auxílio de conceitos filosóficos, mas é proclamação ética na forma de instruções e advertências. Mesmo em Paulo ela contiriua sendo teologia querigmática, muito embora ele tenha sido o que mais progrediu na questão da fundamentação teológica, característica em que é igualado apenas pela carta aos Efésios. Os imperativos, contudo, podem ser formulados também quase sem acompanhamento do indicativo, conforme observamos em Tiago. Não obstante, também ele pressupõe a comunidade e se dirige a membros de comunidades. Apenas poucas normas universais transcendem as fronteiras da comunidade, tais como, em primeira instância, o mandamento do amor ou o compromisso geral diatite do domínio politico. 4. Em todos os escritos do Novo Testamento, até mesmo em Tiago, estão entrelaçadas a escatologia e a ética, embora de maneiras muito distintas. A forma escatológico-futura pode aparecer ao lado de cutras - como o demonstra Paulo - as quais partem do acontecimento jalvífico já concretizado. Em João predomina univocamente essa última forma, o "éschaton" presente. Na situação pré-pascoal, é compreensível que a menção do futuro e vindouro reino de Deus ocupe o primeiro plano. Tendo em vista o todo, podemos, portanto, falar de uma ética escatológica e de uma escatologia ética no Novo Testamento. A vinda do reino de Deus fundamenta a ética cristã e constitui a sua "peculiaridade", a qual, como vimos, não deve ser procurada nas exigências materiais isoladas. No que respeita às demais fundamentações teológicas da ética, é muito grande a amplitude das variações das bases teológicas. Vai desde a ausência quase total em Tiago até os embasamentos minucio. sos em Paulo, no autor da carta aos Efésios e em João.

O elemento comum não 6 uma teologia, mas o solo da cornunidade e a f6 em Cristo. Em decorrência disso b imperioso que se faça jiistiça tamb6m As outras formas da teologia e btica neotestamentárias, ao invds de instituir um cânone privado para paulinistas, etc, Teologia, na verdade, pode existir apenas no plural, pois que trabalha com concepções e termos. Tal B também a situação no Novo Testamento. Por isso seria desacertado construir artificialmente uma unidade teo16gica. Não se deve tentar fazê-lo partindo de Paulo, nem tampouco projetá-10 para trás a partir do dogma da Igreia antiga. Muitas teologias - mas um s6 Senhor! Muitas éticas - mas um mandamento do amorl E dessa forma que vale o veredito teolbgico de que unidade e multiformidade não se contradizem. H6 um "cantus firmus" que sustenta e conduz o canto. As coisas se quebram em pedaços somente para aquele que não compartilha a fé no único Senhor da comunidade. Contudo quem tiver essa fé pela graça de Deus, esse poderá falar de sã consciência e com bons motivos de uma unidade da btica do Novo Testamento, cujas linhas basilares tentamos expor. Todavia, para que aquilo que dizíamos sobre a unidade da ética do Novo Testamento não seja decididamente entendido mal, no sentido da idéia de um sistema fechado, retornamos por fim mais uma vez A ética do Sermão do Monte. Todas as demais fórmulas e tradições éticas no Novo Testamento precisam ser medidas nele como sendo a primeira e a Última instância crítica. Ele é e continua sendo a eterna "inquietação" de toda ética cristã, a começar pela ética do Novo Testamento. A exigência radical, absoluta e universal do Sermão do Monte rompe todos os sistemas de moral, tanto no sentido teórico como social e prático da palavra. Ela é a inimiga de qualquer espécie de moralismo e farisaísrro cristãos. Contrapõe-se a toda religião a-ética de origem e natureza mágicas ou místicas. O Sermão do Monte desmascara a insuficiência de toda ética meramente "humana" e de todas as (necessárias) convenções morais e dos tabus éticos da sociedade. O Sermão do Monte preserva aberta a ética do Novo Testamento e transpõe todas as afirmações e tradições isoladas, em direção do "éschaton" do reino de Deus, porque ele próprio, como exigência da nova justiça, como o mandamento do amor ao próximo e ao inimigo, d6 testemunho do reino de Deus iminente e de sua perfeição: o amor, que age como o próprio Deus (Mt 5 , 48), o qual é o amor e misericórdia absolutas e ilimitadas. Por isso partem do Sermão do Monte sempre de novo salutares e discernentes abalos e transformações do "éthos" herdado e historicamente fixado da Igreia.

Introdução. Considerações sobre o conceito de Ética

........

5

Capítulo I: Jesus. A proclamação da aproximação do reinado de Deus como ética escatológica

........................... ..................... A lei de Deus ................................. O mandamento do amor ......................... O sentido do Sermão do Monte .................. Reino de Deus e mundo ......................... A exiquibilidade do mandamento .................

Nota prévia metodológica 1 . Reino de Deus e "meia-volta"

2. 3. 4. 5 6. 7 . O discipulado .................................. 8 Sumário: Ética escatológica ........................

.

.

Capítulo II: A Comunidade Primitiva. Formas e fórmulas novas da ética

........................... 1 . Situação pré e pós-pascal ......................... 2 . A primeira comunidade iudaico-cristã e a lei . . . . . . . . 9 . As primeiras comunidades helenistas . . . . . . . . . . . . . . . Nota prévia metodológica

43

43 48

55

Capítulo III: Paulo. O evento salvífico em Cristo como fundamento e alvo da ética

1

.

A estrutura básica: acontecimento salvífico e btica

....

61

4

. .

A ética de Paulo como ética comunitária

............

77

2 . Lei e liberdade ................................. 68 3 O amor como norma máxima da ética .............. 72

5 . As ordens sociais do mundo .

..

... .. . ... .. a) Comunidade e mundo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . b) A autoridade política . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . C ) O matrimônio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . d) A posicão da mulher . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . C)

Os escravos

.

. . .

................................

83 84 87 91 96 99

6. A validade universal dos mandamentos e sua relação com o Espírito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100 Capítulo IV: Os escritos deuteropaulinos

. ... . . . . . . .. ... . . . .

INDICE DE PASSAGENS BIBLICAS

107

ANTIGO TESTAMENTO

1 . A epístola aos Efésios. O "éthos" na unidade do corpo de Cristo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 108

2. As cartas pastorais. A ética do cristianismo integrado na sociedade

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 114

JEREMIAS

3. A primeira epístola de Pedro. Cristo, o protótipo do amor e do sofrimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120

22, 13

NOVO TESTAMENTO

Capítulo V: P. epístola de Tiogo

A justiça ativa das boas obras . . . . .

. . . . . . . . . . . . . . . . . 125

MATEUS

Capítulo VI: Os escriios joaninos

..

131

. . . . ... . . . . ... . .

139

. . . . .... . ...

147

O amor fraterno como a passagem da morte para a vida Capítulo Vll: As missivas do Apocalipse de João O chamamento a segunda "meia-volta"

Conclusão: A unidade da ética neotestarnentária

7, 1 7, Iss 7, 7ss

7, 1 1 7, 12

7, 13s 7, 16ss

51.

21.

25, 32ss

36.

18. 21.

25, 46

54.

29.

28, l8ss

13.

12. 25. 27. 29. 35. 54. 128. 8, 19ss

MARCOS

38.

10, 5

1 5.

1, 15

1 o, 5ss

46.

1, 165s

37.

1, 17s

38.

10, 7

39.

10, 17ss

46.

1 0 1 1 3 5 48.

1, 21s

15.

1 , 44

15.

10, 24s

38.

1 O, 26ss

46.

2, 14

18.

11, 19

32.

2, 18ss

15.

1 1, 28ss

55. 129.

1 1 , 28-30

16.

12, 33

36.

12, 36

29.

I'1 1

2, 22

15.

2, 27

16.

3, lss

15.

I

LUCAS

I

5, lss

)

I!

6, 20ss 6, 24s

1

6, 27ss

s::

9, 2 9, 57ss

9, 60 !O, 26 10, 29ss

3, 29

136.

10, 3 8 s

4,19

51.

:2, 13s

18, 3

13.

18, 15ss

46.

7, lss

16. 21.

12, 16ss

15.

12,21 13, 1Oss

18, 18

55. 30. 55.

7, 15. 175s

16.

18, 23ss

36.

9, 435s

29. 30.

19, 9 19, 12 19, 16% 20, 1ss 20, 14ss 22, 34ss 22, 35% 22, 39s 23 23, 1s 23, lss

10. lss

1 14, lss 14, 26

14, 26ss 10, 6-8 10, 8

13, lss

5, 32

1

18, 21ss

13, 1s

5, 8

1

7, 13

13, 1

I

i

14, 28-33

ATOS

2, 42ss

40.

48.

8, lss

62. 66. 73. 104

4, 36s

48.

8. 2

71.

48.

8, 4

63. 66. 71. 76. 103. 104. 105.

56.

8, 4ss

136.

14, 33 15

6

10, 17%

15, lss

17, 30s

58.

10, 18

15, 7. 10

18,1.18

98.

10, 22

15, l l s s

21, 9

97.

10, 25

16, 195s

10, 27

18, 13

10, 28ss

23, 14

12, 14ss

23, 15ss

12, 285s

25, 14ss

12, 34

25, 315s

12, 40 13

104. 61. 90. 127.

4, 32

10, 11s

10, 425s

69. 72.

8

5, lss

23, 13ss

7, 12. 14 7, 24

ROMANOS

8, 18 ss. 26

63.

15, 7

76.

15, 30

72.

16, 1 . 3

98.

1 , 18ss

62. 63.

18, 18ss

1, 26

128.

19, 25s

1, 26ss

52.

1, lss 1, 4s 1, 14ss

1, 26-28

100.

1, 31

63.

2, 6ss

92.

3, lss

65. 92. 104. 135.

!

3, 21ss 3, 21-23

11, 23ss

4, 8ss

12, 4ss

4, 12

12, 121s

4, 14ss

12, 28,s

4, 17

12, 31

5, lss

13

5. 6 5, 13 5, 13-26

I TESSALONICENSES

13, 4-7

5, 5

13, 5ss

5. 7

13, 6

5, 7s

13, 8-13

5, 10s

6, lss

5

13, lss

5, 3ss

6

4, lss

12-14

4, 8

5, 12

3, 28

12

13, 13 7, 35

92. 93.

7, 393

98.

14, 1

7, 40

45. 93.

14, 26ss

45. 66. 67. 72.

14, 330s

8

75. 76. 95. 1 O1

103. 8-1O 8, lss

I I TESSALONICENSES

14

FILIPENSES

14, 33-35

79.

15, 3ss

70. 73.

15, 12ss

1, 3ss

2, lss

16. 14

2, lss

2, 55s

43. 73.

2, 8-10

4, 5

75.

73.

4, 1. 2 4. 3

4, 17ss

4, 22ss

COLOSSENSES

4, 23 4, 30

3, lss

119.

4, 32

3, 2

117.

5, 2

3.4.12

117.

5, 3-7

4, 3ss

117.

5, 8 5, 8s 7-1O

3, lss

68.

7, lss

3, 13ss

69.

7. 4 7. 5

3, 15ss

69.

3, 27

62. 109.

5, 8-21 5,9

5, 10 5, 14

I

FILEMOM

2, 15s

52.

3, 55s

2, 5

128.

3 7

2, 55s

.:2.

3, 135s

2, 8

130.

3, 21

2, 12

127. 128.

4.

15s

2, 13

127. 130.

4,

7

2, 14ss

126. 127.

5, Iss 5, 8ss

2, 14-26

126.

2, 16s

126.

2, 19

126.

2, 215s

127.

3, 135s. 17ss 126.

1, 6

4, 1-12

129.

1, 6-10

4, 4

129.

1 , 8. 9

4, 6

129.

2, 2

4,11.12

123.130.

2. 3. 4

5, Iss

51. 128.

2, 7s

5, 3

128.

2, 7s;

5, 7. 9

128.

2.8

6, 24ss

128.

2, 9

2, 10 I PEDRO

2, 1 1 2, 12ss

HEBREUS

TIAGO

1, 3.4, 1 1

121. 123.

2, 15

1, 135s

121.

2, 15ss.

1, 16

121.

2, 18ss

1, 17s. 19s

121.

3, 6 3, 9

1, 20

124.

1, 22s

121.

3, 1 1

1, 23

122.

3, 145s

2, 1s

121.

3, 16

2, 13ss

57. 81. 119. 122. 123.

3, 23 4. 2

2, 155s. 16 8ss. 195s. !lss. 24

122.

4 , 10

3, Iss

122.

4, 19

3, 3s

123.

4, 20

3, 4ss

122.

5, 3

4, 95s

APOCALIPSE

I

1

ESCRITOS EXTRACAN~NICOS

Na Teologia contemporânea, uma nica do Novo Testamento na forma do presente livro

é algo de novo

-e

de oportuno. Pois a abor-

dagem deste tema acerta com uma situação muito receptiva, já

que reina incerteza em

questões de btica e moral, e muitos anseiam por respostas orientadoras para sua realização humana, nestes tempos de pluralismo e relatividade. a

Na parte introdutória o autor define

metodologia que

caráter

peculiar

haverá de respeitar o

das exigências éticas do

I\lovo Testamento. Expõe então o tema B base da pregação de Jesus, da Comunidade Primitiva, de Paulo e das cartas deutero-paulinas, de Tiago e dos escritos joaninos.

Conclui elaborando a

unidade e a vigência permanente

dos

princípios

Novo Testamento.

A EDITORA

dticos

do

e,

eontmpor&m. uma Bica

l&a

Novo Yestunonto na forma i

6 algo

d mul*

do

do

pnrante lino

do novo - e do oporiuno. Pois a &rcom uma s i t u y k

w deste tema &a ng,tiva,

16 que ninr k r t e z a em

q u d W de ótica e moral,

muitos anrdam

por crCS>ortar orientedoras para u a mliuçk

humcrns, noster tempoa & plunlhmo e rolativirkde. Na pwte introdut&@ o eutor defim s mtodõlogia que h r 6 respeitar o car6kr -liar das exighdrr étkas do Novo krtamento.'Éwpk .ritio o ).ma h baw d$ pngl(;io de Jesus, da Çsmunidado PrSmiia, ck Paulo das cartas dwtwo+mlinar,

& Ti-

e $# oscri-

toa f6lrilnol. Conclui slaborcndo a uni-

e a viq8ncia perrnrmn-

te dor principio$ 6ticos do Now T.rt.~nwnk.

A EDITORA

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