O Inferno - Monsenhor De Segur

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MONSENHOR DE SÉGUR

O INFERNO se existe • o que é • como evitá-lo Tradução e notas de Diogo Chiuso

SUMÁRIO Capa Folha de Rosto Sumário Epígrafe Nota da Sua Santidade o Papa Pio IX ao Autor Prefácio Prólogo Capítulo I – O Inferno Existe É a crença de todos os povos; de todos os tempos Não se inventou e nem se poderia inventá-lo Foi Deus mesmo quem nos revelou Se realmente existe um inferno, por que de lá nunca ninguém voltou? I. O doutor Raymond Diocrès II. O jovem religioso de Santo Antônio III. A cortesã de Nápoles IV. O amigo do conde Orloff V. A dama do bracelete de ouro VI. A filha perdida de Roma Por que tanta gente se esforça para negar a existência do inferno? Que bem acreditariam no inferno se os mortos ressuscitassem mais Capítulo II – O que é o Inferno As idéias falsas e supersticiosas acerca dele O inferno consiste, sobretudo, numa pavorosa pena de danação Em segundo lugar, o inferno consiste na dor horrível de fogo O fogo do inferno é sobrenatural e incompreensível I. Padre Bussy e o jovem libertino II. Os três filhos de um velho usurário III. Meus filhos, não queiram ir para o inferno O fogo do inferno é um fogo corpóreo Ainda que seja corpóreo, o fogo do inferno atinge as almas IV. O capitão-ajudante de Saint-Cyr V. A mão queimada de Foligno

Onde está o fogo do inferno? O fogo do inferno é um fogo tenebroso: visões de Santa Teresa Que outras grandiosas penas acompanham o sombrio fogo do inferno Capítulo III – Sobre a eternidade das penas do Inferno É uma verdade de Fé revelada Sobre o inferno ser necessariamente eterno devido a natureza mesma da eternidade Mais uma razão para a eternidade das penas: o vazio de Graça Terceira razão da eternidade das penas: a depravação da vontade dos condenados Se é verdade que Deus seja injusto punindo com castigos eternos as faltas de um momento Se assim também é para os pecados de fraqueza Quem são os que tomam o caminho do inferno? Se podemos ter certeza da condenação de alguém que vemos morrer mal Capítulo IV – Conclusões práticas Sair imediatamente, e a qualquer preço, do estado de pecado mortal Evitar com muito cuidado as ocasiões perigosas e as ilusões Certifique-se da sua salvação eterna por uma vida seriamente cristã Epílogo Créditos

A TUA PERDIÇÃO, Ó ISRAEL, VEM DE TI. DE MIM VEM APENAS TEU SOCORRO. — Os 13,9

NOTA DA SUA SANTIDADE O PAPA PIO IX AO AUTOR Eu vos saúdo, bem amado filho, com a Bênção Apostólica. Felicitações de todo o nosso coração, que vós não cessais em preencher, em larga escala e muita competência, com o ofício de arauto do Evangelho. Tudo o que publicais espalha-se rapidamente entre o povo. Evidentemente, para que vossos escritos despertem tanto interesse, é necessário que sejam agradáveis – e não agradariam se não tivessem o dom de conciliar os espíritos e chegar até o fundo dos corações, produzindo, em cada um deles, efeitos benéficos. Beneficiai com a Graça que Deus vos deu, e continuai a trabalhar com ardor para cumprir a vossa tarefa de evangelização. Quanto a nós, prometemo-vos uma assistência ampla da parte de Deus, através da qual podereis iniciar um número de almas cada vez mais considerável nas vias da salvação, e assim tecereis uma magnífica coroa de glória. Por enquanto, como prêmio a esse celestial favor e de outros dons do Senhor, recebeis, bem-amado filho, a Bênção Apostólica que vos damos com grande amor, para que testemunhais nossa benevolência paterna. Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 2 de março de 1876, trigésimo ano de nosso Pontificado.* PAPA PIO IX * Um ano e oito meses mais tarde, com a morte de Pio IX, encerrava-se o pontificado mais longo da História depois de São Pedro. Criticado por ser conservador, condenou, na encíclica Syllabus, os principais erros da nossa época: socialismo, comunismo e também o liberalismo maçônico. Proclamou o dogma da Imaculada Conceição no dia 8 de dezembro de 1854, e, passados 3 anos dessa solene proclamação, a 11 de agosto de 1858, Nossa Senhora dignou-se a aparecer, por quinze dias seguidos, perto da pequena cidade de Lourdes, na França, a uma pobre menina chamada Bernardete, de 13 anos de idade. O túmulo de Pio IX está na igreja de San Lorenzo Fuori le Mura, em Roma. A sua controversa beatificação, iniciada em 11 de fevereiro de 1907, foi relançada por três vezes antes dele ser declarado Venerável (6 de julho de 1985). Em 3 de setembro de 2000, foi beatificado pelo Papa João Paulo II, e sua festa litúrgica é comemorada no dia 7 de fevereiro, data de seu falecimento.

PREFÁCIO «Pensa nos Novíssimos e não pecarás!» Era este o alerta que recebíamos no Catecismo de que participei há mais de cinqüenta anos. Os Novíssimos! As últimas coisas que aconteciam a cada um de nós: morte, juízo, inferno, paraíso. Intrigava-nos, crianças ainda, o nome ‘Novíssimos’. Parecia-nos estranho e tão diferente. E o tempo passou; e essas realidades que se aproximam tornam-se mais presentes em nossas vidas. Sou padre, pela Graça de Deus! E a vocação recebida coloca-me em contato constante com o Senhor e Sua bondade. A Misericórdia Divina manifesta-se nos Sacramentos que presido no dia-a-dia de minha corrida vida. Observo os pecadores saírem renovados na Confissão. Admiro-me de Jesus, o Pão da Vida, que se fez alimento, na memória incruenta de Seu sacrifício no altar. Vejo a criança renascer nas águas do Batismo. Creio no Senhor que nos fez por amor e, por esse mesmo amor, quer nos salvar e levar-nos para viver com Ele no Seu Reino. Sou convidado, então, a ler o livro «O Inferno» de Monsenhor de Ségur, sacerdote francês do já longínqüo século XIX. E uma pergunta brota em meu espírito: que contribuição esperar de um livro como este, que recorda tão triste tema? Certamente o autor não quer somente nos passar um sentimento de pavor ao relatar as terríveis palavras da Escritura que nos advertem dos castigos que, infelizmente, podem acometer cada ser humano deste mundo. Também não quer nos espantar ao narrar tristes casos de almas penadas, recurso apologético para uma época que vivia a exaltação da ciência e da razão, que pretendiam excluir a ação de Deus em meio aos homens. De fato, outra é a situação do autor e nela devemos nos fixar. O que Monsenhor de Ségur almeja é despertar o Temor pelo temor. O temor do inferno causa-nos medo perante o sofrimento que nos poderá acometer, e isso nos pre- ocupa imensamente. Ninguém quer sofrer, sobretudo hoje, e o ser humano anseia por sua felicidade. No entanto, seu livro não tem como finalidade despertar esse temor. Seu objetivo é, de fato, pela reflexão sobre o inferno: levar-nos ao temor de Deus. Temor entendido não como medo ou pavor de Deus, mas sim o temor de perdê-Lo e, mais

ainda, magoar Aquele que nos ama a ponto de dar-nos Seu Filho amado para a nossa salvação. Assim, o temor de Deus é simplesmente corresponder ao amor «d’Aquele que nos amou primeiro». Portanto, leva-nos do terror do inferno ao temor de Deus. Do temor de Deus ao amor a Deus.[1Jo 4,19] É para isto que nos orienta este livro: unir-se em plenitude no Amor de Deus, na vida e nos sacramentos. E aparece em nova veste editorial com a tradução em nossa bela língua portuguesa. É muito bom apreciar o trabalho de Diogo Chiuso, jornalista e tradutor, católico consciente e dinâmico, que mostra a beleza de nossa fé em nossa língua. Essa tradução vem enriquecida com notas, auxiliando na leitura e apreciação de uma obra que, nascida em outras circunstâncias, poderia soar estranha neste início do século XXI da era cristã. Agradeço-lhe de coração esse incentivo que nos vem do seu trabalho, unido ao de Monsenhor de Ségur, de amor cada vez maior ao Senhor, correto em Seus juízos e ainda mais abundante em Sua Misericórdia. Santos, 1 de outubro de 2011. PE. ANTONIO PAULO FERREIRA DE CASTILHO Sacerdote da Diocese de Santos/SP e Doutor em Ciência da Religião

PRÓLOGO Foi em 1837. Dois jovens sub-tenentes, recém-formados de Saint-Cyr,1 visitavam os monumentos e pontos turísticos de Paris. Eles entraram na Igreja da Assunção, perto das Tulherias, e começaram a olhar para as imagens, pinturas e outros detalhes artísticos daquela bonita rotunda. Sequer pensaram em rezar. Perto de um confessionário, um deles notou que um jovem padre de sobrepeliz adorava o Santíssimo Sacramento: – Veja aquele padre, parece que ele está esperando alguém. – Talvez esteja esperando por você – o outro respondeu sorrindo. – Mas por que seria por mim? – Ora, para você confessar! – Confessar, eu? Tudo bem, quer apostar como vou? – Você, confessar? Até parece! – pôs-se a rir. – Quer apostar um bom jantar com uma garrafa de champanhe gelada? – provocava o jovem oficial, de escárnio, mas decidido. – Vá lá, por um jantar com champanhe eu desafio você a entrar naquela caixa! Aposta feita, o jovem foi até o padre, sussurrou algo em seu ouvido e foram ambos ao confessionário. Foi quando o penitente improvisado lançou um olhar de vencedor para o seu camarada e, logo depois, ajoelhou-se como se fosse confessar de verdade. – Descarado! – sussurrou o outro, sentando-se, a esperar o que iria acontecer. E esperou por cinco; dez; vinte e cinco minutos. «O que ele está fazendo?», perguntava-se. «O que ele pode ter dito depois de tanto tempo?» Até que, finalmente, abre-se o confessionário. Sai o padre com um rosto animado, porém sério. Dirigiu-se para sacristia, não sem antes cumprimentar o desonesto confessor que, naquele momento, estava vermelho como um tomate a mexer no bigode de forma atrapalhada. Ainda acanhado, o jovem oficial sinalizou ao amigo para que o seguisse até o lado de fora da igreja. – Diga-me o que aconteceu! Saiba que esteve por mais de vinte minutos com aquele padre. Palavra de honra: por um momento pensei que tivesse

confessado a sério! Ganhou o jantar, vai querer para esta noite? – Não! – respondeu-lhe de mau humor – Nos veremos outro dia, agora tenho muito que fazer. Totalmente transtornado, apertou as mãos do companheiro e, sem mais nada a dizer, foi-se. Mas o que havia acontecido, de fato, entre o sub-tenente e o sacerdote? Isto: mal o padre abriu a janela do confessionário, percebeu a farsa. O jovem ainda teve a impertinência de lhe dizer, eu não sei ao certo, mas algo como: «não me importo com a religião e nem mesmo com a confissão!» Porém aquele padre era um homem de espírito, e com doçura interrompeu o seu interlocutor: – Meu caro senhor, vejo que não veio aqui com a seriedade devida. Mas deixemos a confissão de lado e, caso não ache ruim, podemos conversar por alguns instantes. Parece-me um bom rapaz e eu tenho em grande conta os militares. Poderia me dizer a sua patente? O oficial percebeu que havia feito algo insensato e pensou que, conversando um pouco com o padre, poderia se redimir. Assim respondeu, desta vez de forma educada: – Sou um sub-tenente, venho de Saint-Cyr. – Sub-tenente? E por quanto tempo será sub-tenente? – Não sei, talvez por dois, três ou quatro anos. – E depois? – Depois serei tenente! – E depois? – Depois serei capitão! – Capitão? Muito bem! E com qual idade é permitido ser capitão? – Se tiver a chance, posso ser capitão com vinte e oito ou vinte nove anos. – E depois? – Ah, difícil dizer! Passa-se um bom tempo como capitão, depois como chefe do batalhão, depois como tenente-coronel até chegar a coronel. – Bem, o senhor será coronel com quarenta ou quarenta e dois anos. Mas e depois? – Deverei ser general de brigada e depois general da divisão. – E depois? – Sobra apenas o cargo de marechal, mas minhas pretensões não são tantas...

– Mas não pensa em se casar? – Sim, claro! Assim que eu for um oficial superior. – Entendo... o senhor será casado, oficial superior, general, general da divisão, talvez até marechal da França, quem sabe? Mas e depois? – Depois... depois... Ah, não sei dizer o que virá depois – responde, e neste momento já parece estar um pouco confuso. Desta vez o padre lhe diz com um tom mais sério: – Veja como é estranho! Você sabe o que vai acontecer até lá, mas não o que virá depois. Bem, eu sei e vou lhe contar: depois, meu caro, virá a sua morte; depois, estará diante de Deus e será julgado. E se continuar a fazer o que fez agora, encontrará a danação e queimará eternamente no inferno. É isto o que acontecerá depois! Atordoado, o jovem ensaia fugir, mas o sacerdote o impede: – Um instante, meu rapaz! Ainda tenho algo a dizer. Você tem honra, não é verdade? Pois bem, também a tenho, e o senhor acabou de ofendê-la e por isso exijo uma reparação. Mas será algo simples. Quero apenas a sua promessa de que, durante oito dias, antes de dormir, ajoelhar-se-á e dirá em voz alta: um dia eu morrerei, mas não me importo; depois do meu julgamento, serei condenado, mas não me importo; depois irei queimar eternamente no inferno, mas não me importo. Apenas isso! Sei que, como um homem honrado, não irá faltar com a sua palavra! O sub-tenente, envergonhado, em desespero para sair dali, fez sua promessa. O bom padre se despediu, acrescentando: – Eu não preciso dizer, meu caro amigo, que eu te perdoo com todo o meu coração. Se um dia você precisar de mim, sempre me encontrará aqui. Só não se esqueça de que me empenhou a sua palavra! Como vimos anteriormente, eles se separaram. Naquela noite, o jovem oficial jantava sozinho e as lembranças do que ocorrera o irritava profundamente. Quando chegou a hora de se deitar, hesitou um pouco, mas tinha de honrar a palavra dada: – Eu morrerei, serei julgado e poderei ir para o inferno... – mas não teve coragem de dizer: «eu não me importo!» Vários dias se passaram e, sem cessar, o arrependimento retornava ao seu espírito, como se fosse um zumbido em suas orelhas. Em verdade, como noventa e nove por cento dos jovens, ele era mais desorientado do que mau.

Passados os oito dias, ele voltou à Igreja da Assunção, mas desta vez para confessar de forma sincera. Deixou o confessionário com o rosto banhado em lágrimas, que expressava alegria no coração. Segundo me disseram, passou, dali em diante, a ser um digno devoto de Cristo. Portanto, foi através de uma reflexão séria sobre o inferno que, com a Graça de Deus, operou-se a transformação. Ora, se ela agiu no espírito daquele jovem oficial, por que não haveria de agir no seu, caro leitor? É preciso refletir sobre esse assunto, afinal trata-se de uma questão bastante pessoal e, admito, profundamente temerosa. Mas ela está diante de nós e, queiramos ou não, devemos encontrar uma solução definitiva. Iremos, portanto – e assim se exige –, examinar com muito cuidado, embora brevemente, duas coisas: primeiro, se o inferno realmente existe e; segundo, o que é o inferno. Antes de começar, faço apenas um apelo à sua boa fé. 1 Escola Superior Militar de Saint-Cyr, a mais famosa academia militar francesa. Localizada no departamento de Bretanha, noroeste da França.

SANCTE MICHAEL ARCHANGELE, DEFENDE NOS IN PRŒLIO CONTRA NEQUITIAM ET INSIDIAS DIABOLI ESTO PRÆSIDIUM. IMPERET ILLI DEUS, SUPPLICES DEPRECAMUR: TUQUE, PRINCEPS MILITIÆ CÆLESTIS, SATANAM ALIOSQUE SPIRITUS MALIGNOS, QUI AD PERDITIONEM ANIMARUM PERVAGANTUR IN MUNDO, DIVINA VIRTUTE IN INFERNUM DETRUDE. AMEN.

CAPÍTULO I

O INFERNO EXISTE É a crença de todos os povos; de todos os tempos Aquilo em que as pessoas sempre acreditaram constitui o que chamamos de verdade de senso comum – ou, se preferir, de sentimento comum, universal. Qualquer pessoa que se recuse a admitir uma dessas grandes verdades universais não teria, portanto, o senso comum. De fato, é preciso ser louco para imaginar que se pode ter razão sozinho contra o mundo inteiro. Ora, em todos os tempos, desde o início do mundo até os nossos dias, não se tem notícia de povos que não acreditassem em um inferno. Com um nome ou outro, com formas mais ou menos variáveis, todos receberam, conservaram e proclamaram a crença na punição indubitável e eterna de que, após a morte, prevalece o fogo a castigar os ímpios. É um fato notório, estabelecido com tanta luminosidade pelos grandes filósofos cristãos, que sequer é preciso demonstrá-lo. Desde o princípio, encontramos a existência do inferno de fogo eterno nos livros mais antigos que se conhecem: os de Moisés. Cito-os aqui apenas sob um ponto de vista estritamente histórico, pois eles registram o nome do inferno com todas as letras. Assim nos conta o décimo sexto capítulo do livro dos Números: os três levitas, Coré, Datã e Abiron, que tinham blasfemado contra Deus e haviam se revoltado contra Moisés, foram «tragados vivos para o inferno». Eles «desceram vivos para o inferno (descenderuntque vivi in infernum); e o fogo (ignis) saído do Senhor devorou duzentos e cinqüenta outros rebeldes».2 Isso foi escrito por Moisés há mais de seiscentos anos antes do nascimento de Nosso Senhor, ou seja, mais ou menos três mil e quinhentos anos atrás. No Deuteronômio, o Senhor diz, pela boca de Moisés: «Sim! O fogo da minha ira está ardendo e vai queimar até o mais fundo do inferno (et ardebit us que ad inferna novissima)». No livro de Jó, igualmente escrito por Moisés,3 o servo Jó testemunha que os ímpios, cuja vida era repleta de bens, disseram a Deus: «Afasta-te de nós, pois não nos interessa conhecer os teus caminhos. Quem é o Todo-Poderoso, para que o sirvamos? De que nos aproveita que lhe façamos orações?» Estes ímpios «caíram no inferno (in puncto ad inferna descendunt)».4 [Dt 32,22] Jó ainda descreve o inferno como «terra soturna e sombria, de escuridão e desordem, onde a claridade é a sombra».5

Certamente, são testemunhos mais do que respeitáveis, que remontam às mais antigas origens históricas. Mil anos antes da Era Cristã, quando ainda não estavam em questão nem a História grega nem a romana, Davi e Salomão falavam freqüentemente do inferno como uma grande verdade, conhecida e reconhecida por todos, sem haver necessidade de demonstração. No livro dos Salmos, entre outras coisas, dizia Davi sobre os pecadores: «Sejam precipitados todos os pecadores no inferno (et deducantur in infernum), envergonhem-se, e sejam conduzidos ao inferno (convertantur peccatores in infernum). E também fala das ‘dores do inferno’ (dolores inferni)»[Sl 30,18] [ 9,18] [ 17,6] Salomão não é menos claro. Referindo-se aos ímpios que querem seduzir e fazer se perder os justos, diz: «Nós os tragaremos vivos, como o inferno (sicut infernus)». E na famosa passagem do Livro da Sabedoria, onde descreve os desesperos dos condenado: «Eis o que dizem os pecadores no inferno (in inferno); sim, a esperança do ímpio é como palha levada pelo vento».[Pr 1,12] [Sb 5,14] Outro dos seus livros, chamado Eclesiástico, diz ainda: «A assembléia dos pecadores é monte de estopa, cujo fim derradeiro é a chama de fogo (flamma ignis); no final estão o inferno, e as trevas, e os castigos (et in fine illorum inferi, et tenebrae, et poenae)». [Eclo 21,10 sq] Dois séculos mais tarde, mais de oitocentos anos antes de Jesus Cristo, era a vez do grande Profeta Isaías dizer: «Como caíste do alto dos céus, ó Lúcifer? (…) dizias a teu coração: subirei acima da altura das nuvens e serei semelhante ao Altíssimo. E, contudo, no inferno serás precipitado até o profundo lago (ad infernum detraheris, in profundum laci).»Veremos mais tarde o que podemos entender por esse abismo, esse misterioso ‘lodaçal’, essa terrível massa de fogo líquida abrigada e escondida na terra, que a própria Igreja nos indica como o lugar propriamente dito do inferno. [Is 14,11 sq] Em outra passagem do livro de Isaías, o Profeta fala do eterno fogo do inferno: «O temor se apoderou dos ímpios. Quem dentre nós poderá habitar com o fogo devorador (cum igne devorante)? Quem dentre nós poderá manter-se junto aos braseiros eternos (cum ardoribus sempiternis)?» [Is 33,14] Também o Profeta Daniel, que viveu duzentos anos após Isaías, ao falar da ressurreição dos mortos e do julgamento: «E toda esta multidão dos que dormem no pó da terra, acordarão: uns para a vida eterna, e outros para o

opróbrio, que eles terão sempre diante dos olhos.» [Dn 12,2] O mesmo testemunho é dado por outros Profetas, até chegar ao precursor do Messias, São João Batista, que também fala ao povo de Jerusalém sobre o eterno fogo do inferno, como uma verdade de todos conhecida, da qual jamais se duvidou: «Eis o Cristo que se aproxima», disse; «Ele recolherá o Seu trigo (os eleitos) no celeiro, mas queimará as palhas (os pecados) num fogo inextinguível (in igne inextinguibili).» [Mt 3,12] A antigüidade pagã também nos legou relatos sobre o inferno, com seus terríveis e infindáveis tormentos. Portanto, sob formas mais ou menos exatas – conforme maior ou menor distância dos povos em relação às tradições primitivas e os ensinamentos dos Patriarcas e Profetas –, sempre nos deparamos com a crença em um inferno de fogo e trevas. Assim era o Tártaro6 dos gregos e latinos: «Aqueles que são incuráveis, por causa da enormidade dos seus pecados, (…) terão justo castigo ao serem lançados no Tártaro, de onde nunca mais sairão», afirma Sócrates, citado pelo discípulo Platão.7 E Platão diz mais: «É preciso dar fé às tradições antigas e sagradas que nos ensinam que a alma é imortal e também que, após esta vida, ela será julgada e punida de forma severa, caso não tenha vivido de forma conveniente».8 Aristóteles, Cícero, Sêneca, todos falaram dessas tradições que se perderam nas brumas do tempo, enquanto Homero e Virgílio cobriram-nas de cores com suas poesias imortais. Quem, por acaso, não leu a narrativa da descida de Enéias aos infernos,9 onde um dentre eles nos é descrito como «preso eternamente no inferno». De fato, com o nome de Tártaro ou Plutão, reencontramos, ainda que com algumas deturpações, as grandes verdades primitivas preservadas pelo paganismo, com os suplícios dos maus condenados eternamente. O filósofo cético Bayle foi o primeiro a constatar e reconhecer a preservação dessa crença universal. Seu parceiro de voltairianismo – e impiedade –, o inglês Bolingbroke, também a reconheceu com igual franqueza: «A doutrina de um estado futuro de recompensas e punições parece se perder nas trevas da antigüidade; ela precede tudo o que sabemos de certo. Desde que começamos a desvendar o caos da História antiga, deparamo- nos com esta crença, de maneira muito sólida, no espírito das primeiras nações de que temos notícias».10 E podemos encontrar o que delas restou até mesmo entre as superstições

dos selvagens da América, África e Oceania. Também os paganismos da Índia e da Pérsia guardavam vestígios impressionantes. Por fim, até mesmo o maometismo lista um inferno na relação dos seus dogmas. Já no seio do cristianismo é desnecessário dizer que o dogma do inferno é ensinado como uma das grandes verdades fundamentais que servem de base ao edifício da Religião. Mesmo os protestantes, que tudo destruíram com a louca doutrina do «livre exame», não ousaram tocar no inferno. Espantoso, inexplicável! Em meio a tantas ruínas, Lutero, Calvino e os outros deixaram em pé a temível verdade que, por certo, devia-lhes ser pessoalmente inoportuna! Portanto, todas as pessoas, em todos os tempos, conheceram e reconheceram a existência do inferno. Devido a isso, este dogma faz parte do tesouro das grandes verdades universais, que se constitui como a luz da humanidade. Assim, não é possível a um homem sensato colocá-la sob suspeita, dizendo, na loucura de uma orgulhosa ignorância, que o inferno não existe! Pelo contrário: o inferno existe!

Não se inventou e nem se poderia inventá-lo Acabamos de ver que em todos os tempos se acreditou na existência do inferno – e isto prova não se tratar de uma invenção humana. Mas suponhamos, somente por um instante, um mundo onde a vida é muito tranquila, sem crenças, abandonado às paixões e ao prazer. Eis que um belo dia surge um homem, um filósofo, a dizer: «Há um inferno, um lugar de tormentos eternos, onde Deus vos punirá se continuardes a fazer o mal; um inferno de fogo onde queimareis para sempre, caso não mudeis de vida». É possível imaginar o efeito de tal anunciação? A princípio, ninguém teria acreditado. «O que vindes nos pregar?», diriam a esse inventor do inferno. «De onde tirastes esta idéia? Quais provas podeis nos apresentar? Sois nada mais do que um sonhador, um profeta da desgraça». Repito: ninguém teria acreditado! Isso porque o homem corrompido se opõe instintivamente à idéia do inferno. Por essa razão, todos os culpados rejeitam, enquanto puderem, a idéia de serem punidos. Rejeitam, com mais força, a perspectiva desse fogo vingador e eterno que deve punir impiedosamente todos os seus pecados – mesmo os mais secretos. Sobretudo numa sociedade como essa a que supomos, onde jamais alguém ouviu falar do inferno, a revolta contra a possibilidade de haver castigos eternos se juntaria à revolta das paixões por negá-los. Portanto, não apenas ninguém haveria de acreditar nesse infeliz inventor, como teriam-no caçado com cólera, apedrejado-o, de modo que a ninguém mais ocorreria o desejo de recomeçar tal invenção. E, mesmo que pareça impossível, acreditamos nessa estranha invenção. Se, aparentemente ainda mais impossível, todos os povos se puseram a acreditar no inferno, na palavra do suposto filósofo citado, então eu lhes pergunto: não poderiam estar registrados na História tal acontecimento, o nome do inventor, o século e o país onde ele teria vivido? Jamais alguém foi apontado como o inventor de uma doutrina tão terrível, tão contrária às paixões do espírito humano. O inferno não foi inventado porque simplesmente não poderia ser. Afinal, as penas eternas – ou o inferno propriamente dito – formam um dogma impossível de se compreender através da razão humana. É possível conhecê-lo, mas nunca compreendê-lo, pois está acima das nossas possibilidades de compreensão. Desta forma, se o

homem não pode compreender o inferno, como poderia tê-lo inventado? Mas pelo fato do inferno não poder ser compreendido pela razão humana, só resta a ela negá-lo e tentar fazer crer que é algo impossível de existir, apenas porque não pode ser esclarecido, nem mesmo pelas luzes sobrenaturais da fé. No entanto, o dogma do inferno é o que chamamos de «verdade inata», ou seja, uma luz de origem divina que em nós brilha independente de nós mesmos, pois está no fundo das nossas consciências, solidificado nas profundezas de nossa alma, assim como um diamante negro que brilha desde uma sombria fenda. E não há quem possa arrancá-lo, pois foi o próprio Deus que lá o colocou. É possível cobrir tal diamante e sua chama sombria; é possível evitá-lo aos olhos, esquecê-lo por algum tempo ou mesmo negá-lo com palavras. Mas ainda que não acreditemos, a consciência não cessa em nos mostrá-lo. Os ímpios que zombam do inferno têm, no fundo, um medo terrível. Aqueles que dizem poder provar que o inferno não existe mentem a eles mesmos e para os outros. É muito mais um impuro desejo do coração do que uma negação racional pela inteligência. No século passado, um desses insolentes escreveu a Voltaire dizendo ter descoberto a prova metafísica da inexistência do inferno: «Você é um bemaventurado!» – respondeu-lhe o velho patriarca dos incrédulos – «estou longe de chegar lá». Não, o homem não inventou o inferno. Não inventou e não poderia tê-lo inventado. O dogma do inferno de fogo eterno remonta a Deus. Faz parte dessa grande revelação primitiva que é a base da Religião e da vida moral do gênero humano. Portanto, o inferno existe.

Foi Deus mesmo quem nos revelou As passagens do Antigo Testamento que citei anteriormente nos mostram que foi o próprio Deus quem revelou o dogma do inferno aos Patriarcas, aos Profetas e ao antigo povo de Israel. Com efeito, não são apenas testemunhos históricos; são, sobretudo, testemunhos divinos que comandam a fé, que se impõem à nossa consciência com a autoridade infalível das verdades reveladas. Nosso Senhor Jesus Cristo confirmou solenemente essa formidável revelação, pois fala quatorze vezes sobre o inferno nos Evangelhos. Não nos reportaremos aqui a todas essas palavras, mas veremos apenas as principais. Não esqueçamos, meu bom leitor, que é Deus mesmo quem fala aqui, e Ele disse: «Passarão o céu e a terra, mas não passarão as minhas palavras.»[Mt 24,35] [Mc 13,31] [Lc 21,33] Pouco após a Sua admirável Transfiguração11 no monte Tabor, Nosso Senhor disse aos Seus discípulos e as pessoas que o seguiam: «Se tua mão ou teu pé te escandalizam, corta-os e atira-os para longe de ti. Melhor é que entres mutilado ou manco para a Vida do que, tendo duas mãos ou dois pés, seres atirado no fogo eterno (in gehennam ignis inextinguibili). E, se teu olho te escandaliza, arranca-o e atira-o para longe de ti. Melhor é que entres com um só olho para a vida do que, tendo dois olhos, seres atirado no fogo do inferno, onde o fogo jamais extinguirá (et ignis non extinguitur).» [Mt 18,8-9 ] [Mc 9,43] Ele também fala que chegará o fim dos tempos: «O Filho do Homem enviará Seus anjos e eles apanharão do Seu Reino todos os escândalos e os que praticam a iniquidade e lança-los-ão na fornalha ardente (in caminum ignis). Ali haverá choro e ranger com os dentes. Então os justos brilharão como o sol no Reino de Seu Pai. O que tem ouvidos, ouça!» [Mt 13,41sq] Quando o Filho de Deus prediz o juízo final, no vigésimo quinto capítulo do Evangelho de São Mateus, faz-nos saber de antemão os próprios termos da sentença que Ele pronunciará contra os condenados: «Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno (discedite a me, maledicti, in ignem aeternum) preparado para o diabo e para os seus anjos». E acrescenta: «E irão esses para o suplício eterno (in supplicium aeternum)». [Mt 25,41sq] Pode haver algo mais decisivo? Os Apóstolos, encarregados pelo Salvador para desenvolver Sua doutrina e

ensinar Suas revelações, não falam de maneira menos explícita sobre o inferno e suas chamas eternas. Para citar apenas algumas de suas palavras, lembremos que São Paulo, pregando sobre o juízo final, disse aos cristãos de Tessalônica: «O Senhor Jesus descerá do céu com os Anjos da Sua virtude, em chama de fogo (in flamma ignis) para vingar-se daqueles que não conhecem a Deus, e que não obedecem ao Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. O castigo deles será a ruína eterna longe da face do Senhor e do esplendor de Sua majestade.» [2Ts 1,7-9] O Apóstolo Pedro diz que os ímpios partilharão do castigo dos anjos maus, que o Senhor os precipitou nas profundezas do inferno, no tormento do Tártaro (rudentibus inferni detractos in Tartarum tradidit cruciandos). Ele os chama de «filhos da maldição» (maledictionis filii) a quem são reservados os horrores das trevas.12 São João, do mesmo modo, falou-nos do inferno e suas chamas eternas. Quanto ao anticristo e seu falso profeta, disse: «ambos foram lançados vivos no lago de fogo, que arde com enxofre (in stagnum ignis ardentis sulphure) para serem atormentados noite e dia e por todos os séculos dos séculos (cruciabuntur die ac nocte in saecula saeculorum).» [Ap 19,20] Finalmente, também o Apóstolo São Judas nos falou sobre o inferno, mostrando-nos os demônios e os condenados presos em «cadeias eternas sob as trevas», sujeitos ao «castigo de fogo eterno» (ignis aeterni poenam sustinente). [cf. Jd 1,6-7] Em todas as Epístolas inspiradas, os Apóstolos recorrem constantemente ao temor dos julgamentos de Deus e Suas punições eternas, que estão à espera dos pecadores impertinentes. Diante de tão claros ensinamentos, é de se admirar que a Igreja nos apresente o castigo eterno como um dogma de fé propriamente dito? E de tal modo que, havendo quem ouse negar, ou mesmo pôr em dúvida, seja considerado herético? Enfim, a existência do inferno é um artigo de fé católica. E estamos tão seguros disso como da existência de Deus. Assim sendo, o inferno existe. * *

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EM SUMA: O testemunho de toda a raça humana e de todas as suas tradições mais antigas, junto com o testemunho da natureza humana, por justa razão, de coração e consciência e, acima de tudo, o testemunho do ensinamento infalível de Deus e de Sua Igreja, unem-se para nos atestar, com certeza absoluta, que existe o inferno de fogo e de trevas; um inferno eterno para o castigo dos ímpios e dos pecadores impertinentes. Responda-me, prezado leitor, poderia uma verdade ser estabelecida de uma maneira mais decisiva?

Se realmente existe um inferno, por que de lá nunca ninguém voltou? Primeiramente, o inferno existe para punir os condenados, e não para permitir que eles voltem à terra. Quando lá se está, lá se fica. Pode-se dizer, portanto, que de lá ninguém retorna, e isto está correto segundo a ordem habitual da Providência. Mas seria certo dizer que ninguém retornou do inferno? Há alguma certeza de que, enquanto misericordioso e justo, Deus nunca permitiu que um condenado aparecesse na terra? Há nas Sagradas Escrituras – e também na História – provas em contrário. Seria inexplicável, por exemplo, uma crença muito comum – por mais supersticiosa que seja – que se convencionou chamar de «alma de outro mundo». Permita-me contar alguns casos, cuja autenticidade resta evidente e provam a existência do inferno através do terrível testemunho dos que lá estão. O doutor Raymond Diocrès Na vida de São Bruno, fundador da Ordem dos Cartuxos,13 encontra-se um fato, estudado com todo o critério pelos eruditos Bolandistas,14 e, perante os exames mais sérios, apresenta todas as características de autenticidade histórica. Aconteceu em Paris, em pleno dia e testemunhado por milhares de pessoas. Os detalhes foram recolhidos pelos contemporâneos e, à época, deu origem a uma ordem religiosa. Em 1082, veio a falecer um célebre doutor da Universidade de Paris, chamado Raymond Diocrès, levando consigo a admiração universal e os lamentos de todos os seus alunos. Bruno era um dos maiores eruditos daquele tempo, conhecido por toda a Europa por sua sabedoria, talento e virtudes. Estava em Paris com quatro companheiros e se sentiu no dever de assistir no funeral do ilustre falecido. O corpo do finado professor foi acomodado na grande sala da chancelaria, perto da Igreja de Notre Dame, onde uma imensa multidão velava o suntuoso leito em que, segundo o costume da época, o morto era exposto coberto apenas com um simples véu. No momento em que deram início ao Ofício dos Mortos – que começa com a inquirição: «Respondei-me, quão grandes e numerosas são vossas iniquidades?» –, uma voz sepulcral se produziu debaixo do manto fúnebre, e

todos na assistência entenderam estas palavras: «Por um julgamento justo de Deus, eu fui acusado…» Precipitaram-se em direção ao leito, levantaram a mortalha, e o pobre morto estava lá, imóvel, gelado, perfeitamente morto. A cerimônia foi interrompida por alguns instantes, mas não tardou em recomeçar, ainda que todos estivessem amedrontados com o que acabavam de testemunhar. Então, retomou-se o Ofício e, mais uma vez na citada inquirição – «Respondei-me» –, o morto, aos olhos de todos, levantou-se e, com uma voz tão intensa quanto acentuada, disse: «Por um julgamento justo de Deus, eu fui julgado…», caindo de volta ao leito. Foi quando o terror no auditório atingiu o seu ápice. Os médicos apressaram-se a examinar o corpo e constataram novamente a morte. O cadáver encontrava-se gelado, rígido. Não havendo quem tivesse coragem de continuar a cerimônia, postergaram-na para o dia seguinte. As autoridades eclesiásticas já não sabiam mais o que fazer. Alguns diziam: «É um condenado, indigno das preces da Igreja». Outros duvidavam: «De fato, tudo isto é deveras intrigante! Mas não seremos todos acusados, depois julgados por um justo julgamento de Deus?» O bispo partilhava desta opinião. No dia seguinte, o serviço funerário recomeçou no mesmo horário. Como na véspera, Bruno lá estava junto com seus companheiros, e a notícia do que ocorrera havia se espalhado de forma tão espetacular que toda Paris se apressou para Notre Dame. Então, novamente recomeça-se o Ofício e, no momento da inquirição, «Respondei-me», o corpo do doutor Diocrès se pôs sentado para dizer com um indescritível sotaque de terror que a todos paralisou: «Por um julgamento justo de Deus, fui condenado!», caindo mais uma vez imóvel a abraçar o leito. Não havia mais dúvidas! Constatado o terrível e extraordinário fato, nenhuma prova era mais necessária. Por ordem do bispo e do clérigo, retirouse do cadáver as insígnias e suas dignidades, para que fosse lançado em vala comum. Ao deixar o grande salão da chancelaria, Bruno, que à época tinha aproximadamente quarenta e cinco anos, decidiu abandonar definitivamente o mundo e, junto com seus companheiros, procurou nas solidões da Grande Cartuxa, perto de Grenoble, um retiro onde pudesse buscar o caminho da

salvação, e se preparar para o justo julgamento de Deus. Pois bem, eis um condenado que «voltou do inferno» não para deixá-lo, mas apenas para se tornar a mais incontestável testemunha de que o inferno existe. O jovem religioso de Santo Antônio O sábio arcebispo de Florença, Santo Antônio,15 conta-nos um episódio terrível que, em meados do século XV, apavorou todo o norte da Itália. Um jovem de boa família, com dezesseis ou dezessete anos, caiu em desgraça ao esconder um pecado mortal na confissão e comungar nesse estado. Em função de uma miserável honra humana, passou a adiar a comunicação do seu pecado, entregando-se, semana após semana, mês após mês, à confissão e a comunhão sem revelar o seu sacrilégio. Remoído pelo remorso, passou a fazer grandes penitências e houve quem o tomasse por santo. Não podendo levar isso além, decidiu entrar para um mosteiro: «Lá, ao menos, eu poderia confessar tudo e expiar meus terríveis pecados», pensava. Mas para sua miséria, os Superiores, que o conheciam de reputação, acolheram-no como se um santo fosse. Tomado pela vergonha, que o impedia de revelar seu pecado, continuou a adiar a confissão e redobrar suas penitências. Passou dois ou três anos nesse deplorável estado, sem ousar revelar o peso medonho que o esmagava. Por fim, uma doença mortal o atacou e parecia facilitar-lhe o meio para a sua remissão. «De uma vez por todas, confessarei tudo antes de morrer». Mas, por amor próprio, sempre omitia o seu pecado. Suas confissões eram tão confusas que o confessor não as entendia. Então, sempre guardava para o dia seguinte um vago desejo de se redimir. Porém, de súbito, foi atacado por um acesso de delírio e, pouco tempo depois, o infeliz acabou morrendo sem revelar o grave segredo. Na comunidade, onde ninguém tinha conhecimento de tão terrível realidade, ouvia-se: «Se esse não foi para o céu, quem de nós poderá ir?» E colocavam cruzes, rosários e medalhas de santos em suas mãos. Por fim, o corpo foi levado, com certa veneração, para uma igreja do mosteiro e lá permaneceu exposto até a manhã seguinte, quando se celebraria o funeral. Instantes antes da hora fixada para a cerimônia, um dos frades, enviado para fazer soar os sinos, percebeu que diante dele, próximo ao altar, o defunto

estava cercado por rodas de fogo e algo incandescente parecia refletir do corpo. Apavorado, o frade caiu de joelhos com os olhos fixados na terrível imagem, quando o próprio condenado lhe disse: «Não orem por mim, pois estou no inferno para toda a eternidade»; e passou a contar a lamentável história de sua miserável honra e todos os seus sacrilégios. Logo depois desapareceu, deixando na igreja um odor fétido que se espalhou por todo o mosteiro, como que para atestar tudo o que o frade havia testemunhado. Tão logo foram avisados, os Superiores mandaram dali retirar o cadáver, julgando-o indigno de sepultura eclesiástica. A cortesã de Nápoles São Francisco de Girolamo,16 célebre missionário da Companhia de Jesus no início do século XVIII, foi encarregado de dirigir as missões no reino de Nápoles. Certo dia, quando ele pregava numa praça napolitana, algumas mulheres de má vida – dentre elas uma chamada Catherine – tinham se reunido para atrapalhar o sermão com cantos profanos e ruidosos protestos, na tentativa de forçar o Padre a se retirar. Porém, ele continuou o seu discurso parecendo não se importar com as insolentes. Tempos depois ele retornou para pregar na mesma praça e percebeu que a casa de Catherine, habitualmente turbulenta, estava em profundo silêncio: – O que aconteceu com Catherine? – perguntou o Padre. – Não sabeis, Padre? Ontem à noite a infeliz morreu sem poder dizer uma palavra! – contaram-lhe. – Catherine está morta? Mas morreu de repente? Vamos lá saber o que aconteceu. O Santo abre a porta, sobe a escada e, acompanhado de um grande número de pessoas, entra na sala onde se podia ver o cadáver estendido no chão sob um pano e quatro velas acesas, como era o costume no local. Observou por alguns instantes com os olhos apavorados e, em seguida, com uma voz solene perguntou: «Catherine, onde você está agora?» O cadáver permaneceu mudo. Então, o Santo repetiu a pergunta: «Catherine, diga-me, onde você está agora? Ordeno que me diga onde você está!» De repente, para o espanto de todos que ali estavam, os olhos do cadáver se abriram e seus lábios passaram a se mover convulsivamente e, com uma voz grave e profunda, respondeu: «No inferno, estou no inferno!».

Ao ouvir essas palavras a multidão fugiu aterrorizada. Junto foi o Santo, que impressionado dizia: «No inferno, ó meu Deus, que terrível, no inferno! Vocês ouviram? No inferno!» A impressão causada com o ocorrido foi tão grande que muitos daqueles que testemunharam o fato não se atreveram a voltar para suas casas sem antes se confessar. O amigo do conde Orloff No nosso século [XIX], três fatos do mesmo gênero, um mais verdadeiro do que o outro, chegaram ao meu conhecimento. O primeiro se passou na minha família. Foi em Moscou, na Rússia, pouco tempo depois da horrível campanha de 1812.17 Meu avô materno, o conde de Rostopchine, governador militar de Moscou, era muito ligado ao conde Orloff, famoso por sua bravura, e também muito valente na sua impiedade. Um dia, após um bom jantar regado a copiosas libações, o conde Orloff e um de seus amigos, o general V., voltairiano como ele, passaram a fazer zombarias em relação à religião e também ao inferno. – E se por acaso – divagou Orloff – houver alguma coisa do outro lado da cortina? – Ora, quem for primeiro voltará para avisar o outro! Combinado? – respondeu o general. – Excelente idéia! – concordava o conde Orloff. E os dois, embora embriagados, empenharam seriamente suas palavras de honra para o cumprimento da mútua promessa. Algumas semanas mais tarde, eclodiu uma dessas grandes guerras, daquelas que Napoleão tinha talento para criar, e o exército russo entra em batalha. O general V. recebeu a ordem para partir imediatamente e assumir um importante posto de comando. Ele havia deixado Moscou há duas ou três semanas e, um dia, pela manhã bem cedinho, quando meu avô se lavava no banheiro a porta do seu quarto abriu bruscamente. Era o conde Orloff que, vestido ainda de roupão e chinelos, tinha os cabelos arrepiados e os olhos totalmente desfigurados. Estava pálido como um defunto. – O quê? É você, Orloff… a esta hora? E vestido desse jeito? O que aconteceu?

– Meu amigo, devo estar ficando louco! Acabo de ver o general V. – Ah! O general V.? Ele já voltou? – Oh, Não! – respondeu Orloff, jogando-se num sofá e levando as mãos à cabeça. – Ele não voltou, e é por isso que estou apavorado. Meu avô nada compreendeu e procurou acalmá-lo: – Conte-me, então, o que aconteceu para chegar aqui desse jeito? Esforçando-se para dominar a emoção, disse o conde: – Meu querido Rostopchine, algum tempo atrás, eu e o general V. fizemos um juramento. O primeiro de nós que viesse a morrer voltaria para contar se havia alguma coisa do outro lado da cortina. Acontece que, nesta manhã, há meia hora atrás, estava tranqüilamente deitado na minha cama e já vinha há algum tempo pensando no meu amigo. De repente as cortinas se abriram de forma brusca; foi quando eu o vi a dois passos de mim. Era o general V.! Ali de pé, pálido e com a mão direita sobre o peito, disse-me: «O inferno existe e para lá eu fui!» Depois disso desapareceu! Em seguida eu vim correndo para cá. Minha cabeça está explodindo… que coisa estranha! Eu não consigo pensar em outra coisa… Meu avô fez o possível para acalmá-lo, mas não foi uma tarefa fácil porque Orloff falava de alucinações, de pesadelos, de que talvez estivesse dormindo e outras banalidades deste tipo, que só fazem consolar os incrédulos. Em seguida, meu avô aprontou os cavalos e o reconduziu para o hotel. No entanto, dez ou doze dias após o estranho incidente ocorrido ao conde Orloff, um mensageiro do exército trouxe ao meu avô, entre outras novidades, a notícia da morte do general V. Ele havia morrido naquela mesma manhã em que o conde Orloff o havia visto. Ou seja, na mesma hora em que havia aparecido em Moscou, o infeliz general tinha saído para reconhecimento de campo e teve o seu peito atravessado por uma bala inimiga que o fez cair morto. «O inferno existe e para lá eu fui!» Eis as palavras de mais um que de lá voltou. A dama do bracelete de ouro Em 1859 relatei a história do conde Orloff a um padre muito distinto, superior de uma importante comunidade. «É assustador – respondeu-me –, mas a mim isso não é tão surpreendente. Fatos desse gênero são menos raros do que se imagina. É que sempre há algum interesse em mantê-los em

segredo, seja em honra do ‘retornado’, seja em honra da sua família. Contarei o que soube, há dois ou três anos, de uma fonte segura: um parente muito próximo da pessoa com quem se deu o fato. Ela ainda vive e hoje deve ter um pouco mais de quarenta anos. 18 Trata-se de uma dama que se encontrava em Londres no inverno de 1847. Ficou viúva muito cedo, deveria ter seus vinte e nove anos. Rica e de boa aparência, era freqüentadora da sociedade. Entre os elegantes com os quais mantinha amizade, fazia-se notar um jovem lorde, cuja assiduidade tornava-o bastante distinto, e cujo comportamento não era menos exemplar. Uma noite, ou melhor, uma madrugada (já se passava da meia-noite), ela lia algum romance na sua cama à espera do sono. Uma hora se passou e, ao soar do relógio, ela apagou a vela. Estava prestes a dormir quando, para seu espanto, notou que uma luz estranha e pálida parecia vir da porta da sala, espalhando-se gradualmente no seu quarto e aumentando a cada instante. Atordoada, ela arregalou os olhos e, sem saber o que aquilo significava, começou a entrar em pânico. De repente a porta do seu quarto começou a se abrir bem devagar e, para sua surpresa, entrou o jovem lorde completamente confuso. Antes que ela pudesse lhe dizer alguma coisa, ele já tinha se aproximado. Agarrou-a pelo braço esquerdo, na altura do punho, e com uma voz estridente lhe disse em inglês: ‘O inferno existe!’ A dor no seu braço foi tanta que ela acabou por perder a consciência. Quando voltou a si – cerca de meia hora depois –, chamou sua empregada que, ao entrar no quarto, sentiu um forte cheiro de queimado. Aproximandose da sua patroa que mal podia falar, percebeu em seu pulso uma queimadura tão profunda que os ossos estavam expostos e a carne quase toda consumida. Tal queimadura tinha a largura da mão de um homem. Em seguida, perceberam que, da porta até a cama e da cama até a mesma porta, o carpete continha pegadas de um homem que havia queimado o tecido de lado a lado. E havia mais pegadas sobre o carpete da sala. No dia seguinte, a infeliz dama ficou sabendo, com um terror compreensível, que naquela mesma noite, perto da uma hora da manhã, o lorde havia sido encontrado à beira da morte sobre a mesa e seus empregados o levaram para o quarto, onde deu seu último suspiro. – Não sei se com essa terrível lição aquela pobre mulher se converteu – disse-me o superior – O que eu sei é que ela ainda vive e, para disfarçar a

sinistra queimadura, usa um bracelete no pulso esquerdo, uma larga pulseira de ouro que ela porta dia e noite. Obtive todos os detalhes com um parente próximo, cristão sério, cuja palavra eu dou inteira fé. Na própria família não se fala do assunto – eu mesmo só conto a história ocultando o nome dessa dama.» Apesar do obscuro véu que oculta a identidade das personagens dessa aparição, parece-me impossível pôr em dúvida a temível autenticidade da história. Há de convir que, de fato, não é à dama do bracelete que se deve provar que o inferno realmente existe. A filha perdida de Roma No ano de 1873, poucos dias antes da Assunção, realizou-se em Roma uma dessas aparições terríveis do além-túmulo que corroboram para comprovar a verdade do inferno. Numa dessas casas de má fama – que fora aberta em Roma e mais alguns outros lugares devido à invasão do sacrilégio por conta do enfraquecimento do domínio temporal do Papa –, uma infeliz menina havia cortado a mão e rapidamente foi levada ao hospital da Consolação. Seja por causa de um sangue viciado em devassidão, que pode ter degenerado o ferimento, ou por causa de uma simples complicação inesperada, ela faleceu durante a noite. No mesmo instante, uma de suas companheiras, que ignorava completamente o que havia se passado no hospital, pôs-se a gritar desesperada ao ponto de tirar o sono dos habitantes de todo o quarteirão, inquietando, principalmente, as miseráveis criaturas que viviam junto a ela naquela casa de má reputação. Para acalmar tamanha balbúrdia, foi preciso até a intervenção da polícia. Acontece que a recém-falecida no hospital apareceu envolta em chamas, dizendo àquela pobre menina: «Estou condenada, e se você não quer terminar como eu, saia deste lugar de infâmias e retorne a Deus que abandonou». Nada nem ninguém pôde acalmar o seu desespero e terror. Até que, com o amanhecer, ela se foi, deixando todos naquela casa em profunda letargia a partir do momento em que souberam da morte ocorrida no hospital. Nesse ínterim, caiu doente a cafetina do lugar, uma exaltada garibaldina, assim conhecida entre seus amigos e irmãos. Ela pediu para que fosse chamado o padre da igreja vizinha, São Giulio de Banchi. Antes de se dirigir

a uma casa tão difamada, o venerável padre consultou a autoridade eclesiástica, que delegou para esse intento um digno prelado, Monsenhor Sirolli, cura da Paróquia de San Salvador in Lauro. Munido de instruções especiais, o Monsenhor Sirolli apresentou-se à doente e, antes de tudo, exigiu, na presença de várias testemunhas, que ela se retratasse por cada um dos escândalos de sua vida; das blasfêmias contra o Soberano Pontífice, e de todo e qualquer mal que já tivesse feito aos outros – a pobre enferma o fez sem hesitar. Depois se confessou e, com grande arrependimento e humildade, recebeu o Santo Viático.19 Sentindo a morte se aproximar e apavorada com tudo o que se passava diante dos seus olhos, banhada em lágrimas, pediu ao bom padre para que não a abandonasse. Mas a noite se aproximava e o Monsenhor Sirolli, dividido entre a caridade, que lhe dizia para ficar, e o decoro, que não lhe permitia passar a noite em lugar semelhante, decidiu requerer à polícia dois oficiais que vieram fechar a casa e lá permaneceram até que a agonizante desse o seu último suspiro. Os detalhes de tão trágico acontecimento ficaram conhecidos por toda Roma, mas, como é habitual, escarneceram-se os ímpios e os libertinos, tomando todo o cuidado para não se informarem muito a respeito. Por outro lado, os justos aproveitaram o ocorrido para emendarem suas condutas, dedicando-se ainda mais às suas devoções. Diante de tais fatos, que à lista poder-se-ia incluir outros tantos, pergunto ao leitor de boa fé se é razoável ficar repetindo, junto com uma multidão leviana, a conhecida e estereotipada frase: «Se realmente existe um inferno, porque de lá nunca ninguém voltou?» Mas, ainda que, a torto e a direito, haja quem insista em não admitir os fatos autênticos que acabei de narrar, a certeza absoluta da existência do inferno resta inabalável. Com efeito, a fé no inferno não está fundamentada em misteriosos fatos sobrenaturais – que não são de fé –, mas nas razões do bom senso que expusemos até aqui. E, acima de tudo, no testemunho divino e infalível de Jesus Cristo, de Seus Profetas e Seus Apóstolos, assim como do ensinamento oficial, invariável e inviolável da Igreja Católica. Os fatos sobrenaturais podem fortalecer e reavivar a nossa fé. Apenas por isso tínhamos o dever de citar alguns deles, capazes de tapar a boca dos que ousam dizer: «O inferno não existe». E também confirmar na fé aqueles que são tentados pela dúvida: «O inferno existe?» – além de consolar e esclarecer

ainda mais os bons fiéis que, junto com a Igreja, afirmam de forma categórica: «O inferno existe!»

Por que tanta gente se esforça para negar a existência do inferno? Em primeiro lugar, por interesse. A maior parte dentre esses esforçados deseja que o inferno não exista. São como os ladrões que, se pudessem, destruiriam a polícia, porque todas as pessoas que «sentem os encargos» estarão sempre a fazer o possível e o impossível para se persuadirem de que o inferno não existe, pois bem sabem que, havendo um, sua utilidade é exatamente para pessoas como eles. Não são diferentes dos covardes que, cantando à toda voz numa noite escura, tentam se convencer de que não sentem o medo que os ataca. Para se encher mais ainda de coragem querem persuadir aos outros de que o inferno não existe. Por isso escrevem esses livros que se pretendem científicos e filosóficos, e neles repetindo a todo o momento, para com a grita, pretendem convencer uns aos outros – e graças a esse espetáculo barulhento, concluem que ninguém mais acredita e, por conseqüência, que têm o direito de não acreditar. A maioria destes foram, no último século, os líderes da incredulidade voltairiana; os que tentaram proclamar que Deus não existia e, portanto, também não existiria o paraíso ou o inferno. Estavam seguros nas suas conjecturas, embora a História tenha nos mostrado que, um após o outro, tomados por um terrível pânico na hora da morte, retrataram-se, confessaramse, pediram perdão a Deus e aos homens. Um dentre eles, Diderot, escreveu após a morte de d’Alembert: «Se eu não estivesse lá, ele teria se curvado como todos os outros». Pouco adiantou, porque ele mesmo, na sua hora derradeira, acabou suplicando para que lhe chamassem um padre.20 Todos sabem como Voltaire, no leito de morte, insistiu para que chamassem o padre da igreja do Santo Sulpício, porém, seus seguidores o cercavam tão bem, que o padre não podia chegar ao velho moribundo que morreu em meio a um ataque de raiva e desespero. Ainda existe, em Paris, o quarto onde se passou a trágica cena.21 Enfim, até os que bradam contra o inferno, crêem nele da mesma maneira que nós. Quando a morte se aproxima, caem-se as máscaras e já podemos ver bem o que se encontra por debaixo delas. Por isso, não dê ouvidos a esses raciocínios que são apenas ditados pelo medo. Pois é o coração corrompido que faz negar a existência do inferno. Quando não queremos deixar a vida de impiedades, que é o caminho mais curto para lá, sempre somos levados a

dizer ou mesmo crer que o inferno não existe. Imaginemos um homem cujo coração, sensos, imaginação e hábitos de cada dia estão presos, absorvidos por um amor culpado – e a tudo isto ele se entrega, tudo sacrifica. Se a ele falarmos sobre o inferno, seria como falar a um surdo. E mesmo que às vezes a voz da consciência e da fé perpassem pelos gritos da paixão, ainda assim, ele se calará, não desejando mais entender a verdade que se impõe. Tentemos, então, falar do inferno a esses jovens libertinos que freqüentam a maior parte das nossas escolas, das nossas fábricas e engenhos ou de nossos quartéis: eles responderão estremecidos de cólera, com um escárnio diabólico, que é muito mais poderoso dentre eles do que todos os argumentos da fé e do bom senso. Eles não querem que haja um inferno! Não faz muito tempo, encontrei-me com um desses. Ele ainda carregava um pouco de fé e o aconselhei da melhor forma possível para que não desonrasse a si mesmo da maneira como fazia. Tentei convencê-lo a viver como um cristão, enfim, como um homem e não como um animal. «Tudo isto é belo e bom – respondeu-me –, e talvez seja verdade o que me dizes. Mas o que sei é que quando essas coisas me tomam, fico como um louco e não sou capaz de entender mais nada. Fico cego e não há Deus nem inferno que me faça parar. Se há realmente um inferno, pois bem, para lá irei, a mim não faz diferença.» Infelizmente, nunca mais o vi. Mas e quanto aos gananciosos, os usurários e os trapaceiros? Quais argumentos irresistíveis eles devem guardar em seus cofres contra a existência do inferno! Ricos argumentos contra a idéia de devolver o que eles tomaram dos outros, contra apartarem-se de seus ouros e riquezas. «Antes mil mortes; antes o inferno, ainda que exista um» – dizia-me um velho usurário normando, avarento por lucros rápidos, que mesmo em face da morte não conseguia abrir mão do que dos outros tirou. Ele havia consentido, não se sabe como, restituir consideráveis somas, porém, não fez mais do que devolver oito francos e meio. E o infeliz ainda morreu sem os sacramentos. No seu coração de avarento, míseros oito francos e meio eram suficientes para fazer com que o inferno desaparecesse. Do mesmo modo se dá com todas as paixões violentas: o ódio, a vingança, a ambição e certas exaltações de orgulho. Seus portadores não querem ouvir falar do inferno. Colocam tudo em jogo para negar a sua existência, pois já não têm nada a perder. Mas quando todas essas mesmas pessoas são

colocadas contra a parede, quando encaram qualquer uma dessas razões de bom senso acima resumidas, elas passam a rejeitar a morte, esperando, deste modo, escaparem vivas. Pensam e dizem que acreditariam no inferno se qualquer morto ressuscitasse diante deles e afirmasse que, de fato, esse lugar existe. Puras ilusões, as quais Nosso Senhor Jesus Cristo se deu o trabalho de desfazer, como veremos a seguir.

Que bem acreditariam no inferno se os mortos ressuscitassem mais Uma vez Nosso Senhor seguia a Jerusalém, não muito longe de uma casa cuja fundação ainda hoje existe. Tal casa havia pertencido a um jovem fariseu muito rico chamado Nicence. Não fazia muito tempo que ele havia morrido e, sem nomeá-lo, Nosso Senhor aproveitou o que acontecera para instruir Seus discípulos, assim como a multidão que o acompanhava: «Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho fino e cada dia se banqueteava com requinte. Um pobre chamado Lázaro, jazia à sua porta, coberto de úlceras. Desejava saciar-se com o que caía da mesa do rico; mas ninguém lho dava. Acontece que o pobre morreu e foi levado pelos anjos ao seio de Abraão; morreu também o rico e foi sepultado no inferno. Lá, em meio aos tormentos, levantou os olhos e viu ao longe Abraão e Lázaro em seu seio. Ele se pôs a gritar dizendo: Abraão, meu pai, tende piedade de mim e manda que Lázaro molhe a ponta do dedo para me refrescar a língua, pois sofro cruelmente nesta chama. Abraão respondeu: Filho, lembra-te que recebeste as alegrias durante a vida, e que Lázaro, os sofrimentos; agora, porém, ele encontra aqui consolo e tu és atormentado. Ao menos – replicou – envia então Lázaro à casa de meu pai, pois tenho cinco irmãos; que leve a eles seu testemunho, para que eles não venham, assim como eu, para este lugar de tormentos. Abraão lhe respondeu: Eles têm Moisés e os Profetas; que ouçam-nos. – Não, meu pai – respondeu o condenado – isto não é o suficiente. Mas se virem alguém dentre os mortos, arrepender-se-ão. E Abraão lhe disse: Se não escutam nem a Moisés nem aos Profetas, mesmo que alguém ressuscite dos mortos, não se convencerão.»22 Estas sábias palavras do Filho de Deus são a resposta antecipada a todas as ilusões de pessoas que, para acreditarem no inferno e para se converterem, exigem as ressurreições e os milagres. No entanto, ainda que ao redor deles abundem os milagres de toda a natureza, neles não mais acreditam. Os judeus foram testemunhas de todos os milagres do Senhor. Em particular à ressurreição de Lázaro, em Betânia, mas não conseguiram, entre eles, tirar outra conclusão senão esta: «O que fazer? Eis que Ele atrairá todos para si; matem-no».23 E mais tarde, diante dos milagres quotidianos, públicos e absolutamente incontestáveis de São Pedro e dos outros Apóstolos,

disseram: «Estes homens fazem milagres, e negá-los não podemos. Façamolos parar, e evitemos que preguem em nome de Jesus.»24 Eis o que costumam produzir os milagres e as ressurreições de mortos entre as pessoas cujas mentes e corações estão corrompidos. Quantas vezes já não fora repetida a impressionante confissão escapada de Diderot, um dos ímpios mais incrédulos do século passado: «Mesmo que toda Paris viesse me afirmar ter visto ressuscitar um morto, preferiria acreditar que toda Paris está ficando louca a admitir um milagre».25 Porém, no fundo, mesmo entre os maus, há um pouco da força da verdade, ainda que as bases das tendências e presunções sejam as mesmas. Na verdade, um pouco de bom senso impede de proferir tamanhas absurdidades, mas, na prática, raramente o usamos. Mas o que é preciso fazer para que não se tenha medo de crer no inferno? Apenas viver de modo que não se tenha motivos para temê-lo. Vejamos os verdadeiros cristãos, os cristãos castos, conscienciosos, fiéis a todos os seus deveres: será que jamais passou por eles a idéia de duvidar do inferno? As dúvidas vêm antes do coração, bem mais do que da inteligência. Salvo muito raras exceções, devido ao orgulho da meia-ciência, o homem que leva uma vida ligeiramente correta não sente a menor necessidade de protestar contra a existência de um inferno. 2 Nm 16, (31) «E aconteceu que, acabando de pronunciar todas essas palavras, o solo se fendeu sob os seus pés, (32) a terra abriu a sua boca e os engoliu, a eles e suas famílias, bem como todos os homens de Coré e todos os seus bens. (...) (33) Desceram vivos ao Xeol*, eles e tudo aquilo que lhes pertencia. A terra os recobriu e desapareceram do meio da assembléia. (34) A seus gritos, fugiram todos os israelitas que se encontravam ao redor deles. E diziam: ‘Que a terra não engula a nós também!’. (35) Saiu fogo da parte de Iahweh e consumiu os duzentos e cinqüenta homens que ofereciam incenso. E desceram vivos ao inferno cobertos de terra, e pereceram do meio da multidão. [*palavra de origem desconhecida que designa as profundezas da terra – Dt 32,22; Is 14,9] 3 A autoria do livro de Jó é incerta. Na tradição talmúdica, há quem atribua a autoria a Moisés; outra corrente defende que o livro fora escrito num período antes do Primeiro Templo, à época do Patriarca Jacó. Não há concordância a este respeito, afinal há muitas diferenças de estilo e acredita-se também que o discurso de Eliú – personagem que não é mencionado nem no início e nem no final da história – fora adicionado posteriormente à obra pronta. 4 Jó 21,(12) «Cantam ao som dos tamborins e da cítara / e divertem-se ao som da flauta. (13) Sua vida termina na felicidade / descem em paz ao Xeol [inferno].» 5 Jó 10,21-22; 7,9 «(...) como a nuvem se dissipa e desaparece, assim quem desce ao Xeol não subirá jamais.» 6 Para os gregos e romanos, o Tártaro era o submundo onde se encontravam as cavernas e grutas mais profundas e terríveis do reino de Hades (deus do mundo dos mortos). Os inimigos dos deuses

eram para lá enviados a cumprir penitências. Na Rapsódia VIII da Ilíada, Homero o representa como uma prisão subterrânea: (...) há de se ver fustigado aqui mesmo por modo irrisório / se o não lançar sem nenhuma cautela no Tártaro escuro / essa voragem profunda que debaixo da terra se encontra / de érea soleira munida e de portas de ferro tão longe / do Hades sombrio quanto há de permeio entre a terra e o céu vasto. (versos em língua portuguesa por Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001). 7 Diálogos de Platão: Fédon, (113e). Também em Górgias (523a-b): «(…) no tempo de Cronos, havia uma lei entre os homens, que sempre vigorou e ainda se conserva entre os deuses. É aquela que recai sobre os mortais que levaram uma vida justa e santa; depois da morte irão para a Ilha da Bemaventurança, onde gozariam a perfeita felicidade, afastados de todos os males. Ao contrário seria a quem levou uma vida de impiedades, pois estes serão jogados no cárcere de suplício e punições chamado Tártaro». 8 Platão, Carta VII, aos parentes aos amigos de Díon: felicidade e sabedoria. (335a) 9 Eneida, de Virgílio, conta as aventuras de Enéias que, no Livro VI, desce ao Tártaro para um último encontro com seu pai, Anquises. Narra o poeta as impressões do inferno: Logo se ouve ao limiar vagido e choro, / Tenros ais dos que ao seio em que mamavam / Arrebatou, privou do doce alento, / Imergiu dia infausto em luto acerbo. (Canto IV – 436-439 – versos em língua portuguesa por Manoel Odorico Mendes, Vol. III dos Clássicos Jackson, 1950). No poema, Teseu foi quem por lá restou preso pela eternidade: Qual pedra ingente galga, ou de uma roda / Estreito aos raios pende; está sentado / Preso o infeliz Teseu e estará sempre; (Canto IV – 635-637 – ibid.). Teseu e seu fiel companheiro Pirítoo, haviam descido aos infernos a fim de raptar Prosérpina. Mal-sucedidos, tornaram-se prisioneiros de Hades. Mais tarde Hércules esteve nos infernos e libertou Teseu. Na fuga Pirítoo foi morto – numa das versões o teria sido por Cérbero, cão de múltiplas cabeças, dócil com os que no inferno entravam, mas feroz com os que de lá tentavam sair. 10 Pierre Bayle (1647-1706), enciclopedista francês, autor do Dictionnaire historique et critique; e Henry St. John Bolingbroke (1678–1751), um filósofo e político inglês. A citação feita por Ségur é, em verdade, uma espécie de síntese do que se encontra sobre a existência do inferno, no Ensaio Quarto (Concerning Authotity in Matters of Religion) do livro The works of the late Right Honourable Henry St. John – Volume 6 – J. Jhonson, Otridge & Sons and Others, 1809, Londres. Ambos autores eram partidários do deísmo, uma corrente de pensamento que, na segunda metade do século XVI, teve grande difusão na França e na Inglaterra. Os deístas reconhecem um Deus Criador, mas não a Revelação Divina. A eles só é possível encontrar Deus através de uma análise daquilo que entendem por leis naturais. E, para tal tarefa, recorrem somente à razão. 11 Mt. 17 «E seis dias depois, Jesus tomou Pedro, Tiago, e seu irmão João, e os levou para um lugar a parte sobre uma alta montanha. (2) E ali foi transfigurado diante deles. Seu rosto resplandeceu como o sol e as Suas vestes tornaram-se alvas como a luz. (3) E eis que aparecem Moisés e Elias conversando com Ele.» Também em Mc 9,1 e Lc 9,28. 12 2Pd 2,4 «Com efeito, se Deus não poupou os anjos que pecaram, mas lançou-os nos abismos tenebrosos do Tártaro, onde estão à espera do Julgamento (...), (9) é certamente porque o Senhor sabe libertar os piedosos da provação e reservar os injustos sob castigo à espera do dia do Julgamento, (10) sobretudo aqueles que seguem a carne, entregando-se a paixões imundas, e que desprezam a autoridade do Senhor (...). (14) Têm olhos cheios de adultério e insaciáveis de pecado, procurando seduzir almas vacilantes; o seu coração está treinado para a ambição. São seres malditos!» 13 Ordem milenar fundada por São Bruno em 1084, onde a vida é consagrada à enclausuração com o intuito de apartar-se do mundo. Os Cartuxos levam uma vida solitária em mosteiros totalmente isolados, recorrendo a longos jejuns e muitas orações. Atualmente esta ordem é composta por cerca de 450 monges e monjas, distribuídos em 24 casas espalhadas em três continentes, e se apóia de maneira particular sobre três elementos: a solidão, certa combinação de vida solitária e de vida comunitária e a

liturgia cartusiana. O cineasta alemão Philipe Gröning filmou a rotina dos cartuxos para o documentário «O Grande Silêncio» (Die große Stille - 2005). 14 O termo, ligado ao nome do jesuíta belga Jean Bolland (1596 -1665), designa uma sociedade científica de padres jesuítas que tinha por objetivo reunir e submeter ao exame crítico toda a literatura hagiográfica até então existente, complementar aquilo que fora omitido pelos compiladores antigos, apreciar o valor das fontes relativas aos santos lembrados pelos martirológios, discernir os dados historicamente comprovados dos lendários ou falsos e, portanto, reconstituir a história e a espiritualidade daqueles que a Igreja reconhece como santos. O precursor dos bolandistas foi o jesuíta holandês E. Rosweyde (1564-1629). A sua herança foi reunida por Bolland, que modificou o plano inicial, posteriormente aperfeiçoado com a ajuda de G. Henscken (1601-1681). A publicação dos Acta Sanctorum começou em 1643 com dois tomos dos santos de janeiro, e não faltaram consensos, inclusive por parte dos protestantes. (Lexicon –Dicionário Teológico Enciclopédico, Editora Loyola, 2003 - pp. 83) 15 Santo Antonino (1389-1459), conhecido pelo seu nome no diminutivo em função da sua pouca altura, também era portador de uma frágil saúde, razão pela qual não fora admitido na Ordem Dominicana, afinal parecia não poder suportar o rigor das regras do convento. Mas devido a sua insistência, o prior, Frei Giovanni Dominici, decidiu que o admitiria caso ele recitasse a lei canônica de memória. Assim ele fez! Decorou o que parecia impossível para vestir o hábito dos frades pregadores e, mais tarde, tornar-se o prior da ordem. Além de ser conhecido pela grande memória, Santo Antonino expressou sua grandeza no trato com pobres e doentes, a quem doava tudo o que tinha, além dos enfermos que curava milagrosamente. O pequeno homem também mostrou sua grandeza nos estudos, sendo considerado um dos fundadores da moral teológica moderna e da ética social cristã. Foi canonizado pelo Papa Adriano VI, em 1523. 16 Nasceu em Grottaglie, Itália, no ano de 1641, era um notável pregador popular que passou a vida evangelizando o sul da Itália, onde o povo se aglomerava para ouvir seus sermões. Pregava em cadeias, bordéis e nas galés, além de ter sido responsável pela conversão de inúmeros mouros e turcos. Também resgatou inúmeras crianças de locais e situações degradantes e «mostrou maravilhosa caridade e paciência em procurar a salvação das almas» (do Martirológio Romano). Inúmeras e milagrosas curas foram atribuídas a ele ainda em vida, e também após sua morte. Uma multidão reuniu-se para dele se despedir no seu funeral, a 11 de março de 1716. Foi beatificado a 2 de maio de 1806 pelo Papa Pio VII, e canonizado em 26 de maio de 1839 pelo Papa Gregório XVI. 17 Trata-se da campanha militar de Napoleão Bonaparte para punir o czar Alexandre da Rússia, que havia se negado a cumprir o Bloqueio Continental, uma determinação de Bonaparte, a todos os países, para que não mantivessem relações comerciais com a Inglaterra. O rigoroso frio dizimou grande parte do exército francês e quando as tropas napoleônicas chegaram em Moscou, a cidade estava vazia. À noite, os próprios russos atearam fogo na cidade. Com uma força militar enfraquecida, o imperador francês não teve outra opção senão abandonar a batalha. Tamanha derrota também enfraqueceu o poder de Napoleão na França, culminando na sua primeira queda, em 1814. 18 A história foi narrada a Ségur no Natal de 1859. 19 Segundo o Catecismo da Igreja Católica: Aos que estão para deixar esta vida, a Igreja oferece, além da Unção dos Enfermos, a Eucaristia como viático. Recebida neste momento de passagem para o Pai, a comunhão do Corpo e Sangue de Cristo tem significado e importância particulares. É semente de vida eterna e poder de ressurreição, segundo as palavras do Senhor: «Quem come minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia» (Jo 6,54). Sacramento de Cristo morto e ressuscitado, a Eucaristia é aqui sacramento da passagem da morte para a vida, deste mundo para o Pai. (CIC 1524).

20 No livro Mémoires pour servir à la histoire du Jacobinisme (v. I – 1797, pp. 382), o padre jesuíta Augustin Barruel relata que, em verdade, foi Condorcet que se esforçou a evitar que um sacerdote se aproximasse do já moribundo d’Alembert, proferindo a extravagante frase logo após a sua morte: «Se lá eu não estivesse, ele teria se curvado». Também anota que com tal frase, ainda que sem querer, Condorcet revelou os remorsos pelos quais d’Alembert fora acometido em meio aos seus suspiros finais. Quanto à Diderot, um dos seus biógrafos, F. Génin, baseado nos fatos narrados pela filha do escritor, Angélique de Vandeul (Œuvres choisies de Diderot précédées de sa vie, Firman Didot, Paris, 1869, pp. 62), nos diz que, após alguns encontros com um padre da igreja de São Sulpício de Paris, ele passou a ler a Bíblia com sua filha, além de permitir que ela tivesse a sua educação guiada por religiosos. No livro do padre Barruel também consta a narrativa dos últimos dias de Diderot (Barruel op. cit., pp. 383-387); conta-nos que o enciclopedista preparava uma retratação pública por seus ataques à Igreja, porém, preocupados com a imagem do movimento deísta frente a mais uma deserção, seus compagnons de route levaram-no para longe do padre da igreja de São Sulpício. 21 Também o mais famoso iluminista, Voltaire, suplicou para que um padre estivesse presente quando se aproximava de seus momentos finais. O sacerdote da igreja de Santo Sulpício conseguiu chegar ao velho moribundo. É o que revela a revista dos ilustrados franceses, Correspondance Littéraire de abril de 1778, que na suas páginas 87 e 88, publicou, não sem algum embaraço, a profissão de Fé escrita e assinada por Voltaire: « – Eu, o que escreve, declaro que, na idade de oitenta e quatro anos e tendo sofrido com vômitos de sangue faz quatro dias, não pude ir à igreja; assim, o pároco de São Sulpício quis de bom grado me enviar o sacerdote M. Gautier. Eu com ele me confessei, e se Deus assim quiser, morro na santa religião Católica em que nasci, esperando que, com a misericórdia divina, sejam perdoados todos os meus pecados; e se tenho escandalizado a Igreja, peço perdão a Deus e a ela. Assinado: Voltaire, 2 de março de 1778 na casa do marquês de Villete, na presença do padre Mignot, do meu sobrinho e do meu amigo, senhor marquês de Villevielle». No entanto, ainda no livro do padre Barruel (op.cit. pp. 379-380), d’Alembert e Diderot, liderando outros vinte ‘conjurados’, impediram que o padre Gautier fizesse nova visita nos momentos finais de Voltaire. Seus últimos suspiros foram narrados pelo seu médico, M. Tronchin, que disse ter visto a mais terrível imagem de um ímpio agonizando, e que «os remorsos de Orestes dão apenas uma idéia dos remorsos de Voltaire». Em sua agonia e desespero, o iluminista sentia-se «abandonado por Deus e pelos homens», passou a insultar seus amigos iluministas e numa cena miserável, padeceu evocando e blasfemando o nome de Jesus Cristo. 22 Lc 16,19-31 «... (26) ...entre nós e vós está firmado um grande abismo: de maneira que os que querem passar daqui para vós, não podem; nem os daí passar para cá.» 23 Jo 11,45-54 «(...) Que faremos? Esse homem realiza muitos sinais. (47) Se o deixarmos assim, todos crerão nele (...).» 24 At 4,16-22 «(...) Que faremos com estes homens? Que por eles realizou-se um sinal notório é claramente manifesto a todos os habitantes de Jerusalém, e não podemos negá-lo. (17) Todavia, para que isto não se divulgue ainda mais entre o povo, proibamo-los, com ameaças, de tornarem a falar neste nome a quem quer que seja.» 25 Denis Diderot, Pensée philosophiques, Librairie Droz, Genebra, 1965. «Tout Paris m’assurerait qu’un mort vient de ressusciter à Passy, que je n’en croirois rien. Qu’un Historien nous en impose ou que tout un peuple se trompe; ce ne sont pas des prodiges». (XLVI pp.33) [«Toda Paris me assegurava que um morto veio a ressuscitar no cemitério de Passy, e nisso jamais poderia acreditar. Que um historiador nos imponha ou que as pessoas se enganem, isto não são prodígios.»]

CAPÍTULO II

O QUE É O INFERNO As idéias falsas e supersticiosas acerca dele Antes de tudo, precisamos afastar as crenças e superstições populares que tanto alteram a noção real e católica do inferno. Pois, baseando-se em um inferno fictício e ridículo, alguém diria: «Jamais crerei nisso porque é um absurdo, algo impossível. É a razão pela qual não creio e não posso crer no inferno». De fato, se o inferno fosse o que sonham essas pessoas ingênuas, haveriam centenas, milhares e milhares de razões para nele não acreditar. Porém, todas essas invenções são dignas de figurar apenas ao lado dos contos fantásticos, cujo embalo freqüentemente atinge somente a imaginação vulgar. Não é isso o que ensina a Igreja, mas se no intuito de melhor atingir os espíritos algum autor ou pregador acreditou poder explorar tais contos, suas boas intenções não poderão eximi-los de ter cometido um grande erro. A ninguém é permitido disfarçar a verdade, expondo-na ao escárnio das pessoas sensatas, sob o pretexto de, através do medo, converter as pessoas boas. Eu sei que ensinar às multidões os terríveis castigos do inferno pode ser algo embaraçoso. Como a maioria das pessoas necessita de representações materiais para conceber as coisas mais elevadas, torna-se necessário usar uma linguagem figurada para falar do inferno e dos suplícios dos condenados. Mas é bastante difícil fazer isso com devida prudência. Por isso, repito: ainda que com as mais excelentes intenções, caímos no impossível, para não dizer no grotesco. Não, o inferno não é essa coisa dos contos fantásticos, é algo ainda maior e bem diferente, muito mais pavoroso como veremos a seguir.

O inferno consiste, sobretudo, numa pavorosa pena de danação A danação é a separação total de Deus. Portanto, um condenado é uma criatura total e definitivamente privada de seu Criador. Nosso Senhor mesmo nos assinalou a danação como a pena principal e imperiosa dos condenados. Lembremos dos termos da sentença que Ele pronunciará contra os condenados no julgamento final: «Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos». Atentemos à primeira palavra da sentença do Soberano Juiz, que nos faz compreender o que é a separação, a privação total de Deus que caracteriza o inferno. Essa é a maldição de Deus, em outras palavras, a danação ou reprovação. Mas a sutileza do espírito e a falta de fé viva nos impedem de compreender, a partir da condição humana, tudo o que contém de horroroso, pavoroso e desesperador na condenação da alma. Ora, nós somos feitos para o bom Deus e apenas para ele; somos feitos para Deus como os olhos são feitos para a luz, como o coração é feito para o amor. Todavia, em meio às milhares de preocupações mundanas, acabamos por não nos darmos conta disso, e, portanto, nos desviamos de Deus, nosso único e derradeiro fim, presente em tudo o que nos rodeia, em tudo o que vemos, entendemos, sofremos e amamos.26 Contudo, depois da morte a verdade é ressarcida de todos os seus direitos, e cada um de nós se encontra diante de Deus, diante daquele por quem e para quem é feito; a quem deve única e integralmente a sua vida, sua felicidade, seu descanso, sua alegria e seu amor. Imaginemos então qual pode ser o estado de um homem que de repente perca, de forma absoluta e total, a sua vida, a sua luz, a sua alegria, o seu amor. Como pode ser a vida de quem é totalmente privado daquele que o fundamenta? Poderíamos imaginar esse vazio súbito e absoluto que separa um ser daquele a quem ama e para quem fora criado? Um religioso da Companhia de Jesus, padre Surin, cujas virtudes, sabedoria e infortúnios tornaram-se célebres no século XVII, sofreu durante quase vinte anos as angústias desse terrível estado infernal. Para livrar uma pobre santa religiosa da possessão demoníaca – que já havia passado por três meses de exorcismo e orações –, o piedoso padre, num ato de heroísmo, ofereceu-se em sacrifício caso a misericórdia divina se dignasse a ouvir suas

orações para que aquela pobre criatura fosse libertada. As preces foram atendidas e Nosso Senhor permitiu, pela santificação de Seu servo, que o demônio se apossasse imediatamente do corpo do padre e que o atormentasse durante muitos anos. Nada é mais autêntico do que os estranhos fatos públicos que marcaram a possessão do pobre padre Surin, mas me estenderia por demais narrando aqui todos os detalhes.27 O que importa é que, após livrar-se das possessões, ele reuniu por escrito as lembranças de tudo o que passou naquele estado sobrenatural, onde o demônio, apoderando-se materialmente, por assim dizer, das faculdades e sentidos do padre Surin, fê-lo sentir uma parte das suas próprias sensações do desespero infernal. Eis um dos desses relatos: «Pareceu-me que todo o meu ser, que todas as potências da minha alma e do meu corpo se dirigiam com uma veemência inexprimível para o senhor meu Deus, que eu via ser a minha suprema felicidade, o meu bem infinito, o único objeto da minha existência. Mas ao mesmo tempo, uma força irresistível me arrancava Dele, mantinha-me longe Dele, de modo que, feito para viver, eu me via e me sentia privado daquele que é a Vida; feito para a verdade e a luz, via-me absolutamente repelido pela Luz e pela Verdade; feito para amar, estava repelido pelo Amor, e feito para o bem, estava mergulhando no abismo do mal. Eu não saberia comparar as angústias e os desesperos desta inexprimível aflição senão com a idéia de uma flecha lançada com uma incessável força em direção a um alvo. Ela é irresistivelmente levada à frente, mas ao mesmo tempo, e invencivelmente, também vai sendo puxada para trás». Este é um claro símbolo desta terrível realidade que se chama danação, que é necessariamente acompanhada do desespero. É esse desespero que, nos Evangelhos, Nosso Senhor chama de «verme» que rói os condenados; e tudo é melhor do que ser atirado na prisão de fogo, onde o verme não morre jamais (ubi vernis eorum non moritur).28 Os vermes dos condenados são os remorsos, os desesperos. É chamado verme porque na alma pecadora e condenada ele nasce da corrupção pelo pecado, como nos cadáveres os vermes corporais nascem da corrupção da carne. E, aqui neste mundo, podemos apenas ter uma idéia remota do que são esses remorsos e desesperos, pois aqui, onde nada é perfeito, o mal está sempre misturado com algum bem, e o bem a algum mal. Assim, diante dos

infortúnios que acontecem aqui na terra, nossos desesperos e nossos remorsos são sempre moderados por certas esperanças e também pela impossibilidade de que possamos suportar o sofrimento quando ele excede uma certa medida. Mas, na eternidade, tudo é perfeito e, se assim podemos dizer, o mal é como o bem, perfeito, sem misturas, sem esperanças nem possibilidade de atenuação, como explicaremos mais adiante com mais detalhes. Em suma, os remorsos e os desesperos dos condenados serão completos, irrevogáveis e irremediáveis, sem a sombra de um abrandamento ou a possibilidade de torná-los menos amargos. E será tão absoluto quanto possível, pois o mal absoluto não existe29. É possível imaginar o que pode ser esse estado de desespero, privado de todo e qualquer vestígio de esperança? E esse pensamento tão triste: «Eu me perdi no prazer, e me perdi para sempre por ninharias e as frivolidades de um momento! Mas me teria sido fácil me salvar eternamente, como fizeram tantos outros.» Aos olhos dos bem-aventurados, diz-nos as Sagradas Escrituras, os ímpios «serão tomados de terrível pavor» e gritarão entre soluços e gemidos de angústia: «Estávamos enganados! Ergo erravimus! Sim, extraviamo-nos do caminho da verdade; cansamo-nos nas veredas da iniqüidade e da perdição; não conhecemos os caminhos do Senhor! Que proveito nos trouxe nosso orgulho, nossa riqueza e nossos prazeres? Tudo passou como uma sombra e agora estamos perdidos, fomos engolidos pela nossa perversidade!» [Sb 5,114] Ao desespero eles juntam o ódio, que é outro fruto da maldição: «Apartaivos de mim, malditos!» E o maior dos ódios; o ódio a Deus, ao Ser perfeito, ao Bem infinito; ódio à Verdade infinita, ao eterno Amor, à Bondade, à Beleza, à Paz, à Sabedoria e à eterna Perfeição. Um ódio implacável e satânico, ódio sobrenatural que, no inferno, absorve todas as potências do espírito e do coração. Os condenados não poderiam odiar o seu Deus se lhes fossem dada, assim como aos bem-aventurados, a possibilidade de O conhecer com todas as Suas perfeições e Seu inenarrável esplendor. Mas não é desta maneira que Deus é conhecido no inferno, pois os condenados não são capazes de ver mais do que os terríveis efeitos da Sua justiça, isto é, das punições às quais foram condenados. Por isso eles odeiam a Deus, da mesma forma como odeiam as punições sofridas, como odeiam a condenação com as quais foram

amaldiçoados. No último século, em Messina, um santo padre exorcizava um possesso e interrogou o demônio: – Quem és tu? – e o espírito malvado respondeu: – Sou aquele que não ama a Deus. Em Paris, num outro exorcismo, o ministro de Deus perguntou: – Onde estás? – Nos infernos e para sempre! – respondeu furiosamente o demônio. – Gostarias de se redimir? – Não, quero apenas poder odiar Deus para sempre. Assim poderá falar algum dos condenados. Eles odeiam eternamente Àquele que deveriam amar. Há também quem diga: Deus é bom! Então como Ele poderia me condenar? Ora, não é Deus quem condena, mas o próprio pecador que condena a si mesmo30. No terrível ato da condenação, não é a bondade de Deus que está em questão, mas somente Sua santidade e Sua justiça, que é infinita no inferno, da mesma forma que a Sua misericórdia e Sua bondade são infinitas no paraíso. Assim, esteja certo de que se você não ofender a santidade de Deus, não se danará. Porque um condenado tem apenas o que escolheu e, apesar de toda a Graça de seu Deus, fez sua escolha pelo mal. Ora, na eternidade o mal se chama inferno. Se houvesse escolhido o bem, teria o bem eternamente. Tudo isso é perfeitamente lógico e então, como sempre, a fé está perfeitamente de acordo com a razão e a eqüidade. Então, temos o primeiro elemento dessa terrível realidade chamada inferno: a condenação, acompanhada da maldição divina, do desespero e um profundo ódio a Deus.

Em segundo lugar, o inferno consiste na dor horrível de fogo Há fogo no inferno, isso é o que nos diz a fé revelada. Relembremos as palavras do Filho de Deus, que são claras, precisas e sem formalidades: «Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, in ignem… Na prisão de fogo, o fogo jamais se extinguirá (…) o Filho do Homem enviará Seus anjos e eles apanharão do Seu Reino todos os escândalos e os que praticam a iniqüidade e lança-los-ão na fornalha ardente, in caminum ignis». Palavras divinas e infalíveis que, repetidas pelos Apóstolos, são a base do ensinamento da Igreja. Significa que os condenados sofrerão com a pena de fogo no inferno. [Mt 25,41sq] A História eclesiástica narra que, no terceiro século, dois jovens que freqüentavam os cursos da célebre escola de Alexandria, no Egito, um dia resolveram entrar numa igreja. Na ocasião, o padre pregava sobre o fogo do inferno. Um deles riu, enquanto o outro, perturbado pelo terror e pelo arrependimento, converteu-se – e depois se fez religioso para melhor assegurar sua salvação. Passado algum tempo, o primeiro morreu subitamente. E Deus permitiu que ele aparecesse ao seu velho amigo, a quem disse: – A Igreja prega a verdade quando diz que o fogo do inferno é eterno. E os padres erram não falando muito mais sobre o inferno.

O fogo do inferno é sobrenatural e incompreensível Como expressar ou mesmo conceber neste mundo, as grandes realidades eternas? Os padres fazem o que podem, mas seus espíritos e suas palavras nem sempre alcançam êxito. Se do céu é dito: «o que os olhos não viram, e os ouvidos não ouviram e o coração do homem não percebeu tudo o que Deus preparou para os que o amam», podemos igualmente, em nome da justiça infinita, dizer do inferno: «Não, os olhos do homem não viram, suas orelhas não ouviram, seu espírito não pode e jamais poderá conceber o que a justiça de Deus reserva aos pecadores impertinentes». [I Cor 2,9] «Eu sofro, sofro cruelmente nesta chama!», gritava do fundo do inferno o rico malvado do Evangelho. Para compreender o alcance da primeira palavra do condenado, «Eu sofro! (Crucior!)», é preciso compreender o que veio a seguir: «Nesta chama, in hac flamma». O fogo deste mundo é imperfeito como tudo o que é deste mundo, e nossas chamas materiais, apesar do seu terrível poder, são apenas um miserável símbolo dessas chamas eternas das quais fala o Evangelho. Seria possível expressar, sem ficar abaixo da verdade, o horror do sofrimento que pode experimentar um homem jogado, mesmo que por alguns minutos, numa fornalha ardente, supondo que nela possa viver? É possível? Não, evidentemente. Que diríamos então desse fogo sobrenatural, desse fogo eterno, cujos horrores não se podem comparar a nada? No entanto, como estamos no tempo e não ainda na eternidade, precisamos nos servir de pequenas realidades deste mundo, inconstantes e imperfeitas que são, para nos elevar um pouco às realidades invisíveis e infinitas da outra vida. É necessário, a considerar o sofrimento indizível com que precisamos suportar o fogo terrestre, assustar-nos a nós mesmos, com o intuito de não cairmos nas profundezas do fogo do inferno. Padre Bussy e o jovem libertino Fazer um jovem libertino compreender isso foi o desejo de um santo missionário do começo deste século, célebre em toda a França por seu zelo de apóstolo, sua eloqüência e suas virtudes – e um pouco também pela suas originalidades. O padre Bussy, numa missão em alguma cidade dos Pireneus, chocou toda a população. Fazia muito frio, era o meio do inverno, aproximando-se do

Natal. Na sala onde o padre recebia as pessoas, havia uma boa lareira, onde erguiam-se boas labaredas. Um dia, o padre viu chegar um jovem que a ele havia sido enviado por conta de suas fanfarronices de impiedade. Padre Bussy apercebeu-se logo que não havia muito o que se pudesse fazer com aquele rapaz. – Venha cá, meu bom amigo – disse-lhe alegremente – não se preocupe, não faço as pessoas confessarem contra a sua vontade. Sente-se, vamos conversar um pouco ao pé da lareira. Percebeu, então, que a lenha já estava quase toda consumida: – Antes de se sentar, por favor, pegue um pouco de lenha. O rapaz surpreendido, fez o que o padre lhe pediu. – Agora, coloque-as bem ao fundo da lareira – disse ao jovem. Enquanto o rapaz colocava-as no fogo, padre Bussy pegou-o pelo braço, forçando-o para o fundo. O rapaz deu um grito e pulou para trás: – Ai! O senhor está louco? Quer me queimar? – Mas o que você tem, meu jovem? – responde tranqüilamente –, você precisa se acostumar, pois no inferno, que é para onde você irá se continuar a viver da forma em que vive, não será apenas as pontas dos dedos que terá queimado, mas todo o seu corpo. Este foguinho não é nada em comparação com o que você irá encontrar por lá. Vamos, vamos, meu amigo, coragem!, você tem de se habituar. Ele continuou a empurrar o braço, mas o rapaz resistiu, como se pode imaginar. – Meu bom rapaz – disse o padre, mudando de tom – reflita um pouco, qualquer coisa não é melhor do que queimar eternamente no inferno? E não são poucos os sacrifícios que nosso bom Deus exige, para que não soframos tão terrível castigo? O jovem libertino se põe pensativo. De fato, refletiu. E não demorou a retornar junto ao missionário, que o absolveu dos seus pecados, ajudando-o a retomar uma boa vida. Não há dúvidas que se pode encontrar milhares de homens que viviam longe de Deus, e, por conseqüência, seguem a caminho do inferno. Nenhum deles, talvez, suportaria à «prova de fogo». Não haveria um que seria tolo o bastante para seguir o caminho adiante: «Durante todo um ano, você poderá se abandonar impunemente à todos os prazeres, saturar todas as volúpias, satisfazer todos os caprichos, com uma única condição: passar um dia,

somente um dia, quiçá uma hora, em meio ao fogo». Repito: não haveria um que aceitasse tal condição. Ninguém aceitaria seguir este terrível caminho. Quer uma prova? Ouça esta história: Os três filhos de um velho usurário Um pai de família que enriqueceu às custas de flagrantes injustiças, caiu gravemente enfermo. Ainda que a sua situação fosse bastante grave, com suas feridas gangrenando, recusava-se a restituir o dinheiro que havia ganhado injustamente: «Se devolvê-lo, o que será das minhas crianças?», dizia. Seu padre, que era espirituoso, para salvar a alma daquele pobre homem, recorreu a uma estranha astúcia. Disse-lhe que se quisesse a cura, indicaria um remédio bastante simples, porém caro, muito caro. – Ainda que custe mil, dois mil, dez mil francos; se é para me curar eu não me importo! – respondeu vivamente o velho homem – qual é o remédio? – Consiste em dissolver a gangrena com a gordura de uma pessoa viva. Não é preciso muito para isso: se você encontrar alguém que, por dez mil francos, aceite deixar uma mão ser consumida pelo fogo durante apenas quinze minutos, será suficiente. O velho homem diz suspirando: – Ora, creio não haver ninguém que aceite isso. – Há um jeito – diz tranqüilamente o padre –, traga aqui o seu filho mais velho. Ele o ama e é o seu herdeiro. Diga a ele: «Querido filho, você poderia salvar a vida do seu velho pai se permitisse que te queimassem uma mão, somente durante quinze minutos». Mas ele se recusando, um dos outros dois certamente aceitará. Foi feita a proposta aos três irmãos que, um após o outro, recusaram-se com terror. Então, o pai lhes disse: – Para me salvar a vida, um momento de dor é a vocês apavorante! E eu, para dar-lhes conforto, iria para o inferno queimar eternamente! Não, eu seria louco! – e se apressou a devolver tudo o que ganhou de forma desonesta, sem se preocupar com o que tiraria dos seus filhos. Ele tinha razão, e também seus três filhos. Deixar que lhes queimassem a mão por quinze minutos, mesmo que fosse para salvar a vida de seu pai, é um sacrifício acima das capacidades humanas. Ora, como já dissemos, o que seria isso em comparação com os abismos ardentes do fogo do inferno? Meus filhos, não queiram ir para o inferno

Em 1844, no Seminário de São Sulpício, em Issy-les-Moulineaux, uma vila próxima a Paris, conheci um professor de ciências extremamente distinto, a quem se admirava pela humildade e mortificação. Antes de ser consagrado sacerdote, o padre Pinault havia sido um dos professores mais eminentes da Escola Politécnica. No Seminário, fazia o curso de Física e Química. Um dia, durante um experimento, não se sabe como, o fósforo que ele manipulava pegou fogo e sua mão ficou por alguns instantes envolvida em chamas. Ajudado pelos seus alunos, o pobre professor tentava em vão apagar o fogo que devorava a sua carne. Em alguns minutos, sua mão se transformou numa massa disforme, incandescente, a tal ponto que suas unhas desapareceram. Vencido pelo excesso de dor, o infeliz perdeu a consciência. Colocaram sua mão e braço em um balde de água fria, para diminuir a violência do seu martírio. Durante todo aquele dia, e também durante à noite, ele apenas gritava de dor; gritos tão convincentes quanto comoventes. Nos intervalos em que expressava tamanha dor, conseguia articular algumas poucas palavras. Dizia para três ou quatro seminaristas que o assistiam: «meus filhos… meus filhos! Não queiram ir para o inferno! Não queiram ir para o inferno!» Em 1867, o mesmo grito de dor e de caridade sacerdotal escapou dos lábios, ou melhor, do coração de um outro padre, numa situação semelhante. Perto de Pontivy, diocese de Vannes, um jovem vigário, chamado Laurent, enfrentou as chamas de um incêndio para salvar uma infeliz mãe de família e seus dois filhos. Por duas ou três vezes se lançou ao fogo com muita coragem e caridade heróica, em direção de onde partiam os gritos. Teve a felicidade de resgatar sãs e salvas as duas pobres crianças. Mas a mãe permanecia lá, e não havia quem ousasse enfrentar a violência do fogo que aumentava minuto a minuto. Mas escutando apenas a sua caridade, o padre Laurent precipitou-se mais uma vez cruzando as chamas e conseguiu empurrar a mãe, transtornada por aquele horror, para longe do alcance do fogo. No mesmo instante o telhado desabou e, desta vez, era o santo padre a ficar preso entre as chamas. Ele pede socorro, e com muita dificuldade acabam conseguindo salvá-lo da morte iminente. Porém, era tarde demais. O pobre sacerdote já havia sido ferido de forma mortal. Tinha respirado as chamas e o fogo começava a queimá-lo por dentro, devorando-o com sofrimentos inimagináveis. Em vão, todas as boas pessoas daquele lugar tentaram-no ajudar, mas o fogo continuava a devastá-lo

internamente. Em poucas horas, o mártir da caridade iria receber no céu a recompensa pela sua dedicação heróica. Ele também, durante sua terrível agonia, gritava aos que estavam ao seu redor: «Não queiram ir para o inferno! É terrível! É assim que irão queimar no inferno!»

O fogo do inferno é um fogo corpóreo Pergunta-se o que é o fogo do inferno. Qual a sua natureza; se é um fogo material ou ele é apenas espiritual. E muitos se inclinam a esta última opinião, porque, no fundo, ela parece menos terrível. Mas não é o que nos ensina Santo Tomás e a teologia católica. Como dissemos até aqui, é certo que o fogo do inferno é um fogo real e verdadeiro. Um fogo inextinguível, eterno, que queima sem consumir, que penetra os espíritos e também os corpos. É isto o que nos foi revelado por Deus e ensinado como artigo de fé pela Sua Igreja. Negá-lo seria não somente um erro, mas uma impiedade, uma heresia propriamente dita. Voltemos às perguntas: de qual natureza é o fogo que queima no inferno? É um fogo corpóreo? É da mesma espécie que o nosso fogo? Trata-se de um princípio da teologia, e é Santo Tomás que vai nos responder, com toda a sua clareza e conhecida profundidade. Ele diz que os filósofos pagãos, que não acreditavam na ressurreição da carne – mas, no entanto admitiam, como toda a tradição do gênero humano, um fogo vingador na outra vida – deviam ensinar (e de fato ensinavam) que o fogo era espiritual, da mesma natureza das almas. E o racionalismo moderno, que tende a invadir todas as inteligências e tenta diminuir, o quanto pode, as bases da fé, espalhou esses sentimentos a um grande número de espíritos pouco instruídos dos ensinamentos católicos. Mas o grande Doutor, após ter exposto sua primeira impressão, diz de forma clara que «o fogo do inferno será corporal». E a justificativa é categórica: «Uma vez que, após a ressurreição, os condenados serão precipitados no inferno, e dado que o corpo só pode sofrer uma pena corpórea, o fogo do inferno será corpóreo. Uma pena não pode ser aplicada ao corpo de forma apropriada se ela também não for corpórea».31 E Santo Tomás fundamenta o seu ensinamento naqueles de São Gregório Magno e de Santo Agostinho, que disseram a mesma coisa com os mesmos termos. No entanto, podemos dizer, acrescenta o Doutor Angélico, que esse fogo corporal tem qualquer coisa espiritual, não em relação à sua substância, mas quanto aos seus efeitos, pois toda a punição aos corpos não os consome, não os destrói, não os reduz às cinzas. Além disso, exerce sua ação vingativa sobre essas almas e, nesse sentido, o fogo do inferno se distingue do fogo material, que queima e consome os corpos.

Ainda que seja corpóreo, o fogo do inferno atinge as almas Poder-se-ia, talvez, perguntar como o fogo do inferno pode atingir as almas que estarão separadas dos corpos até o dia da Ressurreição e do Julgamento Final. Antes de tudo, é preciso dizer que nesse temível mistério das penas do inferno, uma coisa é conhecer a verdade desse mistério; outra é compreender esta verdade. Sabemos, de forma absoluta pelo ensinamento infalível da Igreja, que, imediatamente após a morte, os condenados caem no inferno e em seu fogo. Ora, entende-se que são suas almas, pois até à ressurreição seus corpos permanecem confiados à terra, em seus túmulos. Uma vez separada do corpo, em relação à ação misteriosa do fogo do inferno, a alma do condenado se encontra na mesma condição dos demônios. Com efeito, embora não tenham corpos, os demônios são atingidos pelo mesmo fogo no qual um dia serão lançados os corpos dos condenados. É o que indica a sentença do Filho de Deus aos réprobos: «Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos». [Mt 25,41sq] Portanto, esse fogo é corpóreo, pois sendo de outra forma, não atingiria os corpos dos condenados. Então, suas almas, quando separada dos corpos, são atingidas por um fogo corpóreo. Isso é o que sabemos e o que é certo. O que não sabemos é como isso se dá. Mas não há necessidade de saber para crermos, afinal as verdades reveladas por Deus têm o objetivo de esclarecer nosso espírito e, ao mesmo tempo, mantê-lo na dependência e na submissão. Pela fé, estamos certos da realidade do fato, e nos é suficiente saber que não é uma coisa impossível. Ora, a razão e a analogia nos mostra claramente: não somos nós mesmos – e a todo instante – as testemunhas irrevogáveis das ações contínuas, reais e íntimas que nosso corpo exerce sobre a nossa alma? Nosso corpo, que é uma substância material, não age sobre nossa alma, que é uma substância espiritual? Então é perfeitamente possível que uma substância material, como o fogo, aja sobre uma substância espiritual, como a alma do condenado. O capitão-ajudante de Saint-Cyr Sobre este tópico, prezado leitor, deixe-me contar um fato bastante curioso que se passou na Escola Militar de Saint-Cyr, nos últimos anos da Restauração.32

A Escola tinha como capelão militar um eclesiástico cheio de espírito e talento, chamado pelo estranho nome de Rigolot.33 Ele orientava espiritualmente os jovens da Escola que, todas as noites, reuniam-se na capela antes de voltar para o dormitório. Certa noite o digno capelão havia falado admiravelmente sobre o inferno e, terminada a cerimônia, retirou-se carregando um castiçal para o seu quarto, que ficava numa área reservada aos oficiais. No momento em que abria a porta, ouviu alguém lhe chamar. Era um velho capitão de bigode grisalho e um ar zombeteiro. – Desculpe-me, senhor capelão – disse com uma voz irônica –; foi um belo sermão sobre o inferno. Mas eu fiquei com uma dúvida: no fogo do inferno seremos assados, grelhados ou fervidos? O senhor poderia me dizer? O capelão, vendo com quem estava lidando, aproximou o castiçal do nariz do seu interlocutor, respondendo-lhe com tranquilidade: – O senhor verá, capitão! Entrou, fechou sua porta e riu-se daquela figura esquisita e atrapalhada. Não pensou mais nisso, mas percebeu que, a partir daquele momento, o capitão desviava-se do caminho quando de longe o avistava. Ocorreu a Revolução de Julho34 e suprimiram-se os capelães militares, tanto em Saint-Cyr como nas outras escolas. O padre Rigolot foi, então, nomeado pelo Arcebispo de Paris a um posto não menos honorável. Vinte anos depois, o venerável padre visitava uma exposição onde se encontrava quase toda a sociedade, quando um senhor com um bigode branco veio cumprimentá-lo. Perguntou-lhe se era o padre Rigolot, outrora capelão de Saint-Cyr. Diante da resposta afirmativa, disse: – Oh, senhor capelão, permita-me apertar a sua mão e exprimir todo o meu reconhecimento: o senhor me salvou! – Eu? Mas como? – O quê? O senhor não me reconhece? Não se lembra de uma noite em que um capitão-instrutor da Escola veio-lhe fazer uma pergunta estúpida depois do seu sermão sobre o inferno? E o senhor respondeu enfiando-lhe o castiçal no nariz: «o senhor verá, capitão!» Esse capitão era eu! Saiba que essas palavras me perseguiam para onde eu fosse, e não conseguia parar de pensar que iria queimar no inferno. Depois de lutar por dez anos, acabei por me render. Confessei-me e me tornei um cristão. Devo esta felicidade ao senhor, e estou muito contente em revê-lo para poder agradecer.

Se por acaso, meu querido leitor, algum dia aparecer algum engraçadinho a fazer piadas sobre o fogo do inferno, faça como o padre Rigolot e diga: «Você verá isso, meu caro. Você verá!» Garanto que não ficarão tentados a pagar para ver. A mão queimada de Foligno Uma coisa certa é que quase todas as vezes que Deus permitiu a aparição na terra de uma pobre alma condenada – ou uma alma no purgatório, que da mesma maneira retorna –, no que concerne ao fogo da outra vida, sempre ficou um traço visível, e este traço é aquele do fogo. Relembremos daquela terrível aparição em Londres, do braço calcinado da dama do bracelete de ouro. Recordemos também a atmosfera de fogo e de chamas que envolvia a filha perdida de Roma e o jovem sacrílego religioso de Santo Antonino de Florença. Ainda este ano, no mês de abril, vi – ou pelo menos tive contato em Foligno, perto da Assis, na Itália – um desses sinais terrificantes que atestam ainda mais a verdade do que dissemos aqui, isto é, que o fogo da outra vida é um fogo real. Em 4 de novembro de 1859, morreu de apoplexia35 fulminante, no Convento da Ordem Terceira Franciscana de Foligno, uma boa irmã chamada Teresa Margarita Gesta, que durante muito tempo foi mestra de noviças e também encarregada do pobre vestuário do mosteiro. Ela nasceu em Córsega, em Bastia, no ano de 1797, e havia entrado para o mosteiro em fevereiro de 1826. Desnecessário dizer que estava dignamente preparada para a morte. Doze dias depois, em 17 de novembro, uma irmã chamada Ana Felícia, que a ajudava em seus ofícios e a substituiu após sua morte, subiu ao vestuário e, ainda antes de entrar, ouviu gemidos que pareciam vir do interior do aposento. Assustada, abriu a porta: não havia ninguém. Mas continuou a ouvir os gemidos que se tornaram mais intensos a ponto de apavorar a corajosa irmã: – Jesus-Maria! O que é isto? Mal havia falado e se fez ouvir uma voz lamentosa, acompanhada de um doloroso suspiro: – Oh! meu Deus, eu sofro! Oh! Dio, che peno Canto! A irmã, estupefata, reconheceu logo a voz da pobre irmã Teresa. Recompondo-se do medo, perguntou:

– Mas por quê? – Devido à humildade! – O quê! Você que era tão humilde! – Não é por mim, mas pelas irmãs a quem dei muita liberdade neste aspecto. E você, cuide-se! No mesmo instante, toda a sala se encheu com uma fumaça espessa, e foi possível ver a sombra da irmã Teresa se dirigindo à porta, como que se deslizasse por toda a parede. Chegando à porta, falou com firmeza: «Aqui tens um testemunho da misericórdia de Deus!» Dito isto, bateu na parte mais alta da moldura da porta, queimou a madeira para deixar a marca mais perfeita da sua mão direita. Logo depois, desapareceu. A pobre irmã Ana Felícia, aterrorizada, pôs-se a gritar pedindo por socorro. Uma de suas companheiras a acudiu, e depois toda a comunidade. Ao redor dela, as irmãs se surpreenderam com o cheiro da madeira queimada. Procuraram e encontraram na porta a terrível marca, e logo reconheceram a forma da pequenina mão da irmã Teresa. Horrorizadas, começaram a orar e, esquecendo-se até mesmo das necessidades dos seus corpos, passaram a noite inteira a rezar, fazendo as penitências pela pobre alma de irmã Teresa. Continuaram no dia seguinte; todas em comunhão pela falecida. A notícia se espalhou e também os frades menores, os bondosos padres amigos do mosteiro e todas as comunidades da vila juntaram suas orações e súplicas às dos franciscanos. Esse impulso de caridade tinha algo de sobrenatural e completamente incomum. Mas a irmã Ana Felícia, emocionalmente abalada, recebeu ordem para ir repousar. Obedeceu. No entanto, decidiu-se que no dia seguinte, a qualquer custo, faria desaparecer a marca de mão carbonizada na madeira que espalhou o terror em toda Foligno. De repente, a irmã Teresa lhe apareceu mais uma vez: – Eu sei o que queres fazer – disse de forma severa –; queres retirar a marca que eu deixei. Saibas que não está em teu poder fazê-lo. Esse prodígio foi ordenado por Deus, para o ensinamento e a correção de todos. Por Seu justo e indubitável julgamento, estou condenada a ficar durante quarenta anos nas terríveis chamas do purgatório, devido às minhas fraquezas em relação a algumas de nossas irmãs. A ti agradeço, e a todas as tuas companheiras, por tantas orações que, na Sua bondade, o Senhor dignou-se a aplicar exclusivamente à minha pobre alma. Especialmente os sete salmos

penitenciais que me trouxeram grande alívio. Depois, com um sorriso no rosto, desapareceu dizendo: «Oh, abençoada humildade, que provê tão grande alegria a todos aqueles que a seguem verdadeiramente!» Enfim, no dia seguinte, a irmã Ana Felícia recolheu-se na sua hora habitual e, adormecida, ouviu novamente chamar o seu nome. Despertou bruscamente com um susto, e permaneceu paralisada sem poder articular uma só palavra. Reconheceu novamente a voz da irmã Teresa. No mesmo instante, uma bola de luz resplandecente apareceu diante dela, ao pé de sua cama, iluminando a sua cela como em pleno dia. E ouviu a irmã Teresa que, com uma voz alegre e triunfante, disse: – Morri numa sexta-feira, o dia da Paixão. E eis que uma sexta-feira eu irei para a glória… Sejam fortes ao carregar a cruz! Sejam corajosas ao sofrer! E com amor se despediu: – Adeus! Adeus! Adeus! Transfigurou-se numa ligeira e deslumbrante nuvem branca, voou para o céu e desapareceu. Foi aberta imediatamente uma investigação canônica pelo bispo de Foligno e os magistrados da cidade. No dia 23 de novembro, na presença de um grande número de testemunhas, foi aberto o túmulo da irmã Teresa Margarita, e a marca queimada na porta era exatamente igual à mão da falecida. O resultado da investigação foi um julgamento oficial que constatou a certeza e a autenticidade do que narramos aqui. A porta, com a marca da mão na madeira queimada é conservada com veneração no convento. Foi a própria madre-superiora, testemunha do fato, quem me mostrou. E junto com meus companheiros de peregrinação, vimos e tocamos aquela madeira que atesta de uma maneira incontestável que as almas, quer momentânea ou eternamente, sofrem a pena de fogo em outra vida, e são tocadas profundamente e queimadas por esse fogo. Quando, por razões que só Deus conhece, é lhes dado a aparecer neste mundo, marcam a porta com o fogo que os atormentam. Eles, com o fogo, parecem tornar-se apenas um; como o carvão que pelo fogo se torna brasa. Assim, embora não possamos entender o mistério, sabemos, sem que se possa negar, que o fogo do inferno, corporal como é, exerce a sua ação vingadora até sobre as almas.

Onde está o fogo do inferno? Sem uma indicação absolutamente precisa, a revelação cristã e o ensinamento católico estão de acordo em nos mostrar os abismos escaldantes do fogo do centro da terra como o lugar onde serão precipitados os corpos dos condenados após a ressurreição. É o que o célebre Catecismo do Concílio de Trento nos diz com todas as letras: o inferno está «no centro da terra, in medio terre».36 Da mesma forma é o ensino formal de Santo Tomás37 que, não obstante, apresenta esse lugar como o mais provável: «Pessoa alguma sabe de maneira exata em que parte da terra está situado o inferno, a menos que o próprio Espírito Santo o tenha revelado. Mas temos razão para crer que o inferno está debaixo da terra. Primeiro porque o próprio nome indica: infernus, quer dizer que é abaixo, um lugar inferior em relação à terra. Em seguida, nas Sagradas Escrituras dizem que os condenados estão debaixo da terra, subtus terram». Além disso, é dito no próprio Evangelho e nas Epístolas de São Paulo que na Sexta-Feira Santa a alma de Nosso Senhor, temporariamente separada de seu corpo, desceu «no coração da terra, in corde terrae»; «desceu às profundezas da terra, in inferiores partes terrae». Ora, sabemos que ela trazia a notícia da redenção e também a salvação aos justos da antiga Lei que, desde o começo do mundo, creram e esperavam cheios de esperança e amor na paz do limbo.38 Sabemos que a Santa Alma foi refrescar as que estavam no purgatório e lá terminavam de expiar seus pecados para passar para os limbos. Enfim, que ela desceu aos infernos, descendit ad inferos,39 para manifestar a Satanás, a todos os demônios e a todos os condenados Sua divindade e Seu triunfo sobre o pecado, sobre a carne e sobre o mundo.40 [Ap 5,3] [Mt 12,40 + Ef 4,9] Ora, de tudo isso, não se pode concluir, sem pelo menos uma forte evidência, que o lugar do inferno é e será o centro da terra – lugar onde todos os geólogos afirmam existir algo como um imenso oceano de fogo, com enxofre e betume em fusão –, e que, como qualquer coisa tão extraordinária e poderosa, sequer podemos ter uma idéia nesta vida. Acrescente-se a isso o fato de que, na linguagem das Escrituras, o Espírito Santo sempre apresenta o inferno como um abismo onde se é precipitado, onde se cai, onde se desce; palavras que exprimem necessariamente um lugar não somente inferior, mas também profundo. Esta é a linguagem universal da

Igreja, dos Santos Padres, dos teólogos e também do mundo inteiro. Enfim, ainda que sejam alteradas nas tradições do paganismo, principalmente entre os gregos e os latinos, elas vêm confirmar o que resumimos aqui, quando descrevem o lugar das punições da outra vida como uma vasta região subterrânea, onde reina o sombrio deus Plutão, caricatura mitológica de Satanás. Um lugar onde, como já dissemos, o fogo e as chamas têm papel principal, o qual se é possível ver de outras regiões, como a aquela chamada Campos Elísios,41 também encontrada no subterrâneo, mas um lugar de certa paz e um tipo de felicidade melancólica. Curioso reflexo da verdadeira tradição sobre os limbos, destino dos justos da antiguidade. Acrescentemos, enfim, o que disse Santo Agostinho, comentado por Santo Tomás, que após a morte o corpo é enterrado, ou seja, desce e é sepultado na terra, para lá expiar o pecado pela putrefação, e parece ao menos conveniente que a alma que deve expiar o mesmo pecado, seja com a purificação no purgatório ou com a punição no inferno, deve também descer para encontrar nos lugares inferiores o fogo vingador aceso pela justiça divina. Com tudo isso, não podemos e não devemos concluir que o inferno, com seu fogo terrível, tenha sede especial no centro da terra, onde o fogo do abismo queima com a maior intensidade? Observemos, no entanto, que esse fogo natural é sobrenatural pela onipotência da justiça divina, a fim de produzir todos os efeitos que reclama esta justiça ao mesmo tempo adorável e terrível, e também com o intuito de alcançar e penetrar os espíritos e os corpos, sem consumi-los, mas pelo contrário mantendo-os conservados, segundo esta terrível palavra do soberano Juiz: «Na geena do fogo que não se extingue, todos os condenados serão salgados com fogo, igne salietur». Da mesma forma que o sal penetra e conserva as carnes das vítimas, portanto, através de um efeito sobrenatural, o fogo corpóreo do inferno penetra sem jamais consumir os condenados e os demônios. [Mc 9,48-50]

O fogo do inferno é um fogo tenebroso: visões de Santa Teresa Revelando-nos que o inferno é de fogo, Nosso Senhor também nos disse, com a autoridade divina e infalível de Sua palavra, que o inferno é de trevas. No Evangelho de São Mateus, capítulo vigésimo-segundo, Ele deu ao inferno o nome de trevas exteriores, quando falou do homem que não estava coberto com a veste nupcial, isto é, que não estava em estado de Graça: «Lançai-o fora, nas trevas exteriores, in tenebras exteriores». Em outra parte dos Evangelhos, nos Atos dos Apóstolos, os demônios são chamados «os príncipes das trevas». São Paulo diz aos fiéis: «pois todos vós sois filhos da luz, filhos do dia. Não somos da noite, nem das trevas». [Ef 6,12 + 1Ts 5,5] Assim como o fogo, as trevas do inferno também serão corpóreas. Essas duas verdades não implicam em nenhuma contradição. O fogo, ou, para falar de forma mais exata, o calor, que é como a alma e a vida de fogo, é um elemento completamente distinto da luz. No estado natural, e quando se produz a chama no meio dos gases do ar, o fogo é, de fato, sempre mais ou menos luminoso. Mas no inferno, mantendo sua substância, o elemento do fogo será despojado de certas propriedades naturais e adquirirá outras que serão sobrenaturais, isto quer dizer que não as possui por si mesmo. É desta forma que Santo Tomás, baseando-se em São Basílio Magno, ensina que «pela potência de Deus, a claridade do fogo será separada da propriedade que ela tem de queimar. E a sua virtude é o combustível que servirá ao tormento dos condenados».42 Em outro ensinamento, Santo Tomás acrescenta: «no meio da terra, onde está o inferno, só pode haver um fogo sombrio, obscuro e pleno de fumaça».43 O pouco que se escapa da boca dos vulcões confirma esta afirmação. Portanto, no inferno haverá penas corporais. Porém, com um certo clarão que permitirá aos condenados aperceberem-se do que deverá compor os seus tormentos. Eles verão no fogo e na sombra, como no clarão das chamas do inferno, àqueles que também foram levados à danação, ensina-nos São Gregório Magno. E tal visão será um complemento aos seus suplícios.44 Além disso, o horror mesmo das trevas, que conhecemos por nossa experiência na terra, não deve ser considerado como algo insignificante na punição dos condenados. O

negro é a cor que representa a morte, o mal; é a cor da tristeza. Santa Teresa de Jesus contou que, estando um dia cheia de espírito, Nosso Senhor dignou-se a assegurá-la a eterna salvação, se ela continuasse a servi-lo e amá-lo. E para aumentar ainda mais a crença da sua fiel serva nas punições provocadas pelo pecado, Ele quis deixá-la ver o lugar que ela poderia ocupar no inferno, caso sucumbisse às suas inclinações para o mundo, para a vaidade e para o prazer. Estando um dia em oração, sem saber como, pareceu- me estar metida toda no inferno. Entendi querer o Senhor mostrar-me o lugar que lá me tinham aparelhado os demônios e eu merecido por meus pecados. Durou um brevíssimo espaço de tempo; mas, vivesse eu muitos anos, creio impossível esquecê-lo. Parecia-me a entrada a modo de um beco muito longo e estreito como um forno muito baixo, escuro e angusto. O solo pareceu-me de uma água como um lodo sujíssimo e de pestilencial odor, cheio de malvadas sevandijas. Ao fim, estava uma concavidade metida numa parede a modo de um nicho, onde me vi meter, cerrada estreitamente; tudo isso era deleitoso à vista, em comparação do que ali senti. E tudo que digo vai muito mal encarecido. Este outro tormento parece-me que não pode haver modo de ser esclarecido como merece, nem se pode entender; mas senti um fogo na alma que não posso atinar com a maneira de dizer como é. As dores corporais tão insuportáveis que, com havê-las passado gravíssimas nesta vida e, segundo dizem os médicos, as maiores que se podem passar aqui embaixo (porque quando fiquei tolhida encolheram-me todos os nervos, sem falar de outros muitos padecimentos e alguns, como já disse, causados pelo demônio), nada são em comparação do que ali senti. O pior era ver que tinham de ser sem fim e sem jamais cessar. Isto não é pois nada, em comparação do agonizar da alma, um aperto, uma sufocação, uma aflição tão sensível e com tão desesperado e aflito descontentamento, que não sei como encarecê-lo. Porque é pouco dizer que é como se nos estivessem sempre a arrancar a alma. É que assim sempre parece que outro nos acaba a vida, mas neste caso é a própria alma que se despedaça. O caso é que não sei como encareça aquele fogo interior e aquele desespero, entre tão gravíssimos tormentos e dores. Não via eu quem mos causava, mas sentia-me queimar e como que esmagar; e digo que aquele fogo e aquela desesperação interior são o pior. Estando naquele pestilencial lugar, sem esperança de consolo, não há sentar-se nem deitar-se, nem há lugar; pois me puseram numa espécie de fenda cavada na muralha e estas paredes, espantosas à vida, apertam-se por si mesmas e tudo sufoca; não há luz, tudo são trevas escuríssimas. Eu não entendo como pode ser isso, pois não havendo luz vê-se entretanto tudo que deve maltratar a vista. Não quis o Senhor que eu então visse mais do que há no inferno; depois vi outra visão de coisas espantosas e o castigo de alguns vícios. Quanto à vista, muito mais espantosos me pareceram, mas como não sentia a dor, não me fizeram tanto medo. Nesta primeira visão, quis o Senhor que eu verdadeiramente sentisse aqueles tormentos e aflição no espírito, como se o corpo se estivera padecendo. Não sei como aquilo foi, mas bem entendi ser mercê grande e que quisera o Senhor visse eu por vistas de olhos de onde me livrara a sua misericórdia. Porque não é nada ouvi-lo dizer, nem ter eu pensado em diferentes tormentos (embora o faça eu poucas vezes, porque pelo temor não se leva bem a minha alma), nem o que os demônios atenazam, nem outros diferentes tormentos que tenho lido. Nada é como este suplício, porque é outra coisa. Fica, enfim, como um debuxo para a verdade e o queimar-se aqui na terra é muito pouco em comparação com este fogo de lá. Fiquei tão aterrada e ainda agora o estou, enquanto isso escrevo, embora sucedesse há quase

seis anos; parece-me até que o calor natural me falta aqui onde estou, de tanto medo. E assim não me recordo de vez em que tenha aflição ou dores que não me pareça de nonada tudo que possa aqui passar; e creio, em parte, que nos queixamos sem propósito. Torno a dizer que foi uma das maiores mercês que me fez o Senhor; aproveitou-me muitíssimo, tanto para perder o medo das tribulações e contradições desta vida, como para esforçar-me a padecê-las e para dar graças ao Senhor que segundo creio, agora, livrou-me de males tão perpétuos e terríveis. Depois disso, como digo, tudo me parece fácil em comparação de um único momento em que se deva sofrer o que ali padeci. Espanta-me como tendo muitas vezes lido livros em que se dá a entender algo das penas do inferno eu não as temia ou não as tinha no que são. Onde estava eu, como me poderia dar descanso o que me carregava para tão mau lugar? Bendito sejais para sempre, Deus meu. E como vi que me quereis muito mais a mim do que eu me quero! Que de vezes, Senhor, me livrastes daquele cárcere tão tenebroso e como me tornava eu a meter nele contra a vossa vontade! Daí também nasceu-me a grande pena que tenho das muitas almas que se condenam. Pareceme até que, para livrar uma única de tão gravíssimos tormentos, de bom grado passaria eu por mil mortes. 45

Que a fé corrija a nossa visão; e que o pensamento das ‘trevas exteriores’, onde os condenados serão lançados como os excrementos e a escória da criação, retenham-nos das tentações e façam de nós os verdadeiros filhos da luz!

Que outras grandiosas penas acompanham o sombrio fogo do inferno Além do calor e das trevas, há outras punições e dores, ou seja, outras maneiras de se sofrer no inferno. Assim requer a justiça divina, pois os condenados terão cometido o mal por diversas maneiras. Cada um dos seus sentidos terá participado, com maior ou menor intensidade, para cometer os delitos, e por conseqüência, para sua danação. Por isso é justo que sejam punidos com maior rigor por onde tenham pecado mais, de acordo com as palavras das Escrituras: «Cada um será punido pelas suas obras». [Ap 22,12] [Tg 2, 14-26] Será usado principalmente esse fogo, terrível e sobrenatural de que falamos, como instrumento dessas múltiplas punições. Punirá por uma ação especial os respectivos sentidos que serviram à iniquidade; e também em relação a cada um dos seus vícios, cada um dos seus pecados, que, como diz o Evangelho, lançado no fogo e nas trevas, o condenado chorará amargamente pelo passado irreparável e rangerá os dentes em um excesso de desespero: «Ali haverá choro e ranger com os dentes, fletus et stridor dentium». São as próprias palavras de Deus. [Mt 13,42] O choro dos condenados será mais espiritual do que corporal, diz São Tomás. E será logo após a ressurreição, onde os seus corpos humanos serão restituídos com todos os seus sentidos, todos os seus órgãos e todas as suas propriedades essenciais. Não serão, portanto, mais suscetíveis de certos atos nem de certas funções. Para as lágrimas, em particular, se exigirá um princípio físico de secreção que não mais existirá.46 Meu bom leitor, imagine todo esse sofrimento, sob as diversas influências do fogo e das trevas, todos os horríveis remorsos e desesperos inúteis que estarão diante dos olhos de um condenado. Aqueles mesmos olhos que por tantas vezes e por tantos anos serviram para satisfazer o orgulho, a vaidade, a avidez e todas as buscas pela luxúria. E suas orelhas abertas aos discursos impudicos, às mentiras, às calúnias, ao escárnio da impiedade! E sua língua, lábios e bocas como instrumentos de tanta sexualidade, tantos discursos ímpios e obscenos, tantas gulodices! E suas mãos que procuraram, que escreveram, que derramaram tantas coisas detestáveis; que fizeram tantas más ações! E seu cérebro, órgão de tantos milhões de pensamentos maldosos de todos os gêneros!

E seu coração, tomado por uma depravada vontade e todas as suas más afeições, apagar-se-á para sempre! E seu corpo inteiro, a carne pela qual viveu a satisfazer desejos, paixões e todas as concupiscências! Tudo terá sua punição, seu tormento especial. Além disso, a pena geral da danação; toda a maldição divina e o fogo vingador. Como é horrível! E não é tudo. De fato, Santo Tomás acrescenta, assim como os Santos Padres: «Na purificação última do mundo, será feita uma separação radical nos elementos; tudo o que é puro e nobre subsistirá no céu para a glória dos bem-aventurados, enquanto tudo o que é infame e imundo será lançado no inferno para o tormento dos condenados.47 E assim, da mesma forma que cada criatura será uma causa de regozijo para os eleitos, os condenados encontrarão as causas dos tormentos em todas as criaturas». E isso será acompanhado das Verdades contidas nas Sagradas Escrituras: «O universo inteiro combaterá com o Senhor contra os insensatos», isto é, os condenados. [Sb 5,20] Enfim, para completar a exposição desse lúgubre estado da alma condenada, acrescente o que Nosso Senhor declarou na fórmula da sentença a ser dada no Julgamento Final, a saber: que os malditos e condenados, irão queimar no inferno: «no fogo preparado para o demônio e seus anjos». Nas ardentes profundezas do inferno, os condenados terão o suplício da execrável companhia de Satanás e seus demônios. Neste mundo encontra-se às vezes uma espécie de alívio por não se ser o único a sofrer, mas na eternidade esta associação do condenado com os anjos malvados e outros condenados será, ao contrário, um agravamento do desespero, do ódio, dos sofrimentos da alma e das dores físicas. Eis o pouco do que sabemos, pela revelação divina e pelos ensinamentos da Igreja, sobre a multiplicidade de tormentos que serão, na outra vida, o castigo dos ímpios, dos blasfemadores, dos impudicos, dos orgulhosos, dos hipócritas e, em geral, de todos os pecadores obstinados e impenitentes. Mas, acima de tudo, o que torna mais apavorante todas essas penas é o fato delas serem eternas. 26Nunca é demais lembrar Sto. Agostinho: «Vós sois grande, Senhor, e altamente digno de louvor: grande é o vosso poder, e a vossa sabedoria não tem medida. E o homem, pequena parcela de vossa criação, pretende louvar-vos, precisamente o homem que, revestido de sua condição mortal, traz em si o

testemunho de seu pecado e de que resistis aos soberbos. A despeito de tudo, o homem, pequena parcela de vossa criação, quer louvar-vos. Vós mesmo o incitais a isto, fazendo com que ele encontre suas delícias no vosso louvor, porque nos fizeste para vós e o nosso coração não descansa enquanto não repousar em vós.» – Confissões, I,1,1. 27 O caso ocorreu em 1636 e está relatado na autobiografia do padre Surin (Surin, Jean-Joseph; Triomphe de l’amour divin sur les puissances de l’enfer: Et, Science experimentale des choses de l’autre vie, Paris, J. Millon, 1990). O jesuíta foi tomado pela influência diabólica de uma maneira tão violenta que acabou sendo considerado mentalmente desequilibrado e internado em um manicômio. Somente depois de ser atormentado durante vinte anos, o padre Sorin voltou a levar uma vida normal. Pode-se questionar o porquê de Deus ter permitido que um demônio o possuísse. Explica-nos o sacerdote José Antonio Fortea sobre as possessões demoníacas: «Deus permite esse estranho fenômeno por quatro motivos: 1. Mostra a verdade da religião Católica; 2. É a punição dos pecadores; 3. É o benefício espiritual dos bons; 4. Produz saudáveis lições para os homens. (...) a possessão é como uma janela aberta pela qual podemos nos somar ao mundo de ódio e sofrimento demoníaco. Uma janela aberta pela qual podemos presenciar algo do poder invisível das naturezas angélicas.» (Fortea, José Antonio; Svmma dæmoniaca: tratado de demonologia e manual de exorcistas. São Paulo, 2010, Palavra & Prece – tradução de Ana Paula Bertolini – Questão 106; pp. 160). 28 Mc 9,48 «...onde o verme não morre e onde o fogo não se extingue.» 29 «O mal não tem substância, pois, se o fosse, seria um bem», Santo Agostinho, Confissões, VII, 12; cf. O Livre Arbítrio, III, c. 13, 36b-38 30 «As penas do inferno não são outras senão o ódio, a tristeza, a ira, a solidão, a melancolia, o arrependimento e o sofrimento que produz a própria deformação do espírito; isto é a deformação de todos os pecados que contém cada anjo caído. Se analisarmos os termos usados na Bíblia ao falar da condenação, veremos termos de afastamento, do fogo do arrependimento, mas nunca termos de tortura aplicada por parte de um Juiz. Ao falar da condenação a Bíblia nunca apresenta Deus como o torturador. Usa termos impessoais, como fogo, trevas ou lago sulfuroso. A condenação, portanto, é o afastamento de Deus e é a tortura que cada espírito aplica a si mesmo pela própria deformação espiritual. Deus não criou os sofrimentos infernais; o inferno é fruto da deformação de cada espírito» (Fortea, José Antonio; Svmma dæmoniaca: tratado de demonologia e manual de exorcistas. São Paulo, 2010, Palavra & Prece – tradução de Ana Paula Bertolini – Questão 95; pp. 119). cf. São Tomás de Aquino, Suma Contra os Gentios, Capítulo CLXII. 31 O corpo ressuscitado será espiritual, porque estará totalmente submetido ao espírito, não porque seja espírito, como queriam alguns que entenderam mal o texto citado (1 Cor 15,44), quer se tome por espírito a substância espiritual, ou o ar ou o vento (cf. LXXXIV) – São Tomás de Aquino, Suma Contra os Gentios, l. IV, cap. LXXXVI, p. 895-897. cf. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, Suplemento, Q. 97, art. 5, passim; São Gregório Magno, Diálogos IV; Santo Agostinho, Cidade de Deus, XXI, 10. 32 Período da História da França em que foi restaurada a monarquia, após a queda de Napoleão Bonaparte (1814-1830). 33 Rigolo em francês quer dizer engraçado, i.e., «O capelão Engraçado». 34 Que pôs fim à Restauração para iniciar uma época bastante tumultuada na França e em toda a Europa. 35 Acidente Vascular Cerebral. 36 Na versão francesa do Catecismo do Concílio de Trento: Parte I, § V, pp.44 (cf. nota “d”). Na edição brasileira do Catecismo Romano (Frei Leopoldo Pires Martins, Vozes, 1951), encontra-se na Parte I, § VI, p. 93. Porém, não há a frase «no centro da terra». 37 Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, Suplemento, Q. 97, art. 7 - passim. cf. Santo Agostinho, Cidade de Deus, XV, 16. Não há, na doutrina da Igreja, uma posição definitiva sobre o assunto. Assim, não se pode dar como certa a indicação de um lugar específico para a localização do

inferno. No entanto, talvez seja mais importante o que nos lembra São João Crisóstomo: «Não devemos perguntar onde fica o inferno, mas como dele vamos escapar» (Rom., hom. xxxi, n. 5, in P.G., LX, 674). 38 Lugar onde estavam as almas dos que morreram na Graça de Deus, antes da vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo. E, segundo a tradição da Igreja, também para aonde vão as das crianças que morrem sem o batismo. 39 Sl 87, 5-6; Ecl 24, 45; Sb. 10, 13-14; cf. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, Parte III, Q. 52, art. 5. 40 Fp 2, 10 – «...a fim de que ao nome de Jesus todo joelho se dobre nos céus, sobre a terra e debaixo da terra, e que toda língua proclame que o Senhor é Jesus Cristo para a glória de Deus Pai». 41 O paraíso na mitologia grega e romana; Elísio era uma parte do mundo subterrâneo e um lugar de recompensa para os mortos virtuosos. Narra Homero no livro IV da Odisséia: Mas, quanto a ti, Menelau, descendente de Zeus, o Destino / não determina morreres em Argos, nutriz de cavalos; / para as campinas do Elísio, limite da terra, te enviam / os imortais, onde está Radamanto, de louros cabelos, / e onde a existência decorre feliz para todos os homens. / Lá não cai neve, nem longo é o inverno, nem chove o ano todo, / mas de contínuo o de Zéfiro sopro de ruído sonoro / manda o oceano, que os homens com branda bafagem refresque, / visto de Helena, marido tu seres e, assim, de Zeus genro.” (Canto IV, 561-569 - versos em língua portuguesa por Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001); e Virgílio, no livro V da Eneida: Não no ímpio Tártaro, entre os manes tristes; / Moro sim, entre os bons, no Elísio ameno (Op. Cit. versos 755-760). 42 Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, Suplemento, Q. 97, art. 5. 43 Ibid., Q. 97, art. 4. 44 São Gregório Magno, Moralia in Job, livro IX, cap. XXX. 45 Vida de Santa Teresa de Jesus: escrita por ela própria. Edições Loyola, São Paulo, 1998 (Cap. XXXII) – Tradução de Rachel de Queiroz. 46 Após a ressurreição, o «corpo agora corruptível tornar-se-á incorruptí-vel pela virtude divina» – Santo Tomás de Aquino, Suma Contra os Gentios, Cap. LXXXV, II. cf. 1Cor 15,53. 47 Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, Suplemento, Q. 74, art. 9.

CAPÍTULO III

SOBRE A ETERNIDADE DAS PENAS DO INFERNO É uma verdade de Fé revelada O próprio Deus revelou para Suas criaturas a eternidade das penas que os esperam no inferno, caso insistam em ser insensatas, perversas, ingratas e inimigas de si para se revoltar contra as leis de Sua santidade e também de Seu amor. Reportemo-nos, caro leitor, aos numerosos testemunhos que já foram citados no decorrer deste pequeno livro. Quase sempre lembrando a revelação misericordiosa dessa salutar verdade que Ele se dignou a fazer aos nossos primeiros pais. O Senhor nosso Deus fala da existência do inferno e da eternidade de suas penas. Assim, pelos patriarcas Jó e Moisés, declara-nos que no inferno «reina o eterno horror, sempiternus horror».48 O texto original é mesmo muito forte. A palavra sempiternus quer dizer ‘para sempre eterno’; é como se disséssemos: ‘eternamente eterno’.49 Pelo Profeta Isaías, repete-nos o mesmo ensinamento. E você não se esqueceu desta terrível interpelação que se dirige a todos os pecadores: «Quem dentre nós poderá manter-se junto aos braseiros eternos, cum ardoribus sempiternis?» Aqui temos novamente o superlativo sempiternis. No Novo Testamento a eternidade do fogo do inferno e suas penas retorna a todo momento pela boca de Nosso Senhor, através dos escritos de Seus Apóstolos. Aqui, mais uma vez relembremos, caro leitor, os excertos que citamos. Lembrarei apenas de uma palavra de Nosso Senhor, que resume de forma solene todas as outras, na sentença que decidirá nossa eternidade: «Venham os benditos de meu Pai, receber a herança do Reino preparado para vós desde a criação do mundo!» E aos condenados: «Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos». E termina dizendo: «E irão estes para o castigo eteno, e os justos para uma vida eterna, Et ibunt hi in supplicium aeternum, justi autem in vitam aeternarn». Essas palavras do Filho de Deus dispensam comentários. Sob sua luminosidade a Igreja, durante dezenove séculos, faz repousar Seu ensinamento divino, soberano e infalível, a tocar a eternidade da beleza dos eleitos no céu, e das penas dos condenados no inferno. Portanto, a eternidade do inferno e sua terrível punição é uma verdade revelada, uma verdade de fé católica, tão certa quanto a existência de Deus e também dos outros grandes mistérios da religião cristã.

Sobre o inferno ser necessariamente eterno devido a natureza mesma da eternidade Há muito tempo que a fraqueza natural do espírito humano cede sob o peso deste terrível mistério da eternidade das punições dos condenados. Já no tempo de Jó e Moisés, dezessete ou dezoito séculos antes da Era Cristã, certos espíritos fracos e certas consciências pesadas falavam da atenuação, senão do fim das penas do inferno. Diz o livro de Jó: «Eles imaginam que o inferno diminui e envelhece».50 Hoje, como sempre, esta tendência de atenuar e diminuir as penas do inferno encontra advogados quase sempre interessados na causa. Mas eles se enganam, pois suas hipóteses se baseiam apenas na imaginação, além de serem diretamente contrárias às afirmações divinas de Jesus Cristo e Sua Igreja. Em suma, partem de uma concepção absolutamente falsa da natureza mesma da eternidade. O inferno não terá fim e nem mesmo uma atenuação de suas penas, pois é completamente impossível que isso possa acontecer. A natureza da eternidade se opõe de maneira absoluta a estas hipóteses. Com efeito, a eternidade não é como o tempo, que se compõe de uma sucessão de instantes que se juntam uns aos outros para formar os minutos, as horas, os dias, os anos ou os séculos. No tempo podemos mudar porque o «tempo muda».51 Mas se não tivéssemos diante de nós o dia, as horas, ou os minutos e segundos, não seria evidente que não poderíamos mudar de um estado para outro? Ora, é isso o que acontece na eternidade: não há instantes que sucedem outros instantes e que são todos distintos uns dos outros. A eternidade é um modo de duração e de existência que nada tem em comum com o que podemos viver na terra. Podemos conhecê-la, mas não compreendê-la, pois é um mistério da outra vida; é uma verdadeira e misteriosa participação na eternidade de Deus. Como disse Santo Tomás, com toda a Tradição Católica, a eternidade é «tudo ao mesmo tempo, tota simul».52 É um presente sempre atual, indivisível e imutável. Na eternidade não há séculos acumulados sobre séculos, nem milhões de séculos somados a outros milhões de séculos. Estas são maneiras terrestres e totalmente falsas para se conceber o que é a eternidade. Então, repito: a natureza mesma da eternidade, que não se assemelha em

nada à sucessão de tempo, faz com que qualquer mudança seja impossível, seja para o bem, seja para o mal. No tocante as penas do inferno, qualquer mudança é, portanto, impossível. Assim, a interrupção ou mesmo uma atenuação dessas penas constituiriam necessariamente em uma mudança e, devemos concluir, com certeza absoluta, que as penas do inferno são absolutamente eternas, imutáveis, e que esse sistema de atenuação é tãosomente uma deficiência de espírito ou um capricho da imaginação e do sentimento. Talvez seja um tanto quando abstrato o que resumi aqui sobre a eternidade, caro leitor. No entanto, quanto mais você refletir, mais aparente ficará a verdade. Em todo caso, compreendamos ou não, vamos nos ater, neste contexto, na clara e precisa afirmação que fazemos a Nosso Senhor Jesus Cristo com toda a simplicidade e a certeza da lei: «Creio na vida eterna, credo vitam aeternam», ou seja, na outra vida que será para todos nós imortal e eterna. Para os bons, imortal e eterna nas bem-aventuranças do paraíso; para os maus, imortal e eterna nas punições do inferno. Um dia, Santo Agostinho, bispo de Hipona, ocupou-se a examinar, na medida do seu poderoso espírito, a natureza da eternidade, onde a benevolência e a justiça de Deus aguardam todas as criaturas. Ele procurou, aprofundou-se no assunto. Às vezes ele se via e se sentia paralisado pelo mistério. De repente, apareceu diante dele, em uma radiante luz, um ancião que tinha uma feição venerável e resplandecente de glória. Era São Jerônimo, que havia acabado de morrer naquele mesmo momento, bem longe dali, em Belém. E, enquanto Santo Agostinho olhava com espanto e admiração para a imagem celeste que aparecia diante de si, disse-lhe o venerável ancião: «os olhos do homem não podem ver, os ouvidos do homem não podem ouvir e o espírito do homem jamais poderá conceber o que procuras compreender». Em seguida, desapareceu. [1Cor 2,9] [Is 64,3] [Jr 3,16] [Sl 19,4] [Eclo 1,10] Eis o mistério da eternidade, seja no céu, seja no inferno. Creiamos humildemente e aproveitemos bem o tempo nesta vida, a fim de que, quando a nós chegar o fim desta vida terrena, sejamos admitidos na boa eternidade. E, pela misericórdia de Deus, evitemos a outra.

Mais uma razão para a eternidade das penas: o vazio de Graça No momento em que o condenado teria tempo para poder mudar, para se converter e obter a misericórdia, ele não o aproveita. Por que será? Porque ele sempre carrega a causa que dá suporte aos castigos. Esta causa, que é o pecado, é o mal que ele mesmo escolheu para sua vida na terra. O condenado é o pecador impenitente, inconversível. Por mais tempo que tivesse, não seria suficiente para que, de fato, se convertesse. Muito bem, infelizmente o veremos apenas neste mundo. Acontece que vivemos no meio de pessoas que o bom Deus aguarda durante dez, vinte, trinta, quarenta anos ou mais. Mas para se converter também é necessário o Estado de Graça. Não há conversão possível sem o dom essencialmente gratuito da Graça de Jesus Cristo, que é o remédio fundamental para o pecado. Este é o primeiro princípio da ressurreição das pobres almas que o pecado separou de Deus, jogando-as na morte espiritual. Jesus Cristo disse: «Eu sou a ressurreição e a vida»; é pelo dom da Sua Graça que Ele ressuscita as almas mortas e as mantém seguindo em vida. [Jo 11,24] No entanto, na Sua sabedoria onipotente, esse Soberano Senhor conduz quem está nesta vida, que é o único tempo de nossa provação. Sua Graça nos será dada para que evitemos a morte no pecado, fazendo-nos crescer na vida como filhos de Deus. No outro mundo, não há mais tempo para a Graça e nem para as provações, pois é o tempo da recompensa eterna para aqueles que corresponderam à Graça vivendo de forma cristã. É o tempo das punições eternas para aqueles que recusaram a Graça, vivendo e morrendo no pecado. Esta é a ordem da Providência, a qual ninguém mudará. Então, na eternidade não haverá mais a Graça para os pecadores condenados. Assim, sem a Graça, é absolutamente impossível arrepender-se de forma eficaz, afinal ela é necessária para obter o perdão, e se o perdão não é possível, a causa do castigo subsistirá para sempre. Em conseqüência, sendo o castigo nada mais do que o efeito do pecado, da mesma forma perdurará. Sem a Graça, não há arrependimento; sem arrependimento, não há conversão; e sem a conversão, não há perdão; assim, também não há a possibilidade de se atenuar e nem que sejam cessadas as penas. Não parece racional?

O rico malvado do Evangelho não se arrepende no fogo do inferno, pois em nenhum momento diz: «Eu me arrependo!» Sequer assume: «Eu pequei!» Diz tão-somente: «Sofro terrivelmente nestas chamas!» É o choro da dor e do desespero, e não o choro do arrependimento. Ele não sonha em implorar o perdão, pensa apenas em si e em seu alívio. O egoísta pede em vão uma gota de água para que possa se refrescar. Esta gota de água é o toque da Graça que o salvará. Ora, responderam-lhe que isto é impossível. A razão é porque ele detesta o castigo, não a culpa. Esta é a terrível história dos condenados! Aqui na terra, a Cidade de Deus e a Cidade de Satanás estão misturadas por uma grande confusão, por isso ainda podemos passar de uma a outra. Uma pessoa boa pode se tornar má e uma má pode se tornar boa. Mas tudo isso cessará no momento da morte. Então, as duas cidades serão separadas irrevogavelmente, como diz o Evangelho. Não será mais possível passar de uma a outra, passar da Cidade de Deus para a Cidade de Satanás; do paraíso para o inferno e nem do inferno para o paraíso.53 Nesta vida tudo é imperfeito, tanto o bem quanto o mal. E nada é definitivo. A Graça de Deus nunca foi negada a ninguém, e enquanto estivermos neste mundo sempre nos é possível escapar do mal, do império do demônio, da morte no pecado. Porém, como já dissemos, tudo isso pertence à vida presente, e quando um pobre homem, no estado de pecado mortal, dá o seu último suspiro, tudo muda de face: a eternidade sucede o tempo e os momentos de Graça e de provação não mais existem. Assim, a ressurreição da alma não é mais possível, e a árvore que tombou à esquerda permanecerá à esquerda. Portanto, a sorte dos condenados está para sempre lançada. Nenhuma mudança, nenhuma atenuação, nenhuma suspensão ou interrupção de suas penas será possível. Não se perderá apenas o tempo, mas também a Graça.

Terceira razão da eternidade das penas: a depravação da vontade dos condenados Após a morte, a vontade dos condenados fica petrificada no pecado e no mal. Mas o que pode ser feito nesta vida para que um pecador se converta? Em primeiro lugar, como fora dito, há o tempo e a Graça que o bom Deus sempre lhe dá. Mas assim é porque ele é livre e pode, com sua vontade, por uma escolha, voltar para o lado de Deus. É por um ato de livre vontade que o pecador se desvia de seu Deus. Da mesma forma, também por um ato de livre vontade, através da Graça desse Deus tão bondoso, o pecador muda o caminho, arrepende-se, e o pobre filho pródigo retorna perdoado à casa paterna. Todavia, no momento da morte, perde-se também a liberdade e a Graça. Acaba-se para sempre. Não se trata mais de escolher, mas de permanecer naquilo que se escolheu. Escolhendo-se o bem e a vida, você possuirá para sempre o bem e a vida. Mas se for uma escolha estúpida pelo mal e pela morte, você terá a morte. E a terá para sempre, pois receberá apenas aquilo que desejou. Esta é a eternidade das punições. Há ainda hoje, no palácio de Versailles, o quarto onde morreu Luis XIV, no dia primeiro de setembro de 1715. Lá se encontra a mesma mobília e, em particular, o mesmo relógio de pêndulo. Em respeito à morte do grande rei, parou-se o relógio na hora exata em que ele deu seu último suspiro, às quatro horas e trinta e um minutos. Depois disso, ninguém jamais o tocou. Eis que há séculos os ponteiros imóveis marcam quatro horas e trinta e um minutos. É uma imagem impressionante da imobilidade, onde entra e permanece a vontade do homem no momento em que ele deixa esta vida. A vontade do pecador condenado permanece necessariamente a mesma no momento de sua morte. Da forma como é imobilizada, ela é eterna, se assim podemos dizer. O condenado quer sempre e necessariamente o mal que praticou, diz São Bernardo. O mal e o condenado formam apenas um, como um pecador vivente, permanente e imutável. Assim como os bem-aventurados vêem a Deus através de Seu amor e amam-n’O necessariamente, os condenados vêem a Deus através das punições de Sua justiça e odeiam-n’O necessariamente. Não é com uma justiça rigorosa que uma punição imutável golpeia uma perversidade também imutável? E que uma pena eterna pune uma vontade eternamente fixada no

mal, eternamente desviada de Deus pela revolta e pelo ódio? Uma vontade que se estabelece para sempre no pecado? Do que temos dito, assim como o que diremos adiante, resulta evidentemente que, no inferno, os condenados não terão nem o tempo, nem a Graça e nem a vontade de se converter. Jamais poderiam ser perdoados e, por isso, deverão sofrer um castigo imutável e eterno. Desta forma, e como conseqüência rigorosa, as penas do inferno, além de não terem fim, também não podem ser suscetíveis dessas reduções ou atenuações que se quer pretender.

Se é verdade que Deus seja injusto punindo com castigos eternos as faltas de um momento Esta objeção é bastante antiga, arrancada às consciências corrompidas pelo medo. Desde o quarto século, o ilustre arcebispo de Constantinopla, São João Crisóstomo, um dia a colocou nesses termos: «Há quem diga: eu tive apenas alguns instantes para matar um homem ou cometer um adultério, e por um pecado que dura um instante terei de sofrer as penas eternas? Certamente, porque o que Deus julga nos pecados, não é o tempo necessário para que ele seja praticado, mas a vontade que o fez cometê-lo». O que dissemos anteriormente já é suficiente para afastar a sombra de uma dificuldade. A conversão e a mudança são absolutamente impossíveis no inferno. Pela falta de tempo, pela falta da Graça e pela falta de vontade, a causa da punição subsiste eternamente e de forma total, devendo, por uma reta justiça, produzir eternamente seu efeito. Não há nada a dizer a respeito, senão que é a pura justiça. Mas você ainda acha injusto que Deus puna com um castigo eterno os crimes de um instante? Olhe então o que se passa todos os dias na sociedade humana. Todos os dias ela pune com a morte os assassinos, os parricidas, os incendiários, etc. Todos eles perpetraram seus crimes em apenas alguns minutos. Quem ousará dizer que essas punições são injustas? Ora, o que são as penas de morte na sociedade humana? Não é uma pena perpétua, uma pena sem retorno, sem possibilidade de atenuação? Esta pena de morte priva para sempre da sociedade dos homens, como o inferno priva para sempre da sociedade de Deus. Por que seria diferente para os crimes de lesa-majestade divina, isto é, para os pecados mortais?54 Mas o tempo não significa nada no peso moral do pecado. Como nos disse São João Crisóstomo, não é a duração do ato culpado que é punida no inferno com um castigo eterno, mas a malvadez da vontade que fez o pecador agir, e que a morte virá consolidar. Esta perversidade permanecerá para sempre no castigo que a ela se ligará eternamente. Longe de ser injusto, é o que há de mais justo e também necessário. A santidade infinita de Deus não deve afastar-se eternamente de um ser que vive em um estado eterno de pecado? Ora, assim se dá com o condenado no inferno. Além disso, quem refletir seriamente observará que o pecado mortal tem duas características: a primeira, que é essencialmente finita, é o ato de livre

vontade que, pecando, viola a lei de Deus; a segunda, que é infinita, é o ultraje feito à santidade e à majestade infinita de Deus. Por este lado, o pecado tem, de alguma maneira, uma malícia infinita. «Quamdam infinitatem»,55 disse Santo Tomás. Ora, a pena eterna responde de uma maneira exata a essas características finita e infinita do pecado. Ela mesma é finita e infinita: finita em intensidade e infinita e eterna na duração; finita quanto à duração do ato e à malícia da vontade daquele que pecou. O pecado é punido por uma pena mais ou menos considerável, mas sempre finita em intensidade. É infinita em relação à santidade Daquele que foi ofendido. Assim, o condenado é punido por uma pena infinita em duração, ou seja, será uma pena eterna. Novamente: nada é mais lógico, nada é mais justo do que as penas eternas que punem, no inferno, o pecado e o pecador. O que não seria justo é que todos os condenados tivessem de sofrer a mesma pena. Com efeito, é evidente que não são todos igualmente culpados, mas todos estão igualmente em estado de pecado mortal; merecem, portanto, penas eternas. Mas não são todos culpados em um mesmo grau e a intensidade dessa pena eterna é exatamente proporcional ao número e a gravidade das faltas cometidas por cada um. Portanto: a justiça perfeita é a justiça infinita. Outra observação impressionante: se as penas impingidas ao pecador impenitente, condenado ao inferno, tivesse um fim, seria ele, e não Nosso Senhor, quem teria a última palavra na sua luta sacrílega contra Deus. Então, poderia dizer a Deus: «Perdi o meu tempo e Você também. Mas que o seu seja curto ou longo, no final prevalecerei sobre Você, pois serei o senhor da situação e um dia, queira ou não, partilharei de Sua glória e bondade eterna no céu!» Seria isto possível? Então, mais uma vez, deste ponto de vista, independente das razões definitivas que já expusemos, a justiça e a santidade divina requerem necessariamente que os castigos dos condenados sejam eternos. Mas e a bondade de Deus? – talvez questione-se. A bondade de Deus nada pode fazer em relação a isso. O inferno é o reino de Sua justiça, tão infinita quanto Sua bondade. Deus exerce Sua bondade na terra, onde por ela tudo perdoa quando há arrependimento. Na eternidade, não há como a bondade ser exercida; tem apenas de coroar nas alegrias do céu a Sua obra realizada na terra através do perdão.

Por acaso quereria você que, na eternidade, Deus exercesse a Sua bondade em face de pessoas que foram indignas e abusadas na terra? Pessoas que sequer desejaram a Graça no momento da morte e que, agora, não a desejam e não podem mais desejá-la? Isso seria simplesmente um absurdo. Da parte de Deus, a bondade não pode ser exercida às custas da justiça. Desta forma, punindo com penas eternas as faltas passageiras, longe de ser injusto, Deus não está apenas sendo justo, mas muito justo!

Se assim também é para os pecados de fraqueza Sem querer justificar os pecados de fraqueza, dos quais os bons cristãos se fazem muitas vezes culpados, é preciso reconhecer que há um abismo entre estes que os cometem, e àqueles que as Escrituras Sagradas chamam geralmente de «pecadores». Os pecadores são os que têm as almas perversas, os corações impenitentes que já estão habituados a fazer o mal sem qualquer remorso, como se fosse uma coisa simples. Além disso, são estes que vivem afastados de Deus, em uma revolta permanente contra Jesus Cristo. São, portanto, os pecadores propriamente ditos, os pecadores profissionais. «Continuam a pecar porque não deixaram de viver; e gostariam que a vida não tivesse fim apenas para poder seguir pecando para sempre. Para estes, uma vez que estejam mortos, a justiça do Soberano Juiz exige, de forma evidente, que jamais fiquem sem castigos, a considerar que nunca desejaram uma vida sem pecados enquanto viveram», afirma São Gregório.56 Não têm tal disposição os que pecam por fraqueza. Pois há um grande número de pobres almas que caem no pecado mortal; contudo, não são nem malvadas nem corrompidas, nem ao menos ímpias: fazem o mal por acaso, devido uma falta de atenção. E é tão-somente a fraqueza que os faz cair, não o amor pelo mal. São como uma criança que é arrancada dos braços de sua mãe pela violência ou pela sedução; que se deixam separar e dela se afastar, mas sempre com arrependimento, sem perdê-la de vista e como que estendendo-lhe os braços. Livrada da sedução, retorna e lança-se, feliz e arrependida, de volta aos braços da sua boa mãe. São estes os pobres pecadores de ocasião, que não amam o mal que cometem, cuja vontade não está totalmente corrompida. Submetem-se ao pecado ainda que não o procurem; arrependem-se a tempo de o abandonarem. Tais pecados não são mais desculpáveis? E como a adorável misericórdia do Salvador não concederia, sobretudo no momento decisivo da morte, as grandes graças do arrependimento e do perdão aos seus filhos pródigos que, ainda tendo-O ofendido, nunca Lhe viraram as costas, e que, ainda que tenham se deixado conduzir para longe d’Ele, não O perderam do olhar e do desejo? Foi Deus quem disse: «quem vem a mim eu não o rejeitarei». E quem a Ele vai sempre encontrará no Seu divino coração os segredos das graças e misericórdias, suficientes para tirar essas pobres almas da condenação eterna.

[Jo 6,37] Mas, digamos bem alto, este é um segredo do coração de Deus, um segredo impenetrável às criaturas, sobre o qual não é preciso compreender totalmente, pois deixa subsistir de forma integral esta terrível doutrina, que é de fé, a saber que todo homem que morre no estado de pecado mortal está condenado eternamente, e será enviado para o inferno para as punições que merecem suas faltas. Para concluir: que os espíritos sutis e as ‘almas sensíveis’, que procuram evasivas ao invés de simplesmente crer e se santificar, tranquilizem-se ao pensar nos condenados. A justiça, a bondade e a santidade de Nosso Senhor farão sempre o melhor, seja no inferno, seja no purgatório. Não terá sequer sombra ou possibilidade da injustiça. Todos os que estiverem no inferno merecerão lá estar e ficar para sempre. Quão terríveis eles puderem ser, suas penas serão absolutamente proporcionais às suas faltas. Não será como os tribunais, as leis e os juízes da terra, que podem cometer erros e injustiças, punindo além do merecido, ou pouco demais. O Juiz Eterno e Soberano, Jesus Cristo, tudo sabe, tudo vê e tudo pode. Ele é mais do que justo, é a própria justiça. Na eternidade, como Ele mesmo declarou, «retribuirá a cada um segundo suas obras», nem mais nem menos. [Jó 34,11] [Pr 24,12] [Eclo 16,13] [Is 59,18] [Rm 2,6] [Hb 11,6] [1Pd 1,17] [Ap 22,12] Desta forma, por mais apavorante e incompreensível que seja ao espírito humano, as penas eternas do inferno são e serão soberanas e eternamente justas.

Quem são os que tomam o caminho do inferno? São principalmente os homens que abusam da autoridade, de uma ordem qualquer, para guiar seus subordinados no mal, seja pela violência, seja pela sedução. «Um julgamento severo» lhes espera. Verdadeiros satanases da terra, é a eles que se dirige a terrível palavra da Escritura: «Como caíste do alto dos céus, ó Lúcifer?» [Is 14,11 sq] São todos aqueles que abusam dos dons do Espírito para desviar as pessoas do ofício de Deus, para lhes arrancar a fé. Esses corruptores públicos são os hereges, os fariseus do Evangelho, e sob eles caem este anátema do Filho de Deus: «Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque bloqueais o Reino dos céus diante dos homens. Pois vós mesmos não entrais, nem deixais entrar os que querem. Aí de vós, escribas e fariseus, hipócritas, que o percorreis o mar e a terra para fazer um prosélito, mas, quando conseguis conquistá-lo, vós os tornais duas vezes mais digno da geena do que vós!» A esta categoria pertencem os jornalistas ímpios, os professores de ateísmo e heresia, e essa turba de escritores sem fé e sem consciência que, a cada dia, mentem, caluniam, blasfemam conscientemente, e de quem o demônio, pai da mentira, serve-se para corromper as almas e insultar a Jesus Cristo. [Mt 23,13] São os orgulhosos que, cheios de si, menosprezam aos outros, lançandolhes impiedosamente as pedras. Homens impiedosos e sem coração que, se não se converterem até o momento de suas mortes, irão encontrar um Juiz também impiedoso. [cf. Jo 5,19-47] São os egoístas, os ricos maus que, afogando-se na busca do luxo e da sensualidade, pensam apenas em si mesmos e esquecem dos pobres. Testemunha o rico mau do Evangelho, que o próprio Deus disse ter sido «sepultado no inferno». [Lc 16,22] São os avarentos que só pensam em amontoar riquezas e esquecem Jesus Cristo e a eternidade. Esses homens de dinheiro que, por meio de negócios escusos, de injustiças e fraudes acumuladas, fazem ou fizeram suas fortunas, grandes ou pequenas, nas bases que a lei de Deus reprova. A eles está escrito que «não herdarão o Reino dos céus». [Gl 5,21] São os voluptuosos que vivem tranqüilamente, sem remorsos, com seus hábitos impudicos, que se entregam a todas as paixões, à satisfação grosseira dos sentidos e terminam por não mais conhecer outra felicidade senão os prazeres animais.

São as almas mundanas, frívolas, que só pensam em se divertir, a passar o tempo de forma tola, as pessoas ‘honestas’ segundo o mundo, que esquecem a oração, o ofício de Deus, os sacramentos da salvação. Eles não têm interesse na vida cristã; sequer pensam nas suas almas e vivem em estado de pecado mortal. A lâmpada é apagada de suas consciências, sem que isso os deixe preocupados. Se o Senhor vem inesperadamente, como Ele mesmo anunciou, entenderão a terrível resposta dirigida, no Evangelho, às virgens tolas: «Não vos conheço».57 Ai do homem que não está coberto com a veste nupcial! O Soberano Juiz ordenará aos Seus Anjos para prender, no momento da morte, «o servidor inútil», para lançá-lo, com os pés e as mãos amarradas, nas trevas exteriores, isto é, no inferno! [Mt 22] Os que vão para o inferno têm as consciências falseadas e tortuosas, que tratam com despeito, com más confissões e comunhões sacrílegas, o Corpo e o Sangue do Senhor; como aquele «que come e bebe a própria condenação», segundo a terrível palavra do Apóstolo Paulo. São pessoas que, abusando da graça de Deus, encontram um meio de serem maus nos meios mais santificantes; são os corações odientos que se recusam a perdoar. [1Cor 11,29] São, enfim, os sectários da franco-maçonaria e as vítimas insensatas das sociedades secretas que se consagram, por assim dizer, ao demônio, fazendo o juramento de viver e morrer fora da Igreja, sem sacramentos, sem Jesus Cristo e, por conseqüência, contra Jesus Cristo. Não digo que todas essas pobres pessoas vão, indubitavelmente, para o inferno. Digo que eles irão, isto é, que estão a caminho. Felizmente, a eles, ainda não chegaram ao seu destino. E espero que, antes do fim da viagem, prefiram antes se converter humildemente do que queimar pela eternidade. Que horror! O caminho que conduz ao inferno é tão largo, tão cômodo! Afinal, é uma descida, por isso basta deixar-se ir. Nosso Salvador disse-nos com todas as letras: «largo e espaçoso é o caminho que conduz à perdição. E muitos são os que entram por ele». [Mt 7,13 + Eclo 21,10] Faça um exame de consciência, caro leitor. E se, Deus nos livre, você se encontrar neste caminho e querer retroceder, pela graça, não hesite e com coragem abandone o quanto antes a via que conduz ao inferno. Abandone-a enquanto ainda é tempo!

Se podemos ter certeza da condenação de alguém que vemos morrer mal Não, só Deus pode saber. Há pessoas que enviam todo mundo para o inferno, assim como também há aquelas que enviam todo o mundo para o céu. Os primeiros se imaginam justos; os segundos se crêem caridosos. Ambos se enganam. O erro principal é querer julgar as coisas que não estão dadas ao homem conhecer. Vendo alguém morrer mal, devemos tremer, sem dúvida! E não se pode dissimular a probabilidade de uma reprovação eterna. Foi assim que, em Paris, alguns anos atrás, uma infeliz mãe, ao saber da morte do filho em circunstâncias terríveis, permaneceu por dois dias, de joelhos, arrastando-se de um lado para o outro, a soltar gritos de desespero, repetindo constantemente: «Minha criança! Minha pobre criança!... no fogo!... queimando, queimando eternamente!» Foi horrível de ver e ouvir. No entanto, ainda que possa ser provável ou certa a perda eterna de alguém, a certeza repousa somente no impenetrável mistério do que acontece no momento supremo, entre a alma e Deus. Não é preciso desespero. Pois quem pode dizer o que se passa no fundo das almas, até mesmo das culpadas, no instante único onde o Deus da bondade faz, necessariamente para salvar algumas delas, seu último esforço de graça e misericórdia? Deus, que criou todos os homens por amor, redimiu-os com Seu próprio sangue e quer salvar a todos eles; e é preciso tão pouco tempo para querer se voltar ao bom Deus! [cf. 1Tm 2,4 + Ez 18,23] Por isso, a Igreja não tolera que se pronuncie, como certeza, a danação de quem quer que seja. Isto seria, de fato, querer usurpar o lugar de Deus. Salvo Judas e mais alguns outros, cuja reprovação é mais ou menos revelada de forma explícita por Deus nas Sagradas Escrituras, a condenação de ninguém é absolutamente certa. A Santa Sé disso deu uma prova curiosa, não há muito tempo, na ocasião do processo de beatificação de um grande servidor de Deus, o padre Palotta, que viveu e morreu em Roma nos sentimentos de uma admirável santidade sob o Pontificado de Gregório XVI. Um dia o santo padre acompanhava o último suplício de um assassino da pior espécie, que recusava obstinadamente a se arrepender, zombava de Deus, blasfemava e gargalhava até sobre o cadafalso. O padre Palotta tinha esgotado todos os meios para tentar convertê-lo. Subira no cadafalso, ao lado

do infeliz, e caiu de joelhos com o rosto banhado em lágrimas, suplicando-lhe para que aceitasse o perdão dos seus crimes, mostrando-lhe o abismo do inferno no qual estava prestes a cair. A tudo isto, o monstro respondera com um insulto e uma última blasfêmia. E sua cabeça veio tombar pela lâmina fatal. Na exaltação de sua fé, da sua dor e indignação, e também para que esse terrível escândalo se transformasse em uma lição salutar para a multidão que o assistia, o santo padre se levantou e, pelos cabelos, ergueu a cabeça ensanguentada do executado, mostrando-na à multidão: «Aqui está – gritou a toda voz –; olhem bem: eis a face de um réprobo!» Decerto que esse impulso de fé era concebível – e de certo modo admirável. No entanto, dizem ter sido o motivo que fez parar o processo de beatificação do venerável padre Palotta. Tão logo a Igreja é a Mãe de misericórdia, ela sempre tem esperança quando se trata de salvar uma alma. Isto é o que talvez possa trazer alguma consolação aos verdadeiros cristãos quando presenciam certas mortes assustadoras, repentinas e imprevistas, ou mesmo as precisamente más. A julgar pelas aparências, essas pobres almas estão de fato perdidas: «Há tantos anos que esse velho homem vivia longe dos sacramentos, zombava da religião, mostrava descrença! Ou um pobre rapaz que morreu sem poder reconhecer-se, comportando-se tão mal com modos tão deploráveis! Esse homem, esta mulher foram surpreendidos pela morte em um momento muito ruim, e parece tão certo que não tiveram tempo de se voltar para si mesmos!» Pouco importa! Não devemos e não podemos dizer de forma absoluta que eles foram condenados. Sem afrouxar os direitos da santidade e da justiça de Deus, não percamos de vista a Sua misericórdia. Sobre esta questão eu me lembro de uma história tão extraordinária e, ao mesmo tempo, muito consoladora. A fonte da qual colhi garante a sua autenticidade. Num dos melhores conventos de Paris ainda vive uma religiosa de origem judaica, distinta pelas suas virtudes e por sua inteligência. Seus pais eram judeus e, não sei como, aos vinte anos ela se converteu ao catolicismo e recebeu o batismo. Sua mãe era uma fervorosa judia que levava a sua religião muito a sério, e também praticava todas as virtudes de uma boa mãe de família. Ela amava a filha com paixão, e por isso ficou furiosa quando descobriu que ela havia se convertido. A partir desse dia foi um massacre ininterrupto de ameaças e artifícios de todos os gêneros para reconduzir a

‘apóstata’, assim lhe chamava, à religião de seus pais. Por sua vez, a jovem cristã, cheia de fé, rezava sem parar e fazia tudo para que sua mãe também se convertesse ao cristianismo. Vendo a esterilidade de seus esforços, e pensando que, mais do que todas as preces, um grande sacrifício alcançaria a graça solicitada, decidiu-se por se entregar inteiramente a Jesus Cristo. Corajosamente, tornou-se religiosa. Tinha aproximadamente vinte e cinco anos, para a infelicidade de sua mãe que, cada vez mais indignada, colocava-se contra a sua filha e contra a religião cristã. Mas isso só fazia aumentar ainda mais a devoção da jovem, no intuito de conquistar mais uma preciosa alma a Deus. E assim continuou durante vinte anos. De tempos em tempos, visitava sua mãe e percebia que a afeição maternal pouco a pouco ia se renovando, porém, ao menos em aparência, espiritualmente não havia nenhum progresso. Mas um dia a pobre religiosa recebeu uma carta comunicando o falecimento de sua mãe. Havia sido uma morte súbita; encontraram-na já sem vida em sua cama. Impossível descrever o desespero daquela jovem que, sofrendo a perda da mãe, já não sabia mais o que fazer, tampouco o que dizer. Ainda com a carta em mãos, lançou-se ao pé do Santíssimo Sacramento. Quando os soluços lhe permitiam pensar e falar, gritou a Nosso Senhor: «Meu Deus! É assim que vós acolhestes as minhas súplicas, as minhas lágrimas e tudo o que fiz nestes vinte anos?» E enumerou-Lhe, por assim dizer, sacrifícios de todos os gêneros aos quais se entregou, e com uma inexprimível angústia lamentou-se: «E pensar que, apesar de tudo isso, minha mãe… minha pobre mãe é condenada!» Ainda não tinha terminado a frase quando uma voz surgia do Tabernáculo, dizendo-lhe de forma severa: «O que sabes tu?» Aterrorizada, a pobre irmã restava perplexa quando a voz do Salvador acrescentou: «Saibas que, para confundir-te e ao mesmo tempo confortar-te, por tua causa dei a tua mãe, no momento supremo, uma graça tão poderosa de luz e de arrependimento que suas últimas palavras foram: ‘eu me arrependo e morro na religião da minha filha’. Ela foi salva. Está no purgatório. Não deixes de rezar por ela». Conheço outros tantos fatos análogos. Seja qual for a autenticidade de cada um em particular, todos dão testemunho de uma grande e doce verdade, que é saber da abundante misericórdia de Deus neste mundo; saber que no momento derradeiro, pela Sua misericórdia, faz um esforço supremo para

arrancar os pecadores do inferno; em suma, que somente caem nas mãos da eterna justiça aqueles que até o fim recusaram os avanços da misericórdia. 48 Jó 10,22 – na Vulgata: «Terram miseriæ et tenebrarum ubi umbra mortis et nullus ordo et sempiternus horror inhabitans.» 49 No hebraico (idioma-fonte da Vulgata), uma das maneiras de se formar o superlativo é usar uma perífrase; neste caso, a repetição do mesmo termo por várias vezes, p. ex.: séculos dos séculos; cânticos dos cânticos; Santo, Santo, Santo; etc. 50 Não há no judaísmo uma doutrina específica sobre o inferno, embora os judeus afirmem a crença na imortalidade da alma. Porém, a partir da fé na ressurreição (Is 66,24-26 e Dn 12,2), passou-se a acreditar que, após a morte, havia um lugar de glória para os justos e outro infame, onde os ímpios serão castigados. Atualmente, a doutrina judaica orienta priorizar a vida presente, com a obediência à lei moral, por considerar que a vida após a morte está além do alcance do conhecimento humano. 51 «A noção da eternidade resulta da imutabilidade, como a de tempo resulta do movimento», Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, parte I, Q.10. 52 «A eternidade não é outra coisa senão Deus», ibid. 53 Lc 16,26 «E de mais, que entre nós e vós está firmado um grande abismo: de maneira que os que querem passar daqui para vós, não podem; nem os daí passar para cá.» 54 Na França, a pena de morte só fora abolida em setembro de 1981, com a aprovação de um projeto do então Ministro da Justiça, Robert Badinter, na Assembléia Nacional. Havia anos ele encampava uma campanha contra a pena capital. 55 «Ademais, o pecado cometido contra Deus, tem uma certa infinitude (quamdam infinitatem) por razão da majestade infinita de Deus: a ofensa é tão mais grave quanto maior a dignidade da pessoa ofendida». Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, IIIa pars, Q. 1, artigo 2. 56 São Gregório Magno, Moralia in Job, livro XXXIV, cap. IX. 57 Mt 25 – Parábola das dez virgens: «Vigiai, portanto, porque não sabeis nem o dia nem a hora».

CAPÍTULO IV

CONCLUSÕES PRÁTICAS Sair imediatamente, e a qualquer preço, do estado de pecado mortal Quais conclusões práticas podemos tirar de tudo o que dissemos até então, meu bom leitor? Essas verdades eminentes nos são reveladas por Deus apenas para nos inspirar fortemente o temor que, com a fé, formam a base da salvação.58 Temor da justiça e dos julgamentos de Deus; temor do pecado que conduz ao inferno; temor desta maldição e condenação terríveis, dos desesperos sem fim, do fogo sobrenatural que penetra ao mesmo tempo o corpo e a alma; temor das sombrias trevas, desta horrível sociedade de Satanás e dos demônios; enfim, o temor da eternidade imutável de todas essas penas que são o justo e merecido castigo dos réprobos. Decerto, é muitíssimo bom ter uma confiança desmedida na misericórdia. Mas à luz da verdadeira fé, a esperança não deve estar separada do temor. E se a esperança deve alguma vez dominar o temor, é na condição de que o temor subsista como se fossem os fundamentos de uma casa que dá força e solidez a todo um edifício. Assim, o temor da justiça de Deus, o temor do pecado e do inferno deve afastar toda a vã presunção59 do nosso edifício espiritual. O mesmo Deus que disse: «quem vem a mim eu não o rejeitarei»; disse também: «operai a vossa salvação com temor e tremor». É preciso temer santamente para ter o direito ao santo dom da fortaleza. [Jo 6,37] [Fl 2,12] Diante dos abismos escaldantes do inferno, volte-se a si, caro leitor. Volte a si mesmo, profunda e seriamente! Onde você se encontra? Você está em estado de graça? Não há, na sua consciência, algum pecado grave que, acaso você venha morrer de forma inesperada, possa comprometer a sua eternidade? Acaso tenha, creia-me, não hesite em arrepender-se com todo o seu coração. Depois, vá se confessar hoje mesmo, ou seja, o mais rápido possível. É preciso dizer, em face do inferno, que todo interesse deva passar bem longe de lá? Ou que é preciso, antes de tudo, assegurar a sua salvação? Nosso Senhor nos pergunta: «A que servirá o homem ganhar o mundo inteiro, mas arruinar a sua vida? O que poderá dar o homem em troca de sua vida?» [Mt 16,24 + Mc 8,36 + Lc 9,25] Diz o dito: não deixe para amanhã o que você pode fazer hoje! Afinal, você tem certeza de que terá um amanhã? Certa vez, numa pequena cidade da Normândia, conheci um pobre homem

que, após seu casamento, ou seja, depois de trinta anos, tinha-se deixado levar pelos negócios, um pequeno comércio, e, aos poucos, é preciso dizer, foi tomando gosto pelos cabarés e também pela bebida. Tudo isso acabou fazendo com que ele se esquecesse por completo do ofício de Deus, mas não era uma pessoa má, longe disso. Tempos depois, por duas vezes fora atacado com problemas de saúde, mas infelizmente, insuficientes para que ele se corrigisse. Aproximavam-se as festas de Páscoa daquele ano e, numa noite, o padre de sua paróquia o encontrou, não se furtando a falar-lhe com toda a franqueza. «Padre – respondeu –, agradeço a sua boa vontade. Prometo que irei pensar em tudo o que o senhor me disse, dou a minha palavra! E, se não se incomodar, irei até o senhor para conversar a respeito em alguns dias.» Mas no dia seguinte, foi o padre a ir até o corpo daquele pobre homem, num riacho não longe dali. Atravessava-o a cavalo quando sofreu um ataque de apoplexia, tombando morto na água. Outra história se passou há dois anos, no Quartier Latin: um estudante de vinte e três anos que, depois da sua chegada a Paris, passou pelo menos quatro anos entregando-se desordenadamente a todas as paixões da juventude. Um dia esse pobre rapaz recebeu a visita de um camarada tão bom e puro quanto ele. Era um compatriota que lhe trazia as novidades do seu país. Depois de conversarem, o visitante se foi, mas já no meio do caminho lembrou-se de que havia esquecido seus livros. Deu meia-volta. Chegou, bateu na porta, mas ninguém respondeu. Percebendo que ela estava aberta, resolveu entrar: viu o infeliz rapaz estendido no chão… morto. Não fazia quinze minutos que ele havia saído dali, tempo suficiente para que o rapaz tivesse um ataque fulminante do coração. Encontrou-se na sua escrivaninha algumas cartas abomináveis e, entre os poucos livros da sua pobre biblioteca, constava apenas o que há de mais obsceno. Poderia contar mais casos deste tipo, além dos milhares de acidentes que, a cada dia, fazem tantos passar subitamente da vida à morte. Acidentes de todos os tipos, de quedas de cavalos a batidas de automóvel, que mostram, com mais eloqüência do que qualquer raciocínio, ser preciso estarmos sempre preparados a ficar diante de Deus; que não é preciso jogar sua eternidade sobre um ‘talvez’; pois um homem em estado de pecado mortal, que não

pensa em se reconciliar com Deus pelo arrependimento e pela confissão, é nada mais do que um louco que dança sobre um abismo; terrivelmente louco. Santo Tomás dizia não compreender como um homem no estado de pecado mortal poderia sorrir e fazer gracejos. O homem mau se expõe, resoluto, a experimentar, por conta e risco, as profundidades destas apavorantes palavras do Apóstolo Paulo: «Quão terrível é cair nas mãos do Deus vivo!» [Hb 10,31]

Evitar com muito cuidado as ocasiões perigosas e as ilusões Mas não se trata apenas de sair do estado de pecado mortal quando nele tivermos a infelicidade de cair. É preciso tomar as mais sérias precauções e levar adiante o zelo de nossa salvação eterna. Não devemos nos contentar em sair o mais rápido possível da via que leva ao inferno, mas também evitar de nela se engajar. É preciso evitar, a qualquer custo, as ocasiões de queda, sobretudo aquelas que a triste experiência tem-nos mostrado ser perigosas. Um cristão, um homem que tem o senso comum, sacrifica tudo, enfrenta tudo, suporta tudo para escapar do fogo do inferno. Deus mesmo nos disse que se tua mão, pé e olho – ou aquilo que você tem de mais valioso no mundo – se tornam um motivo para o pecado, renuncie a tudo isso sem hesitar. É melhor entrar mutilado, manco, cego ou em qualquer outra condição, no reino de Deus e na vida eterna, do que ser lançado no abismo de fogo, na eternidade do inferno, onde o fogo jamais se extinguirá. [cf. Mt 18,8-9] [Mc 9,43] Não tenhamos ilusões a este respeito! E é mesmo pelas ilusões que o inimigo de nossas pobres almas procura surpreender, já que um ataque frontal não parece fortuito. As ilusões são pérfidas, sutis, múltiplas e freqüentes. Portam, sobretudo, o egoísmo através de raciocínios friamente calculados – e bastante sofisticados – para dar nuances às insurreições do espírito contra a fé, contra a inteira submissão devida à autoridade da Santa Sé e da Igreja; sobre as pretensas necessidades de saúde ou mesmo habituais, que pouco a pouco vão escorregando na lama da impureza; ou ainda sobre os costumes e conveniências do mundo em que vivemos, e que tão facilmente leva ao turbilhão do prazer e da vaidade, do esquecimento de Deus e da negligência da vida cristã; enfim, a cegueira causada pela ganância, que leva tanta gente a sucumbir aos pretextos de necessidades comerciais, costumes gerais nos negócios ou sábias previsões para o futuro. Repito: o inimigo só leva a ilusões! Quantos réprobos, hoje no inferno, trilharam este caminho! Podemos nos seduzir, ao menos em uma certa medida, mas não saberemos dissimular aos olhos de Deus. Mesmo a vida religiosa não é suficiente para nos manter preservados. Saibam bem, há religiosos no inferno! Espero que sejam poucos, mas é certo que há. E como eles se perderam? Pelo caminho fatal das ilusões! Ilusões no que tocam à obediência, à piedade, à pobreza. E também no tocante à

castidade, mortificação e ao uso da ciência. De fato, é muito bem pavimentado este caminho das ilusões. Citarei apenas um exemplo, tirado da vida de São Francisco de Assis: entre os Principais no nascimento da Ordem dos Frades Menores estava um certo Frei João de Strachia, cuja paixão pela ciência ameaçava desviar os religiosos da simplicidade e da autêntica santidade de suas vocações60. São Francisco o advertiu por várias vezes, sempre em vão. Preocupado com a influência funesta que exercia esse Ministro Provincial, São Francisco o destituiu em pleno Capítulo da Ordem, declarando que Nosso Senhor havia revelado que ele deveria agir com certo rigor, pois o orgulho daquele homem trouxe em si a maldição de Deus. E isso o futuro não tardou em mostrar: aquele desgraçado morreu no mais horrível desespero, gritando: «Estou condenado e maldito por toda eternidade!» E confirmaram esta sentença as terríveis circunstâncias que seguiram a sua morte.

Certifique-se da sua salvação eterna por uma vida seriamente cristã Quer ter certeza de que está a evitar o inferno, querido leitor? Não se contente em evitar o pecado mortal, de combater os vícios e os defeitos que para lá conduzem. Tenha uma boa e santa vida, seriamente cristã e plena de Jesus Cristo. Faça como as pessoas prudentes que têm de passar por caminhos difíceis quando estão a contornar os precipícios: com medo de cair, tomam cuidado de não andar pela borda, onde um passo em falso pode ser fatal. Sabiamente tomam o lado oposto da rota, mantendo sempre uma distância segura do precipício. Faça o mesmo! Abrace esta nobre e bela vida chamada cristã, a vida da piedade. Guiado pelos conselhos de algum Santo Padre, imponha a si mesmo uma espécie de regulamento para a vida, no qual conste, considerando a proporção das necessidades da sua alma e das circunstâncias exteriores, alguns bons e sólidos exercícios de piedade, entre os quais recomendo os seguintes, que a todos são acessíveis: Sempre comece e termine o dia com uma oração, rezada com muita devoção e cordialidade. Junte às orações uma leitura atenta de uma ou duas páginas do Evangelho ou de bons livros devocionais que enriqueçam o espírito. Depois da leitura, recolha-se por alguns minutos para refletir e tomar decisões, pela manhã, do que se irá fazer durante o dia; à tarde, do que se irá fazer à noite. Reflita também sobre a morte e a eternidade; Tome o excelente hábito de fazer o sinal da Cruz todas as vezes que você sair e entrar em casa. Esta prática, muito simples, é santificante. Mas tome o cuidado para jamais fazer o sinal sagrado de forma leviana, sem pensar, pela rotina, como tanta gente faz. Deve ser feito de forma muito religiosa e com muita seriedade; Tente, se os deveres lhe permitirem, ir à missa todas as manhãs, bem cedo, para receber a cada dia a bênção por excelência. Preste as homenagens que cada um de nós devemos a Nosso Senhor no Seu grande sacramento da Comunhão. E quando você não puder, pelo menos se esforce para fazer uma adoração ao Santíssimo Sacramento todos os dias, quer entrando na igreja, quer de longe e do fundo de seu coração; Preste igualmente todos os dias, com um coração de filho, à Bem Aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus e Mãe dos cristãos, alguma homenagem de piedade, amor e veneração. O amor da Santa Virgem, junto com o amor do Santíssimo Sacramento, é um penhor quase infalível para a

salvação. A experiência tem demonstrado, em todos os séculos, que Nosso Senhor Jesus Cristo atribui graças extraordinárias, em vida e no momento da morte, a todos que evocam e amam Sua Mãe. Porte sempre um escapulário, uma medalha, um terço ou um rosário; Tenha o hábito – e jamais deixe-o – de se confessar e de comungar com freqüência. A confissão e a comunhão são os dois grandes meios de salvação oferecidos pela misericórdia de Jesus Cristo a todos que querem salvar e santificar suas almas. Evite as faltas graves; cresça no amor ao bem e na prática de virtudes cristãs. A este respeito não há regras gerais, mas podemos afirmar que os homens de boa vontade, isto é, todos aqueles que querem evitar o mal, servir a Deus e O amar com todo o coração, tanto melhor é que comunguem freqüentemente. Quando nos está à disposição, quanto mais, melhor. E várias vezes por semana, até mesmo todos os dias, não seria ainda demasiado freqüente. Quase todos os cristãos fariam muito bem se tivessem a capacidade de se santificar para uma boa comunhão todos os domingos e dias de festas de guarda, sem nunca estar em falta. O célebre Catecismo de Trento diz que o mínimo que deve fazer um cristão, que tenha um pouco de preocupação com a sua alma, é ir aos sacramentos todos os meses; Ainda proponho, neste pequeno regulamento para a vida, perceber e combater incessantemente dois ou três defeitos, observados ou que virão a ser observados em você. É evidentemente pelas suas fraquezas que, num momento ou noutro, o inimigo tentará atacar de surpresa; Por fim, evite, como se evita o fogo, freqüentar lugares e más leituras.

Compreenda, querido leitor, o que estou a recomendar aqui não é uma obrigação. Longe disso! Mas tenho de repetir: se você entrar nesta via de generosidade e fervor, e se segui-la decididamente, assegurará de maneira superabundante o mais grandioso e lucrativo negócio da sua eternidade. E estará certo de evitar as penas eternas do inferno, como é certo que, a fim de evitar a pobreza, é preciso uma sábia e inteligente administração, que aumenta consideravelmente sua fortuna. Em todo caso, não perca a direção, mantenha-se no caminho. Faça o melhor, mas faça pelo amor de sua alma, pelo amor do Salvador que derramou o Seu sangue por ela. Não recue diante do Evangelho e seja um bom cristão. Continue a pensar seriamente no inferno, nas suas penas eternas, no seu fogo devorador, e posso garantir que você irá para o céu! O grande missionário do céu é o inferno. 58 «Entre os dons do Espírito, parece que se deve ter por principal aquele que Deus exige,

inicialmente, do homem. Ora, o que Deus mais exige do homem é o temor, conforme a Escritura (Dt 10,12): ‘E agora, Israel, o que é que o Senhor teu Deus te pede? Apenas que temas ao Senhor teu Deus, andando em Seus caminhos, e o ames, servindo a Deus com todo o coração e com toda a tua alma’ (…); o temor tem preferência como elemento primordial no aperfeiçoamento dos dons do Espírito, porque o início da sabedoria é o temor do Senhor (Sl 111:10), e não porque seja mais digno do que os outros. Pois, na ordem da geração, é preciso primeiro afastar-se do mal, o que se faz pelo temor, como diz o livro dos Provérbios (Pr 16,6), e depois, praticar o bem, o que se faz mediante outros dons.» Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, Q. 68, IIae pars, art. 7. 59 A presunção de que já se encontra salvo é um dos pecados contra o Espírito Santo, portanto, um pecado mortal que pode levar ao inferno. Ensina-nos o Catecismo: ¶2092 «Há duas espécies de presunção: o homem ou presume das suas capacidades (esperando poder salvar-se sem a ajuda do Alto), ou presume da onipotência ou misericórdia divinas (esperando obter o perdão sem se converter, e a glória sem a merecer)». 60 O frei Strachia, desobedecendo São Francisco, abriu um suntuoso convento e lá instalou uma escola de teologia. Preocupado com a distorção do ideal da ordem – e com o perigo dos padres saírem do convento «mais doutos do que piedosos», o santo simplesmente fechou a escola de teologia aberta sem permissão. cf. Frei Pamfilo da Magliano, Vida de São Francisco, Cap. XVIII.

EPÍLOGO Havia um padre exemplar que, depois de quarenta anos pregando em toda a França e em outras numerosas missões, estava em Roma a conversar com o Santo Padre, o Papa Pio IX. Falavam sobre a maravilha de se estar a serviço de Deus. «Pregue muito as grandes verdades da salvação – dizia-lhe o Santo Padre. Pregue sobretudo sobre o inferno! Nada de sincretismos! Fale claramente e para que todos possam ouvir as verdades sobre o inferno. Porque nada é mais capaz de fazer os pobres pecadores refletirem e, conseqüentemente, fazê-los retornar a Deus». Recordando essas profundas e verdadeiras palavras do Vigário de Jesus Cristo, decidi empreender este pequeno trabalho sobre o inferno. Depois, meditando sobre as penas eternas e as desgraças dos réprobos, lembrei-me das palavras de São Jerônimo, que estimulavam uma virgem cristã ao temor dos julgamentos de Deus: «Territus terreo – ele escreveu –; apavorante, eu me apavoro!» Ao menos, eu me esforcei para tornar tudo apavorante, e Nosso Senhor é testemunha de que nada escondi do que sei acerca desse terrível mistério. A você, leitor, quem quer que seja, espero que faça proveito. Quantas são as almas que estão no céu graças ao temor que nutriram pelo inferno! Então, ofereço este modesto livro, rogando ao bom Deus para que faça chegar essas verdades no fundo da alma de cada um. Para que o temor inspire a todos para amar; e que o amor conduza a todos direto ao paraíso. Espero que se digne a rezar por mim, para que Deus seja misericordioso comigo e também com você. Para que sejamos dignos da admissão entre os Seus eleitos. MONSENHOR DE SÉGUR 8 de dezembro de 1875, na Festa da Imaculada Conceição.

FELIZ AQUELE CUJA OFENSA É ABSOLVIDA, CUJO PECADO É PERDOADO. FELIZ O HOMEM A QUEM O SENHOR NÃO ATRIBUI ERRO, E EM CUJO ESPÍRITO NÁO HÁ FRAUDE. — SL. 32 (31)

MONSENHOR DE SÉGUR — 1820 – †1881

O Inferno – Monsenhor de Ségur Publicado no Brasil 1ª edição – setembro de 2011 - CEDET 2ª edição – março de 2012 - CEDET 3ª edição – janeiro de 2014 - CEDET A fonte desta tradução foi a edição de 1889, da Gernaey & Hamelin, Montreal, Canadá, na coleção Oeuvre de bons livres, sob o título: L’Enfer - s’il y en a un; ce que c’est ; comment l’éviter. Edição e tradução: Diogo Chiuso Revisão: Lucas Cardoso da Silveira Santos e Gabriel Hidalgo Capa, projeto gráfico e diagramação: Diogo Chiuso Impressão: Gráfica Daikoku Imagem da capa: O Jardim das Delícias Terrestres, de Hieronymus Bosch (1510). Desenvolvimento de eBook: Loope – design e publicações digitais www.loope.com.br FICHA CATALOGRÁFICA Ségur, Louis-Gaston O Inferno / Monsenhor de Ségur; Tradução de Diogo Chiuso - Campinas, SP : Ecclesiae, 2011. Título Original: L’Enfer e-ISBN 978-85-63160-69-0 1. Inferno 2. Cristianismo. I. Monsenhor De Ségur II. Título. CDD – 236.25 Índice para Catálogo Sistemático 1. Inferno – 236.25 Os direitos desta edição pertencem ao CEDET - Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico Rua Angelo Vicentin, 70 CEP: 13084-060 - Campinas - SP Telefone: 19-3249-0580 e-mail: [email protected] Conselho Editorial: Adelice Godoy César Kyn d’Ávila Diogo Chiuso Silvio Grimaldo de Camargo Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio.

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