Transtorno De Personalidade Bordeline E Relacao Com O Espectro Bipolar 2008.pdf

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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA-UCB PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA PROGRAMA DE MESTRADO EM PSICOLOGIA

TRANSTORNO DE PERSONALIDADE BORDERLINE: RELAÇÃO COM O ESPECTRO BIPOLAR DO HUMOR

Norma Maria Malta Machado

Orientadora: Profª. Drª. Deise Matos do Amparo

Brasília/DF 2008

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Norma Maria Malta Machado

TRANSTORNO DE PERSONALIDADE BORDERLINE: RELAÇÃO COM O ESPECTRO BIPOLAR DO HUMOR

Dissertação de Mestrado a ser defendida como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia para ser aprovada pela Comissão examinadora da Universidade Católica de Brasília, sob a orientação da Profa. Dra. Deise Matos do Amparo.

BRASÍLIA AGOSTO 2008

M149t

Machado, Norma Maria Malta. Transtorno de personalidade borderline : relação com o espectro bipolar do humor / Norma Maria Malta Machado. – 2008. 211 f. : il. ; 30 cm.

Dissertação (mestrado) – Universidade Católica de Brasília, 2008. Orientação: Deise Matos do Amparo.

1. Distúrbios da personalidade borderline - Diagnóstico. 2. Psicose maníaco-depressiva. 3. Trauma psíquico. I. Amparo, Deise Matos do, orient. II. Título. CDU 616.89-008.485

Ficha elaborada pela Coordenação de Processamento do Acervo do SIBI – UCB.

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Norma Maria Malta Machado

TRANSTORNO DE PERSONALIDADE BORDERLINE: RELAÇÃO COM O ESPECTRO BIPOLAR DO HUMOR

BANCA DE DEFESA DE DISSERTAÇÂO Dissertação a ser defendida como requisito para o título de Mestre em Psicologia pela Universidade Católica de Brasília. Comissão examinadora composta pelas seguintes professoras:

___________________________________________________________________ Profª Drª Deise Matos do Amparo (Orientadora) Universidade Católica de Brasília

___________________________________________________________________ Profa Dra Inês Catão Henrique Ferreira (Examinadora externa) COMPP/Secretaria de Saúde do Governo do Distrito Federal

___________________________________________________________________ Profª Drª Sandra Francesca Conte de Almeida (Examinadora) Universidade Católica de Brasília

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Agradecimentos: À Profª Drª Deise Matos do Amparo pela gentileza do convívio e a doação do alimento intelectual que me foram ofertados ao longo da construção deste trabalho. Às titulares dessa Banca Examinadora, Profª Drª Inês Catão Henrique Ferreira e Profª Drª Sandra Francesca Conte de Almeida: a primeira por aceitar participar da Banca Examinadora e, à segunda por toda a ajuda na elaboração desta pesquisa. Aos professores da Universidade Católica de Brasília que deram suas oferendas durante essa caminhada: Tânia Rossi, Roberto Menezes, José Eduardo Pandossio e, particularmente, Ondina Pena Pereira por ter ampliado o meu horizonte de conhecimentos em geral. A todos os colegas do mestrado que me acolheram e também me ensinaram novas perspectivas, principalmente, Marcello, Valéria, Vera, Evilásio, Lilian, Marla, Warrisman, Lino e Mirna. À minha família por todo amor derramado sobre mim, especialmente, à minha mãe que não pode comemorar esse momento comigo. À Rebeca pela amizade e apoio profissional nos últimos sete anos em Brasília. Aos meus amigos, Ricardo L., Ricardo C., Roberval, Marta, Iara, Lúcia, Telma, Deisimar, Irene e, especialmente, a Sâmia por sua amizade cúmplice e reciclagens profissionais.

A Gracy, por inúmeras doações fundamentais para as minhas realizações. A João Paulo, pelo amor incondicional.

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RESUMO

O transtorno de personalidade borderline envolve a consideração de múltiplos fatores de campos distintos do conhecimento, em níveis diferentes tanto para a investigação como para o tratamento. Além de áreas da saúde e de psicodinâmica específica, essa clínica implica também aspectos socioculturais e biológicos, ampliando sua multicausalidade e, consequentemente, dificultando o diagnóstico, principalmente por sua aproximação com quadros de outros transtornos, como o do espectro bipolar do humor. Os objetivos deste trabalho são identificar e descrever os aspectos sindrômicos e psicodinâmicos do transtorno de personalidade borderline, sua relação com o transtorno do espectro bipolar e, relação dos eventos traumáticos na causalidade do borderline. Nesta pesquisa, é utilizado um estudo de caso, com a investigação de duas pacientes diagnosticadas como portadoras de transtorno de personalidade borderline, entre 38 e 40 anos e com história de oscilações de humor e trauma precoce. Utilizou-se para a coleta de dados procedimentos da avaliação psiquiátrica, escala de mania de Young (EAM-m), inventário de depressão de Beck (BDI) e entrevista psicológica semi-estruturada. A avaliação psiquiátrica confirmou o diagnóstico de TPB, TEBH e algumas comorbidades, em ambas as pacientes, através da detecção de sintomas, inclusive de humor bipolar e discutiu a relação de fatores traumáticos e da neurobiologia na etiologia desses transtornos e sua relação com o transtorno do espectro bipolar do humor, nas pesquisadas. A análise psicodinâmica, na perspectiva de Bergeret (1998/2006), confirmou o diagnóstico de TPB, nas duas pesquisadas, traçou suas psicodinâmicas, confirmando a presença de narcisismo, trauma, depressividade e defesas como a clivagem, forclusão e reação maníaca. Para concluir, a perspectiva psiquiátrica indicou que há episódios de humor elevado, nas duas respondentes, preenchendo os critérios para o transtorno do espectro bipolar do humor. A leitura psicanalítica revelou que elas possuem uma organização psíquica não estruturada denominada de estado-limite ou personalidade borderline, com indicadores de depressividade e reações maníacas à depressão de perda do objeto. Em virtude da complexidade da personalidade borderline, a investigação desse quadro deve contemplar abordagens interdisciplinares integradas com seus meios diagnósticos específicos, esperando que surjam mais pesquisas visando uma melhor compreensão do construto e manejos psicofarmacológico, psicoterápico e socioculturais mais efetivos.

Palavras-chave: borderline; bipolar; trauma; clivagem do objeto; forclusão; instabilidade; impulsividade.

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ABSTRACT

Borderline personality disorder considers the multiple factors seen in distinct fields of understanding, at different levels regarding both its investigation and treatment. Besides specific health and psychodynamic issues, this condition also implicates socio-cultural and biological aspects that broaden the multi-causality of the disorder and, consequently, complicates diagnosis, especially due to its resemblance to other disorders such as the bipolar spectrum disorder. The objectives of this paper are to identify and describe the syndromic and psychodynamic aspects of borderline personality disorders, their relationship with bipolar spectrum disorders, and the relationship between the traumatic events that caused the borderline disorder. This research used in-depth case studies of two patients diagnosed with borderline personality disorder aged between 38 and 40, with a history of mood swings and childhood trauma. Psychiatric evaluation procedures, the Young Mania Rating Scale, modified for Brazil (EAM-m), the Beck Depression Inventory (BDI), and semi-structured psychological interviews were used to collect data. The psychiatric evaluation confirmed the diagnosis of BPD and BSD and some comorbidities in both patients by detecting symptoms that included bipolar moods, and addressed the relationship between traumatic factors and the neurobiology of the etiology of these disorders and its relationship with the bipolar spectrum disorders in the patients. The psychoanalytical evaluation, on Bergeret’s perspective, confirmed the BPD diagnosis in both patients and mapped their psychodynamics, confirming the presence of narcissism, trauma, depression, and defense mechanisms such as splitting of the object, forclusion, and manic reactions. In conclusion, the psychiatric perspective indicated that there are high mood episodes, on both patients, fullfiling the criteria for bipolar mood disorder. The psychoanalytic reading revealed that they have a non structured psychic organization named limit-state or borderline personality, with indicators of depression and maniac reactions to loss of the object depression. Because of the complexity of borderline personalities, its investigation must contemplate interdisciplinary approaches integrated with its specific diagnostic means, hoping for increased research that would offer a deeper understanding of the construct, and more effective psychopharmacological, psychotherapeutic, and socio-cultural management. Key words: borderline, bipolar, trauma, splitting of the object, forclusion, instability, impulsivity.

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ÍNDICE RESUMO.................................................................................................................................... ABSTRACT................................................................................................................................ INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... CAPÍTULO I - TRANSTORNO DE PERSONALIDADE BORDERLINE: DELIMITAÇÔES TEÒRICAS DA PSIQUIATRIA...................................................... 1.1 O transtorno de personalidade borderline na Psiquiatria..................................................... 1.1.1 A epidemiologia do TPB................................................................................................ 1.1.2 Psicopatologia categorial e dimensional do TPB.......................................................... 1.1.3 As comorbidades clássicas do TPB.............................................................................. 1.1.3.1 Comorbidade do TPB com o Transtorno de Controle de Impulsos (TCI)................. 1.1.3.2 Comorbidade do TPB com Transtorno de Estresse Pós-traumático......................... 1.1.3.3 Comorbidade do TPB com o Transtorno Distímico (Distimia)................................ 1.1.3.4 Comorbidade do TPB com o Transtorno Bipolar do Humor................................... 1.2 Perspectiva psiquiátrica atual sobre o TPB...................................................................... 1.2.1 Psicopatologia médica do TPB..................................................................................... 1.2.2 Genética.................................................................................................................... 1.2.3 Aspectos etiológicos da sintomatologia central do TPB.............................................. 1.2.4 Fisiopatologia do TPB.............................................................................................. 1.2.5 Exames complementares em Psiquiatria........................................................................ APÍTULO II: O BORDERLINE NA PERSPECTIVA DA PSICANÁLISE........................... 2.1 A psicopatologia psicanalítica do borderline................................................................... 2.1.1 Borderline: estrutura ou organização............................................................................ 2.1.2 Os pós-freudianos e a caracterização do borderline.................................................... 2.1.3 A psicodinâmica do borderline.................................................................................. 2.1.3.1 A clivagem objetal e a depressividade no borderline.............................................. 2.1.3.2 A hipótese do fator traumático na clínica do borderline ....................................... 2.1.3.3 Características da síndrome borderline................................................................... CAPÍTULO III: NATUREZA DO PROBLEMA E MÉTODO............................................... 3.1 Delineamento da pesquisa................................................................................................ 3.2 Participantes........................................................................................................................ 3.3 Instrumentos ...................................................................................................................... 3.3.1 Entrevistas semidirigidas................................................................................................. 3.3.2 Escala de mania (EAM-m) e o inventário de depressão de Beck (BDI)........................ 3.3.3 Exames complementares................................................................................................ 3.4 Procedimentos para coleta dos dados................................................................................ 3.5 Procedimentos para análise de dados................................................................................ CAPÍTULO IV: HISTÓRIA, DIAGNÓSTICO, SINTOMATOLOGIA, PSICODINÂMICA EM DUAS MULHERES BORDERLINE.......................................... 4.1 O caso Márcia.................................................................................................................... 4.1.1 Avaliação psiquiátrica.................................................................................................... 4.1.2 Resultados da aplicação da escala EAM-m e do inventário de depressão de Beck........ 4.1.3 Análise qualitativa das entrevistas semi-estruturadas................................................... 4.2 O caso Laura...................................................................................................................... 4.2.1 Avaliação Psiquiátrica.................................................................................................... 4.2.2 Resultados da aplicação da escala EAM-m e do inventário de depressão de Beck....... 4.2.3 Análise qualitativa das entrevistas semi-estruturadas.................................................. CAPÍTULO V - DISCUSSÃO: TRANSTORNO DE PERSONALIDADE BORDERLINE E A RELAÇÃO COM O ESPECTRO BIPOLAR DO HUMOR .....................................

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5.1 Aspectos sindrômicos da relação do TPB com o espectro bipolar do humor....................... 5.1.1 A instabilidade afetiva e a impulsividade....................................................................... 5.1.2 As alterações do humor.................................................................................................. 5.1.3 A presença de eventos traumáticos e relação com as alterações do humor e os sintomas psicóticos........................................................................................................ 5.1.4 Achados organocerebrais e relação com sintomatologia psiquiátrica........................... 5.2 Aspectos da psicodinâmica e o tronco comum do borderline............................................ 5.2.1 A relação com as alterações do campo afetivo............................................................... CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................... REFERÊNCIAS....................................................................................................................... ANEXOS................................................................................................................................... Anexo I - O tronco comum dos estados limítrofes.................................................................... Anexo II - Modelo de termo de consentimento informado........................................................ Anexo III – Roteiros de avaliação psiquiátrica e entrevista psicológica semi-estruturada........ Anexo IV – Escala EAM-m e Inventário de Depressão de Beck (BDI)....................................

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LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 – Escore final da EAM-m da paciente Márcia por consulta........................................ Gráfico 2 – Percentual de potuação máxima da EAM-m da paciente Márcia por consulta......... Gráfico 3 – Percentual de aumento acumulado da EAM-m em relação à primeira consulta da paciente Márcia por consulta.................................................................................... Gráfico 4 – Resultados do inventário de depressão de Beck da paciente Márcia por consulta..... Gráfico 5 – Escore final da EAM-m da paciente Laura por consulta........................................... Gráfico 6 – Percentual de potuação máxima da EAM-m da paciente Laura por consulta............ Gráfico 7 – Percentual de aumento acumulado da EAM-m em relação à primeira consulta da paciente Laura por consulta.................................................................................... Gráfico 8 – Resultados do inventário de depressão de Beck da paciente Laura por consulta.......

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INTRODUÇÃO O efeito das transformações por que o mundo vem passando, principalmente após a Revolução Industrial no século XVIII, contribuiu para o surgimento de patologias relacionadas, ora com um misto de causas (como a depressão), ora com um misto de efeitos (como a síndrome do pânico), ora com as próprias dificuldades de se administrarem aspectos do cotidiano dessa época. Esses aspectos são, entre outros, a fragilidade emocional, a transitoriedade das relações, a insegurança no trabalho e resultados da quebra dos modelos estabelecidos que, independentemente de qualquer valoração, traziam alguma forma de segurança. Cita-se a Revolução Industrial, porque vem dela um dos primeiros rompimentos de paradigmas históricos (como o da ascensão da burguesia) que acarretou mudanças no caminho evolutivo da humanidade. Também, porque se considera que uma revolução (como a Industrial e a da tecnologia da informação, na qual se insere o momento atual) não impacta somente estruturas sociais e econômicas; o psicológico encontra-se na base pessoal das estruturas que vão ou não ser abaladas com as mudanças. E é possivelmente por isso que o transtorno de personalidade borderline é conhecido como uma doença deste século, englobando um misto de causas, de efeitos e de dificuldades de administração do próprio comportamento. Esse conjunto, por sua vez, se reflete também em dificuldades de diagnóstico, dada a semelhança e/ou limites com outras patologias, como é o caso dos transtornos de humor e, particularmente, dos transtornos do espectro bipolar. Observe-se, porém, que a referência aos casos borderline como uma patologia deste tempo não significa tratar-se de uma patologia nova, mas sim, que esses casos estão se acentuando na atualidade. O que teria de novo, nesses transtornos, seria sua conceituação como “limite”, já que antes seu diagnóstico era dado no âmbito da depressão, da ciclotimia, da instabilidade, entre outros.

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Nesta Era contemporânea, já não se pode considerar a preponderância de quadros de neuroses, de complexo de Édipo e de recalque como nos tempos modernos. Na contemporaneidade, verifica-se uma nova apresentação patológica: o sujeito em estado-limite ou borderline. Esse indivíduo tem uma organização de defesa mais complexa que a do neurótico, a qual transita entre a neurose, a perversão e a psicose (sem se estruturar em nenhuma) e não foge à realidade como o psicótico. O ser borderline sente-se frustrado diante de sua onipotência mitigada, evoluindo com instabilidade afetiva dentro de um espectro que vai da depressão à mania. Não sente a culpa do neurótico e sofre de autocomiseração, de baixa auto-estima e de vazio crônico (Armony, 1998). Segundo psicanalistas estudiosos do tema, como Winnicott (2006) e Hegenberg (2005), a pessoa em estado-limite vive em devir permanente, à procura ad eternum de objetos anaclíticos que possam preencher a lacuna afetiva deixada pela mãe perdida no universo simbólico. Em termos de terminologia, Andrade (2006) afirmou que casos clínicos com oscilação constante entre quadros de neurose, de psicose e de perversão, com riscos de descompensação e até com tentativas de suicídio são chamados, na língua portuguesa, de “casos-limite”, de “estados-limite”, de “fronteiriços”, de “limítrofes” ou borderline, além de outras cognominações. Trata-se de uma variedade terminológica que, em resumo, expressa dificuldades teórico-conceituais e diagnósticas acerca dessa modalidade de padecimento psíquico contemporâneo. Para essa autora, a terminologia francesa état-limite (estado-limite em português) foi integrada ao termo norte-americano borderline, originário do anglo-saxão. Esses quadros se situam na perspectiva das chamadas “novas patologias”, as quais somente passaram a ser sistematicamente investigadas na década de 50 (século XX).

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Bedani (2005) relatou que, historicamente, casos com as características acima citadas tiveram seus primeiros registros em 1801, quando Pinel constatou um quadro de distúrbios de comportamento, de manias sem delírio, de instinto furioso e grande crueldade, sem qualquer disfunção intelectual. Em 1835, Prichard descreveu pacientes que apresentavam violência incontrolável, perversão mórbida (sem valores éticos), instabilidade de sentimentos e de humor, mas sem alterações cognitivas. No ano de 1863, Kahlbaum se referiu à “hebefrenia”, uma doença mental da adolescência que rapidamente levava à loucura e apresentava distúrbios de comportamento, principalmente com alterações no âmbito das relações sociais e nas flutuações de humor. Hugues, em 1884, utilizou pela primeira vez a palavra borderland, para descrever um paciente que vivia próximo à fronteira que separava a psicose da neurose, às vezes de um lado, às vezes de outro. Depois, em 1911, Bleuler descreveu um grupo de sujeitos que manifestavam episódios psicóticos definidos, mas que, apesar do comportamento social convencional, apresentavam elementos subjacentes de esquizofrenia; chamou então esse caso de “esquizofrenia latente”. Dez anos mais tarde, Kretschmer abordou a oscilação entre a hipomania (com comportamento explosivo, por exemplo) e a melancolia (muita tristeza) como estados sobrepostos, classificando os portadores dessa oscilação como “esquizóides”. Em 1925, Reich investigou o funcionamento de caracteres impulsivos, associais, e descobriu tipos que destroem a própria existência. Stern, em 1938, destacou a “neurose borderline” como uma patologia que se caracteriza por um narcisismo doentio, pela impossibilidade de controle, pela hipersensibilidade, por reações terapêuticas negativas, por sentimentos de inferioridade, por masoquismo, pela rigidez psíquica e física, pelo estado de profunda insegurança orgânica e intensa ansiedade, pelo uso de mecanismos projetivos e por dificuldades no teste de realidade. Nos últimos 60 anos, os casos dessa oscilação sintomatológica foram tratados como: fatores de personalidade, com atitudes de onipotência, de isolamento e de desapego;

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personalidades “como se”; condição patológica específica, combinação de “pan-neurose”, “pan-ansiedade” e transtornos sexuais; pacientes comprometidos psiquicamente, mas não psicóticos autênticos. Só em 1979, a Classificação Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial da Saúde (OMS), em sua nona versão (CID-9), referiu-se a esses casos como “esquizofrenia latente” ou borderline. Mas na versão seguinte (CID-10), de 1993, conceituou-os como “transtorno de personalidade emocionalmente instável, tipo borderline” (Dalgalarrondo, 1996). Nos Estados Unidos, em 1994, o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM- IV) e, em 2000, o Diagnostic and Statistical Manual Disorders (Text Revision) (DSM-IV-TR) descreveram o Transtorno de Personalidade Borderline com base em critérios definidos pela American Psychiatric Association (APA). Esses critérios são apresentados no item perspectiva psiquiátrica deste trabalho. Na atualidade, há duas posições divergentes em relação ao estado-limite: uma sustenta a idéia de que o quadro se refere a pacientes esquizofrênicos com sintomatologia neurótica, desempenhando uma função defensiva contra a incursão da psicose. Seriam novas versões de histerias que, tal como Proteu, assumem múltiplas aparências enganosas. A outra posição considera os estados-limites uma modalidade de subjetivação singular, um estado estável e duradouro (Laplanche e Pontalis, 2001). Carneiro & Ferreira (2004) explicaram que perceber uma pessoa com personalidade borderline não é difícil, pois os sintomas que ela apresenta incomodam a todos os circunstantes, especialmente os familiares e os amigos. A sintomatologia desse transtorno inclui manifestações típicas de vários transtornos psiquiátricos, como o esquizofrênico, o depressivo, do espectro afetivo bipolar, do espectro do estresse pós-traumático, do controle dos impulsos e outros da personalidade. Mas em geral, os pacientes não saíram totalmente do estado considerado normal para ser enquadrados em tais classificações, a não ser que

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apresentem comorbidades com os transtornos supracitados. Assim, a síndrome borderline seria um mosaico de sintomas menos acentuados de diversos transtornos. Pelas características do quadro borderline, envolvendo uma multiplicidade de fatores de campos do conhecimento distintos, exigem-se níveis diversificados de investigação e de tratamento, como: a Psiquiatria, com a psicopatologia, exames complementares e a farmacologia; a Psicanálise com a psicodinâmica. Além desses, fatores socioculturais e biológicos têm sido associados à multicausalidade do Transtorno de Personalidade Borderline e de outros transtornos relacionados com a impulsividade (Skodol, Siever, Gunderson & cols., 2002). A discussão em torno do diagnóstico e do tratamento desse quadro é recorrente na literatura. Eppel (2005) apontou que, no quadro do Transtorno de Personalidade Borderline, o diagnóstico final é feito tardiamente, após distintos diagnósticos hipotéticos e tratamentos aplicados sem sucesso. Isso porque a interligação dos Transtornos Borderline com transtornos de personalidade e do humor, entre tantos mais, podem levar à ampliação dos sintomas e, conseqüentemente, ao deslocamento do foco do problema. Por outro lado, há também, no Brasil e na América Latina, carência de serviços que se dediquem a tratar pacientes com sintomas borderline, da mesma forma que ainda são relativamente poucos os estudos acadêmicos sobre o tema (Schestatsky, 1999). As controvérsias sobre a existência do construto Transtorno de Personalidade Borderline se expandem, quando ele é comparado com o Transtorno do Espectro Bipolar do Humor. Ambos evidenciam instabilidade afetiva, impulsividade e irritabilidade. Os sintomas psiquiátricos e os indicadores psicológicos são concordantes com a variação de humor dessas patologias, mas são discordantes em relação às causas biológicas, à psicodinâmica e à existência de uma entidade clínica única. Na prática psiquiátrica, estudiosos como Maj, Akiskal, Lopez-Ibor & cols. (2000) e Lara (2004) associaram a etiologia do Transtorno de

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Personalidade Borderline e do Transtorno do Espectro Bipolar do Humor à predisposição genética interagindo com o meio ambiente adverso ao sujeito. Entretanto, psicanalistas como Kernberg (2000), Gunderson (2005), Hegenberg (2005) e Bergeret (1998) defenderam que o Transtorno de Personalidade Borderline é construído nos primeiros contatos com o ambiente adverso, na interação traumática com os pais e circunstantes. Em decorrência das dificuldades diagnósticas e terapêuticas relacionadas com o Transtorno de Personalidade Borderline e com suas semelhanças sintomatológicas com o Transtorno do Espectro Bipolar do Humor, esta pesquisa visa responder às seguintes perguntas: como o Transtorno de Personalidade Borderline (TPB) se organiza, tanto na perspectiva sindrômica quanto psicodinâmica? Como caracterizar esse quadro no que se refere a sua relação com o espectro bipolar? O TPB faz parte do espectro bipolar do humor? As pesquisadas são portadoras de comorbidades psiquiátricas? Há uma relação entre o trauma, depressão e o desenvolvimento da personalidade borderline? Como objetivo geral, este trabalho investigou, em pacientes com Transtorno de Personalidade Borderline, a sintomatologia descrita pela Psiquiatria e a dinâmica da organização psíquica na perspectiva psicanalítica (Bergeret, 1998; 2006), bem como sua relação com o Transtorno do Espectro Bipolar do Humor (TEBH). Em relação aos objetivos específicos, traçou-se a psicodinâmica do borderline (Bergeret, 1998; 2006); avaliou-se o diagnóstico segundo a propedêutica psiquiátrica nas expressões clínicas dos casos estudados (história psiquiátrica, antecedentes, curva de vida, exame físico, exame psíquico, exames complementares, escalas) e foram comparadas as semelhanças entre o Transtorno de Personalidade Borderline e o Transtorno do Espectro Bipolar do Humor, associando-se o primeiro a eventos estressores, ao humor (através da Psiquiatria) e à afetividade nos aspectos sindrômico e psicodinâmico; buscou-se detectar a relação de eventos traumáticos na causalidade do Transtorno de Personalidade Borderline.

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Este trabalho foi estruturado em cinco capítulos: no primeiro, abordou-se o Transtorno de Personalidade Borderline e suas delimitações teóricas da Psiquiatria. Foram apresentadas, segundo diversos autores, o diagnóstico (conforme critérios das classificações médicas), as comorbidades mais freqüentes com o Transtorno de Personalidade Borderline, dando ênfase aos transtornos de controle do impulso, do estresse pós-traumático e de humor e, principalmente, aos quadros distímico e do espectro bipolar do humor. Foram estabelecidas semelhanças e diferenças entre o Transtorno de Personalidade Borderline e o Transtorno do Espectro Bipolar de Humor. As características do primeiro (como sintomas de desregulação afetiva, de descontrole de impulsos e cognitivos/perceptuais), no enfoque psiquiátrico da psicopatologia, privilegiaram a genética, a neuroanatomia, a neurotransmissão e os exames complementares. No segundo capítulo, enfocou-se o Transtorno de Personalidade Borderline na perspectiva da Psicanálise, particularizando a opção teórica deste trabalho pela abordagem de Bergeret (1998; 2006). Demonstrou-se sua relação com a depressão e com o trauma e os aspectos da psicodinâmica e da psicopatologia psicanalítica, discutindo a diferenciação entre estrutura e organização psíquica. No terceiro capítulo, enfocou-se a natureza do problema e a metodologia do estudo de caso, descrevendo-se os passos para o diagnóstico, para a coleta de dados e para a respectiva análise, numa abordagem quantitativa/qualitativa. Para tanto, foram utilizadas as classificações médicas CID10 (1993) e DSM-IV-TR (2000/2003) e o Teste de Rorschach; instrumentos para coleta dos dados, como entrevistas semidirigidas psicodinâmica (Bergeret, 1998; 2006) e psiquiátrica; escalas psiquiátricas (EAM-m e BDI), exames complementares (Teste de Rorschach, SPECT cerebral, eletroencefalograma digital com mapeamento cerebral e exames laboratoriais séricos). O levantamento desses dados permitiu discutir questões relativas ao diagnóstico do Transtorno de Personalidade Borderline, particularmente, na

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tentativa de elucidar esse fenômeno clínico e sua relação com o Transtorno do Espectro Bipolar do Humor. No quarto capítulo, foram apresentados a história, o diagnóstico, a sintomatologia, o resultado das Escalas EAM-m e BDI e a psicodinâmica nas duas mulheres borderline, bem como os resultados da avaliação psiquiátrica e a análise das entrevistas das mulheres estudadas, discutindo-se em seguida semelhanças e diferenças entre os casos, quanto à história, aos exames complementares, às escalas médicas e às entrevistas. No quinto capítulo, os aspectos do Transtorno de Personalidade Borderline encontrados no estudo de caso foram discutidos separadamente, por caso e por área, à luz da literatura levantada, e em sua relação com o Espectro Bipolar do Humor. Por fim, concluiu-se sobre os principais aspectos da investigação proposta, na perspectiva de que as contribuições das abordagens psiquiátrica e psicanalítica constituem saberes paralelos de um mesmo fenômeno clínico. Nesse sentido, esta pesquisa pode levar a interpretações suplementares em relação ao Transtorno de Personalidade Borderline.

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Capítulo I TRANSTORNO DE PERSONALIDADE BORDERLINE: DELIMITAÇÕES TEÓRICAS NA PSIQUIATRIA Um fenômeno é sempre biológico em suas raízes e social em sua extensão final. Mas nós não nos devemos esquecer, também, de que, entre esses dois, ele é mental. (Piaget, 1973, citado por Dalgalarrondo, 2000)

Desde sua origem, no século XVII, a Psiquiatria vem se apresentando em contínua evolução. A força motriz desse processo tem sido a descoberta de novos conhecimentos e o advento de novos sistemas de informação, que respaldam a compreensão dos transtornos psiquiátricos. Historicamente, a base epistemológica da Psiquiatria teve origem em disciplinas como a religião, a antropologia e a medicina clínica; posteriormente, a psicologia e a sociologia influenciaram, de forma substancial, seu desenvolvimento. Atualmente, disciplinas científicas, como a genética, a biologia molecular, a neurobiologia, a farmacologia, a epidemiologia e a neurociência cognitiva, passaram a exercer forte influência sobre a pesquisa biomédica em geral e sobre a Psiquiatria em particular. Assim, a evolução dessa seguiu o curso determinado pelo progresso das ciências biológicas e sociais das quais deriva. Daí, poder-se afirmar que a distinção entre o psicológico e o neurobiológico vem sendo visivelmente demolida pela crescente evidência de que o cérebro afeta o comportamento e vice-versa (Nemeroff, 2000, citado por Kay, 2002). A Psiquiatria, através de suas pesquisas em neurociências, vem introduzindo dimensões humanistas, interpessoais e intrapsíquicas na prática da clínica médica. Neste momento, essas são as perspectivas de que a medicina necessita e pelas quais a Psiquiatria tem merecido legítimo reconhecimento (Nemeroff, 2000, citado por Kay, 2002). As neurociências demonstram que há interação entre a genética e o ambiente externo e interno (fatores emocionais, interpessoais e neurobiológicos) no desenvolvimento do aparelho

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psíquico, na estruturação da personalidade e no aparecimento dos transtornos mentais, em geral, e no Transtorno de Personalidade Borderline (TPB), em particular. Neste trabalho, a abordagem atual da Psiquiatria e a psicopatologia - essa definida por Campbell (1986, citado por Dalgalarrondo, 2000) como “ o ramo da ciência que trata da natureza essencial da doença mental, suas causas, das mudanças estruturais e funcionais associadas a ela e suas formas de manifestação” – são feitas na perspectiva das comorbidades clássicas. 1.1 O Transtorno de Personalidade Borderline na Psiquiatria 1.1.1 A epidemiologia do TPB Epidemiologicamente, estima-se a prevalência do TPB em torno de 2% da população geral. Desse percentual, cerca de 10% dos casos são vistos em clínicas ambulatoriais de saúde mental, e 20% dos pacientes psiquiátricos internados. Ao mesmo tempo, a prevalência vai de 30 a 60% entre as populações clínicas com transtornos da personalidade. Em relação às características culturais, de idade e gênero, o padrão de comportamento observado no TPB pode ser identificado no mundo inteiro e em diversos contextos, sendo diagnosticado, principalmente, em mulheres, num patamar estimado em 75% dos casos. O TPB é quase cinco vezes mais comum entre os parentes biológicos de primeiro grau do que na população geral, inclusive aumentando o risco para transtornos relacionados com substâncias, transtorno da personalidade anti-social e transtornos do humor (Lopes & cols., 2002). Quanto ao curso do referido transtorno, o mais comum é a instabilidade crônica no início da idade adulta, episódios de descontrole afetivo e impulsivo e alto nível de utilização de serviços de saúde mental; o risco é maior nos primeiros anos da idade adulta, diminuindo aos poucos com o avanço da idade. Entre os 30 e 40 anos, por exemplo, a maioria dos indivíduos com TPB consegue mais estabilidade nos relacionamentos e funcionamento profissional (Lopes & cols., 2002).

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1.1.2 Psicopatologia categorial e dimensional do TPB Dalgalarrondo (2000) defendeu que há diversas correntes psicopatológicas. Neste trabalho, o diagnóstico psicopatológico psiquiátrico foi baseado nas psicopatologias: categorial (transtornos mentais), dimensional (espectro) e médica (disfunção de alguma parte do cérebro ou do corpo), as quais são caracterizadas a seguir. A abordagem categorial usa como meio diagnóstico as classificações médicas, considerando a existência de entidades diagnósticas distintas e separáveis em sua natureza essencial (Dalgalarrondo, 2000). A CID 10 (1993) definiu o transtorno da personalidade “emocionalmente instável” como F60.3, classificando-o em dois tipos: 1) impulsivo (F60.30), cujas características predominantes são a instabilidade emocional e a falta de controle de impulsos; os acessos de violência ou comportamento ameaçador, particularmente a críticas dos outros; 2) borderline ou limítrofe (F60.31), com a presença de várias características de instabilidade emocional. Em adição, a auto-imagem, objetivos e preferências internas (incluindo a sexual) do paciente são, com freqüência, pouco claras ou perturbadas; nesse segundo caso, há, em geral, sentimentos crônicos de vazio. A propensão ao envolvimento com relações intensas e instáveis tende a causar repetidas crises emocionais, podendo estar associada a esforços excessivos para evitar o abandono e produzir ameaças de suicídio ou atos de autolesão (embora esses possam ocorrer sem precipitantes óbvios). O DSM-IV-TR (2000/2003) esclareceu que devem ser encontrados cinco ou mais critérios entre os seguintes, para o diagnóstico do transtorno borderline: esforços frenéticos para evitar um abandono real ou imaginado (nota: não incluir comportamento suicida ou automutilante, coberto no critério 5); um padrão de relacionamentos interpessoais instáveis e intensos, caracterizado pela alternância entre extremos de idealização e de desvalorização; perturbação da identidade: instabilidade acentuada e resistente da auto-imagem ou do

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sentimento de self; impulsividade em pelo menos duas áreas potencialmente prejudiciais à própria pessoa (por ex.: gastos financeiros, sexo, abuso de substâncias, direção imprudente, comer compulsivo); recorrência de comportamento, gestos ou ameaças suicidas ou de comportamento automutilante; instabilidade afetiva devido a uma acentuada reatividade do humor (por ex.: episódios de intensa disforia, irritabilidade ou ansiedade geralmente durando algumas horas e apenas raramente mais de alguns dias); sentimentos crônicos de vazio; raiva inadequada e intensa ou dificuldade em controlar a raiva (por ex.: demonstrações freqüentes de irritação, raiva constante, lutas corporais recorrentes); ideação paranóide transitória e relacionada ao estresse ou a severos sintomas dissociativos. Nesta pesquisa, considera-se a perspectiva da psicopatologia dimensional, segundo a qual os transtornos de humor e o TPB podem fazer parte do espectro bipolar do humor. Segundo Maj, Akiskal, Lopez-Ibor & cols. (2000), esse espectro contém oito subtipos de bipolares, incluindo desde o transtorno esquizoafetivo (bipolar ½) até a depressão superposta à hipertimia (bipolar 4). As classificações médicas citadas neste item embasaram o diagnóstico psiquiátrico do TPB e de suas comorbidades encontradas nas pacientes deste trabalho. 1.1.3 As comorbidades clássicas do TPB O termo comorbidade foi definido como a ocorrência de dois ou mais transtornos num mesmo paciente, durante a avaliação médica. Para a Psiquiatria, quanto mais tempo um transtorno mental evolui através dos anos, mais agrega doenças comórbidas, principalmente as psíquicas. Como ilustração dessa afirmativa, cita-se o exemplo do TPB que, ao logo do tempo, apresenta comorbidades como: transtornos do controle de impulsos e de pânico, distimia, drogadição, diferentes transtornos de personalidades, parafilias, TEBH e outros. Os transtornos mentais apresentam comorbidade em cerca de 50% dos casos, e o TPB é um dos diagnósticos no qual mais se observam essas prevalências (Kaplan & Sadock, 1999).

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O TPB, além de apresentar sintomas inerentes a vários transtornos mentais, também concorre com diversas patologias psiquiátricas. As comorbidades tradicionais mais freqüentes associadas ao TPB são os transtornos: de controle de impulso, de personalidade (histriônica, antisocial, narcisista, esquizotípica e paranóide), alimentares (principalmente, a bulimia), de adição (alcoolismo, tabagismo, maconha, cocaína e outras), de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), de humor (distimia, bipolaridade) e de ansiedade (fobia social, estresse pós-traumático, pânico, obsessivo-compulsivo)(Skodol, Siever, Livesley & cols., 2002). Neste trabalho, são enfocadas, apenas, as comorbidades clássicas do TPB com os transtornos de controle de impulsos (TCI), de estresse pós-traumático (TEPT), distímico e do espectro bipolar do humor (TEBH), pelas inter-relações dessas patologias e suas correlações biológicas e ambientais com a multicausalidade do TPB. Paralelamente, verifica-se a possibilidade do TEBH (hoje comórbido com o TPB) ser aspecto de uma mesma entidade clínica. 1.1.3.1 Comorbidade do TPB com o TCI Kapczinsk, Quevedo & Izquierdo (2004) comentaram que os TCI podem ser divididos em dois grupos: o primeiro seria de pessoas cuja impulsividade anormal se expressaria como sintoma discreto. Esse grupo é dividido em três subgrupos: o das neuroses impulsivas (cleptomania, piromania e adição), o das perversões (parafilias) e o das crises catatímicas (um ato de violência isolado e não-repetitivo); o segundo engloba os sujeitos portadores de impulsividade anormal, como uma característica difusa da personalidade. É também dividido em três subgrupos: o das síndromes orgânicas, o da personalidade psicopática (anti-social) e o do transtorno neurótico de caráter (que pode lembrar o que hoje se conhece por transtorno de personalidade limítrofe).

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No DSM-IV-TR (2003), os transtornos de impulsos são subdivididos em subgrupos: eixo I - transtornos por uso de substâncias, bulimia nervosa e transtornos de impulsos não classificados em outra patologia; eixo II - transtornos de personalidade anti-social e limítrofe (borderline). Na CID 10, os transtornos do controle de impulsos são chamados de transtornos de hábitos, sendo os impulsos citados na seção de transtornos de personalidade e comportamento em adultos (F60-F69) (Kapczinsky, Quevedo & Izquierdo, 2004). Nos transtornos de personalidade, estudos de comorbidade apontam a ocorrência de jogo patológico (até 56%), de tricotilomania/dermatotilexomania (até 70%), de transtorno explosivo intermitente, de cleptomania e piromania (esses três últimos sem estudos que quantifiquem os percentuais) (Kapczinsky, Quevedo & Izquierdo, 2004). 1.1.3.2 Comorbidade do TPB com transtorno de estresse Pós-traumático Segundo Kernberg (2000), os bilhões de neurônios e suas interconexões neurais são capazes de uma auto-organização que continua durante toda a vida, embora seja mais ativa na infância. Logo após o nascimento, uma experiência que tenha profundo impacto na trajetória da criança leva vários neurônios a formarem novas conexões dendríticas. Bons cuidados ajudam a manter o volume cerebral ideal que, interagindo com as experiências de vida, promovem ótimos processamento mental e conectividade neuronal, criando um ótimo “padrão de ligação”. Por outro lado, experiências traumáticas, especialmente as severas, sustentadas e repetitivas, levam a danos celulares e à morte prematura de centros-chave e de padrões de ligação que provocam respostas mal adaptativas e irregulares para os eventos comuns da vida. O trauma severo, que causa o TEPT, reconfigura o cérebro irreversivelmente, diminuindo o volume celular nos centros de memória. Dependendo da natureza e do tempo dessas experiências traumáticas, essas pessoas podem desenvolver desordens dissociativas (incluindo personalidade múltipla) ou clivagem objetal, um mecanismo de defesa inscrito na personalidade borderline. Mulheres submetidas ao incesto com o pai ou com familiares mais

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velhos têm um risco maior de desenvolver TEPT e TPB. Mas, essas patologias, no máximo, podem ser consideradas com equifinalidade: causas diferentes podem levar a uma mesma síndrome. História de trauma é mais comum em mulheres hospitalizadas com TPB. Em 2003, nos Estados Unidos, Golier, Yehuda, Bierer & cols. realizaram uma pesquisa ampla, com o objetivo de examinar a relação entre o TPB e o TEPT. Para tanto, avaliaram 180 pessoas entre 18 e 66 anos de idade, 65% homens (63% brancos) com diagnósticos de um ou mais transtornos de personalidade, conforme o DSM-III-R. Os instrumentos utilizados foram: questionário de história de trauma e entrevista clínica estruturada, baseada no DSM-III-R. O questionário pesquisava o envolvimento dos investigados em crime, acidente/lesão, combate militar, desastres, doenças sérias, abuso/agressão física, abuso/agressão sexual, testemunha de violência ou morte e perdas de familiares

ou

amigos

vítimas

de

violência.

Foram

classificados

eventos

em

crianças/adolescentes os que ocorreram até os 18 anos de idade, e eventos na vida adulta, os que ocorreram a partir dos 18 anos. O resultado final apontou o seguinte: - as mulheres sofreram mais com abuso sexual na infância e adolescência e agressão sexual na idade adulta, enquanto os homens tinham sofrido crimes (assalto, violência física, etc.) quando criança e/ ou na adolescência; - houve uma relação entre trauma e transtornos de personalidade - a amostra continha, principalmente, tipos anti-social (TPAS), limítrofe, esquizotípico (TPE) e paranóide (TPP) –, a qual se tornou evidente quando foram comparados indivíduos com e sem esses transtornos. A prevalência de transtorno borderline foi observada em 46% das mulheres e 37% dos homens da amostra; - os sujeitos portadores de TPB e de TPP apresentaram várias comorbidades com outros transtornos de personalidade, em relação aos que não eram portadores daqueles primeiros;

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- nos indivíduos portadores de TPB, em relação aos não portadores, houve prevalência de história de abuso físico em relação ao abuso sexual e de agressão, quando crianças ou adolescentes; -

os portadores de TPAS, em sua maioria, tinham sofrido grande perda familiar na infância ou adolescência. Nenhum dos tipos de transtorno de personalidade restantes tinha associação importante com abuso sexual ou físico;

- os portadores de TPB e TPP possuíam, mais que qualquer outro transtorno de personalidade, relação forte com o TEPT. Comparando os portadores de TPB com os não portadores, houve uma significativa prevalência de TEPT nos primeiros; -

os casos de TEPT foram bastante associados a abusos na infância e a agressões na vida adulta, sendo que esses dados foram discrepantes em relação aos da literatura; nessa pesquisa, só 29% dos portadores de TPB tinham sofrido abuso, quando comparados aos 71% do universo de transtornos de personalidade;

-

uma forte associação entre trauma infantil e TEPT, deduzindo-se que, apesar de o abuso físico infantil ser freqüente em TPB, de acordo com a literatura, os dados encontrados não sugeriram que o TPB devesse ser isolado dos outros transtornos de personalidade como transtorno único do espectro do trauma ou variante do TEPT;

- a maioria dos casos de abuso infantil ou agressão em adultos evoluiu para diversos transtornos de personalidade, TEPT e outras doenças mentais graves; somente um terço desses casos, principalmente de abuso infantil, evoluiu para o TPB, que também poderia ocorrer sem relato de abuso infantil ou agressão em adultos; -

a relação entre eventos traumáticos e doenças mentais, descrita em vários estudos, levou à conclusão de que o abuso na infância é um importante antecedente de transtornos mentais graves e transtornos de personalidade em geral.

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No Brasil, Kapczinsky & Margis (2003) concluíram que o início e o curso do TEPT possuem diferentes estados e, com o passar do tempo, há uma modificação fenomenológica nesse transtorno. Esses autores chamaram a atenção para o fato de haver grandes diferenças no impacto sofrido por uma criança vítima de abuso e o sofrido por um adulto, diante de uma catástrofe, por exemplo. A sintomatologia é variada e dependente da natureza do evento traumático, número de exposições, a vulnerabilidade individual, a reação desse ao fator estressor, a rede de apoio após o evento traumático, dentre outros. Os pesquisadores supracitados lembraram que, num estudo realizado nos Estados Unidos da América (EUA), com critérios do DSM-III-R, a taxa de prevalência TEPT por toda a vida variou entre 10,4% a 12,3%, nas mulheres, e 5% a 6%, nos homens. Eles também evidenciaram, através da literatura científica, que as mulheres, durante toda a vida, sofrem mais abusos que os homens, justificando essas diferenças comparativas. O abuso físico, psicológico ou sexual aumenta o risco de problemas de saúde, tais como o transtorno de estresse pós-traumático e os estados-limite. A vitimização leva à precariedade da saúde das mulheres abusadas e as expõe a situações de risco (Golier, Yehuda, Bierer & cols., 2003; Populations Reports, 2006). No Population Reports (2006), foram apontadas três conseqüências do abuso contra as mulheres: 1) os efeitos do abuso, mesmo cessado, persistem no tempo; 2) quanto mais grave é o abuso, mais impacto tem na saúde; 3) diferentes tipos de abuso e múltiplos eventos, no tempo, são cumulativos. As mulheres abusadas, principalmente entre os sete e oito anos de idade, freqüentemente e por longo tempo desenvolvem o transtorno de estresse pós-traumático, com sintomas de ansiedade aguda e depressão. Evoluem, na maioria dos casos, para o transtorno de personalidade borderline ou estado-limite. Durante suas vidas, tais mulheres vão apresentar sintomas depressivos, fobias, apatia emocional, impulsividade, irritabilidade e

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sintomas paranóides transitórios. Elas tornam-se adeptas de drogas de abuso e/ou psicotrópicos e se expõem a situações de risco. Procuram mais os serviços de saúde, submetendo-se a consultas, internações, cirurgias e piorando seu desempenho social e profissional com dificuldades econômicas e dependência de outros. Sua autonomia e direitos são restritos e diminui-se ou exclui-se sua participação no desenvolvimento sociopolítico em geral (Kaplan & Sadock, 2007). 1.1.3.3 Comorbidade do TPB com o transtorno distímico (Distimia) A distimia é um tipo de depressão crônica, não-episódica, com sintomas menos intensos que a depressão maior, incapacitante e que acomete cerca de 3 a 6% da população geral. Esse quadro pode iniciar em qualquer fase da vida, sendo mais comum antes dos 25 anos, e é duas vezes mais prevalecente em mulheres. A distimia aumenta o risco para depressão maior e costuma co-ocorrer com diversas patologias físicas e psíquicas, principalmente com os transtornos de ansiedade, afetivos e de personalidade. Entre os transtornos de personalidade, o TPB costuma apresentar comorbidade com a distimia na maioria dos casos (Kaplan & Sadock, 1999). Bergeret (1998) usou o termo “depressividade” para denominar o estado depressivo de base do estado limítrofe, podendo-se inferir que seria análogo à distimia. A depressão do TPB, segundo Kaplan e Sadock (1999), além do humor deprimido, também possui uma mistura de raiva, de solidão e de vazio crônicos (disforia crônica), os quais podem ser interrompidos por pânico ou desespero intensos e raramente podem ser aliviados por períodos de bem-estar ou satisfação. Tanto no TPB quanto na distimia, os portadores experimentam essa disforia que interferem em suas vidas, causando alterações da personalidade ou vice-versa, ficando difícil o diagnóstico da primeira patologia. As classificações médicas, CID10 (1993) e o DSM-IV-TR (2003), apesar de suas diferenças, consideram que a distimia é um transtorno afetivo, unipolar, crônico (presente por, no mínimo dois anos, em adultos e um ano, em crianças com humor irritável), de início

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precoce ou tardio, sintomatologicamente mais branda que a depressão, cujos sintomas principais são: humor depressivo leve a moderado, irritabilidade, ausência de sintomas psicóticos, baixa energia, fatigabilidade, perda de interesse e de prazer, baixa auto-estima, insônia e diminuição da capacidade de concentração. Em contrapartida, Maj, Akiskal, Lopez-Ibor & cols. (2000) defenderam que há um relacionamento dimensional entre os transtornos de personalidade e de humor e que existiria um continuum do espectro de humor, que iria desde o temperamento depressivo (forma subliminar ou transtorno de personalidade depressiva) até o transtorno distímico (forma sintomática ou liminar) ou ir mais adiante e culminar nos transtornos depressivo maior ou afetivo bipolar. Ainda é comum ocorrer episódios depressivos plenos em distímicos, o que é cognominado de “depressão dupla”. Além disso, Kaplan e Sadock (2007) afirmaram que estudos prospectivos em crianças distímicas detectaram que 15 a 20% delas, na pós-puberdade, desenvolveram episódios hipomaníacos, maníacos ou mistos. Outros estudos com portadores de distimia revelaram que 20% progrediram para o transtorno depressivo maior, 15% para o transtorno bipolar II (hipomania e depressão maior) e menos de 5% para o transtorno bipolar I (mania e depressão menor). Maj, Akiskal, Lopez-Ibor & cols. (2000) comentaram que distímicos com quadros hipomaníacos, após o uso de antidepressivos (geralmente os ISRS), têm familiares bipolares e podem ser considerados integrantes do chamado espectro bipolar brando ou soft. O diagnóstico de transtorno distímico não deve ser feito caso ocorra ou tenha ocorrido episódios hipomaníaco, maníaco ou misto durante a vida do sujeito. Se isso acontecer, o diagnóstico passa a ser transtorno bipolar do humor.

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1.1.3.4 Comorbidade do TPB com o TBH Para Maj, Akiskal, Lopez-Ibor & cols. (2000), a prevalência de mania e de hipomania na população geral durante toda a vida é de 1.2% e de TPB, 2-3%. Mas quando os critérios diagnósticos são expandidos e inclui-se o espectro bipolar ampliado, a prevalência dos quadros bipolares aumenta para 8.8%. Vários estudos têm citado a co-ocorrência entre transtornos bipolar e de personalidade borderline. Segundo Magill (2004), 31% dos pacientes portadores de TPB têm uma história de episódios espontâneos de mania ou hipomania. Conforme Magill (2004), Akiskal sugeriu que o espectro bipolar do humor contempla os temperamentos hipertímicos e ciclotímicos, que costumam aparecer na adolescência e que são mal diagnosticados como transtornos de personalidade. Magill (2004) também citou Gaviria, para quem pacientes acometidos, precocemente, de TBH e de TPB teriam predisposição genética a transtornos afetivos, os quais seriam desencadeados pela instabilidade emocional do TPB. O autor cita também Gunderson & Phillips, como defensores de que o TPB e os transtornos afetivos coexistem, mas não são apresentações clínicas da mesma patologia. Com a ampliação do conceito de bipolaridade, que deve ser apresentado na edição do DSM–V, o limite entre ambos os transtornos ficou tênue. Um diagnóstico preciso só será possível caso se estude, acuradamente, a história da doença, do sujeito e da família, além das avaliações médicas para afastar enfermidades físicas. Então, faz-se mister que as pesquisas sejam intensificadas na área para que as classificações diagnósticas possam refletir, clinicamente, as entidades psicopatológicas (Magill 2004). Para Dal’Pizol, Lima, Ferreira & cols. (2003), no diagnóstico diferencial, o transtorno bipolar tipo II aparece ao lado da depressão maior e da distimia. Lieber (2006) afirmou que a desordem bipolar I (mania com depressão menor), a desordem bipolar II (com episódios de hipomania mais branda e depressão maior) e a ciclotimia (com episódios atenuados de

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depressão e, algumas vezes, hipomania) são definidas por critérios explícitos no DSM-IV. Juntas, essas três condições têm uma prevalência de 3% a 4% na população em geral, sendo que grande parte desse percentual demonstra formas atípicas ou brandas de distúrbios episódicos. São freqüentemente resistentes a um padrão de tratamento antidepressivo, que até piora suas condições algumas vezes. O Consenso Internacional de Barcelona, além do DSM-IV e da CID 10, foi sumarizado por Maj, Akiskal, Lopez-Ibor & cols. (2000) que apresentaram os seguintes subtipos bipolares: psicose bipolar incongruente com o humor, bipolar I (mania), mania mista (sintomas depressivos e maníacos por mais de dois dias), bipolar II (hipomania por 2 ou mais dias), hipomania induzida por tratamento somático (drogas de abuso ou outras substâncias), ciclagem rápida, ciclotimia e hipomania breve recorrente. Lopes, Skaf, Câmara & cols. (2002) explicaram que, freqüentemente, o TPB ocorre paralelamente ao transtorno de humor, e se os critérios de identificação de ambos forem satisfeitos, eles podem ser diagnosticados. A apresentação transeccional do TPB pode ser imitada por episódios de transtorno do humor; por isso, o clínico deve empregar o diagnóstico adicional de TPB, não se baseando somente na apresentação transeccional, mas verificando se o padrão de comportamento tem um início precoce e um curso duradouro. Segundo Berk, Moss, Dodd & cols. (2005), nos Estados Unidos, em 2000, a prevalência do transtorno bipolar I e II era de 3.4% na população. Porém, um terço desses casos, antes da pesquisa, havia sido diagnosticado erroneamente, como transtorno depressivo recorrente; em 49%, os bipolares não foram reconhecidos, nem diagnosticados corretamente; 35% da amostra de bipolares tinham levado 10 anos para serem diagnosticados. Esses autores informaram que, em outro estudo, realizado em 2003, na Austrália, foi constatado que 69% da população bipolar levava, em média, três a quatros anos para ser diagnosticada; recebiam, antes do diagnóstico correto, os diagnósticos de depressão (60%), ansiedade (26%),

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esquizofrenia (18%), transtornos de personalidades borderline ou antisocial (17%). A ocorrência de diagnósticos hipotéticos e distintos retarda o adequado manejo terapêutico, prolongando os sintomas dos pacientes que se deterioram cognitivamente, prejudicando as famílias e provocando aumento nos gastos públicos em geral. As classificações DSM-IV (APA) e CID-10 (OMS) não concordam em todos os critérios diagnósticos; pacientes que preenchem uns critérios em uma classificação podem não preenchê-los em outra. Em muitos casos, o paciente bipolar é mal diagnosticado como portador de depressão, por omitir episódios hipomaníacos e maníacos e por considerar que a fase de humor elevado não é patológica. Para atenuar o risco de diagnósticos incorretos, Berk, Moss, Dodd & cols. (2005) sugeriram que, desde o primeiro episódio de humor, sejam aplicados questionários de transtorno bipolar. Esses autores também alertaram no sentido de que fatores como fenomenologia complexa, idade do início da doença, comorbidades e heterogeneidade de apresentações bipolares podem ofuscar o diagnóstico do bipolar. De acordo com esses autores, é fundamental que o diagnóstico seja precoce, a fim de que: evite-se o impacto negativo da educação no potencial de crianças e adolescentes; o tratamento previna alterações neuropsicológicas através do efeito neuroprotetor dos psicofármacos (por ex: estabilizadores de humor e antipsicóticos atípicos); o diagnóstico incorreto de transtorno depressivo unipolar leve ao uso de antidepressivos que podem desencadear surtos hipomaníacos ou maníacos, prejudicando a cognição e desempenho desses sujeitos; controle-se o risco de suicídio, que é 12 vezes mais presente nos bipolares em relação à população geral. Geralmente, o primeiro episódio bipolar é de evolução insidiosa, podendo apresentar sintomas depressivos, hipomaníacos, maníacos ou mistos, com ou sem psicose. Daí, a necessidade do diagnóstico correto desde o início dos primeiros sintomas. As comorbidades mais comuns que precedem o primeiro surto bipolar são: o abuso de substâncias (42- 71%),

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transtornos de ansiedade (42-93 %) e transtorno de déficit e atenção (87%). Deve-se investigar a história (familiar) de bipolaridade em familiares, uma vez que essa ocorrência é freqüente e porque há dificuldade de se identificar se os familiares são depressivos ou bipolares (Berk, Moss, Dodd & cols., 2005). A confusão diagnóstica aumenta quando a bipolaridade é analisada com base nas fases da vida. Na infância, os sintomas bipolares mais freqüentes são estados mistos, disforia e ciclagem rápida, com menos depressão e mania. Em crianças, ocorrem irritabilidade, agressividade, explosividade e labilidade emocional. Já na adolescência, são mais freqüentes a mania mista e a ciclagem rápida, além de episódios depressivos, característicos de depressão maior (Maj, Akiskal, Lopez-Ibor & cols., 2000). Segundo critérios do DSM-IV-TR (2000/2003) e da CID-10 (1993), mesmo que durante a vida o indivíduo só apresente um único episódio hipomaníaco, maníaco ou misto (que pode ser desencadeado por antidepressivos), ele é considerado bipolar. Além disso, diversas comorbidades podem se apresentar com sintomas ciclotímicos. Autores como Lara (2004) e Maj, Akiskal, Lopez-Ibor & cols. (2000) defenderam a existência de um espectro bipolar do humor, no qual estariam pacientes portadores desde a desordem depressiva até a maníaca. Para esses estudiosos, diversos transtornos de personalidade, principalmente o borderline, estariam no espectro bipolar do humor. Complementando, Berk, Moss, Dodd & cols. (2005) lembraram que o transtorno do espectro bipolar do humor é particularmente comum em certos subgrupos de pacientes, com casos de até 72% de depressão atípica e 50% de pacientes resistentes ao tratamento da depressão. Berk, Moss, Dodd & cols. (2005) alertaram para a presença de estados mistos de humor, tais como depressão ou disforia com aumento de atividade motora, sono reduzido e pensamentos rápidos, que também podem ser causados por ansiedade, por desordens de personalidade, pelo uso de antidepressivos ou de drogas de abuso. Além disso, destacaram

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que uma das diferenças entre estados mistos de humor e mania pura é o suicídio, um risco maior nessa última. Para eles, o diagnóstico acurado da desordem bipolar apresenta vários problemas, principalmente quando o episódio de humor é visto isoladamente, constituindo fase específica de uma doença complexa. Dados anteriores e informações colaterais ao acompanhamento clínico desses sujeitos são cruciais para a avaliação ótima no processo diagnóstico. Em decorrência disso, o diagnóstico correto culmina com o tratamento adequado e um impacto positivo na vida dos indivíduos bipolares. Atualmente, pesquisadores como Maj, Akiskal, Lopez-Ibor & cols. (2000) lutam para resolver os problemas diagnósticos, partindo da definição apropriada de bipolaridade para responder, com consistência, se o portador de TPB é ou não uma representação clínica do espectro bipolar do humor. Autores como Akiskal e Deltito (citados por Magill, 2004) defenderam que o TPB faz parte do espectro bipolar e deve ter uma abordagem psicofarmacológica semelhante à do transtorno bipolar do humor (TBH). Lara (2004) explicou que uma avaliação mais completa do TBH deve incluir: sinais e sintomas; curso dos sintomas e das manifestações do comportamento; temperamento e estilo; história familiar que avalie componentes genéticos de risco, ou seja, fatos que aumentem a chance de ocorrer algum evento; fatores de risco ambientais, como traumas, perdas recentes; resposta a fármacos; exames complementares, quando indicados. 1.2 Perspectiva Psiquiátrica Atual do TPB Gunderson (2005) relatou que estudos envolvendo gêmeos acusaram haver uma expressiva prevalência de TPB em monozigóticos, em relação aos dizigóticos. Por isso, ele defendeu que há um fator hereditário entre os fatores causais do TPB e podem estar relacionados com a impulsão e a agressão verificadas em pessoas da família biológica dos pacientes em questão. Para esse autor, fatores de risco potencial para TPB seriam: genes,

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predisposição ou temperamento infantis, reatividade ou excitação do sistema nervoso autônomo, responsividade neurotransmissora, funcionamento e estrutura cerebrais, fatores perinatais, hormônios, toxinas ambientais, fatores cognitivos e outros neuropsicológicos, psicopatologia na infância ou adolescência, traços ou estrutura de personalidade, abordagem familiar inadequada ou defeituosa, negligência ou abuso infantil, influências de pares, estado socioeconômico e desintegração familiar e comunitária. Dal’Pizol, Lima, Ferreira & cols. (2003) explicaram que as teorias modernas sobre o construto citam fatores genéticos inespecíficos; porém, talvez sejam mais específicos os problemas do desenvolvimento associados à negligência emocional e, freqüentemente, ao abuso na infância. Pacientes com TPB são bastante disfuncionais, com um quadro clínico intimamente ligado ao contexto interpessoal, observando-se, principalmente, uma alta sensibilidade ao estresse da realidade externa. A percepção da perda iminente pode provocar raiva súbita, acusações depreciativas, paranóides e atos destrutivos. 1.2.1 Psicopatologia médica do TPB Fatores como a genética e a etiologia dos sintomas centrais podem influenciar o diagnóstico psiquiátrico do TPB em sua pluridimensionalidade. Esses fatores são similares aos que fundamentam a formulação diagnóstica do DSM-IV-TR (2003) em seus cinco eixos: transtornos clínicos; transtornos de personalidade e retardo mental; condições médicas gerais; problemas psicossociais e ambientais; avaliação global do funcionamento. 1.2.2 Genética A partir do século XIX, psiquiatras observaram que transtornos psiquiátricos eram mais freqüentes em determinadas famílias. Os estudos sobre o DNA demonstraram que variações genéticas específicas são importantes no aparecimento de doenças, inclusive as mentais. As pesquisas genéticas contemporâneas em Psiquiatria visam: investigar se susceptilidades individuais causam essas doenças; descobrir quais genes poderiam estar envolvidos nesse

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processo e determinar se os genes interagem com o ambiente para o desenvolvimento dessas patologias (Bussato Filho, 2006). Estudos de adoção, de gêmeos e familiares de populações borderlines concluíram que a concordância genética desses casos é fortemente observável, sendo em gêmeos monozigóticos entre 35 e 38%, e em dizigóticos, entre 7% e 11%; é cinco vezes mais prevalecente em familiares de TPB, com um número significativo de portadores de traços de impulsão agressão. Quando todos os estudos possíveis são avaliados, pode-se encontrar o risco de morbidade em familiares de primeiro grau de borderlines em torno de 11,5%. O fator ambiente não modificou significativamente esses achados. Dessa forma, novos estudos podem ser realizados, buscando correlacionar fatores do temperamento com traços dimensionais da personalidade (Skodol, Siever, Livesley & cols., 2002). A agressão impulsiva foi estudada em gêmeos adotados por pais diferentes, constatando-se que ela é hereditária e está associada à modulação de neurotransmissores. O gene receptor 5-HT1b está relacionado com tentativas de suicídio; aquele e os receptores 5HT1a e 5HT2a e seus alelos “L” e “S” estão associados à impulsividade. Estudos de gene receptor D4 (dopaminérgico), na população em geral, relacionaram-no com o comportamento de busca de novidades, que está presente em análises dimensionais de temperamento. Esse comportamento é associado a baixos níveis de dopamina e a altos níveis de noradrenalina (Skodol, Siever, Livesley & cols., 2002). Esses autores defenderam que o TPB é influenciado por dimensões genéticas múltiplas, que diferem em seus efeitos, resultando em apresentações fenotípicas diversas. Por isso, segundo eles, estudos realizados na Noruega, nos EUA e no Japão sugerem que se deve estabelecer a relação entre os traços descritivos das classificações e das mensurações dimensionais com os mecanismos patogenéticos da personalidade borderline.

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1.2.3 Aspectos etiológicos da sintomatologia central do TPB A multicausalidade dos transtornos psiquiátricos, inclusive do TPB, aponta para a interação

entre

fatores

genéticos

e

ambientais,

como

responsável

pela

eclosão

sintomatológica. No quadro do TPB, observa-se que, em muitos casos, há presença de familiares portadores de instabilidade afetiva e de impulsividade, bem como de eventos traumáticos relacionados com abusos em geral (Kapczinsky, Quevedo & Izquierdo, 2004). De acordo com esses autores, estudos de casos com portadores de lesões neurológicas específicas, cuja sintomatologia se manifesta, especialmente, na impulsividade, auxiliam a identificação das estruturas que participam na gênese desse sintoma. A maioria dos estudos neuropsiquiátricos não aborda diretamente as estruturas neurológicas da impulsividade, como faz com a agressividade e com o transtorno obsessivo-compulsivo. Entretanto, esses estudos permitem refletir sobre a impulsividade. As estruturas neuroanatômicas mais estudadas em impulsividade são o córtex préfrontal, o hipotálamo, o tálamo, a amígdala e os núcleos da base, entre outras. Casos clínicos de lesão de córtex pré-frontal na literatura mostram alterações de personalidade e de comportamento (Kapczinsky, Quevedo & Izquierdo, 2004). Skodol, Siever, Livesley & cols. (2002) afirmaram que a agressão impulsiva é a característica central de transtornos de personalidade (principalmente antisocial e borderline) e do transtorno de controle de impulsos. A instabilidade afetiva é definida como a acentuada reatividade emocional aos eventos ambientais, particularmente fatos, como separação, frustração e perdas. Quando esse sintoma coexiste com a impulsão agressiva, constitui o sintoma central do TPB. Em decorrência disso, o TPB expressa comprometimento no relacionamento interpessoal, bem como dissociação e ideação paranóide, que afetam várias áreas da vida, como a educação, o trabalho e relacionamentos em geral. Áreas córtico-límbicas e neurotransmissores se correlacionam,

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tanto com a instabilidade afetiva, quanto com a impulsão-agressão, o que é comprovado pela infusão de substâncias que ativam ou embotam a resposta daquelas regiões, através de reações específicas a psicofármacos determinados. Estudos de pacientes portadores de TPB e de seus familiares concluíram que, tanto a impulsividade, quanto a instabilidade afetiva são significativamente prevalecentes neles (Zanarini & cols., 1998; Torgersen & cols., 2000, citados por Skodol, Siever, Livesley & cols., 2002). Esses pesquisadores afirmaram que sujeitos portadores de TPB possuem comorbidades com transtornos do controle de impulso e impulsivo-agressivos, com alterações em determinadas áreas cerebrais e desregulação de neurotransmissores, como a serotonina, a dopamina e a noradrenalina. 1.2.4 Fisiopatologia do TPB Conquanto a neuroanatomia, a neuroquímica, o metabolismo e a neurofisiologia das doenças psiquiátricas sejam complexas e ainda não tenham sido inteiramente compreendidas, evidências acumuladas sugerem que o sistema límbico, os neurotransmissores, hormônios e circuitos neurais estejam envolvidos na patogenia dos transtornos psiquiátricos (Camargo, 2001; Kapzinsky, Quevedo & Izquierdo, 2004; Kaplan & Sadock, 2007). Conforme Bussato Filho (2006), há evidências que envolvem o sistema límbico na fisiopatologia da emoção humana e da doença psiquiátrica. Quando ocorre a estimulação elétrica no cíngulo anterior (sistema límbico), alteram-se respostas autônomas e de ansiedade em humanos. Os potenciais evocados corticais e os registros por microeletrodos no giro cingulado do homem demonstram resposta alterada à percepção de estímulos dolorosos. Isso ocorre em portadores de transtorno de personalidade (principalmente o borderline) que têm um alto limiar de dor e referem não sentir dor no momento da prática de autolesões. Conforme Kapczinsky, Quevedo & Izquierdo (2004) e Del-Bem (2005), constatações científicas se referem ao inter-relacionamento entre áreas distintas da região cerebral, como o

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córtex frontal orbital, o córtex cingulado anterior e a tonsila cerebelar. O córtex frontal orbital, por exemplo, tem papel crucial no refreamento da explosão impulsiva, enquanto o córtex cingulado anterior ativa outras regiões para responder ao conflito: relaciona odores e visões com a memória de emoções vividas, participa da reação emocional à dor e regula a agressividade. A porção posterior é associada a funções mnêmicas/ visuoespaciais. Modelos neuroquímicos de transtornos afetivos e de ansiedade revelam a relação deles com disfunções de serotonina (principalmente), de noradrenalina, de dopamina e de acetilcolina (Kaplan & Sadock, 1999). A serotonina tem um relação com comportamentos agressivos e/ou impulsivos em pacientes com transtorno de personalidade. A dopamina tem um papel importante no aparecimento de sintomas positivos esquizofreniformes (distorções cognitivas e perceptuais) e de agressividade. A noradrenalina e a vasopressina estariam envolvidas na agressão, e a acetilcolina seria relacionada com a (hiper) sensibilidade ambiental ou instabilidade afetiva (Bussato Filho, 2006). Pode-se dizer, de maneira bastante simplificada, que a investigação sobre o papel de um determinado neurotransmissor em mecanismos fisiológicos e patológicos poderia ser feita por meio do uso de drogas que ativam ou bloqueiam receptores específicos, pré e/ou póssinápticos. Além disso, a averiguação de seus precursores e metabólitos também seria ferramenta útil para a exploração da função de determinado neurotransmissor (Del-Ben, 2005). A desregulação da função serotonérgica tem sido envolvida na etiologia de vários transtornos mentais, entre eles, os de ansiedade, a depressão e os transtornos relacionados com o controle de impulso e a agressão impulsão. “Em voluntários saudáveis, a depleção aguda de triptofano, um aminoácido proveniente da dieta e precursor de serotonina (5-HT) induziu aumento da velocidade de processos

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psicomotores, mas tornou a escolha do comportamento mais lenta” (Roger & cols., 1999). Os autores concluíram que a serotonina normalmente reduz a velocidade de processos psicomotores nos circuitos dorso-fronto/estriatal e que o prejuízo da função serotonérgica seria um dos mecanismos de resposta impulsiva (Del-Ben, 2005). A serotonina (5-hidroxitriptamina [5-HT]) é o neurotransmissor mais enfocado nos estudos da personalidade e de seus transtornos. Pesquisas sugerem um importante papel para a 5-HT na agressão e na impulsividade (tentativas de suicídio e autolesões). Os níveis de serotonina estão inversamente relacionados com a agressão e/ou com a impulsividade. Portanto, quanto menor a concentração de serotonina, maior a propensão para a agressão ou impulsividade (Kapczinsky & cols., 2004). Pesquisadores avaliaram pacientes com TPB após a administração de mclorofenilpiperazina (m-CPP), um agonista serotoninérgico parcial. Observaram que a administração de m-CPP resultou em efeitos positivos significativos sobre os sintomas clínicos dos pacientes, sugerindo, segundo os autores, uma disfunção serotoninérgica no TPB (Del- Ben, 2005). Para autores como Coccaro, Astill, Herbert & cols. (1990) e Lee & Coccaro (2001), há uma relação direta entre a noradrenalina e a agressividade. A primeira evidência estaria nos efeitos "anti-agressividade" dos beta bloqueadores; a segunda estaria relacionada à observação clínica de que o aumento da função noradrenérgica central está associada com a agitação e a irritabilidade, particularmente em indivíduos com TPB; a terceira seria a correlação positiva entre 3-metoxi-4hidroxifenilglicol (MHPG) reduzido no líquor e uma história de agressividade em recrutas navais portadores de transtorno de personalidade, quando comparados a voluntários saudáveis.. O sistema dopaminérgico está associado aos mecanismos de psicose, de recompensa e de reforço comportamental em animais e homens. Estudos com portadores de transtornos de

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controle de impulsos (TCIs), doença de Parkinson (DP) e lesões fronto-límbicas e dos gânglios basais foram conclusivos para o entendimento de que a disfunção dopaminérgica central – diminuição da dopamina – seria responsável pela busca de recompensa, pela impulsividade e pela compulsividade (jogo, sexo, comer patológicos, etc.) encontrados nesses pacientes. Por outro lado, consumidores de cocaína, anfetaminas ou outros dopaminérgicos apresentariam, durante seu uso, sintomas psicótico-símiles, tais como, ideação paranóide, alucinações ou até delírios persecutórios mais sistematizados (Shultz, 1985; Skodol & Gunderson, 2005; Willians & Potenza, 2008 ). Indivíduos com TPB e esquizotípico costumam apresentar distintas respostas afetivas, cognitivas e perceptuais a estimulantes dopaminérgicos e noradrenérgicos. Schulz & cols. (1985) administraram anfetamina em pacientes com transtornos de personalidade com ou sem comorbidade com o TPE e detectaram as seguintes respostas na observação: 1) pacientes com TPB (sem traços esquizotípicos) demonstraram mais sensibilidade comportamental à anfetamina, com aumento do bem-estar e melhora global nos escores psicopatológicos; 2) pacientes com TPB com comorbidade com o TPE pioraram os sintomas psicóticos-símile e os escores psicopatológicos. A melhora global foi típica de sujeitos diagnosticados só como borderlines, sugerindo haver grandes diferenças biológicas entre indivíduos com TPB com e sem comorbidade com o TPE (Shultz, 1985; Skodol, Siever, Livesley & cols., 2005). Uma das explicações para a melhora dos sintomas em borderlines, após uso de anfetaminas, também pode ser justificado pelo fato de essas substâncias serem estimulantes e otimizadoras de antidepressivos usados em tratamentos do TPB. Sabe-se, porém, que o uso abusivo de dopaminérgicos em borderlines costuma aumentar a dopamina, podendo levar, também, a sintomas psicóticos nos predisponentes (Kaplan & Sadock, 2007).

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1.2.5 Exames complementares em Psiquiatria A avaliação psicopatológica em Psiquiatria se faz em um processo investigatório (Dalgalarrondo, 2000), realizado através de: anamnese (histórico síndrômico e antecedentes pessoais, familiares e sociais); exame psíquico ou do estado mental atual; avaliação física; avaliação neurológica; psicodiagnóstico (ex: Teste de Rorschach) e exames complementares. A polissonografia, em portadores de TPB, costuma apresentar achados semelhantes aos dos deprimidos em geral, como diminuição da latência do sono REM ou lentificação de ondas cerebrais. O potencial evocado P 300 (estimulação auditiva), quando há comorbidade entre o TPB e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, detecta alterações relacionadas aos critérios para a segunda patologia. Os achados neurofisiológicos dos pacientes com TPB não apresentam especificidade em relação a outros transtornos psiquiátricos, já que, nas diversas fases de humor, os dados anormais são similares a alterações encontradas em episódios depressivos, ansiosos, disfóricos, hipomaníacos, maníacos e/ou mistos, com ou sem psicose. Estudos como os de Stahl (2000) e de Yudofsky & Hales (2006) sugeriram que os metabólitos da noradrenalina são deficientes em alguns pacientes com depressão; mas isso não tem sido observado de modo uniforme. Del-Bem (2005), Kapczinsky & cols. (2004) explicaram que o metabólito da 5HT, ácido 5-hidróxiindolacético (5HIAA), está diminuído no líquor de pacientes deprimidos. Em exames mais detalhados, contudo, descobriu-se que só alguns pacientes deprimidos possuem baixa de 5HIAA no líquor e tendem a apresentar comportamento impulsivo, como tentativas de suicídio de natureza violenta. Posteriormente, Del-Ben (2005) relatou que o 5HIAA está diminuído em outras populações de indivíduos com crises violentas de descontrole de impulsos, mas sem depressão, principalmente incendiários com transtorno de personalidade anti-social e aqueles com transtorno de personalidade borderline e comportamento autodestrutivo. Assim, o 5HIAA diminuído no líquor pode estar mais associado a problemas de controle de impulsos do que à depressão (Stahl, 2000). A

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dopamina refere-se mais a sintomas psicóticos (nível alto) e à busca de novidades (nível baixo). A ingestão de anfetamina (agonista dopaminérgico) desencadeia sintomas psicóticos em portadores de TPB, num nível alto em relação à população geral. Maus tratos na infância e abuso ou negligência repetitivos alteram a funcionalidade cerebral em desenvolvimento, levando a modificações nos mecanismos de gerenciamento do estresse e provocando distúrbios em: glicocorticóides (ex:cortisol), noradrenalina, vasopressina e ocitocina. Essas alterações são reveladas em exames, tais como aumentos séricos de noradrenalina e cortisol e em exames de imagens, na idade adulta, através de diminuição volumétrica em estruturas neocorticais e límbicas (Bussato Filho, 2006). A beta-endorfina está correlacionada com a mediação da recompensa e com o reforço em vários portadores de TCIs, tais como jogadores patológicos. Durante jogos patológicos, esses indivíduos costumam apresentar níveis elevados de beta-endorfina. Por isso, há uma resposta eficaz dos antagonistas opióides, como a naltrexona e a nalmefene, no controle de impulsão compulsão desses pacientes. Em pacientes borderlines, costuma haver uma resposta insatisfatória do estímulo ao aumento da prolactina através da infusão de agonistas serotoninérgicos, como fenfluramina e m-clorofenippiperazina. Pessoas com traços impulsivos podem apresentar níveis altos de testosterona e estrógenos. Portadores de TPB, deprimidos, podem ter resultados anormais no teste de supressão da dexametasona (Bussato Filho, 20006; Williams & Potenza, 2008). Quando surgiram os primeiros exames de imagens, eles eram usados na detecção de lesões que pudessem justificar as síndromes de causas físicas, sendo úteis, portanto, à neurologia. Com a sofisticação dos aparelhos, descobriu-se que as doenças psiquiátricas também poderiam apresentar alterações estruturais e/ou funcionais que justificassem quadros clínicos com sintomas predominantemente psíquicos (Camargo, 2001; Kapczinsky, Quevedo & Izquierdo, 2004).

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A dificuldade de quantificar sintomas e sinais na avaliação do estado mental é ilustrada pela subjetividade verificada nas classificações diagnósticas médicas e nos testes neuropsicológicos. Apesar de ainda não se saber, com certeza, os circuitos envolvidos nos transtornos psiquiátricos e como eles se caracterizam em termos bioquímico, metabólico e perfusional,

os exames de imagens tomografia por emissão de fóton único (SPECT),

tomografia por emissão de pósitrons (PET) e ressonância magnética funcional (RNMf) têm ajudado a detectar as áreas cerebrais que estão hipoperfundidas (hipoativas) ou hiperperfundidas (hiperativas), correlacionando-se as alterações estruturais e/ou funcionais encontradas com os sintomas psiquiátricos investigados (Buchpiguel, 2000; Kaczinsky, Quevedo & Izquierdo, 2004; Bussato Filho, 2006; Kaplan & Sadock, 2007). Além da investigação diagnóstica cerebral, os exames de imagens também são úteis à Psiquiatria e a outras especialidades para a avaliação prognóstica, para a resposta terapêutica, estratificação de risco, detecção de lesões vasculares ou tumores e chances de terapia clínica ou cirúrgica (Camargo, 2001). Os transtornos de personalidade e do controle de impulsos são cada vez mais pesquisados e avaliados por meio de exames de imagens, que detectam áreas córtico-límbicas hipo ou hiperreativas ratificadores da relação entre elas e as síndromes psiquiátricas (Buchpiguel, 2000; Camargo, 2001; Kapczinsky, Quevedo & Izquierdo, 2004). Dados mais recentes obtidos por neuroimagens reiteram a importância dos sistemas límbico e paralímbico na doença psiquiátrica. Neuroimagens funcionais sugerem que alterações metabólicas no cingulado anterior podem diferenciar o estado depressivo do nãodepressivo em indivíduos afetados. Estudos realizados com base em PET sugerem que a remissão da doença pode estar associada a um aumento do fluxo sangüíneo cerebral no córtex pré-frontal dorsolateral esquerdo e no córtex pré-frontal medial, inclusive o cingulado anterior (Kaplan & Sadock, 1999; Kapczinsky, Quevedo & Izquierdo, 2004; Busatto Filho, 2006).

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Estudos com PET e d-fenfluramina (agonista serotoninérgico) mostraram aumento da atividade metabólica no córtex frontal ventro-medial em voluntários normais, e uma falta de resposta (hipoperfusão/hipoativação) em pacientes agressivos e impulsivos com TPB (Siever & cols., 1999; Soloff & cols., 2000, citados por Del-Bem, 2005). Os estudos de neuroimagem funcional para áreas corticais acompanham os achados estruturais, no que diz respeito ao lobo frontal. Há fortes evidências de diminuição de fluxo sangüíneo e do metabolismo nessa região, tanto em depressivos unipolares/bipolares como em transtorno de personalidade borderline. Os bipolares em fase maníaca, os portadores de transtorno de personalidade antisocial e os impulsivos costumam ter exames perfusionais compatíveis com aumento do fluxo sangüíneo cortical e do metabolismo na região frontal (Buchpiguel, 2000; Kapczinsky, Quevedo & Izquierdo, 2004; Goethals, Audenaert, Jacobs & cols., 2005). O SPECT de portadores de TPB costuma detectar alterações nas seguintes áreas cerebrais: cortical frontal (pré), temporal e/ou parietal; diminuição de volume de hipocampo (e diminuição da amígdala, quando há comorbidade com o transtorno de dissociação da identidade); giro do cíngulo (hiperperfusão). Além dessas alterações, o TPB comórbido com o TEPT apresenta outras áreas cerebrais comprometidas, além daquelas, como: tálamo e giro frontal medial (Lepping & Swinton, 2004; Kapczinsky, Quevedo & Izquierdo, 2004; Goethals,Audenaert, Jacobs & cols., 2005; Brendel, Stern & Silbersweig, 2005; Vermetten, Schmahl, Lindner & cols., 2006; Mccloskey, Phan & Coccaro, 2007). Os episódios de humor são similares a episódios convulsivos, apresentando maior responsividade elétrica a um mesmo estímulo repetido através do tempo. Por isso, estressores resultariam em kindlings subclínicos que ocasionariam episódios maníacos ou depressivos devido a episódios repetidos de estresse ou estimulação (Kapczinsky , Quevedo & Izquierdo, 2004).

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Autores, principalmente do grupo de Akiskal, sugerem que o TPB, segundo os critérios diagnósticos do DSM-IV (1995), pode ser incluído no grupo de transtornos do espectro bipolar do humor. Eles citam algumas razões para essa teoria: 1) a instabilidade afetiva desses pacientes é, geralmente, semelhante a um episódio misto de humor; 2) muitos pacientes com TPB apresentam descargas epileptóides em eletroencefalogramas, o que pode representar um tipo de efeito kindling, o qual, há muito tempo, é associado à fisiopatologia dos TPH; 3) piora do descontrole comportamental após o uso de amitriptilina (um antidepressivo tricíclico que diminui o limiar convulsivo) em pacientes TPB, fenômeno que ocorre, em bipolares, quando antidepressivos (ADs) tricíclicos desencadeiam episódios hipomaníacos. (Maj, Akiskal, Lopez-Ibor & cols., 2000). Historicamente, autores como Stahl (2002), Kaplan & Sadock (1999) e Cordioli (2005) vêm defendendo que os Ads tricícliclos diminuem o limiar convulsivo e deflagram atos impulsivos em portadores de epilepsia e de impulsividade, respectivamente. Kapczinsky, Quevedo, Izquierdo & cols. (2004) afirmaram que avaliações científicas realizadas em pacientes impulsivos detectaram padrões de ativação cerebral em tarefas cognitivas e alterações eletroencefalográficas em regiões frontais e cerebrais de jogadores patológicos. Alguns portadores de TPB demonstram alterações na condutividade elétrica no eletroencefalograma, as quais são apresentadas como atividade de ondas lentas. Esses autores explicaram que, Dessa forma, dados eletrofisiológicos que mostrem alterações parietotemporais podem ser sugestivos de lesões temporais ou frontais, tornando os achados eletroencefalográficos inespecíficos em várias patologias neuropsiquiátricas, inclusive em transtornos do controle de impulsos. Sua utilidade é observada no estudo de sintomas impulsivos em pacientes com epilepsia ou pacientes impulsivos de difícil manejo (p. 319). Concomitantemente às análises psiquiátricas, indivíduos portadores de TPB também são investigados na perspectiva psicanalítica, haja vista esse transtorno envolver

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comportamentos que reproduzem manifestações egóicas deficitárias, muitas vezes com efeitos drásticos sobre si e para os outros que os rodeiam. A isso, associem-se os respectivos dados epidemiológicos e o próprio espaço que essa síndrome vem ocupando, entre as preocupações psicanalíticas. A perspectiva psicanalítica do TPB é o foco do capítulo seguinte.

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Capítulo II O BORDERLINE NA PERSPECTIVA DA PSICANÁLISE Nos primórdios da Psicanálise, os casos de neuroses dominaram a cena psicanalítica. No entanto, atualmente, as síndromes limítrofes vêm ocupando um lugar maior, tanto na clínica como no pensamento psicanalítico e psiquiátrico (Armony,1999). Freud apontou, em seus casos clínicos, casos que não se enquadravam em uma configuração neurótica nem em uma psicótica. Esses casos foram cognominados de “casos limites”, nome baseado na forma como se organizava o ego diante de exigências da realidade, particularmente no caso “O Homem dos Lobos” (1918). Esse, apesar de ser considerado um caso de neurose obsessiva, apresentava sintomas e defesas que tinham características da psicose. Esses casos, posteriormente, foram cognominados por psicanalistas pós-freudianos de “casos limites”, nome baseado na forma como se organizava o ego diante de exigências da realidade, particularmente no caso “O Homem dos Lobos” (1918). Esse, apesar de ser considerado um caso de neurose obsessiva, apresentava sintomas e defesas que tinham características da psicose (psicose alucinatória e paranóia), histeria e fobia. Freud (2006/1918) descreveu “o homem dos lobos” como sendo portador de determinados indicadores de: “uma neurose obsessiva, com base na organização sádico-anal...” (...) “...a existência prévia de uma grave histeria no presente caso ....” (...) “...uma psicose alucinatória...” (...)... “uma fobia por lobos” (...) “...o mesmo impulso para Deus, expressado em palavras não ambíguas, no sistema delirante do paranóico Senatspräsidente Schreber” (trechos do artigo “História de uma neurose infantil”, 2006/1918). É no contexto da definição da divisão do ego como processo de defesa que Freud (2006/1927) situa essa questão. Ele explicou que o ego, em suas decisões frente à realidade, desencadeia duas reações contrárias: 1) rejeitar a realidade e recusar-se a aceitar a proibição; 2) reconhecer o perigo da realidade, assumindo o medo como sintoma patológico, para depois

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tentar desfazer-se dele. Esse fenômeno é definido por ele como “divisão do ego” ou clivagem do ego, mecanismo que consiste em “proteger” o sujeito da percepção desagradável e satisfazer o contra desejo (Pinheiro, 1995). Freud (2006/1927) descreveu a clivagem do ego (ou do eu) ou spaltung como “o fato de o homem, sob um ou outro aspecto, dividir-se de si mesmo”. Um pouco mais tarde, discutindo especificamente as características das organizações limítrofes, Bergeret (1998, p. 33) explicou o papel da clivagem, esclarecendo que, “em nossas organizações limítrofes, constatamos uma luta incessante para manter (...) uma segurança (...) que cubra os permanentes riscos depressivos. Tais exigências narcísicas forçam o estado limítrofe”. A clivagem dos objetos, que Bergeret associou à organização limítrofe, diferencia-se da clivagem do ego (relação objetal fusional), uma vez que a relação objetal é de caráter anaclítico. Se, por um lado, o próprio Freud (2006/1918) introduziu uma discussão sobre os estados limítrofes, por outro, observa-se que foi somente com os pós-freudianos que se alcançou um aprofundamento teórico específico sobre essa clínica. As bases dessa abordagem teórica inclui desde a caracterização do borderline como estrutura ou organização até a hipótese do fator traumático como precursor na clínica do borderline. 2.1 A Psicopatologia Psicanalítica do Borderline 2.1.1 Borderline: estrutura ou organização No campo da Psicanálise, encontram-se posições divergentes no que se refere às considerações sobre os quadros limítrofes, referindo-se particularmente às distinções entre estruturas e organizações. Para Lacan (citado por Hegenberg, 2005), as diferenciações psicológicas se organizam em torno de três estruturas: a neurótica, a psicótica e a perversa, todas ligadas ao processo de castração. Na neurose, a castração está relacionada com o recalque; na psicose, com a forclusão, e na perversão, com a recusa. Sendo assim, para Lacan,

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o transtorno borderline não existe, podendo ser considerado histeria grave ou perversão. Todavia, para distintos psicanalistas não lacanianos, a personalidade borderline ou o estadolimite de personalidade não só ocorre como se apresenta ora como neurótico, ora como psicótico, ora como perverso ou com traços mistos destas estruturas. Autores como Kernberg (1991) e Bergeret (1998) consideraram o transtorno borderline como uma organização. No que se refere a Bergeret, os estados-limite são vistos como uma organização de personalidade e não como uma estrutura; por isso, são provisórios, apesar de poderem se prolongar indefinidamente no tempo. Essa organização não se situa nem na dialética pulsões/realidade, nem na de id/superego. “O tronco comum dos estados limítrofes apenas consegue ficar em situação ordenada, mas não fixada. Trata-se de uma ‘organização’ de estatuto provisório, ainda que um tal ordenamento possa prolongar-se por bastante tempo sem muitas modificações” (Bergeret, 1998, p.120).(Ver anexo 1 A e B) Para defender essa posição de estados limites como organizações de estatuto provisório, Bergeret (1998) argumentou que, ora, na neurose, o id opõe-se ao superego através do ego (conflito edipiano e genital), enquanto na psicose, o conflito ocorre entre pulsões e a realidade, sendo o ego excluído. No caso dessas organizações limítrofes, o ego consegue superar a psicogênese de tipo psicótico, mas não consegue alcançar a do tipo neurótico, configurando uma doença do narcisismo, como afirma a seguir: A organização limítrofe não se situa em nenhuma dessas duas dialéticas. É uma doença do narcisismo. O ego conseguiu superar uma psicogênese do tipo psicótico e não conseguiu chegar a uma psicogênese do tipo neurótico; a relação do objeto permaneceu centrada na dependência anaclítica do outro; o perigo imediato contra o qual lutam todas as variedades de estados limítrofes é, acima de tudo, a depressão (p. 122). Bergeret (1998) parte do princípio de que cabe distinguir, de um lado, as estruturas autênticas, sólidas, fixas e definitivas (psicóticas ou neuróticas), e de outro lado, as organizações intermediárias, os estados-limite, menos especificadas de maneira durável e podendo dar origem a arranjos mais estáveis (doenças caracteriais e perversões).

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2.1.2 Os pós-freudianos e a caracterização do borderline Para além da discussão entre estrutura e organização, os estados-limite começaram a ser descritos mais detalhadamente a partir da década de 50, quando psicanalistas como Bergeret, Kernberg, Winnicott, Grinker, Armony, Hegenberg e Rassial começaram a se interessar por essa temática, debruçando-se sobre sua definição com perspectivas diferentes. Em outra abordagem, particularmente da Psicanálise americana, Kernberg (1991, p. 13) identificou um grupo de pacientes que, segundo seus colaboradores, conseguiam experienciar “conscientemente material de processo primário, mas que não tinham capacidade de introspecção, insight e de perlaboração”. Geralmente demonstravam rápidas mudanças de humor, tendência a perceber outros aspectos significativos como totalmente bons ou totalmente maus, fortes tendências orais e ao mesmo tempo agressivas, associadas a todos os níveis de desenvolvimento psicossexual. Em resumo, para Kernberg, Selter, Koenisberg & cols. (1991, p. 13), “esses pacientes desafiavam todos os esforços de hipotetizar a origem das suas dificuldades num ponto particular de desenvolvimento libidinal”. Pelo fato de serem “intrigantes”, em relação aos modelos psicanalíticos dominantes, os pacientes estados-limites eram visualizados num conceito mais amplo denominado borderline, como sinônimo de paciente difícil. Esses pacientes, apesar de apresentarem boa capacidade geral acerca da realidade, podiam repentinamente experienciar graves regressões transferenciais e uma condensação de conflitos edipianos e pré-edipianos, cujas origens psicogênicas foram identificadas na subfase de reaproximação do estágio separaçãoindividuação (Kernberg, 1991). Kernberg, Selzer, Koenigsberg & cols. (1991) abordaram a psicodinâmica de funcionamento de pacientes com transtorno de personalidade borderline a partir de três critérios: a) difusão de identidade, caracterizada pela falta de integração do conceito de self e de outros significativos. “Ela mostra-se na experiência subjetiva do paciente como a sensação

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crônica de vazio”; b) nível de operações defensivas, que se concentra nas defesas primitivas, no mecanismo de clivagem; c) capacidade de teste de realidade, pela qual os portadores do TPB, apesar dela, apresentam alterações em sua relação com a realidade. Essa é avaliada de forma adequada, mas o comportamento quanto a ela é inapropriado e incoerente. A abordagem da Psicanálise anglo-saxônica com Winnicott (citado por Armony, 1999) é a da existência de um espaço potencial dividido em dois, cada um com propriedades contrárias. Na intersecção desses espaços, cria-se um terceiro deixando-se com isso de se atribuir à noção de espaço potencial somente as relações que existem entre o exterior e o interior. Dessa forma, descobrem-se áreas de transição no interior do aparelho psíquico. O estado-limite transita de um a outro espaço, sem construir a idéia de um espaço potencial. Para Armony (1999), Winnicott retroagiu à relação entre mãe e bebê, em sua interpretação sobre os estados-limite, defendendo essa relação como uma “unidade mãe-bebê” incapaz de alteridade, pois prepondera a imaginação de que os dois seriam um só. Nessa relação (ocorrida no espaço potencial), também são conjugadas a união e a separação, essa última devendo ocorrer quando o bebê faz a distinção entre o mundo dos objetos (do qual a mãe é parte) e o “eu”, marcando o final da fase de fusão mãe-bebê. Não existindo o espaço potencial, haverá uma dissociação entre o subjetivo e o objetivo (mãe); prevalecendo o subjetivo, tem-se a psicose, prevalecendo o objetivo, tem-se a personalidade “como se”. Rassial (2000) abordou a polêmica entre psicanalistas lacanianos e os não-lacanianos, em virtude de os primeiros recusarem o diagnóstico de transtorno de personalidade borderline. Todavia, o próprio Lacan, em seus últimos trabalhos, teria permitido a existência de um valor conceitual ao estado limite (sem hífen). Rassial foi mais além, quando lembrou que há uma estreita relação entre o estado limite e a derrocada da função paterna. Ao defender que o diagnóstico de TPB não seria adequado, Rassial (2000) argumentou que esse fenômeno, na verdade, seria um estado de estrutura. Esse sujeito em estado limite -

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ou sem limites - representaria um estado estrutural no contexto atual da pós-modernidade. Essas pessoas seriam mais entendidas através de uma teoria de adolescência "generalizada", ou seja, mais abrangente e duradoura do que numa teoria de adolescência "restrita" ou clássica. Por ser estado, seus índices maiores seriam a instabilidade e a fragilidade narcísica que teriam como conseqüência a variação da distância entre o interno e o externo, o real e a realidade. O momento lógico dos adolescentes em estado limite ultrapassaria o momento cronológico. De acordo com Hegenberg (2005), a questão maior no TPB não são os limites, a falta; a preocupação se desloca para a depressão, para a perda do sentido da vida, para a sensação de irrealidade e para a futilidade da existência, para a crise de identidade. Esse autor relacionou as mudanças no panorama social atual (pós-modernidade) com a insegurança gerada pela falta de regras e de troca incessante de valores, que leva ao aumento da angústia. É desse contexto que o paciente borderline emergiria. Hegenberg (2005) fez comparações entre a personalidade borderline e a histeria, a depressão, a psicose e a personalidade anti-social. Segundo ele, a clínica do borderline visa atingir as seguintes características do paciente borderline: angústia de separação, a identidade, o ideal do ego, a clivagem, o narcisismo, a agressividade, a impulsividade e o suicídio. A angústia é de perda do objeto anaclítico, que constitui a subjetividade do borderline e, quando falta, traz a ameaça de perda de si mesmo; na difusão de identidade há deficiência da integração do self e, por isso, ocorrem invasões ambientais que põem em jogo a percepção de sua existência; o ideal de ego leva à idealizações, à busca de objetivos inalcançáveis e a uma vida sem objetivos definidos; a clivagem objetal estabelece-se, porque o ideal de ego domina, e o borderline precisa do objeto inteiro para que possa usá-lo, mantendo uma relação com o outro ora idolatrando, ora odiando-o; o narcisismo é acentuado, com pobre percepção das necessidades do outro e de si mesmo, visando sempre suas próprias necessidades para evitar o

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abandono; a agressividade é flutuante e decorrente do medo de ser abandonado gerado pela angústia da separação iminente; a impulsividade aparece pelo fato de não contrariar as exigências do outro, por medo de perdê-lo, o que culmina com a descarga dessa energia contida em atos impulsivos; o suicídio e outras automutilações acontecem quando o borderline está deprimido devido à angústia de separação que origina sentimentos de vazio, de tédio e a ausência de sentido na vida. Outro aspecto a se considerar é a não universalidade na configuração do quadro clínico apresentado pelos psicanalistas. Por exemplo, Grinker (1968, citado por Armony,1998) apontou quatro níveis de transtorno borderline: I) psicótico, com um comportamento inapropriado e não-adaptado. Apresenta deficiente senso de identidade e de realidade, um comportamento negativo e raivoso em relação às pessoas e depressão; II) nuclear, demonstrando envolvimento flutuante para com outras pessoas; expressões abertas de raiva, ausência de indicações de um self consistente; III) personalidades “como se”, representadas por comportamentos adaptados e apropriados, relações complementares, pouca espontaneidade e afeto em resposta a situações, afastamento e intelectualização; IV) neurótico, com depressão anaclítica, tal como na infância. Demonstra ansiedade, semelhança com caráter narcisista neurótico. A partir dessa classificação, Armony (1999) agrupou os tipos borderline em: pesado ou patológico; borderline falso-self e borderline brando ou próximo da normalidade: o borderline pesado ou patológico é polissintomático, ambulatorial, tem dificuldades nas relações interpessoais por suas susceptibilidades narcísicas exacerbadas, tem problemas na área afetiva, é impulsivo, tem labilidade de humor, exacerbada dependência afetiva (mas nega-a reativamente), extrema sensibilidade e susceptibilidade incomum, “seletivamente permeável ao próprio inconsciente, ao inconsciente do outro e à subjetividade circulante”; o borderline falso-self, baseado na idéia de Winnicott (2006), é o que “encobre uma angústia

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primitiva de aniquilamento psicótico”. Ele seria, essencialmente, “um psicótico oculto por um falso-self (Armony, 2002); o borderline brando apresenta mais uma tendência à multiplicidade do que ao polissintomático. Para Armony (1999), isso significa que ele não encobre os vários aspectos de sua personalidade em favor de um único, e sim, mantém as potencialidades disponíveis para uso. O borderline brando é o homem da pós-modernidade por

causa

de

sua

inquietude,

flexibilidade,

criatividade,

sensibilidade,

empatia,

permeabilidade, intuição. Ele apreende a realidade de forma mais direta e menos mediada, com capacidade de detecção de movimentos mínimos do inconsciente pessoal, do coletivo e do cultural. Armony (1998) explicou que tanto o borderline brando quanto o pesado têm, como resto da infância mais arcaica, a insuficiência de identificações. Esse autor revela que: O borderline carrega como memória da infância uma fome de identificações; fome semelhante à da criança que necessita de se identificar com adultos significativos para fabricar sua identidade. Quando as identificações falham ou são insuficientes, o ser humano cresce com as valências identificatórias abertas. O fator borderline da personalidade poderia ser pensado em conexão às identificações insuficientemente realizadas (p. 57). Em suma, os psicanalistas, de forma geral, concordam com a complexidade do paciente borderline e prevêem uma relação analítica inicial de apoio e, posteriormente, de determinação cuidadosa de limites e de apoio, mas sempre centrada na transferência, com o objetivo de reelaborar a subjetividade e a identidade do borderline sem idealizações primitivas, como defendeu Hegenberg (2005). Conforme esse autor, os sujeitos borderline são pacientes difíceis, geralmente com longos anos de análise, exigindo experiência e paciência por parte do terapeuta que se dispuser a atendê-los. A compreensão da clínica do borderline exige, do ponto de vista psicanalítico, uma abordagem da sua psicodinâmica e modo de funcionamento que passaremos a apresentar a seguir. Apesar das controvérsias, na Psicanálise, sobre o conceito de personalidade borderline, vários autores psicanalistas

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reconhecem a existência dessa clínica e buscam avançar na compreensão do construto, bem como na delimitação do fenômeno. 2.1.3 A psicodinâmica do borderline Na perspectiva de Bergeret (1998; 2006), o aspecto psicodinâmico do estado limítrofe é mostrado através de cinco características: o ego anaclítico, a relação de objeto anaclítica, a angústia depressiva, as instâncias ideais e os mecanismos de defesa. Ele afirmou que, segundo Freud, nos casos limites, não haveria a clivagem ocorrida na psicose, e sim uma “deformação” do ego, uma simples reação das atividades do ego para evitar a clivagem egóica. O ego deformar-se-ia em algumas funções e operaria em dois registros: um adaptativo, em todo campo relacional, onde não houvesse ameaça ao indivíduo, seja no plano narcísico ou genital; no registro anaclítico, na presença de ameaça de perda objetal, tanto no plano narcísico quanto no genital. A relação destes dois sistemas, adaptativos (à realidade exterior) e defensivos (às necessidades narcísicas internas, ao anaclitismo auxiliador), asseguraria ao ego alguma mobilidade e segurança, sem constituir uma solidez verdadeira. O estado limítrofe dependeria excessivamente da realidade exterior e das posições e distâncias dos objetos em relação a si. A relação de objeto anaclítica coloca dois parceiros, ora no papel grande ou perseguidor, ora de pequeno ou perseguido. Nos estados limítrofes, não houve uma elaboração genital com um pai edipiano (neurose) nem há uma mãe esquizofrenogênica (psicose). A relação com o pai é pré-genital (pai é uma imagem fálico-narcísica asexuada) e com a mãe não é fusional, como no psicótico. Os pais são “grandes”, “não assexuados” Isso ocorre, porque os estados limítrofes estão parcialmente bloqueados na sua evolução afetiva, construindo uma relação anaclítica, de apego ao objeto, o qual agiria como ego e superego auxiliares do anaclítico (Bergeret, 1998). A angústia do estado limítrofe seria a de perda do objeto (não a depressão do melancólico, que introjetou o objeto perdido), pois no estágio em que se encontra, o objeto

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não pode ser introjetado. Mesmo temendo a intrusão pela proximidade do outro, o anaclítico precisa desse, para assegurá-lo e limitá-lo ao mesmo tempo. A angústia de depressão anaclítica situa-se entre a angústia de castração do neurótico e a de fragmentação do psicótico: o estado limítrofe lembra-se de um passado infeliz, mas crê na salvação investida na dependência do outro (Bergeret, 1998). Em relação às instâncias ideais, enquanto no neurótico, o organizador é o Édipo, no estado limítrofe, esse se encontra “saltado”, dando origem a uma pseudolatência que pode durar a vida toda. Apesar de o estado limítrofe possuir elementos edipianos e superegóicos, esses não representam o papel central de organizadores. A depender do momento em que ocorreu o trauma desorganizador, o grau de aquisições edipianas variará de acordo com a intensidade absoluta e relativa do afeto ligado ao trauma, ou seja, tudo dependerá do grau de imaturidade do ego no momento traumático e dos meios que esse dispunha para enfrentá-lo. O superego não conseguirá constituir-se como sucessor do complexo de Édipo, mas já tendo alguns elementos superegóicos fixados, esses gerarão um ideal de ego imenso e infantil. Esse ideal de ego é mais arcaico que o superego e vai substituí-lo no papel de organizador da personalidade. Essa será incompleta, frágil e imperfeita e não possuirá uma estrutura psicótica ou neurótica; será organização ou ordenamento. Os pais dos estados limítrofes reforçam o anaclitismo do sujeito, agindo como insaciáveis no plano narcísico: a criança observa, internamente, o embate entre os ideais de ego materno e paterno. Esse indivíduo introjetará só os interditos parentais. Como aprendeu que se permanecesse junto aos pais e fizesse bem o que eles lhe pedissem seria recompensado, o que nunca aconteceu, passa a ter vergonha de si mesmo (projetável aos outros), quando fracassa em seus objetivos. Daí nasce a intolerância às contradições e às incertezas e a passagem ao ato. Para essas pessoas, é mais fácil comunicarse com a ação inesperada (atos impulsivos) do que através de expressões verbalizadas ou elaborações fantasmáticas ou ideativas (Bergeret, 1998).

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Apesar das controvérsias em relação ao fato de o TPB ser ou não uma estrutura psicanalítica fixa ou uma categoria diagnóstica definida pelas classificações médicas, há um consenso no meio científico de que os estados-limite ou borderline apresentam determinados mecanismos de defesa presentes em todas as suas apresentações. Por exemplo, Kernberg (1975, citado por Oldham, 2004) postulou que a organização borderline de personalidade é um construto teórico de defesas primitivas e difusão de identidade com teste de realidade inalterado e que não é uma estrutura. Siever & Davis (1991, citados por Oldham, 2004) defenderam o TPB como uma categoria diagnóstica entre o psicótico e neurótico, que inclui pacientes entre os espectruns bipolar do humor e da impulsividade, tal como classificado no DSM-IV (1995), e é um construto heterogêneo que apresenta defesas psíquicas definidas. Em toda a obra freudiana, a expressão mecanismo de defesa esteve presente. Embora Freud tenha feito algumas indicações, não definiu quais seriam esses mecanismos nos casos limites, mesmo porque ele não se preocupou em estudá-los, como o fez em relação às neuroses. Teóricos das relações objetais, como Kernberg, estudando pacientes mais perturbados como os portadores de transtornos de personalidade severa e os psicóticos, foram os que mais se detiveram sobre esse tema. Os mecanismos estudados, nesses casos, foram a cisão do ego e a do objeto, a identificação projetiva, a idealização e a desvalorização. Em relação aos borderline, psicanalistas como Klein, Jacobson e Kernberg, citados por Kaplan & Sadock (1999) discorreram sobre essas operações defensivas, ressaltando: clivagem (cisão) do objeto, idealização primitiva, identificação projetiva, negação e idealização e desvalorização. Esses autores esclareceram: Kernberg foi decisivo para a cisão clinicamente relevante ao entendimento, diagnóstico e tratamento de transtornos de personalidade severos. Ele identificou quatro manifestações comuns da cisão: (1) a coexistência de auto-representações contraditórias e alternadas que fazem com que o paciente pareça bastante diferente dia-a-dia; (2) a divisão das pessoas do ambiente em um grupo idealizado ou todo bom e um grupo desvalorizado ou todo mau; (3) problemas seletivos com controle de impulsos; e (4) a expressão de comportamentos e atitudes alternantes e contraditórios

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que são encaradas pelo paciente com ausência de preocupação e uma suave negação (p. 504). Para Bergeret (1998), a “organização limítrofe, deve, pois, recorrer a mecanismos de defesa menos elaborados, logo menos eficazes, mas também menos custosos em contrainvestimentos do que o recalque; estes são principalmente a evitação, a forclusão, as reações projetivas e a clivagem do objeto” (p.128). A evitação é usada pelo sujeito para evitar encontrar-se com a representação, mesmo que essa se encontre isolada ou deslocada previamente por outros mecanismos. A forclusão no sujeito limítrofe, diferentemente da recusa do sexo feminino, no perverso, endereça-se a uma imagem paterna cuja representação simbólica deve ser rejeitada. A forclusão é definida como a abolição simbólica de um conteúdo com o comparecimento do forcluído no objeto. Apesar de ser um mecanismo predominante na psicose, observa-se que alguns psicanalistas atualmente consideram a forclusão um fenômeno defensivo que está presente nos psicóticos e perversos e em alguns casos limítrofes com características psicóticas e/ou perversas. Diferentemente de Lacan (1988/1956), para Bergeret (2006), a forclusão parece associar-se mais à clivagem das imagos do que à clivagem do ego e tem um valor específico nas neuroses mais patológicas. Ele argumenta que, durante anos, o mito da forclusão do Nome-do- pai como etiologia essencial das psicoses não sofreu contestação. Urge, hoje, devolver à neurose o que lhe pertence. As reações projetivas são similares aos mecanismos de identificação projetiva de Melanie Klein (1952) e de identificações com o agressor de Ferenczi (1952) e Anna Freud (1949). Essas reações situam no exterior a representação pulsional interior, permitindo o controle dessa e recuperações fantásticas de onipotência sobre o outro. Entretanto, a repetição e a intensidade dessa defesa empobrecem o ego, limitando os relacionamentos e levando o sujeito à claustrofobia e desrealizações (Bergeret, 1998).

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Para Bergeret (1998), o estado limítrofe, na tentativa de fugir à verdadeira clivagem do ego, defende-se com a clivagem das representações objetais ou das imagos, lutando contra a angústia de perda do objeto e do risco da fragmentação psicótica. Anteriormente, Melanie Klein apresentou a clivagem dos objetos relacionado-a às fases esquizoparanóide (objeto parcial) e depressiva (objeto total). O ego não negaria a realidade, mas distinguiria, no mesmo objeto, ora uma imagem positiva e tranqüilizadora (ou objeto bom de Klein), ora uma imagem negativa e aterrorizante (ou objeto mau de Klein). Para o ego, seria impossível conciliar essas imagens contraditórias. Em decorrência disso, conforme Kernberg (1991), uma parte do ego estaria organizada ao redor de introjeções positivas, e a outra parte, no exterior, considerando como realidade os aspectos positivos dessa e rejeitando os aspectos externos percebidos como frustrantes ou ameaçadores. A esse fenômeno, Kernberg cognominou idealização prédepressiva. Entre as defesas da personalidade limítrofe, a cisão ou clivagem objetal encontram um lugar privilegiado porque é apontado nessa clínica, por vários autores, como o mecanismo fundamental e precursor das demais defesas presentes nesse fenômeno. 2.1.3.1 A clivagem objetal e a depressividade no borderline Autores como Freud (2006/1915), Ferenczi (1932, citado por Laplanche & Pontalis, 2001), Bergeret (1998), Dion (2005) e Hegenberg (2005) relacionaram o trauma precoce com a depressividade do sujeito e os afetos como reações defensivas. Os três últimos autores identificam o trauma como causador da clivagem objetal, que produziria a depressividade do borderline. Freud (citado por Laplanche e Pontalis, 2001, p. 9 ) definiu o afeto como a “tradução subjetiva da quantidade de energia pulsional”. Para Freud, os afetos podem estar ligados à representação, e a separação afeto/representação garante, a cada afeto, diversas possibilidades

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de transposição afetivas, tais como: conversão dos afetos (histeria de conversão); deslocamento do afeto (obsessão); transformação do afeto (neurose de angústia, melancolia). De acordo com Freud (2006/1915), o afeto depressivo e a instalação da sensibilidade depressiva nasceriam do sentimento de perda do objeto ou de aspectos dele e da resignação diante dessa perda, pois a criança é incapaz de restaurar esse objeto dentro de si. Já a melancolia, segundo Freud, seria a impossibilidade eterna de o indivíduo fazer luto do objeto perdido, que vive à sombra do seu ego. Freud (citado por Rodrigues, 2008) conceituou a melancolia como um quadro específico e psicótico, no qual a mania não é condição necessária a seu estabelecimento. A melancolia se caracteriza, psiquicamente, por ser um estado de ânimo profundamente doloroso, cessação do interesse pelo mundo exterior, perda da capacidade de amar, inibição de todas as funções e diminuição do amor próprio. Esta última traduz-se por auto-recriminações e autoacusações e podem, inclusive, chegar a uma espera delirante de castigo (p. 11). Freud também não associava a mania à depressão, como na loucura maníacodepressiva de Kraepelin, e defendia que a depressão seria um destino subjetivo que poderia acometer qualquer ser humano (Roudinesco e Plon, 1998). No texto “Luto e Melancolia”, de 1917, Freud (2006) concluiu que a melancolia seria a forma patológica do luto e estabeleceu algumas diferenças entre ela e outros fenômenos psiquiátricos. Explicou que, enquanto no luto, o sujeito desliga-se progressivamente do objeto perdido, na melancolia, o eu se identifica com o objeto perdido e se perde no desespero infinito de um nada irremediável. Isso levaria à impossibilidade eterna de o sujeito fazer o luto do objeto perdido. Pode-se dizer que: no luto, há o desinvestimento do objeto perdido, a restauração e o investimento em um novo objeto; na depressão, ocorre a perda não restaurada do objeto e a permanência do afeto e da sensibilidade depressiva; na melancolia, há uma regressão mais anterior, na passagem do regime narcísico para o objetal, com conseqüente ódio transposto ao eu, que fica sujeito aos ataques do supereu. Na depressão, a perda do objeto recai sobre o ideal de eu, enquanto na

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melancolia, recai sobre o eu ideal. Comparativamente, pode-se dizer que, para a Psicanálise, o luto é o trabalho elaborativo da perda objetal, a depressão é a patologia do luto, e a melancolia é o sentimento desse. Bergeret (1998) esclareceu que, na linguagem melancólica, o indivíduo procura o caminho do afeto perdido e introjetado; na excitação (mania), a linguagem é acelerada, rica, imprecisa; na depressão, a linguagem é lentificada, pobre. Para esse autor, a estrutura melancólica estaria à parte das psicoses, e a melancolia não deve ser relacionada com as reações depressivas ou hipomaníacas do quadro maníaco-depressivo. A depressividade crônica dos estados limítrofes está associada à angústia de perda do objeto anaclítico, a qual reportaria o indivíduo à angústia da separação sofrida, em fases precoces do desenvolvimento psicossexual e conseqüente desamparo. Ele explicou que a depressividade dos estados-limite fica latente e se manifesta na primeira ameaça de ausência do objeto anaclítico, a qual traria a percepção do aniquilamento do sujeito em estado-limite. Hegenberg (2005) indicou que, muitas vezes, o borderline é confundido com quadros hipomaníaco ou maníaco, em virtude de mostrar-se acelerado, eufórico, por se sentir amado, apaixonado por alguém ou por alguma idéia. Da mesma forma, a depressão do borderline não é constante por semanas e meses, como o episódio depressivo maior, pois depende das reações do objeto anaclítico e, geralmente, dura horas ou dias, acabando com o apoio esperado, não sendo preciso medicá-lo como no caso da depressão endógena ou outras. Hegenberg (2005) escreveu que a depressão do borderline está ligada ao vazio, ao tédio. O paciente borderline não teria uma depressão de base e sim uma depressividade causada por um vazio existencial, pela falta de sentido e de objetivos de vida. Não há o ódio do melancólico voltado para si ou o luto pelo objeto perdido do depressivo, mas sim, o tédio, pela inutilidade existencial.

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Segundo Bergeret (1998), o estado-limite luta contra a angústia subjacente, a angústia da depressão que ocorre quando o sujeito sente que o objeto anaclítico vai escapar. A angústia de perder esse objeto leva-o à depressão. Lembrar o passado infeliz, remetendo-o a um vazio existencial já vivido (quando o estado limítrofe acredita que o investimento numa relação com o outro é a salvação para preencher seu vazio existencial), é aniquilá-lo. De acordo com esse autor, a depressão melancólica difere da depressão do estado limítrofe, porque nessa última, em fases precoces, o objeto perdido não foi introjetado no ego do indivíduo. A mania e/ou hipomania seriam defesas “encobridoras” da falha narcísica, como reação contra a depressão. O caráter hipomaníaco seria o momento caracterial de um sofrimento menos elaborado que o caráter depressivo. Hegenberg (2005) mostrou que o borderline, a depender das circunstâncias, pode passar de deprimido a maníaco, rapidamente e por tempo breve, não podendo por isso ser incluído nos portadores de transtorno depressivo maior ou bipolares. Os sintomas maníacosdepressivos do borderline não são estrutrurais, mas estados transitórios de humor/afeto relacionados ao ambiente. Em virtude de a depressão estar ligada a outras patologias psíquicas como o TPB e o TEBH, faz-se necessário discutir os aspectos psicodinâmicos e psicopatológicos dessa personalidade, com a finalidade de evidenciar características relacionadas com uma e outra abordagens. 2.1.3.2 A hipótese do fator traumático na clínica do borderline Segundo Golier, Yeruda, Bieres & cols. (2003), na contemporaneidade, várias pesquisas indicam que um dos mais importantes fatores psicossexuais responsáveis pelo aparecimento, precipitação ou agravamento do quadro borderline é a emergência traumática de violência psicológica, física e/ou sexual, em fases precoces do desenvolvimento da criança, principalmente no caso das meninas. A agressão ou abuso, presente nas histórias de uma

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grande parte de pacientes com quadro borderline, estaria associada ao trauma antes da formação da personalidade, culminando com a desestruturação psíquica do sujeito. Esse trauma, quanto mais cedo ocorre na vida do indivíduo, mais imaturo e regredido ele se torna. Diferentemente dos psicóticos em geral, que sofrem a clivagem do ego, os estados-limite, em fases pré-genitais, no narcisismo, são acometidos pela clivagem do objeto. Por que motivo ou como ocorreria a clivagem do ego (perversos e psicóticos) e dos objetos (estados-limite)? A resposta a essa questão pode ser encontrada na teoria da sedução de Freud (citado por Laplanche e Pontalis, 2001), datada de fins do século XIX, segundo a qual haveria uma cena real ou fantasística em que o sujeito (geralmente uma criança) sofreria passivamente, da parte do outro (a maioria das vezes um adulto), propostas ou manobras sexuais a qual explicaria o trauma sofrido e posterior defesa (recalque) contra as lembranças dessa experiência. O processo de recalque evoluiria em dois momentos: quando criança, haveria o acontecimento sexual num sujeito impossibilitado de integrar a experiência, portanto, não haveria o recalque; na puberdade, quando aconteceria um novo fato, que necessariamente não teria um significado sexual em si mesmo, seriam evocados traços de lembranças do primeiro acontecimento e o afluxo de excitação endógena culminaria no recalque. Freud abandonou a teoria da sedução em 1897, quanto à existência de uma cena real traumatizante na criança. Posteriormente reformulou-a, explicando que a cena traumática poderia ser real ou fruto da fantasia e estaria na gênese da histeria e da neurose obsessiva. Durante sua vida, Freud defendeu a importância das cenas de sedução vividas pelas crianças. Ferenczi (citado por Laplanche e Pontalis, 2001) adotou a teoria freudiana da sedução e afirmou a importância do fator traumático, tão negligenciada na patologia das neuroses. Ele descreveu como a sexualidade adulta “realizava verdadeiramente uma efração no mundo infantil. O perigo da teoria estaria em voltar à noção pré-analítica de uma inocência sexual da criança que a sexualidade adulta viria perverter” (p. 472).

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No erotismo adulto, o sentimento de culpa transforma o objeto de amor em objeto de ódio e de afeição, isto é, em objeto ambivalente (clivagem do objeto). Enquanto essa dualidade ainda falta à criança no estado de ternura, é justamente este ódio que surpreende, espanta e traumatiza uma criança amada por um adulto (Ferenczi, citado por Gerber, 1999, p. 356). Além de Freud e Ferenczi, outros psicanalistas associaram a sedução e o trauma à responsabilidade pela clivagem. Recentemente, autores como Golier & cols. (2003) e Dion (2005) discutiram o trauma psíquico gerado por distintas formas de abuso, como desencadeador da clivagem do ego (perversos e psicóticos) e dos objetos (borderlines), ocorrida em transtornos de personalidades, tais como os de personalidade paranóide e os de personalidade limítrofe. A fragmentação do Ego, por verdadeira explosão, já não é um mecanismo de defesa, mas um processo de descompensação psicótica acabada. Pelo contrário, a clivagem do Ego continua sendo um mecanismos de defesa (de modo psicótico) contra a angústia de fragmentação e de morte; quando à clivagem das imagos, constitui esta um mecanismo de defesa habitual nos estados-limítrofes, para lutar contra a angústia de perda de objeto e contra o risco de chegar assim ao modo psicótico de defesa por clivagem do Ego (Bergeret, 2006, p. 107). Bergeret (1998) defendeu, nos estados limites, frustrações muito vivas, que implicam um risco de perda do objeto, compõem o trauma psíquico precoce. Esse deve ser compreendido no sentido afetivo do termo, correspondendo a uma emoção intensa, a uma comoção pulsional ocorrida em um estado do ego mal organizado ou imaturo, a um desorganizador precoce. Como exemplo, trouxe o caso de Freud, “O Homem dos Lobos” (1918), considerando a tentativa de sedução real por parte de um adulto, na qual a criança entrou bruscamente na posição edípica sem estar preparada e utilizou mecanismos de defesa muito arcaicos, tais como, a clivagem dos objetos, a identificação projetiva e idealização primitiva. No momento do segundo ou dos posteriores traumas, o ego regride chegando próximo a esboços de despersonalização. Tanto o primeiro quanto o segundo traumas podem ser substituídos por microtraumas repetidos e próximos, cuja soma dos efeitos corresponderá a um trauma único e importante.

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Bergeret (1998) reconheceu que o trauma sofrido pela criança em períodos psicossexuais precoces culminaria com o prolongamento da fase de latência (pseudolatência) até o fim da vida do sujeito. Por isso, esse trauma afetivo seria o primeiro desorganizador da evolução desse ser que teria um bloqueio afetivo na maturidade afetiva do ego (ainda não diferenciado sexualmente), o que seria um tronco comum dos estados limítrofes.(Ver anexo 1 A e B) Esse trauma seria algo afetivo que corresponderia a uma emoção pulsional que surgiu em um estado onde o sujeito ainda seria muito imaturo e mal-organizado para suportar. É como se a criança entrasse brutal e precocemente em uma situação edipiana. Ela ainda não é capaz de entrar nesta relação triangular e genital. Ainda não é possível assegurar-se no amor do pai para suportar o sentimento de “ódio” pela mãe, ou em um outro momento, em assegurar-se no amor da mãe para suportar o ódio do pai. Assim como será difícil recalcar o excesso de tensão sexual ou agressiva. A dificuldade no recalcamento causará a necessidade da utilização de mecanismos de defesa mais arcaicos, que são mais utilizados por psicóticos, como: negação de representações sexuais, a clivagem do objeto, identificação projetiva (Bergeret, 1998). Alguns autores afirmam que haveria dois setores operacionais do ego no interior da personalidade limítrofe. Um estaria relacionado à adaptação aos dados à realidade exterior, e outro seria mais autônomo a essa realidade, relacionando-se mais as realidades narcísicas. Entretanto não se trata de uma clivagem do ego, como ocorre em uma psicose, e sim de um mecanismo do ego para se defender e evitar a ameaça de rompimento. Desta forma, o ego deforma-se, sem, contudo, atingir seu núcleo, sendo que algumas de suas funções operariam de duas formas diferentes. A primeira em um registro adaptativo, quando não existe ameaça para o sujeito, nem de cunho narcísico nem de cunho genital. A segunda é um registro anaclítico que se dá quando há uma ameaça de perda do objeto oferecendo perigo narcísico e

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genital. O ego desses indivíduos estaria sempre se movendo entre estes dois sistemas o que geraria uma certa segurança, mas não proporciona uma solidez necessária. O sujeito torna-se muito dependente da realidade exterior, das posições dos objetos e da distancia entre estes e ele. Para Bergeret (1998), a linhagem narcisista corresponde à seguinte sucessão de eventos: narcisismo - ideal de ego – ferida narcisista – vergonha – angústia de perda do objeto – depressão. O estado depressivo estaria relacionado com uma situação traumática ocorrida no passado, e a angústia vital seria um sinal de alerta para um perigo potencial no futuro. Abraham (citado por Delouya, 2001) foi o primeiro autor a suspeitar que a angústia e a depressão menores eram conseqüências da permanência, dentro de si, de vestígios do desamparo infantil, somado ao trauma infantil. Já a depressão maior estaria associada ao evento traumático do nascimento, e angústia seria a reação depressiva a esse evento. O conceito de trauma psíquico foi perdendo a especificidade inicial estabelecida por Freud e contemporâneos e, alargado, passou a incluir vários tipos de agressão, significando, atualmente, quaisquer acontecimentos graves ou situação crônica danosa ao sujeito. “Todos os referenciais teóricos levam em consideração um estado de falência da mente, do ego ou self sob a ação de uma sobrecarga energética ou de múltiplos estímulos e agressões, informações e demandas” (Dion, 2005, p. 4). Complementando, Dion (2005) asseverou: O fator nocivo externo é sempre valorizado, pelo menos na experiência traumática inicial, e a participação do mundo interno e das características individuais é bastante reconhecida, seja a violência das pulsões instintivas e a malignidade dos objetos internos, seja o grau de primitivismo, imaturidade, desorganização e incompetência da mente e os conseqüentes distúrbios das funções cognitivas (p.4). Esse autor explicou que, geralmente, a tendência à repetição de situações traumáticas decorre dos seguintes fatores não excludentes e que freqüentemente se combinam: repetição por não superação do padrão traumático; repetição para elaboração; repetição devido a funções secundárias, estruturantes, defensivas, narcísicas e prazerosas adquiridas pelo padrão. A repetição de determinados funcionamentos destrutivos em pacientes obsessivos, limítrofes,

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perversos, psicóticos e outros traumatofílicos, mantidos por razões inconscientes, são defesas utilizadas como garantia vital de estruturação mental, mesmo que disfuncional, como uma reabilitação narcísica e inconsciente prazerosa . Na organização limítrofe, há o que Freud (citado por Laplanche e Pontalis, 2001) chamou de identificação com o agressor e que é uma submissão total á vontade do agressor, como resultado do medo. A mudança que provoca na personalidade é a introjeção do sentimento de culpa. Para Lagache (citado por Laplanche e Pontalis, 2001), a identificação com o agressor se situa na origem do ego ideal, em um quadro de origem e de demandas entre a criança e o adulto. “[...] o sujeito identifica-se com o adulto dotado de onipotência, o que implica o desconhecimento do outro, a sua submissão e até mesmo a sua abolição.” (p. 231) 2.1.3.3 Características da síndrome borderline Balone (2005), citando Grinker, descreveu a síndrome borderline com as seguintes características: sentimento de raiva como afeto único ou essencial; anáclise como transtorno nas relações objetais (aderência patológica); ausência de auto-identidade consistente (instabilidade); depressão sem sentimento de culpa, sem auto-acusação ou remorso. Continuando, Balone afirmou que cinco áreas podem ser exploradas na avaliação do TPB: a adaptação social aparentemente sem dificuldades; impulsos e ações, com atitudes impulsivas, drogadição, álcool, auto-agressão, promiscuidade, bulimia; afetividade, com depressão, raiva, ansiedade e desespero; eventuais surtos psicóticos normalmente breves, reativos e pouco severos; relações interpessoais que não suportam a solidão e o abandono, necessitando do outro em tempo integral, a todo o momento. Os indivíduos com TPB são francamente dependentes, masoquistas e manipuladores. Além disso, Balone (2005) explicou que, no TPB, várias características de instabilidade emocional são somadas à impulsividade, à perturbação variável da auto-imagem, dos

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objetivos e das preferências internas, incluindo a sexual. Os indivíduos com TPB podem apresentar instabilidade afetiva em função da reatividade do humor, como por exemplo euforia ou depressão (disforia) episódica e irritabilidade ou ansiedade, geralmente durando poucas horas. O humor disfórico (euforia ou depressão) nesses indivíduos muitas vezes é acompanhado de raiva, pânico ou desespero. Eles ficam facilmente entediados, não aceitam bem a serenidade e podem estar sempre procurando algo para fazer. Não dissimulam seus sentimentos agressivos, freqüentemente expressando raiva intensa e inadequada, tendo dificuldade para controlar essa raiva. A inconstância do borderline se observa também em relação ao juízo que tem de si mesmo e de sua vida. Ele pode ter súbitas mudanças de opiniões e planos acerca de sua carreira, sua identidade sexual, seus valores e mesmo sobre os tipos de amigo ideal.[...] Pode haver no Borderline, uma rápida passagem da idealização elogiosa para sentimentos de desvalorização, por achar que a outra pessoa não se importa o suficiente com ele, não dá o bastante de si, não se mobiliza o suficiente. [...] são insaciáveis em termos de atenção. Eles são inclinados a mudanças súbitas em suas opiniões sobre os outros. (Balone, 2005, p. 4). Corroborando, Dalgalarrondo & Vilela (2005) apresentaram as seguintes características da síndrome TPB, localizadas por áreas: a) área de afetividade - sentimentos crônicos de vazio, instabilidade afetiva, irritabilidade ou ansiedade, raiva intensa e inapropriada; b) área do comportamento e interação social - relações interpessoais intensas e instáveis, caracterizadas por extremos de idealização e desvalorização; c) esforços intensos para evitar o abandono real ou imaginário - comportamento suicida recorrente, gestos, ameaças ou comportamentos de automutilação, impulsividade (pelo menos em duas áreas potencialmente autolesivas, como gasto de dinheiro, abuso de drogas, etc.); d) sintomas e vivências internas distúrbios da identidade, auto-imagem e/ou senso de si mesmo instável de forma intensa e persistente, ideação transitória e relacionada a estresse ou sintomas dissociativos graves. Por meio da elaboração teórica conduzida nos dois capítulos, vê-se que as perspectivas psiquiátrica e psicanalítica são saberes paralelos de um mesmo fenômeno clínico, não excludentes, mas suplementares, em relação ao TPB. Por isso, a apresentação, nesta pesquisa,

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dessas duas visões teóricas faz-se essencial, para visualizar alguns pontos que são concordantes e discordantes no que se refere ao estudo do quadro borderline. Particularmente, interessa a relação abordada pela Psiquiatria em relação ao TPB com o espectro bipolar do humor e o fundo depressivo apontado pela Psicanálise, ligada ao aspecto traumático implicado na dinâmica dessa clínica. A análise dos aspectos sindrômicos e psicodinâmicos de pacientes portadoras de TPB, objeto deste trabalho, foi feita nessa perspectiva, tal como demonstrado no capítulo seguinte.

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Capítulo III

NATUREZA DO PROBLEMA E MÉTODO 3.1 Delineamento da Pesquisa Como foi visto na literatura levantada, o TPB é construído pela interação de vários fatores, tem apresentações clínicas múltiplas, sintomas de outros transtornos mentais e responde insatisfatoriamente a diversas terapêuticas empregadas, até o momento. Em virtude disso, é um fenômeno complexo, pouco estudado e pouco discutido no meio científico. Considerando as perspectivas psiquiátrica e psicanalítica, o objetivo deste trabalho foi estudar a presença de sintomas e indicadores do TPB nas pacientes pesquisadas, identificar aspectos da psicodinâmica desse quadro e verificar a presença de transtorno do espectro bipolar do humor (como integrante do mesmo quadro clinico) ou constatar se essas duas patologias são distintas e, por isso, sugerir que devam ser abordadas de maneiras diferentes. Em função desse objeto, a abordagem desenvolvida na pesquisa foi essencialmente clínico-qualitativa. É classificada como estudo de caso, pois envolveu dois sujeitos com características de diagnóstico semelhantes, conforme avaliação psicopatológica (DSM e CID10) e psicológica (Teste de Rorschach). É estudo de caso, porque a análise dos dois sujeitos é circunscrita a um mesmo fenômeno. Husain (1993) explicou que no estudo de caso extensivo (mais de uma pessoa), pode-se esclarecer o funcionamento de uma forma particular de organização de personalidade, anestruturada, no qual foram identificadas as semelhanças e diferenças entre os casos. O estudo de caso se justificou nesta pesquisa, porque, segundo Bogdan e Biklen (1994), ele está associado aos procedimentos da pesquisa qualitativa. Em sentido restrito, expressões e/ou situações utilizadas e observadas na investigação geralmente adquirem um caráter de especificidade. Conforme Turato (2003), em estudos qualitativos, interessa conhecer as

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qualidades do fenômeno pesquisado, para formular conhecimentos sobre as propriedades que são inerentes a ele. No caso deste trabalho, interessou abordar aspectos clínicos da desordem borderline, cujo conhecimento, interpretação e significação constituem objeto de interesse. Apesar do delineamento qualitativo, a metodologia da pesquisa previu a utilização de instrumentos tanto qualitativos como quantitativos, cujos dados foram analisados visando à triangulação das informações nos casos estudados. A predominância do aspecto qualitativo sobre o justificou o referido delineamento. A abordagem quantitativa se restringiu à identificação da prevalência de indicadores psicométricos nas escalas, com a finalidade de caracterizar o quadro clínico e especificar comorbidades. Na investigação qualitativa, os dados coletados foram caracterizados pela relação das informações dos sujeitos estudados com os temas propostos e com a análise de aspecto valorativo do fenômeno estudado, não com a idéia de quantificação. Nesse caso, não houve dicotomia entre a abordagem qualitativa e quantitativa, uma vez que os dados quantitativos não prescindem da essência qualitativa do objeto pesquisado. Em outras palavras, um fenômeno qualitativo contém faces quantitativas e vice-versa; são duas faces complementares de um mesmo problema (Turato, 2003). Por isso, este trabalho foi desenvolvido em uma abordagem quantitativa com análise estatística (freqüência) e qualitativa com análise do fenômeno no que se refere ao conteúdo o discurso das pacientes. A pesquisa também foi classificada como de campo, pois os dados foram coletados no setting da Clínica CYCLUS, considerado local específico do tratamento das pacientes objeto de investigação (Turato, 2003). 3.2 Participantes Foram escolhidos, intencionalmente, quatro pacientes do sexo feminino, com idade entre 25 e 40 anos, portadoras de TPB, não acometidas de drogadição ativa, doença organocerebral ou gravidez, diagnosticadas pela CID-10, DSM-IV e pelo teste de Rorschach.

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Elas foram selecionadas por serem usuárias do Instituto de Saúde Mental (ISM), Hospital São Vicente de Paulo (HSVP) ou da Clínica CYCLUS e por residirem no Distrito Federal. Para a participação na pesquisa, assinaram um termo de consentimento informado, segundo o modelo no Anexo II. Como uma paciente desistiu e outra faleceu, ao longo da pesquisa, a investigação limitou-se a duas respondentes. As pacientes incluídas neste estudo foram diagnosticadas anteriormente por psiquiatras e por psicólogos que trabalhavam no HSVP, da Secretaria de Saúde do Distrito Federal, e estavam sendo acompanhadas clinicamente pela pesquisadora. Elas foram submetidas ao psicodiagnóstico de Rorschach, cujo resultado confirmou serem portadoras de TPB, com ou sem comorbidades com outros transtornos psiquiátricos. Para afastar a possibilidade de as pesquisadas serem portadoras de doenças físicas, que mimetizassem sintomas psicológicos, elas foram submetidas a exames laboratoriais, eletrofisiológicos e de imagens, que se mostraram necessários durante a avaliação clínica. Nesta pesquisa, as participantes foram avaliadas sobre as questões relacionadas com o tema de pesquisa, por meio dos instrumentos de coleta delineados abaixo. 3.3 Instrumentos Os dados foram coletados por meio de entrevistas clínicas semi-estruturadas (psicológica e psiquiátrica); da Escala de Mania de Young, que no Brasil e nos países de língua portuguesa recebeu o nome de EAM-m (m de modificada); do Inventário de Depressão de Beck (BDI). O teste de Rorschach foi utilizado como exame complementar para confirmação do diagnóstico de TPB. É comum os pacientes limítrofes ou borderlines serem categorizados como portadores de vários transtornos, até que se consiga chegar a seu diagnóstico mais preciso, como foi dito. Por isso, neste trabalho, foram utilizados instrumentos distintos de pesquisa, para a detecção do maior número possível de dados sintomatológicos e psicodinâmicos que pudessem

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favorecer efetivamente a investigação da psicopatologia e da psicodinâmica das pacientes em estudo. 3.3.1 Entrevistas semidirigidas Para Turato (2003), a entrevista é um instrumento “precioso” de conhecimento interpessoal, porque facilita, no encontro pessoal, a apreensão de uma série de elementos de identificação do fenômeno pesquisado e conseqüente construção de um “perfil” do entrevistado. A entrevista semidirigida é um tipo intermediário entre as entrevistas diretiva (ou fechada) e a não diretiva (livre ou aberta). Essa entrevista é iniciada com o avaliando falando e o pesquisador intervindo, visando clarear pontos obscuros e ampliar as informações. Neste trabalho, foram utilizadas duas entrevistas semidirigidas: uma psicológica baseada em Bergeret (2006) e outra, psiquiátrica. A entrevista psicológica teve como finalidade compreender o funcionamento psicológico e psicodinâmico do indivíduo (aspectos do funcionamento psicodinâmico, relacionamentos objetais, angústias, defesas, dentre outros). A entrevista psicológica foi baseada na perspectiva de Bergeret (2006), sendo elaborada e aplicada por uma psicóloga e a psiquiatra pesquisadora deste trabalho. O teor das questões semidirigidas é de cunho psicodinâmico. O roteiro da entrevista psicológica encontra-se no Anexo III. Cordioli (2005) definiu entrevista psiquiátrica como aquela semidirigida que objetiva: a avaliação psiquiátrica (anamnese, exame do estado mental, hipóteses); a indicação ou não do tratamento; a psicoterapia; a realização de perícias; obtenção de dados para pesquisa; ensino. A entrevista com familiares fez parte da avaliação psiquiátrica e foi usada, nesta pesquisa, para evidenciar doenças de predisposição hereditária e apreender o funcionamento dos membros da família relacionados com o pesquisado. O roteiro da entrevista psiquiátrica está no Anexo III.

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3.3.2 Escala de Mania (EAM-m) e o Inventário de Depressão de Beck (BDI) A EAM-m foi selecionada por ser capaz de detectar episódios de hipomania, mania ou mistos, cuja presença confirma o diagnóstico de TEBH em pacientes que antes apresentavam apenas episódios depressivos e/ou distímicos. Para detectar a presença e a intensidade do humor depressivo, usou-se o BDI. Ambos os modelos encontram-se no Anexo IV. A escala de mania visa à caracterização de sintomatologias do espectro bipolar de humor, sobretudo porque esse quadro pode ser confundindo com apresentações clínicopsiquiátricas, como: transtornos psicóticos (esquizoafetivos, orgânicos, etc.), secundários ao abuso ou a abstinência de substâncias e transtornos de personalidade, especialmente, o borderline (Gorenstein & cols., 2000). Antes de aplicação dessa escala, foi feita uma avaliação através da entrevista semidirigida que acompanha aquela. O instrumento quantitativo EAM-m elenca 11 itens, baseados em sintomas essenciais do quadro maníaco, e encontra-se ilustrada nos anexos deste trabalho. Cada item da EAM-m contém cinco níveis de gravidade, sendo, por exemplo, 0 = ausência de sintomas maníacos e 4 = presença mais constante do sintoma em sua forma mais grave. Desses itens, 4 têm peso dobrado (pontuados com múltiplos de dois, entre valores de 0 a 8): irritabilidade, velocidade e quantidade da fala, conteúdo do pensamento e comportamento disruptivo agressivo. O escore total é resultado da soma dos escores de cada item individual. Também se observa na EAM-m que, excetuando-se os itens aparência e insight, os outros possuem uma correlação entre as classificações DSM-IV e CID-10. Conforme Gorenstein, Andrade & Zuardi (2000), a EAM-m apresentou bons índices de confiabilidade e validade, constituindo-se no primeiro instrumento validado no Brasil, destinado, especificamente, à avaliação de pacientes maníacos. A soma dos escores igual ou maior que 14 evidencia episódio maníaco e necessidade de internação hospitalar para controle da sintomatologia aguda. Escores entre 6 a 13 são preditores de episódios hipomaníacos.

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O BDI, conforme Gorenstein, Andrade & Zuardi (2000), é a medida de auto-avaliação da depressão mais usada, tanto na clínica, quanto na pesquisa, e não pretende ser diagnóstica; deve ser usada em pacientes diagnosticados por meio de entrevistas clínicas. O objetivo desse instrumento é complementar a avaliação sob o ponto de vista do avaliando. Desde 1996, Beck e cols.. (citado por Gorenstein, Andrade & Zuardi, 2000) criaram a versão BD II, para que ela refletisse, com mais precisão, os critérios diagnósticos do transtorno depressivo maior do DSM-IV. Quatro itens foram retirados da nova versão - perda de peso, distorção da imagem corporal, preocupação somática e inibição para o trabalho - e foram substituídos por graus mais intensos de sintomas depressivos: agitação, inutilidade, dificuldade de concentração e perda de energia. A versão BD II foi usada para avaliar os sujeitos pesquisados neste trabalho. Para pacientes previamente diagnosticados com depressão, Beck & cols. (1988, citados por Gorenstein, Andrade & Zuardi, 2000) definiram o seguinte, para identificação do nível da depressão: escores menores que dez (sem depressão ou depressão mínima), escores de 10 a 18 (depressão leve a moderada), escores de 19 a 29 (depressão moderada a grave) e escores a partir de 30 (depressão grave). A comparação entre diversos estudos internacionais e um estudo da Universidade de São Paulo (USP), portanto de distintas culturas, demonstrou a confiabilidade do instrumento e evidenciou sua validade (Gorenstein, Andrade & Zuardi, 1995, citado por Gorenstein, Andrade & Zuardi, 2000). Os resultados obtidos confirmaram a validade discriminante da versão brasileira, que foi aceita pela capacidade de diferenciar pacientes deprimidos de ansiosos e de sujeitos normais (Gorenstein e Andrade, 1996, citados por Gorenstein, Andrade & Zuardi, 2000). 3.3.3 Exames complementares Os exames complementares realizados com os sujeitos da pesquisa foram: laboratoriais de rotina médica (afastar doenças orgânicas); eletroencefalograma digital com mapeamento cerebral e o SPECT.

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Não foi solicitada a RNMf, porque no Distrito Federal, não há esse tipo de abordagem complementar e nem a PET, cujo custo financeiro é alto. Por isso, optou-se pela SPECT, que agrega boa resolução de imagem e tem preço mais acessível que aquele. Com o SPECT cerebral e o eletroencefalograma digital com mapeamento cerebral, buscou-se detectar, respectivamente, áreas cerebrais hipoperfundidas/hiporreativas ou hiperperfundidas/ hiperreativas e disritmia cerebral. Esses últimos exames foram importantes para afastar a possibilidade de existência de doença organocerebral, que poderia ser a causa da sintomatologia psiquiátrica que ora as pesquisadas apresentam. O Teste de Rorschach, utilizado somente como exame complementar para confirmação do diagnóstico psiquiátrico, foi aplicado e analisado por psicólogos treinados. É também conhecido como teste das manchas de tinta e objetiva detectar dados que possam evidenciar a personalidade do indivíduo. É um teste considerado projetivo, porque se supõe que a pessoa projete seu modo de funcionamento da personalidade quando associa livremente o que vê nas manchas de tinta. Segundo Pervin & John (2004), esse teste foi desenvolvido pelo psiquiatra suíço Hermann Rorschach, que conhecia o trabalho de Freud, o conceito de inconsciente e a dinâmica da personalidade. Rorschach acreditava que esse teste poderia aumentar o entendimento sobre o funcionamento psicológico e psicodinâmico, bem como identificar o perfil psicológico dos sujeitos que a eles se submetiam, permitindo a realização do diagnóstico diferencial. 3.4. Procedimentos para Coleta dos Dados Os dados foram coletados na Clinica CYCLUS, após aprovação da pesquisa pelo Conselho de Ética da Universidade Católica de Brasília. Em relação aos participantes da pesquisa, os procedimentos adotados acompanharam a seguinte ordem:

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-

contato com as participantes, no qual elas foram informadas sobre a pesquisa e seus objetivos, bem como inquiridas sobre a possibilidade de participar ou não. Seus familiares foram esclarecidos sobre as implicações que um estudo como esse apresenta e informados de que poderiam retirar o termo de consentimento em qualquer fase da pesquisa, o que significaria a exclusão do estudo;

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avaliação psiquiátrica, que incluiu a entrevista psiquiátrica, exames médicos complementares, entrevistas com familiares;

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realização das entrevistas clínicas psicológica, num total de quatro encontros (de uma hora cada um) para cada paciente, e psiquiátrica, num total de seis encontros para cada paciente, sendo que o último encontro foi para a devolução dos dados;

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aplicação mensal da escala EAM-m, por quatro meses consecutivos (julho a novembro de 2007), sendo os resultados confrontados com as definições de episódio hipomaníaco ou maníaco em todas as aplicações, segundo critérios da CID10 e do DSM-IV;

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aplicação mensal do BDI, nos meses de outubro e novembro de 2007.

Na realização das entrevistas, foram considerados os aspectos indicados por Bergeret (2006), relacionados com a clínica livre e com uma atenção flutuante, como: a) discurso – expressão verbal, densidade do discurso, clima do diálogo, inibições intelectuais, facilidade de evocação e elaboração de recordações, reticências, débito verbal (rapidez, tomadas de distância no discurso, silêncio, pausas, rejeições, paradas); b) afetividade e angústia – evolução afetiva, agressividade, inibições afetivas; c) relação com a realidade – grau de adaptação; d) funcionamento mental – fantasias e representações, sonhos, conflitos e defesas postas em ação contra o próprio sujeito do discurso, reticências e projeções; e) comportamento – flexibilidade ou rigidez nas atitudes, mímicas; f) pensamento – lentificação, aceleração e confusão; g) sintomas – funcionamento geral das investigadas em níveis mental,

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comportamental e somático, distinção entre o agir de descarga, para evitar o tempo do desejo e suas representações, e o agir como prelúdio à elaboração verbal 3.5 Procedimentos para análise de dados A pesquisa previu a triangulação dos dados em uma abordagem quantitativa e qualitativa interpretativa (Bauer & Gaskell, 2002; Turato, 2003; Becker, 1992). Na escala EAM-m, privilegiou-se a análise quantitativa dos dados, buscando estabelecer inter-relações e freqüências sintomatológicas. O BDI proporcionou escores para a detecção do humor depressivo e de sua intensidade. Na avaliação da escala EAM –m, obteve-se um escore final, que é composto pela soma das pontuações de cada um dos seguintes itens: (1) humor e afeto elevados; (2) energia e atividade motora elevadas; (3) interesse sexual; (4) sono; (5) irritabilidade; (6) velocidade e quantidade da fala; (7) linguagem (distúrbio do pensamento); (8) conteúdo do pensamento; (9) comportamento disruptivo agressivo; (10) aparência e (11) insight. O escore final pode variar de 0 a 58 pontos. Os critérios de diagnóstico foram: se a paciente avaliada na EAM–m apresentasse um escore igual ou maior que 14, seria diagnosticada como portadora de episódio maníaco. Paciente em episódio maníaco (segundo o DSM-IV-TR e a CID10) deveria apresentar humor irritável, desconfiado, elevado ou misto com inquietação psicomotora e prejuízo socioprofissional

por

pelo

menos

uma

semana

(CID10,

1993),

acompanhados,

particularmente, por pressão por falar, diminuição da necessidade de sono, grandiosidade e otimismo excessivo. O episódio hipomaníaco é um grau mais leve de mania, com alterações de humor (irritabilidade, disforia ou misto), com depressão e mania ou elevação do humor e aumento da atividade, presentes, pelo menos, durante alguns dias, mas sem alucinações e/ou delírios. Se ocorrer sintomas psicóticos, o episódio hipomaníaco passa a ser classificado como episódio maníaco (CID 10, 1993). A paciente que apresentar pelo menos um episódio

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hipomaníaco ou maníaco, não associados a uso de drogas e/ou doença organocerebral, será diagnosticado como portadora de transtorno do espectro bipolar do humor. Tanto para a CID 10 (1993) quanto para o DSM-IV-TR (2003), episódios hipomaníacos, maníacos ou mistos únicos em pacientes deprimidos mudam o diagnóstico de transtorno depressivo para transtorno afetivo (ou do espectro) bipolar do humor. Para constatar a presença de episódio depressivo nas pesquisadas deste trabalho, foi usada a escala de Beck para depressão. Na apresentação dos resultados das escalas, foram correlacionados os sintomas e sinais com as classificações médicas, relacionando fatos que pudessem interferir na sintomatologia das pacientes durante a pesquisa. Nas entrevistas, privilegiou-se a apreensão das significações na construção da linguagem discursiva. As entrevistas foram analisadas buscando integrar núcleos interpretativos das abordagens psiquiátrica e psicodinâmica. Na entrevista psiquiátrica, foram observados os critérios de Cordioli (2005), cuja descrição teve finalidade diagnóstica e integrou a avaliação psiquiátrica. Na entrevista psicanalítica, foram consideradas as indicações de Bergeret (2006), quanto aos focos destacados do fenômeno TPB. Em relação aos procedimentos de análise, observou-se o roteiro de Turato (2003), segundo o qual a avaliação das entrevistas deve obedecer à sequência seguinte de tratamento e apresentação: 1) preparação inicial do material (transcrições de entrevistas gravadas e anotações de campo); 2) pré-análise (leituras flutuantes, busca do não-dito); 3) categorização e subcategorização; 4) apresentação dos resultados (descritivamente, citando ilustrativamente as falas, preparando o material coletado para discussão, inferência e interpretação). Para atendimento ao item 3 citado por Turato, os dados a serem analisados foram retirados da fala dos sujeitos, representando núcleos de sentido que foram relacionados com o objetivo da investigação. Esse núcleos foram considerados unidades, conforme a definição de

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Bardin (2001, p. 105), de que unidade é um aspecto “(...) que se liberta de um texto analisado segundo critérios relativos à teoria que serve de guia à leitura.” Os dados foram interpretados buscando integrar as abordagens psicanalítica e psiquiátrica. Ao final, os dados de todos os instrumentos foram apresentados e discutidos isoladamente e em conjunto, de modo a demonstrar a perspectiva sindrômica no TPB e a psicodinâmica; a relação do TPB com o trauma; a discussão da relação de comorbidade, particularmente, com TEBH.

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Capítulo IV

RESULTADOS: HISTÓRIA, DIAGNÓSTICO, SINTOMATOLOGIA, PSICODINÂMICA EM DUAS MULHERES BORDERLINE

Neste capítulo, são apresentados os dados coletados no estudo de caso das duas pacientes pesquisadas, cognominadas Márcia e Laura. Esses dados contribuíram para: o delineamento dos indicadores sintomatológico, a construção da psicodinâmica e a detecção de comorbidades, conforme a Psiquiatria. Foram reunidos, nos dois quadros de TPB, indicadores que possibilitassem a análise da relação desse transtorno com o espectro bipolar do humor, haja vista as dificuldades diagnósticas e terapêuticas relacionadas, bem como as semelhanças sintomatológicas e dinâmicas com outros quadros clínicos. A apresentação dos dois casos encontra-se estruturada da seguinte forma: 1) avaliação psiquiátrica (história psiquiátrica, antecedentes sociais, familiares e fisiopatológicos; curva de vida; exames psíquico, físico, neurológico e exames complementares); 2) análise quantitativa dos dados coletados na EAM-m e no BDI; 3) análise qualitativa das entrevistas semiestruturadas, seguindo

eixos extraídos dos núcleos comuns de sentido, originados das

entrevistas, quais sejam: natureza dos vínculos; reações a perda dos vínculos; auto-imagem e hetero-imagem; relação com a realidade; mecanismos de defesa; fatores traumáticos. Nos dois casos, buscou-se traçar a psicodinâmica do TPB de acordo com os citados aspectos apontados por Bergeret (2006) e avaliar o diagnóstico segundo a propedêutica psiquiátrica, trazendo informações suplementares dos exames complementares e das escalas. Os casos estudados foram apresentados separadamente por paciente, a partir da história psiquiátrica, seguidos do resultado das entrevistas psicológicas. A ordem entre elas foi aleatória.

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4.1 O Caso Márcia Dados de identificação: M., 38 anos, natural do Distrito Federal Estado civil e escolaridade: solteira, nível superior incompleto, residente no DF. 4.1.1 Avaliação psiquiátrica a) História psiquiátrica, antecedentes sociais, familiares e fisiopatológicos; curva de vida: Márcia relatou que nasceu no DF e, logo depois, foi morar com os pais em Belo Horizonte, onde residiu até os três anos de idade, quando eles se separaram. Após a separação, sua genitora veio morar com ela no Distrito Federal. A paciente referiu que, na época, eles brigavam muito e que teria visto, aos 3 anos de idade, o pai com outra mulher, na cama. Diz que informou à genitora e, por isso, ela separou-se dele. Enquanto morou com os pais em Belo Horizonte, diz que “passou fome” e lembra várias discussões entre os pais. Na infância, no DF, a paciente não tinha amigos, sentia-se isolada e era depreciada pelos colegas da escola. Aos 7 anos, atirou uma pedra na cabeça de um menino que a teria insultado. As tentativas de auto-extermínio iniciaram nessa idade, quando ingeriu comprimidos em excesso. Desde então, essas tentativas são freqüentes em momentos de desespero Apesar de não conseguir fazer amizades, estudava e obtinha notas máximas, sendo a primeira ou segunda colocada da sala de aula. Segundo ela, sua mãe criou-a sozinha até os 11 anos de idade, quando seus pais voltaram a viver juntos. A paciente teria pedido à mãe para que eles reatassem. Ela sentia-se culpada por essa reconciliação, pois o pai, alcoolista, depreciava e agredia as duas desde que retornou. O casal teve outra filha após a reconciliação, a qual é 11 anos mais nova que a paciente. Após o reatamento do casal, o pai continuava bebendo, sem ajudar em casa. Numa das discussões do casal, o pai tentou agredir sua genitora e a paciente defendeu-a com uma faca.

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Nesse período, com o pai, iniciou o uso de bebida alcóolica aos 11 anos, tornando-se alcoolista aos 12. Quando não bebia com ele nos botecos, trancava-se no quarto e bebia escondida. A paciente relembra que seu pai tinha comportamentos antagônicos com ela: ao mesmo tempo em que a desvalorizava, ia com ela beber em bares, na presença de outros homens alcoolizados, e não permitia que ela namorasse. Ela sentia repugnância e pena dele. Da mãe, a paciente lembra que ela sempre lhe apoiou, queria que ela estudasse mas também não aceitava que namorasse. Aos 12 anos, a paciente foi expulsa de casa pelo pai, após uma discussão por causa de um lápis; foi acolhida por uma tia materna. Depois, outra tia convidou-a a morar com ela e, desde então, residiu a maior parte de sua vida com essa tia. Quando foi morar com as tias, ela as ajudava nos afazeres domésticos e era auxiliada nos estudos por ela. A relação com a mãe ficou distante, e estreitou laços afetivos com a tia. Na adolescência, era cognominada de “plataforma do diabo” pelos colegas, ao tempo em que batiam na sua cabeça, chamando-a de “testa de amolar facão”. Aos 19 anos, teve sua primeira relação homossexual que durou vários anos. Por dois anos, moraram na mesma casa ela bebia excessivamente e, motivada pelo álcool, agredia fisicamente a companheira. Diz que criava motivos para bater nela, que não revidava. No início da relação, sentia-se apaixonada, mas depois abandonou-a pela segunda companheira. Nessa época, sentia-se muito instável, com mudanças de humor. Também aos 19 anos começaram as autolesões. A primeira ocorreu após aborrecimento no local de trabalho. Depois disso, frequentemente ia para o trabalho com roupas de frio para esconder os ferimentos nos braços. Logo depois, passou a “ter medo das pessoas, achando que elas falavam mal de si”. Não raro, ia com a mãe para o trabalho, com medo de ser mal tratada. Aos 25 anos, foi morar em Goiânia para fazer o curso superior de Enfermagem. Lá, conheceu a segunda companheira e “foi amor à primeira vista”. Voltaram para o DF. Ela

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afirmou que essa companheira foi muito importante em sua vida, porque “lhe apresentou como alcoólatra para a família”. A relação era boa e chegaram a trabalhar juntas em hospitais do DF. A companheira, também auxiliar de enfermagem, ajudava-a nas tarefas hospitalares. Nessa época, fez vários concursos e foi aprovada em primeiro lugar para o cargo de auxiliar de enfermagem (AE) em um importante órgão legislativo, mas não assumiu, porque sentiu-se “incapaz e travada”. Conseguiu ser aprovada também para o cargo de AE na então Fundação Hospitalar do Distrito Federal. Ela e a companheira trabalhavam no mesmo hospital. Nessa unidade de saúde, era considerada uma ótima funcionária, e as enfermeiras lhe delegavam atividades mais difíceis. Isso mudou quando ela intensificou o uso de álcool, passando a chegar atrasada e a ter dificuldades para realizar as tarefas que lhe confiavam. Entre os 28 e 29 anos, foi internada por várias vezes em uma clínica psiquiátrica, para tratamento de alcoolismo. Quando estava sóbria, as oscilações de humor continuavam, tendo sido diagnosticada, nessa época, como “bipolar”, iniciando o uso de psicofármacos. Decorridos quatro anos do início da segunda relação homossexual, a segunda companheira iniciou outro romance e separou-se dela. Sentiu a separação, mas logo superou. Era apoiada pela tia, com a qual residia, e atribui a ela o controle sobre a bebida alcoólica. Admite que as relações amorosas com as mulheres foram conturbadas devido a discussões e a suas agressões às companheiras, situações relacionadas com o uso de bebidas alcoólicas e com as oscilações de humor. Dos 31 aos 36 anos, foi internada inúmeras vezes no pronto-socorro de hospital psiquiátrico, depois em hospitais-dia e CAPES, da Secretaria de Saúde do Distrito Federal. No Hospital Psiquiátrico, conheceu um paciente, namoraram e teve a primeira relação sexual com homem, aos 36 anos de idade. Achou “estranha” a relação heterossexual, pois considerava “normal” a homossexual. Um ano depois, terminou aquele relacionamento,

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sentindo-se “arrependida” de ter “perdido a virgindade com aquele homem doido, que não amava”. Depois, apaixonou-se por outro, mas só namoraram por dois meses; considera-o “o grande amor de sua vida”. Ele a teria abandonado devido a suas constantes autolesões e idas ao hospital. Sofreu durante meses com a perda e deprimiu-se, mantendo-se isolada e desesperançada. Em 2004, experimentou o chá do “Santo Daime”, levada pelo primo. No início, ficava eufórica, tinha alucinações visuais e “sentia-se bem, com força interior”. Depois, sentia-se eufórica, mas não conseguia se concentrar, mesmo após ingeri-lo. A euforia se alternava com a irritabilidade, e a depressão com suspicácia, ideação persecutória e/ou de referência, culminando com delírios persecutórios em relação a todos, principalmente, familiares mais próximos, como a tia e primos.. Em 2005, praticou autolesões, sendo frequentemente internada. Sentia-se “aliviada” quando sangrava e, muitas vezes, queria desfalecer até morrer. Refere-se a uma dor profunda na alma, negando dor física nesses momentos. Quando o último namorado terminou o relacionamento, ela foi a uma farmácia, comprou uma lâmina de barbear, hospedou-se num hotel e iniciou o ritual autolesivo. Sangrou até ficar inconsciente e quando acordou, pela manhã, o assoalho do quarto estava impregnado de sangue. Um empregado do hotel percebeu, e ela pediu que o ex-namorado a levasse para o hospital, para que seus ferimentos fossem suturados. Diz que não chamou o ex-namorado para chamar sua atenção e, sim, para não morrer e provocar a morte de sua mãe que lhe dizia: “se você morrer eu vou junto”. Em 2006, o hospital-dia, onde era tratada, foi fechado, e os pacientes foram transferidos paro outro serviço similar. Ela não se adaptou e foi levada para um CAPES, que também abandonou.

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As autolesões e tentativas de auto-extermínio continuaram e eram associadas, geralmente, a situações de abandono, ideações persecutórias e humor depressivo. Nos dias atuais, em momentos de desespero, frustração e/ou depressão, provoca autolesões ou tenta auto-extermínio das seguintes formas: ingere psicofármacos em excesso, injeta substância letal na veia ou fere-se no pescoço ou braços, sangrando até desmaiar. Permanece com ideações de morte e planos suicidas, os quais são contidos pelo sentimento religioso e por temer que a mãe morra de desgosto. Disse que a fé tem evitado tentativas de suicídio mais freqüentes. Acredita em “Deus” e em “ Santa Maria”, aos quais recorre quando desesperada. Sente-se sozinha e abandonada pelos familiares, apesar do apoio da tia e dos carinhos da mãe. Quando se sente “acuada, pressionada para melhorar, ‘chuta o pau da barraca’ e agride os familiares”. Em ocasiões diferentes, tentou ferir a prima com faca e teria sido agredida pela tia com outra faca, após ofendê-la. Diz ter-se trancado no quarto por dias, com medo da prima que “estaria falando mal dela”; chegou a ficar sem comer e a urinar no quarto. Tem certeza que as pessoas com as quais mora falam mal dela e querem que ela vá embora. Quando o “medo aumenta, tranca as janelas e portas da casa e imagina que alguém desconhecido quer matar sua tia, sua prima e a ela”. Isola-se em casa, tem compulsão por compras e vive endividada. Pensou em morar só, mas desistiu, após a morte de uma paciente do último hospital-dia, que foi morar só e suicidou-se. Raramente visita o pai, ora sentindo repugnância por ele, ora pena e culpa. Disse que ele é autodestrutivo e nega o próprio alcoolismo; recrimina-a por seu tabagismo. Sente-se “parecida” com o pai e tem raiva disso. Tenta poupar a mãe, cardiopata e safenectomizada, de suas “crises” e evita conversar com ela sobre suas frustrações e autolesões, porque ela está doente. Tem sentimentos ambíguos em relação à tia, pessoa que a acolhe. Ora acha que ela não a compreende, que quer abandoná-la; ora, reconhece que a tia quer protegê-la. Não consegue

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ficar longe dela, desesperando-se quando ela ameaça viajar ou dá mais atenção a outros familiares. Depois do último relacionamento amoroso, não pretende ter vida amorosa ou sexual. Como se acha “feia, gorda, careca e velha”, crê que as pessoas também a vêem assim. Essa seria a dificuldade para fazer novas amizades. Culpa-se por não ter dado a atenção devida à irmã em sua adolescência e tenta compensá-la por isso, ajudando-a a cuidar da sobrinha. Agradece à irmã por salvá-la em tentativas de suicídio. As vezes que tentou praticar esportes, pagava à irmã ou à prima para acompanhá-la, por não conseguir ficar sozinha. Tem medo de lugares públicos e, quando ia, alcoolizava-se antes. Como fuma após usar fármacos para dormir, tem insônia e sonolência diurna. Gosta de assistir a filmes e de ouvir música em casa. Nas madrugadas, repete o mesmo filme ou música por horas seguidas. Pensa em concluir o nível superior, mas se acha incapaz de conseguir. Pretende participar de um grupo que trabalhe em prol das pessoas portadoras de sua patologia. Quando se sente melhor, suspende a medicação, mas fica deprimida, irritável ou eufórica; torna-se impulsiva, compulsiva e auto e heteroagressiva. Continua isolada, só sai de casa para ir à clínica, na qual se submete a tratamento psiquiátrico e psicológico, ou para resolver questões pessoais urgentes. Antecedentes sociais: além de alcoolista, experimentou cheirar cola de sapateiro e usou maconha. É tabagista e fuma cerca de 40/60 cigarros ao dia. Negou uso de outras drogas de abuso; nega infrações civis e penais. Antecedentes familiares: pai alcoolista, portador de hipertensão arterial e artrite gotosa; mãe cardiopata, hipertensiva, submetida a várias safenectomias mas sem transtorno mental diagnosticado. Tia esquizofrênica falecida recentemente. Alguns tios e primos maternos são esquizofrênicos, têm depressão e TBH; vários suicídios ocorreram entre seus familiares.

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Antecedentes fisiopatológicos: nascida de parto eutócico, a termo. Nuligesta. Negam-se traumatismo crânio-encefálico, cirurgias, convulsões e/ou outras doenças. Além de psicofármacos usuais, nega uso de outros fármacos. Curva de vida: natural do Distrito Federal, morou, logo após o nascimento em Belo Horizonte. É a primogênita de duas filhas do casal. Sua irmã é 11 anos mais nova que ela. Filha de pai pintor de carro e de mãe comerciária. Seus pais se separaram quando tinha 3 anos e se reconciliaram quando ela tinha 11 anos de idade. Além das duas filhas do casal, o pai teria outros filhos com mulheres distintas, com os quais a paciente nunca teve contato. Seu pai, atualmente, está aposentado e sua mãe luta para conseguir aposentar-se por invalidez. Até tornar-se profissional de enfermagem, trabalhou como empregada doméstica e diarista. A paciente tem o segundo grau completo, concluiu cursos de auxiliar e técnica de enfermagem e cursou alguns semestres em Faculdade de Enfermagem, em Goiânia; quando voltou para o DF, frequentou a de Nutrição. Todavia, não conseguiu concluir nenhum desses cursos. Ingressou na FHDF e está aposentada há vários anos por invalidez. É católica e tem simpatia pelo espiritismo. Teve quatro relacionamentos fixos, mas nunca se casou civilmente. Tem casa própria, porém mora com a tia no mesmo lote que os pais. Financeiramente, ajuda pouco na casa da tia, pois está endividada em banco, devido a empréstimos para pagamento de compras excessivas. Atualmente, não tem relacionamento amoroso e vive isolada em sua residência, saindo apenas para o tratamento. Tem só dois amigos que conheceu no HSVP, também portadores de transtornos mentais. Está sendo tratada na Clínica Cyclus. Exame físicos (realizados entre julho e novembro de 2007): a paciente só apresentou ferimentos em ambos os membros superiores em 05.10.2007, quando chegou à clínica com ferimentos lácero-contusos, em consequência de uso de lâmina de barbear. Durante todos os dias de pesquisa, não foram detectadas alterações no exame físico, nem presença de distonias.

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Exames psíquicos: em vários dos 12 encontros durante a pesquisa, de julho a novembro de 2008, a paciente apresentou-se, geralmente, cooperativa e com higiene corporal, cabelos e indumentárias adequadas, vigil, orientada globalmente, humor deprimido, maníaco ou irritável, discurso com velocidade ou conteúdo variáveis (às vezes, com pensamentos rápidos e delírios persecutórios e grandiosos), com ou sem consciência do seu estado mórbido, traços impulsivos, compulsivos, ideações de morte e/ou suicídio. As alterações citadas estão melhor relatadas nas aplicações da EAM-m e BDI. b) Exames complementares - Eletroencefalograma digital com mapeamento cerebral (realizado em 30.10.2007): ausência de atividade irritativa e/ou sinais de sofrimento cerebral; - SPECT (Perfusão cerebral por TC) (31.10.2007): moderada hipoperfusão cerebral difusa, acentuada nas regiões órbito-frontais, associada à discreta hiperperfusão relativa da porção anterior do giro do cíngulo. Tais achados podem ser identificados em pacientes com TPB, devendo-se associá-los a sintomas depressivos. Exames laboratoriais (12.11.2007): - Hemograma: hemoglobina= 13,9 g/dl; hematócrito=39.1%; VCM=90.2 fl; HCM=32.1 pg; CHCM=35.5%; RDW=13.1%. - Leucograma: 8.600/mm3; linfócitos=1720; bastonetes=172; segmentados =6020; eosinófilos =86; basófilos=86; monócitos 516. Obs.: os demais elementos tiveram contagem nula. - Plaquetas= 268.0000/mm3; VMP= 8.1 fl; PCT=0.22%; media PDW=15.9%. - Perfil lipídico: colesterol total=191 mg/dl; triglicerídeos=109 mg/dl;colesterol HDL= 53 mg/dl; colesterol LDL =116.2 mg/dl; colesterol VLDL=21.8 mg/dl; - TGO= 25 U/L; TGP=33 U/L; GGT= 91 U/L (valor normal em mulheres: entre 1 a 24 U/L); creatinina= 0.50 mg/dL; uréia= 19 mg/Dl; LDH= 148 U/L; glicemia= 86 mg/dL.

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- Perfil hormonal: cortisol após dexametasona= 8.4 ug/dL (valor de referência: menor que 5,0 ug/dL); estradiol= 36.55 pg/mL; progesterona plasmática=0,55 ng/ml; prolactina= 9.90 ng/ml; testosterona total =28.0 ng/dl; testosterona livre= 1.40 pg/ml; tsh= 2.15 uui/ml; t4=3.9 mcg/dl; t3=86.12 ng/dl; t4 livre= 0.80 ngdl; t3 livre= 2.40 pg/mL. - Neurotransmissores: serotonina - menor que 20 nanog/ml (valor de referência= 50 a 250 ng/ml); adrenalina= 46 pg/ml; noradrenalina= 112 pg/ml; dopamina= 52 pg/mL. c) Diagnósticos psiquiátricos (segundo a CID10 e o DSM-IV-TR, respectivamente): - Transtorno afetivo bipolar, episódio atual misto (F31.6); Transtorno bipolar I, episódio mais recente misto (296.6); - Transtorno de personalidade emocionalmente instável, tipo borderline (F60.31); - Transtorno da personalidade borderline (301.83); - Transtorno de estresse pós-traumático (F43.1); transtorno de estresse pós-traumático (309.81). 4.1.2 Resultados da aplicação da escala EAM-m e BID a) Resultados da escala EAM-m Os resultados foram extraídos dos dados da EAM-m em seis momentos de julho a outubro de 2007. O Gráfico 1 mostra o escore final da EAM-M da paciente Márcia por consulta.

90

56

42 35 Marcia Normal

28 23

21

20

14

13 7

0 1ª











Gráfico 1: Escore final da EAM-m da paciente Márcia (por consulta)

No dia 21/07/07 (escore final=21), a paciente estava vestida adequadamente e negou elevação de humor e interesse sexual; não demonstrou inquietação motora; queixou-se de diminuição na quantidade de sono habitual; falou mais que o habitual e aparentou irritabilidade, sendo ríspida com a pesquisadora. O discurso era rápido, circunstancial, denotando pensamentos rápidos e idéias supervalorizadas (queixava-se de que seus familiares, inclusive a tia apoiadora, queriam lhe fazer mal e falavam, secretamente, entre si, sobre ela). Durante todo o encontro, mexia-se na cadeira, barulhenta e desconfiada. Admitiu espontaneamente as alterações, mas não as relacionou com a doença, verbalizando que esse comportamento poderia ser normal tendo dúvidas quanto à necessidade de tratamento. No dia 03/08/07 (escore final= 35), apresentou afeto elevado, denotando ironia e baixa crítica. Inquieta e animada, gesticulava em excesso. Relatava espontaneamente aumento do desejo sexual e verbalizou que iria procurar alguém para ter contato sexual imediato. Negou necessidade de sono, mostrando-se irritável e logorréica, mas conseguia interromper a fala

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quando a pesquisadora a inquiria. Os pensamentos estavam acelerados e mudava de assunto frequentemente, perdendo a objetividade das idéias. O conteúdo do pensamento tinha idéias delirantes persecutórias e de auto-referência em relação a todas as pessoas, inclusive à pesquisadora. Manteve-se, nesse evento, barulhenta, irônica, desconfiada e estava vestida descuidadamente e com adornos inadequados. Por muita insistência da pesquisadora, concordava vagamente sobre estar com alteração comportamental, mas não admitiu que isso fosse relacionada à doença, verbalizando que estava muito bem e não precisava de tratamento. Em 23/08/07 (escore final=23) estava vestida adequadamente, não aparentando alteração de humor ou afeto, mas relatou aumento de energia e atividade motora. Não referiu aumento ou diminuição de desejo sexual e enfatizou falta de necessidade de sono. A fala estava, frequentemente, rápida, chegando à verborréia, circunstancialidade, em alguns momentos. Irritável durante a entrevista, confirmou que estava muito irritada nas últimas 24 h. Ainda verbalizou ideação persecutória mas cedeu, parcialmente, às argumentações lógicas da entrevistadora. Manteve o tom irônico, às vezes, sarcástico, ao tempo que admitia estar doente e vislumbrava a possibilidade de precisar de tratamento. No quarto encontro, dia 21.09.07 (escore=7), apresentou-se vestida e penteada adequadamente, queixava-se de dormir menos que o habitual e demonstrava ideação de morte e suicídio (sem planos imediatos ou concretos) nas últimas 48 h. Verbalizou interesses compatíveis com sua condição sociocultural, porém questionáveis do ponto de vista prático imediato. Durante toda a inquirição, demonstrou irritabilidade e confirmou que isso vinha sendo constante nos últimos dias. Apesar das queixas, admitia a possibilidade de estar doente e de necessitar de tratamento psicofarmacológico; não aceitando psicoterapia imediata. Não pontuou nos seguintes itens: elevação de humor ou afeto, inquietação motora, interesse sexual, quantidade e velocidade da fala, linguagem/forma de pensamento e comportamento disruptivo agressivo.

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No penúltimo encontro, ocorrido no dia 05/10/07 (escore final=20), apresentou-se com aparência descuidada, com vários ferimentos (autolesões) profundos em ambos os braços, provocados nas últimas 48 h. Tinha ingerido todos os psicofármacos prescritos de um única tomada e estava, há vários, dias usando só o clonazepam 4 mg/noite. Apesar de não aparentar elevação de humor, mostrava-se alegre, otimista e autoconfiante, referindo, espontaneamente, hipersexualidade, ausência de necessidade de sono e insônia. Durante a entrevista, relatou irritabilidade, afirmou estar falando mais que o habitual – queixas que não se refletiam nos sinais clínicos. Em alguns momentos, denotou pensamentos rápidos, discurso circunstancial com interesses incompatíveis com sua realidade sociocultural, ideações de grandiosidade e delírios persecutórios. Inquieta e irônica, na maior parte da entrevista, demonstrou sarcasmo ao responder algumas perguntas. Nesse dia, encontrava-se com discernimento prejudicado, negou doença mental e necessidade de tratamento, apesar de verbalizar mudança em seu comportamento atual. Informou que ficava melhor sem os medicamentos e que sua tia teria concordado com isso. A tia negou tal afirmação. Finalmente, no dia 19/10/07 (escore final=13), a paciente Márcia estava vestida adequadamente, com humor deprimido, lacônica, queixando de falta de necessidade de sono, ideação persecutória em relação aos familiares e ideação paranóide de conteúdo místicoreligioso (“Abandonei Deus e voltei-me para o diabo. Sou medíocre”). Mesmo desconfiada, chegou a questionar com a pesquisadora a doença e a necessidade de possível tratamento. Sua tia esquizofrênica havia falecido no dia anterior a esse encontro. Estava usando regularmente os psicofármacos introduzidos no penúltimo encontro. Na última avaliação, não pontuou nos seguintes itens: elevação de humor ou afeto, atividade motora, interesse sexual, irritabilidade, velocidade e quantidade da fala, linguagem-forma de pensamento e comportamento disruptivo-agressivo.

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No Gráfico 2, observa-se, no 1.º dia, um aumento percentual de 36% de itens positivos para o episódio maníaco (12% a mais de itens em relação ao ponto de corte de 24%). No dia 2, foi detectada a porcentagem de 60% de itens positivos para o quadro maníaco, com 36% da soma dos itens a mais que o percentual do ponto de corte. No dia 3, houve diminuição no percentual dos sintomas maníacos em 20%, mas ainda permanecia o percentual de 40% com 16% de percentual a mais do que o ponto de corte. Essa queda na sintomatologia foi atribuída ao uso de medicação de forma regular, segundo a tia. No dia 4, Márcia apresentou 12% de sintomas positivos, abaixo 12% em relação ao ponto de corte. Ela vinha usando os psicofármacos, mas permanecia com ideação de morte (sem planos suicidas imediatos) e irritável. No dia 5, ocorreu um aumento da soma dos itens, com 34% de positividade sintomatológica maníaca, havendo uma diferença percentual de 12% acima do ponto de corte. Isso pode ser relacionado ao fato de que 48h antes havia ingerido toda medicação, exceto o clonazepam que aumentou a dosagem para dormir. Ao exame psíquico, observaram-se sintomas de humor mistos e psicose. Nesse dia, a pesquisadora introduziu novo esquema e solicitou vigilância familiar redobrada. O novo tratamento e o apoio familiar foram eficazes e, no dia 6, ela apresentou 22% na soma dos itens da escala, 2% abaixo da porcentagem do ponto de corte, podendo-se considerar que foi o dia no qual ela esteve mais próxima da eutimia.

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Escore 96%

72% 60% Marcia Normal

48% 40%

36%

34%

24%

22% 12%

0% 1ª









6ª Consulta

Gráfico 2: Percentual da pontuação máxima da EAM-M da paciente Márcia por consulta

O Gráfico 3 demonstra que, no dia 2, houve um aumento de 31% de itens positivos para mania, em relação ao dia 1 da avaliação, evidenciando-se a progressão do quadro maníaco. No dia 3, mesmo usando a medicação irregularmente, houve uma soma de itens cujo percentual foi igual a 10% de sintomas a mais do que o valor encontrado na primeira consulta, provavelmente em decorrência dos psicofármacos. No dia 4, houve uma queda do percentual em relação à primeira consulta, com um percentual de 67% abaixo do percentual da linha de base, correspondente ao dia 1. Essa diferença percentual entre o dia 1 e o dia 4 revela que o uso regular do esquema psicofarmacológico foi fundamental para a melhora sintomatológica apresentada por Márcia. Entre os dias 4 e 5 da pesquisa, ela desenvolveu um quadro misto de humor; ingeriu a maioria do medicamentos numa única tomada e chegou nessa avaliação com quadro misto de elevação de humor e psicose. No dia 5, a pesquisadora substituiu alguns psicofármacos por outros e alertou a família quanto à necessidade de vigilância mais eficiente sobre Márcia. Nesse dia, houve 5% de sintomas positivos menos que o dia 1. No dia 6, com

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os resultados positivos dos novos procedimentos adotados, houve melhora no quadro psíquico geral, com uma queda na soma do itens, sendo detectado um percentual de 38% a menos de sintomas em relação ao dia 1.

100%

67% 50%

10%

-5%

0% 1ª











Marcia

-38% -50% -67%

-100%

Gráfico 3: Percentual de aumento acumulado da EAM-m em relação a 1ª consulta da paciente Márcia (por consulta)

b) Resultado do BID Esse instrumento foi aplicado nos meses de outubro e novembro de 2007, a partir da semana seguinte à última aplicação da escala EAM-m. O Gráfico 4, abaixo, mostra os resultados do inventário BID da paciente Márcia por consulta. No dia 26/10/2007, a paciente apresentou score final de 36, enquanto no mês (até 12/11/2007), esse escore chegou a 40. Nas duas aplicações realizadas, houve compatibilidade de sintomas (subjetivos) e sinais (objetivos). O escore 40 desse instrumento reflete epísódio depressivo grave. O Gráfico 4 apresenta também os dois escores detectados no dias 26/10 e 12/11/07, os quais evidenciaram episódios depressivos graves nas duas aplicações da BDI, apresentando a

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comparação dos resultados do humor depressivo de Márcia com as faixas que configuram os episódios leve, moderado e grave do mesmo instrumento. Os escores obtidos nesses dias coincidiram com o término da pesquisa, com o maior isolamento de Márcia, a ausência de psicoterapia e a retirada de antidepressivos.

Gráfico 4: Resultados do inventário para depressão de Beck da paciente Márcia por consulta

4.1.3 Análise qualitativa das entrevistas semi-estruturadas a) Natureza dos vínculos Os modos pelos quais Márcia se vincula às pessoas refletem aspectos de sua história de vida, desde a infância. Tais aspectos geraram características específicas que, isoladamente ou em conjunto, marcam as suas relações com familiares e amigos, constituindo seu modo agir.

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A natureza desses vínculos se mistura ao modo como eles funcionam, na sua psicodinâmica, sendo muito difícil separá-los. Por isso os efeitos de um e de outro são estudados em conjunto Relação com o pai A figura paterna é o centro em torno do qual as ações narradas por Márcia ocorreram e os sentimentos dela se desenvolveram. Essa relação é marcada pelo sentimento de violência e por situações de abuso moral e psicológico, estando presentes, também, a culpa, a ambivalência afetiva e ideativa e afetos contraditórios, como a idealização e a desvalorização da figura paterna. Violência Márcia, desde a infância, relata ter presenciado cenas de violência contra a mãe, nas quais supõe-se que ela se sentia indiretamente violentada. As violências morais e psicológicas contra ela começaram a ocorrer de forma mais evidente por volta dos 11 anos, com a indução pelo pai ao alcoolismo, sua depreciação e exposição a situações degradantes e inadequadas, sentidas como abuso e vividas como desproteção. Olha, a única coisa que eu me lembro, com certeza de ele ter feito é: ele me magoava muito e me ofendia bastante... Bom, meu pai, como sempre...eu me lembro dele bêbado...ele cobrava muito, ele me exigia, nunca deixou eu namorar, nunca deixou eu aparecer com o namoradinho, com algum homem perto de casa... nunca deixou eu sair. Mas, em compensação, por outro lado, ele me levava pros botecos pra beber com ele. Então era assim: era, ao mesmo tempo que ele me liberava para entrar no boteco, cheio de homem, beber com ele, mas, ele segurava nessa parte! Ambivalência Márcia caracteriza a relação com o pai pela dualidade afetiva, trazendo percepções e sentimentos ambíguos em relação a ele. Essa ambigüidade relacional se estende para a sua relação com o mundo e com os outros.

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... dele tá... o tempo todo se drogando... na bebia, o tempo todo querendo a morte, enche a cara, enche o prato de óleo e depois coloca muito sal, se tiver pimenta ele coloca depois bebe, volta, come mais alguma coisa assim que faz mal ... isso me dá uma raiva!!!. Afetos positivos, como perdão, pena, cuidado e aceitação são permeados por hostilidades, raiva e repugnância, conotando um vínculo objetal marcado pela ambivalência. Os afetos ambivalentes, relativos ao mesmo objeto e com intensidade semelhante, na mesma formação discursiva, denotam a incidência da clivagem objetal, pai bom e mau. Essa ambivalência também aparece sob forma de rejeição e de culpa. A rejeição de Márcia à figura paterna aparece em sua fala, quando ela comenta e não identifica a causa desse sentimento, apesar de saber quando ele começou, relacionando-o à lembrança relativa à sua memória de infância aos três anos. Em seus sentimentos ambivalentes em relação ao pai, Márcia disse sentir por ele, em situações diferentes, repugnância e pena. (...) comecei, não sei por que, a achar que meu pai deveria voltar mas quando ele ligou, quando eu tinha, é, 10 anos, (...) eu senti uma certa repugnância por ele! Eu não sabia de onde vinha essa repugnância por ele! Mas, na realidade, eu não queria que ele voltasse... E porque quando ele voltou isso foi tão frustrante para mim! (g.n.) Às vezes, eu penso que é por causa da bebida que eu não consigo me relacionar com ele. Mas, às vezes, eu acho que é porque eu tenho repugnância por ele, que eu não sei de onde vem essa repugnância...às vezes eu aceito bem ele e, às vezes, eu não consigo olhar para a cara dele! A repugnância é um dos mecanismos inconscientes pelos quais o ego se distancia dos impulsos considerados perigosos para a integridade do indivíduo, principalmente quando envolve a moral. É uma formação reativa por meio da qual Márcia pode estar encobrindo um sentimento de desejo pelo pai. A repugnância funciona como uma barreira que reprime a idéia original, excluindo da consciência a auto-reprovação moral que pode surgir se ela admitir essa idéia. A repugnância é um sentimento que se opõe ao desejo real, através do qual o desejo inconsciente dela é reprimido pelo ego. Concordar com a volta do pai é como se o desejo

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falasse mais alto, e o ego precisasse imediatamente encobri-lo, demonstrando um sentimento totalmente oposto a ele, numa repressão moral. Tanto que logo após ela diz que “na realidade não queria que ele voltasse”, num processo de racionalização justificado pelas brigas do casal (pai-mãe). A frustração de Márcia pela volta do pai, expressão de seu sentimento ambivalente (diz para o pai voltar, mas frustrou-se quando isso ocorreu), tem sentido quando o pai, objeto de seu desejo, voltou para a mãe e inclusive tiveram outra filha. O pai não voltou para ela. (...) eu me sinto culpada porque, é, porque aos 11 anos, quando ele retornou, minha mãe teve outra filha com ele, e foi muito tempo...assim a nossa vida com ele, desde quando ele retornou, ficou muito perturbada...(....). A pena que diz sentir dele também é uma forma de rejeição de algum sentimento; sente pena para justificar seu não afastamento dele, o que pode levá-la a sofrer. (...) eu sempre tive pena do meu pai (...) Trechos do discurso de Márcia têm a sequência da narrativa entrecortada, sendo os fatos apresentados como se ela estivesse fazendo uso de sua fala interior ou da egocêntrica; como se falasse para si mesma, enquanto buscava organizar suas lembranças em voz alta. (...)Eu me lembro de uma briga deles, (..)] eu deveria ter menos de três anos de idade, (...) minha mãe estava me carregando no colo (...) meu pai tomando banho, minha mãe me colocando... é meu rosto para atrás. E, então, eu deveria ser criança bastante nova, nesta idade. Eles brigavam bastante, (...). Mas seu relato indica haver uma relação entre a mãe virando seu rosto para trás, enquanto o pai tomava banho, e a repugnância que Márcia, aos 10 anos, passou a sentir por ele. Como aos três anos sua consciência não pode ser plena, surge a hipótese de que ela pode ter assumido o discurso materno (a mãe relatou os fatos) e ainda a possibilidade de esse relato referir-se a uma fantasia encobridora de natureza incestuosa, reforçando o sentimento de repugnância. Embora a repugnância tenha surgido aparentemente nesse momento, o vínculo diádico paterno parece ter-se desenvolvido negativamente desde os três anos de idade.

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A culpa parece ter nascido, em Márcia, quando ela fez a “confissão” à mãe, de ter visto o pai com outra mulher na cama, o que levou à separação deles. Não ficar transtornada pelo que viu (ou pensa ter visto), mas sim pela separação dos pais, mostra que as conseqüências da primeira separação foram mais difíceis de suportar do que a cena que alega ter visto. A justificativa para esse sentimento parece ser o desejo de Márcia de ser amada pelo pai, possivelmente não como filha, o que ela mascara dizendo odiá-lo. Se ela realmente o odiasse, sua afetividade por ele estaria completamente presa a esse sentimento, sem alternativas. Mas ela oscila entre o sentimento ruim e um relativamente bom com facilidade e frequência, sinal de que algo a tira desse ódio para outro pólo, ainda que por momentos. Eu perdôo ele (...) tenho pena dele (...) eu detestava ele (...) às vezes eu aceito bem ele e, às vezes, eu não consigo olhar para a cara dele! (...) eu fui na casa da minha mãe, minha prima começou a falar do meu pai e falar mal do meu pai! (...) eu corri com uma faca atrás dela (...) Mesmo não simbolizando o protetor e sua imagem sendo negativo, o pai é uma figura muito forte para Márcia, que tem com ele uma relação diádica não estabelecida primariamente pelo afeto e pela proteção. A necessidade de sentir-se amada por ele ou o desejo fazem com que ela o busque constantemente, desde que “autorizou” seu retorno após a separação, até a fase adulta, quando o imita. A imagem negativa é suficiente para ela acusá-lo pelos maus tratos sofridos, mas não para encobrir o desejo de ser amada por ele. Respectivamente, ela se afasta dele e retorna, vivendo os seus sentimentos de forma ambivalente. (...), o medo que eu tenho do meu pai é o medo que não sei explicar! Não é medo dele me criticar! E eu tenho medo dele...(...) Esse medo declarado tanto pode estar associado à ocorrência de algum trauma físico ou psicológico remoto (abuso sexual, por exemplo), já que ela não sabe explicar ou não se lembra de alguns fatos, como pode ser do próprio desejo, tão grande, que tem por ele. (...) mas há ofensas maiores...só que tem um bloqueio ai na minha mente que eu não consigo...não tá dando muito para perceber que eu percebia, bem antes, como era

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isso! Agora, não consigo mais perceber. Tanto é que quando estava na casa, morando com eles, eu sei direito... O medo afasta e é um sentimento oposto à aproximação, que pode ser perigosa para Márcia. O medo também é um mecanismo de defesa do ego. Márcia idealiza o pai negativamente, porque não poderia ser diferente. Além das lembranças de violência relatadas e de sua influência no vício da bebida que ela adquiriu aos 11 anos, ainda há o sentimento incômodo do desejo. Identificação narcísica A ambivalência em relação ao pai, refletida na repugnância e pena, rejeição e preocupação com sua saúde, culpa pela separação dos pais, teria sido responsável pela dualidade sexual dela. No início de sua vida sexual, o desejo foi dirigido às mulheres, achando “anormal” a relação heterossexual. Pode-se supor que a negação do desejo proibido pelo pai levou sua libido a voltar-se para o próprio ego, resultando em desejos homossexuais. Essa regressão libidinal poderia ser explicada pelo medo de competir com a mãe (objeto bom) pelo amor do pai (tornado o objeto mau), na tentativa de agradá-los e manter “sua majestade, o bebê” nessa condição. O ideal de ego aparece em como Márcia deveria comportar-se para corresponder à expectativa da autoridade. Mesmo quando teve relacionamentos heterossexuais, não conseguiu mantê-los. O primeiro companheiro foi desvalorizado (“me arrependi de ter me entregado aquele doido”) e o segundo ficou no plano platônico, do irrealizável (“fiquei com ele por dois meses mas ele se afastou devido às minhas inúmeras tentativas de me ferir, de suicidar. Foi o maior amor da minha vida”). Após esse último relacionamento, desistiu de ter novas relações, sejam homo ou heterossexuais (“não consigo me interessar por ninguém, não pretendo ter mais relacionamentos amorosos”).

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O amor por si própria a satisfaria? Para Freud (1921, citado por Roudinesco & Plon, 1998), o amor homossexual viria do fato da pessoa tomar-se de amor por si própria, momento originado no narcisismo, que leva o indivíduo procurar pessoas do mesmo sexo para amá-los como a mãe o amou. O seu comportamento revela os traços da posição narcisista: indiferenciação do outro (pai, mãe, da tia); um estado de ilusão pela busca de uma completude imaginária; negação das diferenças com os outros; presença de sinais de simbiose e ambigüidade; a oscilação entre um pólo e outro, como se considerar o melhor ou o pior; escala de valores centrados no ego ideal ou ideal de ego; busca de pessoas e fetiches que lhe assegurem ser “sua majestade”. Relação com a mãe A relação de Márcia com a mãe não é destacada por ela de modo tão enfático quanto sua relação com o pai. As referências são positivas, carinhosas, mas não suficientemente fortes para se perceber a influência dela (mãe) na integração de seu ego ao mundo na infância. Ao contrário, desde cedo, em algumas ocasiões, pareceu haver uma inversão, com Márcia defendendo-a de agressões paternas, inclusive usando uma faca. (...) algumas vezes, eu enfrentei meu pai, por causa das ofensas que ele faz à minha mãe e...fora dos limites! Ele já tentou...tocar na minha mãe, assim, bater, mas eu fui encima dele com a faca e ai, depois disso, ele nunca mais tentou! A atitude mais protetora da mãe para com Márcia foi quando ela virou seu rosto, porque o pai estava tomando banho, indicando preocupação com a nudez dele, não com a briga entre eles que transcorria no momento. A proteção foi somente física. (...)Eu me lembro de uma briga deles, (...) minha mãe estava me carregando no colo (...) meu pai tomando banho, minha mãe me colocando... é meu rosto para atrás. A falta de proteção contra as brigas do casal indica que a mãe devia considerar as brigas uma coisa “normal”, independentemente do nível de ofensa e do tom das palavras que ela e o marido usavam; é como se importasse apenas a parte física, relacionada com o sexo. Mas

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Márcia não se dá conta dessa participação dela e considera que somente o pai influenciou negativamente sua vida. (...) quando eles brigam...(...) É um palavreado desrespeitoso, as ofensas. Principalmente, as ofensas foram as coisas que mais me deixavam, assim, fora dos limites (...) Márcia “livra” a mãe dessa responsabilidade, porque ela sempre lhe deu apoio e a encorajou, coisa que o pai não fez. Isso mascarou a falta da mãe e reforçou a responsabilidade paterna pelos infortúnios dela. A minha mãe sempre me deu muita força e sempre...tentou reforçar a idéia de que eu sou boa, que eu dava conta... (o pai lhe dizia) que uma pessoa (ela, Márcia) não presta, não vale nada, não vale para fazer nada, não serve para nada, que fala demais, à toa, que pede demais. Márcia não demonstra sentimentos ambivalentes em relação à mãe. Seu amor por ela, não declarado expressamente, fica nítido no relato. Mas a figura materna é representada de forma abstrata, como algo delicado, principalmente depois que ela sofreu infartos e submeteuse à cirurgias cardíacas. A doença intensificou a imagem da mãe, com vínculos pouco fortalecidos quanto a real função materna. A minha mãe (...) para ela é sempre assim; se demonstrar carinho, amizade por mim ela aceita. (...) antigamente eu podia conversar com ela, claramente, agora eu não posso mais devido ao problema grave de coração que ela tem, né? Ao amor à mãe ela junta um sentimento de culpa, pois se sente responsável pela sua doença, por ter aceito o retorno do pai: (...) e eu penso que matei a minha mãe...ela não morreu mas tá...muito ruim em casa...porque eu fiz com eles voltassem! Essa morte simbólica não parece suficientemente justificada pelo retorno paterno após a separação, denotando-se uma lacuna no discurso de Márcia, provavelmente relacionada com fatos que ela não consegue lembrar, do mesmo modo que não consegue explicar a repugnância pelo pai, também surgida com seu retorno à casa.

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há ofensas maiores...só que tem um bloqueio aí na minha mente que eu não consigo...não tá dando muito para perceber que eu percebia, bem antes, como era isso! Agora, não consigo mais perceber. Tanto é que quando estava na casa, morando com eles, eu não sei direito... Mas o amor da mãe e pela mãe não é suficiente; é preciso ser amada pelos dois, pai e mãe, para que se componha a tríade narcísica, fundamental para a constituição do “eu” e para a relação do sujeito com seu corpo, identificando-o como imagem. O ideal do “eu” forma-se a partir de uma identificação com os pais idealizados. Sem o sentimento do amor paterno, Márcia investe na dependência do outro, que não é sua mãe, pois sua figura é pouco fortalecida na função materna. Relação com a irmã e a tia A relação de Márcia com a irmã é de afeição. Pela diferença de idade, sente-se culpada por não lhe ter dado atenção em sua adolescência, assumindo isso como se fosse a provedora. Repetiu não só o cuidado que teve para com a mãe (defendendo-a do pai), mas também a culpa. ... sinto culpada porque...ela...eu não dava muita assistência a ela, principalmente, no período dela que ela mais precisou de mim, que foi na adolescência. Essa relação parece ser a mais equilibrada entre todas as de Márcia. O ambiente comum de agressões graves e contínuas não impediu que as irmãs se enxergassem em meio às turbulências familiares e desenvolvessem um suporte mútuo. Ela várias vezes que eu quis sair de casa, se revoltou.(...) agora ela me dá muito apoio, me entende bastante (...) depois que comecei a fazer o tratamento psiquiátrico, ela tem me entendido bastante (...). Olha, eu que agradeço, sim, a ela porque várias e várias vezes, ela conseguiu me salvar, no momento em que eu tentei o suicídio... Mas Márcia ainda se sente em débito com a irmã, permanecendo a culpa acima de tudo; aliás, a culpa é outro sentimento forte que a liga a pessoas como a irmã e a mãe. faço alguma coisa por ela... mas, assim, eu por mim, eu acho que num... num substitui o que eu devia ter feito, na época, sabe?

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Com a tia, Márcia desenvolve uma relação que oscila entre pólos opostos e é também, premeditadamente, de manipulação. às vezes, eu me sinto apoiada por ela! Mas, quando a coisa está muito feia, a vontade que eu tenho é de chutar o pé da barraca e pronto! Acabou! Porque ela, simplesmente...parece que ela não colabora! Se por um lado essa ambivalência corresponde ao mecanismo por meio do qual ela “aprendeu”, de forma inconsciente, a conviver com as pessoas, por outro ela é bastante lúcida para reconhecer que manipula a tia para conseguir o que quer, da forma que quer, controlando-a; um jogo que a tia reconhece e ao qual não reage. Também lucidamente, reconhece não conseguir aprender algumas coisas (digitação) e realizar outras (lavar louça), porque não quer. Minha tia acha que eu faço certas coisas para tentar deixar as coisas...tudo acontece do jeito que eu queira (...) ...me acho muito mandona mesmo! As ações de Márcia em relação à tia são marcadas por uma espécie de cisão de seu ego: não sabe o que fazer sem a tia (inconsciência sobre o que ela representa), mas manipula-a, para “retirar” dela o máximo que ela pode lhe oferecer. Ora ela é a grande dependente da tia, ora exerce sobre essa tia sua onipotência, pois não basta que ela a apóie, mas tem que apoiá-la do jeito que ela quer. A tia alimenta essa divisão, pois mesmo reconhecendo a manipulação de Márcia, é indulgente e não impõe limites. Isso possivelmente é justificado pelo grande afeto e carinho que sente pela sobrinha e pelo desconhecimento sobre o que esse jogo representa para a saúde psicológica dela. Simbolicamente, Márcia atua em um espaço caracterizado pelos sentimentos negativos e pela permissividade (da tia) aos jogos que ela faz. Anáclise/apoio A tia é o objeto anaclítico de Márcia. É dela que vem o acolhimento e a sustentação que lhe permitem viver, mesmo cheia de conflitos. É a tia que reforça suas pulsões de autoconservação, ante suas pulsões de morte, funcionando como ego auxiliar.

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(...) é tão difícil isso, eu fico querendo saber se eu tenho alguma coisa, eu me sinto tão mal de não sair da cama (...) Ela fala: “tudo bem, fica aí, amanhã quem sabe, você consegue”? Suas impressões de que a tia quer vê-la fora de casa podem ser justificadas pelos momentos de ambivalência de seus sentimentos que já a levaram tanto a trancar-se no quarto para evitar a prima como a trancar-se com medo de alguém invadir a casa e matar a tia. Perder a tia seria perder a única sustentação com que conta na vida. Seu poder fálico vem da tia e não da mãe. (...) admiro essa...essa questão dela tentar me colocar para cima, sabe? Mas não é de uma forma tão positiva...porque ela coloca assim...parece que eu não vou conseguir porque eu não quero! E às vezes, eu tô na cama...parece que meu corpo está se esvaindo...eu não tô conseguindo sair da cama e ela: “você não tenta...vem lavar a louça, vem [...]. (...) muitas vezes...eu quis muito...ir embora da casa da minha tia!...muitas vezes eu tive a nítida impressão que ela quis que eu fosse embora da casa dela...depois não...eu tenho a certeza que ela quer que eu fique! Eu acho que ela quer me ajudar...tenho a certeza que ela quer me ajudar, quer fazer alguma coisa...e muda tudo, todo o quadro, entendeu?” Márcia declara ter noção de que sua estada na casa da tia representa um apoio para ela. Esse apoio é anaclítico, pois reforça suas pulsões de autoconservação, diante das pulsões de morte. (...) É... a única pessoa que eu me sinto apoiada, que é uma pessoa a que eu recorro, nos momentos, que eu não dou conta mais, é a minha tia (...) Mesmo sem a consciência desse apoio, ela afirma categoricamente ser a tia “a única pessoa” que a ampara nos piores momentos. Diante disso, suas citadas impressões de que a tia quer vê-la fora de casa podem ser resumidas aos momentos de ambivalência de seus sentimentos. Relação com primos, tio, parceiros (as) amorosos (as) e amigos A relação de Márcia com tio, prima, parceiros e amigos tem a mesma base da relação com os pais, a irmã e com a tia, embora ela se revele mais onipotente com essas pessoas. Ela reconhece que tio e tia querem ajudá-la, mas seus sentimentos instáveis fazem com que

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reproduza no tio a imagem negativa do pai, um “nada”. Se da figura masculina de quem deveria receber incentivo e apoio não recebe, de outra não interessa o apoio. (...) meu tio, por exemplo, (que) eu acho muito importante. Às vezes, eu vejo ele como uma pessoa muito importante na minha vida como uma pedra...uma coisa que me empurrou para cima, sabe? Mas, às vezes, eu vejo ele como nada!” Há uma transposição da forma com a qual se relacionou com o pai para o ambiente da tia, com a mesma violência. (Isso) foi enchendo a minha cabeça e ela (a prima) falou uma pequena frase e eu já explodi! E corri atrás dela com a faca (...). Nas relações com parceiras e com parceiros sexuais, não foi diferente. Virgem até os 36 anos, antes da primeira relação heterossexual teve duas relações homossexuais, sendo essas mais conflitantes que aquelas com homens. Nas relações homossexuais, as companheiras eram agredidas verbal e fisicamente, numa representação literal do comportamento paterno em casa, aquela que bate, machuca, faz sofrer, inclusive o agravante da bebida. (...) eu batia muito nela, batia mesmo! E...era muito instável! [...] hoje, quando eu faço a pergunta assim, pôxa, eu batia tanto naquela mulher, às vezes sem motivo...eu arrumava um motivo ou sei lá como eu arrumava, vinha de dentro de mim, sei lá... Mas Márcia não era ele e, de forma inconsciente, possivelmente esperava que as companheiras suprissem o vazio provocado pelo desejo que ela não ousava admitir e muito menos ver realizado pelo pai. Um grande desejo, como se pode avaliar pela proporção negativa com que ela caracteriza o pai, para encobri-lo (o desejo). Nenhuma companheira poderia corresponder. Nas relações heterossexuais, reconhece o segundo namorado como “o grande amor de sua vida”. Mas Márcia não “precisou” beber durante essas duas relações, pois não houve necessidade de representar a figura paterna. Certamente esperava dos namorados a satisfação mais próxima de correspondência a seu desejo inconsciente. Nas duas, sofreu e teve depressão com o término.

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O término foi assim... Eu entrei numa depressão muito grande! A depressão profunda mesmo assim que eu não conseguia levantar, não conseguia comer, não conseguia...(primeiro namorado) Para começar eu fiquei...eu acho que fiquei um ano de cama! Assim de cama que digo, eu tentava... ele...eu tentava sair da cama ma eu mal conseguia fazer uma comida, mal conseguia tomar um banho, escovas os dentes...(segundo namorado) Márcia tem dificuldades de fazer amizade, mas é sincera e constante quando consegue. Sem o objeto anaclítico por perto (a tia), todas as outras relações ficam difíceis, independentemente do ambiente onde ocorram. Instabilidade A instabilidade de Márcia em seus vínculos é óbvia em várias situações, tanto familiar como não. Afinal, ela tem origem na instabilidade familiar presente em seus primeiros anos de vida. Ela provoca essa instabilidade em quase todos os vínculos que estabelece. Idealização Márcia parece ter introjetado as afirmativas do pai quanto às pessoas e suas amizades: (...) meu pai...prá ele ninguém presta! Agora, já com minha mãe, não! A minha mãe, ela sempre foi, assim: quem gosta de mim, mas gostando da minha filha tá bom. Para ela é sempre assim; se demonstrar carinho, amizade por mim ela aceita” Ela sempre acha que as pessoas estão contra ela, olhando-a de cara feia, achando-a feia. Confessa ter dificuldades de conseguir amizades. Porém, com as poucas pessoas com quem consegue estabelecer uma amizade, é sincera e constante. São poucas as amizades que eu tenho, pouquíssimas. E, geralmente, todas elas foram de internações...Hoje, por exemplo, eu tenho dois amigos que eu considero amigos e... por internação que são a L. e o R.!...a gente liga, a gente troca informações, a gente conversa ou o R. manda muita mensagem para mim, eu mando para ele. É R. a gente conversa muito! O R. é casado. Mas ele teve um problema no casamento dele. Na época, eu dei muita força para ele, para ele voltar que ele tinha separado da esposa. E isto reforçou mais a nossa amizade’. Com esses amigos, parece não haver ambivalência nos sentimentos de Márcia. São pessoas que conheceu por ocasião de seus internamentos, o que indica terem esses amigos

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algum tipo de problema semelhante ao de Márcia, seja direto (eles mesmos) ou indireto (algum parente internado). b) Reações à perda dos vínculos As formas de reação à perda de seus vínculos identificadas no discurso de Márcia foram marcadas por fenômenos como impulsividade, compulsividade, agressividade, instabilidade e tendência autodestrutiva. Impulsividade Márcia “chuta o pau da barraca e agride os familiares” quando se sente sozinha e abandonada, apesar do apoio que recebe deles. É uma reação a situações para as quais não tem resposta ou não vislumbra saída no momento, como quando lhe “cobram” sair da depressão. Outra forma de reagir a suas perdas é a compulsão por compras, numa declaração clara de que pretendia suprir-se de algo que lhe falta. Ela reconhece essa compulsão mas não luta contra ela, até porque lutar significa perder uma das características que a tornam o centro de atenções e de cuidados da família. (...) com o dinheiro é uma tragédia (risos) ...entra no preto e vai embora! É um monte de coisas sem necessidade...é um desastre quanto ao dinheiro! O que eu quero, eu faço...e tento, corro atrás e vou e faço! Enquanto eu não faço, eu não fico sossegada! (...) quando o pagamento saiu, eu não podia comprar um DVD (aparelho) mas meu DVD tinha estragado...eu pedi à menina...a menina que estava trabalhando lá em casa...ela foi na loja e comprou...e fiquei sem dinheiro e tive que fazer empréstimos. E, ai, esses empréstimos parece uma “bola de neve” porque eu não acabo de pagar nunca! (..) com o dinheiro é uma tragédia (risos) ...entra no preto e vai embora! É um monte de coisas sem necessidade...é um desastre quanto ao dinheiro!” Márcia sempre procura “soluções” que trazem mais intranqüilidade e complicações, justamente para alimentar sua forma de viver e de se angustiar mais. Essa seria uma reação dela às situações para as quais ela não tem resposta ou não vislumbra condições de saída no momento.

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Outras vezes, pulsões de não preservação parecem falar mais alto: (...) .vou e como, como. (...) tem dia que como, como.. e tem dia que eu não como nada...[...] nunca provoquei vômitos mas teve um tempo, também, que eu não comia pra não engordar... Euforia As ambivalências de Márcia podem ser vistas também a partir de suas variações de humor. Para ela, essas alterações se devem ao fato de ter parado de beber, o que tinha como efeito picos de euforia seguidos de depressão. Ai, eles detectaram, como eu tinha parado de beber, que eu tinha crises de humor... eu, geralmente, ficava muito alegre, muito eufórica, né? Ou, então, eu ficava tão pra baixo que eu não conseguia levantar...da cama... Márcia “assumiu” o diagnóstico de transtorno de humor pelo qual foi identificada, associando-o aos episódios de euforia, à depressão ou a episódios mistos, já que estava internada e não teria acesso à bebida alcóolica ou outras. Episódios de humor podem estar relacionados com o período antes, durante ou após o uso de drogas antes. O portador de transtorno de humor, em seus episódios, costuma usar substâncias de abuso ou terapêuticas como atenuantes para esses quadros. Márcia confirmou que, de certa forma, bebia para acalmar-se: (...) eu não bebia por farra! Eu sempre bebi por...é..vontade...uma vontade de abafar os meus sentimentos! Olha, eu não sei muito explicar porque quando eu bebia eu sabia que tinha alguma coisa errada, assim, porque quando eu bebia, às vezes, eu ficava muito alegre, ou, às vezes caia numa depressão!... Junto com a bebida, e se eu não parava de beber, eu não sabia quando eu estava bêbada ou se eu estava muito alegre por que eu estava bêbada ou se estava muito triste porque eu tinha bebido...(g.n.) O humor de Márcia oscila de episódios de grandes euforias para severas depressões. Ao falar do término do penúltimo relacionamento amoroso, por exemplo, ela disse claramente que ficou nessa relação no período de euforia. Quando a relação acabou, ela “entrou numa depressão profunda”, e ela não tinha ânimo para levantar, comer...

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O término foi assim...terminou esse período eufórico, né? E eu entrei numa depressão muito grande! A depressão profunda mesmo... assim, que eu não conseguia levantar, não conseguia comer, não conseguia...” O humor maníaco ou hipomaníaco seria uma defesa contra a depressão subjacente, e fatores estressores ambientais desencadeariam a euforia como uma espécie de defesa. Depressão Márcia afirmou que não consegue controlar seu humor e ainda o relaciona a suas tentativas de suicídio, como se atribuísse à instabilidade humoral, principalmente, à depressão, a responsabilidade pelas tentativas de auto-extermínio. (...) equilibrar meu humor, que não consigo...e eu me sinto, às vezes...eu nunca sei se eu tento me suicidar e eu vou e pergunto porque... Tinha problemas de humor. Sempre com problemas de humor com seríssimas tentativas de suicídio... e medos... O medo, assim, chegou a um ponto de... minha mãe ia comigo trabalhar porque eu não conseguia ir trabalhar sozinha... Pelas declarações de Márcia, suas tentativas de suicídio costumam ocorrer em quadros depressivos graves ou psicóticos, agudos ou crônicos, mas também podem representar um instrumento de manipulação para chamar a atenção dos familiares sobre si, como já foi dito. Mas nesse trecho, observa-se que o suicídio também está associado ao medo, esse proveniente de possíveis delírios de humor ou de uma ansiedade severa, derivados de interpretações equivocadas da realidade. Essa interpretação pode originar-se da deformação do ego, que tenta se defender da fragmentação psicótica e da clivagem do objeto, passando pelo relacional adaptativo e anaclítico. Márcia tem dificuldades de adaptar-se a sua realidade adulta e busca apoio não para adaptar-se, mas para suportar o medo. Também retorna à depressão após a euforia. Olha, sinceramente, os principais desafios é...conseguir levantar da cama e tomar conta da minha sobrinha! Eu digo isso porque eu não consigo mais sonhar, não consigo mais ter um sonho...(...) eu fico pensando...a única coisa que eu queria...é acordar, amanhã, lavar a louça e tomar conta da minha sobrinha... Com isso, Márcia revelou sua anedonia, sua apatia, principalmente quando se referiu à incapacidade de sonhar; deduz-se que ela está desesperançada, sem vislumbrar horizontes

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futuros. Essas autopercepções são típicas de humor rebaixado, de desespero; todos são sintomas de episódios depressivos. Essa revelação (“...conseguir levantar da cama e tomar conta da minha sobrinha!”), embora associada ao humor, também demonstra uma angústia depressiva relacionada com a perda dos objetos: a irmã (mãe da sobrinha) e a tia apoiadora. Não fazer as atividades domésticas na casa da tia, onde mora, pode representar riscos de perder seu apoio; não cuidar da sobrinha pode levar à perda da irmã apoiadora e, com isso, ela não pode reparar a culpa que sente de não ter apoiado a irmã na adolescência dessa. Ficam subentendidas a depressão, o desespero e o medo da fragmentação psicótica: o aniquilamento, a morte através do suicídio. ...geralmente eu escrevo...e choro muito também, sozinha, sem ninguém ver...ninguém sabe...às vezes, quando...a coisa tá muito ruim mesmo, eu tento o suicídio... As depressões de Márcia são causadas principalmente pelas situações de perda ou de medo de perda. É uma reação a perdas significativas, nas quais o ego é mais exigido, porque termina por repetir o rompimento da função diádica e seu defrontar-se outra vez com a necessidade de segurança e de afeto. O término (...) Eu entrei numa depressão muito grande! A depressão profunda mesmo assim que eu não conseguia levantar, não conseguia comer, não conseguia...(primeiro namorado). (...) eu acho que fiquei um ano de cama! e...eu tentava sair da cama mas eu mal conseguia fazer uma comida, mal conseguia tomar um banho, escovas os dentes...(segundo namorado). (...) Bom, eu fiquei com muito medo mas muito medo, desesperada!..eu achava que alguém ia entrar em casa, ia matar a minha mãe, matar minha irmã, ia matar minha sobrinha que eu tomo conta dela. E, eu não ia buscar ela, minha sobrinha, porque eu tinha medo que alguém, sair e buscar ela e alguém matar nós duas...(familiares). Mas a depressão não ocorreu quando ela se separou das companheiras, deduzindo-se que essas relações, apesar de ela as considerar importantes, não foram tão significativas como as relações heterossexuais. (...) quando terminou, pensei que ia sofrer muito mas, não... (primeira companheira). Já a segunda (...) quando acabou eu não sofri...”

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Hetero-agressão e autoagressão Suas agressões, originadas da impulsividade e do humor, voltam-se contra terceiros e contra si própria, como forma de defesa e demonstração de impotência diante dos enfrentamentos cotidianos. Contra si mesma, agride-se para sentir-se aliviada, diante de sentimentos inexplicáveis. (...) era uma dor, uma dor intensa que eu não sei explicar de onde ela vem...geralmente, vem assim : tem algum problema no meio e eu vou indo...e me corto! Mas outras vezes, não tem motivo... (...) é uma impulsão (...) ...não senti (...)...não me arrependia (...) era como se fosse um alivio! (...) algumas vezes...eu ficava muito, assim, chateada...(...) de repente eu tô de frente de uma Gilette e, então me dá vontade de me cortar, cortar, cortar...até sangrar, até o fim (...). Contra terceiros, agride sempre que se sente ofendida e encurralada, segundo sua visão carente, de sentimentos ambivalentes. Mas reconhece sua falta de controle e diz lutar contra isso. Não, porque eu tento muito mesmo (autocontrole) ...não fazer isso! Porque tem uma parte em mim que eu consigo, que ainda estou conseguindo controlar! Eu sinto que o negócio vai acontecer, eu sinto que alguma coisa vai acontecer, então eu saio, vou fumar lá fora ou vou dar uma volta, às vezes, quando eu consigo, faço alguma coisa para não acontecer, porque eu sinto que vai acontecer.(...) Sua hetero-agressão causou sua desrealização, dificultando todas as suas relações objetais e fazendo com que ela promova a desestruturação dessas relações de forma aguda e passageira, devido à própria angústia e insegurança. O segundo (relacionamento com mulher) foi mais instável mas eu me lembro que agredia muito ela...Não tinha motivo! Eu bebendo ou não bebendo, às vezes, eu achava um motivo e agredia...O primeiro, por exemplo, hoje, quando eu faço a pergunta assim, pôxa, eu batia tanto naquela mulher, às vezes sem motivo...eu arrumava um motivo ou sei lá como eu arrumava, vinha de dentro de mim, sei lá... c) Auto-imagem No desenvolvimento de sua auto-imagem, Márcia sofreu influências de figuras idealizadas.

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Idealização/Desvalorização A idealização é uma forma de defesa contra as pulsões destrutivas, e a finalidade dessas é suprimir a tensão por meio do objeto. Os estados de tensão de Márcia foram provocados pelo pai durante toda a sua infância; ele é seu objeto de identificação. Por isso, ela o idealiza para diminuir a dolorosa tensão provocada por ele. Mas a idealização resulta de uma clivagem do objeto (o pai) em lado bom e lado mau: Eu perdôo ele (...) tenho pena dele (...) eu detestava ele (...) às vezes eu aceito bem ele e, às vezes, eu não consigo olhar para a cara dele! Enquanto o lado bom desse objeto é a própria idealização (das “qualidades” paternas), o lado mau pode exacerbar os sentimentos, manifestando-os de forma muito intensa (bater nas companheiras). Ora o pai é o objeto de identificação todo mau, ora é o objeto idealizado. A relação entre auto-imagem, frustração e desvalorização é de interdependência, não se podendo identificar qual delas seria o fato desencadeador das demais. Tinha vários planos na minha vida mas nunca nenhum foram, deram certo. Primeiro porque, na faculdade eu não consegui ficar. Não conseguia participar das aulas porque não conseguia ficar dentro da sala de aula. E tudo que eu tentei fazer, na minha vida, não deu certo. Trabalhar como auxiliar de enfermagem, eu acabei me aposentando. Várias vezes passei em concursos públicos, inclusive o da C., passei em primeiro lugar mas não consegui...E tudo que tentei, comigo não deu certo... [g.n.] A marca da negação nesse trecho é forte, e Márcia deixa clara uma espécie de impotência diante das conquistas; ela conquistava, mas não conseguia realizar. Foi aprovada no vestibular, em concursos públicos, admitida em trabalho, mas não conseguia ficar. O problema parecia ser o de conviver, de estabelecer vínculos com o próprio ambiente. Em certa medida, essa dificuldade (ou impossibilidade) de estabelecer vínculos com o ambiente reproduz a situação escolar da infância, quando não conseguia fazer amizades. Também na escola, era estudiosa, obtinha notas máximas, sendo a primeira ou segunda colocada da sala de aula, mas essas conquistas pareciam pouco representar, pois seu isolamento na escola permanecia.

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Como na infância, o impasse de sua vida não perece estar na conquista, mas concretização do que havia conquistado ou seja, no “viver” essa conquista especificamente. Isso também não deixa de reproduzir a dualidade que pauta sua vida. Na infância viu, mas não sabe mais se viu; sentia remorsos pela separação dos pais, mas se sentia culpa por sua volta; disse ao pai que voltasse, mas não queria que ele voltasse. Agora, longe da família, vai (é aprovada em vestibular), mas fica (não leva adiante o que conquistou). A aparência física foi um dos aspectos demonstrados de sua angústia. Observa-se que a depreciação de colegas na escola ainda parece bem presente, incomodando-a como naquela época. Os adjetivos “testa de amolar facão”, “plataforma do diabo” e “feia” fazem parte de seu discurso. no rosto, eu não gosto do meu cabelo, não gosto da minha testa, detesto, porque todo mundo ficava batendo na minha testa e me chamando de “testão de amolar facão”...e eu não gosto do meu nariz, que eu acho muito grande, e porque eu tenho pouco cabelo também, na fronte, né? ...eles me chamavam até de um certo apelido... “plataforma do diabo” e eu me sentia mal com isso, então, eu me distanciava deles...eles falavam é porque eu era muito feia... (...) eu me acho muito feia, me acho gorda...o problema de tudo maior, ainda, é que eu estou ficando mais velha...qual é o problema de ser gorda, ser feia ser careca, de não ter o cabelo bom? Apesar se considerar gorda, seu peso é satisfatório, em relação à altura. Mas esse foi o adjetivo com o qual ela se definiu, além do “estar ficando velha”. Os demais (careca, cabelo ruim) vêm da infância, heteroimagem que ela guardou, associada à auto-imagem de gorda e feia. (...) de início, eu nunca tive problema com a cor, porque as pessoas nunca falavam da minha cor. Me falavam... falavam da minha aparência em si. Agora, também, eu já começo, há algum tempo comecei achar que tinha alguma coisa relacionada à cor, porque os negros, geralmente, têm cabelo ruim, não tem cabelo bom, os negros têm a boca grande, apesar da minha não ser grande, mas tenho o nariz grande... é, então, eu acho também devido à minha cor(...) não tenho traços meio grosseiros mas...por isso que eu nunca levei isso pro lado da cor, sempre levei mesmo pela aparência...

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Se o problema maior é a idade, ser careca, gorda e ter cabelo ruim são problemas menores. O impasse de Márcia parece ser o de sentir-se presa aos mesmos problemas da infância, já estando mais velha, adulta. É outra a dualidade: entrar na maturidade com os sentimentos de criança. Sua referência meio superficial de Márcia à cor, lembrando que na infância isso não lhe era citado pelos colegas, corrobora a visão de que ela carrega mais a auto-imagem da infância; ela só parece se reconhecer naquilo que os colegas lhe impingiam quando criança. Apesar de ter obter as melhores notas na infância e mesmo se sobressaindo na vida adulta (foi aprovada em concursos), isso não é suficiente para ela superar a carga representada pelos traumas infantis. O pai é idealizado negativamente e trazido em seu discurso como uma convivência marcada pela ausência de amor e acolhimento, sendo uma relação ilustrada pelo desrepeito humano e abuso psicológico. Mesmo assim, há um processo de identificação dela com o pai, quando ela reconhece em si similaridades com as reações dele. Márcia incorporou parcialmente a figura do pai, “exaltando-o” quando o imita (batendo nas companheiras e bebendo). Nessa “exaltação”, a natureza daquilo que ela “idealizou” do pai não é alterada, ou seja, ela poderia reagir a essa influência negativa fazendo exatamente o contrário dele; no entanto, copia-o. Eu me sinto última das pessoas porque eu me sinto parecida com ele (...) porque eu fiz a mesma coisa que ele, porque eu bebi, me tornei alcoólatra como ele... Ao se considerar a questão da violência real, na adolescência, e imaginária, aos três anos (ver história psiquiátrica ou item fator traumático), poder-se-ia refletir que a relação com o pai carrega os traços de um trauma precoce, causado por abusos, particularmente morais e psicológicos. Esses abusos teriam produzido mecanismos de clivagem dos objetos, expressos na ambivalência afetiva, na rejeição e na identificação que se repete nas relações afetivas atuais conturbadas e instáveis.

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(...) eu batia muito nela (primeira companheira), batia mesmo! E...era muito instável! O segundo foi na época que eu comecei a parar de beber. Ai, foi mais estável mas eu me lembro que agredia muito ela. Não tinha motivo! Eu bebendo ou não bebendo, às vezes, eu achava um motivo e agredia... (segunda companheira). Em Márcia, a auto-imagem e a desvalorização estão estreitamente associadas, como causa e efeito, sem deixar espaço para o surgimento de qualquer coisa que possa modificar esse efeito, como ocorre com assumir os empregos, em cujos concursos nos quais

foi

aprovada. ...sempre tive medo de não corresponder à altura, principalmente, depois que eu fui trabalhar no hospital. Eu comecei sendo a melhor funcionária de... eu trabalhava no politraumatizado...eu sempre era chamada para ficar no poli...porque me achavam que eu tinha competência para ficar mas, eu não achava, eu achava que não tinha competência... por isso, foi indo, eu fui bebendo muito e acabou eu não tendo competência mesmo... Com isso, ela “traçou” uma trajetória unindo passado e presente, que por si só é ambivalente: vai, vence os concursos e não leva o trabalho adiante, porque se acha sem competência, enquanto os outros acham o contrário. Ela parece temer qualquer coisa que possa retirá-la da condição de vida em que se encontra. E enfrentar o desafio de demonstrar sua competência pode melhorar sua auto-estima e fazê-la perceber que há um mundo no qual ela pode se sentir diferente. Isso ela ainda não quer conscientemente, embora conscientemente ela esteja em tratamento psiquiátrico, buscando, sem dúvida, uma melhora; a abrangência dessa melhora é que ela ainda não avalia. d) Hetero-imagem Idealização A imagem que Márcia supõe terem dela associa-se ao que ela faz, não ao que ela acha que é. (...) eu acho que é porque eles não toleram o que eu tô fazendo ou, talvez, porque eu ache que eu não tô tolerando mais o que eles estão fazendo comigo...(...) prá que isso acabe...tudo isso...essa confusão, essa até depreciação...deles só comigo...e que talvez não exista!

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A dúvida entre essas duas possibilidades - se eles não aceitam o que ela faz ou ela não aceita o que eles fazem a ela - reflete um conflito entre o ego e a realidade, originado do contato com a realidade cruel, com objetos inquietantes, aniquiladores, que ela quer evitar. Há medo e confusão na possibilidade de o ego ser fragmentado totalmente, de se tornar psicótica. e) Relação com a realidade Márcia parece abrir mão de sua “certeza” – exposição da auto-referência – diante da opinião de seu médico e de pessoas, pondo em dúvida a existência do fato, embora sem muita convicção. Esse embate entre ego e realidade envolve, o medo, o delírio de perseguição e a relação com a realidade psíquica versus a realidade material. Estar só na faculdade fez Márcia perder o poder fálico. Sem esse e sem o objeto anaclítico, restaram os objetos maléficos, aniquiladores, que vão persegui-la. Sua onipotência está mitigada; a solução é voltar para a realidade segura representada pelos objetos bons, apoiadores que lhe devolvem o poder fálico. A dúvida em face da fala do médico, objeto bom e acolhedor, ocorreu diante da certeza antes imposta pela perseguição dos objetos ameaçadores e “reais”: os desconhecidos da faculdade. Os julgamentos da realidade feitos por Márcia não correspondem ao que se passa de fato. Há delírios de perseguição que geram comportamentos adequados ao pensamento delirante, consequentemente inadequados ao julgamento corrente nessa realidade. (...) eu fiquei com muito medo mas muito medo, desesperada! Eu fechava as portas, fechava as janelas, fechava tudo, mesmo com minha tia dentro de casa...eu achava que alguma coisa ia acontecer, que alguém ia entrar em casa, ia matar a minha mãe, matar minha irmã, ia matar minha sobrinha que eu tomo conta dela. E, eu não ia buscar ela, minha sobrinha, porque eu tinha medo que alguém, sair e buscar ela e alguém matar nós duas... O desespero da perda dos objetos leva à clivagem, à deturpação da realidade, pela recusa da referida perda, inclusive perda do controle narcísico. O outro tem suas necessidades narcísicas e não mais vai satisfazer o narcisismo dela, ou seja, não vai satisfazer seu desejo de

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possuir o falo, decorrente de sua inveja do poder fálico da grande e poderosa mãe ou de pessoas substitutivas, o pai e familiares poderosos. Na iminente perda do controle sobre o objeto anaclítico, o desespero do aniquilamento, a tentativa de suicídio é o último recurso: sem o objeto bom, resta a morte. No caso de Márcia, a fobia ou medo e delírio e auto-referência estão misturados. Fobia ou medo e delírio são uma defesa contra a fragmentação total e psicótica do ego. Ainda tenta fugir dela, na deformação egóica, parcial, através do conflito entre o eu e a realidade, que precisou ser recusada, forcluída, para que não haja a perda do objeto bom, que geraria a sua morte como sujeito. ...teve uma época...batia essa fobia...eu fechava as portas, eu trancava a janela...parece que ia acontecer...tinha previsão que alguma coisa ia acontecer e eu estava desesperada (...) Esse medo descrito por Márcia não constitui um perigo real (não seria, portanto, um medo com objeto), mas representa um sentimento que traz consigo, de invasão de seu eu (psicótico), de que algo catastrófico vai ocorrer. Assim, “fechar portas e janela” para livrar-se da invasão iminente e assustadora é uma solução. A distorção da realidade se dá através de fobia, do delírio. O medo se estende a outras situações, que sem portas e janelas para fechar, travam as próprias ações de Márcia, como não assumir os cargos conquistados em concursos. (...) eu tinha medo porque, também eu tinha medo de sair, eu fico travada, ou, eu ficava travada! Eu fico travada... eu não conseguia sair de casa, não conseguia ir, comparecer...Assim como eu não conseguia ir trabalhar, eu não conseguia comparecer, ai eu perdia... Assumindo um medo que a deixava “travada”, Márcia deixou entrever a existência de algo maior que seu desejo de interagir com o mundo externo, que é o delírio/fobia que a dominam a ponto de torná-la disfuncional. Sozinha, no trabalho, sem o objeto de apoio, seria difícil ou impossível permanecer. Novamente, há recusa à realidade ameaçadora, desafiadora

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dos seus recursos, perda da onipotência narcísica, do falo, sem a proximidade do apoiador (tia, irmã, prima). Não é um medo mais assim...de não aceitação. E...eu mesma não sei explicar porque eu não tenho muito medo do que...começaram a falar assim... do que pode acontecer lá dentro, da situação, de tudo aquilo. Mas, me amedronta...eu não consigo dizer desse medo porque eu não entendo ele... Nessa fala, Márcia pareceu discernir entre o medo (de ser humilhada, da não aceitação) e a sensação de que algo atemorizante e desconhecido poderia ocorrer (fobia). Demonstrou dificuldade de entender o que lhe ocorre, de onde viria esse medo. Possivelmente, a origem dele seria da sensação de ser observada, perseguida, invadida, numa distorção do pensamento, da percepção da falta de limites entre ela e o outro, da a perda da identidade do eu (psicose). As dúvidas quanto a seu verdadeiro estado mórbido refletem o conflito entre o mundo interno e a realidade externa. Ela não consegue identificar concretamente o cerne do seu problema: está doente ou não? Há algo errado com sua mente ou não?(relação com a realidade) ...eu tomando muito remédio ou não tomando remédio nenhum... porque eu penso que tenho alguma coisa... que alguma coisa está acontecendo na minha mente, ora eu penso que eu não tenho nada e, assim fica difícil ...eu não sei... Descobrir que está doente pode torná-la mais fraca, sem o falo materno; ela não consegue satisfazer sua onipotência em relação ao objeto anaclítico. Sente-se só, desespera-se. Se não está doente ou fraca, tem o poder de manipular o objeto anaclítico que a completa, que lhe dá esperança de um mundo não ameaçador, acolhedor. A clivagem também abrange a relação de Márcia com seus familiares próximos; são duas atitudes psicológicas distintas para com essa realidade: o “mundo dela”, que não é o da realidade exterior que a circunda, e o dos familiares, no qual se sente estranha: (...) do meu mundinho ali, de casa, de quarto, de cama...às vezes, ir para fora...aquilo ali é meu mundo...eles (os familiares) estão fora daquilo ali...(...)... é tão difícil explicar isso (...) Depende tanto!...de repente parece um mundo diferente de todas as outras pessoas e de repente parece que eu estava, eu acordei nesse mundo!

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A realidade é vista por Márcia pela “janela” do afeto (no sentido freudiano) e dos investimentos que ela fez em seus estados traumáticos ao longo dos anos. Em outras palavras, Márcia vive a partir dos traumas passados – as referências de sua história têm marcas de trauma e da falta de proteção; por meio deles – os mecanismos de vida que desenvolveu para sobreviver não se distanciam muito deles, fazendo com que ela os reproduza em sua vida adulta; para eles – quando se sente incomodada e irritada ao lhe pedirem para reagir à depressão. Sua realidade é a mesma da infância, porque nada do que conquistou quando adulta leva adiante. A relação com a realidade concreta é difícil, pois seu discernimento é atravessado por sensações e percepções anômalas que dificultam o julgamento corrente dos mundos interno e externo. Ela parece assumir a “confusão” do mundo externo, quando acredita que algo é real num momento e irreal em outro. Essa “confusão” traduz a mesma que vivencia desde os três anos, quando diz ter visto o pai na cama com outra mulher e, adulta, não tem certeza se viu mesmo. É confuso para mim responder porque eu sei, eu simplesmente acredito numa coisa e depois desacredito piamente nisso. Eu não sei... Essa percepção confusa também representa uma clivagem dos objetos, uma recusa e forclusão da perda do objeto, de perda da identidade assegurada pelo objeto anaclítico. Há um medo de ser real a perda do objeto idealizado que lhe dá a esperança de um porvir melhor. ...do meu mundinho ali, de casa, de quarto, de cama...às vezes, ir para fora...aquilo ali é meu mundo...eles estão fora daquilo ali...(...)... é tão difícil explicar isso, porque depende do meu humor. Depende tanto!...de repente parece um mundo diferente de todas as outras pessoas e de repente parece que eu estava, eu acordei nesse mundo! O mundo fora do quarto de Márcia é estranho para ela; não faz parte de sua realidade. Essa “estranheza” reflete uma espécie de desrealização (mundo irreal) e despersonalização (os familiares são estranhos, de outro mundo), associadas a suas mudanças de humor. Tanto a desrealização quanto a despersonalização trazem angústia e representam mecanismos de defesa contra o fracasso do recalque, diante do retorno de elementos antigos recalcados, dos

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quais se deseja eliminar os efeitos, independentemente da forma e do custo que esse recalque representa. Essas são formas neuróticas de se relacionar com a realidade e qualificam o caráter hipomaníaco. Mas para Márcia, essa percepção dos mundos depende “tanto” do humor. A idéia de perda dos objetos totalmente bons a deprime, e a deformação da realidade, que visa evitar o aniquilamento, mostra dois campos relacionais: um interno (defesas neuróticas: recalcamento e denegação ) e um externo (recusa e forclusão). Essa situação desencadeia em Márcia um conflito entre a percepção do outro sobre seu estado e sua percepção de que ela mesma provoca esse conflito. Há um desespero por não entender o que ocorre, ao que ela reage “chutando a barraca”, desistindo e engendrando rituais suicidas. ...realmente, as pessoas, elas parecem que não entendem! Elas acham que eu faço porque eu quero! E, ai, fica aquela coisa na minha cabeça: será que eu faço porque eu quero ou eu faço porque eu não consigo parar?...quando isso começa a entrar na minha cabeça, ai eu fico mais desesperada ainda! Ai, então eu pego e começo a chutar...a barraca...começo a fazer coisas prá poder conseguir o suicídio... f) Mecanismos de defesa Clivagem Na fase de integração infantil à realidade, Márcia apreendeu informações aniquiladoras vindas do ambiente familiar violento, tendo como consequência sua desintegração da realidade, com a falta de uma consciência unificada entre seu existir e as experiências reais. Por isso, ela oscila em seus impulsos, sente-se insegura e tem grande necessidade de compreensão e de afeto ...eu tomando muito remédio ou não tomando remédio nenhum... porque eu penso que tenho alguma coisa... que alguma coisa está acontecendo na minha mente, ora eu penso que eu não tenho nada e, assim fica difícil ...eu não sei... Outra consequência foi sua despersonalização, com a perda de união entre o ego e o corpo, não permitindo as relações de troca entre o mundo interno e o externo. Ela não

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consegue levar adiante seus empreendimentos, realizando conquistas, mas não as concretizando. Tinha vários planos na minha vida mas nunca nenhum foram, deram certo. .... Na faculdade eu não consegui ficar. Não conseguia ficar dentro da sala de aula. E tudo que eu tentei fazer, na minha vida, não deu certo... O desespero da perda dos objetos leva à clivagem, à deturpação da realidade, pela recusa à perda, inclusive perda do controle narcísico. O outro tem suas necessidades narcísicas e não mais vai satisfazer o narcisismo dela, ou seja, não vai satisfazer seu desejo de possuir o falo, decorrente de sua inveja do poder fálico da grande e poderosa mãe ou de pessoas substitutivas, o pai e familiares poderosos. Na iminente perda do controle sobre o objeto anaclítico, o desespero do aniquilamento, a tentativa de suicídio é o último recurso: sem o objeto bom, resta a morte. Márcia parece reproduzir a clivagem em outras relações, o que não deixa de expressar sua própria ambivalência de sentimentos: É, às vezes, nossa, eu acho uma pessoa maravilhosa...até com um namorado que eu tive...pouco só dois. Eu achei que amava., que gostava muito e, de repente, acabou, eu não sinto nada e achei que... não entendi o que é que aconteceu... acabou, não tinha mais nada, não senti mais nada! Forclusão/auto-referência A forclusão (ausência da função paterna, falta do nome do pai) desestabiliza a construção do self, altera a percepção de si, compromete a identidade. O limite entre si e o outro foi rompido, não se apresenta claramente delineado. A qualquer momento, sob contato com a realidade, com o outro, isso será percebido e visto como aterrorizante: Até onde sou eu? Por que essa invasão me confunde? Será que sou eu ou o outro que invade, que persegue? Márcia realmente não identifica seu pai nessa função. Em seu relato, nenhuma alusão foi feita a qualquer aspecto que simbolicamente representasse a figura do pai protetor. Nada foi integrado a seu inconsciente nesse sentido. Essa falta do simbólico representativo da figura

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paterna de Márcia faz com que ela se prenda às palavras em sua forma literal, isto é, fala do pai como qualquer homem que a maltratou, que maltratou sua mãe e com quem aprendeu a beber. Por outro lado, a falta da representação simbólica faz com que o objeto forcluído (a falta de proteção paterna) retorne à realidade como delírio ou alucinações de cunho paranóide. A forclusão da realidade externa, fechando a casa, asseguraria a preservação dos objetos protetores contra a morte. A morte deles seria a sua morte. A psicose ocorreu mas não se perpetuou, pois a fragmentação do ego foi parcial - o ego deformou-se para fugir da fragmentação total através da forclusão da parte ameaçadora da realidade externa. ...eu acho que é porque eles não toleram o que eu tô fazendo ou, talvez, porque eu ache que eu não tô tolerando mais o que eles estão fazendo comigo...(...) prá que isso acabe...tudo isso...essa confusão, essa até depreciação...deles só comigo...e que talvez não exista! A dúvida entre essas duas possibilidades reflete um conflito entre o ego e a realidade, originado do contato com a realidade cruel, com objetos inquietantes, aniquiladores, que ela quer evitar. Há medo ante a possibilidade de o ego ser fragmentado, de se tornar psicótica. (...) na faculdade eu tinha certeza que as pessoas estavam...cochichando, falando de mim! Eu tinha certeza que o grupo que...que a ...os alunos estavam se distanciando de mim. Mas quando foi lá, quando foi na época que eu entrei no HPAP (HSVP) o Dr. L. falou que não, que isso era um engano meu. Mas, eu cheguei a trancar a matrícula. Tranquei e tudo. Outra hora eu...eu penso que as pessoas estão...por exemplo, em casa, às vezes, eu penso que as pessoas, todas, estão contra mim! E isso eu não sei se é verdade...(...) já tive certeza mas o médico falou que não, não era verdade... Olha teve época na minha vida que eu tinha certeza disso, que estavam falando...eu sei que está confuso pra mim responder isso para vocês...às vezes, tenho a certeza mas, ai vem uma pessoa falar “não, não é assim”. Aí, eu fico com aquela dúvida na cabeça! Não sei se eles estão fazendo isso ou, realmente, não estão... g) Fator traumático Separação A separação dos pais é tema recorrente do discurso e das ações de Márcia; é nesse fato que ela demonstra a maior ambivalência em relação a seu pai e é sob ele que se “esconde” o desejo e a repugnância que sente e que são determinantes para compreensão de seu trauma.

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(...) meus pais se separaram logo após eu ter três anos, após eu ter pego meu pai, na cama, com outra mulher. E...eu falei para a minha mãe... Eu sempre digo que eu sei o que eu fiz. Ultimamente, eu fico assim meio... eu não tenho certeza se eu vi, realmente porque eu tinha três anos e não sei se poderia ter passado pela minha mente ou se não poderia... (g.n.). inclusive, aos 12 anos, assim que minha irmã nasceu, ele me colocou para fora de casa por causa de um lápis que eu pedi a ele, simplesmente!... Ai, eu fui morar com a minha tia e comecei a trabalhar para me sustentar. Abuso Questionada sobre ter sofrido abusos do pai, Márcia afirma suas “certezas”: Olha, a única coisa que eu me lembro, com certeza, de ele ter feito é: ele me magoava muito com palavras e me ofendia bastante... e, inclusive, aos 12 anos, assim que minha irmã nasceu, ele me colocou para fora de casa por causa de um lápis que eu pedi a ele, simplesmente!... Ai, eu fui morar com a minha tia e comecei a trabalhar para me sustentar (g.n.) A expressão “com certeza” pode sugerir denegação de algo que poderia ter ocorrido, ante a afirmativa da única coisa de que se lembrava. No contexto da fala, a expressão está deslocada, já que não houve dúvidas da entrevistadora quanto aos fatos narrados, se reais ou não. Desse modo, ao afirmar “com certeza”, Márcia parece garantir-se ante eventual dúvida que a entrevistadora pudesse vir a ter sobre o fato citado. “Com certeza” pode representar um corte na sequência de suas lembranças, que poderiam trazer a tona fatos ou sofrimentos indesejáveis (denegação). A certeza se opõe à dúvida, que pode ser a mesma citada, de que não sabe se viu mesmo o pai com outra mulher (não certeza). Entre a certeza e a não certeza, surge a repugnância pelo pai. Do ponto de vista lógico, que sentimento poderia causar o fato de ser posta para fora de casa por causa de um lápis: mágoa (desgosto que deixa vestígios duradouros, que transparecem nas palavras, nos gestos....), raiva (ser possuído de cólera e desejar o mal...), repugnância (aversão, asco, nojo que se sente a algo por ser sujo, imundo, imoral...)? Como a expressão “com certeza”, aparentemente deslocada, também a repugnância não se apresenta como o sentimento mais correspondente ou mais esperado por ter conversado com o pai.

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A justificativa do relacionamento ruim devido à bebida também não sugere um sentimento de repugnância, como ela declarou depois: ...o fato dele tá...tá o tempo todo se drogando...na bebida. O tempo todo querendo a morte...(...) enche a cara...enche o prato de óleo e depois coloca muito sal...se tiver pimenta, ele coloca...depois bebe, volta, come mais alguma coisa assim que faz mal...isso me dá uma raiva! (g.n.) Márcia declarou que “detestava” o pai, mas que o perdoava, embora não tenha dito de quê (“Eu detestava ele, sabe?...eu perdôo ele...”). O perdão, trazido à tona no momento em que falava do retorno dele a casa, pode estar associado às ofensas verbais. Mas se esse perdão for contraposto à expressão “com certeza”, pode sugerir a existência de um fato não declarado (denegação). Ela o perdoa pelos fatos indesejáveis. A lembrança de tê-lo visto com uma mulher na cama aos três anos e depois não mais saber se viu realmente é um dos grandes pontos-chave da história de Márcia, pois para ele convergem tanto a indefinição sobre quem seria essa mulher (a própria Márcia, abusada aos três anos?) e a possibilidade de sua fala ser a reprodução do discurso materno, o que também deixa na obscuridade quem era/foi essa mulher. (...) meus pais se separaram logo após eu ter três anos, após eu ter pego meu pai, na cama, com outra mulher. E...eu falei para a minha mãe... Eu sempre digo que eu sei o que eu fiz. Ultimamente, eu fico assim meio... eu não tenho certeza se eu vi, realmente porque eu tinha três anos e não sei se poderia ter passado pela minha mente ou se não poderia... (g.n.). Márcia representa com um “sempre” e um “se” seu passado e seu presente, respectivamente. A cena descrita, primária de suas lembranças, foi a referência que pautou e ainda pauta sua vida. Agressão Se Márcia idealiza e exalta a figura do pai, querer se autodestruir e lesionar-se (já que ela “representa” fantasiosamente o pai) pode ser uma forma inconsciente tanto de querer destruí-lo ou feri-lo fisicamente (e não o faz porque o perdoou), como de querer destruir ou

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ferir a imagem dele que ela tem dentro de si, que introjetou. Assim, ela suprime a tensão provocada por ele. Isso parece claro, quando ela declara: Em 2005, eu me cortei muito (...) foi a época que eu mais me cortei. Eu não sei se foi, devido ao fato que eu sentia muita dor! Era uma dor assim, não uma dor física, era uma dor...era uma necessidade de sentir alguma coisa que ultrapassasse aquela dor que eu sentia (...) (g.n.) O sentir-se desfalecer quando sangrava e querer desfalecer até morrer pode ser uma forma simbólica de Márcia resolver suas pulsões destrutivas. Isso se confirma, quando se percebe que ela, de fato, não quer se autodestruir, pois em suas tentativas de suicídio, sempre há alguém por perto que pode salvá-la da morte ou há alguma estrutura na qual ela se apoia para não ir adiante: (...) eu que agradeço, sim, a ela (a irmã) porque várias e várias vezes, por incrível que pareça, ela conseguiu me salvar, no momento em que eu tentei o suicídio (...) (...) às vezes, tinha pensamento fixo em sair de casa e morar sozinha...e quando eu soube da C., porque ela havia saído de casa, não sei qual foi o motivo que ela fez isso (suicídio)...porque isso me reforçou a idéia de eu ter que ficar morando com a minha tia... Depois, o próprio fato de “fazer planos” para se suicidar já indica que há um jogo psicológico que ela inicia, primeiro, consigo mesma, a partir dos mecanismos psicológicos que desenvolveu para viver; ficar planejando a forma de se suicidar não deixa de ser um meio de ficar se alimentando de algo que para ela ainda não foi evidenciado: chamar a atenção. (...) geralmente eu planejo assim...como vai ser na hora! Porque eu fico pensando assim: tem que ser uma coisa certa! Ai, eu fico bolando prá ser uma coisa certa, entende? Com o envolvimento do outro nesse jogo, busca-se entender o que ela quer dizer com as inúmeras tentativas de suicídio. Do mesmo modo que internalizou o “negativo” do pai, pode ter internalizado também a forma negativa de dizer que quer viver. E os argumentos com que ela justifica não ter conseguido o intento são um exemplo disso: A primeira tentativa de suicídio...eu tinha mais ou menos sete anos. Depois, eu tentei várias vezes, muitas vezes, milhares de vezes! E, muitas delas me deixaram frustradas de não ter conseguido... inclusive, eu acho que fiquei muito chateada mas, sei lá, era muito confuso para mim! Eu creio em Deus...eu dou graças a Deus...não ter

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conseguido. E, outras vezes, quando eu to assim muito lá embaixo, eu fico pedindo que a morte venha... Em outras palavras, pensar na “morte” é um recurso do qual ela se utiliza para sair “lá de baixo”, para emergir dessa situação. Tentando o suicídio, ela consegue agir e sair “lá de baixo”. (...) eu já usei de tudo...Deus não quer que eu morra...eu usei tanta coisa!

4.2. O Caso Laura Dados de identificação: L., 34 anos, natural e residente no Distrito Federal, Estado civil e escolaridade: solteira, 2º grau incompleto. 4.2.1. Avaliação Psiquiátrica a) História psiquiátrica, antecedentes sociais, familiares e fisiopatológicos; curva de vida: a pesquisada relatou que, desde sua infância, a relação de seus pais era conturbada e eles se agrediam mutuamente. Entre os cinco e 15 anos, a paciente foi abusada sexualmente pelo pai e agredida fisicamente pela mãe, que sabia do abuso mas se omitia. Segundo Laura, sua infância foi “muito triste”, sofrendo com a violência dos pais e com segregação de alguns irmãos e colegas da escola, que a chamavam de “burra” por ter dificuldades de aprendizagem. Contou ter repetido a 1ª série do 1º grau quatro vezes devido a dificuldades de entender o que a professora dizia, em consequência de ficar cabisbaixa, sentada na última cadeira, incomunicável, pensando sobre o que lhe acontecia em casa e se achando “feia, burra, suja”. Era uma criança calada, tímida, chorava diariamente e vivia “desmaiando” após os atos violentos que sofria ou em momentos que ficava “fora de si”. Até os 9-10 anos, o pai (sempre sóbrio durante os atos abusivos) manipulava seus órgãos sexuais após lhe oferecer balas comestíveis. Depois dessa idade, ele passou a penetrá-la, diariamente. Primeiro à tarde, no horário em que a mãe estava trabalhando, depois nas madrugadas, enquanto sua mãe e irmãos dormiam.

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A mãe a agredia fisicamente e a depreciava, dizendo que “ela nunca ia aprender como os irmãos, pois era muito burra”. Dois dos seus quatro irmãos também a desvalorizavam e induziam sua mãe a agredi-la. O pai era omisso e só a defendeu uma vez, quando a mãe perfurou seu tórax com uma faca. Nesse dia, ele ficou desesperado e a levou para o hospital, escamoteando o fato dos plantonistas. A paciente informou que, na infância e adolescência, sua mãe não lhe dava carinho e a agredia com armas brancas, pedaços de madeira e canos de PVC, além de bater sua cabeça na parede até sangrar. Nessas ocasiões, uma prima (que morou em sua casa) orientava-a a usar várias roupas superpostas para que a dor e o sangramento fossem atenuados. Por um longo período (possivelmente entre a infância e a adolescência, ela não lembra), morou com a professora da escola que lhe perguntava por que ela era tão triste e calada. Essa professora passou a lhe ministrar aulas separadamente e convidou-a a morar com a família dela. A paciente revelou-lhe, após três anos, o que ocorria em casa. A professora não denunciou os pais. Relembra que quando morou com a professora, percebia-se fazendo muitas coisas ao mesmo tempo, com pensamentos rápidos, com alegria excessiva, porém sem conseguir concluir as tarefas as quais se propunha ou quando aquela lhe pedia para fazer alguma coisa na casa. As tentativas de suicídio começaram a partir dos 12 anos, após ter tido a primeira penetração sexual pelo pai. A partir daí, quando mal tratada pelos pais, saía de casa e engolia “plantas venenosas com água” ou tentava se jogar da ribanceira próxima de sua casa. Após sofrer os atos abusivos, geralmente ingeria vários comprimidos, cortava-se até sangrar, tentava se jogar embaixo de ônibus ou pulava de lugares altos. Segundo conta, até a separação definitiva do casal, a mãe era ameaçada pelo pai com um revólver que ele tinha. Também ela foi ameaçada por ele com essa arma para que não contasse às pessoas que sofria abusos sexuais.

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Aos 13 anos, após inúmeras brigas e mútuas agressões com armas (faca e revólver), seus pais se separaram, e sua mãe saiu de casa, deixando os filhos à mercê do pai. Então, seu pai passou a chegar alcoolizado em casa, acompanhado de outros homens, de madrugada. Acordava a paciente, puxando seus cabelos e xingando-a de “vagabunda”, para que ela servisse comida e bebidas ao grupo. Durante todo o período (cerca de dois anos) de convívio sem a mãe e com o pai e irmãos, continuavam as dificuldades de aprendizagem e não tinha amizades. Quando tinha 15 anos de idade, sua mãe retornou ao lar e seus pais se separaram, definitivamente. Nessa época, a paciente começou a fazer faxinas em residências ou trabalhar em casas de família, ao tempo em que tentava dar continuidade aos estudos. Ela saiu de casa mais três vezes e a mãe ia buscá-la, para que cuidasse de seus irmãos enquanto ela trabalhava. A mãe continuava a agredi-la verbal e fisicamente. A paciente informou que atravessou a adolescência sentindo-se incapaz, feia, sem fazer amigos e repetindo anos escolares. Seu humor era oscilante, na maioria das vezes irritável, deprimido ou misto (mudava de depressão a euforia no mesmo dia ou por vários dias seguidos), mas tinha momentos de euforia. Então, ficava muito alegre, inesperadamente, andando a esmo, sem dormir, com aumento do interesse sexual, pensando rápido e com desenvoltura. Nos períodos mais longos de euforia, pensava em concluir os estudos, chegar à faculdade, formar-se em advocacia ou em psicologia para ajudar as crianças abusadas. Ela chegava a sonhar que um dia trabalharia num organismo internacional e teria seu trabalho humanitário reconhecido mundialmente. Vislumbrava o recebimento de prêmios, seu nome elogiado em manchetes de jornais e revistas internacionais, além de imaginá-lo em uma placa exposta ao público. Entre os 16 e 23 anos de idade, ela trabalhou numa padaria, em um sindicato e também em jornal do DF. Porém, tinha dificuldades de relacionamento com os outros funcionários e

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com os superiores, evitando aproximações, restringindo-se a cumprimentá-los com “bomdia”. Seus colegas diziam que ela “era emburrada e metida”. Mas como não conseguia estudar nem trabalhar por muito tempo, resolveu, aos 24 anos, participar de campanha política. Na época, foi convidada pela mãe que lhe cobrava que falasse em público, mas ela não conseguia concatenar as idéias. Entretanto, quando foi para as ruas, fazer “bandeiradas”, sentiu-se mais à vontade e, quando eufórica, exagerava nos gestos, na fala e no comportamento, sendo criticada pelos acompanhantes que lhe acusavam “de estar fora do normal”. Após seu candidato ganhar a eleição, foi nomeada para um emprego. Na situação de trabalho, foi acusada de contato sexual na repartição, o que resultou em sua exoneração do cargo e desemprego. Não satisfeita, foi procurar um deputado correlegionário que a apoiou e conseguiu que ela fosse nomeada para outro cargo. Já no fim do mandato desse governo, conheceu um homem de 38 anos, que a cortejou e começaram a namorar; ela tinha 25 anos. Ele era seu colega de trabalho e foi o único relacionamento heterossexual que ela teve. Depois de serem exonerados dos seus cargos quando o governo perdeu a eleição de 1998, seu namorado convidou-a a ir morar com ele em outra cidade, prometendo-lhe um emprego. No primeiro ano, tentaram viver maritalmente, mas ela tinha dificuldades sexuais, como evitar ser penetrada pelo companheiro, recusar-se a ter relações com a luz acesa ou ver o corpo dele. Ela lembrou que ele era muito paciente, tratava-lhe bem e que tentava fazer o relacionamento dar certo. Mas ela não conseguia, lembrando das relações sexuais que lhe tinham sido impostas pelo pai. Após o primeiro ano, eles começaram a se desentender e chegaram a se agredir verbal e fisicamente. A partir de então, quando brigavam, ela ameaçava jogar-se pela janela ou embaixo de um ônibus e era impedida por ele. Ela comentou um episódio de racismo que sofreu, ao tentar se empregar numa loja. A proprietária teria recusado seu pedido de emprego por ela ser negra. Essa senhora teria lhe

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dito que a vaga já estava preenchida num dia e, dias depois a paciente viu, novamente, a placa procurando funcionário para a loja. Apesar desse episódio, tentava arranjar trabalho, até que foi trabalhar em outra campanha política e conseguiu ser nomeada para outro cargo numa empresa pública de limpeza daquela cidade. Em decorrência de suas dificuldades de relacionamento com os funcionários e superiores, foi encaminhada ao CAPES e iniciou tratamento em Saúde Mental. Ela informou que melhorou o contato social e passou a conversar mais com as pessoas. Nos últimos quatro anos de convivência com o companheiro, eram como irmãos; ajudavam-se, mas não mantinham contato físico. Segundo ela, as famílias de ambos não sabiam dessa situação. Eles viveram juntos por cinco anos e se separaram quando ela iniciou um relacionamento com uma mulher. Após conhecê-la, apaixonou-se e voltou para o DF. Aqui, moraram juntas de 2003 a 2006. Disse que o convívio era bom e que conseguia satisfazer-se afetiva e sexualmente com ela. Todavia, quando se sentia preterida pela companheira, cortava-se ou tentava suicídio ingerindo muitos comprimidos. Nessa época, começaram as internações num hospital psiquiátrico. Era levada pela companheira ou pela mãe quando tentava suicídio ou “desmaiava”, após sentir-se abandonada. A companheira tinha “medo de ver sangue” e sentia-se sufocada pela paciente. A mãe descobriu o relacionamento homossexual e mandou a paciente procurar uma religião, ao tempo que dizia que “aquilo era pecado, que não era coisa normal” e que tinha medo da irmã caçula “pegar” esse hábito. A paciente respondia que aquela preferência sexual não era porque ela queria e sim porque foi abusada sexualmente pelo pai. Nesses momentos, a mãe retrucava que ela “sempre lhe deu muito trabalho”. Quando a paciente perguntava à mãe por que ela não tinha evitado o abuso do pai, a mãe respondia: “por que você não procurou a delegacia de mulheres?”

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A mãe sempre a proibiu de contar para outras pessoas que ela sofria abuso do pai. Desde que iniciou tratamento no DF, não conseguiu estudar ou trabalhar. Está há anos recebendo auxílio-doença da Previdência Social. Desde 2006, vem sendo submetida a tratamento num hospital-dia da SES/GDF e evolui com períodos de recaída, quando provoca autolesões. Permanece com vazio crônico, irritabilidade, períodos de depressão profunda e euforia ou ambos, disfuncional e com esperança de trabalhar para ajudar os abusados em geral e portadores de sua patologia. Ela mantém relacionamento com uma mulher 18 anos mais velha e passa os fins de semana na residência dela. Sente-se apoiada, mas brigam porque a paciente quer exclusividade e tenta controlar a outra pessoa. Sua amiga mais próxima, que conheceu no HSVP e conviveu no ISM, faleceu há nove meses, provavelmente por suicídio. A paciente encontrou o corpo da amiga, após três dias que não se viam. Pensou em morrer “para ficar junto dela”. Disse que as duas eram muito unidas, confidentes e parceiras nas idéias de morte e planos suicidas. Gostava e confiava tanto na amiga, que chegou a experimentar maconha, cocaína, tabaco e bebida alcoólica, o que sempre evitou devido ao alcoolismo paterno. Atualmente, nega uso de drogas e continua com ideações de morte e suicídio, sem tentativas de auto-extermínio, mas com autolesões quando frustrada. Mantém o afastamento familiar, principalmente, do pai que vive com outra mulher e, segundo a paciente, continua abusando sexualmente de outras filhas. Diz que “não teve pai e gostaria de tirar o nome dele de sua identidade”. Relata que, quando sua família se reúne, sente-se “uma estranha”, piorando se o pai está presente, quando tem sentimentos de medo, ódio e ojeriza em relação a ele. Tem poucas amizades, desiludiu-se com as religiões (mas acredita em Deus apesar de dizer: “Deus permitiu que meu pai fizesse aquilo comigo”), tem dificuldades de relacionamento familiar, mágoa e raiva da mãe (por ela não ter lhe protegido do pai) e de dois irmãos. Entretanto, sente-se apoiada por outros dois irmãos que lhe protegem

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e tentam fazer com que ela se sinta bem. Ainda sente-se preterida pela mãe em relação aos outros irmãos, apesar de achar que, hoje, depois da morte da amiga, ela passou a visitá-la mais e tornou-se uma mãe carinhosa. Segundo uma amiga da paciente, a mãe fica com seu cartão bancário e retira seu dinheiro para ajudar outros familiares. A paciente nega esse ocorrido. Portadora de baixa auto-estima, acha-se inferior por ser mulher, negra, feia, pouco inteligente e pobre. Quando toma banho, costuma levar mais de uma hora esfregando-se “para que o corpo fique bem limpo” e, quando ansiosa ou frustrada, limpa sua casa excessivamente. Nunca namorou pessoas de sua cor, tendo dificuldades de ter amizades com homens negros e não aceita relacionamento heterossexual. Não consegue cortejar as mulheres por medo de se frustrar. Sente-se à vontade no relacionamento afetivo-sexual com mulheres mais velhas; exige exclusividade, atenção excessiva e submissão durante o ato sexual. Gosta de ser acariciada, pratica penetração, mas não gosta de ser penetrada. Usa objetos sexuais nas companheiras, mas não permite que usem em seu corpo. Masturba-se e fantasia pensando em mulheres. Diz que é desconfiada em relação às pessoas e, às vezes, sente que as pessoas lhe olham diferente, que falam mal dela. Acusa a todos de terem-na abandonado por conta de sua doença. Nos hospitais onde passa, mostra-se auto-referente, dissocia (desmaiando, muitas vezes) e apresenta ideação paranóide persecutória. Até hoje, nas frustrações em relação aos outros, deprime-se, isola-se em sua casa, fecha as janelas e portas e corta-se. Quando acaba, diz sentir-se “aliviada” e com grande sensação de bem-estar. Em outros momentos de desespero, bate-se ou joga sua cabeça contra a parede. Num desses momentos, bateu a cabeça contra uma vidraça no ISM, culminando em um ferimento na cabeça. Nos momentos de euforia ou quando se sente abandonada, tem descontrole dos impulsos, como: roer unha e engolir, comer compulsivamente e provocar vômitos, ingerir terra, comprar em excesso objetos desnecessários e furtar canetas de outras pessoas.

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Antecedentes sociais: experiência breve com tabaco, maconha e cocaína; uso atual de anfetaminas; negam-se usos de outras drogas de abuso. Antecedentes familiares: pai pedófilo e mãe hipertensa e diabética, com tratamento com tranquilizante no passado. Negam-se informações de doenças neuropsiquiátricas na família. Antecedentes fisiopatológicos: nasceu de parto a termo, eutócico. Nuligesta. Tomografia computadorizada de crânio com imagem compatível com cisticercose cerebral. Negam-se cirurgias, traumatismo crânio-encefálico, convulsões e outras doenças. Os medicamentos que usa são os psicofármacos de rotina. Curva de vida: a paciente nasceu no DF, filha de pai, pedreiro e mãe, servente. Família de nível socioeconômico baixo, baixa escolaridade, pai alcoolista e mãe analfabeta, que depois aprendeu a ler. A paciente é a primogênita de cinco filhos vivos, três mulheres e dois homens. O pai tem cerca de 12 filhos fora do casamento. Ele sempre foi violento e ameaçava a genitora com arma de fogo ou faca. Quando a pesquisada tinha entre oito e nove anos, dois irmãos morreram queimados em sua casa e a mãe foi internada em “estado de choque”, sendo necessário ser tratada com tranqüilizantes. A paciente não relatou trauma desse evento. Ela interrompeu os estudos no primeiro ano do segundo grau e está de licença previdenciária há vários meses. Mora sozinha em casa própria e passa os fins de semana com a companheira. Diz ser cristã mas não frequenta igrejas. Exames físicos: durante os 12 encontros com essa paciente não foram detectadas alterações no exame físico, inclusive distonias agudas. Exames psíquicos: nas avaliações realizadas nesses encontros, geralmente, a paciente apresentava-se em boas condições de higiene, cabelos e roupas adequadas, vigil, orientada globalmente, humor variando entre irritabilidade, depressão leve, hipomania, com ou sem auto-referência, discurso normal ou rápido, consciência variável em relação ao seu estado mórbido e tratamento, traços de impulsividade, compulsividade, ideações de morte e suicídio,

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dramaticidade, necessidade de chamar a atenção da pesquisadora, manipulação. As alterações dos exames do estado mental estão melhores descritas nas avaliações das escalas EAM-m e BDI. b) Exames complementares - Eletroencefalograma digital com mapeamento cerebral (05.11.2007): exame normal; ausência de atividade irritativa e/ou sofrimento cerebral; - SPECT (Perfusão cerebral por TC) (31.10.2007): hiperperfusão/hiperativação da porção anterior do giro do cíngulo. Exames laboratoriais (06/11/2007): -

Hemograma: Hb= 14.8 g/dL; hematócrito=43.6%; VCM=83.0 fl; HCM=28.1 pg; CHCM=33.8%; RDW= 13.4 %.

-

Leucograma: leucócitos= 3.700/mm3; linfócitos=2035; segmentados=1.406 (valor de referência= 1480 a 7700); basófilos= 37; monócitos= 222. Observação: demais elementos do leucograma obtiveram contagem nula.

-

Plaquetas: 348.000/mm3; VMP=9.2 fl; PCT=0.32%; média PDW= 16.1%.

-

Perfil lipídico: colesterol total= 180 mg/dL; triglicerídeos=68 mg/dL; colesterol HDL= 62 mg/dL; colesterol LDL= 104.4 mg/dL; colesterol VLDL= 13.6 mg/dL.

-

TGO= 37 U/L (valor de referência em mulheres: 13 a 35 U/L); TGP= 19 U/L; GGT= 7 U/L; creatinina= 0.80 mg/dL; uréia= 31 mg/dL; LDH: 164 U/L.

-

Glicemia= 97 mg/dL.

-

Perfil hormonal: cortisol após dexametasona= 1.0 ug/dL; estradiol= 122.50 pg/mL; progesterona plasmática= 5.28 ng/mL; prolactina= 21.10 ng/mL; testosterona total= menor que 20; testosterona livre= 0.60; TSH= 1.40 uUI/mL; T3= 171.65 ng/dL; T4=7.4 mcg/dL; T3 livre=3.30 pg/mL; T4 livre= 1.30 ng/dL.

-

Neurotransmissores: serotonina= menor que 20 NANOG/mL (valor referência= 50 a 250 ng/ml); adrenalina= 36 pg/mL; noradrenalina= 86 pg/mL; dopamina= 32 pg/mL.

c) Diagnósticos Psiquiátricos (segundo a CID10 e o DSM-IV-TR, respectivamente): -

Transtorno de personalidade emocionalmente instável, tipo borderline ou limítrofe (F60.31); Transtorno da personalidade borderline (301.83);

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-

Transtorno de personalidade histriônica (F60.4); Transtorno de personalidade histriônica (301.50);

-

Transtorno de estresse pós-traumático (F43.1); Transtorno de estresse pós-traumático (309.81). 4.2.2 Resultados da aplicação da escala EAM-m e do BID a) Resultados da escala EAM-m Os resultados foram extraídos dos dados da EAM-m em 2007. O Gráfico 5 mostra o

escore final da EAM-m de Laura por consulta.

Gráfico 5: Escore final da EAM-m da paciente Laura por consulta

O primeiro encontro para aplicação da EAM-m ocorreu no dia 19.07.2007 (escore= 6) e a paciente encontrava-se penteada e vestida adequadamente; queixou-se de irritabilidade e que dormia 1h menos que o habitual. Seu discurso era coerente, mas mostrava-se ora irônica, ora desconfiada, mudando de posição na cadeira. Entretanto, não denotava irritabilidade, ideações delirantes, humor elevado ou deprimido. Os demais itens do instrumento obtiveram pontuação nula. Ela relatou que usava regularmente os psicofármacos (haloperidol 1 mg, topiramato 50

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mg e clonazepam 2 mg, diariamente). Além disso, permanecia no hospital-dia do Instituto de Saúde Mental da SES/DF. Na segunda aplicação do instrumento, no dia 03/08/2007 (escore=13), a pesquisada vestia-se adequadamente e o cabelo estava penteado. Ela referiu que dormia 1 h menos que o habitual, tinha planos compatíveis com sua situação sociocultural, inconsistentes e sem demonstrar motivação adequada. Durante esse encontro, aparentava irritabilidade em alguns momentos, falando mais que o habitual, porém sem verborréia. Enquanto conversava, mostrava-se inquieta, mexendo nos papéis sobre a mesa do consultório, provocando barulho no ambiente. A algumas perguntas, respondia com tom de voz irônico, às vezes, sarcástico, e mostrava-se desconfiada da pesquisadora. Informou que usava as medicações e que vinha se desentendo com algumas pessoas lá no ISM, inclusive com sua psicóloga. Os outros itens dessa escala foram iguais a zero. No dia 31/08/2007 (escore=15) foi efetivada a terceira aplicação da EAM-m. Algumas alterações foram detectadas, como: humor ou afeto levemente aumentado, rindo e ironizando quando era lhe perguntado sobre questões íntimas, relato espontâneo de aumento psicomotor, diminuição da necessidade de sono, verborréica (mas a fala era interrompida quando a entrevistadora solicitava), pensamentos rápidos e circunstancias. Ela informou que havia duas noites que dormia poucas horas e deambulava, de madrugada, pelas ruas da cidade onde mora. Além disso, esclareceu que há cerca quatro dias vinha oscilando de depressão à euforia ou irritabilidade. Ela disse que no dia que deprimiu, provocou autolesão, gostou de se ferir e sentiu-se calma e aliviada após o ato lesivo. Sua família levou-a ao HSVP, e ela ficou alguns dias internada, obtendo alta com a mesma prescrição que usava rotineiramente. Associou essa reação à discussão com sua psicóloga. Enfatizou que essa relação com a psicóloga havia piorado e que sentia-se discriminada por ser pobre em relação a outros pacientes. Ela também reclamou que várias pessoas daquele lugar

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falavam mal dela e que tinha planos de sair de lá. Apesar das queixas, não mostrava firmeza nos propósitos de abandonar o ISM, admitia mudar de idéia e não se detectou ideação delirante. Apesar do humor, mostrou-se cooperativa, concordou que estava doente e precisava continuar com tratamento. Os itens restantes obtiveram contagem nula. No quarto encontro, que aconteceu no dia 21/09/2007 (escore=21), compareceu para a entrevista descuidada nas roupas, cabelos desalinhados com gestos inadequados e com adornos coloridos (o que não lhe é comum). Ela queixava de diminuição de sono, que andava pelas ruas, na madrugada. Ao ser questionada sobre interesse sexual, confirmou aumento do desejo sexual e masturbação excessiva. O humor e afeto estavam aumentados, espontaneamente, tanto objetiva quanto subjetivamente. Em alguns momentos da inquirição, demonstrou desconfiança no setting, irritação, mexia-se e levantava-se da cadeira, falava mais que o corriqueiro. Às vezes, a pesquisadora conseguia interrompê-la para dar continuidade ao questionário. Observou-se que, voluntariamente, ela mudava de assunto, perdia objetivos da conversa, pensamento acelerado. Ela verbalizou, sem consistência, que continuava com muitos planos no futuro, em relação a trabalhar numa ONG, ajudar pessoas com a mesma problemática que ela. Apesar disso, apresentava discernimento duvidoso. Admitiu a doença e a necessidade de tratamento, quando questionada pela entrevistadora. Não houve item com pontuação zero. Confirmou que continuava usando haloperidol 1mg, topiramato 50 mg e havia aumentado o clonazepam para 4-6 mg, à noite para tentar dormir. A quinta aplicação da escala ocorreu no dia 05/10/2007 (escore=10) e a paciente compareceu penteada e vestida adequadamente. Referia sentir-se com muita energia e que estava inquieta durante os dias anteriores, com aumento do interesse sexual (sem masturbar-se ou ter relação sexual). Ela disse que conseguia dormir com as dosagens de psicofármacos habituais. Apesar de insistir na sensação de humor elevado e de demonstrar irritabilidade em alguns momentos da entrevista, não se detectou humor elevado, a velocidade e quantidade da

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fala estavam sem alterações. Raramente, durante a entrevista, distraia e verbalizava pensamentos mais rápidos, circunstanciais e planos futuros pouco consistentes, mas condizentes com sua realidade sociocultural. Cooperou com a entrevista durante todo o tempo e, espontaneamente, dizia que estava doente (“sou bipolar”) e que, por isso, precisava do tratamento. No dia 19/10/07 (escore=15), foi concluída a avaliação final. A entrevistada queixouse que vinha dormindo mais de 1h a menos que o seu habitual e que, na noite anterior, havia ingerido os psicofármacos com aumento da dosagem de clonazepam para 8 mg/noite. Apesar de colaborar na entrevista, em determinados momentos demonstrou irritação e respondeu com rispidez, ironia, chegando a levantar o tom de voz, mostrando-se desconfiada. Ela também verbalizou, ao ser questionada sobre seus planos atuais, que as pessoas no ISM e da família pensavam e queriam o mal para ela e que tinta pensado em se ferir (“vontade de me cortar mas não com o quê). Informou que as amigas, os irmãos e a mãe tinham retirado objetos cortantes de seu alcance e que a estavam vigiando excessivamente. Ao ser reforçado que isso talvez fosse necessário para protegê-la, ela reagiu indignada e perguntou à pesquisadora se ela estava do lado deles e contra ela. Apesar de alguns minutos de argumentação, não mudou de opinião e confirmou que estava sendo perseguida por todos e que a saída era morrer. No entanto, continuava dizendo que era bipolar e que talvez ainda precisasse de tratamento (o que foi admitido, duvidosamente, devido à insistência da entrevistadora). Os demais itens do questionário apresentaram pontuação nula. A paciente continuava dizendo que estava usando os psicofármacos prescritos por sua psiquiatra. Dias após essa última avaliação, soube-se que a pesquisada vinha usando anfetamina há vários meses, que teria conseguido com a amiga que se suicidou em maio de 2007. Ao contrário da outra paciente investigada neste trabalho, Laura, durante as aplicações da EAM-m, nunca foi medicada com antipsicóticos atípicos, anticonvulsivantes mais eficazes

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para impulsão agressão e/ou antidepressivos serotoninérgicos. Mesmo em momentos de humor eutímico, demonstrou irritabilidade e ideação persistente de morte (mesmo sem planos suicidas imediatos). Outra informação é que a pesquisadora, durante o processo da pesquisa, não interveio no tratamento da paciente, apesar do apoio pessoal e através de telefonemas. Outra observação é que a paciente, apesar de confirmar para outros pacientes, nega até hoje, para a pesquisadora que usa anfetaminas. Também percebeu-se, durante o seguimento dela, que a paciente tem um medo mórbido de engordar e que já admitiu, várias vezes, que provoca vômitos quando acha que comeu além do habitual. O Gráfico 6, abaixo, mostra o percentual da pontuação máxima da EAM-m da paciente Laura por consulta. Nesse gráfico observa-se que no dia 1 da pesquisa, a paciente Laura apresentava 10% da pontuação da escala EAM-m. No dia 2, Laura apresentou 21% de positividade para os itens do mesmo instrumento, permanecendo ainda sem ultrapassar o ponto de corte da EAM-me, de 14. Entretanto, no dia 3, ela obteve 26% de sintomas maníacos, já demonstrando euforia. Esse quadro evoluiu para o percentual de 36%,

no dia 4, sendo compatível com

sintomatologia maníaca, segundo a EAM-m. Não manejo medicamentoso até então. No dia 5, houve uma queda sintomatológica no humor, perfazendo um total de 17% de sintomas maníacos, abaixo do escore limite de 14 para o diagnóstico de mania. Finalmente, no dia 6, a paciente Laura, apresenta um percentual de 26%, que é explicado pelo aumento de sintomas maníacos, mais próximos da hipomania. Essas oscilações de humor tiveram relação com fatores ambientais, já que não houve troca, aumento ou diminuição do esquema psicofarmacológico utilizado.

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Gráfico 6: Percentual da pontuação máxima da EAM-M do paciente Laura por consulta

Pelo Gráfico 7, detectou-se que no 2.º dia da pesquisa houve aumento de 100% da sintomatologia maníaca, em relação ao dia 1. No dia 3 dia, percebeu-se aumento sintomatológico de 150% de itens em relação ao 1.º. Seu humor estava elevado, verborréica, com pensamentos rápidos, referindo-se ao aborrecimento com sua psicóloga; havia provocado autolesões e tinha insônia, inquietação, deambulação a êsmo. Havia saído de internação no HSVP há poucos dias. Negou que os psicofármacos e suas dosagens tivessem sido alteradas pelos psiquiatras do hospital. O quadro evoluiu até que, no dia 4 dia, ela apresentou percentual máximo de itens positivos (250%), em relação ao dia 1 da pesquisa. No dia 5, diminuíram os itens positivos na escala EAM-m, com resultado de 67% de positividade sintomatológica maníaca, em relação ao dia 1. No último dia, após eventos estressores ambientais, Laura voltou a apresentar um percentual de 150% mais que na primeira consulta, traduzindo a soma dos itens positivos para episódio maníaco detectado nessa avaliação.

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Gráfico 7: Percentual de aumento acumulado da EAM-M em relação a 1ª consulta do paciente Laura

b) Resultado do BID O Gráfico 8 mostra os resultados do BID de Laura por consulta. Nos dia 26/10 e 12/11 de 2007, ela obteve, respectivamente, escores finais de 34 e 40. Esses resultados são compatíveis com episódios depressivos graves. Nas aplicações desse instrumento, verificou-se que em 26/10, ela queixava de oscilações de humor diárias, desde depressão até hipomania, sempre com disforia e irritabilidade e ideação persecutória (desconfiança dos outros). Também no dia 12/11, quando essa paciente respondeu o questionário, as suas queixas (sintomas) não eram condizentes com os sinais clínicos observados pela pesquisadora. Durante esse encontro, a paciente mostrou-se inquieta, rindo sem motivos aparentes, com atitudes inadequadas como abraçar a pesquisadora euforicamente.

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Gráfico 8: Resultados do inventário para depressão de Beck da paciente L por consulta

4.2.3 Análise qualitativa das entrevistas semi-estruturadas a) Natureza dos vínculos Por meio de seu relato, Laura demonstrou viver sob os efeitos da infância e da juventude, marcadas por inúmeros abusos, numa relação familiar de muitos conflitos entre os pais, dela com eles e com alguns de seus irmãos. Com isso, seu ego foi integrado bruscamente a essa realidade de violência, sem que houvesse qualquer suprimento afetivo e moral que pudesse ao menos minimizar esses efeitos. Relação com o pai Laura se refere ao pai como se ele fosse uma figura distante e até declara sua indiferença por ele. Recebeu desse pai o oposto do que deveria demonstrar sua função paterna, o que acarretou um sentimento de contradição, caracterizado não pela perda dessa relação significativa (porque ele nunca a exerceu), mas sim pela total ausência dela.

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Eu não falo com ele...eu falo com ele, assim, de vez em quando, [...] continua como se não existisse pai para mim! Se na minha identidade não tivesse o nome do pai, [...] seria melhor! E...quando as pessoas perguntam assim: você tem pai? Muitas vezes dá vontade de falar que não (expressão de raiva). Mas seu sentimento em relação a ele não se resume a isso, pois em meio a essa “indiferença” ela se lembra e ressalta uma única vez em que contou com o apoio dele. Não foi no exercício de sua função paterna e sim a ajuda de quem presta socorro a outro. Mas enfim, recebeu dele aquilo de que necessitava naquele momento. Anáclise Em apenas um momento Laura se refere ao apoio paterno, situacional, mas nem por isso menos importante para ela, dada a violência envolvida no fato. (...) só teve uma vez que ele agiu, quando minha mãe me deu uma surra que a faca entrou do meu lado. Eu estava pedindo socorro para ela e a minha voz não saia pela boca mas saia pelo buraco!.(...) .vi aquele monte de sangue saindo...o único recurso que tive foi pedir socorro para ele, né? Na hora que ele viu, ele ficou doido, me colocou dentro do carro e foi me levar para o hospital! A angústia pela extrema aflição impediu que Laura se esquecesse desse apoio e fez com que ela desenvolvesse sentimentos desencontrados em relação a ele. Esse fato isolado se sobressai em meio às inúmeras “disfunções” paternas violentas, como se o negativo e o positivo se igualassem em peso e valor, restando à indiferença que declara. Ambivalência A ambivalência de seus sentimentos pelo pai é observada quando Laura cita sua indiferença e acrescenta, imediatamente, sentir medo dele. Falo com ele, assim, de vez em quando [...] porque eu tenho medo dele! Não vou no natal, no aniversário, no ano novo [...] continua como se não existisse pai para mim ! Indiferença e medo são sentimentos que não pertencem à mesma categoria de valor. Se a indiferença se refere à completa ausência da figura paterna, o medo é associado à violência e à agressividade.

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Encontrar o pai significa voltar às lembranças no tempo em que os fatos ocorreram, deixando seu ego novamente exposto à contradição e à angústia. Relação com a mãe A mãe é o centro da atenção e das queixas de Laura. A queixa da inexistência de um +.vínculo diádico com ela é mais forte que a ausência desse vínculo com o pai. Laura buscava nela não só a função materna, mas principalmente a defesa contra a violência paterna. Sem um e sem outro na infância e na adolescência, ela ainda tem expectativas de merecer um dia a atenção da mãe. Foi agora, recentemente, que ela mudou...[...] no momento que eu mais precisei que foi na minha infância, que foi na minha doença e tudo [...] não esperar que acontecesse uma fatalidade dessa para ela se aproximar de mim... Minha mãe passava na porta da minha casa e não ia na minha casa, né, por causa da minha doença. E isto só me deixava mais deprimida ainda. E, agora [...] ela vai me visitar, ver como eu estou. Pergunta se eu estou tomando medicamentos direito. [...] Acho que ela melhorou bastante, né? Reconhece receber agora um pouco de atenção da mãe, mas necessita de mais, para compensar o nunca recebido ou para atender as necessidades aumentadas pela doença. Não há aquele sentimento de que, como nunca teve nada, qualquer coisa basta, nem também a atenção recebida vem gerando confiança de sua parte em relação à mãe. (...) outro dia a doutora lá do ISM pediu para falar com ela e eu liguei para o celular dela e ela falou assim que tinha muita coisa para fazer, que não tinha tempo só para ir para o hospital! ...quer dizer, ao mesmo tempo que ela é um dum jeito, ela já está de outro jeito... Sua carência é maior do que as queixas e do que a marca psicológica e afetiva deixada pelas agressões maternas. Em meio a isso e as suas expectativas, Laura reconhece ser dominada pela mãe, demonstrando um vínculo de dependência. (...) eu quero vender a minha casa, só que ela chegou para mim que não é para eu vender a minha casa! [...] não consigo saber por que até hoje sou dominada por ela!...não consigo fazer as minhas próprias coisas com as minhas próprias...mãos (...).

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Laura não interpreta a intervenção materna como uma forma de cuidado com sua segurança pessoal, preferindo viver o dilema adolescente do por que submeter-se à mãe. Ela questiona a mãe diante da autonomia de que desfruta agora, originada da necessidade de sobrevivência. (...) a minha mãe falando comigo que eu estou saindo muito...que eu estou deixando muito a casa sozinha, que não é para mim deixar a casa sozinha...que o pessoal pode entrar lá dentro, roubar...eu não ouço ela em nada! Sua crítica possivelmente é à intervenção materna tardia e a sua própria aquiescência (de Laura) a ela, também tardia. É como se com a crítica à intervenção atual, Laura cobrasse da mãe a intervenção que não houve no passado, quando ela mais precisou; agora não precisa mais. (...) ...jamais ela decidiu em meu favor...(...).

(...) A casa é minha, eu sou maior de idade...por que minha mãe não quer deixar vender a casa? (g.n.) (...) se ela sabia que meu pai fazia isso comigo, por que ela nunca tomou atitude?” (...) por que você não procurou a delegacia de mulheres? ( resposta da mãe à cobrança de Laura nesse sentido)

Ambivalência A ambivalência dos sentimentos de Laura em relação à mãe é diferente do sentimento em relação ao pai. A carência da infância e da adolescência não foi objeto de um contrainvestimento nem de um desinvestimento; pelo contrário, ela revive objetivamente essas fases a cada momento atual de sua relação com a mãe, sempre que algum aspecto afetivo lhe pareça precário diante de suas expectativas. (...) são coisas que eu não consigo entender...(...)...eu não consigo falar com minha mãe!(...) Eu tenho muita dificuldade e ela também...é difícil de conversar(...) Eu gostaria...que a gente vivesse bem... A forma como Laura parece ter-se estruturado psicologicamente se desorganiza diante das atitudes maternas, tanto as do passado (presentes em sua memória e atitudes), como as do presente.

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A minha mãe sempre teve muita preferência por meninos homens! Ela não gostava de meninas mulheres, né?...as regras era que as meninas tinham que cuidar da casa e, os meninos, não. (...) se acontecesse de um menino cair, se machucar, eu que apanhava! Qualquer coisa a culpa caia sempre em mim... A ausência da relação diádica com a mãe provocou falhas em suas funções egóicas. A persistência de sentimentos iniciais contraditórios (é mãe, mas não apóia nem protege) deixa latente a inconsistência de sua estruturação, ora reclamando a falta da mãe (não atende a solicitação de sua médica), ora de seu excesso (a intervenção). Anáclise As conseqüências da desproteção por parte da mãe na infância e na adolescência fizeram com que Laura desenvolvesse uma obsessão pelo vínculo de apoio materno. E quando a encontra de forma concreta (como a intervenção sobre as saídas e a venda da casa), não a reconhece, porque entram em jogo outros sentimentos. A queixa à diferença com que a mãe a tratava e tratava os irmãos tem um traço de hipocondria, como um investimento contínuo na dor. Ela passou a investir tanto na ferida afetiva (objeto interno causado pela atitude da mãe) quanto na busca da atenção materna (objeto externo), ambas faces de uma mesma moeda. É o investimento nesse objeto total (as duas faces da moeda) que mantém o vínculo anaclítico com a mãe, às vezes até com traços persecutórios. (...) ela batia neles, assim, quando eles faziam alguma coisa...ela batia de chinelo. Agora eu já era diferente...ela me espancava!...muitas vezes, até hoje, eu tenho dúvidas se sou filha dela mesmo...acho que não é possível sofrer tanto, sabe? Me espancar tanto [...].ela não ter aquele amor por mim, não ter aquele carinho por mim... Machucar a ferida não se restringe às ações que realiza para si própria (buscar a atenção da mãe, objeto externo); estende-se a relações contra si (corta-se), e, com outras pessoas que sejam significativas para ela ou que provoquem a mesma frustração afetiva que a mãe provocou. Isso se tornou um objeto mau incorporado ao seu narcisismo.

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Narcisismo As dificuldades de relacionamento de Laura demonstram a ausência, na infância, de um narcisismo primário. Ela não conseguiu olhar-se nem tornar a si mesma objeto de sua libido. Volta-se para as pessoas de seu relacionamento, investindo nelas seu desejo de ver-se pelos olhos delas. Desenvolveu um narcisismo com caráter abandônico, sempre centrado na perda do objeto (a mãe), devido a frustrações passadas, faz com que Laura cobre dos outros a atenção não recebida no passado. Permanece em estado de vigília e se sente ameaçada ante qualquer falta que possa considerar afetiva. (...) Eu quero ser o centro das atenções e ao mesmo tempo eu não queria ser o centro das atenções! (...) Tenho ciúmes...quero só ter a exclusividade das pessoas!” Esse tipo de narcisismo convive com traços do narcisismo fóbico; Laura nunca se sente completa, tem o ego frágil, o que leva a reações como comportamentos perfeccionistas, sempre tendo como alvo cativar o objeto (a pessoa da relação). Sou muito perfeccionista! (...) Cobro muito de mim! (...) Eu persisto, persisto...tento fazer até o fim mas às vezes não consigo...(...) Eu me controlo e no relacionamento gosto de controlar as pessoas! Eu sinto que gosto de controlar! Relação com irmãos e parentes A relação de Laura com os irmãos também é baseada nos fatos da infância, principalmente os que envolvem a mãe e a forma como ela tratava os filhos. A divisão que ela faz entre os irmãos passa pela mãe, como se houvesse de um lado ela e os que a apoiavam e de outro, a mãe e os demais. O relacionamento fraterno rompido na infância continua, sem interações de trocas ou afetivas. Não houve progresso nas emoções infantis entre elas e os irmãos não apoiadores. Minha irmã (LL) sempre foi desse jeito!...minha mãe estava dormindo...mãe acordava e ela dizia que eu dei um chute na barriga dela [...]a mãe acordava, pegava a mangueira dessas (...) de aguar planta e me surrava... até quando ela via o corpo todo

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de sangue (...) A gente quase não se fala (hoje). (...) meu irmão (MC)...nunca me apóia. (...) o que ele puder falar contra mim, ele faz.(...). Do outro lado estão os irmãos apoiadores de sempre, em quem ela confia e de quem recebe força. Laura conta com ML e LC, colocando-se na relação como sempre como uma pessoa carente e com baixa auto-estima. São esses irmãos que lhe passam o sentimento de família, funcionando às vezes como um substitutivo presente e passado do apoio não recebido no passado. Eu agradeço, muitas vezes (à LC]) porque se hoje estou aqui, é por causa dela! Porque muitas vezes ela já me pegou com os comprimidos na mão... (ML) agradeço a ele por ele me apoiar Porque, na minha casa, é tudo fechado! Ai, ele chega, já abre a janela, faz aquela bagunça toda e vai para a cozinha, faz comida e vai pro mercado, compra carne, faz churrasco. Que eu não quero ver tristeza nessa casa! Laura tem pouco contato com outros familiares. Na infância, uma prima teve grande força, defendendo-a das agressões maternas contra ela (Laura). Essa prima é parte fundamental de suas lembranças positivas, junto com os irmãos apoiadores. (...) Quando era criança tinha muito contato com uma prima minha que mora hoje em SP. Ela ficava com muita pena de mim quando minha mãe me batia. (separação da prima) Foi ruim!...fiquei muito triste, chorando muito!... muito, me acudia muito!” Relação com amigos e parceiros Em sua adaptação relacional, as pessoas que Laura considera amigas são as de quem recebeu/recebe apoio anaclítico positivo: uma professora, por um período de 3 anos, e “C”, que se suicidou, e cuja amizade ela agora transferiu para a mãe da amiga, com quem já desenvolve uma relação de anáclise. Na infância eu nunca tive amigos.(...) Adolescência também, não...(...) Uma amizade significativa foi a professora, né?(...)...Entre eu a C foi uma amizade muito grande! (...) nosso contato era apenas...amigas. (...) Era apoiada por ela, podia contar com ela! (...) .a gente tinha os mesmos pensamentos...(...) A perda de C é como se estivesse indo a metade de mim...ou mais da metade...(...) (mãe da amiga suicida) Para mim, agora, é como se fosse minha mãe. Porque ela me entende. Entende o que eu passo, o que eu sinto! Sabe o sofrimento dela (da amiga suicida), o meu sofrimento, (...) .ela compreende mais que ninguém! Queria que fosse minha mãe, ela é a mãe que eu queria ter!

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Laura busca preencher as lacunas de uma identificação primordial não havida por meio de pessoas que a acolhem, comparando o comportamento dessas com o de uma mãe. Ela necessita do outro em tempo integral e exerce seu controle para isso. As relações com parceiros são também caracterizadas por traços narcísicos, porque Laura se coloca nelas com a mesma orientação abandônica (centrada na perda) e fóbica (centrada na incompletude). Essa orientação tende à homossexualidade passiva, que deve ser compensada por mecanismos anaclíticos da relação. Por isso, as exigências dos parceiros/parceiras e por isso não querer relacionamentos casuais. (...) eu penso, assim, se eu escolhi...minha preferência por mulheres, é porque eu quero penetração? (...) Eu prefiro amar mais a pessoa amor para a pessoa! (...) Eu gosto que a pessoa pegue em mim! (...) eu ficar com alguém, assim, por ficar mesmo...com a pessoa uma noite, não ver mais, eu não faço! Parceiros do sexo masculino não são desejados por Laura. A associação às agressões paternas faz com que ela rejeite relações heterossexuais e com pessoas negras. (...) Eu tenho muito medo de homem! Qualquer tipo de homem! Nunca tive relacionamento (amoroso) com pessoas negras! (...) Só pessoas brancas! (...)..ele (o pai dela) é negro! Por isso, quando vejo um homem ou uma mulher negra eu sempre estou lembrando dele, principalmente, homem! A queixa principal de Laura reside na falta de apoio da família (principalmente a mãe), sendo essa também sua queixa primordial, como resultado daquilo que não recebeu.. A primeira coisa é a família que não entende! A família da gente, que eu acho que seria a base principal, não dá apoio para a gente, acha que a gente está (...) querendo se amostrar, enfim, chamar a atenção, né? E a segunda coisa é o abandono dos amigos! E isso é muito ruim, principalmente, para a gente que tem família, né?...a gente está sentindo uma coisa e você quer, por exemplo, sua mãe do seu lado...você quer a família do teu lado, você olha do outro lado e você não tem ninguém a quem recorrer! Os amores conturbados de Laura não deixam que ela perceba o que recebe em sua real intensidade. Destaca os irmãos apoiadores, mas queixa-se de não ter a quem recorrer. Sente-se como não pertencente à família, mas sabe que faz parte dela; não tira proveito das oportunidades que aparecem no presente para tentar suprir o que lhe foi negado no passado.

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(irmãos apoiadores ML e LC..) Quando escutam um barulho lá em casa, vai lá chamar ela ou ela vem, tenta me ajudar...(...) Eu agradeço, muitas vezes, à LC, porque muitas vezes me pegou com os comprimidos na mão...se hoje estou aqui é graças a ela! Eu devo minha vida a ela! Embora não pronuncie a palavra amor em relação a esses irmãos, eles são uma fonte de confiança para Laura. Outra figura familiar pela qual demonstra apreço é a prima que a socorreu. Os demais irmãos têm representação afetiva negativa; com os familiares, há pouco relacionamento. Nos relacionamentos amorosos, além da restrição a negros, outras se fazem presentes, por fazerem surgir a angústia das agressões paternas. (...) conheci um rapaz que morava em G...(...) ...passei cinco anos com ele...ele queria uma vida normal, só que não rolava, .eu tinha medo do escuro...na hora da relação sexual, eu não conseguia ver ele, (...) ele não entendia o que é que era! (...) eu não conseguia! (...) às vezes, tinha penetração e tudo...(...) Aí, a gente começou a viver como dois irmãos dentro de casa... (até que se separaram).” b) Reação à perda dos vínculos Para Laura, perder vínculos é reviver angústias do passado. Essa angústia causa dependência excessiva dos objetos externos e grandes dificuldades no processo de separação. A perda de vínculos representa as mesmas falhas havia nos vínculos diádicos. Laura apresenta reatividade em suas relações, com alterações de humor que variam entre euforia, depressão, instabilidade e impulsividade. Euforia/depressão Sempre centrada no objeto anaclítico, Laura tem um humor disfórico, com períodos de euforia e de depressão. Atropela-se em sua própria euforia, vinda do afã de realizar mais para atender, para manter preso esse objeto. (convivência com a professora) (...) eu mudava muito de humor. Na mesma hora que eu estava muito feliz, porque era a minha nova casa...(...) estava triste e pensava chorar sem motivo (...) às vezes ela dizia faz isso aqui para mim...fazia e queria fazer muitas outras coisas ao mesmo tempo (...) queria ser muito rápida (...) acabava que muitas vezes eu não conseguia fazer nada (...).

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O resultado desse não conseguir é a depressão, sentimentos de vazio e de solidão, com medo de perda do objeto amado. A primeira coisa que eu mudaria em mim seria os pensamentos e meu ...humor...eu queria ter um rosto que mostrasse para todo mundo que eu estava muito feliz, não esse rosto meu, travado, fechado! Laura parece não aceitar bem a constância das relações ou a tranquilidade, tendo sempre de procurar algo para fazer, para manter o estresse. Mas não demonstra ser dissimulada quanto ao que sente e quer, comportando-se exatamente como se sente. Eu fiquei trabalhando na política...distribuição de panfletos, bandeiraços...tinha um mês que...estava mais eufórica...eu pegava as bandeiras, aquela coisa de pular e gritar! E muitas vezes, o pessoal falava assim que eu não estava normal! Eu começava gritar, aquela coisa toda... Seu transtorno de humor leva à instabilidade e à falta de controle dos impulsos, exigindo das pessoas e de si mais do que podem dar. (primeiro relacionamento homossexual) “Foi bom para mim! Durou muito tempo mas depois, comecei a passar mal, (...) eu queria chamar a atenção dela só para mim! Queria que todo o tempo ela estivesse comigo! Eu senti que estava sufocando a pessoa...não deixava a pessoa respirar! (...) ... Desde ai, que ela começou a ir se afastando de mim! Eu fiquei muito ruim! Ai foi que eu piorei! Ai que eu queria me matar mesmo!(...) Instabilidade A reconhecida instabilidade de humor de Laura e sua declarada vontade de mudar são insuficientes diante do caráter abandônico e fóbico de seu narcisismo, impedindo seu movimento em direção à realização dessa vontade. Cada dia que amanheço estou de um jeito, nunca sou a mesma pessoa!...eu queria mudar esse meu jeito! De repente eu estava feliz e depois me batia, de repente, uma tristeza e dessa tristeza vinha a vontade de... morrer! Devido a uma tendência autodestrutiva e a falhas das funções egóicas baseadas no processo primário, Laura não tem controle sobre sua impulsividade, mostrando-se impotente. Impulsividade Os impulsos representam o fracasso do autocontrole diante de ações instintivas, geralmente em resposta a dificuldades de adaptação à realidade. Causam um prazer

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compensatório a traumas ou angústias sofridas. Os impulsos de Laura vão em direções diversas, como uma forma de compensar-se das perdas por todos os meios e formas . (...) eu tenho compulsão em comprar...eu compro muita coisa sem necessidade...Eu tinha mania de comprar muito sapato! Depois, deixei essa mania e comecei a comprar roupas! Ai, deixei a mania de comprar roupas, passei a comprar DVD...(...) Compro e não assisto...vou acumulando aquele monte de DVD...(...) Ela reconhece o impulso e sua falta de controle, mas nem tenta reagir, preferindo continuar e queixar-se da falta de controle sobre eles. Se antes há certa tensão antes do furto, há prazer, satisfação e alívio no momento de cometer o furto. Laura descarrega frustrações ante suas perdas. (cleptomania) Eu tinha mania de pegar caneta...(...) Só uma (...). Impulsos mais doloridos (literalmente) provocam prazer e alívio de tensão ao mesmo tempo. Para Laura, esse comportamento geralmente está associado ao estresse da perda. (Tricotilomania)..fico arrancando o cabelo, enrolando no dedo e puxando...(...) Acho que um lado meu está ficando sem cabelos...(...) (Apetite) (...) eu comecei a comer muito e depois eu colocava o dedo na goela e vomitava (...) Se eu senti que comi muito, eu vou ao banheiro fazer a mesma coisa (vomitar)!” (Ingestão de não alimentos) (...) De uma certa forma é uma sensação boa!...Mas eu já cheguei a comer não só unha mas terra, também... Tricotilomania e roer unhas podem ter a mesma causa e serem reações ligadas a dissabores com a aparência. No caso de Laura, sua auto-imagem negativa pode ser relacionada às perdas. Ela também apresenta impulsividade em áreas potencialmente prejudiciais para si mesmas (no sentido biofísico), como drogas. A adição de drogas reflete a busca desenfreada por algo que complete e que dê sossego, embora, por outro lado, resista a esse sossego. (Drogas) (...) maconha e uma outra coisa branca que eu não sei o nome...(...)...a primeira vez que ela me ensinou...a fumar um cigarro, (...) ela me ensinou a fumar maconha...(...) pegou o pó branco...(...) eu...comecei a sentir umas coisas estranhas (...) (...) Eu entrei em desespero depois daquele dia!...no outro dia...eu achava que estava, já, viciada!

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c) Auto-imagem Desvalorização

Ante a inexistência de uma relação diádica com o pai e com a mãe, Laura desenvolveu características narcísicas negativas, com sentimentos de desvalorização relacionados com sua auto-imagem e com o afeto do outro. Sempre acha que o outro (a mãe e os parceiros) não se importa com ela. Como é insaciável de atenção, a tendência é achar que vale pouco, por isso não recebe na medida em que necessita. Como ela vive presa aos fatos do passado, as referências negativas dos irmãos não apoiadores e da mãe são presentes em sua auto-avaliação. (...) eu tenho muita dificuldade em tudo! Dificuldade de namorar, em ler, concentrar, de aprendizagem! Por exemplo, as pessoas me perguntam as coisas, tenho muita dificuldade de assimilar as perguntas (...).minhas dificuldades são de...conversar com as pessoas...de formar a minha opinião (...) Como também é instável, faz um juízo negativo de sua vida (faz positivo algumas vezes), não reconhecendo seus valores. (...) eu sou uma pessoa...muito difícil...de conviver...de aturar! ...acho que não dou conta de ficar com ninguém! (...) Laura também se apega a sua auto-imagem negativa, associando a ela não só o resultado dos traumas infantis, como também traços sociais discriminadores, como ser pobre, negra e mulher. Por terem faltado condições que lhe permitissem buscar referências para desenvolver sua identidade pessoal, a inexistência dessa contribui para o desenvolvimento de uma identidade social negativa. Se é fato que há discriminação social, étnica e de gênero, por um lado, por outro, também é fato que para Laura é mais fácil somá-la a suas lacunas do que impôr-se perante a situação. (Baixa auto-estima) Olha, eu também acho que vem da minha cor, vem por eu ser pobre, vem por eu ser mulher...eu penso em tudo, tudo ao mesmo tempo! Me acho feia por ser negra! (...) ...por eu ser pobre...e de ser mulher!

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Idealização

A imagem de ideal que tem passa pela superação dos empecilhos por um esforço próprio. Ela demonstra saber, com isso, que a solução de seus problemas depende de sua determinação e empenho. Esse seria o ideal que gostaria de alcançar. (Pessoa que gostaria de ser) (...) uma prima que mora em P...eu queria ser igual a ela! (...) Ela começou de baixo...fazendo faxina...sendo empregada doméstica e, hoje, fez concurso, passou, é funcionária pública! Tem uma casa, tem seu carro, tem seu computador, tem de tudo! É uma pessoa muito esforçada!...trabalha com o governador...é uma pessoa muito determinada, também! Tudo que ela quis, ela conseguiu! Então, eu queria ser igual a ela”! A ausência de um reconhecimento familiar de seu valor faz com que ela sonhe com um grande reconhecimento social. Mas como no pessoal, nada faz nesse sentido, pois a autoimagem negativa não permite. Eu sonhei assim que nesse trabalho meu, nesse sonho que eu sempre sonhei...que vários repórteres estariam me rodeando...que teria um prêmio, tipo uma placa, não de metal, de vidro, pelo reconhecimento do que fiz, por defender aquela causa e tudo! Muita gente e tudo! Eu brilhando e continuando a minha luta! d) Mecanismos de defesa Laura rejeita qualquer idéia ou motivação que possam livrá-la da situação em que se encontra, baseando-se na repressão dessas idéias para viver. É uma repressão que alimenta de forma continuada e exige um consumo de energia para mantê-la; por isso, também faz uso dos preconceitos sociais para alimentar negativamente aquilo que reprime de forma veemente. (...) às vezes eu prendo o sorriso... (...) Quando eu vou no espelho, me mantenho séria...eu não gosto muito de me ver no espelho! Clivagem Pela não-integração do ego primitivo de Laura na infância, ele desenvolveu-se de forma fragmentada. As relações primitivas com a mãe e com o pai foram marcantes e fizeram com que ela permanecesse, na vida adulta, presa à mesma organização frágil. E por ser frágil, logo imatura, ela não pôde constituir seu self de forma autônoma.

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Em Laura, ocorre o fenômeno da clivagem dos objetos, um desdobramento simples das imagos contra a angústia de perda do objeto e da clivagem do ego. As experiências traumáticas vindas dos pais, iniciadas entre a segunda e terceira infância, foram suficientes para que o ego de Laura não operasse uma negação da realidade (como no psicótico, onde o trauma desorganizador ocorre no útero ou até a primeira infância). Por ter ocorrido uma deformação, seu ego foi incapaz de conciliar as imagos contraditórias (boas ou más), passando a distinguir no mesmo objeto, em momentos distintos, ora uma imago tranquilizadora, ora uma ameaçadora. A mãe, atualmente, é fonte da ambivalência de Laura: num instante é agressora, invasiva; noutro é protetora, mais carinhosa. Mesmo do pai, uma referência negativa, ela lembra momentos em que ele a protegeu da violência materna. Apesar de ansiar pela atenção materna, tem lembranças negativas e mágoas da mãe. (contribuição dos pais na sua personalidade) Só do negativo.(...) ...porque a minha vida toda eles sempre me fizeram sofrer...Outro dia teve o aniversário do meu sobrinho...meu pai foi, minha mãe estava pronta e eu não conseguia sentar na mesa junto com eles. É como eu não fizesse parte daquela família!...para mim (...) é como se eu não tivesse crescido...como se tivesse parado no tempo.. Como não incorporou um jogo amoroso principalmente com a mãe, ela manteve as lacunas deixadas pelas agressões do pai. Forclusão, Ideação delirante No caso de Laura, ocorre o fenômeno da forclusão descrito por Lacan (1946, citado por Bergeret, 1998; Laplanche & Pontalis, 2004): a representação simbólica da imagem paterna foi rejeitada e retornou no real em forma de delírio. Com poucas introjeções positivas (a prima, os irmãos apoiadores), prevalece a rejeição dos objetos frustrantes e ameaçadores (os pais, os irmãos não apoiadores, os outros abusadores) descritos por Kernberg (2000). Daí, seu funcionamento no mundo externo ocorrer em dois âmbitos: um relacional adaptativo e outro anaclítico (dialética dependência-domínio do objeto), como descrito por Bergeret (1998).

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Nas freqüentes ações de Laura, fica claro que ela tem um sentimento de que é “suja”, capaz de engravidar, por ser uma “prostituta”, porque foi “usada” por homens abusadores (pai, vizinho amigos do pai e padrasto). As interpretações delirantes aparecem como resposta à emergência do real, à irrupção do gozo, que é aniquilador para ela. (Pai) agora em relação a meu pai, eu não falo com ele...eu falo com ele, assim, de vez em quando, quando minha vai lá de carro, porque eu tenho medo dele! Não vou no natal, no aniversário, no ano novo!...e nem dia dos pais...dia dos pais... continua como se não existisse pai para mim! Se na minha identidade não tivesse o nome do pai, não existisse pai, seria melhor! E...quando as pessoas perguntam assim: você tem pai? Muitas vezes dá vontade de falar que não (expressão de raiva)...(pausa, tristeza) (...) ...eu tenho medo que ele me pegue de novo...que eu não consiga reagir...não consiga correr...(g.n.) O gozo não simbolizado retorna como interpretação delirante, em reação à eclosão do real, que ela reenvia a si própria e que é catastrófica para o seu ego. (Pseudociese) (...) uma vez que minha irmã caçula engravidou...ela disse que não queria o bebê...não queria registrar a criança...quando vi que ela não queria, eu falei que se ela fosse jogar a criança fora, que me desse a criança...foi um momento que eu me senti mãe...fui na loja, comprei roupas de criança, roupinhas de bebê. Comprei móveis e tudo...senti que meus seios estavam doendo...fui apertar e tava saindo leite! (...)...quando ela me disse que ia...me dar a criança, ai, eu comecei a sentir essas coisas! (...) Eu comecei a sentir enjôo, meus seios começaram a ficar inchados...fui no banheiro ver...apertei o peito...(...) Saiu um leite (...).

e) Fatores traumáticos Separação Diante dos traumas vividos em casa, Laura fantasiou que a separação dos pais poderia representar o fim de seu sofrimento. Mesmo nunca tendo recebido afeto e amor da mãe, centrou nela a possibilidade de ter uma vida melhor, sem a presença do pai. (...).quando eles se separaram eu fiquei feliz da vida!...eu pensei que ia acabar tudo, que não ia ter mais mais nada! Só que foi pelo contrário! Ela separou, foi embora e deixou a gente com ele! (...) Ai, piorou![... ele começou a chegar bêbado em casa com um monte de homem! 3 h da manhã, ele me levantava pelas orelhas, me chamando de vagabunda, safada e me mandava fazer janta para ele, com aquele monte de bêbados! E eu tinha que levantar e fazer comida para eles...era levar água, fazer suco, fazer café...toda semana...

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A angústia e as queixas infantis de Laura contra a mãe foram alimentadas por essa desilusão, que as fortaleceu e misturou-as outra queixa primordial e fundamental para o desenvolvimento de sua personalidade: o abuso paterno Abuso sexual Laura sofreu abuso sexual de um pai pervertido, que é a fonte maior de seus problemas neuróticos. No complexo de Édipo, o pai tem um papel fundamental em relação à filha; há uma troca simbólica na qual a criança se identifica com o objeto de desejo da mãe (falo), mas o pai intervém nessa identificação privando a criança do objeto de seu desejo, enquanto a mãe a priva de seu objeto fálico. A primeira vez que eu tentei me matar...foi quando..meu pai me pegou e conseguiu fazer a penetração dele...(...)(11-12 anos) Mais ou menos essa idade...eu pedia socorro, fazia tudo e não conseguia...sair dos braços dele, soltar dele...(não conseguiu) (...) quando eu já entendia as coisas...ele pegou um revolver e mostrou para mim e falou para mim: que se eu contasse, ele pegava a arma e me mataria... uma vez ele pegou essa arma e deu tiro...acho que foi por isso que eu fiquei deixando ser usada por ele muito tempo, por causa desse terror! Laura tentou suicidar-se e passou a queixar-se da mãe também nesse sentido. A imagem que marca a função paterna, na qual ele determina o que representa para a mãe, diferente do que representa para a filha, também é fundamental para a criança. A figura do pai como pai é trazida pela mãe, de uma forma ou de outra. (revelação do abuso paterno para a mãe) (...) a senhora sabe porque eu era muito triste, porque a senhora acha que eu dei muito trabalho para a senhora? Porque meu pai...papai abusou de mim desde os cinco anos até os 15 anos! A resposta que ela me deu foi: porque você não procurou a delegacia de mulheres? E isso me doeu muito (...)se ela sabia que meu pai fazia isso comigo, porque ela nunca tomou atitude? Além dos abusos do pai, o padrasto, substituto “paterno” do pai, também não correspondeu à função: “...no inicio...ele quis mexer comigo..(...) .” Também sofreu abuso de um vizinho, tendo demonstrado “nojo” dele por ter lhe tocado, reforçando sua idéia de que todos podiam “usá-la” para satisfazer seus desejos sexuais.

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Foi um vizinho nosso...entrou dentro da minha casa...tentou me estuprar também...(...) Na presença de meus irmãos...eu tentei gritar muito...tentei me soltar!(...) Ele pegou à força, me rasgou a roupa todinha!(...) Ele colocou a mão, lá, nos meus órgãos genitais. (os irmãos) gritavam, batiam nele mas não adiantava nada! (...)...ele tentou outra vez, foi uma coisa muito traumática...para mim...(...) ...eu tomando banho para ver se tirava aquele cheiro horroroso dele! (...) ...quando minha mãe chegou, meus irmãos resolveram contar para ela...ela pediu para não contar para meu pai, não fez nada...(...) ...nunca entendi por que ela nunca me defendeu... Novamente a função materna falhou em seu papel, ampliando o sentimento de frustração de Laura em relação a essa mãe.. Abuso físico e psicológico As queixas de Laura aos abusos físicos e psicológicos da mãe ainda a acompanham, demonstrando a ausência total da imagem materna em sua infância e adolescência. Não há, em seu caso, uma insuficiência de apoio materno, mas a falta total dele. Ela sempre falava que eu era muito burra...que eu não ia conseguir nada na vida! Esta...frase...desde pequena que eu ouço...eu penso até hoje...está na minha cabeça, ainda, que eu sou uma pessoa incapaz...que não vou conseguir nada na minha vida...Quando estou fazendo alguma coisa...geralmente...volta as frases dela...que eu sou burra...você não vai conseguir nada na sua vida... Uma vez...estava assistindo o programa que acontecia na rodoviária...ela perguntou para mim porque cheguei em casa 10:30 h da noite...o que eu estava fazendo. Ai, eu falei que estava assistindo a roda viva. Ai, ela falou: os machos que são os machos estão dentro de casa e você está fora! Ela saiu...entrei no quarto para trocar roupa...ela voltou com aquele PVC...até quebrar o cano todinho...quebrou minha cabeça...foi bater minha cabeça contra a parede...teve um momento que eu desmaiei...eu tava com vinte e tantos anos... O sentimento de Laura sobre o que deveria ter recebido na infância e na adolescência ainda é maior do que o reconhecimento sobre suas condições atuais, de autônoma. A insegurança gerada pelos abusos psicológicos se estendia às situações escolares, fazendo com que Laura introjetasse ofensas dos coleguinhas, acrescentando-as ao cabedal de ofensas maternas e de desvalorização paterna, ampliando seu sentimento de baixa auto-estima. ...eu não ia aprender...meus coleguinhas me chamavam de burra e tudo...e até minha própria mãe quando ela ia dar aulas...meus irmãos aprenderam cedo. Eu fui a única que não consegui ler...então, ela ia me ensinar e ela batia muito na minha cabeça, ela me xingava de burra...

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Auto-agressão As agressões sofridas na infância e na adolescência foram decisivas para que Laura, diante de qualquer situação indesejável e principalmente as mais difíceis para seu ego, se auto-agrida ou tente o suicídio, demonstrando sua incapacidade de lidar com a realidade. Principalmente, quando eu estava morando com ele (o companheiro) ...eu tentava pular da janela do prédio do sétimo andar...ele sempre me segurando! (...) Quando ele estava em casa, fazia...alguma coisa que eu não gostava, como assim fazer relacionamento...teve uma vez que eu entrei na frente de um ônibus...(...) Eu saí correndo, tinha brigado com ele, sai correndo e falei que ia entrar embaixo de um ônibus e, na verdade, estava vindo um ônibus cheinho de gente e...eu entrei...o motorista quase capotou o ônibus por minha causa! Ela fala das auto-agressões como forma de “aliviar-se” da carga egóica, como se ela estivesse no sangue, desenvolvendo sensações paradoxais e hipocondríacas. (...) quando a gente se cortava (com C), o tanto que era bom a gente se cortando!...quando a gente está se cortando a gente não sente dor, a gente sente uma coisa tão boa, uma coisa gostosa!...a gente tem vontade de machucar a si mesmo, não sei por quê...(...) Agressão aos outros A agressão de Laura é mais dirigida a si própria e realizada nos níveis em que as dificuldades tornam mais complexa ou impossível a adaptação à realidade. Contra outros, suas investidas são resumidas e ao mesmo tempo reconhecidas como injustas e descabidas. Portanto, para si, Laura é ao mesmo tempo foco de grande hetero-agressão externa passada e foco da grande auto-agressão presente. A única pessoa que eu feri, machuquei, fisicamente, foi meu ex-marido! (...) Eu me senti um monstro...eu só bati nele porque ele me havia batido...me machucado...ele brigou, veio para cima de mim, me bater...Mas depois fiquei arrependida...(...) Fantasias As fantasias de Laura quanto aos fatores de agressão são mórbidas, possivelmente para fazer morrer simbolicamente essa pessoa que se tornou e as angústias que isso representa; essa pessoa da qual quer se livrar, mas que, paradoxalmente, alimenta diuturnamente. (planos suicidas com amiga suicida) ...Nós éramos muito amigas! A nossa conversa era sempre sobre morte. A gente nunca falava em outra coisa. Sempre falava como a gente ia se matar, como a gente ia morrer...(...) duas semanas antes dela morrer, eu

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tinha pegado uma gilette e cortado meu pescoço..(...) não aconteceu nada de ruim, não, foi aquela vontade de me cortar...em vez de eu cortar os pulsos, eu resolvi cortar o pescoço... Há também o intuito de chamar a atenção dos demais, familiares e até profissionais de saúde, pela morte, já que em vida não merecia/merece essa atenção. A gente falava como a gente queria morrer (...) Já pensou a gente entrando debaixo daquele caminhoneiro em alta velocidade? ninguém se machucava, só nos duas! Saindo o espírito e a página no jornal: ônibus do Instituto (ISM ) bate e morre duas pacientes, L. e C. f) Relação com a realidade O peso dos fatores traumáticos na vida de Laura faz com que ela evite qualquer forma de revivescência desse passado (ela vive os efeitos dele), ainda que em scripts de cinema. Ver determinados filmes (por exemplo) é ver-se neles e ela não suportaria as sensações surgidas nem na imaginação. (Sobre o filme “A cor púrpura”, passado no HSVP) Eu saí e não queria ver de jeito nenhum! (...) eu entrei num desespero tão grande! Ao tratar de seu problema de forma direta e objetiva, ou seja, dentro da realidade na qual vive (na situação da entrevista para este trabalho), ela demonstra seus cuidados com a emoção na transmissão dos fatos, justificando sua dor. Fiz o máximo para que eu não chorasse...porque é muito dolorido! Mexe muito comigo, também, né? Esta noite (penúltimo dia da entrevista em julho de 2007), eu dormi mas tendo todos os pesadelos de tudo que nós mexemos aqui... Não sabe lidar muito bem com a figura do pai; evita sua presença, mas não tem uma posição definida e definitiva que lhe dê tranquilidade e resolva de uma vez por todas o conflito. Confia na ausência dele como uma forma de alívio. (ausência do pai na família) (...) me deixaria mais aliviada mas... é uma coisa assim que eu não consigo explicar. Agora em relação a meu pai, eu não falo com ele...eu falo com ele, assim, de vez em quando, quando minha vai lá de carro, porque eu tenho medo dele!

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Para Laura, só há um homem, negro, cuja figura não é a do protetor, nem a do acolhedor: o pai. Por isso ela não quer relacionamentos com negros (mesmo os homossexuais), porque busca alguém (mesmo mulher) que lhe dê, de certa forma, o que nunca recebeu do pai. As sessões de limpeza corporal incessante ilustram a sensação de “sujeira” impregnada em seu corpo desprovido da proteção paterna e violentado pelo outro. Tenho muita mania de limpar...a casa, direto...Tenho uma mania de tomar banho! (...) Vou tomar banho várias vezes! Meu banho é um banho de mais de 1 h! Eu me esfrego muito! ...como se eu estivesse, me sentisse, ainda suja...fico mais de 1 h no chuveiro, esfregando, esfregando, esfregando...o sabonete não dura uma semana...(...) Chega a ficar ardendo!

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Capítulo V

DISCUSSÃO: TRANSTORNO DE PERSONALIDADE BORDERLINE E RELAÇÃO COM ESPECTRO BIPOLAR DO HUMOR

Neste capítulo, são considerados aspectos teóricos apontados pela Psiquiatria e pela Psicanálise nos dois casos investigados, em relação aos indicadores dos respectivos campos teóricos. Pesquisadores atuais como Maj, Akiskal, Lopez-Ibor & cols. (2000) lutam para resolver os problemas diagnósticos, a partir da definição apropriada de bipolaridade, para responder, com consistência, se o portador de TPB seria ou não uma apresentação clínica do espectro bipolar do humor. A co-ocorrência entre os transtornos bipolar e de personalidade borderline, vem sendo, há décadas, defendida por pesquisadores como Maj, Akiskal, Lopez-Ibor & cols. (2000); Lopes, Skaf, Câmara & cols. (2002); Magill (2004); Lara (2004); Berk, Moss, Dodd (2005); Yudofsky & Hales (2006), que apontam históricos de episódios espontâneos de mania ou de hipomania em quase a metade dos pacientes portadores de TPB O primeiro episódio bipolar costuma ter uma evolução lenta, com sintomas depressivos, hipomaníacos, maníacos ou mistos, com ou sem psicose; por isso, o diagnóstico correto é fundamental na apresentação dos primeiros sintomas. A história (familiar) de bipolaridade em familiares é essencial, uma vez que essa ocorrência é freqüente (Berck, Moss, Dodd & cols., 2005). Após a ampliação do construto de bipolaridade, nos últimos anos, o diagnóstico diferencial entre o TPB e o TEBH tornou-se mais difícil. Isso é explicado de duas formas: 1) os pacientes acometidos precocemente por TBH e TPB teriam uma predisposição genética a transtornos afetivos, e os episódios de humor agudos seriam desencadeados pela instabilidade

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emocional do TPB; 2) os temperamentos hipertímicos e ciclotímicos são mais perceptíveis pelos circunstantes dos portadores na adolescência, sendo mal diagnosticados como transtornos de personalidade (Maj, Akiskal, Lopez-Ibor & cols., 2000; Magill, 2004; Lara, 2004). Pesquisadores como Lara (2004) e Akiskal (citado por Magill, 2004) postulam que diversos transtornos de personalidade, principalmente o borderline, estariam no espectro bipolar do humor. Além disso, diversas comorbidades podem se apresentar com sintomas ciclotímicos. Para Maj, Akiskal, Lopez-Ibor & cols. (2000), o espectro bipolar do humor agrega oito subtipos de transtornos bipolares: ½) esquizoafetivo; I) doença maníaco depressiva; I ½ depressão com hipomania protaída; II) depressão com episódios hipomaníacos discretos espontâneos; II ½ depressão superposta a ciclotimia; III) depressão com hipomania ocorrendo em associação com tratamento antidepressivo ou somático outro; III ½ oscilação de humor proeminente em associação com abuso de álcool e/ou outras substâncias; IV) depressão superposta a hipertimia. Estudos realizados nos Estados Unidos (2000) e na Austrália (2003) foram conclusivos em relação a certas incorreções diagnósticas: pacientes bipolares tinham levado até 10 anos para ser corretamente classificados, e quase metade deles, inicialmente, era diagnosticada como portadora de depressão, de ansiedade, de esquizofrenia, de TBP ou antisocial. (Berk, Moss, Dodd & cols., 2005). Para atenuar o risco de diagnósticos incorretos, esses autores sugeriram que, desde o primeiro episódio de humor, sejam aplicados questionários de transtorno bipolar, porque vários fatores ofuscariam o diagnóstico de bipolaridade: a fenomenologia complexa, a idade do início da doença, comorbidades e heterogeneidade de apresentações bipolares.

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Segundo Lara (2004), a avaliação diagnóstica deve incluir: a síndrome; curso dos sintomas e o comportamento; temperamento e estilo; história familiar com componentes genéticos de risco e fatos que aumentem a chance de ocorrer algum evento; fatores de risco ambientais (traumas, perdas recentes); resposta a fármacos; exames complementares. 5.1 Aspectos Sindrômicos da Relação do TPB com o Espectro Bipolar do Humor Carneiro & Ferreira (2004) explicaram que a sintomatologia desse transtorno inclui algumas manifestações típicas de vários transtornos psiquiátricos, como o esquizofrênico, o depressivo, do espectro afetivo bipolar, do espectro do estresse pós-traumático, do controle dos impulsos, outros da personalidade. Mas, em geral, os pacientes não saíram totalmente do estado considerado normal para ser enquadrados em tais classificações, a não ser que apresentem comorbidades com os transtornos supracitados. Assim, a síndrome borderline seria um mosaico de sintomas menos acentuados de diversos transtornos. 5.1.1. A instabilidade afetiva e a impulsividade O relato histórico e os exames psíquicos realizados trazem evidências de que Márcia e Laura são instáveis e impulsivas desde a infância, apresentando oscilações de humor, atos impulsivos e compulsões associados ou não a situações de estresse ambiental. Pesquisadores como Skodol, Siever, Livesley & cols. (2002); Kapczinsky, Quevedo e Izquierdo (2004) associaram a instabilidade afetiva e a impulsão agressiva a fatores genéticos e alterações neurobiológicas associadas a fatores ambientais. No caso de Márcia, há vários familiares com transtornos mentais, como: pai alcoolista, uma tia esquizofrênica, tios e primos com transtornos de humor e casos de suicídio. Como a paciente Laura não teve contato com familiares paternos, ela não soube informar se havia casos neuropsiquiátricos entre eles. O pai dela sendo pedófilo e alcoolista traz subsídios para ser portador de transtorno de personalidade, e a mãe demonstra ter sido traumatizada, tanto

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em relação ao marido, quanto ao fato de ter perdido dois filhos pequenos, que morreram queimados num incêndio. A instabilidade afetiva está presente em Márcia e Laura e se repete em momentos de separação, de frustração e de outras perdas que desencadeiam dissociações, ideação paranóide, compulsões, autolesões e tentativas de auto-extermínio. A agressividade contra outras pessoas está presente em Márcia, enquanto em Laura, está mais voltada para autoagressão, tendo citado apenas um período que trocava agressões com o primeiro companheiro. Como relatado por Lopes, Skaf, Câmara & cols. (2002), sujeitos com história de abuso, de negligência e de separações familiares, na infância, apresentam um padrão de boicote a si mesmo; desenvolvem diversos transtornos psiquiátricos relacionados com instabilidade afetiva e com impulsão agressiva, levando-os a perdas recorrentes de emprego, de relacionamentos e interrupção nos estudos, como ocorrido com as pacientes Márcia e Laura. 5.1.2. Alterações do humor Na história psiquiátrica das duas, ficou evidente que, desde a infância, houve, inicialmente, episódios depressivos graves, com tentativas de suicídio. Márcia ingeria excessivamente comprimidos desde os sete anos de idade, e Laura relatou várias tentativas de auto-extermínio, a partir dos 12 anos, imediatamente após sofrer penetração sexual do pai. Na maior parte da infância e da adolescência dessas pacientes, o humor deprimido, as ideações de menos-valia, de morte (com ou sem), as tentativas de suicídio e eventos traumáticos graves e freqüentes foram a tônica. O humor eufórico, a agitação psicomotora e insônia aparecem em Laura a partir dos 12 anos, quando morou com a professora, e vai se repetindo até a idade adulta, às vezes associado ao ambiente adverso e em outras ocasiões, sem motivo aparente. No tocante a Márcia, as oscilações de humor, com quadros disfóricos, hipomaníacos ou maníacos,

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iniciaram após os 27 anos e culminaram com internações psiquiátricas, com dependência alcoólica grave, com agressões a outras pessoas e com o prejuízo em várias áreas de sua vida. O humor deprimido ou disfórico se manifesta, em Márcia, em comportamentos agressivos e rupturas nos relacionamentos, inclusive, familiares. O “mau humor” lhe é peculiar. Em relação a Laura, há um humor geralmente disfórico, irritável, com permanentes ideações negativas, mas sua agressividade está voltada para si, quando tenta se ferir gravemente. Tanto para a CID10 (1993) quanto para o DSM-IV-TR (2003), a presença de um episódio de humor elevado ou misto, com ou sem sintomas psicóticos ou irritabilidade, em paciente com um episódio anterior de depressão, hipomania, mania ou misto, é indicativo de que o paciente é portador do transtorno afetivo bipolar (CID10, 1993) ou bipolar (DSM-IVTR, 2003). A CID10 exclui dos critérios diagnósticos a presença de hipertiroidismo, anorexia nervosa e/ou depressão agitada (comum em idosos). Por outro lado, o DSM-IV-TR ratifica que não devem ser diagnosticados como bipolares pacientes apresentando sintomas que podem ser atribuídos a efeitos diretos de substâncias, associados sempre a episódios psicóticos e a condições médicas em geral. Apesar dessas classificações - chamar de transtorno afetivo bipolar (CID 10,1993) e bipolar (DSM-IV-TR, 2003) quadros em que há, no curso da doença, no mínimo, um episódio depressivo alternando ou concomitante com pelo menos um episódio depressivo -, não há informação quanto ao fato de a presença isolada, durante a vida do indivíduo, de um episódio de hipomania ou mania (com ou sem sintomas psicóticos) ser suficiente para o diagnóstico de bipolaridade, tal como inserido na definição de espectro bipolar do humor e defendido por autores como Maj, Akiskal, Lopez-Ibor & cols.(2000) e Lara (2004). As oscilações de humor apreendidas das pacientes, através das histórias psiquiátricas, dos exames do estado mental, das escalas EAM-m e BDI, a entrevista psicológica e o teste de Rorschach, apresentam sintomas psiquiátricos ou indicadores psicológicos, em vários dias de

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avaliação, e compatíveis com: variações de humor ou afeto, irritabilidade e/ou agressividade, inquietação psicomotora, sintomas paranóides, insônia, pensamentos rápidos, discurso acelerado, baixa crítica em relação ao quadro clínico. Os dados obtidos através das escalas foram positivos para oscilações de humor, que variaram de eutimia até mania, com sintomas psicóticos nas duas pacientes. Márcia obteve quatro avaliações positivas para o episódio maníaco, nos dias 1, 2, 3 e 5 da pesquisa. Esses resultados foram associados ao uso irregular dos psicofármacos, confirmando o efeito psicofarmacológico positivo nela. A riqueza sintomatológica dessa paciente, com grande variação de humor e de psicomotricidade, sintomas psicóticos, ideações de morte e suicídio, autolesões, insônia alternada com momentos de eutimia, sintomas depressivos e consciência do seu estado mórbido revelam uma alteração mista de humor, às vezes associada a fatores externos, outras vezes, não. Nesse primeiro caso, percebe-se que as oscilações de humor estão relacionadas a fatores biológicos e ambientais, podendo ser desencadeadas por estressores em geral. Respondem ao tratamento psicofarmacológico adequado, como prevêem estudiosos da fisiopatologia de transtornos psiquiátricos Maj, Akiskal, Lopez-Ibor & cols. (2000); Kapczinsky, Quevedo & Izquierdo (2004); Bussato Filho (2006); Yudofsky & Hales (2006). No caso de Laura, observa-se que três episódios maníacos foram detectados, precisamente, nos dias 3, 4 e 6 da pesquisa. Ficou patente que ela tem maior reatividade ambiental do que Márcia, sendo suas mudanças de humor relacionadas a estressores ambientais associados ao abandono suposto (da psicóloga), ao apoio (da pesquisadora) e à participação social (na pesquisa). A relação entre oscilações de humor em resposta ao ambiente adverso ou não é bem descrita em pacientes com instabilidade afetiva e impulsividade, como postula a maioria dos pesquisadores dessas alterações (Kaplan & Sadock, 1999; Lopes, Skaf, Câmara & cols., 2002;

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Dal’Pizol, Lima, Ferreira & cols., 2003; Kapczinsky, Quevedo & Izquierdo, 2004; Yudofsky & Hales, 2006). Entretanto, episódios de humor podem ser desencadeados por fatores estressores ambientais em pacientes bipolares ou depressivos monopolares, além daqueles portadores de impulsão, e de agressão em outras patologias psiquiátricas, como os transtornos de personalidade (Maj, Akiskal, Lopez-Ibor & cols. (2000); DSM-IV-TR (2003); Lara, (2004). A escala BDI, aplicada nos meses de outubro e novembro de 2007, constatou que as pesquisadas são portadoras de sintomas depressivos graves e permanentes, com predominância de ideações de morte e de suicídio, de culpa, de desesperança, de baixa autoestima, irritabilidade, insegurança, alteração do ciclo sono-vigília e prejuízos relacionais. Márcia apresentou esses sintomas no período que coincidiu com o fim da pesquisa e retorno ao isolamento social no qual vive. Laura, apesar de ter alguns relacionamentos, também é limitada socialmente, demonstrando que o fato de comparecer ao local da pesquisa, motivou-a para seu sonho de trabalhar em prol das pessoas que sofreram ou sofrem de abuso. Na última aplicação da BDI, em Laura, havia uma falta de correspondência entre o que ela relatou no instrumento e em seu comportamento, mais expansivo naquele momento, e em relação à pesquisadora. Isso poderia ser explicado pela maior reatividade ambiental que apresenta quando comparada à Márcia, como postulam estudiosos do humor (Maj, Akiskal, Lopes Ibor & cols., 2000; Lara, 2004; Yudofsky & Hales, 2006). 5.1.3. Presença de eventos traumáticos e relação com as alterações do humor e os sintomas psicóticos As histórias psiquiátricas de Márcia e de Laura demonstram a presença de inúmeros sintomas que foram surgindo ao longo dos anos de suas vidas e iniciados com fatores traumáticos precoces, num substrato biológico favorável ou resultante. Ambos os substratos

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são responsáveis pela precipitação, pelo agravamento e pela manutenção dos transtornos mentais de que são portadoras. Autores como Golier, Yehuda, Bierer & cols. (2003), Kapczinsky, Quevedo & Izquierdo 2004) enfatizaram a importância de abuso em idades precoces, como desencadeadores de diversas patologias psiquiátricas. No caso Márcia, observa-se que desde os três anos de idade, ela tinha lembranças desagradáveis de conflitos entre seus pais, que culminaram com a primeira separação deles. Mesmo sem a presença do pai, sofreu abusos psicológicos de colegas da escola e evoluiu com sintomas depressivos que, aos sete anos de idade, se manifestavam em tentativas de autoextermínio, como ingestão excessiva de fármacos. Entre os 11 e 12 anos, sofreu novos abusos morais e psicológicos por parte do pai, que a levava para bares onde bebia com alcoolistas. Tornou-se alcoolista aos 12 anos, o que, na idade adulta, somado às oscilações humorais, prejudicou seu funcionamento geral. Laura foi abusada sexualmente pelo pai, dos 5 aos 15 anos de idade, e fisica, psicológica e moralmente pela mãe até a idade adulta. Essa paciente deprimia após os abusos paterno e materno e, não raro, tentava suicídio. Cresceu isolada dos outros, desconfiada, com revivescência dos fatores traumáticos, com humor depressivo, ideações de menos-valia, morte e suicídio. A dificuldade de relacionamento familiar estendeu-se a outras áreas de sua vida, limitando-a intelectual, afetiva e profissionalmente. As variações de humor iniciaram na adolescência e permanecem, especialmente o humor deprimido, hipomaníaco e irritabilidade. Ao se analisar a evolução sintomatológica dessas pacientes, percebe-se que os abusos sofridos por elas ocorreram antes dos seis anos de idade e se prolongaram até a idade adulta, com atos praticados por um dos pais ou pelos dois, sendo cumulativos ao longo do tempo vital de cada uma. Pode-se considerar que os abusos contra essas pacientes foram graves e freqüentes, causadores da desorganização neuropsicológica que gerou várias comorbidades.

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A CID10 (1993) esclarece que um indivíduo exposto a um trauma único ou recorrente desenvolve episódios de revivescência, de instabilidade afetiva, de sensação de entorpecimento, de embotamento emocional, de isolamento social, responsividade diminuída ao ambiente e atitudes evitativas do fator traumático (esquiva e drogadição). Além desses, o DSM-IV-TR (2003) cita: alucinações, delírios paranóides breves e grande disfuncionalidade. Observa-se nas pacientes, através da história psiquiátrica, da entrevista semidirigida e da escala EAM-m, que elas apresentam ideações de auto-referência, delírios persecutórios ou grandiosos em muitos momentos de sua vida, associados ou não a episódios de humor. Márcia, desde os 19 anos, apresenta ideações de auto-referência, chegando ao ponto de ir trabalhar acompanhada da genitora por medo das outras pessoas. Esse medo evoluiu do delírio de auto-referência, na faculdade, até trancar-se em casa, achando que algo ruim iria lhe acontecer e destruir a si e a familiares; progrediu até delírios persecutórios francos em relação a pessoas em geral e dificulta seu relacionamento social. Laura demonstra desconfiança infundada em relação às pessoas e já teve alguns episódios psicóticos, como a percepção de estar grávida (sintomas compatíveis com a gestação e a lactação) e a certeza de estar com a pele suja, necessitando banhar-se por muito tempo para ficar limpa. Segundo o DSM-IV-TR (2003), a ideação paranóide pode ocorrer em portadores de transtornos mentais, não necessariamente com quadros psicóticos crônicos. Pode ser desencadeada em predisponentes por fatores estressores ou paralelo a sintomas dissociativos severos, relacionados ou não com ideações de auto-extermínio e/ou prática de auto-lesões. 5.1.4. Achados organocerebrais e relação com sintomatologia psiquiátrica Os exames laboratoriais séricos e o eletroencefalograma não detectaram patologias que indicassem quadros organocerebrais primários que, por sua vez, justificassem o quadro psíquico das duas pacientes. Porém, o SPECT das pacientes demonstrou alterações perfusionais, funcionais.

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No SPECT de Márcia, foram detectadas: áreas de moderada hipoperfusão cerebral difusa, mais acentuada nas regiões órbito-frontais, e discreta hiperperfusão relativa da porção anterior do giro do cíngulo. Esses achados são compatíveis com hipoativação cerebral e hiperativação de áreas límbicas (giro do cíngulo) e paralímbicas (córtex órbito-frontal), demonstrando, segundo Camargo (2001), um comprometimento córtico-límbico nessa paciente. A alteração do córtex órbito-frontal encontrada é associada à impulsividade, à agressividade e à baixa crítica. A hiperativação do giro do cíngulo anterior explica, conforme Kapczinsky, Quevedo & Izquierdo (2004), Yudofsky & Hales (2006) seus sintomas ansiosos, depressivos, inclusive a irritabilidade e a agressividade. Em relação a Laura, esse exame concluiu que havia hiperperfusão/ativação da porção anterior do giro do cíngulo, que de acordo com Kaplan & Sadock (1999), reflete níveis altos de ansiedade, de depressão e de irritabilidade (com ou sem

auto ou heteroagressividade) que, no caso dessa paciente

demonstra compatibilidade entre os achados cerebrais e a sintomatologia psiquiátrica. O giro do cíngulo também está envolvido na percepção de estímulos dolorosos, como afirma Bussato Filho (2006), o que explicaria o alto limiar à dor física que essas pacientes apresentam, durante a prática de autolesões e até justificadas como um grande alívio à dor psíquica sentida nesses momentos de desespero existencial. 5.2 Aspectos da Psicodinâmica e o Tronco Comum do Borderline Nesta segunda parte do capítulo, aborda-se o funcionamento psicodinâmico dos dois casos pesquisados, considerando aspectos teóricos apresentados pela Psicanálise, segundo a visão de Bergeret (1998; 2006). Considera-se, de forma particular, a questão do trauma psíquico como correspondente a “uma comoção pulsional ocorrida em um estado do Ego ainda não muito organizado e demasiado imaturo no plano da adaptação e das defesas” (Bergeret, 2006, p. 190).

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De alguma forma, esse trauma afetivo desempenhou o papel de “primeiro desorganizador” do processo evolutivo das pacientes; determinou uma espécie de pseudolatência durável que ultrapassou o período de latência normal, prolongando-se pelo desenvolvimento afetivo da adolescência, com mutações, transformações, investimentos e desinvestimentos, cobrindo grande parte de sua vida adulta. Constitui o que Bergeret classificou de “tronco comum arranjado” dos estados limítrofes ou sujeitos borderline (Bergeret, 1998) (Anexo 1 A e B). Esse tronco não constitui uma verdadeira estrutura, pois não tem os benefícios da solidez definitiva das organizações realmente estruturadas. Ele fica em uma situação ordenada, mas não fixada, funcionando como um estatuto provisório, mesmo que se mantenha sem grandes alterações durante um período longo. Nesse arranjo, há um grande esforço do ego para permanecer distante da estrutura psicótica, superada, e da neurótica, não atingida pela adaptação e pela maturação das pacientes (Bergeret 1998). Para esta discussão, foi utilizado o arranjo organizacional borderline apresentado por Bergeret (1998), adaptado aos objetivos do trabalho, resultando em quatro eixos identificadores das psicodinâmicas desenvolvidas pelas pacientes. Esses eixos são: -

defesas fundamentais: os arranjos borderlines geralmente recorrem a mecanismos de defesa menos elaborados, consequentemente, menos eficazes e menos custosos, em termos de contra-investimento. Entre os mecanismos principais encontram-se a clivagem e a forclusão;

-

natureza das relações objetais: no arranjo borderline, como o ego não consegue evoluir, a relação objetal permanece centrada na dependência anaclítica do outro, que inclusive pode ocorrer sob forma de identificação com o agressor. Há uma luta constante contra a depressão que pode ocorrer ante a perda de fato e a imaginária;

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-

imagem de si: desfocada pela perturbação da identidade, com forte instabilidade que leva á oscilação entre a idealização e a desvalorização;

-

trauma: ocorrido precocemente, inserindo bruscamente as pacientes, quando crianças, em uma situação pré-edipiana. Conforme Bergeret (1998), a forclusão é uma forma de rejeição da representação

constrangedora e está localizada próxima da recusa do sexo feminino. O que precisa ser rejeitado é a representação simbólica da imagem paterna. Os discursos de Márcia e de Laura apresentam a clivagem e a forclusão como principais mecanismos de defesa. A clivagem, conforme Kernberg, Selzer, Koenigsberg & cols.. (1991), é um dos elementos da psicodinâmica da personalidade borderline e concentra-se nas defesas primitivas do ego. Em ambas, a clivagem levou a uma introjeção positiva e a uma ameaça frustrante do objeto, porém com uma inversão entre elas: enquanto Márcia tem na mãe sua introjeção positiva e no pai a ameaça, Laura tem no pai uma breve introjeção positiva, descarregando na mãe grande parte de suas frustrações. Bergeret (2006) considera a clivagem das imagos (do objeto ou da realidade) o mecanismo de defesa típico dos estados limítrofes os quais seriam arranjos intermediários entre as estruturas neuróticas (que utiliza como defesa principal o recalcamento) e as psicóticas (a defesa mais importante é a clivagem do ego). No caso de Márcia, o trauma desorganizador precoce foi responsável pela deformação do ego para fugir da depressão pela perda do objeto (a mãe) e defender-se da clivagem do ego. Uma parte de seu ego permanece com introjeção positiva (o objeto bom: a mãe) e rejeita o objeto externo frustrante e ameaçador (o pai). Essa clivagem objetal se manifesta, atualmente, em suas escolhas objetais falhas, na deformação da realidade e na percepção do sempre objeto bom (a mãe) e nos objetos ambíguos (o pai), os relacionamentos familiares, amorosos, de amizade). O ego de

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Márcia funciona, no mundo externo, em dois âmbitos: adaptativo (ego age livremente) e o anaclítico (o ego se limita a relações organizadas do tipo dependência-domínio. Nos indivíduos com personalidade borderline, os conflitos não são especialmente recalcados e mantêm inconscientemente sua dinâmica, sendo expressos nesses estados de deformação do ego. A personalidade borderline necessita do objeto, ora para idolatrá-lo, ora para odiá-lo, numa dominação do ideal de ego (Hegenberg, 2005). Ela desenvolve uma alternância em um mesmo objeto, pela

impossibilidade de conciliar aquelas imagens

contraditórias. Segundo Kernberg, Koenigsberg, Stone & cols. (2000), a impossibilidade é devida a uma parte do ego estar organizada em volta de introjeções positivas e a outra rejeitar os aspectos externos que considera frustrantes ou ameaçadores. As duas pacientes reproduzem a clivagem infantil em suas relações atuais, familiares e não familiares, correspondendo à noção de clivagem como mecanismo de defesa precursor. Em Márcia e em Laura, a forclusão é clara, produzindo fortes reações projetivas; nenhuma identifica o pai em sua função paterna. Na primeira, a falta dessa função compromete sua identidade; ela reproduz (e reconhece) a violência paterna em suas relações homossexuais e na bebida; na segunda, a reprodução do pai como homem se dá pela inversão: ela não aceita relações heterossexuais e com pessoas negras (o pai é negro), nem aceita que suas parceiras a toquem. Elas aboliram o pai simbolicamente, mas o têm presentes e de forma muito viva em suas relações com parceiras. O mecanismo da forclusão condiciona a estrutura do ego e perturba a relação do sujeito com o outro, não permitindo que se estabeleça a troca entre eles. Essas reações projetivas transportam para o exterior a representação pulsional interior. Nas relações com o outro, terminam por limitar os relacionamentos, causando a desrealização do sujeito (Klein, 1952, citada por Bergeret, 1998).

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Ambas as pacientes ampliam os efeitos da forclusão para além da reprodução projetiva paterna. Laura chegou a uma interpretação delirante, quando a sensação abolida no interior (o abuso sexual do pai), projetada exteriormente (relação com homens lhe traz a figura do pai), volta desse exterior com a eclosão do real: a possibilidade de vir a criar o bebê de sua irmã. Sente-se mãe, com sensações mescladas pelos sintomas de gravidez e de lactante. Se todo homem lembra-a o pai e se ser mãe implica uma relação heterossexual (que ela não quer), seu delírio de gravidez/lactância está relacionado inconscientemente com a figura do pai como homem. Essa é a psicodinâmica da forclusão, conceituada como uma abolição simbólica de determinado conteúdo, o qual surge no objeto (Bergeret, 1998). Nas relações objetais, o borderline revela as principais alterações de suas funções egóicas. Ele não consegue ficar só e resolver-se; é um sujeito anaclítico, porque foi parcialmente bloqueado em sua evolução, e tem necessidade de outro a seu lado, mesmo temendo os perigos dessa proximidade. Na ausência da função paterna, que é um fator estruturante da possibilidade de encontro com o outro, há concentração do apoio anaclítico em pessoas específicas. Márcia tem seu apoio anaclítico centrado exclusivamente na tia, e o simples pensamento de perdê-la desencadeia delírios nos quais quer preservar seus objetos protetores dos ataques de outros; tranca-se num quarto e faz suas necessidades fisiológicas em local inadequado. Laura vem se apoiando na mãe da amiga que se suicidou, em lugar dessa (seu apoio anterior), com a qual mantinha uma apoio anaclítico recíproco e mórbido. Negativamente, tanto Márcia quanto Laura apoiam-se anacliticamente na figura paterna. O apoio nasce da identificação com o respectivo agressor, o pai, num processo que tem origem na formação do ego ideal. Lagache (citado por Laplanche & Pontalis, 1995, p. 231) explica que nas demandas entre a criança e o adulto, “o sujeito identifica-se com o adulto

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dotado de onipotência, o que implica o desconhecimento do outro, a sua submissão, até mesmo a sua abolição.” Márcia não só se identifica com o pai, como o imita e apóia-se em sua representação, para manter seu status narcísico. Já o processo de Laura ocorre pela denegação. 5.2.1. A relação do TPB com as alterações do campo afetivo Os borderlines não suportam abandono nem solidão; necessitam do outro integralmente e em tempo integral. São declaradamente dependentes e manipuladores (Balone, 2005). Márcia manipula a tia, exercendo sobre ela sua onipotência, de forma direta, quando exige receber um apoio do modo e na proporção que deseja. Laura manipula de forma espetacular. Histriônica, desmaia e faz cenas para obter atenção. É diante da ameaça de perda ou da perda real que o borderline entra em estado depressivo. Perder o objeto anaclítico, que funciona como seu ego auxiliar, leva o borderline ao aniquilamento. Bergeret (1998) afirmou que a depressão, no borderline, torna-se latente e se manifesta ante a primeira ameaça de ausência do objeto anaclítico, pela percepção do aniquilamento para seu ego. O borderline acredita que investir em uma relação com o outro representa o preenchimento de seu vazio existencial. Há uma angústia subjacente da depressão, pronta a manifestar-se ao primeiro sinal de desamparo anaclítico. No arranjo da personalidade borderline, na área da afetividade, uma das principais características é a instabilidade afetiva, causada pela reatividade do humor que alterna episódios disforia com irritabilidade ou ansiedade e descontrole. Nos períodos de ansiedade e de angústia, na área da interação social e do comportamento, destaca-se principalmente o comportamento suicida recorrente, ameaças ou comportamentos de automutilação e impulsividade excessiva, principalmente associada ao excesso de compras, ao sexo, abuso de drogas, bulimia e outros. Na área das vivências internas, distúrbios geralmente associados à imagem ou senso de si mesmo bastante instável (Dalgalarrondo & Vilella, 2005 ).

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Márcia e Laura têm em comum o comportamento suicida recorrente. Mas



diferença na forma como cada uma age nesse sentido. Márcia declara sua impotência diante de determinadas situações e apela para as tentativas de suicídio; em outras ocasiões, planeja-o pensando horários e entradas e saídas das pessoas, “escolhendo” a forma ideal. Laura também age assim, mas suas fantasias em torno do suicídio são mais mórbidas; por ser mais histriônica, também nesse aspecto seu “planejamento” tem ares de maior grandiosidade. Elas também se auto-agridem e se automutilam, diante de situações impossíveis para seu ego. Mas enquanto Márcia se auto-agride e agride as pessoas que estão próximas, Laura mais se volta contra si mesma. Márcia e Laura têm uma imagem negativa de si, gerada possivelmente pela ausência da relação triádica com os pais. Essa ausência é fundamental para a constituição da síndrome borderline, que tem entre suas características a angústia como afeto único ou essencial, ausência consistente de auto-identidade, anáclise nas relações objetais e a conseqüente depressão anaclítica (citadas) (Balone, 2005). Esse quadro marca a instabilidade em vários funcionamentos do arranjo borderline, entre eles a imagem de si, com reflexos no comportamento. Objetivos e preferências internas, inclusive a sexual, geralmente são perturbadas e pouco claras, com sentimentos crônicos de um vazio imenso. À falta de estabilidade e com a imagem negativa de si, o borderline oscila entre a idealização e a desvalorização. A idealização é uma forma de defesa contra as pulsões destrutivas, e a finalidade dessas é suprimir a tensão por meio do objeto. A desvalorização é associada à imagem de si como um efeito do funcionamento de seu arranjo psicológico. Pode haver no borderline, uma rápida passagem da idealização elogiosa para sentimentos de desvalorização, por achar que a outra pessoa não se importa o suficiente com ele, não dá o bastante de si, não se mobiliza o suficiente. Portanto, são insaciáveis em termos de atenção. Eles são inclinados a mudanças súbitas em suas opiniões sobre os outros (Balone, 2005, p. 4).

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Em Márcia, os estados de tensão foram provocados pelo pai durante toda a sua infância; ele é seu objeto. Por isso, ela o idealiza para diminuir a dolorosa tensão provocada por ele. Já os estados de tensão de Laura, apesar do pai, são mais provocados pela mãe, cuja omissão (diante dos abusos do pai) e agressões físicas e psicológicas ainda são motivo de seu investimento afetivo. O objeto de idealização de Laura é uma prima, que começou de baixo e muito a defendeu das agressões maternas. Quanto à desvalorização, para uma e para outra, o sentimento passa pela história pessoal e pelas agressões físicas e psicológicas acumuladas durante a vida. Além disso, aspectos relacionados à aparência física e às exigências do outro fazem com que elas se sintam pouco queridas e objeto de pouca atenção das pessoas. A instabilidade do arranjo egóico e o investimento sempre direcionado à ferida narcísica fazem com que elas não se percebam como ser nem reconhecem seu potencial. Nos casos bordelines, o fator traumático é reconhecido como um dos principais fatores psicossexuais responsáveis pelo aparecimento ou pelo agravamento do respectivo quadro, principalmente em meninas. A ocorrência de trauma antes da formação da personalidade termina por desestruturar o sujeito psiquicamente (Bergeret, 1998). Márcia e Laura têm traumas precoces associados à agressão e a abusos, fator responsável pela clivagem. Freud (1918, citado por Laplanche & Pontalis, 1995) explicou a clivagem provocada por esses traumas partindo de uma cena real ou fantasística, na qual a criança sofre passivamente propostas ou manobras sexuais de adultos. A esse trauma segue-se a posterior defesa contra as lembranças dolorosas dele. O trauma referido por Márcia, de natureza sexual, é relacionado ao pai e não a envolve diretamente. Mas independente disso, o fato está presente em sua memória e é insistentemente citado em seu relato. Outros traumas de natureza psicológica e física se estenderam ao longo da infância e da adolescência.

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O trauma de Laura é direto: sofreu abuso sexual do pai pervertido, dos 5 aos 15 anos. Um acontecimento que sua idade não permitiu assimilar e comprometeu a formação de sua personalidade e a adaptação de seu ego à realidade. Os traumas precoces impedem o desenvolvimento da maturidade e causam uma sucessão de eventos: narcisismo, ideal de ego, ferida narcisista, vergonha, angústia de perda do objeto e depressão. (Bergeret, 1998). As duas pacientes, por não superarem o padrão traumático, introjetaram de alguma forma a figura paterna (como já dito), numa repetição que ocorre devido às funções estruturantes, defensivas e narcísicas desenvolvidas por elas, a partir do referido padrão. Para Dion (2005), a repetição de funcionamentos destrutivos por indivíduos com personalidade borlerline constitui uma defesa, utilizada como garantia de manutenção da respectiva estruturação. Nessa estruturação, uma parte do ego fica em contato operatório com a realidade que não incomoda, e a outra perde contato com essa realidade, principalmente com os aspectos angustiantes, que podem reconstituir-se em delírios (Bergeret, 2006). Nem Márcia nem Laura contaram com o apoio da mãe nessa fase. Elas ficaram expostas às condições violentas da realidade, sem qualquer referência e apoio. Não houve só desrespeito às necessidades, percepções e emoções infantis de uma adequada introdução na realidade circundante (que Winnicott chama de holding), como houve uma total omissão em relação aos traumas vividos por elas. Com a ausência da função materna (além da paterna), nos dois casos, elas não desenvolveram um superego, até porque seu ego já vinha se deformando. As pulsões do ego se organizaram mais no sentido dos instintos de conservação, com grande propensão à agressividade, promovendo-se um arranjo adaptativo de caráter narcisista, principalmente em Márcia.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

No que tange aos objetivos deste trabalho - investigar, em pacientes com TPB, a sintomatologia psiquiátrica e a dinâmica psicanalítica desse fenômeno na perspectiva de Bergeret (1998/2006) e sua relação com o transtorno do espectro bipolar do humor -, pode-se dizer que os dados relativos às duas pacientes pesquisadas, analisados segundo a literatura levantada, possibilitaram identificar a sintomatologia psiquiátrica e a psicodinâmica do TPB e suas comorbidades nas referidas pacientes. Por meio deles, pôde-se traçar não só uma resposta aos objetivos pretendidos, especificamente, como delinear o TPB no âmbito das perspectivas psiquiátrica e psicanalítica, o que também interessa a este trabalho, haja vista o seguinte: primeiro, a necessidade de uma visão interdisciplinar do fenômeno, como forma de se obter um diagnóstico efetivo e, consequentemente, estabelecer linhas de conduta que permitam auxiliar os sujeitos portadores do TPB; segundo, a similaridade dos sintomas do TPB com o de outros transtornos, o que torna o fenômeno mais complexo em sua abordagem e exige um diagnóstico diferencial, o qual, por si só, muitas vezes, não pode ser fornecido por instrumentos de uma área só. Em relação à sintomatologia psiquiátrica, os dados demonstraram, em ambas as pacientes, a existência de fatores como abusos dos pais, estressores traumáticos repetitivos internos e externos, como desencadeadores do TPB, e oscilações de humor, impulsividade, ideações de menos-valia, de morte e de suicídio, autolesões, tentativas de auto-extermínio, sintomas psicóticos e disfuncionalidade, como fatores resultantes desses. A análise psicodinâmica, realizada na perspectiva de Bergeret (1998; 2006), evidenciou abusos e traumas como fenômenos causadores do TPB, tendo na instabilidade afetiva, na impulsividade, na depressividade, na baixa auto-estima, nas ideações de morte e de suicídio, nas tentativas de auto-extermínio, nas autolesões, no narcisismo, na clivagem objetal, na

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forclusão, na angústia de perda do objeto, na reação maníaca e na anáclise elementos que demonstram a deformação do ego, decorrente dos referidos traumas. Desse modo, mesmo considerando que a Psiquiatria e a Psicanálise constituem-se em perspectivas teóricas e epistemológicas diferentes, nas duas abordagens, foram encontrados indicadores que permitem formular a hipótese de TPB. Há, nos dois casos relatados nesta pesquisa,

instabilidade afetiva, impulsividade, prejuízo na auto-imagem, oscilações de

humor, risco potencial para auto-extermínio, prejuízo do juízo crítico, comprometimento sociofamiliar, acadêmico e profissional, necessidade de apoio anaclítico e disfuncionalidade crônica. A diferença entre as duas perspectivas acima são reveladas na etiologia e no processo de construção da personalidade borderline. Se, por um lado, a Psiquiatria defende como fator causal desse quadro uma interação genética e ambiental, por outro, a Psicanálise, particularmente na visão de Bergeret (1998; 2006), parte da relação entre o trauma ocorrido precocemente, causado pelos pais, para explicar a psicodinâmica do sujeito. Essa ocorre por meio das defesas utilizadas, bem como de seus modos vinculares, das reações de perda do objeto e da imagem de si e dos outros, de suas dificuldades de enfrentamento da realidade. As diferenças entre as abordagens psiquiátricas e psicanalíticas tornam-se maiores quando se procura discutir as oscilações de humor, no contexto do citado transtorno. A Psiquiatria defende que há semelhanças entre o TPB e o TEBH, quando se utiliza a teoria atual do espectro bipolar do humor. Já Bergeret (1998; 2006) busca explicação no que chama de afetividade do TPB, originada do abuso, que gera uma trauma importante, responsável pela desorganização afetiva e, consequentemente, causadora da depressividade do estado limítrofe. A reação maníaca é uma defesa contra a depressão pela angústia de perda do objeto anaclítico.

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Os sintomas psiquiátricos encontrados nas pacientes, confirmados através dos exames psíquicos, aliados aos dados trazidos pela história psiquiátrica, antecedentes sociais, familiares, fisiopatológicos, a curva de vida, exame físico, exames complementares e as aplicações da EAM-m e BDI, foram fundamentais para que emergissem as síndromes de cada paciente e o diagnóstico da doença básica e suas comorbidades. Apesar de a CID 10 (1993) e o DSM-IV-TR (2003) discordarem em alguns critérios, ficou claro que não há um limite definido entre o TPB e o Transtorno Afetivo Bipolar (TAB), quando se trata da presença de elevação de humor. Essas classificações defendem que para se considerar um sujeito portador de transtorno afetivo bipolar, seria necessário, no mínimo, um episódio depressivo e outro hipomaníaco ou maníaco. E se o indivíduo só relatasse um episódio hipomaníaco ou maníaco, sem episódios depressivos, disfóricos ou irritabilidade, ao longo da vida, seria excluído da condição de bipolar? A presença de episódios de elevação de humor, em portadores de TPB, são similares a portadores de TAB e TEBH. Por isso, a bipolaridade é melhor explicada por pesquisadores que postulam a presença de disforia, irritabilidade, ciclotimia, hipomania ou mania (com ou sem sintomas psicóticos) em pacientes com temperamentos hipertímicos e ciclotímicos. Eles devem ser considerados bipolares, mesmo na ausência de sintomas depressivos. Há uma previsão de que na versão V da do DSM e na próxima versão da CID, o conceito de bipolaridade seja ampliado, como ocorreu durante o Consenso Internacional de Barcelona. Bergeret (1998; 2006) defende que a personalidade borderline é desenvolvida pela interação entre trauma, fatores narcísicos, negligência das funções paterna e/ou materna, edificação de defesas primitivas e regressões às ameaças de perda do objeto. Nessa visão, não há lugar para a genética, a fisiopatologia, o sociocultural e a relação entre os episódios de

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humor e o TPB. Para a Psicanálise, os episódios de humor no TPB são reações ao apoio ou abandono objetal. No conflito entre essas duas perspectivas, a neurociência tenta adequar o conhecimento solidificado da Psicanálise e sua psicodinâmica à fisiopatologia psiquiátrica e suas síndromes. Em meio a isso, encontram-se pacientes portadores de instabilidade afetiva, de impulsividade, de episódios psicóticos breves, de ideações ou de tentativas de auto-extermínio que precisam de um diagnóstico consistente. Esse é que norteará o tratamento psiquiátrico e psicoterápico adequado, respaldado em outros elementos multidisciplinares. Em outro ponto do objetivo desta pesquisa, pelos dados obtidos e pela literatura levantada, entendeu-se que ainda não se conhece muito sobre o TPB e sobre o espectro bipolar do humor, para se poder afirmar que eles são entidades únicas ou integrantes de uma mesma patologia. Sabe-se, porém, que o diagnóstico da instabilidade afetiva e da impulsividade deve ser feito; que o tratamento psicofarmacológico ameniza a sintomatologia, e a psicoterapia (em suas diversas linhas) ajuda a diminuir o sofrimento dos portadores dessa (s) patologia(s). Nesse sentido, nesta pesquisa, mesmo com as limitações encontradas em sua concretização (poucos sujeitos, restringindo o método estatístico à frequência da aparecimento de sintomas psiquiátricos nas escalas aplicadas nas duas pacientes; no tratamento das entrevistas semidirigidas que apontou aspectos psicodinâmicos através de interpretação sem uma análise de conteúdo aprofundada; a falta de um instrumento quantitativo válido e confiável que contemplasse todo o espectro bipolar do humor segundo os estudiosos modernos desse construto), os achados permitiram inferir de forma específica que: 1) as duas pacientes são portadoras de TPB, TEPT e TEBH; 2) a paciente Laura também satisfaz critérios para os transtorno de personalidade histriônica e distímico, o qual foi excluído do diagnóstico devido à presença de episódios maníacos detectados durante as avaliações da

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EAM-m; 3) os abusos precursores dos traumas desorganizadores que essas pacientes sofreram foram os responsáveis pela desestruturação da personalidade e depressividade e reações maníacas apresentadas e previstas nas teorias psicanalíticas e presentes nesse estudo; 4) as perspectivas psiquiátrica e psicanalítica são consensuais quanto à presença de instabilidade afetiva, impulsividade, alteração da auto-imagem, psicose e anáclise; 5) a história psiquiátrica e a entrevista psicológica semidirigida são concordantes na maioria dos dados coletados e discordantes quanto a etiologia, psicopatologia e psicodinâmica do TPB, quanto ao humor e afetividade; 6) a Psiquiatria defendeu a importância de fatores biológicos, ambientais e sociais, na causalidade do TPB, enquanto a Psicanálise ateve-se a fatores traumáticos para a anestruturação dos estados limítrofes e conseqüentes indicadores psicopatológicos; 7) as inúmeras avaliações realizadas com vários instrumentos de coleta de dados geraram um grande número de dados que poderão servir para diversos outros trabalhos sobre a relação do TPB e o humor. Objetivando responder às perguntas levantadas por esse estudo, conclui-se que, de modo geral, essa pesquisa conseguiu, na perspectiva psiquiátrica, confirmar a sintomatologia psiquiátrica e diagnosticar patologias comórbidas ao TPB, descobrir o limite tênue entre o TPB e o TEBH, associar o TEPT com diversos quadros psiquiátricos, inclusive com o TPB e transtornos do humor; demonstrar as contradições do referencial teórico utilizado. Por outro lado, a visão psicanalítica foi útil na confirmação psicodinâmica do trauma causador da depressividade angustiante pela perda do apoio anaclítico e confirmou, nas estudadas, que a personalidade borderline não é estruturada e sim organizada pelas defesas orquestradas pela clivagem objetal: negação, idealização, desvalorização e forclusão. Deseja-se que este trabalho possa contribuir para a realização de estudos sobre o tema aqui problematizado, principalmente, no que se refere ao diagnóstico precoce, o manejo psicofarmacológico eficaz, o emprego de técnicas psicoterápicas eficientes, na ampliação da

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discussão sobre as medidas preventivas contra o abuso infantil e outros, na implementação de rede pública adequada ao atendimento multidisciplinar e ressocialização do portador de transtorno de personalidade limítrofe ou, simplesmente, personalidade borderline.

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REFERÊNCIAS

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:

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ANEXOS

Anexo I - O tronco comum dos estados limítrofes Anexo II - Modelo de termo de consentimento informado Anexo III – Roteiro de entrevista psicológioca semi-estruturado Anexo IV – Escala EAM-m e Inventário de Depressão de Beck (BDI)

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Anexo I A O tronco comum dos estados limítrofes

Fonte: Bergeret, 1998

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Anexo I B

Gênese do tronco comum dos estados limítrofes

Fonte: Bergeret, 1998

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Anexo II TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Você está sendo convidado a participar de uma pesquisa da Universidade Católica de Brasília sobre o Transtorno de Personalidade Borderline: Um fenômeno clínico único ou integrante do espectro Bipolar do Humor? Leia cuidadosamente o que se segue e quaisquer dúvidas serão respondidas prontamente. Este estudo será conduzido por Professores da UCB e contará com pesquisadoras mestrandas de Psicologia. A sua participação é voluntária e será documentada através do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido assinado ou identificado por impressão dactiloscópica, para o caso de analfabetos. Não participarão desse estudo pessoas sem participação voluntária, menores de idade, mulheres e indivíduos que não atendam os critérios técnicos estipulados pelo pesquisador. O intuito desta pesquisa é conhecer melhor o seu perfil psicológico, observando a sua história de vida, bem como a história de seus antepassados, e outras informações que serão colhidas no contexto da entrevista clínica, da aplicação de escalas psiquiátricas e da avaliação psiquiátrica. Você será entrevistada em dois encontros com duração de uma hora, e também submetido a uma avaliação em outro encontro, num total de três encontros. As entrevistas e a avaliação psicológica serão gravadas, para posteriormente, se realizar um estudo do material. A avaliação psiquiátrica ocorrerá através de perguntas sobre sua vida, seus familiares, sua doença psíquica e outras, escalas psiquiátricas (questionário sobre seus sintomas) e exames complementares (laboratoriais sanguíneos e urinários, eletroencefalograma com mapeamento cerebral, tomografia por emissão de fóton único – SPECT – ou tomografia por emissão de pósitrons –PET), num total de seis encontros e um sétimo de devolução dos resultados. Se você tiver interesse poderá receber informações sobre suas características de personalidade, ou seja, seu modo de ser, seu jeito de se expressar, sua interação com outras pessoas, os resultados da avaliação psiquiátrica entre outras questões. Se você concordar em participar do estudo, seu nome e identidade serão mantidos em sigilo. Somente os pesquisadores, terão acesso a suas informações para verificar dados do

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estudo. Vale ressaltar que todas as informações colhidas pela pesquisadora não terão utilidade para o processo e para fins judiciais. As perguntas ou os problemas referentes ao estudo poderão ser questionados à pesquisadora. Para perguntas sobre seus direitos como participante no estudo, o Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Católica de Brasília, poderá ser consultado no telefone 33871053/99717244. Sua participação no estudo é voluntária. Você pode escolher não fazer parte dele, ou desistir a qualquer momento. Você poderá ser solicitado a sair do estudo se não cumprir os procedimentos previstos ou atender as exigências estipuladas. Você receberá uma via assinada deste termo de consentimento. Declaro que li e entendi o formulário de consentimento, sendo minhas dúvidas esclarecidas e que sou voluntário a tomar parte neste estudo.

Brasília, ____ de _____________ de 2007.

Assinatura do Voluntário: ____________________________________________________

Assinatura das pesquisadoras:

Profª Drª Deise Matos do Amparo

Mestranda de Psicologia Norma Maria Malta Machado

200

Anexo III A Avaliação psiquiátrica •

Esboço da história Psiquiátrica I. Dados de identificação II. Queixa principal III. História da doença atual IV. Doenças anteriores A. Psiquiátricas B. Médicas V. História pessoal pregressa (anamnese) A. Pré-Natal e Perinatal B. Primeira infância (até os 3 anos) C. Infância intermediária (dos 3 aos 11 anos) D. Infância tardia (da puberdade até a adolescência) E. Idade adulta 1. História ocupacional 2. História conjugal e de relacionamento 3. História militar 4. História educacional 5. Religião 6. Atividade social 7. Situação atual de vida F. História psicossexual G. História familiar H. Sonhos, fantasias e valores



Esboço do exame do estado mental VI. Descrição geral A. Aparência B. Comportamento e atividade psicomotora C. Atitude acerca do examinador VII. Humor e afeto A. Humor B. Afeto C. Adequação VIII. Fala IX. Perturbações da percepção X. Pensamento A. Processo ou forma de pensamento B. Conteúdo do pensamento XI. Sensório e cognição A. Alerta e nível da consciência B. Orientação C. Memória D. Concentração E. Pensamento abstrato

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F. Fundo de informação e inteligência XII. Controle de impulsos XIII. Julgamento de insight XIV. Confiabilidade

Estudos Diagnósticos Adicionais A. Exame físico B. Exame neurológico C. Entrevistas diagnósticas psiquiátricas adicionais D. Entrevistas com familiares, amigos ou vizinhos, pelo assistente social. E. Testes psicológicos, neurológicos, laboratoriais e de imagens indicados: eletroencefalograma, tomografia computadorizada, tomografias por emissão de pósitrons (PET) e/ou emissão de fóton único (SPECT), teste para outras condições médicas, testes de compensação da leitura e da escrita, testes para afasia, testes psicológicos projetivos, teste de supressão da dexametasona e teste da urina de 24 horas para intoxicação com metais pesados.São anotados os sintomas mentais, dados históricos (por exemplo: história familiar), achados médicos e laboratoriais e resultados psicológicos e neurológicos, se disponíveis (Kaplan & Sadock, 1999).

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Anexo III B

ROTEIRO DE ENTREVISTA PSICOLÓGICA SEMI-ESTRUTURADA PARTE I - ENTREVISTA CLÍNICA LIVRE E COM ATENÇÃO FLUTUANTE Foco e objetivo: estabelecer um rapport e perceber o funcionamento dinâmico do paciente. O foco deverá se estabelecer nos seguintes aspectos: discurso, afetividade e angústia, conflitos, expressão relacional - transferência, funcionamento mental, comportamento. Observar diretamente: 1. Discurso: expressão verbal, densidade do discurso, clima do diálogo, inibições intelectuais, facilidade de evocação e elaboração das recordações, reticências no discurso, débito verbal – rapidez, tom, tomadas de distância no discurso (silêncio, repouso, rejeições , paradas); 2. Afetividade e angústia: nível de evolução afetiva, angústia ou agressividade, inibições afetivas; 3. Relação com a realidade: grau de adaptação à realidade; 4. Modo de funcionamento mental: fantasias e representações fantasmáticas, sonhos, conflito e defesas postas em ação contra o próprio sujeito, reticências e projeções; 5. Comportamento: flexibilidade ou rigidez da atitude, mímica; 6. Transferência – contratransferência relação com interlocutor - dominar, seduzir neutralizar, maneira de negociar, possibilidade de identificações; 7. Pensamento: lentificação e aceleração do pensamento, confusão de pensamento; 8. Sintoma: funcionamento em nível mental comportamental e somático, distinguir o agir de descarga destinado a evitar o tempo do desejo e suas representações e do agir como prelúdio à elaboração verbal; PARTE II: ENTREVISTA PROPRIAMENTE DITA Características: coleta sutil do que não foi dito espontaneamente; sem intermediários (pessoa, móveis); várias sessões (sem “conte-me” ou clima psicoterapêutico); relançar alguns assuntos; deixar o paciente falar com liberdade. Antecedentes pessoais do sujeito: Onde nasceu? Seus pais são oriundos de onde?Onde viveu sucessivamente? Como se passou sua infância? Como foi sua adolescência? De que forma transcorreram seus estudos? Houve dificuldades? Quais? Você tem dificuldades significativas hoje em sua vida? Você tem desejos, planos significativos em sua vida hoje? Relacionamentos familiares: Pais: Como é sua relação com seus pais? Sempre foi assim, ou mudou ao longo do tempo? Como foi essa mudança na relação com seus pais? Qual a influência que seus pais tem sobre você? Você se sente apoiado por seus pais? De que forma você se sente apoiado por eles? Com qual deles você acha que se parece mais? Gosta dessa semelhança ou não? Como é a relação entre eles? Seus pais brigam ou brigavam, se agrediam verbal ou fisicamente? Na sua casa as coisas eram tratadas com rigor ou severidade? Seus pais são separados? Quando aconteceu? De que forma isso lhe afetou? Seus pais são vivos? Se não, quando faleceram? Como você lidou com essa perda (falecimento)? Quanto tempo você levou para se recuperar dessa perda? Irmãos: Você tem irmãos ou irmãs? Quantos? Qual é o seu lugar entre eles? São vivos ou falecidos (de quê? em qual idade?) Como é sua relação com eles? Sempre foi assim, ou mudou ao longo do tempo? Que tipos de mudanças ocorreram (proximidade, rupturas, identificações)? Qual o impacto dessas relações afetivas na sua vida? Existem magoas, agradecimentos, dificuldades?

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Outros: Com que freqüência você tem contato com outros familiares? Como você vê seu relacionamento com outros membros da família? Algum desses relacionamentos com familiares é ou foi abusivo (intrusão, abuso sexual, incesto, violência, exploração)? Com quem? O que sentiu depois? Como você lida com esse evento hoje? Relacionamentos amoroso (namorado, companheiro, esposo, ficante): Você já teve relacionamentos afetivos? Você alguma vez já esteve profundamente apaixonado? Por quem? Esses relacionamentos eram estáveis ou instáveis? Qual foi a duração? Quais e quantos foram estáveis? Quais e quantos foram instáveis (enfocar nos relacionamentos longos e marcantes)? Geralmente como são as aproximações (como se conheceram, se aproximaram)? Qual a qualidade dessas relações (como qualifica o vínculo, a interação do casal)? Se teve relacionamentos e não tem mais, como e porque terminou? Como você reagiu a esse termino? Quanto tempo você levou para superar o fim do(s) relacionamento(s)? Atualmente você tem um relacionamento amoroso com alguém? Como se conheceram? Como é essa relação? Você vê alguma semelhança com o relacionamento de seus pais? Você gostaria que essa relação fosse diferente em algum sentido? Como? Quais foram as transformação na relação do casal ao longo do tempo? Houve ou há eventuais ligações fora do relacionamento (de um e de outro lado)? Como foram vividas por cada um dos parceiros? Relacionamento com filhos: Você tem filhos biológicos, adotivos ou enteados? Quantos e de que idades? Com que frequência você tem contato com ele(s)? Foram desejados ou não? Como é a relação com eles? Relacionamentos de amizade: Quem são os seus amigos? Como você descreveria sua relação com eles? Você tem amigos muito próximos que você confie? Você se sente a vontade de recorrer a eles em seus momentos mais difíceis? Você se sente apoiado por seus amigos? Como? Você gostaria que essas relações fossem diferentes em algum sentido? Em que sentido? Você já vivenciou perda ou separação em relação à amizade? Como você lidou com esse momento? Como isso afetou sua vida? Trabalho, estudos e lazer: Você teve ou tem alguma atividade profissional, acadêmica, comunitária, curso etc? Como são ou foram suas atividades de trabalho e de estudos? Há quanto tempo você está nela? Ou há quanto tempo você está fora dela? O que você gosta nessa atividade? O que você não gosta? Tem ou teve problemas na profissão, nos estudos? Como é sua relação supervisores, colegas, subalternos? Como essas relações repercutem em sua vida? Você tem atividades de lazer? Como são e com que freqüência você se envolve com essas atividades? Você tem algum hobbie? (esportes, artes, música, teatro, dança...) Que tipos? Tem grupos de lazer? Prefere estar só ou conviver com grupos? O que faria ou faz você ficar afastado de atividades sociais? Pré-genitalidade: Como você lida com suas vontades, desejos (necessidades) imediatas? Como você assimila frustrações em relação a essas vontades, desejos ( necessidades)? Como é seu apetite alimentar? Você se acha gordo? Você se acha magro? Alguma coisa no seu corpo lhe incomoda? De que maneira isso lhe incomoda? Você já comeu ou come coisas que não são consideradas alimentos? Que coisas? Qual a sensação que isso lhe traz? Você faz alguma coisa para engordar ou emagrecer? Apresenta vômitos espontâneos ou provocados? Faz ou já fez uso de laxativos e/ou diuréticos, sem prescrição médica? Como é sua digestão (reter, eliminar, incômodos)? Você é meticuloso? Detalhista? Tenaz? Como é sua relação com dinheiro e com limpeza? Gosta de ter controle sobre si e sobre os outros? Costuma masturbarse? Como é essa masturbação? (obsedante? Ausente? Banal? Bizarra?) Quais são suas fantasias, durante esse ato? Sexualidade: Qual era a sua idade quando teve sua primeira experiencia sexual? Como foi essa experiencia? E com quem foi? Quantos parceiros sexuais você já teve? Quantos foram casuais e quantos fixos? Qual a qualidade dos relacionamentos sexuais? Qual a natureza desses relacionamentos (heterossexual, homossexual, bissexual, pansexual)? Você já se

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relacionou com mais de uma pessoa ao mesmo tempo? Com que frequência? Aonde elas se passavam? Frequentava locais de troca de casais? Tinha ou tem relações sexuais em saunas? Em outros lugares incomuns? Qual a sua satisfação ou insatisfação nesses relacionamentos? Tem experiencia sexual com animais, com objetos, ou contatos sexuais incomuns (virtual, etc...)? Você alguma vez sofreu abusos físicos, sexuais ou emocionais? Quem abusou de você? Idade(s)? O que aconteceu? O que sentiu depois desse abuso? Como você integra esse evento em sua vida atual? Comportamentos de risco: Você praticou ou pratica auto ou heterolesão? Quais as características disso? Qual a freqüência? O que geralmente te motiva a fazer isso? Como você se sente na hora? Como você se sente depois? O que você pensa sobre isso? Você tem descontrole de impulsos (Cleptomania, onicofagia, tricotilomania, tricotilofagia, etc...)? Você teve ou tem idéias de morte ou planos suicidas? De que tipo? Como foram/são essas idéias? Como foram os planos? Algum amigo seu já tentou suicídio ou já se matou? Era amigo próximo ou distante? Como você vivenciou esse momento? Alguém de sua família já tentou ou cometeu suicídio? Quem foi? Como era sua relação com essa pessoa? Como você reagiu a esse evento? Você já foi internado por tentativa de suicídio? Quantas vezes? Como foram essas tentativas? Você conversou com alguém sobre seus pensamentos e/ ou planos de morte? Com quem? Como você se sentiu conversando sobre isso com essa pessoa? Imagem de si e idealizações: Como você se descreveria? Como você gostaria de ser? Você mudaria alguma coisa em você? O que? Por quê? Tem alguma pessoa das suas relações que se identifica e gostaria de ser igual? Por que? Você acha que seus pais traçaram um plano de vida ideal para você? Houve frustrações em relação a esses planos? Como seus pais lidavam com as frustrações desses planos? Como você lidava com as frustrações dos planos dos seus pais em relação a si? Você percebia-os como grandiosos, poderosos? Eles exigiam que você fizesse o que eles queriam em troca de recompensas futuras? Você acha que suas expectativas em relação as pessoas importantes para você são correspondidas? Seus sentimentos em relação as pessoas importantes para você são constantes, se alternam ou são contraditórios? Como você reage quando a pessoa que lhe apóia ameaça ir embora da sua vida? Geralmente, você tenta manter algum controle sobre as pessoas importantes da sua vida? Como? Por que? Capacidade de enfrentamento: Quais têm sido os principais desafios ou dificuldades que você tem vivido ultimamente? Como você geralmente se sente e reage diante de dificuldades? Como você se sente e reage quando as coisas não saem do jeito que você deseja em sua vida? O que você tenta ou faz para resolver os problemas difíceis com os quais se defronta? Como você lida com suas frustrações e fracassos? Como você lida com as frustrações e fracassos dos outros em relação a você? Você tem alguma religião ou participa de algum ritual religioso? Qual o papel da religião em seus momentos difíceis? Você tem alguma pessoa em que confie ou que funciona para você como apoio? Quem é essa pessoa por quem você se sente apoiado? Qual é a sua dependência dela para tomar decisões? Se você não tiver apoio na hora que precisa, como você reage? Finalização da entrevista: Quais são seus planos e expectativas para o futuro? Como você se sente diante desses planos e expectativas? O que gostaria de dizer, além disso? Roteiro baseado em: Bergeret, J. (2006). Psicopatologia: teoria e clínica. Porto Alegre: ARTMED.

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Anexo IV A

Escala EAM-m ITEM 1.Humor e afetos elevados: Este item compreende uma sensação difusa e prolongada, subjetivamente experimentada e relatada pelo individuo, caracterizada por sensação de bem-estar, alegria, otimismo, confiança e ânimo. Pode haver um afeto expansivo, ou seja, uma expressão dos sentimentos exagerada ou sem limites, associada à intensa relaçãoncom sentimentos de grandeza (euforia). O humor pode ou não ser congruente ao conteúdo do pensamento.

Graus (0) Ausência de elevação (1) Discreto ou possivemente aumentados quando questionado (2) Relato subjetivo de aumento; otimista, alegre; afeto apropriado ao conteúdo do pensamento (3) Afeto elevado ou inapropriado ao conteúdo do pensamento; jocoso (4) Eufórico;risos inadequados, cantando (X) Não avaliado

2.Atividade motora – energia aumentadas Este item compreende a psicomotricidade – e expressão corporal – apresentada pelo paciente, incluindo a sua capacidade em controlá-la, variando desde um grau de normalidade, até um estado de agitação, com atividade motora sem finalidade, não influenciada por estímulos externos. O item compreende ainda o relato subjetivo do paciente, quanto à sensação de energia, ou seja, capacidade de produzir ou agir

(0) Ausente (1) Relato subjetivo de aumento da energia ou da atividade motora (2) Apresenta-se animado ou com gestos aumentados (3) Energia excessiva; às vezes, hiperativo; inquieto (mas pode ser acalmado) (4) Excitação motora; hiperatividade contínua (não pode ser acalmado) (X) Não avaliado

3.Interesse sexual Este item compreende idéias e/ou impulsos persistentes relacionados a questões sexuais, incluindo a capacidae do paciente em controlá-los. O interesse sexual pode restringir-se a pensamentos e desejos não concretizados, em geral verbalizados apenas após solicitação, podendo chegar até a um comportamento sexual frenético e desenfreado, sem qualquer controle ou crítica quanto a riscos e normas morais.

(0) Normal; sem aumento (1) Discreta ou possivelmente aumentado (2) Descreve aumento subjetivo, quando questionado (3) Conteúdo espontâneo; discurso centrado em questões sexuais; auto-relato de hipersexualidade (4) Relato confirmado ou observação direta de comportamento explicitamente sexualizado, pelo entrevistador ou outras pessoas (X) Não avaliado

(0) Não relata diminuição do sono 4.Sono Este item inclui a redução ou a falta na capacidade de (1) Dorme menos que a quantidade normal, dormir, e/ou a redução ou falta de necessidade de cerca de 1 h a menos do que seu habitual (2) Dorme menos que a quantidade normal, dormir, para sentir-se bem-disposto e ativo. mais que 1 h a menos do que o seu habitual (3) Relata diminuição da necessidade do sono (4) Nega diminuição do sono (X) Não avaliado

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5. Irritabilidade Este item revela a predisposição afetiva para sentimentos/emoções como raiva ou mau-humor apresentados pelo paciente diante de estímulos externos. Inclui baixo-limiar à frustração, com reações de ira exagerada, podendo chegar a um estado constante de comportamento desafiador, querelante e hostil.

(0) Ausente (2) Subjetivamente aumentada (4) Irritável em alguns momentos da entrevista; episódios recentes (nas últimas 24 h) de ira ou irritação na enfermaria (6) Irritável durante a maior parte da entrevista; ríspido e lacônico o tempo todo (8) Hostil;não cooperativo; entrevista impossível (X) Não avaliado

6.Fala (Velocidade e quantidade) Este item compreende a velocidade e a quantidade do discurso verbal apresentado pelo paciente. Inclui sua capacidade de percebê-lo e controlá-lo, por exemplo, diante de solicitações para que permaneça em silêncio ou permita que o entrevistador fale.

(0) Sem aumento (2) Percebe-se mais falante do que o (2) seu habitual (4) Aumento da velocidade ou quantidade da fala em alguns momentos; verborréico, às vezes (com solicitação, consegue-se interromper a fala) (6) Quantidade e velocidade constantemente aumentadas;dificuldade para ser interrompido (não atende a solicitações; fala junto com o entrevistador) (8) Fala pressionada, ininterruptível, contínua (ignora a solicitação do entrevistador) (X) Não avaliado

7.Linguagem – Distúrbio do pensamento Este item refere-se a alterações da forma do pensamento, avaliada pelas construções verbais emitidas pelo paciente. O pensamento pode pode estar mais ou menos desorganizado, de acordo com a gravidade das alterações formais do pensamento, descritas a seguir: • Circunstancialidade: fala indireta que demora a atingir o ponto desejado, mas eventualmente vai desde o ponto de origem até o objetivo final, a despeito superinclusão de detalhes e observações irrelevantes; • Tangencialidade: incapacidade para manter associações do pensamento dirigidas ao objetivo – o paciente nunca chega do ponto inicial ao objetivo final desejado; • Fuga de idéias: verbalizações rápidas e contínuas, ou jogos de palavras que produzem uma constante mudança de uma idéia para a outra; as idéias tendem a estar conectadas e, mesmo em formas menos graves, podem ser difíceis de ser acompanhadas pelo ouvinte; • Ecolalia consonante: repetição automática de palavras ou frases , com entonação e forma que produzem efeito sonoro de rima; • Incoerência: fala ou pensamento essencialmente incomprensíveis aos outros, porque as palavras ou frases são reunidas sem

(0) Sem alterações (1) Circunstancial; pensamentos rápidos (2) Perde objetivos do pensamento; muda de assunto frequentemente; pensamentos muito acelerados (3) Fuga de idéias; tangencialidade; dificuldade para acompanhar o pensamento; ecolalia consonante (4) Incoerência; comunicação impossível (X) Não avaliado

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uma conexão com lógica ou significado, podendo chegar à incoerência gramatical e à salada de palavras.

8.Conteúdo Este item compreende idéias e crenças apresentadas pelo paciente, variando de acordo com a intensidade, de idéias novas e/ou incomuns ao paciente, ideação supervalorizada (ou seja, crença falsa, intensamente arraigada, porém susceptível à arguementação racional), a delírios (crenças falsas , baseadas em inferências incorretas sobre a realidade, inconsistentes com a inteligência e antecedentes culturais do paciente, e que não podem ser corrigidas pela argumentação). Conteúdos comumente encontrados no paciente maníaco incluem: (1) idéias místicas, de conteúdo religioso, referindo-se à atuação de entidades sobre o paciente, outras pessoas ou fatos; (2) idéias paranóides, i.e, crença de estar sendo molestado, enganado ou perseguido; (3) idéias de grandeza, i.e, concepção exagerada da própria importância, poder ou identidade, incluindo posses materiais, qualidades incomuns e relacionamentos especiais com personalidades famosas ou entidades místicas; (4) idéias de referência, i.e, crença de que o comportamento dos outros tem relação consigo próprio ou de que eventos, objetos ou outras pessoas possuem um significado particular e incomun para si – p. ex. , frequentemente acredita que os outros estão falando de si.

(0) Normal (2) novos interesses e planos compatíveis com a condição sociocultural do paciente, mas questionáveis (4) Projetos especiais totalmente incompatíveis com a condição socioeconômica do paciente; hiper-religioso (6) Idéias supervalorizadas (8) Delírios (X) Não avaliado

9.Comportamento disruptivo agressivo Este item compreende a atitude e as respostas do paciente ao entrevistador e à situação da entrevista. O paciente pode apresentar-se desconfiado ou irônico e sarcástico, mas ainda assim respondendo aos questionamentos , ou então não cooperativo e francamente agressivo, inviabilizando a entrevista.

(0) Ausente, cooperativo (2)Sarcástico; barulhento, às vezes; desconfiado (4) Ameaça o entrevistador, gritando; entervista dificultada (6) Agressivo; destrutivo; entrevista impossível (X) Não avaliado

10.Aparência Este item compreende a apresentação física do paciente, incluindo aspectos de higiene, asseio e modo de vestir-se.

(0) Arrumado e vestido apropriadamente (1) Descuidado minimamente; adornos ou roupas minimamente inadequados ou exagerados (2) Precariamente asseado; despenteado moderamente; vestido com exagero (3) Desgrenhado; vestido parcialmente; maquiagem extravagante (4) Completamente descuidado; com muitos adornos e adereços; roupas bizarras (X) Não avaliado

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11.Insight (discernimento) Este item refere-se ao grau de consciência e compreensão do paciente quanto ao fato de estar doente. Varia tanto de um entendimento adequado (afetivo e intelectual) quanto à presença da doença, passando por concordância apenas diante de argumentação, chegando a uma negação total de sua enfermidade, referindo estar, em seu comportamento, normal e não necessitando de qualquer tratamento.

(0) Insight presente: espontaneamente refere estar doente e concorda com a necessidade de tratamento (1) Insight duvidoso: com argumentação, admite possível doença e necessidade de tratamento (2) Insight prejudicado: espontaneamente admite alteração comportamental, mas não a relaciona com a doença, ou discorda da necessidade de tratamento (3) Insight ausente: com argumentação, admite de forma vaga alteração comportamental, mas não a relaciona com a doença e discorda da necessidade de tratamento (4) Insight ausente: nega a doença, qualquer alteração comportamental e necessidade de tratamento (X) Não avaliado

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Anexo IV B

Inventário de depressão de Beck (BDI)

Este questionário consiste em 21 grupos de afirmações. Depois de ler cuidadosamente cada grupo, faça um círculo em torno do número (0, 1, 2 ou 3) diante da afirmação, em cada grupo, que descreve melhor a maneira como você tem se sentido nesta semana, incluindo hoje. Se várias afirmações num grupo parecerem se aplicar igualmente bem, faça um círculo em cada uma. Tome o cuidado de ler todas as afirmações, em cada grupo, antes de fazer a sua escolha. 1. 0 Não me sinto triste. 1 Eu me sinto triste. 2 Estou sempre triste e não consigo sair disso. 3 Estou tão triste ou infeliz que não consigo suportar. 2. 0 Não estou especialmente desanimado quanto ao futuro. 1 Eu me sinto desanimado quanto ao futuro. 2 Acho que nada tenho a esperar. 3 Acho o futuro sem esperança e tenho a impressão de que as coisas não podem melhorar. 3. 0 Não me sinto um fracasso. 1 Acho que fracassei mais do que uma pessoa comum. 2 Quando olho para trás, na minha vida, tudo o que posso ver é um monte de fracassos. 3 Acho que, como pessoa, sou um completo fracasso. 4. 0 Tenho tanto prazer em tudo como antes. 1 Não sinto mais prazer nas coisas como antes. 2 Não encontro um prazer real em mais nada. 3 Estou insatisfeito ou aborrecido com tudo. 5. 0 Não me sinto especialmente culpado. 1 Eu me sinto culpado às vezes. 2 Eu me sinto culpado na maior parte do tempo. 3 Eu me sinto sempre culpado. 6. 0 Não acho que esteja sendo punido. 1 Acho que posso ser punido. 2 Creio que vou ser punido. 3 Acho que estou sendo punido. 7. 0 Não me sinto decepcionado comigo mesmo. 1 Estou decepcionado comigo mesmo. 2 Estou enojado de mim. 3 Eu me odeio. 8. 0 Não me sinto de qualquer modo pior que os outros. 1 Sou crítico em relação a mim devido a minhas fraquezas ou meus erros. 2 Eu me culpo sempre por minhas falhas. 3 Eu me culpo por tudo de mal que acontece.

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9. 0 Não tenho quaisquer idéias de me matar. 1 Tenho idéias de me matar, mas não as executaria. 2 Gostaria de me matar. 3 Eu me mataria se tivesse oportunidade. 10. 0 Não choro mais que o habitual. 1 Choro mais agora do que costumava. 2 Agora, choro o tempo todo. 3 Costumava ser capaz de chorar, mas agora não consigo mesmo que o queira. 11. 0 Não sou mais irritado agora do que já fui. 1 Fico molestado ou irritado mais facilmente do que costumava. 2 Atualmente me sinto irritado o tempo todo. 3 Absolutamente não me irrito com as coisas que costumavam irritar-me. 12. 0 Não perdi o interesse nas outras pessoas. 1 Interesso-me menos do que costumava pelas outras pessoas. 2 Perdi a maior parte do meu interesse nas outras pessoas. 3 Perdi todo o meu interesse nas outras pessoas. 13. 0 Tomo decisões mais ou menos tão bem como em outra época. 1 Adio minhas decisões mais do que costumava. 2 Tenho maior dificuldade em tomar decisões do que antes. 3 Não consigo mais tomar decisões. 14. 0 Não sinto que minha aparência seja pior do que costumava ser. 1 Preocupo-me por estar parecendo velho ou sem atrativos. 2 Sinto que há mudanças permanentes em minha aparência que me fazem parecer sem atrativos. 3 Considero-me feio. 15. 0 Posso trabalhar mais ou menos tão bem quanto antes. 1 Preciso de um esforço extra para começar qualquer coisa. 2 Tenho de me esforçar muito até fazer qualquer coisa. 3 Não consigo fazer nenhum trabalho. 16. 0 Durmo tão bem quanto de hábito. 1 Não durmo tão bem quanto costumava. 2 Acordo uma ou duas horas mais cedo do que de hábito e tenho dificuldade para voltar a dormir. 3 Acordo várias horas mais cedo do que costumava e tenho dificuldade para voltar a dormir. 17. 0 Não fico mais cansado que de hábito. 1 Fico cansado com mais facilidade do que costumava. 2 Sinto-me cansado ao fazer quase qualquer coisa. 3 Estou cansado demais para fazer qualquer coisa. 18. 0 Meu apetite não está pior do que de hábito. 1 Meu apetite não é tão bom quanto costumava ser. 2 Meu apetite está muito pior agora. 3 Não tenho mais nenhum apetite.

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19. 0 Não perdi muito peso, se é que perdi algum ultimamente. 1 Perdi mais de 2,5 Kg. 2 Perdi mais de 5,0 Kg. 3 Perdi mais de 7,5 Kg. Estou deliberadamente tentando perder peso, comendo menos: SIM ( ) NÃO ( ) 20. 0 Não me preocupo mais que o de hábito com minha saúde. 1 Preocupo-me com problemas físicos como dores e aflições ou perturbações no estômago ou prisão de ventre. 2 Estou muito preocupado com problemas físicos e é difícil pensar em outra coisa que não isso. 3 Estou tão preocupado com meus problemas físicos que não consigo pensar em outra coisa. 21. 0 Não tenho observado qualquer mudança recente em meu interesse sexual. 1 Estou menos interessado por sexo que costumava. 2 Estou bem menos interessado em sexo atualmente. 3 Perdi completamente o interesse por sexo.

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