Livro Metodologia E Investigac3a7c3b5es No Campo Da Exclusc3a3o Social 02

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ Reitor: José Arimatéia Dantas Lopes Vice-Reitora: Nadir do Nascimento Nogueira Superintendente de Comunicação: Jacqueline Lima Dourado Editor: Ricardo Alaggio Ribeiro EDUFPI Conselho Editorial: Ricardo Alaggio Ribeiro (Presidente) Acácio Salvador Veras e Silva Antonio Fonseca dos Santos Neto Francisca Maria Soares Mendes Solimar Oliveira Lima Teresinha de Jesus Mesquita Queiroz Viriato Campelo Editora da Universidade Federal do Piauí – EDUFPI Campus Universitário Ministro Petrônio Portella CEP: 64049-550 - Bairro Ininga Teresina - PI - Brasil FICHA CATALOGRÁFICA __________________________________________________ P509 Metodologias e Investigações no Campo da Exclusão Social / Organizadores, Elder Cerqueira-Santos e Ludgleydson Fernandes de Araújo. –Teresina: EDUFPI, 2020. 282p. ISBN: 978-65-86171-22-8. 1. Psicologia. 2. Preconceito. 3. Relações Sociais. 4. Exclusão. Cerqueira-Santos, Araújo. CDD155.5 CDU 159.92 Capa: Elder Cerqueira-Santos

Sumário Prefácio - Cícero Roberto Pereira _________________________________5 Apresentação – Elder Cerqueira-Santos & Ludgleydson Fernandes de Araújo _________________________________________________________11 Capítulo 1 – Pesquisar n(as) margens: especificidades da pesquisa em contextos periféricos - Érica Atem Gonçalves de Araújo Costa, James Ferreira Moura Jr. & João Paulo Pereira Barros ______________13 Capítulo 2 – Velhices invisibilizadas: desafios para a pesquisa em Psicologia - Dóris Firmino Rabelo & Nara Maria Forte Diogo Rocha __32 Capítulo 3 – A fotografia e a pesquisa em psicologia do desenvolvimento com pessoas trans - Mariana Valadares de Macedo Santana & Elder Cerqueira-Santos ______________________55 Capítulo 4 – Estereótipos, preconceito e exclusão de mulheres no contexto laboral: construindo estratégias metodológicas para o empoderamento feminino - Airton Pereira do Rêgo Barros & Lígia Carolina Oliveira ________________________________________________75 Capítulo 5 – O uso de priming para evocação e análise das crenças de adolescentes que legitimam a violência psicológica de gênero Ana Alayde Werba Saldanha, Josevânia da Silva, Juliana Rodrigues de Albuquerque & Dóris Firmino Rabelo _________________________100 Capítulo 6 – Envelhecimento, sexualidade e mulheres lésbicas: aspectos metodológicos - Luciana Kelly da Silva Fonseca, Ludgleydson Fernandes de Araújo & Juliana Fernandes-Eloi ______117

Capítulo 7 – Envelhecimento e Qualidade de Vida – Um Estudo com Idosos em Sociabilidades Públicas - Juliana Fernandes-Eloi, Tainara Rodrigues Nunes & Marina Duarte Ferreira Dias __________________133 Capítulo 8 – O ciberativismo digital: notas para novas metodologias de pesquisa em psicologia social - Marília Maia Lincoln Barreira, Pollyana de Lucena Moreira & Luciana Maria Maia ______________158 Capítulo 9 – Representação social do emprego doméstico: um estudo sobre as condições de saúde e segurança no contexto de atuação das empregadas domésticas - Luisa Regina da Silva Teixeira & Raquel Pereira Belo ___________________________________________________178 Capítulo 10 – A (in)visibilidade dos campos de sexualidade e do gênero na educação infantil: análise de grupo focal com educadoras - Thaís Blankenheim, Natacha Führ Ramos, Adolfo Pizzinato & Angelo Brandelli Costa ______________________________189 Capítulo 11 – Contexto escolar e docência trans em Rondônia: desafios e perspectivas - Kary Jean Falcão, Angelo Brandelli Costa & Marlene Neves Strey ___________________________________________209 Capítulo 12 – Violência na Escola: Pensando a partir da inserção ecológica - Maria de Fátima Brito Fontenele Rocha & Elder CerqueiraSantos ________________________________________________________243

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Prefácio Cícero Roberto Pereira Universidade Federal da Paraíba Os diversos sentidos que a palavra “exclusão” pode assumir convergem para a onipresença da categorização na vida social. O processo de categorização é um fenômeno discutido desde longa data no pensamento filosófico ocidental e muito estudado na Psicologia. O ato de categorizar nos ajuda a classificar, nomear e ordenar as informações que recebemos do ambiente e, por essa razão, é necessário para podermos agir operacionalmente nesse ambiente. É a categorização que dá identidade a um objeto porque especifica o que ele é (i.e., a categoria a qual pertence), distinguindo-o daquilo que não é (i.e., as categorias às quais não pertence). A exclusão pode ser entendida como o resultado prático desse processo de categorização. De fato, a exclusão é uma ação, ou melhor dizendo, um conjunto de ações que literalmente significam “deixar de fora”, “colocar à parte”, “não incluir”, “não admitir”. A interpretação dessas definições revela-nos a natureza da alteridade e permite-nos dizer que excluir é, sobretudo, o ato de negar a pertença de um objeto numa classe de objetos. Assim, a exclusão é, sobretudo, o ato de não contemplar um objeto específico numa determinada categoria de objetos que compartilham alguma característica essencial, a qual não está presente no objeto ao qual se nega a inclusão na categoria. Um dos principais critérios que usamos para incluir um objeto numa determinada categoria é uma inferência que fazemos sobre a essência que define a natureza desse objeto. É a percepção que temos de que ele compartilha uma “essência comum” com os outros objetos que formam a categoria a qual pertence. Esse pensamento especialista envolve a distinção entre objetos naturais” e “artificiais”.

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Os objetos naturais são todos aqueles cuja existência não pode ser atribuída à ação humana, pois existiriam na natureza mesmo numa situação hipotética na qual o ser humano não existisse, ainda que as categorias e os rótulos que lhes atribuímos sejam produtos da ação humana. São exemplo típicos desses objetos “naturais” aqueles elementos encontrados na fauna, na flora, nos astros, i.e., tudo que existe e que não é resultado da ação humana. A formação das categorias nas quais são alocados os objetos naturais tem como critério fundamental a percepção de que todos os elementos da categoria têm uma essência fixa e de muito difícil mudança que faz com que sejam como são e que assim permaneçam. Os objetos artificiais, por sua vez, existem porque são o resultado direto da ação humana. As suas características não podem ser essencializantes porque são meros artefatos humanos, i.e., são não naturais”, voláteis e facilmente mutáveis. São exemplos típicos desses objetos os obras arquitetônicas, a literatura, a arte, a ciência, as religiões, as leis e normas de conduta. O mais interessante para a análise psicossocial do problema da exclusão é a presença de um tipo especial de categorias artificiais, mas que as percebemos como se fossem naturais. São as categorias sociais, i.e., aquelas formadas por pessoas. De fato, a compreensão dos processos psicológicos e sociais associados ao problema da exclusão se coloca mais explicitamente quando as informações que recebemos do ambiente envolvem a percepção de pessoas. Isto é, quando os “objetos” a serem categorizados são “sociais”. Passamos do domínio da mera classificação e organização pragmática de objetos, para o universo da percepção que temos de nós mesmos e das outras pessoas. É o domínio da categorização social, conceito-chave para uma compreensão mais aprofundada dos processos psicossociais associados às origens, às causas e às consequências da exclusão social. É a categorização social que nos permite perceber como as

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ações deixar de fora”, colocar à parte”, não incluir” e não admitir” ultrapassam a operação instrumental de mera organização do mundo empírico no qual vivemos. Essas ações são exemplos da operação mais elaborada e engenhosa que nos conduz à construção social da realidade. O resultado obtido no processo de categorização está longe de ser a simples necessidade cognitiva de classificar, nomear e organizar a informação disponível no ambiente social. Implica, sobretudo, a presença de uma intencionalidade sócio-política que se revela na motivação que temos para a hierarquização de pessoas com o interesse de explorá-las e exercermos o domínio sobre elas . Fazemos isso porque atribuímos à pessoa o valor que percebemos ter o grupo social ao qual pertence. Essa dimensão valorativa nos indica que a categorização social é uma ação política por excelência. Ela depende das relações de poder inerentes às interações sociais que se estabelecem intra e inter-categorias sociais. Serve ao propósito de legitimar a ordem social de um modo que nos leva a agir como se a classificação das pessoas em grupos sociais fossem naturais e, portanto, justas, legítimas e necessárias para o bom funcionamento da sociedade. É por essa razão que a exclusão social pode ser entendida como o resultado de um processo dinâmico indissociável da categorização social na medida em que esta estabelece os critérios que usamos para legitimar a valorização de algumas pessoas e a desvalorização de outras. Isto ocorre porque as categorias sociais são artefatos humanos para os quais as alternativas que temos para incluir ou excluir o acesso de uma pessoa às categorias socialmente mais valorizadas obedece uma ordem estabelecida na história das relações de poder e dominação que ocorrem num determinado ambiente social. Sendo as categorias sociais artefatos humanos, a sua formação é muito dinâmica e maleável. Essas propriedades se revelam, por exemplo, nos critérios que usamos para a classificação

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de um indivíduo na categoria “pessoa” (i.e., a que a sociedade considera como a categoria das pessoas dignas de valor, atenção e consideração). Os critérios para a inclusão ou a exclusão nessa categoria são também o resultado de uma categorização social politicamente motivada. Esses critérios adotam categorias sociais previamente definidas na história das relações de poder, de dominação e de manutenção dos privilégios de uns grupos sobre outros. No contexto brasileiro, normalmente o valor social de uma pessoa é definido com base na cor de sua pele (e.g., branco, negro, moreno), da sua ancestralidade (e.g., nativa, norte-americana, europeia, africana), dos sinais exteriores de seus recursos financeiros (e.g., rico ou pobre), do local onde reside (e.g., num bairro mais periférico ou central), dos traços indicadores se sua idade (e.g., jovem ou idoso), do rótulo sexual que lhe atribuíram ao nascer (e.g., homem ou mulher), do seu comportamento e desejo sexual (e.g., homossexual, heterosexual ou bissexual), do seu posicionamento político (e.g., direita, centro ou esquerda). A dinâmica desse processo elucida a natureza política da díade categorizaçãoexclusão social. A sua função é hierarquizar as pessoas atribuindolhes o valor social historicamente construído das categorias às quais pertencem. Isto é, agimos em relação a uma pessoa não a partir da dignidade que toda pessoa tem por ser humana, mas sim com base no valor social derivado da percepção que temos do grupo ao qual julgamos ela pertencer. Essa dimensão político-ideológica dos processos de exclusão social está presente em todo o trajeto percorrido na obra Metodologias e Investigações no Campo da Exclusão Social, organizado por Elder Cerqueira-Santos (professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Sergipe) e Ludgleydson Fernandes de Araújo (professor do Programa de PósGraduação em Psicologia da Universidade Federal do Delta do Parnaíba). O livro coloca em saliência as multifacetadas

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modalidades de exclusão social que vitimizam a maioria da população brasileira. Igualmente importante, o livro presenteia-nos com um estimulante e amplo espectro de estudos que nos mostram como o problema da exclusão social pode ser melhor compreendido sempre que consideramos as diversas modalidades de métodos e técnicas de estudo de questões socialmente críticas. O livro reúne um conjunto de capítulos interligados pela preocupação, compartilhada por todos os seus autores, em responder ao problema da exclusão social com base em estudos teoricamente bem articulados e metodologicamente consistentes. Analisam as diferentes formas de manifestação dessa exclusão dando destaque tanto aos seus fatores explicativos, como buscando contribuir com diretrizes que podem orientar políticas públicas de combate e prevenção contra as suas mais nocivas consequências, como são exemplos a subjugação do outro às categorias infrapessoais, a alteridade radical e a internalização da inferiorização pelas suas mais vulneráveis. Os 12 capítulos formam uma obra única que nos revela, de forma quase translúcida, como um fenômeno socialmente muito complexo e multifacetado necessita ser abordado por múltiplos pontos de vista e abordagens teóricometodológicas diversificadas. Um passeio pelos capítulos nos permite contemplar a colocação de questões socialmente relevantes não apenas para a pesquisa em psicologia no Brasil, mas também para as ciências sociais e da saúde em geral. O livro aborda temas inovadores e em ascensão no cenário nacional, como são exemplo o ciberativismo e a sua importância para as bandeiras de luta dos movimentos sociais na atual era digital, a legitimação das desigualdades sociais, as concepções sobre a sexualidade, o envelhecimento, a violência. Contempla o problema da exclusão social como resultado de diferentes critérios de categorização social, como a área geográfica, o sexo biológico e a identidade de gênero, a orientação e o desejo

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sexual, a idade, o tipo de emprego. As questões levantadas sobre os temas envolvendo esses critérios de exclusão são respondidas por meio de múltiplas abordagens metodológicas, sobretudo qualitativas, das quais se destacam: pesquisa-intervenção; técnicas de associação livre; focus group; grupos de discussão. Como o leitor poderá constatar ao longo de suas leituras, os organizadores foram muito bem sucedidos ao reunirem a contribuição tanto de pesquisadores com experiência consolidada no estudo psicológico dos problemas sociais que afligem a sociedade brasileira, como também jovens investigadores que vêm renovar o interesse das ciências psicológicas e sociais na busca de soluções cientificamente fundamentadas para esses problemas. De uma maneira geral, o conjunto dos capítulos revela ser a exclusão social muito diversificada em suas formas de expressão, complexa em seus fatores antecedentes e dramática nas suas consequências para a vida das pessoas mais vulneráveis e que são colocadas à margem do acesso os meios de inclusão social. Cada capítulo em particular traz uma contribuição valiosa para o debate sobre o problema de pesquisa específico que levanta ao colocar reflexões teóricas aprofundadas e mostrar resultados de estudos empíricos socialmente situados. O livro é, de fato, uma obra de valor teórico e metodológico único no cenário nacional. Tem o potencial para ajudar os leitores a ampliar a sua visão sobre as múltiplas formas de manifestação da exclusão, como também pode contribuir para que adquiram competências metodológicas específicas necessárias para que respondam as questões de pesquisa de seus interesses particulares. Certamente será fonte de inspiração para a abertura de novas linha de pesquisa e de organização de redes de estudos entre os autores e seus colaboradores. João Pessoa, 25 de Abril de 2020

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Apresentação Metodologias e Investigações no Campo da Exclusão Social Elder Cerqueira-Santos Ludgleydson Fernandes de Araújo No momento em que esta obra vem a público estamos vivendo a maior pandemia antes vivida no presente Século com a infecção pelo COVID-19, quando vidas humanas são ceifadas em diversos lugares do mundo. É sabido que tal pandemia não escolhe língua, classe social, inserção regional/internacional ou raça/etnia, de modo que esta deu visibilidade para algo que até então era invisível para alguns grupos sociais privilegiados, o poder nefasto da exclusão e desigualdade social. Inevitavelmente a desigualdade está exposta quando vivenciamos os diferentes níveis de vulnerabilidade ao vírus e sua fatalidade. Esta obra é fruto das ações de pesquisa e inovação científica por parte dos membros do GT Relações Intergrupais: Exclusão Social e Preconceito da ANPEPP, que pertencem a diferentes Programas de Pós-Graduação (Stricto Sensu) em Psicologia de Universidades de três regiões brasileiras. O escopo desta publicação é abordar temas relacionados aos diversos grupos sociais minoritários e suas diferentes formas de exclusão social. Mais especificamente, fazer relatos de investigações e estratégias metodológicas adaptadas aos temas pesquisados. Acreditamos que os capítulos aqui publicados vêm no momento ideal para que possamos, como pesquisadores, dar a visibilidade necessária à algo que possivelmente parte da população brasileira privilegiada somente com a pandemia do COVID-19 foi

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possível refletir. As condições em que pessoas nas periferias e comunidades pobres brasileiras, grupos etários como idosos, as mulheres que são chefes de famílias, LGBTs, as comunidades quilombolas e os povos tradicionais são duramente atingidos não somente pelo recente coronavírus, mas por algo permanente e contínuo nas relações intergrupais que é a exclusão social. No momento em que estamos vivendo algo inédito em termos sanitários e sabedores do relevante papel do conhecimento científico no desenvolvimento de formas de enfrentamento das problemáticas psicossociais advindas da infecção pelo Coronavírus, constatamos cortes nos financiamentos de pesquisas das Ciências Humanas (e a sua exclusão em editais de agências de fomento governamentais); de modo que o poder estatal perde uma excelente oportunidade para demonstrar o seu apreço a Ciência. Como forma de enfrentamos o total descaso com o apoio financeiro para produção de pesquisas e inovação, a presente obra pretende acessar diferentes lugares e pessoas sem nenhum ônus econômico com escopo único de massificar a produção do conhecimento científico psicológico na sociedade brasileira. Para finalizar, como pesquisadores/psicólogas, que enfrentamos dificuldades diversas na nossa labuta cotidiana em nossos grupos de investigação científica, prestamos com esta obra um relevante serviço a sociedade brasileira ao dar visibilidade aos grupos minoritários que sofrem preconceito e discriminação nas relações intergrupais, bem como disponibilizar dados científicos que podem auxiliar gestores públicos e privados na elaboração de políticas públicas que possam contemplar estes grupos populacionais. Aracaju, SE e Parnaíba, PI, Maio de 2020

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Capítulo 1 Pesquisar n(as) Margens: Especificidades da Pesquisa em Contextos Periféricos Érica Atem Gonçalves de Araújo Costa James Ferreira Moura Jr. João Paulo Pereira Barros Neste capítulo, analisamos as especificidades da pesquisa em contextos periféricos, sob inspiração de estudos em campos temáticos que se interseccionam: pobreza, infâncias e juventudes periféricas, violências e resistências. Desse encontro, converge um ethos em pesquisa, marcado por perspectivas participativas, com destaque à cartografia, e que se nutre do diálogo de pensar com as Filosofias da Diferença e os estudos descoloniais. Materializou-se em meio a trocas e parcerias no âmbito de dois programas de pesquisa e extensão universitária, VIESES: Grupo de Pesquisas e Intervenções sobre Violência, Exclusão Social e Subjetivação 1 e Rede de Estudos e Afrontamentos das Pobrezas, Discriminações e Resistências (reaPODERE)2, vinculados, direta ou indiretamente, às atividades do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Atualmente, o VIESES desenvolve 4 projetos de extensão, 3 deles resultaram da pesquisa “Juventude e Violência Urbana: Cartografia de Processos de Subjetivação na Cidade de FortalezaCE”, cujo objetivo tem sido analisar processos de subjetivação

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http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/8729572444025191 http://reapodere.unilab.edu.br/

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constituídos na articulação de práticas sociais relacionadas à problemática da violência urbana envolvendo segmentos infantojuvenis em territórios da cidade com elevados índices de homicídios. Desde 2018, o grupo acolheu, também, o desafio de pesquisar com crianças nesses contextos, resultando na proposição do quarto projeto de extensão, intitulado Maquinarias: infâncias em invenção, cujo objetivo tem sido criar dispositivos de problematização dos territórios das infâncias (modos de ver e dizer as experiências das/com as crianças), a partir da sua agência e modos de participação em contextos periféricos da cidade de Fortaleza. Para efeitos deste texto, optamos por destacar os achados da pesquisa referida anteriormente, uma vez que já consolidados e amadurecidos. O texto divide-se em duas seções, além desta introdução, das considerações finais e questões para reflexão. Como eixo central, procuramos abordar as especificidades das pesquisas em contextos periféricos, a partir de deslocamentos éticos, políticos e epistemológicos no campo da produção do conhecimento, problematizando a definição das periferias e margens como um “não-lugar”. No primeiro tópico, realizamos uma breve genealogia dos modos de produção do conhecimento científico ocidental, explicando de que forma sua ascensão como discurso hegemônico se deu em consonância com a deslegitimação de certos grupos como capazes de produzir conhecimento. Sugerimos ser necessária a compreensão das matrizes de dominação responsáveis pelo apagamento de certos sujeitos - negros, mulheres, pobres, crianças, jovens, homossexuais - retirando-lhes, sistematicamente, a possibilidade de ter suas vozes efetivamente escutadas e seus saberes reconhecidos (prática epistemicida e colonial). Populações que vivem, em sua maioria, em regiões urbanas e /ou rurais marcadas por altos índices de violência, ausência de políticas

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públicas e/ou de acesso aos equipamentos destinados à efetivação dessas políticas, restrição de mobilidade, dentre outros aspectos, onde também, por seu turno, pulsam práticas de resistência, insurgência e produção de formas plurais de vida. Na segunda seção, mostramos como a problematização dessas matrizes de dominação se concretiza no delineamento de cartografias com juventudes em contexto de periferia, deslocando pesquisadores e sujeitos de pesquisa por percursos inventivos e processuais. Buscamos refletir a partir da seguinte questão: como as periferias têm nos convocado a pesquisar e a ressignificar estereótipos que as retratam negativamente? Como dito anteriormente, tais reflexões derivam das movimentações teóricometodológicas da pesquisa “Juventude e Violência Urbana: Cartografia de Processos de Subjetivação na Cidade de FortalezaCE”, realizada pelo VIESES. Nas considerações finais, reafirmamos o caráter ético-estético e político do pesquisar em Psicologia como insígnia de pesquisas participativas e da construção de ferramentas de escuta, constituindo-se como um passo importante para a reescrita das ciências como saberes de composição diversa, territorializada, baseada na justiça social e no compromisso com as diferenças. Apostamos que as pesquisas, na medida em que subvertem uma narrativa colonial, desnaturalizam seu padrão valorativo como um sistema cognitivo-social. O lugar das periferias e das margens na produção de conhecimento O processo de “desenvolvimento” da Ciência, em sua racionalidade hegemônica, posicionou historicamente determinados grupos sociais em margens. Podemos compreender que a produção do conhecimento científico foi criada a partir de bases coloniais. Antes do processo de colonização, o conhecimento

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tinha uma relação orgânica com mundo (Castro-Gomez, 2007). No entanto, com René Descartes, em “Discurso do Método” e “Meditações metafisicas” (2005), o conhecimento somente torna-se válido com o distanciamento do sujeito do conhecimento do objeto a ser conhecido. Dessa maneira, o Ego Cogito, “Penso, logo Existo”, torna-se central na produção de conhecimento. Porém, a partir de uma perspectiva crítica à colonialidade, entendemos que a racionalidade científica baseada no solipsismo e no dualismo ontológico é uma prática epistemicída (Grosfoguel, 2016). A separação mente-corpo está baseada em um processo de apagamento da localização dos indivíduos em seus territórios, priorizando a ideia de superioridade da mente que não está corporificada. Assim, a criação do conhecimento viria a partir de uma perspectiva solipsista como um monólogo interior em que o produtor do conhecimento se indaga e encontra a própria resposta (Grosfoguel, 2016). A mente como vinculada à racionalidade funciona como a ideia de um “olho de Deus” cristão, onisciente e onipresente, que não se situa em nenhum lugar, mas tem o poder da observação, da dominação e do controle do próprio corpo e da natureza (Castro-Gomez, 2007). De acordo com Haraway (1988), sem essas ideias de separação mente-corpo e de solipsismo, não poderia haver a concepção da produção de um conhecimento universal, porque ele é territorializado, corporificado, generificado e racializado. Essa definição do conhecimento científico como universal tem o objetivo de invisibilizar a construção ideológica do conhecimento moderno ocidental advindo de homens brancos com uma tendência eurocêntrica, referenciando uma superioridade epistêmica a determinados territórios e marcadores identitários (Grosfoguel, 2016). Spivak (2010) denota que há marcadores identitários que são reconhecidos de forma ideológica como incapazes de produzir conhecimento, localizados no corpo das mulheres, da população

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negra, dos países do terceiro mundo, dos indivíduos nas periferias, dos jovens e de outros grupos sociais. De forma interseccional, esse processo de subalternização do conhecimento e de desumanização estaria no corpo das mulheres negras periféricas terceiro mundistas (Brah, 2006). A interseccionalidade funciona como esse prisma de compreensão das matrizes de dominação que estão articuladas (Crenshaw, 2002). A origem da desumanização desses marcadores identitários está no processo de construção da centralidade do Ego Cogito na ciência e na sociedade ocidental. De acordo com Quijano (2005), com a colonização e a criação da ideia de América, o mundo passou por uma transformação global com a estruturação cognitiva da sociedade em um mundo moderno colonial com uma base valorativa do homem branco europeu heterossexual. Essa estrutura surgiu a partir da criação da ideia de raça e de racismo que antes da colonização era inexistente de maneira global. Segundo Grosfoguel (2016), para legitimar o genocídio e escravização da população negra do continente africano e indígena das América, foi necessário criar a ideia de superioridade da raça branca europeia, sendo a raça indígena e negra inferiores e subdesenvolvidas que precisavam ser colonizadas. Dessa maneira, para o surgimento do “Penso, logo existo” foi necessário existir o “Conquisto, logo existo”. No entanto, essa conquista somente era possível com o “Extermino, logo existo” que foi a base da colonização com a ideia de que os povos sem religião, como a população negra africana e os indígenas, passaram a ser vistos como povos sem alma que poderiam ser escravizados, catequizados e assassinados (Grosfoguel, 2016). No entanto, essa conquista e extermínio ainda são constituintes das sociedades ocidentais, a partir da colonialidade. Quijano (2005) concebe que há um padrão valorativo de base colonial que configura um sistema cognitivo das sociedades, situando a branquitude, a masculinidade, o Norte, a

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heteronormatividade, a riqueza, o adultismo, como superiores. Já que a Ciência é constituinte da sociedade, de acordo com Spivak (2010), há um processo de deslegitimação do conhecimento produzido por mulheres, população negra, periférica e terceiro mundista. As estruturas das universidades também estão pautadas nesse processo de hierarquização do conhecimento, não reconhecendo saberes que estão nas margens (Castro-Gomez, 2010). Santos (2010) concebe que a Ciência tem uma estrutura sexista, classista e racista, que utilizou a falácia da neutralidade para legitimar desigualdades históricas. Dessa maneira, é necessário fomentar orientações no processo de produção do conhecimento e das investigações baseadas em uma razão de fato cosmopolita, porque, de acordo com Grosfoguel (2016), o conhecimento racional, científico é extremamente provinciano em virtude de estar situado a partir das ideias de alguns homens de países do Norte Global. De acordo com Alcooff (2016), devemos ter um horizonte normativo baseado na justiça social e contra essas premissas coloniais. Dessa maneira, Santos (2011) aponta que a produção do conhecimento deve pautar-se pela sociologia das emergências e das ausências. Estas se referem as invisibilidades presentes nas produções de conhecimento. De acordo com Dantas, Oliveira e Yamamoto (2010), as produções científicas da Psicologia no Brasil têm renegado o contexto de pobreza como central no desenvolvimento de suas investigações. Além disso, as condições de pobreza e de vulnerabilidade também podem ser vistas como um fenômeno emergencial, pois, em territórios terceiro mundistas, como o brasileiro, a estrutura da sociedade é baseada na morte de corpos racializados não vistos como humanos (Mbembe, 2017), no caso os pobres, os negros, as mulheres, homossexuais, pessoas trans. Portanto, são pessoas que não estão presentes de forma central na produção de

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conhecimento, mas que historicamente são discriminadas, violentadas e assassinadas. Dussel (1977) traz a necessidade das produções de conhecimento serem feitas com essas pessoas que estão nas margens. Uma vez conhecendo as condições de emergência para uma subalternização do conhecimento científico ocidental e os silenciamentos produzidos, como pesquisar diferentemente? Não seria a imaginação metodológica um desafio urgente, no sentido de sonharmos outros modos de conhecer, de ser possível um devirperiférico na pesquisa? Pesquisa-inter(in)venção e devires-periféricos: notas de uma cartografia de processos de subjetivação juvenis em contextos marcados por violências e resistências Tematizar violências que atingem juventudes das periferias urbanas se justifica pelo fato de que diversos levantamentos têm apontado a gravidade dessa problemática no contexto brasileiro, mais precisamente sua máxima expressão na forma de homicídios de adolescentes e jovens em situação de pobreza (Fórum Brasileiro de Segurança, 2018; Waiselfisz, 2016). Nos últimos anos, Ceará e Fortaleza passaram a ser o estado e a capital brasileira com os maiores Índices de Homicídio desses segmentos sociais (Borges & Cano, 2017). A pesquisa desenvolvida pelo VIESES tem sido realizada em cinco contextos territoriais da cidade de Fortaleza, situados em diferentes regiões periferizadas da capital, que apresentam as maiores taxas de homicídio. Nesses contextos, temos enfocado a escuta de trajetórias de vida marcadas por diversas expressões da violência, de discursos sobre relações entre juventudes e violência, de sentidos produzidos pelos sujeitos acerca das condições de produção e efeitos da intensificação de homicídios em seus cotidianos, das práticas institucionais que se propõem ao

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enfrentamento e à prevenção da violência, bem como das micropolíticas de resistência juvenis em face das violências. Para tanto, temos lançado mão da conexão de diversos dispositivos metodológicos, tais como: participação em práticas sociais juvenis que pautam a questão da violência contra jovens e seus modos de enfrentamento; acompanhamento de práticas institucionais dirigidas a adolescentes e jovens relacionadas à questão da violência urbana; produção de diário de campo como narrativa implicada sobre os encontros tecidos no processo de pesquisa; análise documental; entrevistas e grupos de discussão, no formato de rodas de conversas ou oficinas. Nesse desenho de pesquisa, interessa-nos o seguinte desafio: como pesquisar violências que atingem juventudes inseridas nas margens urbanas sem reiterar estigmas dos territórios existenciais de juventudes periféricas e das próprias periferias, ambos vistos, majoritariamente, sob o signo da periculosidade e da carência? Temos buscado enfrentar tal desafio a partir da experimentação de um modo de pesquisar que denominamos de pesquisa-inter(in)venção, considerando suas potencialidades para investigações no campo da Psicologia Social. A partir de diálogos com produções do campo da Psicologia Social, tais como Rocha e Aguiar (2003), Passos, Kastrup e Escóssia (2009), Kastrup, Passos e Tedesco (2014), entendemos esse modo de fazer como uma perspectiva de pesquisa participativa voltada à investigação da diversidade qualitativa da vida de grupos e dos processos de subjetivação, no cotidiano de suas práticas sociais e institucionais. Partimos, aqui, do entendimento de que apostar num tipo de pesquisa participativa nas margens deve implicar a produção de uma pesquisa marginal – isto é, feita e inserida nas margens e à margem das formas hegemônicas de pesquisa. Barros, Lima, Bessa Filho, Martins, Benicio e Pinheiro (2017) apontam os seguintes deslocamentos característicos desse modo de

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pesquisar em Psicologia social: interesse pelas formas singulares e concretas dos problemas investigados; enfoque no que temos sido e não apenas no que fomos; preferência por pistas ao invés de um método estático; produção de fissuras em pressupostos no processo de criação de um campo problemático; articulação entre pesquisa e transformações micropolíticas; recusa de especialismos; coletivização das práticas e afirmação de multiplicidades. Seguindo o raciocínio acima, sobre um ethos marginal de pesquisa, denominamos nossa perspectiva de pesquisainter(in)venção3 para realçar, além de seu caráter participativo, uma aposta de que o caminho investigativo seja permeado por atos de criação que reinventem a própria forma-pesquisa, tradicionalmente pensada como um contínuo linear e progressivo de etapas sucessivas e procedimentos de coleta de dados previamente estabelecidos. Realçar a dimensão da invenção tem sido apostar que tanto a política de pesquisa quanto os próprios processos de produção de subjetividades investigados guardam uma potência micropolítica de diferir (Kastrup, 2009). Dessa maneira, a reflexividade é central para se abrirem essas possibilidades inventivas e participativas no fazer pesquisa (Denzin & Lincoln, 2006), tendo o/a pesquisador/a que se descentrar cotidianamente e tentar questionar seu lugar de privilégio na produção de conhecimento e nas condições que circunscrevem o ato de pesquisar. A intervenção imanente às nossas formas de pesquisar não corresponde a uma ação unilateral por parte do(a) pesquisador(a),

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Se é razoável supor que toda pesquisa é também intervenção, na medida que a simples presença do(a) pesquisador(a) interfere no campo pesquisado, afirmar nosso modo de investigar como pesquisainter(in)venção é se lançar ao mergulho no plano das experiências que produzem modos de subjetivação infantojuvenis e seus cotidianos, atentando inclusive para a análise de nossas implicações nesse processo. É também criar ou potencializar dispositivos de análise de coletiva das condições psicossociais que engendram redes e circuitos de violência contra juventudes periferizadas, bem como dispositivos de experimentações coletivas de processos de singularização e modos de (re)existência infantojuvenis em contextos onde suas próprias vidas são aviltadas sistematicamente e essas juventudes são posicionadas como indignas de vida.

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nos contextos e sujeitos pesquisados, mas sim uma intercessão que, como tal, incide nos/nas participantes, no/na pesquisador/a, no problema de pesquisa e no campo-tema estudado ao mesmo tempo, transformando ambos/as. Logo, trata-se de uma ação conjunta e recíproca, uma in(ter)venção ou uma inter-invenção. Por seu turno, consideramos cartográfico esse tipo de investigação à luz do entendimento de que a cartografia pode ser considerada um método de pesquisa-inter (in)venção ad hoc que visa ao acompanhamento de processos de produção de subjetividades, a partir da análise do plano coletivo de forças operantes nesses processos (incluindo a implicação do/a pesquisador/a). Essa perspectiva requer a inscrição do(a) cartógrafo(a) em um território existencial, acompanhada de um exercício de atenção à espreita ao longo do trabalho de campo, trabalho este viabilizado pela criação de dispositivos com função de referência, explicitação e subjetivação por meio dos quais o/a pesquisador/a se movimenta e busca estabelecer relações de confiança e traçar o plano do comum como aspecto imanente à própria cartografia (Kastrup, Passos & Tedesco, 2014; Passos, Kastrup & Escóssia, 2009). Passos, Kastrup e Escóssia (2009) só concebem a cartografia como método porque trabalham com uma reversão do seu sentido tradicional (metá-hódos), que seria a prévia delimitação de regras, passos e metas. Propõem, assim, um hódos-metá, isto é, um método “para ser experimentado e assumido como atitude (Passos, Kastrup & Escóssia, 2009, p. 11)”, e não para ser aplicado de modo tecnicista. Temos experimentado a perspectiva da cartografia em nossa pesquisa-inter(in)venção como uma postura imanente à pesquisa, um conjunto de pistas que ajudam a construir seu caminho, uma política de pesquisar que aposta na processualidade, no seu caráter participativo e inventivo, na problematização do plano das forças que engendram modos de subjetivação e em transformações

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micropolíticas. Isso tem nos levado a considerar segmentos infantojuvenis, profissionais e familiares com quem estivemos e estamos como sujeitos, e não objeto do estudo - portanto, parceiros/as de pesquisa. No limite, buscamos pesquisar com eles/elas, e não sobre eles/elas, a partir de dispositivos metodológicos variados e geralmente definidos a partir dos encontros com o campo, recusando estereotipações e potencializando a insurreição de saberes sujeitados, processo que de/re/trans/conforma o próprio território da pesquisa. Experimentar uma pesquisa-inter(in)venção nas margens tem implicado tentativas de radicalização do caráter participativo da pesquisa. Isto é, não basta participarmos do cotidiano pesquisado, senão que se faz necessário buscarmos estratégias e espaços para que segmentos infantojuvenis também participem de algum modo da tessitura de nossas pesquisas, dentro das condições possibilitadas por cada contexto em que nos inserimos e cada momento da investigação. Ou seja, a inter(in)venção diz respeito à potência da pesquisa de performar mundos e modos de subjetivação, movendo, problematizando, alargando e, quiçá, desfazendo fronteiras, a fim de que seu caráter participativo esteja ligado à sua capacidade de produzir planos comuns entre e com os/as partícipes da pesquisa. A partir do acompanhamento de processos oportunizado por nossa pesquisa-inter(in)venção, em suas distintas frentes e movimentações específicas, temos mapeado o plano coletivo das forças ligadas às transformações e aos acirramentos das dinâmicas da violência armada nas periferias da capital cearense, o que tem nos levado a reflexões sobre as relações entre necropolítica e precarização da vida (Butler, 2015; Mbembe, 2017). Assim, diversos estudos que derivam da pesquisa têm posto em análise a produção psicossocial de juventudes negras, pauperizadas e inseridas nas margens urbanas como corpos matáveis. Temos realçado também que essa condição de matabilidade resulta da interseccionalização

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de questões raciais, de classe, gênero, geração e território que atualizam formas de dominação características de uma colonialidade tardia (Mbembe, 2017). Retornando à questão do início do tópico, como, a partir da pesquisa nas margens, produzir fissuras nas estereotipações que concebem a periferia como sinônimo de violência e infâmia? A pesquisa-inter(in)venção tem permitido rechaçar perspectivas segundo as quais a vulnerabilidade seria uma característica intrínseca e inescapável das populações marginalizadas. Afinal, constitui uma armadilha teórica das mais perigosas desconsiderar a agência política desses segmentos, já que corroboraria, direta ou indiretamente, práticas tutelares (Demetre, 2018). Diversamente, Judith Butler (2015, 2018) nos ajuda a recolocar a questão em termos politicamente mais potentes: em que pese todas e todos sejamos constitutivamente vulneráveis, há uma distribuição desigual dessa vulnerabilização por operações de dominação que maximizam a precarização induzida de certas vidas, cabendo à pesquisa com juventudes a desnaturalização desses processos. Assim, temos tentado visibilizar também as práticas de resistência a essas políticas de inviabilização e vulnerabilização da vida. O processo da pesquisa tem nos levado a problematizar também como essa política de produção de morte e precarização da vida que caracteriza o modo de governamentalização atual tem implicado processos de (des)subjetivação juvenis. Frente ao assombro das dinâmicas desta necropolítica tropical ou necropolítica à brasileira, os diálogos com Pelbart (2019) têm nos feito enfocar ainda mais os movimentos de resistência que desestabilizam hierarquias raciais, de gênero, de geração, dentre outras, criando outras formas de vida. A ascensão de maquinarias necropolíticas e os desejos de aniquilação que lhes são correlatos tratam-se de uma reação a que(m)? Seriam uma reação ao fato de que esses corpos dissidentes dos padrões coloniais-capitalísticos têm

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cada vez mais insistido em aparecer, falar e vivificar suas memórias, a despeito das históricas forças de (in)visibilização, silenciamento e esquecimento que os buscam subalternizar? Usando o exemplo de Marielle Franco e Pelbart (2019) nos mostra como as populações subalternizadas experimentam uma dupla dessubjetivação: uma dessubjetivação necropolítica, de um lado, ligada às formas capitalísticas de sujeição, e, de outro lado, uma dessubjetivação nomádica, um acontecimento derivado de agenciamentos coletivos e polifônicos de vozes minoritárias. A primeira forma de dessubjetivação é negativa, sendo correlata à lógica da guerra, que se caracteriza pela destruição, que pode ser ilustrada pelos alarmantes números de mortes de jovens aparentemente não passíveis de luto, tamanha a naturalização desse fenômeno e a desumanização dessas existências. Já a segunda forma de dessubjetivação é positiva, correlata à criação de “máquinas de guerra”4, conceito esquizoanálitico que remete às potências mutantes, inventivas, intensivas e desterritorializantes capazes de produzir linhas de fuga, por exemplo, aos modelos estabelecidos sobre o que é ser jovem, o que é periferia e o que é “ser (jovem) de periferia”. Sob a inspiração dos estudos foucaultianos sobre as relações entre poder, resistência e modos de subjetivação, tomamos a noção de resistência, nesta pesquisa, como criação e invenção de modos de existência, e não como mera oposição, negação e reação a relações de estabelecidas. Assim como propõem Lacaz, Heckert e Lima (2015), enfocamos tanto experiências engendradas por jovens que contestam práticas sociais (discursivas e não discursivas) que desqualificam os modos de vida nos territórios periféricos, como também buscamos realçar seus movimentos de experimentação de 4

“O conceito de “máquina de guerra” responde à questão da ambiguidade da “linha de fuga” (que consiste menos em fugir de uma situação do que em “fazê-la fugir”, em explorar as pontas de desterritorialização): sua capacidade de se converter em linha de abolição” (Zourabichvili, 2004, p.33).

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outras formas de serem sujeitos. Assim, práticas de resistência são tomadas aqui como sinônimo de (re) existência (Achinte, 2017) e práticas de persistência daqueles e daquelas que "combinam de não morrer" em meio ao recrudescimento de políticas de morte e mortificação. Como ilustração desses processos de dessubjetivação nomâdica, durante o trabalho de campo desenvolvido entre 2015 e 2019, percebemos que, em meio à intensificação da violência letal que atinge sobretudo segmentos adolescentes e jovens de territórios periféricos, diversos coletivos juvenis se constituíam e se articulavam. Cartografar passou a ser cada vez mais acompanhar esses processos de produção subjetiva, mapeando como essas formas de organização constituiam "devires periféricos" (Lacaz, Heckert, & Lima, 2015), Seguindo a linha teórica apresentada por Lacaz, Heckert e Lima (2015), ao pesquisarmos com juventudes inseridas em contextos periferizados, não tomamos a dimensão do periférico de modo a cristalizar centro e periferia, tampouco a reforçar o modo excludente como juventudes ditas periféricas vêm sendo tratada. Ao contrário, ao pensarmos em um devir-periférico ativado por juventudes inseridas em contextos marcados pela intensificação da violência letal, queremos destacar possibilidade de constituição de forças de invenção de modos de existir distintos das formas de vida dominantes que produzem, concomitantemente, centros a serem protegidos e, a partir dessa referência, processos de periferização de certas territorialidades das quais o centro deveria se proteger, a partir de práticas de higienização e segregação socioespacial. Considerações Finais Tendo como objetivo analisar as especificidades da pesquisa em contextos periféricos, fizemo-lo de modo articulado aos processos e achados de pesquisa, destacadamente aqueles referentes à

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cartografia de processos de subjetivação infantojuvenis em contextos periféricos da cidade de Fortaleza/CE. Essa escolha corroborou a potência inspiradora da pesquisa “Juventude e Violência Urbana: Cartografia de Processos de Subjetivação na Cidade de Fortaleza-CE”, para pensarmos o ethos das pesquisas participativas em contextos marcados por estigmas, violências, vulnerabilidades, mas, sobretudo, como dispositivo de fazer ver as resistências e linhas de fuga que entrecortam as maquinarias necropolíticas contemporâneas. Vimos que sua complexidade resultou em híbridas estratégias metodológicas, problematizando a construção da pesquisa como escolha do "melhor" método, ou seja, pela definição de técnicas que se mostrariam adequadas independentemente do encontro com a alteridade, constituída pela própria trajetória da pesquisa. Foi preciso, no entanto, percorrer minimante as condições sócio-históricas e políticas que se ocuparam em desenhar “as" margens por olhares e concepções negativos. Apostamos, do contrário, nas imagens das periferias como uma composição complexa de pertencimentos subjetivos que tencionam categorizações estigmatizadoras, cuja compreensão inclui entendêlo em uma perspectiva global e local. Spivak (2010) indica que a periferia está vinculada a um processo de subalternização que se baseia na deslegitimação da produção de conhecimento das populações infantojuvenil, pobre, negra e das mulheres. Mas isso só nos parece possível quando entendemos os processos pelos quais o próprio desenvolvimento científico localizou (localiza) os participantes das investigações como objetos, intensificando a marginalização de determinados grupos sociais. Pelo uso da grafia n(as) margens, presente no título, problematizamos: a) a substancialização das margens (as margens), da qual resulta sua espacialização como “o” lugar do outro, entendido como perigoso, faltoso, sobre quem se fala com distância

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e sem envolvimento; b) a sua objetificação (estudo das margens), corroborando com a ideia de que as margens existem em si mesmas, naturalmente definidas como à parte do centro, sendo este seu lugar desde sempre. Nas margens, por sua vez, sugere-nos implicação e a necessidade de entender o que nos faz ora distante, ora próximos uns dos outros. A noção de devir-periférico confunde-nos temporalmente e espacialmente, pois desubstancializa as margens e as tomam como forças que atravessam e desestabilizam as fronteiras de poder do capital. Pesquisar nas margens tem significado para nós acompanharmos esses devires-periféricos, que consistem numa espécie de devir-minoritário. No mapeamento desse plano coletivo de forças insurgentes, diversos coletivos juvenis têm se valido sobretudo de dispositivos artísticos, culturais e narrativo-literários, como saraus, bibliotecas comunitárias, produções audiovisuais autorais, batalhas de rap e festas de reggae. Tais dispositivos acionam movimentos de invenção de outros modos de ser jovem, outras narrativas sobre as periferias e relações outras entre juventudes oriundas de territórios em disputa: políticas da amizade, do aparecimento e da aliança (Butler, 2018), em contraposição às políticas da inimizade (Mbembe, 2017), da (in)visibilidade perversa (Sales, 2007) e da performatividade narcísica e individualizante em alta presentes na sociedade e no próprio processo de desenvolvimento da produção de conhecimento científico a partir da colonialidade. Referências Achinte, A. A. (2017). Prácticas creativas de re-existência: más allá del arte... el mundo de lo sensible. Buenos Aires: Del Signo. Alcoff, L. M. (2016). Uma epistemologia para a próxima revolução. Revista Sociedade e Estado, 31(1), 25-49.

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Capítulo 2 Velhices invisibilizadas: desafios para a pesquisa em Psicologia Dóris Firmino Rabelo Nara Maria Forte Diogo Rocha A maturidade de Jerusa guarda um silêncio que nos conecta com o que seremos. E não falo de Jerusa como personagem em si, mas como peça duma narrativa na qual estamos submergidas. Ela é o espelho de Silvia, seu devir. No fim do dia, a saída de Silvia não é resposta nem solução para nada, ela só evidencia os ciclos da vida e lança luz sobre a alteridade e sobre importância da travessia e do processo de mergulhar em si mesma. Não sob o viés ocidental de imersão ensimesmada, narcísica, mas da experiência mística de imersão às profundezas do ser. A questão do filme não é propor certezas, não é discutir se Jerusa tem ou não filhos, netos, mas sim nos fazer pensar os afetos. Discutir a historicidade dos nossos afetos em vários níveis, e apontar para a construção de nossa humanidade que o racismo estrutural tenta apagar, que o racismo diário até abala, mas sejamos francas: o dia de Jerusa assim como o dia de Silvia com Jerusa refletem dignidade. Por mais dialética e circundada por uma história social dolorosa, o casal em situação de rua lá do início do filme nos dá indícios de elaboração acerca da profundidade que nós temos e do quanto a precisamos alimentar diariamente. (O Dia de Jerusa (2014), curta-metragem, produzido por Elcimar Dias Pereira, dirigido por Viviane Ferreira, estrelado por Léa Garcia e Débora Marçal. Mais uma produção da ODUN FORMAÇÃO &

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PRODUÇÃO. http://www.pretaenerd.com.br/2017/04/odiadejerusa.htm)

Fonte:

Abrir este capítulo com um trecho de uma escrita sensível a respeito do curta de Viviane Ferreira, O Dia de Jerusa, produzido em 2014 e exibido em Cannes, significa abrir os olhos para as múltiplas possibilidades do envelhecimento no Brasil. A narrativa do curta, esforço de pessoas negras no cinema para a circulação de imagens que desconstruam estereótipos, apresenta o encontro da idosa Jerusa no dia do seu aniversário de 77 anos, com Silvia, que deseja apenas realizar uma pesquisa rápida de opinião e ir embora. A partir daí, no entrelaçar de uma história singular, desenha-se também uma paisagem afetiva que nos faz refletir como estamos construindo as possibilidades de desenvolvimento no envelhecimento, para quem são essas possibilidades e qual o papel da produção de conhecimento em psicologia nesta direção. Quando imaginamos o envelhecimento, o casal de idosos heterossexual, cisgênero, branco, aposentado, em sintonia com a tecnologia e em condições de saúde para aproveitar a vida de forma produtiva e prazerosa encarna um ideal reproduzido na publicidade de produtos e serviços e até nas políticas públicas. A realidade da menor expectativa de vida de negros(as) no país (Chehuen Neto et al., 2015), da baixíssima expectativa de vida das pessoas trans e travestis (Bortoni, 2018), bem como o acesso desigual a direitos, como saúde e educação (Chehuen Neto et al., 2015), desenham possibilidades de envelhecimento que são construídas e vivenciadas de modo muito díspar na população brasileira. Embora a Psicologia do Desenvolvimento tenha que, ao estudar sujeitos em relação à dimensão temporal, contextualizá-los, seus conceitos centrais parecem permanecer intocados por uma discussão mais crítica (Broughton, 2013; Lopez, Coutinho, & Domecq, 2017). Noções como desenvolvimento, progresso, mudança,

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evolução remontam às origens darwnianas e racionalistas que são o berço do sujeito do Ilunimismo como aponta Hall (2006) e também aliadas do racismo científico que sustentou o empreendimento colonial europeu e lançou as bases do seu capitalismo (Quijano, 2010). As transformações da contemporaneidade, que fraturam a concepção de sujeito uno e indivisível, apresentando-o como um coro de vozes dissonantes também impactam na Psicologia do Desenvolvimento. Produções teóricas diversas tentam recuperar o papel da cultura, da linguagem, das bases sociais e históricas dos sistemas estruturais de opressão na constituição e na transformação dos processos de desenvolvimento. A produção de uma Psicologia do Desenvolvimento mais crítica e contextualizada é ainda um desafio. As promessas feitas pelas teorias do life-span, aportes vygostkianos, interacionismo, bioecologia do desenvolvimento criam uma nova tradição, mas que, quando pouca e/ou mal aplicada, não consegue deslocar os valores desenvolvimentistas e individualistas tão criticados na área (Broughton, 2013). Mesmo que o estudo do envelhecimento tenha representado uma reviravolta para a psicologia do desenvolvimento, forçando suas fronteiras para além do adultocentrismo, uma reprodução acrítica da construção de velhices a partir de estilos de vida ativos e saudáveis leva ao fortalecimento do fenômeno de reprivatização da velhice (Debert, 1999). Um esforço para retomar as bases feministas do pensamento que revitaliza o questionamento da fixidez dos papéis de gênero e da valorização da autonomia e da independência como ápices desenvolvimentais, torna mais permeável o imaginário supracitado e a inclusão das velhices outras nos roteiros de pesquisa. Neste capítulo vamos revisitar o ideário hegemônico a respeito do envelhecimento, indagando quem é que são esses sujeitos idosos construídos como pressupostos aos processos de envelhecimento universais, para, então apresentar possibilidades de

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envelhecimento que se encontram invisibilizadas: as velhices pretas e indígenas, da zona rural e da periferia dos centros urbanos, as institucionalizadas, as heterodissidentes, as idosas que continuam trabalhando e sustentando suas famílias. Por que são essas as velhices invisibilizadas? De que modo a produção de conhecimento colabora para a discussão das desigualdades e diferenças no viver o envelhecer? Como é possível empreender a produção de um conhecimento contextualizado, implicado e por isso relevante para o pensar o envelhecimento no Brasil de tantas desigualdades? Primeiro, faremos uma discussão sobre o(s) modelo(s) hegemônico(s) de velhice e suas implicações para a pesquisa em Psicologia, depois iremos refletir sobre quem são os(as) idosos(as) invisíveis e por fim, apresentaremos um olhar interseccional na construção das pesquisas com idosos(as) como uma possibilidade de transpor o regime normativo e incluir a heterogeneidade da velhice brasileira. Modelo(s) hegemônico(s) de velhice e a pesquisa em Psicologia Em Psicologia, o padrão utilizado como norma de referência para o desenvolvimento normal e o funcionamento da família sadia é aquele branco, patriarcal, de classe média e cisheteronormativo (McGoldrick & Ashton, 2016). Esse modelo também tem relação com o ideário individualista e de um modelo específico de subjetividade, amplamente difundido na formação e na identidade profissional do Psicólogo brasileiro, como já discutido por Dimenstein (2000). O debate sobre os riscos e vieses desse modelo não é novo, no entanto, ele ainda é dominante e fundamenta não apenas as definições de normalidade, mas o que conceituamos de problema, o que formulamos enquanto intervenção e guia todo o itinerário de pesquisa. Por exemplo, Schucman (2014) problematiza que, no Brasil, quase não perguntamos quem é o branco e os pesquisadores e

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profissionais têm dificuldade de considerá-lo como sujeito racializado, colocando a branquitude como identidade racial normativa. Tavares (2019) ressalta que raça/cor, classe e gênero não são “recorte”, pois o sujeito real é complexo e precisa ser considerado em sua integralidade. Não considerar essas dimensões é priorizar apenas uma parte da sua experiência e fragmentá-lo, distanciando-o da realidade social em que vive. Também é preciso questionar se é necessário sempre fazer comparações, consolidando a concepção Normal x Outro, no qual o grupo subalterno é apresentado a partir de suas vulnerabilidades. Quando se trata da população idosa e da velhice, ainda é preciso considerar que esse modelo hegemônico é ageísta, pois pressupõe que envelhecer bem é não envelhecer, é aparentar não ter a idade que tem, é manter o “espírito jovem”, é não sentir-se velho e de que existiria um jeito bom e certo de envelhecer. Segundo Santos e Lago (2016) esse discurso enuncia verdades sobre a velhice e o corpo e tem as palavras “saudável”, “produtivo”, “ativo” como chave. Para os autores, a própria idade comporta práticas discursivas que têm se constituído como um dispositivo de organização, controle, homogeneização, regulação e normatização que têm efeitos na constituição dos sujeitos, ditando os modos legítimos de existir. O corpo velho é visibilizado como um problema e que exige autoconhecimento, autocontrole, autovigília. Na verdade, a concepção vigente da velhice como um problema atravessa a família, o setor da saúde e o Estado. Siqueira, Botelho e Coelho (2002) fizeram uma análise de diferentes perspectivas sobre o envelhecimento, sendo importante destacar duas. A perspectiva “biológico/comportamentalista” enfatizava o envelhecimento físico e as patologias e os esforços para retardá-los; utilizavam como principal justificativa para o desenvolvimento de pesquisas o envelhecimento populacional e a transição epidemiológica e colocavam o envelhecimento como um

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problema social, especialmente em função da grande e dispendiosa demanda por serviços de saúde. A perspectiva “economicista” centrava suas análises na ruptura com o mercado de trabalho, mais especificamente o advento social da aposentadoria, no qual eram discutidos o descaso político e o mau gerenciamento do sistema previdenciário, e verificava-se uma generalização de uma identidade definida pela inatividade e a necessidade de gerir e planejar essa transição. Essas duas perspectivas pautam discussões fundamentais no campo das políticas públicas de saúde e de direitos do(a) idoso(a). Raramente, encontramos trabalhos científicos que não iniciam seu texto com o envelhecimento populacional ou com a transição epidemiológica, como se essas fossem as únicas ou a maior justificativa para estudar os(as) velhos(as). É incomum, ainda, iniciar por uma contextualização do envelhecimento, através do seu território, especificando dados sociodemográficos ou epidemiológicos inserida numa realidade histórica, política, social e ambiental no qual envelhecem os grupos sociais brasileiros. Os discursos unitaristas e universais estão pautados por uma racionalidade que pretende tutelar e massificar a população velha, dando um sentido positivo ao envelhecimento, mas ao mesmo tempo, desinvestidos de potência política, docilizados e infantilizados (Santos & Lago, 2016). Não há uma preocupação com as multiplicidades de se experienciar a velhice, mas uma dicotomia nas possibilidades de envelhecer: ora se destaca aquele velho pobre, abandonado, solitário, doente e dependente; ora aquele “bemsucedido” voltado a um mercado de consumo para a “melhor idade”. O quanto as pesquisas no campo da Psicologia ainda estão vinculadas a pressupostos rígidos e fixos sobre a velhice? Os(as) idosos(as) são vistos como coletivos demográficos, desarticulados de sexo/gênero, classes sociais, raças/etnias, gerações e territórios, que

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representam a dinamicidade desse grupo, diferentes localizações sociais e, inclusive, interesses conflitantes? Sem pretensão de responder essas questões ou de fazer uma análise sistemática da literatura, fizemos uma busca na base de dados scielo.org de todas as publicações até julho de 2019 utilizando os descritores “idosos ou velhice”. A busca retornou, considerandose, exclusivamente, a área temática Psicologia, 483 artigos (o que correspondeu a 6,4% das produções no geral). Quando se avaliou apenas os mais recentes (2018/2019), observou-se que a maioria (54,9%) tratou dos aspectos da cognição, desde a avaliação de patologias específicas, a testes neuropsicológicos e associações do perfil cognitivo de idosos com variáveis sociodemográficas (renda e escolaridade). O segundo tema mais estudado foi o cuidador familiar (12,7%), seguido de pesquisas com foco nos transtornos afetivos, enfrentamento de doenças, violência, solidão e suicídio (12,7%). Os outros temas envolveram avaliação psicológica, intervenção psicológica positiva, pessoa-ambiente, bem-estar subjetivo, envelhecimento bem-sucedido, adaptação à aposentadoria, imagem corporal, espiritualidade e qualidade de vida, saúde mental e atividade física e representações sociais de outros grupos etários sobre a velhice (um sobre o cuidado, um sobre o idoso LGBT e outro sobre a sexualidade de idosos). A partir dessa breve e superficial análise, já foi possível refletir sobre alguns pontos. Em primeiro lugar, a velhice não é um tema privilegiado pela Psicologia. Quando abordado, o faz, preferencialmente, pelas perdas e patologias do envelhecimento. Envelhecer bem se relacionou fundamentalmente com a funcionalidade biológica e a produtividade. Observa-se que a seleção da amostra e a discussão dos dados falam “dos idosos” como uma categoria abstrata, no qual indicadores sociodemográficos, quando aparecem, são meros “recortes” de análise. A desigualdade social ou as “vulnerabilidades” são

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pautadas, exclusivamente, a partir de dados socioeconômicos. Dessa forma, o campo da Psicologia acaba legitimando e naturalizando as desigualdades sociais e colaborando para a invisibilização dos(as) idosos(as) que não estão inclusos no modelo hegemônico de referência. Ainda existe uma outra questão importante: quem fala pelos(as) idosos(as) nas pesquisas? Quem descreve a experiência do envelhecimento e o que é bom para a própria velhice e quem informa sobre como os modos de viver foram se configurando? São os familiares, os profissionais de saúde, os pesquisadores ou o próprio idoso? Qual o lugar garantido ao idoso na pesquisa (mero respondedor de perguntas ou um mero “objeto”)? Idosos invisíveis: de quem estamos falando? Até aqui, discutimos como representações preestabelecidas do(a) idoso(a) e da velhice, como objetos de estudo, subsidiam uma determinada maneira de apreendê-los, defini-los e concebê-los. A invisibilidade dos(as) velhos(as) não está presente somente no menor interesse de pesquisadores nessa população em relação a outras categorias etárias, mas no menor interesse pelas trajetórias de envelhecimento desviantes do modelo hegemônico e também na dificuldade de realmente levar a cabo nas pesquisas o pressuposto de que a velhice é uma realidade heterogênea. Mesmo nas pesquisas com pautas identitárias raramente os(as) idosos(as) são inclusos, bem como se pode dizer que o feminismo e os movimentos negro, LGBTQI ou do campo, das florestas e das águas têm uma dívida com os(as) velhos(as). As velhices pretas e indígenas, da zona rural e das periferias dos centros urbanos, as institucionalizadas, as heterodissidentes, as idosas, que continuam trabalhando e sustentando suas famílias, falam dos cursos de vida marcados pela história do Brasil, enquanto há um país construído sob a égide do escravismo, do colonialismo e

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do capitalismo. Expõem as diferentes possibilidades de desenvolvimento e envelhecimento, invisibilizadas nos modelos abstratos de velhice. O processo social, histórico e político das lutas sociais na democratização da terra imprime dinâmicas específicas nos modos de envelhecer no campo no qual a concentração fundiária, o agronegócio, a exploração do trabalhador, a marginalização das políticas sociais, reproduzem e cronificam as desigualdades sociais (CFP, 2013). O campo, a floresta e as água incluem os povos indígenas, dos quais a realidade do seu envelhecimento ainda é invisível. Embora o sistema Único de Assistência Social hoje atenda quase 150 mil famílias indígenas, pouco sabemos sobre sua diversidade étnica e linguística bem como pouco refletimos sobre o atendimento e acompanhamento culturalmente adequado aos povos indígenas (Brasil, 2017). Ribeiro, Ferretti e de Sá (2010) encontraram em Palmas (PR) que idosos(as) da zona urbana apresentam a percepção de uma melhor qualidade de vida que os da zona rural. Estudo realizado com idosos(as) de um município da zona rural de Minas Gerais (Tavares et al., 2017) mostrou que maior faixa etária, viuvez e menor grau de instrução estavam associadas a piores resultados de cálculo e atenção, memória de evocação e capacidade construtiva visual. Ferraz, Alves e Ferreti (2017) discutem a vulnerabilidade do(a) idoso(a) na zona rural frente às condições de trabalho, sobretudo os(as) agricultores(as). Os(as) idosos(as) participantes, de uma cidade do interior de Santa Catarina estavam expostos a riscos laborais e vulneráveis a agravos na saúde. Tratava-se, sobretudo, de pessoas acima de 70 anos responsáveis por todas atividades laborais de suas propriedades. Rosa e Areosa (2019) encontram que na zona rural de Santa Cruz do Sul os(as) idosos(as), apesar da aposentadoria, encontram-se sem condições de suprir necessidades de alimentação e saúde. A incidência de transtornos mentais comuns também foi

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mais prevalente entre idosas acima de 50 anos com baixa renda e escolaridade em cidades rurais na Paraíba. A violência doméstica é um preditor do aparecimento desses transtornos (Furtado, Saldanha, Moleiro, & Silva, 2019). A ênfase e o maior investimento em programas de ocupação do tempo livre para a terceira idade que proliferaram nas últimas décadas não levam em conta que grande parte dos(as) idosos(as) brasileiros(as) não estão ociosos(as). Pelo contrário, estão sobrecarregados(as), em especial as mulheres, acumulando as funções de provedoras e cuidadoras (Rabelo & Neri, 2015). Essa situação coloca em evidência contextos relacionados às crises financeiras, desemprego dos descendentes e arranjos de sobrevivência que impõem às idosas uma posição social de múltiplas exigências e responsabilidades e de negligência de suas próprias necessidades. As velhices institucionalizadas, tanto nas chamadas instituições de longa permanência para idosos quanto a reclusão no sistema penitenciário, dizem da vivência de um envelhecimento submetido a regras e condutas de uma instituição total. Antes disso, falam de trajetórias de envelhecimento amplamente heterogêneas, que incluem desde uma possível escolha individual à imposições sociais construídas ao longo da vida permeadas pela violência, ruptura com vínculos familiares, marginalização, dificuldades socioeconômicas e a ausência de políticas de assistência formal a idosos(as) dependentes, com patologias neurodegenerativas ou com sofrimento psíquico (Abreu, Fernandes-Eloi, & Sousa, 2017; Oliveira, Costa, & Medeiros, 2013). No nordeste brasileiro, as periferias e as diversas ruralidades, essa é uma realidade principalmente negra. A historiografia oficial, que apresenta indígenas como refratários à escravização e africanos como adaptáveis a essa realidade, estava de acordo com os pressupostos do racismo científico e com um projeto de país que

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visava à brancura europeia (Carone & Bento, 2017) como passaporte para a ascensão social. A sistemática implementação de políticas de favorecimento da população branca no Brasil aconteceu ao mesmo tempo em que as práticas de criminalização e opressão da população negra eram fortalecidas (Boarini & Yamamoto, 2004). O empobrecimento sistemático dos(as) - então - libertos(as), gerou uma situação na qual a classe social emerge como uma máscara que encobre o racismo brasileiro. O norte do movimento negro foi o acesso a uma educação pública, gratuita e de qualidade para todos. Quando uma situação de mínima mobilidade social começou a se efetivar por esta via, através das cotas para universidades públicas e do reconhecimento dos direitos trabalhistas para empregadas domésticas observamos o forte recrudescimento de um pensamento conservador que deseja reinstalar as condições de funcionamento do carcomido par casa grande-senzala. Contemporaneamente a virulência do racismo brasileiro se desvela, cotidianamente, em suas dimensões intrapsíquicas, interpessoais e institucionais, bem como em suas alianças às opressões de gênero e etárias. Os efeitos psicossociais do racismo têm cada vez mais se tornado uma preocupação para a psicologia (CREPOP, 2017). Rabelo, Silva, Rocha, Gomes e Araújo (2018) discutem as repercussões do racismo no envelhecimento da população negra. Os impactos levantados na literatura consultada vão desde iniquidades em saúde, prejuízo à saúde mental e violência. O envelhecer de uma mulher negra é, em si, uma expressão de sua resistência ao racismo e ao sexismo. Os discursos antienvelhecimento, que remetem a uma obrigação de manter-se jovem por toda a vida; a velhice compreendida como uma responsabilidade individual (Debert, 2012) e o ideário racista de beleza (Klotz, 2016), complexificam a relação das mulheres negras com a velhice. Idosos(as) participam dos mundos familiares, de trabalho e

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comunidade de modo diverso de crianças, jovens e adultos. Esses mundos são estruturados pela opressão, subalternização e violência. A influência da racialização nas escolhas afetivas (Moutinho, 2004; Pacheco, 2013; Pinho, 2004) configura, para mulheres negras, a baixa nupcialidade, a monoparentalidade e a solidão. As tensões da convivência intergeracional e intrafamiliar transbordam, por exemplo, em violência financeira, negligência, violência psicológica (Abath, 2012; Terto, 2017). As mulheres que figuram nos estudos documentais sobre a violência são brancas e escolarizadas, tendo acesso a uma rede de apoio e informação que registra tais ocorrências (Crippa, Rohde, Schwanke, & Feijó, 2016; Garbin, Joaquim, Rovida, & Garbin, 2016). Não é acaso que o espaço periférico das cidades seja constituído, majoritariamente, por uma população negra e empobrecida. Seja pela especulação imobiliária ou pelo êxodo rural no desmonte dos quilombos (Carril, 2006), nesses lugares, as idosas inventam redes de solidariedade e apoio, vivenciam sua religiosidade (Santos, 2016) e enfrentam as marcas, rupturas e lutos advindos da precarização e da fragilidade das políticas públicas de saúde, assistência e segurança. Parte da população negra é remanescente de quilombos de zonas urbanas ou rurais (Haerter, 2010; Sampaio & Pacheco, 2016; Santos, 2012) e enfrenta, ainda, a questão da luta pela terra e reconhecimento de sua identidade. Neves et al. (2018), com idosos(as) quilombolas, indicou índices de bem-estar e qualidade de vida mais desfavoráveis para as mulheres. Emergem também as demandas das populações de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros, juntamente com as discussões relativas ao corpo e a desconstrução das coincidências pressupostas entre biologia, gênero e sexualidade. Parece-nos que, com relação à velhice LGBT, as preocupações dos pesquisadores têm girado em torno da temática da sexualidade. Estudos recentes a respeito das populações LGBT e seu envelhecimento (Araújo & Carlos, 2018;

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Henning, 2017) apontam que a centralidade contemporânea do corpo vigoroso e sexualizado dificulta a aceitação das mudanças trazidas pelo processo de envelhecimento. Isso se agrava para uma população que confronta a heterosexualidade normativa, hegemônica em nossa sociedade, e que por este motivo sofre a falta de visibilidade para suas demandas. De acordo com Araújo e Carlos (2018) essas demandas seriam o isolamento familiar e social e as marcas da violência sofrida por uma geração que enfrentou a criminalização de suas práticas sexuais e o não-reconhecimento de suas parcerias afetivas. A esse quadro se entrelaçariam, de modo singular, os estereótipos relativos ao envelhecimento, dentre eles o tabu da vivência da sexualidade. Isso dificulta a formulação e oferta de serviços sensíveis em termos de políticas públicas. A construção dessas políticas é um campo tenso, como discute Henning (2017) ao discorrer sobre os desafios do que vem a se constituir como uma gerontologia LGBT na literatura de língua inglesa. O que seria mais adequada: a integração desta população aos serviços já existentes ou a criação de serviços específicos? O primeiro caminho iria na direção da capacitação dos profissionais para sua sensibilidade à demanda, o que, dentro da perspectiva da universalidade dos atendimentos, tem demonstrado limitações. O segundo caminho estaria submetendo os usuários a uma publicização de sua identidade de gênero, o que poderia ser um obstáculo. Paralelamente a isso, Henning (2017) aponta ainda os embates entre ênfases nos déficits desenvolvimentais sofridos pela população LGBT ou um direcionamento na construção da perspectiva do envelhecimento LGBT positivo. A discussão que permanece é a respeito das prescrições do que viria a ser um envelhecimento desejável para a população LGBT e de como isso vem se construindo no Brasil. Além disso, observa-se que os estudos sobre a velhice LGBT costumam ignorar as interseccionalidades de

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raça/etnia e território, de maneira que as narrativas acabam dando destaque ao velho urbano, de capitais e branco ou não racializado. A sexualidade é vista, dentro do campo da saúde, como uma problemática também concernente ao exercício da genitalidade até as preocupações com doenças sexualmente transmissíveis (Tarquino, Santos, Coutinho, Cruz, & Brasil, 2015). A incidência da HIV/AIDS nas populações idosas tem se mostrado preocupante. No Nordeste, destacamos estudos sobre a vulnerabilidade ao HIV/AIDS envolvendo agricultoras com renda de até dois salários mínimos, baixa escolaridade e residentes na zona rural de Campina Grande/PB (Pereira, 2015), demonstrando a baixa preocupação em adoecer e o não uso de proteção. Os estudos relatados até aqui e as problematizações apresentadas demonstram que precisamos compreender a produção de conhecimento como parte dos embates políticos, econômicos e sociais que afetam esta mesma produção. Desse modo, é urgente que, como ciência, possamos assumir as condições que moldam as múltiplas realidades de envelhecimento no Brasil. Um olhar interseccional na construção das pesquisas com idosos(as) Consideramos como uma possibilidade de transpor o regime normativo e incluir a heterogeneidade da velhice brasileira, pensar as intersecções do envelhecimento com o gênero, sexualidade, raça/etnia, classe e território. Tendo como berço o feminismo negro norte americano e seus desdobramentos latino-americanos (Akotirene, 2018), é possível compreender as alianças entre os diferentes modos de opressão que marcam, de modo singular, diferentes trajetórias de vida. A interdependência das relações de poder das categorias gênero, sexualidade, raça/etnia e classe na produção de um conhecimento situado é abordada dentro de um quadro teórico integrado que busca apreender a complexidade das identidades e das desigualdades sociais. A interseccionalidade não

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pretende hierarquizar as categorias e postula ir além do simples reconhecimento dos sistemas sociais de opressão. A principal crítica a essa abordagem faz-se quando o raciocínio é feito em termos de categorias (privilegiando uma ou outra, sem historicizá-las e sem levar em conta as dimensões materiais da dominação) e não a partir das relações sociais (Hirata, 2014). “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela” (Davis, 2017). A perspectiva interseccional permite uma análise de fenômenos como o da feminização da velhice, em um quadro que as coloca em situação de vulnerabilidade devido ao não reconhecimento do seu papel na esfera produtiva. Estando as mulheres historicamente ligadas às funções do cuidado intra-familiar, sua tematização a respeito das questões relativas às deficiências, às crianças e aos idosos, bem como ao seu lugar na cadeia de produção capitalista lança luz sobre a situação de uma grande parcela invisibilizada da população brasileira. Ao compreender que essas questões ultrapassam a dimensão identitária e dizem respeito a uma estrutura de hierarquização de poder e privilégio e desigualdade do país, podemos enfrentar mais profundamente suas consequências. Nessa direção, é fundamental, na pesquisa, assumir as características sociodemográficas dos(as) idosos(as) participantes, de forma integral e complexa e incluir a discussão sobre gênero, racismo e desigualdades sociais no Brasil. É preciso abraçar o árduo processo de refletir e questionar os modelos hegemônicos, o que significa, com frequência, questionar nossa própria formação e práticas. Também é necessário repensar os discursos que obstruem esse processo, como por exemplo, os do mito da democracia racial, os de que “somos todos humanos”, os do racismo reverso, os de que a empatia é uma mágica que supera tudo, dentre outros. Tais assertivas não somente deslegimitam as lutas pautadas pelos

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movimentos citados, bem como configuram-se em estratégias de silenciamento. Os desafios a essas produções são imensos, mas foi possível, até aqui, apresentar alguns estudos que colocaram em debate esses(as) idosos(as) invisibilizados. Cabe até o fim desse tópico estar atento e perguntar: essas pesquisas conseguiram se desvencilhar de fato dos modelos hegemônicos porque incluíram populações subalternizadas? Quando são pautadas exclusivamente as vulnerabilidades, com que finalidade isso é feito? Que modelos de envelhecimento, bem-estar ou qualidade de vida utilizaram e quais os pressupostos ou interesses estão envolvidos neles? Buscaram indicar formas que seriam as melhores, ou as mais corretas de envelhecer? Buscaram normatizar os processos de desenvolvimento dessas pessoas utilizando estágios ou transições abstratas e universalistas? Os discursos dão ênfase a um domínio de vida em detrimento de outros? Como foi a análise na dialética da dimensão individual/contexto social e histórico? Foi possível o caminho da interseccionalidade? A produção de um conhecimento em Psicologia do Desenvolvimento, sobretudo na área do envelhecimento, não pode passar ao largo dessas questões. É crucial o debate na pesquisa do quanto estamos contribuindo, de fato, para a transformação da realidade dos(as) idosos(as) e o quanto estamos sendo capazes de responder questões socialmente importantes quando nos posicionamos politicamente no lugar do discurso hegemônico. Considerações Finais Consideramos que não é suficiente justificar a urgência do estudo do envelhecimento a partir de argumentos demográficos, atualmente utilizados para representar a velhice como um problema social. O envelhecer no Brasil tem sido entendido como um “arauto do apocalipse” fiscal, restringindo a discussão a uma demografia

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meramente economicista. Neste capítulo, buscamos discutir o(s) modelo(s) hegemônico(s) de velhice e suas implicações para a pesquisa em Psicologia, os(as) idosos(as) invisibilizados e o olhar interseccional como um caminho. Apresentamos mais perguntas que respostas, pois elas guiam os desafios atuais na pesquisa em Psicologia com idosos(as) brasileiros(as). Apostamos no questionamento dos pressupostos universalizantes e pretensamente neutros que orientam a construção de problematizações no campo do envelhecimento para que o saber acumulado se reflita em tomadas de decisões políticas consequentes para a construção de políticas públicas que favoreçam a população e garantam aqueles em condições mais vulneráveis a assistência necessária. Tais políticas não podem ser construídas sob o manto de uma universalidade que exclui a maioriadas necessidades da população. Para que tenham um impacto mais efetivo, é preciso retomar os processos de participação social.

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Capítulo 3 A Fotografia e a Pesquisa em Psicologia do Desenvolvimento com Pessoas Trans Mariana Valadares de Macedo Santana Elder Cerqueira-Santos Este capítulo tem como objetivo apresentar e refletir sobre a experiência do uso da fotografia na pesquisa qualitativa em Psicologia. Dessa forma, apresenta-se o resumo de uma pesquisa realizada com o público trans sobre as memórias de infância na trajetória das transidentidades. Inicialmente, faz-se necessário um breve resumo sobre gênero e desenvolvimento humano. Em seguida, são consideradas algumas reflexões sobre a fotografia e a pesquisa. Finalmente, é apresentada uma experiência de aplicação metodológica. Gênero e Desenvolvimento Das telenovelas da TV aberta às discussões acadêmicas, as questões de gênero estão em voga nos mais variados espaços. Discutem-se os significados sobre as identidades sociais e assim, ainda que restritos, multiplicam-se os espaços de fala das pessoas com experiência de gênero dissidente. Isso quer dizer, especialmente, sobre aquelas que transgridem as normas de gênero pretensamente naturais e reivindicam sua autodeterminação. Desse modo, cotidianamente, as pessoas trans são interrogadas sobre aspectos de suas vidas. Postas em uma posição de explicação, geralmente se veem diante de um outro que questiona: o que significa ser trans? Em que momento você se reconheceu trans? Perguntas permeadas pelo imaginário do que

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representaria uma transição social de gênero. Por consequência, os relatos pessoais ganham destaque e através de suas vozes as pessoas trans procuram dar visibilidade às questões de gênero para além da experiência cis. Logo, essas narrativas comumente são atravessadas por discursos sobre a transgeneridade e sobre resistência política na luta pela autonomia do corpo. Nessas histórias de vida, frequentemente repetidas, são comuns retornos à infância em busca de um sentido para suas experiências. De antemão, evocar essas memórias é um movimento esperado para falar sobre si, entretanto, para quem vivencia uma transição social de gênero, esse retorno pode ter significados particulares. Isso porque denota evocar uma imagem da qual buscou se diferenciar, uma imagem de alguém que respondia a outro nome e que vivia sob outros signos culturais. Não são incomuns expressões a este eu do passado como “o falecido” ou “a falecida”. Metáforas como o nascimento e a morte são muitas vezes utilizadas para referir-se ao processo de transição. Como registro desse passado, os álbuns de família guardam esta efígie cristalizada. Atribui-se à fotografia essa capacidade de tornar presente o que estava ausente. Ela se presta como uma servidora da memória, trazendo à tona afetos e acontecimentos outrora esquecidos. Assim, estar diante dessas imagens é cruzar com um pedaço de sua história que, de alguma maneira, deve integrarse ao presente e proporcionar um sentido que abra possibilidades para um futuro. Contudo, uma vez capturadas pelas lentes da câmera, aquelas crianças não tinham autonomia sobre as imagens que representariam suas infâncias. Graças à polissemia da fotografia lhe é possível também ser criadora de uma segunda realidade. Através do ato fotográfico, expressam-se sentimentos, impõem-se ideias e criam-se representações para aquilo que deseja. Assim, ela aparece como uma ferramenta interessante para a produção de sentido. No

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caso dos adultos trans, que não tiveram poder sobre a representação fotográfica da sua infância e que, muitas vezes, estabelecem relações complexas com essas imagens, ser-lhes-iam possível autonomia dentro deste processo. Nessa perspectiva, o gênero é compreendido através do seu caráter político e relacional, em que, através dele são determinados os papéis de gênero na sociedade. Jesus (2013) argumenta sobre a utilidade desse conceito na desconstrução dos modelos universais de homem e de mulher, na consequente localização destes como constructos históricos e na abertura para se compreender a identidade de gênero como algo distante do modelo biologicista (Bento, 2006; Scott, 1989). Ou seja, identificar-se como homem, mulher, não binário desvincula-se do órgão genital de nascença. Dessa maneira, consideraram-se dissidências de gênero como as experiências que transgridem a matriz de inteligibilidade, no qual o sexo, o gênero e a orientação sexual relacionam-se por uma causalidade pretensamente natural (Butler, 2003). Com base nas leituras de Tajfel e Turner (1979), Jesus (2013) afirma sobre identidade de gênero: Identidade de gênero, nesse contexto, pode ser entendida como a atitude individual frente aos construtos sociais de gênero, ante aos quais as pessoas se identificam como homens ou mulheres, percebem-se e são percebidas como integrantes de um grupo social determinado pelas concepções correntes sobre gênero, partilham crenças e sentimentos e se comprometem subjetivamente com o grupo com o qual se identificam, tal qual como em qualquer outra identidade social que adotam. (p. 3) Desse modo, estabelecida a relação entre a identidade de gênero e a identidade social, Silva e Cerqueira-Santos (2014)

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argumentam que essa constituição não se dá de maneira rápida, mas é compreendida como um processo contínuo que se dá ao longo da vida, atravessado por questões como corporalidade, autoestima, relações com os grupos de pertença. À vista disso, a identidade social trans seria o modo das pessoas com experiências de gênero dissidentes posicionar-se sócio-politicamente em nome de demandas específicas frente a um outro cisgênero (Bagagli, 2016). Cisgênero seria o nome dado à experiência de identificar-se com o gênero atribuído ao nascimento. A cisgeneridade, assim como cisgeneridade compulsória ou cisnormatividade, seriam os conceitos analíticos utilizado para compreender estruturalmente a experiência cis como estabilizadora das normas de gênero, tal qual a heterossexualidade está para a orientação sexual (Bagagli, 2016; Dumaresq, 2014). Posta dessa maneira, a especificidade da experiência trans se dá, pois, identificar-se como trans, travesti, ou qualquer identidade possível que não cis traz consigo o estigma produzido pela ruptura com as normas de gênero. Essa questão é amplamente discutida como resultante da relação estabelecida entre estas experiências e transtornos mentais, a qual foi validada por um longo período pelos saberes médico, jurídico e psi (Bagagli, 2016; Bento, 2006; Dumaresq, 2016; Silva & Cerqueira-Santos, 2014). Postas neste lugar da “anormalidade”, da “falta de coerência” diante da cisgeneridade, as experiências de gênero dissidentes acabam por ter suas histórias aprisionadas nos referentes patologizantes e psicologizantes que pressupõem verdades sobre suas vidas (Bento & Pelúcio, 2012). “As narrativas são homogeneizadas para serem diagnosticadas. Eis a lógica do diagnóstico “és isso e tão somente isso”, segundo um princípio de não contradição e da imutabilidade do ser” (Bagagli, 2016, p. 98). Assim, há a imposição de uma única trajetória possível, pois só assim seria

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possível se identificar o “verdadeiro transexual” tal como proposto por Harry Benjamin. Em tal trajetória, o retorno à infância não é uma temática muito explorada em pesquisas, mas neste tópico pretende-se apresentar as pesquisas que foram relevantes na construção desta pesquisa e os seus principais resultados. A pesquisa de Kennedy (2010) é uma referência importante para este projeto, assim como para as pesquisas mais atuais no Brasil. Através de um método misto, utilizando dados numéricos e qualitativos empreendidos com base numa pesquisa narrativa, Kennedy analisou as respostas de pessoas trans adultas em um questionário online sobre as suas experiências na infância. Os dados apontaram similaridades entre suas narrativas, os quais sustentaram o principal argumento da autora de que a maioria das crianças são “não-aparentes”, ou seja, não tem sua autoafirmação de gênero reconhecida por um adulto significativo em sua vida e que, por isso, suprimem seus sentimentos por anos. Para Kennedy, o peso de sustentar essa ocultação imprime marcas nos sujeitos que os acompanham até a vida adulta. A autora sublinha frases significativas sobre as primeiras memórias relacionadas a suas identidades de gênero: “Eu costumava sonhar que Deus perceberia que estava errado e que eu acordaria como uma menina” e “Eu costumava ir para a cama e rezar para que eu acordasse com tudo em seu devido lugar”(Kennedy, 2010, p. 26). Os dados sobre a idade de epifania5, os registros dos primeiros pensamentos acerca disso, bem como a supressão de seus sentimentos corroboram-se em pesquisas que utilizam diferentes métodos de abordagem. Na análise feita por Jesus (2013), as primeiras recordações também apresentaram semelhanças com as respostas acima destacadas: “Nesta idade eu acreditava que iria acordar e estar em outro corpo, eu me escondia embaixo da cama 5

Momento em que a pessoa se identifica com um gênero diferente àquele atribuído socialmente. (Jesus, 2013).

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pra brincar de carrinho, que montava com o lego e também foi quando comecei a pedir roupas masculinas” (Jesus, 2013, p. 7). Ainda nesse sentido, Silva e Oliveira (2015) investigaram o que eles chamaram de processo de transexualização na infância. Esse processo “consiste no percurso do autorreconhecimento enquanto transexual e na produção da identidade transexual a partir de experiências pessoais” (p. 485). Em suas entrevistas, notam-se três variáveis importantes neste processo, os quais aparecem com substancial frequência nas narrativas das pesquisas em geral: as brincadeiras e os jogos; as estratégias de disfarces; e o relacionamento familiar e com os amigos. Em suas análises, a brincadeira parece ter um peso simbólico tanto para as crianças quanto para os pais. As crianças muitas vezes criavam estratégias para ter uma certa passabilidade entre o grupo e conseguir brincar com os jogos que desejavam. Escolhiam brincar dentro de casa, por exemplo, e na rua somente brincadeiras consideradas mistas. Os pais que se preocupavam com estes comportamentos, buscaram forçar seus filhos a brincar com o que era considerado um estereótipo para o seu gênero designado. Observam-se as estratégias de disfarces em momentos como usar os sapatos da mãe ou irmã quando ninguém estava em casa, disfarçar o olhar para encarar um garoto bonito e elogiar alguma menina para não ser considerada gay ou, ainda, brincar de bonecas escondida. Vasco (2015) propôs uma abordagem diferente para acessar essas memórias afetivas, ela buscou compreender qual era a relação que os sujeitos mantinham com suas fotografias de criança. Ali, a fotografia, que inicialmente poderia ser entendida somente pelo seu caráter indiciário, ou seja, como uma contestação de uma vida prétransição social, aparece como mecanismo de elaboração do processo de construção das suas identidades de gênero. A fotografia que denuncia o uso da saia na infância do homem adulto, na

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verdade, reverbera na memória como uma brincadeira, de um menino brincando de rodar como um peão. As similaridades encontradas nestes estudos apontam para um jogo de negociações entre a pessoa e o seu meio. Seria, por exemplo, a possibilidade de explorar signos do outro gênero somente quando escondido das outras pessoas. Diante do contexto de violência que muitas vezes se impõe, essas estratégias se apresentam como medidas de sobrevivência. São notórios os casos em que as pessoas são expulsas do lar, da escola, eles encontram dificuldades para inserção no mercado formal de trabalho, para acesso à saúde (Rocha et al., 2009). O preconceito e o estigma atravessam as suas histórias e reivindicam o protagonismo de suas falas. O Uso da Fotografia A fotografia nasce do desejo de apreender em um papel a imagem obtida na câmera escura, de manter o registro daquele momento de tempo e espaço delimitados. A verossimilhança entre o que se vê além das lentes e a imagem obtida é a característica que lhe diferencia de outros instrumentos de representação e, por isso, lhe foi atribuída credibilidade, um peso do real bem singular. Além disso, por conta do seu processo de registro, através de reações químicas e físicas, pressupõe-se neutralidade ao se produzir um retrato da realidade (Dubois, 1998). A questão do realismo produziu diferentes discursos sobre a fotografia, sendo resumidos por Dubois (1998) em três perspectivas. Inicialmente, a fotografia foi compreendida como uma cópia fiel da realidade, uma mimese, uma prova documental irrefutável, sendo utilizado o argumento da neutralidade do processo. Em seguida, insere-se a questão do fotógrafo como um agente transformador do real, pois a imagem era um efeito produzido por um olhar que transmite uma mensagem. E, por fim, a imagem como um traço do real, no qual

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Essa referencialização da fotografia inscreve o meio no campo de uma pragmática irredutível: a imagem foto tornase inseparável de sua experiência referencial, do ato que a funda. Sua realidade primordial nada diz além de uma afirmação de existência. A foto em primeiro lugar índice. Só depois ela pode tornar-se parecida (ícone) e adquirir sentido (símbolo) (Dubois, 1998, p. 52). A fotografia seria para o autor a expressão perfeita de um índice, tal como a fumaça indica fogo, a fotografia mantém, irrefutavelmente, a sua ligação com a realidade, embora os sentidos sobre aquela imagem não estejam estabelecidos à priori. Nos primeiros usos da fotografia em pesquisas na Psicologia, prevaleceu a noção da fotografia a partir do seu caráter mimético. Como um artigo documental irrefutável, ela serviu somente para a coleta de dados concretos e padrões físicos, por exemplo ao ser usada para demonstrar como era o campo de pesquisa (Sanches-Justo & Vasconcelos, 2009). Os primeiros trabalhos relacionavam um ideal estético a certas características da personalidade em busca de um padrão, como por exemplo: a imagem de um estudante e seu desempenho acadêmico ou a imagem de um profissional e determinada habilidade profissional (Neiva-Silvia & Koller, 2002). Contudo, nenhum desses estudos obteve resultados significativos. Com o passar do tempo o papel da fotografia nas pesquisas em Psicologia foi se modificando, sendo as fotografias utilizadas, muitas vezes, como registro de campo ou em substituição de descrições de situações em questionários, sempre se levando em consideração seu caráter de repetição fidedigna da realidade. Nas pesquisas qualitativas, o uso da fotografia torna-se mais complexo. Nesta abordagem, interessa ao pesquisador acesso às

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singularidades, ou seja, acesso ao mundo interno do sujeito através de sentidos e significados que impõem sobre o tema de estudo (Sanches-Justo & Vasconcelos, 2009). A fotografia aparece como um instrumento privilegiado, pois nas entrevistas de foto-elicitação, ou seja, nas entrevistas em que há a presença da fotografia, as respostas obtidas são emocionalmente mais profundas (Croghan, Hunter & Phoenix, 2008). Assim, leva-se em consideração o processo de contemplação de uma imagem, “pois que a imagem, apartada do pensamento, torna-se mero decalque do objeto fotografado” (Sanches-Justo & Vasconcelos, 2009, p. 767). Barthes (1984) elabora sobre esse momento de estar diante de uma fotografia através de dois conceitos: o studium e o punctum. O primeiro diz respeito ao objetivo, ao olhar sobre o que há de cultural e técnico no contexto da imagem, seria “a aplicação a uma coisa, o gosto por alguém, uma espécie de investimento geral, ardoroso, é verdade, mas acuidade particular” (Barthes, 1984, p. 45). O segundo, ao contrário, versa sobre o que há de subjetivo, não é algo que se vai atrás na fotografia, mas algo que pulsa a partir dela para o observador. “O punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere)” (Barthes, 1984, p. 46). Assim é da ordem do pessoal, do intrasferível. Desse modo, um convite para ir ao encontro de imagens que fizeram parte da sua história de vida aparece como um modo interessante de acesso a esse conteúdo que salta das fotografias. Sanches-Justo (2008), ao observar o contato de membros de uma família com as fotografias que guardam sua história, percebeu as nuances de cada interpretação, bem como os diferentes sentidos produzidos a partir de uma mesma imagem. Nesta pesquisa, o contato dos participantes com as próprias lembranças foi um reencontro pessoal como se a fotografia lhes mostrasse um espelho que, ao mostrar o passado, lhes

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permitia perceber o presente, o quanto as coisas mudaram, os filhos que nasceram, os amigos que morreram, as árvores hoje já crescidas e a casa pronta, enfim, algumas experiências que ficaram esquecidas juntos com os álbuns de fotografia. (Sanches-Justo & Vasconcelos, 2009, p. 770) Volpe (2007), que propôs algo semelhante aos seus entrevistados, também destacou essa oportunidade de preencher lacunas da memória ao se reviver o passado. Além disso, observouse a emergência de narrativas que desencadearam ressignificações, pois contemplar uma imagem do passado está atrelado ao ato de contar a sua história. É preciso explicar o contexto, situar aquela imagem dentro da sua trajetória. O que também contribui para que se revisite essa sua história de vida que reside nos outros, o que disseram os que compartilharam com você aquele momento cristalizado na fotografia? Assim, as histórias de vida que emergem de encontros desse tipo se tornam mais complexas, pois as fotografias aparecem como servidoras da memória. Contudo, Sanches-Justo e Vasconcelos (2009) argumentam sobre o uso da fotografia não somente como elemento de contemplação, mas também como o seu processo de produção pode ser utilizado de maneira autônoma pelo sujeito na produção de sentido para sua história. Isso quer dizer mais sobre o que acontece antes do momento exato em que se registra uma imagem, sobre o antes de apertar o botão. Como discutido, a polissemia da fotografia diz respeito também sobre a possibilidade de se transformar o real, a partir da construção do que Kossoy (2007) chama de segunda realidade. As imagens são poderosas ferramentas de comunicação, é sabido que seu consumo transmite ideias, consolida padrões estéticos e produz objetos de desejo e de consumo. “Ao nos ensinar um novo código visual, as fotos modificam e amplificam as nossas idéias sobre o que

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vale a pena olhar e sobre o que temos direito de observar. Constituem uma gramática e, mais importante ainda, uma ética do ver” (Sontag, 2004, p.14). Assim, essas narrativas fotográficas são propostas por quem está atrás das lentes, ou seja, o fotógrafo tira fotos do que ele imagina, ele quem cria as narrativas visuais da realidade a partir da escolha do objeto que é representada considerando determinados ângulo, foco e luz. Desse modo, abrir espaço para que o sujeito de uma pesquisa utilize o ato de fotografar como meio de expressão, é abrir mais um caminho para a visibilidade da sua subjetividade para além da narrativa. Entretanto, esse processo de construção de narrativas não é de todo manifesto, a fotografia possui indícios latentes escondidos, os quais precisam ser desvendados como um mistério implícito. Benjamin (1994) se reporta à ideia de inconsciente óptico, pois quando a fotografia passa da realidade tridimensional para a dimensional, ela revela coisas da realidade que não víamos. Seja o reflexo do fotógrafo no espelho, seja o detalhe da cavalgada de um animal em corrida. Paternostro (2006) também compreende o ato de fotografar como um meio de entrar em contato com aspectos do seu mundo interno que até então eram desconhecidos para o autor. Desse modo, Existe uma diferença fundamental entre trazer fotografias prontas e criar suas próprias. O processo de criação envolve o sujeito em um processo subjetivo de descoberta de si mesmo, de sua identidade e das suas relações com o mundo. Muda-se o narrador da história que outrora era contada por alguém de fora, muitas vezes anônimo ou esquecido, pois ao observarmos uma fotografia nos preocupamos mais em relembrar o fato do que com o autor que capturou tal momento. Por outro lado, quando o autor é o próprio sujeito, a narrativa sobre tais imagens se amplia, surge o antes e o

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depois da fotografia, os motivos que levaram o autor a escolher tal enquadramento, tal cena, o momento exato do clique. (...) O que se materializa na fotografia autoral é o reflexo do autor, seu espelho que ao devolver-lhe seu olhar no momento da rememoração diante da fotografia, faz com que a história contada seja a sua própria versão dos acontecimentos. Isso traz uma maior apropriação do que é narrado, das construções subjetivas que vão sendo provocadas pela pesquisa e, portanto, da veracidade e validade dos dados obtidos. (Sanches-Justo & Vasconcelos, 2009, pp. 771-772) Assim, Volpe (2007) salienta que a fotografia é um modo de significar o mundo e que ela se mostra como um lugar de encontro para a narrativa e a memória. São essas considerações que serviram de base para a construção do segundo Estudo desta pesquisa, se fosse possível para pessoas trans criar narrativas fotografias sobre as suas memórias da infância, quais seriam os sentidos seriam estabelecidos? Relata-se aqui, de forma breve, uma experiência com uso da fotografia na pesquisa em Psicologia. Trata-se de uma pesquisa que possui um caráter exploratório da temática sobre a memória da infância de pessoas trans. Dessa maneira, seu objetivo geral é compreender a relação que essas pessoas mantêm com o seu passado. Objetiva-se conhecer que elementos emergem das narrativas de pessoas trans sobre a história de suas infâncias quando contadas diante de fotografias desta época e de fotografias atuais feitas sob a memória da infância. O estudo Participaram desse estudo três jovens auto-declarados transsexuais: Iolanda, mulher trans, 23 anos; Benjamin, homem trans,

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24 anos; e, Khalil, homem trans, 22 anos. Os critérios de inclusão estabelecidos foi a identificação social trans e ter mais de dezoito anos. Após aceitarem o convite para a pesquisa, marcaram-se os encontros individuais nos horários e nos locais de conveniência para todos. Apresentaram-se a pesquisa, seus objetivos, as etapas e interrogou-se sobre o consentimento da gravação de áudio. Em seguida, o documento de compromisso ético foi assinado e uma cópia permaneceu com o participante. Uma câmera digital foi entregue aos participantes com a instrução de que fizessem doze fotos da infância e adolescência que possam “contar elementos significativos dessa época, sejam bons ou ruins, e suas implicações com a sua vivência de gênero. Podem ser fotos abstratas ou de elementos concretos, o importante é que lhes remetam a essa época. Não é preciso ter pressa, mas peço que não tire todas de uma vez, numa tarde, por exemplo. Pense com cuidado, afinal o número é bastante restrito” (Instrução dada aos participantes). O prazo para que devolvessem as câmeras foi de uma semana, quando a pesquisadora entrou em contato e foi ao seu encontro para buscá-las. Imprimiram-se duas vezes cada fotografia, para que um conjunto ficasse com a pesquisadora e fosse usada na segunda entrevista e um outro conjunto para que ao final do segundo encontro fosse entregue ao seu autor. Esse segundo encontro foi marcado um dia após a entrega das câmeras, para que eles pudessem reverberar sobre a experiência de fotografar e sobre o conteúdo aos quais as imagens fizeram referência. Mais uma vez, com os seus consentimentos, esses encontros foram gravados. Como da primeira vez, esse encontro foi conduzido aos moldes estabelecidos por Croghan, Griffin, Hunter e Phoenix (2008) para a entrevista de foto-elicitação. Em seu artigo, os autores descrevem o método para conduzir uma entrevista que utilize as fotografias feitas pelo sujeito como elementos disparadores de uma fala.

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A análise de dados buscou explorar os sentidos que cada um estabeleceu para suas memórias da infância, e para isso, baseou-se nas formulações de Spink e Medrado (2013) sobre produção de sentido. Foram observadas as relações entre as memórias e o presente, as contradições, as formulações sobre gênero e como todas estas questões resultaram num sentido produzido para as suas próprias histórias. O que emergiu? Construir uma narrativa para si implica relacionar esse passado ao presente, de maneira a abrir possibilidades para um futuro. Na questão trans, isso também diz respeito a romper com discursos que buscam homogenizar suas experiências para colocálas em caixinhas limítrofes. Desse modo, o método, ao aliar a história de vida às fotografias do passado, assim como a narrativa livre sobre o fotografar apareceu como um instrumento potente para se criar possibilidades de se contar histórias, não em busca da “verdadeira” história da infância trans, mas de histórias e sentidos outrora entendidos como desviantes ou inaudíveis, resguardados a uma gaveta esquecida da memória. Na primeira fase, a fotografia serviu à memória. Pediu-se aos participantes que contassem a história de suas vidas e trouxessem fotos da época. Os dois entrevistados que estiveram diante destas imagens, correlacionaram-nas as suas histórias e viram emergir em suas falas afetos e acontecimentos outrora esquecidos. O terceiro participante utilizou a narrativa livre e as imagens mentais que tinha da época para expor seus sentimentos atuais e buscou no passado indícios do presente. Dos conteúdos relembrados, os três citaram, com frequência, os momentos de experimentação de gênero através das brincadeiras. O espaço lúdico se provou privilegiado por permitir, principalmente nas brincadeiras de faz-de-conta, a troca de papéis

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de gênero, inclusive fazendo uso de signos culturais que extrapolavam o que fora determinado para o seu gênero designado. Entretanto, ainda que os significados sociais não estivessem estabelecidos para eles naqueles momentos, fora também neste espaço que perceberam que certas expressões geravam interpelações e, muitas vezes, sanções por outros. Iolanda não entendia porque era chamada de bichinha, nem Benjamin porque só podia brincar com os brinquedos do sobrinho dentro de casa ou Khalil que não entendia porque não podia ser ora menino ora menina. A rigidez das normas de gênero na infância fez com que se destacassem, colocando-os, desde cedo, no lugar da diferença. Neste momento foi importante trazer um elemento concreto do passado, algo que serviu como prova, testemunho, um elo realmente com a infância. A sua presença durante a entrevista proporcionou respostas emocionais profundas, precisamente porque remonta a tempos em que se não fosse por aquela imagem, talvez a pessoa se quer se lembrasse daquele dia. Os retratos de família servem justamente a esse propósito: guardar os eventos especiais aos quais as pessoas passaram e fazer perpetuar as suas histórias. Como um relicário que se revisita de tempos em tempos, as fotos exigem que os mais velhos narrem e expliquem o contexto daquela imagem aos mais novos. Desse modo, na primeira fase evocou-se uma memória que é atravessada pelo testemunho daqueles que lhes descreveram aquela fotografia. Trazer à tona essas lembranças foi interessante para a construção das suas histórias de vida, afinal, olhar para o retrato e contar sobre o mesmo faz parte deste processo ritualístico. Contudo, essas outras vozes que impregnam as memórias dizem pouco sobre o fotografar e podem muito menos representar os sentidos que cada um estabeleceu para sua história. Então, a segunda fase propôs aos participantes que tirassem novas fotos a partir das memórias trazidas no primeiro encontro, das reverberações que aconteceram a partir

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dali. Objetivou-se conhecer que temas lhes seriam importantes e que sentidos seriam expressos em relação a suas memórias de infância. Através do ato de fotografar, buscou-se romper com uma lógica da explicação e assim provocar uma ruptura que favorecesse a produção de sentido. Estabelecido o lugar ativo frente às representações que seriam feitas para sua história a partir dali, revalidaram-se suas autonomias frente à mesma. Isso porque a fotografia demarca os lugares de sujeito e objeto, bem como daquele que contempla a imagem. Assim, cada um utilizou essa ferramenta da maneira que lhe pareceu mais conveniente. Uma das participantes produziu uma sequência de fotos que originou, por fim, um autorretrato no escuro, um pequeno registro simbólico do processo pelo qual passou durante os dois estudos. Ali estão condensados os sentidos estabelecidos para sua história, seus medos que se transformaram e a transformaram. Apesar de ser aquela que mantivera o tempo todo uma relação mais próxima com o seu passado, ainda assim, narrar para outrem as fotografias e fotografar suscitou aspectos esquecidos de sua trajetória e que se mostraram essenciais no sentido que estabeleceu. Outro participante utilizou as fotografias para discriminar os elementos que resgatou da infância como provas de que sempre esteve ali. A sua relação com o passado flutua entre a memória de um período de sofrimento e entre a memória da época em que nasceu. No momento da pesquisa, aproximou-se mais da segunda interpretação. Cada imagem o fez reviver os momentos mais significativos da sua infância e, assim, foi possível oferecer-lhe uma oportunidade para produzir novos sentidos para sua história. Já o terceiro participante registrou o que sente atualmente e o que esteve com ele desde a infância. Buscou imagens que representassem esse elo e que assim pudessem o ajudar a construir o sentido de sua história. Dos três participantes, ele foi quem mais se

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utilizou do recurso simbólico para se expressar. Seja na sua fala, seja nas fotografias, seguiu experimentando os sentidos, assim como faz com o seu corpo através dos hormônios, deixando a câmera o guiar, mas sempre em busca de si, em busca de pistas da sua história. Aos destacarem os elementos que estiveram presentes na produção de sentido para suas histórias, consequentemente os participantes elucidaram sobre o processo de construção da sua identidade social trans. Destacaram-se as elucubrações sobre gênero e seu papel no entendimento de suas trajetórias. De maneira geral, questionaram-se os padrões cisheteronormativos para as experiências, o que resultou em uma compreensão da ideia de identidade de gênero como um processo, algo contínuo e ininterrupto. O corpo se destacou como elemento fundamental neste processo, num espaço entre a relação consigo e o olhar do outro. Na infância, apareceu como meio para as brincadeiras e as primeiras experimentações de gênero através de roupas e percepções sensoriais. Quando na adolescência, ao expor as características secundárias advindas da puberdade e demarcar fisicamente o gênero atribuído ao nascimento, distanciando-se do corpo infantil. As lembranças dessa época estão atreladas aos primeiros entendimentos sociais de terem sido chamados de bichinha ou de menina esquisita. Além disso, o corpo constituiu-se como espaço de experimentações sexuais, ou seja, de uma relação com um outro que enxerga algo ali. E, por fim, durante o processo de transição social, em que se permite ser construído e re-construído. Foi interessante notar que esses elementos não apareceram explicitamente nas imagens, mas sempre através de referências sutis como uma maquiagem, uma roupa de judô ou um gato. O laço entre o passado e o presente que emana nos discursos dos participantes parece estar em modificação constante, assim como as suas ligações com aquelas fotografias. Assim como a

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fotografia é um recorte da realidade, o registro de um sentido só pode ser entendido também como um recorte, já que é fruto de um processo contínuo que se torna possível somente a partir de uma ruptura. Referências Bagagli, B. P. (2016). A diferença trans no gênero para além da patologização. Periódicus, 1(5), 87-100. Barthes, R. (1984). A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Bento, B., & Pelúcio, L. (2012). Despatologização do gênero: a politização das identidades abjetas. Revista Estudos Feministas, 20(2), 569-581. Bento, B. (2006). A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond. Butler, J. (2003). Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira. Croghan, R., Christine, G., Hunter, J., & Phoenix, A. (2008). Young people’s constructions of self: notes on the use and analysis of the photo-elicitation methods. Int. J. Social Research Methodology, 11(4), 345-356. Dubois, P. (1998). O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas, SP: Papirus. Dumaresq, L. (2014). 15 de dezembro. O cisgênero existe. [Blog] Recuperado de: http://transliteracao.com.br/leiladumaresq/2014/12/ocisgenero-existe/. Jesus, J. G. (2013). Crianças trans: memórias e desafios teóricos. In III Seminário Internacional Enlaçando Sexualidades. Salvador, Bahia: Universidade do Estado da Bahia

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Capítulo 4 Estereótipos, Preconceito e Exclusão de Mulheres no Contexto Laboral: Construindo Estratégias Metodológicas para o Empoderamento Feminino Airton Pereira do Rêgo Barros Lígia Carolina Oliveira Historicamente, diversos espaços da vida social foram e ainda são vetados às mulheres, sendo o sexismo e a misoginia, elementos intrínsecos à maioria das culturas. Expressões como: “isso não é coisa de mulher”, ou “isso é coisa para homens” são bastante disseminadas nas conversas e no cotidiano de nossas sociedades. No que se refere à dimensão laboral, esse tipo de divisão do espaço social entre os sexos também é muito fácil de ser observado. Tal separação, que se trata, exclusivamente, de uma construção social, leva as sociedades a atribuírem aos sexos e aos gêneros habilidades e conotações específicas, o que levaria à concepção de que existiriam profissões designadas, especificamente, para homens e outras, especificamente, para mulheres, sendo tal associação pautada majoritariamente nos estereótipos de gênero. O preconceito sofrido por mulheres que desenvolvem atividades de trabalho culturalmente designadas aos homens, assim como a exclusão delas dessas atividades, são uma realidade ainda nos dias atuais. Nesse sentido, o objetivo deste capítulo consiste em propor o uso dos Grupos de Discussão, tal como desenvolvido pela tradição da sociologia crítica, como uma estratégia para o desenvolvimento de ações com vistas ao empoderamento feminino

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no âmbito do trabalho. Para tal, a discussão foi organizada de maneira a debater, inicialmente, sobre o conceito de exclusão social, passando por uma reflexão acerca dos estereótipos e preconceito de gênero, e de como eles têm afetado o acesso das mulheres a determinadas profissões, seguido de uma análise a respeito da teoria do empoderamento (empowerment) e por fim, trazendo as especificidades do Grupo de Discussão e de seu funcionamento. Exclusão social como categoria de análise no campo do trabalho A utilização do conceito de exclusão social como uma categoria de análise sociológica é relativamente recente, passou a ser difundida a partir da análise dos fenômenos sociais relacionados ao combate às desigualdades no período do pós-guerra na Europa. Também pode ser considerada uma categoria conceitualmente ambígua, ou seja, pode-se atribuir a ela uma série de significados que permitem usos retóricos distintos. Sawaia (2002), citando Edgar Morin e Robert Castel, descreveu a exclusão como um “conceito mala ou bonde” que se enquadra a qualquer fenômeno social e que provoca consensos, porém apresenta problemas nítidos de delimitação. Enquanto algumas análises sobre a exclusão se centram mais no aspecto econômico, ou seja, na pobreza, outras acabam priorizando o aspecto da discriminação, porém, é importante ressaltar que a dimensão da injustiça social tem sido utilizada como uma das mais importantes referências de análise deste conceito, sendo primordial o cuidado para não se cair na tentação de realizar interpretações reducionistas ou de cunho legalista. Sawaia (2002) também propõe que análise da exclusão se realize a partir de um modelo dialético: o da “exclusão/inclusão”. Assim, a sociedade exclui para incluir e essa dialética é condição de uma ordem social desigual e injusta, o que implicaria num certo caráter ilusório da inclusão. Desta forma, a exclusão pode ser

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entendida como o descompromisso político com o sofrimento dos outros. Ao utilizar o modelo dialético da “exclusão/inclusão” para analisar as questões de gênero vinculadas ao mundo do trabalho, mais especificamente, a exclusão das mulheres de certas profissões ou nichos do mercado de trabalho, podemos inferir que tal fato beneficia, inevitavelmente, os homens, que, por consequência, passam a obter a hegemonia de certas profissões e papeis sociais. Não é por acaso que a maioria dessas profissões estejam simbólico e materialmente associadas a posições de poder. Portanto, apesar da dificuldade de delimitar epistemologicamente a questão da exclusão, percebe-se que o fenômeno das profissões predominantemente masculinas expõe a existência de barreiras culturais ao acesso das mulheres não só a determinadas riquezas materiais, mas também a certos aspectos simbólicos. “Os excluídos não são simplesmente rejeitados física, geográfica ou materialmente, não apenas do mercado e de suas trocas, mas de todas as riquezas espirituais, seus valores não são reconhecidos, ou seja, há também uma exclusão cultural” (Wanderley, 2002, p.17). Nos casos em que determinadas mulheres conseguem romper essas barreiras, os efeitos da exclusão passam a se manifestar na forma de discriminação. Em realidade, na forma de tripla discriminação: por gênero, por etnia e por classe social. Sofre discriminação na esfera pública do mercado de trabalho e na vida social, em relação ao sexo masculino, mas também na esfera intragênero, em relação a outras mulheres. Robert Castel (1995) propõe um modelo de duas coordenadas como uma abordagem aos conceitos de vulnerabilidade e exclusão: por um lado, ele privilegia o processo de desfiliação devido à falta de integração ao mundo do trabalho; por outro, a vulnerabilidade está relacionada à falta de inserção nas

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redes sociais. Levando em consideração o ponto de vista de Castel para analisar a exclusão das mulheres de certas profissões, podemos concluir que esse problema está diretamente relacionado à condição de vulnerabilidade feminina. Nessa perspectiva, a vulnerabilidade se torna efetivamente exclusão social quando se amplia e se aprofunda em situações de natureza estrutural (Castel, 2003). Estereótipos e preconceito de gênero: a exclusão social de mulheres em campos de trabalho predominantemente masculinos Algo cada vez menos raro para nós tem sido ver mulheres em cargos de destaque e/ou poder em grandes empresas, governos e na sociedade como um todo. Além do topo das hierarquias, as mulheres também têm conquistado espaço em profissões predominantemente masculinas, que envolvem áreas como engenharias, ciências e tecnologia. Já, desde a formação universitária, identifica-se o aumento da participação feminina, uma vez que, na última década, as mulheres já representavam 54,6% do total de estudantes das instituições federais de ensino superior brasileiras (ANDIFES – Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior, 2018). Entretanto, mesmo com o crescente aumento da inserção feminina no mercado de trabalho, ainda há lacunas no mundo laboral que geram desvantagens e precisam, portanto, ser melhor observadas (Herman, Lewis, & Humbert, 2013). De acordo com dados recentes da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2018), em escala global, aproximadamente 75% dos homens estão inseridos no mercado de trabalho, contra 48% das mulheres. Segundo relatório do World Bank Group (2018), apesar das mulheres no Brasil representarem metade da população, apenas 43% delas estão inseridas no mercado de trabalho, o que, entretanto, representa um aumento em relação aos anos 80, no qual o percentual de mulheres

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no mercado era apenas de 27% (Méndez, 2005). As desvantagens não se referem apenas aos percentuais de ocupação, mas também estão diretamente ligados a diferenças salariais e hierárquicas. Em relação ao salário, os dados mostram que elas ainda recebem cerca de 23% a menos que os homens, além do que, apenas 37% delas ocupam cargos gerenciais (World Bank Group, 2018). Mais especificamente, elas detêm cerca de 14% dos cargos executivos seniores e representam menos de 3% dos CEO’s das 500 maiores empresas do mundo segundo a revista Fortune, uma porcentagem quase inalterada em uma década (Economist, 2011; Korkki, 2011). Quando alcançam níveis mais altos dentro de uma organização, as mulheres, frequentemente, ocupam cargos de chefia em áreas que são tradicionalmente ocupadas por mulheres, como a área da saúde e educação (Bruschini & Puppin, 2004). Nesse contexto, os estereótipos e preconceitos associados ao gênero são comumente utilizados para explicar por que as mulheres não atingem suas metas de carreira e não avançam para posições mais elevadas nas empresas, principalmente naquelas com atividades-fim ainda dominadas por homens (Gunkel, Lusk, Wolff, & Li, 2006; Martin, 2006). Um dos pilares da manutenção dessas desvantagens ao longo dos anos fundamenta-se em construções sociais estereotipadas, cujos cenários que refletem as diferenças de gênero, estão presentes desde os primórdios escolares. Já nos primeiros anos de escolarização, meninas e meninos são submetidos a estereótipos acerca dos conhecimentos aprendidos, uma vez que ao gênero masculino são associadas as matérias exatas (matemática, física, química), enquanto ao gênero feminino associam-se as de literatura, português e religião (Olinto, 2011). Logo, aspectos educacionais associam-se aos culturais e tornam-se potencializadores de estereótipos, influenciando decisões profissionais em função do

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gênero (Kahn & Ginther, 2017). A estereotipagem com base no gênero e a falta de suporte, somados a um processo de socialização sexista, influenciam negativamente a autoimagem e a autoeficácia das mulheres, contribuindo para o aumento da percepção de barreiras e consequente desistência da carreira pelas mulheres, especialmente em áreas nas quais são minoria (Aycan, 2004; Schweitzer, Ng, Lyons, & Kuron, 2011). Em profissões predominantemente masculinas, a lógica de estereótipos, preconceitos e discriminação em função do gênero é ainda mais visível. Estudos recentes buscam compreender como os estereótipos de gênero se relacionam com as escolhas profissionais, salientando que há uma relação entre essas duas variáveis que reflete, inclusive, nas estatísticas e sub-representações apresentadas até o momento (Brandão, 2016). Há aqueles que defendem que as mulheres estariam em menor número em profissões como ciências, tecnologia, engenharias e exatas (STEM – Science, Technology, Engineering & Math) por naturalmente não serem boas nisso, não terem as habilidades necessárias ou, ainda, por não terem “preferência” pelas mesmas. Em suma, hipotetiza-se que dois estereótipos estão interligados: (a) um estereótipo de “ajuste cultural” (a crença de que 'matemática é para meninos') e (b) um estereótipo de “capacidade” (a crença de que os meninos têm mais capacidade de resolver problemas de STEM do que as meninas). Os estereótipos de ajuste cultural e capacidade podem ser transmitidos pela mídia, por pessoas que representam modelos, pais e pares, além dos ambientes acadêmicos (Cheryan, Master, & Meltzoff, 2015). Estudos apontam que esses dois estereótipos começam a influenciar os autoconceitos, o interesse e a motivação das meninas desde o ensino fundamental até o médio, assim como suas notas (Cvencek, Meltzoff, & Greenwald, 2011; Master, Cheryan, & Meltzoff, 2016; Steffens, Jelenec, & Noack, 2010). Entretanto, pesquisas indicam que quando os países têm

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maior igualdade de gênero (particularmente igualdade educacional), as meninas têm tanto sucesso quanto meninos em desempenho em testes padronizados de STEM (Else-Quest, Hyde, & Linn, 2010; Guiso, Monte, Sapienza, & Zingales, 2008). Similarmente, menores lacunas de gênero no desempenho da matemática e representação na ciência também são encontradas em países com crenças estereotipadas mais fracas associando STEM a homens (Miller, Eagly, & Linn, 2015; Nosek et al., 2009). Considerando o estereótipo de habilidade de que os meninos são melhores nas áreas STEM, crianças mais novas (do maternal ao jardim de infância) tendem a acreditar que os sexos são quase iguais em termos de habilidades em matemática e ciências (Steele, 2003), ou mostram um viés explícito de que seu próprio gênero é melhor (Galdi, Cadinu, & Tomasetto, 2014). No final do ensino fundamental (por volta dos 7 anos de idade), a maioria das crianças começa a apresentar estereótipos de habilidades parecidas com as dos adultos, indicando que os meninos são melhores em matemática e ciências, o que se repete através de medidas variadas. Em relação à inserção profissional de mulheres adultas, vários estudos revelaram discriminação contra mulheres em áreas de STEM. Uma pesquisa com professores de ciências naturais e sociais em uma grande universidade estrangeira descobriu que as mulheres nas áreas de ciências naturais sofrem mais assédio sexual, discriminação de gênero e sexismo do que as mulheres nas ciências sociais (Settles, Cortina, Malley, & Stewart, 2006). Ao examinar as pontuações da revisão por pares para bolsas de pós-doutorado em pesquisa biomédica, Wenneras e Wold (1997) constataram que as mulheres precisavam ser 2,5 vezes mais produtivas que os homens para receber a mesma pontuação. Estudos também descobriram que faculdades de ciências estavam mais dispostas a contratar homens do que mulheres com credenciais idênticas para cargos de gerentes de laboratório (Moss-Racusin, Dovidio, Brescoll, Graham, &

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Handelsman, 2012). Logo, tais achados sugerem que a lacuna de gênero nos campos STEM não é meramente devido à falta de interesse das mulheres, e sim porque as pessoas (mulheres inclusive) percebem que as mulheres têm menos das características consideradas necessárias. O que é possível concluir é que as escolhas profissionais das mulheres (e também dos homens) se dão, em grande parte, em função de estereótipos que se fundamentam na divisão sexual do trabalho. A consequência disso é que as profissões e carreiras são compreendidas como destinadas, ora para homens, ora para mulheres, em função das exigências que acarretam e reforçadas por processos de socialização e educação sexista. De acordo com a teoria da congruência de papéis (Eagly, 2004), a incompatibilidade de estereótipos de gênero com estereótipos ocupacionais e outros papéis sociais são a base do preconceito e da discriminação contra as mulheres. Entre as características mais valorizadas no mercado de trabalho estão a racionalidade, a competitividade e a busca pelo sucesso, as quais o senso comum e as construções sociais e culturais ainda atribuem como pertencentes ao universo masculino. Inclusive, há estudos que apontam que candidatos são vistos como mais valorosos para organizações quando demonstram características entendidas como “masculinas”, tais como assertividade, liderança, ousadia, coragem e “pulso forte”, o que inclusive tende a elevar os salários (Alksnis, Desmarais, & Curtis, 2008). Já quando o assunto são os cuidados domésticos e da família, envolvendo a valorização do amor, da compaixão, da empatia, logo considera-se as mulheres como aptas para tal, pois essas características seriam “exclusivamente” femininas (Barreto, 2014). Não por coincidência, ocupações que priorizaram tais características tendem a ser mais precarizadas e pior remuneradas (vide o trabalho de professoras da educação básica, enfermeiras, entre outras).

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A teoria da congruência de papéis também tem sido extensivamente usada para explicar preconceitos e discriminação contra mulheres em cargos de liderança (Heilman, 2001). A existência de incongruência entre os estereótipos associados às mulheres e os estereótipos associados a líderes de sucesso tem influenciado a discriminação de gênero em momentos de contratação (Koch, D’Mello, & Sackett, 2015). Na medida em que aumenta a incongruência entre o estereótipo de gênero feminino e o papel de liderança, maiores são as dificuldades que as mulheres têm como negociadoras e mais preconceito elas experimentam como líderes (Eagly & Karau, 2002; Mazei et al., 2015). Aplicando a mesma lógica às mulheres nos campos de STEM, se houver falta de adequação entre estereótipos sobre profissionais dessas áreas e mulheres bemsucedidas, aumenta-se a chance de preconceito e discriminação contra mulheres nestas posições. No tocante à questão das preferências profissionais, quando as meninas se comparam aos estereótipos com os quais foram socializadas, elas sentem a incompatibilidade que lhes sinaliza o quanto elas não "pertencem" a esses campos STEM (Master, Cheryan, & Meltzoff, 2016). Isso atua como uma barreira que vem a determinar suas preferências – se elas não sentem que pertencem, elas acabam por não se interessar em fazer cursos ou desenvolver interesses em potencial nestas áreas. Faz-se necessário destacar que muitas pessoas que trabalham nos campos dominados por homens não se encaixam nos estereótipos que são atribuídos a elas – isto é, nem todas as mulheres que trabalham em áreas predominantemente masculinas querem ser identificadas como “típicas” mulheres. Para além disso, observa-se a permanência do preconceito contra as mulheres no mercado de trabalho, além de uma fixação à ideologia contribui para caracterizá-las como menos capacitadas para determinados tipos de atividade; ideologia tal que prioriza relações de poder entre grupos e busca justificar diferenças sociais entre

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homens e mulheres (Belo & Camino, 2012). A persistência de tais estereótipos e desigualdades de gênero é preocupante porque significa que muitas mulheres jovens estão perdendo oportunidades para contribuir e se beneficiar de carreiras em STEM. Observa-se o estabelecimento de uma divisão sexual de tarefas, de maneira que, para determinadas funções e carreiras, são valorizadas características socialmente atribuídas apenas aos homens e à masculinidade, enquanto para outras funções, são apreciadas as características ditas pertencentes às mulheres e ao feminino. Além dos estereótipos socialmente e culturalmente construídos, tem-se o fenômeno da ameaça do estereótipo, que representa um mecanismo interno que surge em situações em que um estereótipo negativo é relevante para avaliar o desempenho. Uma aluna que faz um teste de matemática experimenta uma carga cognitiva e emocional extra de preocupação relacionada ao estereótipo de que as mulheres não são boas em matemática. Uma referência a esse estereótipo, mesmo que seja tão sutil quanto fazer o teste em uma sala composta principalmente por homens, pode afetar adversamente o desempenho do seu teste. Quando a carga é removida, no entanto, seu desempenho melhora. Logo, a ameaça do estereótipo representa mais um motivo pelo qual as mulheres permanecem sub-representadas em STEM. Muitas pessoas afirmam que não acreditam no estereótipo de que meninas e mulheres não são tão boas quanto meninos e homens em matemática e ciências. No entanto, mesmo indivíduos que refutam, conscientemente, os estereótipos de gênero e ciência ainda podem sustentar essa crença no nível inconsciente. Essas crenças inconscientes, ou preconceitos implícitos, podem ser mais poderosos do que as crenças e valores mantidos explicitamente, simplesmente porque não temos consciência delas. Mesmo que o viés explícito de gênero esteja diminuindo, como alguns

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argumentam, pesquisas mostram que crenças inconscientes subjacentes a estereótipos negativos continuam a influenciar suposições sobre pessoas e comportamento (e.g. Reuben, Sapienza, & Zingales, 2014). Sendo assim, apesar de todos os avanços, é possível afirmar que a discriminação com base no gênero ainda influencia, consideravelmente, as trajetórias das mulheres na carreira, especialmente devido à tradicional divisão do trabalho que responsabiliza a mulher pelas tarefas relacionadas ao domínio da família. Além de contribuir para dificuldades de inserção e ascensão profissional, estereótipos ligados ao papel social imposto às mulheres implicam sobrecarga, acirrando o frequente conflito entre escolher seguir a exigência da maternidade ou priorizar a carreira (Bruschini & Puppin, 2004; Lima, Braga, & Tavares, 2015). Nota-se, portanto, que, mesmo que eventos como a industrialização e o movimento feminista tenham contribuído para o aumento de oportunidades de trabalho para as mulheres, ainda há grandes barreiras no que tange à sua inserção no mercado de trabalho (Haertel & Carvalho, 2017; Serpa, 2010). Em função disso, observa-se a importância de pesquisas e iniciativas que envolvam estratégias de motivação para as mulheres desenvolverem carreiras em áreas como ciência, tecnologia, engenharias e exatas. Atualmente, a nível internacional, é possível encontrar cada vez mais estudos que exploram esse cenário e fornecem uma perspectiva global sobre as dificuldades e obstáculos enfrentados na carreira das mulheres. No entanto, no Brasil, ainda não há muitas publicações sobre a ocupação feminina nesse ramo de profissões que permanecem sob a dominação do gênero masculino. Formuladores de diretrizes internacionais, tais como a UNESCO, ONU e OCDE estão, constantemente, solicitando e propondo maneiras de reduzir as disparidades educacionais baseadas em gênero. Portanto, o aumento de estudos sobre o tema

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é relevante porque pode subsidiar a construção e o desenvolvimento de movimentos sociais, políticas públicas e práticas empresariais que visem a diminuir a lacuna de gênero. Nesse sentido, cabe destacar a emergência de iniciativas. A Teoria do Empoderamento (Empowerment) A teoria do empoderamento (empowerment) surgiu na década de 70 do século XX nos Estados Unidos, a partir dos estudos realizados na área de intervenção comunitária. O empoderamento é um conceito desenvolvido a partir das ideias elaboradas pelos movimentos sociais e pela perspectiva dos grupos de ajuda mútua daquela época (Ornelas, 2008). É verdade que esse conceito, tal como o da exclusão, também é de difícil definição e atualmente no Brasil tem seu uso generalizado pelo senso comum, aparecendo ligado principalmente às demandas dos movimentos e minorias sociais. Esses grupos têm utilizado essa expressão como uma forma de reivindicação para suas pautas em busca de maior igualdade e justiça social, porém devese estar atento para não reduzir um conceito multidimensional como esse a apenas um de seus aspectos: o da eficácia pessoal e da autossuficiência. Ouvimos comumente nos debates políticos da atualidade, expressões como: “mulher negra empoderada” ou “transexual empoderada”. Porém, geralmente, tal designação está vinculada a uma história de superação que apresenta um destino diverso daquele profetizado para seu grupo de pertença social. Essa perspectiva denota apenas uma das dimensões do conceito, sendo esse, em sua totalidade, muito mais amplo e de natureza coletiva. É importante ressaltar que o objetivo do empoderamento está orientado para a intervenção social ao nível coletivo. Ainda que neste processo as competências de cada indivíduo sejam desenvolvidas e isso resulte numa forma de independência pessoal, o que está em jogo é um processo de mudança social, ou seja, uma

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distribuição e acesso mais igualitários aos recursos materiais e simbólicos presentes na comunidade (Musitu Ochoa, 2004). Julian Rappaport (1987) definiu o empoderamento como um processo através do qual pessoas, organizações e comunidades podem assumir o controle sobre suas próprias vidas. O mesmo, posteriormente, enfatiza a dimensão participativa do conceito ao ressaltar que o empoderamento objetiva dar voz às pessoas isoladas e silenciadas para que as mesmas possam influenciar nas decisões que afetarão diretamente suas vidas e a vida de suas comunidades (Rappaport, 1993). Já o Empowerment Group da University of Cornell considerou o empoderamento como um processo intencional e continuado que envolve respeito mútuo, reflexão crítica, o apoio e a participação em grupos para o controle e acesso aos recursos (Ornelas, 2008). Zimmerman (1995; 2000) torna mais específico o conceito de empoderamento delimitando-o em três dimensões: controle, consciência crítica e participação; e dividindo-o em três níveis: o individual, organizacional e comunitário. Lembrando que o desenvolvimento em um nível não leva diretamente ao outro, apesar de haver interdependência entre ambos. A aquisição e desenvolvimento de competências como forma de ganho pessoal orientado para a intervenção social também é um elemento fundamental para a compreensão do conceito, assim como faz parte da própria natureza do empoderamento encontrar soluções a nível local, fortalecendo os vínculos entre os indivíduos e seu sistema social, como vizinhos, familiares, igreja, trabalho, associações de voluntários, por exemplo (Musitu Ochoa, 2004). Dessa forma, pode-se sintetizar o conceito de maneira a evidenciar sua multidimensionalidade, e seu caráter direcionado a um tipo de mudança que ocorre da base para o topo (bottom-up) e varia de acordo com os contextos onde ocorre. O empoderamento é eminentemente interativo, pois ocorre em

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contextos coletivos e constitui-se como processo e não como estado fixo (Ornelas, 2008). O exposto até aqui leva a apostar no processo de empoderamento como uma estratégia eficaz para intervir socialmente e produzir as mudanças sociais no sentido de diminuir o preconceito e a exclusão das mulheres no âmbito laboral. Para tanto, é fundamental que o controle, a reflexão crítica e a participação sejam estimuladas. Paulo Freire (1973) pode ser considerado uma inspiração para o modelo do empoderamento, na medida em que suas intervenções focalizadas no aumento da consciência crítica dos cidadãos acerca do contexto social e politico que os rodeia, e sobre seu papel de transformação do mundo, produziu mudanças significativas na educação e na realidade social de mulheres camponesas no Brasil. Os grupos de discussão como estratégia de empoderamento feminino Para realizar o processo de empoderamento feminino, propõe-se o “Grupo de Discussão”, nos termos definidos por Ibañez (1979; 1994) e pela tradição da sociologia crítica espanhola, como instrumento de consciencialização crítica de atores sociais, assim como, procedimento de coleta de informações para elaboração de programas e políticas públicas que atuem nesse sentido. Em primeiro lugar, Ibañez (1994) adverte que não se deve confundir os “Grupos de Discussão” com a “Reunião de Grupo” ou "Entrevistas Grupais", porque o primeiro se refere ao fato real de discutir, não se tratando de uma entrevista em grupo em que a perspetiva individual predomina mesmo que exposta coletivamente e influenciada pela perspectiva dos demais. Outras diferenças fundamentais são encontradas na própria dinâmica estabelecida no grupo. No grupo de discussão, há um grupo em situação discursiva e

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um pesquisador, que não participa da conversa, mas que a determina. Segundo Callejo (2002), a diferença mais notável do grupo de discussão em relação a outras práticas de pesquisa social em conversação e, principalmente, em relação à entrevista, é que a participação de várias pessoas em uma situação de observação é estruturada para permitir a espontaneidade das expressões: é uma forma de abertura para as contradições. Além disso, inconsistências são buscadas no discurso do grupo, dando-lhe a palavra. O grupo de discussão é uma técnica de pesquisa social que trabalha com a fala, desenvolve uma conversa em que, para o pesquisador, os interlocutores desaparecem atrás das interlocuções, ao contrário do que acontece em grupos naturais e focais, nos quais frases diferentes têm nomes e sobrenomes. Nas palavras de Ibañez (1994), um grupo de discussão é simulado e manipulável. É um grupo artificial, ou seja, não funciona como um grupo na vida real e, além disso, seu sucesso dependerá de ser artificial ao longo de seu desenvolvimento. É simulado porque é um único grupo imaginário, um grupo que apenas se torna um grupo enquanto faz o trabalho de elaborar um discurso, sua existência é limitada à duração da discussão. É importante que os sujeitos que compõem o grupo não se conheçam, que não tenham mantido relacionamento anterior, para que não haja interferências e vieses na conversa. Segundo Callejo (2001), outra característica do grupo é que ele é manipulável, ou seja, o moderador tem em mãos todos os fios que movem o grupo. Ele tem o poder de alocar o espaço e, também, seu tempo. Além disso, o moderador também tem o poder de determinar o grupo: ele decide quem e quantos formarão o grupo e os elementos que determinaram tal escolha. O grupo nasce e morre quando ele assim o decida. O desenho dessa técnica é aberto e, além disso, a realidade específica do pesquisador é integrada ao processo de pesquisa. É o

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momento mais arbitrário da investigação, no sentido de exigir a experiência do pesquisador. Ele decide como fazer a seleção dos participantes do grupo, elabora o roteiro, o esquema de atuação e, também, a interpretação do discurso e sua análise. A amostra utilizada nesta técnica é uma amostra estrutural não estatística. Os critérios para selecionar os atores nos grupos são os critérios de associação: trata-se de incluir no grupo todos aqueles que reproduzem relacionamentos relevantes por meio de seus discursos. Ainda de acordo com Ibañez (1994) e Callejo (1998; 2001; 2002), propomos algumas bases nas quais o pesquisador deve confiar ao gerenciar um grupo de discussão. Os atores presentes na situação são o moderador e os membros do grupo. Entre eles, existem relações simétricas e assimétricas. Existe uma dupla relação assimétrica entre os membros do grupo. Primeiro, o relacionamento do grupo com o moderador e, segundo, o relacionamento entre os próprios membros, quando um deles tenta assumir uma posição de poder em relação aos outros, adiantando-se aos demais. Existe também uma relação simétrica entre todos os membros do grupo quando ele efetivamente funciona como deve ser. Assim, todos os membros se tornam peças reversíveis e transitórias. Essa simetria depende, acima de tudo, do desempenho autônomo do moderador e dos membros do grupo, sendo parcialmente induzida ou controlada pelo desempenho do moderador. No grupo de discussão, o moderador deve provocar o grupo com a proposta do tópico a ser discutido e controlar, por meio de reformulações e/ou interpretações, a discussão desse tópico. Ainda sobre o papel de moderador, Callejo (1998) argumenta que a reflexividade social está principalmente nos subordinados, considerando que nesse tipo de grupo as relações de liderança e poder também são estabelecidas, colocando o grupo contra si mesmo, para observar sua capacidade de chegar a um consenso, porque o que eles estão considerando são possibilidades de

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consenso entre agentes em um campo e a projeção operacional de tal consenso. Isso requer uma ação do moderador caracterizada por uma “agitação moderada”. A duração do grupo é variável: depende da dinâmica particular de cada grupo e do sujeito a ser tratado, o que equivale a dizer que depende do tipo de pesquisa e do grau de cristalização do discurso. A duração de um grupo de discussão varia de 60 minutos a duas horas. O tamanho do grupo pode variar entre três e dez membros. Esses são os limites mínimo e máximo entre os quais um grupo de discussão funciona corretamente. Para definir o limite mínimo de participantes do grupo, consideramos a proposta de grupos triangulares (três pessoas), como um espaço para produção discursiva Conde (2008). O autor defende a adaptação do procedimento a essa topologia, principalmente, quando o contexto da investigação é problemático, sendo impossível recrutar mais pessoas ou quando, devido às características do fenômeno, a presença de mais interlocutores tornaria inviável a execução satisfatória do procedimento. Por fim, o texto produzido pelo grupo de discussão é registrado em gravações de áudio e/ou vídeo. As gravações de áudio registram o componente linguístico da fala. O vídeo coleta os componentes secundários: cinético e prosaíco. Além da função técnica necessária, o gravador cumpre uma função mítica. Indica a dimensão do trabalho do grupo, porque o produto do trabalho dos participantes será depositado lá. Do ponto de vista instrumental, escolhemos essa como a técnica de análise qualitativa mais adequada para a busca do empoderamento feminino. Com esse tipo de técnica, o discurso é provocado e, portanto, o desenvolvimento da discussão parte da estrutura do próprio grupo. É um processo de construção de baixo para cima: surgindo dos próprios participantes em direção à interpretação final da discussão. Essa é a característica fundamental

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presente na dinâmica do próprio processo de empoderamento. Considerações Finais Seguindo a lógica da necessidade de reduzir as disparidades profissionais baseadas em gênero, é imprescindível o uso de estratégias metodológicas que possam ajudar a diminuir tais diferenças. Portanto a criação de ações afirmativas e políticas públicas que possam auxiliar nessa tarefa é fundamental. É nesse sentido que se propõe a teoria do Empoderamento Social (Empowerment) (Rappaport, 1987; 1993; Zimmerman, 1995; 2000) e o procedimento do Grupo de Discussão (Ibañez, 1979; 1994; Callejo, 1998; 2001; 2002) como alternativa metodológica para se alcançar tais objetivos. Este modelo teórico-metodológico, comumente utilizado no âmbito de pesquisa-ação participante e da psicologia comunitária, enfatiza o protagonismo dos atores sociais e o compartilhamento mútuo de suas experiências como forma de estimular a consciência crítica (Callejo, 1998). Produzir mudanças em contextos sociais historicamente construídos tem-se demonstrado uma tarefa hercúlea para os pesquisadores sociais e profissionais da área, sendo necessária a união de modelos teórico-metodológicos e de intervenção de diferentes matrizes epistemológicas. Como foi descrito ao longo do capítulo, estudos quantitativos demonstram, claramente, como os estereótipos de gênero influenciam no preconceito e na exclusão das mulheres de determinadas áreas no âmbito do trabalho. Portanto propõe-se aqui o modelo do empoderamento social, associado à técnica do grupo de discussão, como forma de produzir ações concretas com o intuito de realizar mudança social em contextos específicos, como a esfera laboral por exemplo. As próprias mulheres, através de suas experiências e de suas contradições, são o elemento central a hora de se buscar soluções para resolver o problema abordado aqui. Programas sociais e políticas públicas, nesse sentido, devem ser

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desenvolvidas a partir da contribuição dos próprios sujeitos objeto do preconceito e da exclusão que sobre eles se abate. Referências Alksnis, C., Desmarais, S., & Curtis, J. (2008). Workforce Segregation and the Gender Wage Gap: Is “Women’s” Work Valued as Highly as “Men’s”?. Journal of Applied Social Psychology, 38(6), 1416-1441. Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior - ANDIFES. V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos (as) Graduandos (as) das IFES 2018. Retirado de http://noticias.paginas.ufsc.br/files/2019/05/VERSAO_MESTRA _DO_RELATORIO_EXECUTIVO_versao_ANDIFES_14_20h52_1.pd f Aycan, Z. (2004). Key success factors for women in management in Turkey. Applied Psychology: An International Review, 53(3), 453-477. Barreto, A. (2014). A mulher no ensino superior: distribuição e representatividade. Cadernos do GEA, 6, 5-46. Belo, R. P., & Camino, L. (2012). Trabalho e gênero: elaborações discursivas sobre os papéis profissionais. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 15(2), 271-286. Brandão, M. M. (2016). Um estudo sobre gênero e escolha profissional entre estudantes do Instituto Federal de Santa Catarina. (Trabalho de Conclusão de Curso). Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil. Recuperado de https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/17380 2/TCC%20Milena%20Final%20-%20Vers%c3%a3o%2026-022017.pdf?sequence=1&isAllowed=y

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Capítulo 5 O Uso de Priming para Evocação e Análise das Crenças de Adolescentes que Legitimam a Violência Psicológica de Gênero Ana Alayde Werba Saldanha Josevânia da Silva Juliana Rodrigues de Albuquerque Dóris Firmino Rabelo A violência psicológica abrange tudo que envolve a humilhação, o xingamento e a autoestima da vítima. Esse tipo de violência, de acordo com Oliveira, Assis, Njaine e Pires (2014), é a mais perpetrada entre namorados adolescentes, possui pouca atenção, embora se trate de uma violência com taxas mais prevalentes que outras. Há uma tendência no imaginário social de que a violência precisa deixar marcas visíveis (Abranches & Assis, 2011; Bandeira, 2014), ideia que se faz presente até mesmo nos dispositivos que deveriam proteger as vítimas e punir os agressores, como, por exemplo, no âmbito da segurança pública, onde se verifica resistência de muitos policiais em fazer o Boletim de Ocorrência nos casos de violência psicológica, a exemplo da ameaça, não sendo compreendida enquanto crime (Saffioti, 2001). Para se ter dimensão da gravidade do crime de ameaça, vale apontar os casos os quais a mídia tem apresentado sobre feminicídios, cujas vítimas já haviam prestado queixa à polícia em virtude de ameaças feitas pelo perpetrador. Por outro lado, em um contexto onde crenças relacionadas ao patriarcado – dominação/masculina e submissão/feminina - é possível que muitas mulheres encarem seus relacionamentos abusivos enquanto

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dinâmicas naturais entre parceiros íntimos. Com isso, observa-se o obstáculo em estimar a prevalência da violência psicológica entre parceiros íntimos, além de uma precariedade de estudos nacionais que a diferencie dos demais tipos (Oliveira et al., 2014). Ao se referir à violência de gênero enquanto consequência da socialização, justifica-se estudar tal fenômeno à luz da teoria de Crenças Societais (Bar-Tal, 2000), visto que os aspectos que envolvem a socialização dizem respeito à formação de crenças, as quais são disseminadas, e adquiridas por membros enquanto ideias naturalizadas pela sociedade. Somado, vale ressaltar a visão dimensional de crenças, proposta por Rokeach (1981), ao supor que as crenças primitivas têm uma alta centralidade e possuem um forte consenso, de maneira que tendem a resistir a mudanças uma vez que são dificilmente questionadas. Sendo assim, um determinado sistema social, para se manter, dependerá do grau com que os membros da sociedade internalizam e produzem um sistema de crenças coletivas. A consciência do compartilhamento de crenças traz consequências para os membros de um grupo, mediado pela confiança que se tem nas crenças, bem como pelo senso de similaridade que o indivíduo possui acerca de seu grupo (Bar-Tal, 2000). É importante ressaltar que a formação de crenças e o processo de socialização são construídos dentro de um contexto sociohistórico, no qual o capitalismo, o racismo e o cisheteropatriarcado são indissociáveis. Esses sistemas de opressão estão pautados nas violências que atravessam raça, gênero, classe e gerações (Akotirene, 2018). Nesse sentido, a violência do tipo psicológica é mais uma das formas de dominação, perpetuada nos processos históricos, repetida e naturalizada na cultura. Estudos da Psicologia Social têm enfatizado que as atitudes e crenças podem ser ativadas na memória de uma pessoa sem que haja intenção ou sequer percepção de sua ativação. Uma vez

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ativadas, essas cognições e julgamentos são difíceis de inibir ou suprimir, e geram efeitos comportamentais significativos, afetando, por exemplo, julgamentos, decisões e atitudes (Dasgupta, 2009). Por se tratar de um processo implícito e automático, diversos métodos foram desenvolvidos, dentre os quais um conjunto de técnicas denominada priming, que, de modo geral, é o efeito originado por um estímulo apresentado antes do objeto alvo com o qual se espera que aconteça uma associação (Khaneman, 2012), e que repercute nas sucessivas interações do receptor com seu meio, afetando sua percepção, julgamento e comportamento, ainda que ele não tome conhecimento disso (Senise, 2015). Segundo Borine (2007), a tradução de priming seria "pré-ativação", sendo os seus conceitos geralmente relacionados a alguma forma de preparação. Existem tipos diferentes de primings, dependendo do tipo de conceito que é pré-ativado e a forma de sua ativação (Pereira & Pereira, 2011), sendo avaliados através de testes perceptuais ou conceituais (Sbicigo, Janczura, & Salles, 2016). Os perceptuais dependem de características superficiais dos estímulos e são sensíveis a manipulações da informação perceptual, como os testes de decisão lexical, completar fragmentos e nomeação de figuras. Por outro lado, os testes conceituais exigem a análise e retenção do significado do estímulo, enfatizando atributos semânticos. As técnicas de priming conceitual, segundo Bargh e Chartrand (2000), podem ser subdivididas em dois grupos: subliminar e supraliminar. Na técnica de priming conceitual do tipo subliminar, não há evidência da fonte do estímulo, que é perceptível de forma inconsciente (Bargh & Chartrand, 2000). Exemplo dessa técnica é quando o estímulo indutor (imagens, palavra, expressão) é apresentado por um curto espaço de tempo, o que faz com que o cérebro não processe a informação conscientemente, embora possa registrar sua existência (Bargh & Chartrand, 2000).

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Já na técnica supraliminar, o indivíduo é exposto ao priming como parte de uma tarefa consciente, podendo enxergar plenamente os estímulos, ou seja, permitir ao participante o acesso a determinada informação antes que ele responda às questões de interesse da pesquisa, com o intuito de que as respostas venham a sofrer alguma influência das atitudes suscitadas por tal informação (Rattan, Levine, Dweck, & Aberhardt, 2012). Por exemplo, se o pesquisador deseja saber qual a postura diante dos meios de punição, levando em consideração o racismo, poderá ser exposta ao participante uma história de crime na qual o protagonista será branco ou negro antes de ele responder às questões de punição (Pereira & Pereira, 2011). Dentre os diversos testes clássicos de priming esquematizados por Sbicigo et al. (2016), neste capítulo, será descrita uma pesquisa visando ilustrar a análise das crenças que legitimam a violência de gênero, do tipo psicológica, por adolescentes, utilizando-se o priming conceitual supraliminar, a partir da narrativa de um fato representativo desta violência, sem que o termo tenha sido mencionado. Um estudo utilizando priming conceitual supraliminar para ativação das crenças de adolescentes acerca da violência psicológica de gênero Participaram 201 estudantes do ensino médio de escolas pública e privada da capital paraibana, com média de idade de 16 anos, variando de 14 a 18 anos de idade (DP=1,13), dos quais 54% eram do sexo feminino, 48% se declararam católicos e 53% referiram religiosidade moderada, que receberam um instrumento com o seguinte priming: Elisa sempre foi muito vaidosa e adorava sair para balada e em uma dessas festas conheceu Heitor e logo começaram a

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namorar. Elisa logo se apaixonou pelo jeito carinhoso e cuidadoso de Heitor, pois ele sempre dizia que "quem ama, cuida e protege". Como Elisa sempre gostou de sair para as festas, Heitor fazia questão de acompanhar sua namorada para que ninguém desse em cima dela ou a perturbasse. Uma noite, Heitor foi buscar Elisa para irem a uma festa, e assim que ele viu Elisa, fechou a cara porque ela estava usando um vestido bastante curto e decotado. Então, Heitor disse que não sairia com a namorada com aquela roupa, pois por amála muito, cabia a ele preservar sua imagem e evitar as pessoas pensassem mal dela, como compará-la com uma garota de programa. Elisa tinha comprado aquele vestido para ir a essa festa, e isso a deixou magoada. Heitor vendo a tristeza da sua namorada, de maneira muito carinhosa, alegou que fazia aquilo porque a amava e queria zelar por ela e se ela também o amava, daria aquela prova de amor abrindo mão do vestido para agradá-lo. Convencida pelas palavras do namorado, Elisa trocou de roupa e os dois curtiram a festa. Após a descrição do priming, os participantes foram orientados a responder as três primeiras palavras que pensaram ao ouvir a história. Após as evocações, os participantes respondiam em uma escala do tipo Likert com cinco pontos, variando de “discordo totalmente” a "concordo totalmente" da postura da vítima (Gostaria que você assinalasse com um X o quanto concorda ou discorda da mágoa de Elisa), da postura do agressor (Gostaria que você assinalasse com um X o quanto concorda ou discorda do posicionamento de Heitor) e se consideravam o desfecho da história "certo" ou "errado" (Você considera o desfecho da história certo ou errado?). As análises envolveram a utilização de dois programas computacionais a fim de abarcar as possíveis conexões e relações

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entre diferentes variáveis: 1) Para a caracterização da amostra, no que concerne as suas variáveis sociodemográficas, bem como acerca dos níveis de concordância ou discordância em relação às vítimas e agressores do priming, contou-se com a utilização do software SPSS (Statistical Package for the Social Science, versão 23), a partir de estatísticas descritivas e inferenciais; 2) Buscando encontrar possíveis coocorrências entre evocações, bem como as evocações mais frequentes, foi utilizado o software IRAMUTEQ (Camargo & Justo, 2013), obtendo-se análise de similitude e análise prototípica. A matriz foi construída através da transcrição das evocações bem como das variáveis sociodemográficas. Com uma categorização manual foi realizada a junção em uma mesma categoria das evocações com o mesmo significado, porém com grafias diferentes para, posteriormente, ser processado através do software IRAMUTEQ. Análise de Similitude das Evocações sobre a Violência Psicológica Os resultados sobre a violência psicológica apontaram para o fenômeno da "romantização do ciúme". O núcleo de maior centralidade envolveu a evocação Amor, com uma coocorrência forte com o núcleo Zelo e as expressões Romântico, Respeito, Fidelidade, Confiança, Namoro e Consenso. Tais achados apontam para o perigo da naturalização do ciúme, uma vez que a postura foi encarada, por boa parte dos adolescentes, enquanto algo positivo, vista como uma prova de zelo e amor por parte do agressor, conforme ilustra a análise de similitude na Figura 1, abaixo:

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Figura 1 Análise de similitude da violência psicológica A "romantização do ciúme" diz respeito a um fenômeno que, possivelmente, veio a serviço do patriarcado. Conforme aponta alguns historiadores (Priore, 2012; Stearns, 2010), uma das grandes características da era agrícola, era a importância da propriedade, a qual era concebida a partir da necessidade de garantir que a herança fosse passada para filhos legítimos, colaborando para o monitoramento da sexualidade feminina. Essa preocupação em controlar a sexualidade das mulheres trouxe reações emocionais, cujo ciúme masculino era usado como argumento para práticas de violência contra a mulher. O ciúme, historicamente, está ligado ao cerceamento da liberdade do outro, ou seja, não diz respeito a uma característica de zelo e amor, mas sim a uma forma de dominação que está tão presente nas relações de poder, como entre homens e mulheres. Percebe-se que essa crença, datada da era agrícola, se sustentou e adentrou outros contextos culturais, como o Brasil. Documentos da

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época do período colonial retratam que o ciúme masculino se relacionava com confusão entre violência e amor (Priore, 2012). Segundo a autora, muitos casos de feminicídio eram justificados em nome do ciúme ou pelo “excesso de zelo” por parte do parceiro. Ademais, na contemporaneidade, a mídia e diversos segmentos sociais denominam muitos casos de feminicídios enquanto crimes passionais, ou seja, crimes motivados pelo “excesso de paixão”. Historicamente, a mulher foi vitimada pelo controle social do homem, cujo discurso reproduz e legitima a desigualdade hierárquica que há entre os gêneros (Chauí, 1984). Nesse sentido, Chauí (1984) aponta que essa desigualdade coloca a mulher na posição de objeto, uma vez que ela é silenciada pela dominação masculina. Por essa perspectiva, observa-se que a coocorrência entre as evocações Amor e Consenso demonstra que a crença sobre os papéis de gênero segundo o sistema patriarcal ainda é sustentada na atualidade. O estímulo indutor envolveu uma história cujo discurso masculino era proibitivo por não permitir que a mulher se vestisse como queria, e o desfecho foi a manutenção da violência no silenciamento da vítima. A coocorrência entre Amor e Correto aponta para aquilo que Saffioti (1994) denomina de "formação de macho", no qual o homem, para atestar sua masculinidade, deve garantir sua dominação, mesmo que por meio da violência, e a mulher deve ser educada para submissão. Evocar a palavra Correto no estímulo indutor referido pode está associado à percepção sobre a situação de violência psicológica contra a mulher como algo aceitável. As coocorrências entre Amor e Roupa e Amor e o núcleo Vulgar trazem à tona a ideia que ainda se tem sobre a definição de mulheres respeitáveis e não respeitáveis de acordo com as suas vestimentas no período clássico. Na Grécia antiga, pregava-se a ideia de que as mulheres eram libertinas por natureza, sendo por isso,

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necessário controlar os seus corpos por meio de roupas que fossem símbolos de recato e pudor (Stearns, 2012). No Brasil, ainda se tem a crença no código de vestimenta, ou seja, reforça-se socialmente a ideia de que as mulheres que não se vestem conforme esse código estariam sexualmente disponíveis (Scaparti, 2013). Nesse sentido, no estímulo indutor, o agressor justifica sua violência como prova de amor e zelo, uma vez que a vítima estaria provocando prováveis assédios ao se vestir com uma roupa decotada, de maneira que as evocações Roupa e Vulgar podem significar concordância com o discurso masculino. Outro núcleo com um alto compartilhamento entre os adolescentes é no que se refere à evocação Zelo, o qual, além de ter uma forte coocorrência com Amor, conforme já discutido, também coocorreu com palavras como Desconfiança e Diálogo. Mais uma vez, aponta-se para a ideia, ainda existente, de que a violência psicológica pode ser justificada pelo "zelo" do homem sobre a mulher, sendo o discurso masculino, encarado como uma comunicação bilateral, ao invés de ser percebido como uma forma de opressão ou silenciamento da vítima. O núcleo que se contrapõe aos demais é o que possui a evocação Machista com maior centralidade, a qual coocorre com palavras como Manipulação, Opressão, Controle e Errado. Todas essas evocações apontam para uma não legitimação da violência psicológica, diferente dos outros núcleos já discutidos. Conforme salienta Rokeach (1981), crenças mais periféricas possuem uma relação de funcionalidade com uma crença mais central. Nesse caso, evocações como Opressão, Manipulação e Controle caracterizam o machismo identificado por alguns participantes. Não obstante, vale destacar evocações como Infantilidade e Burra neste núcleo. No caso da palavra Burra, esta pode sugerir que mesmo alguns participantes reconhecendo o machismo no estímulo indutor, de certa forma, responsabilizaram a vítima pela violência sofrida. A

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evocação Infantilidade pode fazer menção à postura do agressor, o que pode apontar para a ideia que se tem de que o homem possui uma natureza imatura, favorecendo, portanto, a isenção da culpa. Análise Prototípica das Evocações sobre Violência Psicológica Na análise prototípica, é importante fazer algumas considerações. O primeiro quadrante envolve dois critérios: palavras mais prontamente evocadas e as evocações com maior frequência. O segundo critério (frequência) seria aquilo que Bar-Tal (2000) chamaria de crença mais central por possuir um alto nível de compartilhamento entre os membros. No entanto, o primeiro quadrante apresentou as palavras que foram mais prontamente evocadas, mas não apresentou as evocações com maior compartilhamento entre os participantes, as quais apareceram no segundo quadrante, conforme ilustrado na Figura 2, abaixo:

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Figura 2 Análise de similitude da violência psicológica O primeiro quadrante possui, enquanto palavra mais prontamente evocada, a expressão Vulgar e, embora a palavra Machista venha logo em seguida, palavras como Correto e Diálogo também foram prontamente evocadas por uma considerável parte da amostra. A evocação Vulgar, como expressão mais prontamente evocada do núcleo central, pode apontar para a presença de crenças ainda enraizadas sobre a relação entre vestimentas femininas e respeitabilidade. A evocação do termo Correto demonstrou, de certo modo, que a postura do agressor foi encarada como positiva para alguns participantes. Nesse contexto, o agressor da narrativa (estímulo indutor) perpetrava a violência psicológica sob argumento de que a

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namorada seria assediada, sexualmente, caso usasse uma roupa decotada, o que foi considerada uma postura correta por parte da amostra. Segundo Saffioti (2001), o conceito de violência de gênero é mais amplo do que se imagina, visto que vítimas podem ser mulheres, crianças e adolescentes, as que são agredidas em razão do exercício da “função patriarcal” masculina. Isto é, o homem detém o poder de determinar a conduta social da vítima, cuja punição é legitimada pela sociedade. No segundo quadrante, ainda que se denomine "primeira periferia", não se trata de palavras tão prontamente evocadas como as do primeiro quadrante, mas encontram-se as palavras com maior frequência. Na visão de Bar-Tal (2000), são crenças com alto consenso entre seus membros, sugerindo crenças mais resistentes às tentativas de mudanças e com implicações sociais relevantes. Amor e Zelo foram as palavras mais evocadas pelos participantes, além da presença da evocação da palavra Romântico com considerável frequência. Este dado aponta para o quanto a "romantização do ciúme" ainda é uma realidade, sendo preocupante a presença dessa relação entre ciúme e amor em adolescentes. Para Bar-Tal (2000), a confiança que o indivíduo possui sobre determinada crença aumenta à medida que ele tem consciência de que essa crença é compartilhada por membros de seu grupo, e essa consciência valida o conteúdo da crença. Tratando-se de adolescentes, pode-se dizer que tal confiança tende a ser mais forte, uma vez que esse período da vida se caracteriza pela relevância da influência grupal para o indivíduo (Connolly & Goldberg, 1999). Estar inserido em um grupo de amigos que possuem a crença em relacionamentos abusivos como natural se correlaciona positivamente com a prática da violência no namoro (Oliveira et al., 2014). No terceiro quadrante há palavras prontamente evocadas, mas com pequena frequência. Observa-se a possível presença de

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crenças com elementos naturalizados, ainda que não tanto compartilhadas entre os participantes. Aqui há elementos de contraste, isto é, palavras que não legitimam a violência psicológica, como Manipulação, Opressão e Preconceito. Porém, vale destacar a evocação Burra, a qual pode responsabilizar a vítima pela violência sofrida bem como a expressão Desconfiança, que pode justificar a postura do agressor em função do comportamento da vítima. Sobre o último quadrante, mesmo apresentando palavras com baixa frequência e não prontamente evocadas, as palavras evidenciadas são relevantes. Consenso e Infantilidade foram termos referidos com maior compartilhamento nesse quadrante, apontando para a ideia que alguns adolescentes possuem de que o silêncio da vítima diante do discurso masculino é sinônimo de concordância entre o casal. Por fim, vale destacar a palavra Abuso, evocada por apenas cinco participantes, demonstrando a possível invisibilidade da violência de gênero pela maior parte da amostra. Sobre o quanto os participantes discordavam ou concordavam com a mágoa da vítima pela violência sofrida, 32% discordou, 27% não teve uma opinião e 41% concordou com seu incômodo. Em relação à postura do agressor, 57% dos adolescentes concordou com a perpetração da violência psicológica e a maioria dos participantes (69%) considerou o desfecho, ou mais precisamente a manutenção da violência, correto. Tais dados reforçam o que já fora observado nas análises anteriores, cuja amostra, em sua maioria, afirma ser aceitável a situação de dominação masculina e, consequentemente, submissão feminina. O resultado de um teste t demonstrou que houve diferença (t=3,7; p=0,03) nas médias por sexo no que tange ao comportamento do agressor, de maneira que o sexo masculino (M=3,78) tende a concordar mais com o agressor do que o sexo feminino (M=3,01).

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Considerações Finais A associação entre relacionamento abusivo e romantismo feita por adolescentes é preocupante. Conforme se verificou em pesquisa nacional realizada por Oliveira et al. (2014), 85% dos adolescentes participantes admitiram já ter praticado algum tipo de violência contra o parceiro. Nesse sentido, é importante ressaltar que a violência vivenciada no namoro é preditora de uma vivência de violências em relacionamentos na fase adulta, visto ser na adolescência que os indivíduos tendem a iniciar seus relacionamentos afetivos-sexuais e manter o padrão ao longo da vida. Os resultados apontam para diferentes aspectos e níveis de legitimação da violência de gênero e a "romantização do ciúme", sugerindo a importância de intervenções educativas voltadas para esta população. A ampliação de estudos e intervenções que foquem na violência psicológica se faz urgente, uma vez que, apesar de tantos avanços nas políticas públicas de combate a todas as violências contra a mulher, tal violência ainda é invisibilizada e até mesmo banalizada por diversos segmentos da sociedade. Ademais, a violência psicológica tende a perpassar todas as outras violências, como a física, a patrimonial, a moral e a sexual, que acarretam sofrimento psicológico para as vítimas. Ainda vale destacar que a violência psicológica é preditora da violência física, isto é, quando esta vem a ocorrer, a outra já faz parte da vivência da mulher. A relevância do desenvolvimento de pesquisas somado à criação de estratégias metodológicas a fim de dar visibilidade à violência para a população de adolescentes fica claro nos resultados dessa pesquisa, principalmente no período de iniciação afetivo-sexual. Nesse sentido, é importante a reflexão e, consequentemente, a desconstrução de crenças que favorecem a manutenção de relações de gênero marcadas pela desigualdade.

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Em relação à utilização do priming, há uma série de aspectos a serem aprofundados com potencial para servir de base na aplicação de construtos psicológicos, a exemplo do estudo apresentado, atentando para as especificidades de cada campo de estudo. Sugere-se a aplicação do priming em conjunto com outras técnicas metodológicas que possam confirmar seus resultados, dando maior consistência aos dados. Referências Abranches, C. D. D., & Assis, S. G. D. (2011). A (in) visibilidade da violência psicológica na infância e adolescência no contexto familiar. Cadernos de Saúde Pública, 27, 843-854. Akotirene, C. (2018). O que é interseccionalidade? Belo Horizonte, MG: Letramento: Justificando. Bandeira, L. M. (2014). Violência de gênero: a construção de um campo teórico e de investigação. Sociedade e Estado, 29(2), 449-469. Bar-Tal, D. (2000). Shared beliefs in a society. London: Sage publications. Bargh, J. A., & Chartrand, T. L. (2000). Studying the mind in the middle: a practical guide to priming and automaticity research. In Reis, H.T. & Judd C.M. (Eds.), Handbook of research methods in social and personality psychology (253-285). New York: Cambridge University Press Borine, M. S. (2007). Consciência, emoção e cognição: o efeito do priming afetivo subliminar em tarefas de atenção. Ciências & Cognição, 11, 67-79. Camargo, B. V., & Justo, A. M. (2013). IRAMUTEQ: um software gratuito para análisede dados textuais. Temas em psicologia, 21(2), 513-518.

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Sbicigo, J. B., Janczura, G. A., & de Salles, J. F. (2016). Considerações Metodológicas na Elaboração de Experimentos com Priming de Repetição. Temas em Psicologia, 24(4), 1533-1547. Scaparti, A. S. (2013). Os mitos de estupro e a (im)parcialidade jurídica: a percepção de estudantes de direito sobre mulheres vítimas de violência sexual. (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal do Espírito Santo. Senise, D. D. S. V. (2015). Efeito priming aplicado em comunicação: uma meta-análise (Dissertação de Mestrado). Escola de Comunicação e Artes. Universidade de São Paulo. Stearns, P. N. (2010). História da sexualidade. São Paulo: Editora Contexto. Stearns, P. N. (2012). História das relações de gênero. São Paulo: Editora Contexto.

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Capítulo 6 Envelhecimento, Sexualidade e Mulheres Lésbicas: Aspectos Metodológicos Luciana Kelly da Silva Fonseca Ludgleydson Fernandes de Araújo Juliana Fernandes-Eloi Neste capítulo, serão abordados os aspectos relacionados ao envelhecimento e à sexualidade de mulheres idosas lésbicas. O envelhecimento da população mundial é um construto que se encontra demarcadamente concreto, sendo esse progressivo e multifatorial. À vista disso, estudiosos em diversas áreas estão debruçando seus estudos para tal fato, atentando ao demasiado crescimento da esperança de vida desde o final do século passado (Jesus, 2010; Mantovani, Lucca, & Neri, 2016; Salgado et al., 2017). Algumas justificativas são identificadas para tal crescimento exponencial, como o avanço na medicina, a melhora da nutrição, o aumento no nível de higiene pessoal, o progresso social que originou um aumento no número de idosos ativos, saudáveis e envolvidos socialmente, entre outros (Araújo, Cruz, & Rocha, 2013; Neri et al., 2013; Salgado et al., 2017; Fernandes-Eloi et al (2019). Simultâneo ao aumento significativo da população global idosa, figura-se o crescimento da população de lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e travestis (LGBT) e as explicações para isso são: melhoria nos serviços de saúde, informação e aos direitos de acesso à saúde e à educação continuada. Estudiosos das áreas da Gerontologia e Geriatria vêm dedicando seus estudos a essa população e constatando que este

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público, ao longo de sua vida, sofre e continua a sofrer preconceito e estigmas negativos, sendo o grupo que é alvo de um preconceito duplo, por estarem inseridos em duas coortes marginalizadas, que são as de pessoas idosas e pessoas LGBT (Araújo, 2016; FernandesEloi, 2017; Fredriksen-Goldsen, Kim, Bryan, Shiu & Emlet, 2017; Henning, 2017; Kimmel, 2015; Santos, Carlos, Araújo, & Negreiros, 2017; Leal & Mendes, 2017; Pedutto & Lopes, 2017; Santos et al., 2018; Santos, Araújo, & Negreiros, 2018). Uma evidência disso, é que, mesmo com o avanço nas leis que regem e garantem direitos a essa população, as pessoas idosas LGBT ainda se encontram à margem de melhorias e igualdade de direitos, o que interfere na qualidade de seu envelhecimento (Araújo, 2016; Fernández-Rouco, Sánchez, & González, 2012; Orel, 2014). Assim, no próximo tópico, incluem-se questões que permeiam o campo da velhice e do movimento LGBT. Nuances a respeito da velhice e do movimento LGBT Sabe-se que o indivíduo é formado por diversas formas identitárias, que são permeados pelas ditaduras do convívio social, isto é, desenvolve-se em meio as suas relações com seus grupos sociais de pertencimentos ou não. Então, para assimilar sua composição, deve-se investigar seus momentos históricos e os papéis sociais empreendidos, pois aspectos culturais e atributos pessoais influem no preconceito contra o envelhecimento e essas construções individuais influenciam no bem-estar social e familiar. (FredriksenGoldsen, Hoy-Ellis, Muraco, Goldsen, & Kim, 2015; Orel & Fruhauf, 2015). Nesse sentido, Allport (1954) problematiza que o preconceito se trata de atitudes hostis contra uma pessoa, apenas por pertencer a determinado grupo que é socialmente desvalorizado. De acordo com Lima (2011), a atitude de preconceito é um julgamento precipitado que possui competentes cognitivos, afetivos e deposicionais, ou seja, está relacionado aos estereótipos, à antipatia

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e à tendência discriminatória. O preconceito pode ser apresentado de forma explícita e de forma implícita (Fazio & Duton, 1997). Alguns estudos, como os de Anita Neri, apontam que a velhice é concebida na mídia impressa e, por essa própria parcela da população, como algo ruim e que deve ser evitado a qualquer custo, sendo reduzida ao binômio saúde/doença (Biasus, Demantova, & Camargo, 2011; Neri, 2008). Assim, devido à cultura, alguns preconceitos são disseminados, fazendo com que a imagem da pessoa idosa seja distorcida, causando alguns pensamentos errôneos sobre os idosos e, um dos aspectos dentre tantos outros, negligenciados nessa fase da vida, é a sexualidade (Biasus, Demantova, & Camargo, 2011; Vieira, Miranda, & Coutinho, 2012). A sexualidade pode ser compreendida como uma ação que contribui de forma positiva para a qualidade de vida dos idosos. Versa de um processo natural que obedece a uma necessidade fisiológica e emocional do indivíduo e que se exterioriza de forma distinta nas diferentes fases do desenvolvimento humano (Santos, Souza, Siqueira, & Santos, 2017). À vista disso, a sexualidade deve ser caracterizada como um efeito que potencializa as vivências sociais, psicológicas e afetivas das pessoas idosos (Marques et al., 2015; Vieira, Coutinho, & Saraiva, 2015). No que concerne à orientação sexual das pessoas, a população heteronormativa descreve uma forma de organização da sociedade que autoriza a heterossexualidade como normal e padrão em detrimento de outras formas de vivências, buscando reduzir e rotular todas as relações ao binarismo de gênero (Toledo & Filho, 2010). Com isso, a população idosa LGBT, desde os primórdios, padece quando se trata da expressão da sexualidade, pois sempre tiveram que viver reclusos por medo de rejeição e perseguição caso compartilhassem sua orientação sexual, isso diz de uma internalização de estereótipos negativos e preconceitos que a sociedade reproduz e impõe para tal público (Fredriksen-Goldsen et al., 2015).

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A primeira discussão sobre o preconceito conta LGBT’s, estava relacionado ao sentimento negativo que de modo geral era sentido internamente em segredo e/ou publicizado em práticas do cotidiano. No entanto, as ideias que fundamentam o preconceito são complexas e pertencem a um sistema de sentimentos negativos que proporcionam pensamentos de crueldade (Allport, 1954). Consequentemente, Se estabelecem práticas de julgamentos sem elaboração aprofundada acerca da ideia inicial vivida de forma negativa, pois quanto menos contato com a realidade vivida por determinado grupo, no caso o grupo LGTB, maior é a possibilidade da constituição de ideias negativas préestabelecidas, de modo que se potencializam percepções estigmatizadas como os interseccionados no tripé foco deste estudo: mulher/lésbica/velhice (Fernandes-Eloi, 2017, p. 108). Ou seja, problematizar o preconceito homofóbico, configurase como tarefa densa diante dos obstáculos que perpassam a conjuntura nacional atual (Costa, 2010; Pereira & Leal, 2005). Considerando a abrangência do tema e a importância de investigálo, faz-se necessária a elaboração de estudos e discussões que consigam verificar, através de dados científicos válidos, quantitativos e qualitativos a materialização da homofobia. Os escritos que permeiam a luta do movimento LGBT, na atualidade, são atravessados pelos temas de cidadania, de direitos humanos e de estilos de vida, sendo perpassados pelas diversas políticas públicas que são desenvolvidas no Brasil e no mundo com a ascensão e visibilidade que essa população vem tomando. Assim, a militância política da organização LGBT é pontuada por ativistas que representam os homossexuais, tendo em seu cerne a humanização e valorização dos mesmos. O cenário atual vem demonstrando um

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aumento significativo nos indivíduos que fazem parte da população idosa constituída pela luta LGBT, isso se dá pela melhoria no acesso aos serviços de saúde e informação (Kimmel, 2015; Paiva & Melo, 2013). O L da sigla LGBT Até o final da década de 1960, a sexualidade humana estava submissa ás discussões acerca do sexo biológico dos indivíduos (Nicholson, 2000). O sexo simbolizava a expressão do poder que disseminava nos processos identitários dos sujeitos as raízes conceituais do patriarcado. De modo rápido, ampliaram-se os discursos biologicistas que justificavam as diferenciações sexuais, em que essa posição constituía o poder da determinação biológica, em prejuízo da personificação das diferenças da sexualidade (Butler, 1990). Após a conexão de acadêmicos e dos movimentos feministas acerca dos estudos de gênero e da sexualidade, começava no mundo, uma discussão mais intensa e complexa sobre a sexualidade humana (Haraway, 1991). As discussões de gênero e sexualidade começaram a apresentar distinções de expressões sexuais e identidades, independentes do “sexo”, promovendo uma maior complexidade teórica para a inclusão de novas categorias analíticas presentes na sexualidade (Marques, Oliveira, & Nogueira, 2013). Nesse sentido, foi a partir da ampliação dos estudos de gênero e a intensificação dos debates sobre sexualidade que se passou a problematizar, de modo menos estatutário, as diversidades sexuais. No entanto, gênero não é somente um dado, é uma experiência processual (Butler, 1990). Assim, problematizar a sexualidade e as questões de gênero, automaticamente se apresenta a necessidade de uma articulação simbólica acerca da diferença entre orientação sexual, que se refere a um envolvimento temporal, sensual e afetivo, com pessoas de sexos opostos e/ou

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iguais, e comportamento sexual, que é compreendido pela ação e atitudes sexuais, podendo ter relação com a identidade de gênero ou não (APA, 2008). A orientação sexual e a identidade de gênero são construtos fundamentais para dignidade e humanidade de cada indivíduo, tendo eles importante papel na construção da individualidade de cada pessoa. Assim, tais construtos não devem ser alvo de discriminação ou abuso, porém o que se vê são transgressões nos direitos humanos, configurando-se como uma realidade que atinge este apartado da população. À vista disso, é sabido que, nos dias atuais, é difícil viver e expressar, de forma saudável, a sua orientação sexual, principalmente no Brasil (Brasil, 2013). No tocante às mulheres lésbicas, este cenário se torna ainda mais conflituoso. Visto que, a conjectura na qual estão inseridas, por vezes, reproduzem pensamentos tradicionalistas em que a sociedade patriarcal dissemina como verdadeiro e absoluto, concebendo essas mulheres como pessoas invisíveis, discriminadas e, muitas vezes, categorizadas como imorais, doentes, abomináveis, abjetas e etc. (Toledo & Filho, 2010; Watanabe & Rodrigues, 2018). Um estudo feito por Fernandes-Eloi (2017) traz que a construção da identidade lésbica não é única, podendo ser figurada como transitiva e progressiva. De outra maneira, é um processo em que a mulher percorre ao longo da evolução psicossocial, no qual a relação com o contexto sinaliza a perspectiva de experimentações congruentes à sexualidade humana (Fernandes-Eloi, 2017; Rowen & Malcolm, 2003). Nas décadas de 1980 e 1990, os grupos de mulheres lésbicas surgiram com escopo de afirmação identitária dentro da composição do movimento homossexual no Brasil, a fim de se reiterarem politicamente dentro da própria comunidade. A militância lésbica surge como um grupo organizado no I Seminário Nacional de Lésbicas (Senale) na cidade do Rio de Janeiro em 1996, que contou

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com a participação de mais de 100 mulheres lésbicas reunidas para discutir sobre direitos, conceitos e política pela primeira vez, sendo um marco importante para o movimento (Brasil, 2013). Ressalta-se que a interação entre o movimento de mulheres lésbicas e o movimento feminista, fortalece-se na parceria em forma de reivindicações dos direitos sexuais e de questões próprias, envolvendo a sexualidade lésbica (Almeida & Heilborn, 2008). As discussões de gênero e sexualidade começaram a assinalar as particularidades de expressões sexuais e identidades, propiciando uma amplitude teórica para a integração de novas esferas presentes na sexualidade. Assim, foi a partir da ampliação dos estudos de gênero e o aumento dos debates sobre as sexualidades que iniciaram problemáticas menos estatutárias acerca das diversidades sexuais (Fernandes-Eloi, 2017). Para tanto, pensar sistematicamente a sexualidade de mulheres lésbicas na velhice demanda uma discussão complexa entre três conceitos estigmatizados socialmente e, por consequência, com rara intersecção entre os estudos nacionais. Ou seja, a experiência de ser mulher lésbica e velha é perpassada pelos significados compartilhados socialmente acerca da sexualidade, que geralmente são associados a aspectos que favorecem estereotipias, discriminações e exclusões sociais (Cerqueira-Santos et al., 2010; Gato, Fontaine, & Leme, 2013). Nesse sentido, a vivência da sexualidade da mulher lésbica brasileira está subordinada a uma moral social dúbia (Jurberg, 2001), que, na primeira perspectiva, nega-se a sexualidade das mulheres de modo geral e, na segunda, distinguem-nas em fases etárias, como por exemplo, as mulheres lésbicas jovens, em meia idade e, principalmente, as que estão em processo de envelhecimento, sobretudo, por serem mais afetadas pelos padrões socialmente compartilhados de juventude, beleza e produtividade. É ainda possível afirmar que a condição de ser mulher inscreve formas e

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padrões de participação e inserção social desiguais, fato que potencializa a vivência de diversos tipos de preconceitos nas diferentes relações sociais e intergeracionais (Alves, 2010). Nesse contexto, soma-se a condição de ser lésbica, que ainda se configura socialmente como um estigma, uma característica depreciativa, que diferencia os indivíduos não heterossexuais (Szymanski, Chung, & Balsam, 2008). Representações sociais de mulheres lésbicas brasileiras a respeito da velhice LGBT: um estudo a ser considerado Poucos são os estudos realizados sobre a homossexualidade atrelada à velhice, e esse fenômeno pode ser um indicador de como a sociedade, cultura e contexto observam a complexidade do tema (Mota, 2009). O que, de certo modo, justifica-se a partir da super valorização da população jovem heterossexual, em que questões sobre a velhice LGBT não ganham visibilidade. De outro modo, podese perceber que entre os estudos nacionais, somente alguns estudos interseccionam a velhice LGBT com as representações sociais (RS) e pode-se destacar que são numerosas as diferentes visões sobre esse assunto. Em um estudo recente intitulado “Representações sociais a respeito da velhice LGBT sob a ótica de mulheres lésbicas brasileiras” do ano de 2019, encontrou-se alguns aspectos que merecem destaque quando se fala de tal tema, pois este trabalho trata-se de uma pesquisa descritiva e exploratória, de abordagem quali e quantitativa, sobre as representações sociais de mulheres lésbicas brasileiras a respeito da velhice LGBT. Na ocasião, essas mulheres tiveram a oportunidade de refletir e argumentar sobre questões que permeavam os conceitos de velhice, velhice LGBT e homossexualidade. Tiveram como participantes 105 mulheres lésbicas, de vários estados brasileiros, com idades entre 18 e 49 anos. Essas mulheres responderam questionário sociodemográfico,

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entrevista semiestruturada e o teste de associação livre (TALP), todos de forma online, através da plataforma do Google Doc’s. Tais questionários foram disseminados através das redes sociais, as quais os idealizadores da pesquisa julgaram ser a forma mais rápida e menos invasiva em que as mulheres fossem abordadas. Então, foram divulgados nas redes sociais, como Facebook e WhatsApp. Esta pesquisa teve ao todo um ano para ser concretizada, ela iniciou-se em 2018 como projeto do Núcleo de pesquisa e estudos em desenvolvimento humano (PSIQUED) da Universidade Federal do Piauí e culminou-se em um artigo de TCC do departamento de psicologia da mesma universidade em 2019. Teve como objetivo dar voz e conhecer como essas mulheres estão a pensar sobre seu futuro. Visto que, poucas são as pesquisas que têm como escopo mostrar como essas mulheres estão se afirmando dentro da comunidade e lidando com o atual momento no país. O estudo teve uma boa aceitação, contendo falas impactantes das mulheres, denunciando como elas tentam sobreviver atualmente, sendo válido ressaltar que todos os discursos tiveram pontos de encontro, mesmo sendo mulheres de vários estados do país e idades diferentes. Foram obtidas ideias como sociedade preconceituosa, naturalização da velhice LGBT e a falta de reflexão e conhecimento sobre como e em que condições essa parcela jovem chegará até a fase da velhice LGBT. Como em qualquer estudo algumas dificuldades foram encontradas, como o tempo para atingirmos a quantidade teto de mulheres participantes, algumas mulheres se apresentaram como bissexuais tendo que ser desconsideradas, pois não era o público alvo da pesquisa, algumas mulheres não sabiam o que responder nas perguntas semiestruturadas alegando não ter conhecimento do tema ou não ter refletido sobre tais questões, fazendo com que seu questionário não fosse tão rico de palavras, entre outros.

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A proposta deste capítulo foi de concatenar as representações sociais que permeiam o contexto interestadual desse universo, e pôde contar com diversos tipos de aspectos biopsicossociais como idade, religião, escolaridade, entre outros. O estudo possibilitou que as mulheres lésbicas entrevistadas pudessem refletir sobre como enxergam seu futuro, como se sentem diante de uma sociedade preconceituosa ditadora de regras e como cada vez mais é emergente estudar e propagar informações sobre a velhice LGBT, se fazendo útil para disseminação e discussão do tema. Salientando que este processo é de fundamental importância para auxiliar na possível mudança das representações sociais, bem como algumas atitudes frente à população estudada. Considerações Finais A proposta deste capítulo, de modo geral, impulsionou uma problemática acerca das representações sociais de mulheres lésbicas no contexto brasileiro. Desse modo, foi a partir dessa articulação teórica que se pôde perceber que os estudos sobre as intersecções que contornam os processos de envelhecimento são muito restritos. Fenômeno este que ressalta e denuncia um involuntário tabu que ainda hoje existe quando se trata da temática velhice de mulheres lésbicas. Assim, foi-se criado um cenário que possibilitasse uma reflexão sobre como as representações sociais apontam uma sociedade preconceituosa ditadora de regras e sobre como cada vez mais é emergente problematizar a velhice de mulheres lésbicas. Ou seja, foi possível reconhecer que a sexualidade representa um contexto dinâmico e composto por modos de subjetivação, corporeidade e o universo social na experiência lésbica. Desse modo, conclui-se que é imprescindível que pesquisadores e profissionais da saúde, educação e de contextos sociais atuem de forma direcionada e específica na atenção com a pessoa que envelhece, bem como, a

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ampliação nas discussões acerca das políticas de inclusão de pessoas que vivenciam as sexualidades na velhice. Portanto, faz-se necessária a visibilidade da importância da sexualidade e os múltiplos modos de expressão que possui em todas as fases da vida. Ainda assim, necessita-se de trabalhos que alcancem, com maior facilidade, a população estudada e que tenha uma maior amplitude para assim, colaborar para futuras pesquisas e disseminação de conhecimento. Pois, essa temática é de suma importância nos campos da saúde, educação, dentre outras. Portanto, os estudos não se findam com o presente trabalho e espera-se que ele sirva como base para estudos futuros. Referências Araújo, A. C. F. (2016). Rompendo o silêncio: desvelando a sexualidade em idosos. UNILUS Ensino e Pesquisa, 12(29), 3441. Recuperado em: http://revista.unilus.edu.br/index.php/ruep/article/view/689 Araújo, L. F., Cruz, E. A., & Rocha, R. A. (2013). Representações sociais da violência na velhice: estudo comparativo entre profissionais de saúde e agentes comunitários de saúde. Revista Psicologia & Sociedade, 25(1), 203-212. Almeida, G., & Heilborn, M. L. (2008). Não somos mulheres gays: identidade lésbica na visão de ativistas brasileiras. Gênero, 9(1), 225-249. Alves, A. M. (2010). Envelhecimento, trajetórias e homossexualidade feminina. Horizontes Antropológicos, 16(34), 213-233. American Psychological Association. (2008) Answers to your questions: For a better understanding of sexual orientation and homosexuality. Washington, DC: Author. Recuperado em 27 de Abril de 2010 em

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Capítulo 7 Envelhecimento e Qualidade de Vida – Um Estudo com Idosos em Sociabilidades Públicas Juliana Fernandes-Eloi Tainara Rodrigues Teixeira Nunes Marina Duarte Ferreira Dias Introdução O envelhecimento populacional é uma demanda urgente em todo o mundo e as estimativas são de que a população com 60 anos ou mais irá duplicar até 2050 (Organização Mundial da Saúde, 2017). Devido a essa expectativa de vida elevada, a trajetória dos estudos sobre o envelhecimento, atualmente, tem sido alvo de amplas discussões, devido ao significado de viver mais, acompanhada de uma melhor qualidade de vida. Tal fenômeno vem sendo manifestado em diversos campos e contextos de diferentes formas, seja através de debates políticos, do aprofundamento de pesquisas sobre o envelhecimento e em questões e reflexões nos âmbitos social e psicológico (Carvalho & Araújo, 2011; Veras, 2009). Em vista disso, o Brasil, nos últimos anos, vem tendo relevantes transformações na alteração demográfica da população idosa, representando o envelhecimento como um fenômeno marcante e as projeções são de que em 2030 haja 18,6% de idosos no país e em 2060 com 33,7% (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2015). Estima-se, também, que em 2020 haja 34 milhões de pessoas idosas no país, representando a sexta população mais envelhecida do planeta (Minayo & Coimbra, 2002).

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Diante desse cenário, o Brasil levanta questões importantes sobre o envelhecimento no que se refere às perspectivas, aos limites e aos desafios que estão por vir, pois o idoso faz parte de uma realidade diferenciada, em que o mesmo passa a enfrentar dificuldades por conta da sociedade ainda não saber lidar com o envelhecimento prolongado (Alvino, 2016). A velhice é complexa para as sociedades ocidentais e possui relação direta com questões biológicas, psicológicas, comportamentais e que são perpassados, ao mesmo tempo, por interações entre os aspectos sociais, culturais e demográficos de cada contexto (Goldman, Faleiros, Borges, & Coimbra, 2012). Ou seja, envelhecer se configura como um fenômeno complexo e biopsicossocial (Couto, Koller, Novo, & Soares, 2009). De modo geral, a velhice ainda está ligada a uma imagem negativa que se desenvolve socialmente, passa a ser percebida como ruim, desprestigiada e negada, associando-se a finitudes, problemas e isolamento (Barros, 2006). Nesse sentido, a vivência negativa da velhice, gera aspectos contextuais e culturais que promovem os preconceitos vividos pela pessoa idosa (Goldani, 2010). Percebe-se, assim, que ainda é frequente a supervalorização da juventude em detrimento da velhice, e a agregação da velhice ao desprezo social e fragilidade psicoemocional em contextos que desvalorizam a imagem da pessoa idosa, associando-a a termos pejorativos e preconceituosos em uma fase de problemas e decadências (Cachioni & Aguilar, 2008; Couto et al., 2009). Nesse sentido, a vivência social e subjetiva de tais estigmas pode afetar na qualidade de vida e na percepção que esse indivíduo tem sobre sua própria velhice, por ser um conceito que abarca o modo como cada um pensa e vivencia sua vida nos elementos sociais, subjetivos e ambientais. Sendo uma dimensão que não envolve somente o contentamento das questões mais fundamentais da existência do ser humano, mas que, quando se

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nega o acesso ao trabalho e vivenciam exclusão social e violência, podem impedir a qualidade de vida (Minayo, Hartz, & Buss, 2000). Isso pode contribuir para que muitos idosos internalizem uma visão cheia de estereótipos e acabem por naturalizar ações negativas em relação à idade prolongada. Faz-se necessário, então, destacar que, psicologicamente, a qualidade de vida é o modo como a pessoa percebe sua vida de forma mais satisfatória (Pereira, Teixeira, & Santos, 2012). Com isso, a qualidade de vida é atravessada pelas questões subjetivas vivenciadas pela pessoa, assim como produzido e influenciado pelo contexto que, “reflete a percepção dos indivíduos de que suas necessidades estão sendo atendidas, ou que estão sendo negadas oportunidades para alcançar a felicidade e auto-realização, independentemente da sua saúde física ou condições sociais e econômicas” (World Health Organization, 1998, p. 29). Portanto, a qualidade de vida tem interface com uma série de questões, que juntas propõem a concepção de se viver bem diante das diversas variáveis que podem vir a ser vividas pela pessoa idosa (Lima, 2010). Nesse sentido, discutir sobre a qualidade de vida, é entender que esta é relativa, e que pode sofrer alterações ao longo do tempo, não se configurando como algo estático (Rabelo, Maia, Freitas, & Santos, 2011). Pois, se para uma pessoa, envelhecer com qualidade de vida está relacionado a práticas de atividades físicas e alimentares saudáveis, de ser ativo, não significa que seja igual para todos, uma vez que para outra, o simples fato de viver em grupos de sociabilidades, do contato com a família, ou de ter uma vida simples, podem ser fontes de satisfação e qualidade de vida na velhice. Envelhecer com qualidade de vida, significa desenvolver possibilidades de vivenciar e sentir a vida com satisfação nos mais diversos seguimentos. Dentro desse mesmo pensamento, Minayo, Hartz e Buss (2000) ressaltam que a qualidade de vida envolve o

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entendimento subjetivo da própria pessoa, sobre como ela avalia a sua satisfação nos seguimentos da vida pessoal, familiar, comunitária e ambiental, a partir da sua própria vivência. Ou seja, envelhecer de modo saudável representa uma meta que transcende questões físicas de saúde, estendendo-se para diversos aspectos em que, envelhecer com qualidade de vida não se relaciona somente aos problemas de saúde, mas do modo como a pessoa experimenta, vivência e avalia sua vida. (Teixeira & Neri, 2008). Todavia, mesmo que o processo de envelhecimento seja inerente ao ser humano, ainda muito se tem a construir para compreendê-lo, não como apenas fase da finitude, ou como estágio da vida associado a declínios e perdas, mas como campo de habitação da vida, que deve ser pensado e reconsiderado a partir de alternativas que contribuem e favoreçam a vivência de uma velhice mais significativa e com qualidade de vida (Araújo, Santos, Amaral, Cardoso, & Negreiros, 2016). Diante disso, Braga, Braga, Oliveira e Guedes (2015), realizaram uma pesquisa qualitativa sobre a qualidade de vida no envelhecimento, com o objetivo de investigar sobre a percepção que o idoso tem a respeito da saúde e a qualidade de vida. Consistiuse de um estudo exploratório e descritivo, que foi realizado com 06 idosos de ambos os sexos, que residiam na comunidade de Picus/Icapuí-Ceará. Identificou-se nos resultados a velhice como interligada não somente ao fator biológico, mas que é constituída por diversas questões e que dela participam alterações físicas, mas também trazendo consigo várias mudanças que influenciam na vida dos idosos. Interligado a isso, estaria a qualidade de vida e as relações interpessoais, a realização de atividades físicas e o interagir em grupos como aspectos importantes que contribuem na sensação de bem-estar na velhice. Outro estudo, realizado por Santos e Lima (2014), buscou identificar a vivência de idosos sobre o envelhecimento e as

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percepções sobre qualidade de vida na velhice. Para tanto, a pesquisa foi realizada com dez idosos de sexos diferentes, que participavam do CRAS. Diante disso, os resultados apresentaram que o envelhecimento e a qualidade de vida são vivenciados pelos idosos de forma diferente, conforme suas experimentações, percepções, valores e a trajetória de vida, porém a maioria deles relatam não saber conceituar qualidade de vida, mas que utilizam da resiliência como forma de superar as dificuldades, e a família como rede de apoio e que ambos influenciam na qualidade de vida e no bem-estar físico e psíquico dos idosos. Por isso, é fundamental que esta parcela da população seja visibilizada, para que avance em novas formas de se viver com qualidade de vida, pois um país que envelhece precisa pensar em estratégias econômicas e sociais para abarcar essa população. Assim, diante da necessidade significativa de se perceber os espaços de sociabilidades como importantes para a qualidade de vida na velhice, este estudo teve como objetivo compreender a percepção de idosos sobre a qualidade de vida em espaços de sociabilidades Públicas. Método Este estudo possui caráter exploratório e de natureza qualitativa, por buscar compreender os aspectos do cotidiano, de forma a investigar, detalhadamente, como os idosos elaboram o seu contexto (Alvino, 2016; Flick, 2009). Para a realização da pesquisa empregou-se como procedimento de coleta de dados o grupo focal, sendo um método que proporciona uma vasta discussão acerca da temática ou de um ponto específico a partir da comunicação entre o grupo (Backes, Colomé, Erdmann, & Lunardi, 2011). Participantes

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Desse modo, o grupo focal foi dividido em dois momentos, apresentando-se como um espaço que emergiu, de forma natural, as opiniões e ideias sobre os temas propostos e contou com 06 participantes de idades entre 54 a 76 anos, todos residentes na cidade de Fortaleza/Ceará e do sexo masculino, em que 05 (cinco) são casados e 01 (um) divorciado. No primeiro momento, foram coletadas informações sobre os dados sociodemográficos de cada participante para identificação, e foi feita a apresentação de todos os participantes, que se encontravam em círculos, facilitando assim o debate e a visualização dos participantes. Em seguida, prosseguiu-se com a apresentação da pesquisa e seus objetivos, sendo realizada uma simples explanação sobre o funcionamento do grupo: tempo de duração, explicação do que é o grupo focal, o uso de celular para gravação, acordo sobre o tempo e disposição da fala e da escuta, fotografia e preenchimento de informações. E, no segundo momento, foram realizadas discussões em grupos, tendo como pergunta disparadora: o que é qualidade de vida para você? Os encontros aconteceram quinzenalmente, em uma praça, situada no Lago Jacareí, local em que os idosos sempre se encontram em grupo, de segunda a sexta para jogar dominó e conversar, sendo para eles um espaço de sociabilidades e que é dado como nome do grupo: “Os garotos do lago”. Tendo como duração média de uma hora e quinze minutos. Para tanto, a pesquisadora contou com dois assistentes, sendo bolsista de iniciação científica durante os encontros e com dois juízes, que fizeram uma leitura criteriosa das transcrições das entrevistas para caracterização das temáticas propostas. Os dados coletados a partir do grupo focal foram caracterizados e analisados a partir da análise de conteúdo categorial temática proposto por Bardin (2002), com a finalidade de descrever os conteúdos das mensagens e codificar analiticamente as frequências e percentuais vividos no grupo focal.

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Procedimentos Éticos A presente pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética do Centro Universitário Estácio-FIC, e foi aprovada. As pessoas que participaram desta pesquisa foram esclarecidas sobre a importância deste estudo. Após a explicação, foi solicitado a amostra do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), conforme as exigências do Comitê de Ética em Pesquisa. Resultados e Discussões Dimensões da Qualidade de Vida: Bem-estar, Satisfação e Saúde na Velhice. As relações interpessoais, as práticas de sociabilidades públicas em lugares e espaços são importantes para o bem-estar e satisfação na velhice, pois são aspectos que podem vir a fortalecer e a contribuir na qualidade de vida e suporte social dos idosos. Acerca disso, Ramos (2002), destaca que o suporte social desempenha uma função importante, por estar proporcionado e assegurando a saúde no âmbito físico e mental. Como relatado por Augusto: Aqui tá muito bom, tá muito bom! É o meu ponto de apoio é esse daqui, pronto. Pra conversar, bater papo, vim divertir, fazer tudo (P1, 83 anos). Este depoimento remete a aspectos que fazem parte da vida do participante, no caso o grupo. Evidencia-se, em sua fala, a importância que o grupo tem, e é visto como uma rede de suporte e apoio social, que tem importante valor para o ser humano, isso por favorecer um suporte emocional ao longo da vida (Araújo, Cardoso, Moreira, Wegner, & Areosa, 2012). O grupo social é um espaço na qual a pessoa idosa tem como lugar de compartilhar suas vivências,

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de suas dificuldades, permitindo a ele rever o seu modo de viver, de promover bem-estar e satisfação. Assim, os grupos sociais são relevantes promotores de saúde mental e psicológica por gerarem sentimentos de pertencimento e agregação psicoemocional (Wichmann, Couto, Aurora, & Mantañés, 2013). O grupo de idosos que frequentemente se encontra a mais de 15 anos começou como grupo de caminhada, porém há aproximadamente três anos, começaram a jogar dominó, sendo assim, o grupo possui identidade e se apresenta como um espaço que contribui para seu bem-estar e contentamento na velhice, permitindo experiências de lazer, de atividades sociais, de diversão, de interação, de vínculos e de trocas de aprendizagens. Portanto, questões relacionadas ao lugar como possibilidade de encontro e construção é colocado como relevante na vida da pessoa na velhice. Acerca disso, Bomfim (2015) discute que é na relação entre o espaço e a pessoa que se constrói uma afetividade, porém não somente em relação à pessoa e ao ambiente, mas também na relação dialógica entre o espaço e a pessoa, ou seja, é uma interrelação entre a pessoa e o ambiente, compreendendo que um local não envolve somente o sujeito, mas engloba uma visão de um lugar construtor de representatividade, de temporalidade e ilustração. Por essa razão, o espaço em que o participante se encontra tem para ele um valor atribuído de significados, porque é por meio dele que o mesmo consegue receber apoio, mas que também significa, uma rede de representações e construções de afetividade e simbologia. Assim, o grupo como espaço, também contribui para o bem-estar, que se faz presente no convívio e nas relações com as pessoas nos mais diversos âmbitos, como podemos observar na fala de Natanael e Martín:

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[...] Eu venho pra cá tanto faz jogar como não jogar, eu olho pra cara desses velho e fico satisfeito, porque eu tô mangando deles (P2, 76 anos). [...] O bem estar, é... Relacionamento bom, muito bom, viu. Influenciam, claro! O homem é um ser social, né, sem o relacionamento social ele seria, é... (P3, 71 anos). Nesses depoimentos pode-se perceber o sentimento de pertencimento e a satisfação implicada nas relações e vivências sociais desses idosos. Infere-se, a partir dessas falas, que a amizade exerce a função de bem-estar e de apoio e interferem positivamente na saúde e bem-estar das pessoas (Nogueira, Lima, Martins, & Moura, 2009). O bem-estar e a qualidade de vida na velhice são construtos relevantes e com múltiplos fatores e aspectos relacionados com condições singulares e coletivas do envelhecimento (Lima, Silva, & Galhardoni, 2008). Com isso, as amizades são compreendidas pelo modo como a pessoa vivencia suas experimentações e isso tem relação com a maneira em que as pessoas idosas encaram o seu próprio processo de envelhecimento, pois envelhecer tem relação com uma série de questões e quando esse status é vivida através das redes de relações sociais, promove bem-estar e possibilitam um suporte social na vida do idoso (Wichmann et al., 2013). Desse modo, os relacionamentos sociais são importantes para um envelhecimento saudável e que dele participam aspectos psicossociais, pois as relações sociais com os grupos e espaços proporcionam lazeres, atividades, bem-estar, favorecem crescimento e desenvolvimento e inter-relações (Hein & Aragaki, 2012). De forma geral, os idosos expressam suas experiências sobre a importância atribuída aos relacionamentos e participações sociais no grupo, pois os amigos, são uma rede de relações, sendo compreendido como um agente de inclusão social do idoso.

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Em estudo realizado por Carvalho e Araújo (2011), foi possível identificar que há diferenças entre gêneros nos relacionamentos interpessoais, em que os homens valorizam consideravelmente os relacionamentos sociais, isso porque fundamentam suas vidas de maneira mais acentuada fora do ambiente familiar e com a chegada da aposentadoria continuam a manter de modo significativo as relações sociais. Diferentemente das mulheres, pois elas, na velhice, voltam suas referências e interesses mais direcionados para contexto familiar. Acerca dessa questão, confirma-se que os relacionamentos sociais são importantes fontes de satisfação, suporte e bem-estar na vida dos participantes. No que se refere à saúde, observa-se que, atualmente, envelhecer com saúde é uma tarefa emergente e presente na vida de todas as pessoas, principalmente vivenciado por pessoas idosas, pelas quais busca-se alcançar uma melhor assistência e cuidado para com a saúde, o que interfere, diretamente, na percepção e vivência de uma boa vida. Rodrigo expressa na sua vivência sua ideia do que seja envelhecer com saúde: Com relação à velhice eu ainda não estou sentindo - eu tenho hoje sessenta e sete anos, fiz agora no dia vinte e quatro [...]. Eu não tenho problema nenhum com a minha saúde[...]. Até hoje eu me sinto um velho jovem. Me sinto, porque eu não tenho problema nenhum, nenhum mesmo, graças a Deus (P4, 67 anos). Há em sua fala, a ideia de que a velhice bem vista é aquela que não é associada a problemas de ordem de saúde e fisiológica, e que, nesse caso, limita a saúde apenas como ausência de doença. No entanto, saúde não se limita apenas à falta de problemas, mas é uma condição, na qual existe a satisfação entre os seguimentos social, físico e psíquico (Wichmann et al., 2013). Há, portanto, um discurso do senso comum de que a velhice só é considerada boa

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quando nela não se fazem presentes limitações e problemas, sendo uma visão muito limitada, pois quando esta é contextualizada como um peso, acaba por contribuir na vivência e entendimento dessa velhice. Porém, a compreensão de uma boa velhice é ampla, uma vez que, vai além de uma questão de saúde física, mas expande para um seguimento com múltiplos aspectos (Teixeira & Neri, 2008). Assim, quando a velhice, por sua vez, deixar de ser encarada como negada, rejeitada e associadas a perdas, e passar a ser vista como uma etapa da vida comumente perpassada por mudanças de ordem heterogênea, consequentemente irá interferir no amadurecimento da sociedade sobre o envelhecimento, construindo novas formas de viver e perceber este fenômeno (Walter, 2010). Por outro lado, Francisco expressa seu ponto de vista acerca da saúde e as várias dimensões que podem influenciar no bem-estar e saúde do idoso, não sendo percebida apenas como ausência da saúde: A saúde, quando ela não responde positivamente. É... a saúde, as notícias ruins sobre a economia, sobre a corrupção, sobre o estado do nosso país, sobre a violência. O cotidiano de violência que a gente vive, né, constantemente. As notícias que aflora sobre assalto e essas coisas, deprimem a gente (P5, 67 anos). Portanto, sua fala contribui na compreensão de que a saúde envolve todo um processo, caracterizando-se como um conceito complexo, e que dela envolve todo um cotidiano que se desdobra em vivenciar em meio às dificuldades e questões sociais enfrentadas por todos em uma sociedade. Saúde é assim, para Sege e Ferras (1997), um complexo bem-estar entre o físico, o social e o mental. No entanto, é necessário destacar que este conceito abarca uma concepção utópica, por ver inviável de alcançar. Para tanto,

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Batistella (2007) traz uma importante contribuição no entendimento do que seja saúde, por colocá-la como uma construção que tem relação com o tempo, que transmite e acompanha o cenário econômico, social e cultural de um determinado contexto e espaço. E, para identificá-la em seu percurso, é preciso entender que o seu significado e a estipulação de suas experiências têm relação com o nível de conhecimento oferecido em cada cenário. Concepções sobre a Velhice Nesta categoria, são abordadas as concepções dos participantes acerca da imagem particular e social da velhice. Desse modo, as perguntas norteadoras tornaram o caminho inicial, incentivando a respeito do debate que se tem da imagem subjetiva acerca da velhice. Lima, Silva e Galhardoni (2008) discutem a subjetividade como constituindo-se de uma medida fundamental, que tem relação com o estado de bem-estar e com as medidas objetivas de saúde. O que convida a refletir sobre a subjetividade presente no envelhecimento. Dessa maneira, Martin expressa sua visão sobre a velhice: Olha, deixa eu falar. Criaram tudo que foi de terceira idade, melhor idade, num sei o quê de idade, mas nada que o... É a pior doença que tem viu, jovem. É a pior doença que tem. Velhice, velhice! Num tem negócio de terceira idade, boa idade, isso é tudo papo furado. Tem que conviver com o estado. Não tem como voltar atrás, voltar a ser jovem né. Se pudesse era bom demais. (P3, 71 anos) A velhice é para Martin uma fase ruim, por realçar a ideia de que a mesma está associada a uma imagem de perda sob diversos aspectos. Uma questão a ser destacada e evidenciada, a partir da fala do participante, é que a percepção sobre a velhice não é

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sustentada apenas pela sociedade, mas principalmente por quem está vivenciando essas condições. Isso demonstra um imaginário ampliado sobre a velhice que envolve aspectos somente ligados a algo negativo, de perdas e dificuldades, deixando de envolver os aspectos biopsicossociais relevantes. Em um estudo realizado por Fernandes e Gárcia (2010), apontam que o envelhecimento é um movimento, que se caracteriza por estar ligado aos diversos percursos de vida – plano individual; bem como relaciona-se e constitui-se por diversas interferências, dentre elas socioculturais – plano coletivo. Sendo o envelhecimento um processo que é perpetuado durante todo o percurso de vida e a velhice revela tonar-se ou ser velho, sendo vivenciado dentro de uma conjuntura social, governamental e pessoal. Assim sendo, o envelhecimento é atravessado pelos processos subjetivos dos sujeitos, assim como produzido e influenciado pelo contexto (Fernandes-Eloi, Dias, Nunes, & Silva, 2019). Dessa forma, envelhecer está carregado de estereótipos e conotações negativas e pejorativas, com as quais se experienciam o preconceito e passam a naturalizar esse fenômeno, o que não causa estranheza. Infelizmente, na sociedade brasileira, é presente o estereótipo de que velho é ligado a um peso, que se limita às perdas, e é assexuado, assim como atravessam a ideia social do que é ser velho, deixando de lado as experiências implicadas no processo de envelhecer do individuo (Fernandes-Eloi, Dantas, Sousa, CerqueiraSantos, & Maia, 2017). Com isso, a velhice pode ser encarada como estigmatizada, na qual ser velho é perder a autonomia e ser encarado como um problema de ordem social (Jardim, Medeiros, & Brito, 2006). Há, nessas colocações, um jeito particular e subjetivo de sentir-se uma pessoa idosa, mas, ao mesmo tempo, ser idoso está carregada de discriminação diante de uma sociedade com sistemas de valores que promovem a supervalorização do jovem em

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detrimento da velhice (Teixeira, Marinho, Cintra, & Martins, 2015). Por essa razão, diversos são os significados atribuídos à velhice, por envolver uma série de sentimentos, percepções, imagens e reações sociais, como Moreira demonstra, em sua fala: Eu era feliz e não sabia.[...].A idade é tudo viu jovem, aproveite essa sua idade, que a melhor idade que tem na vida é... E não tem muito o que acrescentar muito não [...]. Que eu digo que você tem que viver sua juventude, porque é a melhor fase da vida. (P3, 71 anos) A juventude é assim considerada para o participante como a melhor fase da vida, em que está metaforizado no belo, no novo, cheio de esperanças e sonhos ao contrário da velhice que é tida como ruim, como um problema, sendo este o estereótipo que a velhice adquiriu. Mas vai para além disso, pois é apresentada, constantemente, como finitude, principalmente em uma cultura em que a velhice representa ameaça. Ao velho é dado a proximidade do fim, diferentemente da juventude, que é comparada com idealização do novo, as possibilidades de uma longa vida ainda a tornar-se (Carvalho & Araújo, 2011). Sendo que, “os estereótipos e preconceitos vigentes na sociedade são reflexos da supervalorização na cultura ocidental da beleza, juventude, independência e a habilidade de ser produtivo, o que provém do dominante modelo econômico capitalista” (Silva, Farias, Oliveira, & Rabelo, 2012, p.121). Assim sendo, o processo de envelhecer, na contemporaneidade, principalmente na realidade brasileira, abre espaços para que sejam compreendidos socialmente a discriminação enfrentada pelos idosos. Vivencia-se uma estrutura carregada e limitada de preconceito, na qual envelhecer é, na grande maioria, associada à não participação social, a uma

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deterioração do corpo, do emocional, da vivência da sexualidade e do luto (Fernandes-Eloi et al., 2017). Diante disso, o participante Rodrigo deixa claro em sua fala a representação que a pessoa idosa tem na sociedade brasileira expressando assim, sua visão sobre o idoso: Aliás, o idoso não tem valor nenhum aqui no Brasil, na Europa o idoso é cuidado de outra maneira, com outra visão e na Índia o idoso é considerado uma pessoa muito sábia, muito importante da família entendeu? (P4, 67 anos) Demonstra-se aqui que ser idoso está envolvido em um sentido negativo, pois é no contexto brasileiro que o idoso vivencia o preconceito e discriminação por ser agregado como um peso para a sociedade, já em outros países como no ocidente, ser velho é colocado como sinônimo de respeito, de experiências, ensinamentos, carregado de um valor de muitos aprendizados (Moreira & Nogueira, 2008). A manutenção desse preconceito no ocidente, principalmente em relação à idade, é expressa de forma implícita e velada por diferentes espaços, como no mercado de trabalho, na família, nas universidades, dentro outros (Goldani, 2010). Sendo que essa visão preconceituosa que a sociedade tem do idoso colabora, muitas vezes, na reprodução de estigmas e muitos idosos internalizam e naturalizam esse preconceito. Paschoal (2000), por sua vez, traz a discussão de que é na sociedade, que são dados aos idosos menos possibilidades de uma vida melhor e digna, não apenas por ser presente uma maneira de se ver a velhice, mas a falta de oportunidades negadas à pessoa idosa. Com isso, ser idoso possui uma conotação negativa para o próprio idoso, devido ao preconceito e estereótipos associado à pessoa na velhice, pois passam a ser vistos como fardo e como um peso para a sociedade. Considerando o depoimento acima,

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percebe-se que o significado de ser idoso varia para cada cultura, em que no Brasil o idoso é enfatizado como desvalorizado. E que se configura como perpassado concepções erradas e estigmatizadas. “Percebe-se que o preconceito é uma característica marcante e são utilizados estereótipos negativos sobre a velhice” (Jardim, Medeiros, & Brito, 2006, p. 26). Envelhecimento e Qualidade de Vida O idoso, atualmente, inscreve-se em um cenário caracterizado de novas formas de se viver, dentre esses, destaca-se um acesso a uma melhor qualidade de vida, que circunscreve os cuidados com a saúde. Configuram-se também, variadas formas de tornar a vida melhor, sejam com a presença de atividades, lazeres com forma de satisfação e prazer para os idosos, como pode-se observar no relato de Natanael sobre qualidade de vida: Qualidade de vida para mim é quando você vive bem, financeiramente [...]. Vive bem com você mesmo, né?! Quando você tem dinheiro para viajar, pra comprar remédios, pra manter a família tranquilamente, bem alimentada (P2, 76 anos). Nessa construção de pensamento, o participante traz a ideia de qualidade de vida em um sentido global, que inclui vários conteúdos como: saúde, família, dinheiro, bem-estar, felicidade e equilíbrio social. Para tanto, Oliveira, Gomes e Paiva (2011), conceituam qualidade de vida como algo mais completo, que envolve não somente questões de saúde, mas a maneira como a pessoa atribui os sentidos a o seu bem-estar subjetivo, bem como sua satisfação com sua vida.

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Outro fator relevante em relação à qualidade de vida está presente no depoimento do Eduardo, que diz respeito às questões sociais e econômicas enfrentadas pelo ser humano: Qualidade de vida é equilíbrio [...] Acho que isso é um equilíbrio entre as dimensões do nosso mundo, equilíbrio entre o fator familiar, social, espiritual né?! Profissional, físico e mental né?!. Se você perde o emprego, fica sem renda e aí vai complicar toda a situação, aí influencia no social, no fator familiar, no psicológico principalmente. (P6, 54 anos) Ainda que envelhecer seja vivenciado de maneira singular por cada pessoa, há, entrelaçado a isso, fatores externos como estilos de vida, bem como os diversos fatores: sociais, políticos, econômicos, que também podem influenciar na qualidade de vida das pessoas, no modo como elas se percebem, se auto-avaliam em questões de saúde, de contentamento com sua vida, de se sentir bem (Cavalcanti, Moreira, Barbosa, & Silva, 2016). Qualidade de vida é um fenômeno de várias dimensões, que envolve o modo como cada um interpreta sua vida de forma subjetiva, o que torna oportuno destacar o conhecimento de que é um conceito que não se relaciona somente à saúde, ou apenas a um aspecto, mas sim a uma série de fatores que contribuem para uma boa qualidade de vida (Dawalibi, Aquino, Goulart, Witter, & Anacleto, 2013). Desse modo, Rodrigo aponta o que é qualidade de vida para ele, que também tem relação com vários elementos, porém o participante atribui um novo elemento em um sentindo não material, para o conceito de qualidade de vida: Qualidade de vida é está com Deus, tranquilo, em paz com a família, com os vizinhos, com os seus funcionários [...]. É

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felicidade total, ai é qualidade de vida quando você vive feliz total, no seu total (Rodrigo, P4, 67 anos). Acerca disso, Minayo, Hartz e Buss (2000) apontam que elementos que têm um sentido simbólico, no caso o amor, a autonomia, a reciprocidade, o sentir-se realizado e feliz compõem o conceito de qualidade de vida. Nesse sentido, percebe-se, na fala de Rodrigo, outra contribuição, que é do seu entendimento sobre qualidade de vida, que envolve a felicidade. Hein e Aragaki (2012), contextualizam a qualidade de vida na velhice como algo que se insere um contexto abrangente e sua ligação com os mais variados aspectos subjetivos e coletivos, e que dela podem participar, também, as atividades em espaços e grupos, como exposto por Martín: Você, você ter uma vida social nem que seja aqui jogando dominó e tudo, no lago, mas tem que ter um convívio social que também faz parte da integridade da pessoa, da, do comportamento da pessoa. É só isso, qualidade de vida pra mim é isso ai viu (P3, 71 anos). Na verdade, este idoso vivencia uma realidade, em que o contato com a qualidade de vida é vivido, a partir dos espaços de sociabilidades que é promovido no convívio com os outros idosos. Assim é oportuno salientar que a qualidade de vida abarca diferentes significados e tem relação com o julgamento e a subjetividade de cada pessoa, mas que todos os participantes revelam que qualidade de vida está interligada à rede familiar, comunitária e social. Dessa maneira, existem para eles, diversas formas de expressar o que seja qualidade de vida a partir do que ambos vivenciam. Para Lima (2008), o modo como cada um interpreta e percebe sua qualidade de vida resulta do seu momento

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de vida que se encontra, do seu ambiente social e cultural e da trajetória de vida. Sendo que, muitos idosos, por estarem em convívio com aspectos sociais, familiares, matérias e de saúde, tendem a consideram sua qualidade de vida como boa (Netuveli & Blane, 2008). Considerações Finais Com este estudo, foi possível identificar uma construção rica de trajetórias, pensamentos, significados sobre o envelhecimento e a posição que os participantes assumem na sociedade. Diante de um contexto que desvaloriza a pessoa idosa, carregando uma visão distorcida e preconceituosa do mesmo (Cachioni & Aguilar, 2008). Reconhecem assim, um pensamento limitador do que seja a velhice, mas, ao mesmo tempo, são situações pelas quais muitos dos idosos passam a viver e tomando para si de forma naturalizada, transmitindo uma imagem cheia de ideias distorcidas sobre a velhice e que contribui para acelerar o processo do envelhecimento, pois, a vivência do preconceito interfere na percepção subjetiva do que seja qualidade de vida (Couto et al., 2009; Pereira, Teixeira, & Santos, 2012). No entanto, verificou-se que qualidade de vida na velhice ultrapassa um simples conceito, que começa a criar forma na medida em que eles colocam em suas falas vivências, afetividades e aprendizagens singulares, sendo vivido na relação com a temporalidade e atemporalidade nos campos: sociedade e subjetividade. A qualidade de vida é assim, interligado a aspectos como a saúde, a cultura, a política, as questões emocionais, dentre outros. Ou seja, qualidade de vida não envolve apenas questões de saúde, ou felicidade, contentamento, mas ambos circundam na interação e formação de outros elementos que também fazem parte desses pontos, e da maneira subjetiva que cada um compreende

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sobre qualidade de vida. Diante dos cenários apresentados neste estudo é imprescindível que novas pesquisas sejam desenvolvidas com classes sociais diferentes, bem como é necessário visibilizar o papel da psicologia na articulação dos espaços de sociabilidades públicas como importantes na vida dos idosos, proporcionando a vivência da velhice com qualidade de vida, nos mais diversos aspectos e que se ampliem às discussões das políticas de acessibilidade para as pessoas idosas. Referências Alvino, F. S. (2016). Concepções do idoso em um país que envelhece: Reflexões sobre protagonismo, cidadania e direitos humanos no envelhecimento. (Dissertação de mestrado). Universidade de Brasília, Brasília, Brasil. Araújo, C. K., Cardoso, C. M. C., Moreira, E. P., Wegner, E., & Areosa, S. V. C. (2012). Vínculos familiares e sociais nas relações dos idosos. Revista Jovens Pesquisadores, 1, 97-107. Araújo, L. F., Santos, L. M. S., Amaral, E. B., Cardoso, A. C. A., & Negreiros, F. (2016). A Musicoterapia no fortalecimento da comunicação entre os idosos institucionalizados. Revista Kairós Gerontologia, 19(22), 191-205. Backes, D. S., Colomé, J. S., Erdmann, R. H., & Lunardi, V. L. (2011). Grupo focal como técnica de coleta e análise de dados em pesquisas qualitativas. O mundo da saúde, 35(4), 438-42. doi:10.15343/0104-7809.2011354438442 Bardin, L. (2002). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70. Barros, M. M. L. D. (2006). Trajetória dos estudos de velhice no Brasil. Sociologia, problemas e práticas, 52, 109-132. Batistella, C. (2007). Abordagens contemporâneas do conceito de saúde. Em Fonseca, A. F., & Corbo, A. M. D. O território e o processo saúde-doença. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz.

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Capítulo 8 O Ciberativismo Digital: Notas para Novas Metodologias de Pesquisa em Psicologia Social Marília Maia Lincoln Barreira Pollyana de Lucena Moreira Luciana Maria Maia Este capítulo reúne uma discussão sobre o fenômeno do ciberativismo, com ênfase para as metodologias de pesquisa em Psicologia social. Para tanto, essa discussão inicia-se com considerações sobre a internet e o ciberativismo. Depois, apresentam-se sugestões de novas metodologias de pesquisa em ciberativismo no viés da Psicologia Social, a partir de pesquisas recentes e, também, de reflexões a partir dos principais autores desta disciplina. Nas considerações finais, as autoras apresentam, com base no conteúdo apresentado, reflexões acerca das possibilidades de investigações a partir dessas metodologias de pesquisa em Psicologia social, tendo em vista a necessidade de ampliar o conhecimento sobre formas de se estudar esse fenômeno. O ativismo digital tem se consolidado como uma forma contemporânea das ações de movimentos sociais de diferentes grupos. Também chamado de ciberativismo, esse fenômeno é descrito como a utilização do potencial da Internet para realizar ativismo político, criando conexões entre os participantes de um grupo social (Penteado, Santos, Araújo, & Silva, 2011). Apesar de um movimento recente no Brasil, o ciberativismo, ou seja, ativismo digital através da Internet, não é um fenômeno tão novo assim. Seus primórdios vêm da Revolta Zapatista em 1994, e ganha força mundial

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com a onda de protestos contra governos pouco democráticos de países do Oriente Médio e Norte da África a partir de 2010 (Queiroz, 2017). No Brasil, especificamente, em junho de 2013, os movimentos sociais passaram a usar a Internet como uma nova arma em sua atuação. Para Scherer-Warren (2014), o Movimento do Passe Livre, que ganhou popularidade ao ter seus eventos marcados pelas redes sociais, fez com que diversos grupos que participavam de movimentos sociais brasileiros atentassem para a força da comunicação digital como uma forma de atuação e organização de militantes. Essa organização social pode ocorrer de diferentes formas e em diferentes contextos. A esse respeito, Castells (2012) afirma que são inúmeras as formas de organização online, visto que, através da blogosfera, formam-se novas redes dentro do movimento social local, nacional e mundial. Essas novas formas de comunicação, para o autor, modificam a comunicação com o próprio grupo, com a população como um todo, com a mídia e com representantes oficiais do governo. Nesse sentido, pode-se entender que as formas de constituição grupal na Internet, como chats, comunidades em redes sociais e seguidores de um determinado perfil que atue em defesa de populações minoritárias podem constituir-se como exemplos de grupos ativistas. Considerando as mudanças sociais advindas da popularização da Internet, considera-se importante entender o ativismo também nesse contexto. Nesse sentido, torna-se relevante entender, a partir da Psicologia Social, como a Internet propicia novas formas de ativismo político e de apreensão e construção de pautas políticas para grupos populacionais específicos. A internet e o ciberativismo

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A partir do avanço e da popularização da tecnologia digital, o ciberativismo surge como uma atualização do ativismo, utilizando o potencial da internet para criar conexões entre pessoas de diferentes grupos sociais, para realizar reivindicações políticas. Sobre esse processo, destacamos que a Internet surge em 1969, nos Estados Unidos, com a função de interligar computadores de diferentes laboratórios de pesquisa. Chamada, primeiramente, de Arpanet, era usada exclusivamente pelo Departamento de Defesa Norte-Americano com o objetivo de não perder a comunicação entre militares e cientistas, mesmo em situações de confronto (Castells, 2003). Por quase 20 anos, a Internet foi utilizada apenas para fins científicos, mesmo que essa tecnologia já tivesse chegado em outros países como Dinamarca, Suécia e Holanda. A partir de 1987, seu uso comercial foi liberado nos Estados Unidos. Em 1992, começam a surgir empresas de servidores de Internet e foi criada a chamada World Wide Web, dando a possibilidade de qualquer pessoa com acesso a computador acessar algo que está disponível na rede (Castells, 2003). Com o surgimento e avanço da comercialização da Internet, as relações sociais passaram a acontecer também no chamado ciberespaço, alterando organizações sociais, econômicas e políticas em contexto mundial. Castells (1999) entende que o impacto tecnológico provoca o que ele chama de uma cibercultura, ou seja, o aparecimento de novas formas de relações sociais através da rede, a partir de novas formas de socialização. Para Levy (2000), uma cibercultura é uma consequência dos conjuntos de técnicas sociais que, ao longo da História, propiciam o advento de novas tecnologias, sendo percebida a partir da década de 1960 nos Estados Unidos. Antes do advento da cibercultura, a comunicação era pensada através de outros meios de comunicação. Guareschi (2007)

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alerta para o fato de que a mídia impressa, como revistas e jornais, é uma propriedade privada. Os donos desses veículos de comunicação, por mais que tentem prezar por certa imparcialidade, acabam por refletir seus interesses pessoais na escolha das matérias ou da abordagem realizada sobre um determinado tema. Nessa mesma direção, Amaral e Ferreira (2015) dizem que o nascimento do rádio e da televisão, apesar de ser muito positivo para o desenvolvimento da comunicação em massa, não trouxe avanços no sentido de democratizar a mídia. Da mesma forma que ocorre com revistas e jornais, a comunicação televisiva é parcial, sendo a informação repassada de maneira interessada. Guareschi (2007) diz, ainda, que o poder midiático de 90% de tudo de que os brasileiros leem, escutam e veem estão concentrados em famílias que detêm as principais empresas de comunicação do país. O avanço da tecnologia proporcionado pelas novas formas de comunicação advindas da Internet, forma um fenômeno denominado por Lovink (2011) de mídia tátil. Isso quer dizer que a Internet possibilita uma maior participação de cidadãos comuns na difusão da comunicação, pois os computadores “não mais faziam parte de um circuito fechado e identitário” (Lovink, 2011, p. 277). Castells (1999) entende que a partir da expansão da Internet, podese falar em uma era da informação, que se caracteriza pelas mudanças nas formas de comunicação e pela valorização da comunicação que circula nestes novos espaços. A comunicação se torna mais ágil e eficaz, independentemente da localização geográfica dos sujeitos e fomentando a informação rápida. O aumento constante do número de pessoas que tem acesso à Internet faz com que a tecnologia avance e mude as formas de comunicação na atualidade, tornando-se um importante aspecto cultural e social da contemporaneidade (Monteiro, 2001). A pesquisa TIC Domicílios, responsável por avaliar o uso das Tecnologias da Informação nos domicílios brasileiros, descreve que, em 2015, 80% dos

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lares brasileiros possuíam acesso à Internet a qualquer momento, enquanto em 2014 o acesso digital era de apenas 50% (CETIC, 2017). Esse percentual pode ser considerado alto, sobretudo, quando se considera a rápida propagação dessa tecnologia. Castells (1999) foi um dos primeiros autores a abordar o ciberativismo, entendendo que o ciberespaço seria um local interessante de fortalecimento dos grupos ativistas, considerando as práticas sociais contemporâneas e os impactos da globalização. Da mesma forma, Ugarte (2008) diz que o discurso, as ferramentas e a visibilidade dos meios digitais são os três pilares que compõem essa forma de ativismo; desse modo, a partir do ciberativismo, é possível formar coalizões temporais entre pessoas por meio de ferramentas disponibilizadas na internet, a exemplo das redes sociais (Facebook, Twitter, Instagram), que representam um espaço para a divulgação de informações de construção de um debate crítico que transcende a blogosfera e atinge as ruas. Ainda de acordo com Urgate (2008), esse tipo de ativismo pode envolver duas formas de atuação. A primeira delas seria por meio do uso das mídias digitais como um ambiente de difusão de ideias e outras ações organizadas. A segunda, por sua vez, seria por meio da mobilização de um maior número de pessoas em torno de debates sociais. O autor alerta para o fato de que as duas formas de atuação citadas não são indissociáveis, podendo ocorrer de forma conjunta. Araújo, Freitas e Montardo (2012) dividem o ciberativismo em quatro momentos. O primeiro deles, chamado de Surgimento, caracteriza-se pela pressão provocada pelos ciberativistas para a evolução da Internet na direção de uma lógica não proprietária, ou seja, diferente de seu propósito inicial. Em um segundo momento, vêse a Pré-web, em que o potencial ativista da Internet se baseava apenas na possibilidade de troca de mensagens entre pessoas de um mesmo grupo já organizado offline. O terceiro momento envolve um período de popularização da web, com o início e a expansão de

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sites de apoio a causas ativistas e protestos organizados pela rede. Aqui, também se marcam as primeiras ações de ativismo por hackers. Por fim, no quarto momento, a Web 2.0 favorece o surgimento de novas possibilidades de organização e ação a partir do caráter interativo da Internet, por meio das redes sociais. Nesse sentido, considera-se que as redes sociais virtuais representam uma ferramenta que possibilita a organização de diferentes formas de ciberativismo. Para Glaiusus e Players (2013), após 2010, o ciberativismo ganhou uma estrutura de rede, que facilitou a informação global, e que balizou as reinvindicações e a identidade de movimentos sociais cujas pautas estão direcionadas para três valores básicos: a democracia, a justiça social e a dignidade. Para Corrêa (2004), as formas de comunicação possibilitadas pela internet e pelo uso de redes sociais virtuais permitem que as pessoas se reúnam em grupos sociais a partir de interesses em comum. Ou seja, a Internet facilita a reunião de pessoas, com alguma convergência identitária, em grupos virtuais. Essa ideia permite que possamos pensar na organização destes grupos, assim como pensa-se na formação de grupos originados de contato presencial, a partir da formação de sua identidade grupal. Ciberativismo e a pesquisa em Psicologia Social A rápida e intensa evolução das redes sociais tem modificado, também, o curso do desenvolvimento do conhecimento social. De acordo com van Stekelenburg e Boekkoi (2015), a Internet mudou as dinâmicas de mobilização de quatro formas: por meio da redução da mobilização física e dos custos de participação, por meio da expansão do repertório de táticas dos organizadores, por meio da promoção e fortalecimento de identidades e pela criação de redes de interação. As mídias sociais (Whatsapp, Facebook, Instagram, Youtube) têm possibilitado a criação e o aumento do

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número de grupos sociais, da criação de comunidades virtuais que se caracterizam a partir das possibilidades de interação, o que tem favorecido a divulgação, em larga escala, de opiniões e experiências pessoais. E, a noção de ciberativismo, percebe-se um amplo uso de mídias sociais por grupos minoritários como uma forma de ampliar suas ações ativistas. As mídias sociais, por possibilitarem a conexão entre centenas de pessoas que compartilham os mesmos interesses e atividades, favorecem uma maior visibilidade das causas defendidas por grupos diferentes, o que aumenta as chances de que os objetivos das mobilizações sejam atendidos (Van Stekelenburg & Boekkooi, 2013). Já é comum ver a utilização de mídias digitais em pesquisas de diversas áreas, como na Comunicação Social e na Tecnologia da Informação, e no campo das Ciências Humanas e Sociais. Para Oliveira, Rocha, Giarnodoli-Nascimento, Naiff e Ávila (2017), as relações entre tecnologia, meios de comunicação e a interação social, possibilitadas pelas mídias sociais, trazem consigo um potencial de contribuição para o avanço de pesquisas em Psicologia Social. Uma das formas de olhar para o ciberativismo em Psicologia Social é a partir das formas de constituição e relações de grupos nas chamadas comunidades virtuais. Definidas inicialmente por Rheingold (1994), as comunidades virtuais proporcionam uma quantidade razoável de discussões, de forma pública e envolvem componentes afetivos e cognitivos suficientes para formar relações pessoais no ciberespaço. Essas comunidades podem fortalecer as identidades porque favorecem a compreensão de que as reflexões individuais sobre diferentes situações sociais são compartilhadas por outras pessoas, e isso ocorre porque as pessoas expressam e compartilham nas diferentes mídias sociais suas emoções, ações e a eficácia delas (van Stekelenburg & Boekooi, 2013).

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Para Corrêa (2004), os grupos sociais virtuais são formados por perspectivas identitárias, apoiados em características ou interesses comuns, em que as comunidades virtuais atuam como uma possível estratégia do indivíduo de se fazer reconhecer por meio de uma ou várias identidades. Essa forma de comunicação faz com que as pessoas se reúnam em grupos sociais e os seus interesses específicos. Dessa forma, a Internet facilita a reunião de pessoas, com alguma convergência identitária, em grupos virtuais. Importante considerar que a organização desses grupos, tal como acontece com os grupos face-a-face, se dá com o reconhecimento de uma identidade social. Pensando na possibilidade da Internet criar grupos virtuais e suas características identitárias, aqui nos interessa particularmente a Teoria da Identidade Social, desenvolvida por Tajfel (1982), partindo da ideia de que todo indivíduo constitui-se a partir de aspectos sociais, que falam de sua pertença a grupos ou categorias sociais e, também, por aspectos pessoais, que refletem a constituição psíquica e de personalidade do sujeito. Nas palavras de Torres e Camino (2013) sobre os estudos de Henri Tajfel, a identidade social representa “a consciência que o indivíduo possui de pertencer a um determinado grupo social, como a carga afetiva e emocional que esta pertença traz para o sujeito” (p.534). A partir de Tajfel e Turner (1979), entende-se que a construção de uma identidade social positiva pode contribuir para uma autoimagem positiva, tanto individual como do endogrupo, diferenciando-se positivamente de outros grupos, no processo de categorização social. Desse modo, quanto maior for o sentimento de pertença a este grupo, maiores seriam as condições de diferenciação positiva do endogrupo para o exogrupo. Espelt, Rodríguez-Carballeira e Javaloy (2015) entendem que um dos grandes pontos nos estudos sobre identidade social é perceber o

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compartilhamento de sentimento com um grupo, independente de como este é formado. Compreende-se que os estudos sobre ativismo e ciberativismo encaixam-se nessa concepção sobre a formação de identidades visto que o ativismo é apresentado pela Psicologia Social enquanto uma ação de nível intergrupal. De acordo com Tajfel (1983), uma minoria social consiste em “unidades de pessoas conscientes de si próprias que possuem determinadas semelhanças e desvantagens sociais comuns” (p. 353). A partir de Moscovici (2011), pode-se compreender uma minoria social, também, como um grupo capaz de influenciar outras pessoas a partir de sua organização social. Para Allen (2008), os mecanismos de construção positiva do sentimento de identidade social podem facilitar a influência social por grupos minoritários. No entanto, além de olhar, necessita-se também observar as formas de interação e de comunicação entre minoria e maioria. Essas reflexões sobre ciberativismo, identidade e influência social podem ser compreendidas como justificativas plausíveis para se abordar o ciberativismo, a partir do olhar da Psicologia das Minorias ativas, ao considerar que grupos minoritários utilizam mídias sociais como um mecanismo de influência social de grupos minoritários. Condição que caracteriza a Internet como um ambiente social, que inaugura novas formas de relacionamento inter e intragrupal. Nesse sentido, é impossível pensar nas ações ativistas da atualidade fora do espaço digital, o que ressalta a necessidade de se pensar em novas formas de pesquisa considerando as ações ativistas na Internet. Em uma revisão de estudos publicados no período de 2013 a 2018, que utilizaram a internet como um meio de coleta de dados, verificou-se que as estratégias de pesquisa utilizadas envolvem a divulgação de questionários online (Carbonai & Abdala, 2017; Fonseca, Silva, & Teixeira-Filho, 2017), pesquisas

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etnográficas (Poma & Gravante, 2018), análise de conteúdos construídos para mídias sociais, como analise de blogs ou vídeos (Antunes, 2015; Marins, 2013; Martins & Roso, 2015, Sena & Tesser, 2016), análise de comentários referentes a conteúdo específicos construídos para plataformas como Facebook e/ou Twitter (Biondo, 2015; Grau, 2016; Lopes, Nunes, & Furtado-Veloso, 2019; Moreira, 2015; Silva & Ribeiro, 2016). Nas pesquisas que buscam compreender a construção da identidade ciberativista, destacam-se métodos que propõem uma maior inserção do pesquisador no campo. Martins e Roso (2015) propuseram uma observação participante, como parte inicial de uma pesquisa de mestrado sobre a produção de subjetivas a partir da perspectiva colaborativa do ciberativismo, registrada em blog, criado pelas autoras como forma de inserção na pesquisa sobre ativismo na Internet. A produção do blog foi realizada também por ciberativistas que atuaram como colaboradores, e, que foram conectadas através de mensagem privada em diversas plataformas da Internet, pelo método bola de neve. Para a produção da dissertação, Martins (2013) realizou também um grupo focal, composto por integrantes de uma comunidade do Facebook, escolhida de modo intencional. Utilizando perspectiva metodológica similar, Antunes (2015), em sua tese em Psicologia Social, buscou compreender a identidade ciberativista a partir da análise de textos produzidos para blogs, escolhidos a partir de inserção digital nos moldes da etnografia. Também em uma perspectiva de maior inserção do pesquisador, destaca-se a etnografia em meio digital. Grau (2016) pesquisou o ativismo digital LGBT na Espanha, em uma perspectiva antropológica através de um estudo etnográfico nas páginas Facebook e o Twitter. A autora conclui que o movimento desse grupo social pode ser considerado global a partir do momento em que se insere na Internet, utilizando-a como estratégia, dividindo-se entre

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ações de assistência (divulgação de abaixo-assinadas ou de protestos de rua) e de ativismo propriamente dito (textos ou vídeos reivindicando pautas de grupos minoritários). Poma e Gravante (2018) realizam uma pesquisa que busca entender o processo de apreensão da experiência de ciberativistas. Para isso, utiliza-se de etnografia virtual não como o método em si, mas como parte integrante do processo de investigação, visto que a partir dela pode-se observar o movimento ativista. Tendo por base este método foi possível encontrar possíveis interlocutores para a segunda fase do trabalho, em que se realizou entrevistas em profundidade, com foco na chamada entrevista episódica com pessoas que não se consideravam ativistas, mas que tinham fundamental contribuição em comunidades virtuais encontradas em mídias sociais digitais. O intuito era a partir dessas entrevistas conseguir investigar a experiência de ativismo desses interlocutores, mesmo que esses não se percebessem desta maneira. As entrevistas foram analisadas pela análise qualitativa. Na perspectiva dos autores citados acima, percebe-se que os métodos de maior inserção do pesquisador, a exemplo da etnografia, podem ser pensados de diversas maneiras. Uma delas, a exemplo de Grau (2016), é entender esses métodos como todo o percurso metodológico de uma pesquisa, considerando a Internet como lugar de pesquisa. Pesquisas como a de Poma e Gravante (2018) faz com que se reflita para a etnografia em meio digital como forma de apreensão e conhecimento do campo de pesquisa, assim, como de busca por interlocutores para a continuação do estudo a partir de métodos também usados offline e entrevistas para fins de estudo de caso. Em uma perspectiva metodológica diferente, Carbonai e Abdala (2017) apresentaram pesquisa empírica com 389 interlocutores que preencheram questionário online no município de São Borja, no estado do Rio Grande do Sul. Com o objetivo de

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entender a relação entre participação política eletrônica e engajamento cívico, a pesquisa foi realizada através de questionário eletrônico com a população geral e analisado a partir de uma perspectiva quantitativa. Esta pesquisa utiliza a Internet como forma de criação e divulgação da pesquisa para traçar um paralelo entre a participação online com o engajamento cívico offline. Silva e Ribeiro (2016) discutem o ciberativismo através da página do Facebook que divulgava o evento Marcha das Vadias em São Paulo. Os comentários inseridos na parte de discussão do evento durante o dia da criação da página até a data do evento foram catalogadas nos seguintes critérios: Data, hora e autoria da publicação; tipo de conteúdo publicado: informações de mídia, informações do blog, informações sobre o evento, divulgação de outros eventos etc.; categoria da publicação, número de “curtidas”, compartilhamentos e comentários em cada publicação; elementos do post: fotos, vídeos, links e hashtags. Em seguida, nos moldes da proposta de análise temática a partir de Bakhtin, os posts foram classificados da seguinte forma: aqueles considerados inclusivos foram colocados na categoria “conversacional”; publicações informativas foram categorizadas como "Pré-transmissão do evento", "Difusão de outro evento", "Divulgação de informações relacionadas" ou "Cobertura", e a categoria “outros” foi criada para aqueles conteúdos que não se encaixavam nas anteriores. Em seguida, as informações obtidas online a partir da análise temática foram somadas a entrevista semiestruturada realizada com os membros da Marcha das Vadias. As autoras salientam que os membros do grupo não foram reconhecidos individualmente, mas como grupo e todos os integrantes colaboraram. Fonseca, Silva e Teixeira-Filho (2017) desenvolveram uma pesquisa com ciberativistas socioambientais em Recife, por meio da abordagem quantitativa-qualitativa, com a realização de entrevistas qualitativas e da aplicação de um questionário on-line

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respondido por 221 pessoas. Os interlocutores foram captados por emails enviados à coordenação de dois cursos de uma universidade, escolhidos por conveniência e por um convite enviado a participantes de uma comunidade do Facebook, escolhida propositalmente. Os dados foram analisados através da análise de conteúdo nos moldes de Bardin. Nesse sentido, a Internet funciona como modo de divulgação de questionários, mas também como forma de captação de interlocutores. A análise de discurso é um método bastante utilizado para analisar o ativismo digital. Moreira (2015) investigou o ciberativismo LGBT no Facebook, a partir desse método na página LGBT Brasil. O autor conclui que a página ajuda a ação ativista por se manter como um suporte às ações offline, como a divulgação de pautas, mobilizações, abaixo-assinados, dentre outras iniciativas. Lopes, Nunes e Furtado-Veloso (2019), analisaram, a partir do mesmo método, a iniciativa “Vote LGBT” durante o período de 2014 a 2016, também na plataforma Facebook. Os autores perceberam os mesmos pontos já alocados por Moreira, corroborando a ideia de que as ações digitais contribuem positivamente para as ações ativistas. Biondo (2015) buscou entender a construção e desconstrução dos termos gênero e sexualidade, em uma perspectiva queer, a partir de análises de comentários de uma comunidade feminista e outra anti-homofóbica, disponíveis no Facebook. Através desse estudo, percebeu-se que, além do conteúdo produzido por quem mantém essas páginas, é relevante que se olhe cientificamente para a ação que esses conteúdos geram em quem os consome. Utilizando como campo de pesquisa, uma outra plataforma digital, o Youtube, Clementino e Lima (2017), sob o olhar da Comunicação Social, analisam as repercussões de uma campanha promovida por um canal de temática LGBT. Tal ação tinha como

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propósito ajudar a levantar recursos para a criação de um curtametragem produzido pelos integrantes do canal e ofertava como prêmio para quem contribuísse alguns presentes personalizados ou a possibilidade de conversar com algum integrante do canal via Skype. Utilizam-se da etnografia para buscar elementos diversos de análise, como os vídeos selecionados, publicados sobre a campanha e os comentários publicados nesse mesmo material. Os resultados obtidos foram analisados por meio da análise de conteúdo. O Youtube também foi a plataforma escolhida por Sena e Tesser (2016), mas não como recurso metodológico, e sim para comunicar o resultado da pesquisa. Inicialmente, os autores criaram o “Teste da Violência Obstétrica”, documento divulgado online em que mulheres colocavam suas impressões sobre seus relatos de parto. Os resultados foram divulgados na mídia tradicional e virtual. Posteriormente, os autores criaram um documentário a partir de relatos e fotos de mulheres que se reconhecem como vítimas de violência obstétrica na ocasião do parto e que haviam participado da primeira fase da pesquisa. O documentário foi apresentado em eventos científicos e disponibilizado na plataforma Youtube, atingindo altos índices de visualização na categoria “sem fins lucrativos/ativismo”. Compreende-se, a partir dos exemplos citados, que a internet pode ser considerada como um meio de coleta de dados, mas, também, como um lugar de pesquisa. De uma forma geral, as conclusões das pesquisas aqui apresentadas sugerem a efetividade da Internet, já que se consolida como um meio de comunicação mais rápido e que atinge diversas partes do país ou, até mesmo do mundo, facilitando o processo de pesquisa. Oliveira et al. (2017) ao realizar uma pesquisa de revisão sistemática, com o objetivo de compreender o uso da Internet para pesquisas em Psicologia Social, concluíram que há muitos desafios metodológicos nessa nova forma de fazer pesquisa, visto que os

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procedimentos de coleta e de análise de dados precisam ser readequados para o uso a partir do conteúdo digital. No entanto, seria inegável o entendimento de que a Internet possibilita um novo olhar para a dinâmica das relações intergrupais, visto que muitos grupos se reúnem, prioritariamente, por meio digital. Considerações Finais Considerando a importância de compreender as mídias sociais como campo de pesquisa fértil e útil para a ciência, devido ao grande impacto da globalização e da comunicação na era digital, este capítulo se propôs a apresentar reflexões acerca das possibilidades de investigações em Psicologia Social, a partir dessas novas formas de comunicação. Entende-se que foi possível traçar um panorama de pesquisas recentes que se utilizam ou que têm como conceito principal, o ciberativismo. A maioria das pesquisas encontradas, centram-se em métodos como a observação do participante e a análise de discursos, utilizando-se de inspiração etnográfica. Percebe-se, assim, a necessidade de investimento das futuras pesquisas em Psicologia Social em propor métodos diversos para se estudar o ciberativismo, incluindo formas online e offline. Sente-se falta, também, de métodos que tragam diversos atores deste processo como os criadores de conteúdo e aqueles que o consomem. A Internet traz a possibilidade de pessoas geograficamente distantes se unirem em prol de um mesmo objetivo, alterando, desse modo, a forma como as pessoas se socializam e como os grupos são formados. Os grupos sociais, independentemente de estarem reunidos física ou digitalmente, unem-se a partir de questões identitárias. Fazse necessário, portanto, olhar para esse ponto como um fator fundamental na constituição e unidade desses grupos. A partir das considerações teóricas tecidas aqui, entende-se que o caminho da

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construção identitária em uma perspectiva mais coletiva, ajuda a pensar métodos relevantes de olhar para o ciberativismo, visto que as estratégias de ativismo são articuladas a partir das demandas e dos instrumentos que viabilizam a organização e as ações do grupo. Para a Psicologia Social, o tema das relações intergrupais, assim como o processo de pertencimento grupal é muito caro. Julgase pertinente considerar que as práticas ativistas e o ciberativismo podem fortalecer a identidade social de grupos minoritários, e, como tal, precisam ser investigadas academicamente. No entanto, há poucos estudos específicos sobre as ações ciberativistas em Psicologia Social. Ademais, o desenho metodológico das pesquisas em ciberativismo, a partir da Psicologia Social, parece ainda estar sendo construído. Como sugestão para novos estudos, propõe-se a experimentação e o registro de novos métodos aplicados ao tema do ciberativismo. Cria-se, assim, uma demanda de pesquisa que necessita ser suprida, a fim de compreender melhor esse novo processo de desenvolvimento metodológico na Psicologia Social. Referências Allen, V. (2008). Infra-Group, Intra-group and inter-group: construing levels of organization in social influence. In S. Moscovici., G. Mugny, & E. Avermaet (Eds.) Perspectives on Minority Influence (pp. 217 - 251). New York: Cambridge University Press. Amaral, C. A., & Ferreira, A. T. (2015). Midiativismo: as redes sociais no movimento brasileiro. Anais Eletrônicos de Comunicação Social, 1, 91-103. Antunes, M. (2015). Ciberativismo, Identidade Política e metamorfose Humana (Tese de Doutorado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Araújo, W. F., Freitas, E. C., & Montardo, S. P. (2012). Ciberativismo como cultura de mobilização imanente à internet. In P. R. Puhl,

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Capítulo 9 Representação Social do Emprego Doméstico: Um Estudo Sobre as Condições de Saúde e Segurança no Contexto de Atuação das Empregadas Domésticas Luisa Regina da Silva Teixeira Raquel Pereira Belo A ação de trabalhar está presente na humanidade desde a pré-história, quando se realizava a manipulação de equipamentos na busca da adaptação aos obstáculos impostos pela natureza. Pensar em trabalho, na atualidade, é também pensar em diversas leis e direitos trabalhistas que asseguram os trabalhadores no ambiente laboral. A Consolidação das Leis do Trabalho – CLT constitui um decreto de lei implementado no Brasil em 1943 e, desde então, busca regulamentar e garantir ao trabalhador os direitos e deveres, assim como questões relacionadas à saúde e segurança do trabalhador. Atualmente, o mercado de trabalho é composto por atividades desvalorizadas socialmente, a exemplo do emprego doméstico – modalidade de trabalho antiga que tem passado por mudança em função das leis trabalhistas que exigem normas, direitos e deveres tanto dos empregadores como também dos empregados. Dentre estas é possível contar com um conjunto de leis que condenam ambientes insalubres e fazem referência ao uso de Equipamentos de Proteção Individual – EPI a fim de garantir a segurança pessoal no ambiente de trabalho. Entretanto, a fragilidade no campo do trabalho é presente constantemente e não é apenas causada por vírus, bactérias ou

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algum agente biológico, físico ou químico, mas pode se dá também através de fatores psicológicos – representados por emoções e conflitos e por agentes psicossociais – representados pelo ambiente socioeconômico e pela organização do trabalho (Limongi-França, Rodrigues, Sampaio, Galasso, & Ribeiro, 2007). O trabalho doméstico – herança do trabalho escravo - é também um exemplo de precariedade e sofrimento psíquico no campo do trabalho, visto que, exercido em sua maioria por mulheres, estas, além da realização de suas atividades, sofrem exploração, sobrecarga de trabalho e violência sexual. O trabalho doméstico existe desde antes da Revolução Industrial e Sistema Capitalista e se faz presente até a atualidade. Historicamente o trabalho doméstico foi iniciado no período da escravidão, quando pessoas eram condenadas a trabalhar na casa de seus “senhores” para realizar diversos serviços de cuidado com a casa e com os moradores, desde atividades consideradas “mais leves” até às extremamente pesadas. Neste sentido, apesar da escravidão não existir de forma legalizada, muitos traços desse sistema de trabalho existem refletidos no emprego doméstico atual. De acordo com o Ministério do Trabalho e Previdência Social – MTPS e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, entre os anos de 2004 e 2014, a realização do emprego doméstico é predominantemente feminina nas residências de classe média e alta no Brasil – uma faixa de 92%: 5,9 milhões de brasileiras, o que equivale a 14% da população; os dados mostram ainda mulheres ocupadas desde os 10 anos de idade, com uma média de estudo mínima; 70% sem Carteira de Trabalho e Previdência Social – CTPS; a maioria negra: 17% contra 10% das empregadas domésticas brancas, com menor escolaridade e menores salários. Vale ressaltar que em relação à CTPS existe diferença entre as mulheres empregadas domésticas negras e as brancas: 33,5% das empregadas domésticas brancas contra o de 28,6% das empregadas domésticas negras. Tal

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discrepância é refletida nas questões salariais. De acordo com a presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas – Creuza Maria Fenatrad, a inserção das mulheres negras ainda muito jovens no mercado de trabalho as impede de completar os estudos, levando-as a uma situação de maior precariedade (Portal Brasil, 2016). Toda essa dinâmica ocasiona elaborações sociais a respeito da percepção, tanto da atividade, como das trabalhadoras domésticas – a representação social do emprego doméstico. Para tanto, Jaques-Jesus (2004) reflete sobre a importância de pesquisas acerca dos trabalhadores, pois, apenas assim, existirão contribuições voltadas para as categorias laborais alcançando o conhecimento e a transformação da realidade brasileira. O Projeto de Emenda Constitucional de Número 150/2015 – hoje conhecido como PEC das domésticas – é um exemplo de contribuição para a área. Tal projeto é uma lei complementar voltada para uma das últimas profissões a ser regulamentada no Brasil e, apesar da legalização do emprego doméstico haver avançado de forma tímida, na última década passou-se a discutir seus direitos trabalhistas. O conceito de Representação Social, elaborado por Serge Moscovici, uma vez que se pauta em considerar a importância das elaborações criadas socialmente, visto que os grupos criam representações no decurso da comunicação e da cooperação (Moscovici, 2013), serve como forma de leitura de diversas realidades sociais, no presente caso, a realidade do emprego doméstico. Conhecer as representações sociais de uma determinada realidade é conhecer os saberes elaborados por parte de um determinado grupo e a realidade que os circundam. Nesse sentido, a representação social é a tradução de uma realidade, e como uma tradução, não pode ser descrita como um reflexo ou como uma cópia, pois não é aquilo que se diz, mas uma versão (Arruda, 2002). Tendo em vista que a sociedade está em constante transformação,

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mesmo que algumas tradições perdurem, existem mudanças, pois as representações transformam-se com o passar do tempo, sendo causa e causadora das mudanças sociais. Portanto, pensar as representações sociais da atividade e das trabalhadoras domésticas é pensar sobre a visão que a sociedade tem construída sobre essa realidade. Descrição Metodológica Em uma pesquisa realizada com Empregadas Domésticas por meio de um roteiro de entrevista semiestruturada e do Teste de Associação Livre de Palavras – TALP foi possível ter acesso às elaborações das empregadas domésticas referente à sua profissão; somado a isso, foi possível conhecer também as representações sociais construídas por parte de empregadores que participaram da pesquisa respondendo ao TALP. As 15 empregadas domésticas entrevistadas foram todas mulheres, com idades entre 19 e 56 anos, haviam cursado até o Ensino Fundamental, a maioria com a CTPS e nenhuma residia na casa do empregador. O grupo dos empregadores foi formado por 11 participantes de ambos os sexos, com idades entre 28 e 64 anos, todos com curso superior de escolaridade e mantinham contrato assinado com as empregadas domésticas. Em relação à escolha dos instrumentos utilizados, foram escolhidos a fim de ser utilizada uma abordagem que possibilitasse analisar as demandas dos participantes a respeito de suas colocações sobre o tema. O Teste de Associação Livre de Palavras consiste em um tipo de teste projetivo que permite fazer surgir espontaneamente associações relativas às palavras exploradas em relação às representações existentes (Bardin, 2011). O roteiro de entrevista semiestruturado foi elaborado a partir dos objetivos do estudo com a finalidade de analisar as justificativas elaboradas a respeito do tema em questão. Considerando que para cada tipo de

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investigação se apresenta um método que responde às perguntas específicas formuladas pelo pesquisador, o roteiro permitiu conhecer as concepções envolvidas nas formas de interpretar o tema proposto. De acordo com Gil (2008), a entrevista semiestruturada é uma forma de interação social, mais especificamente, é uma forma de diálogo em que uma das partes busca coletar dados e a outra se apresenta como fonte de informação. A partir da questão “O que vem em sua mente quando você pensa em Emprego/Serviço doméstico?” as empregadas domésticas puderam elaborar suas representações que em seguida foram analisadas por meio da Análise de Conteúdo proposta por Bardin (2011). Tal análise consiste em um conjunto de instrumentos de cunho metodológico em constante aperfeiçoamento, com função heurística, visto que é capaz de explorar e aumentar a propensão à descoberta. As elaborações apresentaram uma prevalência do aspecto negativo da profissão, embora, de forma menos frequente, também foram elaboradas respostas positivas como patrão bom e trabalho feliz. No geral as empregadas domésticas, por meio dos discursos, apresentaram a percepção em relação às condições do emprego doméstico, sobre o que vivenciam e sobre os seus sentimentos. Os empregadores, ao responderem à questão, mencionaram trabalho árduo, trabalho exaustivo e trabalho difícil em maior frequência, além de mencionarem a desvalorização do emprego doméstico. Os empregadores também fizeram referência ao Projeto de Emenda Constitucional de Número 150/2015 por meio da expressão “PEC” e, além disto, mencionaram “desemprego” “trabalho digno” e “requer confiança”. Observa-se que empregadas domésticas e empregadores apresentam visões distintas em relação ao emprego, pois, embora alguns empregadores emitam um certo reconhecimento do quanto é difícil o emprego doméstico, o que predominou na fala foi a concepção em relação ao que o Projeto de Emenda Constitucional

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de Número 150/2015 pode acarretar – “É difícil falar, na verdade tenho certa preocupação, teve a lei a PEC que trouxe muitas questões, aí eu tenho dúvidas: será se minha renda compensa contratar empregada doméstica?”, pode-se concluir a existência de um desânimo em função da lei, pois esta não é vista como uma solução para as empregadas domésticas, mas sim como um empecilho para contratar o serviço. Por outro lado, o TALP com as empregadas domésticas evidenciou a dependência em relação ao emprego: tanto do sustento, como pela falta de oportunidade no mercado de trabalho em função do nível escolar elementar. Em relação às repostas das empregadas domésticas ao roteiro de entrevista semiestruturada, por meio da análise, foi possível estruturar Eixos Temáticos em função das questões realizadas. Inicialmente, a partir da questão “Poderia falar a respeito do que o trabalho representa para você? Atualmente, qual sua visão sobre o emprego doméstico?”, o emprego doméstico foi caracterizado como difícil, árduo, realizado apenas para a sobrevivência e foi também caracterizado o patrão. Para a pergunta “O que a sua família acha sobre sua profissão?” as empregadas domésticas, simplesmente, disseram que gostam ou não gostam. O gostar foi justificado em função de haver aprendido coisas novas com os patrões – como cozinhar novos pratos; porque todas da família são empregadas domésticas; ou por conta do sustento familiar. O não gostar ocorre com a justificativa de que as empregadas domésticas deveriam procurar algo melhor visto que a atividade doméstica é pesada e consome muito tempo, portanto elas deveriam estudar mais e procurar outras oportunidades. “Como você acha que a sociedade vê o seu emprego?” foi a terceira questão e, nesse caso, as empregadas domésticas falaram sobre preconceito; mencionaram que a sociedade é cruel e voltada para a diferenciação social, pois a empregada não tem direito a possuir bens materiais ou andar bem vestida, tem que “ser apenas

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doméstica”; além disso, mencionaram que a sociedade não reconhece ou luta pelos direitos das empregadas domésticas; que o emprego doméstico vem sendo visto de forma diferente nos últimos anos. Quando questionadas sobre “O que você pensa sobre a PEC das Domésticas?” as trabalhadoras apresentaram uma visão positiva sobre a PEC, considerando-a boa, mas complementaram que melhorou pouco, pois na prática ainda não viram uma mudança total; que a lei aumentou o desemprego visto que a maioria dos empregadores se nega a aceitar a lei. Na sequência foi perguntado “Quando você foi admitida no emprego, o empregador conversou sobre documentação e garantias?”, a maioria das respostas foi afirmativa – patrões explicaram os direitos assegurados, entretanto algumas das empregadas domésticas relataram que não aceitaram o contrato, pois se sentiriam como que sujando a carteira se tivesse escrito doméstica. Quando perguntadas “Você já teve algum acidente de trabalho?”, apenas duas responderam sim e que tiveram todos os direitos assegurados; o restante das entrevistadas falou em cortes, queimaduras, percurso do trabalho para casa, mas não caracterizaram isto como acidente de trabalho. No geral, foi possível observar que muitas empregadas domésticas ressaltaram a rotina para caracterizar o serviço doméstico – algo que se faz todos os dias, em casa e em todo lugar. Nesse sentido, o emprego doméstico possui uma particularidade que ficou evidenciada em sua regulamentação como profissão no Brasil em 1972 com a Lei Nº 5.859: os patrões são os geradores da modalidade de emprego, não existe lucro gerado (diferente das outras atividades que os patrões lucram com aquilo produzido pelos empregados), por essa razão, as trabalhadoras domésticas ficam sujeitas aos mais distintos regimes de trabalho. Portanto, o emprego doméstico é caracterizado como improdutivo e somado a isso, realizado em sua maioria por mulheres pobres e negras – grupo

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segregado e excluído socialmente (Brites & Picanço, 2014), exclusão sentida e expressada por uma das empregadas domésticas entrevistada: “A sociedade é cruel, não só com os empregados domésticos, mas pro negro, pro pobre, pra todas as áreas carentes, mas já foi bem pior, antigamente as pessoas achavam que as empregadas dormiam com o patrão”. Albuquerque e Pazinato (2010) discutem que as formas de realização de um trabalho, o modo como esse trabalho é produzido, organizado e o seu desenvolvimento de aprimoramento e desenvolvimento têm por objetivo conquista de autonomia, de remuneração, de acúmulo financeiro e de sobrevivência, o que ficou evidente nas ponderações das trabalhadoras entrevistadas ao comentarem o emprego doméstico como algo difícil, mas que traz liberdade econômica e financeira. Essa percepção do emprego doméstico como algo penoso e árduo foi complementado pela visão familiar que se colocam, inclusive, contra o exercício da atividade e justificam que as mesmas merecem um emprego melhor, que precisariam ter maior nível de escolaridade e são capazes de alcançar um melhor cargo no mercado de trabalho. A dificuldade existente na realidade das empregadas domésticas é visível, inclusive quando elas falam sobre o Projeto de Emenda Constitucional de Número 150/2015, pois, de acordo com as profissionais, o projeto demorou muito tempo para ser executado visto ser uma problemática que deveria ter sido considerada há muito mais tempo. Entretanto, mesmo com a existência da Lei, na prática, as mudanças foram pouco percebidas – “Melhorou um pouquinho, só 1/3 adaptou a essa nova lei, são poucos os patrões que legalizaram. O que tem de doméstica em trabalho escravo. Hoje em dia os patrões têm medo dos empregados, porque passou de dois anos o empregado pode colocar na justiça, mas tem muitos que não estão nem aí”.

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Na prática, o que se observa em relação ao emprego doméstico é uma indefinição dos direitos trabalhistas, pois no Brasil essa modalidade de trabalho não é reconhecida por horas, mas sim por “vínculos contínuos de trabalho”, portanto, com a implementação da lei em 2015, muitas empregadas perderam seus empregos e passaram a ser diaristas, perderam seguridade do emprego formal para atuar no mercado informal (Brites & Picanço, 2014). Conforme observado na presente pesquisa realizada, mesmo os empregadores que mantêm os direitos das empregadas domésticas assegurados não conversam sobre o assunto. Em alguns casos mais específicos, a própria empregada doméstica não aceitou ter os direitos assegurados – “estou lá há três anos, mas só assinei há um ano, antes eu não queria assinar, mas só vim me tocar agora dos meus direitos, achava que não deveria assinar pensando em conseguir outro emprego, não queria assinar como doméstica, achava que minha carteira ficaria manchada”. Tal situação faz referência à representação social existente sobre a atividade: um emprego que não vale a pena ter associado à própria identidade na CTPS ao ponto de sofrer as penalidades da falta de seguridade e perdas das garantias que o contrato de trabalho poderia proporcionar. Considerações Finais O trabalho, ao longo da história humana, passou por longas modificações, porém o mesmo não pode ser dito do emprego doméstico, cujas modificações ao longo do tempo estão sendo percebidas de formas lentas e pouco perceptíveis. Diante dessa realidade, observa-se o quanto a trajetória do trabalho para as classes menos favorecidas está atrelada à questão da sobrevivência e conquistas de realizações materiais a custa de sofrimentos, na tentativa da realização de seus planos pessoais (Albuquerque & Pazinato, 2010).

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Nesse sentido, o presente capítulo buscou refletir sobre o quanto a trajetória histórica e a representação social elaborada a respeito do emprego doméstico interferem na vivência dessas trabalhadoras, além disso, buscou também ressaltar o quanto a utilização do TALP e do roteiro de entrevista semiestruturada possibilitaram a aproximação aos discursos dos participantes entrevistados. Nesse percurso, o estudo apresentou limitações em função da disponibilidade, tanto das empregadas domésticas quanto dos empregadores em participar, o que dificultou também a operacionalização do levantamento dos dados ao demonstrarem certa hesitação em falarem sobre as questões legais relacionadas ao emprego doméstico. Pesquisas futuras podem ser complementares ao que até agora foi levantado. Referências Albuquerque, P. G., & Pazinato, P. (2010). Trabalho: análise das representações sociais através da leitura da história. Psicologia – O portal dos psicólogos. Recuperado de: https://www.psicologia.pt/artigos/ver_artigo.php?codigo=A05 62 Arruda, A. (2002). Teoria das representações sociais e teorias de gênero. Cadernos de pesquisa, (117), 127-147. Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo. São Paulo: Edições, 70. Brites, J. & Picanço, F. (2014). O emprego doméstico no Brasil em números, tensões e contradições: alguns achados de pesquisas. Revista Latino-americana de Estudos do Trabalho, 19(31), 131-158. Gil, A. C. (2008). Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, IPEA (2011). Seminário discutiu as condições das trabalhadoras domésticas.

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Recuperado de < http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_conte nt&view=article&id=9262%3Aseminario-discutiu-as-condicoesdas-trabalhadorasdomesticas&catid=10%3Adisoc&directory=1&Itemid=1> Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, IPEA (2016). Estudos detalha avanços femininos no mercado de trabalho. Recuperado de < http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_conte nt&view=article&id=27349> Jaques-Jesus (2004). Resenha: Psicologia, Organizações e Trabalho no Brasil. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 20(2), 201-202. Lei Complementar Nº 150, DE 1º DE JUNHO DE 2015 Dispõe sobre o contrato de trabalho doméstico; altera as Leis no 8.212, de 24 de julho de 1991, no 8.213, de 24 de julho de 1991, e n o 11.196, de 21 de novembro de 2005; revoga o inciso I do art. 3o da Lei no 8.009, de 29 de março de 1990, o art. 36 da Lei n o 8.213, de 24 de julho de 1991, a Lei no 5.859, de 11 de dezembro de 1972, e o inciso VII do art. 12 da Lei no9.250, de 26 de dezembro 1995; e dá outras providências. Recuperado de < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp150.htm> Limonge-França, A. C., Rodrigues, A. L., Sampaio, J. do R., Galasso, L. M. R., & Ribeiro, S. da C. (2007). Stress e trabalho: uma abordagem psicossomática. 4º Edição. São Paulo: Editora Atlas. Moscovici, S. (2013). Representações Sociais: investigações em Psicologia Social. Petrópolis: Vozes.

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Capítulo 10 A (In)Visibilidade dos Campos de Sexualidade e do Gênero na Educação Infantil: Análise de Grupo Focal com Educadoras Thaís Blankenheim Natacha Führ Ramos Adolfo Pizzinato Angelo Brandelli Costa As perspectivas de intervenção psicoeducativa no campo da educação em sexualidade estão presentes no Brasil e ganharam maior visibilidade a partir da década de 1990, através da criação de documentos oficiais e projetos vinculados, entendidas como uma derivação cidadã associada à nova Constituição no período de redemocratização do país. Quando as temáticas relacionadas à sexualidade e gênero são abordadas em contextos educacionais tendem a ser reduzidas as vulnerabilidades para doenças e infecções sexualmente transmissíveis, abusos e violências sexuais, violências de gênero e preconceitos, além de uma maior integração de autoconceito e satisfação com si mesmo (Bartos, Berger, & Hegarty, 2014; Fonner, Armstrong, Kennedy, O'Reilly, & Sweat, 2014; Vladutiu, Martin, & Macy, 2011). Torna-se relevante, a atuação do sistema educacional na tarefa de organizar e ministrar a dimensão da sexualidade na formação humana, pois, conforme a UNESCO (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura), a educação em sexualidade está presente em todos os espaços por onde as pessoas circulam – família, escola, igreja, pares, mídia, trabalho – mas ocorre de forma pulverizada, fragmentada e,

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quase sempre, velada, o que reflete numa educação em sexualidade que não é legitimada como tal e não é associada ao plano de uma sociedade inclusiva baseada nos direitos humanos (Unesco, 2014). Os documentos oficiais que defendem e apoiam a realização de intervenções sobre questões relacionadas à sexualidade e de gênero têm como propósito a educação para a prevenção de doenças e promoção da saúde, assim como assegurar os direitos dos sujeitos. Alguns exemplos são os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998), o Programa Brasil Sem Homofobia (2004), o Caderno Gênero e Diversidade Sexual na Escola (2007) e o Programa de Saúde na Escola - PSE (Martins, 2017). As questões relacionadas ganharam mais evidência no contexto brasileiro, a partir de debates acadêmicos somados a ações de movimentos sociais (Guizzo & Felipe, 2016). As perspectivas interventivas no campo psicoeducacional partem dos pressupostos da educação em sexualidade. Conforme Jones (2011), o conceito de educação sexual é discutível, visto que pode partir de fundamentos e discursos muito diferentes – pode ser usado, de forma mais limitada, referindo-se a lições sobre reprodução, até atividades mais questionadoras e reflexivas sobre relações de poder e diversidades. A Educação Infantil no Brasil, no entanto, ainda é muito tímida em abordar a sexualidade e o gênero em seu currículo, o que reflete uma invisibilidade sobre a temática. Em uma revisão de escopo recentemente realizada pelos mesmos autores do presente estudo, buscou-se explorar as intervenções educativas no campo da sexualidade e do gênero no Brasil. Constatou-se uma aparente diferença de números de trabalhos interventivos no contexto educacional sobre sexualidade e gênero relativas às faixas etárias educacionais, pois pôde-se verificar uma expressiva quantidade de intervenções destinadas a estudantes de ensino fundamental (geralmente anos finais) e/ou médio nos estudos. Além disso, o

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número de intervenções realizadas com/para professores/as e/ou educadores/as é menor em relação às para estudantes, sendo que 32,25% dos estudos envolve a participação de professores/as. Nesse sentido, dois resultados se sobressaíram: além da invisibilidade da temática durante a infância, a menor taxa de trabalho e intervenção com professores/as e/ou educadores/a (Blankenheim, Ramos, Pizzinato, & Costa, 2019). A lacuna de publicações sobre intervenções psicoeducativas nos campi da sexualidade e do gênero na infância inicial parece estar relacionada à perspectiva que entende a sexualidade humana de uma forma simplista e fisiológica e reduzida ao ato sexual, pois se considera o trabalho sobre a temática predominantemente nas idades próximas ao início da “vida sexual” ativa – puberdade e adolescência. Além disso, esse matiz biologista empobrece o campo da prevenção, pois não existem muitas intervenções com o propósito de trabalhar – desde a Educação Infantil - assuntos relacionados à consciência corporal e aos cuidados com o próprio corpo, à prevenção de abusos, à identificação de situações de violência, de autoconceito, de desigualdade de gênero e do respeito à diversidade sexual e de gênero. O conceito da sexualidade é amplo e difuso e sempre foi motivo de tabus, principalmente quando vinculado à infância. A concepção de que crianças são seres sexuados e com vivência de sexualidade não é algo novo. Desde o século XIX e, especialmente com o advento da Psicanálise nos primórdios do século XX, Freud (1905/1969), defendia a sexualidade como uma força pulsional inerente à estruturação da personalidade, que se vincularia a diferentes zonas erógenas (oral, anal, fálica e genital). Segundo o referido autor, o desenvolvimento psicossexual leva as manifestações da sexualidade desde o início da vida, o que torna compreensível a curiosidade das crianças em torno do próprio corpo e da sexualidade em geral. Essas manifestações são evidenciadas em

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comportamentos como mamar, morder, controlar os esfíncteres, brincar, falar palavrões, descobrir-se, tocar-se, identificar-se etc. Diante disso, os adultos precisariam estar preparados para não se omitirem ou responderem com informações moralizantes, inadequadas e/ou fantasiosas em relação aos temas de sexualidade e gênero. Nesse sentido, a escola infantil é um espaço de formação que extrapola os cuidados com a alimentação e a higiene, uma vez que tem por finalidade promover o desenvolvimento infantil integral nos aspectos afetivo, cognitivo, social e físico e, para isso, deve buscar contemplar, em seus projetos pedagógicos, a sexualidade, a ludicidade, as fantasias (Maia & Spaziani, 2010), a igualdade de gênero (Finco, 2015), e a diversidade sexual (Ciribelli & Rasera, 2019). Sendo assim, as/os educadoras/es devem estar preparadas/os para responder, de modo claro, verdadeiro e objetivo às questões relacionadas ao corpo, ao gênero e à sexualidade. A formação escolar, acadêmica e continuada sobre o assunto auxilia na isenção de valores pessoais do/a educador/a e pode favorecer o desenvolvimento da autonomia e da emancipação das crianças (Maia & Spaziani, 2010). Experiências internacionais têm demonstrado a importância da inclusão desses temas desde a formação inicial de educadores. Estudantes de licenciatura em Educação Infantil da Espanha expuseram a existência de uma demanda significativa de trabalho do tema de igualdade desde a sua formação inicial. A pesquisa de Lastra (2017) demonstrou que 80% das/os participantes se preocupam em inserir a perspectiva de gênero na sua formação inicial e prática profissional. Já em Portugal, onde existem disciplinas em todos os cursos de formação inicial em que o trabalho das questões de gênero é um ponto importante – como Educação para a Cidadania, Formação Pessoal e Social e Filosofia para crianças – existe, ainda, a preocupação de que elas sejam eficazes. Além disso, reconhece-se que não são suficientes e que a formação continuada

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é importante para embasar a prática diária das/os educadoras/es (Vianna & Alvarenga, 2018). Levando em consideração a importância da temática durante o desenvolvimento infantil e a carência do mesmo nas intervenções e formações educacionais, o objetivo desse estudo é a utilização da técnica de grupo focal na verificação de lacunas que professoras de Educação Infantil percebem em sua formação em relação aos temas de sexualidade e gênero. Esse estudo faz parte de uma pesquisa de doutorado, na qual está sendo desenvolvida a formação “Diversidade sexual e de gênero na Educação Infantil – Educação em Sexualidade e Gênero”. Os dados colhidos nesse estudo de grupo focal irão compor a construção da Formação. O grupo focal como método O campo que envolve as pesquisas qualitativas possui diversas possibilidades metodológicas. O grupo focal representa uma técnica de coleta de dados que, a partir da interação grupal, promove a discussão e problematização sobre um tema específico. A técnica se originou no cenário da pesquisa social, sendo utilizado nas áreas da antropologia, ciências sociais, mercadologia e educação em saúde. De acordo com Backes, Colomé, Erdmann e Lunardi (2011) a partir do final da década de 1980, a técnica tem sido retomada por seus precursores, os quais triplicaram os números de pesquisas utilizando-a como principal técnica de coleta de dados. Os grupos focais, podem ser conceituados como uma técnica de pesquisa e intervenção qualitativa, realizada através de um grupo de interação focalizada, ou seja, que proporciona uma discussão mais ampla e profunda entre seus componentes sobre um tema em foco. Além disso, como pontuam Guareschi, Rocha, Boeckel e Moreira (2019, p. 151), "possibilita a observação de uma quantidade muito maior de interações a respeito de um tema, em

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um período limitado, sendo que não se busca o consenso e sim, a pluralidade de ideias. Assim, a ênfase está na interação do grupo". O grupo focal é caracterizado por ser um espaço aberto e acessível, os assuntos discutidos são de interesse comum, as diferenças de status entre os participantes não são consideradas e a discussão é fundamentada em um debate racional. O racional, neste caso, deve ser entendido como uma possibilidade de intercâmbio de visões, ideias e experiências (Bauer & Gaskell, 2002). No processo, os encontros grupais possibilitam que se explore pontos de vista, a partir de reflexões sobre um determinado fenômeno social. Um dos principais pontos do grupo é a possibilidade de escuta dos sujeitos da pesquisa, já que podem se expressar utilizando o vocabulário próprio do grupo, gerando suas próprias perguntas e buscando respostas pertinentes à questão sob investigação. Desse modo, o grupo focal pode atingir um nível reflexivo que outras técnicas não conseguem alcançar, revelando dimensões de entendimento que poderiam permanecer inexploradas (Backes, Colomé, Erdmann, & Lunardi, 2011). Por se tratar de uma técnica de investigação que aproxima investigador e participantes da pesquisa, o grupo focal permite ao investigador maior aproximação na condução da entrevista e com os dados coletados, pois tem a possibilidade de checar as informações no momento que são oferecidas pelos participantes. Gomes (2005) aponta alguns dos benefícios na utilização de grupos focais: 1) O ambiente proporcionado pela organização do grupo focal permite interação entre os membros do grupo; 2) As informações prestadas por um dos integrantes estimulam os demais a falar sobre o assunto; 3) O debate entre eles enriquece a qualidade das informações; 4) O fato de se encontrar um grupo de iguais dá mais segurança ao participante para expressar suas opiniões, com respostas mais espontâneas e genuínas.

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Procedimentos metodológicos do estudo Estudos sobre a constituição de grupos focais recomendam que o tamanho do grupo deve variar entre seis e dez membros e que os encontros devem ser desenvolvidos em local que favoreça a interação entre os participantes: uma sala com cadeiras confortáveis ou em volta de uma mesa é suficiente. Também se recomenda que as reuniões durem entre uma hora e meia e duas horas. Pode-se utilizar equipamento para registrar as discussões (Gomes, 2005). Para esse estudo, foi realizado um grupo focal com oito educadoras, sendo sete professoras e uma assessora pedagógica da rede municipal de uma cidade da região metropolitana de Porto Alegre/RS, atuantes na faixa etária infantil. O encontro teve duração de duas horas e foi realizado numa sala de reuniões da Secretaria Municipal de Educação (SMED) do município em questão. Os materiais utilizados foram: uma mesa grande com cadeiras ao redor, dois gravadores, folhas de ofício e caneta para cada participante. A seleção para participação se deu a partir de convite realizado por e-mail, enviado a toda a rede de Educação Infantil do município. Por ordem de inscrição, as oito primeiras pessoas a demonstrarem interesse em participar foram as selecionadas. A organização do dia e horário do grupo foi definido pela própria SMED, levando em consideração a carga horária e a organização das escolas para o período de ausência das professoras enquanto participavam da pesquisa. Além das oito participantes, estavam presentes no encontro a pesquisadora responsável pelo processo do grupo focal e uma auxiliar de pesquisa, que teve como função auxiliar na organização dos materiais utilizados, verificar o processo de gravação e realizar anotações durante as discussões. Os procedimentos do grupo focal foram organizados em 4 etapas: 1) Acolhimento do grupo – apresentação da pesquisadora, da auxiliar e das participantes, explicação sobre o processo e a finalidade do encontro, e reforço

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sobre a importância das opiniões e da participação ativa de todas; 2) Introdução da temática – questionamento sobre o que entendem sobre sexualidade e gênero e se já tiveram contato com alguma informação sobre o assunto; 3) Aproximação do tema ao contexto escolar – apresentação de três situações como disparadoras da discussão sobre o tema de sexualidade e gênero envolvendo o manejo da participante enquanto professora de Educação Infantil; 4) Avaliação sobre as discussões do grupo e dúvidas em aberto – além da avaliação e finalização das discussões realizadas, foi oferecida uma folha de ofício e caneta para que cada participante pudesse escrever e deixar registrado para a pesquisadora quais as principais dúvidas sobre a temática, que permaneceram após o encontro e que julgam necessitarem de formação específica. Após a realização do encontro de grupo focal, as gravações foram transcritas e iniciou-se o processo de análise dos dados. A análise e as codificações de todo o conteúdo do grupo foram feitas por duas pessoas. Para sistematizar os dados construídos foi realizada uma análise temática (Braun & Clarke, 2006) e os principais temas que emergiram – dentro do tema-foco das lacunas na formação das professoras – foram as dúvidas sobre a sexualidade no desenvolvimento infantil e as confusões entre características de gênero (atribuições masculinas e femininas) e orientação/desejo sexual. Resultados e discussão Sexualidade e gênero na Educação Infantil: as lacunas na formação Durante todo o procedimento do grupo focal, ficaram evidentes os descontentamentos das educadoras com a falta de formação sobre os temas que envolvem sexualidade e gênero durante os seus cursos de magistério e/ou pedagogia. Frases como “falta formação”, “a formação inicial eu vejo ainda muito frágil nesse sentido”, “a gente não tem formação nenhuma na verdade”, “a

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gente fica muito sem saber”, “a gente não olha para isso, né?” foram muito recorrentes. Outra questão relacionada, conforme citado pelas professoras, à falta de formação, diz respeito à dificuldade de responder tanto às crianças quanto as suas famílias sobre assuntos que perpassam o cotidiano e as relações família-escola, como podese verificar no seguinte relato: As famílias querem saber como fazer com o filho, né? eles (a família) também confiam a professora este tipo de situação... “olha professora, eu estou vivendo uma situação. O que que tu achas que eu faço? Como que eu...”. Sim, porque se vai a ti e pergunta “o que que eu posso fazer?” ela acredita que tu possa dizer alguma palavra que vai ajudar. Desde que eu decidi ir para o Magistério, buscar o curso de formação, muito pouco a gente falava sobre esses temas... e nem na educação infantil. A gente chegava a falar de... um pouco mais assim da alfabetização, dos processos bem cognitivos de aprendizagem e a escola e tal, aprender a calcular, aprender a ler, enfim. As didáticas, né? A pedagogia assim... É isso que estava no currículo. Na formação profissional eu não lembro de ter tido qualquer disciplina, assunto, enfim, na formação do magistério, que pensasse sobre isso. Agora, quando a gente vai para escola, daí a gente encontra a vida de verdade. Concordando com esse relato, outra participante complementa que “as crianças não perguntam só como é que se calcula, elas querem saber como é que se vive. As perguntas que elas fazem são outras e são muito difíceis de responder!” Pode-se afirmar que a falta de formação adequada sobre a temática acarreta em dificuldades no dia a dia das professoras e em condutas

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inadequadas em relação às manifestações das crianças. Por não a receberem, acabam, em geral, reagindo diante das manifestações a partir de sua própria história de educação sexual, isto é, a partir de seus valores pessoais sobre o modo como foi construída a sua sexualidade e não de reflexões que lhes permitam perceber o direito das crianças de receber esclarecimentos sobre suas próprias dúvidas (Maia & Spaziani, 2010). Uma pesquisa realizada com 297 estudantes de um curso de Pedagogia de uma universidade pública apontou, inicialmente, para uma melhor aceitação das diferenças sexuais e de gênero numa análise quantitativa dos dados. Porém, uma análise mais detalhada demonstrou a assimilação do discurso politicamente correto, mas sem uma mudança significativa das concepções binaristas e excludentes sobre a produção das identidades sexuais e de gênero ou sobre a formação de novos modelos familiares no mundo contemporâneo. Os autores destacam a necessidade de maior espaço no currículo de formação em Pedagogia para discussão dos temas sexualidade e gênero (Dinis & Cavalcanti, 2008). Experiências com a capacitação de profissionais da educação e com a produção de materiais educativos têm mostrado que a formação inicial de professores/as, na maioria dos cursos, não abarca os temas relacionados à educação em sexualidade e gênero. A consequência dessa ausência é a dificuldade de se trabalhar esses conteúdos em sala de aula (Unbehaum, Cavasin, & Gava, 2010). Uma pesquisa realizada no México, apontou que a formação sólida implica também em possibilidades mais saudáveis das relações de base segura na construção de vínculos afetivos criança-educador e que esses vínculos incentivam e são fundamentais para a o desenvolvimento humano integral, particularmente o desenvolvimento sexual (Salinas-Quiroz & Mendoza, 2016).

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Dentro do tema das lacunas na formação das professoras – o foco nesse artigo – surgiram duas temáticas em suas falas: 1) as dúvidas sobre a sexualidade no desenvolvimento infantil e 2) as confusões entre características de gênero (atribuições masculinas e femininas) e orientação sexual. Essas duas temáticas serão exploradas nos próximos itens. A (in)visibilidade da sexualidade na infância Uma das principais questões relacionadas à falta de formação sobre o assunto é a dúvida manifestada pelas professoras sobre a presença e os atravessamentos da sexualidade no período da infância. Muitas apresentam a clareza de que existe uma negação desse aspecto no contexto escolar, salientando que “se associa que a criança não tem sexualidade e não se pode falar disso... depois na adolescência, na juventude é que começa a manifestar, mas quando é criança não existe, né? Essa negação assim”. No entanto, mesmo sabendo da existência da sexualidade na infância, surgem questionamentos sobre como entender e manejar situações. A pesquisa de Ciaffone e Gesser (2014) também demonstrou que as educadoras da creche se sentiam despreparadas para lidar com o tema da sexualidade infantil e, em consequência, acabavam por desconsiderar ou até repreender muitas das expressões das crianças que aparecem no cotidiano da sala de aula. No entanto, havia uma preocupação, por parte das educadoras, com o respeito à curiosidade sexual manifestada pelas crianças como algo inerente ao processo de desenvolvimento, o que evidencia um compromisso ético-político. Em nosso grupo, algumas situações cotidianas são relatadas pelas participantes: “quando acontecem situações que eles se olham no banheiro... estão juntos, se olham, se tocam, querem ver as diferenças, têm curiosidade, perguntam como um bebê vem parar

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na barriga. São coisas que eles veem né?”, “às vezes eles se beijam, por exemplo. As crianças fazem experiências desde muito novinhas, elas estão se descobrindo, né? Mas a gente se assusta muito”, “eu tenho uma dúvida sobre até que idade seria adequado eles usarem o mesmo banheiro... se eu estou despertando (a sexualidade) ou não... daqui a pouco é coisa nossa também, da nossa cabeça”. Além da defesa da formação oficial sobre o tema, Oliveira e Maio (2012) apontam que o/a educador/a deve sempre se manter informado e atualizado no que diz respeito ao conteúdo, para que não oriente discussões por informações ultrapassadas. Ademais, os/as professores/as não devem ditar normas do que é certo ou errado, ou impor seus valores pessoais. O trabalho com a educação em sexualidade pode abrir portas para trabalhar o respeito ao próximo, as relações familiares, a relação com os/as colegas, etc. As atividades que envolvem as discussões de gênero, diversidade sexual e sexualidades devem integrar-se às atividades do dia-a-dia, quando a criança apresenta alguma curiosidade ou tem alguma atitude em que o/a professor/a considere adequado intervir (Oliveira & Maio, 2012). Miskolci (2005) afirma que se informar sobre uma temática envolve um compromisso que o educador pode assumir com a construção de uma sociedade mais igualitária e justa. O autor enfatiza a necessidade de buscar fontes de conhecimento, pois a informação adequada permite que o profissional enfrente alguns desafios no contato com as diversidades. Ainda se percebe, na prática, uma abordagem biologicista e heteronormativa ao se trabalhar a temática na escola. Em relação às/aos professoras/es, sugere-se a incorporação de discussões sobre a temática de gênero, sexualidades e diversidades, acompanhadas de um processo contínuo de formação e sensibilização. As práticas na escola precisam avançar muito para a promoção de uma educação

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inclusiva da diversidade de modos de vivenciar a sexualidade (Marcon, Prudêncio, & Gesser, 2016). Confusões entre gênero X orientação/desejo sexual Outro ponto de grande evidência nas contribuições das participantes do grupo é a visível confusão que se tem entre as expressões de gênero das crianças e a vinculação disso com características relacionadas a algum tipo de orientação/desejo sexual. Explicando: todas as colocações das professoras que denotavam uma expressão de gênero ou uma característica feminina vinda de um menino, imediatamente relacionavam a uma expressão de orientação homossexual que a criança, possivelmente, teria ou desenvolveria. Os recortes a seguir evidenciam esse tensionamento: (1) É muito difícil pela experiência que ele tinha ele não desenvolver... ele não ser um menino homossexual, por exemplo. Mas eu estou falando isso bem a grosso modo, sem conhecimento científico nenhum, tá? Ele era uma sensibilidade até nos gestos corporais. Ele brincava... Ele só ganhava Barbie da família, ele tinha uma coleção de Barbies. Ele levava as coisas para a escola, ele levava Barbies. Ele fazia roupinhas de bonecas, com quatro anos, faixa etária três para quatro. Ele levava as roupas... as bonecas não tinham roupinhas na escola e ele levava as roupinhas, ele fazia com a avó dele as roupinhas e levava para a escola. E ele era uma sensibilidade..., mas assim, ele era um menino de uma delicadeza, eu digo como ser humano, não por.... Eu jamais taxaria ele. Porque eu tinha medo, muito medo do que dizer, por eu não ter conhecimento eu estar taxando a criança como uma coisa que podia passar, podia ser uma fase dele! Só que a vida dele, na casa dele, era uma vida de consumos

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e de adquirir brinquedos e presentes... totalmente de menina. Assim, a expressão dele era totalmente... eu não gosto de falar afeminada, porque não é um problema isso, mas era uma postura corporal diferente, por exemplo, diferente do que se intitula como super-herói, né? Tipo, eu tenho crianças que eu sei que o pai quando o menino começa a querer fazer uma mãozinha diferente já “que mão é essa, guri?” sabe? Então assim, ele era totalmente sensível, eu não sei dizer, nem me atrevo a dizer que ele desenvolveria ou iria se desenvolver como... ou se ele era já um menino homossexual, nem sei. (2) E ele botava aquilo (tecido) na cabeça e era o cabelo dele, daí ele fazia assim, enrolava na frente. Daí, tirava o tênis e botava o sapato de salto e botava uma roupa, uma saia. Todos os dias. Aí ele não tinha ainda chegado nas maquiagens, aí teve um dia que, quando ele conseguiu pegar a maquiagem das meninas, ele ficou realizado. Ele estava que parecia que ele tinha um tesouro nas mãos, ele foi para frente do espelho e se pintou, passou sombra, passou o blush (risos). É, daqui a pouco pode ser que nem esteja... que nem seja nesse sentido né? dele se descobrir homossexual ou não, mas é uma coisa que faz ele se sentir bem, como pode ser também que deste jeito ele se sente bem, né? (3) Tanto a criança pode depois, né, se descobrir homossexual como não. Mas penso que tem tantos meninos que futuramente vão se descobrir homossexuais que brincam com panelinhas e etc., como meninos que vão ser heterossexuais que brincam também com panelinhas. Por exemplo, na minha turma, eles brincam com absolutamente tudo, com fantasias, com vestido, com panelinha, com tudo. E as

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meninas também com carrinho e enfim, super naturalmente assim. Super naturalmente mesmo assim. A partir desses recortes de falas das professoras, aponta-se a necessidade da presença dos conceitos de sexualidade, identidade e expressão de gênero, orientação/desejo sexual, etc. nas formações de base do Magistério, para que os mesmos possam ser entendidos e diferenciados. Sabe-se que os temas de gênero e diversidade sexual, apesar de terem sido implantados no currículo há algum tempo, ainda refletem, por parte dos/as professores/as, uma abordagem difusa, quando muitas vezes permeadas por erros e ideologias que aparecem como limites para uma prática docente de qualidade (Oliveira & Maio, 2012). Outro aspecto a ser elucidado a partir dos recortes é de que todos os exemplos colocados pelas professoras são de meninos que, em suas características, preferências ou expressões, rompem a barreira construída culturalmente em relação ao masculino/feminino. Uma delas chega a citar que é comum que não exista preocupação quando uma menina brinca de carrinho, por exemplo, mas quando um menino “apresenta” uma característica feminina, a vigilância é presente e contínua. Pode-se verificar, a partir da literatura estudada e de dados encontrados, que os meninos são mais convocados a brincar daquilo que é aceito como somente de menino, do que é considerado como masculino aos olhos dos adultos (Blankenheim, 2014). Contemporaneamente, a vigilância e o controle do gênero e da sexualidade parecem estreitar-se mais em torno dos corpos masculinos. Isso, principalmente, quando se trata de cruzamentos de fronteiras historicamente instituídas para a masculinidade heterossexual (Wenetz, Stigger, & Meyer, 2013). Louro (1999) ao analisar a pedagogia da sexualidade e o disciplinamento dos corpos praticados pela escola, aponta que essa pedagogia mesmo sendo sutil, discreta e contínua, é quase sempre

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eficiente e duradoura e deixa marcas no corpo, ensinando os sujeitos de que forma devem usá-lo. Além disso, nos mostra que o investimento mais profundo da escola é para a formação de homens e mulheres “de verdade”, pois ainda existem critérios para discernir e decidir o quanto cada menino ou menina está se aproximando ou afastando da norma desejada. É importante ressaltar que, nas situações com crianças, os adultos projetam as suas ideias e preconceitos, daquilo que já sabem, já viram, já experimentaram, esquecendo-se de que para a criança ainda falta uma longa trajetória para que se estruture como um adulto, sujeito masculino, feminino, não-binário, heterossexual, homossexual, bissexual ou outras tantas possíveis características humanas. Considerações finais Considerando o ambiente proporcionado pela técnica do grupo focal, permitiu-se interação entre os membros do grupo e observou-se que as informações prestadas pelas integrantes estimulavam as demais a falar sobre o assunto. O debate entre o grupo enriqueceu a qualidade das informações, pois o fato de se encontrarem em um grupo de iguais deu segurança para que as participantes expressassem suas opiniões, com respostas espontâneas e genuínas e, além disso, sentiram-se à vontade para compartilhar algumas de suas vivências com o grupo. Os resultados apontaram, além de lacunas, a inexistência do assunto na formação oferecida pelos cursos de magistério e pedagogia, o que resulta em insegurança das professoras no manejo do tema, com as crianças e famílias. As dúvidas mais frequentes, e que necessitam de abordagem em intervenções e formações, são relacionadas às condutas apropriadas em situações em que as crianças rompem as fronteiras socialmente estabelecidas como

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femininas e masculinas e as questões relacionadas ao desenvolvimento da sexualidade na infância. As dúvidas sobre a sexualidade, no desenvolvimento infantil, aparecem nas situações de manifestações cotidianas das crianças em relação a curiosidades sobre os seus corpos e os dos outros. As confusões entre características de gênero (atribuições masculinas e femininas) e orientação/desejo sexual denotam a necessidade da presença dos conceitos de sexualidade, identidade e expressão de gênero, orientação/desejo sexual etc. nas formações de base do Magistério, para que os mesmos possam ser entendidos e diferenciados. As escolas de Educação Infantil têm o compromisso de promover o desenvolvimento integral das crianças. Sendo assim, as questões relacionadas ao corpo, ao gênero e à sexualidade devem ser respondidas de modo claro, verdadeiro e objetivo pelas/os educadoras/es. Para que os manejos não sejam embasados em valores pessoais da/o professor/a e possam favorecer o desenvolvimento da autonomia e da emancipação das crianças, a temática de sexualidade e gênero deve estar presente na formação escolar, acadêmica e continuada. Referências Backes, D. S., Colomé, J. S., Erdmann, R. H., & Lunardi, V. L. (2011). Grupo focal como técnica de coleta e análise de dados em pesquisas qualitativas. O mundo da saúde, 35(4), 438-42. Bartos, S. E., Berger, I. & Hegarty, P. (2014). Interventions to Reduce Sexual Prejudice: A Study-Space Analysis and Meta-Analytic Review. The Journal of Sex Research, 51(4), 363-382. Bauer, M., & Gaskell, G. (2002). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Vozes.

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Blankenheim, T. (2014). Brincando e constituindo-se menino: significações de gênero no brincar. 42 f. Trabalho de conclusão (Graduação em Psicologia) - Universidade Feevale, Rio Grande do Sul, Novo Hamburgo. Blankenheim, T., Ramos, N. F., Pizzinato, A., & Costa, A. B. (submetido). Intervenções educativas no campo do gênero e da sexualidade no Brasil: uma revisão de escopo. Braun, V., & Clarke, V. (2006). Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology, 3(2), 77-101. Ciaffone, A. C. e R., & Gesser, M. (2014). Integração Saúde e Educação: Contribuições da Psicologia para a Formação de Educadores de uma Creche em Sexualidade Infantil. Psicologia: Ciência e Profissão, 34(3), 774-787. Ciribelli, C. J. de M., & Rasera, E. F. (2019). Construções de Sentido sobre a Diversidade Sexual: Outro Olhar para a Educação Infantil. Psicologia: Ciência e Profissão, 39, 1-15. Dinis, N. F., & Cavalcanti, R. F. (2008). Discursos sobre homossexualidade e gênero na formação em pedagogia. Pro-posições, 19(2), 99-109. Finco, D. (2015). Igualdad de género en las instituciones educativas de la primera infancia brasileña. RLCSNJ, 13(1), 85-96. Fonner, V. A., Armstrong K. S., Kennedy C. E., O'Reilly K. R., & Sweat M. D. (2014). School Based Sex Education and HIV Prevention in Low- and Middle-Income Countries: A Systematic Review and Meta-Analysis. PLoS ONE, 9(3). Freud, S. (1969 [1905]). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Rio de Janeiro: Imago. Guareschi, P., Rocha, K., Boeckel, M., & Moreira, M. (2019). Grupos focales. In: Saforcada, E. & Sarreira, J. C. Enfoques conceptuales y técnicos en psicología comunitaria: aplicaciones de la psicología comunitaria en el Mercosur y España. Buenos Aires: Nuevos Tiempos, 151-162.

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Capítulo 11 Contexto Escolar e Docência Trans em Rondônia: Desafios e Perspectivas Kary Jean Falcão Angelo Brandelli Costa Marlene Neves Strey Este capítulo tem como objetivo apresentar os desafios e perspectivas de cinco professoras transexuais que atuam na educação básica em escolas públicas no Estado de Rondônia a partir da compreensão da psicologia social. As informações foram coletadas através de um encontro focal realizado entre as participantes seguido de entrevistas individuais. O embasamento teórico do estudo tem como referência inicial a compreensão histórica da emergência de travestis e transexuais enquanto categoria dentro do movimento LGBT brasileiro de acordo com Carvalho e Carrara (2013) e os embates em torno dos sentidos e dos usos das categorias travesti/transexual, assim como a perspectiva de Beneditti (2005) na pretensão de mostrar os significados e práticas sociais de travestis com a construção de um panorama antropológico que leva em conta os elementos culturais, envolvendo a afirmação da identidade de gênero, podendo ser evidenciado neste capítulo a partir das representações da transexualidade manifestada pelas professoras participantes do estudo. Em se tratando da docência e transexualidade, o estudo apresenta apontamentos da trajetória de vida das cinco professoras transexuais, desde a fase de escolarização até o ingresso ao

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magistério, levando em consideração três enfoques temáticos: a) a construção da identidade; b) a escolha pela docência como profissão e; c) a afirmação de direitos com as experiências, desafios e perspectivas na docência. Para a análise das informações coletadas pelo grupo focal e pelas entrevistas individuais, optou-se pela conexão das informações dos três enfoques tendo como referência a análise temática com o objetivo de apresentar os resultados divididos em significados padrões, que conforme Braun e Clarke (2006), são denominados de temas latentes ou semânticos permitindo registrar e consolidar as informações a partir dos questionamentos e subdividi-los durante a análise por temas de interesse potencial dos dados. Após a realização do encontro focal, as participantes foram convidadas a uma entrevista individual de forma narrativa que, conforme Jovchelivitch e Bauer (2017), são constituídas por uma técnica de pesquisa que é histórica, dinâmica e dialética em que as informações são construídas tendo como referência a história de vida e relação entre entrevistador e entrevistados. Com base nas entrevistas narrativas e no encontro focal, este artigo produz histórias mediadas pela construção e afirmação da identidade de gênero de professoras, as condições históricas que proporcionaram a escolha do magistério como profissão assim como os desafios e as expectativas com as discussões acerca da transexualidade e travestilidade por meio das suas experiências como mulheres trans e travestis. Essas narrativas são essenciais ao discurso em razão de poderem ser (re)contadas e (re)interpretadas (Jovchelivitch & Bauer, 2017). Os resultados do estudo são caracterizados em dois eixos temáticos: o primeiro apresenta os desafios da docência trans mediado pela abordagem histórica das cinco professoras participantes do estudo. A construção e afirmação da identidade de gênero tem seus resultados apresentadas com o foco no “quando,

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onde e como” aconteceram estes delineamentos e as características particulares no quanto os processos de identificação de gênero contribuíram na escolha do magistério como profissão. Ainda neste primeiro eixo temático, o estudo traz como referência as experiências apresentadas por Oliveira (2017) com argumentos que oferece abordagem acessível e teoricamente flexível para o entendimento e análise dos dados qualitativos fornecidos pelo encontro focal e as entrevistas narrativas nas quais a presença de travestis e transexuais na escola e nos demais meios de representatividade era considerado a “certeza de uma existência restrita às beiradas” (Oliveira, 2017, p. 154). O estudo também faz uma conexão com os caminhos e obstáculos percorridos por professoras trans apresentadas no estudo de Franco e Cicillini (2015) com relatos de docentes e as relações com os processos de resistência desde a educação básica, o acesso à universidade e a inserção no mercado de trabalho como docentes. Quanto ao segundo eixo temático, os resultados estão caracterizados pelas experiências e contribuições de docentes transexuais nas escolas e o movimento de luta por direitos à inclusão de estudantes e à construção de proposta curricular que contemple a valorização da diversidade de expressão da sexualidade, da orientação sexual e da identidade de gênero como reflexão dos direitos humanos e reconhecimento igualitário dos indivíduos. Transexualidade e docência: aproximações entre escolarização e a profissionalização A escola sempre foi caracterizada como um espaço de consistência da lógica binária atribuída pelos padrões e conceitos normativos estabelecidos historicamente com base em uma sociedade heterossexual que nunca permitiu a existência da possibilidade de novos corpos.

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A presença de estudantes transexuais nas escolas revela um avanço nos processos de conquista de direitos sendo que os critérios de acesso à escolarização precisam ser associados à permanência e à garantia de reconhecimento da identidade de gênero como forma de exercício da cidadania. De nada adianta a escola oferecer matrícula de estudantes LGBT se estes são proibidos de manifestarem a sua livre orientação sexual e no caso das estudantes travestis e transexuais o impedimento de afirmarem a identidade de gênero dado a regras e normatizações pensadas por meio de um viés curricular heteronormativo. Desse modo, quando a escola coloca estudantes em situação de abandono promovendo a violação dos seus direitos, ela se torna responsável na reprodução de uma política que contribui com o despreparo profissional, levando não só a desqualificação para o mercado de trabalho como também a vulnerabilidade de trabalhos com reconhecimento financeiro inferior, informal e a mão de obra barata. Entretanto, essa situação ganha outros agravantes quando se trata de estudantes travestis e transexuais que são colocados fora das escolas, pois além de toda a situação de despreparo profissional e invisibilidade social, essas estudantes são conduzidas para as ruas, trabalhando na prostituição, ficando a mercê da violência e todas as demais formas de preconceito e discriminação. Para Sales, Souza e Peres (2017, p. 71), a escola utiliza-se de “posicionamentos ético/político/estéticos que rebatem certas produções e discursos que marginalizam algumas vidas, abrindo precedentes compromissados” como legitimação da verdade àqueles que já estabeleceram os seus ideais como encargo verdadeiro. Com isso, o preconceito e a exclusão, somados às dificuldades de acesso e permanência na escola, a indisponibilidade de oportunidades, a recusa no mercado de trabalho até mesmo

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para quem conseguiu resistir aos excludentes processos, a permanência de pessoas trans na escola, chegando a concluir o ensino médio ou até mesmo uma graduação, são elementos que contribuíram significativamente para que muitas acabem na prostituição com vulnerabilidade ao cotidiano do uso de drogas e a violência. Para compreendermos a construção histórica da emergência de travestis e transexuais como categoria identitária, o estudo de Carvalho e Carrara (2013) configura duas preocupações que foram consideradas cruciais no movimento LGBT brasileiro. A primeira preocupação consiste nos embates que se contrapõem desde a inclusão das travestis e transexuais no movimento de luta como até mesmo no uso das categorias “travesti e transexual”. O movimento homossexual brasileiro só inclui travestis e transexuais no movimento de luta por respeito ao reconhecimento da identidade de gênero a partir das décadas de 1980 e 1990. Esse entendimento nos revela que das categorias relacionadas à orientação sexual e às questões de identidade de gênero, travestis e transexuais, além de terem ficado de fora das discussões como categorias identitárias, até mesmo pelas intenções de abarcar a possibilidade de se construir um movimento com bases coletivas de identidade, a luta pelos direitos de travestis e transexuais é considerada “relativamente mais moderna que a categoria “homossexual”, não se tratando, portanto, de uma categoria tradicional ou pré-moderna como seríamos tentados a considerá-la” (Carvalho & Carrara, 2013, p. 324). A segunda preocupação de Carvalho e Carrara (2013) era a necessidade da organização de um movimento específico para travestis e transexuais enquanto categoria com a possibilidade real e concreta de lutar pelos direitos na construção e afirmação da identidade de gênero dado a divergentes especificidades de populações de travestis e transexuais e a possibilidade de eventos de

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capacitação para buscar financiamento de projetos na constituição enquanto sujeitos nos campos jurídicos e políticos. Entretanto, para Benedetti (2005), a própria existência da travestilidade já é uma manifestação de um grupo como validade de afirmação não permitindo que a existência fique limitada aos reducionismos e configurações essencialistas que as colocaram à margem. Embora o movimento de lutas pelo reconhecimento da identidade de gênero, atualmente, já tenha uma certa estruturação política, o acesso à escolarização sempre foi uma questão que não foi tratada e valorizada com dignidade garantindo o respeito mútuo, independente da orientação sexual e da identidade de gênero dos estudantes. As políticas de equidade de gênero e respeito ao reconhecimento da identidade foram reiteradas por ações de descaso e exclusão, prejudicando estudantes travestis e transexuais. Contudo, com o acesso negado à escola, estudantes travestis e transexuais ficam impossibilitadas de participarem dos processos competitivos do mercado de trabalho de modo igualitário. De acordo com os estudos de Franco e Cicillini (2015), no ano de 2010 um grupo de professoras travestis e transexuais propuseram a implementação de um grupo de trabalho no XVII Encontro Nacional de Travestis e Transexuais que Trabalham com AIDS (ENTLAIDS) com o objetivo de dirigir espaços de discussão e criação de políticas de direito a pessoas transexuais voltadas à educação, criando a Rede TransEduc Brasil com o objetivo de instrumentalizar a expressão da luta pela garantia dos direitos humanos e cidadania plena de Travestis e Transexuais. Com isso, os autores admitem que houve, no Brasil, uma ampliação da educação básica ancorada aos princípios da inclusão social com a intenção de inserir “temáticas especificas sobre a exclusão de pessoas transexuais, travestis e transgêneros nas escolas brasileiras” (Franco & Cicillini, 2015, p. 326).

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Entretanto, atualmente, existe uma repercussão negativa na imprensa e, mais especificamente, nas redes sociais sobre a responsabilidade na promoção dos LGBTs junto a uma diretoria subordinada a Secretaria Nacional de Proteção Global, que representa para muitos a perda do reconhecimento de LGBT dentro do sistema de proteção dos direitos humanos, principalmente no que diz respeito aos aspectos da escolarização e profissionalização, aumentando mais ainda os índices a prática da homofobia institucionalizada. De acordo com Santana (2016, p. 102), os currículos e programas escolares são formados com padrões da normalidade da heterossexualidade, caracterizando ausência nos processos educacionais de discussão das outras possibilidades de expressão da sexualidade podendo “transformar a escola em um ambiente hostil, com consequências físicas, emocionais para o desenvolvimento de pessoas LGBT”. Para a autora, o bullying, o assédio tanto físico como verbal, levam estudantes travestis e transexuais a abandonarem as escolas, ocasionando, inclusive, a “vulnerabilidade quanto ao uso de drogas e até mesmo ao suicídio” e a escola acaba se tornando mais um instrumento que ratifica os modelos de exclusão com ações violentas justificada pela imaturidade profissional e na ausência de gestão educacional com ações afirmativas na garantia de um espaço educativo voltado pra a valorização da afirmação da identidade de gênero. Com isso, a escola enquanto instituição de ensino, além de reproduzir as práticas do machismo ela está, segundo Junqueira (2014, p. 176), “fortemente empenhada em reafirmar e garantir processos obrigatórios de heterossexualização e incorporação de normas de gênero, colocando sob vigilância os órgãos de todos”. Nesse processo, a identidade de gênero vai ficando cada vez mais exposta ao silenciamento, à invisibilidade e à exclusão de direitos

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implicando o processo de reconhecimento da existência de estudantes travestis e transexuais em sua existência social. Método O estudo é de abordagem qualitativa e tem como objetivo apresentar os desafios e as perspectivas na trajetória profissional de professoras travestis e transexuais em Rondônia a partir do viés da psicologia social. O método de coleta de informação ocorre a partir de três técnicas indispensáveis: o encontro focal, entrevistas narrativas individuais e registro de informações em um diário de campo, sendo as duas primeiras captadas por meio da utilização de vídeos como instrumento de coleta de dados. A primeira interação entre as participantes ocorreu a partir de um encontro focal com cinco professoras travestis e transexuais, realizado em uma sala de aula do Instituto Estadual de Educação Carmela Dutra, em Porto Velho, Rondônia, no dia 01 de setembro de 2018. O critério de seleção do local para o encontro ocorreu a partir de dois aspectos fundamentais: o primeiro foi em razão da escola está localizada no centro da cidade facilitando o acesso de todas as participantes. Outro aspecto fundamental para a escolha do local foram os fundamentos históricos da formação de professores em Rondônia por se tratar de uma escola criada em 1947 como Escola Normal do Guaporé destinada para formação de professores. O encontro focal teve a duração de 45 minutos e contou com registro de imagens, vídeos e sons como técnica de captação das informações. Todas as participantes foram convidadas anteriormente e foram informadas quanto aos objetivos da pesquisa e a importância da participação de todas. A partir do avanço da investigação, a pesquisa se consolida como forma de compreensão dos desafios na trajetória de vida escolar das participantes e os seus delineamentos quanto à escolha do magistério como profissão e a

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luta pela igualdade de gênero na escola aliada às estratégias de construção de identidade de gênero. Em se tratando de encontros focais como método de coleta de informações, Breakwell (2010) vê o grupo focal como uma contribuição para a pesquisa social de modo mais potencial do que real. Para o autor, os encontros focais ganham impulsos substanciais nas pesquisas qualitativas. Entretanto, para o autor, os encontros focais integram-se na pesquisa qualitativa com base “na discussão que produz um tipo particular de dados qualitativos gerados via interação grupal”. Segundo Romero (2010), as pessoas participantes “representam os sujeitos do estudo” que juntos discutem os tópicos elencados pelo mediador e permitem socializar e apresentar suas opiniões e para Barbour (2009, p. 128) com a preocupação nas experiências e na trajetória que, através dos encontros focais realizados, fica evidente principalmente em grupos vulneráveis. Entende-se que as informações levantadas a partir da realização das entrevistas e do encontro focal com as participantes devem ser sistematizadas em uma análise de dados, caracterizando que os grupos focais como recurso em pesquisas qualitativas possibilitam maior compreensão do processo de construção das percepções, atitudes e representações sociais. O desenvolvimento do trabalho conta com o auxílio e a contribuição de imagens e dos vídeos para a interpretação dos dados, que segundo Banks (2009) propõe tanto a elicitação de dados como a de opiniões por meio de vídeos. As entrevistas foram filmadas e realizadas individualmente após a realização do encontro focal e com duração de aproximadamente 15 minutos. Cada participante foi contatada individualmente para realizar a entrevista em local de escolha da participante. Participantes

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Participaram deste estudo cinco professoras travestis e transexuais que atuam em escolas públicas na rede de ensino estadual e municipal em Rondônia. As professoras foram identificadas a partir da iniciativa de levantamento de informações de docentes e a utilização do nome social promovida pela Secretaria de Estado da Educação (SEDUC/RO) no diário eletrônico. Entre as professoras participantes três são funcionárias do quadro estadual e duas do quadro municipal sendo que uma delas compõe o quadro efetivo do município de Machadinho do Oeste, interior do Estado de Rondônia e a outra o quadro efetivo do município de Porto Velho conforme especificado no quadro 1 abaixo. Quadro 1 Caracterização das professoras travestis e transexuais participantes das Entrevistas e Encontros Focais Identificação

Idade

Localidade

Formação

Rede

Área de atuação

Professora A

47 anos

Porto Velho, RO

Letras: Língua Portuguesa UNIR/Porto Velho – RO Mestre em Letras

Rede Municipal

Professora B

32 Anos

Porto Velho, RO

Rede Estadual

Professora C

27 anos

Machadinho do Oeste, RO

História – Mestrado em História e Estudos Culturais UNIR/Porto Velho – RO Doutoranda em História pela UFRGS Pedagogia: Anos Iniciais UNIRON/Porto Velho - RO

Professora D

27 anos

Porto Velho RO

Matemática/Universidade Castelo Branco

Rede Estadual

Professora E

37 anos

Porto Velho RO

Letras: Língua Portuguesa e Língua Inglesa/UENP Campus de Jacarezinho PR

Rede Estadual

Ensino Fundamental de 6º ano 9º Modalidade de Educação de Jovens e Adultos Ensino Fundamental de 6º ao 9º ano Regular/Escola Rural Ensino Fundamental de 1º ao 5º ano Regular Ensino Fundamental e Médio Ensino Médio

Rede Estadual

Fonte: Elaborado pelos autores/2018. Durante o estudo, foram identificadas algumas professoras transexuais que atuam no ensino superior no Estado de Rondônia,

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porém, como critério de inclusão das participantes, foi definido somente incluir professoras que atuam na educação básica e na rede pública de ensino. No levantamento realizado nas escolas públicas e privadas de todo o Estado de Rondônia, considera-se que as cinco professoras participantes na pesquisa compõem a totalidade do público pesquisado e também não encontrando em bancos de dados nenhum professor transexual até a data da conclusão do estudo. Contexto da pesquisa: instrumentos e procedimentos de análise Para a realização do encontro focal foi solicitado a Secretaria de Estado da Educação (SEDUC/RO) um termo de apresentação e autorização para uma visita ao Instituto Estadual de Educação Carmela Dutra, localizada na Avenida Farquar, 1913, no bairro Arigolândia, região central de Porto Velho. Durante a visita, além do agendamento do encontro focal, foi elaborado um planejamento para a produção dos vídeos do encontro visando a favorecer o atendimento aos critérios metodológicos de ação e interação especificados por Spink e Menegon (2004) com a proposição de diálogo entre as partes e compreendendo o aspecto ético, técnico e metodológico da pesquisa. O encontro focal contou com a participação de um observador e dois técnicos para registro fotográfico e audiovisual. Tanto para o encontro focal como para as entrevistas, adotou-se posicionamentos metodológicos construcionistas, obedecendo a três momentos importantes: a elaboração dos roteiros, a aplicação das entrevistas e a análise das informações. Em relação aos procedimentos de análise dos dados, entende-se que os processos e o contexto do estudo constituem elementos inseparáveis no que se trata da compreensão dos significados e interpretações atribuídos no decorrer da trajetória de vida de cada uma das participantes de modo diferenciado. Dessa

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forma, optou-se por utilizar da análise temática de Braun e Clarke (2006) como método analítico amplamente utilizado nas pesquisas em psicologia qualitativa. Os significados e resultados foram tematizados com ideia de captar padronização nas respostas com base em quatro eixos: a construção e a afirmação da identidade de gênero; escolha pelo magistério como profissão; experiências profissionais como docente travesti e transexual, e; contribuições de professoras transexuais para a educação no estado de Rondônia. O principal objetivo da análise temática está na apresentação dos conteúdos e dos significados por meio de temas como construtos abstratos que podem ser identificados antes, durante e depois da análise (Braun & Clarke, 2006). Essa técnica também tem a intenção de facilitar a escrita, pois, segundo os autores, é parte integral da análise não ocorrendo somente no final do estudo, iniciando com a anotação das ideias sistematicamente e os esquemas de codificação através do processo de codificação e análise. Todas as cinco professoras participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido aceitando participar do estudo que foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa – CEP da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS através do Parecer Consubstanciado de nº. 2.462.019, em 06/11/2017. Resultados e discussão: desafios na docência trans Os desafios no processo de escolarização de pessoas travestis e transexuais sempre esteve vinculado aos modelos disciplinares e regulatórios que as práticas educacionais adotaram, historicamente, com base nos estereótipos de representação binária e com o enraizamento político com fixação de crenças e referências (Péres, 2010).

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O autor apresenta uma análise dos relatos de travestis e suas experiências no sistema de ensino brasileiro com processos de subjetivação a partir de uma cartografia subdivididos em etapas normatizadoras e singularizadoras com representação dos aspectos negativos que somaram na construção de uma escola transfóbica. Dependendo dos modos de subjetivação, as pessoas se tornam mais normatizadoras ou com resistências reforçadas as normas em relação ao contato com as diferenças onde é permitido fazer um mapeamento dos níveis de abertura ou de fechamento. O sentido de subjetivação é designado pelo movimento que produz os sujeitos e a relação dos mesmos com os sentidos e significados constitutivos do contexto sócio-histórico, político e cultural (Péres, 2010). Embora o artigo encontre algumas tentativas para promover a inclusão de travestis e transexuais nas escolas, elas “esbarram em preconceitos de toda ordem que, para além dos currículos e programas educacionais, são encontrados nas relações interpessoais”. As reações vêm sempre carregadas de fobismos, amedrontamentos e insegurança diante dos discursos disciplinares e reguladores presentes em seus corpos, valores e referencias binárias que o autor atribui aos operadores de certo/errado, normal/patológico e pecado/virtude. Certamente, tal como os estudos de Peres (2010), os temas transversais apresentados pelos operadores da educação, no que se refere à temática da identidade de gênero, este tem demostrado grande resistência em estabelecer diálogo e problematização na emergência de existencialização de estudantes travestis e transexuais. Entretanto, este estudo apresenta como resultado a trajetória e história de vida de 05 (cinco) mulheres transexuais que, ao longo de suas experiências pessoais, foram aprovadas em concurso público para professoras da educação básica. Assim sendo, para o construto dos resultados, é importante que a trajetória de vida escolar das participantes fosse tratada, estabelecendo uma

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trajetória de vida escolar e acadêmica até chegar à prática profissional docente. Todas as professoras participantes possuem formação superior completa e pós-graduação, sendo três com título de mestrado e uma em processo de doutoramento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS. Os desafios na docência para as professoras elencadas neste estudo, estão caracterizadas em duas situações temáticas, sendo a primeira baseada na construção e afirmação da identidade de gênero, apontando a trajetória de quando, onde e como aconteceu este processo, sintetizado no quadro 2 com a caracterização da construção e afirmação da identidade de gênero das participantes. A segunda situação temática baseia-se nas relações entre a escolha pela profissão docente e como os processos de construção e aquisição de identidade foram inseridos nessa escolha evidenciadas no quadro 3. Além dos desafios na fase de escolarização, essa temática também apresenta como foi a recepção dos alunos, demais profissionais e a comunidade, bem como todos os fatores que contribuíram na relação entre docência e transexualidade.

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Quadro 2 Tema 1: Caracterização da construção e afirmação da identidade de gênero Identificação

Quando aconteceu

Professora A

Fase adulta, aos 30 anos de idade.

Professora B

Na adolescência, entre 13 e 14 anos

Professora C

Na adolescência, com 15 anos.

Professora D

Desde os 7 anos de idade

Professora E

Na infância, aos 12 anos de idade.

Onde aconteceu Nas relações de trabalho, embora sempre teve conhecimento da identidade transexual No espaço universitário associado com a aquisição de conhecimento e compreensão crítica. Nos grupos de movimento social LGBT com ações e projetos de garantia de direitos. Na família, no convívio com os próximos. Sempre foi vista como menina Desde menina na escola, em casa e com toda a família.

Como aconteceu

Após independência financeira e de modo prazeroso

Na busca pelo conhecimento acadêmico

Sinto que está em eterna construção

Com as experiências e a família. Convívio com amigos de escola, professores e demais profissionais. Minha família não foi difícil para aceitar.

Fonte: Elaborado pelos autores/2018. A professora A é natural do estado do Paraná e chegou em Rondônia com, aproximadamente, 12 anos de idade. Relata que, mesmo tendo consciência de qual era a sua real identidade de gênero, suas experiências somente vieram a concretizar bem mais tarde em razão de não possuir nenhuma fonte de renda que pudesse se manter. Sabia que, ao apresentar uma identidade diferente da que os pais esperavam, seria expulsa de casa e por este motivo optou logo por trabalhar e conseguir uma forma de sustento.

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Eu venho de uma família evangélica e de pessoas tradicionais. Eu era de família muito carente, e logo percebi que o que eu precisava era me manter financeiramente. Sabia que se eu aos 15 anos assumisse uma identidade de gênero que não conviesse com a que era esperado pelos meus pais e meus irmãos, certamente o que primeiramente aconteceria era eu ser posta na rua. Eu preferi, antes de afirmar a minha identidade de gênero, que eu sempre tive consciência de qual era, era me empregar ter uma vida financeira mais ou menos estável a ponto de as pessoas me respeitarem. Se não me respeitassem pelo que eu era, com certeza me respeitariam pelo status que eu estava objetivando ter. (Professora A) Com a vida financeira já estabelecida, aos 30 anos de idade, a professora abriu o guarda-roupas e foi se desfazendo de tudo aquilo que era incoerente com a sua identidade colocando todas as roupas dentro de uma sacola plástica. Cheguei em casa, abri o guarda roupa, tirei tudo que não gostava e que não tinha nada a ver comigo e fui colocando numa sacola e aquilo foi sendo prazeroso. A maior expressão da afirmação de gênero que eu posso usar agora é que foi prazeroso. Eu vou usar esta roupa e não vou mais usar isto. Eu não vou mais usar esse sapato, eu vou usar o que eu escolhi usar. Isso foi muito prazeroso, e pensei o quanto tempo eu perdi da minha vida fazendo com que eu fosse o que as pessoas queriam que eu fosse. (Professora A) No caso dos avós e demais parentes da Professora B, todos preferiam acreditar que ela vivia em uma indefinição de identidade ou era somente uma fase que ia passar. Segundo ela, embora

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jogasse futebol com os meninos, empinava papagaio e jogava peteca, também não deixava de lado as suas formas e trejeitos femininos, principalmente quando ia brincar com as meninas de escolinha, afirmando que desde muito pequena já queria ser professora chegando a imitar o cabelo e o cruzado das pernas da professora do primário. Aos 17 anos eu comecei a bordar minhas roupas, a calça jeans rasgadas, e me vestir bem garotinha e já me sentia bem daquele jeito. Eu não mais me via como a minha família me vestia. Percebi que a minha identidade era outra, mas só me senti mesmo quando eu fiz 19 anos e entrei na faculdade. Me descobri também quando eu conversei com outras trans e travestis para saber como eu fazia pra me tornar mulher. No início eu comecei a tomar os hormônios clandestinamente até porque eu ainda era menor de idade e minha família começou a descobrir, pois os meus seios começaram a crescer. Minha avó dizia que eu ia adoecer ou que eu ia morrer e que aquilo era do demônio. Tudo isso fez com que eu chegasse a minha transformação, porém a minha identidade de gênero foi afirmada dentro da universidade. Foi lá onde eu recebi o apoio e a orientação, principalmente da minha orientadora no curso de bacharelado em história, e isso me deu um carinho enorme por ela, pois me incentivou em tudo. Dentro da universidade que eu alcancei minha independência de ser quem eu sou e de conseguir ser o que sou hoje. Hoje eu sou uma mulher, tenho minha feminilidade e foi dentro da universidade que eu consegui afirmar essa minha identidade de gênero e a partir daí eu comecei a compreender outros caminhos que me apresentou quem eu sou. A minha identidade de gênero floresceu dentro da

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universidade. Onde busquei conhecimento e encontrei afirmação. (Professora B) O surgimento dos grupos de movimento LGBT teve seu início em Rondônia com o Grupo Tucuxi - Núcleo de Promoção pela Livre Orientação Sexual (NPLOS) em 1994 e pelo Grupo Gay de Rondônia (GGR) em 2005. Embora a categoria de travestis e transexuais estivesse contemplada por esses grupos, as discussões e ações sempre estiveram voltadas para a população que residia nos bairros mais centrais deixando a população dos bairros periféricos de Porto Velho desassistida de políticas de enfrentamento a violência a LGBT. Em 2011, foi criado o Grupo Porto Diversidade com a intenção de promover ações especificamente para os moradores dos bairros da Zona Leste sendo que, a partir dos anos posteriores, o grupo ganhou visibilidade por suas ações e proporções expandindo os trabalhos para toda a cidade de Porto Velho. Nessa ONG, a Professora C desenvolvia, voluntariamente, ações e projetos com travestis e transexuais. É importante destacar que a partir da realização do Projeto Espelho de Vênus voltado, exclusivamente, para população de travestis e transexuais, em 2009, a Comunidade Cidadã Livre (COMCIL) surge como movimento para atender estas especificidades realizando ações de combate a LGBTfobia. Segundo a Professora C, que é natural de Porto Velho, Rondônia, a identidade feminina começou a surgir assim que entrou na adolescência e a família foi muito parceira no momento. Foi o envolvimento com o movimento LGBT e os projetos e ações do grupo que a incentivaram a cursar Pedagogia e tão logo ingressar no serviço público após a provação em um concurso para professora dos anos iniciais no município de Machadinho do Oeste, interior de Rondônia. Segundo a professora C, a “minha família tinha muito medo que por razões de desqualificação profissional eu fosse para a

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prostituição e ficasse alvo fácil de violência, discriminação e preconceito”. De acordo com os relatos da Professora D, aos 7 anos de idade, ganhou de seu pai uma roupa masculina. Segundo ela, a atitude do pai a deixou intrigada, pois sempre vestia a roupa das irmãs mais velhas e sentia-se muito bem com isso. Realmente eu nunca tive traços masculinos, sempre fui feminina. As meninas me tratavam como menina e até hoje eu me assusto. Nunca tive barba e pra minha idade era diferente. Os outros meninos me olhavam diferente. Aos 13 e 14 anos eles me olhavam como mulher ou talvez fosse somente curiosidade em saber se realmente eu era. A única vez que eu usei roupa masculina foi aquela experiência que meu pai me deu. Sempre usei roupas femininas. Nunca gostei de vestir roupas masculinas. No bairro onde eu nasci todo mundo me respeita e sabe que eu sempre fui assim, me admiram muito. Também nunca tive medo de enfrentar isso com minha família. Preconceito sempre existiu, mas por parte da minha família nunca teve. Meu pai é soldado da borracha no início foi difícil, mas aos poucos ele foi aceitando e hoje eu sou uma professora trans que todo mundo admira. (Professora D) Por mais que as regras da sociedade digam o contrário, o sexo, pensado como biológico, não determina o gênero da pessoa por se tratar de uma ferramenta em que “as identidades de gêneros e sexuais se confundem e se misturam, e nem sempre estão evidentes no discurso dos sujeitos”. (Santana, 2016, p. 101). Embora o quadro 3, abaixo, caracterize de modo sintetizado os critérios adotados pelas professoras quanto a escolha da docência como profissão, é importante destacar que a decisão,

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além de ter relação com a infância destas professoras, ela aproxima a construção da identidade feminina com a figura afetiva da professora dos anos iniciais. Todas as professoras participantes destacaram, em seus depoimentos, tanto no grupo focal como nas entrevistas, que a participação de uma professora na infância ou adolescência foi fundamental na escolha da profissão docente, com exceção da professora A que foi privada da escola para trabalhar na roça. A Professora A se reporta à vizinha “Marlene” como responsável por realizar a sua matrícula na escola mesmo contra a vontade do pai. Quadro 3 Tema 2: Caracterização da escolha da docência como profissão Identificação

Professora A

Professora B

Professora C

Professora D

Professora E

Quando aconteceu: Situações Relevantes “Parecia que o que era difícil pra mim era o que seria bom, que era estudar”. Na infância o pai retirava os filhos da escola para trabalhar na roça. Entretanto, uma vizinha a matriculou e deu o primeiro caderno. Aquele desejo de ir pra escola na infância fez com que surgisse o desejo de tornar-se educadora e recompensar a vizinha que a tirou da roça para a sala de aula. Na infância nasce o desejo de ser professora a partir da afetividade pela professora do “primário”. Nas brincadeiras de infância sempre queria ser a professora e já imitava a forma como a professora mexia nos cabelos e cruzava as pernas. “Minha família sempre teve receio de que eu entrasse na vida de prostituição e sofresse violência”. Os pais pagaram uma faculdade de Pedagogia e logo que concluiu o curso foi aprovada em um concurso público no interior do Estado de Rondônia onde trabalha como professora dos anos iniciais até hoje. O exemplo das irmãs professoras de matemática fez com que surgisse o desejo de ensinar. Com o trabalho e a ajuda dos pais conseguiu pagar a faculdade de Matemática e se tornar uma professora trans. A família teve oportunidade de contribuir na formação da filha com boas escolas. O desejo em se tornar professora surgiu a partir da comunicação e o estudo de novas línguas.

Fonte: Elaborado pelos autores/2018. O fato da Professora A ter sido excluída pela família de frequentar a escola fez com que a vida profissional ficasse

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comprometida e, consequentemente, a construção da identidade de gênero foi adiada mesmo tendo total consciência de sua real identidade. Na primeira serie eu fazia. Já na segunda, papai tirava a gente da escola e eu não fazia a segunda série e assim por diante, era normal. Então a minha vizinha me levava escondida pra escola. Ele tinha aquela ideia de que não precisava estudar. Ele era antigo. Só precisava ganhar dinheiro. Estudo era pra quem queria ser médico, advogado. O estudo não era pra quem queria trabalhar na roça. Quando aquilo me faltava era bom. A minha vizinha me deu meu primeiro caderno, a Dona Marlene, me matriculou escondido. Ela se passou por minha mãe. E aí quando eu vim pra Rondônia, eu já tinha meus 16 anos eu fui trabalha de lavador de carro. E eu vi a única oportunidade de estudar. Eu saia do lavador de carro e ia pra escola. Eu dizia pro papai que eu estava lavando carro, mas na realidade eu estava era estudando. E com isso eu consegui terminar o meu ensino fundamental e quando eu terminei o meu ensino fundamental naquela época eu fiz um concurso. (Professora A) Conforme Benedetti (2005), não há nada de novo quando o preconceito e a discriminação tomam conta das instituições violando o direito de pessoas LGBT e em especial travestis e transexuais. O novo é quando a visibilidade é reconhecida em sua inscrição popular e social como no caso das mulheres transexuais participantes deste estudo. O fato de resistirem aos processos de exclusão que muitas transexuais brasileiras sofrem em todas as esferas e ocuparem espaços que, cada vez mais os espaços se intensificavam nos entremeios para pessoas heterossexuais, tem

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como relevância neste estudo os resultados do apoio da família (para alguns casos) e a relação que estas profissionais estabeleceram com a tomada de decisão pelos estudos, pelo conhecimento acadêmico e profissional, bem como na perseverança de encontrar na docência um meio de trabalho e sustento. Por que uma bicha preta decide se aventurar pela carreira docente? Por que ela retorna a um espaço onde vivenciou situações de controle, dores e perseguições racistas e homofóbicas? Voltar para a escola significava um acerto de contas com o passado. Não estava tão vulnerável como estive na infância e adolescência. A bicha preta migrava dos cantos escuros da escola, do fundo da sala de aula para a mesa da professora. (Oliveira, 2017, p. 154) A escolha pela profissão docente por estas professoras possibilita à escola a quebra de um paradigma pautado na “produção do olhar domesticado que, em se tratando de corpos, vê machos e fêmeas antes de outra distinção” (Santana, 2016, p. 103) que se contradiz à visão binária e estereotipada homem ou mulher no corpo travesti e da transexual. A chegada da Professora B em Ouro Preto do Oeste após a contratação via aprovação em primeiro lugar no concurso público trouxe enfrentamentos pois: Naquela época estavam esperando fulano, e chegou lá a “ciclana”. Porém todos já sabiam, a Secretaria de Educação já sabia que eu era uma mulher trans. Ela já sabia que não era um professor, e que era uma professora. Depois que eu fui conversando, e eles me falaram que não sabiam como que elas iam lhe dar com uma professora trans na rede de ensino porque não havia tido uma professora trans em Ouro Preto do

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Oeste. Elas pensavam: como é que vai ser a recepção dos alunos? Como é que vai ser a recepção da comunidade? Então como eu sempre digo. Eu não tenho silicone, e nem prótese nos peitos. Mas peito de aço eu tenho pra enfrentar tudo que aparece na minha frente eu tenho muito peito de aço pra enfrentar. (Professora B) Contudo, conforme Santana (2016), travestis e transexuais são questionados no corpo, na fixação e afirmação identitária e nos pressupostos da sexualidade com o que a escola e os agentes da educação brasileira operam na binaridade. Acostumados em empurrar LGBT para os guetos e vulnerabilidade, com base nos relatos pautados nestas duas temáticas: identidade de gênero e profissionalização, os depoimentos demonstram que as experiências e dificuldades no enfrentamento da construção da identidade, aliada aos mecanismos de profissionalização, foram de ordem excludente e de violação de direitos indispensáveis. Porém, esses critérios pouco contribuíram para afastar mais ainda essas docentes das escolas e universidades, servindo como instrumentos poderosos de afirmação de identidades. Mesmo que para Peres (2010, p. 64) as universidades brasileiras ainda resistem com “uma carga muito intensa de travestifobia/transfobia/lesbofobia/homofobia que, muitas das vezes, tornam-se corresponsáveis pelo abandono ou exclusão dessas pessoas que não chegam a concluir seus estudos”, é necessário que as escolas quebrem a estrutura binária histórica de seus programas e currículos, inserindo a valorização da orientação sexual e o reconhecimento da identidade de gênero em seus espaços como garantia de uma proposta democrática de escolarização, profissionalização e inserção no mercado de trabalho.

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Inclusão de direitos: experiências e perspectivas de professoras transexuais É importante iniciar a análise das experiências e perspectivas de professoras transexuais em Rondônia a partir do viés de ligação que a sociedade estabelece com os enfrentamentos do movimento de mulheres em relação ao contexto machista e patriarcal brasileiro. A trajetória e história de vida dessas profissionais apresenta uma série de contribuições para a educação, tanto para estudantes como para toda a sociedade, independente da sua orientação sexual e identidade de gênero, mediante aos desafios e perspectivas apresentadas nos resultados. Entende-se, neste primeiro contexto, que o primeiro desafio está no reconhecimento da mulher e suas contribuições na participação ativa no desenvolvimento da sociedade brasileira e as conquistas alcançadas frente à compreensão histórica marcada pela exclusão de direitos, ao descaso do poder público e à violência. A participação da mulher no mercado de trabalho, embora atualmente tenha conquistado maior espaço, ainda é inferior se comparando ao público masculino e a equiparação da empregabilidade de profissionais do sexo feminino ao masculino ainda está muito longe de se tornar realidade. Entretanto, essa probabilidade está mais distante ainda de ser comparada com a empregabilidade de transexuais e travestis no mercado de trabalho. A exclusão social e as dificuldades no acesso à escolarização violam o direito de pessoas travestis e transexuais, transformando o país em um dos líderes no ranking de violência e homicídios de LGBT e mais ainda a travestis e transexuais. Conforme relatório da ONG Transgender Europe, (2016) realizada entre 2008 a 2015, o Brasil tem registros de 802 casos de assassinatos de travestis e transexuais registrados em sete anos de levantamento, correspondendo a 78% dos homicídios reportados em todo o mundo.

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Assim, as escolas brasileiras, conforme Natal-Neto, Macedo e Bicalho (2016) ao excluírem pessoas que expressam identidade fora da norma binária dificulta a conclusão de seus estudos e, consequentemente, a desqualificação profissional e a inserção no mercado de trabalho formal. Com base na proibição ao uso do nome social, o uso dos uniformes escolares adequados ao gênero e os banheiros, a escola criou regras do jogo evidenciadas em severa intolerância e privação de direitos a estudantes travestis e transexuais. Para os autores, a desobediência é caracterizada na punição aos “que não as cumprem: o menino efeminado, a menina “masculina”, as pessoas transexuais”. As professoras deste estudo, durante o processo de escolarização, foram vítimas das “regras deste jogo”. Entretanto, optaram por resistir ao preconceito e à discriminação até o final da escolarização, fazendo desse desafio a sua bandeira de conquista para uma formação superior e o exercício da docência como resultado. O relato das experiências da Professora B, revela que desde criança queria ser professora, até mesmo nas brincadeiras com as amigas de infância. Na adolescência, fez do ensino a forma de ganhar dinheiro e alimento dando aulas de reforço para os vizinhos. Eu sempre quis ser a professora e me inspirava nas minhas professoras. Eu queria muito ser igual a minha professora Neres que eu nem sei se ela ainda é viva. Era uma professora da primeira geração da escola Maria Carmosina que foi onde eu estudei. Sempre me inspirava nela. Do jeito que ela fazia na sala de aula eu fazia nas brincadeiras. O cabelo, quando ela sentava e cruzava as pernas, e pedia pra gente levar o material pra ela corrigir. Desde criança eu sempre quis ser professora. E eu fui pegando gosto. Comecei a ajudar as pessoas nas tarefas de casa sendo generosa e ajudava os

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vizinhos dando aula de reforço. Eu ensinava as tarefas de casa. Ia deixar na escola e no horário oposto eu ensinava as filhas da minha vizinha a fazer as tarefas. Dava aula de reforço. Eu recebia um dinheirinho as vezes a minha vizinha me dava frutas, maçã, eu era de uma família bem humilde. Nós tínhamos o básico pra sobreviver mas minha vizinha me ajudava com roupas e alimento em troca de eu dar aulas de reforço para as filhas dela. Minha família queria que eu fosse pro exército. Mas aí não dava né? (Professora B) Relata que por não ser filha biológica, passou por “maus bocados” que lhe serviram de incentivo para concluir os seus estudos e ingressar no curso de Licenciatura em História na Universidade Federal de Rondônia, UNIR. Atualmente, após enfrentar todos esses desafios, a professora cursa doutorado no Programa de Pósgraduação em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS. Se hoje já é difícil uma travesti ou uma trans conseguir um espaço no mercado de trabalho imagina naquela época. Era muito difícil. E como que eu ia sair desse buraco? Sempre soube que era estudando. E foi o que eu fiz, me dediquei aos estudos passei no vestibular da UNIR e fui estudar. E como o curso era vespertino tive que pensar como eu ia me manter. Tive que conseguir um estágio e fui logo estagiária da universidade, depois bolsa de iniciação científica durante os quatro anos. Quando eu já estava concluindo a universidade eu me inscrevi num concurso em Ouro Preto do Oeste e passei em primeiro lugar e assim que eu terminei minha graduação. Defendi a monografia e entreguei o TCC e enviei toda a minha documentação e me mudei para o interior. E foi a partir daí que eu consegui ter a minha independência financeira,

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social e a própria independência de gênero e identidade. E mais uma vez, dentro da universidade que descobri que teria minha independência. Ou eu passava em um concurso público ou senão seria a prostituição, aquilo que nós estamos licenciadas e vulneráveis a ela. Daí eu fui pra sala de aula. Nada contra pois pra mim a prostituição é um trabalho digno, mas pra mim eu sempre quis ser foi professora. (Professora B) Por mais que a sociedade insiste em colocar travestis e transexuais na informalidade ou até mesmo em condições de trabalho com a prostituição, as experiências vivenciadas pela Professora A, no processo de escolarização, no acesso ao ensino superior e no exercício da docência foram desafiadores e demonstram o quanto esses exemplos devem ser valorizados para a garantia do direito de estudantes transexuais que, ainda hoje, são vítimas do preconceito e da discriminação nas escolas. Em junho de 2019, a docente concluiu o Mestrado em Letras pela Universidade Federal de Rondônia com a pesquisa intitulada: Nomes sociais de pessoas transgêneros e nomes artísticos de drag queens do Estado de Rondônia: questões de identidade linguística e de gênero. Eu olhava pra mim e dizia: eu não sei dançar, não sei fazer outra coisa. Só me resta estudar. Passei em um concurso e fui trabalhar num órgão federal. Ganhava um salário razoável. Mas eu percebi que o trabalho que eu fazia não me dava prazer, não era o que eu gostava. Ai eu pensei: vou fazer vestibular. Fiz o vestibular após ter terminado o ensino médio pelo supletivo. Fiz o vestibular e ao mesmo tempo eu fiquei sabendo que aqui na escola Carmela Dutra ia ter um curso de magistério para pessoas que já tinham o ensino médio que seria somente uma complementação pedagógica. Era o magistério especial. Daí eu disse: eu vou fazer. Assim que

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terminei o magistério especial fiz um concurso pra educação como professor de series iniciais e passei. No dia que eu passei, lá na empresa que eu trabalhava todo mundo ficou sabendo. Não existia internet e o jornal quando chegava todo mundo queria lê. O porteiro leu, viu meu nome e já cuidou de espalhar pra todo mundo que eu havia passado pra professor do magistério. Na mesma época eu fiz o vestibular e passei pra pedagogia. Eu comprei o jornal e como não tinha internet você tinha que fazer plantão esperando o jornaleiro passar. Quando o jornaleiro passou eu comprei o jornal antes do porteiro para ele não espalhar a conversa. Fui trabalhar e meu chefe me chamou. Falou que soube que eu tinha passado. Mas como o curso que eu tinha passado era justamente no horário do trabalho. Ele disse que era pra eu escolher. Ou fazia a universidade ou trabalhava. E num relance eu disse que ia estudar e fui no recursos humanos e pedi minha demissão. Isso era 8h da manhã e a tarde eu fui na secretaria municipal de educação saber quando eu seria chamada pra dá aula. Chegando lá eu descobri que naquele mesmo dia tinha saído a minha convocação pra tomar posse como professora. E eu tenho até hoje o edital guardado. No dia que fui demitida eu fui contratada pela prefeitura de Porto Velho. Fui trabalhar em uma escola bem distante da cidade. Na época, pois hoje ela fica dentro da cidade. Eu me sentia muito melhor ali. Ganhando um salário que era a metade do que eu ganhava antes. Daí eu decidi que essa seria a minha vida. E eu costumo dizer que o que me faltou na infância me deu base pra eu me construir. Dei sorte que não precisei me prostituir. Porque não fiz prostituição como meio de sobrevivência. Mas o que me deu base foi a educação. E de certa forma eu iria retribuir isso talvez em homenagem a Marlene (Professora A)

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Como resultado das experiências e perspectivas das docentes, não é de se entranhar que a luta pela igualdade de gênero nas escolas venha a ser o principal desejo destas profissionais. As professoras participantes do estudo apresentaram em suas falas que as suas perspectivas docentes estão voltadas à construção de espaços de igualdade nas escolas, independente da orientação sexual e da identidade de gênero dos estudantes e professores. Os relatos, durante o grupo focal e nas entrevistas individuais, revelam que desde a fase de escolarização até o pleno exercício da docência, a exclusão esteve presente em todas essas etapas mesmo acontecendo em contextos diferenciados. Enquanto temos uma docente que, desde cedo, construiu a sua identidade com a orientação da família, de outro lado temos experiências de professoras transexuais que tiveram que abdicar durante toda a sua vida de sua real identidade até alcançar o reconhecimento financeiro. Em se tratando do currículo escolar e do dia a dia da instituição, não tem como deixar de fora que a função social da escola é preparar cidadãos para uma vida baseada no respeito mútuo e para conviver de modo comunitário com valorização às diferenças em uma sociedade mais justa, igualitária, democrática e tolerante. Entretanto, a situação política atual tem contribuído para o retrocesso e o desrespeito às diversas formas de orientação sexual e identidade de gênero. As ações propostas pelo programa Brasil sem Homofobia lançado pelo Governo Federal e a sociedade civil organizada em 2004, que tinha como objetivo equiparar os direitos de LGBT e o combate à discriminação e à violência, deixaram de ser prioridade, perdendo lugar para propostas totalmente desvinculadas ao reconhecimento e à reparação da cidadania de populações de LGBT.

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Assim, as perspectivas de docentes travestis e transexuais que atuam em turmas do ensino fundamental e médio nas escolas de Rondônia, é o combate a todas as formas de preconceito e discriminação baseado na construção de uma cultura de paz que não trate com diferença os estudantes. Considerações Finais O estudo propôs apresentar, de modo qualitativo, os desafios e perspectivas de professoras travestis e transexuais que atuam em escolas da rede pública estadual e municipal no Estado de Rondônia, tendo como instrumento de coleta a realização de um grupo focal e entrevistas individuais. Entretanto, a trajetória e história de vida destas cinco professoras foram de fundamental importância para a construção dessas perspectivas. Isso porque os desafios para o exercício da docência deram início durante o surgimento do desejo em serem professoras, mesmo sabendo os desafios que seriam enfrentados nesta trajetória. Importante destacar que a construção da identidade de gênero destas professoras esteve marcada com o desejo pela docência acompanhado com as marcas da exclusão escolar, tanto pela família (deixando de matricular seus filhos para trabalhar na agricultura), nas proibições ao uso de roupas adequadas a identidade de gênero, assim como todas as formas de exclusão de direitos enquanto estudantes associadas à violência e à discriminação. As diferentes formas de exclusão, vivenciadas pelas docentes, foram utilizados como referência no combate às desigualdades, fazendo com que cada uma delas chegassem à conclusão dos seus estudos até a aprovação em concurso público. Em outras palavras, foram os desafios que levaram estas docentes ao êxito profissional. Entretanto, com base nos relatos e experiências, a trajetória de estudantes cis-hetero nas escolas

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brasileiras, durante todo o contexto histórico, é evidenciada de história de conquistas atreladas ao desempenho escolar, ao acesso e à permanência na escola e aos demais fatores sociais e econômicos que o país enfrenta. Tampouco, para estudantes LGBT e, mais especificamente, para as travestis e transexuais essas conquistas tornam-se mais dolorosas e traçadas em trajetórias de muito sofrimento e exclusão. A identidade de gênero apresenta percursos muito mais evidentes de exclusão e descasos por parte dos instrumentos escolares de reconhecimento da identidade que são apresentados na trajetória e história de vida das participantes. No que se refere ao trajeto de construção da identidade, as escolas brasileiras não possuem nenhum elemento norteador em seus currículos escolares que contribuem para que estudantes travestis e transexuais sejam reconhecidas na sua identidade, assim como a postura e prática dos docentes e gestores para eliminar de vez a violência e a discriminação a LGBT. Os livros didáticos não trazem em seus apontamentos a discussão da orientação sexual e da identidade de gênero, da articulação de políticas de promoção de direitos de LGBT, fazendo com que a reprodução dos paradigmas binários fique mais evidente e retratado como verdade absoluta. O espaço escolar ainda está longe de ser um ambiente de apoio a projetos de fortalecimento na promoção da cidadania LGBT e um espaço de luta ao combate a homofobia/transfobia, deixando de promover informações a respeito do direito, da autoestima e o incentivo à denúncia de violações de direitos humanos. É incontestável que a inclusão da perspectiva da nãodiscriminação de LGBT e a promoção de direitos a partir de ações escolares tenha sido negada e utilizada como ferramenta política de campanha eleitoreira como justificativa de atender aos anseios de uma família tradicional. Essa postura contribui para que LGBT sejam vítimas de exclusão dos meios de escolarização e de profissionalização, aumentando mais ainda o índice de violência e

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homicídios de travestis e transexuais. Ao invés de serem combatidas pelos nossos representantes, essas propostas devem ser valorizadas e subsidiadas para a elaboração de políticas públicas voltadas ao combate à violência e à discriminação a LGBT, além disso, a escola deve ser o principal agente de participação destas ações. Por fim, não só a trajetória e história de vida das professoras travestis e transexuais participantes deste estudo foram marcadas por violação de direitos à escolarização e a um ambiente marcado por injustiças e exclusão. Estudantes LGBT brasileiros, não necessitam somente de acesso à matrícula na escola. Além disso, o acesso à escola precisa, de fato, garantir a valorização da sua identidade e do direito à expressão da sua orientação sexual de modo igualitário, justo e democrático, sem que estejam vinculados à prática de violência e toda forma de discriminação. O poder público precisa, com isso, compreender que a defesa e a garantia de direitos humanos também incluem a discriminação à orientação sexual e à identidade de gênero com propostas que combatem a homolesbofobia e a transfobia que têm se institucionalizado nas escolas brasileiras. Referências Banks, M. (2009). Dados visuais para pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Artmed. Barbour, R. (2009). Grupos Focais. Porto Alegre: Artmed. Benedetti, M. R (2005). Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond. Braun, V., & Clarke, V. (2006) Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology, 3(2), 77-101. doi:10.1191/1478088706qp063oa Breakwell, G. M. (2010). Métodos de pesquisa em psicologia. Tradução: Felipe Rangel Elizalde– 3. Ed. – Porto Alegre: Artmed.

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Carvalho, M., & Carrara, S. (2013). Em direito a um futuro trans?: contribuição para a história do movimento de travestis e transexuais no Brasil. Sexualidad, Salud y Sociedad, 14(2), 319-351. doi:10.1590/S1984-64872013000200015. Franco, N., & Cicillini, G. A. (2015). Professoras trans brasileiras em seu processo de escolarização. Revista de Estudos Feministas, (23)2, 325-346. doi:10.1590/0104-026X2015v23n2p325. Jovchelivitch, S., & Bauer, M. (2017) Entrevista Narrativa. Em Bauer, M., & Gaskell, G. (Orgs) tradução de Pedrinho Guareschi. Pesquisa Qualitativa com Texto, Imagem e Som. Um manual prático (pp 90-113). Petrópolis: Editora Vozes. Junqueira, R. D. (2014). A “pedagogia do armário”: heterossexismo e vigilância de gênero no cotidiano escolar. Annual Review of Critical Psychology, Gender and Sexuality, 11, 189-204. Retirado de https://www.maxwell.vrac.pucrio.br/20048/20048.PDF. Natal-Neto, F. O., Macedo, G. da S., & Bicalho, P. P. G. (2016). A Criminalização das Identidades Trans na Escola: Efeitos e Resistências no Espaço Escolar. Psicologia Ensino & Formação, 7(1), 78-86. doi:10.21826/2179-58002016717886. Oliveira, M. R. G. de (2017). O diabo em forma de gente: (R)existências de gays afeminados, viados e bichas pretas na educação. Curitiba: Prismas. Peres, W. S. (2010). Travestis, escolas e processos de subjetivação. Instrumento-Revista de Estudo e Pesquisa em Educação, 12(2). 57-65. Projeto de pesquisa da TvT (2016). “Resultados do monitoramento de homicídios em trânsito: Atualização TMM TDV 2016”, Transrespect versus Transphobia Worldwide New (TvT). Retirado de http://transrespect.org/en/trans-murdermonitoring/tmm-resources/.

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Romero, S. (2000). A utilização da metodologia dos grupos focais na pesquisa em psicologia. In H. Scarparo (Org.), Psicologia e pesquisa: Perspectivas metodológicas. (pp. 55-78). Porto Alegre: Editora Sulina. Sales, A., Souza, L. L. D., & Peres, W. S. (2017). Travestis brasileiras e escola: problematizações sobre processos temporais em gêneros, sexualidades e corporalidades nômades. Fractal: Revista de Psicologia, 29(1), 71-80. doi:10.22409/19840292/v29i1/1530 Santana, A. L. A. (2016). A vivência dos travestis em escolas e no ensino superior brasileiro: uma análise bibliográfica do período 2011-2015. Revista Científica FAGOC Multidisciplinar, 1(1), 99111, 2016. Retirado de https://revista.fagoc.br/index.php/multidisciplinar/article/vie w/105/85. Spink, M. J., & Menegon, V. M. (2004). A pesquisa como prática discursiva: superando os horrores metodológicos. In: Spink, M. J. (Org.). Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. São Paulo: Cortez.

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Capítulo 12 Violência na Escola: Pensando a partir da Inserção Ecológica Maria de Fátima Brito Fontenele Rocha Elder Cerqueira-Santos O cenário socioambiental a nível nacional, e porque não dizer, a nível internacional, revela aspectos diversos das manifestações da violência que é praticada ou vivenciada por grupos de adolescentes da sociedade, dentre eles alunos das mais diversas faixas etárias. De fato, fala-se de uma violência expressa entre os adolescentes, porém, faz-se necessário conhecer mais sobre a violência geral com todas as suas nuances e várias representações. Baseando-se no que diz Malta et.al (2017), a violência praticada entre os pares, em âmbito escolar pode ser considerada um dos fatores de risco de importância em prejudicar o desenvolvimento saudável, afetando a saúde, a qualidade de vida e o bem-estar subjetivo, físico e social de crianças e de adolescentes. Dito de outra forma, pode-se entender a violência como sendo um fenômeno multidimensional, praticada entre pares no contexto escolar resultante de complexas interações entre crianças e adolescentes e seus ambientes sociais. Então, não pretendendo reproduzir uma série de conceitos, visto que eles se tornam complementares, destaca-se aqui a definição de Chauí (2002) que considera a violência como o uso da força física e do constrangimento psíquico para obrigar alguém a agir de modo contrário à sua natureza e ao seu ser, violando a integridade física e/ou psíquica da dignidade humana.

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Por suas variadas formas de manifestação no convívio entre os indivíduos, as violências acabam associadas erroneamente a outros, como a indisciplina. Esse equívoco é propiciado especialmente pelos meios de comunicação que acabam por utilizar essas definições como sinônimas. Essa generalização é um tanto quanto abusiva, visto que a indisciplina escolar, na maior parte dos casos, não é violência (Lira, Cerqueira & Gomes, 2016). Muitas vezes essa indisciplina ocorre por brincadeiras entre os alunos durante as aulas, por outro lado essas brincadeiras às vezes se tornam bullying. O bullying pode ser compreendido como um subconjunto e como formas de comportamentos agressivos, verbais ou físicos, intencionais e repetitivos, ocorrendo sem uma motivação evidente. Pode ser realizado por um ou mais estudantes contra outros, causando dor e angústia e é executado dentro de uma relação desigual de poder (Peterson, 2009). O bullying pode ocorrer em dois momentos: no primeiro, o praticante pode ser somente perpetrador, mas o segundo formato o perpetrador também é vítima de bullying (Bandeira & Hutz, 2012). Não se pode deixar de relatar aqui que o aluno pode ser, não apenas o agente causador da violência, mas também, em determinadas situações, tornar-se alvo dela, sendo, portanto, vítima. Ou seja, a violência também é perpetrada por outros atores que fazem parte do contexto escolar (Silva & Silva, 2013). Diante do exposto, entende-se que a violência com adolescentes no contexto escolar tem tomado proporções gigantescas na atualidade, tornando-se um problema social que exige medidas múltiplas. Sendo assim, este estudo é de grande relevância para melhor entender o que os adolescentes, pais e professores pensam sobre esse fenômeno. O presente capítulo primou-se por utilizar um desenho metodológico de natureza qualitativo, e tem como objetivo geral investigar a manifestação da violência entre os adolescentes,

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considerando os múltiplos contextos nos quais ele está inserido. Para tanto, os objetivos específicos foram: identificar concepções sobre a violência para alunos, pais e professores; descrever as expressões de violência identificadas por alunos, pais e professores na escola, na família e na comunidade; investigar se alunos, pais e professores já foram vítimas de violência na escola, na família e na comunidade; investigar possíveis causas relacionadas à violência na escola, na família e na comunidade; analisar aspectos relacionados à diminuição da violência escolar, familiar e comunitária. A Inserção Ecológica Para a realização deste estudo, utilizou-se um desenho metodológico de natureza qualitativo. Foi escolhido o Modelo Bioecológico do Desenvolvimento Humano, proposto por Urie Bronfenbrenner (2011), que tem como delineamento quatro componentes interdependentes que são o processo, a pessoa, o contexto e o tempo. Pode-se perceber que, neste estudo, o processo pode ser a configuração das relações de violência existentes no microssistema (violência familiar) e no mesossistema (violência escolar e comunitária); a pessoa é representada pelos sujeitos da pesquisa, com suas particularidades biopsicológicas e características ambientais; o contexto pode ser entendido como a interação de todos os sistemas, ou seja, o microssistema, o mesossistema, o exossistema e o macrossistema, unidos, compõem o meio ambiente ecológico. E o tempo que pode ser considerado o tempo histórico, em relação aos fenômenos contemporâneos da violência, da pobreza, das relações familiares e comunitárias, como também o tempo do sujeito, do adolescente em desenvolvimento. Essa é uma proposta de levantamento com Inserção Ecológica como modelo de investigação, que acontece a partir da observação naturalística, em que os pesquisadores se inserem no

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campo de pesquisa, tornando-se o mais próximo possível das pessoas que fazem parte do contexto pesquisado, com o intuito de que haja uma interação recíproca, em busca de compreender a realidade em estudo de forma ampla e contextualizada (Narvaz & Koller, 2004). Locus da Pesquisa O estudo foi realizado em uma comunidade de baixa renda, na cidade de Fortaleza-CE, tendo como palco inicial uma escola estadual. A escolha desse lócus se deu por conveniência e em função da referida comunidade estar localizada em um espaço que é considerado pela mídia jornalística e pelos próprios moradores como violento. Portanto, centralizar inicialmente a atenção no espaço da escola se justifica porque neste cenário diversos casos de violência são detectados, diariamente, pelo núcleo gestor. Assim, este espaço escolar é terreno fértil para elencar os participantes que possam ter em suas relações ações de violência, podendo assim fazer parte da amostra. Participantes da Pesquisa Participaram da pesquisa, adolescentes, alunos da escola supracitada, com faixa etária entre 14 a 18 anos, de ambos os sexos, e a família desses adolescentes, que constitui, na perspectiva ecológica, o microssistema familiar. Participaram também os professores que trabalham na escola, constituindo assim pessoas que fazem parte do micro e mesossistema dos adolescentes. O número de famílias, de adolescentes e de professores que participaram da pesquisa estava imbricado a duas turmas que foram sorteadas, uma para o turno da manhã e outra para o da tarde. A pesquisa aconteceu com alunos, pais e professores do 1º ano do Ensino Médio, a “amostra” foi aleatória e por conveniência. Dessa forma, foram entrevistados 10 alunos do turno da manhã e 10 alunos do turno da tarde.

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Procedimentos e Instrumentos da Pesquisa Para o acesso às informações que foram analisadas, escolheu-se como técnica a Inserção Ecológica, que aconteceu durante todo o processo da pesquisa. Os instrumentos foram a observação naturalística, que será detalhada no diário de campo e a entrevista semiestruturada, que foi realizada com os participantes do estudo. Para uma melhor orientação dos pesquisadores sobre o que deveria ser observado, optou-se pela utilização de um roteiro de observação a ser seguido, que versa sobre o cotidiano dos adolescentes e a sua relação com a comunidade da escola, com a finalidade de obter informações sobre a realidade vivenciada. Diante disso, foi utilizada no estudo, a entrevista semiestruturada com os adolescentes, pais e professores da escola, palco da pesquisa. O levantamento bioecológico tem como foco a violência envolvendo os adolescentes no micro e mesossistema e, dessa maneira, descrever sobre a violência e os fatores de risco e de proteção que estão presentes na vulnerabilidade social. A entrevista constou de perguntas abordando os aspectos biosóciodemográfico dos participantes do estudo tais como: a) idade, sexo, experiência escolar e com o trabalho, atividade de lazer, local residencial, e b) identificar as configurações, reflexos e enfrentamentos que os adolescentes vivenciam em momentos de violência, seja na escola, seja na família, seja na comunidade. Os dados coletados foram registrados no diário de campo, para não haver perda de informações relevantes e detalhadas. O tempo determinado para finalizar a pesquisa foi de aproximadamente um mês. A análise dos dados foi efetuada de maneira descritiva, baseada na técnica de análise de conteúdo (Bardin, 2009).

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Procedimentos Éticos Foram seguidas todas as recomendações éticas da Resolução 510/16 do Ministério da Saúde. O projeto foi encaminhado ao Comitê de Ética em Pesquisa, o qual foi aprovado com o parecer de número 3.169.957. Pensando a Violência e os Multiplos Contextos Para a análise dos resultados, seguiu-se a Inserção Ecológica, proposta metodológica construída por Cecconello e Koller (2003), que sistematiza os aspectos Pessoa, Processo, Contexto e Tempo (PPCT). Neste estudo, pode-se perceber que a pessoa se apresenta na figura do aluno, que participa ativamente de interações recíprocas, complexas com pessoas que fazem parte do seu contexto e estão relacionadas com seu desenvolvimento. O processo ocorre na interação dos alunos com seus pares e com pessoas que fazem parte do ambiente escolar, familiar e comunitário, tendo-se uma atenção para o desenvolvimento das relações que fornecem o combustível necessário para aflorar situações violentas. Os efeitos desenvolvimentais dos processos proximais podem variar em função do contexto. O contexto, nesse caso, caracteriza-se pelos eventos que acontecem na escola, na família e na comunidade que podem influenciar os alunos em seu desenvolvimento, como na maneira que eles entendem a violência e como lidam com ela (conforme descrito abaixo). O tempo está relacionado às mudanças nas características biopsicológicas dos alunos no curso da vida, mudanças que podem ocorrer alterando o desenvolvimento dentro de um período histórico. Foram convidados cinco juízes, psicólogos e doutores em Psicologia, para elencar as categorias de acordo com as observações naturalísticas e as entrevistas. Foram elencadas, em consonância com os juízes, as seguintes categorias: 1)

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caracterização do aluno; 2) caracterização do professor; 3) caracterização da família; 4) caracterização da comunidade; 5) concepções de violência: tipos de violência; responsáveis pela violência; estratégias de enfrentamento e de superação. Caracterização do aluno Esta categoria retrata sobre as características dos alunos em relatos feitos pelos próprios alunos e por professores. Foram observadas, na análise das respostas dos alunos às entrevistas, que a maioria dos adolescentes gosta da escola, por ser perto de casa, pelos amigos e porque a escola impõe limites. Dentre os relatos dos alunos, podemos destacar que alguns consideram que a escola proporciona um “bom ensino”. Porém, outros relatam que a dificuldade de seu aprendizado se deve à didática do professor. Os escolares também pontuam que precisam ser mais respeitados e que deveriam participar de forma mais efetiva das decisões organizadas pela gestão da escola. Para o aluno Lucas, “a escola é uma boa oportunidade, às vezes a gente não dar valor o que tem, mas a escola é boa, o ensino é bom”. No entanto, para outro aluno chamado Claive, tem um significado diferente, ele relata que é chato ir para a escola, o que me faz ter vontade é só pra encontrar com meus amigos. Eu já estou repetindo o ano, ai tenho que me esforçar um pouquinho. Tenho desinteresse porque não entendo nada da aula, porque parece que o professor explica só pra ele mesmo, tudo é muito rápido. O motivo de gostar da escola por ser um momento de estar com os amigos também foi resultado da pesquisa de Lira, Cerqueira e Gomes (2016), o número de estudantes que declarou gostar da escola foi de 88,9% e o principal motivo é estar com os colegas 55,9%. Em pesquisa feita por Abramovay, Cunha e Calaf (2009), este fato

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também foi comprovado, ou seja, o desejo dos alunos em ir à escola está intimamente vinculado às interações que se estabelecem no contexto escolar. Durante a observação das aulas, foi possível perceber comportamentos diversos, em algumas aulas, eles participavam das atividades propostas, juntos, sem nenhum problema, em outras aulas eles gritavam uns com os outros, discutiam por qualquer motivo e diziam palavras de baixo calão. Na percepção de alguns alunos, a relação com os professores torna-se difícil por não se consideraram respeitados e pelas dificuldades no aprendizado ao qual atribuem a culpa aos aspectos didáticos dos educadores e a sua exclusiva preocupação em “apenas repassarem o conteúdo”. Os pesquisados também relatam que alguns professores não possuem autoridade na sala de aula, deixando a desordem reinar nas salas. Apesar dessa crítica, os escolares destacaram que existe uma professora que é exigente, porém afetiva e isso faz com que eles a respeitem e percebam que a postura rigorosa da mesma é de compromisso e de preocupação com a formação deles. Aqui nesta escola os professores são legais com os alunos. Tem professor que quer ser legal demais, ai o aluno não se comportam direito. Enquanto tem professor que é legal, mas coloca ordem na sala, com punho de ferro, mas a gente sente que ela faz isso pro nosso bem. Faz não de modo grosseiro, mas com moral. Porque têm professores que não tem moral e ficam calados diante das coisas dos alunos. Tem uma professora que diz: eu já vou me aposentar mesmo, num tô nem ai pra vocês não. Ela diz isso, ao invés de dizer “Não fiquem fora de sala, se não eu tiro ponto, ou mando vocês para a diretoria”. Não, ela fica inofensiva, entendeu. Assim, tem a violência contra o professor, mais por culpa deles, do

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que dos alunos. Assim, ele não faz com que a violência cesse (Aluno X). De acordo com o relato do aluno, podemos perceber que eles apreciam o professor que demonstra interesse pela aprendizagem e solicita comportamento adequado na sala de aula. Destaque para a afetividade sem perda de autoridade fato esse verificado em estudo recente de Lira, Cerqueira e Gomes (2016), os professores, embora preocupados com questões de ensino e de aprendizagem, mostram-se frágeis em lidar com os conflitos em sala de aula e acabam deixando os alunos resolverem seus conflitos ou fingem que não percebem o que está acontecendo. Na observação relativa aos momentos de avaliação escrita, dois aspectos se destacam: a preocupação pela aprendizagem e a fragilidade no interesse pelos alunos em situação de recuperação. Alguns alunos nem tentavam resolver a prova, apenas colocavam seu nome e argumentavam dizendo: “não vou fazer mais não tia, não sei fazer. Já vou reprovar mesmo” (Danilo - aluno). As reprovações nas escolas, principalmente nas públicas, tem sido um problema na Educação Básica. Os adolescentes se mostram desinteressados e sem muitas expectativas de futuro. O abandono dos estudos, pelos adolescentes, no Ensino Médio, é motivo de preocupação para o Estado (Fritsch, Vitelli, & Rocha, 2014). Os adolescentes citaram, também, situações de preconceito. Ao conversar com um aluno do 1º E, o mesmo relatou: “eu demonstro ser uma coisa que eu não sou, porque se eu demonstrar ser um homem sensível, que não pego todas, que não bebo etc, não sou aceito pelos meus colegas” (Luke - aluno). Uma aluna do 1º A também relatou que não consegue ser ela mesma na escola e diz: “me sinto rejeitada pela minha família e não quero ser rejeitada também na escola, então finjo ser a pessoa mais feliz do mundo, que vivo muito bem e que sou muito feliz, porque se eu me mostrar como sou triste eles também vão me rejeitar” (Barbie - aluna). Pode-se

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perceber que existem diferentes comportamentos e características entre os alunos dos primeiros anos A e E. Alguns mais centrados e convictos do que querem e outros que se sentem rejeitados e com medo de demonstrar o que realmente pensam. Dentre elas, a convicção de seus projetos de vida e também a percepção de rejeição que os fazem por muitas vezes assumirem comportamentos de defesa violando suas verdadeiras essências. Em seus relatos, os professores acreditam que os alunos se comportem de acordo com as experiências familiares. A professora Eva considera que os alunos são muito problemáticos e que isso tem origem na família, pois muitos de seus alunos faltam frequentemente às aulas e também apresentam sinais de automutilação. Na pesquisa feita por Giordani e Dell’Aglio (2016), de 426 adolescentes, 29,3% relataram que sofreram violência escolar e 59,3% desses também foram vítimas de violência intrafamiliar e dos adolescentes que nunca sofreram violência na escola 27,3% sofreram violência no contexto familiar. Assim, pode-se perceber a relação da violência escolar com a violência intrafamiliar, ou seja, o aluno que sofre violência na família também pode passar por violência escolar. Os resultados desta pesquisa confirmam a reflexão feita pela professora Eva. Essa constatação também foi observada nos estudos de Assis, Avanci, Pesce e Ximenes (2009), tais pesquisadores apontaram que as violências no âmbito familiar, escolar e comunitário ocorrem de forma simultânea no cotidiano da população pesquisada, estando em total relação. Quanto ao pensamento dos alunos sobre a família, foi manifestado um amor incondicional, no entanto muitos conflitos foram relatados. Esses conflitos se apresentam em brigas entre os pais e os filhos, entre os próprios pais e na falta de diálogo dos pais com os filhos. Convivo com a violência em casa. Me chamam de diferente, doente, preguiçosa, que eu não sei fazer nada, que só eu sou

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assim. A minha mãe diz que teve quatro filhas e só eu sou diferente, não sou boa como às outras. Elas me excluem de tudo. Isso é violência. Por isso me corto, porque é uma dor menor. Ninguém em casa é carinhoso comigo, só me xingam. Quero é morrer logo, fazer o que aqui? (Barbie - aluna) Pode-se perceber na fala da aluna que a relação interfamiliar enfrenta muitos conflitos e que esses conflitos às vezes são resolvidos com violência. Os castigos físicos, utilizados pela família como um modo de disciplinar os filhos, são ineficazes e estão imbricados ao envolvimento em situações violentas na escola (Patias, Siqueira & Dias, 2012). Outras pesquisas, como Abramovay (2002); Fonseca, Sena, Santos, Dias, e Costa (2013) também sinalizam que o evento de violência na escola está agregado à exposição do adolescente à violência na família e na comunidade. Essas pesquisas mostram que a cada três situações de violência no ambiente extrafamiliar narradas pelos participantes, duas tenham ocorrido dentro do espaço escolar. Esses resultados inferem que a escola, local ideal de proteção e de formação de cidadão, de desenvolvimento de habilidades científicas, artísticas, físicas e afetivas, tem se transtornado um ambiente de medo e de agressões entre os personagens que convivem nesse contexto. Os adolescentes também relataram sobre a sua relação com a comunidade, disseram que, apesar de morarem no bairro desde que nasceram, sentem medo da violência que acontece diariamente nas imediações de suas casas. As meninas relataram que sentem muita raiva por serem assediadas na rua por homens mais velhos. Sobre segurança (na escola, na família e na comunidade), os alunos responderam que dentro da escola - sim, mas na comunidade não se sentem seguros. Eles sentem medo das facções, do crime,

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medo até de fazer certos movimentos, porque podem ser interpretados de forma errada por pessoas das facções. Caracterização do professor Nesta segunda categoria, serão abordadas as características dos professores, tendo como relatos os próprios professores, alunos e pais. Foi possível observar que os professores se sentem cansados com a carga horária que precisam assumir, destacando que muitos trabalham os três expedientes. Os professores demonstram ter medo de trabalhar na comunidade e explicitam que não podem exigir muito dos alunos porque não sabem o “que eles são capazes de fazer, caso sintam raiva do professor”. Sendo assim, uns são mais exigentes, enquanto outros preferem seguir um perfil mais liberal. Sabe-se que a violência é um fenômeno social presente nas ações que se manifestam nas relações sociais, que pode ser por conflitos de comunicação, de poder ou mesmo por experiências de vida de cada pessoa, levando em consideração os fatores históricos, sociais, biológicos e pessoais (Assis & Marriel, 2010). Então, pode-se inferir que a maneira como os professores se sentem ou enfrentam a violência na escola pode estar relacionada também com sua individualidade. Pesquisa norte-americana, The APA Task Force on Violence Directed Against Teachers, assinala que dos 2 mil professores investigados sobre a experiência de violência na escola, 80% relatou ter sofrido pelo menos uma experiência de violência no último ano, sendo 94% praticadas por alunos (Mcmahon et al., 2014). A violência no espaço de trabalho tem consequências na saúde física e psicológica, além de prejudicar os objetivos mais amplos da escola, como educar, ensinar e aprender (Becker & Kassouf, 2016). Durante esta pesquisa não foi presenciado nenhum conflito dos professores com os alunos, eles se mostravam receptivos com os

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alunos dentro da sala de aula, como também nas dependências da escola. Mesmo assim, os professores têm uma visão generalizada e negativa sobre os alunos em relação aos seus comportamentos, o professor Carlos acredita que: Os alunos são inquietos, não aceitam regras, não respeitam o ambiente da sala de aula. Mesmo que eles gostem do professor não o respeitam, fazem atividades para tumultuar a aula de qualquer jeito. Essa turma é a pior, sabe o que eles fizeram, colocaram uma caixa de som em cima do ar condicionado, e pelo celular ligavam a caixa em música funk, bem alto. O professor tomou um susto e não sabia de onde vinha o som, eles desligavam mais logo em seguida ligavam novamente. Até o professor sair da sala e ir reclamar na coordenação (Profa. Beatriz). Nos relatos dos professores, nota-se que eles acreditam que não existem valores humanos como respeito, bondade, amor, na relação dos alunos com os professores. Assim, percebe-se que tais valores são negligenciados nas relações interpessoais. Os professores relatam que se sentem seguros dentro da escola, mas com restrições, pois sabem que às vezes alunos acabam entrando na escola armados. Quanto às atitudes desrespeitosas e agressivas dos alunos para com eles, veem como algo naturalizado. Mas na comunidade não se sentem seguros, sentem medo durante o translado casa/escola. Sobre vivenciar violência dentro da escola, somente duas professoras relataram fatos específicos. A primeira disse que sofreu assédio de um aluno, [...] isso me abalou demais porque eu não soube como lidar com a situação, se fosse hoje eu saberia resolver. Fiquei abalada por conta de traumas anteriores, quis inclusive sair da escola, mas resolvi enfrentar e continuar na escola. Tive

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também muito medo porque o aluno era lutador de boxe e também assaltante. (Professora Eva). Sendo assim, alguns professores relatam que sentem receio da agressividade dos alunos e então preferem fazer um discurso mais ameno, sem tantas exigências, essa forma de agir é interpretada pelos alunos como “falta de moral”, ou seja, as regras entre professor e alunos não ficam claras, possibilitando assim desentendimentos. Os professores dizem que procuram elogiar os pontos positivos dos alunos, buscam demonstrar sua motivação em dar aula, para incentivá-los, porque também acreditam que os alunos são muito carentes. Caracterização da família Esta categoria trata sobre a relação do aluno com sua família. Essas informações foram adquiridas nas entrevistas com alunos, com professores e com os pais dos alunos. Nas entrevistas com os pais, somente duas mães compareceram para participarem da pesquisa. Os alunos entrevistados comentam que sentem falta da atenção dos pais, e que essa atenção poderia ajudá-los a melhorar seu comportamento na escola, o aluno X relata: “Eu acho que precisa sim os pais serem mais atenciosos com os filhos, isso iria ajudar na educação aqui na escola”. Eles relataram também que se sentem seguros junto à família, somente a aluna Renata teve uma opinião contrária. Ela disse que não se sente segura, pois é muito difícil a relação com os irmãos, eles são agressivos, e apenas se sente segura na presença de sua mãe. Quanto à relação dos alunos com os pais no ambiente doméstico, eles disseram que sofrem violência física e verbal. A aluna Raissa, disse ter sofrido violência física: “Sofri uma violência muito grande do meu pai, que me bateu muito. Isso só criou revolta. Fiz tudo para mostrar pra ele que eu não era como ele pensava”. Pode-se

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perceber que existe uma ausência de diálogo na relação entre pai e filha. Raissa não mencionou ter sofrido violência praticada por sua mãe. Lorena (aluna) também relata ter sido vítima de violência física, Lá em casa eu não tenho voz, meu pai fala uma coisa ai a minha mãe começa me defendendo, depois ela já está me julgando, ai fica nessa. Ai acaba me afetando muito. E se eu falar já é pior, já vou levar mais castigo. Uma vez meu pai me deu uma surra, porque fui comprar uma coisa pra minha vó e não avisei pra ele. Quando eu cheguei, ele me bateu muito, bateu minha cabeça na escada, e dizia que eu tinha que avisar a ele, porque ele que era meu pai, e eu não podia falar nada, se não ele me batia mais. Meu irmão até hoje tem rancor dele, eu perdoei, mas meu irmão é rancoroso. Outros alunos confirmaram a versão da Raissa e Lorena, dizendo que o entendimento com o pai era difícil, e que a mãe no início ficava tentando defendê-los, mas depois passa a concordar com o pai. O aluno Miguel concorda com os colegas, seu pai também age com violência e ele acaba saindo de casa: “Saiu de casa pra não ficar aguentando as violências dele, às vezes a gente já tem problemas na escola e chega em casa não quer ter mais problemas. Quero chegar em casa e ter paz”. No entanto, percebe-se, na fala de Ivana (aluna), que na sua relação familiar existe um diálogo com o pai: “minha mãe, me bate só às vezes, meu pai não, ele chega em mim e conversa, me explica o certo e o errado”. Outros alunos mencionaram que os pais batem às vezes, mas utilizam também o castigo, ou seja, não permitem que saiam de casa durante um tempo. Eles asseguram que os adolesc entes precisam de limites, mas tudo pode ser feito no diálogo.

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Pesquisa feita por Magalhães et al. (2017), a partir da história oral de adolescentes, infere que os adolescentes vivenciam privações econômicas e afetivas, situações de rejeição, de culpabilização, de ofensas, de humilhações, de agressões físicas, além de presenciarem a violência entre seus pais. Sendo assim, o estudo mostra que esse tipo de relação familiar pode desencadear adoecimento mental, com sensações de tristeza, autolesão e pensamento suicida, além de repercutir no desempenho escolar. Uma outra pesquisa, com 252 adolescentes, mostra em seus resultados diversas formas de violência familiar, sendo os pais os principais perpetradores (Hildebrand, Celeri, Morcillo & Zanolli, 2016). Outro problema apontado pelos alunos foram os vícios dos pais, como o uso de bebidas e drogas. Mariana (aluna) comenta que seus pais brigam muito, porque ele é alcoólatra e nessas brigas ela acaba sendo atingida também. Ao ouvir os professores, percebe-se que eles não têm um contato frequente com os pais, isso só acontece em reunião de pais, e esse contato não acontece de forma direta, mas com informes gerais. Os professores justificam que esse contato com as famílias se tornam difícil porque são horistas e seu tempo é dividido em várias escolas. Eles declaram também que a família é ausente na vida dos filhos, que não participam da aprendizagem escolar e que os alunos são criados muito soltos, na rua, assim aprendem a “lei da rua”, que ensina aos alunos a se defenderem como podem. As mães que participaram da entrevista comentam que não costumam ir à escola para saber sobre os filhos, isso só acontece quando são convocadas pela gestão escolar. Acreditam ainda que a escola é segura. A mãe da Barbie comenta que não trabalha fora de casa, que mora com o marido e quatro filhas. Que todas estudaram nesta escola e que só vivenciou visitas à escola por problemas de

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comportamento da filha Barbie. Pois, com as outras filhas isso nunca aconteceu, segundo a mãe, “é que a Barbie é realmente diferente, estranha, calada e rebelde, só ela me dar problemas”. A presença dos pais no ambiente escolar é importante para o desenvolvimento dos alunos como também para a melhor organização da escola. A partir do que foi observado, na pesquisa feita na escola por Dias, Oliveira, Souza, Silva e Suassuna (2015), os professores que foram entrevistados relataram que há uma ausência da participação da maioria das famílias no processo de educação dos filhos, tanto no acompanhamento escolar como no âmbito familiar. Assim, nota-se que a realidade abordada nessa pesquisa é compatível com a realidade encontrada no presente estudo, portanto a reclamação dos professores é pertinente e comum no contexto escolar. Ou seja, os professores reivindicam que a ação da família deve complementar a ação da escola, apresentando-se como verdadeiros parceiros, contribuindo e participando do processo educativo. A outra mãe entrevistada trabalha com serviços gerais em uma instituição, mora com dois filhos e o marido, que é padrasto de seus filhos. Ela comenta que a violência que chega à escola começa na família, porque os pais não participam diretamente da vida dos filhos, tratam-nos com violência, não conversam com eles e acham que bater resolve tudo. De acordo com essa mãe, esse comportamento dos pais acaba deixando os filhos revoltados, “eles crescem revoltados, ai chega a um ponto que eles não aceitam nada, você pode conversar com eles, mas não adianta nada. Porque pra eles a violência tem que ser respondida com violência.”. Ela reforça dizendo que a educação precisa ser acompanhada pelos pais desde muito cedo, não pode ser responsabilidade só da escola. Citou um exemplo de um aluno da escola que ela conhece e que conversando com ele, dando-lhe conselhos sobre a vida ele disse a ela: “Tia lá em casa eu uso drogas

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porque meu pai usa e me dá, ele compra pra mim e ele” (aluno da escola – conhecido dessa mãe). A mãe continua falando do exemplo e conclui: “Já vi ele vir pra escola drogado. Ele disse também, que na casa dele todo mundo é agressivo, que o irmão dele é matador”. Com as declarações dessa mãe podemos observar que ela concorda com a opinião dos professores, de que a violência na escola tem como fomento a violência familiar. Caracterização da comunidade Esta categoria discute sobre as características da comunidade onde a escola está inserida, os relatos foram feitos pelos alunos, por professores e por pais. Foi observado, nas entrevistas, que os alunos sentem medo de viver na comunidade, pois a “violência pode ser encontrada em qualquer esquina”. Demonstram tristeza em constatar que as pessoas que promovem a violência na comunidade foram seus amigos na infância. Pode-se então observar que a violência comunitária também acontece pelas mãos dos adolescentes. Pesquisas apontam que os adolescentes estão mais vulneráveis à violência familiar e à comunitária do que outras faixas etárias (UNICEF, 2012). Assim, a violência na adolescência, seja como perpetrador ou vítima deve ser percebido como um grave problema de saúde pública (Braga & Dell’Aglio, 2012). Os alunos apontam que as facções são o maior problema em termos de provocar violência, pois atinge quem faz parte das facções e quem não faz parte. A aluna Lorena relata: “domingo fui à casa de um amigo no outro bairro e fiquei morrendo de medo da outra facção. Não importa se você é envolvida ou não. E eles sabem quem é do bairro e quem não é”. Esse é um dos motivos que os alunos não se sentem seguros na comunidade, temem serem atingidos pelas facções, pelo crime,

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sentem medo de fazer qualquer movimento com o corpo, pois pode ser interpretado como algo contra a facção, e assim serem mortos. O aluno Lucas diz: Sinto insegurança ao andar nas ruas, a gente anda com medo. Muita morte na comunidade. E o que aconteceu hoje, a gente chega à escola e tá a policia fazendo revista no povo, na frente quase do portão da escola. Isso dá medo, sei lá o que pode acontecer ali. Por outro lado, há alunos, como a Barbie, Ivina e Raissa, que dizem que se sentiam seguros na comunidade antes das facções, porque conhecem todas as pessoas que moram próximas a sua casa. Comentaram também que acontece assédio nas ruas da comunidade, feito por homens mais velhos. A violência na escola e na família é atravessada por violências na comunidade, é o que também se pode observar na pesquisa feita por Giordani, Seffner e Dell’Aglio (2017), quando é relatado pelos professores e por alunos situações de violência comunitária, como assaltos, roubos, ataques com arma de fogo, essa violência acaba influenciando as ocorrências no espaço escolar, essa também foi a percepção de Stelko-Pereira e Williams (2013), ou seja, a violência que ocorre ao redor dos muros da escola acarreta maiores índices de violência dentro dela. Os professores também creem que a violência que acontece fora da escola influencia a violência dentro dela. Acreditam que, no ambiente escolar, é reproduzido o que os alunos vivenciam na rua. O professor Arthur cita como exemplo disso o uso de drogas, ou seja, eles usam drogas na comunidade e chegam à escola drogados e isso acaba causando conflitos entre eles. A opinião do professor vai ao encontro do que diz o aluno Lucas: “sim, eu acredito que a violência fora da escola influencia dentro da escola, porque as

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pessoas não conseguem separar as coisas, o que acontece em casa ou comunidade eles levam para onde vão”. As mães entrevistadas afirmam que a família tem responsabilidade na maneira como os adolescentes se comportam na escola e na comunidade, ou seja, os filhos que não têm atenção dos pais e não são tratados com educação em casa, acabam reproduzindo fora de casa. A mãe Aurora afirma que as crianças “quando crescem num ambiente que só tem violência, que não trata as pessoas direito, as crianças crescem como uma pessoa revoltada. Que hoje em dia é o que está acontecendo com os jovens”. Ela acrescenta dizendo que o problema com os adolescentes está muito sério, “a violência está aumentando muito, muito, os adolescentes não respeitam os idosos, não respeitam as pessoas, parece que só respeitam eles mesmos”. Mas em seguida ela diz que a violência existe também entre os adolescentes e que isso é muito grave. “Teve um caso aqui na comunidade que um adolescente matou outro com um machado. Eles não eram da escola, mas moravam bem perto daqui” (Mãe Aurora). A mãe acredita que a violência entre os adolescentes é algo preocupante, essa é também uma situação percebida na pesquisa feita por Melanda, Santos, Salvagioni, Mesas, González e Andrade (2018). Nessa pesquisa, os alunos adolescentes, cursando o Ensino Médio, apesar de não relatarem violência física, explicitaram que há muito preconceitos entre os colegas. Este relato é corroborado com a fala dos professores desta escola, quando dizem que ocorre bastante incidência de violência verbal entre os alunos, inclusive já naturalizada pelos adolescentes. Concepções de violência Nesta categoria estão reunidos os relatos dos participantes que indicam tanto sua compreensão em relação às concepções de violências como as possíveis ações de enfrentamento que poderiam

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ser efetivas para evitar a violência escolar. As concepções de violência podem ser percebidas na fala dos alunos, dos professores e das mães, de acordo com as situações que estão relacionadas aos fatores sociais. Para os alunos, a visão sobre a violência está relacionada ao preconceito, ao racismo, à exclusão, ao bulliyng, à violência física e verbal. Já os professores incluem a falta de oportunidade, a falta de atenção dos pais com os filhos, as drogas, a falta de informações educativas sobre a educação dos filhos e outros aspectos relacionados à família. Na percepção dos alunos, a violência na escola se encontra em várias atitudes como: pichar o banheiro, arrancar as portas dos banheiros, fumar maconha na escola, a falta de respeito dentro da sala de aula, as fofocas contra alguém, a maneira grosseira de falar com outro, o preconceito com os colegas obesos, com os homossexuais, com as vestimentas. Um dos alunos percebe a violência de forma extremista, isto é, diz que violência é “lixar o outro, bater no outro, matar o outro. Hoje não pode só bater, têm que matar logo, porque se não depois ele vem e te mata. A violência hoje é logo bala e faca” (Clavie- aluno). Os alunos citaram também, a violência do professor com o aluno, Às vezes o professor também chega à sala estressado, gritando com os alunos, eu acho uma violência com o aluno. Quando eu era pequena a professora me agredia, batia em mim, me beliscava, tacava minha cabeça na parede, porque eu era calada, eu era uma criança. Eu fazia o 2º ano. Ela me bateu por uns cinco ou seis meses. Eu chegava em casa roxa, e eu lembro que ela me dizia “Se você falar para a sua mãe eu vou lhe matar, eu posso minha filha, porque meu filho é advogado”. Ela falava desse jeito. Ela saiu da escola. Depois de dois anos ela voltou na escola e veio me pedir perdão, disse que estava doente com depressão e ela

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conseguia se aliviar me batendo. Foi ai que minha mãe sobe e ai foi uma confusão. (Mariana – aluna) Nas relações entre os professores e os alunos, existe uma linha tênue que pode ser de acolhimento ou de agressividade, mas percebe-se na fala dos professores que eles não se percebem como agressores, mas como agredidos. As violências verbal e simbólica perpetradas por professores são consideradas como naturalizadas e não apontadas como violência pelos adolescentes, por serem justificadas pela posição de poder do professor naquele espaço (Silva, 2013). Foi percebido que alguns alunos entendem como agressão e se sentem agredidos pelos professores, todavia a maioria não considera atitudes de poder do professor como uma violência. Entretanto, não se pode esquecer de que o professor, muitas vezes, trabalha em situação adversa, como dar aula com salas superlotadas, com o mínimo de recursos materiais, com salários baixos e por esse motivo precisa trabalhar mais do que 8h por dia, o que não deixa de ser difícil de manter um bom desempenho, isso reverbera diretamente no aluno. Outro tipo de violência citada pelos alunos foi a praticada contra os professores. O aluno Luke aponta que: “violência contra o professor também acontece, tem aluno chato que fica no celular na hora da aula, grita ou joga objetos no professor, isso é falta de respeito. Os alunos acham que o professor deve ser firme, se for bonzinho demais, eles desrespeitam”. A violência entre professor/aluno está relacionada, principalmente, com a violência psicológica, que são as discussões com desrespeito entre ambos. Mas apesar de ser com uma menor frequência, a violência física também acontece. Nesta escola, só foi citada a violência física do aluno para o professor, isso aconteceu quando os alunos jogam objetos nos professores. Pesquisas realizadas com estudantes e com professores também encontraram relatos de violência verbal repetitiva contra os

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docentes em sala. No estudo de Levandoski, Ogg, e Motriz (2011), foi analisada a violência contra os educadores, 76,5% dos professores participantes da pesquisa relataram ter sofrido insulto verbal por alunos, sendo que 20,6% sofreram essa agressão diariamente. Para os professores, a violência principal é a que acontece no ambiente doméstico, essa violência desencadeia várias outras violências, como as que acontecem dentro da escola, na comunidade e a violência contra eles mesmos, como a automutilação. Os professores mencionaram, também, que o trabalho na escola é bem estressante e que, certamente, os professores acabam perdendo a paciência com o aluno e, algumas vezes, gritam e o ameaça, isso é também violência. Mas os alunos também gritam e ameaçam o professor. A opinião das mães vai ao encontro das falas dos alunos e dos professores, Eu acho que às vezes o professor se excede na lida com o aluno, porque às vezes o aluno é danado demais. Porque eu não acredito que o professor vai agredir o aluno sem ele ter feito nada. Quando o meu menino chega dizendo: “ai mãe o professor disse assim, assim comigo”, eu digo logo, o que foi que você para o professor dizer isso? Porque o professor tá ali pra dar aula, agora se vocês num respeitam o professor. Eu nunca fiquei contra o professor não (Aurora-mãe). Pode-se inferir que os tipos de violência citada entre alunos professores e mães foi a violência psicológica e a violência física. A violência entre os alunos envolve os dois tipos: a violência física, que se pode observar nas brigas corporais, dentro e fora da escola, na automutilação e a violência psicológica pode ser percebida no bulliyng e nas agressões verbais. Ao indagar sobre os responsáveis por essa violência que transita entre a escola, a família e a comunidade, os alunos acreditam que as condições sociais impulsionam as pessoas a

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buscarem justiça pelas próprias mãos. A aluna Mariana pensa que os valores e a fé das pessoas estão em falência, “ninguém acredita na justiça de Deus, acho que isso é um grupo de pessoas feridas que não sabem como resolver as coisas. Às vezes as pessoas estão passando fome e não encontram trabalho, dai vão procurar ganhar no crime” (aluna Mariana). Os professores discorrem que é a falta de “estrutura familiar”, sendo que isso está imbricado ao social, porque falta às famílias mais acesso à saúde, à educação, assim, a violência acaba sendo um reflexo da vulnerabilidade. Isso implica em famílias ausentes na vida dos filhos, na falta de entendimento para educar os filhos o que leva a abusos e violências no contexto familiar. A participação efetiva da família na escola estimula a prevenção da violência e pode promover as relações de convívio em casa, pois a família é o espaço em que o adolescente procura apoio nos direcionamentos das suas escolhas da vida. Para a escola alcançar a participação da família, é necessário que repense novos métodos. A escola que procura promover novas metodologias de prevenção à violência precisa iniciar o processo de inclusão da família nas atividades escolares. Com certeza, esse intercâmbio iria contribuir para a construção de um ambiente escolar mais saudável e menos violento (Galinkin, Almeida, & Anchieta, 2012). Para os professores, não há, exatamente, um culpado, tudo gira em torno do contexto, das estratégias sociais que não respondem às necessidades da comunidade. Estes citaram também outro problema sério que é a falta de capacitação dos professores para lidar com todos esses problemas que vão além dos conteúdos escolares. Uma professora relatou que o professor precisa estar atento à sua função, que é diferente da função do aluno. Isso ajuda a promover um melhor relacionamento entre professor e aluno. Acredito que do jeito que faço e falo já é uma forma pacificadora. Não transferir um problema para o aluno. Os

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alunos são adolescentes e o professor é adulto, mas o professor quer transferir essa responsabilidade para o aluno e não consegue perceber o aluno como um adolescente. Eu identifico o aluno que dá mais trabalho e quando vou conversar com ele, percebo que esse aluno é cheio de problemas em casa (Professora Eva). Como estratégias de enfrentamento, foram citadas pelos alunos, que deveriam diminuir a quantidade de alunos por turma; que os professores precisam utilizar melhores estratégias para lidar com adolescentes; que os pais precisam estar mais presentes na escola e na vida dos filhos; que a escola necessita de uma gestão mais enérgica, que tenha posicionamentos fortes para que as mesmas ações não se repitam e que haja mais aulas ou projetos que desenvolvam mais as relações interpessoais. O aluno Luke pensa que se tivesse “aulas que desenvolvessem a relação entre alunos e professores, que fizessem aulas em círculos e conversassem mais com os alunos, diminuiria a violência”. Na fala de Luke, pode-se perceber que os alunos também sentem falta de uma relação mais harmoniosa. Sendo assim, pode ser possível uma relação fluídica quando o diálogo e o respeito entre os atores, que fazem parte do ambiente escolar, seja uma medida facilitadora das relações. Portanto, criar na escola um novo modelo de relação entre professor e aluno com maior afetividade e tolerância, gerando um novo padrão de disciplina, pautado em valores que possam construir um verdadeiro processo de ensino e aprendizagem (Ruotti, 2010). Os professores acreditam que é necessária uma boa condução dos alunos no espaço escolar, mas ressaltam que a família precisa reconhecer o seu papel na educação dos alunos e não deixar essa educação somente como responsabilidades da escola. Os professores almejam escolas que tenham psicólogos, pois acreditam que estes têm formação específica para lidar com

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conflitos, com situações adversas, e, assim, poderiam mediar os problemas entre os personagens que fazem parte deste contexto. Idealizam também uma maior participação dos pais nas reuniões escolares e na supervisão dos filhos. Esperam um maior suporte do governo para a melhor adequação das atividades escolares e por último um melhor monitoramento das escolas para que haja uma melhor segurança. Outros professores da escola comentavam, ao saber o tema da pesquisa, que a violência na escola não tem como fazer nada para melhorar, pois toda violência vem de fora: da família e da sociedade. Em estudo feito por Carinhanha e Penna (2012), revela que os adolescentes não percebem a violência que acontece nos ambientes que fazem parte do seu cotidiano, principalmente no contexto familiar, as ocorrências de violência intrafamiliar são percebidas como algo natural, ou seja, percebem como uma medida educativa. Os estudos têm indicado que a violência familiar, escolar e comunitária não ocorrem isoladamente no dia a dia desta população, pois estão relacionadas e sendo influenciadas mutuamente. Esta violência vivenciada por essa população acaba se tornando naturalizada, e muitas vezes é percebida como um fato banal, algo que pode ocorrer a qualquer momento. Considerações Finais O estudo constatou que as manifestações de violência se apresentam em diversas facetas, entre os próprios alunos, entre alunos e professores, entre alunos e a família, entre alunos e a comunidade. Sendo assim, a violência aparece de forma sutil ou direta, através de agressões verbais ou físicas, entre alunos e seus pares como também entre alunos e professores. As atividades educativas e projetos desenvolvidos na escola proporcionam, aos adolescentes, informações sobre os tipos de

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violência que ocorrem no seu cotidiano, isso infere que o conhecimento ampara a formação do pensamento crítico do adolescente e a conscientização para o combate à violência. Mas a violência continua a existir na vida deles, e as principais causas são problemas familiares, falta da efetiva presença dos pais no cotidiano dos filhos. É importante que a família esteja presente nas tomadas de decisão da escola, que os pais percebam a sua responsabilidade em relação à educação dos filhos dentro da escola, e o quanto essa participação é importante na prevenção da violência. Outra possível causa da violência com os adolescentes são os problemas advindos da comunidade, como o tráfico de drogas, a ação de facções, a falta de uma maior assistência social e política. Foi percebido também que a violência para os alunos, pais e professores se tornou naturalizada, algumas atitudes como: o desrespeito com o outro, as agressões verbais são vistas como algo natural. Pode-se entender que é necessário e urgente a restauração do diálogo na família e na escola, essa conduta pode prevenir a violência. Apesar da descrença pelos professores sobre as ações de prevenção da violência no contexto escolar, os alunos citaram opções para enfrentamento, ações como: uma melhor relação interpessoal entre professores e alunos, a participação doa alunos nas decisões escolares, entre outras. Isso aponta que os adolescentes percebem e entendem que ações, que efetivem mudanças para uma cultura de paz dentro da escola, podem ocorrer, entretanto todos precisam estar envolvidos, ou seja, alunos, professores, gestores e pais. Recomenda-se maior suporte do Estado à instituição escolar com apoio à qualificação profissional dos atores que fazem parte desse contexto, para que possam adquirir competências para superar os conflitos, alguns com a possibilidade de serem resolvidos pelo diálogo. Além disso, estimular projetos que possam ocupar os

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jovens com atividades educativas e de lazer, minimizando, assim, o estresse e, consequentemente, a violência. Sabe-se que não é possível, a curto prazo resolver, situações de violência num sistema social que envolve escola, família e comunidade, mas a implementação de políticas sociais que promovam melhores condições de vida às famílias dos escolares, como o acesso ao trabalho, habitação, qualificação profissional, serviços de saúde, pode contribuir para amenizar as situações de vulnerabilidade e de violência. Referências Abramovay, M. (2002). Escola e violência. Brasília: UNESCO Brasil. Recuperado em 11 outubro, 2017, de http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001287/128717por.p df Abramovay, M., Cunha, A. L. & Calaf, P. P.(2009) Revelando tramas, descobrindo segredos: Violência e convivência nas escolas. Brasília: Rede de Informação Tecnológica Latino-americana. Secretaria de Estado de Educação do Distrito. Assis, S.G., & Marriel, N.S.M. (2010). Reflexões sobre violência e suas manifestações na escola. In: Assis SG, Constantino P, Avanci JQ (org.), Impactos da violência na escola: um diálogo com professores. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, p. 41-64. Assis, S. G. D., Avanci, J. Q., Pesce, R. P., & Ximenes, L. F. (2009). Situação de crianças e adolescentes brasileiros em relação à saúde mental e à violência. Ciência & Saúde Coletiva, 14, 349361. Recuperado em 03 novembro, 2017, de https://www.redalyc.org/pdf/630/63013532002.pdf Bandeira, C. de M., Hutz, C. S. (2012). Bullying: prevalência, implicações e diferenças entre os gêneros. Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP.

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275 Metodologias e Investigações no Campo da Exclusão Social

Sobre Autoras e Autores Ana Alayde Werba Saldanha é Psicóloga pelo Instituto Paraibano de Educação (1985), Especialização em Saúde Coletiva (1996), Mestrado em Psicologia (Psicologia Social) pela Universidade Federal da Paraíba (1998); Doutorado (2003) e Pós-Doutorado (2012) em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é professor Associado II da Universidade Federal da Paraíba, no Programas de Pós Graduação em Psicologia Social (Mestrado e Doutorado - UFPB). Atua como pesquisadora do Programa de Atendimento Psicossocial à Aids vinculado a FFCLRP/USP. Airton Pereira do Rêgo Barros é Doutor em Psicologia Social e das Organizações pela Universidade de Valência – Espanha. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal da Paraíba. Professor do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia. Desenvolve pesquisas e projetos de extensão nas áreas de Psicologia Clínica e Social. Angelo Brandelli Costa é Graduado em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), especialista em Psicologia Social e em Psicologia em Saúde (CFP), mestre em Psicologia Social e Institucional (PPGPSI/UFRGS), doutor em Psicologia (PPGPSICO/UFRGS) e com estágio pós-doutoral no PPGPSICO/UFRGS. Atualmente é Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e coordenador do Grupo de Pesquisa Preconceito, Vulnerabilidade e Processos Psicossociais.

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Dóris Firmino Rabelo é docente do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal da Bahia UFBA e do Mestrado Profissional em Saúde da Família – ProfSaúdeUFRB. Elder Cerqueira-Santos é Doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (estágio doutoral na University of Nebraska, USA), Mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela mesma universidade e Graduado em Psicologia pela UFS. Posdoutorado em Sexualidade pela University of Toronto, Canadá. Foi membro diretor da Sociedade Brasileira de Psicologia - SBP, Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia – ANPEPP, e Associação Brasileira de Psicologia do Desenvolvimento – ABPD. Atualmente é Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Sergipe. Érica Atem Gonçalves de Araújo Costa é Psicóloga, mestre e doutora em Educação Brasileira pela FACED/UFC. Docente do Departamento de Psicologia/UFC e do Programa de Pós-Graduação Profissional em Psicologia e Políticas Públicas/UFC/Sobral. Membro do VIESES: Grupo de Pesquisas e Intervenções sobre Violência, Exclusão Social e Subjetivação e do LABGRIM: laboratório de estudos das relações infância, juventude e mídia (ICA/UFC). Coordenadora do projeto de extensão Maquinarias: infâncias em invenção (UFC). James Ferreira Moura Junior é Doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará e da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Coordenador da Rede de Estudos

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e Afrontamentos das Pobrezas, Discriminações e Resistências (REAPODERE). João Paulo Pereira Barros é Psicólogo, mestre em Psicologia e doutor em educação pela UFC. Professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela UFC. Coordenador do VIESES: Grupo de Pesquisas e Intervenções sobre Violência, Exclusão Social e Subjetivação. Josevânia da Silva é Psicóloga, Mestre e Doutora em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pós-graduação em Gerontologia. Docente Adjunta do Departamento de Psicologia e professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Saúde (Mestrado) da Universidade Estadual da Paraíba. Juliana Fernandes-Eloi é Psicóloga, Pedagoga. Doutora em Psicologia pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR. Psicoterapeuta e Professora Titular da Graduação em Psicologia no Centro Universitário Estácio do Ceará, e da Graduação em Psicologia no Centro Universitário Christus. Coordenadora do Centro Sapienza: Núcleo de Estudos e Consultoria em Psicologia. Membro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia - ANPEPP - GT Relações Intergrupais: Preconceito e Exclusão Social. Kary Jean Falcão é Doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Mestre em Ciência da Linguagem e Pedagogo desde 1999 pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Professor responsável pelo Núcleo de Planejamento e Avaliação Externa (NPAE) da Secretaria de Estado da Educação do Estado de Rondônia. Professor em cursos de Graduação de Pósgraduação.

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Lígia Carolina Oliveira Silva é Doutora e Mestre em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília - UnB. Professora do Instituto de Psicologia e do Programa de pósgraduação em Psicologia na Universidade Federal de Uberlândia UFU. Líder do Grupo de Pesquisa Trabalhando com as Marias: Mulheres e Carreira (CNPq). Luciana Kelly da Silva Fonseca é Psicóloga, com ênfase em Terapia Cognitivo-comportamental, pela Universidade Federal do Piauí. – UFPI. Pós-graduanda em Saúde Pública pela Faculdade Venda Nova do Imigrante -FAVENI. Integrante do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família/Atenção Básica da Universidade Federal do Delta do Parnaíba – UFDpar. Luciana Maria Maia é Mestre em Psicologia Social pela UFPB e Doutora em Psicologia Social pela UFPB. Atualmente é professora titular da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), atuando na graduação em Psicologia e no Programa de Pós-graduação em Psicologia. É coordenadora do Laboratório de Estudos sobre Processos de Exclusão Social (LEPES). Ludgleydson Fernandes de Araújo é Psicólogo, mestre em Psicologia Social e especialista em Gerontologia pela UFPB; mestre em Psicologia e Saúde e doutor em Psicologia pela Universidad de Granada (Espanha), com período sanduíche na Università di Bologna (Itália). É professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia (Stricto Sensu) da Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar), bolsista de Produtividade PQ-2 em pesquisa pelo CNPq e coordenador do GT Relações Intergrupais: exclusão social e preconceito, da ANPEPP. Tem atuado no âmbito do ensino, pesquisa e extensão, principalmente nos seguintes temas: psicologia social, psicologia do envelhecimento e psicogerontologia, idosos LGBT,

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aspectos psicossociais das drogas e aspectos psicológicos da prevenção ao HIV/AIDS. Luisa Regina da Silva Teixeira é psicóloga graduada pela Universidade Federal do Piauí, especialista lato sensu em Literatura e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), Filósofa licenciada pela Universidade Federal do Piauí. Membro do Núcleo de Pesquisa em Análise Psicossocial do Trabalho e das Organizações – NAPsiTO Maria de Fátima Brito Fontenele Rocha é Doutora em Psicologia, pela Universidade de Fortaleza, Mestre em Educação Brasileira, pela Universidade Federal do Ceará, Mestre em Educação e Gestão Desportiva pela Universidade Americana-PY, graduada em Psicologia pelo Centro Universitário Estácio do Ceará, graduada em Licenciatura Plena Em Educação Física pela UNIFOR. Atualmente é professor efetivo - SEDUC- CE. Marina Duarte Ferreira Dias é graduada em Psicologia pelo Centro Universitário Estácio do Ceará (2017). Participou do Programa de Iniciação Científica da Estácio (PIC/CNPq) (2015-2016) e (20162017).Facilitou o Núcleo de Psicologia do Desenvolvimento, Gênero e Sexualidade - NUPEX (Estácio) - (2016-2017). Mariana Valadares Macêdo de Santana é Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de Sergipe com período de mobilidade na Universidade de São Paulo. Psicóloga graduada pela mesma universidade. Docente no Centro Educacional Braz Cubas. Interessase pelas intersecções entre Psicologia Social e Estudos de Gênero. Marília Maia Lincoln Barreira é graduada em Psicologia (UNIFOR). Mestra e Doutoranda em Psicologia (UNIFOR). Integrante do Grupo

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de Trabalho em Relações Intergrupais, Preconceito e Exclusão Social na Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia e do Laboratório de Estudos sobre Processos de Exclusão Social (LEPES). Marlene Neves Strey é Doutora em Psicologia pelo Universidad Autónoma de Madrid, Espanha(1994). Trabalho voluntário do Instituto de Prevenção e Pesquisa em Álcool e outras Dependências , Brasil Nara Maria Forte Diogo Rocha é docente da Universidade Federal do Ceará, Departamento de Psicologia (Campus Fortaleza) na área de Psicologia do Desenvolvimento. Integrante do corpo docente da Pósgraduação em Psicologia e Políticas Públicas da UFC (Campus Sobral). Natacha Führ Ramos é graduada em Psicologia pela Universidade Feevale. Atua em consultório particular e é voluntária na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Estância Velha (APAE EV). É integrante do Grupo de Pesquisa “Psicologia, Subjetividade Contemporânea e Saúde Mental” da Universidade Feevale. Pollyana de Lucena Moreira é Mestre em Psicologia (UFPB) e Doutora em Psicologia Social (UFPB). Atualmente é professora do curso de Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo, vinculada ao Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento desta universidade. Raquel Belo é professora Associada 1 da Universidade Federal do Piauí nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Psicologia. Possui Graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco com formação em Psicologia Organizacional e do Trabalho; Mestrado e Doutorado em Psicologia Social pela

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Universidade Federal da Paraíba. Líder do 'Núcleo de Pesquisa em Análise Psicossocial do Trabalho e das Organizações' no Diretório dos Grupos de Pesquisa - CNPq e membro do Grupo de Trabalho da ANPEPP 'Relações intergrupais: preconceito e exclusão social'. Tainara Rodrigues Nunes é Graduada em Psicologia pelo Centro Universitário Estácio do Ceará. Especializanda em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pelo Centro Universitário Estácio do Ceará. Extensionista do Programa de Capacitação de Equipes Multiprofissionais, em Intervenção Precoce, pelo Núcleo de Tratamento e Estimulação Precoce - NUTEP e pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Thaís Blankenheim é Doutoranda em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Mestre em Diversidade Cultural e Inclusão Social pela Universidade Feevale. Integrante do grupo de pesquisa "Preconceito, Vulnerabilidades e Processos Psicossociais da PUCRS. É psicóloga Clínica e Escolar.

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