Nova Biblioteca de Ciências Sociais
diretor: Celso Castro
C. WRIGHT
MILLS
Forças armadas e política no Brasil José Murilo de Carvalho 0 Brasil antes dos brasileiros André Prous Jango e o golpe de 1964 na caricatura Rodrigo Parto S á Motta Questões fundamentais da sociologia Georg Simmel Segredos e truques da pesquisa Howard S. Becker
SOBRE O ARTESANATO INTELECTUAL E OUTROS ENSAIOS
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios C. Wright Mills
Seleção e introdução CELSO CASTRO
Tradução: MARIA LUIZA X. DE A . BORGES
Revisão técnica: CELSO CASTRO
^ZAHAR Rio de Janeiro
Obras originais dos textos que c o m p õ e m esta coletânea: The Sociological Imagination; © 1959, 2000, Oxford University Press: "On Intelectual Craftmanship" ("Sobre o artesanato intelectual"), a p ê n d i c e (p.195-226) & "The Promise" ("A promessa"), parte do cap.1 [introd.; item 1 (p.3-8)]
Sumário
White Collar, © 1951, Oxford University Press: "The Ideal of Craftsmanship" ("O ideal do artesanato"), cap.10 [item 2 (p.220-24)] Power, Politics and People; © 1939-40, 1942-46, 1952-55, 1958-60, 1963, espólio de C. Wright Mills: "Man in the Middle: The designer" ("O homem no centro: o designer"), cap.10 [parte 3 (p.374-86)] T r a d u ç ã o autorizada. (This translation is published by arrangement with Oxford University Press.) Letters and Autobiographical Writings; © 2000, espólio de C. Wright Mills: "What Dois it Mean to be an Intellectual?" ("O que significa ser um intelectual?"), (p.276-281) publicado por University of California Press
Introdução Copyright da e d i ç ã o brasileira © 2009: Jorge Zahar Editor Ltda. rua México 31 sobreloja 20031-144 Rio de Janeiro, RJ tel.: (21) 2108-0808 / fax: (21) 2108-0800 e-mail:
[email protected] site: www.zahar.com.br
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louja e a arte d a m a n u t e n ç ã o d e m o t o c i c l e t a s
por Celso Castro Sobre o artesanato intelectual 21 « Ç\ [xj^Q
Todos os direitos reservados. A r e p r o d u ç ã o n ã o - a u t o r i z a d a desta p u b l i c a ç ã o , no todo ou em parte, constitui v i o l a ç ã o de direitos autorais. (Lei 9.610/98)
O Ideal do artesanato M
GbhÁs
0 homem no centro: o designer 60 $ ^ v v 0 ~ /
Projeto gráfico: Bruna Benvegnu
ApromtMt 11 t W / > n r v v M i 1 i i|in< MI|IHIII .1 M I u m i n t e l e c t u a l ? CIP-Brasil. C a t a l o g a ç ã o - n a - f o n t e Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ M596s
Mills, C. Wright (Charles Wright), 1916-1962 Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios / C. Wright Mills; s e l e ç ã o e i n t r o d u ç ã o Celso Castro; t r a d u ç ã o Maria Luiza X. de A. Borges; r e v i s ã o técnica Celso Castro. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. (Nova biblioteca de c i ê n c i a s sociais) ISBN 978-85-378-0114-7 1. Sociologia. I. Título. II. Série
08-5471
CDD: 301 CDU: 316
89
7
Introdução
Sociologia e a arte da m a n u t e n ç ã o de motocicletas por Celso Castro
1
"O conhecimento é uma escolha tanto de um modo de vida quanto de uma carreira; quer o saiba ou não, o trabalhador intelectual forma-se a si próprio à medida que trabalha para o aperfeiçoamento de seu ofício." C. WRIGHT MILLS "O Buda, a Divindade, mora tão confortavelmente nos circuitos de um computador digital ou nas engrenagens de uma transmissão de motocicleta quanto no pico de uma montanha ou nas pétalas de uma flor. Pensar de outra maneira é aviltar o Buda - o que significa aviltar-se a si mesmo.... Rejeitar a parte do Buda relacionada à análise das motocicletas é omitir o Buda." ROBERT M. PIRSIC, em Zen e a arte da manutenção de motocicletas (1974)
Um aborígine norte-americano
2
Charles Wright Mills nasceu em Waco, Texas, em 28 cio agosto de 1916. Cursou a g r a d u a ç ã o em sociologia e o mestrado em filosofia na Universidade do Texas em Austin. Em seguida, tentou fa/t i M U Professor e pesquisador do Centro de Pesquisa e I >
2
Introdução
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
doutorado em sociologia na Universidade de Chicago, mas desistiu
uma figura relativamente marginal no ambiente de Columbia. As
por n ã o ter conseguido uma bolsa de estudos. Foi então, em 1939,
relações pessoais com alguns colegas foram difíceis; como uma das
estudar na Universidade de Wisconsin, onde defendeu, em 1942,
conseqüências, Mills n ã o dava aulas na pós-graduação. No entanto,
sua tese de doutorado, "A Sociological Account o f Pragmatism: A n
essa situação t a m b é m tinha como vantagem o maior tempo para
Essay on the Sociology o f Knowledge".
dedicar-se à pesquisa e à escrita.
Mills transferiu-se em 1941 para a Universidade de Maryland
Foi em Nova York que Mills publicou o núcleo de sua con-
(College Park), onde deu aulas de sociologia. Nos três anos seguin-
Iribuição para as ciências sociais, uma trilogia sobre a sociedade
tes, colaborou com Hans H . Gerth em dois livros: uma coletânea
11< iite americana contemporânea, na qual analisava seus três estratos
de textos de Max Weber, From Max Weber: Essays in Sociology,
principais: os líderes sindicais, em NewMen of Power (1948); as clas-
publicado em 1946 - seu maior best-seller, ainda reimpresso mais
ses médias, em White Collar: The American Middle Classes (1951), seu I 'M11 u i r o sucesso para além dos muros acadêmicos; e a elite, em The
3
de 60 anos após sua p u b l i c a ç ã o - e Character and Social Structure, que viria a ser publicado em 1953.
6
1'xwri Elite (1956). Estes dois últimos livros tiveram várias edições
4
e lorain publicados em mais de uma dezena de línguas.
Em 1945, Mills mudou-se para Nova York, indo trabalhar no Bureau o f Applied Social Research a convite de seu fundador e
No ano acadêmico de 1956-57 Mills foi professor visitante
diretor, Paul Lazarsfeld (1901-76). A l i , teve acesso a farto material
ii.i l Iniversidade de Copenhague, financiado pela Fullbright. N ã o
empírico, trabalhou coordenando equipes de investigadores e p ô d e
la nenhum motivo especial para ir à Dinamarca, como expli-
adquirir habilidades em m é t o d o s e técnicas de pesquisa quantita-
i ou numa carta a Hans Gerth: "Bem, porque eles pediram por li. n i n g u é m mais o fez. Segundo, eu gosto da idéia de ir a esse
tiva. No entanto, apesar da a d m i r a ç ã o que inicialmente sentia por
pequeno país."
Lazarsfeld, aos poucos as relações entre os dois se deterioraram, até o rompimento completo, em 1952.
5
N.i Europa, Mills loniplelou boa parte do manuscrito de The Sói iologii,// liiniyjinitton,
Concomitantemente ao trabalho no Bureau, Mills c o m e ç o u
que vil I.I .i ser publii ado em 1959, livro
a lecionar na Universidade de Columbia em 1947, nela permane-
no qual I.I/I.I uma analise . n i u . i d.is "escolas" que dominavam
cendo até sua morte, em 1962. Ao longo desses 15 anos, Mills foi
0 • iimpo • li " I "
Icifiin ile sua época, atacando principalmente as i " " MI.
11H.i111. respectivamente, Lazarsfeld e
1 .1. . . i i I n ...ir. i r u i : /•»). l u o u famosa a " t r a d u ç ã o abreviada" Mills (eds.). Introd. Dan Wakefield, Califórnia, University of California Press, 2000, p.205. A maior parte das informações biográficas sobre Mills provém deste livro, que reúne aproximadamente 150 dentre mais de 600 cartas (além de outros escritos inéditos) de Mills, selecionadas, editadas e comentadas por duas de suas filhas. Foi também consultado Irving Louis Horowitz, C. Wright Mills: An American Utopian, Free Press, 1983. Publicado no Brasil como Ensaios de Sociologia, em 1971, pela Zahar Editores. A edição brasileira, Caráter e estrutura social, foi publicada em 1973 pela editora Civilização Brasileira. Sobre a experiência de Mills no Bureau, ver Jonathan Sterne, "C. Wright Mills, the Bureau of Applied Social Research, and the Meaning of Critical Scholarship", em Cultural Studies, Critical Methodologies, vol. 5, n . l , 2005, p.65-94. 3
qui M111 -. I r / , i i . ' i ,i|>iiiilo2 ("Grande teoria"), de extensos trechos ii In.hl,.-. ,l.r. i i i paginas de The Social System (1951) de Parsons, 111 ii i I.I i ido que o livro poderia ser reduzido, sem perda de conteúdo, .i I >ii páginas de "inglês direto". Mesmo assim, continuava Mills, o resultado n ã o seria muito impressionante.
4
s
11
Os dois últimos livros foram publicados no Brasil por Jorge Zahar Editores com os títulos A nova classe média, em 1980, e A elite do poder, em 1981. K. Mills e P. Mills (eds.), op. cit., p.203. 7
10
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
Introdução
A o longo do livro, Mills buscou fazer a defesa da "tradição clássi-
liça. Diante disso, Mills se v i u cada vez mais em maus lençóis com
ca" das ciências sociais, inspirado nas maiores influências intelectuais
I público e as autoridades americanas e recebeu pelo menos uma
de sua vida - os alemães Karl Marx, Max Weber e Karl Mannheim,
ameaça de morte pela defesa que fizera da revolução cubana."
1
além dos norte-americanos William lames, Thorstein Veblen e John
Apesar da atração pelas idéias marxistas, Mills sempre manteve
Dewey. A imaginação sociológica, no entanto, foi u m livro escrito por
uma posição crítica a respeito de muitos de seus fundamentos, como
um insider para outsiders, causando escândalo nos círculos acadêmi-
pode ser visto em The Marxists, livro que seria publicado postuma-
cos pelo ataque contundente que fez a seus pares. Por volta de 1960,
mente, em 1962." Em abril de 1960 Mills foi à Rússia pela primeira
Mills chegou a pensar em trocar Columbia por alguma universidade
vez, país pelo qual teve sentimentos ambivalentes. Em Moscou,
britânica - provavelmente fruto do b o m relacionamento que esta-
horrorizou seus hóspedes durante u m jantar ao erguer u m brinde
beleceu com pensadores de esquerda como E.P. Thompson, Tom
ao dia em que as obras completas do proscrito Trotsky seriam pu-
Bottomore e Ralph Miliband - , mas depois desistiu.
blicadas e amplamente distribuídas na União Soviética - nesse dia,
À medida que aumentava o afastamento de seus pares acadê-
acrescentou Mills, "a URSS terá se tornado uma democracia".
micos norte-americanos, Mills buscava escrever mais e mais para o grande público. Além de artigos em revistas como New Leader, Politics, New York Times Magazine e Dissent, escreveu "livros-panfletos" que lhe deram grande exposição na mídia americana - algo comparável apenas, talvez, à que teria a a n t r o p ó l o g a Margaret Mead. Em The Causes of World War Three (1958), Mills tratou da corrida nuclear; em Listen, Yankee: The Revolution in Cuba (1960), da fase inicial da revolução cubana.
8
Este livro, escrito em apenas seis semanas após uma curta visita que Mills fizera a Cuba em agosto de 1960, foi u m enorme sucesso de vendas e, ao mesmo tempo, colocou o FBI à sua espreita. O livro
12
Ao longo de sua vida, Mills sempre manteve-se politicamente independente, evitando aderir a qualquer grupo. Seus heróis políticos eram os Wobblies (Industrial Workers o f the World), os radicais americanos do início do século que se opunham a quase tudo e todos, e prezavam acima de tudo sua independência. Mills esteve no Rio de Janeiro no final de outubro de 1959, convidado para participar do Seminário Internacional "Resistências à m u d a n ç a : fatores que impedem ou dificultam o desenvolvimento", realizado no Museu Nacional e promovido pelo CLAPCS (Centro 13
Latino-Americano de Pesquisa em Ciências Sociais), dirigido pelo
baseou-se em extensas entrevistas gravadas com Fidel Castro, Che Guevara e outros líderes da revolução, além de jornalistas, militares e intelectuais. Fidel teria então contado a Mills que lera The Power Elite durante o p e r í o d o da guerrilha.
9
12
Mills acreditara que os revolucionários cubanos pudessem a
seguir por uma via socialista independente. No entanto, em I de dezembro de 1961, Fidel fez u m discurso de cinco horas no qual se declarava marxista-leninista e elogiava as conquistas da União Sovié-
* Publicados no Brasil por Jorge Zahar Editor, respectivamente, como As causas da próxima guerra mundial e A verdade sobre Cuba, ambos em 1961. K. Mills e P. Mills (eds.), op. cit., p.312. 9
"' Ver artigo de Ricardo Alarcon, "Waiting for C. Wright Mills", publicado em The Nation em 20.3.2007. " A edição brasileira, da Zahar Editores, é de 1968. K. Mills e P. Mills (eds.), op. cit, p.335. Em 1957, acolhendo uma recomendação da 9 sessão da Conferência Geral da Unesco (índia, 1956), os estados-membros estabeleceram duas unidades conduzidas por um mesmo Comitê Diretivo: uma especializada em docência de pós-graduação - a FLACSO, em Santiago, no Chile; e outra dedicada à pesquisa social comparativa, o Centro Latino-Americano de Pesquisas em (Ciências Sociais (CLAPCS), no Rio de Janeiro. Sobre o contexto intelectual de criação do (!1.AP( IS, ver Oliveira, Lúcia Lippi, "Diálogos intermitentes: Relações enlre Brasil e Anni u .i Latina", em Sociologias n.14, Porto Alegre, jul-dez 2005. Sobre o seminário, ver a dissertação de mestrado de Janaina Ferreira, Resistências n mudança. í hn debate dos cientistas sociais na década de 50, PPGSA/UFKI, 1999. 13
a
12
Introdução
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
sociólogo Luiz Costa Pinto (1920-2002). Neste seminário, Mills
d Aio acabou sendo publicado como apêndice de The Sociological
apresentou o trabalho "Remarks on the Problem o f Industrial De-
knagination e tornou-se a parte mais universalmente conhecida
14
velopment", que foi criticado pelos marxistas brasileiros Florestan Fernandes, Octávio Ianni e Paschoal Leme, presentes ao evento.
• elogiada do livro. E em torno da idéia de "artesanato intelectual" que a presente
Durante sua estada no Rio, Mills escreveu uma carta a To-
• oletánea de textos de C. Wright Mills foi organizada. Além do
varich, u m colega russo imaginário (em russo, a palavra significa
l.inioso apêndice, foram aqui reunidos quatro outros textos cur-
camarada) com o qual c o m e ç a r a a se "corresponder" (sem ter
tos que nos ajudam a melhor compreender essa idéia: u m trecho
nunca publicado esse material em vida) entre 1956 e 1957, em sua
de White Collar que explica o tipo ideal do artesanato, algo que
primeira longa temporada na Europa. A carta,"What does it mean to be an intellectual?", foi publicada postumamente e encontra-se aqui traduzida pela primeira vez para o p o r t u g u ê s .
tornou-se u m anacronismo na experiência moderna do trabalho (Capítulo 2); uma palestra, inédita em p o r t u g u ê s , feita por Mills numa convenção para designers, na qual defende o modelo do ar-
Em dezembro de 1960, às vésperas de participar de u m debate em cadeia nacional de televisão com A d o l f A. Berle Jr. (que fora embaixador no Brasil entre 1945 e 1946) sobre a política externa norte-americana para a A m é r i c a Latina, Mills sofreu u m sério infarto do miocárdio. Sobreviveu, mas por apenas mais 15 meses. Em 20 de m a r ç o de 1962, morreu em sua casa, de outro ataque cardíaco, aos 45 anos de idade.
Manato como u m valor central para seres humanos n ã o alienados (Capítulo 3); a seção inicial de A imaginação
sociológica, na qual
apresenta aquilo que a imaginação sociológica pode nos oferecer, ao esclarecer a inter-relação entre biografia e história (Capítulo 4); e u m texto sobre a posição do intelectual e de seu ofício diante das questões públicas (Capítulo 5). Mills faz, em "Sobre o artesanato intelectual", u m relato pessoal, dirigido aos que se iniciam nas ciências sociais, de como procede
O artesanato intelectual
em seu ofício. A imagem de u m "ofício" - e sua associação com as idéias de "artesanato" e "oficina" - se c o n t r a p õ e à visão do trabalho
Durante sua estada na Europa, Mills completou boa parte do
do cientista social como alguém que testa hipóteses construídas
manuscrito de The Sociological Imagination, pois na primavera de
a partir de leis gerais e aplicadas através de m é t o d o s controláveis.
1957 apresentou as primeiras versões do livro n u m s e m i n á r i o em
No trabalho do cientista social n ã o haveria fórmulas, leis, receitas,
Copenhague. Neste ano, Mills mencionou, numa carta a u m amigo,
e sim méthodos, no sentido original grego da palavra: via, caminho,
que os manuscritos incluíam "uma [versão] completamente rees-
rota para se chegar a u m fim.
crita e, acredito, de primeira linha, de u m ensaio nunca publicado 15
Sobre o artesanato intelectual" (On Intellectual Craftsmanship).
O
O "artesão intelectual" de que trata Mills deve ser visto como um "tipo ideal", no sentido weberiano do termo - algo que n ã o é encontrado em forma "pura" na realidade social, mas que, construído
14
Publicado em 1960 nos anais do seminário, p.281-7. Nas páginas 297 e 298 encontra-se um resumo dos debates. Cf. K. Mills e P. Mills (eds.), op. cit., p.230. A primeira versão do texto foi escrita em abril de 1952, segundo anotação de Mills no manuscrito, e distribuída para uso em sala de aula em 1955.0 texto completo foi publicado em Society, vol 17, n. 2,jan 1980, p.63-70.
pelo pesquisador a partir do exagero de algumas propriedades de determinado fenômeno, nos ajuda a compreendê-lo. Nesse sentido,
15
ver o trabalho de pesquisa como u m ofício ressalta a i m p o r t â n c i a da d i m e n s ã o existencial na formação do pesquisador. Isso n ã o quer dizer que se devam explicar os resultados do trabalho a partir
14
Introdução
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
uma visão adequada de uma sociedade total e de seus componentes.
da biografia; n ã o estamos falando de f e n ô m e n o s psicanalíticos ou coisas do gênero. Trata-se, como Mills aponta, de enfatizar a
É essa imaginação, é claro, que distingue o cientista social do mero
indissociabilidade, para o "artesão intelectual", entre sua vida e
técnico. Técnicos adequados podem ser instruídos em poucos anos.
seu trabalho - idéia p r ó x i m a à que u m autor como Georg Simmel
A imaginação sociológica t a m b é m pode ser cultivada; por certo ela
chamaria de "autocultivo" através da prática de seu ofício.
raramente ocorre sem muito de trabalho, muitas vezes rotineiro. Há
Temos aqui, como disse Howard S. Becker n u m texto sobre Mills, uma questão de "quantas horas por dia se é sociólogo".
no entanto uma qualidade inesperada em relação a ela, talvez porque
16
sua essência seja a combinação de idéias que ninguém supunha que
Esta n ã o é uma questão meramente quantitativa - como se fôsse-
fossem combináveis - digamos, uma mistura de idéias da
mos tomar, por exemplo, quantas horas alguém se dedica ao seu
alemã e da economia britânica. Há um estado de espírito lúdico por
trabalho como uma "variável" para testar alguma hipótese. Estão
trás desse tipo de combinação, bem como um esforço verdadeiramente
filosofia
em jogo, aqui, diferentes orientações do sociólogo em relação ao
intenso para compreender o mundo, que em geral falta ao técnico
seu trabalho: se ele m a n t é m dentro de limites estritos o impacto
como tal (p. 41).
da perspectiva sociológica sobre sua vida - u m "sociólogo de oito horas por dia" - ou se a deixa tomar conta de sua vida interior - u m "sociólogo 24 horas por dia". N ã o que este "trabalhe o tempo todo": o importante, na visão de Mills, é que ele, como b o m artesão, n ã o dissocie sua vida de seu trabalho, e a perspectiva sociológica está presente n ã o apenas na forma pela qual ele vive no mundo, mas
Como u m artista "bricoleur", o artesão intelectual está atento para c o m b i n a ç õ e s não-previstas de elementos, evitando normas de procedimento rígidas que levem a u m "fetichismo do m é t o d o e da técnica":
no modo pelo.qual ele vê o mundo. Como fazer isso? A resposta de Mills é clara e direta: organizar
Estimule a reabilitação do artesão intelectual despretensioso, e tente se
u m arquivo, manter u m diário. No arquivo unem-se experiência
tornar você mesmo tal artesão. Deixe que cada homem seja seu próprio
pessoal e reflexão profissional. Ao continuamente revisitar e rear-
metodologista; deixe que cada homem seja seu próprio teorizador; deixe
ranjar o arquivo, o artesão intelectual estimula a imaginação
que teoria e método se tornem parte da prática de um ofício (p. 56).
so-
ciológica. Esta consiste, em grande parte, na "capacidade de passar de uma perspectiva para outra, e, nesse processo, consolidar uma
A m a n u t e n ç ã o de u m arqyivo como o proposto por Mills -
visão adequada de uma sociedade total e de seus componentes"
tarefa que ele realizava com lápis e papel, mas que hoje pode
(p.41). É essa imaginação que, na visão de Mills, distingue o cien-
igualmente ser realizada com u m computador - gera o hábito da
tista social do simples técnico:
auto-reflexão sistemática, através da qual o cientista social aprendi' como manter seu mundo interior desperto, relacionando aquilo
A imaginação sociológica... consiste em parte considerável na capacidade
que está fazendo intelectualmente e o que está experimentando
de passar de uma perspectiva para outra, e, nesse processo, consolidar
como pessoa. Como disse Gláucio Soares,"arquivos deste tiposão, essencialmente, uma conversa íntima e solitária".
17
16
Howard S., Becker, "Professional sociology: The case of C. Wright Mills" em Ray Rist (oi g.), The I democratic Imagination: Dialogues on the Work of Irving Louis Horowitz. New Brunswick, Transaction Books, 1994, p. 175-87. Becker atribui essa idéia anu m i ..i m m I luniwitz, que não a teria publicado.
17
Gláucio Ary Dillon Soares,"Pesquisa rica em países pobres?" Revista Brasileira de Ciências Sociais, n.16, ano 6, jul 1991, p.70.
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
Introdução
Mills procura, nos textos aqui reunidos, seguir sua p r ó p r i a
aparece na capa deste livro) devido à dificuldade em estacionar
exortação de que a a p r e s e n t a ç ã o d o trabalho d o sociólogo deve
em Morningside Heights, onde fica a Universidade de Columbia.
ser feita em linguagem o mais clara e simples possível, evitando
Três vezes por semana, vestindo jeans e camiseta, Mills cobria de
ao m á x i m o o jargão e o hermetismo - "para superar a prosa
(Roto, em uma hora, os 50km entre sua casa em Pomona ( N Y ) e
acadêmica, temos de superar p r i m e i r o a pose a c a d ê m i c a " (p.50).
I Columbia.
Em "Sobre o artesanato intelectual", dá vários exemplos concretos a seus leitores daquilo que defende, a partir de sua p r ó p r i a
20
Quando Mills viajou para a Europa pela primeira vez, em jan r 11 o de 1956, o fez n ã o para compromissos acadêmicos, mas para
prática, em particular com a pesquisa que levou à r e d a ç ã o de A
um curso de m a n u t e n ç ã o de motocicletas durante duas semanas
elite do poder. Como u m m e s t r e - a r t e s ã o que procura passar aos
na fabrica da B M W em Munique. Ao final, recebeu o diploma de
aprendizes de seu ofício aquilo que aprendeu ao longo de seu
mecânico de I classe, que orgulhosamente mandou emoldurar.
caminho.
Neste mesmo ano, fez u m grande tour pela Europa numa BMW.
a
I'm carta a u m amigo, escrita no verão de 1956, descreveu seu estado de espírito: "Buda numa motocicleta".
Um sociólogo numa motocicleta
21
Em 1948, Mills e Ruth Harper, sua segunda esposa, fizeram Ulia viagem de cerca de 32 m i l k m de carro, saindo de Nova York até
Dan Wakefield relembra u m episódio ocorrido quando trabalhava
I ()s Angeles, onde compraram u m trailer. Dali seguiram lentamente
18
como assistente de pesquisa de M i l l s . U m homem que pertencia
para o norte, pela costa, até São Francisco, e de lá para a Columbia
a u m pequeno grupo socialista veio pedir sua assinatura numa
Britânica. Ziguezaguearam pelo C a n a d á até chegarem a Montreal,
petição para que a organização deixasse de ser classificada como
de onde retornaram a Nova York. No caminho, compraram por
"subversiva" pelo governo. Mills assinou, mas passou a debater
175 dólares duas ilhotas às margens do lago Temagami, situado
criticamente as idéias políticas de seu interlocutor, que, exaspera-
numa reserva florestal em O n t á r i o , Canadá, a cerca de 1.300km
do, perguntou, afinal, em que Mills acreditava. Ele, que naquele
ile NYC. Para chegar às ilhas era preciso sair da rodovia e viajar de
momento estava consertando sua motocicleta, respondeu sem
barco por cerca de 50km. Mills passou as férias de 1949 na ilha,
hesitar: "motores alemães".
19
acompanhado de sua primeira filha, Pamela, então com seis anos.
Talvez essa resposta seja mais do que uma simples brincadeira,
Ele e Ruth trabalhavam de m a n h ã em White Collar e c o n s t r u í a m
e que o ideal do artesanato tenha ocupado uma d i m e n s ã o mais
a casa à tarde. A descrição de sua rotina, que Mills faz em carta
plena na vida de Mills e em seu ofício de sociólogo. Ele c o m e ç o u
.i um amigo, lembra Walden, de Henry Thoreau - com a grande
a pilotar uma motocicleta B M W modelo R69 (a mesma que
dilerença de que Mills n ã o estava só:
" Essa informação e as seguintes encontram-se na introdução que Dan Wakefield escreveu ao livro com as cartas e escritos de Mills (K. Mills e P. Mills (eds.), op. nf., p.1-18). " Cf. K. Mills e P. Mills (eds.), op. cit., p.14. Apesar dessa resposta, nas eleições de c 1948 Mills votou para presidente no candidato do Partido Socialista, Nui in.in Thomas (ibid., p. 120).
I Dl 1959 Mills mudou-se para uma casa que ajudou a projetar e construir em Rockland County (West Nyack, NY), a cerca de 40km de Nova York. Continuou indo trabalhar de motocicleta. " K. Mills e P. Mills (eds.), op. cit., p.212.
Introdução
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
Eis a maneira pela qual vivemos: levantamos por volta de 7h30 ou 8h e
Esses indícios, presentes na biografia de Mills, parecem su-
comemos, após mergulhar no lago. Pamela está aqui há cerca de cinco
que o modo de vida do artesão tenha sido, para ele, mais
semanas e nada vestida com u m pequeno colete de cortiça. Trabalhamos
que apenas u m tipo ideal sociológico. Nada mais apropriado para
em seguida em nossas escrivaninhas até cerca de 12h30. Pamela brinca
quem, como poucos, defendeu que vida e obra devem se alimentar
sozinha esse tempo, e está aparentemente muito feliz. Depois do almoço
mutuamente.
trabalhamos na casa até irmos nadar por volta de 16h30, quando
A propósito, muitos anos após a morte de seu pai, Nikolas
Pamela tem sua aula de natação. Após isso, nos deixamos levar pela
Mills apaixonou-se por reformar carros antigos e tornou-se u m
correnteza. Pode ser que vá de caiaque com Pamela colher nenúfares;
ai tisia e designer.
24
ou, talvez, sigamos seis milhas pelo lago no barco a motor até a ilha do Urso pegar correspondência... isto, duas ou três vezes por semana. Ou, talvez, fiquemos apenas sentados olhando a casa e fazendo planos para as construções do próximo ano. (Uma ponte sobre o pequeno canal até a outra ilha. Uma casa de hóspedes ali. Outra doca lá naquele ponto.) Bem, é mais ou menos assim que vamos indo.
22
Segundo Dan Wakefield, Mills proclamava em suas aulas que cada u m deveria construir sua p r ó p r i a casa - como ele mesmo o fizera - e, com o estudo adequado, construir seu p r ó p r i o carro. Além de motores alemães e de construir casas, M i l l s gostava t a m b é m de fotografar, de tocar violão e de cozinhar. Wakefield lembra que, em sua primeira visita à casa de Mills, a p ó s este lhe servir uma refeição que havia preparado, perguntou com incredulidade: " M e u Deus, h o m e m , você quer dizer que n ã o faz seu p r ó p r i o p ã o ? " Três dias a p ó s o nascimento de seu filho Nikolas, Mills escreveu a u m amigo contando que "ele tem m ã o s exatamente como as de meu pai (e minhas) e quase t ã o grandes! Verdadeiras luvas de beisebol. Espero que ele se torne u m honesto carpinteiro ou u m mecânico de corridas, se ainda tiverem restado carros decentes quando ele tiver dez ou 12 anos e puder chegar perto de u m m o t o r " .
23
22
K. Mills e P. Mills (eds.), op. cit., p.142. Carta de 22.6.1960 a Ralph Miliband (K. Mills e P. Mills (eds.), op. cit., p.290).
21
Ver www.nikmills.com.
Sobre o artesanato intelectual
l'ara o cientista social individual que se sente parte da tradição Clássica, a ciência social é a prática de u m ofício. H o m e m dedicado a questões importantes, ele está entre aqueles que ficam rapidamente impacientes e entediados com discussões complicadas sobre m é t o d o e teoria em geral; muito disso interrompe seus verdadeiros estudos. É melhor, ele acredita, que u m estudioso ativo relate como está se saindo em seu trabalho do que ter uma dúzia de "codificações de procedimento" estabelecidas por especialistas que, o mais das vezes, nunca fizeram muitos trabalhos importantes. Somente através de conversas em que pensadores experientes I roçam informações sobre suas maneiras efetivas de trabalhar é possível comunicar uma noção útil de m é t o d o e teoria ao estudioso iniciante. Parece-me válido, portanto, relatar com algum detalhe como procedo em meu ofício. Este é necessariamente u m relato pessoal, mas escrito na esperança de que outros, em especial aqueles que estão iniciando u m trabalho independente, o tornem menos pessoal através dos fatos de sua p r ó p r i a experiência.
É melhor começar, acredito, lembrando a você, o estudioso iniciante, que os mais admiráveis pensadores da comunidade acadêmica em que decidiu ingressar n ã o separam seu trabalho de suas vidas. Parecem levá-los ambos a sério demais para admitir tal dissociação, e querem usar uma coisa para o enriquecimento da outra. Essa se 21
22
Sobre o artesanato intelectual
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
paração, é claro, é a convenção predominante entre os homens em
permite conservar sua energia. Estimula-o t a m b é m a apreender
geral, originando-se, suponho, do vazio do trabalho que os homens
"pensamentos marginais": várias idéias que podem ser subprodutos
em geral fazem hoje. Mas você reconhecerá que, como intelectual,
d* vida cotidiana, fragmentos de conversas entreouvidas na rua,
tem a oportunidade excepcional de planejar u m modo de vida que
«tu mesmo sonhos. Uma vez anotadas, essas coisas podem levar a
encorajará os hábitos da boa p r o d u ç ã o . O conhecimento é uma
pensamentos mais sistemáticos, bem como emprestar relevância
escolha tanto de u m modo de vida quanto de uma carreira; quer
Intelectual a experiências mais diretas.
o saiba ou n ã o , o trabalhador intelectual forma-se a si p r ó p r i o à
Você deve ter notado muitas vezes com que cuidado pen-
medida que trabalha para o aperfeiçoamento de seu ofício; para
sadores bem-sucedidos tratam suas p r ó p r i a s mentes, com que
realizar suas p r ó p r i a s potencialidades, e quaisquer oportunidades
• i. tição observam seu p r ó p r i o desenvolvimento e organizam sua
que surjam em seu caminho, ele constrói u m caráter que tem como m ú c l e o as qualidades do b o m trabalhador.
I \ i Hi iência. A razão por que valorizam suas menores experiências e que, no curso de uma vida, o homem moderno tem t ã o pouca
Isto significa que deve aprender a usar sua experiência de vida
ptperiência pessoal, e n ã o obstante a experiência é t ã o importante
em seu trabalho intelectual: examiná-la e interpretá-la continua-
, orno fonte de trabalho intelectual original. Ser capaz de confiar na
mente. Neste sentido, o artesanato é o centro de você mesmo, e
ifópria experiência, sendo ao mesmo tempo cético em relação a
você está pessoalmente envolvido em cada produto intelectual
m 6, acredito, uma marca do trabalhador maduro. Essa confiança
em que possa trabalhar. Dizer que você pode "ter experiência"
ambígua é indispensável para a originalidade em qualquer busca
significa, por exemplo, que seu passado influencia e afeta seu
intelectual, e o arquivo é uma maneira pela qual você pode desen-
presente, e que ele define sua capacidade de experiência futura.
volver e justificar essa confiança.
Como cientista social, é preciso controlar esta ação recíproca
Mantendo u m arquivo adequado e desenvolvendo assim hábi-
bastante complexa, apreender o que experiência e classificá-lo;
tos auto-reflexivos, você aprende como manter seu mundo interior
somente dessa maneira pode esperar usá-lo para guiar e testar
desperto. Sempre que tiver sentimentos fortes sobre eventos ou
sua reflexão e, nesse processo, moldar a si mesmo como u m ar-
idéias, deve tentar impedir que se dissipem de sua mente, tratando
tesão intelectual. Mas como fazer isso? Uma resposta é que você
ao contrário de formulá-los em seus arquivos e, ao fazê-lo, extrair
deve organizar u m arquivo, o que é, suponho, a maneira de u m
suas implicações, mostrar para si mesmo como esses sentimentos
sociólogo dizer: mantenha u m diário. Muitos escritores criativos
ou idéias são tolos, ou como poderiam ser articulados de maneira
m a n t ê m diários; a necessidade de reflexão sistemática em que o
produtiva. O arquivo o ajuda t a m b é m a formar o hábito de escrever.
sociólogo se vê exige isso.
Você n ã o p o d e r á adquirir esse hábito se n ã o escrever alguma coisa
N u m arquivo como o que vou descrever, há uma c o m b i n a ç ã o
pelo menos uma vez por semana. Ao desenvolver o arquivo, pode
de experiência pessoal e atividades profissionais, estudos em curso
fazer experiências como escritor e assim, como se diz, desenvolver
e estudos planejados. Nesse arquivo, você, como u m artesão, tentará
sua capacidade de expressão. Manter um arquivo é empenhar-se
reunir o que está fazendo intelectualmente e o que está experimen-
na experiência controlada.
tando como pessoa. Aqui, n ã o terá receio de usar sua experiência e relacioná-la diretamente a vários trabalhos em andamento. Ser-
Uma das piores coisas que acontecem com cientistas sociais é que
vindo como u m controle ao trabalho repetitivo, seu arquivo lhe
só sentem necessidade de escrever sobre seus "planos" numa única
23
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
Sobre o artesanato intelectual 25
ocasião: quando vão pedir dinheiro para uma pesquisa específica,
do "estado de meus problemas" entre cientistas sociais ativos é, eu
ou " u m projeto". É na forma de u m pedido de recursos que se faz
uri lo, a única base para uma descrição adequada dos "principais
a maior parte do "planejamento", ou pelo menos se escreve cui-
I >i (>Mcmas da ciência social". É improvável que em qualquer comuni-
dadosamente sobre ele. Embora esta seja a prática usual, penso
dade intelectual livre haja, e certamente não deveria haver, nenhuma
que é m u i t o r u i m : está fadada em algum grau a ser publicidade
••posição "monolítica" de problemas. Numa comunidade assim,
de vendedor e, dadas as expectativas prevalecentes, r e s u l t a r á
i aso ela estivesse florescendo de maneira vigorosa, haveria inter-
muito provavelmente em pretensões meticulosas; é provável que
lúdios de discussão entre indivíduos sobre o trabalho futuro. Três
o projeto seja "apresentado" de uma maneira arbitrariamente
t ipos de interlúdios - sobre problemas, métodos, teorias - deveriam
"arredondada" m u i t o antes do que deveria; é muitas vezes algo
i Imitar do trabalho de cientistas sociais, e conduzir a ele novamente;
maquinado, destinado a obter o dinheiro para propósitos velados,
deveriam ser moldados por trabalho em andamento e, em alguma
por valiosos que sejam, bem como para a pesquisa apresentada.
medida, guiar esse trabalho. É para interlúdios como esses que uma
U m cientista social praticante deveria rever periodicamente "o
associação profissional encontra sua razão intelectual de ser. E é para
estado de meus problemas e planos". U m jovem, desde o início
eles t a m b é m que seu p r ó p r i o arquivo é necessário.
de seu trabalho independente, deve refletir sobre isso, mas n ã o se pode esperar - e ele p r ó p r i o n ã o deveria fazê-lo - que vá m u i t o
Sob vários tópicos em seu arquivo há idéias, anotações pessoais,
longe com nenhum plano único, e decerto n ã o deveria ficar rigi-
excertos de livros, itens bibliográficos e esboços de projetos. Isto é,
damente comprometido com ele. Quase tudo o que pode fazer é
suponho, uma questão de hábito arbitrário, mas penso que você
organizar sua tese, que infelizmente é muitas vezes seu primeiro
julgará conveniente classificar todos esses itens n u m arquivo p r i n -
trabalho de alguma e x t e n s ã o supostamente independente. É
cipal de "projetos", com muitas subdivisões. Os tópicos mudam,
quando você está mais ou menos na metade do tempo de que
é claro, por vezes com grande freqüência. Por exemplo, como u m
dispõe para o trabalho, ou já fez cerca de u m terço, que esse tipo
estudante que se prepara para o exame de qualificação escreve uma
de revisão tem maior probabilidade de ser frutífero - e talvez até de
tese e, ao mesmo tempo, faz alguns trabalhos de fim de curso, seus
interesse para outros.
arquivos serão arranjados nessas três áreas de esforço. Mas, após
Qualquer cientista social ativo que já avançou bastante em
um ou dois anos de p ó s - g r a d u a ç ã o , você começará a reorganizar
seu caminho deve ter tantos planos, isto é, idéias, que a questão
todo o arquivo em relação ao projeto principal de sua tese. Depois,
é sempre: com qual deles vou, ou devo, trabalhar em seguida? E
à medida que desenvolver seu trabalho, notará que nenhum projeto
deveria manter u m pequeno arquivo especial para sua agenda
único jamais o domina, ou estabelece as categorias principais em
principal, que escreve e reescreve apenas para si mesmo e talvez
que ele é arranjado. De fato, o uso do arquivo estimula a expansão
para discutir com amigos. De tempos em tempos, deve rever isso
das categorias que você usa em seu raciocínio. E o modo como
de maneira muito cuidadosa e determinada, e por vezes, t a m b é m ,
essas categorias mudam, algumas sendo abandonadas e outras
quando está relaxado.
sendo acrescentadas, é u m indicador de seu progresso e amplitu-
Esse tipo de procedimento é u m dos meios indispensáveis
de intelectual. Finalmente, os arquivos passarão a ser arranjados
pelo qual seu empreendimento intelectual é mantido orientado e
segundo vários grandes projetos, tendo muitos subprojetos que
sob controle. U m intercâmbio corrente, informal, dessas revisões
mudam de ano para ano.
Sobre o artesanato intelectual
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
Tudo isto envolve a tomada de notas. Você terá de adquirir
ter sido ao ler Veblen pela primeira vez. Ele sempre me parecera
o hábito de tomar u m grande volume de notas de qualquer livro
muito impreciso, até vago, acerca de sua utilização dos termos
de valor que leia - embora, devo dizer, talvez seja inspirado a u m
"comercial" e "industrial", que são uma espécie de t r a d u ç ã o de
trabalho melhor quando lê livros realmente ruins. O primeiro passo
Marx para o público acadêmico americano. De todo modo, escrevi
na t r a d u ç ã o de experiências, seja da escrita de outra pessoa ou de
um livro sobre organizações trabalhistas e líderes trabalhistas - u m
sua p r ó p r i a vida, para a esfera intelectual é dar-lhe forma. A mera
empreendimento politicamente motivado; depois u m livro sobre
n o m e a ç ã o de u m item de experiência muitas vezes o convida a ex-
as classes médias - , u m empreendimento motivado principalmen-
plicá-lo; a mera anotação feita a partir de u m livro é muitas vezes u m
te pelo desejo de expressar m i n h a p r ó p r i a experiência na cidade
estímulo à reflexão. Ao mesmo tempo, é claro, fazer uma anotação
de Nova York desde 1945. Logo a seguir, amigos sugeriram que
é de grande ajuda para sua c o m p r e e n s ã o do que está lendo.
eu completasse uma trilogia escrevendo u m livro sobre as classes
Suas a n o t a ç õ e s podem v i r a ser, como as minhas, de dois
superiores. Creio que a possibilidade estivera em minha mente; eu
tipos: ao ler certos livros muito importantes, você tenta apreender
havia lido Balzac de maneira esporádica, especialmente durante
a estrutura da a r g u m e n t a ç ã o do autor, e toma notas de acordo
os anos 1940, e ficara m u i t o seduzido pela tarefa que ele se atri-
com isso; com maior freqüência, p o r é m , e depois de alguns anos
buíra de "cobrir" todas as classes e tipos principais da sociedade
de trabalho independente, em vez de ler livros inteiros, você lê
de sua época. Eu t a m b é m havia escrito u m artigo sobre "A elite
muitas vezes partes de muitos livros do ponto de vista de algum
comercial" e colhido e organizado estatísticas sobre as carreiras
tema ou tópico particular em que está interessado e com relação
dos homens mais eminentes na política norte-americana desde a
ao qual tem planos em seu arquivo. Portanto, t o m a r á notas que
Constituição. Estas duas tarefas foram inspiradas principalmente
n ã o representam propriamente os livros que lê. Estará usando
por u m s e m i n á r i o sobre história americana.
tal idéia particular, tal fato particular, para a realização de seus p r ó p r i o s projetos.
Ao redigir esses vários artigos e livros e preparar cursos sobre estratificação, houve, é claro, u m resíduo de idéias e fatos a respeito das classes superiores. Especialmente no estudo da estratificação
Como esse arquivo - que até agora você deve achar mais parecido
social, é difícil evitar ir além do nosso assunto imediato, porque "a
com uma curiosa espécie de diário "literário" - é usado na p r o d u ç ã o
realidade" de qualquer u m dos estratos consiste em grande parte
intelectual? A m a n u t e n ç ã o de u m arquivo assim é p r o d u ç ã o inte-
em suas relações com os outros. Assim, comecei a pensar em u m
lectual. É u m repertório sempre crescente de fatos e idéias, desde
livro sobre a elite.
os mais vagos aos mais acabados. Por exemplo, a primeira coisa
No entanto, n ã o foi "realmente" assim que "o projeto" surgiu;
que fiz após decidir iniciar u m estudo sobre a elite foi elaborar
o que realmente aconteceu foi (1) que a idéia e o plano saíram de
u m esquema tosco baseado numa lista de tipos de pessoas que eu
meus arquivos, pois comigo todos os projetos c o m e ç a m e terminam
queria compreender.
com eles, e livros são simplesmente resultados organizados a partir
Exatamente como e por que eu decidi fazer esse estudo pode
do trabalho c o n t í n u o que os integra; (2) que após algum tempo,
sugerir uma maneira pela qual nossas experiências de vida alimen-
todo o conjunto de problemas envolvidos passou a me dominar.
tam nosso trabalho intelectual. N ã o me lembro quando passei a
Após fazer meu esquema tosco, examinei todo o meu arquivo,
me interessar tecnicamente por "estratificação", mas creio que deve
não apenas aquelas partes que obviamente tinham relação com
Sobre o artesanato intelectual 29
28 Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
meu tópico, mas t a m b é m as que pareciam n ã o ter absolutamen-
pontos-chave, ancoram afirmações sobre a forma e a direção do
te nenhuma relevância. Muitas vezes conseguimos estimular a
assunto. Assim a decisão - quais são esses pontos de ancoragem? -
imaginação reunindo itens antes isolados, encontrando conexões
nâo pode ser tomada até que os materiais existentes sejam retra-
insuspeitadas. Fiz novas unidades no arquivo para esse â m b i t o
lulhados e formulações hipotéticas gerais construídas. Ora, entre os "materiais existentes" encontro nos arquivos
particular de problemas, o que, é claro, levou a novos arranjos de outras partes do arquivo.
três tipos relevantes para meu estudo da elite: várias teorias que
Ao rearranjar u m sistema de arquivamento, você muitas vezes
tém a ver com o tópico; materiais já trabalhados por outros como
descobre que está, por assim dizer, alargando sua i m a g i n a ç ã o .
evidências para aquelas teorias; e materiais já reunidos e em d i -
Aparentemente isso ocorre por meio de sua tentativa de combi-
versos estágios de centralização acessível, mas ainda n ã o tornados
nar várias idéias e notas sobre diferentes tópicos. É uma espécie
teoricamente pertinentes. Somente após concluir u m primeiro
de lógica de c o m b i n a ç ã o , e o "acaso" por vezes desempenha u m
rascunho de uma teoria com a ajuda de materiais existentes como
papel curiosamente grande nela. De uma maneira relaxada, você
esses é que posso situar eficientemente minhas p r ó p r i a s afirma-
tenta enredar seus recursos intelectuais, como exemplificados no
ções e palpites principais e projetar pesquisas para testá-los - e
arquivo, com os novos temas.
talvez n ã o tenha de fazê-lo, embora saiba, é claro, que terei mais
No presente caso, comecei t a m b é m a usar minhas observações
tarde de me mover oscilando entre materiais existentes e minha
e experiências diárias. Pensei primeiro em minhas experiências
p r ó p r i a pesquisa. Qualquer f o r m u l a ç ã o final deve n ã o somente
anteriores relacionadas a problemas da elite, depois fui conversar
"cobrir os dados" até onde eles estão disponíveis e são do meu
com aqueles que, a meu ver, podiam ter experimentado ou con-
conhecimento, como t a m b é m , de alguma maneira, positiva ou
siderado tais questões. De fato, comecei nessa altura a alterar o
negativamente, levar em conta as teorias disponíveis. Por vezes é
caráter de minha rotina de maneira a incluir nela (1) pessoas que
fácil "levar em conta" uma idéia mediante sua simples confrontação
estavam entre aqueles que eu queria estudar, (2) pessoas em estreito
com u m fato que a subverte ou apoia; por vezes uma análise ou
contato com eles e (3) pessoas usualmente interessadas neles de
delimitação detalhada é necessária. Por vezes posso sistematica-
alguma maneira profissional.
mente organizar as teorias disponíveis, como uma série de escolhas,
N ã o sei quais são as plenas condições sociais para a melhor p r o d u ç ã o intelectual, mas certamente cercar-se de u m círculo de pessoas dispostas a ouvir e falar - e por vezes elas terão de ser personagens imaginários - é uma delas. De qualquer modo, tento me cercar de todo o ambiente pertinente - social e intelectual - que suponho ser capaz de me levar a pensar bem ao longo das linhas
e assim permitir a seu â m b i t o organizar o p r ó p r i o problema.
1
Por vezes, p o r é m , só permito que tais teorias venham à baila em meu p r ó p r i o arranjo, em contextos muito diferentes. De todo modo, no livro sobre a elite tive de levar em conta o trabalho de homens como Mosca, Schumpeter, Veblen, Marx, Lasswell, Michels, Weber e Pareto.
de meu trabalho. Esse é u m sentido das observações que fiz acima sobre a fusão de vida pessoal e intelectual. 1
Um bom trabalho em ciência social hoje n ã o é, e usualmente n.io p< »de ser, composto de uma "pesquisa" empírica bem delineada. Ele se lonipoe antes de u m grande n ú m e r o de estudos que, em
Ver, por exemplo, C.W. Mills, White Collar, Nova York, Oxford University Press, 1951, Capítulo 13. Fiz o mesmo tipo de coisa, em minhas notas, com Lederer e Gasset vs. "teóricos da elite" como duas reações à doutrina democrática dos séculos XVIII e XIX.
30
Sobre o artesanato intelectual 31
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
Examinando algumas das notas sobre esses autores, constato
Algo que me ocorre (penso que é o cerne dos problemas de definição
que elas oferecem três tipos de formulações: (a) a partir de algu-
que Mosca nos apresenta) é isto: entre o século X I X e o século XX,
mas, aprendemos diretamente, repetindo sistematicamente o que
testemunhamos uma m u d a n ç a de uma sociedade organizada como 1
o autor diz sobre certos pontos ou sobre u m todo; (b) há algumas
e 4 para uma sociedade estabelecida mais em termos de 3 e 2. Passamos
que aceitamos o u refutamos, dando razões e argumentos; (c) há
de u m Estado de elite para u m Estado de organização, em que a elite
outras que usamos como uma fonte de sugestões para nossas p r ó -
não é mais tão organizada nem tão unilateralmente poderosa, e a massa
prias elaborações e projetos. Isso envolve apreender u m ponto e em
é mais organizada e mais poderosa. Algum poder foi criado nas ruas, e
seguida perguntar: como posso p ô r isso numa forma passível de
em torno dele giraram todas as estruturas sociais e suas "elites". E que
teste e como posso testá-lo? Como posso usar isso como u m centro a
seção da classe dominante é mais organizada que o bloco ruralista?
partir do qual me estender - como uma perspectiva da qual detalhes
Esta não é uma pergunta retórica: posso respondê-la de uma e de outra
descritivos emergem como pertinentes? É nessa m a n i p u l a ç ã o de
maneira neste momento; é uma questão de grau. Tudo o que desejo
idéias existentes, é claro, que nos sentimos em continuidade com
agora é colocar a questão.
trabalhos anteriores. Aqui estão dois excertos de notas preliminares sobre Mosca, que podem ilustrar o que tentei descrever:
Mosca defende uma idéia que me parece excelente e merecedora de desenvolvimento: segundo ele, há freqüentemente na "classe dominante" uma clique mais elevada e há esse segundo estrato, mais amplo, com
Além de suas anedotas históricas, Mosca apoia sua tese com esta
o qual (a) o topo está em contato contínuo e imediato, e com o qual
asserção: é o poder de organização que permite à minoria sempre
(b) partilha idéias e sentimentos, e portanto, acredita ele, planos de
prevalecer. Há minorias organizadas e elas governam coisas e homens.
ação (p.430). Verificar se em alguma outra parte do livro ele estabelece
Há maiorias desorganizadas e elas são governadas. Mas: por que não
outros pontos de conexão. É a clique recrutada em grande parte a partir
considerar t a m b é m (1) a minoria organizada, (2) a maioria organizada,
do segundo nível? É o topo, de alguma maneira, responsável por esse
(3) a minoria desorganizada, (4) a maioria desorganizada? Isto merece
segundo estrato, ou pelo menos sensível a ele?
2
exploração completa. A primeira coisa que deve ser elucidada: qual é
Agora esqueçamos Mosca: em outro vocabulário, temos, (a) a elite, a
exatamente o sentido de "organizada"? Penso que Mosca quer dizer:
que nos referimos aqui como essa clique mais elevada, (b) os que contam
capaz de políticas e ações mais ou menos contínuas e coordenadas. Nesse
e (c) todos os outros. O pertencimento ao segundo e ao terceiro grupo,
caso, sua tese está correta por definição. Ele diria t a m b é m , acredito, que
neste esquema, é definido pelo primeiro.^ o segundo pode ser bastante
uma "maioria organizada" é impossível porque isso significaria apenas
variado em seu tamanho, composição e relações com o primeiro e o
que novos líderes, novas elites, estariam no comando dessas organizações
terceiro. (Qual é, aliás, a extensão das variações das relações de (b) com
majoritárias, e ele imediatamente recolheria esses líderes em sua "Classe
(a) e com (c)? Examinar Mosca em busca de indicações, e desenvolver
Dominante". Ele as chama de "minorias dirigentes", e tudo isso é material
isto considerando-o sistematicamente.)
bastante superficial comparado à sua grande formulação.
Este esquema pode me permitir levar em conta de maneira mais ordenada as diferentes elites, que são elites de acordo com as várias dimensões da estratificação. Também, é claro, captar de uma maneira
1
Há também afirmações em Mosca sobre leis psicológicas que supostamente apoiam seu ponto de vista. Observe seu uso da palavra "natural". Mas isto não é c entrai e, ademais, não merece ser considerado.
nítida e significativa a distinção paretiana entre elites governantes e nãogovernantes, de uma maneira menos formal que Pareto. Certamente
Sobre o artesanato intelectual 33
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
muitas pessoas do status mais alto estariam pelo menos no segundo.
Ora, n ã o gosto de fazer trabalho e m p í r i c o a menos que isso
Esse seria o caso dos muito ricos. A Clique ou A Elite se referiria a poder,
seja inevitável. Quando n ã o se tem uma equipe de assistentes, é
ou a autoridade, segundo o caso. A elite neste vocabulário significaria
muito trabalhoso; quando se emprega uma equipe, esta muitas
sempre a elite do poder. As outras pessoas do estrato superior seriam
vezes dá ainda mais trabalho.
as classes superiores ou os círculos superiores.
Na c o n d i ç ã o intelectual das ciências sociais hoje, há tanto a
Assim, de certa maneira, talvez, possamos usar isto em conexão com
fazer em m a t é r i a de " e s t r u t u r a ç ã o " inicial (deixemos que a pa-
dois problemas principais: a estrutura da elite; e as relações conceituais -
lavra represente o tipo de trabalho que estou descrevendo) que
mais tarde, talvez, as relações substantivas - entre estratificação e teorias
muita "pesquisa empírica" está fadada a ser rala e desinteressante.
da elite. (Desenvolver isto.)
Cirande parte dela, de fato, é u m exercício formal para estudantes
Do ponto de vista do poder, é mais fácil distinguir aqueles que
iniciantes, e por vezes uma atividade útil para aqueles que n ã o são
contam daqueles que governam. Quando tentamos fazer a primeira
capazes de lidar com os problemas substantivos mais difíceis da
coisa, escolhemos os níveis mais elevados como uma espécie de
ciência social. N ã o há mais virtude na investigação empírica que
agregado frouxo e somos guiados por posição. Mas quando tentamos
na leitura. O objetivo da investigação empírica é d i r i m i r discor-
a segunda, devemos indicar clara e detalhadamente como eles exercem
dâncias e dúvidas acerca de fatos, e assim tornar discussões mais
poder e como exatamente se relacionam com as instrumentalidades
frutíferas ao basear todos os lados de maneira mais substantiva.
sociais através das quais o poder é exercido. Lidamos t a m b é m mais
Fatos disciplinam a razão; mas a razão é vanguarda em qualquer
com pessoas que com posições, ou pelo menos temos de levar pessoas
campo do saber.
em conta.
Embora você nunca vá conseguir obter o dinheiro para fazer
Ora, o poder nos Estados Unidos envolve mais do que uma elite.
muitos dos estudos empíricos que planeja, é necessário que con-
Como podemos julgar as posições relativas dessas várias elites? Isso
tinue a planejá-los. Porque depois que você planeja u m estudo
depende do ponto em debate e das decisões tomadas. Uma elite vê outra
empírico, mesmo que n ã o o realize por completo, ele o leva a uma
como constituída por aqueles que contam. H á reconhecimento m ú t u o
nova busca por dados, que muitas vezes resulta uma insuspeitada
entre a elite de que outras elites contam; de uma maneira ou de outra
relevância para seus problemas. Assim como é tolice projetar u m
elas são pessoas importantes umas para as outras. Projeto: escolher três
estudo de campo se for possível encontrar a resposta numa biblio-
ou quatro decisões-chave da última década - lançar a bomba atômica,
teca, é tolice pensar que esgotamos os livros antes que os tenhamos
reduzir ou aumentar a produção de aço, a greve da G.M. de 1945 - e
traduzido em estudos empíricos apropriados, o que significa, sim-
desvendar em detalhe o pessoal envolvido em cada uma delas. Poderia
plesmente, em questões de fato.
usar "decisões" e tomada de decisões como pretextos para entrevistas quando sair para as [pesquisas] intensivas.
Os projetos empíricos necessários para meu tipo de trabalho devem prometer, em primeiro lugar, relevância para o esboço inicial, sobre o qual escrevi acima; eles t ê m de confirmá-lo em sua
Chega u m momento no curso do seu trabalho em que você n ã o quer
forma original ou provocar sua modificação. Ou, para expressar isto
mais saber de outros livros. Tudo que queria deles está registrado
de maneira mais pretensiosa, devem ter implicações para constru-
em suas notas e resumos; e nas margens dessas notas, bem como,
ções teóricas. E m segundo lugar, os projetos devem ser eficientes
num arquivo separado, estão idéias para estudos empíricos.
e bem-feitos e, se possível, engenhosos. Quero dizer com isto que
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
Sobre o artesanato intelectual
devem prometer produzir uma grande quantidade de material em
de u m problema. A consciência popular do problema - o problema
c o m p a r a ç ã o ao tempo e ao esforço que envolvem.
como uma questão e como uma dificuldade - deve ser cuidado-
Mas como isso deve ser feito? A maneira mais e c o n ô m i c a
samente levada em conta: ela é parte do problema. Formulações
de formular u m problema é fazê-lo de forma a resolvê-lo tanto
eruditas, é claro, devem ser examinadas com especial atenção e/ou
quanto possível unicamente por raciocínio. Mediante raciocínio
esgotadas na reformulação que está sendo feita, ou rejeitadas.
nós tentamos (a) isolar cada questão que de fato resta; (b) fazer essas perguntas de modo que as respostas prometam nos ajudar a resolver mais problemas por meio de mais raciocínio.
3
Para considerar problemas desta maneira, você tem de prestar atenção a quatro estágios; mas geralmente é melhor passar por todos
Antes de decidir quanto aos estudos empíricos necessários para o trabalho prestes a se realizar, c o m e ç o a esboçar u m projeto mais amplo dentro do qual vários estudos de pequena escala c o m e ç a m a surgir. Novamente, seleciono u m trecho dos arquivos:
os quatro muitas vezes do que ficar preso em qualquer u m deles por tempo demais. Os passos são: (1) os elementos e definições
Ainda não estou em condições de estudar os círculos superiores como
que, com base em sua percepção geral do tópico, questão, ou área
um todo de uma maneira sistemática e empírica. O que faço então é
de interesse, você pensa que terá de levar em conta; (2) as relações
expor algumas definições e procedimentos que formam uma espécie
lógicas entre essas definições e elementos; a c o n s t r u ç ã o desses
de projeto ideal para u m estudo como esse. Em seguida posso tentar,
pequenos modelos preliminares, diga-se de passagem, fornece a
primeiro, colher materiais existentes que se aproximam desse projeto;
melhor oportunidade para o exercício da imaginação sociológica;
segundo, pensar em maneiras convenientes de colher materiais, dados
(3) a eliminação de idéias falsas devido a omissões de elementos
os índices existentes, que o satisfaçam em pontos decisivos; e terceiro,
necessários, a definições de termos i m p r ó p r i a s ou obscuras, ou a
à medida que avanço, tornar mais específicas as pesquisas empíricas
ênfase indevida em alguma parte da série e suas extensões lógicas;
completas que seriam afinal necessárias.
(4) formulação e reformulação das questões que de fato restam.
Os círculos superiores deveriam, é claro, ser definidos em termos
O terceiro passo, aliás, é uma parte muito necessária, mas
de variáveis específicas. Formalmente - esse é mais ou menos o modo de
freqüentemente negligenciada de qualquer formulação adequada
Pareto - eles são as pessoas que "têm" a maior parte de tudo que está disponível de qualquer valor ou conjunto de valores dado. Tenho portanto
3
Talvez eu deva dizer as mesmas coisas numa linguagem mais pretensiosa, a fim de tornar evidente para os que não sabem como tudo isto pode ser importante, a saber: Situações problemáticas têm de ser formuladas com a devida atenção a suas implicações teóricas e conceituais, e também aos paradigmas apropriados de pesquisa empírica e modelos adequados de verificação. Esses paradigmas e modelos, por sua vez, devem ser construídos de maneira a permitir que mais implicações teóricas e conceituais sejam extraídas de seu emprego. As implicações teóricas e conceituais de implicações conceituais deveriam ser primeiro inteiramente exploradas. Isso requer que o cientista social especifique cada uma dessas implicações e as considere em relação a cada uma das outras, mas também de tal maneira que ela se ajuste ao paradigma de pesquisa empírica e aos modelos de verificação.
de tomar duas decisões: que variáveis devo tomar como critérios, e o que entendo por "a maior parte"? Depois que tiver decidido quanto às minhas variáveis, devo construir os melhores indicadores que puder, se possível indicadores quantificáveis, para distribuir a população em termos deles; somente então posso começar a decidir o que entendo por "a maior parte". Pois isso deveria, em parte, ser deixado para determinação mediante inspeção empírica das várias distribuições, e suas superposições. Minhas variáveis-chave deveriam, de início, ser gerais o bastante para me dar alguma amplitude na escolha de indicadores, mas específicas o bastante para incitar a busca por indicadores empíricos. À medida que
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
Sobre o artesanato intelectual
prossigo, terei de ir e vir entre concepções e indicadores, guiado pelo
III. Poder refere-se à realização da vontade de alguém, mesmo que
desejo de não perder significados pretendidos, sendo p o r é m bastante
outros resistam. Como status, isso não foi bem indexado. N ã o creio
específico com relação a eles. Aqui estão as quatro variáveis weberianas
que possa mantê-lo como uma dimensão única, mas terei de falar (a)
com que começarei:
de autoridade formal - definida por direitos e poderes de cargos em
I. Classe refere-se a fontes e montantes de renda. Assim, precisarei
várias instituições, especialmente militares, políticas e econômicas.
de distribuições de propriedade e de renda. O material ideal aqui (que é
E (b) poderes cujo exercício é informalmente reconhecido, mas que
muito escasso, e infelizmente desatualizado) é uma tabulação cruzada de
não estão formalmente instituídos - líderes de grupos de pressão,
fonte e montante de renda anual. Assim, sabemos que X % da população
propagandistas com amplos meios de comunicação à sua disposição, e
recebeu durante 1936 Y milhões oumais.eque Z % de todo esse dinheiro
assim por diante.
era de bens imóveis, W % de dividendos, Q% de proventos e salários. Ao
IV. Ocupação refere-se a atividades remuneradas. Aqui, novamente,
longo dessa dimensão de classe, posso definir os círculos superiores - os
devo escolher exatamente que característica da ocupação eu deveria
que têm a maior parte - ou como aqueles que recebem certos montantes
considerar, (a) Se eu usar as rendas médias de várias ocupações para
de renda durante um dado tempo - ou como aqueles que compõem os
ordená-las, estarei evidentemente usando a ocupação como um índice
2% mais elevados da pirâmide de renda. Examinar registros do Tesouro
e como a base da classe. De maneira semelhante (b) se usar o status ou
e listas de grandes contribuintes do imposto de renda. Ver se as tabelas
o poder tipicamente associados a diferentes ocupações, estarei então
do T N E O sobre fontes e montante de rendas podem ser atualizadas.
usando ocupações como indicadores e bases de poder, habilidade ou
//. Status refere-se aos graus de deferência recebidos. Para isto, não
talento. Mas essa não é, de forma alguma, uma maneira fácil de classificar
há indicadores simples ou quantificáveis. Os indicadores existentes
as pessoas. A habilidade - não mais que o status - não é algo homogêneo
exigem entrevistas pessoais para sua aplicação, estão limitados até
do qual há uma quantidade maior ou menor. Tentativas de tratá-la dessa
agora a estudos de comunidades locais e, de qualquer maneira, não são
maneira têm sido usualmente expressas em termos do tempo necessário
bons. Há o problema adicional de que, diferentemente de classe, status
para a aquisição de várias habilidades, e talvez tenhamos de nos contentar
envolve relações sociais: há pelo menos alguém para receber e alguém
com isso, embora eu espere conseguir pensar em algo melhor.
para prestar a deferência.
Estes são os tipos de problema que terei de resolver para definir
É fácil confundir publicidade com deferência - ou melhor, ainda não
analítica e empiricamente os círculos superiores, em termos dessas
sabemos se o volume de publicidade deveria ou não ser usado como um
quatro variáveis-chave. Para fins de planejamento, suponhamos que
indicador da posição de status, embora seja o mais facilmente disponível.
as tenha resolvido de maneira satisfatória e que tenha distribuído a
(Por exemplo: em um ou dois dias sucessivos de meados de março de 1952,
população em termos de cada uma delas. Eu teria então quatro conjuntos
as seguintes categorias de pessoas foram nominalmente mencionadas no
de pessoas: aquelas no ponto mais alto em classe, status, poder e
New York Times - ou em páginas selecionadas - desenvolver isto.)
habilidade. Suponhamos ademais que distingui os 2% mais elevados de cada distribuição como um círculo superior. Defronto-me então com esta questão passível de resposta empírica: quanta superposição, se é
' Temporary National Economic Committee: comitê conjunto do Poder I w Utivo e do Congresso norte-americanos que funcionou entre 1938 e 1941 pau estudar os monopólios e a concentração de poder econômico, bem como l.i/ci us omcndaçòes para legislação sobre o assunto. (N.O.)
que há alguma, existe entre cada uma dessas quatro distribuições? Uma gama de possibilidades pode ser situada dentro deste simples diagrama: (+ = 2% mais elevados; - = 98% mais baixos).
37
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
Sobre o artesanato intelectual
de nível de status - consiste naqueles que estão nessa posição há pelo
classe
menos duas gerações. Também (b) quero deixar em aberto a questão de se
+
status
status
eu deveria ou não construir "um estrato" não somente em termos de uma
1 1B B B +
+ habilidade poder - habilidade
interseção de diversas variáveis, mas também, em conformidade com
1
2
3
4
a negligenciada definição de "classe social" de Weber, como composto
BI
5
6
7
8
por aquelas posições entre as quais há "mobilidade típica e fácil". Assim,
+
9
10
11
12
as ocupações inferiores de colarinho-branco e os empregos médios e
-
13
14
15
16
5
superiores dos trabalhadores assalariados em certas indústrias parecem formar um estrato nesse sentido.
Este diagrama, se eu tivesse os materiais para preenchê-lo, conteria
No curso da leitura e análise das teorias de outros, proje-
dados fundamentais e muitos problemas importantes para um estudo
tando a pesquisa ideal e examinando atentamente os arquivos,
dos círculos superiores. Forneceria chaves para muitas questões de
você começará a redigir uma lista de estudos específicos. Alguns
definição e substantivas.
deles são grandes demais, difíceis de manejar, e acabarão por ser
Não tenho os dados, e n ã o serei capaz de obtê-los - o que torna
pesarosamente abandonados; alguns t e r m i n a r ã o como materiais
ainda mais importante que eu especule sobre eles, pois no curso de
para u m parágrafo, uma seção, uma frase, u m capítulo; alguns se
semelhante reflexão, se ela for guiada pelo desejo de me aproximar das
t o r n a r ã o temas que p e r m e a r ã o u m livro inteiro. Aqui estão mais
exigências empíricas de um projeto ideal, encontrarei áreas importantes,
uma vez as notas iniciais para vários desses projetos:
em que talvez seja capaz de colher materiais pertinentes como pontos de ancoragem e guias para reflexão posterior.
(1) Uma análise do gerenciamento do tempo de um típico dia de trabalho
Há dois pontos adicionais que devo acrescentar a este modelo
de dez executivos de alto nível de grandes corporações, e o mesmo para
geral para torná-lo formalmente acabado. Concepções completas de
dez administradores federais. Essas observações serão combinadas com
estratos superiores requerem atenção a duração e mobilidade. A tarefa
entrevistas detalhadas de "história de vida". O objetivo aqui é descrever as
aqui é determinar posições (1-16) entre as quais há típico movimento
principais rotinas e decisões, pelo menos em parte em termos do tempo
de indivíduos e grupos - dentro da geração presente e entre as últimas
dedicado a elas, e obter uma compreensão dos fatores relevantes para
duas ou três gerações.
as decisões tomadas. O procedimento variará naturalmente segundo o
Isto introduz a dimensão temporal de biografia (ou trajetórias de
grau de cooperação obtido, mas idealmente envolverá, primeiro, uma
carreira) e de história no esquema. Estas n ã o são meramente questões
entrevista em que a história de vida e a situação atual do indivíduo são
empíricas adicionais: são t a m b é m pertinentes no tocante a definições.
elucidadas; segundo, observações do dia, sentando-nos realmente num
Pois (a) queremos deixar em aberto se, ao classificar pessoas em termos
canto do escritório do entrevistado, e acompanhado-o de um lado para
de qualquer uma das quatro variáveis-chave, devemos ou n ã o definir
outro; terceiro, uma entrevista mais prolongada naquela noite ou no dia
nossas categorias em termos do tempo pelo qual elas, ou suas famílias, ocuparam a posição em questão. Por exemplo, eu poderia querer decidir 5
que os 2% superiores de status - ou pelo menos que um tipo importante
No original, "white-collarpeople", que pode ser aproximadamente traduzido por "trabalhadores assalariados de classe média". (N.O.)
39
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
Sobre o artesanato intelectual 41
seguinte em que examinamos todo o dia e investigamos os processos subjetivos envolvidos no comportamento externo que observamos.
à medida que avançamos, temos, é claro, de ajustar nossa meta ao que é acessível.
(2) Uma análise de fins de semana da classe mais alta, em que as rotinas são atentamente observadas e acompanhadas por entrevistas investigativas com o indivíduo e outros membros de sua família na segunda-feira seguinte.
Depois que esses projetos foram anotados, comecei a ler obras históricas sobre grupos de cúpula, tomando notas aleatórias (e n ã o arquivadas) e interpretando a leitura. Você n ã o precisa realmente estudar o tópico em que está trabalhando; pois, como disse, de-
Para ambas as tarefas, tenho contatos bastante bons e, é claro, bons contatos, se adequadamente tratados, levam a contatos ainda melhores. [Acrescentado em 1957: isto se revelou uma ilusão.]
pois que o escolhe, ele está em toda parte. Você se torna sensível a seus temas; passa a vê-los e ouvi-los sempre em sua experiência, sobretudo, segundo uma impressão que sempre tenho, em áreas
(3) U m estudo das verbas de representação e outros privilégios que, juntamente com salários e outros rendimentos, formam o padrão e o estilo de vida dos níveis superiores. A idéia aqui é obter algo concreto sobre "a burocratização do consumo", a transferência de despesas privadas para contas empresariais.
aparentemente n ã o relacionadas. Até os meios de c o m u n i c a ç ã o de massa, especialmente filmes ruins, romances baratos, revistas ilustradas e programas noturnos de rádio, revestem-se de uma nova i m p o r t â n c i a para você.
(4) Atualizar o tipo de informação contido em livros como Américas
Mas, você pode perguntar, como surgem as idéias? Como a ima-
Sixty Families, de Lundberg, que diz respeito às declarações do imposto
ginação é estimulada a reunir todas as imagens e fatos, tornar as
de renda para 1923.
imagens pertinentes e emprestar sentido aos fatos? N ã o creio que
(5) Colher e sistematizar, a partir de registros do Tesouro e outras fontes governamentais, a distribuição de vários tipos de propriedade privada por montantes possuídos.
possa realmente responder a isto; posso apenas falar sobre as condições gerais e algumas técnicas simples que pareceram aumentar minhas chances de produzir alguma coisa.
(6) U m estudo da trajetória de carreira dos presidentes, de todos
A i m a g i n a ç ã o sociológica, quero lhe lembrar, consiste em
os ministros e de todos os membros da Suprema Corte. Já tenho isto
parte considerável na capacidade de passar de uma perspectiva
em cartões I B M desde o período constitucional até o segundo mandato
para outra, e, nesse processo, consolidar uma visão adequada de
de Truman, mas quero expandir os itens usados e analisar novamente
uma sociedade total e de seus componentes. É essa imaginação, é
o material.
claro, que distingue o cientista social do mero técnico. Técnicos adequados podem ser instruídos em poucos anos. A imaginação
H á outros - cerca de 35 - "projetos" deste tipo (por exemplo,
sociológica t a m b é m pode ser cultivada; por certo ela raramente
comparação das quantias gastas nas eleições presidenciais de 1896 e
ocorre sem grande quantidade de trabalho, muitas vezes rotineiro.
1952, c o m p a r a ç ã o detalhada de Morgan de 1910 e Kaiser de 1950,
7
6
e algo concreto sobre as carreiras de "almirantes e generais"). Mas,
H á no entanto uma qualidade inesperada em relação a ela, talvez porque sua essência seja a c o m b i n a ç ã o de idéias que n i n g u é m supunha que fossem combináveis - digamos, uma mistura de
6
Provavelmente Mills refere-se a uma comparação entre capitalistas norteamericanos de dois períodos: o banqueiro J.P. Morgan, em 1919, e o industrial Henry J. Kaiser, em 1950. (N.O.)
7
Ver os excelentes artigos de Hutchinson sobre "insight" e "esforço criativo" em Study of Interpersonal Relations, organizado por Patrick Mullahy, Nova York, Nelson, 1949.
42
Sobre o artesanato intelectual 43
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
idéias da filosofia alemã e da economia britânica. H á u m estado
nar os termos exatos com que quer trabalhar. Mas esse interesse pelas
de espírito lúdico por trás desse tipo de c o m b i n a ç ã o , bem como
palavras vai ainda mais longe. Em todo trabalho, mas especialmente
u m esforço verdadeiramente intenso para compreender o mundo,
no exame de formulações teóricas, você tentará prestar rigorosa
que em geral falta ao técnico como tal. Talvez ele seja bem treinado
atenção ao nível de generalidade de cada termo-chave, e muitas
demais, de maneira precisa demais. Como só se pode ser treinado
vezes considerará útil fracionar uma formulação de alto nível em
no que já é sabido, o treinamento por vezes incapacita uma pessoa
significados mais concretos. Quando isso é feito, a formulação m u i -
para aprender novos modos; torna-a rebelde contra o que está
tas vezes se divide em dois ou três componentes, todos situados ao
fadado a ser de início frouxo e até desleixado. Mas você deve se
longo de diferentes dimensões. Você tentará t a m b é m subir no nível
apegar a essas imagens e noções vagas, se elas forem suas, e deve
de generalidade: eliminar os qualificadores específicos e examinar
elaborá-las. Pois é nessas formas que idéias originais quase sempre
a formulação ou a inferência reformadas de maneira mais abstrata,
aparecem pela primeira vez, quando aparecem.
para ver se pode estendê-las ou elaborá-las. Assim, a partir de cima e a partir de baixo, você tentará investigar, em busca de significado
H á maneiras definidas, creio eu, de estimular a imaginação sociológica:
mais claro, cada aspecto e implicação da idéia.
3. Muitas das noções gerais que você encontra, quando reflete sobre 1. No nível mais concreto, o rearranjo do arquivo, como já disse, é
elas, serão dispostas em tipos. Uma nova classificação é o início
uma maneira de estimular a imaginação. Você simplesmente junta
usual de desenvolvimentos frutíferos. A habilidade para criar tipos
pastas até e n t ã o separadas, misturando seus c o n t e ú d o s , depois os
e depois procurar as condições e conseqüências de cada tipo irá,
reorganiza. Tente fazer isso de uma maneira mais ou menos rela-
em suma, tornar-se u m procedimento a u t o m á t i c o para você. E m
xada. A freqüência com que e a extensão em que você rearranja os
vez de contentar-se com classificações existentes, em particular
arquivos d e p e n d e r ã o , é claro, dos diferentes problemas e de q u ã o
aquelas de senso comum, você p r o c u r a r á por seus denominadores
bem eles estão se desenvolvendo. Mas a mecânica do procedimento
comuns e por fatores diferenciadores dentro delas e entre elas. Bons
é simples assim. Você terá em mente, é claro, os vários problemas
tipos requerem que os critérios de classificação sejam explícitos e
em que está trabalhando ativamente, mas t e n t a r á t a m b é m ser
sistemáticos. Para torná-los assim você precisa desenvolver o hábito
passivamente receptivo a conexões imprevistas e n ã o planejadas.
da classificação cruzada.
8
A técnica da classificação cruzada n ã o é, evidentemente, limita2. Uma atitude lúdica em relação às expressões e palavras com que
da a materiais quantitativos; de fato, é a melhor maneira de imaginar
várias questões são definidas freqüentemente libera a imaginação.
e encontrar novos tipos, bem como para criticar e elucidar antigos.
Procure sinônimos para cada u m de seus termos-chave em dicioná-
Gráficos, tabelas e diagramas de tipo qualitativo n ã o são apenas
rios, bem como em livros técnicos, para conhecer a plena extensão
maneiras de expor o trabalho já feito; são muitas vezes instrumentos
de suas conotações. Este hábito simples o estimulará a elaborar os
genuínos de p r o d u ç ã o . Eles elucidam as "dimensões" dos tipos, que
termos do problema e, em conseqüência, a defini-los com menos palavras e mais precisão. Pois somente se conhecer os vários sentidos que poderiam ser dados a termos ou expressões, você poderá selecio-
8
Toda classificação que considera pelo menos dois atributos ao mesmo tempo.
(N.O.)
44
Sobre o artesanato Intelectual e outros ensaios
Sobre o artesanato Intelectual
t a m b é m o ajudam a imaginar e construir. 1 )c lato, nos últimos 15 anos, n ã o acredito que tenha escrito mais de uma dúzia de páginas
45
A idéia é usar uma variedade de pontos de vista: você perguntara a si mesmo, por exemplo, como u m cientista político que
de u m rascunho sem u m pouco de classificação cruzada - embora,
leu recentemente abordaria isso, e como o faria aquele psicólogo
é claro, nem sempre e nem mesmo usualmente exiba esses diagra-
experimental, ou aquele historiador? Tentará pensar em termos
mas. A maioria deles fracassa por completo, caso em que você ainda
de uma variedade de pontos de vista e, desse modo, deixar sua
aprende alguma coisa. Quando eles funcionam, ajudam-no a pensar
mente se transformar n u m prisma móvel que capta luz do maior
mais claramente e a escrever mais explicitamente. Eles lhe permitem
n ú m e r o de ângulos possível. Neste contexto, escrever diálogos é
descobrir a extensão e as relações completas dos p r ó p r i o s termos
freqüentemente muito útil.
com que está pensando e dos fatos com que está lidando.
Muitas vezes você se verá pensando contra alguma coisa, e ao
Para u m sociólogo ativo, a classificação cruzada é o mesmo
tentar compreender u m novo campo intelectual, uma das primeiras
que analisar uma frase para u m g r a m á t i c o diligente. De muitas
coisas que certamente pode fazer é expor os principais argumentos.
maneiras, a classificação cruzada é a p r ó p r i a gramática da imagi-
U m dos significados de "estar imerso na literatura" é ser capaz de
nação sociológica. Como toda gramática, é preciso controlá-la e
localizar os adversários e os amigos de cada ponto de vista dis-
n ã o permitir que fuja aos seus propósitos.
ponível. Aliás, n ã o é b o m estar imerso demais na literatura; você pode se afogar nela, como M o r t i m e r Adler. Talvez o importante
4. Muitas vezes você o b t é m os melhores insights ao considerar ex-
seja saber quando deve e quando n ã o deve ler.
tremos - pensando no oposto daquilo que o interessa diretamente. Se você pensa sobre desespero, pense t a m b é m sobre entusiasmo; se
5. O fato de que na classificação cruzada, para efeito de simplici-
estuda os avarentos, estude t a m b é m os perdulários. A coisa mais
dade, você trabalha de início em termos de s i m - o u - n ã o o estimula
difícil no m u n d o é estudar u m ú n i c o objeto; quando você tenta
a pensar em opostos extremos. Isso em geral é b o m , pois a análise
contrastar objetos, o b t é m uma melhor c o m p r e e n s ã o deles e pode
qualitativa n ã o pode, evidentemente, lhe fornecer freqüências
e n t ã o discriminar as dimensões em cujos termos as c o m p a r a ç õ e s
ou magnitudes. Sua técnica e seu objetivo são lhe dar a escala de
são feitas. Você descobrirá que mover-se em vaivém entre a atenção
tipos. Para muitos fins, você n ã o precisa de mais que isso, embora
a essas dimensões e aos tipos concretos é muito esclarecedor. Essa
para alguns, é claro, tenha de alcançar uma idéia mais precisa das
técnica é t a m b é m logicamente segura, pois sem uma amostra,
p r o p o r ç õ e s envolvidas.
afinal, você pode apenas conjecturar sobre freqüências estatísticas:
A liberação da i m a g i n a ç ã o pode por vezes ser a l c a n ç a d a
o que pode fazer é dar a extensão e os tipos principais de algum fe-
mediante a inversão deliberada de seu senso de p r o p o r ç ã o . Se
n ô m e n o , e para isso é mais econômico começar construindo "tipos
alguma coisa parece muito pequena, imagine que é simplesmente
polares", opostos ao longo de várias dimensões. Isto n ã o significa, é claro, que você n ã o vá se esforçar para adquirir e manter u m senso
9
enorme, e pergunte a si mesmo: que diferença isso poderia fazer? E vice-versa para f e n ô m e n o s gigantescos. Que aspecto teriam as
de p r o p o r ç ã o - procurar alguma chave para freqüências de tipos dados. Tentamos continuamente, de fato, combinar essa procura com a busca de indicadores para os quais p o d e r í a m o s encontrar ou coletar estatísticas.
9
Parte disto, aliás, é o que Kenneth Burk, ao discutir Nietzsche, chamou de "perspectiva pela incongruência". Não deixe de ver Burke, Permanence and Change, Nova York, New Republic Books, 1936.
•li)
Sobre o artesanato intelectual
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
aldeias pré-históricas com p o p u l a ç õ e s de 30 milhões? Hoje em
duas coisas são muitas vezes uma só: o modo como você arranja os
dia, pelo menos, eu nunca pensaria em realmente contar o u medir
materiais para apresentação sempre afeta o conteúdo de seu trabalho.
coisa alguma antes de ter jogado com cada u m de seus elemen-
Aprendi a idéia que tenho em mente de u m grande editor, Lambert
tos, condições e conseqüências n u m mundo imaginário em que
Davis, que, suponho, depois de ver o que fiz com ela, n ã o a quereria
pudesse controlar a escala de tudo. Provavelmente é isto o que os
reconhecer como sua filha, p a distinção entre tema e tópico.
estatísticos querem dizer, embora nunca parecem fazê-lo, com
U m tópico é u m assunto, como "as carreiras dos executivos de
aquela frasezinha horrível sobre "conhecer o universo antes de
corporações" o u "o poder fortalecido das autoridades militares" ou
fazer a amostragem".
"o declínio das matriarcas da sociedade". Em geral, a maior parte do que temos a dizer sobre u m tópico pode ser facilmente incluída
6. Seja qual for o problema em que está interessado, você descobrirá
n u m capítulo o u numa seção de u m capítulo. Mas a ordem em
que é útil obter uma c o m p r e e n s ã o comparativa dos materiais. A
que todos os seus tópicos são arranjados muitas vezes o conduz
procura de casos comparáveis, seja numa civilização e n u m período
para a esfera dos temas.
histórico ou em vários, lhe dá direcionamentos. Você nunca pen-
U m tema é uma idéia, em geral de uma tendência notável, uma
saria em descrever uma instituição nos Estados Unidos no século
concepção fundamental, ou uma distinção-chave, como racionali-
XX sem tentar ter em mente instituições similares em outros tipos
dade e razão, por exemplo. Ao trabalhar na construção de u m livro,
de estruturas e períodos. Isto, mesmo que n ã o faça c o m p a r a ç õ e s
quando chega a perceber os dois ou três, ou, conforme o caso, os
explícitas. C o m o tempo, você passará a orientar sua reflexão his-
seis ou sete temas, você saberá que está no controle do trabalho.
toricamente de maneira quase automática. Uma razão para isso é
Reconhecerá esses temas porque eles ficarão insistindo em ser i n -
que muitas vezes o que está examinando é limitado em n ú m e r o :
troduzidos em todos os tipos de tópicos, e terá talvez a impressão
para obter uma c o m p r e e n s ã o comparativa do f e n ô m e n o , tem de
de que são meras repetições. E por vezes é isso que todos eles são!
situá-lo numa moldura histórica. Em outras palavras, a abordagem
Certamente muitas vezes serão encontrados nas partes mais obs-
de tipos contrastantes requer muitas vezes o exame de materiais
curas e confusas, as mais mal escritas, de seu manuscrito.
históricos. Isto por vezes resulta em pontos úteis para uma análise
O que você deve fazer é o r d e n á - l o s e formulá-los de uma
de tendências, ou conduz a uma tipologia de fases. Você usará ma-
maneira geral, tão clara e brevemente quanto possa. Depois, muito
teriais históricos, portanto, em razão do desejo de uma extensão
sistematicamente, deve fazer uma classificação cruzada entre eles e a
mais completa, ou de uma extensão mais conveniente de algum
série completa de seus tópicos. Isto quer dizer que você perguntará,
f e n ô m e n o - com o que me refiro a uma extensão que inclua as
a respeito de cada tópico: como ele é afetado por cada u m desses
variações ao longo de algum conjunto conhecido de dimensões.
temas? E mais: qual é exatamente o significado, se houver algum,
Algum conhecimento da história mundial é indispensável para o
para cada u m desses temas de cada u m dos tópicos?
sociólogo; sem ele, por mais que saiba outras coisas, estará simplesmente incapacitado.
Por vezes u m tema requer u m capítulo o u uma seção para si, talvez ao ser introduzido pela primeira vez o u talvez numa formulação concisa perto do final. Penso que a maioria dos escritores -
7. Finalmente, há u m ponto que tem mais a ver com o ofício de
bem como a maioria dos pensadores sistemáticos - concordaria
compor u m livro do que com a liberação da imaginação. Mas estas
que, em algum ponto, todos os temas deveriam aparecer juntos,
47
48
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
Sobre o artesanato intelectual
uns relacionados aos outros. Muitas vezes, embora n ã o sempre, é
profundos e sutis estão sendo discutidos? Se n ã o , quais são as
possível fazer isso no início de u m livro. Em geral, em qualquer
razões para o que Malcolm Cowley chama apropriadamente de
livro bem c o n s t r u í d o , deve ser feito perto do fim. E, é claro, do
"sociologuês"?" Ele é realmente necessário para seu trabalho? Se
início ao fim, você deveria pelo menos tentar relacionar os temas
for, n ã o há nada que você possa fazer a esse respeito; se n ã o for,
a cada tópico. É mais fácil escrever sobre isto do que fazer, pois em
como pode evitá-lo?
geral n ã o se trata de algo t ã o m e c â n i c o quanto poderia parecer.
Essa falta de pronta inteligibilidade, eu acredito, em geral tem
Mas às vezes é - pelo menos se os temas forem apropriadamente
pouco ou nada a ver com a complexidade do assunto, e absoluta-
ordenados e elucidados. Mas, é claro, esse é o problema. Pois o
mente nada com a profundidade do pensamento. Tem a ver quase
que chamei aqui de temas, no contexto do artesanato literário, é
inteiramente com certas confusões do escritor acadêmico acerca
chamado de idéias no contexto do trabalho intelectual.
de seu p r ó p r i o status.
Por vezes, diga-se de passagem, você pode achar que u m livro
Hoje, em muitos círculos acadêmicos, qualquer pessoa que
n ã o tem realmente nenhum tema. É apenas uma série de tópicos,
tente escrever de uma maneira amplamente inteligível está sujeita a
cercados, é claro, por i n t r o d u ç õ e s metodológicas à metodologia,
ser condenada como " u m mero literato" ou, pior ainda, " u m mero
e introduções teóricas à teoria. Estas são realmente indispensáveis
jornalista". Talvez você já tenha aprendido que estas expressões,
à escrita de livros por homens sem idéias. Assim como a falta de
tão comumente usadas, indicam apenas uma inferência espúria:
inteligibilidade.
superficial, porque legível. O acadêmico nos Estados Unidos está tentando levar uma vida intelectual séria n u m contexto social
^
Sei que você concordará que deveria apresentar seu trabalho numa
que muitas vezes parece inteiramente contra ela. Seu prestígio
linguagem tão simples e clara quanto seu assunto e seu pensamento
deve compensar muitos dos valores dominantes que sacrificou ao
sobre ele o permitam. Mas como talvez tenha notado, uma prosa
escolher uma carreira acadêmica. O prestígio que reivindica fica
empolada e polissilábica parece prevalecer nas ciências sociais.
facilmente ligado à sua auto-imagem como "cientista". Ser chamado
Suponho que os que a usam acreditam que estão imitando a
de u m "mero jornalista" o faz sentir-se indigno e superficial. É essa
"ciência física" e n ã o percebem que grande parte dessa prosa n ã o é
situação, acredito, que está muitas vezes no fundo do vocabulário
totalmente necessária. De fato, foi dito, e com razão, que há "uma
rebuscado e da maneira complicada cie falar e escrever. É menos
grave crise na capacidade de ler e escrever" - uma crise com que os
difícil aprender essa maneira que n ã o o fazer. Ela se tornou uma
1
cientistas sociais estão muito envolvidos. " Podemos atribuir essa linguagem peculiar ao fato de que questões, conceitos e m é t o d o s
convenção - os que não a usam estão sujeitos a desaprovação moral. Pode ser que ela seja o resultado de u m cerramento de fileiras acadêmico por parte dos medíocres, que, compreensivelmente, querem excluir aqueles que conquistam a atenção de pessoas inteligentes,
10
Por Edmund Wilson, amplamente considerado o "melhor crítico no mundo anglófono", que escreve: "Quanto à minha experiência com artigos de especialistas em antropologia e sociologia, ela me levou a concluir que a exigência, em minha universidade ideal, de ter os trabalhos em todos os departamentos submetidos a um professor de inglês poderia resultar numa revolução dessas matérias - se de fato a segunda delas chegasse a sobreviver." A Piece of My Mind, Nova York, Farrar, Straus and Cudahy, 1956, p. 164.
acadêmicas ou n ã o .
" Malcolm Cowley,"Sociological Habit Patterns in Linguistic Transmogrifii ation", The Reporter, 20 de set 1956, p.41s.
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
Sobre o artesanato intelectual
Escrever é reivindicar a atenção de leitores. Isso é parte de qualquer
Mas, você pode perguntar, não precisamos por vezes de termos
estilo. Escrever é t a m b é m reivindicar para si status suficiente pelo
técnicos? Claro que sim, mas "técnico" n ã o significa necessaria-
menos para ser lido. O jovem acadêmico está muito envolvido em
mente difícil, e certamente n ã o significa jargão. Se esses termos
ambas as reivindicações, e como sente que lhe falta posição pública,
técnicos forem realmente necessários, e t a m b é m claros e precisos,
muitas vezes p õ e a reivindicação de seu p r ó p r i o status na frente da
n ã o é difícil usá-los n u m contexto de inglês simples e assim intro-
reivindicação da atenção do leitor para o que está dizendo. De fato,
duzi-los de maneira significativa para o leitor.
13
nos Estados Unidos, mesmo os mais bem-sucedidos homens de
Você pode objetar que as palavras ordinárias do uso c o m u m
saber n ã o t ê m muito status em meio a círculos e públicos amplos.
estão muitas vezes "carregadas" de sentimentos e valores e que
Neste aspecto, a sociologia foi u m caso extremo: em grande parte os
por isso talvez seja melhor evitá-las em favor de novas palavras
hábitos sociológicos de estilo originam-se de uma época em que os
ou termos técnicos. Aqui está a minha resposta: é verdade que as
sociólogos tinham pouco status mesmo junto a outros acadêmicos.
palavras comuns estão diversas vezes muito carregadas. Mas vários
Desejo de status é uma razão pela qual acadêmicos escorregam t ã o
termos técnicos de uso corrente na ciência social estão igualmente
facilmente na ininteligibilidade. E esta, por sua vez, é uma das razões
carregados. Escrever claramente é controlar essas cargas, dizer
por que não têm o status que desejam. U m círculo realmente vicioso -
exatamente o que queremos de tal modo que esse significado e
mas que qualquer intelectual pode romper facilmente.
apenas ele seja compreendido por outros. Suponha que o sentido
Para superar a prosa acadêmica, temos de superar a pose aca-
que você quer transmitir está circunscrito por u m círculo de dois
dêmica. É m u i t o menos importante estudar gramática e radicais
metros, no qual você mesmo se coloca; suponha que o sentido
anglo-saxões do que elucidar suas próprias respostas a estas três
compreendido por seu leitor é u m outro círculo igual, no qual ele
perguntas: 1. Q u ã o difícil e complexo é afinal de contas o meu
se coloca. O que esperamos é que os círculos se superponham. A
assunto? 2. Quando escrevo, que status estou reivindicando para
extensão dessa superposição é a extensão de sua c o m u n i c a ç ã o . No
mim? 3. Para quem estou tentando escrever?
círculo do leitor, a parte que n ã o se superpõe é uma área de sentido n ã o controlado: ele lhe deu o sentido que quis. Em seu círculo, a
1. A resposta usual para a primeira pergunta é: n ã o t ã o difícil e
parte que n ã o se s u p e r p õ e é mais u m indício de seu fracasso: você
complexo quanto a maneira em que você está escrevendo sobre
n ã o conseguiu transmiti-la. A habilidade de escrever está em fazer
ele. A prova disso está por toda parte: é revelada pela facilidade
o círculo de sentido do leitor coincidir exatamente com o seu,
com que 95% dos livros de ciência social podem ser traduzidos para o inglês.
12
12
Para alguns exemplos desse tipo de tradução ver o Capítulo 2 [de The Sociological Imagination, Nova York, Oxford University Press, 1959]. Diga-se de passagem que 0 melhor livro que conheço sobre escrita é de Robert Graves e Alan Hodge, The Reader Over Your Shoulder, Nova York, Macmillan, 1994. Ver também as excelentes discussões de Barzun e Graff, The Modem Researcher, op. cit., G.E. Montague, A Writer's Notes on His Trade, Londres, Pelican Books, 1930-49, e Bonamy Dobrée, Modern Prose Style, Oxford, The Clarendon Press, 1934-50.
" Aqueles que entendem de linguagem matemática bem mais que eu dizem que ela é precisa, econômica, clara. É por isso que suspeito tanto de cientistas sociais que invocam o lugar central da matemática entre os métodos do estudo social mas que escrevem prosa de modo impreciso, antieconômico e obscuro. Devem tomar lições com Paul Lazarsfeld, que acredita em matemática, muito de fato, e cuja prosa sempre revela, mesmo nos primeiros rascunhos, as qualidades matemáticas supracitadas. Quando não consigo entender sua matemática, sei que é porque sou muito ignorante; quando não concordo com o que fala em linguagem não-matemática, sei que é porque está errado, porque sempre se sabe o que ele está falando e, portanto, exatamente onde se enganou.
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
Sobre o artesanato intelectual
escrever de tal maneira que ambos se coloquem no mesmo círculo
importante para todo escritor ter em mente o tipo exato de pessoas
de sentido controlado.
para quem está tentando falar - e t a m b é m o que ele realmente
O que quero dizer em primeiro lugar, portanto, é que a maior
pensa delas. Estas n ã o são questões fáceis: respondê-las bem requer
parte do "sociologuês" n ã o tem nenhuma relação com qualquer
decisões sobre si mesmo, bem como conhecimento do público
complexidade de assunto ou pensamento. É usado - penso que
leitor. Escrever é reivindicar ser lido, mas por quem?
quase inteiramente - para fazer reivindicações acadêmicas para si
Uma resposta foi sugerida por meu colega Lionel Trilling, que
mesmo; escrever dessa maneira é dizer ao leitor (muitas vezes, estou
me deu permissão para passá-la adiante. Você deve supor que foi
certo, sem o saber): "Sei alguma coisa que é tão complexa que você
convidado para dar uma palestra sobre algum assunto que conhece
só p o d e r á c o m p r e e n d ê - l a se aprender primeiro minha linguagem.
bem, perante uma audiência de professores e alunos de todos os
Nesse meio-tempo você é meramente u m jornalista, u m leigo, ou
departamentos de uma importante universidade, bem como para
alguma outra espécie de tipo subdesenvolvido."
uma variedade de pessoas interessadas de uma cidade p r ó x i m a . Suponha que tem essa audiência diante de si e que ela tem o direito
2. Para responder à segunda pergunta, devemos distinguir duas
de ser informada; suponha que quer informá-la. Agora escreva.
maneiras de apresentar o trabalho da ciência social segundo a
H á cerca de quatro possibilidades amplas disponíveis para o
idéia que o escritor tem de si mesmo e a voz com que ele fala. Uma
cientista social como escritor. Caso ele se reconheça como uma voz
maneira resulta da idéia de que ele é u m homem que pode gritar,
e suponha que está falando para u m público como o que indiquei,
sussurrar ou dar risadinhas - mas que está sempre lá. Está claro
tentará escrever uma prosa legível. Caso admita que é uma voz,
t a m b é m que tipo de homem ele é: confiante ou neurótico, direto
mas n ã o esteja plenamente consciente de nenhum público, pode
ou complicado, ele é u m centro de experiência e a r g u m e n t a ç ã o ;
facilmente cair em disparates ininteligíveis. Tal homem deveria
agora ele descobriu alguma coisa, e está nos contando sobre ela, e
tomar cuidado. Caso se considere menos uma voz que o agente de
sobre como a descobriu. Esta é a voz atrás das melhores exposições
algum som impessoal, então, caso encontre u m público, este será
disponíveis na língua inglesa.
mais provavelmente u m culto. Se, sem conhecer sua própria voz, n ã o
A outra maneira de apresentar u m trabalho n ã o usa nenhuma
encontrar nenhum público, falando apenas para algum registro que
voz de nenhum homem. Essa escrita não é uma "voz" em absoluto. É
n i n g u é m m a n t é m , acho que temos de admitir que ele é u m verdadei-
u m som a u t ô n o m o . É uma prosa manufaturada por uma máquina.
ro fabricante da prosa padronizada: u m som a n ô n i m o n u m grande
O mais notável não é que seja cheia de jargão, é que seja fortemente
salão vazio. Tudo isso é bastante apavorante, como n u m romance de
afetada: n ã o é somente impessoal; é pretensiosamente impessoal.
Kafka, e deve ser: estivemos falando sobre o limite da razão.
Boletins governamentais são por vezes escritos dessa maneira. Cartas
A linha que separa a profundidade e a verborragia é muitas
comerciais t a m b é m . E uma boa parte da ciência social. Toda escrita -
vezes t ê n u e , até perigosa. N i n g u é m deveria negar o curioso en-
exceto talvez a de certos estilistas verdadeiramente notáveis - que
canto daqueles que - como no pequeno poema de W h i t m a n - , ao
não seja imaginável como fala humana é m á escrita.
começar seus estudos, ficam t ã o satisfeitos e impressionados com o primeiro passo que mal desejam ir mais longe. Por si mesma, a
3. Mas finalmente h á a questão daqueles que devem ouvir a voz -
linguagem forma u m m u n d o maravilhoso, mas, enredados nesse
pensar sobre isso t a m b é m leva a características de estilo. É muito
mundo, n ã o devemos tomar a confusão de começos com a pro
54
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
fundidade de resultados acabados. Como membro da comunidade
Sobre o artesanato intelectual
escolhas de pessoas - tudo para esse tópico ou tema. Você está
acadêmica, você deveria pensar em si mesmo como representante
tentando construir u m pequeno m u n d o que contenha todos os
de uma linguagem verdadeiramente notável, e deveria esperar e
elementos-chave que integram o trabalho a ser feito, p ô r cada u m
exigir de si mesmo, ao falar ou escrever, a tentativa de levar adiante
em seu lugar de uma maneira sistemática, reajustando continua-
0 discurso do homem civilizado.
mente essa estrutura em torno de desenvolvimentos em cada parte dele. Viver n u m m u n d o assim c o n s t r u í d o é simplesmente saber o
Há u m ú l t i m o ponto, que tem a ver com a ação recíproca de es-
que é necessário: idéias, fatos, idéias, n ú m e r o s , idéias.
crita e pensamento. Se você escreve unicamente com referência
Assim você descobrirá e descreverá, construindo tipos para a
ao que Hans Reichenbach chamou de o "contexto da descoberta",
o r d e n a ç ã o do que descobriu, focalizando e organizando experiên-
será compreendido por poucas pessoas; além disso, tenderá a ser
cia mediante a distinção de itens por nome. Essa busca de ordem
muito subjetivo em suas formulações. Para tornar qualquer coisa
o levará a procurar p a d r õ e s e tendências, a encontrar relações que
que pensa mais objetiva, você tem de trabalhar no contexto da
podem ser típicas e causais. Você buscará, em suma, os significados
apresentação. A princípio, "apresente" seu pensamento para si
do que encontrou, para o que pode ser interpretado como u m sinal
mesmo, o que é muitas vezes chamado de "pensar claramente".
visível de alguma outra coisa n ã o visível. Você fará u m inventário
Depois, quando sentir que o fez corretamente, apresente-o para
de tudo que parece envolvido no que quer que esteja tentando
outros - e muitas vezes descubra que n ã o o tornou claro. Agora
compreender; você o reduzirá aos elementos essenciais; depois,
você está no "contexto da apresentação". Algumas vezes perceberá
de maneira cuidadosa e sistemática, relacionará esses itens entre
que, ao tentar apresentar seu pensamento, você o modifica - n ã o
si de modo a formar uma espécie de modelo operacional. Depois
somente em sua forma de expressão, mas muitas vezes t a m b é m
relacionará esse modelo ao que quer que esteja tentando explicar.
em seu c o n t e ú d o . Você terá novas idéias à medida que trabalha no
Por vezes é muito fácil; muitas vezes é simplesmente impossível.
contexto da apresentação. Em suma, ele se t o r n a r á u m novo con-
Mas sempre, entre todos os detalhes, você estará procurando
texto da descoberta, diferente do original, n u m nível mais elevado,
indicadores que poderiam apontar para a direção principal, cha-
acredito, porque mais socialmente objetivo. Aqui, outra vez, você
mando atenção para as formas e tendências subjacentes da extensão
não pode divorciar o que pensa de como escreve. Tem de se mover
da sociedade c o n t e m p o r â n e a . Pois, no fim das contas, é sobre isso -
para trás e para a frente entre esses dois contextos, e sempre que se
a variedade humana - que você está sempre escrevendo.
move convém que saiba para aonde pode estar indo.
O pensamento é uma luta por ordem e ao mesmo tempo por compreensibilidade. Você n ã o deve parar de pensar cedo demais -
A partir do que eu disse você c o m p r e e n d e r á que, na prática, nunca
ou deixará de conhecer tudo o que deveria; n ã o deve deixar que
"começa a trabalhar n u m projeto"; já está "trabalhando", quer n u m
isso prossiga para sempre, ou você mesmo explodirá. É esse dilema,
caráter pessoal, nos arquivos, tomando notas após folhear livros,
suponho, que faz da reflexão, naquelas raras ocasiões em que é mais
quer em esforços dirigidos. Adotando esta maneira de viver e tra-
ou menos bem-sucedida, o mais apaixonante empreendimento de
balhar, você terá sempre muitos tópicos que deseja desenvolver.
que o ser humano é capaz.
1 >epois que decidir quanto a algum deles, tentará usar todo o seu
Talvez eu possa resumir melhor o que estive tentando dizer na
.uquivo, suas leituras esparsas em bibliotecas, sua conversa, suas
forma de alguns preceitos e advertências:
56
Sobre o artesanato intelectual
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
1. Seja u m b o m artesão: evite todo conjunto rígido de procedi-
4. N ã o estude meramente u m pequeno ambiente após outro; es-
mentos. Acima de tudo, procure desenvolver e usar a imaginação
tude as estruturas sociais em que os ambientes estão organizados.
sociológica. Evite o fetichismo de m é t o d o e técnica. Estimule a
Em termos desses estudos de estruturas mais amplas, selecione os
reabilitação do artesão intelectual despretensioso, e tente se tornar
contextos que precisa estudar em detalhe, e estude-os de maneira a
você mesmo tal artesão. Deixe que cada homem seja seu p r ó p r i o
compreender a ação recíproca de contextos com estrutura. Proceda
metodologista; deixe que cada homem seja seu p r ó p r i o teorizador;
de maneira semelhante no que diz respeito ao intervalo de tempo.
deixe que teoria e m é t o d o se tornem parte da prática de u m ofício. Tome o partido do primado do estudioso individual; tome partido contra a ascendência de equipes de pesquisa formadas por técnicos. Seja uma mente independente na confrontação dos problemas do homem e da sociedade.
N ã o seja meramente u m jornalista, ainda que seja t ã o preciso quanto. Saiba que o jornalismo pode ser u m grande empreendimento intelectual, mas saiba t a m b é m que o seu é maior! N ã o relate meramente pesquisas minuciosas em momentos estáticos bem definidos, ou períodos de tempo muito curtos. Tome como seu intervalo de tempo o curso da história humana, e situe nela as
2. Evite a estranheza bizantina de conceitos associados e desassociados, o maneirismo da verborragia. Encoraje em si mesmo e nos outros a simplicidade da formulação clara. Use termos mais elaborados apenas quando acreditar firmemente que seu uso amplia o escopo de suas sensibilidades, a precisão de suas referências, a profundidade de seu raciocínio. Evite usar a ininteligibilidade como
semanas, anos, épocas que você examina. 5. Perceba que seu objetivo é uma c o m p r e e n s ã o comparativa completa das estruturas sociais que apareceram e que existem agora na história do mundo. Perceba que para cumpri-lo você deve evitar a especialização arbitrária dos departamentos acadêmicos hoje existentes. Especialize seu trabalho de maneira variada, segundo
u m meio de escapar à emissão de julgamentos sobre a sociedade - e
o tópico, e, acima de tudo, segundo problemas significativos. Ao
como u m meio de escapar aos julgamentos dos leitores sobre seu
formular e tentar resolver esses problemas, n ã o hesite em, e de fato
p r ó p r i o trabalho.
busque, fazer uso de maneira c o n t í n u a e imaginativa das perspectivas e materiais, das idéias e m é t o d o s , de todo e qualquer estudo
3. Faça todas as construções trans-históricas que achar que seu tra-
sensato do homem e da sociedade. Eles são seus estudos; são parte
balho requer; investigue t a m b é m minúcias sub-históricas. Elabore
daquilo de que você é parte; n ã o deixe que lhe sejam tomados por
teorias inteiramente formais e construa modelos tão bem quanto
aqueles que os bloqueariam com u m jargão esquisito e pretensões
puder. Examine em detalhe pequenos fatos e suas relações, e eventos
a conhecimento
especializado.
grandes e singulares t a m b é m . Mas n ã o seja fanático: relacione todo esse trabalho, contínua e estreitamente, ao nível da realidade histó-
6. Mantenha os olhos sempre abertos para a imagem do homem -
rica. N ã o suponha que mais alguém fará isso por você, em algum
a noção genérica de sua natureza humana - que você está presu-
momento, em algum lugar. Considere tarefa sua a definição dessa
mindo e sugerindo com seu trabalho; e t a m b é m para a imagem
realidade; formule seu problema nos termos dela; no nível dela, tente
da história - sua n o ç ã o de como a história está sendo feita. Numa
resolver esses problemas e assim resolver as questões e dificuldades
palavra, elabore e reveja continuamente suas idéias sobre os pio
que eles incorporam. E nunca escreva mais de três páginas sem ter
blemas de história, os problemas de biografia e os problemas de
em mente pelo menos u m exemplo concreto.
estrutura social em que biografia e história se cruzam. Mantenha
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58
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
os olhos abertos para as variedades da individualidade e para os modos de m u d a n ç a histórica. Use o que vê e o que imagina como
O ideal do artesanato
pistas para seu estudo da variedade humana. 7. Saiba que você herda e está levando adiante a tradição da análise ^ social clássica; portanto, tente compreender o homem n ã o como u m fragmento isolado, n ã o como u m campo ou sistema inteligível em si e por si mesmo. Tente compreender homens e mulheres como atores históricos e sociais, e os modos como a variedade de homens e mulheres são intricadamente selecionados e formados pela variedade das sociedades humanas. Antes de terminar qualquer trabalho, não importa q u ã o indiretamente por vezes, oriente-o para a tarefa central e c o n t í n u a de compreender a estrutura e a direção, a formação e os significados, de seu p r ó p r i o p e r í o d o , o terrível e magnífico mundo da sociedade humana c o n t e m p o r â n e a . 8. N ã o permita que q u e s t õ e s p ú b l i c a s tal como oficialmente formuladas, ou dificuldades tal como privadamente sentidas, determinem os problemas que você t o m a r á para estudar. Acima de tudo, n ã o abdique de sua autonomia moral e política aceitando nos termos de alguma outra pessoa a inutilidade limitadora do ethos burocrático ou a inutilidade tolerante da dispersão moral. Saiba que muitas dificuldades pessoais n ã o podem ser resolvidas meramente como dificuldades, devendo ser compreendidas como questões públicas - e em termos dos problemas da feitura da história. Saiba que se deve revelar o significado humano de questões públicas relacionando-as com dificuldades pessoais - e com os problemas da vida individual. Saiba que os problemas da ciência social, quando adequadamente formulados, devem incluir tanto dificuldades quanto questões, tanto biografia quanto história e o â m b i t o de suas relações intricadas. Dentro desse â m b i t o ocorre a vida do indivíduo e a feitura de sociedades; e dentro desse â m b i t o a imaginação sociológica tem sua chance de fazer uma diferença n.i qualidade da vida humana em nosso tempo.
O artesanato, como modelo plenamente idealizado de satisfação no trabalho, envolve seis características principais: n ã o há nenhum motivo velado em ação além do produto que está sendo feito e dos processos de sua criação. Os detalhes do trabalho diário são significativos porque n ã o estão dissociados, na mente do trabalhador, do produto do trabalho. O trabalhador é livre para controlar sua p r ó p r i a ação de trabalho. O artesão é, por conseguinte, livre para aprender com seu trabalho, e para usar e desenvolver suas capacidades e habilidades na execução do mesmo. N ã o há ruptura entre trabalho e diversão, ou trabalho e cultura. O modo como o artesão ganha seu sustento determina e impregna todo o seu modo de vida. I. A esperança no b o m trabalho, observou W i l l i a m Morris, é esperança de produto e esperança de prazer no p r ó p r i o trabalho; a suprema preocupação, toda a atenção, é com a qualidade do produto e a maestria de seu fabrico. H á uma relação interna entre o artesão e a coisa que ele faz, desde a imagem que primeiro forma dela até sua conclusão, que vai além das meras relações legais de propriedade e torna a disposição do artesão para trabalhar espontânea e até exuberante. Outros motivos e resultados - dinheiro, reputação ou salvação são subordinados. N ã o é essencial à pratica da ética do ofício que
O ideal do artesanato
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
alguém melhore necessariamente seu status, seja na comunidade
c o n s u m a ç ã o , o resultado de u m empreendimento e dar aos i m -
religiosa ou na comunidade em geral. A satisfação no trabalho é
plementos, aos objetos instrumentais no empreendimento, e aos
tal que u m homem pode viver numa espécie de paixão tranqüila
atos que o c o m p õ e m algo da alegria e da satisfação que banham
"por seu trabalho apenas".
sua realização bem-sucedida".
II. Na maioria das descrições do artesanato, há uma confusão entre
III. O trabalhador é livre para iniciar seu trabalho segundo seu p r ó -
suas condições técnicas e estéticas e a organização legal (propriedade)
prio plano e, durante a atividade pela qual o trabalho é moldado,
do trabalhador e do produto. O que é realmente necessário para o
é livre para modificar sua forma e a maneira de sua criação. Em
trabalho-como-artesanato, contudo, é que o vínculo entre o produto
ambos os sentidos, observou Henri De Man, "plano e execução são
e o produtor seja psicologicamente possível; se o produtor não possui
uma só coisa", e o artesão é senhor da atividade e de si no processo.
legalmente o produto, deve possuí-lo psicologicamente, no sentido
Essa c o n t í n u a u n i ã o de plano e atividade une ainda mais firme-
de saber do que ele é feito no que diz respeito a habilidade, suor e
mente a c o n s u m a ç ã o do trabalho e suas atividades instrumentais,
materiais, e de sua própria habilidade e suor serem visíveis para ele.
infundindo nestas últimas a alegria da primeira. Significa t a m b é m
Evidentemente, se as condições legais forem tais que o vínculo entre
que sua esfera de ação independente é vasta e racional para ele. Ele
o trabalho e o ganho material do trabalhador seja transparente, esta é
é responsável por seu resultado e livre para assumir essa responsa-
uma gratificação adicional, mas ela é subordinada àquela habilidade
bilidade. Seus problemas e dificuldades devem ser resolvidos por
que persistiria por si só, mesmo se n ã o remunerada.
ele, em termos da forma que deseja que o resultado final assuma.
O artesão tem uma imagem do produto acabado, e mesmo que n ã o o faça inteiro, vê o lugar de sua parte no todo e, por con-
IV. O trabalho do artesão é assim u m meio de desenvolver sua
seguinte, compreende o significado de seu esforço em termos desse
habilidade, bem como u m meio de desenvolver-se a si mesmo
todo. A satisfação que o resultado lhe proporciona inspira os meios
como h o m e m . Autodesenvolvimento n ã o é uma meta velada,
de alcançá-lo, e desse modo seu trabalho n ã o é apenas significativo
mas o resultado cumulativo da devoção às suas habilidades e ao
para ele, mas participa da satisfação que ele tem no produto e que
exercício delas. À medida que confere a seu trabalho a qualidade
o completa. Ainda que o trabalho, em alguma de suas fases, tenha
de sua p r ó p r i a mente e habilidade, está t a m b é m desenvolvendo
a n ó d o a da labuta, do aborrecimento e da lida mecânica, o arte-
sua p r ó p r i a natureza; nesse sentido simples, vive no seu trabalho e
são é transportado através desses momentos críticos por intensa
através dele, e esse trabalho o manifesta e revela para o mundo.
expectativa. Pode até obter satisfação positiva em encontrar uma resistência e vencê-la, sentindo seu trabalho e sua vontade como
V. N o p a d r ã o do artesão n ã o h á ruptura entre trabalho e diversão,
poderosamente vitoriosos sobre a recalcitrância dos materiais e
entre trabalho e cultura. Caso se entenda que a diversão é uma
a malícia das coisas. De fato, sem essa resistência obteria menos
atividade, exercida por si mesma, sem nenhum objetivo alem da
sal islã»,ao em ser finalmente vitorioso sobre o que de início resiste
gratificação do ator, então o trabalho seria uma atividade ie,ili/.i
obstinadamente à sua vontade.
da para criar valor e c o n ô m i c o ou algum outro resultado velado.
' ieorge Mead expôs esse tipo de experiência estética como envolvendo a capacidade "de vislumbrar o prazer que pertence à
Diversão é algo que fazemos para estar prazerosamente oi upados, mas se o trabalho nos ocupa prazerosamente, é t a m b é m diversão,
62
O ideal do artesanato
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
ainda que seja t a m b é m sério, assim como o brincar é para a criança.
dades que n ã o atingiria em p e r í o d o s de tensão elevada, constante,
"O trabalho realmente livre, o trabalho de u m compositor, por
necessários para o trabalho consistente.
exemplo", escreveu Marx certa vez acerca das noções de Fourier
"O mundo da arte", escreveu Paul Bourget, falando dos Estados
sobre trabalho e diversão, "é trabalho terrivelmente sério, esforço
Unidos, "requer menos autoconsciência - u m impulso de vida que
intenso." A simples auto-expressão da diversão e a criação de valor
se esquece a si mesmo, a alternância de ociosidade sonhadora com
velado do trabalho estão combinados no trabalho-como-artesana-
férvida execução." A mesma idéia é defendida por Henry James, em
to. O artesão ou artista se expressa ao mesmo tempo e no mesmo
seu ensaio sobre Balzac, que observa que praticamente perdemos a
ato em que cria valor. Seu trabalho é u m poema em ação. Trabalha
faculdade da atenção, referindo-se "àquela espécie de atenção sem
e se diverte no mesmo ato.
esforço, meditativa, necessária para se produzir ou apreciar obras
"Trabalho" e "cultura" n ã o s ã o , como sustentou Gentile,
de arte". Mesmo o repouso, que n ã o está t ã o diretamente ligado ao
esferas separadas, a primeira lidando com meios, a segunda com
p r ó p r i o trabalho como uma condição de criatividade, é repouso
fins em si mesmos; como Tilgher, Sorel e outros indicaram, tanto
animal, tornado seguro e livre de ansiedade em virtude do trabalho
o trabalho quanto a cultura podem ser fins em si mesmos, meios,
feito - nas palavras de Tilgher, " u m sentimento de paz e calma que
ou conter segmentos de fins e meios. N o modelo artesanal de ati-
brota de todo trabalho bem regulado, disciplinado, feito com uma
vidade, "consumo" e " p r o d u ç ã o " estão misturados no mesmo ato;
mente serena e satisfeita".
o artesanato ativo, que é igualmente diversão e trabalho, é o meio
Ao construir este modelo do artesanato, n ã o pretendemos
da cultura; e para o artesão n ã o há ruptura entre os mundos da
sugerir que tenha havido algum dia uma comunidade em que o
cultura e do trabalho.
trabalho se revestia de todos estes significados. Se o artesão medieval se aproximava do modelo t ã o estreitamente quanto alguns
VI. O trabalho do artesão é a mola mestra da única vida que ele
escritores parecem supor, n ã o sabemos, mas alimentamos sérias
conhece; ele n ã o foge do trabalho numa esfera separada de lazer;
dúvidas de que assim fosse, falta-nos conhecimento psicológico
leva para suas horas de ócio os valores e qualidades desenvolvidos e
suficiente de populações medievais para julgar apropriadamente.
empregados em suas horas de trabalho. Sua conversa em momentos
De todo modo, para nossos propósitos é suficiente saber que, em
de lazer gira em torno do trabalho; seus amigos seguem as mesmas
diferentes momentos e em diferentes ocupações, o trabalho que o
linhas de trabalho que ele, e partilham uma afinidade de sentimento
homem faz assumiu uma ou mais características do artesanato.
e pensamento. O lazer que William Morris reclamava era "lazer para pensar sobre nosso trabalho, aquele fiel companheiro diário . . . "
Com tal modelo em mente, uma vista de olhos no mundo ocupacional do trabalhador moderno é suficiente para deixar claro
Para dar a seu trabalho o frescor da criatividade, o artesão deve
que praticamente nenhum desses aspectos é relevante hoje para a
por vezes abrir-se àquelas influências que só nos afetam quando
experiência moderna do trabalho. O modelo artesanal tornou-se
nossas atenções estão relaxadas. Assim, para o artesão, afora o
u m anacronismo. Usamos esse modelo como u m ideal explícito,
mero repouso animal, o lazer pode ocorrer naqueles p e r í o d o s
em termos do qual podemos resumir as condições de trabalho e o
intermitentes necessários para a individualidade em seu trabalho.
significado pessoal que o labor tem em mundos do trabalho mo-
Assim como leva para seu lazer a capacidade e os problemas de seu
dernos, e especialmente para "colarinhos-brancos".
trabalho, t a m b é m traz de volta para o trabalho aquelas sensibili-
63
O homem no centro: o designer 1
O designer norte-americano é ao mesmo tempo uma figura central no que vou chamar de aparato cultural e u m importante auxiliar de u m tipo muito peculiar de economia. Sua arte é u m negócio, mas seu negócio é arte, e coisas curiosas v ê m acontecendo tanto para a arte quanto para o negócio - e para ele dessa maneira. Ele foi alcançado por dois grandes desenvolvimentos dos Estados Unidos do século XX: u m é o deslocamento da ênfase econômica da p r o d u ç ã o para a distribuição, e, com ele, a união da luta pela existência com a ânsia por status. O outro foi o processo que colocou a arte, a ciência e o saber numa relação subordinada às instituições dominantes da economia capitalista e do estado nacionalista. Os designers trabalham na interseção dessas tendências; seus problemas estão entre os problemas-chave da sociedade superdesenvolvida. É o duplo envolvimento neles que explica a grande cisão entre designers e sua culpa freqüente; a confusão enriquecida de ideais que eles variadamente professam e a insegurança que freqüentemente sentem com relação à prática de seu oficio; sua repugnância muitas vezes grande e sua frustração incapacitante. Eles não podem
1
lh
Palestra proferida na 8 International Design Conference, realizada em Aspen, Colorado, junho de 1958.0 título original era "Social Forces and the Frustrations of the Designer" [ Forças sociais e as frustrações do designer]. O texto foi também incluído, com algumas alterações, na coletânea Power, Politics and People, Nova York, Balantine Books, 1963. (N. O.)
66
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
O homem no centro: o designer 67
considerar corretamente sua posição ou formular seu credo sem
As artes de massa, as artes públicas, as artes de design são
levar em conta tendências tanto culturais quanto econômicas e a
importantes veículos dessa consciência. Entre essas artes e a vida
conformação da sociedade total em que estas estão ocorrendo.
i otidiana, entre seus símbolos e o nível da sensibilidade humana, há
Quero, em poucas palavras, (1) definir certos significados e
agora uma contínua e persistente ação recíproca. Eles se refletem tão
funções do aparato cultural, e (2) indicar o contexto e c o n ô m i c o
precisamente que com freqüência é impossível distinguir a imagem
em que o designer realiza atualmente o seu trabalho. Pode então
de sua fonte. Visões sussurradas muito antes da maioridade sexual,
ser útil (3) convidar-lhe a reconsiderar certos ideais que o designer
imagens recebidas no descanso da escuridão, slogans reiterados em
pode representar no tipo de m u n d o em que os norte-americanos
casa e na sala de aula, determinam a perspectiva em que vemos e dei-
estão passando a viver.
xamos de ver os mundos em que vivemos; significados sobre os quais nunca pensamos explicitamente determinam nossos julgamentos
Nossos mundos são de segunda mão
sobre q u ã o bem ou q u ã o mal estamos vivendo nesses mundos. Os resultados dessas comunicações são t ã o decisivos para a própria experiência que muitas vezes os homens n ã o acreditam realmente
As imagens que temos desse mundo e de nós mesmos nos são dadas
no que "vêem diante de seus p r ó p r i o s olhos" até que tenham sido
por multidões de testemunhas que nunca conhecemos e nunca
"informados" acerca disso pelo anúncio oficial, o rádio, a câmera,
iremos conhecer. No entanto, para cada u m de nós, essas imagens -
a nota distribuída à imprensa. As comunicações n ã o limitam a ex-
fornecidas por estranhos e mortos - são a p r ó p r i a base de nossa
periência apenas; por vezes elas expropriam as chances de termos
vida como ser humano. Nenhum de n ó s se encontra sozinho con-
experiências que possam ser corretamente chamadas "nossas".
frontando diretamente u m m u n d o de fatos concretos. Nenhum
Pois nossos p a d r õ e s de credibilidade, e da p r ó p r i a realidade, bem
mundo desse tipo é acessível: é quando somos bebês ou quando
como nossos julgamentos e discernimentos, são determinados
ficamos loucos que chegamos mais perto dele. Então, numa cena
muito menos por qualquer experiência totalmente nova que possa-
aterrorizante de eventos sem sentido e confusão disparatada, somos
mos ter que por nossa exposição à p r o d u ç ã o do aparato cultural.
muitas vezes tomados pelo pânico da insegurança quase total. Em nossa vida cotidiana, p o r é m , n ã o experimentamos fatos sólidos e imediatos, mas estereótipos de significado. Temos conhecimento de muito mais do que n ó s mesmos experimentamos, e nossa experiência é ela p r ó p r i a sempre indireta e guiada. A primeira regra para compreender a condição humana é que os homens vivem em mundos de segunda m ã o . A consciência dos homens n ã o determina sua existência; nem sua existência determina sua consciência. Entre a consciência humana e a existência material encontram-se comunicações e planos, p a d r õ e s e valores que influenciam decisivamente a consciência que possam ter.
Para a maior parte do que chamamos de fatos concretos, • i n t e r p r e t a ç ã o segura, a p r e s e n t a ç õ e s apropriadas, somos cada vez mais dependentes dos postos de observação, dos centros de interpretação, dos depósitos de apresentação do aparato cultural. Nesse aparato, situando-se entre homens e eventos, os significados e imagens, os valores e slogans que definem todos os mundos que os homens conhecem são organizados e comparados, mantidos e revistos, perdidos e encontrados, celebrados e desmascarados. Por aparato cultural refiro-me a todas aquelas organizações e meios em que o trabalho artístico, intelectual e científico tem lugar. E t a m b é m a todos os meios pelos quais esse trabalho e tornadi > ai es sível a pequenos círculos, públicos mais amplos e grandes massas.
68
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
O d o m í n i o mais abrangente e mais especializado da socie-
O homem no centro: o designer
Da produção à distribuição e ao "merchandising"
dade moderna, o aparato cultural da arte, da ciência e do saber cumpre o maior n ú m e r o de funções: conquista a natureza e refaz
Como u m fato institucional, o aparato cultural assumiu muitas
o ambiente; define a natureza cambiante do homem e apreende
formas. Em algumas sociedades - notavelmente a da Rússia - , ele é
a direção dos negócios mundiais; revivifica antigas aspirações e
estabelecido por uma autoridade posterior ao capitalismo: é portan-
molda as novas. Cria modelos de caráter e estilos de sentimento,
to parte de u m aparato oficial de dominação psíquica. Em algumas -
n u a n ç a s de estado de espírito e vocabulários de motivo. Serve
notavelmente as nações da Europa ocidental - , é estabelecido a partir
aos tomadores de decisão, revelando e obscurecendo as conse-
de uma tradição anterior ao capitalismo, é portanto parte de u m
qüências de suas decisões. Transforma poder em autoridade e
establishment em que autoridade social e prestígio cultural se super-
desmascara a autoridade como mera coerção. Modifica o trabalho
p õ e m . Tanto a tradição cultural quanto a autoridade política estão
que os homens fazem e fornece as ferramentas com que o fazem;
envolvidas em qualquer establishment cultural, mas nos Estados
preenche seu lazer, com tolice e com prazer. Muda a natureza da
Unidos o aparato cultural é estabelecido comercialmente: é parte de
guerra; diverte, persuade e manipula; ordena e proíbe; apavora e
uma economia capitalista ascendente. Este fato é a principal chave
tranqüiliza; faz homens chorarem e rirem, ficarem inteiramente
para se compreender tanto a qualidade da vida cotidiana quanto a
entorpecidos, depois totalmente animados. Prolonga o tempo de
situação da cultura nos Estados Unidos hoje.
vida e fornece os meios para encerrá-lo subitamente. Prevê o que
A virtual p r e d o m i n â n c i a da cultura comercial é a chave para
vai acontecer e explica o que ocorreu; ajuda a moldar e regular
o escopo, a confusão, a banalização, a a n i m a ç ã o , a esterilidade
a marcha de uma época, e sem ele n ã o haveria consciência de
cultural dos Estados Unidos. Para compreender o caso dos Estados
nenhuma época.
Unidos hoje, precisamos compreender as tendências econômicas
O mundo que os homens vão acreditar que compreendem
e a mecânica de vendas de u m mundo capitalista em que a pro-
está agora, nesse aparato cultural, sendo definido e construído,
d u ç ã o e a venda em massa de mercadorias tornou-se o fetiche da
transformado n u m slogan, numa anedota, n u m diagrama, n u m
vida humana, o eixo do trabalho e do lazer. Precisamos compre-
comunicado, n u m sonho, n u m fato, n u m projeto, numa música,
ender como os mecanismos difusos do mercado penetraram cada
n u m esquema, numa fórmula, e apresentado a eles. Essa parte que a
aspecto da vida - inclusive arte, ciência e saber - e os tornaram
razão pode ter em negócios humanos, esse aparato, essa engenhoca
sujeitos à avaliação pecuniária. Precisamos compreender que o
construída, cumpre; o papel que a sensibilidade pode desempenhar
que aconteceu com o trabalho em geral nos dois ú l t i m o s séculos
no drama humano, ele representa; o uso que a técnica pode ter na
tem acontecido no século X X com a esfera do esforço artístico e
história e na biografia, ele fornece. Ele é a seita da civilização, que -
intelectual; t a m b é m esta tornou-se agora parte da sociedade como
nas palavras de Matthew Arnold - é "a humanização do homem na
u m salão de vendas. Para compreender a posição ambígua do tra-
sociedade". As únicas verdades são as verdades definidas pelo apa-
balhador cultural nos Estados Unidos precisamos ver como ele se
rato cultural. A única beleza são experiências e objetos criados e
encontra na superposição desses dois mundos: o mundo de uma
indicados por trabalhadores culturais. Os únicos bens são os valores
sociedade t ã o superdesenvolvida com seu ethos de publicidade,
culturais com que os homens são levados a se sentir moralmente
e o mundo da cultura como os homens o conheceram e como
tranqüilos ou moralmente inquietos.
poderiam conhecê-lo.
69
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O homem no centro: o designer
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
Por mais severos que sejam seus efeitos sobre a natureza do
e (3) obsolescência de status, como quando modas são criadas,
trabalho, a industrialização dos países subdesenvolvidos deve ser
de maneira que o consumo traz desfavor ou prestígio segundo se
vista como uma enorme bênção: é o homem conquistando a natu-
consuma o modelo do ano passado ou o deste ano, e à antiga luta
reza, e assim se libertando da p e n ú r i a medonha. Mas à medida que
pela existência acrescenta-se a ânsia por status.
as maquinarias sociais e físicas da industrialização se desenvolvem,
É nessa situação econômica que o designer o b t é m sua "grande
novos objetivos e interesses entram em jogo. A ênfase e c o n ô m i c a
chance". Seja qual for sua pretensão estética e sua habilidade técnica,
desloca-se da p r o d u ç ã o para a distribuição e, na sociedade super-
sua tarefa e c o n ô m i c a é vender. Nisso ele se junta à fraternidade da
desenvolvida, para o chamado "merchandising". A década central
publicidade, ao conselho de relações públicas e ao pesquisador de
para essa m u d a n ç a nos EUA foram os anos 1920, mas foi na era
mercado. Esses tipos desenvolveram suas habilidades e pretensões
iniciada com o t é r m i n o da Segunda Guerra Mundial que a nova
para servir homens cujo "deus é a grande venda". E agora o designer
economia floresceu como uma erva daninha. Nessa fase do capita-
se junta a eles.
lismo, o distribuidor ganha ascendência tanto sobre o consumidor quanto sobre o produtor.
A firma e aos seus produtos ele acrescenta o brilho mágico e o deslumbramento do prestígio. Ele planeja a aparência das coisas
A medida que a capacidade de produzir vai muito além da
e sua embalagem muitas vezes fraudulenta. Planeja os interiores e
demanda existente, que o m o n o p ó l i o substitui a competição, e
decora os exteriores de empresas corporativas como monumentos
que os excedentes se acumulam, o que se torna necessário é criar
à publicidade. E depois, com seus colegas, faz a história da fraude
e manter o mercado nacional e fechá-lo monopolisticamente. O
comercial galgar mais u m degrau. C o m ele, a publicidade n ã o é
vendedor torna-se e n t ã o preeminente. Em vez de cultivar e servir
uma atividade especializada, ainda que central; com seu advento
uma variedade de públicos, o objetivo do distribuidor é criar u m
capitalista, as artes, habilidades e manhas do p r ó p r i o aparato
volume maciço de vendas c o n t í n u a s . P r o d u ç ã o c o n t í n u a e em
cultural se tornam n ã o apenas auxiliares da publicidade, mas, no
expansão requer consumo c o n t í n u o e em expansão, assim ele deve
devido tempo, tornam-se elas mesmas publicidades. Ele projeta o
ser acelerado por todas as técnicas e trapaças do marketing. Além
p r ó p r i o produto como se fosse uma publicidade, pois seu objetivo
disso, as mercadorias existentes devem se gastar mais rapidamente,
e sua tarefa - reconhecidos pelos mais francos - n ã o é tanto fazer
pois, como o mercado está saturado, a economia torna-se cada vez
produtos melhores mas fazer produtos que vendam melhor. Por
mais dependente da chamada substituição. É e n t ã o que a obsoles-
marca e marca registrada, por slogan e embalagem, por cor e forma,
cência passa a ser planejada e o ciclo e c o n ô m i c o deliberadamente
ele dá ao artigo uma individualidade fictícia, transformando u m
encurtado.
pouco de lanolina e água numa maneira emulsificada de se tornar eroticamente a b e n ç o a d o ; ocultando o peso e a qualidade do que está à venda; confundindo a escolha do consumidor e banalizando
Projetos tolos para necessidades tolas
suas sensibilidades.
Há, suponho, três tipos de obsolescência: (1) tecnológica, como
pelo tolo planejamento e replanejamento das coisas. O desperdício
quando algo se desgasta ou algo melhor é produzido; (2) artificial,
de trabalho humano e material torna se irracionalmente central
como quando algo é deliberadamente projetado para se desgastar;
para o desempenho do mecanismo capitalista. A própria sociedade
As tolas necessidades da arte de vender são assim atendidas
71
72
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
O homem no centro: o designer
torna-se u m grande salão de vendas, uma rede de negócios públicos
auxiliares. Esse papel tem suas p r ó p r i a s condições e seus p r ó p r i o s
desonestos e uma c o n t í n u a exposição de modas. O segredo do su
perigos. A estrela tende a cair na armadilha do p r ó p r i o sucesso.
cesso torna-se a m u d a n ç a anual de modelo, ao mesmo tempo em
Ele pintou tal tipo de coisa e ganha 20 m i l dólares de uma tacada
que a moda é universalizada. E na sociedade de massas, a própria
por ela. Esse homem, embora afluente, pode ficar culturalmente
imagem da beleza torna-se identificada com a aceleração e a degra-
entediado com seu estilo e desejar explorar u m outro. Mas muitas
dação da imaginação, do gosto e da sensibilidade pelo designer.
vezes n ã o pode: está acostumado aos 20 m i l dólares de uma tacada
73
e há uma demanda disso. Como alguém que dita a moda, fica ele
O crescimento do sistema de estrelato
p r ó p r i o submetido à moda. Além disso, seu sucesso como estrela depende da sua m a n i p u l a ç ã o do mercado: n ã o está numa interação educativa com u m público que o apoia à medida que ele se
O p r ó p r i o trabalhador intelectual, em particular o designer, tende
desenvolve a si mesmo e, por sua vez, a esse público. T a m b é m ele,
a se tornar parte dos meios de distribuição, sobre o qual pode v i r
em virtude de seu sucesso, torna-se u m negociante.
a perder o controle. Tendo "criado u m mercado" e monopolizado o acesso a ele, o distribuidor - com seu pesquisador de mercado reivindica "saber o que eles querem". Assim suas ordens - a t é para os freelancers - tornam-se mais explícitas e detalhadas. O preço que oferece pode ser bastante alto; talvez alto demais, ele começa a pensar, e talvez tenha razão. Assim começa a contratar e gerenciar em grau variado u m time de trabalhadores culturais. Aqueles que se permitem ser gerenciados pelo distribuidor de massas são selecionados e finalmente formados de maneira a serem completamente proficientes, mas talvez n ã o de todo excelentes. Assim prossegue a busca por "novas idéias", por n o ç õ e s empolgantes, por modelos mais atraentes; em suma, pelo inovador. Mas nesse meio-tempo, no estúdio, no laboratório, no escritório de pesquisas, na fábri-
O sistema de estrelato da cultura norte-americana - juntamente com os mercenários - tende a matar a chance de u m trabalhador cultural ser u m artesão digno. O u se é u m sucesso absoluto ou se está entre os fracassos que n ã o são produzidos; ou se é u m c a m p e ã o de vendas ou se está entre os assalariados e os fracassados; ou se é uma sumidade absoluta ou n ã o se é absolutamente nada. Como empresário, uma pessoa pode valorizar como quiser esses vários desenvolvimentos; como membro do aparato cultural, p o r é m , ela certamente deve compreender que, n ã o importa o que mais possa estar fazendo, está t a m b é m criando e moldando as sensibilidades culturais de homens e mulheres, e, de fato, a p r ó p r i a qualidade de suas vidas cotidianas.
ca do escritor - o distribuidor ganha ascendência sobre muitos produtores, que se tornam os soldados rasos do aparato cultural comercialmente estabelecido.
A grande mentira: "Só lhes damos o que eles querem"
Nessa situação de crescente burocratização, mas ao mesmo
O mero p r e d o m í n i o das habilidades do p u b l i c i t á r i o e do ofício
tempo de contínua necessidade de inovação, o trabalhador cultural
do designer torna evidente a falsidade do maior dogma da cul-
tende a se tornar u m escritor comercial o u uma estrela comercial.
tura do distribuidor. O dogma é que "só lhes damos o que eles
Por estrela, refiro-me a u m produtor para cujas p r o d u ç õ e s h á
querem". Esta é a "grande mentira" da cultura de massas e da arte
uma demanda t ã o grande que ele é capaz, pelo menos em alguma
degradada, e é t a m b é m a desculpa esfarrapada para ,i o m i s s ã o
medida, de fazer com que os distribuidores sirvam como seus
cultural de muitos designers.
O homem no centro: o designer
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
A d e t e r m i n a ç ã o das "necessidades e gostos do consumidor"
transformariam todos os objetos e as qualidades, de fato a própria
é uma marca característica da atual fase do capitalismo nos Esta-
sensibilidade humana, n u m fluxo de mercadorias efêmeras, e esses
dos Unidos - e t a m b é m do que é chamado cultura de massas. E é
tipos conseguem agora que o designer os ajude; conseguem que ele
precisamente nas áreas em que necessidades são determinadas e
se transforme no supremo publicitário. Quando pensamos sobre
alteradas que os designers tendem a fazer seu trabalho.
isso - se é que pensamos - , parece realmente espantoso: o velho
O aparato de merchandising, do qual muitos designers são
companheiro do vendedor, o Garoto do Spray, o cabo da venda
membros atualmente, opera mais para criar necessidades que para
a varejo [the corporal of retailing] - tornou-se o generalíssimo da
satisfazer necessidades já ativas. Os consumidores são treinados
obsolescência ansiosa como o modo de vida norte-americano.
para "precisar" daquilo a que são mais continuamente expostos. Desejos n ã o se originam de vagas esferas da personalidade do consumidor, são formados por u m elaborado aparato de jingle e
O artesanato como um valor
moda, de persuasão e fraude. São moldados pelo aparato cultural e a sociedade de que este é parte. N ã o se desenvolvem e se modificam à medida que as sensibilidades do consumidor se alargam; são criadas e modificadas pelo processo pelo qual são satisfeitas e pelo qual velhas satisfações são tornadas insatisfatórias. Além disso, os p r ó p r i o s cânones de gosto e julgamento são t a m b é m manobrados pela obsolescência do status e por moda planejada. A fórmula é: fazer as pessoas terem vergonha do modelo do ano passado; associar a p r ó p r i a auto-estima à compra do modelo deste ano; criar uma ânsia por status, e portanto uma ânsia por auto-estima, e associar sua satisfação ao consumo de mercadorias específicas. Nesse vasto mecanismo de merchandising de a n ú n c i o s e design, n ã o há nenhum objetivo social inerente para equilibrar seu grande poder social; n ã o h á nenhuma responsabilidade incorporada para n i n g u é m , exceto para o homem que aufere o lucro. H á pouca dúvida, contudo, de que esse mecanismo é hoje
Venho descrevendo, é claro, o papel do designer no que espero que seja sua pior forma. E estou ciente de que n ã o é apenas no campo do design que a a m b i g ü i d a d e norte-americana do esforço cultural é revelada, que n ã o é somente o designer que comete a negligência cultural. Em diferentes graus, todos os trabalhadores culturais são parte de u m mundo dominado pelo ethos pecuniário do homem de negócios excêntrico e t a m b é m de u m m u n d o unificado apenas vagamente pelos ideais de sensibilidade cultural e razão humana. A autonomia de todos os tipos de trabalhadores culturais vem declinando em nosso tempo. Quero t a m b é m deixar claro que estou ciente da grande diversidade entre designers e da enorme dificuldade que qualquer designer enfrenta agora ao tentar escapar da armadilha dos m a n í a c o s da p r o d u ç ã o e distribuição. O problema do designer só pode ser resolvido pela consideração radical de valores fundamentais. Mas como a maior parte
u m importante definidor dos valores e p a d r õ e s da sociedade
das considerações fundamentais, a sua pode c o m e ç a r de maneira
norte-americana, o principal portador da sensibilidade cultural, e
muito simples.
bastante comparável em influência à escola, à igreja, ao lar. Esse aparato é hoje u m auxiliar de organizações comerciais
A idéia do aparato cultural é uma tentativa de compreender os negócios humanos do ponto de vista do papel que neles dosem
que usam a "cultura" para seus p r ó p r i o s fins n ã o culturais - de
penham a razão, a técnica e a sensibilidade. Como membros desse
fato, anticulturais - , e assim degradam seu p r ó p r i o significado.
aparato cultural, é importante que os designers compreendam pie
Esses usos da cultura estão sendo moldados por homens que
namente o que essa condição significa. Em poucas palavras, sigi lifka
76
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
O homem no centro: o designer
que ele representa as sensibilidades do homem como construtor de
O artesão imagina o produto acabado, muitas vezes enquanto o cria
objetos materiais, do homem como criatura relacionada à própria
e, mesmo que não o fabrique, vê e compreende o sentido de seu p r ó -
natureza e à m u d a n ç a desta mediante u m plano humanamente
prio esforço em termos do processo total de sua produção. Assim, os
considerado. O designer é u m criador e u m crítico da estrutura física
detalhes do trabalho diário do artesão são significativos porque n ã o
da vida privada e pública. Ele representa o homem como constru-
estão separados, em sua mente, do produto do trabalho. A satisfação
tor de seu p r ó p r i o meio. Ele representa o tipo de sensibilidade que
que tem nos resultados impregna os meios para alcançá-los.
permite aos homens inventar u m mundo de objetos diante do qual
Esta é a conexão radical entre trabalho e arte: como experiên-
eles ficam encantados e os quais se sentem encantados em usar. O
cias estéticas, ambos envolvem o poder "de apreender o gozo que
designer é parte da unidade da arte, da ciência e do saber. Isso, por
pertence ao consumo, ao resultado, de u m empreendimento, e dar
sua vez, significa que ele partilha u m valor fundamental, que é o
aos implementos, aos objetos que são instrumentais no empreen-
denominador c o m u m da arte, da ciência e do saber e t a m b é m a
dimento, e aos atos que o c o m p õ e m , u m pouco da alegria e das
própria raiz do desenvolvimento humano. Esse valor, eu acredito,
satisfações que banham sua realização bem-sucedida".
é o artesanato.
2
Para círculos bem pequenos, o apelo da arte moderna - em
Do artesanato, como ideal e como prática, é possível deduzir
especial a pintura e a escultura, mas t a m b é m o artesanato - recai
tudo que o designer deve representar como indivíduo e tudo que
no fato de que, n u m mundo impessoal, programado, automati-
ele deve significar social, política e economicamente. Como ideal,
zado, eles representam o pessoal e o e s p o n t â n e o . São o oposto do
o artesanato representa a natureza criativa do trabalho, e o lugar
estereotipado e do banalizado.
central desse trabalho no desenvolvimento humano como u m todo. Como prática, o artesanato representa o papel clássico do
2. No artesanato, plano e execução estão unificados, e em ambos o
artesão independente que faz seu trabalho em estreita interação
artesão é mestre da atividade e de si mesmo no processo. O artesão
com o público, que por sua vez participa dele.
é livre para começar seu trabalho de acordo com o p r ó p r i o plano,
As cisões mais fundamentais na vida c o n t e m p o r â n e a ocorrem
e durante o trabalho é livre para modificar sua forma e modo de
por causa da desintegração da antiga unidade de design, p r o d u ç ã o
sua conformação. A c o n t í n u a u n i ã o de plano e desempenho une
e fruição. Entre a imagem e o objeto, entre o projeto e o trabalho,
ainda mais firmemente a c o n s u m a ç ã o do trabalho e suas atividades
entre a p r o d u ç ã o e o consumo, entre trabalho e lazer, h á u m grande
instrumentais, infundindo nestas últimas a alegria da primeira.
vácuo cultural, e foi esse vácuo que o distribuidor de massas, e seus
O trabalho é uma esfera racional de ação independente.
acólitos artísticos e intelectuais, preencheram com exaltação, lixo e fraude. Numa frase, o que se perdeu foram o fato e o ethos do
3. Como trabalha livremente, o artesão é capaz de aprender com
homem como artesão.
seu trabalho, de desenvolver bem como de usar suas capacidades.
Por artesanato refiro-me a u m estilo de trabalho e u m modo
Seu trabalho é, então, para ele u m meio de se desenvolver a si
de vida que t ê m as seguintes características:
mesmo como homem bem como de desenvolver sua habilidade.
1. N o artesanato n ã o h á nenhum motivo ulterior para o trabalho
2
além do produto que está sendo feito e o processo de sua criação.
Mead, George Herbert. The Philosophy of the Act.
Press, 1938,p.454.
< h u . i g o , < l m ago I I n i v e r s i l y
77
78
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
O homem no centro: o designer
Esse autodesenvolvimento n ã o é uma meta velada, mas u m resul-
estou menos interessado agora nas exigências e c o n ô m i c a s que
tado cumulativo da devoção ao seu ofício e do exercício dele. À
nas culturais. O papel do artesão sério requer que o trabalhador
medida que confere ao trabalho a qualidade de sua p r ó p r i a mente
cultural p e r m a n e ç a u m trabalhador cultural, e que produza para
e habilidade, está t a m b é m desenvolvendo sua p r ó p r i a natureza;
outros produtores culturais e para círculos e públicos compostos
nesse sentido simples, vive no seu trabalho e através dele, e esse
por pessoas que tenham alguma c o m p r e e n s ã o do que está envolvi-
trabalho o manifesta e revela para o mundo.
do em sua p r o d u ç ã o . Pois n ã o podemos "possuir" arte meramente comprando-a; n ã o podemos apoiar arte meramente alimentando
4. O modo como o artesão ganha seu sustento determina e i m -
artistas - embora isso ajude. Para possuí-la devemos merecê-la,
pregna todo o seu modo de vida. Para ele n ã o há cisão entre tra-
participando em alguma medida no que é necessário para projetá-
balho e diversão, entre trabalho e cultura. Seu trabalho é o motivo
la e criá-la. Para apoiá-la, devemos apreender em nosso consumo
principal de sua vida; ele n ã o foge do trabalho para uma esfera
dela alguma coisa do que está envolvido em sua p r o d u ç ã o .
separada de lazer; leva para as horas de ócio os valores e qualidades
É, eu penso, a ausência de tal estrato de trabalhadores culturais,
desenvolvidos e empregados em suas horas de trabalho. Expressa
em estreita interação com tal público participante, que é a falha
a si mesmo no p r ó p r i o ato de criar valor e c o n ô m i c o ; está traba-
notável da cena cultural norte-americana hoje. Enquanto ela n ã o se
lhando e se divertindo no mesmo ato; seu trabalho é u m poema
desenvolver, a posição do designer conterá todas as ambigüidades e
em ação. Para dar ao seu trabalho o frescor da criatividade, deve
estimulará todas as negligências que indiquei. Os designers tende-
por vezes se abrir àquelas influências que só nos afetam quando
rão a ser estrelas comerciais o u assalariados. E o desenvolvimento
nossas atenções estão relaxadas. Assim, para o artesão, afora o
humano c o n t i n u a r á a ser banalizado, as sensibilidades humanas
mero repouso animal, o lazer pode ocorrer naqueles p e r í o d o s i n -
embotadas, e a qualidade da vida distorcida e empobrecida.
termitentes necessários para a individualidade em seu trabalho.
Como prática, o artesanato nos Estados Unidos foi em grande parte trivializado em hobbies desprezíveis: é parte do lazer, n ã o do
5. U m estrato assim independente de artesãos n ã o pode florescer
trabalho. Como ética, está em grande parte confinado a pequenos
a menos que haja públicos que apoiem indivíduos que podem
grupos de profissionais e intelectuais privilegiados. O que estou su-
n ã o se revelar de primeira classe. O artesanato requer que esses
gerindo é que os designers deveriam assumir o valor do artesanato
trabalhadores culturais e esses públicos definam o que é excelên-
como o valor central que representam; que em conformidade com
cia. No bloco comunista, em razão das burocracias oficiais, e no
ele deveriam fazer seu trabalho; e que deveriam usar suas normas
capitalista, em razão do ethos comercial, os p a d r õ e s n ã o estão
em suas visões sociais, e c o n ô m i c a s e políticas do que a sociedade
hoje nas m ã o s de tais produtores e públicos culturais. Em ambos
deve se tornar.
o mero distribuidor é a chave tanto para o consumo quanto para a produção.
O artesanato n ã o pode prevalecer sem uma sociedade que se desenvolva apropriadamente; essa seria, eu acredito, uma so-
Alguns trabalhadores culturais nos Estados Unidos perma-
ciedade em que o fato e o ethos do artesanato estariam em toda
necem, é claro, independentes. Talvez três o u quatro homens
parte. Homens e mulheres deveriam ser formados c sela lon.ulos
realmente ganhem seu sustento aqui apenas compondo música
como modelos ascendentes de caráter em termos de suas normas.
séria; talvez cerca de 50 o façam escrevendo romances sérios. Mas
Instituições deveriam ser construídas e julgadas cm lermos de seu
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Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
ethos. A sociedade humana, em suma, deveria ser construída em torno do artesanato como a experiência central de u m ser humano
A promessa
não alienado e a própria raiz do livre desenvolvimento humano. A maneira mais frutífera de definir o problema social é perguntar como semelhante sociedade pode ser construída. Pois o mais elevado ideal humano é: tornar-se u m b o m artesão.
Hoje os homens sentem muitas vezes que suas vidas privadas são uma série de armadilhas. Sentem que, em seus mundos cotidianos, n ã o conseguem superar suas dificuldades e, com freqüência, estão inteiramente corretos nesse sentimento: aquilo de que os homens comuns estão diretamente conscientes e o que tentam fazer está limitado pelas órbitas privadas em que vivem; suas visões e seus poderes estão limitados às cenas em close-up de trabalho, família, vizinhança; em outros meios, eles se movem à custa de outros e permanecem espectadores. E quanto mais conscientes se tornam, ainda que vagamente, de ambições e ameaças que transcendem seus ambientes imediatos, mais parecem sentir que caíram em armadilhas. Subjacente a essa sensação de ter caído numa armadilha há m u d a n ç a s aparentemente impessoais na p r ó p r i a estrutura de sociedades de extensão continental. Os fatos da história contemp o r â n e a são t a m b é m fatos sobre o sucesso e o fracasso de homens e mulheres individuais. Quando uma sociedade é industrializada, u m c a m p o n ê s torna-se u m operário; u m senhor feudal é liquidado ou torna-se u m homem de negócios. Quando classes ascendem ou decaem, u m homem é empregado ou desempregado; quando a laxa de investimento sobe ou desce, u m homem ganha novo â n i m o ou vai à falência. Quando guerras acontecem, um vendedoi de seguros torna-se u m lançador de foguetes; um almoxarife, um operadoi de
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A promessa
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
radar; uma esposa vive sozinha; uma criança cresce sem pai. Nem
pequena da humanidade. Por toda parte no m u n d o subdesen-
a vida de u m indivíduo nem a história de uma sociedade podem
volvido, maneiras de viver antigas são destruídas e expectativas
ser compreendidas sem que entendamos ambos.
vagas tornam-se exigências urgentes. Por toda parte no mundo
No entanto, os homens n ã o costumam definir as dificuldades
superdesenvolvido, os meios de poder e de violência tornam-se
que enfrentam em termos de m u d a n ç a histórica e c o n t r a d i ç ã o
totais em escopo e burocráticos na forma. A p r ó p r i a humanidade
institucional. N ã o costumam atribuir o bem-estar que gozam aos
encontra-se agora diante de n ó s , a s u p e r n a ç ã o em cada u m dos
grandes altos e baixos da sociedade em que vivem. Raramente
pólos concentrando seus esforços mais coordenados e intensos na
conscientes da intricada conexão entre os padrões de suas próprias
preparação da Terceira Guerra Mundial.
vidas e o curso da história mundial, os homens comuns n ã o sabem
A própria conformação da história agora supera a capacidade
em geral o que essa conexão significa para os tipos de homens que
dos homens para se orientar em conformidade com valores aprecia-
estão se tornando e para os tipos de feitura da história de que po-
dos. E que valores? Mesmo quando não estão tomados de pânico, os
deriam fazer parte. Eles n ã o possuem a qualidade mental essencial
homens percebem muitas vezes que maneiras mais antigas de sentir
para apreender a interação de homem e sociedade, de biografia
e pensar se desintegraram e que novos começos são ambíguos ao
e história, de eu e de mundo. N ã o são capazes de enfrentar suas
ponto da estase moral. É de espantar que homens comuns sintam
dificuldades pessoais de maneira a controlar as transformações
que n ã o podem lidar com os mundos mais vastos com que são
estruturais que usualmente se encontram atrás delas.
tão subitamente confrontados? Que n ã o consigam compreender o
Certamente isso n ã o é de surpreender. Em que p e r í o d o tantos
sentido de sua época para suas próprias vidas? Que - em defesa de
indivíduos foram t ã o completamente expostos a tamanhos terre-
sua individualidade - se tornem moralmente insensíveis, tentando
motos de m u d a n ç a n u m r i t m o t ã o acelerado? Que os norte-ame-
permanecer inteiramente homens privados? É de espantar que ve-
ricanos n ã o tenham conhecido m u d a n ç a s tão catastróficas quanto
nham a se sentir possuídos pela impressão da armadilha?
as experimentadas pelos homens e mulheres de outras sociedades deve-se a fatos históricos que estão agora se tornando com rapidez
N ã o é somente de informação que eles precisam - nesta "Idade
"meramente história". A história que afeta agora todos os homens
do Fato", a informação muitas vezes domina sua atenção e esmaga
é a história mundial. Nesse cenário e dentro desse p e r í o d o , no
suas capacidades de assimilá-la. N ã o é somente das habilidades da
curso de uma única geração, u m sexto da humanidade é transfor-
razão que precisam - embora suas lutas para adquiri-las muitas
mado de tudo que é feudal e atrasado em tudo que é moderno,
vezes esgotem sua energia moral limitada.
avançado e aterrorizante. Colônias políticas são libertadas; novas
Aquilo de que precisam, e sentem que precisam, é uma quali-
formas menos visíveis de imperialismo são instaladas. Revoluções
dade mental que os ajude a usar informação e desenvolver a razão
ocorrem; homens sentem a í n t i m a d o m i n a ç ã o de novos tipos de
de modo a alcançar sínteses inteligíveis do que está acontecendo no
autoridade. Sociedades totalitárias surgem, e são estraçalhadas - ou
mundo e do que pode estar acontecendo dentro deles mesmos. É
experimentam fabuloso sucesso. Após dois séculos de ascendência,
essa qualidade, vou sustentar, que jornalistas e estudiosos, artistas
o capitalismo aparece como apenas uma maneira de transformar a
e públicos, cientistas e editores estão passando a esperar do que
sociedade n u m aparato industrial. Após dois séculos de esperança,
pode ser chamado de imaginação sociológica.
mesmo a democracia formal está restrita a uma p o r ç ã o muito
H'1
A promessa
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
A imaginação sociológica permite ao seu possuidor compreender
Emile Durkheim; do intricado e sutil Karl Mannheim. É a qualidade
o cenário histórico mais amplo em termos de seu significado para
de tudo que é intelectualmente excelente em Karl Marx; é a chave
a vida interior e a carreira exterior de uma variedade de indiví-
para a brilhante e irônica perspicácia de Thorstein Veblen, para
duos. Ela lhe permite levar em conta de que maneira indivíduos,
as multifacetadas construções de realidade de Joseph Schumpeter;
no tumulto de suas experiências diárias, tornam-se muitas vezes
e a base do alcance psicológico de W.E.H. Lecky, n ã o menos que
falsamente c ô n s c i o s de suas p o s i ç õ e s sociais. Nesse t u m u l t o ,
da profundidade e clareza de Max Weber. E é o sinal do que há de
busca-se a estrutura da sociedade moderna, e dentro dessa estru-
melhor em estudos c o n t e m p o r â n e o s do homem e da sociedade.
tura formulam-se as psicologias de uma variedade de homens e
Nenhum estudo social que n ã o retorna aos problemas de bio-
mulheres. Por esses meios, a inquietação pessoal de indivíduos é
grafia, de história e de suas interseções numa sociedade completou
concentrada em dificuldades explícitas e a indiferença de públicos
sua jornada intelectual. Sejam quais forem os problemas específicos
é transformada em envolvimento com questões públicas.
dos analistas sociais clássicos, por mais limitados ou por mais amplos
O primeiro fruto dessa imaginação - e a primeira lição da ciên-
que sejam os traços da realidade social que eles examinaram, aqueles
cia social que a corporifica - é a idéia de que o indivíduo só pode
que estavam imaginativamente cientes da promessa de seu trabalho
compreender sua p r ó p r i a experiência e avaliar seu p r ó p r i o destino
fizeram com persistência três tipos de perguntas:
situando-se dentro de seu período, de que ele só pode conhecer suas próprias chances na vida tornando-se consciente daquelas de
1. Qual é a estrutura dessa sociedade particular como u m todo?
todos os indivíduos em suas circunstâncias. Sob muitos aspectos,
Quais são seus componentes essenciais, e como eles se relacionam
é uma lição terrível; mas t a m b é m , sob muitos aspectos, uma lição
entre si? Como ela difere de outras variedades de ordem social?
magnífica. N ã o conhecemos os limites das capacidades do homem
Dentro dela, qual é o significado de qualquer traço particular para
para esforço supremo ou degradação voluntária, para agonia ou
sua c o n t i n u a ç ã o e para sua m u d a n ç a ?
júbilo, para a brutalidade prazerosa ou a d o ç u r a da razão. Mas em nosso tempo descobrimos que os limites da "natureza humana" são
2. Onde se situa essa sociedade na história humana? Quais são
assustadoramente amplos. Descobrimos que todo i n d i v í d u o vive,
os mecanismos pelos quais ela está mudando? Qual é seu lugar
de uma geração para outra, em alguma sociedade; que ele vive uma
no desenvolvimento da humanidade como u m todo e qual é seu
biografia, e que ele a vive dentro de uma seqüência histórica. Pelo
significado para ela? Como qualquer traço particular que estamos
fato de viver, contribui, ainda que minimamente, para a confor-
examinando afeta o p e r í o d o histórico em que ela se move, e como
m a ç ã o dessa sociedade e para o curso de sua história, mesmo que
é afetado por ele? E sobre esse período, quais são seus traços fun-
seja feito pela sociedade e por seu empurra-empurra histórico.
damentais? Como ele difere de outros períodos? Quais são suas
A imaginação sociológica nos permite apreender história e
maneiras características de fazer a história?
biografia e as relações entre as duas na sociedade. Essa é sua tarefa e sua promessa. Reconhecer essa tarefa e essa promessa é a marca
3. Que variedades de homens e mulheres prevalecem agora nessa
do analista social clássico. É característico de Herbert Spencer -
sociedade e nesse período? E que variedades estão passando a
b o m b á s t i c o , polissilábico, abrangente; de E.A. Ross - elegante,
prevalecer? De que maneiras eles são selecionados e formados,
chegado a d e n ú n c i a s de corrupção, honrado; de Auguste Comte e
liberados e reprimidos, tornados sensíveis e embotados? Que
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Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
A promessa
tipos de "natureza humana" são revelados na conduta e no caráter
suprir-se de sínteses adequadas, avaliações coerentes, orientações
que observamos nessa sociedade durante esse período? E qual é
abrangentes. Decisões mais antigas, que outrora pareciam sólidas,
o significado para a "natureza humana" de cada u m dos traços da
agora lhes parecem produtos de uma mente inexplicavelmente
sociedade que estamos examinando?
obtusa. Sua capacidade de espanto é revigorada. Eles adquirem
Quer o ponto de interesse seja uma grande potência ou uma
uma nova maneira de pensar, experimentam uma transposição
tendência literária menor, uma família, uma prisão, u m credo -
de valores: numa palavra, por sua reflexão e por sua sensibilidade,
estes são tipos de perguntas que os melhores analistas sociais fize-
compreendem o significado cultural das ciências sociais.
ram. Elas são os eixos intelectuais dos estudos clássicos do homem na sociedade - e são as perguntas inevitavelmente suscitadas por qualquer mente dotada da imaginação sociológica. Pois essa imaginação é a capacidade de passar de uma perspectiva para outra - do político para o psicológico; do exame de uma única família para a avaliação comparativa dos o r ç a m e n t o s nacionais do mundo; da escola teológica para a organização militar; de considerações sobre uma indústria de petróleo para estudos de poesia c o n t e m p o r â n e a . É a capacidade de oscilar entre as transformações mais impessoais e remotas e os traços mais íntimos da pessoa humana - e de ver as relações entre os dois. Por trás de seu uso está sempre o anseio por conhecer o significado social e histórico do indivíduo na sociedade e no p e r í o d o em que ele tem sua qualidade e seu ser. É por isso, em resumo, que se espera que através da imaginação sociológica os homens possam agora captar o que está acontecendo no mundo, e compreender o que está se passando em si mesmos como m i n ú s c u l o s pontos de interseção de biografia e história dentro da sociedade. Em grande parte, a visão autoconsciente que o homem tem de si mesmo como pelo menos u m outsider, se n ã o u m estrangeiro permanente, repousa sobre uma percepção absorta da relatividade social e do poder transformador da história. A imaginação sociológica é a forma mais frutífera dessa autoconsciência. Mediante seu uso, homens cujas mentalidades abrangeram apenas uma série de órbitas limitadas chegam muitas vezes a se sentir como se tivessem despertado de repente numa casa com que haviam apenas suposto ter familiaridade. Correta ou incorretamente, chegam muitas vezes a sentir que podem agora
O que significa ser um intelectual?
Para Tovarich, do Rio de Janeiro, Brasil, outono de 1959 Transcender por sua compreensão uma variedade de ambientes cotidianos, mas não ser capaz de modificar, de mudar as forças estruturais em ação dentro e sobre esses ambientes; julgar, mas n ã o ser capaz de impor o julgamento; exigir, mas n ã o ser capaz de sustentar suas exigências - essa é a posição geral da maior parte dos intelectuais políticos, pelo menos nas sociedades ocidentais atualmente. Vendo-se nessa posição, muitos intelectuais pararam de julgar, retiraram suas exigências, engoliram sua presunção, caíram de volta nas rotinas políticas e morais de seus ambientes profissionais e residenciais. H á muitos modos, sociais e pessoais, de fazer isso, e todos estão sendo agora ativamente seguidos. Apesar de tudo isso, há algo nos intelectuais e na vida intelectual que os pressiona fortemente a assumir esse papel político de transcendência e julgamento. Há, de fato, muitas coisas, mas a primeira delas é que é simplesmente verdade que pensar de uma maneira realmente livre e ampla é, como se diz, "criar problemas", questionar e, no devido tempo, exigir e julgar. Embora, por vários motivos, possa fingir ser de outro modo, o intelectual n ã o deve ser apenas diligente; deve ser obcecado em sua devoção e, pelo menos por vezes, deve possuir uma suprema confiança em sua p r ó p r i a mente e julgamento, ou melhor, deve sentir que é o mais severo crítico de si mesmo - n i n g u é m poderia conhecer melhor seus p r ó p r i o s erros.
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Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
O que significa ser um intelectual?
N ã o acho que é demais dizer que u m intelectual político é
maneira. A maioria das pessoas se acomoda à vida privada e co-
alguém que exige de si formulações claras de posição política.
tidiana de seu ambiente. Aceitando em geral essa vida e seu lugar
Ele n ã o pode ser precipitado; quando tem de fazê-lo, isso o cons-
dentro dela, consideram seus valores como, afinal de contas, os mais
trange. Ele leva a sério o que experimenta e o que diz a respeito.
apreciáveis. No fim, a rotina da vida familiar e os rostos de seus
Se sua tarefa é formular planos de ação, é t a m b é m lutar por uma
filhos, u m emprego estável e agradável, digamos como professor
compreensão metódica da realidade, pois tal c o m p r e e n s ã o deve ser
universitário, e mais tarde uma casa bonita, u m artigo publicado a
obtida para que a qualidade de seus planos de ação corresponda
cada três anos e quem sabe u m livro-texto para enfeixá-los - isso
a seus p a d r õ e s auto-impostos.
n ã o é mais ou menos tudo que h á nela? E, afinal de contas, n ã o é
No país em que você vive [a União Soviética], há espaço para u m uso irrestrito da razão - razão além da mera racionalidade téc-
esta uma vida muito boa? Talvez a maioria das pessoas hoje responda de imediato, sim, deve ser.
nica a serviço do poder? N o país em que vivo, podemos escrever o
Aqui está a segunda alternativa, que pode ser expressada na
que quisermos; n i n g u é m nos prende. N i n g u é m tem de nos prender.
forma de uma pergunta: devo construir minha vida em torno de
Muitos de n ó s nos prendemos a n ó s mesmos. Muitos intelectuais
projetos que transcendem a vida cotidiana e privada? Rejeitando
nos Estados Unidos estão abdicando voluntariamente da atividade
geralmente como supremos os valores dessa vida e meu lugar
de protestar e do debate de alternativas para as políticas estúpidas
dentro dela, devo entrar em tensão com ela sempre que necessário?
ou a falta de políticas da elite no poder. Estão abdicando do papel da
Devo passar a me ver como n ã o só u m homem c o m u m , mas tam-
razão nos negócios humanos. Estão abdicando de fazer a história.
b é m como de certa maneira representante do discurso da razão?
Tovarich, quero que você saiba que intelectuais do meu gêne-
Uma palavra-chave aqui é "projeto", que tomo de Simone de
ro, vivendo nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha, enfrentam
Beauvoir, uma mulher admirável que escolheu a segunda alter-
alguns problemas desanimadores. Como socialistas de u m tipo
nativa, e alguém que você tem que ler, especialmente se for uma
ou de outro, somos uma minoria numa comunidade intelectual
mulher ou conhecer uma mulher. Outra chave é "padrão", com o
que é ela p r ó p r i a uma minoria. O problema mais imediato que
que me refiro às exigências que formulamos, aceitamos e fazemos
enfrentamos é a p r e s u n ç ã o nacionalista e a complacência política
a n ó s mesmos. N ã o é tanto que vivamos para idéias, é que real-
em meio aos círculos intelectuais dominantes de nossos p r ó p r i o s
mente n ã o podemos viver sem elas - embora, é claro, possamos
países. Defrontamo-nos com u m a apatia realmente profunda
existir. Mas n ã o estamos numa servidão involuntária aos poderes
acerca da política em geral e acerca dos maiores problemas do
do lugar-comum e ao terrível d o m í n i o do cotidiano.
mundo atualmente.
A maior parte das pessoas n ã o vai atrás das coisas que estão fora de seu alcance, mas o intelectual, o artista e o cientista fazem
I. Usos da alienação
exatamente isso. Fazê-lo é u m traço normal de suas vidas de trabalho. Eles contemplam suas pinturas, pensam sobre seus livros, examinam novamente a fórmula e sabem que aquilo n ã o é b o m o
Ser u m indivíduo intelectual envolve certas escolhas entre grandes -
suficiente e talvez nunca vá ser.
embora, espero, n ã o grandiosas - alternativas. A primeira delas
Estar desgostoso com a maneira como anda o mundo n ã o
tem a ver com a vida cotidiana e podemos expressá-la da seguinte
é necessariamente ser uma pessoa rabugenta. Estar contrafeito
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92
O que significa ser um intelectual?
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
com o mundo n ã o é necessariamente estar contrafeito consigo
a idéia de natureza ou de humanidade. O internacionalismo da
mesmo. Embora uma boa parte de nossa experiência talvez seja
mente e das sensibilidades é inerente ao princípio do intelectual de
necessariamente alienada, a capacidade de experiência de vida
que toda crença deve ser condicional ao raciocínio do indivíduo,
n ã o precisa ser expropriada. É inteiramente possível estar adequa-
e de que todas as suas sensibilidades e preferências de valor moral
damente isolado e portanto n ã o alienado; é possível viver numa
e estético devem ser produtos de autocultivo consciente. N ã o há
sociedade superdesenvolvida, mas n ã o ser uma pessoa subdesen-
outro sentido para o livre uso da mente humana, para a genuína
volvida. Isso depende em parte das maneiras como escapamos
liberação do eu.
de aspectos desagradáveis de n ó s mesmos e de nossas condições. Todo mundo com alguma vivacidade se entrega a muitas fugas, e está continuamente planejando futuras fugas, com as quais espera
III. Que significa escrever
aprender alguma coisa sobre si mesmo e sobre o mundo. Pois o que é importante nas fugas n ã o é evitá-las (ou c o n t i n u a r í a m o s
Como escritor, sempre tentei, ainda que de maneiras diferentes,
sendo sempre u m de nossos velhos eus), mas escolhê-las com
fazer uma única coisa: definir e dramatizar as características es-
cuidado e usá-las bem.
senciais de nosso tempo. Quer eu tenha escrito sobre líderes trabalhistas ou fazendeiros, sobre executivos de empresa ou migrantes porto-riquenhos, sobre empregados de escritório, donas-de-casa
II. O caráter internacional da vida intelectual
ou operários, tentei vê-los como atores no drama do século X X . Muitas vezes falhei nisso, e sem d ú v i d a voltarei a falhar, mas é isso
Você e eu, Tovarich, somos estudiosos, escritores e leitores;
que estou tentando fazer.
pertencemos a algo m a i o r que qualquer governo; devemos
O b o m escritor tenta unir uma variedade de vidas privadas
lealdade, se você quiser, a algo mais elevado que qualquer Es-
com questões públicas. Tenta enriquecer a vida privada tornan-
tado. Lealdades políticas são condicionais a nosso raciocínio, e
do-a publicamente relevante. Ao mesmo tempo, tenta introduzir
tais lealdades n ã o estão circunscritas por fronteiras nacionais.
significado humano no que é hoje chamado de questões públicas,
Este é u m ponto m u i t o importante para nossa tentativa de nos
transformando-as para que permitam e estimulem uma variedade
comunicarmos. A vida intelectual, e portanto a vida de trabalho
mais decente de vidas privadas. Devemos nos recusar a separar as
de qualquer intelectual, n ã o está confinada a nenhuma nação.
duas coisas, pois embora a medida mais adequada das questões
As mentes dos intelectuais foram formadas por u m processo
públicas deva ser sempre as vidas privadas que elas permitem, a
essencialmente internacional, e seu trabalho é essencialmente
natureza de uma de nossas muitas armadilhas é que n ã o podemos
u m tráfego internacional.
esperar resolver os problemas da vida privada nem da vida pública
O internacionalismo da mente e das sensibilidades n ã o é u m
separadamente. O que devemos fazer como escritores é começar
internacionalismo abstrato. Nem é inacessível. Está disponível na
a transformar todas as nossas armadilhas numa série de tarefas.
livraria da esquina, na biblioteca no centro da cidade; é t ã o sólido
Pois com freqüência assumimos o hábito do animal preso numa
quanto a sensação produzida pelo aspecto de uma viga de aço, tão
armadilha; esquecemos que n ã o somos meramente animais, e que
específico quanto a graça de u m broto de bambu, tão geral quanto
n ã o caímos numa armadilha.
O que significa ser um intelectual?
Sobre o artesanato intelectual e outros ensaios
Uma outra coisa que devemos lembrar, que sempre tendo a esquecer, é que n ã o devemos subestimar o que mesmo uma
grande fluxo. Após quatro ou cinco semanas de trabalho constante, paramos uma m a n h ã para examinar tudo. Mesmo após 20 anos
pequena circulação de idéias é capaz de fazer, em especial - se
nisso, é sempre espantoso, essas 100 páginas, o u perto disso, onde
posso dizer isto - idéias cômicas e sem sentido. Os homens de
antes n ã o havia nada. Elas corporificam os minutos, horas e dias
poder são implacáveis, e nossas principais armas em tempos como
mais alertas que jamais tivemos.
estes são a audácia e o riso. Gostaria de ter mais senso de humor, Tovarich, mas p a r e ç o simplesmente incapaz disso, pessoalmente, ou nas coisas que escrevo. Escrever, se nos dedicamos a isso por tempo suficiente, é evidentemente u m conjunto de hábitos e de sensibilidades que moldam quase todas as nossas experiências. Escrever é, entre outras coisas, sempre uma maneira de compreender a n ó s mesmos. Só compreendemos nossos p r ó p r i o s sentimentos e nossas próprias idéias escrevendo-os. N ã o pretendo, Tovarich, conhecer todas as razões, profundas ou superficiais, pelas quais uma variedade de pessoas escreve, mas u m motivo, pelo menos para m i m , tem a ver com a sensação de p ô r mais uma parte do mundo numa forma ordenada enquanto estou efetivamente empenhado em escrever. Escrever é raciocinar; é lutar contra o caos e a escuridão. H á u m entusiasmo que "toma conta de n ó s " quando sentimos - n ã o importa agora se é assim ou n ã o - que estamos conquistando mais u m pouco desse caos para e pelo entendimento. É claro que se trata t a m b é m de uma luta contra outras idéias e arranjos de idéias e imagens a que somos contrários, moral, lógica ou factualmente. Acima de tudo isto, há u m elemento estético na escrita que está provavelmente envolvido em qualquer trabalho manual, em qualquer tentativa de impor forma à matéria. É provavelmente similar na pedra, na madeira ou no som, mas, evidentemente, é no meio da linguagem que é mais intricado e mais agradável para mim. No fim das contas, suponho, a principal razão por que n ã o sou "alienado" é porque escrevo. Após u m longo tempo nisso, passamos a saber o quanto podemos ficar totalmente vivos no meio do
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