Antologia Do Pensamento Mundial - Nádia Santos E Yolanda Lhullier Dos Santos.pdf

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DA UTJEBATTJRA

MUNDIAL

iOGIA

ICNSAMENTO

MUNDIAL

W GOS

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO MUNDIAL

ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO MUNDIAL VOLUME V

Esta coleção foi selecionada por NÁDIA SANTOS e YOLANDA LHULLIER SANTOS

* *

L iv r a r ia

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E d it ô r a

LOGOS

L tda.

Rua 15 de Novembro, 137 — 8.° andar Telefone:

35-6080 — SÃO P A U L O

7." edição em agôsto de 1960

TODOS

OS

D IR E IT O S

R E S E R V A D O S

ÍNDICE PAUL DE SAINT-VICTOR Átila ............................................................................. PENSAMENTOS DE PITÁGORAS ............................................. PALAVRAS DE JESUS CRISTO Segundo o Evangelho de São Mateus .......................... Segundo o Evangelho de São Marcos .......................... Segundo o Evangelho de São Lucas ............................ Segundo o Evangelho de São João ......... PALAVRAS DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS ...................... Cântico do Irmão Sol .................................................... RUDYARD KIPLING Se ................................................................................ FRIEDRICH NETZSCHE Cantos de “ Assim Falava Zaratustra” ........................... NOTURNO ................................................................... OS SETE SELOS (ou: A Canção do Sim e do Amém) ......... FRIEDRICH NIETZSCHE Pensamentos de Nietzsche ........................ . Pensamentos de Nietzsche Sôbre a Mulher .................... PAUL DE SAINT-VICTOR Carlos X II .................................................................... PENSAMENTOS DE AM IEL f ................................................ TERRA .................................................................................... PAU L DE SAINT-VICTOR Benvenuto Cellini ........................ O ESPIRITO ........................................................................... OS VERDADEIROS OBJETOS DO SABER ........................... GERMINAL ............................................................................. DOSTOIEVSKI O Grande Inquisidor .................................................... W ALT W HITMAN Canto da Estrada Real .................................................. POEMAS DE GIBRAN ........................................................... O POETA ................................................................................ POEMAS DE OMAR A L KH AYAM .......................................

9 15 21 34 38 52 70 74 76 78 79 81 85 88 95 99 104 131 141 142 144 146 156 166 167 170

RUI BARBOSA Credo P o lític o ................................................................. A Lei de Caim ............................................................. 0 J ô g o ........................................................................... PAUL DE SAINT-VICTOR Gil Blas .......................................................................... PENSAMENTOS ETERNO ...................................................... EÇADE QUEIROZ Carta de Fradique Mendes ao sr. E. Mollinet . . . . . . . . . . SABEDORIA DOS SÉCULOS (O Homem e a Mulher) ........... EÇA DE QUEIROZ Trecho da Lenda de S. Cristóvão ..................... PENSAMENTOS DE SHAKESPEARE A Noite — Existência .................................................. NOBRE E VULGAR ............................................................... DIVINDADE DO HOMEM ...................................................... O CÉU E A T E R R A ................................................................. DO CONHECIMENTO DO HOMEM E DA N A T U R E Z A CRER ...................................................................................... 0 0 LIVRO H IA LUN ............................................................. DAS C IÊ N C IA S ........................................................................ PERSONALIDADE .................................................................. TEMPO E ETERNIDADE ...................................................... PENSAMENTOS ESCOLHIDOS ............................................... DA MULHER ........................................................................... MORTE ................................................................................... 0 SUBLIME E A BELEZA .................................................... A PORTA DA REVELAÇÃO .................................................. A LEI DO GRANDE ESTUDO ............................................... O FILÓSOFO ........................................................................... GOVERNANTES E POVO ...................................................... A AVAREZA ...........................................................................

172 173 174 177 183 192 197 209 215 217 219 220 222 224 226 228 230 232 234 236 237 240 243 245 247 249 250

Paul de Saint-Victor

Á T I L A (Trad. de Mário Ferreira dos Santos)

Não uma história, mas uma epopéia em língua bárbara é que Átila mereceria. Pasmou até o século quinto, tão acostu­ mado aos assombros. Acreditar-se-ia que se precipitara sobre a terra o quarto Cavaleiro do Apocalipse. "E eis o corcel branco; e chamavam Morte àquele que o montava; era seguido pelo Inferno e lhe foi dado o poder sobre quatro partes da terra, para matar os homens pela espada, pela fome, pela mortalidade, pelos animais ferozes.” Quem, na verdade, não teria visto, no exército de Átila, o Inferno a escoltar a Morte? Os Hunos amedrontavam os Bárbaros; ao lado dêles, os Vândalos pareciam soldados de Atenas. Contavam os godos que um dos seus deuses havia desterrado, para os confins da Cítia, feiticeiras que aí haviam encontrado os demônios errantes das estepes. Ba conjunção nascera a horrível raça dos Hunos: — "Espécie de homem ge­ rada dos pântanos, — diz Journadès, — pequena, franzina, de aspecto terrível, que de humano possuía apenas a palavra” . Amiano Marcelino debuxa-os como Plínio em sua História Universal descreveu os animais ferozes. É com horror que fala de seus corpos de membros grossos, da dimensão mons­ truosa de suas cabeças, das narinas dilatadas, das faces criva­ das de cicatrizes para impedir a barba de crescer. "Diríeis animais com dois pés, ou essas figuras de madeira grosseira­ mente talhadas, que decoram os parapeitos das pontes” . Estas tribos humanas tinham os costumes das alcatéias de lobos errantes nos bosques. Não habitavam nem casas nem cabanas, qualquer recinto de muralhas lhes parecia um sepul­ cro. Os gauleses apenas temiam que o céu desabasse sobre suas cabeças: os hunos só conheciam um mêdo, que os tetos caíssem sobre êles. Assim como os animais, o uso do fogo era-lhes quase desconhecido. Alimentavam-se de raízes e de carne crua amassada sob a sela. Traziam por roupa uma tú­ nica de pano escuro e um casaco de peles de ratos selvagens.

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

Nunca mudavam essa túnica, que apodrecia sobre seus corpos e por si mesma os abandonava como a queda do pêlo dos ani­ mais no tempo da muda. A existência dêles era totalmente eqüestre: pareciam cravados ao dorso de seus cavalos, feios e infatigáveis como êles. A í comiam, aí dormiam, aí celebra­ vam seus conselhos. A própria morte não desunia aquêles grosseiros centauros: os hunos enterravam o cavaleiro com a montaria. Não foi conhecido nenhum de seus deuses: apenas os tímbalos mágicos das feiticeiras despertavam em seus crânios espessos alguma vaga idéia do sobrenatural. Era a guerra seu elemento e existência; viviam somente de pilhagens; era a exterminação o seu trabalho; iam para a carnificina como para a colheita. Sua crueldade inteiramente bestial somente se sa­ ciava com a destruição: após terem despojado os ramos, cor­ tavam a árvore, incendiavam a cidade após havê-la saqueado. Em pleno século quarto, essa tribo feroz, até então mal divisada no horizonte da Ásia, introduz-se no mundo bárbaro. À sua passagem, reuniram-se todas as tribos eslavas, todas as populações teutônicas, todos os nômades da Tartária. A bola de neve tornou-se avalancha, a barbárie fêz-se nação. Atingiu a maturidade com Átila, e surgiu às margens do Danúbio ante a Europa consternada. Estranha figura a dêsse Calibã da guerra! Amalgama a ferocidade dos brutos aos vícios dos déspotas; é cruel como um chefe selvagem, e corrupto como um velho sultão; tem a violência mongol e a perfídia bizantina; nêle se aliam o ogro e o diplomata. Não é somente pelo mêdo, é pela astúcia que êle ataca os dois Baixos-Impérios do Oriente e do Ocidente. O tigre faz-se de gato para brincar com os débeis césares que reinam na aparência sobre o mundo. Explora-os, injuria-os, engana-os, adula-os, assusta-os, fatiga-os com embaixadas e ne­ gociações irrisórias; pede-lhes o impossível, espada à garganta, e o impossível lhe é dado. Roma e Constantinopla esgotam-se para satisfazer os caprichos dêsse monstruoso filho mimado da força. Um dia, intimou o imperador Teodósio a entregar-lhe uma rica herdeira, cobiçada por um de seus soldados: a jovem, espavorida, fugiu, e Teodósio, sob pena de invasão, foi constrangido a substituí-la. Outra vez, reclamou a Valentiniano os cálices salvos por um bispo da pilhagem de Sirmium: o imperador respondeu que não podia, sem sacrilégio, entregar-lhe aquêles vasos consagrados: ofereceu pagar-lhe duas vêzes seu valor: — "Meus vasos ou a guerra” — a resposta de Átila.

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M UNDIAL

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Do fundo de seu palácio de madeira, habitado por seu serralho inculto e pela multidão de filhos, êsse cão Camulco aterrorizava o mundo. Como suplicantes, os embaixadores do império aproximavam-se da tenda real; vagueavam demoradamente antes de serem introduzidos no recinto de planchas e paliçadas. Ante Átila, encontravam-se em face de um homem atarracado, nariz chato, imberbe, quase negro, cujos olhos flamejavam de cólera. Priscus, que tomou parte na embaixada enviada por Teodósio ao rei bárbaro, transmitiu-nos o quadro dessa corte fa ­ bulosa. Mostra-nos Átila entrando solenemente em sua capital sob os véus brancos que traziam as virgens. Quando passa ante a casa de seu ministro Onegésio, uma mulher sai, cercada de suas servas que, trazem pratos de carne e uma taça de vinho. Aproxima-se dêle e pede-lhe para provar o alimento que ela preparou. Com um gesto, Átila consente; então, quatro ho­ mens elevam à altura do cavalo uma mesa de prata, e sem desmontar-se, o rei bebe e come. Alguns dias depois, Átila convidou a embaixada para um grande banquete. Os romanos entraram numa sala mobiliada de bancos e de pequenas mesas. No meio, elevava-se um estra­ do e sobre êste a mesa real e o leito onde Átila estava deitado. Aos seus pés. Ellak, o mais velho de seus filhos, em atitude de escravo, silencioso e de olhos baixos. Serviam os convivas em pratos de prata, verteram o hidromel em copos de ouro: mas Átila bebia num copo e comia em pratos de madeira. Em meio do festim, dois bardos levantaram-se e cantaram em lín­ gua húnica as vitórias do rei. O hino exaltou o auditório; um entusiasmo frenético apossoú-se dos Bárbaros, gritos elevaram-se de seus* peitos, lágrimas jorraram de seus olhos; os sem­ blantes assumiram a expressão furiosa do ataque e da defesa; a sala assemelhava-se a um acampamento em pé de guerra. A seguir, entrou um bufão, e suas contorsões provocaram gran­ des gargalhadas. Mas, em meio do tumulto, Átila permanecia imóvel. Presidia em silêncio à ruidosa orgia. Somente quan­ do Ermak, o mais jovem de seus filhos, entrou na sala, um brilho de alegria iluminou-lhe o rosto sombrio; os olhos se amansaram, e, com um gesto amoroso, conduziu a criança para si, acariciando-lhe a face. Contudo, Átila respondia finalmente ao embaixador dos Césares. Dois mensageiros hunos se apresentavam no mesmo dia, ante os imperadores Teodósio e Valentiniano. Estavam encarregados de dizer a um e outro:

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

-— Átila, meu senhor e teu, ordena-te preparar-lhe o pa­ lácio, pois virá! Realmente, êle chegou nesse terrível ano de 451, predito pelos cometas, pelos eclipses da lua, pelas nuvens de sangue em meio das quais se esbatiam fantasmas de lanças flamejan­ tes. Nunca o mundo estêve tão próximo de seu fim. Não era uma invasão, era um dilúvio. Hunos, alamanos, gelões, ostrogodos, gépidos, ávaros, búlgaros, turcos, húngaros, a totalida­ de da Barbárie ondulava em torno de Átila. A multidão inteira dos animais insurgidos contra o homem, e reunindo-se ao re­ dor de um monstro dotado de vontade e de inteligência, difi­ cilmente daria a idéia do perigo que correu a civilização nessa data sombria. Em alguns dias, as duas Germânias e a Gália desapareciam sob turbilhões de cavalos e cavaleiros. As po­ pulações fugiram em debandada ante a tempestade humana que pilhava, esmagava, chacinava, devastava, saqueava e ter­ minava pela chama a obra iniciada pela espada. De todas as partes, ouvia-se apenas o estrépito das cidades que caíam e o estertor dos povos degolados. O sangue jorrava e transfor­ mava-se em torrentes; esvaziavam-se cidades, abarrotavam-se florestas; a terra cultivada desaparecia sob o nível da destrui­ ção. Dir-se-ia que, do fundo da Ásia, os Hunos trouxeram o deserto, e que o desenrolaram como um lençol sobre o mundo antigo. Átila metamorfoseava-se em meio da tempestade que desencadeara; surgia aos clarões das cidades incendiadas, sob a forma de um animal quimérico. Emprestavam-lhe algumas crônicas uma cabeça de burro; outras, focinho de porco; aque­ las privavam-no da palavra e faziam-lhe proferir apenas resmungos surdos. A tradição consagrada via nêle um açoite bí­ blico, um Flagelo que pulverizava nações, e que a mão de Deus sacudia por entre as nuvens. Êle próprio aceitou êste cognome sinistro. A lenda relata que Átila, ao ouvir um eremita chamá-lo "o Flagelo de Deus” , saltou sobre êle num acesso de alegria infernal: — " A estrêla cai, exclamou, a terra trem e; eu sou o Malho que castiga o mundo!” Stella cadit, tellus frem it, en ego Malleus orbis! É com êste nome que os bispos o interpelavam, em pé, à sua passagem, mitra à cabeça e o báculo na mão, às portas das cidades. Havia respeito nas apóstrofes que lhe lançavam: os homens do Evangelho saudavam, ao exorcizá-lo, o Dragão do Apocalipse.

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M UNDIAL

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— Quem és tu? — perguntou São Lobo, do alto das mu­ ralhas de Tróia. — Quem és tu, que dispersas os povos como a palha, e despedaças as coroas sob o casco de teu cavalo? — Sou Átila, Flagelo de Deus! — Ó!, responde o bispo, sê bem-vindo, Flagelo do Deus, de quem sou servidor. Não serei eu quem te deterá. E descendo com seu clero, abriu de par a par as portas, tomou pela rédea o cavalo do rei dos Hunos, e o introduziu na cidade. — Entra, Flagelo de meu Deus, e vai até onde te impulsa o seu braço. Átila entrou, com o exército, mas um véu sobrenatural envolveu a cidade: uma miragem a afastou dos olhos dos bár­ baros: êles a atravessaram, julgando percorrer uma vasta campina. Talvez assim sucedesse ao mundo ocidental se, nos cam­ pos da Catalunha, Aécio não tivesse vencido Átila. Batalha gigantesca, cujas proporções desconcertam. Duzentos mil mor­ tos; o sangue, em catadupas, escorria no leito de um regato, transformando-o em rio; Átila entrincheirado atrás de seus carros, volvia-se, ébrio de raiva, ao redor de uma pilha de selas em chama, na qual se atiraria, se o inimigo invadisse seu cam­ po! Dir-se-ia uma gigantomaquia do Eda. Aécio ultrapassou Mário e atingiu César nesta luta épica; a glória, contudo, mal ilumina seu nome de um brilho duvidoso. Na verdade, é in­ justa a história em não erguer altares àqueles heróis da última hora, Próbus, Póstumo, Stílcon, Aécio, que tão magnânimamente sustentaram o embate dos Bárbaros e forçaram, como Josué, o sol da civilização romana, a retardar seu crepúsculo sangrento. Mas era peculiar à Barbárie fazer a noite à sua volta: homens e coisas se entenebreciam à sua aproximação; tornava-se bárbara a civilização ao combatê-la; a Chaga das Trevas abatia-se igualmente sobre vencidos e vencedores. As próprias vitórias obtidas sobre elas não subjugam a imagina­ ção: os clarins emitiam gritos roucos, os lauréis eram espi­ nhosos como sarças. Apenas sobraram vestígios de uma ca­ çada aos lobos na espeàsura das florestas. Repelido das Gálias, o homem da prêsa derramou-se sobre a Itália que êle exterminou. Queimavam-se as cidades, caíam os homens aos montes, os povos fugiam até ao mar, para esca­ par-lhe. O horror não se alterava através daquela atroz histó­ ria : aquêle sangue, que caía como a chuva, era, afinal, fatigante como ela. A carreira de Átila tinha a monotonia do Inferno.

ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

Finalmente, voltou à sua aldeia, farto de carnificina e carregado dos despojos do mundo. A í morreu a morte de Holofernes, em seu leito de núpcias, degolado pela Judite ger­ mânica. Seu exército urrou ao redor de sua tenda fúnebre como a matilha junto ao corpo do caçador que a fartava de carniça. Mataram os escravos que abriram o túmulo. O pró­ prio cadáver de Átila não se eleva a uma verdadeira grandeza. Existem apenas gritos, em sua celebridade; seu nome ressoa vazio de sentido; sua história cinge-se à história natural dos flagelos físicos. Não é mais humano que um tremor de terra, que a erupção de um vulcão, que o tufão dos mares da China. O poder de destruir, que manifestou, tem algo de inconsciente e de mecânico. Foi demasiadamente fatal para ser odioso, de­ masiadamente impessoal para ser culpável. A história nem sequer se digna acusá-lo: era a impronúncia de toda responsa­ bilidade e de toda afronta; reenvia-o à Natuzera, da qual foi somente um dos agentes destrutivos. Acusá-lo e condená-lo seria imitar Xerxes vergastando um elemento em fúria. O assassínio de Clito desonra mais a Alexandre que o sangue de um mundo despovoado a Átila; mas também o menor combate grego, inspirado pela virtude cívica e pelo heroísmo, sobrepassa todas as conquistas do Bárbaro. O soldado de Maratona ao agitar a palma, é maior que Átila ao receber os reis e os patrícios do dorso de seu cavalo descarnado, cujo galope ressequia a terra. Também, não é na história, que o relega entre os fósseis de seus períodos caóticos, é na lenda que Átila assume sua ver­ dadeira existência. Cada povo se apodera dessa figura brutal e a modela segundo seus instintos. A Itália a degrada, a A le­ manha a idealiza. Enquanto a tradição latina transmuda Átila em espectro ou em monstro, os poemas germânicos transfor­ mam-no num rei condescendente e neutro, que preside aos acon­ tecimentos sem nêles se intrometer demais, como o Agamenon da Ilíada e o Carlos Magno da Távola Redonda. Transforma­ ção imprevista! O ogro faz-se patriarca; o assassino do mun­ do torna-se o majestoso juiz de paz das lutas dos Nibelungos. Mais arrojadamente ainda, a Hungria trata com um res­ peito filial o selvagem antepassado de sua raça. O Átila das lendas magiares é santo como Davi, sábio como Salomão, mag­ nífico como Harum-al-Raschid. Não é mais o papa Leão que o detém às margens do Tibre, é Jesus, descido dos céus, que discute diretamente com êle, e que promete à sua posteridade a coroa da Hungria, para explicação de Roma.

PE N SA M E N TO S DE PITÁG O RAS

A té à escravidão nos habitua o hábito. H ç ifc H c A harmonia social, comparada à música, é um concêrto de muitos discordantes. $ $ $ Caminha ao lado da multidão, mas não no centro dela e muito menos na frente. *

sje



Educai as crianças, e não será preciso punir os homens. $ $ $ Os mais terríveis monstros não estão na Á frica; estão nos países em guerra. í * * O homem é mortal pelósseus temores e imortal pelos seus desejos. * * * Não procures brilhar pelos teus gastos desmedidos, como se ignorasses o que é bom e conveniente. Nem tampouco te gabes de poupar excessivamente. Nada é preferível à justa medida, necessária em todas as coisas. * * * Sêde amigos da verdade até ao m artírio; não apóstolos até à intolerância. * * * Aquilo que possas fazer sozinho, nunca deixes que te aju­ dem a fazê-lo. * * * A alma é um acorde; a dissonância, a sua enfermidade. $ $ * O interêsse fala em todos os idiomas e desempenha toda a espécie de papéis, até a do desinterêsse. $ $- ♦

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

Evita discutir com teus amigos por pequenas faltas. * * * A felicidade que devemos a nosso amigo é uma coisa sa­ grada, que não permite a mais léve ironia. * * * Se queres viver muito, guarda um pouco de vinho velho e um velho amigo. * * * Não te lisonjeies de ser amado pela mulher a quem ames demasiado. * * * O jnenino que tiraniza os animais, tiranizará sua família e a sua pátria. * * * Ajuda teus semelhantes a levantar sua carga, mas não a carregues. * * * Não ajudes os homens reduzindo a carga, mas sim aumen­ tando-a. ♦ * * Não abandones teus olhos à doçura do sono antes de haveres examinado por três vêzes as ações do dia. Que falta cometeste? Que fizeste? A que obrigações faltaste? Come­ ça pela primeira de tuas ações e percorre-as até ao fim. Joga em tua face o mal que fizeste e goza com o bem que praticaste. * * * Resolve seguir a melhor conduta, e, pelo costume, te deleitarás nela. ♦ * * Não comeces nada de que possas te arrepender; guarda-te de empreender o que não sabes executar; e começa por te ins­ truir no que deves saber; dêste modo, terás uma vida deliciosa. * * * Marcha com pé direito para os teus deveres, com o pé es­ querdo para teus prazeres. ♦ * * Consulta bem antes de fazer alguma coisa, e teme a pre­ cipitação que mais tarde pode te trazer a vergonha; dizer e fazer parvoíces é o patrimônio do néscio. *

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ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M UNDIAL

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Cultiva assiduamente a ciência dos números, porque nossos crimes não são mais que erros de cálculos. * * * O defeito é um monstro que não procria. * * * Em estado de dúvida, suspende o juízo. * * * Raras vêzes dá frutos amargos uma educação doce. * * * Evita fazer aquilo que possa atrair a inveja. * * * Não fales de tua sorte a um homem mais desgraçado do que tu. * * * A filosofia é uma vontade de sabedoria divina, o anelo de se assemelhar a Deus enquanto é possível ao homem. *

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O sábio deve contentar-se com o nome de filósofo (amante do saber). * * * A fortuna sente prazer em se deixar possuir, em trocar, em escapar. Experimentas reveses que o destino faz os mor­ tais sofrer? Sabe suportá-los com paciência, não te indignes contra a sorte. É permitido buscar meios de reparar nossas desgraças; mas persuade-te de que a fortuna não envia aos mortais virtuosos males que lhes superem as forças. * * * Entre dois homens de forças iguais, o mais forte é o que tem razão. * * * Nada mais fácil do que pronunciar, numa conversa, os monossílabos sim e não. Entretanto, não há palavras que mais mereçam pensar-se nelas antes de pronunciá-las. * * * O que fala, semeia, o que escuta, recolhe. * * * Se sofres injustiças, consola-te, porque a verdadeira des­ graça é cometê-las. *

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

Assim como não gostas do vinho que fermenta, não jul­ gues um homem que está colérico. * * * Duas espécies de lágrimas têm os olhos da mulher: da verdadeira dor e do despeito. * * * Economiza as lágrimas de teus filhos, a fim de que pos­ sam com elas regar teu túmulo. Sfc * * O fio da vida se afrouxaria, se não estivesse regado com algumas lágrimas. *

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*

O legislador deve ser o eco da razão, e o magistrado o eco da lei. $ * * Que tua mesa seja sã e que o luxo nela não apareça. $ * $ Busca remédios para os males de que sofres, e tua alma recuperará a saúde. * H* * Tudo está perdido, quando os malvados servem de exemplo e os bons de mofa. $ $ * Não te cases com mulher rica, porque teus filhos seriam inimigos natos do trabalho. * * * Reserva algumas graças, encantos ou virtudes, cuja des­ coberta possa causar ao teu marido uma surprêsa agradável. H 5 H* H * Se proferiste algumas expressões amargas contra o teu marido, lava tua boca com lágrimas. * * * "Moça, vai correndo ao altar do Himeneu, se tocaste, ainda que levemente, o arco abrasador do amor. * * Não aspires a dominar demasiadamente o teu marido, contenta-te em ter uma doce influência sobre seu coração. Repara naquela pacífica claridade que luz nos Campos Elísios. *

*

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ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M UND IAL

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Mulher de govêrno, não imites a cigarra, que faz muito ^uído e trabalha pouco. H: * * A mente que se ocupa demasiado de seu corpo torna sua prisão insuportável. $ * * Se te vês atacado pela mentira, tem paciência e suporta êste mal com mansidão. * * * Lembra-te sempre que todos os homens estão destinados à morte. * * * Na maioria dos casos, os homens têm culpa das faltas das mulheres. * * * Moça, poucas abelhas acharás fora de sua colmeia durante a noite, pois que tampouco te vejam fora da casa paterna toda a noite. í í Existe um mérito pessoal que sobrepuja uma mulher fo r­ mosa: é ser bela e modesta. * * * to.

Pensem o que quiserem de ti; faz aquilo que te parece jus­ Mantém-te indiferente ao elogio e ao vitupério. * * ♦ A opinião é a suprema- legisladora dos povos e dos reis. $ * *

Com ordem e com tempo encontra-se o segrêdo de fazer tudo e tudo fazer bem. * * * Quando a pátria fô r injusta contigo, faz como uma ma­ drasta: toma o partido do silêncio. * * * Os cães da margem do N ilo bebem correndo, com mêdo dos crocodilos; faz o mesmo com a taça dos prazeres. * * * Prova a taça do prazer,mas não a bebas até ao fim : em­ briaga, e é preciso vomitá-la. *

* *

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

- Mulher: usa de tuas graças de tal modo, que sempre fique uma por se descobrir. * * # A prudência é o olho de todas as virtudes. * * * O povo gosta de descansar a cabeça nos joelhos dos gover­ nadores; não lhes tireis esta doce almofada. * * * Seja a razão que te conduza em todas as coisas, até nas menores. * * * Não se deve abandonar o posto sem permissão d'Aquêle que manda: o posto do homem é a vida. * * * Os tiranos são déspotas em seu nome; os juizes, em nome da lei. * * * A sombra do louro embriaga ou adormece. * * * Nada perece, no Universo; tudo quanto nêle acontece não passa de meras transformações. * * * Os homens que sempre falam verdade, são os que mais se assemelham a Deus.

PALAVRAS

DE

JESUS

CRISTO

SEGUNDO 0 EVANGELHO DE SÃO MATEUS

(Trad. do Padre Antônio Pereira de Figueiredo)

c a p ít u l o

v

Bem-aventurados os pobres de espírito, porque dêles é o reino dos Céus. Bem-aventurados os mansos, porque êles pos­ suirão a terra. Bem-aventurados os que têm fome e sêde de justiça, porque êles serão fartos. Bem-aventurados os mise­ ricordiosos, porque êles alcançarão misericórdia. Bem-aventurados os limpos de coração, porque êles verão a Deus. Bemaventurados os pacíficos, porque êles serão chamados filhos de Deus. Bem-aventurados os que padecem perseguição por amor à justiça, porque dêles é o reino dos Céus. Bem-aventurados sois, quando vos injuriarem, e vos perseguirem, e dis­ serem todo o mal contra vós, mentindo, por meu respeito. Folgai e exultai, porque o vosso galardão é copioso nos Céus, pois assim também perseguiram os profetas que foram antes de vós. Vós sois o sal da terra.* E se o sal perder a sua força, com que outra coisa se há de salgar? Para nenhuma coisa mais fica servindo, senão para se lançar fora e ser pisado pelos homens. Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade que está situada sobre um monte. Nem os que acen­ dem uma luzerna a metem debaixo do alqueire, mas põem-na sobre o candeeiro, a fim de que ela dê luz a todos os que estão na casa. Assim luza a vossa luz diante dos homens. Que êles vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai, que está nos Céus. Não julgueis que vim destruir a lei ou os profetas. Não vim a destruí-los, mas sim a dar-lhes cumprimento. Por­ que em verdade vos afirmo que, enquanto não passar o Céu e a terra, não passará da lei um só i ou um só til, sem que tudo seja cumprido. Aquêle, pois, que quebrar um dêstes mínimos mandamentos e que ensinar assim aos homens, será chamado mui pequeno no reino dos Céus. Mas o que os guardar e en­

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

sinar a guardá-los, êsse será reputado grande no reino dos Céus, porque eu vos digo que, se a vossa justiça não for maior e mais perfeita do que a dos escribas e a dos fariseus, não entrareis no reino dos Céus. Ouvistes que foi dito aos antigos: não matarás; e quem matar será réu no Juízo ; pois eu digo-vos que todo o que ira contra seu irmão será réu no Juízo. E o que disser a seu irmão "Raca” será réu no conselho. E o que lhe disser "És um tolo” será réu do fogo do inferno. Portanto, se tu estás fazendo a tua oferta diante do altar e te lembras aí que teu irmão tem contra ti alguma coisa, deixa ali a tua oferta diante do altar e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão. E depois virás fazer a tua oferta. Concerta-te, sem demora, com o teu adversário, enquanto estás posto a ca­ minho com êle, para que não suceda que êle, adversário, te entregue ao juízo, e que o juiz te entregue ao seu ministro, e sejas mandado para a cadeia. Em verdade te digo que não sairás de lá até pagares o último ceitil. Ouviste que foi dito aos antigos: não adulterarás. Eu porém, digo-vos que todo o que olhar para uma mulher, cobiçando-a, já no seu coração adulterou com ela. E se o teu olho direito te serve de escân­ dalo, arranca-o e lança-o fora de ti, porque melhor te é que se perca um de teus membros do que todo o teu corpo seja lan­ çado no inferno. E se a tua mão direita te serve de escândalo, corta-a e lança-a fora de ti, porque melhor te é que se perca um. de teus membros do que todo o teu corpo vá para o inferno. Também foi dito: qualquer que se desquitar de sua mulher dê-lhe carta de repúdio. Mas eu digo-vos que todo o que repu­ diar a sua mulher, a não ser por causa de fornicação, a faz ser adúltera, e o que tomar a repudiada comete adultério. Igual­ mente ouviste que foi dito aos antigos: não jurarás falso, mas cumprirás ao Senhor os teus juramentos. Eu, porém, vos digo que absolutamente não jureis nem pelo Céu, porque é o trono de Deus, nem pela terra porque é o assento de seus pés, nem por Jerusalém, porque é a cidade do grande rei. Nem jurarás pela tua cabeça, pois não podes fazer que um cabelo teu seja branco ou negro. Mas seja o vosso falar sim sim, não não, porque tudo o que daqui passa procede do mal. Vós tendes ouvido o que se disse: olho por olho, e dente por dente. Eu, plorém, digo-vos que não resistais ao que vos fizer mal; mas se alguém te ferir na tua face direita oferece-lhe também a outra. E ao que quer demandar-te em juízo e tirar-te a tua túnica, larga-lhe também a capa. E se qualquer te obrigar a

ANTOLOGIÀ DO.PENSAMENTO M UNDIAL

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ir carregado mil passos, vai com êle ainda mais outros dois mil. Dá a quem te pede e não voltes as costas ao que deseja que lhe empreste. Tendes ouvido que fo i dito: amarás teu pró­ ximo e aborrecerás a teu inimigo. Mas eu vos digo: amai a vossos inimigos, fazei bem aos que vos têm ódio e orai pelos que vos perseguem e caluniam, por serdes filhos de vosso Pai que está nos Céus o qual faz nascer o seu sol sobre bons e maus e vir chuva sobre justos e injustos, porque se vós não amais senão os que vos amam que recompensa haveis de ter? Não fazem os publicanos também o mesmo? E se vós saudardes somente aos vossos irmãos, que fazeis nisso de especial? Não fazem também assim os gentios? Sêdes vós, logo, perfeitos, como também vosso Pai celestial é perfeito. CAPÍTULO

VI

Guardai-vos, não façais as vossas boas obras diante dos homens, com o fim de serdes vistos por êles; doutra sorte não tereis a recompensa da mão de vosso Pai, que está nos Céus. Quando, pois, dás a esmola, não faças tocar a trombeta diante de ti, como praticam os hipócritas nas Sinagogas e nas ruas para serem honrados dos homens. Em verdade vos digo que êles já receberam a sua recompensa. Mas quando dás a esmo­ la, não saiba a tua esquerda o que faz a tua direita, para que a tua esmola fique escondida; e teu Pai, que vê o que tu fazes em secreto, te pagará. E quando orais, não haveis de ser como os hipócritas que gostam de orar em pé nas Sinagogas e nos cantos das ruas, para serem vistos dos homens. Em verdade vos digo que êles já receberam a sua recompensa. Mas quando tu orares, entra no teu aposento e, fechada a porta, ora a teu Pai em secreto. E teu Pai, que vê o que passa em secreto, te dará a paga. E quando orardes não fales muito, como os gen­ tios, pois cuidam que pelo seu muito falar serão ouvidos. Não queirais, portanto, parecer-vos com êles, porque vosso Pai sabe o que vos é necessário, primeiro que vós lho peçais. Assim, pois, é que vós haveis de orar: Padre nosso que estais nos Céus, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade, assim na terra como no Céu. O pão nosso, necessário à nossa subsistência, nos dai hoje, perdoai as nossas dívidas, assim como nós também perdoamos aos nossos devedores, e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Amém. Porque se vós perdoardes aos homens as

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

ofensas que tendes dêles, também vosso Pai celestial vos per­ doará os vossos pecados. Mas, se não perdoardes aos homens, tampouco vosso Pai vos perdoará os vossos pecados. E, quan­ do jejuais, não vos ponhais tristes como os hipócritas, porque desfiguram os seus rostos, para fazer ver aos homens que jejuam. Na verdade vos digo que já receberam a sua recom­ pensa. Mas tu, quando jejuas, unge a tua cabeça e lava o teu rosto, a fim de que não pareça aos homens que jejuas, mas somente a teu Pai, que está presente a tudo o que há de mais secreto. E teu Pai, que vê o que se passa em secreto, te dará a paga. Não queirais entesourar para vós tesouros na terra, onde a ferrugem e a traça os consomem, e onde os ladrões os desenterram e roubam. Mas entesourai para vós tesouros no Céu, onde não os consome a ferrugem nem a traça, e onde os ladrões não os desenterram nem roubam, porque onde está o teu tesouro aí está também o teu coração. O teu olho é a luz do teu corpo. Se o teu olho fô r simples, todo o teu corpo será luminoso. Mas se o teu olho fô r mau, todo o teu corpo estará em trevas. Se, pois, a luz que em ti há são trevas, quão gran­ des não serão essas mesmas trevas? Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou há de aborrecer um e amar a outro, ou há de acomodar-se a êste a desprezar aquêle. Não podeis servir a Deus e às riquezas. Portanto, digo-vos, não andeis cuidadosos da vossa vida, que comereis, nem para o vosso cor­ po, que vestir eis. Não é mais a alma que a comida? E o corpo mais que o vestido? Olhai para as aves do Céu que não se­ meiam, nem segam, nem fazem provimentos nos celeiros. E contudo, vosso Pai celestial as sustenta. Porventura não sois vós muito mais do que elas? E qual de vós, discorrendo, pode acrescentar um côvado à sua estatura? E por que andais vós solícitos pelo vestido? Considerai como crescem os lírios docampo. Êles não trabalham nem fiam. Digo-vos, mais, que nem Salomão em toda a sua glória se cobriu jamais com um dêstes. Pois se ao feno do campo, que hoje é flor e amanhã é lançado ao forno, Deus veste assim, quanto mais a vós, ho­ mens de pouca fé? Não vos aflijais, pois, dizendo: que come­ remos, ou que beberemos, ou com que nos cobriremos? Porque os gentios é que se cansam por estas coisas. Portanto vosso Pai sabe que tendes necessidades de todas elas. Buscai, pois,, primeiramente, o reino de Deus e a sua justiça. E todas esta& coisas vos acrescentarão. E assim não andeis inquietos pelo* dia de amanhã, porque, o dia de amanhã a si mesmo trará seu. cuidado; ao dia basta a sua própria aflição.

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M UNDIAL

CAPÍTULO

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VII

Não queirais julgar, para que não sejais julgados, pois com o juízo com que julgardes sereis julgados, com a medida com que medirdes vos medirão também a vós. Por que vês tu, pois, a aresta no olho de teu irmão, e não vês a trave no teu olho? Ou, como dizes a teu irmão: deixa-me tirar-te do olho uma aresta, quando tu tens no teu uma trave? Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho e então verás como hás de tirar a aresta do olho de teu irmão. Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis aos porcos as vossas pérolas, para que não suceda que êles lhes ponham os pés em cima e, tornando-se contra vós, vos despedacem. Pedi e dar-se-vos-á. Buscai e achareis. Batei e abrir-se-vos-á, porque todo o que pede re­ cebe, e o que busca acha, e, a quem bate, abrir-se-á. Ou qual de vós, porventura, é o homem que, se seu filho lhe pedir pão, lhe dará uma pedra? Ou, porventura, se lhe pedir um peixe, lhe dará uma serpente? Pois se vós outros, sendo maus, sabeis dar boas dádivas a vossos filhos, quanto mais vosso Pai, que está nos Céus, dará bens aos que lhos pedirem! E assim tudo o que vós quereis que vos façam os homens, fazei-o também vós a êles. Porque esta é a lei dos profetas. Entrai pela porta estreita, porque larga é a porta e espaçoso o caminho que guia para a perdição, e muitos são os que entram por ela. Que es­ treita é a porta, e que apertado o caminho que guia para a vida, e que poucos são os que acertam com êles! Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós com vestidos de ovelhas, e den­ tro são lobos roubadores. Pelos seus frutos os conhecereis. Porventura os homens colhem uvas dos espinhos, ou figos dos abrolhos? Assim toda a árvore boa dá bons frutos e a má árvore dá maus frutos. Não pode a árvore boa dar maus fru ­ tos, nem a árvore má dar bons frutos. Toda a árvore que não dá fruto será cortada e metida no fogo. Assim, pois, pelos frutos dêles os conhecereis. Nem todo o que me diz: "Senhor” , entrará no reino dos Céus, mas sim o que faz a vontade de meu Pai, que está nos Céus, êsse entrará no reino dos Céus. Muitos me dirão, naquele dia: Senhor, Senhor, não é assim que profetizamos em teu nome, em teu nome expelimos os de­ mônios, e em teu nome obramos muitos prodígios? E eu, en­ tão, lhes direi em voz bem inteligível: pois eu nunca vos co­ nheci; apartai-vos de mim os que obrais a iniqüidade. Todo aquêle, pois, que ouve estas minhas palavras e as observa será comparado ao homem sábio, que edificou a sua casa sobre ro­

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ANTOLOGIA DA LITERATURA M UNDIAL

cha. E veio a chuva e transbordaram os rios, e assopraram os ventos, e combateram aquela casa, e ela não caiu, porque estava fundada sobre a rocha. E todo o que ouve estas pala­ vras e as não observa será comparado ao homem sem consi­ deração, que edificou a sua casa sobre areia. E veio a chuva, e transbordaram os rios, e assopraram os ventos e combateram aquela casa e ela caiu, e foi grande a sua ruína. A seara verdadeiramente é grande, mas os obreiros pou­ cos. Rogai, pois, ao senhor da seara que envie obreiros à sua seara. CAPÍTULO

X

Não ireis em caminho de gentios, nem entreis nas cidades dos samaritanos; mas ide antes às ovelhas, que pereceram da casa de Israel. E, pondo-vos a caminho, pregai dizendo que está próximo o reino dos Céus. Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, limpai os leprosos, expeli os demônios. Dai de gra­ ça o que de graça recebestes. Não possuais ouro, nem prata, nem tragais dinheiro nas vossas cintas, nem alforje para o caminho, nem duas túnicas, nem calçado, nem bordão, porque digno é o trabalhador do seu alimento. E em qualquer cidade ou aldeia em que entrardes, informai-vos de quem há nela digno. E ficai aí até que vos retireis. E, ao entrardes na casa, saudai-a, dizendo: paz seja nesta casa. E se aquela casa na realidade o merecer, virá sobre ela a vossa paz; e se o não merecer, tornará para vós a vossa paz. Sucedendo não vos querer alguém em casa, nem ouvir o que dizeis, ao sair para fora de casa ou da cidade, sacudi o pó de vossos pés. Em ver­ dade vos afirmo isto: menos rigor experimentará no dia do Juízo a terra de Sodoma e de Gomorra do que aquela cidade. Vêde que eu vos mando como ovelhas no meio de lobos. Sêde, logo, prudentes como as serpentes e simples como as pombas. Mas guardai-vos dos homens, porque êles vos farão compare­ cer nos seus juízos e vos farão açoitar nas suas sinagogas; e vós sereis levados, por meu respeito, à presença dos governado­ res e dos reis, para lhes servirdes a êles e aos gentios de tes­ temunhos. E quando vos levarem, não cuideis como ou que haveis de falar, porque naquela hora vos será inspirado o que haveis de dizer, porque não sois vós os que falais, mas o espí­ rito de vosso Pai é o que falará em vós. E um irmão entregará à morte a outro irmão, e o pai ao filho. E os filhos se levan-

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tarão contra os pais e lhes darão a morte. E vós, por causa do meu nome, sereis o ódio de todos: aquêle, porém, que perseverar até ao fim, êsse é o que será salvo. Quando, porém, vos perseguirem numa cidade, fugi para outra. Em verdade vos afirmo que não acabareis de correr as cidades de Israel, sem que venha o Filho do Homem. Não é o discípulo mais que seus mestre, nem o servo mais que seu senhor. Basta ao dis' cípulo ser como seu mestre, e ao servo como seu senhor. Se êles chamaram Belzebu ao pai de família, quanto mais aos seus domésticos? Pois não os temais, porque nada há encoberto, que se não venha a descobrir, nem oculto, que se não venha a saber. O que eu vos digo às escuras, dizei-o às claras; e o que se vos diz ao ouvido, publicai-o dos telhados. E temais aos que matam o corpo, e não podem matar a alma; temais antes, porém, ao que pode lançar no inferno tanto a alma como o corpo. Porventura não se vendem dois passarinhos por um asse, e um dêles não saíra sobre a terra sem vosso Pai? E até os mesmos cabelos da vossa cabeça todos êles estão contados. Não temais, pois, que mais vaieis vós que muitos pássaros. Todo aquêle, pois, que me confessar diante dos homens, tam­ bém eu o confessarei diante de meu Pai que está nos Céus; e o que me negar diante dos homens, também eu o negarei diante de meu Pai que está nos Céus. Não julgueis que vim trazer paz à terra; não vim trazer-lhe paz, mas espada, por­ que vim a separar ao homem contra seu pai, e a filha contra sua mãe, e a nora contra sua sogra. E os inimigos do homem serão os seus mesmos domésticos. O que ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim. E o que ama o filho ou a filha mais do que a mim não é digno de mim. E o que não toma sua cruz, e não me segue, não é digno de mim. O que achar a sua alma, perdê-la-á, e o que perder a sua alma por mim, achá-la-á. O que a vós recebe a mim me recebe e o que a mim me recebe, recebe aquêle que me enviou. O que recebe um profeta na qualidade de profeta receberá a recom­ pensa de profeta, e o que recebe um justo na qualidade de justo receberá a recompensa de justo, e todo o que der a beber a um daqueles pequeninos um copo d’água fria, só pela razão de ser meu discípulo, na verdade vos digo que não perderá a sua recompensa. CAPÍTULO

XIII

Eis aí que saiu o que semeia a semear. E quando semea­ va, uma parte da semente caiu junto da estrada, e vieram as

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

aves do céu e comeram-na. Outra, porém, caiu em pedregulho, onde não tinha muita terra, e logo nasceu, porque não tinha altura de terra; mas saindo o sol se queimou; e porque não tinha raiz se secou. Outra igualmente caiu sobre os espinhos, e cresceram os espinhos e êstes a afogaram. Outra, enfim, caiu em boa terra: e dava fruto, havendo grãos que rendiam a cento por um, outros a sessenta, outros, a trinta. * * * O que tem ouvidos de ouvir ouça. Porque a vós outros é dado saber os mistérios do reino dos Ceus, mas a êles não lhes é concedido. Porque ao que tem se lhe dará, e terá em abundância, mas, ao que não tem, até o que tem lhe será tirado. Por isso é que eu lhes falo em parábolas, porque êles vendo não vêem, e ouvindo não ouvem, nem entendem, de sorte que nêles se cumpre a profecia de Isaías, que diz: vós ouvireis com os ouvidos e não entendereis, e vereis com os olhos e não vereis. Porque o coração dêste povo se fêz pesado e os seus ouvidos se fizeram tardos, e êles fecharam os seus olhos, para não suceder que vejam com os olhos, e ouçam com os ouvidos, e entendam no coração, e se convertam, e eu os sare. Mas por vós, ditosos os vossos olhos, pelo que vêem, e ditosos os vossos ouvidos pelo que ouvem, por­ que em verdade vos digo que muitos profetas e justos deseja­ ram ver o que vêdes e não o viram, e ouvir o que ouvis e não o ouviram. *

*

*

Ouvi, pois, vós outros, a parábola do semeador. *

*

*

Todo aquêle que ouve a palavra do reino e não a entende, vem o mau e arrebata o que se semeou no seu coração: êste é o que recebeu a semente junto da estrada. Mas o que recebeu a semente no pedregulho, êste é o que ouve a palavra e logo a recebe com gosto; porém êle não tem em si raiz, antes é de pouca duração. E quando lhe sobrevêm tribulação e perseguição por amor à palavra, logo se escan­ daliza. E o que recebeu a semente entre espinhos, êste é o que ouve a palavra, porém os cuidados dêste mundo e o engano das riquezas sufocam a palavra e fica infrutuosa.

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO MUNDIAL

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E o que recebeu a semente em boa terra, êste é o que ouve a palavra, e a entende, e dá fruto, e assim um dá a cento, outro a sessenta, e outro a trinta por um. O reino dos Céus é semelhante a um homem que semeou boa semente no seu campo; e enquanto dormiam os homens, veio o seu inimigo, e semeou depois cizânia no meio do trigo e fòi-se. E tendo crescido a erva e dado fruto, apareceu tam­ bém então a cizânia. E chegando os servos do pai de família lhe disseram: Senhor, porventura não semeaste tu boa semen­ te no teu campo? Pois donde lhe veio a cizânia? E êle lhes disse: o homem inimigo é que fêz isto. E os servos lhe tor­ naram: queres tu que nós vamos e a arranquemos? E respondeu-lhes: não, para que talvez não suceda que, arrancando a cizânia, arranqueis juntamente com ela também o trigo. Deixai crescer uma e outra coisa até à ceifa, e no tempo da ceifa direi aos segadores: colhei primeiramente a cizânia e atai-a em molhos para a queimar, mas o trigo recolhe-o no meu celeiro. O reino dos Céus é semelhante a um grão de mostarda que um homem tomou e semeou no seu campo. O qual grão é, na verdade, o mais pequeno de todas as sementes; mas, de­ pois de ter crescido, é a maior de todas as plantas e se faz árvore, de sorte que as aves do Céu vêm a fazer ninhos nos seus ramos. O reino dos Céus é semelhante ao fermento que uma mu­ lher toma e o esconde em três medidas de farinha, até que todo êle fica levedado. O que semeia a boa semente é o Filho do Homem. E o campo é o mundo. A boa semente, porém, são os filhos do reino dos Céus. E a cizânia são os maus filhos. E o inimigo que a semeou é o diabo. E o tempo da ceifa é o fim do mun­ do. E os segadores são os anjos. De maneira que assim como é colhida a cizânia, e queimada no fogo, assim acontecerá no fim do mundo. Enviará o Filho do Homem os seus anjos e tirarão do seu reino todos os escândalos, e os que obram a iniqüidade, e lançá-los-ão na fornalha do fogo. A li será o choro e o ranger com os dentes. Então resplandecerão os justos, como o sol, no reino de seu Pai. * * * O que tem ouvidos de ouvir ouça.

ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

- O reino dos Céus é semelhante a um tesouro escondido no campo, que, quando um homem o acha, o esconde, e pelo gosto que sente de o achar, vai, e vende tudo o que tem e com­ pra aquêle campo. Assim mesmo é semelhante o reino dos Céus a um homem negociante que busca boas pérolas. E, ten­ do achado uma de grande preço, vai vender tudo o que tem e a compra. Finalmente, o reino dos Céus é semelhante a uma rêde lançada ao mar, que toda a casta de peixes colhe. E de­ pois de estar cheia a tiram os homens para fora e, sentados na praia, escondem os bons para os vasos e deitam fora os maus. Assim será no fim do mundo; sairão os anjos, e separarão os maus dentre os justos. E lançá-los-ão na fornalha do fogo; ali será o choro e o ranger com os dentes. Todo escriba instruído no reino dos Céus é semelhante a um pai de família, que tira do seu tesouro coisas novas e velhas. Não há profeta sem honra senão na sua pátria e na sua casa. CAPÍTULO

xv

Hipócritas, bem profetizou de vós outros Isaías, quando, d iz: êste povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. Em vão, me honram, ensinando doutrinas e mandamentos que vêm dos homens. E, chamando a si as turbas, lhes disse: ouvi e entendei. Não é o que entra pela boca o que faz imundo o homem, mas o que sai da boca, isso é o que faz imundo o homem. Toda planta que meu Pai celestial não plantou será arran­ cada pela raiz. Deixai-os: cegos são os condutores de cegos; e se um cego guia a outro cego, ambos vêm a cair no barranco. Também vós outros estais ainda sem inteligência. Não compreendeis que tudo o que entra pela boca desce ao ventre e se lança depois num lugar escuso. Mas as coisas que saem da boca vêm do coração, e essas são as que fazem o homem imundo, porque do coração é que saem os maus pensamentos, os homicídios, os adultérios, as fornicações, os furtos e os falsos testemunhos, as blasfêmias. Estas coisas são as que fazem imundo o homem. O comer, porém, com as mãos por lavar, isto não faz imundo o homem. Não é bom tirar o pão dos filhos, e lançá-los aos cães.

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M UNDIAL

CAPÍTULO

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XVIII

Na verdade vos digo que, se vos não converterdes, e vos não fizerdes como meninos, não haveis de entrar no reino dos Céus. Todo aquêle, pois, que se fizer pequeno, como êste me­ nino, êsse será o maior no reino dos Céus. E o que receber em meu nome um menino tal como êste, a mim é que* recebe. O que escandalizar, porém, a um dêstes pequeninos que crêem em mim, melhor lhe fora que se lhe pendurasse ao pescoço uma mó de moinho, e que o lançassem no fundo do mar. A i do mundo por causa dos escândalos. Porque é necessário que su­ cedam escândalos; mas ai daquele homem, por quem vem o escândalo/ Ora, se a tua mão ou o teu pé escandaliza, corta-o e lança-o fora de ti: melhor te é entrar na vida manco, ou aleijado, do que, tendo duas mãos, ou dois pés, ser lançado no fogo eterno. E se o teu olho te escandaliza, tira-o, e lança-o fora de ti; melhor te é entrar na vida com um só olho, do que, tendo dois, ser lançado no fogo do inferno. Vêde, não desprezeis alguns dêstes pequeninos porque eu vos declaro que os seus anjos nos Céus incessantemente estão vendo a face de meu Pai que está nos Céus. Porque o Filho do homem veio a salvar o que havia perecido. Que vos parece? Se tiver alguém cem ovelhas, e se desgarrar uma delas, porventura não deixa as noventa e nove nos montes, e vai buscar aquela que se extra­ viou? E, se acontecer achá-la, digo-vos em verdade que maior contentamento recebe êle por esta, do que pelas noventa e nove, que se não extraviaram. Assim, não é a vontade de vosso Pai, que está nos Céus, que pereça um dêstes pequeninos. Portan­ to, se teu irmão pecar contra ti, vai e corrige-o entre ti e êle só; se te ouvir, ganhando terás a teu irmão; mas, se te não ouvir, toma ainda contigo uma ou duas pessoas, para que, por boca de duas ou três testemunhas, fique tudo confirmado. E, se os não ouvir, dize-o à Igreja, e, se não ouvir a Igreja, tem-no por um gentio, ou um publicano. Em verdade vos digo que tudo que vós ligardes sobre a terra será ligado também no Céu; e tudo que vós desatardes sobre a terra será desatado também no Céu. Ainda vos digo mais que, se dois de vós se unirem entre si sobre a terra, seja qual fô r a coisa que êles pedirem, meu Pai, que está nos Céus, lha fará, porque, onde se acham dois ou três congregados em meu nome, aí estou eu no meio dêles. O reino dos Céus é comparado a um homem rei, que quis tomar contas aos seus servos; e, tendo começado a tomar as

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ANTOLOGIA DA LITERATURA M UNDIAL

contas, apresentou-se-lhe um que lhe devia mil talentos. E como não tivesse com que pagar, mandou o seu Senhor que o vendessem a êle, e a sua mulher, e a seus filhos, e tudo o que tinha, para ficar pago da dívida. Porém, o tal servo, lançando-se-lhe aos pés, lhe fazia esta súplica, dizendo: tem paciência comigo, que eu te pagarei tudo. Então o Senhor, compadecido daquele servo,, deixou-o ir livre e perdoou-lhe a dívida. E ten­ do saído êste servo encontrou um de seus companheiros que lhe devia cem dinheiros; e lançando-lhe a mão o afogava, di­ zendo: paga-me o que me deves. E o companheiro, lançando-se-lhe aos pés o rogava, dizendo: tem paciência comigo que eu te satisfarei tudo. Porém êle não quis; mas retirou-se, e fêz com que o metessem na cadeia, até pagar a dívida. Porém, os outros servos, seus companheiros, vendo o que se passava, sentiram-no fortemente, e foram dar parte a seu Senhor de tudo o que tinha acontecido. Então o chamou o seu Senhor e lhe disse: servo mau, eu perdoei-te a dívida, porque me vieste rogar para isso; não devias tu, logo, compadecer-te igualmente do teu companheiro, assim como também eu me compadeci de ti? E, cheio de cólera, mandou seu Senhor que o entregassem aos algozes, até pagar toda a dívida. Assim também vos há de fazer meu Pai celestial, se não perdoardes do íntimo de vossos corações cada um a seu irmão. CAPÍTULO

x ix

Não tendes lido que, quem criou o homem desde o princí­ pio, fê-lo macho e fêmea? E disse: por isso deixará o homem pai e mãe e ajuntar-se-á com a mulher, e serão dois numa só carne; assim que já não são dois, mas uma só carne. Não separe, logo, o homem, o que Deus ajuntou. Moisés, pela dureza de vossos corações, vos permitiu repu­ diar a vossas mulheres, mas ao princípio não foi assim. Eu, pois, vos declaro que todo aquêle que repudiar sua mulher, se não é por causa de adultério, e casar com outra, comete adul­ tério; e o que se casar com a que outro repudiou comete adul­ tério. Nem todos são capazes desta resolução, mas somente aquêles a quem isto foi dado. Porque há uns castrados, que nas­ ceram assim do ventre de sua mãe; e há outros castrados, a quem outros homens fizeram tais; e há outros castrados, que a si mesmo se castraram por amor ao reino dos Céus. O que é capaz de compreender isto, compreenda-o.

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO MUNDIAL

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Deixai os meninos e não embaraceis que êles venham a mim, porque dêstes tais é o reino dos Céus. Deus o é. Porém, se tu queres entrar na vida, guarda os mandamentos. Não cometerás furto; não dirás falso testemunho; honra teu pai e tua mãe, e amarás ao teu próximo como a ti mesmo. Se queres ser perfeito vai, e vende o que tens, e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no Céu; depois vem, e segue-me. Em verdade vos digo que um rico dificultosamente entrará no reino dos Céus. Ainda vos digo m ais: que mais fácil é pas­ sar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino dos Céus. Aos homens é isto impossível; mas a Deus tudo é possível. Em verdade vos afirmo que vós, quando, no dia da rege­ neração, estiver o Filho do homem sentado no Trono da sua Glória, vós, torno a dizer, que me seguistes, também estareis sentados sobre doze tronos, e julgareis as doze Tribos de Israel. E todo o que deixar, por amor ao meu Nome a casa, ou os irmãos, ou as irmãs, ou o pai, ou a mãe, ou a mulher, ou os filhos, ou as fazendas, receberá cento por um, e possuirá a vida eterna. Porém, muitos primeiros virão a ser os últimos, e muitos últimos virão a ser os primeiros. CAPÍTULO

XXVI

Por que molestais vós esta mulher? Que, no que fêz, me fêz uma boa obra, porque vós outros sempre tendes convosco os pobres, mas a mim nem sempre me tereis, porquanto, der­ ramando ela êste bálsamo sobre o meu corpo, foi ungir-me para ser enterrado. Em verdade vos digo, que, onde quer que fô r pregado êste evangelho, que será em todo o mundo, publicar-se-á também, para memória sua, a ação que esta mulher fêz. Em verdade vos afirmo que um de vós me há de entregar. O que mete comigo a mão no prato, êsse é o que me há de entregar. O Filho do Homem vai certamente como está escrito dêle; mas ai daquele homem, por cuja intervenção há de ser entregue o Filho do Homem e melhor fora ao tal homem não haver nascido. Bebei dêle todos, porque êste é o meu sangue do novo testamento, que será derramado por muitos para remissão de pecados. Mas digo-vos que, desta hora em diante, não beberei

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

mais dêste fruto da vida até aquêle dia em que o beberei de novo convosco no reino de meu Pai. A todos vós serei esta noite uma ocasião de escândalo. Pois está escrito: ferirei o pastor, e as ovelhas do rebanho se porão em desarranjo. Porém, depois que eu ressurgir, irei adiante de vós para a Galiléia. A minha alma está numa tristeza mortal; demorai-vos aqui, e vigiai comigo. Pai meu, se é possível, passa de mim êste cálice; todavia, não se faça a minha vontade, mas sim a tua. Visto isso, não pudestes uma hora vigiar comigo? Vigiai e orai para que não entreis em tentação. O espírito na ver­ dade está pronto, mas a carne é fraca. Mete a tua espada no seu lugar, porque todos os que to­ marem espada morrerão à espada. Acaso cuidas tu que eu não posso rogar a meu pai, e que êle não porá aqui, logo, pron­ tas mais de doze legiões de anjos? Como se poderão logo cumprir as Escrituras que declaram que assim deve suceder? Vós viestes armados de espadas e varapaus, para me pren­ der, como se eu fora um ladrão; todos os dias, assentado entre vós, estava eu ensinando no Templo, e não me prendestes. CAPÍTULO

XXVII

Eli, Eli, lamma sabachthani? (Deus meu, Deus meu, por que me desamparastes?) CAPÍTULO

XXVIII

Tem-se-me dado todo o poder no Céu e na terra. Ide, pois, e ensinai a todas as gentes, batizando-as em nome do Padre e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as a observar todas as coisas que vos tenho mandado, e estai certos de que eu estou convosco todos os dias, até à consumação do século. SEGUNDO O E V A N G E LH O CAPÍTULO

DE

SÃO MARCOS

III

Como pode Satanás lançar fora a Satanás? E se um reino está dividido contra si mesmo, não pode durar aquêle reino.

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO MUNDIAL

35

E se uma casa está dividida contra si mesma, não pode per­ manecer aquela casa. E se Satanás se levantar contra si mes­ mo, dividido está, e não poderá subsistir; antes está para aca­ bar. Ninguém pode entrar na casa do valente e roubar as suas alfaias, se primeiro não ata ao valente, para poder depois saquear a sua casa. N a verdade vos digo que aos filhos dos homens perdoados lhes serão todos os pecados e as blasfêmias que proferirem. Mas o que blasfemar contra o Espírito Santo, nunca jamais terá perdão, mas será réu de eterno delito. Quem é minha mãe e meus irmãos? Eis aqui minha mãe e meus irmãos, porque o que fizer a vontade de Deus, êsse é meu irmão e minha irmã e minha mãe. CAPÍTULO

VI

Um profeta só deixa de ser honrado na sua pátria e na sua casa, e entre os seus parentes. Em qualquer casa onde entrardes, ficai nela, até sairdes do lugar; e quando alguns vos não receberem, nem vos escuta­ rem, saindo dali, sacudi o pó dos vossos pés, em testemunho contra êles. Tende ânimo, sou eu, não temais. CAPÍTULO

VIII

Se alguém me quer seguir, negue-se a si mesmo; e tome a sua cruz, e siga-me, porque o que quiser salvar a sua vida perdê-la-á; mas o que perder a sua vida por amor a mim e ao Evangelho salvá-la-á: pois de que aproveitará ao homem, se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? Ou que dará o homem em troco pela sua alma? Porque se, nesta geração adúltera e pecadora, se envergonhar alguém de mim e das mi­ nhas palavras, também o Filho do Homem se envergonhará dêle, quando vier na glória de seu Pai acompanhado dos san­ tos anjos. CAPÍTULO

IX

Se alguém quiser ser o primeiro será o último de todos e o servo de todos.

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

Todo o que receber um dêstes meninos em meu nome a mim me recebe, e todo o que me receber a mim não me recebe a mim, mas recebe aquêle que me enviou. Não lho proibais, porque não há nenhum que faça mila­ gre em meu nome, e que possa, logo dizer mal de mim, porque quem não é contra vós é por vós. E qualquer que vos der a beber um copo d’água em meu nome, em tenção a que sois coisa de Cristo, digo-vos em verdade que não perderá a sua recom­ pensa. E todo o que escandalizar a um dêstes pequenos que crêem em mim, melhor lhe fora que lhe atassem à roda do pescoço uma mó de atafona, e que o lançassem no mar. E se a tua mão te escandalizar, corta-a; melhor te é entrar na vida eterna maneta, do que, tendo duas mãos, ir para o inferno, para o fogo que nunca jamais se apaga, onde o bicho que os rói nunca morre, e onde o fogo nunca se apaga. E se o teu pé te escandaliza, corta-o; melhor te é entrar na vida eterna coxo do que, tendo dois pés, ser lançado no fogo do inferno, que nunca jamais se apaga, onde o bicho que os rói nunca morre, e onde o fogo nunca se apaga. E se o teu olho te escan­ daliza lança-o fora; melhor te é entrar no reino de Deus sem um olho do que, tendo dois, ser lançado no fogo do inferno, onde o bicho que os rói nunca morre e onde o fogo nunca se apaga, porque todos êles serão salgados no fogo e toda a víti­ ma será salgada com sal. 0 sal é bom; porém, se êle se fizer insípido, com o que haveis de temperar? Tende sal em vós e guardai paz entre vós. c a p í t u lo

x

Por que me chamas, tu, bom? Ninguém é bom senão só Deus. Tu sabes os mandamentos: não cometas adultério, não mates, não furtes, honra a teu pai e a tua mãe. Na verdade vos digo que não há nenhum que haja deixado casa, ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou filhos, ou terras por amor a mim, e por amor ao Evangelho, que não venha a receber, já de presente neste mesmo século, o cento por um, das casas e dos irmãos e das irmãs e das mães e dos filhos e das terras, com as perseguições, e no século futuro a vida eter­ na. Porém, haverá muitos que, sendo os primeiros, serão os últimos, e muitos que, sendo os últimos, serão os primeiros. Eis, aqui está que nós subimos a Jerusalém, e o Filho do Homem será entregue aos príncipes dos sacerdotes, e aos es-

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M UNDIAL

37

cribas e aos anciãos, e sentenciá-lo-ão à morte, e o entregarão aos gentios; e o escarnecerão, e lhe cuspirão no rosto e o açoi­ tarão, e lhe tirarão a vida; e ao terceiro dia ressurgirá. Vós, com efeito, haveis de beber o cálice que eu estou para beber; e haveis de ser batizados no batismo em que eu estou para ser batizado. Mas, pelo que toca a terdes assento à mi­ nha destra, ou à minha esquerda, não me pertence a mim o conceder-vo-lo, porém, essa honra é para aquêles para quem ela está preparada. CAPÍTULO

XI

Tende a fé de Deus. Em verdade vos afirmo que todo o que disser a êste monte: tira-te e lança-te no mar, e isto sem hesitar no seu coração, mas tendo fé de que tudo o que disser sucederá, êle o verá cumprir assim. Por isso vos digo, todas as coisas que vós pedirdes, orando, crede que as haveis de ha­ ver, e que assim vos sucederão. Mas, quando vos puserdes em oração, se tendes alguma coisa contra alguém, perdoai-lha, para que também vosso Pai, que está nos Céus, vos perdoe vossos pecados, porque, se vós não perdoardes, também vosso Pai, que está nos Céus, vos não há de perdoar vossos pecados. CAPÍTULO

XII

Por que me tentais? Dai-me cá um dinheiro para o ver. De quem é esta imagem e inscrição? Pois dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. Ouve, Israel, o Senhor teu Deus é só o que é Deus; e amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração e de toda a tua alma e de todo o teu entendimento e de todas as tuas forças. Êste é o primeiro mandamento. E o segundo, semelhante ao primeiro, é: amarás ao teu próximo como a ti mesmo. Nenhum outro mandamento há que seja maior do que êstes. Guardai-vos dos escribas que gostam de andar com roupas largas, e de que os cumprimentem nas praças, e de ocupar nas sinagogas as primeiras cadeiras, e nos banquetes os primeiros lugares, que devoram as casas das viúvas debaixo de pretexto de longas orações, êstes serão julgados com maior rigor. Na verdade vos digo que mais deitou esta pobre viúva que todos os outros que lançaram no gazofilácio, porque todos os

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ANTOLOGIA DA LITERATURA M UNDIAL

outros deitaram do que tinham na sua abundância, porém esta deitou da sua mesma indigência tudo o que tinha e tudo o que lhe restava para seu sustento. CAPÍTULO

XIII

Vês todos êstes grandes edifícios? Não ficará pedra sobre pedra, que não seja derribada. SEGUNDO O E V A N G E LH O DE SÃO LU CAS CAPÍTULO

IV

Está escrito que o homem não vive somente de pão, mas de toda palavra de Deus. Às outras cidades é necessário também que eu anuncie o reino de Deus, que para isso é que fui enviado. c a p í t u lo

v

Não tenhas mêdo: desta hora em diante serás pescador de homens. Ninguém põe remendo de pano novo em vestido velho, porque, doutra sorte, rompe-se o pano novo e o retalho novo não condiz com o velho. Também ninguém lança vinho novo em odres velhos, porque, de outra sorte, fará o vinho novo arrebentar os odres e entornar-se-á o mesmo vinho, e perder-se-ão os odres. Mas o vinho novo deve-se recolher em odres novos, e assim tudo se conserva. Demais, que ninguém, be­ bendo do vinho velho, quer logo do novo, porque diz: é melhor o velho. CAPÍTULO

IX

É necessário que o Filho do Homem padeça muitas coisas e que seja rejeitado dos anciãos e dos príncipes dos sacerdotes e dos escribas, e que seja entregue à morte, e que ressuscite ao terceiro dia. Nenhum que mete a sua mão no arado e olha para trás é apto para o Reino de Deus.

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M UNDIAL

CAPÍTULO

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X

Eu via cair do céu a Satanás, como um relâmpago. Eis aí vos dei eu poder de pisardes as serpentes e os es­ corpiões e toda a força do inimigo; e nada vos fará dano. E, contudo, o sujeitarem-se-vos os espíritos, não é o de que vós vos deveis alegrar; mas sim deveis alegrar-vos de que os vossos nomes estão escritos nos Céus. Graças te dou, Pai, Senhor do Céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos. Sim, Padre, porque assim foi do teu agrado. Todas as coisas me têm sido entregues por meu Pai. E nin­ guém sabe quem é o Filho, senão o P a i; nem quem é o Pai, senão o Filho, e a quem o Filho o quiser revelar. Um homem baixava de Jerusalém a Jerico e caiu nas mãos dos ladrões, que logo o despojaram do que levava; e depois de o terem maltratado com muitas feridas, se retiraram dei­ xando-o meio morto. Aconteceu, pois, que passava pelo mesmo caminho um sacerdote; e, quando o viu, passou de largo. E assim mesmo um levita, chegando perto daquele lugar, e, vendo-o, passou também de largo. Mas um samaritano, que ia em seu caminho, chegou perto dêle, e, quando o viu, se moveu à compaixão. E, chegando-se, atou-lhe as feridas, lançando nelas azeite e vinho e, pondo-o sobre a sua cavalgadura, o levou a uma estalagem, e teve cuidado dêle. E, ao outro dia, tirou dois denários, e deu-os ao estalajadeiro e lhe disse: tem-me cuidado dêle, e quanto gastares de mais, eu to satisfarei quando voltar. Qual dêstes três te parece que foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos ladrões? Pois vai e faze tu o mesmo. Marta, Marta, tu andas muito inquieta e te embaraça o cuidar de muitas coisas. Entretanto, só uma coisa é necessá­ ria. Maria escolheu a melhor parte, que lhe não será tirada. CAPÍTULO

XI

Esta geração é uma geração perversa, ela pede um sinal e não se lhe dará outro sinal, senão o sinal do profeta Jonas, porque, assim como Jonas foi um sinal para os ninivitas, assim também o Filho do Homem o será para esta nação. A rainha do meio-dia levantar-se-á no dia do juízo contra os homens

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

desta nação e condená-los-á, porque veio do cabo do inundo ouvir a sabedoria de Salomão; entretanto, sabeis que aqui está quem é maior do que Salomão. Os ninivitas levantar-se-ão no dia do Juízo contra esta gente, e condená-la-ão, porque fizeram penitência ao pregar-lha Jonas; entretanto, sabei que aqui está quem é maior do que Jonas. Ninguém acende uma candeia e a põe em um lugar escondido, nem debaixo de um alqueire, mas sobre um candeeiro, para que os que entram vejam luz. O teu olho é a luz do teu corpo. Se o teu olho fô r simples, todo c teu corpo será lúcido; se, porém, fô r mau, também o teu corpo será tenebroso. Olha, pois, bem que a luz, que é em ti, não sejam trevas. Se, pois, o teu corpo fô r todo lúcido, sem ter parte alguma tenebrosa, todo êle será luminoso, e alumiar-te-á como uma luzerna de brilhante luz. Agora vós outros, os fariseus, limpais o que está por fora do vaso e do prato; mas o vosso interior está cheio de rapina e de maldade. Néscio, quem fêz tudo o que está de fora, não fêz também o que está de dentro? Dai, contudo, esmola do que é vosso; e eis aí que todas as coisas vos ficam sendo lim­ pas. Mas ai de vós, fariseus, que pagais o dízimo de hortelã e da arruda e de toda a casta de ervas, e que desprezais a justiça e o amor de Deus, pois estas eram as coisas que im­ portava que vós praticásseis, sem, entretanto, omitirdes aque­ las outras. A i de vós, fariseus, que gostais de ter nas sinago­ gas as primeiras cadeiras e de que vos saúdem na praça. A i de vós, que sois como os sepulcros que não aparecem e que os homens que caminham por cima não conhecem. A i de vós outros também, doutores da lei, que carregais os homens de obrigações que êles não podem desempenhar, e vós nem com um dedo lhes aliviai s a carga. A i de vós que edificais sepulcros aos profetas, quando vossos pais foram os que lhes deram a morte, por certo que bem testemunhais que consentis nas obras de vossos pais, porque êles na verdade os mataram e vós edificais os seus sepulcros. Por isso, também disse a Sabedoria de Deus: mandar-lhes-ei profetas e apóstolos, e êles darão a morte a uns e perseguirão a outros, para que esta nação se peça conta do sangue de todos os profetas, o qual foi derramado desde o princípio do mundo. Desde o san­ gue de Abel até ao sangue de Zacarias, que foi morto entre o Altar e o Templo. Sim, eu vos declaro que a esta nação se pedirá conta disto. A i de vós, doutores da lei, que, depois de terdes arrogado a vós a chave da ciência, nem vós outros entrastes, nem deixastes entrar os que vinham para entrar.

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M UNDIAL

CAPÍTULO

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XII

Guardai-vos do fermento dos fariseus, que é a hipocrisia, porque nenhuma coisa há oculta que não venha a descobrir-se: e nenhuma há escondida que não venha a saber-se. Por que as coisas que dissestes nas trevas, às claras serão ditas, e o que falastes ao ouvido no gabinete, será apregoado sobre os telhados. A vós outros, pois, amigos meus, vos digo que não tenhais mêdo daqueles que matam o corpo e depois disto não têm mais que fazer. Mas eu vos mostrarei a quem haveis de tem er: temei aquêle que, depois de matar, tem poder de lançar no inferno. Sim, eu vo-lo digo, temei a êste. Não se vendem cinco pardais por dois réis, e nem um dêles só está em esque­ cimento diante de Deus. E até os cabelos da vossa cabeça, todos estão contados. Pois não temais, porque de maior valia sois vós outros que muitos pardais. Ora, eu vos declaro que todo o que me confessar diante dos homens também o homem o confessará ante os anjos de Deus. O que, porém, me negar diante dos homens, também será negado na presença dos anjos de Deus. E todo o que proferir uma palavra contra o Filho do Homem, ser-lhe-á dado perdão; mas aquêle que blasfemar contra o Espírito Santo, não lhe será isso perdoado. Mas, quando vos levarem às sinagogas, e perante os magistrados e potestades, não estejais com cuidado, ou de que modo respondereis ou que direis, porque o Espírito Santo vos ensinará na mesma hora o que fô r conveniente que vós digais. Guardai-vos e acautelai-vos de toda a avareza, porque a vida de cada um não consiste na abundância das coisas que possui. O campo de um homem rico tinha dado abundantes fru ­ tos ; êle revolvia dentro de si êstes pensamentos, dizendo: que farei, que não tenho onde recolher os meus frutos? E disse: farei isto: derribarei os meus celeiros e fá-los-ei maiores. E neles recolherei todas as minhas novidades e os meus bens. E direi à minha alma: minha alma, tu tens muitos bens em de­ pósito por largos anos; descansa, come, bebe, regala-te. Ma'? Deus disse a êste homem: néscio, esta noite te virão deman­ dar a tua alma; e as coisas que tu ajuntaste para quem serão? Assim é o que entesoura para si, e não é rico para Deus. Portanto, vos digo: Não andeis solícitos para a vossa vida, com que a sustentareis, nem para o corpo, com que o vestireis. A vida vale mais do que o sustento, e o corpo mais de que o vestido. Olhai para os corvos que não semeiam, nem segam,

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

nem ,têm. despesa, nem celeiro, e Deus, contudo, os sustenta. Quanto mais consideráveis vós do que êles? Mas qual de vós, por mais voltas que dê ao entendimento, pode acrescentar um côvado à sua estatura? Se vós, pois não podeis com as coisas que são mínimas, por que estais em cuidado sobre as outras? Olhai como crescem as açucenas; elas não trabalham nem fia m ; e, contudo, eu vos afirmo que nem Salomão em toda a sua gló­ ria se vestia como uma delas. Se, pois, o feno que hoje está no campo e que amanhã se lança no forno, Deus o veste assim, quanto mais a vós, homens de pouquíssima fé? Vós, pois, não vos inquieteis com o que haveis de comer ou beber; e não an­ deis com o espírito suspenso, porque as gentes do mundo são as que buscam todas estas coisas. E vosso Pai sabe que as haveis mister. Buscai, logo, primeiro o Reino de Deus e a sua justiça; e em cima, dar-se-vos-ão todas estas coisas como aces­ sórias. Não temais, ó pequenino rebanho, pois que foi do agra­ do do vosso Pai dar-vos o seu reino. Vendei o que possuis, e dai-o em esmolas. Provede-vos de bolsas que se não gastam com o tempo, ajuntai nos Céus um tesouro que não acaba onde não chega o ladrão e ao qual não rói a traça, porque onde está o vosso tesouro aí estará também o vosso coração. Estejam cingidos os vossos lombos e nas mãos tochas acesas. E sêde vós outros semelhantes aos homens que esperam a seu Senhor, a voltar das bodas, para que quando vier e bater à porta, logo lha abram. Bem-aventurados aquêles servos a quem o Senhor achar vigiando quando vier; na verdade vos digo que êle se cingirá e os fará sentar à mesa, e, passando por entre êles, os servirá. E se vier na segunda vigília, e se na terceira vigília, e assim os achar, bem-aventurados são os tais servos. Mas sabei isto, que, se o pai de família soubesse a hora em que viria o ladrão, vigiaria sem dúvida e não deixaria a sua casa. Vós outros, pois, estais apercebidos, porque à hora que não cuidais, virá o Filho do Homem. Quando vós tendes visto aparecer uma nuvem da parte do poente, logo dizeis: aí vem tempestade; e assim sucede. E, quando vêdes assoprar o vento do meio-dia, dizeis: há de haver calma. E vem a calma. Hipócritas, sabeis distinguir os as­ pectos do Céu e da terra, pois como não sabeis reconhecer o tempo presente? E por que não julgais ainda por vós mesmos o que é justo? Ora, quando tu fores com o teu contrário ao príncipe, faze o possível por te livrares dêle no caminho, para que não suceda que te leve ao juiz, e o juiz te entregue ao meirinho, e o meirinho te mêta na cadeia. Digo-te que não sairás dali, enquanto não pagares até o último ceitil.

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M UNDIAL

CAPÍTULO

43

XIV

Quando fores convidado a algumas bodas, não se assentes no primeiro lugar, porque pode ser que esteja ali outra pessoa mais autorizada do que tu, convidada pelo dono da casa, e que, vindo êste, que te convidou a ti e a êle, te d iga : dá o teu lugar a êste, e tu, envergonhado, vás buscar o último lugar; mas, quando fores convidado, vai tomar o último lugar, para que, quando vier o que te convidou, te diga: amigo, senta-te mais para cima. Servir-te-á isto, então, de glória na presença dos que estiverem juntamente sentados à mesa, porque todo o que se exalta será humilhado e todo o que se humilha será exaltado. Quando deres algum jantar, ou alguma coisa, não chames nem teus amigos, nem teus irmãos, nem teus parentes, nem teus vizinhos que forem ricos, para que não aconteça que tam­ bém êles te convidem a sua vez e te paguem com isso; mas, quando deres algum banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos; e serás bem-aventurado, porque êsses não têm com que te retribuir; mas ser-te-á isso retribuído na res­ surreição dos justos. Se algum vem a mim e não aborrece a seu pai e mãe e mulher e filhos e irmãos e irmãs, e ainda a sua mesma vida, não pode ser meu discípulo. E o que não leva a sua cruz e vem em meu seguimento não pode ser meu discípulo. Por que, qual de vós, querendo edificar uma torre, não se põe primeiro muito de seu vagar a fazer contas dos gastos que são neces­ sários, para ver se tem com que a acabar, para se não expor a que, depois que tiver assentado o fundamento, e não a puder acabar, todos os que a virem, comecem a fazer zombaria dêle, dizendo: êste homem principiou o edifício e não o pôde acabar? Ou que rei há que, estando para ir para a campanha contra outro rei, não tome primeiro muito de assento as suas medidas, a ver se com dez mil homens poderá ir encontrar-se com o que traz contra êle vinte mil?- Doutra maneira, ainda quando o outro está longe, enviando sua embaixada, lhe pede tratados de paz. Assim, pois, qualquer de vós, que não dá de mão a tudo o que possui, não pode ser meu discípulo. O sal é bom. Porém, se o sal perder a força, com que outra coisa se há de temperar? Ficará sem servir nem para o monturo, mas lançar-se-á fora. O que tem ouvidos de ouvir ouça.

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ANTOLOGIA DA LITERATURA M UNDIAL

CAPÍTULO

XV

Qual de vós outros é o homem que tem cem ovelhas, e, se perde uma delas, não é assim que deixa as noventa e nove no deserto, e vai a buscar a que se havia perdido, até que a ache? E que, depois de a achar, a põe sobre seus ombros, cheio de gosto: e vindo a casa, chama a seus amigos e vizinhos, dizendo-lhes: congratulai-vos comigo, porque achei a minha ovelha que se havia perdido? Digo-vos que, assim, haverá maior júbilo no Céu, sobre um pecador que fizer penitência, que sobre noventa e nove justos, que não hão de mister pe­ nitência. Ou que muíher há que, tendo dez dracmas, e per­ dendo uma, não acenda a candeia, não varra a casa, e não a busque com muito sentido, até que a ache? E que, depois de a achar, não convoque as suas amigas e vizinhas, para lhes dizer: congratulai-vos comigo, porque achei a dracma que tinha perdido? Assim vos digo eu que haverá júbilo entre os anjos de Deus por um pecador que faz penitência. Um homem teve dois filhos: e disse o mais moço dêles a seu pai: pai, dá-me a parte da fazenda que me toca. E êle repartiu entre ambos a fazenda. E, passados não muitos dias. entrouxando tudo o que era seu, partiu o filho mais moço para uma terra muito distante num país estranho, e lá dissipou toda a sua fazenda, vivendo dissolutamente. E, depois de ter con­ sumido tudo, sucedeu haver naquele país uma grande fome, e êle começou a necessitar. Retirou-se, pois, dali, e acomodou-se com um dos cidadãos de tal terra. Êste, porém, o mandou para um casal seu a guardar os porcos. Aqui desejava êle encher a sua barriga de landes, das que comiam os porcos; mas nin­ guém lhas dava. A té onde tendo entrado em si, disse: quan­ tos jornaleiros há em casa de meu pai que têm pão em abun­ dância, e eu aqui pereço à fom e! Levantar-me-ei. e irei buscar a meu pai, e dir-lhe-ei: Pai, pequei contra o Céu e diante de ti; já não sou digno de ser chamado teu filho. Faze de mim como um dos teus jornaleiros. Levantou-se, pois, e fo i buscar a seu pai. E quando êle vinha ainda longe, viu seu pai, que ficou movido de compaixão e, correndo, lhe lançou os braços ao pescoço para o abraçar, e o beijou. E o filho lhe disse: pai, pequei contra o Céu e diante de t i; já não sou digno de ser chamado teu filho. Então, disse o pai aos seus servos: tirai depressa o seu primeiro vestido, e vesti-lho, e metei-lhe um anel no dedo, e os sapatos nos pés: trazei também um vitelo

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO MUNDIAL

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bem gordo, matai-o, para comermos e para nos regalarmos, porque êste meu filho era morto e reviveu, tinha-se perdido e achou-se. E começaram a banquetear-se. E o filho mais ve­ lho estava no campo e, quando veio e foi chegando a casa, ouviu a sinfonia e o coro: e chamou um dos servos e perguntou-lhe que era aquilo. E êste lhe disse: é chegado teu irmão, e teu pai mandou matar um novilho cevado, porque veio com saúda. Êste, então, se indignou e não queria entrar. Mas, saindo o pai, começou a rogar-lhe que entrasse. Êle, porém, deu esta resposta a seu pai: há tantos anos que te sirvo, sem nunca transgredir mandamento algum teu e tu nunca me deste um cabrito, para me regalar com os meus amigos; mas tanto que veio êste teu filho, que gastou tudo quanto tinha com prosti­ tutas, logo lhe mandaste matar o novilho gordo. Então lhe disse o pai: filho, tu sempre estás comigo, e tudo o que é meu é teu; era, porém, necessário que houvesse banquete e festim, pois que êste teu irmão era morto e reviveu, tinha-se perdido e achou-se. CAPÍTULO

XVI

Havia um homem rico, que tinha um feitor; e êste foi acusado diante dêle como quem havia dissipado os seus bens. E êle o chamou e lhe disse: que é isto que ouço dizer de ti? Dá conta da tua administração, porque já não poderás ser meu feitor. Então o feitor disse entre si: que farei, visto que meu amo me tira a administração? Cavar não posso, de mendigar tenho vergonha. Mas já sei o que hei de fazer, para que, quan­ do fôr removido da administíação, ache quem me recolha em sua casa. Tendo chamado, pois, cada um dos devedores de seu amo, disse ao primeiro: quanto deves tu a meu amo? E êste lhe respondeu: cem dados de azeite. Êle, então, lhe disse: toma a tua obrigação, e senta-te depressa, escreve outra de cinqüenta. Depois disse a outro: e tu quanto deves? Respon­ deu êle: cem coros de trigo. Disse-lhe o feitor: toma o teu escrito e escreve oitenta. E o amo louvou êste feitor iníquo, por haver obrado como homem de juízo, porque os filhos dêste ■século são mais sábios na sua geração que os filhos da luz. Também eu vos digo que granjeeis amigos com as riquezas da iniqüidade, para que, quando vós vierdes a falar, vos recebam éles nos tabernáculos ternos. O que é fiel no menos, também é fiel no mais; e o que é injusto no pouco, também é injusto no muito. Se, pois, vós não fôstes fiéis nas riquezas injustas,

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ANTOLOGIA DA LITERATURA M UNDIAL

quem haverá que confie a vós as verdadeiras? E se vós não fôstes fiéis no alheio, quem vos dará o que é vosso? Nenhum servo pode servir a dois senhores, porque, ou há de ter abor­ recimento a um e amor a outro, ou há de entregar-se a um e não fazer caso do outro. Vós não podeis servir a Deus e às riquezas. Vós outros sois os que vos dais por justificados diante dos homens; mas Deus conhece os vossos corações, porque o que é elevado aos olhos dos homens é abominação diante de Deus. A lei e os profetas duraram até à vinda de João; desde êste tempo é o Reino de Deus anunciado e cada um faz força por entrar nêle. É, porém, mais fácil passar o Céu e a terra do que perder-se um til da lei. Todo o que larga sua mulher e casa com outra comete um adultério, e o que casa com a que foi repudiada de seu marido comete adultério. Havia um homem muito rico, que se vestia de púrpura e de holanda, e que todos os dias se banqueteava esplêndidamente. Havia também um pobre mendigo, por nome Lázaro, todo coberto de chagas, que estava deitado à sua porta eí que desejava fartar-se das migalhas que caíam da mesa do rico; mas ninguém lhas dava, e os cães vinham lamber-lhe as úlce­ ras. Ora, sucedeu morrer êste mendigo, que fo i levado pelos anjos ao seio de Abraão. E morreu também o rico, e fo i se­ pultado no inferno. E, quando êle estava nos tormentos, le­ vantando seus olhos, viu ao longe a Abraão e a Lázaro no seu seio. E, gritando, êle disse: Pai Abraão, compadece-te de mim e manda cá a Lázaro, para que molhe em água a ponta do seu dedo, a fim de me refrescar a língua, pois sou atormen­ tado nesta chama. E Abraão lhe respondeu: Filho, lembra-te que recebestes os teus bens em tua vida e que Lázaro não teve senão males; por isso, está êle agora consolado, e tu em tor­ mentos. E demais que entre nós e vós está firmado um grande abismo, de maneira que os que querem passar daqui para vós não podem, nem os de lá para cá. E disse o rico: pois eu te rogo, Pai, que o mandes à casa de meu pai, pois que tenho cinco irmãos, para que lhes dê testamento que não suceda também a êles vir parar a êste lugar de tormentos. E Abraão lhe disse: êles lá têm a Moisés e aos profetas; ouçam-nos. Disse, pois o rico: não, pai Abraão; mas, se fo r a êles algum dos mortos, hão de fazer penitência. Porém Abraão lhe respondeu: se êles não dão ouvidos a Moisés e aos profetas, tampouco se deixarão persuadir, ainda quando haja de ressuscitar alguns dos mortos.

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M UNDIAL

CAPÍTULO

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XVII

Se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a esta amoreira: arranca-te e transplanta-te no mar, e ela vos obe­ decerá. Qual é, pois, de vós o que, tendo um servo ocupado em lavrar, ou em guardar gado, lhe diga, quando êle se recolhe do campo: vai já pôr-te à mesa e que antes lhe não diga: prepara-me a ceia e cinge-me e serve-me, enquanto eu como e bebo, e depois disto comerás tu e beberás? E quando o servo tenha feito tudo o que lhe ordenou, porventura fica-lhe o Se­ nhor em obrigação? Creio que não. Pois assim também vós, depois de terdes feito tudo o que vos foi mandado, dizei: somos uns servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer. Levanta-te, vai,, que a tua fé te salvou. O Reino de Deus não virá com mostras algumas exterio­ res. Nem dirão: ei-lo aqui, ou ei-lo acolá. Porque eis aqui está o Reino de Deus dentro de vós. Lá virá tempo em que vós desejareis ver um dia o Filho do Homem, e não o vereis. Então vos dirão: ei-lo, aqui está, e ei-lo acolá. Não queirais ir, nem os sigais, porque assim como o relâmpago que, fuzilando na região inferior do Céu, faz cla­ rão desde uma até a outra parte, assim será o Filho do Homem no seu dia. Mas é necessário que êle sofra primeiro muito, e que seja rejeitado dêste povo. E o que sucedeu em tempo de Noé, do mesmo modo sucederá também quando vier o Filho do Homem. Êles comiam e bebiam, casavam os homens com as mulheres, e as mulheres com os homens, até ao dia em que Noé entrou na arca, e então veio o dilúvio e fêz perecer a todos. E como sucedeu também em tempo de Ló, estavam êles co­ mendo e bebendo, faziam compras e vendas, plantavam e edificavam; mas no dia em que Ló saiu de Sodoma, choveu fogo e enxofre do Céu, que consumiu a todos. Assim mesmo será no dia em que se liá de manifestar o Filho do Homem. Na­ quela hora, quem estiver no telhado, e tiver os seus móveis em casa, não desça a tirá-los, e, da mesma sorte, quem estiver no campo não volte atrás. Lembrai-vos da mulher de Ló. Todo o que procurar livrar a sua saída perdê-la-á, e todo o que a perder salvá-la-á. Eu vos declaro que, nessa noite, de dois ho­ mens que estiverem na mesma cama, um será tomado e deixado o outro; e de duas mulheres que estiverem moendo juntas, uma será tomada e deixada a outra: de dois que estiverem no cam­ po, um será tomado e deixado o outro.

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

CAPÍTULO

XVIII

Havia em certa cidade um juiz que não temia a Deus nem respeitava os homens. Havia também na mesma cidade uma viúva que costumava vir buscá-lo, dizendo: sustenta o meu di­ reito contra o que contende comigo. E êle por muito tempo lhe não quis deferir. Mas, por último, disse lá consigo: ainda que eu não temà a Deus, nem respeite os homens, todavia, como esta viúva me importuna, far-lhe-ei justiça, para que por fim não suceda que, vindo ela muitas vêzes, me carregue de afrontas. Ouvi o aue diz êste juiz iníquo: e Deus não fará justiça aos seus escolhidos, que estão clamando a êle de dia e de noite, e sofrerá êle que os oprimam? Digo-vos que êles os vingará bem depressa; mas. auando vier o Filho do Homem, julgais vós que achará êle alguma fé na terra? Subiram dois homens ao templo a fazer oração, um fariseu e outro publicano. O fariseu, posto em pé, orava lá no seu interior desta form a: graças te dou, meu Deus, porque não sou c^mo os mais homens, que são ladrões, uns injustos, uns adúl­ teros, como é também êste publicano. Jejuo duas vêzes na semana, pagro o dízimo de tudo que tenho. O publicano, pelo contrário, posto lá de longe, não ousava nem ainda levantar os olhos ao Céu, mas batia no peito, dizendo: Meus Deus, sê propício a mim pecador. Digo-vos que êste voltou justificado para sua casa e não o outro, porque todo o que se exalta será humilhado, e todo o que se humilha será exaltado. Em verdade vos digo que ninguém há que, uma vez que deixou pelo reino de Deus a casa, ou os pais ou os irmãos, ou a mulher, ou os filhos, logo neste mundo não receba muito mais, e no século futuro a vida eterna. CAPÍTULO

XIX

Um homem de grande nascimento foi para um país mui­ to distante a tomar posse de um reino, para depois voltar. E, chamando dez servos seus, deu-lhes dez marcos de prata, e disse-lhes: negociai até eu vir. Mas os do seu país o aborreciam, e enviaram nas suas costas deputados que fizes­ sem êste protesto: não queremos que êste seja nosso rei. E, com efeito, voltou êle com a posse do reino tomada; e man­

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M UNDIAL

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dou chamar aquêles servos a quem dera o seu dinheiro, a fim de saber quanto cada um tinha negociado. Veio, pois, o primeiro dizendo: senhor, o teu marco adquiriu dez. E o senhor lhe respondeu: está bem, servo bom, porque fôste fiel no pouco serás governador de dez cidades. Veio, depois, o segundo, dizendo: senhor, o teu marco rendeu cinco. E o senhor lhe respondeu: sê tu também governador de cinco ci­ dades. Veio também o terceiro, dizendo: senhor, aqui tens o teu marco, que eu guardei embrulhado num lenço, porque tive mêdo de ti, que és um homem rígido, que tiras donde não puseste e que recolhes o que não semeaste. Disse-lhe o senhor: servo mau, pela mesma boca te condeno eu; tu sabias que eu era um homem rígido, que tiro donde não pus, e que recolho o que não semeei; logo, por que não meteste tu o meu dinheiro ao banco, para que, quando viesse, o recebesse eu, então, com os seus lucros? E disse aos que estavam presentes: tirai-lhe o marco de prata, e dai-o ao que tem dez. E êles lhe respon­ deram: senhor, êste já tem dez. Pois eu vos digo que a todo aquêle que tiver se lhe dará e terá mais; mas, ao que não tem, se lhe tirará ainda isso mesmo que tem. Quanto, porém, àque­ les meus inimigos que não quiseram que eu fosse rei, trazei-mos aqui, e tirai-lhes a vida em minha presença. Asseguro-vos que, se êles se calarem, mesmo as pedras cla­ marão. Ah!, se ao menos neste dia, que agora te foi dado, conhecesses ainda tu o que te pode trazer a paz! Mas por ora tudo isto está encoberto aos teus olhos, porque virá um tempo fu­ nesto para ti, no qual os teus inimigos te cercarão de trin­ cheiras e te sitiarão, e te porão em apêrto de todas as partes, e te derribarão por terra a ti, e a teus filhos que estavam den­ tro de ti, e não deixarão em ti pedra sobre pedra, porquanto não conheceste o tempo da tua visitação. CAPÍTULO

XX

Um homem plantou uma vinha e arrendou-a a uns fazen­ deiros, e êle estêve ausente por muitos tempos. E, em uma ocasião, enviou um dos seus servos aos fazendeiros para que lhe dessem do fruto da vinha. Êles, depois de o ferirem, recambiaram-no sem coisa alguma. E tornou a enviar outro servo. Mas êles, ferindo também a êste, e carregando-o de afrontas, o despediram vazio. Tornou a enviar ainda um ter­ ceiro. Êles, ferindo também a êste, o deitaram fora. Disse

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ANTOLOGIA DA LITERATURA M UNDIAL

então, o senhor da vinha: que hei de fazer? Mandarei meu filho amado; sem dúvida que, quando* o virem, lhe guardarão respeito. Quando os fazendeiros o viram, discorreram entre si dizendo: êste é o herdeiro, matemo-lo, para fazer nossa a herança. E, lançando-o fora da vinha, o mataram. Que lhes fará, pois, o senhor da vinha? V irá e acabará de todo com aquêles fazendeiros, e dará a vinha a outros. Pois que quer dizer isto que está escrito: a pedra que des­ prezaram os edificadores, esta veio a ser a principal do ângulo? Todo o que cair sobre aquela pedra ficará quebrantado; e sobre quem ela cair será feito em migalhas. Por que me tentais? Mostrai-me cá um dinheiro; que é a imagem e a inscrição que tem? Pagai, logo, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. CAPÍTULO

XXI

No tocante a estas coisas que vêdes, virão dias em que não ficará pedra sobre pedra, que não seja demolida. Vêde, não sej ais enganados, porque muitos hão de vir de­ baixo do meu Nome, dizendo: eu sou; e êste tempo está pró­ ximo; mas guardai-vos de ir após êles. E quando ouvirdes falar de guerra e de tumultos, não vos assusteis; estas coisas, sim, devem suceder primeiro mas não será logo o fim. Levantar-se-á nação contra nação, e reino contra reino. E haverá grandes terremotos por várias partes, e epidemias e fomes, e aparecerão coisas espantosas e grandes sinais do Céu. Mas, antes de tudo isto, lançar-vos-ão êles as mãos, e perseguir-vos-ão, entregando-vos às Sinagogas e aos cárceres, levando-vos à presença dos reis e dos governadores, por causa do meu Nome; e isto vos será ocasião de dardes testemunho. Gravai, pois, nos vossos corações, o não premeditar como ha­ veis de responder, porque eu vos darei uma boca e uma sabe^ doria, à qual não poderão resistir, nem contradizer todos os vossos inimigos; e sereis entregues por vossos pais e irmãos e parentes e amigos, e farão morrer a alguns de vós outros; e sereis aborrecidos de todos, por causa do meu Nome; entre­ tanto, não se perderá um cabelo da vossa cabeça. Na vossa paciência, possuireis as vossas almas. Quando virdes, pois, que Jerusalém é sitiada de um exército, então sabei que está

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M UNDIAL

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próxima a sua desolação. Os que nesse tempo se acharem em Judéia, fujam para os montes: e os que, dentro da cidade, retirem-se, e os que nos campos não entrem nela, porque êstes são dias de vingança, para que se cumpram todas as coisas que estão escritas. Mas ai das que estiverem prenhes e das que então criarem naqueles dias! Porque haverá grande apêrto sobre a terra, e ira contra êste povo. E cairão ao fio da espa­ da; e serão levados, cativos, a todas as nações, e Jerusalém será pisada dos gentios, até se completarem os tempos das na­ ções. E haverá sinais no sol, e na lua e nas estréias, e na terra, consternações das gentes pela confusão em que as porá o bramido do mar e das ondas, mirrando-se os homens de susto e na expectação do que virá sobre todo o mundo, porque as virtudes dos Céus se abalarão; e então verão o Filho do Homem, que virá sobre uma nuvem, com grande poder e ma­ jestade. Quando começarem, pois, a cumprir-se estas coisas, olhai e levantai as vossas cabeças, porque está perto a vossa redenção. Olhai para a figueira e para as mais árvores. Quando elas começaram já a produzir de si fruto, conheceis vós que está perto o estio. Assim também, quando vós virdes que vão sucedendo estas coisas, sabei que está perto o Reino de Deus. Em verdade vos afirmo que esta geração não passará, enquan­ to se não cumprirem todas estas coisas. Passará o Céu e a terra; mas as minhas palavras não passarão. Velai, pois, so­ bre vós, para que não suceda que os vossos corações se façam pesados com as demasias do .comer e do beber, e com os cuida­ dos desta vida, e para que aquêle dia vos não apanhe de repen­ te, porque êle, assim como um laço, prenderá a todos os que habitam sobre a face dé toda a terra. Vigiai, pois, orando em todo o tempo, a fim de que vos façais dignos de evitar todos êstes males, que têm de suceder, e de vos apresentardes com confiança diante do Filho do Homem. CAPÍTULO

XXIII

Filhas de Jerusalém, não choreis sobre mim, mas chorai sobre vós mesmas e sobre vossos filhos, porque sabei que virá tempo em que se dirá: ditosas as que são estéreis e ditosos os ventres que não geraram, e ditosos os peitos que não deram de mamar. Então, começarão os homens a dizer aos montes:

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

caí sobre nós; e aos outeiros: cobri-nos. no lenho verde, que se fará no sêco?

Porque, se isto faz

Pai, perdoai-lhe, porque não sabem o que fazem. Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso. Pai, nas tuas mãos encomendo o meu espírito. CAPÍTULO

XXIV

Paz seja convosco; sou eu, não temais. Por que estais vós turbados, e que pensamentos são êsses que vos sobem aos corações? Olhai para as minhas mãos e pés, porque sou eu mesmo; apalpai e vêde, que um espírito não tem carne nem ossos, como vós vêdes que eu tenho. Assim é que está escrito e assim é que importava que Cristo padecesse e que ressurgisse dos mortos ao terceiro dia; e que em seu nome se pregasse penitência a remissão de pe­ cados em todas as nações, começando por Jerusalém. Ora vós sois as testemunhas destas coisas. E eu vou a mandar sobre vós o dom que vos está prometido por meu Pai; entretanto, ficai vós de assento na cidade, até que sej ais revestidos de virtude lá do alto. SEGUNDO O E V A N G E LH O CAPÍTULO

DE SÃO JOÃO

I

Que buscais vós? Vinde e vêde. Na verdade, na verdade vos digo que vereis o Céu e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem. CAPÍTULO

II

Mulher, que importa isso a mim e a vós? chegada a minha hora.

Ainda não é

Desfazei êste Templo, e eu o levantarei em três dias. CAPÍTULO

III

Na verdade, na verdade te digo que não pode ver o reino de Deus senão aquêle que renascer de novo.

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO MUNDIAL

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Em verdade, em verdade te digo que, quem não renascer da água e do Espírito Santo, não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne. E o que é nascido do espí­ rito é espírito. Não te maravilhes de eu te dizer: importa-vos nascer outra vez. O espírito assopra onde quer, e tu ouves a sua voz, mas não sabes donde êle vem, nem para onde vai; assim é todo aquêle que é nascido do espírito. Tu és mestre em Israel, e não sabes estas coisas? Em verdade, em verdade te digo que nós dizemos o que sabemos e que damos testemunho do que vimos, e vós, com tudo isso, não recebeis o nosso testemunho. Se quando eu vos tenho fa ­ lado nas coisas terrenas, ainda assim vós me não credes, como me crereis vós, se eu vos falar nas celestiais? Também nin­ guém subiu ao Céu, senão aquêle que desceu do Céu, a saber, o Filho do Homem, que está no Céu. E como Moisés no deserto levantou a serpente, assim importa que seja levantado o Filho do Homem, para que todo o que crê nêle não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque assim amou Deus ao mundo que lhe deu seu Filho unigênito, para que todo o que crê nêle, não pereça, mas tenha a vida eterna, porque Deus não enviou seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por êle. Quem nêle crê, não é condenado, mas o que não crê já está condenado, porque não crê no nome do Filho uni­ gênito de Deus. E a causa desta condenação é que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz porque eram más as suas obras. Porquanto, todo aquêle que obra mal, aborrece a luz, e não se chega para a luz, para que não sejam argüídas as suas obras. Mas aquêle que obra ver­ dade chega-se para a luz, para que as suas obras sejam mani­ festadas, porque são feitas em Deus. CAPÍTULO

IV

Dá-me de beber. Se tu conheceres o dom de Deus, e quem é o que te diz: dá-irie de beber, tu certamente lhe pediras, e êle te daria a ti da água viva. Todo aquêle que bebe desta água tornará a ter sêde, mas o que beber da água que eu lhe hei de dar nunca jamais terá sêde. Mas a água que eu lhe der virá a ser nêle uma fonte de água, que salte para a vida eterna. Mulher, crede-me, que é chegada a hora em que vós não adorareis o Pai, nem neste monte, nem em Jerusalém. Vós

ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

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adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, porque dos judeus é que vem a salvação. Mas a hora vem, e agora é, quando os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade; porque quer também o pai que se­ jam os que adorem. Deus é espírito e em espírito e verdade é o que o devem adorar os que o adoram. Eu sou

(o Messias) que falo contigo.

Eu, para comer, tenho um manjar que vós não sabeis. A minha comida é fazer eu a verdade daquele que me enviou, para cumprir a sua obra. Não dizei vós que ainda há quatro meses até à ceifa? Mas eu digo-vos: levantai os vossos olhos, e olhai para essas terras, que já estão branquejando próximas à ceifa. E o que sega recebe galardão, e ajunta fruto para a vida eterna, para que assim o que semeia como o que sega juntamente se regozijem, porque nisto é verdadeiro o ditado que um é o que semeia e outro o que sega. Eu enviei-vos a segar o que vós não trabalhastes; outros foram os quetraba­ lharam, e vós entrastes nos seus trabalhos. Vós, se não vêdes milagres e prodígios, não credes. Vai, que teu filho vive. c a p ít u l o

v

Em verdade, em verdade vos digo que o Filho não pode de si mesmo fazer coisa alguma, senão o que vir a fazer ao Pai, porque tudo o que fizer o Pai ama ao Filho, e mostra-lhe tudo o que êle fa z; e maiores obras do que estas lhe mostrará até o ponto de vós ficardes admirados, porque assim como o Pai ressuscita os mortos e lhes dá vida, assim também dá o Filho vida àqueles que quer, porque o Pai a ninguém julga, mas todo o juízo deu ao Filho, a fim de que todos honrem ao Filho, bem como honram ao P a i; o que não honrar ao Filho não honra ao Pai, que o enviou. Em verdade vos digo que quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna e não incorre na condenação, mas passou da mor­ te para a vida. Em verdade, em verdade vos digo que vem a hora, e agora é, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus. E os que a ouvirem viverão, porque, assim como o Pai tem a vida em si mesmo, assim também deu êle ao Filho ter vida em si mesmo. E lhe deu o poder de exercitar o juízo, porque é Filho do Homem. Não vos maravilheis disso, porque vem a hora em que todos os que se acham nos sepulcros ouvi­

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO MUNDIAL

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rão a voz do filho de Deus, e os que obraram bem sairão para a ressurreição da vida; mas os que obraram mal, sairão res­ suscitados para a condenação. Eu não posso de mim mesmo fazer coisa alguma. Assim como ouço, julgo; e o meu juízo é justo, porque não busco a minha vontade, mas a vontade da­ quele que me enviou. Se eu dou testemunho de mim mesmo, não é verdadeiro o meu testemunho. Outro é o que dá teste­ munho de mim; e eu sei que é verdadeiro o testemunho que êle dá de mim. Vós enviastes mensageiros a João; e êle deu testemunho da verdade. Eu, porém, não é do homem que recebo o testemunho, mas digo-vos estas coisas, a fim de que sejais salvos. Êle era uma lâmpada que ardia e alumiava. E vós, por algum tempo, quisestes alegrar-vos com a sua luz. Mas eu tenho maior testemunho que o de João, porque as obras que meu Pai me deu que cumprisse, as mesmas obras que eu faço, dão por mim testemunho de que meu Pai é quem me enviou; e meu Pai, que me enviou, êsse é o que deu testemu­ nho de mim; vós nunca ouviste a sua voz, nem vistes que o representasse; e não tendes em vós permanente a sua palavra, porque não credes no que êle enviou. Examinai as Escrituras, pois julgais ter nelas a vida eterna; e elas mesmas são as que dão testemunho de mim; mas vós não quereis vir a mim, para terdes vida. Eu não recebo dos homens a minha glória. Mas bem vos conheço, que não tendes em vós a dileção de Deus. Eu vim em nome de meu Pai, e vós não me recebeis; se vier outro em seu próprio nome, haveis de recebê-lo. Como podeis crer vós outros que recebeis a glória uns dos outros, e que não buscais a glória, quem vem só de Deus? Não julgueis que eu vos hei de acusar diante de meu P a i: o mesmo Moisés, em que vós tendes as esperanças, é 'o que vos acusa. Porque, se vós crêsseis a Moisés, certamente acreditaríeis também em mim, porque êle escreveu de mim. Porém, se vós não dais crédito aos seus escritos, como dareis crédito às milhas palavras? CAPÍTULO

VI

Sou eu, não temais. Em verdade, em verdade vos digo que vós me buscais, não porque vistes os milagres, mas porque comestes dos pães e ficastes fartos. Trabalhai, não pela comida que perece, mas pela que dura até a vida eterna, a qual o Filho do Homem nos dará, porque êle é o em que Deus Padre imprimiu o seu sêlo.

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

A obra de Deus é esta, que creiais naquele que êle enviou. Em verdade, em verdade vos digo que Moisés não vos deu o pão do Céu, mas meu Pai é o que vos dá o verdadeiro pão do Céu, porque o pão de Deus é o que desceu do Céu e que dá vida ao mundo. Eu sou o pão da vida: o que vem a mim não terá jamais fome, e o que crê em mim não terá jamais sêde. Porém, eu já disse que vós me vistes e que me não credes. Todo o que meu Pai me dá virá a mim; e o que vem a mim não o lançarei fora porque eu desci do Céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. E essa é a vontade da­ quele Pai que me enviou, que nenhum perca eu de todos aquêles que êle deu, mas que o ressuscite no último dia. E a von­ tade de meu Pai que me enviou é esta: que todo o que vê o Filho e crê nêle tenha a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Não murmureis entre vós outros. Ninguém pode v ir a mim, se o Pai, que me enviou, o não trouxer; e eu o ressus­ citarei no último dia. Escrito está nos profetas; e serão todos ensinados de Deus. Assim que todo aquêle que do Pai ouviu e aprendeu vem a mim. Não que alguém tenha visto ao Pai, senão só aquêle que é de Deus, êsse é o que tem visto ao Pai. Em verdade, em verdade vos digo: o que crê em mim tem a vida eterna. Eu sou o pão da vida. Vossos pais comeram o maná no deserto e morreram. Aqui está o pão que desceu do Céu, para que todo que dêle comer não morra. Eu sou o pão vivo que desci do Céu. Se qualquer comer dêste pão, viverá eternamente; e o pão que eu darei é a minha carne, para ser a vida do mundo. Em verdade, em verdade vos digo: se não comerdes a carne do Filho do Homem, e beberdes o seu sangue não tereis vida em vós. O que come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia, porque a minha carne verdadeiramente é comida, e o meu sangue ver­ dadeiramente é bebida. O que come a minha carne e bebe o meu sangue, êsse fica em mim, eu nêle. Assim como o Pai, que é vivo, me enviou, e eu vivo pelo Pai, assim o que se ali­ menta com a minha carne, êsse mesmo também viverá por mim. Aqui está o pão que desceu do Céu. Não como vossos pais, que comeram o maná e morreram. O que come dêste pão viverá eternamente.

ÀNTOLOGIÁ DO PENSAMENTO M UNDIAL

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Isto escandaliza-vos? Pois que será, se vós virdes o Filho do Homem onde êle primeiro estava? O espírito é que vivific a ; a carne para nada aproveita; as palavras que eu vos disse são espírito e vida. Mas há alguns de vós outros que não crêem. Por isso eu vos tenho dito que ninguém pode v ir a mim, se por meu Pai lhe não fô r isso concedido. Quereis vós outros também retirar-vos? Não é assim, que eu vos escolhi em número de doze, e con­ tudo, um de vós é o diabo? CAPÍTULO

VII

Ainda não é chegado o meu tempo; mas o vosso tempo sempre está pronto. O mundo não vos pode aborrecer, mas êle me aborrece a mim, porque eu dou testemunho dêles, que são más as suas obras. Vós outros subi a esta festa; que eu todavia não vou a esta festa, porque não é ainda cumprido o meu tempo. A minha doutrina não é minha, mas é daquele que me en­ viou. Se alguém quiser fazer*a vontade de Deus, reconhecerá se a minha doutrina vem dêle, ou se eu falo de mim mesmo. O que fala de si mesmo busca a própria glória; mas aquêle que busca a glória de quem o enviou, êsse é verdadeiro e não há nêle injustiça. Não é assim que Moisés vos deu a Lei e, contudo, nenhum de vós cumpre com a Lei? Por que me pro­ curais vós matar? Eu fiz uma só obra e todos vós estais por isso maravilha­ dos. Vós, contudo, porque Moisés vos ordenou a circuncisão (se bem que ela não vem de Moisés, mas dos patriarcas), no sábado mesmo circuncidais um homem. Se por não se violar a Lei de Moisés que vos ordenou a circuncisão em dia sábado, por que vos indignais de que eu em dia de sábado curasse a todo um homem? Não julgueis segundo a aparência, mas jul­ gai segundo a reta justiça. Vós outros não só me conheceis, mas sabeis donde eu sou; e eu não vim de mim mesmo, mas é verdadeiro o que me en­ viou, a quem vós não conheceis; eu sou quem o conheço, por­ que dêle sou e êle me enviou.

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ANTOLOGIA DA LITERATURA M UNDIAL

Ainda por um pouco de tempo estou convosco; e depois vou para aquêle que me enviou. Vós me buscareis e não me achareis; nem podeis v ir onde eu estou. Se alguém tem sêde, venha a mim e beba. O que crê em mim, como diz a Escritura, do seu ventre correrão rios d’água viva. CAPÍTULO

VIII

Eu sou a luz do mundo; o que me segue não anda em trevas, mas terá o lume da vida. Ainda que eu mesmo seja o que dá testemunho de mim, o meu testemunho é verdadeiro, porque sei donde vim e para onde vou; mas vós não sabeis donde eu venho nem para onde vou. Vós julgais segundo a carne; eu a ninguém julgo; e se eu julgo a alguém, o meu juízo é verdadeiro, porque não sou só; mas eu e o Pai, que me enviou. E na vossa mesma lei está escrito que o testemunho de duas pessoas é verdadeiro. Ora, eu sou o que dou testemunho de mim mesmo; e meu Pai, que me enviou, também dá testemunho de mim. Vós não me conheceis a mim, nem a meu Pai; se me conhecêsseis a mim, certamente conheceríeis também a meu Pai. Eu retiro-me e vós me buscareis e morrereis no vosso pe­ cado. Para onde eu vou não podeis ir. Vós sois cá de baixo e eu sou lá de cima. Vós sois dêste mundo, e eu não sou dêste mundo. Por isso eu vos disse que morrereis nos vossos pecados, porque, se não crerdes em quem eu sou, morrereis no vosso pecado. Eu sou o princípio, o mesmo que vos falo. Muitas coisas são as que tenho que vos dizer, e de que vos condenar; mas o que me enviou é verdadeiro e eu o que digo no mundo é o que dêle aprendi. Quando vós tiverdes levantado o Filho do Homem, então conhecereis quem eu sou e que nada faço de mim mesmo, mas que, como o Pai me ensinou, falo; e o que me enviou está co­ migo e não me deixou só, porque eu sempre faço o que é do seu agrado. Se vós permanecerdes na minha palavra, sereis verdadei­ ramente meus discípulos; e conhecereis a verdade, e a verdade vos livrará.

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO MUNDIAL

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Em verdade, em verdade vos digo que todo o que comete pecado é escravo do pecado; ora, o escravo não fica para sem­ pre na casa, mas o Filho fica nela para sempre; assim que, se o Filho vos livrar, sereis verdadeiramente livres. Eu bem sei que sois filhos de Abraão, mas vós quereis me dar a morte, porque a minha palavra não cabe em vós. Eu falo o que vi em meu P a i; e vós fazeis o que vistes em vosso pai. Se sois filhos de Abraão, fazei obras de Abraão. Mas vós atualmente procurais tirar-me a vida, a mim que sou um ho­ mem que vos falei a verdade, que ouvi de Deus; isto é o que Abraão nunca fêz. Vós fazeis as obras de vosso pai. Se Deus fosse vosso Pai, vós certamente me amaríeis por­ que eu saí de Deus, e vim, porque não vim de mim mesmo, mas êle foi quem me enviou. Por que não conheceis a minha fala? É porque não podeis ouvir a minha palavra. Vós sois filhos do diabo e quereis cumprir os desejos de vosso pai; êle era ho­ micida desde o princípio, e não permaneceu na verdade porque a verdade não está nêle, quando êle diz a mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira. Mas ainda que eu vos diga a verdade vós não me credes. Qual de vós me argüirá de pecado? Se eu vos digo a verdade, por que não me credes? O que é de Deus ouve as palavras de Deus. Por isso vós não as ouvis, porque não sois de Deus. Eu não tenho demônio, mas dou honra a meu Pai, e vós a mim desonraste-me. E eu não busco a minha glória; outro é o que a buscará e que fará justiça. Em verdade, em verdade vos digo que, se alguém guardar a minha palavra, não verá a morte eternamente. Se eu glorifico a mim mesmo, não é nada a minha glória; meu Pai é que me glorifica, aquêle que vós dizeis que é vosso Deus. Entretanto, vós não o tendes conhecido; mas eu conhe­ ço-o ; e se disser que o não conheço, serei, como vós, mentiroso. Mas eu conheço-o e guardo a sua palavra. Vosso pai Abraão desejou ansiosamente ver o meu dia; viu-o e ficou cheio de gozo. Em verdade, em verdade vos digo que antes que Abraão fosse feito, eu já era. CAPÍTULO

IX

Nem foi pecado que êle fizesse, nem seus pais; mas foi para se manifestarem nêle as obras de Deus. Importa que eu

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

faça as obras daquele que me enviou, enquanto é dia; a noite vem, quando ninguém pode obrar. Eu, entretanto, que estou no mundo, sou a luz do mundo. Eu vim a êste mundo a exercitar um juízo, a fim de que os que não vêem vejam e os que vêem se façam cegos. Se .vós fosseis cegos, não teríeis culpa, mas, como vós agora mesmo dizeis, nós vemos, fica subsistindo o vosso pecado. Em verdade, em verdade vos digo que o que não entra pela porta no aprisco das ovelhas, mas sobe por outra parte, êsse é ladrão e roubador. O que, porém, entra pela porta, êsse é pastor das ovelhas. A êste, abre o porteiro e as ovelhas ouvem a sua voz, e às ovelhas próprias chama pelo seu nome, e as tira para fora. E, depois que tirou para fora as próprias ovelhas, vai adiante delas; e as ovelhas o seguem, porque co­ nhecem a sua voz. E não seguem o estranho, antes fogem dêle, porque não conhecem a voz dos estranhos. c a p ít u l o

x

Em verdade, em verdade vos digo que eu sou a porta das ovelhas. Todos quantos têm vindo são ladrões e roubadores, e as ovelhas não lhes deram ouvidos. Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim, será salvo e êle entrará, e sairá e achará pastagens. O ladrão não vem senão a furtar e a matar e a perder. Mas eu vim para elas terem vida e para terem em maior abundância. Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a própria vida pelas suas ovelhas. Porém, o mercenário e o que não é pastor, de quem não são próprias as ovelhas, vê vir o lobo, e deixa as ovelhas e foge; e o lobo arrebenta e faz desgarrar as ovelhas; e o mercenário foge, porque é mercená­ rio e porque lhe não tocam as ovelhas. Eu sou o bom pastor, e eu conheço as minhas ovelhas, e as que são minhas me co­ nhecem a mim. Assim como meu Pai me conhece, também eu conheço a meu P a i; e ponho a minha vida pelas minhas ove­ lhas. Tenho também outras ovelhas que são dêste aprisco; e importa que eu as traga e elas ouvirão a minha voz, e haverá um aprisco e um pastor. Por isso meu Pai me ama, porque eu ponho a minha vida, para outra vez a assumir. Ninguém a tira de mim, mas eu de mim mesmo a ponho, e tenho poder de a pôr, e tenho poder de a reassumir. Eu digo-vo-lo, e vós não me credes; as obras que eu faço em nome de meu Pai, elas dão testemunho de mim. Porém

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M UNDIAL

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vós não credes, porque não sois das minhas ovelhas. As mi­ nhas ovelhas ouvem a minha voz, e eu conheço-as, e elas me seguem. E eu lhes dou a vida eterna e elas nunca jamais hão de perecer, e ninguém as há de arrebatar da minha mão. O que meu Pai me deu é maior do que todas as coisas, e ninguém as pode arrebatar da mão de meu Pai. Eu e o Pai somos uma mesma coisa. Eu tenho-vos mostrado muitas obras boas, que fiz em virtude de meu P a i; por qual destas obras me quereis vós apedrejar? Não é assim que está escrito na vossa L ei: eu disse, vós sois deuses? Se ela chama deuses àqueles a quem a palavra de Deus é dirigida e a Escritura não pode falhar, a mim, a quem o Pai santificou, e enviou ao mundo, por que dizeis vós: tu blasfemas, por eu ter dito que sou Filho de Deus? Se eu não faço as obras de meu Pai, não me creais. Porém, se eu as faço e quando não quereis crer em mim, crede em minhas obras, para que conheçais e creais que o Pai está em mim, e eu no Pai. CAPÍTULO

XII

É chegada a hora em que o Filho do Homem será glorificado. Em verdade, em verdade vos digo que, se o grão de trigo que cai na terra não morrer, fica êle só; mas, se êle morrer, produz muito fruto. O que ama a sua vida perdê-la-á e o que aborrece a sua vida neste mundo conservá-la-á para a vida eterna. Se alguém .me servir, meu Pai o honrará. Agora, presentemente, está turbada a minha alma. E que di­ rei eu? Pai, livrai-me desta hora. Mas, para padecer nesta hora é que eu vim a ela. Pai, glorifica o teu nome. Esta vos não veio por amor a mim, mas veio por amor a vós outros. Agora é o juízo do mundo; agora será lançado fora o príncipe dêste mundo. E eu, quando fô r levantado da terra, todas as coisas atrairei a mim mesmo. Ainda por pouco de tempo está a luz convosco. Andai enquanto tendes luz, para que vos não apanhem as trevas, por­ que quem caminha em trevas não sabe por onde vai. Enquanto tendes a luz, crede na luz, para que sejais filhos da luz. O que crê em mim, não crê em mim, mas naquele que me enviou. E o que me vê a mim vê aquêle que me enviou.

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

Eu, que sou a luz, vim ao mundo, para que todo o que crê em mim não fique em trevas. E, se alguém ouvir as palavras e não as guardar eu não o julgo, porque não vim a julgar o mun­ do, mas a salvar o mundo. O que me despreza e não recebe as minhas palavras tem quem o julgue; a palavra que eu tenho falado, essa o julgará no dia último, porque eu não falei de mim mesmo, mas o Pai, que me enviou, é o mesmo que me prescreveu, pelo seu mandamento, o que eu devo dizer e o que devo falar. E eu sei que o seu mandamento é a vida eterna. Assim que o que eu digo, digo-o segundo mo disse o Pai. CAPÍTULO

XIII

Aquêle que está lavado não tem necessidade de lavar senão os pés, e no mais todo êle está limpo. E vós outros estais lim­ pos, mas não todos. Sabeis o que vos diz? Vós chamai-me Mestre e Senhor, e dizeis bem, porque o sou. Se eu, logo, sendo vosso Senhor e Mestre, vos lavei os pés, deveis, vós também, lavar-vos os pés uns aos outros, porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, assim façais vós também. Em verdade, em verdade vos digo: não é o servo maior do que o seu senhor, nem o enviado é maior do que aquêle que o enviou. Se sabeis estas coisas, bem-aventurados sereis, se a praticardes. Eu não digo isto de todos vós, eu sei os que tenho escolhido; porém, é necessário que se cumpra o que diz a Escritura. O que come o pão comigo levantará contra mim o seu calcanhar. Desde agora vo-lo digo, antes que suceda, para que, quando suceder, acrediteis que eu sou. Em verdade, em verdade vos digo: o que recebe aquêle que eu enviar, a mim me recebe, e o que me recebe a mim recebe aquêle que me enviou. Em verdade, em verdade vos digo que um de vós me há de entregar. Agora é glorificado o Filho do Homem, e Deus é glorificado nêle. Se Deus é glorificado nêle, também a êle o glorificará Deus em si mesmo e glorificá-lo-á logo. Filhinhos, ainda estou convosco um pouco. Vós buscar-me-eis, e o que eu disse aos judeus: vós não podeis ir para onde eu vou, isso mesmo vos digo eu agora. Eu dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei, para que vós também mutuamente vos ameis. Nisto, conhecerão todos que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros.

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M UNDIAL

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Para onde eu vou não podes tu agora seguir-me mas, seguir-me-ás depois. Hás de dar a tua vida por mim? Em verdade, em ver­ dade te digo que não cantará o galo, sem que tu me negues três vêzes. CAPÍTULO

XIV

Não se turbe o vosso coração. Crede em Deus, crede tam­ bém em mim. Na casa de meu Pai há muitas moradas; se assim não fora, eu vo-lo tivera dito, pois vou a aparelhar-vos o lugar. E, depois que eu fôr, e vos aparelhar o lugar, virei outra vez, e tomar-vos-ei para mim mesmo, para que, onde eu estou, estej ais vós também. Assim que vós sabeis para onde eu vou, e sabeis o caminho. Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim. Se vós me conhecêsseis a mim, também certamente havíeis de conhecer a meu Pai; mas o conhecê-lo-eis bem cedo e já o tendes visto. Há tanto tempo que estou convosco, e. ainda me não ten­ des conhecido? Felipe, quem me vê a mim, vê também o Pai. Como dizes tu, logo mostra-nos o Pai? Não credes que eu estou no Pai, e que o Pai está em mim? As palavras que eu vos digo, não as digo de mim mesmo; mas, o Pai, que está em mim, êsse é o que faz as obras. Não credes que eu estou no Pai, e que o Pai está em mim? Crede-o, ao menos por causa das mesmas obras. Em verdade, em verdade vos digo que aquêle que crê em mim, êsse fará também as obras que eu faço, e fará outras ainda maiores, por que eu vou para o Pai. E tudo o que pedirdes ao Pai, em meu nome, eu vo-lo farei, para que o Pai seja glorificado no Filho. Se me amais, guar­ dai os meus mandamentos. E eu rogarei ao Pai, e êle vos dará outro Paráclito, para que fique eternamente convosco; espírito de verdade, a quem o mundo não pode receber, por­ que o não vê, nem o conhece, mas vós o conhecereis, porque êle ficará convosco e estará em vós. Não vos hei de deixar órfãos. E eu hei de v ir a vós. Resta ainda um pouco; depois já o mundo me não verá. Mas ver-me-eis vós, porque éu vivo e vós vivereis. Naquele dia, conhecereis que eu estou em meu Pai, e vós em mim, e eu em vós. Aquêle que tem os meus mandamentos, e què os guarda, êsse é o que me ama. E aquêle que me ama será amado de meu Pai, e eu o amarei também, e me manifestarei a êle.

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ANTOLOGIA DA LITERATURA M UNDIAL

Se algum me ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o amará, e nós viremos a êle, e faremos nêle morada. O que me não ama não guarda as minhas palavras. E a palavra que vós tendes ouvido não é minha, mas sim do Pai que me enviou. Eu disse-vos estas coisas, permanecendo convosco. Mas o Con­ solador. que é o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, toêle vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito. A paz vos deixo, a minha paz vos dou, e eu não vo-Ja dou, como a dá o mundo. Não se turbe o vosso coração, nem fique sobressaltado. Já tendes ouvido que eu vos disse; eu vou, e venho a vós. Se vós me amásseis, cer­ tamente havíeis de folgar de que eu vá para o Pai, porque o Pai é maior do que eu. E eu vo-lo disse agora, antes que su­ ceda, para que quando suceder, o creiais. Já não falarei muito convosco, porque vem o príncipe dêste mundo, e êle não tem em mim coisa alguma, mas para que conheça que amo ao Pai, e que faço como êle me ordenou, levantai-vos, vamo-nos daqui. CAPÍTULO

XV

Eu sou a videira verdadeira e meu Pai é o agricultor. To­ das as varas que não derem fruto em mim, êle as tirará, e todas as que derem fruto, já estais puros, em virtude da pa­ lavra que eu vos disse. Como a vara da videira não pode de si mesma dar fruto, se não permanecer na videira, assim nem vós o podereis dar, se não permanecerdes em mim. Eu sou a videira, vós outros as varas; o que permanece em mim, e o que em que eu permaneço, êsse dá fruto, porque vós sem mim não podeis fazer nada. Se alguém não permanecer em mim, será lançado fora como a vara, e secará e enfeixá-lo-ão, e lançá-lo-ão no fogo, e ali arderá. Se vós permanecerdes em mim, e as mi­ nhas palavras permanecerem em vós, pedireis tudo o que quiserdes, e ser-vos-á feito. Nisto é glorificado meu Pai, em que vós deis muito fruto, e em que sejais discípulos. Como meu Pai me amou, assim, vos amei eu. Permanecei no meu amor. Se guardardes os meus preceitos, permanecereis no meu amor, assim como também eu guardei os preceitos de meu Pai, e per­ maneço no seu amor. Eu tenho-vos dito estas coisas, para que o meu gozo fique em vós, e para que o vosso gozo seja com­ pleto. O meu preceito é êste, que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei. Ninguém tem maior amor do que êste de dar um a própria vida por seus amigos. Vós sois meus ami­

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gos, se fizerdes o que eu vos mando. Já vos não chamarei ser­ vos, porque o servo não sabe o que faz seu senhor. Mas chamei-vos amigos, porque vos descobri tudo quanto ouvi de meu Pai. Vós não fôstes os que me escolhestes a mim; mas eu fui o que vos escolhi a vós e o que vos constituí para que vades e deis frutos, e para que vosso fruto permaneça, para que tudo quanto vós pedirdes a meú Pai, em meu nome, êle vo-lo con­ ceda. Isto é o que eu vos mando, que vos ameis uns aos outros. Se o mundo vos aborrece, sabei que, primeiro do que a vós me aborreceu êle a mim. Se vós fosseis do mundo, amaria o mun­ do o que era seu: mas porque vós não sois do mundo, antes eu vos escolhi do mundo, por isso é que o mundo vos aborrece. Lembrai-vos da minha palavra que eu vos disse: não é o servo maior do que seu senhor. Se êles me perseguiram a mim, tam­ bém vos hão de perseguir a vós; se êles guardaram a minha palavra, também hão de guardar a vossa. Mas êles far-vos-ão todos êstes maus tratamentos por causa do meu nome, porque não conhecem aquêle que me enviou. Se eu não viera e não lhes tivera falado, não teriam êles pecado; mas agora não têm desculpa no seu pecado. Aquêle que me aborrece, aborrece também a meu Pai. Se eu não tivera feito entre êles tais obras, quais não fêz outro algum, não haveria de parte dêles pecado, mas agora êles não somente as viram, mas ainda me aborre­ ceram tanto a mim como a meu Pai. Mas isto é para se cum­ prir a palavra que está escrita na sua le i: êles me aborrecerão sem motivo. Quando, porém, vier o Consolador, aquêle espí­ rito de verdade que procede do Pai, que eu vos enviarei da par­ te do Pai, êle dará testemunho de mim. E também vós dareis testemunho, porque estais comigo desde o princípio. CAPÍTULO

XVI

Eu disse-vos estas coisas, para que vós vos não escandali­ zeis. Êles vos lançarão fora das Sinagogas; e está a chegar o tempo em que todo o que vos matar julgará que nisso faz serviço a Deus; e êles vos tratarão assim, porque não conhe­ cem ao Pai, nem a mim. Ora, eu disse-vos estas coisas, para ■que, quando chegar êste tempo, vos lembreis de que eu vo-las disse. Não vo-las disse, porém, desde o princípio, porque esta­ c a convosco; e agora vou eu para aquêle que me enviou, e nenhum de vós me pergunta: para onde vais? Antes, porque eu vos disse estas coisas, apoderou do vosso coração a tristeza.

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ANTOLOGIA DA LITERATURA M UNDIAL

Mas eu digo-vos a verdade, a vós convém que eu vá, porque, se eu não for, não vos virá o Consolador; mas, se for, enviar-vo-lo-ei. E êle, quando vier, argüirá o mundo do pecado e da justiça e do juízo. Sim, do pecado, porque não creram em mim; e da justiça, porque eu vou para o Pai, e vós não me vereis mais. Do juízo, enfim, porque o príncipe dêste mundo já está ju lg a d o .. Eu tenho ainda muitas coisas que vos dizer, mas vós não as podeis suportar, agora. Quando vier, porém, aquêle Espírito de verdade, êle vos ensinará todas as verdades, porque êle não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e anunciar-vos-á coisas que estão para vir. Êle me glorificará, porque há de receber do que é meu, e vo-lo há de anunciar. Todas quantas coisas tem o Pai são minhas; por isso é que eu vos disse que êle há de receber do que é meu; e vo-lo há de anunciar. Um pouco, e já me não vereis; e outra vez um pouco, e ver-me-eis, porque vou para o Pai. Vós perguntais uns aos outros que é o que vos quis eu significar, quando disse: um pouco e já me não vereis, e outra vez um pouco, e ver-me-eis. Em verdade, em verdade vos digo que vós haveis de chorar e gemer e que o mundo se há de alegrar; e que vós haveis de estar tristes, mas que a vossa tristeza se há de converter em gozo. Quando uma mulher dá a luz está em tristeza, porque é chegada a sua hora; mas, depois que ela pariu um menino, já se não lembra do apêrto, pelo gozo que tem, por haver nascido ao mundo um homem. Assim também vós outros, sem dúvida, estais agora tristes, mas eu hei de ver-vos de novo e o vosso coração ficará cheio de gozo; e o vosso gozo ninguém vô-lo tirará. E, naquele dia, nada mais me perguntareis. Em verdade, em verdade vos digo: se vós pedirdes a meu Pai alguma coisa em meu nome, êle vô-la há de dar. Vós até agora não pedistes nada em meu nome. Pedi e recebereis, para que o vosso gozo seja completo. Eu tenho-vos dito estas coisas debaixo de parábolas. Está che­ gando o tempo em que eu vos não hei de falar já por parábolas, mas abertamente vos falarei do Pai. Naquele dia, pedireis vós em meu nome, e eu não vos digo que hei de rogar ao Pai por vós outros, porque o mesmo Pai vos ama, porque vós me amastes, e crestes que eu saí de Deus. Eu saí do Pai e vim ao mundo; outra vez deixo o mundo e torno para o Pai. Vós credes, agora? Eis aí vem e já é chegada a hora em que sejais espalhados, cada um para sua parte, e que me dei­

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M UNDIAL

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xeis só; mas eu não estou só, porque o Pai está comigo. Eu tenho-vos dito estas coisas, para que vós tenhais paz em mim; Vós haveis de ter aflições no mundo; mas tende confiança, eu venci o mundo. CAPÍTULO

XVII

Pai, é chegada a hora, glorifica a teu Filho, para que teu. Filho te glorifique a ti. Assim como tu lhe deste poder sobre todos os homens, a fim de que êle dê a vida eterna a todos aquêles que tu lhe deste. A vida eterna, porém, consiste em que êles conheçam por um só verdadeiro Deus a ti e a Jesus* Cristo, que tu enviaste. Eu glorifiquei-me sobre a terra; eu acabei a obra que tu me ericarregaste que fizesse; tu pois, ago­ ra, Pai, glorifica-me a mim em ti mesmo, com aquela glória que eu tive em ti, antes que houvesse mundo. Eu manifestei o teu nome aos homens que tu me deste do mundo; êles eram; teus, e tu mos deste; êles guardaram a tua palavra. Agora? conheceram êles que todas as coisas que tu me deste vêm de: ti, porque eu lhes dei as palavras que tu me deste; e êles a: receberam e verdadeiramente conheceram que eu saí de ti e creram que tu me enviaste. Por êles é que eu rogo. Eu nãOj rogo pelo mundo, mas por aquêles que tu me deste, porque são teus; e todas as minhas coisas são tuas, e todas as tuas coisas são minhas; e nêles sou eu glorificado. E eu não estou jamais1 no mundo, mas êles estão no mundo, e eu vou para ti. Padre1 Santo, guarda em teu Nome aquêles que me deste, para que' êles sejam um, assim como também nós. Quando eu estava com êles, eu os guardava em teu Nome. Eu conservei os que/ tu me deste; e nenhum dêles se perdeu, mas somente o que; era filho de perdição, para se cumprir a Escritura. Mas agora vou eu para ti e digo estas coisas, estando ainda no mundo,, para que êles tenham em si mesmos a plenitude do meu gozo/ Eu dei-lhes a tua palavra, e o mundo os aborreceu, porque êles' não são do mundo, como também eu não sou do mundo. Eu não peço que os tires do mundo, mas sim que os guardes do mal. Êles não são do mundo, como eu também não sou do mundo. Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo. E eu me santifico a mim mesmo por êles, . para que também sejam santificados na verdade. E eu não rogo somente por êles, mas rogo também por aquêles que hão de crer em mim por meio da sua palavra, para que êles sejam

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ANTOLOGIA DA LITERATURA M UNDIAL

todos um, como tu, Pai, o és em mim, e eu em ti, para que também êles sejam um em nós. e creia o mundo que tu me enviaste. E eu lhes dei a glória que tu me havias dado. Eu estou nêles, e tu estás em mim, para que êles sejam consumados na unidade, e para que o mundo conheça que tu me enviaste e que tu os amaste, como amaste também a mim. Pai, a minha von­ tade é que, onde eu estou, estejam também comigo aquêles que tu me dêste, para verem a minha glória, que tu me deste por­ que me amaste antes da criação do mundo. Pai justo, o mundo não te conheceu, mas eu conheci-te, e êstes conheceram que tu me enviaste. E eu lhes fiz conhecer o teu nome, e lho farei ainda conhecer, a fim de que o mesmo amor, com que tu me amaste, esteja nêles e eu nêles. CAPÍTULO

XVIII

Eu falei publicamente ao mundo; eu sempre ensinei na Sinagoga e no Templo, aonde concorrem todos os judeus e nada disse em secreto. Por que me fazes tu perguntas? Faze-aa àqueles que ouviram o que eu lhes disse: ei-los, aí estão os que sabem o que eu ensinei. Se eu falei mal, dá tu testemunho do mal, mas, se eu falei bem, por que me feres? O meu reino não é dêste mundo; se o meu reino fosse dêste mundo, certo que os meus ministros haviam de pelejar, para que eu não fosse entregue aos judeus; mas agora não é daqui o meu reino. Tu o dizes que eu sou rei. Eu para isso nasci, e ao que vim ao mundo foi para dar testemunho da verdade; todo o que é da verdade ouve a minha voz. Tu não terias sobre mim poder algum, se êle te não fora dado lá de cima. Por isso, o que me entregou a ti tem maior pecado. CAPÍTULO

XIX

Maria! Não me toques, porque ainda não subi a meu P a i; mas vai a meus irmãos e dize-lhes que vou para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus. Paz seja convosco. Assim como o Pai me enviou a mim, também eu vos envio a vós.

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M UNDIAL

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Recebei o Espírito Santo; aos que vós perdoardes os pe­ cados ser-lhe-ão êles perdoados. E aos que vós os retiverdes, ser-lhes-ão êles retidos. Mete aqui o teu dedo, e vê as minhas mãos, chega tam­ bém a tua mão e mete-a no meu lado. E não sejas incrédulo, mas fiel. Tu creste, Tomé, porque me viste. Bem-aventurados os que não viram e creram. CAPÍTULO

XXI

Simão, filho de João, tu amas-me? Apascenta os meus cordeiros. Em verdade, em verdade te digo: quando tu eras mais moço tu te cingias e ias por onde te dava na vontade, mas, quando já fores velho, estenderás as tuas mãos e outro será o que te cinja e que te leve para onde não queiras. (Extraídas da tradução clássica da Bíblia, feita pelo Padre Antônio Pereira de Figueiredo.)

P A L A V R A S DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS

I Irmão lobo: Vem aqui, aproxima-te de mim, escuta-me: Eu te mando, em nome de Cristo, que veio trazer-nos a paz e o amor, não me faças mal, nem a mim nem a nenhuma das criaturas que são Suas. Causaste muitos males, nestas terras, que tomaste para exercer tuas depredações; mataste animais sem licença de Deus, e não só animais mas também homens, feitos à seme­ lhança do Senhor. Por isso, o povo se queixa e murmura contra ti, meu irmão lobo, a quem amo, e com quem eu quero fazer a paz. Tu não lhes farás mal, êles também não te farão, e mütuamente perdoareis as ofensas. *

*

*

Ouvi, irmãos homens: Eis aqui nosso irmão, o lobo. Se êle matou, isso se deve a vós terdes negado sustento a êle; se êle vos ofendeu, vós o ofendestes também. Prometei-vos mütuamente a paz; respeitai-vos, cuidai tan­ to dos direitos vossos quanto dos direitos do outro; estabelecei entre vós o pacto de amor que a todos mandou Deus. II Meus filhos: Devemos amar os nossos inimigos e fazer o bem àqueles que nos aborrecem, praticando os preceitos e conselhos de Nosso Senhor Jesus Cristo. Tenhamos caridade para aquêles que nos odeiam. Não podemos pedir a Deus perdão por nossos pecados, se antes não tivermos perdoado a quem cometeu mal assim como nós.

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M UNDIAL

7.1

O perdão exige o esquecimento de todas as afrontas. Aquêles que perdoamos com a palavra, devemos perdoá-los também com a mente e com o coração. Amemos a nosso próximo assim como a nós próprios. E se alguém é incapaz de amar a seu próximo como a si mesmo, procure, então, fazer-lhe bem, e não mal. 111

Do verdadeiro amor: Bem-aventurado o irmão que com tanto afeto ama a sen irmão quando está doente, e de quem nada espera, como quan­ do está são, dêle podendo esperar alguma coisa. Bem-aventurado o irmão que tanto ama a seu irmão quan­ do está ausente como quando está presente, e nada diz em sua ausência que não possa repetir, diante dêle, com caridade. IV Da compaixão do próximo: Bem-aventurado o homem que suporta a seu próximo, con­ forme a sua fragilidade, do mesmo modo que êle desejaria que o suportassem a êle os outros, em circunstâncias parecidas. V Da limpidez do coração: Bem-aventurados os limpos de coração, porque êles verão a Deus. Limpos de coração são aquêles que desprezam as coisas dêste mundo e buscam as coisas celestiais, e com empenho, com coração límpido, estão continuamente entregues à adoração e à visão do Deus vivo e verdadeiro. VI Pelo amor de Deus, ouvi-me e crede em mim: Onde estão a caridade e a sabedoria, não há temor servil nem ignorância; onde estão a paciência e a humanidade, não há aborrecimento nem inquietude; onde está a pobreza com alegria, não há ganância nem avareza; onde estão a quietude

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

e a meditação, não há solicitude nem desassossêgo; onde o te­ mor dé Deus vigia os átrios, não pode entrar o inimigo; onde estão a misericórdia e a discrição, não há superficialidade nem engano. V II Tanto é cada .um quanto é aos olhos de Deus, e nada mais. Infelizes daqueles que, contentando-se tão-sòmente com aparências de virtudes, deixaram de exercitar-se em obras vir­ tuosas, no caminho da Cruz e na observação do Evangelho, que estão obrigados a guardar pura e simplesmente. Nada deve antepor-se. à saúde das almas, porque o Unigênito de Deus esteve, por elas, pendente da Cruz. Por isso, peço-vos que acrediteis nestas palavras: Entre todos os dons do Espírito Santo que.Jesus Cristo concedeu a seus servos, o maior e de mais consideração, é o de vencer-se a si mesmo, e o de sofrer por amor de Deus. VIII Isto te digo a ti, que detestas o trabalho: Segue teu ca­ minho, irmão mosca, pois queres comer do trabalho de teus irmãos, e permanecer ocioso nas obras de Deus, como o zângão, abelha ociosa e estéril, que nem trabalha nem se desvela, mas come à custa dos esforços e das utilidades das laboriosas irmãs abelhas. IX Irmãos: O Apóstolo disse: " A letra mata, mas o espírito vivifica” . Os que somente desejam saber palavras estão mortos pela letra. Êles querem ser considerados mais sábios que os demais para adquirir, assim, riquezas e dá-las a seus parentes e amigos. Êstes são os que estão mortos pela letra e não desejam praticar o espírito, mas sim buscam somente as palavras para explicá-las aos outros. Estão vivifiçados __pelo espírito os que não atribuem a si mesmos njTnhuma sabedoria, mas sim, os que, com as palavras e o exemplo, demonstram que a sabedoria é do Altíssimo, a quem pertence todo o bem.

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M UND IAL

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X Irmãos caríssimos: Eu, o mais humilde dos homens, quis ser servo do Senhor. Roguei a Êle e perguntei: mente sou teu servo?”

"Como poderei saber se real­

E Êle me respondeu: "Saberás que és meu servo, quando, em todas as tuas palavras, ém tôdos os teus pensamentos, em tôdas as tuas obras, se transluzirem as coisas santas” X I Irm ão: Ama a tôdas as criaturas irracionais, mas especialmente ao irmão Sol, que é o mais formoso e o que mais se assemelha a Nosso Senhor, que se chama a si mesmo nas Escrituras "Sol de Justiça” . Quando amanhece, todos os homens deveriam entoar cân­ ticos a Deus, que criou o Sol para o nosso bem e para que faça chegar a luz até nossos olhos. A o cair da tarde, todos deveriam louvar ao Senhor pelo irmão Fogo, que nos dá a sua luz na obscuridade noturna. Todos nós somos como cegos, e o Senhor ilumina nossos olhos, valendo-se daqueles irmãos nossos. E, põr isso, irmãos e por outros que diàriamente nos pres­ tam seus favores, devemos louvar sempre o Criador. X II Queridos irmãos: Em verdade vos digo que cada qual deve atender a sua própria natureza. Alguns de vós podem sustentar-se com poucos alimentos; outros, em troca, necessitam de comer mais. Ninguém está obrigado a imitar os que comem pouco, mas sim todos devem dar ao corpo o que seja necessário para que sirva com diligência o espírito. Do mesmo modo que devemos reprovar os excessivos man­ jares tão perigosos ao corpo e à alma, também devemos guardar-nos da demasiada abstinência.

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ANTOLOGIA DA LITERATURA M UNDIAL

XIII Oração: Rogo-te, Senhor, que a força dulcíssima e abrasadora de Teu amor se apodere de tal maneira de minha mente, que afastando-se de todas as coisas dêste mundo, possa ser eu capaz de morrer de amor por teu amor, já que Tu, por amor de meu amor, Te dignaste a morrer. X IV Irm ão: Usa o cântico e os instrumentos musicais para louvar ao Único Senhor. Regozijai vossos corações com cânticos e músicas se êles são dirigidos para glorificar e agradecer seus bens ao Criador. Os filhos dêste mundo ignoram os segredos da divindade. Por isso, as cítaras, os saltérios, as harpas e os címbalos, que utilizavam antes para louvar a Deus e dar consolo às almas, transformaram-se em instrumentos de vaidade e de pecado. Mas, se o irmão corpo sofre dores por causa de alguma doença, elas se amenizam com a música, sempre que esta sirva para a alegria do espírito e para a consolação pelo amor de Deus. XV CÂNTICO DO IRM ÃO SOL Altíssimo, onipotente, bom Senhor: teus são os louvores, a glória, a honra e toda a bendição. A T i só, Altíssimo, convém e nenhum homem é digno de fazer de T i menção. Louvado sejas, meu Senhor, por todas as tuas criaturas, especialmente o irmão Sol, o qual faz o dia e nos dá a luz. E é belo e radiante com grande esplendor; de Ti, Altíssimo, leva significação. Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã Lua e as Estréias: no céu as formaste, claras, e preciosas, e belas.

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M U ND IAL

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*|

Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão Vento, e pelo ar, e nublado, e sereno, e todo o tempo pelo qual às criaturas dás sustento. Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã Água, a qual é muito útil, e humilde, e preciosa, e casta. Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão Fogo, pelo qual iluminas a noite, e é belo e jocundo e robusto e forte. Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã Terra, a qual nos sustenta e governa, e produz diversos frutos com coloridas flores e ervas. Louvado sejas, meu Senhor, pelos que perdoam por teu amor, e suportam enfermidades e tribulação. Bem-aventurados os que as sofrem em paz, pois de ti, Altíssimo, coroados serão. Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã Morte corporal, da qual nenhum homem vivente pode escapar; ai daqueles que morrem em pecado mortal! Bem-aventurados aquêles que cumpriram Tua Santíssima [vontade, pois a morte segunda não lhes fará mal. Louvai e bendizei a meu Senhor e dai-lhe graças, e servi-lhe com grande humildade.

Rudyard Kipling

SE

Se és capaz de conservar o teu bom senso e a calma Quando os outros os perdem, e te acusam disso. Se és capaz de confiar em ti, quando de ti duvidam, E no entanto perdoares que duvidem, Se és capaz de esperar, sem perderes a esperança E não caluniares os que te caluniam, Se és capaz, de, sendo odiado, dar ternura, Tudo sem pensar que és sábio ou um modêlo dos bons, Se és capaz de sonhar, sem que o sonho te domine, E pensar, sem reduzir o pensamento a vício, Se és capaz de enfrentar o Triunfo e o Desastre, Sem fazer distinção entre êstes dois impostores, Se és capaz de ouvir a verdade que disseste, Transformada por canalhas em armadilhas aos tolos, Se és capaz de ver destruído o ideal da vida inteira E construí-lo outra vez com ferramentas gastas, Se és capaz de arriscar todos teus haveres Num lance corajoso, alheio ao resultado, E perder e começar de novo teu caminho, Sem que ouça um suspiro quem seguir ao teu lado, Se és capaz de forçar teus músculos e nervos E fazê-los servir se já quase não servem, Sustentando-se a ti, quando nada em ti resta, A não ser a vontade que diz: Enfrenta! Se és capaz de falar ao povo e ficar digno Ou de passear com reis, conservando-te o mesmo; Se não pode abalar-te amigo ou inimigo E não sofrem decepção os que contam contigo, Se podes preencher todo minuto que passa Com sessenta segundos de tarefa acertada,

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M UNDIAL

Se assim fores, meu filho, a Terra será tua, Será teu tudo que nela existe E não receies que te o tomem Mas, ainda melhor que tudo isto Se assim fores, serás um HOMEM. *

*

*

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Friedrich Nietzsche

CANTOS DE "A S S IM F A L A V A Z A R A T U S T R A ” (Trad. de Mário Ferreira dos Santos)

LER E ESCREVER

"D e tudo quanto se escreve, agrada-me apenas o que alguém escreve com o próprio sangue. Escreve com sangue; e aprenderás que sangue é espírito. Não é quase possível compreender o sangue estranho; eu detesto todos os leitores ociosos. Quem conhece o leitor, já nada faz para o leitor. Mais um século de leitores, e o próprio espírito terá mau odor. Que todo o mundo tenha o direito de aprender a ler, eis o que com o tempo vos desgosta; não só de escrever, mas de pensar. Outrora, o espírito era Deus; mas, depois se fêz homem: agora, se fêz plebe. Quem com sangue e em máximas escreve não quer ser lido, mas guardado de memória. Nas montanhas, o mais curto caminho vai de cimo a cimo; mas é mister pernas largas. É mister que os aforismos sejam cimos, e, aquêles a quem falas, homens altos e robustos. Um ar leve e puro, o perigo próximo e o espírito cheio de uma alegre malignidade, eis o que se harmoniza bem. Gosto de me cercar de duendes, porque sou valente. A coragem afugenta os fantasmas e cria próprios duendes: a co­ ragem quer rir. Eu não sinto como vós sentis; essa nuvem, que vejo abaixo de mim, êsse negrume e pesadume de que me rio, é precisa­ mente vossa nuvem tempestuosa. Vós ergueis os olhos quando aspirais a elevar-vos. como estou no alto, desço o meu olhar.

Eu,

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M UND IAL

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Quem de vós pode estar no alto e rir ao mesmo tempo? Quem escala altos montes, ri-se de tôdas as tragédias da cena e da gravidade trágica da vida. Valorosos, despreocupados, zombeteiros, imperiosos; assim nos quer a sabedoria. Ela é mulher, e não poderia amar senão a um guerreiro. Vós me dizeis: " A vida é uma carga pesada” . Mas, para que vosso orgulho pela manhã e vossa submissão pela tarde? A vida é uma carga pesada; mas não vos ponhais tão com­ pungidos. Todos somos asnos carregados. Que temos de comum com o botão de rosa que treme ao pêso de uma gota de rocio? É verdade: amamos a vida, não porque estejamos habi­ tuados à vida, mas ao amor. Há sempre um quê de loucura no amor. também, um quê de razão na loucura.

Mas há sempre

E eu, eu que estou de bem com a vida, creio que os que melhor entendem de felicidade, são as mariposas e as bolhas de sabão, e tudo quanto a elas se assemelha entre os homens. Ao ver revolutear essas alminhas aladas e loucas, en­ cantadoras e buliçosas, Zaratustra tem ímpetos de chorar, de cantar. Eu não poderia crer num Deus, se Êle não soubesse dançar. E quando vi o meu demônio, pareceu-me sério, grave, pro­ fundo e solene; era o espíritp do pesadume. É êle que faz cair tôdas as coisas. Não é a cólera, mas o riso que mata. com o espírito do pesadume!

Adiante!

Fora

Aprendi a andar; desde então, corro. Aprendi a voar; desde então, não quero que me empurrem para mudar de lugar. Agora sou leve, agora vôo; agora me vejo no alto, acima de mim, agora um Deus dança em mim” . ♦

*



NO TURNO "É noite; eis que se eleva mais alto a voz das fontes fer­ vilhantes. E minha alma é, também, uma fonte fervilhante.

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ANTOLOGIA DA LITERATURA M UNDIAL

-É noite; eis que se despertam todas as canções dos amo­ rosos, e minha alma, também, é o canto de um amante. Uma sêde está em mim, insaciada e insaciável, que busca erguer a voz. Um desejo de amor vive em mim, um desejo que fala a linguagem do amor. Eu sou luz: ai, por que não sou trevas! lidão consiste em estar envolto de luz.

Mas, minha so­

Ai, por que não sou sombras e trevas? minha sêde nos seios da luz.

Como aplacaria

E como eu vos bendiria, até vós, pequenas estréias cin­ tilantes, vermes luzentes do céu! E a luz que me dais me encheria de felicidade! Mas vivo encerrado em minha própria luz reabsorvendo as chamas que jorram de mim. Minha pobreza é que minha mão nunca descansa de dar; o que invejo são meus olhares ávidos e as noites iluminadas de desejo. Ignoro a felicidade de receber; e muitas vêzes sonhei que há mais felicidade em tirar do que em receber. Ó desgraçada sorte de todos os que dão! Ó penumbras do meu sol! ó desejo de desejar! ó fome devoradora no coração da sociedade! Êles tomam o que lhes dou, mas pude tocar sua alma? Há um abismo entre dar e receber; e o abismo mais estreito é o último a ser superado. Uma fonte nasce de minha beleza; eu queria fazer sofrer aquêles que eu esclareço, despojar aquêles que acumulo de pre­ sentes; tal a fome de mal-fazer. Retirando minha mão, quando me estendem a dêles, igual à cascata que hesita antes da queda, e hesita ainda na queda, estou esfomeado de mal-fazer. Tal é a vingança que imagina minha riqueza excessiva, tal é a perfídia que jorra da minha solidão. A felicidade de dar morre no momento em que eu dou, mas a minha virtude se cansa de sua própria abundância. Ao dar sem cessar, corre-se o risco de perder todo pudor; à força de dar, o coração e as mãos tornam-se calosos.

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Meus olhos não se molham mais ao ver a vergonha do que pede; minha mão endurecida não sente mais tremer as mãos que de mim recebem. Que se tornaram as lágrimas de meus olhos e o aveludado de meu coração? Ó solidão dos que dão! Ó silêncio de tudo o que luz! Sóis inumeráveis gravitam no espaço deserto; sua luz fala a todos os corpos tenebrosos; para mim, ela é silenciosa. Ó, tal é a inimizade da luz para com tudo o que brilha; inexoràvelmente, prossegue em seu caminho. Injustos no fundo do coração para tudo quanto brilha in­ diferentes aos outros sóis; assim gravitam os sóis. Igual à tempestade, os sóis percorrem suas órbitas; é o seu caminho. Não obedecem senão ao seu querer inexorável; é a sua frieza. Só vós, criaturas sombrias e tenebrosas, tirais da luz dos astros o vosso calor. Só vós bebeis o leito e o reconfôrto nos mamilos da luz. A h ! tudo é gêlo à minha volta, minha mão se queima ao contacto do gêlo. A h ! tenho sêde de experimentar vossa sêde! É noite.

Porque sou sêde de trevas!

E de solidão!

É noite. Eis que de mim jorra como uma fonte o desejo de erguer a voz. É noite. Eis que se eleva mais alto a voz de todas as fon­ tes fervilhantes. E minha alma é, também, uma fonte fe r­ vilhante. É noite. Eis que se despertam todas as canções dos amo­ rosos. E minha alma é, também, o canto de um amante” . Assim falava Zaratustra. OS SE TE SELOS (o u : A CANÇÃO DO SIM E DO AM ÉM)

1 "Se eu sou um profeta, cheio dêsse espírito profético, que caminha por uma alta crista entre dois mares, que caminha como uma densa nuvem entre o passado e o futuro, inimiga de todos os lugares baixos, sufocantes, de todos os sêres exte­

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ANTOLOGIA DA LITERATURA M UND IAL

nuados que não podem nem viver, nuvem sempre disposta a soltar, de seu obscuro seio, o relâmpago libertador, o rio que diz sim, que ri sim, pronto para exaltações proféticas; feliz de quem traz em seu seio tais raios, pois, na verda­ de, permanece sempre suspenso como uma pesada tormenta no flanco da montanha, aquêle que é destinado a acender a tocha do porvir; como não me queimaria o desejo da eternidade, o desejo do nupcial anel dos anéis, o anel do retorno? Ainda não encontrei mulher de quem quisesse ter filhos, senão esta mulher a quem amo, eu te amo, Eternidade! Porque eu te amo, ó Eternidade! 2 Se alguma vez minha cólera profanou sepulturas, deslo­ cou barreiras e precipitou velhas tábuas partidas em profundos abismos de tábuas antigas, se o meu sarcasmo varreu alguma vez as palavras apodrecidas; se fui a vassoura para as aranhas porta-cruzes e o vento purificador de antigas e bolorentas cavernas sepulcrais, se alguma vez estive sentado, cheio de alegria, nos túmulos onde jazem deuses antigos, abençoando e amando êste mundo ao lado dos monumentos de antigos calu­ niadores dêste mundo, — porque eu amo até as igrejas e os túmulos dos deuses, contanto que o céu espreite serenamente através das suas rendilhadas abóbadas, pois gosto de repousar sobre as igrejas em ruínas, com a erva e as vermelhas papou­ las, como não me queimaria o desejo da eternidade, o desejo do nupcial anel dos anéis, o anel do retorno? Ainda não encontrei mulher de quem quisesse ter filhos, senão esta mulher a quem eu amo: porque eu te amo, Eter­ nidade ! Porque eu te amo, ó Eternidade! 3 Se alguma vez chegou até mim um sopro do sopro criador e dessa necessidade divina que obriga até os azares a dançar a ronda das estréias; se alguma vez me ri com o riso de relâmpago criador, que segue resmungando, mas obediente, ao prolongado troar da ação, se alguma vez joguei os dados com os deuses, na mesa

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M UND IAL

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divina da terra, de forma que a terra tremesse e se rasgasse, despedindo torrentes de chamas; porque a terra é a mesa dos deuses e treme, reboam palavras inovadoras e criadoras quando os deuses lançam os da­ dos: como não me queimaria o desejo da eternidade, o desejo do nupcial anel dos anéis, o anel do retorno? Ainda não encontrei mulher de quem quisesse ter filhos, senão esta mulher a quem eu amo: porque eu te amo, Eter­ nidade! Porque eu te amo, 6 Eternidade! 4 Se alguma vez bebi a longos sorvos dessa cratera espu­ mosa de espécies e misturas, onde se casam todas as coisas, se a minha mão alguma vez misturou as mais longínquas com as mais próximas, e o fogo com o espírito, e o prazer com a dor, e as coisas piores com o bem supremo, se eu mesmo sou grão dêsse tal redentor, que permite que todas as coisas se misturem no interior da cratera — pois há um solvente que integra o bem e o mal, e até o pior é digno de servir de con­ dimento e de fazer transbordar a espuma do cântaro, como não me queimaria o desejo da eternidade, desejo do nupcial anel dos anéis, o anel do retorno? Ainda não encontrei mulher de quem quisesse ter filhos, senão esta mulher a quem eu amo: porque eu te amo, Eter­ nidade ! Porque eu te amo, ó Eternidade! 5 Se eu amo o mar, e tudo quanto ao, mar se assemelha, e se o amo sobretudo quando me contradiz com mais furor; se trago em mim essa paixão investigadora que impele a vela para terras desconhecidas; se há na minha paixão um tanto da paixão do navegante, se alguma vez a minha alegria exclamou: ^Desapareceu a terra; caiu agora a minha última cadeia” ; como não me queimaria o desejo da eternidade, o desejo do nupcial anel dos anéis, do anel do retorno? Ainda não encontrei mulher de quem quisesse ter filhos, senão esta mulher a quem eu amo: porque eu te amo, Eter­ nidade ! Porque eu te amo, ó Eternidade!

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ANTOLOGIA DA LITERATURA M UNDIAL

6 Se a minha virtude é virtude de bailarino, se muitas vêzes dancei com o coração em êxtases de ouro e de esmeralda; se a minha maldade é uma maldade risonha que atemoriza vales cheios de rosas e sebes de açucenas; porque o riso encerra em si tudo o que é mau, mas é san­ tificado e absolvido pela sua própria beatitude; se o meu alfa e ômega é tornar leve tudo quanto é pesado, tornar dançarino todo o corpo, e pássaro todo o espírito: na verdade, é assim o meu alfa e ômega; como não me queimaria o desejo da eternidade, o desejo do nupcial anel dos anéis, do anel do retorno? Ainda não encontrei mulher de quem quisesse ter filhos, senão esta mulher a quem eu amo: porque eu te amo, Eter­ nidade ! Porque eu te amo, 6 Eternidade! 7 Se alguma vez descobri sobre mim céus tranqüilos, e se levei minhas próprias asas para o meu próprio céu; se nadei, brincando, em profundos longes de luz; se a alada sabedoria da minha liberdade me viu dizer: "V ê ! Não há nem alto íiem baixo! Lança-te em todos os sentidos, para diante, para trás, leve como és! Canta! Não fales mais! Todas as palavras não foram feitas para os que são pe­ sados? Não mentem todas as palavras aos que são leves? não- fales m ais!” ,

Canta!

como não me queimaria o desejo da eternidade, o desejo do nupcial anel dos anéis, do anel do retorno? Ainda não encontrei mulher de quem quisesse ter filhos, senão esta mulher a quem eu amo: porque eu te amo, Eter­ nidade! Porque eu te amo, ó Eternidade! *

*

*

PE N SA M E N TO S DE N IETZSC H E (Trad. de Yolanda Lhullier Santos)

Já dei tudo. tu, esperança!

Nada me resta de tudo quanto tive, exceto *

*

*

Se queres elevar-te, exercita a arte de esquecer. * * * Diante da necessidade, todo idealismo é ilusão. * * * Diante do pouco prazer que basta à maioria dos homens para acharem a vida agradável, como lhes admiro a modéstia! * * * Amar e desaparecer: eis coisas que andam juntas desde a eternidade. Querer amar é também estar pronto para morrer. * * * Os insetos picam, não por maldade, mas por precisarem viver. O mesmo se dá com os críticos: querem o nosso san­ gue, mas não a nossa dor. ♦ * * Os livros que agradam a todos cheiram mal; adere-se-lhes o cheiro da plebe. Onde a plebe come e bebe, e também onde venera, há sempre mau cheiro. *

*

*

Desejo eu aos que me interessam, o sofrimento, a solidão, a enfermidade, as perseguições, o opróbrio. Desejo que conhe­ çam o profundo menosprêzo de si próprios, o tormento da sua desconfiança, a angústia da derrota. E não os lastimo, pois que lhes desejo a coisa única capaz de demonstrar se valem ou não: a resistência.

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

Necessário se faz, quando tratamos com os homens, re­ correr a uma bondosa dissimulação, como se não pudéssemos penetrar os móveis do seu procedimento. H * * ❖ O verme pisado encolhe-se. É a sua astúcia. Diminui, assim, a probabilidade de ser novamente pisado. Na língua da moral, chama-se isto humildade. H5

H*

Se eu arrancasse os vossos véus, os vossos trapos, as vossas cores e os vossos gestos, de vós todos, restaria apenas o necessário para assustar pássaros. * * * Quando no vemos obrigados a mudar de opinião com res­ peito a um indivíduo, fazemos com que pague caro o trabalho que nos deu. * * * Dizes que uma boa causa justifica tudo, inclusive a guer­ ra? Contesto uma boa guerra é que justifica qualquer causa. * * * És jovem e desejas filhos e casamento. Mas eu te per­ gunto: és vencedor de ti próprio, és o soberano dos teus sen­ tidos? Ou fala em ti a necessidade física, o isolamento, a discórdia contigo próprio? * * * Raramente erramos, se atribuirmos os atos extremos à vaidade, os médios ao hábito, e os pequeninos ao temor. *

* *

De que serve um livro que não saiba levar-nos para além de todos os livros? ♦ * * Vêde, v ê d e ... êle foge dos hom ens... mas os homens seguem-no, porque êle corre à fre n te . . . tal como animais de rebanho! ♦ * * Estado chama-se o mais frio de todos os monstros frios. Mente friamente, e eis aqui a mais mesquinha mentira que sai de sua boca: "Eu, o Estado, sou o Povo” . Mentira! Os

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M UNDIAL

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que criaram os povos e suspenderam sobre êles uma fé e um amor, eram criadores: serviram à vida. Os que estendem la­ ços ao maior número e a isso chamam Estado, destruidores: suspendem sobre êles uma espada e cem apetites. * * * A li onde acabao Estado,só ali começa o homem que não é supérfluo; ali começa o canto da necessidade, a melodia única, a nenhuma outra semelhança. A li onde acaba o E stado... olhai, olhai, irmãos! Não vêdes o arco-íris e a ponte do Super-homem? * * * Por longo tempo se ocultou na mulher um escravo e um tirano. É por isso que, ainda hoje, ela é incapaz de amizade e só conhece oamor. * * * O melhor amigo terá também, provàvelmente, a melhor es­ posa, porque o bom matrimônio repousa no talento da amizade. * * *

PENSAMENTOS

DE NIETZSCHE

SÔBRE A

MULHER

A mulher perfeita é um tipo mais elevado de humanidade que o homem perfeito, e também uma coisa mais rara. A história natural dos animais oferece um meio de fa zer esta proposição verossímil. * * * As dissonâncias não resolvidas, nas relações de caráter e de conformação espiritual dos pais, continuam ressoando na natureza da criança e produzem sua história passional interior♦ ♦ * Cada um de nós leva dentro de si a imagem de mulher tirada de sua mãe: por isto é que se sente inclinado a res­ peitar as mulheres em geral, ou desprezá-las, ou a sentir in­ diferença por elas. * * * Aquêle que não tem ifm bom pai deve criar um. * * * Os pais têm muito que fazer para compensar o fato deterem filhos. * * * As mulheres distintas pensam que uma coisa não existe quando não é possível falar dela na sociedade. * * * Contra a enfermidade dos homens, que consiste em menosprezarem-se, o remédio mais seguro é encontrar uma mu­ lher hábil que os ame. * * * As mães sentem ciúmes freqüentemente dos amigos de seus filhos quando têm sobre êles uma marcante influênciaHabitualmente, o que uma mãe ama em seu filho é mais "e la mesma que seu filho” . *

*

*

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M UND IAL

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Na maturidade da vida e da inteligência, o homem adquire o sentimento de que seu pai errou ao engendrá-lo. * * * Muitas mães têm necessidade de filhos felizes e honrados; outras, de filhos desgraçados: do contrário, sua bondade de mães não podia manifestar-se. * * * Alguns homens têm suspirado porque lhes roubaram as suas mulheres: a maior parte, porque não houve ninguém que es raptasse. * * * As uniões contraídas por amor (o que se chama casa­ mento de amor) têm o êrro por pai, e a necessidade, por mãe. * * * Muito bem pode suceder que uma mulher sinta amizade por um homem; mas para mantê-la é preciso o concurso de uma pequena antipatia física. * * * Muitas pessoas, sobretudo algumas mulheres, não sentem o aborrecimento, porque nunca souberam trabalhar regular­ mente. * * * Em toda classe de amor feminino, transparece algo do amor maternal. *

* *

Se os esposos não vivessem juntos, os bons casamentos seriam mais freqüentes. * * * Todo contacto que não eleva, rebaixa, ou o inverso: por isto os homens descem comumente um pouco ao casarem-se, enquanto as mulheres se elevam. Os homens muito espirituais têm tanta necessidade do matrimônio que resistem a êle como a um remédio que tem sabor desagradável. * * * Aos filhos de famílias modestas é preciso ensiná-los a mandar por meio da educação, da mesma forma que a outros a obedecer. *

*

*

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ANTOLOGIA DA LITERATURA M UNDIAL

Os noivos que se vão casar por conveniência se esforçam freqüentemente por enamorarem-se para escaparem à pecha de cálculo frio, interessado. Do mesmo modo que os que se in­ clinam por interêsse ao cristianismo se esforçam por ser ver­ dadeiramente piedosos, porque assim a máscara religiosa se lhes torna mais fácil. H * * * Um músico "afeiçoado” aos tempos tocará as mesmas obras cada vez mais lentamente. Assim, no amor não há sossêgo. * * * Com a beleza da mulher aumenta, em geral, seu pudor. * * * Um matrimônio, no qual cada um dos cônjuges quer con­ seguir um fim pessoal, por meio do outro, é muito sólido: por exemplo, se a mulher quer alcançar a reputação por seu mari­ do, o marido o amor por sua mulher. í

í

4*

As mulheres chegam a ser, por meio do amor, o que são na mente do homem que as ama. * * * As mulheres amam, na maioria das vêzes, a um homem de valor, querendo-o para elas sós. Guardá-lo-iam em sua bolsa, se a vaidade não o impedisse: querem ostentar o seu valor pe­ rante os demais. *

*

*

A bondade de um lar se prova em comportar alguma vez uma exceção. * * * Pode-se fatigar e enfraquecer de tal modo a um homem, pelos aborrecimentos, inquietações, acumulação de trabalho e de idéias, que deixe de opor-se a uma coisa que tem aspecto complicado: isto o sabem as mulheres e os diplomatas. * * * As jovens que não querem prover a sua subsistência por outros meios senão pelo atrativo de sua juventude, e cuja as­ túcia é estimulada por mães experientes, perseguem justamen­

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te o mesmo fim que as cortesãs, somente que são mais astutas e desonestas do que estas. H * Há mulheres, nas quais por mais que nelas se procure, não se encontra profundidade; não são mais do que máscaras. É preciso compadecermo-nos do homem que se entrega a êstes sêres quase fantasmas, necessàriamente incapazes de satisfa­ zer; mas estas são as mais capazes de despertar mais raivo­ samente os desejos de um homem: êste busca sua alma e con­ tinua procurando-a eternamente. *

*

*

No momento de internarmo-nos no casamento, devemos fazer esta pergunta: Crês poderes conversar com tua mulher até à velhice? Tudo o mais no matrimônio é transitório, pois a maior parte da vida em comum está dedicada à conversa. * * * Agrada às jovens inexperientes a idéia de que podem fa ­ zer a felicidade de um homem; mais tarde, conhecem que isto eqüivale a desprezar a um homem, admitindo que lhe basta uma jovem para fazer a sua felicidade. A vaidade das mu­ lheres exige que o homem seja mais que um marido venturoso. sjs

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Segundo a observação feita por um sábio muito sutil, os homens cultos da Alemanha parecem uma mistura de Mefistófeles e Wagner, mas não se parecem a Fausto; em troca, seus avós (pelo menos em sua juventude) sentiam agitar-se dentro de si Fausto. Há, pois — para continuar esta afirmação — duas razões para que não lhes agrade "M argarida” . E, não havendo procura de Margarida, é de supor que estas desapa­ reçam. Por amor de Deus, não leveis vossa educação do Liceu às jovens. Vós que freqüentemente fazeis de moços cheios de ta­ lento, de entusiasmo, de desejo, de saber: as cópias de seus mestres! * * $ As mulheres notam, fàcilmente quando se apoderam da alma de um homem; querem ser amadas sem rivais, e lhes censuram os fins de sua ambição, seus deveres políticos, sua

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

ciência e. sua arte, se têm paixão por estas coisas. A o menos que estas coisas não lhe dêem esplendor: então esperam, enlaçando-se amorosamente com êle, acrescentar ao mesmo tem­ po "seu” esplendor próprio: se isto fô r assim, favorecem ao amante. * * * A inteligência das mulheres se manifesta com o perfeito domínio, presença de espírito, utilização de todas as vantagens. Transmitem-no na herança, como sua qualidade fundamental, a seus filhos, e seu pai acrescenta o fundo obscuro da vontade. Sua influência determina, por dizer assim, o ritmo e a harmo­ nia com os quais a nova vida deve ser vivida; mas a melodia provém da mulher. Seja dito para as pessoas que são capa­ zes de perceber isto: as mulheres têm o entendimento; os ho­ mens, a sensibilidade e a paixão. Isto não está contraditório pelo fato de que os homens levem, com efeito, seu entendimen­ to mais longe; têm causas mais profundas, mais poderosas; estas causas são as que levam tão longe seu entendimento, que em si é logo completamente passivo. As mulheres assombram-se, às vêzes, na sua opinião, do grande respeito que os homens tributam à sua sensibilidade. Se na eleição do cônjuge, os ho­ mens buscam, antes de tudo, um ser profundo, pleno de sen­ sibilidade, as mulheres, pelo contrário, buscam um ser hábil, sagaz e brilhante; vê-se claramente que o homem busca no fundo o homem ideal; a mulher, a mulher ideal; portanto, não buscam seu complemento, mas o complemento de suas próprias qualidades. * * * Uma prova de habilidade das mulheres é que quase em todas as partes souberam fazer-se alimentar como zângões na colmeia. Medite-se um pouco sobre o que isto significa nos primeiros tempos e porque não foram os homens os que se fizeram alimentar pelas mulheres. Seguramente, porque a vaidade e a ambição masculinas são maiores que a habilidade feminina, pois as mulheres souberam, submetendo-se, assegu­ rar-se, contudo, a vantagem preponderante, e até o domínio. Os mesmos cuidados prodigalizados aos filhos puderam originàriamente ser utilizados pelas habilidades das mulheres como pretexto para subtrair-se tanto quanto possível ao trabalho, Ainda hoje em dia, sabem quando estão realmente ocupadas, por exemplo, nas tarefas do lar, aumentá-las até deslumbrar

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M UNDIAL

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as pessoas, a ponto de que os homens, geralmente, estimam esta ocupação dez vêzes mais do que vale. ^ $ Às vêzes bastam umas lentes de mais alta gradação para curar o enamorado; e o que tivesse bastante imaginação para representar um rosto, um talhe, com vinte anos mais, andaria muito isento de inquietudes pela vida. *

*

*

No ódio, as mulheres são mais perigosas do que os ho­ mens; primeiro, porque elas não se detêm em sua hostilidade; uma vez desperta esta, ante nenhum escrúpulo de eqüidade, dão rédea solta a seu ódio até às últimas conseqüências; são muito espertas em buscar os pontos vulneráveis (que todo ho­ mem, todo partido apresenta) e em dirigir a êstes pontos seus ataques, para o que o seu espírito, aguçado como um punhal, serve-lhes às mil maravilhas (enquanto os homens retrocedem ante a visão das feridas e se fazem magnânimos e misericor­ diosos) . *

*

*

A idolatria que as mulheres professam ao amor é, no fun­ do, e originàriamente, uma invenção de sua astúcia, pois, por todas idealizações do amor, aumentam o seu poder e se fazem mais apetitosas aos olhos dos homens. Mas o hábito secular desta estima exagerada do amor tem feito que elas mesmo caiam em suas próprias rêdes e esquecem esta origem. Hoje em dia, são mais enganadas do que os homens, e, portanto, sofrem mais amargas decepções, que se produzem quase necessàriamente na vida de toda mulher: supondo, claro está, que tenha suficiente imaginação e espírito para sofrer ilusão e desilusão. *

*

*

Podem as mulheres, em geral ser justas, estando tão acos­ tumadas a amar e a adaptar sentimentos pró e contra? Por outra parte, interessam-se menos pelas coisas que as pessoas; mas, quando se interessam pelas coisas, fazem dêste interêsse um assunto de partido, corrompendo, dêste modo, sua ação pura e inocente. Daqui nasce um perigo não desprezível, quando se lhes confia a política e certas partes da ciência (por exem­ plo, a história). Pois haverá alguma coisa mais rara do que uma mulher que saiba realmente o que é a ciência? As mu­ lheres desprezam-na secretamente, como se em certos pontos

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

fôssém superiores a ela. por enquanto, é assim.

Talvez tudo isto possa mudar, mas, *

*

*

Essas repentinas contradições que as mulheres têm o cos­ tume de tomar, a repentina iluminação das relações pessoais pelo brilho de suas simpatias e antipatias, em suma, as provas da injustiça feminina foram rodeadas de uma auréola pelos homens enamorados, como se todas as mulheres tivessem ins­ pirações de sabedoria, ainda sem o trípode délfico nem a coroa de louros, e suas decisões são longo tempo depois interpretadas e justificadas como oráculos sibilinos. Mas se considera que, para qualquer pessoa ou coisa, pode-se encontrar algo desfa­ vorável, que todas as coisas têm, não somente duas, mas três ou quatro fases, é realmente difícil, em tais decisões repenti­ nas, enganar-se completamente; até poder-se-ia dizer: a na­ tureza das coisas está disposta de tal modo, que as mulheres têm sempre razão. S*



Como de duas pessoas que se amam uma é ordinàriamente a que ama e a outra a que se deixa amar, nasceu a crença de que em todo comércio amoroso há sempre uma quantidade constante de amor, que, quanto mais toma um, menos sobra ao outro. Por exceção, sucede que a vaidade persuade a cada destas duas pessoas que "E la ” é a que deve ser amada, de ma­ neira que uma e outra querem deixar-se querer; daqui, espe­ cialmente do matrimônio, provêm, de maneiras divèrsas, cenas meio agradáveis, meio absurdas. 3*

H*



Depois de uma disputa e uma querela pessoais entre uma mulher e um homem, uma das pessoas sofre, sobretudo, a idéia de haver feito mal à outra, enquanto esta sofre, sobretudo, a idéia de não haver feito à outra bastante mal; assim é que se esforça por aumentar sua pena com lágrimas, soluços e gestos de desolação.

Paul de Saint-Victor

CARLOS X II (Trad. de Mário Ferreira dos Santos)

Há, na história, ressurreições de tipos e caracteres que fariam acreditar nos Avatares da fábula hindu. Há mil e quinhentos anos de distância, Átila reapareceu, no Norte, sob uma nova forma, reduzido em sua ação, restringido num me­ nor círculo, mas animado de igual furor destrutivo. Carlos X II, rei da Suécia, no século dezessete, é um Átila extraviado. Assim como o rei dos hunos, nada teve de humano êste soldado implacável, que guerreava como se faz ginástica, por exclusiva necessidade de temperamento. Com dezoito anos, entrou na barraca de campanha, como um monge em sua cé­ lula para nunca mais de lá sair. H ic sunt tabernacula mea, hic habitabo in aeternum! Verdadeiro monge, na realidade, que parecia ter pronun­ ciado votos terríveis entre as mãos de uma dessas Valquírias sangüinárias adoradas por seu país. A mulher, que a Escri­ tura proclama "mais poderosa que a morte” , a mulher, que enfraqueceu Sansão, encantou César e fêz chorar Alexandre, jamais entrou naquele coração cerrado como uma cidadela. Permaneceu casto como a Morte, a única amante que teve. A condessa Auroda de Kõenigsmark, uma das belezas do século, enviada pelo rei da Polônia, seu amante, para enternecer o conquistador irritado, não obteve dêle um olhar sequer. Um dia, encontrando-o numa vereda estreita, desceu da carruagem e dirigiu-se para êle. O rei saudou-a bruscamente, voltou a rédea e desapareceu. Foi a única audiência que ela pôde obter. Por mais que procurardes, não havereis de encontrar um veio de carne neste homem de bronze: nem mesa, nem leito, nem prazeres. O sangue substituiu-lhe o vinho: durante esta campanha de vinte anos, que foi sua vida, como Davi no de­ serto, bebeu apenas a água da torrente vertida no seu elmo.

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ANTOLOGIA DA LITERATURA M UNDIAL

Sua roupa de grossa fazenda azul com botões de cobre durou-lhe tanto quanto o hábito de um monge; êle a puía nos ombros. Os reis dos contos de fada nunca abandonavam sua coroa; êle só tirava suas botas para dormir aqui e acolá. Tinha a superstição de suas botas de cem léguas, que lhe faziam per­ correr a Europa a grandes passos: na conferência concedida ao rei Augusto, em Gutersdorf, após a derrota dêste, apenas falou delas. Ao Senado sueco, que lhe suplicava que voltasse para o reino, privado havia tanto tempo de seu rei, respondeu que enviaria a Estocolmo uma de suas botas para sentar-se no trono e governar por êle: facécia de leão de botas, que não lhe fizeram repetir. Foi a guerra a sua religião; impunha a si próprio, para praticá-la mais dignamente, macerações ascéticas. Um dia, lhe disseram que certa mulher tinha vivido muitos meses be­ bendo água como único alimento. Desejou suportar esta rude abstinência, como o capricho que poderia sentir Mitrídates em experimentar um novo veneno. Cinco dias inteiros permane­ ceu sem comer; depois se alimentou como um ogro e retomou seu modo de vida habitual. Só o misticismo da glória pode explicar um tal caráter, um tal afastamento às alegrias e às paixões da humanidade. Dizem que fizera voto de pobreza como de continência: o di­ nheiro era-lhe somente um meio de fundir balas e forjar canhões. Um trânsfuga livoniano, feito prisioneiro e condenado à forca, propôs trocar a vida pelo segrêdo de produzir ouro. Fabricava-o na prisão, com receitas de alquimista. A barra en­ contrada em seu cadinho era de bom quilate e de excelente pêso. O Senado impressionou-se, e pediu concedesse-lhe per­ dão. Não valia a pedra filosofal a cabeça de um rebelde? O rei, indignado por ousarem negociàr a sua vingança, respon­ deu apressando o dia da execução. A s informes moedas cunhadas sob seu reinado descrevem-no melhor que as medalhas mais magníficas. São grandes quadrados de cobre estampilhados com o sêlo real em seus qua­ tro ângulos. Verdadeira moeda esparciata, que se diria feita às pressas para as necessidades urgentes da guerra, com pe­ daços de armadura juntados num campo de batalha e fundidos ao fogo de um bivaque.

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO MUNDIAL

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Se desmontardes essa organização excêntrica, não encon­ trarei s nela nem sequer o móvel da ambição. Dava as suas conquistas, distribuía aos outros as províncias que tomava, não se dignava reunir as coroas que prodigalizava. Não era dêste mundo o seu reino; combatia por combater, por um ideal in­ teiramente abstrato e inteiramente interior. Os mais desen­ freados conquistadores têm um fim, plano ou uma cobiça. O próprio Átila farejava com suas narinas de lobo as voluptuofíidades romanas. A idéia do espaço permanecia no cérebro estreito de Tamerlão, que sonhava com uma Ásia muda, vazia, despovoada, na qual poderia reinar e deitar-se à vontade. Car­ los X II, porém, só queria da terra o lugar de um campo e o terreno de uma batalha. Seu vaguear armado do Norte ao Oriente não traía um instinto político, nem um desígnio de grandeza, nem um pensamento do porvir. Estava prêso ao seu cavalo, como seu amigo Mazeppa, e deixava levar-se atra­ vés do mundo. Vencedor ou vencido, sua indiferença era a mesma. Uma derrota produzia tanto rumor quanto uma vitória, e à guerra pedia apenas o rumor e o fumo. Sua bravura nada possuía de ardente nem de apaixonado: o perigo era seu elemento; ia paz tê-lo-ia morto como a água doce envenena os peixes ma­ rinhos. Precisava, para viver, o rumor do canhão e o acre da pólvora. Após a defesa de Bender, onde susteve, como Rolando furioso, o assalto de um exército, quando caiu enfim sob o pêso do número, o rosto ferido, as sobrancelhas queimadas pela pól­ vora, sorriu aos janízaros que o levaram, calmo, feliz, visivel­ mente aliviado, como um homem que o sangue sufoca, e que respira após uma sangria. " A peça está terminada, vamos jantar” disse a um de seus generais, quando a guerra, cansada de contracenar com êle feriu-o, para terminá-lo, com uma bala na têmpora. Esta frase é um julgamento; ela define aquêle reino tea­ tral que não teve, na verdade, nada de real, nada de histórico, fo i somente um drama romanesco representado por um homem para sua própria glória. Foi a fantasia do deserto árabe trans­ portada para as estepes do Norte; arremetidas com fundo de artilharia, brandir de espadas, salvas de fuzilaria, tinir de sa­ bres . . . O turbilhão passa, a neve cai, a areia se nivela. . . Será uma visão, será uma realidade que acaba de passar? Que resta de Carlos X II? Um nome que retumba nos ouvidos como um tiro de artilharia, mas que não estremece

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

nem o coração nem a inteligência. Sua flamejante espada não tinha gume: em nenhuma parte ela deixou sua marca. Foi antes o instrumento de um virtuoso militar do que a arma de um grande homem. Um exército errante, que não propaga nem um Deus, nem um princípio, nem uma civilização nova, passa como uma tribo nômade no silêncio do Saara. Mas se é estéril a glória do herói sueco, seu caráter permanecerá um dos espantos da história. Um rei de dezoito anos, que parte de sua capital para bater-se até à morte, sem pausa, sem tré­ guas, sem descanso, lançando-se na Europa com um punhado de homens, como Alexandre à frente de seu quadrado de macedônios, no infinito do Oriente, excitará sempre a imaginação. Compreende-se que uma sultana tenha sonhado com êle no fun­ do do serralho. Ela o chamava seu leão. "Quando, pois, dizia ela ao sultão Achmed, ajudarás o meu leão a devorar o czar?” A época em que se agitou êste destino excêntrico ressalta ainda o seu prestígio. É em meio da Europa política e diplo­ mática do século dezoito, que Carlos X I I fêz sua aparição fa ­ bulosa de deus do Eda. Era, evidentemente, um extraviado no mundo moderno. Era um herói do Norte bárbaro e pagão. Apesar do livro de preces encontrado após sua morte, no bolso de seu uniforme, não é no céu cristão que deve ter ido, mas no paraíso sangrento da mitologia escandinava, onde os guer­ reiros se retalham em pedaços cada dia, e, sobrevinda a noite, reajustando bem ou mal seus membros dispersos, jantam jun­ tos à mesa de Odin, comendo no mesmo prato o toucinho do javali Serimner, e levantam-se brindes nos crânios que jorram cerveja fermentada.

PE N SA M E N TO S DE A M IE L (Trad. de Mário Ferreira dos Santos)

Um calafrio percorre-nos quando, na fileira, aparecem os claros, quando a idade nos impele, quando nos aproximamos do zênite e o destino nos diz: "Mostra o que há em t i! É o momento, é a hora, ou volve ao nada, se maldito, esquecido ou desprezado. Tens a palavra! É a tua vez! mostra o que és, dize o que tens a dizer, revela a tua nulidade ou a tua capa­ cidade. Sai da sombra, não se trata mais de prometer: é pre­ ciso cumprir; nada de esperança, mas realidade. Já passou o tempo de aprender. A sementeira e a germinação passaram, vejamos tua colheita. Servo, exibe o teu talento, mostra o que fizeste dêle. Fala agora ou cala-te para sempre. — É uma intimação solene em toda vida de homem, êste apêlo da cons­ ciência; solene e impressionante como o clarim do juízo final, que vos grita: Estás pronto? Presta conta. Presta conta dos teus anos, dos teus ócios, das tuas forças, dos teus estudos, do teu talento e de tuas obras! Para a tua missão, te preparaste? ou gastaste em vão as tuas horas, viveste cada dia do que ganhavas como um mole epicurista, sem grandeza, sem previsão, sem devotamento? Chegou a hora dos grandes corações, retira-te, — a hora dos heróis, dos gênios, — volta para o pó. vai-te” . * * * O pensador é, para o filósofo, o que o diletante é para o i artista. — Joga com o pensamento e fá-lo gerar uma multidão, de belas causas de particularidades, mas inquieta-se mais com as verdades do que a verdade, e o essencial do pensamento, — . sua conseqüência, sua unidade, escapa-lhe. Maneja agradàvelmente o seu instrumento, mas não o possui, e menos ainda o cria. É um horticultor, e não um geólogo, lavra a terra só o estritamente necessário para que dê flores e frutos; nela não penetra o bastante para conhecê-la. Em uma palavra, o pen­ sador é um filósofo superficial, fragmentário, curioso; é o filósofo literário, orador, "causeur” e escritor; o filósofo é o pensador científico. Os pensadores servem para despertar os

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filós.ofos. ou para o prazer que proporcionam. São os explo­ radores do exército dos leitores, os incitadores, os doutores da multidão, os que trocam o pensamento em moeda corrente, os abades sem batinas da ciência, que vão dos clérigos aos leigos, dos intérpretes da Igreja junto ao rebanho e do rebanho junto à Igreja. O pensador é literato grave, e é, por isso, que é popular. O filósofo é um sábio especial (pela forma de sua ciência, não pelo fundo) e a isto se deve a sua impopularidade. — Na França, não houve para um filósofo (Descartes), trinta pen­ sadores. Na Alemanha, para dez pensadores, há vinte filó­ sofos. A lei do segrêdo. Faz como a planta, protege pela obscu­ ridade tudo o que germina em ti, pensamento ou sentimento, mostra-o à luz meridiana só depois de formado. Toda concep­ ção deve ser envolta no triplo véu do pudor, do silêncio e da sombra. Repita o mistério, porque a sua profanação mata. Não ponhas a nu tuas raízes, se queres crescer e viver. E, se fô r possível, mesmo rio dia do nascimento, não convides tes­ temunhas, como fazem as rainhas, mas abre-te como a genciana dos Alpes, sob o olhar de Deus, unicamente. * ■ *

*

Cada esfera do ser tende a uma esfera mais elevada e dela tem já revelações e pressentimentos. O ideal, sob todas as suas formas, é a antecipação simbólica de uma existência superior à qual tendemos. Assim como os vulcões nos trazem os segredos do interior do globo, a inspiração, o entusiasmo, o êxtase são explosões passageiras do mundo interior da alma. A vida humana é somente o advento à vida espiritual e ainda há graus inumeráveis, quer numa, quer noutra. Assim, vela e reza, discípulo da vida, crisálida de um anjo, prepara tua eclosão futura, pois a ascensão divina é somente uma série de metamorfoses cada vez mais etéreas, em cada fase, resultado das precedentes, é a condição das que lhe seguem. A vida di­ vina é uma série de mortes sucessivas em que o espírito repels suas imperfeições e seus símbolos e cede à atração crescente do centro da gravitação inefável, do sol da inteligência e do amor. Os espíritos criados quando cumprem seus destinos, tendem a formar constelações e vias-lácteas no empíreo da di­ vindade; ao converterem-se em deuses, rodeiam de uma corte resplandecente e incomensurável o trono do soberano. Em sua grandeza consiste sua homenagem. Sua divindade de investi­

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M UNDIAL

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dura é a glória mais brilhante de Deus. Deus é o pai dos espí­ ritos; a vassalagem do amor é a constituição do reino eterno. *

*

*

Vencer uma dificuldade qualqtier dá sempre uma alegria secreta, pois é recuar um limite e aumentar a liberdade; toda vitória engrandece, até a mais imperceptível, até sobre um brin­ quedo. Por quê? Porque toda vitória é, no fundo, uma vitória sobre si mesmo, e por conseqüência, um acréscimo a si mesmo. Quando consigo manter sobre a ponta uma pirâmide, não é tanto a matéria que eu submeto, é antes uma incapacidade mi­ nha que diminuo. Assim, todo limite que recuo é uma potência que adquiro, e uma escravidão, eis a sua recompensa. Tal é a filosofia do brinquedo: tudo se conserva. Envelhecer é mais difícil que morrer, porque renunciar uma vez e em bloco a um bem, custa menos que renovar o sacrifício diàriamente e por miúdo. Suportar a própria de­ cadência, aceitar a próprio diminuição é uma virtude mais amarga e mais rara que desafiar a morte. Há uma auréola na morte trágica e prematura; e não há senão uma longa tris­ teza na caducidade crescente. Mas olhemos melhor a isso: a velhice resignada e religiosa parece, então mais comovedora que o ardor heróico dos anos juvenis. A maturação da alma vale mais que o brilho das faculdades e do que a abundância das forças, e o eterno que existe em nós deve tirar proveito de tôdas as devastações que faz o tempo. Êste pensamento consola. *

*

*

Um louco, que se julgasse louco, estaria em princípio cura­ do, pois que a sua loucura estaria subordinada à sua razão. Um tolo, capaz de medir a sua tolice, seria um homem de espí­ rito que teve um acidente. Mas as multidões são loucas e tôdas sem o saberem, o que torna o seu caso incurável ou pelo menos desesperador. *

*

*

Que é que constitui a história de uma alma? É a estratificação dos seus progressos, a soma das suas aquisições e a marcha do seu destino. Para que a tua história sirva de lição a qualquer um e interesse a ti mesmo, convém que seja liber­ tada dos seus materiais, simplificada, destilada. Estas catorze mil páginas são apenas o montão de folhas e das cascas das

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árvores de qüe se trataria de extrair a essência. Uma flo­ resta de cinchonas vale apenas uma barrica de quinino. Todo um roseiral de Esmirna condensa-se num frasco de perfume. O amor tem o instinto do suicídio, pois impele às carícias, e a suprema carícia o mata; e, se ela é recusada, mata o amo­ roso. É, pois, uma chama que precisa arder, isto é, destruir o seu alimento, isto é, anular-se a si mesma. — A sabedoria consiste em mudar o incêndio de um dia em luz e fogo con­ tínuo, isto é, em fazer vida que dure com o amor; pois o co­ ração gelado ou abrasado destrói igualmente o homem. . . ♦

*



A maior parte das celebridades são talvez célebres por causas diferentes do que lhes parecia o melhor da sua obra. O mundo tem a sua medida, não digo que seja a melhor, mas historicamente é a única que serve. Tu jamais consentiste em olhar-te com os olhos do público e da opinião e em subordinar-te a êsse julgamento exterior, porque isso é o processo dos espertos e dos utilitários. Não te quiseste explorar como se fosses mina, como uma usina, como uma floresta, como um rebanho de gado, procurando o que se vende, o que brilha no mercado social ou literário. Essa altivez é permitida, mas tu a levaste um pouco longe. É preciso respeitar a si mesmo, mas o perfeito desdém pelas preferências concorrentes, pelo gosto público, pela moda, é uma imprudência. Nós próprios não sa­ bemos muito quanto valemos e nos tornamos cada vez mais tímidos. Somos ultrapassados por todos os beócios, que têm faro e tenacidade; e é pena, afin al. . . ♦





Quando vemos uma figura de cêra, sentimos uma espécie de pavor; aquela vida que não se move nos dá uma impressão de morte, e nós dizemos: é um fantasma, é um espectro. Neste caso, vemos o que falta, e o que exigimos; no outro, vemos o que se nos oferece e oferecemos de nossa parte. Dirige-se, pois, a arte à imaginação; tudo o que apenas se dirige à sen­ sação está aquém da arte, quase fora da arte. Uma obra de arte deve fazer trabalhar em nós a faculdade poética, induzir-nos a imaginar, a completar a percepção. E só fazemos isso à imitação e à instigação do artista. A pintura-cópia, a repro­ dução realista, imitação pura, deixa-nos frios, porque o autor é uma simples máquina, um espelho, uma placa isolada, e não uma alma.

ÁNTOLOGIÁ DO PENSAMENTO M UNDIAL

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A arte só vive de aparência, mas essas aparências são v i­ sões espirituais, sonhos fixados. A poesia representa-nos uma natureza tornada consubstanciai à alma, porque não é mais do que uma recordação comovida, uma imagem vibrante, uma for­ ma sem pêso, enfim, um modo da alma. As produções mais objetivas são apenas expressões de uma alma que se objetiva melhor do que as outras, isto é, que se esquece mais de si própria ante as coisas, mas sempre são, estas, a expressão de alma, daí o que se chama o estilo. O estilo pode não ser senão coletivo, hierático, nacional, quando o artista é ainda o intérprete da comunidade; tende a tornar-se pessoal à medida que a sociedade aceite a individualidade e deseje ver a sua expansão. A originalidade é a individualidade do estilo, como o es­ tilo é o molde psicológico dos objetos, a apresentar, ou antes, o traço involuntário do moldador. *

♦ ♦

A crença vale talvez mais do que a verdade. A verdade é impiedosa, a crença é maternal. A ciência é fria para as nossas aspirações, a fé as acaricia e nos reergue. Será que as mais belas almas terão sido, pois, as mais sujeitas ao êrro? *

* *

O amor verdadeiro é aquêle que enobrece a pessoa, que fortifica o coração e que santifica a existência. O objeto ama­ do não deve ser uma esfinge, mas um diamante límpido; a admiração e o apêgo aumentam então com o conhecimento. No entanto, para os amores terrestres, a ilusão é indispensável; desde que nos vemos tais como somos, o amor está morto; e não resta mais do que o hábito, a tolerância ou a resignação. *

* *

. . . A ciência é a potência do homem, e o amor, a sua força; o homem só se torna homem pela inteligência, mas só é homem pelo coração. Saber, amar e poder, eis a vida completa.

TERRA

"Quanto és bela, ó terra resplandecente! e sublime a tua obediência ao sol!

Quão perfeita

Quão ameno é o cântico da tua alvorada, e temeroso a brilho do teu crepúsculo! Já caminhei nas tuas campinas, subi as tuas montanhas, desci aos teus vales, galguei os teus rochedos e penetrei nas tuas profundezas; percebi a tua benevolência nos campos, a tua generosidade nos montes, a tua calma nos vales, a tua fo r­ ça nos rochedos. És submissa em tua força, majestosa em tua humildade, terna em tua dureza, e evidente em teus mistérios. Sulquei os teus mares, engolfei-me nos teus rios, segui os teus regatos, ouvi a eternidade narrar o teu fluxo e refluxo, os séculos solfejar entre as tuas várzeas e colinas, e a vida saudar a vida nas tuas florestas e desfiladeiros. És a lingua­ gem da eternidade; há em teus lábios a fibra dos séculos, e em teus dedos o ideal da vida e a sua ponderação. A tua primavera despertou-se e encaminhou-me ao teu ser­ tão, onde exalam, como incenso, os teus talentos. Impressionou-me o teu verão, onde os teus impulsos sazonam os frutos, e calou em mim o teu outono, nas tuas vindimas, onde escoa o teu sangue em vinho, e encontrou-se o inverno no teu leito, onde se esparge a tua pureza em neve. És aromatizada com a primavera, fecunda com o verão, abundante com o outono, e pura com o inverno. Numa noite serena, descerrei as vigias da minha alma e dirigi-me a ti, subordinado às minhas ambições, algemado com a grilheta do meu egoísmo, e encontrei-te contemplativa ante os astros, que te sorriam. Tirei de mim as cadeias e percebi que a habitação da mi­ nha alma é no teu espaço, que a sua harmonia está nas tuas

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M UNDIAL

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harmonias, a sua paz na tua e sua felicidade no pó dourado que as estréias espargiam no teu corpo. Nas noites mornas, em densas nuvens, enfadado da minha inércia e do meu torpor, encaminhei-me para ti e vi-te majes­ tosa, temerária, armada com a tormenta, combatendo o teu passado com o teu presente, malbaratando o teu antigo com o teu moderno. Notei que a ordem do povo é a tua ordem, o seu preceito os teus preceitos, e o seu dogma são os teus dog­ mas. Quem não fragmentar com o seu vendaval o que está sêco, morrerá ansioso, e quem não despedaçar com a sua in­ surreição o que há de petrificado, nas suas folhas, definhar-se-á estupefato, e, finalmente, quem não amortalhar com o que já morreu do seu passado será o sudário da reminiscência do passado. Quanto és generosa, ó terra! Quanto é forte o teu carinho para com os teus filhos, que estão retraídos das tuas realidades, para as ilusões, e que se extraviam entre os que atingiram o que não podem atingir. Nós nos amotinamos e tu ris; nós blasfemamos e tu aben­ çoas; nós pecamos e tu perdoas; nós maculamos e tu santificas; nós dormimos e não sonhamos, e tu sonhas na tua infinita vigília; nós ferimos o teu peito com alfanges e lanças, e tu submerges a nossa ferida em azeite e bálsamo; nós semeamos em teu seio com ossadas e caveiras, e tu fazes brotar em árvo­ res e vegetação; nós tingimos a tua face com sangue, e tu nos lavas o rosto com aroma; nós aparamos os teus minerais fa ­ zendo dêles metralhas e torpedos, e tu recolhes os nossos mi­ nerais e os encarnas em rosas e lírios. Quanto é excessiva a tua tolerância — ó terra! — e quan­ to é vasto o teu carinho! Que és, ó terra, quem és? Acaso és um átomo de pó que se elevou de entre os passos de Deus, quando caminhava do norte ao sul do Universo, ou uma fagulha que saltou da fo rja do infinito? Acaso és um bago que foi atirado no campo de Éter para que se rompesse a sua côdea com a potência da própria medu­ la, e se elevasse em arbusto acima do Éter? Acaso és uma fruta que o sol sazona com lentidão? És, acaso, uma fruta da árvore da ciência absoluta, cujas raízes se estendem até à profundeza da perpetuidade, e cujos galhos

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

se elevam até às profundezas da eternidade? Ou és uma pé­ rola arremessada pela Deusa da eternidade no recipiente da Deusa da imensidão? És acaso uma infante no seio do espaço, ou uma anciã que se alheia dos dias e das noites, já farta da sapiência dos dias e das noites? Que és, ó terra, e quem és? És, ó terra, a minha mente e a minha vista, és a minha avidez e a minha saciedade, és a minha dor e a minha alegria, és a minha letargia e o meu despertar. És a beleza nos meus olhos, a saudade no meu coração e a perpetuação no meu. espírito. És, ó terra, o que eu sou, porque se eu não existisse, tu não existirias. . . ” Gibran * * * "Todos nós somos da mesma argila. O barro nos meus ossos é igual ao que está em vossas vértebras, e a seiva que circula em minha veia é igual à que corre em vossas artérias. Como é comparável a minha idéia, atraída pelas coisas quiméricas, às vossas idéias retraídas da imensidade do Uni­ verso. E como é comparável o meu espírito, que se recolhe nas grutas aos vossos espíritos, que estão privados do espaço di­ vino. A vida, porém, é benévola e sem a sua benevolência não nos reconheceria filhos seus. A terra, porém, é fecunda e sem a sua bondade não nos colocaria em face do sol” . Gibran *

*

*

Não haverá, entre vós, quem, ao acender uma vela, não desdenhe os astros? Gibran *

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*

Se o Inverno dissesse que a Primavera se esconde em seü coração, acreditá-lo-ias? Gibran *

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*

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M UNDIAL

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O filósofo dizia: "O caminho reto não é seguido; eu co­ nheço a causa. Os homens instruídos o ultrapassam; os igno­ rantes nunca o atingem. O caminho reto não é verdade para todos, eu o sei; os homens de virtude forte vão além; os de virtude fraca não o atingem” . Do livro "Tchung-Yung” *

*

#

"Eu não sou uma águia” , disse o avestruz, e todos admi­ raram sua modéstia. Êle cortou, porém, o gesto, não sem tempo de acrescentar: "N ão só vôo perfeitamente como tam­ bém posso caminhar perfeitamente” . Hebbel *

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Não é mérito o não têrmos resvalado, mas sim o nos er­ guermos todas as vêzes que resvalamos. Pensamento árabe * * * "Se tivesse que emitir um conceito sobre arte, baseá-lo-ia na liberdade incondicional do artista, e diria: a arte deve com­ preender e representar a vida em todas as formas diversas. E é claro que a tanto não se chega simplesmente com copiar; a vida deve encontrar no artista algo mais que uma câmara mortuária de onde é vista e composta. É preciso que vejamos o ponto de partida, e onde desvanece, como uma única onda no mar do efeito universal. . . ” Hebbel * * * "Todas as gerações (deuses e homens) apareceram depois de haver-me formado. . . eu inventei o encantamento em meu coração e coisas novas dentro de mim; e formei as figuras quando estava só. . . e os homens nasceram das lágrimas que caíam de meus olhos” . Do chamado "L iv ro A pófis” (Egípcio, primeiro milênio A. C.) * * * "Os homens só desejam livrar-se da morte; mas não sa­ bem livrar-se da vida” . Lau Tseu *

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ANTOLOGIA DA LITERATURA M UNDIAL

Se eu disser: consolar-me-á meu leito, e terei alívio fa ­ lando comigo mesmo na minha cama, tu me assustarás com sonhos, e me horrorizarás com espantosas visões. Bíblia, Jó 7-13 * * * Humilhamo-nos com o orgulho; muito mais, porém, humilhamo-nos com a grandeza de espírito e nobreza de coração. E . Bartarelli * ♦ * Pode uma gota de lama cair sobre um diamante, e pode assim, escurecer-lhe o fulgor; mas, embora o diamante inteiro se encontre cheio de lama, não perde um momento sequer o valor que o faz bom, e é sempre diamante por mais que o man­ che o lodo. Ruben Dario t

$

Se fores prudente, observarás com extrema atenção os ho­ mens, para que te não ocultem o que pensam. Sólon *

* *

Não há pressentimentos. O destino não nos envia arau­ tos: para isso é demasiadamente sábio ou cruel. Oscar Wilde $

$ H s-

As crianças imaginam com facilidade as coisas que dese­ jam e não têm. Quando, na idade adulta, conservam essa ma­ ravilhosa faculdade, dizemos dêles que são poetas ou loucos. Anatole France *

* *

As universidades são naturalmente hostis aos gênios. Ralph Waldo Emerson * * * Se não fô r útil o que fazemos, será inútil a glória. Fedro *

*

*

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M UND IAL

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Dizem que ninguém é herói para o seu criado de quarto. Explica-se: o herói só pode ser reconhecido por outro herói. Goethe Mal começaram a existir a prudência e a perspicácia, nas­ ceu a hipocrisia. Lau Tseu Convenhamos em que não seria possível viver neste mun­ do sem, de vez em quando, fin gir um pouco. A diferença en­ tre o homem de bem e o canalha está precisamente nisto: o homem de bem só finge quando a tal se vê obrigado, ou para escapar a um perigo; o canalha, pelo contrário, busca as opor­ tunidades. Chamfort Os fisiólogos, os psicólogos, os antropólogos e os anato­ mistas decifram, descrevem, explicam o homem para dizer-nos o que é, de que se compõe. Mas podem apenas dizer-nos o que o liga, o que o faz homem. Assim, procura o selvagem a mú­ sica no instrumento dos europeus, despedaçando-o. F. M. K linger *

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Que espantoso campo de batalha não é o homem! *. V ictor Hugo * * * Ah, honra, como és a principal vida do coração! Uma vez perdida, nunca, tarde, pouco ou mal lhe és restituída! Lope de Vega * ♦ * A terra, insultada, vinga-se dando flores. Rabindranath Tagore *

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O homem põe a sua ventura e a sua glória no que o ator­ menta. Bacon

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ANTOLOGIA DA LITERATURA M UNDIAL

Quase todos os tolos julgam ser apenas ignorantes. Benjamim Franklin *

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A aceitação da tirania pelo oprimido acaba por ser uma cumplicidade; há apreciável solidariedade e vergonha parti­ lhada entre o govêrno que faz mal e o povo que não protesta. Sofrer é coisa digna de respeito; suportar é coisa desprezível. V ictor Hugo * * * Não é tolerante quem tolera a intolerância. Balmes *

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Um tolo encontra sempre outro, mais tolo, que o admira. Nicola Boileau * * * O homem não é escravo por ser obrigado a trabalhar con­ tra a sua vontade, mas por ser obrigado a trabalhar sem espe­ rança e sem recompensa. W. W. Reade *

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Antes de entrar em qualquer aventura, convém primeira­ mente verificar se a porta de saída não é muito estreita. Dante Veoléd *

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Revelar a arte, escondendo o artista, eis o fim da arte. Oscar Wilde * * * É muito melhor amar prudentemente, não há dúvida. Mas amar doidamente é sempre melhor do que ser incapaz de amar. Thackeray *

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Qualquer um pode ser inimigo, mas nem todos podem ser amigos; poucos são capazes de fazer o bem, e quase todos ca­ pazes de fazer o mal. Gracián

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M U ND IAL

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Quando a alma, ao têrmo de mil hesitações e desenganos, cravou as raízes para sempre num ideal de amor e de verda­ de, podem calcá-la e torturá-la, podem-na ferir e ensangüentar, que, quanto mais a calcam, mais ela penetra no ideal que bus­ ca, mais ela se entranha no seio ardente que deseja. Guerra Junqueiro *

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A verdadeira grandeza das nações está nas qualidades que constituem a grandeza do indivíduo. Charles Sumnes * * * Imagino que o pior que há na necessidade não é a priva­ ção de alguns apetites ou desejos de sua natureza transitórios, porém, essa escravidão moral, que submete o homem aos outros homens. Machado de Assis * * * Tenho por certo que a única nobreza é a bondade. Os co­ rações bondosos são superiores às coroas, e a simples fé superioríssima ao sangue normando. Alfredo Tennyson * * * Importa que eu faça as obras daquele que me enviou, en­ quanto é dia: a noite vem, quando ninguém pode obrar. Bíblia, São João, 9-4 *

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Há pensamentos que são verdadeiras orações. Em dado3 momentos, seja qual fô r a postura do corpo, a alma está de joelhos. V ictor Hugo * * * Disse Diógenes: "E u piso o orgulho de Platão” . tão retrucou: "Logo com um orgulho maior” .

E Pla­

Francis Bacon *

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É melhor perdoar que vingar-se, porque à vingança se se­ gue sempre o arrependimento. Confúcio

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

Corremos cegamente para o precipício, uma vez que em frente dos olhos pomos coisa que nos impeça vê-lo. Blaise Pascal * * * O que sufoca o bom grão não são as ervas daninhas, é a preguiça do cultivador. Confúcio * * * O respeito de si próprio é, depois da religião, o principal freio de todos os vícios. M Francis Bacon * * * Não é rico o que mais tem, senão o que menos carece. Tirso de Molina * * * O sábio busca o que deseja em si próprio. O ignorante busca-o nos outros. Confúcio * * * Jamais censures quem revelou o teu segrêdo. Repreende o teu coração, demasiadamente pequeno para contê-lo. Avicébron * * * Quando plantares uma semente, limita-te a esperar o fru­ to dessa semente. Sadi * * * O bom-senso é coisa de que todos carecemos, que poucos têm, e de que ninguém julga precisar. Benjamim Franklin * * * A única simplicidade que vale a pena conservar é a do coração, a simplicidade que aceita e goza. G. K. Chesterton * * * Dentre tôdas as sociedades, nenhuma há mais nobre, mais estável, que a dos homens de bem, unidos pela conformidade de costumes e pela amizade. Cícero *

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ANTOLOGIA DO PENSAMENTO M UNDIAL

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Quando não encontramos tranqüilidade em nós próprios, é inútil procurá-la alhures. Madame Guibert % % % Meu filho, lembra-te de que o maior dentre os príncipes é o que ergue para si um trono no coração dos homens. Theodor K õm er $ $ $ Os provérbios são pedaços de sabedoria que, bem digeri­ dos, proporcionam excelente nutrição ao espírito. Benjamim Franklin * * * Quem caminha descalço não deve plantar espinhos. G. Herbert ♦ ♦ * Não basta ter grandes qualidades, é preciso, também, sa­ ber usá-las. François, duque de La Rochefoucald ♦ ♦ ♦ Viver em contradição com o raciocínio é o mais intolerá­ vel dos estados. Leon Tolstòi * * * Se alguém, com uma ou duas advertências, não se emen­ dar, não contendas com êle, mas encomenda tudo a Deus para que seja feita a sua vontade, e seja honrado em todos os seus servos, pois sabe tirar bem do mal. Procura sofrer com pa­ ciência os defeitos e quaisquer imperfeições dos outros, pois tens também muitos que os outros têm de aturar. Se não te podes modificar como desejas, como pretendes ajeitar os outros à medida de teus desejos? Thomas A . Kempis ♦ ♦ ♦ O homem pode ignorar que tem uma religião, como pode ignorar que tem um coração; mas sem religião, e sem coração, não pode viver. Leon Tolstoi *

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

Pois bem, que é o jogo senão a arte de criar num segundo mudanças que o destino só produz ordinàriamente num sem-número de horas e até muitos anos; que é o jogo senão a arte de amontoar num único instante emoções esparsas na lenta existência dos outros homens; que é o jogo senão o segrêdo de viver toda uma vida em alguns minutos? O jogo é um corpo-a-corpo com o destino. É o combate de Jacó com o anjo, é o pacto do doutor Fausto com o demônio. Joga-se dinheiro, ou seja, possibilidade imediata, infinita. Anatole France * * * O cérebro do imbecil transforma a filosofia em estupidez, a ciência em superstição e a arte em pedantismo. A êsse triân­ gulo de erros damos o nome de instrução. G. B. Shaw * * * Há homens que parecem quererem renunciar ao que os distingue dos animais: a inteligência. Chou King £ ♦ ♦ Quando um homem de mim se aproxima com intenções puras, respeito tais intenções, muito embora não possa garan­ tir o que êle fará depois. Confúcio * * * Não existe no mundo assunto desprovido de interêsse. O que pode haver é pessoa que não interesse. G. K. Chesterton * * * A tua boca não se acostume ao juramento, porque nêle se dão quedas por muitos modos. A nomeação, pois, do nome de Deus não seja freqüente na tua boca, e não te mistures com os nomes dos Santos, porque nisto não serás isento de falta; porque bem como o escravo que continuamente é posto em tor­ tura, não se acha com diminuição nas lívidas pisaduras do cor­ po, assim todo o homem que jura, e que, a cada passo, está tomando na boca o nome de Deus, não será de todo isento de pecado. O homem que jura muito será cheio de iniqüidade, e não se apartará de sua casa o flagelo. E se não fizer o que

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prometeu com juramento, o seu pecado será sobre êle; e se faltar a isso por desprêzo, peca em dobro. Bíblia, Eclesiástico, 23 — 9, 10, 11, 12, 13 *

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Quando julgamos nossos atos em relação aos dos outros, só enxergamos os erros e defeitos dêstes e deixamos de reco­ nhecer os próprios. Fazemos exatamente como todos os adep­ tos de uma doutrina política, religiosa, ou de umá seita qual­ quer, os quais sempre julgam que os seus opositores é que estão trilhando o caminho errado. D ante Veoléci Í;'' * * O juiz deveria sempre ver na sua frente a ponta de uma espada, e imaginar atrás a bocarra escancarada do inferno. Talmvd Babilônico * * * Se a minha teoria da relatividade tiver êxito, a Alemanha dirá que sou alemão e a França, por sua vez, que sou cidadão do mundo. Se a minha teoria, porém, falhar, dirá a França que sou alemão, e, a Alemanha, que sou judeu. A lbert Einstein *

' *

Nunca sofre o homem mais do que quando, em vez de en­ contrar o amor e a benevolência, que espera, nem sequer en­ contra a mais simples justiça, e deve submeter-se a um injusto tratamento. K. Von Hartmann * * * O sentimento da falsidade dos prazeres presentes e a igno­ rância da vaidade dos prazeres ausentes causam a inconstância. Pascal H *

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Não raro convertem os homens em ridículas as coisas que não podem compreender e murmuram contra o bom e o belo que os importunam. Goethe

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

A- maravilha da infância é que para ela tudo é maravilha. Chesterton * * * Espanta-me o silêncio eterno dêstes espaços infinitos! Pascal * * * O homem constante não desanima diante do infortúnio. A tocha poderá ser voltada para o chão, mas a sua chama há de subir sempre. Chartrilhari *

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É fácil manter quieto o que está em descanso; é fácil pre­ venir o que ainda não sucedeu; é fácil partir o que é fraco, e fácil é espalhar o que é escasso: portanto, combate o mal antes que êle comece. Lau Tseu ♦

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Há dois gêneros de inimigos: os que perseguem e os que adulam. Mais para temer é, porém, a língua do lisonjeiro que as mãos do perseguidor. Santo Agostinho *

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Julgar que um inimigo fraco não possa prejudicar-nos é julgar que a faísca não possa causar um incêndio. Sadi *



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Grava as injúrias no pó, e os benefícios no mármore. Benjamim Franklin * * * Imaginamos o que desejamos; queremos o que imagina­ mos; finalmente, criamos o que queremos. G. B . Shcm * * * Quando embarco e só vejo céu e água, espanta-me a imensa e liqüida planície que me circunda, como se me visse obrigado a bebê-la toda, ao naufragar, esquecido de que bastam três

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goles de água para me afogar; do mesmo modo, ao menor tre­ mor de terra imagino que vai cair sobre mim a cidade inteira, quando bem sei que é suficiente uma telha para despedaçar-me a cabeça. A h !, pobre escravo que sou da imaginação. Epicteto * * * Neste meu peito, guardo duas almas: uma a querer sepa­ rar-se da outra. Uma, no mais vivo prazer de viver, se pren­ de ao mundo com órgãos tenazes; a outra se ergue com força do pó aos campos dos sentimentos elevados. Goethe * * * Quem só fita estréias não se volta. Leonardo da Vinci ♦ ♦ * O teu ídolo desfaz-se no pó, mostrando-te, assim, que o pó de Deus é melhor que o teu ídolo. Rabindranath Tagore * * * A pseudociência é pior que a ignorância. A ignorância é um bom campo, que podemos arar e semear; a pseudociência, um campo infestado de ervas daninhas, que só a muito custo conseguimos extirpar. C. Cantu ♦

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O sábio avalia o ignorante, porque já fo i ignorante; mas o ignorante não pode avaliar o sábio, porque nunca foi sábio. Sadi ♦

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A torre da igreja é um dedo a nos apontar o céu. Anônimo * * * A natureza humana é um mistério impenetrável ao pró­ prio homem, quando o não ilumina outra coisa senão a simples razão; e os maiores gênios, à força de reflexos sobre problema tão importante, só chegam, infelizmente, a maioria das vêzes, a saber um pouco menos que o resto dos homens. D fAlembert *

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

Há homens aos quais devemos tratar com superioridade, não somente quando lhes ordenamos alguma coisa, como tam­ bém quando lha pedimos ou rogamos; porque se êles percebem que lhes temos respeito, já não digo receio, se tornam insupor­ táveis; são comumente aquêles a quem a natureza humilhou e a sorte elevou. Baltasar Gracián * * * O homem superior é liberal para com as opiniões dos ou­ tros, mas não está completamente de acordo com êles; o ho­ mem inferior está completamente de acordo com as opiniões dos outros, mas não é liberal com êles. Confúcio * * * Há, no homem superior, três coisas que eu nunca pude lograr: o verdadeiro homem desconhece preocupações; o sábio nunca está perplexo; o corajoso não sabe o que é o temor. Confúcio * H s * A i de nós, se os mortos não dessem forças aos vivos! /. Nievo s f:

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A enorme heresia moderna é alterar a alma humana para adaptá-la às condições impostas à vida, em vez de alterar as condições para adaptá-las à alma. G. K. Chesterton *

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Será justo que os mercadores que só buscam o proveito material cuidem de salvar a vida, a qual pouco apetitosa seria a riqueza; mas o herói do ideal deve afastar-se de tais soluções prosaicas, olhar apenas a frente, e conhecer empreendimento de tal modo ligado à sua vida que ambos sejam glorifiçados na vitória, ou ambos juntos pereçam na derrota. Angel Ganivet *

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Nada nos sucede que não seja da nossa mesma essência.

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Não há ocasião heróica que se apresente a quem não era, havia muito tempo, um herói obscuro e desconhecido. Maeterlinck

Que aproveitará, irmãos meus, a um que diz que tem fé, se não tem obra? Acaso, podê-lo-á salvar a fé? Se um irmão, porém, ou uma irmã estiverem nus e lhes faltar o alimento quotidiano, e lhes disser algum de vós: ide em paz, aquentai-vos e fartai-vos, e não lhes derdes o que hão de mister para o corpo, de que lhe aproveitará? Assim também a fé, se não tiver obras, é morta em si mesma. Poderá logo algum dizer: tu tens a fé e eu tenho as obras; mostra tu a tua fé sem obras e eu mostrarei a minha fé pelas minhas obras. Tu crês que há um só Deus; fazes muito bem; mas também os demônios o crêem e temem. Queres tu, pois, saber, ó homem vão, que a fé sem obras é morta? Bíblia, São Tiago, 2 — 14,15,16,17, 18,19, 20 *

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*

Não vêdes como pelas obras é justificado o homem e não pela fé somente? Bíblia, São Tiago, 2 — 26 * * * A guerra é uma arte singular. Dirigi sessenta batalhas, e nada aprendi a não ser o que sabia quando dirigi a primeira. Napoleão Bonaparte *

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São de invejar os apaixonados que não gravam o nome da querida em nenhum lugar, que o não confiam a nenhum eco, e que, dormindo, tremem de mêdo de que alguém o possa pro­ nunciar. Théophile Gautier ♦

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Ouvimos dizer, com admiração: "Está vendo Fulano de Tal? Fêz-se por si próprio, nunca freqüentou uma escola.. . ” No entanto, seria preciso dizer: "Está vendo Fulano de Tal? Tão culto, tão inteligente! E imagine que seguiu todo o curso

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

regular: escola primária, ginásio, colégio, universidade, além disso teve os melhores mestres. E a sua inteligência resistiu!” Antônio Pousada $

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Não é verdadeiramente o corpo, que vive e luta, e sim o espírito que traz a valentia, o heroísmo e abnegação dentro da sua essência divina para vencer o seu destino e cumprir a sua missão. Antônio Pousada * * * Quando o homem fala da eternidade, é como o cego que fala da luz. São Gregário * * * Não manifeste o teu coração a todo o homem, para que, ao depois, diga mal de ti. Bíblia, Eclesiástico, 32-6 *

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Não esperdices palavras onde não há quem dê ouvidos a elas, e não queiras elevar-te fora de tempo na tua sabedoria. Bíblia, Eclesiástico, 8-22 * * * Sejam muitos os amigos, com quem tu vivas em paz, e seja teu conselheiro um dentre mil. Bíblia, Eclesiástico, 6 *

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Deus está em todos os homens, mas nem todos os homens estão em Deus: por isso sofrem. Palavras de Rama Krishna ♦ * ♦ O soberano que governa por meio da virtude é como a estrêla polar que permanece no seu lugar, enquanto as demais lhe giram em torno. Confúcio * * * O sábio não permite que o governem, nem tampouco pre­ tende governar os outros; o que quer apenas é que a razão go­ verne sozinha e sempre. La Bruyère

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ANTOLOGIA DO PENSAMENTO MUNDIAL

A verdadeira garantia do bom govêrno consiste em vigiar a execução das leis, em não permitir nunca a menor infração. Qualquer infração leve é insensível, mas tais transgressões são como as pequeninas despesas que, multiplicando-se, levam à ruína. A princípio, elas fogem à atenção, e é por isso que mister se faz deter o mal na origem. Aristóteles ❖ * * Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós vestidos de ovelhas, e, dentro, são lobos roubadores. Bíblia, São Mateus, 7-15 *

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As grandes esperanças fazem os grandes homens. Thomas Fuller *

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Haverá maior insensatezque olhar com desdém para o que está perto de nós, com admiração para o que está distante, e perseguir a sombra de uma quimérica esperança? Píndaro *

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Quem nunca esperou, jamais poderá desesperar. G. B. Shaw ♦

♦ ♦

Convém se mate o êrro, mas se salvem os que estão errados. Santo Agostinho *

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*

A regra da igualdade não consiste senão em aquinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natu­ ral, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. Os mais são desvarios da inveja, do orgulho e da loucura. Os apetites hu­ manos conceberam inverter a norma universal da criação, pre­ tendendo não dar a cada um na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos como se todos se eqüivalessem. Essa blasfêmia contra a razão e a fé, contra a civilização e a humanidade, é filosofia da miséria, proclamada em nome dos direitos do trabalho; e, executada, não faria senão inau­

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

gurar, em vez da supremacia do trabalho, a organização da miséria. Mas se a sociedade não pode igualar os que a natureza criou desiguais, cada um nos limites da sua energia mortal, pode reagir sobre as desigualdades nativas pela educação, ati­ vidade e perseverança. Tal a missão do trabalho. R u i Barbosa *

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Costumava dizer, Napoleão, que a vitória não está nas pernas do soldado; está na alma. As pernas, diante do perigo, tendem a correr. O que as contém é o brio, o dever, a alma do homem. Se as melhores tropas são susceptíveis de pânico, provado está, contudo, que o pânico é tanto mais raro quanto mais elevado fô r o moral do exército. R u i Barbosa *

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*

Não se evita a guerra preparando a guerra. Não se obtém a paz senão aparelhando a paz. R ui Barbosa *

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O trabalho não é castigo; é a santificação das criaturas. Tudo o que nasce do trabalho é bom. Tudo o que se amontoa pelo trabalho é justo. Tudo o que se assenta no trabalho é útil. Por isso, a riqueza, por isso, o capital, que emanam do trabalho, são, como êle, providenciais. R ui Barbosa *

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Liberdade, entre tantos que te trazem na boca, sem te sentirem no coração, eu posso dar testemunho da tua identida­ de, definir a expressão do teu nome, vingar a pureza do teu evangelho, porque, no fundo da minha consciência, eu te vejo incessantemente como estrêla no fundo obscuro do espaço. A democracia que te nega, ou te cerceia, engoda os povos com o chamariz de uma soberania falsa, cujo destino acaba sem­ pre às mãos das facções ou dos aventureiros que exploram. Senhoras de si mesmas, na acepção verdadeira da palavra, são unicamente as nações que te praticam sem óbices nem reservas. R ui Barbosa

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Vós, os que vos tendes entregado às artes, às letras, às ciências, não esqueçais que de tôdas elas, a mãe é a liberdade, e que sem esta o desenvolvimento daquelas é uma quimera fatal. R ui Barbosa * * * O coração não é tão frívolo, tão exterior, tão carnal, quan­ to se cuida. Há nêle mais que um assombro fisiológico: um prodígio moral. É o órgão da fé, o órgão da esperança, o órgão do ideal. Vê, por isso, com os olhos da alma, o que não vêem os do corpo. Vê ao longe, vê na ausência, vê no univer­ sal, e até no infinito vê. R ui Barbosa *

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Se quiserdes contemplar a irradiação de uma estrêla na sua pureza e serenidade, haveis de buscar por miradouro um cimo elevado, ou altas regiões calmas do equador, quando a atmosfera não fô r ondulada pelos ventos e o astro pairar aci­ ma do horizonte. Então a intermitência das cintilações, que eram efeitos atmosféricos, cessa de turbar-vos e o foco esplen­ de sereno na quietude da sua limpidez. Assim a lição dessas existências superiores não rebrilha sobre nós em toda a fir ­ meza de sua claridade, enquanto não chegam à culminação de­ finitiva na transparência de além-túmulo e na paz divina da morte. R ui Barbosa s)s

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Toda a vida humana, por mais religiosa que seja, se não trouxer sempre diante dos olhos o fim para que nasceu, é na­ vio sem norte, é cego sem guia, é dia sem sol, é noite sem estréias, é república sem lei, é labirinto sem fio, é armada sem farol, é exército sem bandeira, enfim, é vontade às escuras, sem luz de entendimento que lhe mostre o mal e o bem, e lhe dite o que há de querer, ou fugir. Padre Antônio Vieira sfc * As nuvens querem obscurecer a luz, e esta se vinga prateando-as. Friederich Hebbel *f* H *

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

As pequenas virtudes são como as violetas que gostam do frescor e da sombra, que se alimentam do orvalho e que, ainda com pouco brilho, não deixam de espargir o seu. perfume. São Francisco de Sales *

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Há homens que pensam que, levando uma vida estranha e desordenada, hão de legar o nome à posteridade; jamais o conseguirão. Há bons homens que se esforçam por viver em acordo com a lei moral, mas que, se chegarem à metade do caminho, abandonam, coisa que eu não seria capaz de fazer. Finalmente, há verdadeiros homens morais que vivem incons­ cientemente uma vida em perfeita harmonia com a ordem mo­ ral universal, e que o mundo não conhece; disso somente os homens de natureza santa e divina são capazes. Confúcio *

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O segrêdo da vida humana, o segrêdo de que brotam todos os outros é a ansiedade de mais v id a ... é, numa palavra, o apetite da divindade, a fome de Deus. Miguel de Unamuno * * * Esta expressão "Leitura” , há cem anos, sugeria logo a imagem de uma livraria silenciosa, com bustos de Platão e de Sêneca, uma ampla poltrona almofadada, uma janela aberta sobre os aromas de um jardim ; e, neste retiro austero de paz estudiosa, um homem fino, erudito, saboreando linha a linha o seu livro num recolhimento quase amoroso. A idéia da leitura, hoje, lembra apenas uma turba folheando páginas à pressa, no rumor de uma praça. Eça de Queiroz *

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*

Lemos muito mal o mundo, e dizemos depois que êle nos engana. Rabindranath Tagore * * * Há muita gente que julga ser livre e não vê os laços que a prende. F. Rueckert

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Para os homens, a liberdade, na maioria dos casos, não é outra coisa senão a faculdade de escolherem a servidão que mais lhes convém. Gustave Le Bon *

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Aquêle que, consciente da sua força, se contentar com ser fraco, será o modêlo da humanidade. Lau Tseu $ $ $ O ciumento passa a vida em busca de um segrêdo cujo descobrimento lhe há de causar a ruína. A xel de Oxenstiem * * * Quando a fortuna nos surpreende e nos dá ilustre posto, sem que a êle cheguemos por degraus, ou sem que a êle nos tenhamos elevado com as nossas esperanças, é quase impossí­ vel ali ficarmos bem e parecermos dignos de o ocupar. La Rochefoitcauld *

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Já não houve quem pretendesse queDeus criou omundo apenas para saber o que dêsse mundo diríamos nós? J. K. Jerome í

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O cristianismo prega, além da justiça, o altruísmo, a pie­ dade, a beneficência, a tolerância, o amor aos inimigos, a pa­ ciência, a humanidade, a abnegação, a fé e a esperança. Mais ainda: ensina que o mundo é dominado pela desgraça e que nós precisamos da redenção; por conseguinte, prega o desprêzo do mundo, a renúncia de si próprio, a castidade, a renúncia da vontade própria, isto é, o abandono da vida e dos seus gozos falazes; e ensina a sagrada força da dor sofrida. Um instru­ mento de martírio é o símbolo do cristianismo. Schopenhauer * $ $ Cada criança, ao nascer, nos traz a mensagem de que Deus não perdeu ainda a esperança nos homens. Rabindranath Tagore

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

Saber o que é certo e não fazê-lo é a pior das covardias. Confúcio * * * A parte tende a reunir-se ao todo para fu gir à sua imper­ feição. A alma deseja permanecer unida ao corpo porque, sem os instrumentos orgânicos dêste, não pode agir nem tampouco sentir. Leonardo da V inci ♦

♦* ♦

Também o corpo é uma criação divina. Santo Agostinho * * * Às vêzes há um passo apenas do mais suave gracejo à ofensa. C. de Saint-Evremont s|>

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É bom fazer um gracejo, mas não do gracejar fazer ofício. Thomas Fuller ♦ ♦ ♦ Todos, sem distinção, se deixam seduzir pelas vantagens do momento: somente as grandes almas é que são capazes de comover-se com a perspectiva de um bem futuro. Schiller •I»

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4*

Aos grandes homens só chamamos pelo primeiro nome, o que é muito significativo. Realmente, a idéia principal não precisa de complementos nem tampouco nêles consente. Jaime Balmes * * ’* Um grande espírito visa aos extremos: ser César ou nada; ser estrêla ou cinza. Diogo de Saavedra Farjado * * ♦ Há três maneiras de se tornar alguém um grande homem: ser verdadeiramente homem notável; ser um pouco mais que homem comum e ter propagandistas; ser um pouco menos que homem comum, e ter audácia e sorte. Dessas três maneiras

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de adquirir celebridade, não é certamente a primeira a mais segura. F. Auguez Todas as regras que o homem pode formular para o es­ tudo, resumo-as eu numa só: aprendamos apenas a criar. Somente com êsse divino poder de produzir é que somos ver­ dadeiros homens, e sem êle não passamos de uma simples má­ quina bastante bem organizada. Schelling Assim, diz-me a experiência que o verdadeiro remédio para não cair é agarrar-se à cruz e confiar no que nela foi posto. Santa Teresa de Jesus Está o fanatismo para a superstição como o delírio para a febre, e a raiva para a cólera. Voltaire * * * Cuidado, muito cuidado, que o que de ti procede a ti vol­ tará. Tseng Tseu * * * Quando tens duas coisas por fazer, uma agradável e outra desagradável, começa pela agradável, porque pode suceder que um fato imprevisto torne inútil ou agradável a coisa antes de­ sagradável. Ç. Chincholle Tudo está perdido, quando os maus servem de exemplo e os bons de mofa. Demócrates * * * Procedes sàbiamente, se calas porque és tolo; mas proce­ des tolamente se calas e és sábio. Teofrasto

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

Se, podendo servir hoje o teu próximo, esperas amanhã, deves fazer penitência. Zoroastro ♦

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Os corações reservados, quando chegam a soltar a primei­ ra confidência, precisam de se revelar inteiros. Júlio Diniz *

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Quem confia em todos mostra ter pouco discernimento e pouco juízo; quem não confia em ninguém mostra ter ainda menos. A . Graf. *

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Pode suceder que te vejas obrigado a consultar os teus amigos sobre coisas em torno das quais temes abrir-te fran­ camente; nesse caso, fala delas sob o nome de terceiro e como de assunto que te seja indiferente. Saberás, assim, como pen­ sam êles, e não te comprometerás. Isócrates * * * Ouve o conselho de quem muito sabe; sobretudo, porém, ouve o conselho de quem muito te estima. A . Graf. * * * Cuidado com quem se beneficia com o conselho que te oferece. Talmud Babilônico ♦ * * A desigualdade é a força e a essência de toda seleção. Não há dois lírios iguais, nem duas águias, nem dois caroços, nem dois homens, tudo o que vive é incessantemente desigual. Em cada primavera florescem umas árvores antes de outras, como se fossem preferidas pela Natureza que sorri ao sol fecundante; em certas épocas da história humana, quando se plasma um povo, se cria um estilo ou se formula uma doutri­ na, alguns homens excepcionais antecipam a sua visão à de todos, concretizam-na num Ideal e exprimem-na de tal maneira que perdura nos séculos. Arautos, escuta-os a humanidade; profetas, dá-lhes crédito; capitães, segue-os; santos, imita-os. José Ingenieros

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É a instituição a mais caluniada entre tôdas as institui­ ções inventadas por Deus. Não posso deitar a culpa ao sétimo mandamento por me levarem prêso em virtude de haver assal­ tado, numa ruela escura, um pacífico cidadão, assim como não posso deitar a culpa aos Regulamentos Municipais por me le­ varem prêso em virtude de haver atropelado, com um automó­ vel, um honrado comerciante. Os mandamentos da Lei de Deus e os Regulamentos Municipais são coisas perfeitamente sérias e definidas, que proíbem roubar e atropelar. São coisas co­ nhecidas, com as quais não é possível discutir, apesar de todos os ímpetos que inflamam o homem. O homem precisava en­ contrar uma justificação para os seus erros, e foi no destino que se lhe deparou a melhor justificação. Foi o destino a mão que conduziu o pacífico burguês à ruela escura para que eu pudesse ter o gosto de assaltá-lo, e foi o destino a mão que impeliu o honrado comerciante no meio da rua para que um automóvel pudesse ter o gosto de o atropelar. O destino é a única defesa do homem que não tem defesa. Inácio Anzoategui *

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Desejas muitas coisas. Se desejasses menos, consegui-las-ias; és semelhante à criança que, desejosa de colhêr as frutas encerradas numa vasilha de estreita abertura, introduz nela a mão e pretende tirá-la cheia. A ambição desmedida só tem um resultado: lágrimas. Epicteto *

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O mais forte é aquêle que sabe dominar-se na hora da cólera. Maomé * * * Onde há rosas há espinhos, onde há vinho há ebriedade, onde há tesouros há serpentes, e onde há pérolas há monstros devoradores. Sadi * * * Julgas que te chamarei laborioso, embora passes as noites -estudando, lendo? Não, sem dúvida. Quero antes saber a que referes o teu estudo e aplicas o trabalho, porque não chamo laborioso ao homem que vela a noite inteira para ver a aman­ t e ; chamo-o apenas enamorado. Se velas tua glória, chamar-

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-te-ei ambicioso; se velas para juntar dinheiro, chamar-te-ei interessado; mas se velas para cultivar a tua razão e para acostumar-te a obedecer à Natureza e a cumprir os teus deveres, só então te chamarei laborioso, por ser êsse o único tra­ balho digno do homem. Epicteto *

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A nossa atitude perplexa diante de Deus é a atitude da­ quele que se esqueceu de um segrêdo muito querido, sabe que dêsse segrêdo depende todo o seu destino, por mais esforços que empregue para lembrar-se, jamais conseguirá fazê-lo. Benedito Cardoso *

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Confessar defeitos, quando repreendidos, é modéstia. Re­ velá-los aos amigos é ingenuidade e confiança. Alardeá-los é orgulho. Confúcio *

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Procura sofrer com paciência os defeitos e quaisquer im­ perfeições dos outros, pois tens também muitos que os outros têm de aturar. Se não te podes modificar como desejas, como pretendes ajeitar os outros à medida de teus desejos? Thomas A . Kempis *

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De mim, como da fonte da vida, tiram água viva o peque­ no e o grande, o rico e o pobre, e os que me servem voluntária e livrementè receberão graça sobre graça. Mas quem, fora de mim, quiser gloriar-se, ou deleitar-se em algum bem par­ ticular, jamais poderá firmar-se na verdadeira alegria, nem se lhe dilatará o coração, mas sempre andará perturbado e an­ gustiado de mil maneiras. Não te atribuas, pois, bem algum, nem a pessoa alguma atribuas virtude, mas refere tudo a Deus, sem o qual nada tem o homem. Eu dei tudo, eu quero tudo reaver, e com rigor exijo as devidas ações de graças. Thomas A. Kempis *

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Paul de Saint-Victor

B E N V E N U T O

C E L L I N I

(Trad. de Mário Ferreira dos Santos)

Benvenuto Cellini tinha cinco anos, quando, numa tarde de inverno, seu pai, que tocava viola ao canto do fogão, acre­ ditou ver um animal semelhante a um lagarto que dançava vivo na chama. Ordenou à criança que se aproximasse, e deu-lhe uma bofetada que fêz brotar lágrimas dos olhos. Mas o pai enxugou-as com carícias. "Meu querido, disse-lhe, não bato para punir-te, mas somente para que te recordes que êste la­ garto que percebes no fogo é uma salamandra, animal que ainda não foi visto por nenhum homem vivo sobre a terra” . Êste fenômeno de sua infância foi o presságio e o sím­ bolo de sua vida: êle também foi um animal vivo na chama, um homem de fogo, de fel e de bílis, que se moveu durante sessenta anos, em meio de paixões cujo primeiro impulso teria devorado uma organização menos robusta. Suas Memórias, escritas nos últimos anos, são as de um Orlando furioso da vida real. A mão do velho treme ao retraçar sua história, não de velhice, mas de orgulho póstumo, de ódio insaciado ou de vingança insatisfeita. É o cavalo de Mazeppa entrando no estábulo: sangra, fumega, escuma ainda. Por tais fatos pode ver-se o que foi a arte do século X V I, não como nas épocas repousadas, um luxo, um gosto, um diletantismo, mas uma pai­ xão violenta e terrível, um fanatismo obstinado, algo como um maometismo. às avessas, propagando, pregando, impondo seus ídolos com o mesmo ardor que o outro punha em demoli-los. A vida de Cellini foi somente um longo acesso de cólera entrecortada de inspirações avassaladoras. Bandido de mãos de' fada, êle espargia jóias no sangue dos assassinos e das embos­ cadas, como Atalante atirava maçãs de ouro na poeira da are­ na. Não teve o Renascimento filho mais extravagante que êste gladiador ao manejar o buril, que êste ciclope ao cinzelar anéis. Contraste esquisito da imaginação mais delicada unida ao caráter mais intratável. O que o caracteriza é a cólera tornada estado crônico. É exasperado de origem, nasceu com espuma na boca. Tudo é

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instinto nesta natureza feroz, impulso espontâneo, súbito e apaixonado de força. Ruge e eriça-se contra seus êmulos, como o leão contra os concorrentes de seu antro ou de sua cisterna. Com vinte anos, vêmo-lo entrar de cabeça baixa numa loja de ourives rivais. "Traidores! exclamou, "chegou o dia em que vos vou matar a todos!” Mais tarde, êle apunhala, em plena Rua Roma, Pompeu, o joalheiro do Papa, de quem tinha mo­ tivos de queixa. "Queria sangrá-lo, mas, como se diz, não me­ dimos os nossos golpes.” Em Paris, entrou armado até os dentes, no atelier de Primatice, que lhe disputava uma estátua, e fê-lo renunciar à encomenda, espada na garganta. — "Messer Francesco, saiba que, se a7guma vez eu ouvir que tornou a falar de um modo ou de outro dessa encomenda, que me pertence, eu o matarei como a um cão” . Em Florença, encontra-se com aquêle sombrio e odioso Baccio Bandinelli, que mordeu o cinzel de Miguel Ângelo, mais duro ainda que -a lima mordida pela serpente da fábula. Tipo de artista invejoso, que Dante teria colocado em seu Purgató­ rio, entre aquelas aTinâS que se rastejam, em posturas de cariátides, curvados sob enormes pedras. A luta foi terrível entre Baccio e Benvenuto. Aqui ataques e defesas se equ^ibram: mesma altivez de orgulho, mesmo negrume de temperamento, mesmas faculdades de acrimônia e ódio. É preciso vê-los disputar cada bloco de már­ more que chega ao duque, de Carrara ou da Grécia: dir-se-ia que vão quebrá-lo para apedrejarem-se com os fragmentos. Outras vêzes, encontram-se ante uma obra que um dêles acaba de terminar. Então, ao pé da estátua do grupo, trava-se uma luta que lembra aquelas escuHuras dos pedestais antigos que representam dois carneiros furiosos entrechocando-se com os cornos. Mas Cellini vence, nessas invectivas homéricas: êle soa a injúria com a trombeta. Escutai-o desancar o Hércules de seu rival; sua p a lv r a vale a espada de Apoio dissecando Marsias: ela penetra no mármore como na carne viva: "Preten­ de-se que, se cortassem os cabelos de teu Hércules, não restaria suficiente crânio para conter o cérebro; não sabem se o resto é de um homem ou de um leão ou de um boi; dizem que sua cabeça não tem movimento e não é proporcional ao pescoço; que seus dois ombros se assemelham aos cestos de um jumen­ to ; que as barrigas das pernas não são copiadas de um modêlo humano, mas de um saco cheio de melões que se teriam apo:ado perpendicularmente sobre um muro; que as costas produzem

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o efeito de um saco de grandes abóboras; buscam em vão de que maneiras as duas pernas estão ligadas a êsse dorso hor­ rível que não as apóia nem sobre uma nem sobre a outra. Esta pobre estátua pende para a frente mais de uma braça, o que é o maior e mais horrível êrro que possam cometer artistas tais como conhecemos às dúzias; observem que os braços des­ cem tão desgraciosamente, que são tentados a crer que jamais viram gente nua e viva; que a perna direita de Hércules e a de Cacccus não têm sequer uma barriga de perna para ambas; dizem ainda que um dos pés de Hércules está em terra e que o outro parece colocado sobre o fo g o . . . E prossegue assim, zombando, ultrajando, vociferando até perder o fôlego. Não tem um instante de repouso, nem uma trégua, nesta existência agressiva. Desembainhar, tirar o pu­ nhal, era o mais espontâneo e o mais freqüente de seus gestos. Todas as afrontas são iguais ante seu rancor. Culpava de morte a irreverência e o ultrage, a ofensa fútil tanto quanto a afronta sangrenta. Como tinha consagrado e coroado a si mesmo monarca absoluto de sua arte, cada delito à sua pessoa, julgava crime de lesa-majestade. Seu irmão foi morto num conflito de corpos da guarda; êle olha de soslaio "igual a uma concubina” o arcabuzeiro que deu o tiro, até que, encontrando-o à porta de uma taberna, o degola, pelas costas, com um golpe de estilete entre o pescoço e a nuca. Um hoteleiro de Ferrara, em cuja hospedaria entrou, quis ser pago adiantadamente antes de recebê-lo: igual furor, igual ressentimento. Passou a noite a forja r projetos de vingança. "Pensei de início pôr fogo à casa, depois degolar quatro cava­ los que o hoteleiro tinha em seu estábulo” . Mas, faltando-lhe tempo, descarregou a cólera, antes de partir, nos leitos do al­ bergue, onde cortou a roupa de cama com grandes golpes de faca: "Cortei tão bem quatro camas, que dei mais de cin­ qüenta escudos de prejuízo” . As questões com as amantes levaram-no às brigas e aos maus tratos. Antes de se vingar de uma jovem que lhe servia de modêlo, e que lhe havia enganado com um de seus apren­ dizes, forçou-a a posar, durante horas, nas atitudes mais fatigantes. Quando ela quis queixar-se, surrou-a até prostrá-la. "Inflamado de furor, segurei-a pelos cabelos e arrastei-a pelo quarto, aos pontapés e aos socos, até que a fadiga me deteve” . Esta violência febril era peculiar ao temperamento do século. Nada mais curioso que as relações de Cellini com seus patronos; e reina aí não sei que cordialidade áspera e acerba.

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Tendo um bispo espanhol demorado em pagar o trabalho de um vaso, pediu-o de volta, sob o pretexto de acabar, e aos criados que vieram reclamá-lo exibiu uns dentes de dragão que guarda o seu tesouro. O bispo enviou um bando de facínoras para assaltá-lo em seu "atelier” ; êle os recebeu, e, vaso na mão, o punhal na outra, penetrou altivamente no palácio do prelado. Atravessou uma antecâmara repleta de esbirros sentados com suas armas. "Julguei que passava no meio do Zodíaco; um tinha o semblante do Leão, outro do Escorpião, aquêle do Cân­ cer” . Ao vê-lo, o bispo irrompeu em exclamações: queria o cálice; Cellini reclamava o dinheiro. O caso terminou por uma permuta amável de louvores e de injúrias. Os próprios papas não o intimidavam: enfrentou Clemen­ te V II, Paulo III, aquêles terríveis pontífices, que empunhavam o bastão pastoral de maneira a fazer tremer seus rebanhos. Delongava o serviço, fazia-os esperar, trabalhava para êles se­ gundo a fantasia, nas horas vagas. Eis como se passavam de ordinário essas alterações. O papa conta com o cálice ou a tiara que lhe encomendou; o artista não tem pressa e envia ao diabo seus mensageiros. Chamam-no ao Vaticano, comparece de cabeça erguida. Sua Santidade, encolerizado, resmunga, ameaça. "Em verdade, eu te declaro, a ti que proclamas não pres­ tar contas a ninguém, que se não fosse por respeito humano, eu te faria atirar pela janela com tua obra!” Cellini replica, eleva o tom ao diapasão dessa voz que aben­ çoa o mundo e que excomunga os impérios; o Vaticano treme, os cardeais, inquietos, se entreolham. . . Tudo termina por um beijar o pé e por um sorriso paternal. Pois os grandes artistas eram as crianças mimadas dêsse papado ateniense da Renascença. Êle permitia todas as excentricidades e todos os caprichos; cumulava-os com suas absolvições e liberalidade; desavinham-se e reconciliavam-se impunemente com êle. Aquêle violento Júlio II, que tudo fazia tremer, somente desenrugava o semblante ante Miguel Ângelo. Era um caso de anátema tirarem-lhe seu escultor. Quando o artista, mal­ tratado por êle, fugiu de Florença. lançou sobre o Senhor da­ quela cidade, breves fulminantes para intimá-lo a devolvê-lo. Miguel Ângelo veio reencontrá-lo em Bolonha, entrou, com o ar de leão doméstico espancado pelo dono, na sala onde o papa jantava, cercado do Sacro Colégio. Júlio, franzindo a sobran­

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celha embranquecida, mediu-o dos pés à cabeça com um olhar irritado: — Finalmente, em vez de vires encontrar-me em Roma, esperaste que nós fôssemos procurar-te em Bolonha! Ante estas palavras, um dos bispos do séquito acrescentou: — Que vossa Santidade o perdoe. Esta espécie de gente é composta de ignorantes que só conhecem a sua profissão. Mas o papa, furioso, voltando-se de lado, com seu báculo bateu no mitrado imbecil: — Ignorante és tu! Tu o ultrajas quando nós apenas lhe dizemos injúrias, nós! Ignorante sei tu che gli di vallania, che non gliene diciam noi. Cellini teve, para com seus papas, cenas semelhantes. Po­ dia encher Roma de assassínios e de algazarras, pois bastava-lhe um anel, uma jóia, um camafeu para reobter a graça. Assim, quando êle liqüida o assassino de seu irmão, de início, Clemente V II se aborrece, manda-o ao Quirinal e obser­ va-o com olhos ameaçadores. Cellini tira de sua escarcela um botão dé capa-manga, no meio do qual gravou, em meio relêvo, um maravilhoso Deus Padre, sentado sobre um grande diaman­ te sustentado por anjinhos. Imediatamente, a cólera do papa se dissipa; o rosto brilha, como iluminado pelo reflexo da divina jóia. Não é mais um juiz irritado, um soberano prestes a punir, é um amador idó­ latra volvendo e revolvendo uma jóia excepcional entre as mãos trêmulas de entusiasmo. — Benvenuto mio, julgo que te encontraste em tal situa­ ção que não poderias proceder de outro modo. O primeiro ato de Paulo I I I foi absolvê-lo do assassínio de Pompeu, cometido durante o interregno; e como um Mon­ senhor objetava a lei a êste excesso de clemência: — Aprende, disse-lhe o papa, que os homens exclusivos em sua profissão, como Benvenuto, não devem ser submetidos às leis, e êle menos que qualquer outro. Assim a razão da arte era posta acima da razão de Es­ tado nessa Roma da Renascença, que festejava como santos os deuses do Olimpo e que passeava por suas ruas o grupo exu­ mado do Laocoonte, da mesma forma como teria procedido para com o corpo de um mártir encontrado nas Catacumbas. A arte era a segunda religião dêsses pontífices patrícios; queriam que o catolicismo a elevasse até pela forma, acima ao paganismo,

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e que o crucifixo fosse tão bem modelado como Júpiter. o primeiro cuidado e a última solicitude de seu reino.

E ra

Clemente V II havia encomendado medalhas a Benvenuto; a doença reteve-o, e lhe foram levadas ao leito de morte. O velho papa moribundo ergue-se nos travesseiros; acenderam os círios, pôs os óculos; mas a nuvem da agonia vedava já o» olhos; nada pôde discernir. Então apalpa, tateia, com suas mãos senis, os fracos relevos dessas belas medalhas que renun­ cia ver; depois lança um grande suspiro e recai abençoando pela última vez seu Benvenuto. Nunca um século teve uma admiração tão pura e tão pro­ funda das obras-primas da mão humana. Saía-se do caos das épocas bárbaras, a escultura antiga surgia do sepulcro; tipos desconhecidos de grandeza e de beleza surgiram ao sol. Sob sua divina influência, o gênio humano, tão longamente estéril, redescobria suas forças plásticas: concebia, engendrava fo r­ mas esquisitas e grandiosas. O mundo vivo contemplava, des­ lumbrado e arrebatado, aquêle mundo imóvel. Era como uma segunda Criação tão fecunda, tão espontânea como a outra. O homem retornava à atitude admirada de Adão despertando em meio da multidão infinita dos sêres encandecidos pela primeira aurora. Compreende-se, então, o valor que o século X V I concedia aos grandes artistas, desde o arquiteto que construía palácios, até o ourives que cinzelava anéis. Compreende-se sobretudo o acolhimento que os Bárbaros faziam àqueles italianos que vi­ nham, como os Magos da Renascença, com mãos cheias de ra­ ridades e de maravilhas exóticas. Nada mais comovedor que a conduta de Francisco I para com Benvenuto Cellini, quando, a seu convite, veio instalar em França sua fo rja de Polifemo. Cumulou-o de liberalidades, deu-lhe um castelo para "atelier” , e chamou-o de seu amigo. "Eu te farei nadar em ouro” , disse-lhe um dia. A cada jarro, a cada copo, a cada estátua nova eram elogios reais e louvores magníficos: "E is um homem que verdadeiramente merece ser amado!” Ou, ainda: "N a verdade, creio que nem sequer os antigos foram, capazes de produzir nada tão belo!” Êste rei, gaulês e batalhador, mas sensual até à ponta dos dedos, cai em adoração ante as delicadas figurinhas que modela aquela mão de feiticeiro. Maravilha-se de beber num jarro no qual uma N infa recurvada contempla no vinho sua elegante cabeça. Alegra-se por servir-se do sal com uma concha de A nfitrite que enlaça Cibele com suas longas pernas florenti-

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nas. Não se cansa de admirar as graças e a altivez do estilo toscano, para êle tão novas. Era a surprêsa do guerreiro de Tasso, transportado do campo feroz dos Cruzados, para êste jardim de fada do Oriente, onde chovem flores, onde os pássa­ ros falam, onde o Amor paira no ar luminoso. Um dia, em que o rei se amargurava na ansiedade de uma guerra desastrosa, o cardeal de Ferrara leva-o a ver uma porta de que Cellini acabara de fazer o modêlo. Deixou conduzir-se, preocupado e lúgubre ainda. Mal viu a Ninfa de Fontainebleau, pousada com o cotovêlo no flanco de um cervo, e volup­ tuosamente alongada na curva de hemiciclo, sua fisionomia se iluminou: os olhos recuperaram o brilho alegre, o sorriso de fauno amoroso retornou aos lábios. Não pensava mais no Im­ perador nem no Milanês: entregava-se inteiramente às alegrias da admiração artística que, nêle, correspondiam às sensações do amor. "Meu amigo, — disse-lhe Benvenuto, tocando-lhe no om­ bro, — não sei quem é mais feliz, se o príncipe que encontra um homem conforme seu coração, ou o artista que encontra um príncipe que saiba compreendê-lo” . Como admirar-se, após estas palavras, do orgulho de um homem que se tornou comensal dos papas e amigo dos reis! Um tesoureiro de Francisco I quis que êle viajasse na carruagem da mala postal. "Assim viajam os filhos do du­ que”, alegou para decidi-lo. — Como nunca fui filho de duque, — replicou Cellini, — não sei como viajam essas personagens, mas os filhos de mi­ nha arte viajam em pequenas jornadas. Um mordomo do duque de Florença, que êle maltratava como era o seu costume, admira-se "que se tenha julgado dig­ no de falar a uma pessoa tal como êle” . — Os homens como eu são dignos de falar tanto aos papas, aos imperadores como aos grandes reis. Não se encontrarão dois do meu feitio no mundo inteiro; mas, as pessoas como vós, encontramo-las às dezenas em cada parte. Nunca a vaidade fo i tão feroz: imaginemos um pavão armado do bico e das garras de uma ave de rapina. Tudo deve ceder e curvar-se ante êle. Só êle tem o gênio, a glória e a ciência infusa. Não contesta o talento de seus rivais, até os mais ilustres: não, nega radical e absolutamente. A pró­ pria Antigüidade só vale para ressaltar suas obras.

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Primatice acaba de trazer de Roma estátuas de bronze que réproduzem os mais belos mármores do Vaticano e do Capitólio; mas os expõe na galeria onde impera o Júpiter de Cellini, e as pobres figuras antigas não podem suportar a pre­ sença do Deus trovejante. A comparação aniquila-as; mais um pouco, e êle as fará cair por terra ante sua obra-prima, como os ídolos diante do verdadeiro Deus. A perpendicular da presunção não saberia ir além. Não são demasiadas as apoteoses perpétuas em que se pavoneia; um dia, êle orna de uma auréola sua touca florentina, e cano­ niza a si mesmo ainda vivo. "Não quero guardar silêncio sobre a coisa mais assom­ brosa que jamais sucedeu a um homem. Saibam que, após a visão que contei, ficou-me na cabeça uma luz miraculosa que foi perfeitamente vista pelo número restrito de amigos a quem mostrei. Percebem-na na minha sombra, de manhã, durante duas horas, a contar da aurora, sobretudo quando a erva está coberta de orvalho, e à tarde, ao crepúsculo. Eu a observei em França, em Paris, onde a vemos muito melhor do que na Itália, porque, neste país, o ar está muitas vêzes carregado de névoas. Posso, no entanto, vê-la e mostrá-la aos outros em to­ dos os lugares, mas sempre menos distintamente do que em França” . Tal como é, tal como se pintou de cores biliosas e sangrentas, é amado e admirado êste bravo de gênio. Seus excessos são os da força, suas paixões as da vida exaltada ao paroxismo. O fervor pela arte devora-o; bate-se por uma es-, tátua como por uma amante, aprova os discípulos de Rafael que queriam matar o Rosso porque êle difamara o nome do mestre. A "força soberba da form a” , Vis superba formae, como disse um poeta latino de seu tempo, transporta-o de ad­ miração. Devemos ouvi-lo em seu Discurso sobre os princípios da arte do desenho, fala como idólatra da beleza do corpo hu­ mano, de suas ossamentas, de seus membros, dos móveis in­ ternos que lhe fazem mover e agir. "Tu farás teu discípulo copiar um dêsses magníficos ossos das pernas, que tem a forma de bacia, e que se articula tão admiràvelmente com o osso da coxa. . . Quando tiveres dese­ nhado e bem gravado em tua memória êste osso, começarás a desenhar aquêle que está colocado entre as duas ancas; é be­ líssimo e chama-se sacrum. . . Estudarás a seguir a maravi­ lhosa espinha das costas que se chama vertebral. Ela apóia-se sobre o sacrum, e ela é composta de vinte e quatro ossos que se chamam vértebras. . . Deverás ter prazer em desenhar êsses

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ossos, pois são magníficos. O crânio deve ser desenhado em todos os sentidos imagináveis, a fim de que não possa sair da memória. Pois, convence-te de que o artista que não tem os ossos do crânio bem gravados na memória, nunca saberá fazer uma cabeça que tenha a menor graça. . . Quero também que guardes de memória tôdas as medidas da ossatura humana a fim de que possas mais seguramente revesti-la da carne, dos músculos e dos nervos, de que se serve a divina natureza para ajuntar e ligar essa incomparável máquina” . Êsse entusiasmo é compartilhado por toda a sua época. Sabe-se com que fervor Miguel Ângelo anatomizava os cadá­ veres, colocando-lhes uma candeia no umbigo, para estudá-los até durante a noite. O esqueleto não é mais, como na idade média, o terrível farrapo de uma carne desprezível, mas a ad­ mirável armadura do vigor e da beleza. O homem pende sobre a cabeça do morto com arrebatamento; aí não busca mais a repugnância, mas o segrêdo da vida; mede nas cavidades do crânio, a órbita dos olhos de Apoio; do ríctus cheio de esgares extrai o radiante sorriso de Vênus. Os Deuses, as Ninfas, os Heróis, os Anjos, as Deusas que povoam com seus belos corpos os palácios e os templos, saem da carne, fecundada, como as flores da podridão. O século X V I inaugura o triunfo plástico da Morte. Tôdas as causas do buril e do desbastador são sagradas para Benvenuto. É tão inteiramente possuído por sua arte que ela o persegue até em seus sonhos. Êle escultura o impalpável, cinzela o sonho. Encarcerado por Paulo III, no castelo de Santo Ângelo, uma visão lhe aparece onde vê o sol como um disco imenso, representando ao mesmo tempo Cristo e a Virgem. "O sol, sem raios, assemelhava-se a um banho de ouro fun­ dido. Enquanto considerava êste fenômeno, o centro do astro intumesceu e dêle saiu um Cristo crucificado, formado da mes­ ma matéria luminosa. Respirava uma graça e uma mansuetude tais, que o espírito humano não poderia imaginar nem a milésima p a rte ... pois o centro do astro intumesceu como da primeira vez, e tomou a forma de uma arrebatadora Nossa Senhora sentada e tendo sobre o braço o Menino divino que parecia sorrir. Ela estava colocada entre dois Anjos de uma inacreditável beleza” . Persistindo na alucinação, o ourives gravou o sol na efígie das medalhas. Por suas qualidades como por seus defeitos, por seu ta­ lento como por sua loucura, Benvenuto Cellini é a mais ori­

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ginal personificação desta Itália artística do século X V I, que produziu sêres à parte nas seqüências da história. Estranhas criaturas organizadas para o mal e para o gênio, para as vio­ lências do crime e para as obras da inspiração. A Itália, nessa época, oferece o espantoso espetáculo de um Pandemoniurn enobrecido e decorado pelas artes. Tem monstros letrados e bandidos diletantes, Péricles envenenadores e Fídias assassinos. Tigres saltam e emboscam-se nos jardins de Armida. Os ódio3 são atrozes, os ressentimentos implacáveis, as concorrências se despojam a golpes de estilete; mas um sopro divino paira sobre toda esta tempestade humana; a seiva desborda e fermenta; e a A rte cresce pela força dessas paixões desencadeadas, como o bronze toma uma forma sublime em meio das chamas e das escórias da fundição.

O

E S PÍR ITO

"E m cada coisa ou ser existe uma parte do todo, menos do espírito. Mas, a muitos seres lhes é inerente também o espírito. Tudo o mais participa do todo, mas o espírito é infinito e so­ berano e não se mistura com nenhuma coisa, mas existe só: êle mesmo para si mesmo. É que se não fosse independente, mas se misturasse com outra coisa, participaria de tôdas as coisas... na suposição, precisamente, de que se misturara com outra coisa. Porque em cada coisa ou ser, existe uma parte de todos, segundo disse no princípio. Em tal caso, as matérias acrescentadas perturbariam de tal forma o espírito, que êste não poderia dominar tôdas as coisas em igual medidade em que poderia fazê-lo existindo por e para si só. Porque é a mais fina e a mais pura de tôdas as coisas, dono de todos os conhecimentos, de tudo e, além disso, da maior força. O espírito domina tudo quanto tenha alma, o grande e o pequeno. Tem poder também sobre todo o movimento do vivo, de modo que origina êsse movimento. O movimento do vivo se iniciou em um ponto diminuto, mas êsse movimento se pro­ paga e se propagará cada vez mais. E o que se misturou, o que se dividiu e eliminou. . . tudo conhecia o espírito. E o que devia acontecer no futuro e o que foi e não existe mais, e o que existe atualmente, tudo lhe ordenou o espírito” . Anaxágoras, "D a Natureza99 (Grego, século quinto A.C.)

OS VERDADEIROS OBJETOS DO SABER

"Os (verdadeiros) filósofos dizem que se deve primeira­ mente aprender que há Deus que vela por todas as coisas e para quem não há coisas ocultas, nem nossas ações, nem tam­ pouco nossos pensamentos ou nossas intenções. . . e logo de que índole é. Porque, tal como o encontramos, deve tentar, por todos os meios, assemelhar-se a êle, aquêle que pretender agradar-lhe e obedecer-lhe. Se a divindade é livre, êle tam­ bém deve ser — se é fiel, êle também deve ser; se é caritativa, êle também deve ser; se é magnânima, êle também deve ser. Sê, pois, imitador de Deus em todas as coisas, nas ações e nas palavras. — Por onde há de começar? — Se queres sentar-te aqui, dir-te-ei que primeiro deves compreender os têrmos. — Acaso não sei empregar os têrmos com compreensão? — Não, não o sabes. i — Pois, como emprego então os têrmos? — Tal como os que não sabem escrever empregam os si­ nais fonéticos, tal como os animais suas impressões sensoriais. Uma coisa é o emprêgo, e outra, a compreensão. Mas, se crês que o entendes, proponho um tema, à tua escolha, e faremos a prova para ver se temos a compreensão necessária. Para um homem já idoso e que acaso haja tomado parte nas trsê campanhas, não é agradável aquêle que contradiz. Eu sei. Vieste ver-me como se nada te fizesse falta. E, com f i ­ lhos, que poderia faltar-te? És rico, possivelmente tens filhos, mulher, muitos criados; o imperador te conhece, tens muitos amigos em Roma, cumpres com teu dever, sabes corresponder ao bem com o bem e pagar o mal com o mal — que mais ne­ cessitas? Se agora te ensinasse eu o mais sublime e o mais imprescindível para ser feliz, te demonstrasse que até agora qualquer coisa te preocupa mais que o que na realidade te im­ porta — e acrescentarei em seguida o principal: não sabes o que é a divindade, nem o que é o homem, nem o que é bom e mau, que tudo isso talvez tolerasses ainda, mas é que, além

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disso, nem sequer, conheces a ti mesmo — como suportarias uma censura de minha parte, permanecendo onde estás? Não o farias de maneira alguma e sairias aborrecido. E, contudo que mal te fiz? Com a mesma razão, o espelho faria mal ao feio porque lhe mostra a sua aparência. E, se assim fosse, o médico somente gracejaria com o enfêrmo, ao dizer: ''Meu amigo, parece-te que não tens nada, contudo, estás com feb re; não comas nada hoje, e bebe somente água” . E ninguém dirá: "Que ofensa!” Não obstante, quando se diz a alguém: "Tuas pai­ xões são confusas; tuas aspirações, contraditórias; tuas aver­ sões, vis; tuas inclinações não estão em harmonia com a na­ tureza; teus princípios são insustentáveis e falsos” , êste se retira dizendo: "Ofenderam-me” . Ocorre conosco o mesmo que com uma grande reunião cujo pretexto são os sacrifícios. Em tal oportunidade oferecem-se à venda ovelhas e bois, e há muita gente desejosa de comprar e de vender. . . e são poucos os que concorrem à solenidade com o único fito de ver como e por que se faz isso, quais são os organizadores da festa e em honra de quem se celebra. O mesmo sucede nesta reunião (do saber). Alguns só se preocupam com o proveito, porque tudo o que os preocupa, os bens de fortuna, os terrenos, escravos, tal ou qual cargo: tudo isso não é mais que proveito. Mas poucos são aquêles que con­ correm à reunião para ver o que é o mundo e quem o governa. Acaso ninguém? Como poderia existir uma cidade ou uma casa, ainda que fosse por pouco tempo, sem alguém que a di­ rigisse e velasse por ela? Tão grande e maravilhosa obra de arte não obedeceria a nenhum plano e seria por casualidade governada em forma tão ordenada? Deve haver, pois, um governante. Quem é e como governa? E nós que somos? Descendemos dêle e para que fim ? Estamos em contacto com êle, temos ou não relações com êle? Estas são as questões que preocupam aquêles poucos ho­ mens. Não se dedicam senão a tudo isso, e logo se retiram, depois de haver examinado bem a reunião. — Mas a multidão ri-se dêles! Assim como ali, os negociantes se riem dos meros espec­ tadores . . . os animais, se tivessem consciência, rir-se-iam tam­ bém dos que atribuem importância a outra coisa que não seja o alimento” . "Das Conversações99 com Epicteto

"E m contínua comunicação com o mundo de espectros dos deuses, nós mesmos quase nos convertemos em espectros. Jaz em todos nós algo horroroso, pesado, que carrega nosso espí­ rito e o atrai aos lugares misteriosos de sacrifício. A tradição de servidão incrusta-se em nosso sangue como um veneno oculto, nutre-se constantemente de nossa força vital e nos faz o mundo aparecer como numa caótica embriaguez de ópio. Ibsen reconheceu o ponto frágil de nosso intelecto quando pôs na boca da Senhora Alving estas palavras: "N ão nos rodeia somente o que herdamos do pai e da mãe. Também todos os conceitos velhos e mortos imagináveis e toda espécie de crenças mortas e assim sucessivamente. Não vivem em nós, mas apesar de tudo estão em nosso sangue e não podemos f i ­ car livres. Se tomo um jorna1 na mão e leio, passa-me algo assim como se visse espectros deslizarem entre as linhas. Em torno do país devem viver espectros. Devem ser tão nume­ rosos, creio eu, como a areia do mar. E, além disso, todos somos tão míseros morcegos, uns como os outros! . . . ” A i ! o espectro em nós nos faz morcegos e covardes. Trememos ante nossas próprias sombras, e nosso espírito imagina os sistemas mais maravilhosos para justificar nossas fraquezas e dar-lhes uma aparência heróica. Assim se transformou o servilismo em virtude, a submissão em princípio. Toda nossa vida está obstaculizada por férreas necessidades que nós mesmos desco­ brimos e aumentamos até que se transformaram em fatalidade. Perseguem-nos do berço ao túmulo e oprimem todos os nossos atos das sagradas leis e dos conceitos tradicionais. Tudo isto se nos converte em obrigação, em irrevocabilidade e, ainda, de­ pois de romper em pedaços um velho jugo, espreitamos anelantes novas religiões às quais possamos oferecer nossa reverên­ cia. Somente no primeiro dia de nossas revoluções zumbem ao nosso redor os relâmpagos do crepúsculo dos deuses; mas no segundo dia, ajoelhamo-nos outra vez ante novos altares. E se alguém da geração dos assinalados vem a nosso meio para interpor-se entre nós com o sentimento de seu humanita-

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rismo, levamo-lo à guilhotina ou o vestimos com os atributos da santidade. Os fariseus fazem morrer um homem na cruz, mas três dias depois de sua morte fazem surgir de seu túmulo a ilusão dos crentes em um deus. Quando chegará finalmente a sexta-feira santa dos deuses que traga a ressurreição do homem? * * * Ouvis o grito longínquo da outra margem? Sonho cheio de esperança e radiante de vida pela glacial noite de inverno como um mensageiro do futuro. A rigidez se dissolve. Um grande anelo vai pelo mundo, como um sopro de primavera. São os presságios do grande crepúsculo dos deuses que nos anunciam a festa da ressurreição. Germinal! Ouvis retumbar o grito da meia-noite? Ger­ minal, renovador da vida, núncio de um novo devir, espírito de destruição, espírito criador, nós te saudamos” . Rodolfo Rocker

O G RAND E INQ UISID O R ("Os Irmãos Karamazov” , de Dostoievski)

"O Espírito terrível e maligno, o Espírito do nada, o gran­ de Espírito, continuou o velho, falou contigo, no deserto, e os livros contam que êle Te submeteu à tentação. Mas poderia haver nada mais verídico que o conteúdo das três questões re­ pelidas por Ti, e que as Escrituras chamam "tentações?” E se, algum dia, um milagre, um milagre fulminante, se operou sobre a terra, foi nesse dia, no dia das três "tentações” . Con­ siste o milagre justamente no fato de terem sido feitas essas três perguntas. E na hipótese de não nos terem sido conser­ vadas pelas Escrituras três perguntas do Grande Espírito, téria sido mister reconstituí-las, inventá-las de novo, e reunir, para êsse fim, todos os sábios da terra, chefes de Estado, grãos-sacerdotes, filósofos sábios, propondo-lhes o seguinte: "In ­ ventem três perguntas que não só estejam de acordo com a importância do acontecimento, que exprimam, em três pala­ vras, em três frases, toda a história futura da humanidade” . E supões que toda a sabedoria do mundo seria capaz de ima­ ginar qualquer coisa tão profunda e tão poderosa quanto aque­ las três perguntas que Te foram feitas no deserto pelo Espírito do Mal? Só por essas perguntas, pelo milagre da sua criação, se compreende que elas partiram de uma inteligência não hu­ mana e mutável, mas eterna e absoluta. Porque elas concen­ tram e predizem todo o desenvolvimento da humanidade, e reúnem em si todas as contradições insolúveis da natureza. O seu conteúdo não poderia ter sido compreendido, então, porque o futuro ainda era desconhecido; mas agora, que quinze séculos se passaram, vemos que essas três perguntas tinham previsto tudo, exatamente, e que suas predições foram tão integralmente justificadas — que nada se lhes poderia acrescentar ou cortar. "Vê, pois, Tu mesmo, quem tinha razão: Tu ou o anjo que te interrogava? Lembra-Te da tua primeira pergunta e sua significação profunda: ''Queres caminhar para os homens de mãos vazias, oferecendo-lhes uma liberdade que, na sua sim­ plicidade e na sua corrupção inatas, não poderão sequer com­ preender, e da qual terão mêdo, pois nunca houve nada mais

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intolerável que a liberdade para o homem e para as sociedades humanas. Mas, vês, essas pedras, no deserto árido e ardente? Transforma-as em pães, e, igual a um rebanho, a humanidade, reconhecida e obediente, se precipitará aos Teus pés, tremendo ao mesmo tempo no pavor de que retires a Tua mão e não lhes dês mais pão. "Mas Tu recusaste privar o homem da sua li­ berdade e repeliste a proposta do Grande Espírito, porque — que vale uma liberdade que se compra com pão? Respondeste que nem só de pão vive o homem. Porém, não sabes que será precisamente em nome dêsse pão terrestre que se erguerá con­ tra Ti, e Te vencerá o espírito da terra, que todos o seguirão clamando: "Quem é semelhante a êssa Bêsta que nos deu o fogo do céu? "Sabes que passarão os séculos, e que a humani­ dade proclamará pela boca dos seus sábios que não existe cri­ me, nem pecado, portanto, e que apenas há famintos? "Dá-lhes de comer, e depois exige que sejam bons! "E is o que será escrito no estandarte que hão de erguer contra Ti, e que abatê o Teu templo. Um novo edifício se há de erguer no local do Teu templo — uma nova torre de Babel; e embora a nova Ba­ bel deva ficar inacabada como a primeira, Tu poderias, entre­ tanto, ter poupado aos homens essa torre, poderias poupar mil anos de penas aos humanos, porque êles acabarão voltando parà junto de nós, depois de mil anos de sofrimentos em redor da sua torre. Irão nos procurar debaixo da terra, nas catacum­ bas (porque de novo seremos perseguidos e martirizados) e, quando nos encontrarem, hão de implorar: "Dai-nos de comer, porque aquêles que nos prometeram o fogo do céu não no-lo deram!” E, então, nós completaremos a torre, porque aquêle que os alimentar é que há de acabar, e só nós os alimentare­ mos, dizendo que o fazemos em Teu nome — mas isso será uma mentira. Oh, nunca, nunca conseguirão êles alimentos sem o nosso auxílio. Nenhuma ciência lhes dará o pão en­ quanto se conservarem livres; porém, êles próprios virão depor sua liberdade aos nossos pés, dizendo: "Melhor será que nos torneis escravos, contanto que nos deis de comer” . Compreen­ derão, afinal, que a liberdade é inconciliável com o pão da terra, porque jamais saberão partilhar entre si. Acabarão também convencidos de que jamais serão capazes de ser livres, porque são fracos do céu; mas repito-o: poderá o pão do céu ser com­ parado ao pão terrestre, aos olhos da raça humana, impotente, sempre ingrata e corrompida? E se milhares e dezenas de milhares Te acompanham, em nome do pão celeste, que será dos milhões e dezenas de milhares de milhões de sêres incapa­ zes de preferir o pão celeste ao pão da terra? Só Te serão caros as dezenas de milhares de grandes e fortes e os outros

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tão numerosos quanto as areias do mar, os fracos que, apesar de tudo, Te amam, não servirão senão de instrumento aos gran­ des e aos fortes? Não, os fracos também nos são caros. São entes rebeldes e corrompidos, porém acabarão obedecendo. Há de nos admitir e considerar como deuses, porque consentimos em assumir essa liberdade da qual êles têm mêdo, em reinar sobre êles — tão grande é o horror que lhes causará a liber­ dade. Mas nós — nós diremos que Te obedecemos, e que rei­ namos em Teu nome. Mais uma vez os enganaremos, porque não já consentiremos, então, que Te aproximes dêles... E nessa impostura é que, consistirá o nosso sofrimento, porque seremos obrigados a mentir. "E is o que significa a primeira pergunta que Te foi fei­ ta no deserto; eis o que repeliste em nome da liberdade que colocaste acima de tudo. E, entretanto, a apóstrofe do anjo guardava dentro de si um dos grandes segredos dêste mundo. Aceitamos os "pães” , Tu terias aplicado a eterna e universal inquietação humana, — tanto do indivíduo isolado como da hu­ manidade em geral: "diante de quem me hei de prosternar? Não existe, para o homem, assim que êle se sente livre, pre­ ocupação mais constante, mais aflitiva, que a de descobrir alguém a quem adorar. Contudo, êle só se quer prosternar diante do que é incontestável, — de tal modo incontestável que todos os homens consintam em se prosternar em massa diante do seu deus. Pois o que atormenta êsses entes miseráveis não é cobrir um objeto no qual todos possam crer, que todos pos­ sam adorar simultâneamente. Foi precisamente a necessidade de um culto comum que constituiu sempre o principal tormen­ to de cada indivíduo e da humanidade inteira. Em nome dessa universal adoração se exterminaram reciprocamente pela es­ pada. Criavam deuses e se apostrofavam uns aos outros: "Deixai vossos deuses e vinde adorar os nossos — se não, morte a vós e aos vossos deuses” . — E assim há de ser até ao fim do mundo, porque então não haverá mais deuses, e êles se hão de prosternar diante de ídolos. Tu não poderias deixar de combater êsse segrêdo essencial à natureza humana. Mas re­ peliste o único meio que te ofereciam para congregar a huma­ nidade num culto indiscutível, levantando o estandarte do pão terrestre; e repeliste-o em nome da liberdade e do pão celeste. Vê, pois o que fizeste ainda, sempre em nome da liberdade. Ora, já Te disse que não há cuidado mais doloroso para o homem que a preocupação de encontrar alguém a quem possa trans­ mitir o mais depressa possível êsse dom da liberdade com o qual nasce, o desgraçado. Mas só se apodera da liberdade dos

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homens aquêle que lhes tranqüiliza a consciência. Dispondo dos pães, Tu possuirias um instrumento infalível: dar-lhe-ias o pão, e os homens Te adorariam, porque nada é mais indis­ cutível do que o pão. E alguém, que não Tu, se apodera da consciência humana, então êles abandonarão até mesmo o teu pão, para seguir aquêle que lhes seduziu a consciência. A êsse respeito, tinhas razão. Porque a essência íntima do homem não é apenas viver, mas viver para qualquer coisa. Sem uma noção firm e do motivo para que vive, o homem não há de que­ rer viver, e preferirá destruir-se, embora cercado de pães. É verdade, sei, porém, que fizeste? "E m vez de te apoderares da liberdade dos homens, o que fizeste foi encarecer ainda mais essa liberdade aos seus olhos. Esqueceste que a tranqüilidade e até mesmo a morte são pre­ feríveis, para o homem, à liberdade de discernir o bem e o mal? Não há nada mais sedutor aos olhos do homem do que a liber­ dade de consciência, mas também não há nada mais terrível. E, em lugar de pacificar sólidos princípios, Tu lhes ofereceste o que há de mais estranho, de mais enigmático, de mais inde­ terminado, tudo que ultrapassava as forças humanas; agiste, pois, como se não amasses os homens, Tu, que vie&te para lhes dar a tua vida. Em vez de Te apoderares da liberdade hu­ mana, Tu a multiplicaste, e, assim fazendo, envenenaste com tormentos a vida do homem, durante toda a eternidade. T i­ nhas sêde de um amor livre, querias que o homem Te seguisse livremente, seduzido por Ti. Em vez de se apoiar a antiga lei rigorosa, o homem deveria, doravante, com o coração livre, escolher o que era o bem e o mal, tendo apenas a Tua imagem para se guiar. Mas pensaste que êle acabaria repelindo a Tua imagem e a Tua verdade, esmagado por êsse fardo terrível que é a liberdade de escolher. Êles hão de exclamar, afinal, que a liberdade não está. em Ti, porque seria impossível atirá-los a angústias e a sofrimentos piores que os sofrimentos e an­ gústias em que os mergulhaste, pondo-lhes à frente tantos pro­ blemas e cuidados insolúveis. Assim, pois, Tu próprio preparaste a ruína de Teu reino; não acuses ninguém. E o que te foi proposto, entretanto? Existem três forças na terra, as úni­ cas capazes de subjugar e vencer para sempre e para sua pró­ pria felicidade, a consciência dêsses miseráveis rebeldes. Essas três forças são: o Milagre, o Mistério e a Autoridade. Repeliste-as todas, criando, assim, um exemplo. Quando o Espírito terrível e poderoso Te levou até ao alto do templo e Te disse: "Se queres saber se és o filho de Deus, precipita-Te daqui para baixo, porque está escrito que os anjos O hão de segurar e car­

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regar e Êle não cairá por terra nem se despedaçará. Saberás, então, se és o Filho de Deus e provarás a Tua fé no Teu Pai. E Tu, depois de ouvi-lo, repeliste a sua proposta. Não Te deixaste tentar e não te precipitaste do alto do templo. Oh, é verdade que agiste com sublime altivez, como Deus o devera fazer; mas.os homens, essa fraca raça de rebeldes, serão por acaso deuses? Oh! compreendeste muito bem que, se houvesses dado um passo apenas, se tivesses feito um único movimento para saltar lá embaixo, terias imediatamente tentado o Senhor, perdido a Tua fé n’Êle, e para alegria do Espírito do Mal que estava tentando-Te. Tu Te terias esmagado nessa terra que vinhas salvar. Mas, repito-o, haverá muitos iguais a Ti? Po­ derias realmente admitir, por um instante sequer, que os ho­ mens tivessem forças para suportar uma tal tentação? Terá sido a natureza humana criada capaz de repelir o milagre e se entregar à livre decisão dos problemas mais essenciais, mais dolorosos que lhe possam ser propostos? Oh! sim! Tu sabias que o Teu ato sublime seria relatado nos livros, atravessaria os séculos e chegaria aos últimos limites da terra; e esperavas que, seguindo o Teu exemplo, o homem tivesse confiança em Deus, sem carecer de milagres. Contudo, deverias saber tam­ bém, que, renunciando ao milagre, o homem imediatamente re­ nunciaria a Deus, porque não é propriamente a Deus que o homem procura, mas ao milagre. E como o homem é incapaz de dispensar o milagre, novos milagres inventará, — milagres seus, aceitará a feitiçaria e os charlatães, por mais revoltado, por mais herático, por mais ateu que seja. Não desceste da cruz, quando gritaram por escárnio e insulto: "Desce da cruz e acreditaremos em T i ! ” Não desceste, porque, mais uma vez, não quiseste escravizar o homem graças a um milagre, porque aspiravas a um amor livre, e não aos transportes servis do escravo aterrorizado diante de uma potência que o esmaga. Mas estavas novamente a fazer um juízo por demais elevado dos homens, porque êles, na verdade, não passam de escravos, embora por natureza, sejam também revoltados. "Olha e julga: quinze séculos se passaram; olha-os: quem foi que conseguiste elevar até a Ti? Sou eu que To juro: o .homem foi criado mais vil e mais débil do que o imaginaste. Poderá êle realizar os mesmos feitos que Tu? Colocando-o tão alto, cessaste, por assim dizer, de ter piedade, porque exigias demais. Tu, que o amavas mais do que a Ti próprio. Se o houvesses estimado menos, menos também lhe haverias exigi­ do, e isso ficaria mais conforme com o Teu amor, porque o .fardo do homem seria muito mais leve. Êle é fraco e covarde.

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E é verdade que é também orgulhoso e continuamente se rebela contra o nosso poder, mas, que importa? O orgulho de criança, de estudantes que se revoltam na aula e expulsam o professor. Um dia, entretanto, a alegria dêles há de acabar e hão de pagá-la caro. Hão de derrubar os templos e inundar a terra de sangue. E, depois, hão de descobrir, essas crianças insensatas, que não passam de débeis amotinados, incapazes de suportar a própria audácia. Com o rosto banhado em lágrimas, hão de reconhecer que Aquêle que os criou assim rebeldes, queria ape­ nas zombar da sua criação. E dirão isso com desespêro, e isso será uma blasfêmia que os tornará ainda mais infelizes, por­ que a natureza não suporta a blasfêmia, e acaba punindo-se com as suas próprias mãos. E assim, pois, — inquietação, angústia, sofrimento, são a sina reservada ao homem, depois que tanto sofreste para a sua liberdade. Teu profeta disse, exprimindo-se em símbolos, que viu todos os ressuscitados, e que havia doze mil em cada tribo. Mas, se era êsse o seu núme­ ro — já não eram êles homens, porém deuses. Afrontaram os sofrimentos da Tua cruz, suportaram, durante anos, a vida do deserto, sustentando-se com raízes e gafanhotos, e decerto, po­ des ter orgulho por êsses filhos da liberdade, do amor livre, e admirável sacrifício em Teu nome. Êsses, todavia, não eram senão alguns milhares, e eram quase deuses! E os outros? Será culpa dos fracos, se não podem suportar o que sofrem os fortes? Será culpa da alma débil, se ela não tem forças para receber dons assim terríveis? Será que vieste apenas para os eleitos? Nesse caso, há nisso um mistério que não nos é dado compreender. E, se é um mistério, nós também temos direito de ensinar um mistério, e dizer aos homens que não é a livre decisão dos seus corações nem o amor o que importa, mas o mistério ao qual se devem submeter cegamente, mesmo de en­ contro à própria consciência. "F o i assim que fizemos. Corrigimos a Tua obra, fundamo-la no Milagre, no Mistério e na Autoridade. E os homens ficaram contentes por serem de novo guiados como um reba­ nho, e por lhe haverem tirado, enfim, do coração, o pêso dêsse dom terrível que traz consigo tanto sofrimento. Dize: tería­ mos razão em ensinar e agir assim? Reconhecendo humilde­ mente a fraqueza da humanidade, aliviando-lhe o fardo e lhe permitindo pecar, mas essa vênia — não a temos amado? Por que vieste, então, nos perturbar? E por que me fitas em si­ lêncio, com Teus meigos olhos penetrantes? Zanga-te, que eu mão quero o Teu amor, pois não Te amo. Por que dissimularia eu diante de Ti? Não sei a Quem estou falando? Sabias de

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antemão o que Te ia dizer; leio-o nos Teus olhos. Poderia eu escondèr-Te o nosso segrêdo? Será que o queres ouvir de mi­ nha boca? Escuta, pois. "Nós não estamos Contigo, mas com Êle. É êsse o nosso» segrêdo. Já há muito tempo que não estamos mais Contigo, mas com Êle; já há oito séculos. Faz exatamente oito séculos que aceitamos d*Êle o que recusaste com indignação, — aquêle derradeiro dom que Êle te ofereceu, mostrando-te todos os rei­ nos da terra. Aceitamos Roma e a espada de César, e no» proclamamos os únicos reis do mundo, embora até agora não tenhamos podido realizar completamente a nossa tarefa. Mas, de quem é a culpa? Oh, estamos apenas no início da nossa obra, porém já a começamos. É preciso ainda esperar muito tempo, e a terra terá muito ainda que sofrer; mas atingire­ mos a nossa meta, seremos Césares, e cuidaremos, então, da felicidade universal. E, entretanto, Tu poderias, naquele dia, ter aceito a espada de César. Por que recusaste êsse último dom? "Se houvesses aceito o terceiro conselho do Espírito, terias satisfeito todas as necessidades do homem sobre a terra* porque êles procuram quem adorar, a quem entregar a própria consciência, a maneira segundo a qual, finalmente, se hão de reunir definitivamente num formigueiro comum, — porque a necessidade de união universal é o terceiro e último tormento da humanidade. A humanidade, no seu conjunto, sempre as­ pirou a organizar-se num todo. Muitos grandes povos tiveram histórias gloriosas; mas, quão maiores eram êsses povos, mais. infelizes eram, porque sentiam cada vez mais forte essa neces­ sidade de organização universal. Os grandes conquistadores* os Timur e os Gêngis-Can, que pretendiam dominar o mundo* passaram pela terra como uma tempestade; mas, também êles* embora inconscientemente, encarnavam essa sêde de unidade do gênero humano. Se houvesse aceito o mundo e a púrpura de César, terias fundado um império universal, terias dado a paz à terra, porque, quem dominaria os homens, senão aquêles que detêm suas consciências e dispõem do seu pão? Nós to­ mamos, pois, a espada de César, e, ao recebê-la, evidentemente Te abandonamos a Ti, para o seguir a Êle. A í se vão passar ainda séculos de desordem espiritual, de ciência, de antropo­ fagia, porque, começando a edificar sem nós a sua torre de Babel, os homens hão de chegar à antropofagia. Mas, então a Bêsta nos há de procurar, de rojo pelo chão, lamber-nos-á e se banhará com lágrimas de sangue. E nós nos sentaremos no dorso da Bêsta, e levaremos a taça, que terá esta inscrição t

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"M istério” . E então se estabelecerá sobre a terra o reino da paz e da felicidade. Tu tens orgulho pelos Teus eleitos, mas êles são apenas eleitos; enquanto nós daremos a paz a todos. E. aliás, quantos, dêsses eleitos, quantos dos fortes que pode­ riam ser eleitos, cansados de Te esperar, já levaram e levarão ainda para outra parte as forças do seu espírito e a chama de seu coração, e acabam por erguer contra T i o estandarte da liberdade? Mas fôste Tu què os ergueste. E, conosco, todos serão felizes: os homens não mais se hão de revoltar, deixarão de se destruir mütuamente, como o faziam no reino da Tua liberdade. Oh! conseguiremos convencê-los de que não serão realmente livres senão quando renunciarem à sua liberdade e se submeterem a nós. E que importa que digamos a verdade ou mintamos? Êles próprios se convencerão de que falamos a verdade, porque se hão de lembrar dos horrores da escravi­ dão e desespêro que os levou à Tua liberdade. A liberdade, o livre pensamento e a ciência, os prodígios que uns, revoltados e loucos de ira, destruirão a si próprios, e outros, desgraçados e débeis, virão de rojo a nossos pés, exclamando: "Sim, ten­ des razão, só vós possuis o Seu segrêdo, e para vós tornamos. Salvai-nos de nós próprios! E, recebendo o pão de nossas mãos, verão, decerto, claramente, que tomam o pão de nossas mãos, produzido pelo seu próprio trabalho, para o distribuir sem nenhum m ilagre; verão que não transformamos pedras em pães; mas, na verdade, o que os tornará felizes não será pro­ priamente o pão em si, porém o fato de o receberem de nossas mãos. Porque hão de recordar bem demais, que, antes, sem nós, os pães que êles produziam transformavam-se em pedras nas suas mãos, e que, depois de entregues a nós, aquelas mes­ mas pedras se transformavam em pães. E compreenderão, en­ tão, a vantagem que lhes representará submeterem-se para sempre. E, enquanto os homens não o compreenderem, serão desgraçados. E quem mais contribuiu para essa incompreen­ são, dize? Quem dispersou o rebanho e deixou que êle se extra­ viasse por caminhos desconhecidos? Mas o rebanho se reunirá de novo, e se submeterá — definitivamente, dessa vez. E en­ tão lhe daremos uma felicidade suave e humilde, — a felicidade dos entes fracos, tais como êles o são. Oh!, haveremos de os persuadir, afinal, a não serem mais soberbos, — porque Tu os elevaste e lhes ensinaste o orgulho. Provar-lhes-emos que são fracos, que são apenas míseras crianças, mas que a felicidade da infância é a mais doce de todas. Tornar-se-ão tímidos, e hão de nos olhar e se agrupar ao nosso redor como os pintainhos em torno da mãe. Hão de nos admirar e temer, e terão orgulho do nosso poderio e da nossa inteligência, que nos per­

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mitiu dominar o seu rebanho inumerável e furioso. Tremerão ante a nossa cólera; sua inteligência ficará tímida, seus olhos chorarão tão fàcilmente quanto os olhos das crianças e das mulheres, mas, a um simples olhar nosso, passarão com a mes­ ma facilidade ao prazer e ao riso, à alegria luminosa e às can­ tigas pueris. Serão decerto, obrigados a trabalhar, mas, nas horas de folga, lhes organizaremos a existência como brinque­ dos de criança com coros e danças cândidas. Terão permissão de pecar: são entes fracos e sem vontade; e nos hão de amar como crianças, porque os autorizamos a pecar. Dir-lhes-emos que todo pecado cometido com nossa vênia será resgatado, e que lhes permitiremos pecar porque os amamos; e, quanto à punição dos pecados, tomamo-las sobre os nossos ombros. E êles nos hão de adorar como benfeitores, porque teremos assu­ mido, perante Deus, a responsabilidade dos seus erros. Não terão nenhum segrêdo para nós. Conforme sua obediência fôr mais ou menos completa, terão licença nossa para viver com suas mulheres e suas amantes, ter ou não ter filhos, e hão de se submeter com alegria. Hão de nos entregar os mais ter­ ríveis segredos das suas consciências, tudo que os atormenta, e nós lhes solucionaremos tôdas as angústias, êles terão con­ fiança em nossas decisões, porque assim os libertaremos dos pecados, cuidados e dos sofrimentos que comporta qualquer de­ cisão livre ou pessoal. E todos serão felizes, todos os milhões de sêres humanos, salvo as centenas de milhares que os diri­ gem. Porque só nós, os guardiões do segrêdo — só nós sere­ mos infelizes. Haverá milhares de milhões de crianças felizes, e cem mil mártires sobrecarregados com a maldição decorrente do conhecimento do bem e do mal. Morrerão os primeiros do­ cemente; finar-se-ão suavemente, em Teu nome, e para além do túmulo, não encontrarão senão a morte. Mas nós havere­ mos de guardar o segrêdo, e, para felicidade dêles, seduzi-los-emos com a promessa da eterna ventura celestial. Se devera realmente haver qualquer coisa no outro mundo, não seria, de­ certo para entes iguais a êles. Dizem as profecias que Tu tornarás a vir e de novo vencerás, que dessa vez voltarás com os Teus eleitos, poderosos e altivos; mas nós diremos que êsses apenas se salvaram a si próprios, enquanto nós salvamos a hu­ manidade inteira. Profetizam que será abatida a meretriz montada na Bêsta, a qual traz nas mãos a taça onde está escri­ ta a palavra "M istério” , que os fracos se revoltarão de novo, que êles rasgarão a púrpura da meretriz e hão de despir o seu corpo "impuro” . Mas, então, eu é que me hei de erguer, e Te apontarei os milhares de milhões de crianças felizes que não conheceram o pecado. E nós que, para a felicidade dêles, to­

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mamos sobre os nossos ombros o pêso dos seus pecados, nós nos levantaremos diante de Ti, gritando: "Julga-nos se o po­ des, se o ousas!” Fica sabendo que eu não Te temo, que eu também estive no deserto, que eu também me alimentei de raízes e gafanhotos, que eu abençoava a liberdade que Tu entregaste como um dom aos homens, que me preparava para tomar um lugar entre os Teus eleitos, entre os fortes que as­ piram "completar o número” . Mas pensei melhor, e recusei sujeitar-me à demência. Afastei-me, reuni-me àqueles que "corrigiram a Tua Obra” . Deixei os orgulhosos e procurei os humildes, para a felicidade dos mortais. O que te digo se há de realizar e o nosso reino se há de constituir. E, repito-o: amanhã verás êsse rebanho obediente precipitar-se ao meu pri­ meiro gesto para atirar lenha à fogueira onde Te mandarei arder, porque nos vieste perturbar. Porque, se há alguém que, nenhum outro, tenha merecido a fogueira, êsse alguém és Tu. Amanhã, pois, serás queimado. D ixi” . (Trad. de Raquel de Queirós, da Livraria José Olympio Editora).

Walt Whitman

CANTO

DA

ESTRADA

REAL

(Trad. de Mário Ferreira dos Santos)

1 A pé, alegre, sigo pela estrada real, Saudável e livre, o mundo diante de mim, O amplo caminho da terra morena à minha frente me conduz aonde me agrada. Daqui por diante não interrogarei o destino, eu mesmo serei o destino. Daqui por diante não interrogarei o destino, eu mesmo serei, nada mais necessitarei, Darei um fim às queixas de quartos cerrados, de biblioteca» de críticas plangentes, Forte e contente, sigo pela estrada real. A terra, e isto basta. Não desejo que as constelações estivessem mais próximas, Sei que elas estão muito bem onde estão, (A té aqui trago minha antiga e venturosa carga. Levo-os, homens e mulheres, levo-os comigo aonde quer que eu vá. Juro que me é impossível dêles me desfazer, Eu dêles me impregnei, em troca quero impregná-los).

2 Tu, caminho por onde me embrenho e volvo meus olhos, Não creio que sejas o único que existe aqui, Creio que ainda existem muitas coisas invisíveis Eis a lição profunda da aceitação, sem preferências nem repulsas, Os negros de cabelos crespos, os criminosos, os doentes, os incultos não são repelidos; O parto, a busca apressada do médico, o mendigo que cami­ nha, o bêbado que claudica, o grupo de obreiros com suas gargalhadas,

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O adolescente que escapa, a carruagem do ricaço, o elegante, o casal em fuga, O fiòmçm madrugador dos mercados, o carro fúnebre, as mu­ danças na cidade, o retorno para a cidade, Êles passam, eu também passo, tudo passa, a ninguém é proibido, Todos são aceitos, todos me são simpáticos. 3 Tu, ar que me dás o alento para falar! Vós, objetos que do disperso tirais meus desígnios e lhes dais form a! Tu, luz que me envolves, e a tôdas as causas com as tua» delicadas e igualitárias ondas, Vós, veredas gastas, escavadas por passos irregulares, à mar­ gem dos caminhos! Creio que guardais o segrêdo de invisíveis existências, Vós me sois tão queridas! Vós, avenidas ladrilhadas das cidades! Vós, sólidas orlas de aço das esquinas! Vós, barcos! Vós, planchas e estacas dos cais! Vós, urnas guarnecidas de madeira! Vós, navios, ao longe! Vós, fileiras de casas! Vós, fachadas cravadas de janelas! Vós, tetos! Vós, pórticos e portas! Vós, cumeeiras e grades de ferro! Vós, janelas cujos vidros transparentes deixariam ver tantas coisas! Vós, pedras cinzentas dos intermináveis pavimentos! Vós, pisoteadas encruzilhadas! • De quantos vos tenham tocado creio que algo conservastes em vós, e agora quereis me participar em segrêdo, Com vivos, com mortos povoastes vossa impossível superfície e os seus espíritos quereriam me testemunhar sua presen­ ça e amizade. 4 À direita e à esquerda, se estende a terra O quadro é vivo, cada uma de suas partes mostra-se à luz mais clara, Docilmente, a música ressoa ali onde a pedimos, e cala-se onde não a pedimos mais. Alegre é a voz do caminho, suave e alegre o sentimento dos caminhos.

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

Ó grande caminho que eu percorro, tu me dizes: Não me deixes? Dizes: Não te inquietes — se me deixares estarás perdido? Dizes: Já estou pronto, — sinto-me caladopor todos e nin­ guém me responde: junta-te a mim? Ó caminho público, eu te respondo: não tenho mêdo de te abandonar, e contudo eu te quero bem, Melhor me expressas do que por mim posso expressar, Serás para mim mais que um poema. Creio que todas as ações heróicas foram conhecidas em pleno ar, também todos os poemas livres, Creio que poderia me deter aqui e eu mesmo realizar milagres, Creio que amarei tudo quanto encontre no caminho, e seja quem fô r que me olhe me amará, Creio que quantos vejo devem ser felizes. 5 A partir desta hora, ordeno a mim mesmo: liberta-te dos limites e das linhas imaginárias, Irei aonde eu quiser, Senhor total e absoluto de mim mesmo, Escutarei os outros, examinarei atentamente o que dizem, Deter-me-ei, aceitarei, meditarei, E mansamente, mas com vontade indomável, hei de me esqui­ var aos compromissos que me queiram aprisionar. Aspiro grandes golfadas de espaço. O este e oeste me pertencem, o norte e sul me pertencem Sou maior e melhor do que eu pensava, Eu não sabia que em mim continha tantas coisas boas. Tudo me parece admirável. Posso sem cessar repetir aos homens e mulheres: Vós me f i ­ zestes tanto bem que desejaria outro tanto devolver-vos, Quero ao largo dos caminhos absorver forças novas para miiii e para vós, Eu me dispersarei entre os homens e as mulheres do meu caminho, Espargirei uma alegria e uma nudez novas entre êles, Se alguém me repelir, não me perturbarei, Quem me aceitar, êle ou ela, por mim será bendito e me abençoará. 6 Se agora me apresentarem um milhar de homem perfeitos, não me surpreenderão,

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Se agora me apresentarem um milhar de mulhere* de corpo . admirável, não me assombrarão. Agora vejo o segrêdo da formação dos indivíduo» superiores, É desenvolver-se em pleno ar, comer e dormir em companhia da terra. Há lugar aqui para o desabrochar de uma grande personali­ dade, E êste desabrochar se apodera do coração de toda a raça dos homens, A força e a vontade que difundem submergem as leis, repelem as autoridades, os argumentos coligados contra ela. Aqui se põe em prova a sabedoria, A sabedoria não se põe à prova nas escolas, A sabedoria não pode ser transmitida por quem a possui para quem a não possui, A sabedoria pertence à alma, não é susceptível de prova, ela própria é sua prova, Aplica-se a todos os graus e objetos e qualidades, e permanece satisfeita, É a certeza da realidade e imortalidade das coisas, da exce­ lência das coisas; Algo há no espetáculo das coisas que a faz jorrar da alma. Agora analisa as filosofias e religiões: Podem parecer boas nas salas de conferências, e, no entanto, nada significarem sob as densas nuvens, ante a paisagem e as águas correntes. Aqui é onde se realizam, Aqui é onde o homem sente suas concordâncias, — aqui êle realiza o que existe nêle, O passado, o futuro, majestade, amor — se isto soar vazio para vós, é que disso estais vazio. Só a amêndoa oculta de cada coisa alimenta; Onde está aquêle que arrancará a casca para vós e para mim? Onde está aquêle que me desenvolverá os estratagemas e des­ fará as envolturas para vós e para mim? Aqui é onde se manifestam as afeições, elas não são prepa­ radas de antemão; sobrevêm imprevistas. Sabeis o que é ser amado por desconhecidos quando passais? Conheceis a eloqüência das pupilas que se volvem para vós? 7 Aqui está o fluxo da alma, O fluxo da alma que emana do íntimo, através dos portais sombrios, provocando incessantes perguntas,

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

Por que êstes ímpetos, por quê? Por que êstes pensamentos nas trevas, por quê? Por que existem homens e mulheres que, quando se aproximam de mim, os raios de sol dilatam meu sangue? Por que, quando me abandonam, minhas chamas de alegria declinam brandas e frouxas? Por que há árvores sob as quais nunca passeio sem que amplos e melodiosos pensamentos desçam sobre mim? (Creio que êles permanecem suspensos dessas árvores tanto no inverno como no verão, e sempre deixam frutos quando eu passo); O que troco tão subitamente com os desconhecidos? Com êste cocheiro, quando viajo na sege ao seu lado? Com êste pescador que atira o anzol ou a rêde ao rio, e quando passo ao lado dêle e me detenho? O que me leva a sentir-me acessível à simpatia de um homem ou de uma mulher? E o que os torna acessíveis à minha? 8 O fluxo da alma é felicidade, eis a felicidade, Creio que enche o ar. em perpétua espera, Agora corre em nós, eis-nos extravasado dela. Aqui surge o império fluido da simpatia. O fluídico caráter da simpatia que gera a franqueza e a suavi­ dade do homem e da mulher. (A s ervas da manhã não brotam cada dia mais mansas e mais suaves do fundo de suas raízes como ela brotou mansa e suave, continuamente do fundo de si mesma) Para ela, o fluido da simpatia transpira de amor jovens e Filtra gota a gota o encanto que ri da beleza e dos talentos, Para ela se eleva o desejo trêmulo e doloroso do contacto. 9 Vamos! Quem quer que sejas, vem comigo! A o meu lado encontrarás o que jamais fatiga. A terra jamais fatiga, A terra é rude, taciturna, incompreensível ao primeiro olhar. A natureza é rude e incompreensível ao primeiro olhar, Não te desencorajes, continua, as coisas divinas sempre per­ manecem cuidadosamente ocultas. Eu te juro que há coisas divinas ocultas que são mais belas do que podem dizer as palavras.

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Vam os! Não convém parar aqui, P p r mais gratas que sejam as reservas aqui acumuladas, por mais alegre que seja esta paragem, não podemos parar aqui; P o r abrigado que seja êste porto e calmas estas águas, não lancemos âncora aqui, P o r acolhedora que seja a hospitalidade que nos cerca, não devemos saboreá-la senão por curto instante. 10 "Vamos! carecemos de maiores estimulantes, Navegamos por mares desconhecidos e selvagens, Iremos onde sopram os ventos, onde as vagas se quebram furiosamente, onde o veleiro "ianque” singra com todas as velas soltas. Vamos! Com potência e com liberdade, com a terra e com os elementos, <3om saúde, altivez, alegria, orgulho, curiosidade; Vamos! Além de todas as fórmulas! A lém de vossas fórmulas, clérigos materialistas de olhos de morcêgo. O cadáver putrefato obstruiu a passagem; Não esperemos mais para sepultá-lo. Vamos ! Mas antes me ouvi! O que segue comigo necessita do melhor sangue, músculos e dureza. Ninguém ouse acompanhar-me, se não tiver coragem e saúde. Não se arrisquem os que tiverem gosto melhor de si mesmos, Só podem v ir os que se apresentem com corpo puro e resoluto, Os doentes, os alcoólatras, os apodrecidos não serão dos nossos.
11 Escutai! Quero ser sincero convosco, N ão vos ofereço os fáceis prêmios do passado, rudes e novos são os prêmios que vos ofereço, Assim serão os dias que vos caberão em partilha: N ão acumulareis o que chamais riqueza, Distribuireis com mão pródiga tudo quanto ganhares com vosso trabalho ou vossos méritos,

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

Apenas chegados à cidade que vos foi destinada, apenas insta­ lados, um ímpeto irresistível há de vos forçar a deixá-la, Então, recebereis os sorrisos irônicos e as zombarias dos se­ dentários e dos que ficam atrás de vós, Se receberdes alguns sinais de afeição, respondereis com apai­ xonados adeuses, Não permitireis que vos retenham, embora vos abram e esten­ dam os braços com amor! Vamos! Sigamos os grandes companheiros, para que nos tor­ nemos um dêles! Também êles seguem o caminho. São os mais esbeltos e majestosos homens; as mais formosas mulheres, Amam os mares tranqüilos como os mares tempestuosos, Navegaram em muitos navios, caminharam muitas léguas de terra firme, Conheceram países longínquos, conheceram longínquos lugares, Confiaram nos homens e mulheres, observaram cidades, labo­ riosos solitários, Detiveram-se a contemplar as ervas silvestres, as flores e as conchas das praias, Dançaram nas núpcias, abraçaram a desposada, acariciaram ternamente as crianças, trouxeram-nas ao colo. Soldados das revoltas, contempladores dos túmulos recém-abertos, ajudaram a descer os ataúdes, Jornadearam de estação em estação, anos consecutivos, curio­ sos anos, càda um emergindo do que o precede, Caminheiros como seus camaradas, nas diversas fases sem nome de si mesmos, Andando desde a primeira idade latente, e inconsciente, Caminheiros alegres com a própria juventude, caminheiros com a própria virilidade barbuda e impertérrita. Caminheiras com sua feminilidade ampla, insuperada e feliz, Caminheiros com sua velhice sublime de homem ou de mulher, Velhice calma, dilatada, ampla, com a altiva majestade do universo, Velhice que avança livremente, como aliviada pela deliciosa liberdade próxima da morte. 13 Vamos! Para o que não tem fim nem princípio, Para sofrer o indizível, na lassidão dos dias, no repouso das noites, Para fundi-los todos numa viagem à qual tendem os dias e à qual as noites tendem,

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Para fundi-los ainda na partida para as maiores viagens, ÍJada verás em parte alguma que não possas atingir e ultra­ passar, Não conceberás qualquer tempo, por afastado que seja que não possas atingir e ultrapassar, Não levantarás nem baixarás teus olhos sobre qualquer cami­ nho que não se estenda e te espere. Não verás qualquer existência, seja a de Deus ou de qualquer outro, que não possas realizar, Não verás qualquer posse que não te caiba possuir, gozar de tudo sem trabalho nem compra, desviando de teu proveito a festa, sem contudo de ti te desviar uma parcela, Escolherás o melhor da granja do camponês e da elegante man­ são do rico, das castas alegrias dos desposados, dos frutos dos vergéis, das flores dos jardins, Levarás contigo as multidões das cidades densas que atravessares, Mais tarde, levarás contigo os edifícios e as ruas para toda a parte aonde fores, Colherás os espíritos dos homens em cujo cérebro, quando cresceres, colherás a afeição de seus corações. Levarás teus amigos ao longo dos caminhos, embora os deixes atrás, Considerarás o próprio universo como um caminho, como mui­ tos caminhos, como caminhos para as almas migradoras. A origem de tudo parte da viagem das almas, Tôdas as religiões, tôdas as coisas sólidas, artes, governos, Tudo quanto é ou foi aparente sobre êste globo ou em qualquer outro globo, Oculta-se em esconderijos e recantos, ante a procissão das almas sobre os grandes Caminhos do universo. Da viagem das almas, homens e mulheres, sobre os grandes caminhos do universo, todos os outros são emblemas e ali­ mentos necessários. Alerta sempre! Sempre para a frente! Graves, solenes, entristecidos, melancólicos, escarnecidos, lou­ cos, turbulentos, débeis, descontentes, Desesperados, altivos, amorosos, enfermos, aceitos pelos homens e rejeitados pelos homens, Êles vão. Vão! Sei que êles vão, mas ignoro para onde vão! Sei, porém, que vão para o melhor, Para algo de grande. Quem quer que sejas, para a frente! Homem ou mulher, para a frente!

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

Não deves permanecer a dormir e a vegetar em casa, embora a tenhas construído, ou a tenham construído para ti. Sai dos negros limites! Sai de entre cortinas! É inútil que protestes, sei de tudo, e o denuncio. Olha dentro de ti, que não vales mais que os outros, Através dos risos, danças, jantar es, ceias coletivas, Sob os costumes e ornamentos, sob essas faces lavadas e besuntadas, Olha o secreto desgosto e o desespêro silencioso. Nem o marido nem a mulher ou o amigo, a ninguém nos fiemos para ouvir a confissão, É um outro eu, um duplo de cada um, que, a passos furtivos, oculta e dissimula seu verdadeiro ser, Amorfo e sem voz pelas ruas das cidades, polido e elegante nos salões, Nos vagões da estrada de ferro, nos navios, nas assembléias públicas, Nas moradas dos homens e das mulheres, à mesa, no quarto, em toda a parte, Elegantes rostos sorridentes, talhe erguido, a morte no peito, o inferno no cérebro, Sob as blusas finas e as luvas, sob os cintos e as flores arti­ ficiais. Respeitosos dos costumes, nada fazem de si mesmos, Falando de qualquer coisa, mas jamais de si mesmos. 14 Vamos! Através de lutas e de guerras! A meta que foi assinalada não poderemos abandonar. Foram felizes as lutas do passado? O que é que surtiu bom efeito? Tu mesmo? Tua nação? A Natureza? Escuta: foi estipulada na essência das coisas que de todo sucesso recolhido, pouco importa qual seja, deve sair algo que tom e necessário um maior esforço. Meu apêlo é apêlo da batalha, eu alimento a rebelião ativa, Aquêle que vem comigo terá por companheiro a fome, a misé­ ria, inimigos furiosos, e desamparo. 15 Vamos! O caminho está aberto à nossa frente! Êle é seguro — eu já experimentei — meus pés já o provaram cuidadosamente: que nada te retenha!

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Que as folhas fiquem abertas sobre a escrivaninha, e o livro 4. sem abrir em seu armário! Que os instrumentos permaneçam nas oficinas! Que o dinhei­ ro permaneça sem ser ganho! Que repouse a escola! Não importam os brados dos mestres! Que o pregador pregue em sua cátedra! Que arrazoe o advo­ gado no tribunal, e o juiz exponha a lei. Camarada, dá-me tua mão! Eu te dou meu afeto mais precioso que o dinheiro, Eu te dou a mim mesmo em vez de prédicas e de leis. Queres dar-te a mim? Queres seguir comigo? Seguiremos juntos, um ao lado do outro, enquanto durarem nossas vidas!

POEMAS DE GIBRAN

VISÃO

Quando a noite descia e estendia seu manto sobre a face da terra, deixei o leito e me dirigi para o mar, dizendo de mim para comigo: — "O mar não dorme; no entanto na constante inquietude do mar, inda há consolo para uma alma que não dorme” . Alcancei a margem, e já a neblina baixava do cimo dos montes, envolvendo toda a região, como se fora um véu cin­ zento sobre o rosto de uma jovem bela. Aqui me detive, fitando o turbilhão das ondas, escutando os seus rumores e pesando nas forças imutáveis que se ocultam entre elas. — "Essas forças que correm com as tempestades, que se agitam com os vulcões, são as mesmas que sorriem nos lábios das rosas e no deslizar dos regatos” . Após um instante, voltei-me e eis o que v i : três espectros; e estavam sentados sobre as rochas vizinhas, envoltos na opa­ cidade da névoa. Caminhei para êles com lentidão, sentindo que possuíam um estranho fascínio que me atraía contra mi­ nha vontade. E, quando já estava perto dêles, parei, olhando-os, como se nesse lugar estivesse um encanto que paralisava em mim toda a energia e despertava no meu espírito aquêle eu, que mora na minha imaginação. Levantou-se então, um dos espectros, e, com uma voz que julguei surgir do fundo do mar, me disse: — " A vida sem amor é como a árvore sem flores nem frutos; e o amor sem a beleza é como as flores sem perfume e os frutos sem semente. A vida, o amor, e a beleza, são três corpos numa só natureza, independente e absoluta, onde não cabe mudança nem sepa­ ração”. A seguir, ergueu-se o segundo espectro, e, com uma voz que parecia o rumor de muitas águas, disse: — " A vida sem revolta é como as estações sem primavera e a revolta sem a

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO MUNDIAL

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razão é como a primavera no deserto raso e infecundo. A vida, a revolta e a razão são três corpos numa só natureza, onde não cabe dissolução nem mudança” . Nisto, ergueu-se o terceiro espectro, e, com uma voz se­ melhante ao estrondo de grande trovão, disse: — " A vida sem liberdade é como o corpo sem alma e a liberdade sem o pen­ samento é como a alma perturbada. A vida, a liberdade e o pensamento são três corpos numa só natureza eterna, que ja ­ mais cessa e que jamais terminará” . Então se levantaram os três espectros, e, com vozes ter­ ríveis e profundas, disseram: — "O amor, a revolta e a liber­ dade são três manifestações das manifestações de Deus, e Deus é a consciência do mundo bom” . Seguiu-se, então, um longo silêncio, perturbado, apenas, por um bulício de asas invisíveis e um frem ir de corpos etéreos. Fechei os olhos, escutando ainda o eco das vozes, e quando os abri, já o mar estava envolto pelo manto da névoa. Aproxi­ mei-me da rocha onde estiveram sentados os três espectros, e somente vi uma coluna de incenso que se elevava, em espirais, para os céus infinitos. * * *

O POETA Neste mundo, sou um forasteiro, um estranho; a solidão no imigrante é uma saudade atroz. No entanto, o exílio me faz sempre sonhar com a terra encantada, enquanto as doces imagens duma paisagem quimérica, distante, enchem toda a minha fantasia. Sou um desconhecido dos meus parentes e amigos; quando com um dêles me encontro, por acaso, pergunto a mim mesmo: Quem será êsse? Onde e como o conheci? Qual o determinis­ mo estranho que nos aproxima e nos faz falar? Sou estranho à minha própria alma: por isso, quando a minha língua fala, não sei se ouço a minha própria voz. Às vêzes, noto indefiníveis movimentos quiméricos no íntimo do meu ser, que eu vejo, ao mesmo tempo, risonho, heróico, quei­ xoso, tímido. . . Então, pasmado ante mim mesmo, procuro decifrar o enigma do meu espírito, e, não obstante, continuo sendo um desconhecido, envolto na névoa e oculto pelo silêncio.

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

Sou estranho ao meu corpo. Quando, diante do cristal po­ lido do espelho, observo em mim como que expressões que não» correspondem ao meu íntimo sentir, e vejo, no fundo das mi­ nhas pupilas, imagens que não traduzem, de modo algum, o que está na minha alma. Quando pelas ruas, sou seguido por jovens inquietos que dizem: — "Olha um cego! demos-lhe um bordão que lhe sirva de apoio!” Depressa me afasto dêles, mas logo me tomam os passos grupos de lindas donzelas, que exclamam juntas a mim: — "É surdo como uma rocha; mesmo assim, enchamos-lhe os ou­ vidos com canções de amor e juventude!” Então, apresso-me a evitar o seu contacto; mas logo sou assaltado por bandos de homens que, correndo, me cercam, e vociferam: — "É mudo como um túmulo! Destravemos-lhe a língua!” Cheio de mêdo fujo dêles, e eis que me vou defrontar com um grupo de anciãos, que apontam para mim com os seus de­ dos trêmulos, enquanto dizem: — "É um possesso... Perdeu o juízo no fundo fantásti­ co dos gênios e dos demônios. . . ” Eu sou um estrangeiro neste mundo; viandante que per­ corre, inütilmente, toda a terra, de norte a sul, desde o nas­ cente ao poente, em busca do solo natal, que nem eu, nem nin­ guém o terá visto, que ninguém o conhece ou terá ouvido falar dêle. Quando amanhece e desperto, vejo-me prêso numa gruta sombria, de cujo teto pendem, por todos os ângulos, inquietos hóspedes alados, temíveis e horrorosas serpentes. Saio logo para a luz, e sou perseguido pela sombra do meu corpo, assal­ tado pelo fantasma da minha alma, que me transporta por caminhos desconhecidos, para horizontes inexplicáveis, tomado por coisas sem utilidade sem finalidade alguma. Ao tombar o dia, volto a cair no meu leito de penas que­ bradas e espinhos aguçados por martírios. Aí, sou perseguido por pensamentos estranhos e se apossam de mim desejos que se contradizem, instantes dolorosos e molestos, seguidos de ou­ tros, prazenteiros e felizes. . . Meia-noite em ponto; e, pelas fendas das rochas, entram duendes em minha gruta, visões dos tempos idos, espectros de

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO MUNDIAL

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nações esquecidas. Olhamo-nos firmes, por momentos; quando os interrogo, sorriem e não respondem; por mim, se os quero •apanhar, esfumam-se como o nevoeiro. Neste mundo, eu sou um forasteiro. Não existe quem compreenda uma palavra, ao menos, da linguagem da minha alma. Percorro os ermos desertos, fito os regatos velozes que correm do cimo das montanhas até ao fundo dos barrancos; vejo as árvores nuas revestirem-se de vir ente folhagem e logo frutificarem, espalhando pelo solo, instantes após, as folhas sêcas dos ramos frondosos, agora feito áspides, contorcidos num torpor de frio sono. . . Também contemplo as aves que voam de um para outro lugar, subindo e descendo, trinando, alegres ou tristonhas, que param, por fim, de asas abertas, transfor­ madas, por instantes, em mulheres nuas de cabelos soltos e seios ebúrneos, que me olham através de pestanas que a paixão finge de lânguidas, sorrindo com os lábios rosados e úmidos de mel, estendendo-me as suas mãos finas e perfumadas, e que, no entanto, desaparecem logo na névoa, deixando no ar o eco das suas risadas sarcásticas, que zombam de m im ... Eu sou um estrangeiro neste mundo. Sou o poeta que, de passagem pela vida, canta em seus versos o que ela possui de mais profundo, harmonioso e belo. Eu sou um estrangeiro, e serei sempre um estrangeiro para mim, até que a morte me leve e me faça voltar à minha ver­ dadeira pátria.

POEMAS DE OMAR AL KHAYAM

Nenhum benefício para a esfera celeste, trouxe a minha vida; e a minha partida não diminuirá nem sua beleza nem seu esplendor, e, apesar disso, nunca consegui saber o porquê desta vinda, nem o porquê da partida. *

*

*

Parti do centro da terra através da sétima porta, sentei-me no trono de Saturno; pelo caminho, resolvi inúmeros pro­ blemas, mas não resolvi o principal: o destino do homem. *

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*

Eis a única verdade: somos os peões da misteriosa par­ tida de xadrez jogada por Deus, que nos desloca, nos toma, nos coloca mais adiante, e depois, um a um, nos recolhe à caixa do Nada. *

*

*

Admito que tenhas desvendado o mistério da criação. E o teu destino?... Admito que tenhas arrancado todos os véus da Verdade. E o teu destino?... Admito que tenhas vivido cem anos felizes e ainda outros cem te restem a viver. E o teu destino?... O vento Sul crestou a rosa, louvada numa canção pelo rouxinol. Qual destino devemos chorar, o da rosa ou o nosso? Quando a morte vestir de palidez nossas faces, outras rosas desabrocharao. . . *

*

*

Pergunto a mim mesmo o que possuo na verdade. Medito sobre o que subsistirá após a minha morte. Nossa vida é tão breve como a vida de uma chama. Chama, que um leve so­ pro apaga; cinzas, que o vento dispersa; eis a existência do homem. *

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*

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO MUNDIAL

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Parece uma ilha a sombra desta árvore, perdida no campo verde. Viandante, fica onde estás! Entre o caminho que se­ gues e a sombra que lentamente balança, há talvez um abismo intransponível. * * * Contenta-te em saber que tudo é mistério: tanto a criação do mundo como a tua, tanto o destino do mundo como o teu. Sorri a êsses mistérios como a um perigo que desprezasses. Não penses que saberás mais quando tiveres atravessado a porta da Morte. Paz ao homem, ao negro silêncio do Além ! * * * Não sabes o que te espera no dia de amanhã: trata de ser feliz ainda hoje. Pega uma urna cheia de vinho, deita-te ao luar e pensa: "Talvez amanhã a lua me procure em vão” . * ♦ ♦ Além da Terra, além do Infinito, procurei em vão o Céu e o Inferno. Sussurou-me uma voz: "O Céu e o Inferno es­ tão em ti mesmo” . * * * Vem, enche a tua taça, joga a roupa invernal do arrepen­ dimento no fogo da primavera. O pássaro do tempo tem ape­ nas um curto espaço para voar, e — olha! — já está voando! * * * Oh, acompanha o velho Khayam, abandona os lábios! A vida voa. Uma coisa é certa, tudo o mais é mentira. A flor que nasceu, terá que morrer.

Rui Barbosa

CREDO PO LÍTIC O

Creio na liberdade onipotente, criadora das nações robus­ tas; creio na lei, emanação dela, o seu órgão capital, a pri­ mavera das suas necessidades; creio que, neste regime, não há outros poderes soberanos, e o soberano é o Direito, interpre­ tado pelos tribunais; que a própria soberania popular neces­ sita de limites, e que êstes limites vêm a ser as suas Consti­ tuições, por ela mesma criadas, nas suas horas de inspiração jurídica, em garantia contra os seus impulsos de paixão de­ sordenada; creio que a República decai, porque se deixou es­ tragar, confiando-se no regime da força; creio que a federação perecerá, se continuar a não saber acatar e elevar a justiça; porque da justiça nasce a confiança, da confiança a tranqüi­ lidade, da tranqüilidade o trabalho, do trabalho a produção, da produção o crédito, do crédito a opulência, da opulência a res­ peitabilidade, a duração, o v ig o r; creio no govêrno do povo pelo povo; creio, porém, que o govêrno do povo pelo povo tem a base da sua legitimidade na cultura da inteligência nacional pelo desenvolvimento nacional do ensino, para o qual as maio­ res liberalidades do Tesouro constituíram sempre o mais re­ produtivo emprêgo da riqueza pública; creio na moderação e na tolerância, no progresso e na tradição, no respeito e na disciplina, na impotência fatal dos incompetentes e no valor insuprível das capacidades. |SJL

Rejeito as doutrinas de arbítrio; abomino as ditaduras de todo o gênero, militares ou científicas, coroadas ou populares, detesto os estados de sítio, as suspensões de garantias, as ra­ zões de Estado, as leis de salvação pública; odeio as combina­ ções hipócritas do absolutismo dissimulado sob as formas de­ mocráticas e republicanas; oponho-me aos governos de seita, aos governos de facção, aos governos de ignorância; e, quando esta se traduz pela abolição geral das grandes instituições de­ centes, isto é, pela hostilidade radical à inteligência do país nos focos mais altos da sua cultura, a estúpida selvageria dessa fórmula administrativa, ameaçando as fronteiras de nossa na­ cionalidade.

Rui Barbosa

A L E I DE CAIM

A lei de Caim é a lei do fratricídio. A lei do fratricídio é a lei da guerra. A lei da guerra é a lei da força. A lei da força é a lei da insídia, a lei do assalto, e a lei da pilha­ gem, a lei da bestialidade. Lei que nega a noção de todas as leis, lei de inconsciência, que autoriza a perfídia, consagra a brutalidade, agaloa a insolência, eterniza o ódio, premeia a barbárie, assenta o direito, a sociedade, o Estado no princípio da opressão, na onipotência do mal. Lei de anarquia que se opõe à essência de toda legalidade, substituindo a regra pelo arbítrio, a ordem pela violência, a autoridade pela tirania, o título jurídico pela extorsão armada. Lei animal, que se in­ surge contra a existência de toda a humanidade, ensinando o homicídio, propagando a crueza, destruindo lares, bombardean­ do templos, envolvendo, na chacina universal, velhos, mulheres e crianças. Lei de torpeza, que proscreve o coração, a moral e a honra, misturando a morte com o estupro, a viuvez com a prostituição, a ignomínia com a orfandade. Lei de mentira, na falsa história que escreve, nos falsos pretextos que invoca, na falsa ciência que explora, na falsa dignidade que ostenta, na falsa bravura que assoalha, nas falsas liberdades que rei­ vindica, fuzilando enfermeiras, atacando hospitais, metralhando povoações desarmadas, incendiando aldeias, bombardeando cidades abertas, minando as estradas navais do comércio, sub­ mergindo navios mercantes, canhoneando tripulações e passa­ geiros refugiados nas lanchas de salvamento, abandonando as vítimas da covardia das suas proezas marítimas aos mares re­ voltos, e aos frios dos invernos boreais. Lei do sofisma, lei da inveja, lei da carniçaria, lei do instinto sangüinário, lei do homem brutificado, lei de Caim.

Rui Barbosa

O

JÔGO

De todas as desgraças que penetram no homem pela algi­ beira, e arruinam o caráter pela fortuna, a mais grave é, sem dúvida nenhuma, essa: o jogo, o jogo na sua expressão mãe, o jogo na sua acepção usual, o jogo propriamente dito; em uma palavra, o jogo: os naipes, os dados, a mesa verde. Permanente como as grandes endemias que devastam a humanidade, universal como o vício, furtivo como o crime, solapado no seu contágio como as invasões purulentas, corrup­ tor de todos os estímulos morais como o álcool, êle zomba da decência, das leis e da polícia, abarca no domínio das suas emanações a sociedade inteira, nivela sob a sua deprimente igualdade todas as classes, mergulha na sua promiscuidade in­ diferente até os mais baixos volutabros do lixo social, alcança no requinte das suas seduções as alturas mais aristocráticas da inteligência, da riqueza, da autoridade: inutiliza gênios; de­ grada príncipes; emudece oradores; atira à luta política almas azêdas pelo calistismo habitual das paradas infelizes, à família corações degenerados pelo contacto cotidiano de todas as im­ purezas, à concorrência do trabalho diurno os náufragos das noites tempestuosas do azar; e não raro a violência das indig­ nações furiosas, que vêm estuar no recinto dos parlamentos, é apenas a ressaca das agitações e dos destroços das longas ma­ drugadas do cassino. Quantos destinos não se contam por aí, dominados exclu­ sivamente na sua irremediável esterilidade pela ação dêsse fadário maligno! Quantas vidas, que a natureza dotara de prendas excelentes para a felicidade própria e o bem dos seus semelhantes, no descontentamento, na revolta, na inveja, na malevolência habitual! Quantos fenômenos inexplicáveis de reação, de cólera, de ódio ao que existe, de despeito contra o que dura, de guerra ao que se eleva, de irreconciliabilidade com o que não se abaixa, não têm a sua origem nos contratem­ pos e amarguras dessas existências aberradas, que, sacudidas continuadamente pelas emoções do inesperado, se alimentam

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das suas surprêsas, se estiolam com as suas decepções, e, ven­ do a felicidade repartir-se às cegas pela superfície do tabuleiro verde, acabam por supor que a sorte de todos, neste mundo, se distribui com a mesma casualidade, com a mesma despro­ porção, com a mesma injustiça, acabam por ver no mereci­ mento, no esforço, na economia, na perseverança, coisas fic­ tícias, estranhas ou hostis, acabam por confundir o sudário divino dos mártires do trabalho, com a pobreza exprobratória em que a ociosidade amortalha os desclassificados de tôdas as profissões! Êsse mal, que muitas vêzes não se separa do lupanar senão pelo tabique divisório entre a sala e a alcova; essa fatalidade, que rouba ao estudo tantos caracteres, ao dever doméstico tan­ tas virtudes, à pátria tantos heroísmos, reina, sob a sua ma­ nifestação completa, em esconderijos, onde a palavra se abas­ tarda no calão, onde a personalidade humana se despe do seu pudor, onde a embriaguez da cobiça delira cínica e obscena, onde os maridos blasfemam pragas improferíveis contra a sua honra conjugal, onde, em comunhão odiosa, se contraem ami­ zades inverossímeis, onde o menos que se gasta é o equilíbrio da alma, o menos que se arruina é o ideal, o menos que se dissipa é o tempo, estofo precioso de tôdas as obras-primas, de tôdas as utilidades sólidas, de tôdas as ações grandes. Inumerável é o número de criaturas, que a tentação, o exemplo, o instinto, o hábito, o acaso, a miséria, levam a pas­ sar por êsses latíbulos, cuja clientela vai periodicamente fazer-se apodrecer ali, por gozo, por necessidade, por avidez, e na corrupção de cujos mistérios cada iniciado se afaz a ir deixan­ do ficar aos poucos a energia, a fé, o juízo, a nobreza, a honra, a temperança, a caridade, a flor de todos os afetos, cujo per­ fume embalsama e preserva o caráter. Aquêles, que, por uma reação do horror no fundo da cons­ ciência, logram salvar-se em tempo dêsses tremendais, pode­ riam escrever a história da natureza humana vista sob aspectos inomináveis. Outros, porém, prêsas da vasa, que nunca mais os larga, rolam, e imergem nela de decadência em decadência, cada vez mais saturados, cada vez mais infelizes, cada vez mais afundados no infortúnio, até que a piedade infinita do têrmo de tôdas as coisas lhes recolha ao seio do eterno esquecimento, os restos inúteis de um destino sem epitáfio. Eis o jogo, o putrefador. Diátese cancerosa das raças anemizadas pela sensualidade e pela preguiça, êle entorpece,

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

caleja e desviriliza os povos, nas fibras de cujo organismo in­ sinuou o seu germe proliferante e inextirpável. Os desvarios do encilhamento vão e passam como rápidos temporais. São irregularidades violentas das épocas de pros­ peridade e esperança. Só o jogo não conhece remitências: com a mesma continuidade com que devora as noites do homem ocupado e os dias do ocioso, os milhões do opulento e as mi­ galhas do operário, tripudia uniformemente sobre as socieda­ des nas quadras de fecundidade e de penúria, de abastança e de fome, de alegria e de luto. É a lepra do vivo e o verme do cadáver. Se o Tácito do encilhamento, o historiador implacável, o grande moralista, o reformador imaculado, o missionário de tantas regenerações, se acha puro, como eu lhe desejaria, de cumplicidade na propagação de tal flagelo, imploremos de S. Exa. que volte a sua palavra apostolar contra esta praga, cuja atualidade é perene, em vez de malbaratar esforços tão úteis contra um mal que acabou e não há receio de voltar. No caso contrário, aprenda, meditando o nosce te ipsum, a ser come­ dido, temperante e discreto.

Paul de Saint-Victor

G IL

BLAS

(Trad. de Mário Ferreira dos Santos)

Gü Blas é um dêsses livros que relemos quatro ou cinco vêzes na vida: a impressão muda com as leituras. O encantamento não enfraquece, mas o julgamento se mo­ difica. Quiseram ver no herói de Le Sage o tipo da espécie humana. Demasiado entusiasmo e pouco amor-próprio. Estudai de perto esta fisionomia sob diversos ângulos; achareis somente os traços vulgares da humanidade subalterna. Vê-los-eis partir de Oviedo, ao trote de sua mula; sem um sentimento de pesar por seu pai, nem uma lágrima por sua mãe, nem uma saudade do velho tio, que lhe cuidou na infân­ cia. Diz-se que Panúrgio parece ter nascido dos amores de um presunto com uma garrafa, tanto é êle destituído de ter­ nura humana; Gil Blas é também pouco sensível; êle é como Fígaro, "o filho de alguém” , mas é tudo. Parte, fazendo soar os cincerros de sua mula e os ducados de sua sacola. O mendigo de escopeta na mão dá-lhe a pri­ meira lição de prudência; o parasita da fritada faz-lhe avaliar seu primeiro dissabor. Ladrões prendem-no num bosque e o •engajam ao bando. Admirai a flexibilidade de Gil Blas ao «conformar-se com esta vida nova. Êle chora, sem dúvida, desola-se, tem horror dos compa­ nheiros, mas é necessário uivar com os lobos, e Gil Blas in­ corpora-se ao bando sem grande escrúpulo. Êle despoja um frade com a alegria que teria ao representar um ridículo pa­ pel; com sua carabina atira na carruagem de Dona Mência com a resignação de um conscrito decidido a realizar seu mis­ ter. Ei-lo livre e fugindo com uma grande dama, mas, das mãos dos soldados, cai nas garras gordurosas dos carregado­ res, e daí por diante Gil Blas não distinguirá mais nitidamente a justiça das estradas das dos tribunais e cartórios.

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

É pela antecâmara que Gil Blas entra no mundo, e, quei­ ra ou não Le Sage, seu herói permanecerá lacaio através de suas metamorfoses. Guarda o andar oblíquo, os instintos de saqueador, os sentimentos baixos da servidão. "Quando os Deuses — diz um velho, — reduzem um homem à escravidão, êles lhe tomam a metade de sua alma. Gil Blas, conseguindo livrar-se, perde esta parte elevada da alma que a independên­ cia leva com ela. Daí por diante, faça o que fizer, cheirará a serviço e a criadagem. Até quando êle rouba os cofres do rei da Espanha, reconhece-se o homem que furta nas compras. Que vocação, aliás, mais flagrante e mais decisiva! Êle é lacaio para todos os serviços. Vê-lo-emos à cabeceira da cama do licenciado Sedillo, fingindo devotamento, na esperan­ ça de um legado, e vertendo lágrimas de carpideira. Enganado pelo testamento daquele homem simples, entra para o serviço do médico que o "despachou” . Sangrando, ar­ ma-o com sua camada de água tépida e com seu bisturi, mais assassinos que o punhal e a taça de veneno da tragédia. Êle aquece e realiza a sangria branca de seus doentes, e é rindo que conta as proezas de sua medicina homicida: "Procedemos de tal maneira que em menos de seis semanas fizemos tantas viúvas e órfãos quanto o cêrco de Tróia. Parece que a peste assolou Valladolid, tantos foram os funerais” . Da província, passa para a capital, e do serviço dos bur­ gueses para o de grandes senhores e casquilhos. Lá, seu vôo se estende, seus vícios se aperfeiçoam; êle aí duplica, na escola dos Mascarillos de Madri, a retórica da trapaça e da impudência. Pede emprestada, para obter favores, a roupa de seu pa­ trão; em troca, empresta-lhe sua letra para falsificar cartas galantes. Sua educação aperfeiçoa-se nos bastidores de teatro. Um comediante transforma-o em mordomo de seu albergue erótico. Vê de perto os senhores de ouropel e as princesas envilecidas; é iniciado na cozinha de teatro e nos bordéis. Desta vez o desgosto apossa-se dêle; deixa êste mundo de ruído e perdição. "Estou decidido, não quero permanecer por mais tempo com os sete pecados mortais” . Estas veleidades de virtude não duram muito: reencontra­ mos em seguida Gil Blas filiado a um bando de trapaceiros.

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Êle se disfarça com seus camaradas em temíveis roupetas da Inquisição, para roubar o cofre de um velho comerciante judeu. Nem um escrúpulo, nem um remorso! "Acossamos nossos cavalos para Segorbe dando graças ao Deus Mercúrio por um tão feliz acontecimento” . Quanto mais prossegue, mais se dissipam os seus precon­ ceitos. As viagens aguçam-lhe o apetite e alargam-lhe a cons­ ciência. A notícia falsa que êle dá a um velho fátuo sobre a traição da amante, corrige-o para sempre do zêlo; o passaporte que recebe do arcebispo de Granada o cura de verdade. Aprende na casa de um perdulário a prática e a teoria da pilhagem: e adquire, servindo-se de seu macaco favorito, a flexibilidade da espinha dorsal que exige a intriga. Ei-lo ades­ trado às manhas, exercitado nas baixezas, despojado de todos os princípios e de toda a integridade. É, então, que a fortuna favorece o improvisado favorito do duque de Lerme, e o eleva ao alto de sua roda. A í êle aparece na atitude do Mercúrio de João de Bolonha, perna no ar e o caduceu na mão. O du­ que encarrega-o das mensagens galantes do Infante de Espa­ nha. "N ão examinei ainda se isto era bom ou mau: a qua­ lidade do galante atordoa a minha moral. Que glória para mim ser ministro dos prazeres de um grande príncipe!” É o tesouro público que paga suas comissões equívocas; vende, em leilão, graças e favores; negocia privilégios; bebe o jarro de vinho até à borra; deriva àvidamente os bens obtidos pela simonia e peculato. — Bom apetite, Gil Blas! — ter-lhe-ia dito Ruy Blas, seu glorioso confrade. Seu coração avilta-se nesta profissão de usurário público; a corrupção sêca, particular à vida da corte, endurece sua alma; informa-se, sem pestanejar, da indigência de seus velhos pais; renega descaradamente os amigos de quando era pobre. A desgraça e a prisão corrigem-no um instante; mas, ao p ri­ meiro retorno dos favores, entrega-se ao amestramento de seu caráter. Vamos encontrá-lo garatujando, no gabinete de Olivares, panfletos contra seu benfeitor exilado. Retoma, com a pena do escriba, o caduceu do mediador. O brilhante Scapin de outrora continua suas trapaças sob os cabelos brancos de Leporello: basta-lhe apenas a queda de seu segundo patrão para despedir-se do serviço.

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

Tal é Gil Blas, reduzido à sua expressão mais simples e arrancado do turbilhão de aventuras no meio da qual desapa­ rece coberto pela rapidez de suas mudanças contínuas de opi­ nião; um intrigante medíocre, por sua vez ativo e acanhado, maleável ao vício, invulnerável às paixões, cuja única ambição é o bem-estar, incapaz, até quando as asas lhe impelem e quan­ do o vento sopra em suas velas, de deixar o terreno chão do interêsse quotidiano: numa palavra, um subalterno do espírito e do coração. Recuso-me a reconhecer nesta máscara agradável, mas depreciada, de escudelo cômico, o tipo do homem médio que se acreditou ver nêle. Pela própria multiplicidade de suas transformações e de seus disfarces êle escapa à fixidez do re­ trato. É menos um caráter do que uma matéria humana que o artista amassa entre os dedos como um pedaço de cêra, e que modela alternativamente à imagem dos vícios que êle deseja descrever e dos ridículos que quer exprimir. O único traço que nêle persiste é seu bom humor, e êste humor é também o encanto da epopéia prosaica da qual é êle menos o herói do que o fac-totum. Por certo, a confissão de Gil Blas, despojada do colorido da narração, espantaria um confessor aguerrido; mas o imperturbável sorriso com o qual o penitente a divulga, obriga-nos sempre a absolvê-lo. Conta suas maldades com um ar tão natural, que as julgamos peculiares à sua constituição. Afeiçoamo-nos — é a expressão — a êste groeculus da intriga e do expediente; rimos dos saltos ágeis como das piruêtas, pe­ las quais se salva de uma desagradável confissão. Agrada-nos sua facilidade em viver e sua jovialidade perpétua. Êle se bate contra o destino com armas tão brilhantes e tão desiguais, ava­ lia as decepções com tanto espírito e tão poucas caretas, passa sem surpreender da cambalhota à apoteose, vai alegremente jogar "à la fossette” após as quedas pavorosas, que o mais severo estóico lhe daria sua simpatia, recusando-lhe sua estima. I I mondo va da se. É a conclusão dêste livro, que não convém nem depreciar nem superestimar. Seu horizonte é baixo, seu nível medíocre; nêle, a grande observação não pro­ jeta os raios que investigam profundamente os homens e as coisas. Reina ali um dia de teatro que atinge de uma cor artificial as mil figuras que o encobrem. Quanto mais se ele­ vam, mais decresce e se altera a semelhança delas. Aquelas que compõem os planos inferiores impressionam o espírito pela exatidão e a nitidez de seus traços, mas custa a reconhecer os personagens colocados na ribalta. As senhoras da alta socie­

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dade de Le Sage quase não se distinguem de suas aias e cria­ das; a corte da Espanha, tal como nos mostra, não difere de uma tavolagem de viciados ou de um negócio de pilhagem. É Térniers deixando sua taverna pelos palácios da pintura. Lá onde o olho de um La Bruyère penetra ao fundo e atravessa as almas, a luneta cósmica de Le Sage só percebe as minúcias e os pormenores. Não tem a intuição que suplanta o testemu­ nho ocular. Sua janela dá para a rua e não domina a cidade. Os grandes vícios como as grandes virtudes excedem ao alcan­ ce de seu olhar agudo. A alegria sustenta-o e ela domina com seu sopro esta longa narrativa igual a uma planície sem elevação e sem movimen­ tos; ela arrebata toda a monotonia. Por desacreditada que seja no fundo, sentimo-nos satisfeitos nesta sociedade tão so­ cial; surpreendemo-nos a deplorar por não têrmos vivido aí. Seus vícios não ofendem mais que os ridículos, suas calamida­ des agradam como catástrofes teatrais. Que concepção prévia da vida e de seus reveses! Que filosofia nesta maneira de olhar o mundo como uma tragi-comédia de disfarces! Tôdas estas pessoas bebem àvidamente, comem com vontade, amam quando querem e seguem, sem discutir, a lei natural. A am­ plidão de suas consciências é igualada somente pela capacidade de seus estômagos. Cometem, dando risadas, os pecados que nos encheriam de espantosos remorsos. Não aprofundam seus sofrimentos, não exageram seus pesares; vivem em promiscui­ dade com a miséria, sem engendrar a melancolia. Não se co­ nhece, no seu mundo, nem o sonho, nem o ideal, nem o tédio, estas queridas e cruéis doenças modernas que tão dolorosamen­ te vêm complicar os males reais da vida. Tudo é olhado como se apresenta, não se analisa nada, nem sequer seu mal; há no ar não sei que alegria que dissipa a tristeza e tom a leve a existência. Apesar de tudo, sente-se a alma sêca e o espírito alterado com a leitura de Gil Blas. Esta ausência de paixões, esta desnudez de ideal, esta maneira positiva e fria de encarar o espe­ táculo da vida humana, êste sangue frio chocarreiro, em face das iniqüidades e das injustiças, tudo isto finaliza por entris­ tecer com o decorrer do tempo. Verteremos uma lágrima ao percorrer êste belo livro, tão valioso como um copo de água no deserto brilhante e árido. Quando o fechamos, sentimos necessidade de ler uma página de Homero, um pensamento de Marco Aurélio, um canto de

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

Dante,' algò que eleve a alma dêste terra-a-terra, algo que a exalte até ao heroísmo ou a conduza até à beleza pura. Sursum corda! Recordamo-nos, depois, do Cavaleiro de la Mancha que, um século antes, cavalgava, erecto em sua armadura, pelos mesmos caminhos de Espanha, onde Gil Blas cabriola corren­ do mundo. Que contraste entre sua grandeza de alma e a ve­ lhacaria do aventureiro. Que diferença em seus destinos! Enquanto Don Quixote escalava áspera Sierra, procurando a caverna gigante, a fonte encantada, Gil Blas procura de um hóspede para enganar, bar, de um lucro para obter.

o atalho pedregoso da do dragão, a torre do espreita nos atalhos, à de um judeu para rou

PENSAMENTOS ETERNOS

"Se és homem em posição dirigente e dás ordens à mul­ tidão, procura a sublimidade até que nada falte ao teu caráter. A verdade é excelsa e sua eficácia persiste; não a inco­ modamos desde os tempos de sua criação, de tal modo que se castiga a quem falta às suas leis. Ela se estende como o caminho reto ante aquêle que nada possui. . . É certo que o mal conquista tesouros, mas a força da ver­ dade consiste em sua duração, e o homem justo diz: "Êste é o bem de meu pai” . (Egípcio, terceiro a segundo milênio A.C.) Da " Sabedoria99 de Ptah Hotep * * * "O amanhã é de Deus. O homem não sabe como será o amanhã. Enquanto Deus existe em sua perfeição, o homem existe em sua deficiência. As palavras que os homens pro­ nunciam, extinguem-se. Não háindivíduoperfeito na mão de Deus,porque não há coisadefeituosa diante Dêle. Oque se empenhasse em bus­ car o perfeito sofreria diminuição no instante. Sê firm e em teu coração e fortalece tua alma, mas não governes com tua língua; a língua do homem é o leme da nave, mas Deus é o seu piloto” . Do " L ivro da Sabedoria99 de Amenhotep (Egípcio, décimo-terceiro século A.C .) * * * Infeliz da época que perdeu o seu líder, e infeliz do barco que perde o seu remador. Talmud Babilônico ♦ ♦ ♦ Um homem, ao depenar um rouxinol e vê-lo tão pobre de carnes, exclamou: és voz somente, nada mais. . . Plutarco ♦

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

Não deve a reprovação nem a zombaria dos teus amigos levar-te a mudar de vida. Preferes, acaso, continuar no vício e satisfazê-los, a contrariá-los e praticar a virtude? Epicteto * * 1$ Êsses poucos são os sábios. Mas, em seu tempo, todos despertam do sonho de seus sentidos, quando o destino conduz a barca da vida à ampla praia da morte. Então, cambaleiam e tremem, encontrando-se desnudos e indefesos em um deserto espantoso. O sábio não vive para essa fração de tempo; vive para a eternidade. Epigrama persa * * * Se eu fosse uma árvore ou uma planta, sentiria a mansa influência da primavera. Sou um homem... não vos admireis de minha alegria. Anônimo chinês Os grandes são grandes só porque nós estamos de joelhos., Levantemo-nos! Proudhon * ** As maiores verdades são as mais simples; e assim são também os maiores homens. J. C. e A. W. Hare * ♦♦ Que é que cedo envelhece? *

A gratidão. **

Aristóteles

Para afirmar que uma coisa é totalmente impossível mis­ ter se faz tenhamos idéias muito claras dos extremos que se repugnam; a não ser assim, corremos o risco de chamar de absurdo o que o não é na realidade. Jaime Balmes * * * No quesomos verdade, somos imortais. E quando esta­ mos do lado daverdade,estamos do lado daimortalidade* quando, porém, o homem dá a vida em troca de objetos des­ providos de sentido, dissipa-a, e, se os converte em metal, faz. da vida uma vida de morte. Rabindranath Tagore * * * Os homens, por natureza, quando se afastam de um ex­ tremo em que foram mantidos sob violência, correm imediata­

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mente, sem deter-se no meio, para o extremo oposto. Assim quem sai de uma tirania, se não é refreado, se precipita numa desenfreada liberdade que, muito justamente, pode ser chama­ da de tirania. O povo é semelhante a um tirano quando dá a quem não merece, quando tira de quem merece, quando con­ funde graus e distinções de pessoas; e talvez seja tanto mais perniciosa a sua tirania, quanto mais perigosa é a ignorância que a maldade, que sempre se refreia, de um modo ou de outro. F . Guicciardini t

f

t

A clemência deve ser praticada por todos os governantes, salvo três casos: quando se vilipendia com palavras injuriosas o governante; quando se atenta contra a honra do lar; e quan­ do se revelam segredos de Estado e da vida íntima. A l Mamum Abai Abdala ♦ ♦ ♦ Um navegador, atirado a uma ilha deserta, temia a todo instante ser devorado pelas feras ou pelos canibais, quando ao ver um patíbulo e a êle um homem enforcado, exclamou: "Graças sejam dadas ao Céu! Estou em terra de gente civi­ lizada!” F. Pananti * * * Onde quer que haja muitas máquinas para substituir os homens, haverá muitos homens que não passarão de máquinas. L. Bonald ♦ * * É possível que a gente queira mesmo bem, como se odiasse mortalmente?... Torça o próprio coração, ou o morda, até sangrar vazio e dolorido e despedaçado? Pois é como ama quem tem ciúmes. . . Afrânio Peixoto * * * A mulher raramente nos perdoa sermos ciumentos; mas nunca nos perdoa o não o sermos. P. J. Toutet $ * ♦ # Há duas espécies de curiosidade: a do interêsse, que nos conduz ao desejo de aprender o que nos pode ser útil; e a do orgulho, que provém do desejo de saber o que os demais ignoram. La Rochefoucauld

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O gênio é como a águia: quanto mais se eleva, menos vi­ sível âe torna, e vê castigada a sua grandeza pela solidão em que se lhe encontra a alma. Racine * * * As grandes almas são como as nuvens: recolhem para dar. Kalidasa * ♦ ♦ Dentre todos os bens da vida, a glória é o maior; quando o corpo já é pó, o nome ilustre vive ainda. Valoroso, o esplen­ dor da tua glória será imortal nas canções, porque a vida ter­ rena desaparece, e os mortos vivem sempre. SchiUer * * * Quando um verdadeiro gênio aparece no mundo é imedia­ tamente reconhecido por êste sinal: os medíocres unem-se con­ tra êle. Jonatham Sw ift ♦ * ♦ O gênio, voa, o louco salta. O gênio subentende um ou mais têrmos médios; o louco não vê nenhum. Por conseguinte, o gênio é a extrema rapidez da razão, superior à da luz, supe­ rior à da eletricidade; a loucura é a privação disso. No gênio, o espírito está ausente dos demais; na loucura, está ausente de si próprio. No gênio, a consciência se desdobra; na lou­ cura, se alheia. No gênio, o espírito domina a associação de idéias; na loucura, está dominado. O gênio é lógico, como o destino; o louco cai na tautologia ou na heterologia. G. Bovio ♦ * ♦ Entre a liberdade do corpo e a do espírito há uma dife­ rença fundamental: só avaliamos a liberdade do corpo quando a perdemos; a do espírito só a avaliamos, quando a conquis­ tamos. E. Bertarelli 41

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Se não tens a liberdade interior, que outra liberdade espe­ ras poder ter? A. Graf. * * ♦ Não é povo inteiramente civilizado aquêle em que há dis­ tinção entre furtar um cargo e furtar uma bolsa. Theodore Roosevelt *

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Há quem se enriquece vivendo com parcimônia, e toda a parte do seu galardão consiste em poder dizer: eu achei meio de me pôr em descanso, e agora comerei só dos meus bens; e não sabe que o tempo passará, e se avizinha a morte, e que deixará tudo aos outros, e morrerá. Bíblia, Eclesiástico, 11, 18, 19, 20 * * * Daqui a alguns séculos, a história do que chamamos atual­ mente a atividade científica do progresso será motivo de gran­ de hilaridade e compaixão para as gerações futuras. Tolstoi *

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Tenho a impressão de ter sido apenas uma criança a brin­ car na praia e a encontrar, de vez em quando, uma pedrinha ou pequenina concha mais linda, enquanto o imenso oceano da verdade inexplorado, se estendia na minha frente. Newton * * * Não há solidão mais terrível nem mais impressionante que aquela que existe no coração de uma enorme e fria cidade. A. R. Smith * * * Quem conhece apenas a sua profissão especial como espe­ cialista, e não é capaz de ver-lhe o aspecto geral ou de lhe in­ fundir a expressão de uma configuração científica universal, é indigno de ser mestre e depositário da ciência. F . W. Schelling * ♦ ♦ Só é livre quem ama a liberdade para êle, e se rejubila estendendo-a aos demais. Quem pretende ter escravos, a êles se agrilhoa; quem se rodeia de muros para isolar-se dos outros, limita a sua liberdade; quem nega ao próximo o direito à li­ berdade, perde moralmente o seu, visto que, mais cedo ou mais tarde, cairá na armadilha da servidão moral ou física. Rabindranath Tagore # * * A falsa ciência cria os ateus; a verdadeira faz o homem prostrar-se diante da divindade. Voltaire

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A ciência é uma tocha que sói servir para que se veja a existência de abismos, e não para que se penetre até o fundo dêles. Jaime Balmes ♦ ♦ ♦ Toda a vida de Cristo foi cruz e m artírio; e tu procuras só descanso e gozo? Thomas A . Kempis (Trad. de frei Tomás Borgmeier) * * * A muitos, parece dura esta frase: Renuncia a ti mesmo, toma a tua cruz e segue a Jesus Cristo. Muito mais duro, porém, será ouvir aquela sentença fin a l: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno. Pois os que agora ouvem e se­ guem docilmente, a palavra da cruz, não recearão, então, a sentença da eterna condenação. Êste sinal da cruz estará no céu, quando o Senhor vier julgar. Então os servos da cruz, que em vida se conformaram com Cristo crucificado, com grande confiança chegar-se-ão a Cristo juiz. Por que temes, pois, tomar a cruz, pela qual se caminha ao reino do céu? Na cruz está a salvação, na cruz a vida, na cruz a fortaleza do coração, na cruz o compêndio das virtudes, na cruz a perfeição da santidade. Não há salvação da alma nem esperança da vida, senão na cruz. Toma pois, a tua cruz, segue a Jesus e entrarás na vida eterna. O Senhor foi adiante, com a cruz às costas, e nela morreu por teu amor, para que tu também leves a tua cruz e nela desejes morrer. Porquanto, se com êle morreres, também com êle viverás. E se fores seu companheiro na pena, também o serás na glória. Thomas A. Kempis (Trad. de frei Tomás Borgmeier) * * * Pequenina é a porta da fortuna. Ninguém passa por ela a não ser vergando cabeça e corpo. Os altos postos asseme­ lham-se a certas árvores elevadas, cujo cimo só atingem a » águias e os répteis. F. Pananti *

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Jamais confies no homem que aprecia igualmente o pró e o contra de qualquer questão. Chou King *

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ANTOLOGIA DO PENSAMENTO MUNDIAL

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Os que podem ver sabem que os homens estão intimamente unidos e que, quando tu feres os outros, sofres também a mes­ ma ferida. Rabindranath Tagore ♦

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Quando, entre dois atos de uma comédia, vejo o crítico le­ vantar-se dá poltrona, e ir passar solenemente no corredor dos fumantes, lembro-me do palhaço de circo que, após ver o atleta erguer pesos ou atirar-se o acrobata ao espaço, atravessa, com gravidade sumamente cômica, o picadeiro, enxugando com dig­ nidade o suor e recebendo, com austeras reverências, aplausos que a êle se não dirigem. P itig rilli # ♦ ♦ Não te esqueças de que, tomando por livres coisas que, pela sua própria natureza, são escravas, e por tuas as que de­ pendem de outro, terás por toda parte obstáculos, ficarás per­ turbado e queixar-te-ás dos deuses e dos homens. Se, pelo con­ trário, tomares como teu o que teu é realmente e por alheio o que é do próximo, ninguém te há de obrigar ao que não queiras, nem impedir que realizes os teus gostos. E, o que é mais, não terás motivo de queixas nem de acusações. Epicteto *

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Supondo que livre seja o homem a quem tudo sucede como êle deseja, disse um louco: "quero que a mim suceda tudo quan­ to me agrada” . Meu amigo, loucura e liberdade nunca andam juntas. A liberdade é uma coisa, não somente bela, senão tam­ bém racional, e não há nada mais irracional que desejar temeràriamente e pretender que as coisas aconteçam como de­ sejamos. Quando devo escrever o nome Díon devo escrevê-lo não como me agrada, mas tal qual, sem lhe mudar uma só letra. O mesmo se dá com as artes e as ciências. E tu pretendes que, na maior e mais importante das coisas, a liberdade, reine o capricho e a fantasia? Não, meu amigo, a liberdade con­ siste em querer que as coisas sucedam, não como as desejamos, mas como são na realidade. Epicteto *

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Cegos são os condutores de cegos; e se um cego guia a outro cego, ambos vêm a cair no barranco. Bíblia, São Mateus, 15 — 14 *

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

À sortibra de um homem célebre, sempre há uma mulher que sofre. Jvles Renard ♦

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Julgas tu, por acaso, que as cinzas dos mortos se preo­ cupam com os assuntos terrenos? V irgílio *

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É de tal feito a glória, que os que contra ela escrevem querem a glória de ter escrito bem; os que lêem hão de haver lido bem; eu que escrevo estas linhas, talvez, tenha êsse desejo, e talvez o tenha quem me lê. Blaise Pascal * * * A queda não deve tirar a glória de haver subido. Calderon de la Barca * * * Não há nada que estendamos com maior generosidade que as m ãos... quando estão vazias. E . Wertheimer * * * Coisa admirável! Em todas as grandes crises da socie­ dade, a misteriosa mão que rege os destinos do universo tem como que em reserva um homem extraordinário. Chegado o momento, o homem se apresenta, caminha, êle próprio não sabe para onde, mas caminha com passo firm e para cumprir o alto destino que o Eterno lhe assinalou. Jaime Balmes * * * Entre gênio e talento a proporção é a que há entre o todo e a parte. La Bruyère He

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A glória é tanto mais tardia quanto mais duradoura há de ser, porque todo fruto delicioso amadurece lentamente: a glória destinada a ser eterna é como o carvalho que cresce lentamente; a glória fácil e efêmera assemelha-se às plantas anuais; quanto à falsa glória, é como essas ervas daninhas que, além de ofenderem a vista, provocam o prazer de extirpar. Schopenhauer ❖

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Ser genial no amor é saber conservar na união uma per­ pétua novidade. André Mauróis * * * Sejamos fatalistas, se o quiserdes; mas sejamo-lo como certo indivíduo, convencidíssimo de que tudo quanto sucede neste mundo não pode deixar de suceder, por assim estar es­ crito, como afirmam os muçulmanos. E como, apesar de assim crer, passava o no<*so indivíduo a vida indignando-se por tudo, querendo dispor de maneira melhor, perguntando-lhe alguém: "Mas, por que te indignas, se crês que tudo sucede porque pre­ cisa suceder, porque está e s c rito ? ...” respondia mais indig­ nado ainda: "É porque também está escrito que devo indig­ nar-me!” Jacinto Benavente * * * A fé principia onde termina o orgulho. Tiremos a fé, e tudo perecerá. A fé é a alma da sociedade, é a substância da vida humana; a fé dirige e precede, necessàriamente, todos os nossos atos, está na natureza humana, e é a primeira condi­ ção da sua existência. H. F . R. de Lamennais * * * A constância não consiste em fazer sempre as mesmas coisas, mas em fazer sempre coisa que tendem para o mesmo fim. Luís X V * * * Não permitas que te perturbe o vão arrependimento ou a veleidade de mudanças. Todas as estradas da vida têm os seus espinhos. Se entras numa delas, prossegue, porque retro­ ceder é covardia. Persistir é sempre louvável, a não ser que trilhes o caminho da culpa. E só quem persiste no que em­ preende é que pode esperar tornar-se assinalado um dia. Sílvio Pellico ♦



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Todo homem. . . vive envolto por uma nuvem de confor­ tantes convicções, que o acompanham como as moscas no verão. Bertrand Russell *

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Eça de Queiroz

C A R T A DE FR A D IQ U E AO

M ENDES

SR. E. M O L L IN E T

Meu caro Sr. Mollinet. — Encontrei, ontem à noite, ao voltar de Fontainebleau, a carta em que o meu douto amigo em nome e no interesse da Revista de Biografia e de História, me pergunta quem é êste meu compatriota Pacheco (José Joa­ quim Alves Pacheco), cuja morte está sendo tão vasta e amar­ gamente carpida nos jornais de Portugal. E deseja ainda o meu amigo saber que obras, ou que fundações, ou que livros, ou que idéias, ou que acréscimo na civilização portuguêsa dei­ xou êsse Pacheco, seguido ao túmulo por tão sonoras, reveren­ tes lágrimas. Eu, casualmente, conheci Pacheco. Tenho presente, como num resumo, a sua figura e a sua vida. Pacheco não deu ao seu país nem uma obra, nem uma fundação, nem um livro, nem uma idéia. Pacheco era, entre nós, superior e ilustre ünicamente porque tinha um imenso talento. Todavia, meu caro Sr. Mollinet, êste talento que duas gerações tão soberbamente acla­ maram, nunca deu, da sua força, uma manifestação positiva, expressa, visível! O talento imenso de Pacheco ficou sempre calado, recolhido, nas profundidades de Pacheco! Constante­ mente êle atravessou a vida por sobre eminências sociais: De­ putado, Diretor Geral, Ministro, Governador de Bancos, Con­ selheiro de Estado, Par, Presidente do Conselho — Pacheco tudo foi, tudo teve, neste país que, de longe e a seus pés, o contemplava, assombrado do seu imenso talento. Mas nunca, nestas situações, por proveito seu ou urgência do Estado, Pa­ checo teve necessidade de deixar sair, para se afirmar e operar fora, aquêle imenso talento que lá dentro o sufocava. Quando os amigos, os partidos, os jornais, as repartições, os corpos co­ letivos, a massa compacta da nação, murmurando em redor de Pacheco " que imenso talento" o convidaram a alargar o seu domínio e a sua fortuna — Pacheco sorria, baixando os olhos sérios por trás dos óculos dourados e seguia, sempre para mais alto, através das instituições com o seu imenso talento aferrolhado dentro do crânio como no cofre dum avaro. E esta re­

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serva, êste sorrir, êste lampejar dos óculos, bastavam ao país, que nêles sentia e saboreava a resplandecente evidência do ta­ lento de Pacheco. Êste talento nasceu em Coimbra, na aula de direito natural, na manhã em que Pacheco, desdenhando a Sebenta, assegurou que "o século X IX era um século de progresso e de luz” . O curso começou logo a pressentir e a afirmar, nos cafés da Feira, que havia muito talento em Pacheco: e esta admiração cada dia crescente do curso, comunicando-se como todos os mo­ vimentos religiosos das multidões impressionáveis às classes raciocinadoras, dos rapazes aos lentes, levou fàcilmente Pa­ checo a um prêmio no fim do ano. A fama dêsse talçnto alas­ trou então por toda a academia — que, vendo Pacheco sem­ pre pensabundo, já de óculos, austero nos seus passos, com praxistas gordos debaixo do braço, percebia ali um grande es­ pírito que se concentra e se retesa todo em força íntima. Esta geração acadêmica, ao dispersar, levou pelo país, até aos mais sertanejos burgos, a notícia do imenso talento de Pacheco. E já em escuras boticas de Trás-os-Montes, em lojas palreiras de barbeiros do Algarve, se dizia, com respeito, com esperança: — "Parece que há, agora, aí, um rapaz de imenso talento, que se formou, o Pacheco!” Pacheco estava maduro para a representação nacional. Veio ao seu seio, — trazido por um govêrno (não recordo qual) que conseguira, com dispêndios e manhas, apoderar-se do pre­ cioso talento de Pacheco. Logo na estrelada noite de dezembro «em que êle, em Lisboa, foi ao Martinho tomar chá e torradas, se sussurrou pelas mesas, com curiosidade: — "É o Pacheco, rapaz de imenso talento!” E desde que as Cymaras se cons­ tituíram, todos os olhares, os do govêrno e os da oposição, se começavam a voltar com insistência quase com ansiedade, para Pacheco, que, na ponta duma bancada, conservava a sua atitu­ de de pensador recluso, os braços cruzados sobre o colête de veludo, a fronte vergada para o lado como sob o pêso das rique­ zas interiores, e os óculos a faiscar. . . Finalmente, uma tarde, na discussão da Coroa, Pacheco teve um movimento como para atalhar um padre zarolho, que arengava sobre a "liberdade” . O sacerdote imediatamente estacou com deferência; os taquígrafos apuraram vorazmente a orelha; e toda a câmara cessou o seu desafogado sussurro, para que, num silêncio condignamente majestoso se pudesse pela vez primeira produzir o imen­ so talento de Pacheco. No entanto, Pacheco não prodigalizou desde logo os seus tesouros. De pé, com o dedo espetado (gesto que foi sempre muito seu), Pacheco afirmou num tom que traia

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a segurança do pensar e do saber íntimo: — "que ao lado da liberdade devia sempre coexistir a autoridade!” Era pouco, decerto: — mas a câmara compreendeu bem que, sob aquêle curto resumo, havia um mundo, todo um formidável mundo, de idéias sólidas. Não volveu a falar durante meses — mas o seu talento inspirava tanto mais respeito, quanto mais invi­ sível e inacessível se conservava lá dentro, no fundo do seu ser. O único recurso que restou, então, aos devotos’ dêsse imenso ta­ lento (que já os tinha, incontáveis) foi contemplar a testa de Pacheco — como se olha para o céu pela certeza que Deus está por trás, dispondo. A testa de Pacheco oferecia uma super­ fície escanteada, larga e lustrosa. E muitas vêzes, junto dêles, Conselheiros e Diretores-gerais balbuciavam, maravilhados: — "Nem é necessário mais! Basta ver aquela testa!” Pacheco pertenceu logo às principais comissões parlamen­ tares. Nunca porém acedeu a relatar um projeto, desdenhoso das especialidades. Apenas, às vêzes, em silêncio, tomava uma nota lenta. E quando emergia da sua concentração, espetando o dedo, era para lançar alguma idéia geral sobre a Ordem, o Progresso, o Fomento, a Economia. Havia aqui a evidente atitude dum imenso talento que (como segredavam os seus amigos, piscando o olho com finura) "está à espera, lá em cima, a pairar” . Pacheco mesmo, de resto, ensinava (esbo­ çando, com a mão gorda, o voar superior duma asa por sobre o arvoredo copado) que o "talento verdadeiro só devia conhe­ cer as coisas pela rama” . Êste imenso talento não podia deixar de socorrer os con­ selhos da Coroa. Pacheco, numa recomposição ministerial (provocada por uma roubalheira), foi Ministro: — e imedia­ tamente se percebeu que maciça consolidação viera dar ao Po­ der o imenso talento de Pacheco. Na sua pasta (que era a da Marinha) Pacheco não fêz durante os longos meses de gerên­ cia "absolutamente nada” , como insinuaram três ou quatro espíritos amargos e estreitamente positivos. Mas, pela pri­ meira vez, dentro dêste regime, a nação deixou de curtir in­ quietações e dúvidas sobre o nosso Império Colonial. Por quê? Porque sentia que finalmente os interêsses supremos dêsse Im­ pério estavam confiados a um imenso talento, ao talento imen­ so de Pacheco. Nas cadeiras do govêrno, Pacheco rarissimamente surdia do seu silêncio repleto e fecundo. Às vêzes, porém, quando a oposição se tornava clamorosa, Pacheco descerrava o braço, to­ mava com lentidão uma nota a lápis: — e esta nota, traçada com saber e maduríssimo pensar, bastava para perturbar, acuar

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a oposição. É que o imenso talento de Pacheco terminara por inspirar, nas câmaras, nas comissões, nos centros, um terror disciplinar! A i dêsse sobre quem viesse a desabar com cólera aquêle talento imenso! Certa lhe seria a humilhação irresgatável! Assim, dolorosissimamente o experimentou o pedagogista, que um dia se arrojou a acusar o Sr. Ministro do Reino (Pacheco dirigia então o Reino) de descurar a Instrução do País! Nenhuma incriminação podia ser mais sensível àquele imenso espírito que, na sua frase lapidária e suculenta, ensi­ nara "que um povo, sem o curso dos liceus, é um povo incom­ pleto” . Espetando o dedo (jeito sempre seu) Pacheco esborrachou o homem temerário com esta coisa tremenda: — "A o ilustre deputado que me censura só tenho a dizer que, enquanto S. Exa., aí nessas bancadas, faz berreiro, eu, aqui nesta ca­ deira, faço lu z!” — Eu estava lá, nesse esplêndido momento, na galeria. E não me recordo de ter jamais ouvido, numa assembléia humana, uma tão apaixonada e fervente rajada de aclamações! Creio que foi daí a dias que Pacheco recebeu a grã-cruz da Ordem de São Tiago. O imenso talento de Pacheco pouco a pouco se tornava um credo nacional. Vendo que inabalável apoio êsse imenso ta­ lento dava às instituições que servia, todas o apeteceram. Pa­ checo começou a ser um Diretor universal de Companhias e de Bancos. Cobiçado pela Coroa, penetrou no Conselho de Esta­ do. O seu partido reclamava àvidamente que Pacheco fosse seu Chefe. Mas os outros partidos cada dia se socorriam com submissa reverência do seu imenso talento. Em Pacheco, pou­ co a pouco se concentrava a nação. À maneira que êle assim envelhecia e crescia em influência e dignidade, a admiração pelo seu imenso talento chegou a to­ mar no país certas formas de expressões só próprias da reli­ gião e do amor. Quando êle foi Presidente do Conselho, havia devotos que espalhavam a mão no peito com unção, reviravam o branco do olho ao céu, para murmurar piamente: — "Que talento!” E havia amorosos que, cerrando os olhos e repinicando um beijo nas pontas apilhadas dos dedos, balbuciavam com langor: — " A i! que talento!” E, para que o esconder?' Outros havia, a quem aquêle imenso talento amargamente irri­ tava, como um excessivo e desproporcional privilégio. A êsses ouvi eu bradar com furor, atirando patadas ao chão: — "Irra, que é ter talento de m ais!” Pacheco, no entanto, já não fa ­ lava. Sorria apenas. A testa cada vez se lhe tornava mais vasta.

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

Não relembrarei a sua incomparável carreira. Basta que o meu caro Sr. Mollinet percorra os nossos anais. Em todas as instituições, reformas, fundações, obras, encontrará o cunho de Pacheco. Foi tudo, teve tudo. Decerto, o seu talento era imenso! Mas imenso se mostrou o reconhecimento da sua pá­ tria! Pacheco e Portugal, de resto, necessitavam insubstituivelmente um do outro. Sem Portugal — Pacheco não teria sido o que foi entre os homens: mas, sem Pacheco — Portugal não seria o que é entre as nações! A sua velhice ofereceu um caráter augusto. Perdera o cabelo radicalmente. Todo êle era testa. E mais que nunca revelava o seu imenso talento mesmo nas mínimas coisas. Muito bem me lembro da noite (sendo êle Presidente do Con­ selho) em que, na sa’ a da Condêssa de Arrodes, alguém, com fervor, apeteceu conhecer o que S. Exa. pensava de Canovas dei Castilo. Silenciosamente, magistralmente, sorrindo apenas, S. Exa. deu com a mão grave, de leve, um corte horizontal no ar. E foi em torno um murmúrio de admiração, lento e ma­ ravilhado. Naquele gesto, quantas coisas sutis, fundamente pensadas! Eu, por mim, depois de muito esgaravatar, interpretei-o dêste modo: — "Medíocre, meia-altura, o Sr. Cano­ vas !” Porque, note o meu caro Sr. Mollinet, como aquêle ta­ lento, sendo tão vasto — era ao mesmo tempo tão fino! Rebentou; — quero dizer, S. Exa. morreu quase repenti­ namente, sem sofrimento, no comêço dêste duro inverno. Ia Ber justamente criado marquês de Pacheco. Toda a nação o chorou com infinita dor. Jaz no alto de São João, sob um mau­ soléu, onde, por sugestão do Sr. Conselheiro Acácio (em carta ao Diário de N otícias), foi esculpida uma figura de Portugal chorando o Gênio. Meses depois da morte de Pacheco, encontrei a sua viúva, em Cintra, na casa do dr. Videira. É uma mulher (asseguram amigos meus) de excelente inteligência e bondade. Cumprin­ do um dever de português, lamentei, diante da ilustre e afável senhora, a perda irreparável, que era sua e da pátria. Mas quando, comovido, aludi ao imenso talento de Pacheco, a viúva ergueu, num brusco espanto, os olhos que conservava baixos — e um fugidio, triste, quase apiedado sorriso arregaçou-lhe os cantos da boca pálida. . . Eterno desacordo dos destinos hu­ manos! Aquela mediana senhora nunca compreendera aquêle imenso talento! Creia-me, meu caro S. Mollinet, seu dedica­ do — FRADIQ UE.

SABEDORIA DOS SÉCULOS

O HOMEM E A M U LH E R

O homem é a mais elevada das criaturas. A mulher é o mais sublime dos ideais. Deus fêz para o homem um trono; para a mulher, um altar. O trono exalta; o altar santifica. O homem é o cérebro; a mulher, o coração. O cérebro produz a luz; o coração, amor. A luz fecunda; o amor ressuscita. O homem é o gênio; a mulher, anjo. O gênio é imensurável; o anjo indefinível. A aspiração do homem é a suprema glória; a aspiração da mulher, a virtude extrema. A glória traduz grandeza; a virtude traduz divindade. O homem tem a su­ premacia; a mulher, a preferência. A supremacia representa a força; a preferência representa o direito. O homem é forte pela razão; a mulher é invencível pela lágrima. A razão con­ vence; a lágrima comove. O homem é capaz de todos os he­ roísmos; a mulher, de todos os martírios. O heroísmo enobre­ ce; o martírio sublima. O homem é o código; a mulher, o evangelho. O código corrige; o evangelho aperfeiçoa. O ho­ mem é um templo; a mulher, um sacrário. Ante o templo, nos descobrimos; ante o sacrário, ajoelhamo-nos. O homem pensa; a mulher sonha. Pensar é ter cérebro; sonhar é ter na fronte uma auréola. O homem é um oceano; a mulher um lago. O oceano tem a pérola que oembeleza; o lago tem a poesia que o deslumbra. O homem é a águia que voa; a mulher, o rou­ xinol que canta. Voar é dominar o espaço; cantar é conquis­ tar a alma. O homem tem um fan al: a consciência; a mulher tem uma estrêla: a esperança. O fanal guia, a esperança sal­ va. — Enfim, o homem está colocado onde termina a terra; ia mulher, onde começa o céu! . . . V ictor Hugo

"N ão há palavra que prove tão amargamente manchas e mentiras, como a palavra "am or” . Com astúcia diabólica, onde a vontade é frágil como se fora um véu, com o amor se cobre ocultando com astúcia a coqueteria de sua vida. Se o caminho está impedido e há perigo, abandona-se para seguir o "am or” . Se prefere ir pelo caminho cômodo, deixa-o seguir por êle pelo "am or” . Sempre terá esperanças se é Deus a quem deseja e teme, e que o amor dirija as suas preces... Humildade! Palavra sem sentido, que serve de lema para o mundo de hoje. Pretexto tosco dos pobres de espírito, que não se atrevem nem querem atuar. Todo fraco mascara seu mêdo para arriscá-lo todo pela vitória, porto de todos os co­ vardes, que desfalecem ante as promessas sutis fàcilmente rompidas. Almas mesquinhas que convertem o homem em um ser "humanitário!” Foi Deus "humano” quando morreu Jesus? A h ! Se teu Deus foi quem então deu conselho, Cristo foi o que na cruz clamou por graça. Assim a recordação se converteu na nota de um protocolo celestial” . Ibsen * * * "Todos os que vivemos na época atual somos migalhas da mesa revolucionária do século passado e ainda êstes resíduos foram mastigados uma e outra vez. Estas idéias do passado requerem nova substância, nova interpretação. A Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade não são as mesmas coisas que foram nos dias da guilhotina de bendita recordação. É o que os políticos não compreenderam e, portanto, eu os desprezo. A gente só pede revolucionários especiais, revolucionários no mundo exterior, na esfera da política. Mas tudo são aclama­ ções sem sentido. O que na realidade é necessário é uma revo­ lução no espírito do homem” . Ibsen * * * Todos os nossos pensamentos, todos os nossos pontos de vista, todos os momentos da nossa existência estão cruzados por um dualismo. O dualismo é a nossa idéia suprema, a nossa idéia mais sublime. Fora dêle, não possuímos nenhuma idéia fundamental. Vida e morte, enfermidade e saúde, tempo e

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO MUNDIAL

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eternidade, tudo isso podemos pensar e representá-lo a nós como sombra e luz; mas não conseguimos dar-nos conta de uma idéia comum e de conciliação oculta por trás dessas dua­ lidades. nitidamente definidas. Friedrich Hebbel * * * O coração dos homens é mais perigoso que montanhas e rios, e mais difícil de compreender que o próprio Céu. Chuang-Tseu * * * Por mais longe que alcance o espírito, nunca vai tão longe como o coração. Confúcio * * * Uma das principais causas da maledicência é a inveja. É uma causa vergonhosa que ninguém confessa, mas que se de­ duz da maneira de proceder. Seja qual fô r o aspecto com que se apresente a maledicência, temei-a sempre como serpente. Bossuet * * * Somente o tempo é que nos revela o justo; mas o mau podemos conhecê-lo num único dia. Sófocles H e-

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É um alívio saber que o mal que padecemos, todos o pa­ deceram antes e todos o padecerão depois. Sêneca H* * # Pode secar-se, num coração de mulher, a seiva de todos os amores; mas nunca se extinguirá a do amor materno. Júlio Dantas He





Macaco continua a ser macaco, ainda que use insígnias de ouro. Luciano He

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Queixava-me de não ter calçado. Ao passar pela porta da mesquita de Damasco, vi um homem sem pernas. Cessei imediatamente de queixar-me e de murmurar contra o destino. Sadi He

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

Homens há em quem o desengano gera o ceticismo. Em outros, porém, a fé é tão profunda e tão de raiz que não há extirpá-la; não podendo arrancá-la, o que fazem a ingratidão e deslealdade é que, à força de a abalarem, deixam ali uma chaga que se está magoando a cada instante contra as misé­ rias do mundo. José de Alencar * * * Quando morre o filho ou a mulher do próximo, todos di­ zem que é a lei da humanidade. Mas, quando desaparece o próprio filho, ou a própria mulher, o que se ouvem são gemi­ dos, gritos e lágrimas. Lembremo-nos sempre do estado em que ficamos, quando assistimos à desdita alheia. Epicteto * ** Não importa como morre o homem. como vive.

O que importa é G. B. Shaw

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É extraordinário sabermos todos que devemos morrer e vivermos todos como se tivéssemos a certeza de viver para sempre. F. Guicciardini * #* As dores da alma elevam; as dores do corpo abatem. *

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G. Giusti

Toda mocidade é inquieta. Somente dela é que se pode esperar o impulso para o melhor, nunca dos embolorecidos e dos senis. E só é mocidade a sã e iluminada, a que olha para a frente e não para trás, nunca os decrépitos de poucos anos, prematuramente domesticados pelas superstições do passado: o que nêle parece primavera é tibieza outonal, ilusão de outrora, que já é início de crepúsculo. Só há mocidade nos que trabalham com entusiasmo para o futuro; por isso, nos carac­ teres superiores, pode ela persistir sobre o advento dos anos. Não se espere nada dos homens que entram na vida sem a febre de um ideal; aos que nunca foram moços, afigura-se desvairado todo e qualquer sonho. E não se nasce moço; é pre­ ciso conquistar a mocidade. E, sem um ideal, não se conquista. José Ingenieros

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ANTOLOGIA DO PENSAMENTO MUNDIAL

Aquêle que sabe quando tem bastante, não cairá no ri­ dículo. E aquêle que sabe quando deve parar, não correrá perigos. Lau Tseu *

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Há no âmago do coração do homem um sentimento forte, vivo, indelével, que o leva a conservar-se, a evitar males e a procurar bem-estar e ventura. Chame-se-lhe amor próprio, instinto de conservação, desejo de felicidade, anelo de perfei­ ção, egoísmo individual, chame-se-lhe como se queira, existe; temo-lo aqui dentro, e dêle não podemos duvidar; acompanha-nos em todososnossos passos, em todos os nossosatos, desde que abrimos osolhos à luz até ao instante em quebaixamos à sepultura. Jaime Balmes * * * Palavras e mais palavras jamais indicam muita sabedoria. Tales de M ileto *

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É o entusiasmo que faz o poeta e o artista, o sábio e o guerreiro; é o entusiasmo que faz o homem-idéia diferente do homem-máquina. A fábula de Prometeu não exprime senão a alegria dêsse fogo celeste da alma, que anima a estátua da Galatéia, embora depois dilacere o coração como águia de ro­ chedo. José de Alencar *

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Quem é cego neste mundo será cego também no outro, e andará extraviado do caminho. Maomé * * * Há mais prazer em construir castelos no ar do que na terra. E. Gibbon * * * Perigoso é o homem que já não tem o que perder. Goethe O povo desobedece às leis, quando os magistrados não dão o exemplo da obediência. Licurgo

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

Jerusalém foi destruída porque os seus habitantes inter­ pretaram as leis segundo a letra e não segundo o espírito. Talmud Babilônico He

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Terrível é o castigo de quem lamenta um ato depois de cometido. Püblio Ciro He

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Há quedas que provocam ascenções maiores. Shakespeare He

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" A morte está hoje diante de mim como um enfêrmo que vai restabelecendo, como quem sai depois de haver estado en­ fêrmo. A morte está hoje diante de mim como o perfume de mirra, como quem está sob a vela em dia ventoso. A morte está hoje diante de mim como o perfume de lótus, como quem está às margens da embriaguez. . . A morte está hoje diante de mim como quem aspira a vol­ tar à sua casa depois de haver passado muitos anos no ca­ tiveiro” . Do " Diálogo de um homem cansado de viver e sua alma” (Egípcio, fins do terceiro milênio A.C.) He

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Muitas vêzes, vangloria-se o homem do seu desprêzo à vangloria. Santo Agostinho He

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A miúdo culpamos a mocidade de julgar que o mundo começa com ela. Está bem. Mas ainda mais a miúdo julga a velhice que o mundo acaba com ela. Qual das duas coisas é pior? Friedrich Hebbel He

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A verdade é um facho terrível: todos experimentamos aproximar-nos dela, mas com enorme receio de queimar-nos. Goethe He

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"O crente que acredita elevar-se a Deus fazendo esforços, cansou-se em vão; o que acredita chegar a Êle sem esforçar-se, percorreu inutilmente um caminho.

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO MUNDIAL

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Algumas pessoas perguntaram certa vez a um ancião, a quem se podia chamar, com razão, homem de mesquinho modo de pensar. Respondeu: — Homem de baixos sentimentos é aquêle que reza a Deus por temor e esperança. — E como rezas tu a Deus? — Por amor. Porque seu amor é o que me ensina a rezar a Êle e a servi-lo. O que afirma estar perto de Deus, está longe Dêle, e o que reza: "Encontro-me longe Dêle” , esconde sua inexistência na existência do Senhor” . Dschamai ffO jardim prim averil” (Persa, século D.C.) * * * "Se erguermos por um instante nossos olhares para o céu, de início perceberemos apenas um pequeno espaço cintilante de luz; mas, se pudéssemos erguer-nos até êsse espaço luminoso, vê-lo-íamos de uma imensidade sem limites; o sol, a lua, as estréias, os planêtas ali estão suspensos como por um fio ; to­ dos os sêres do universo estão cobertos como num docel. Se lançarmos, então, um olhar sobre a terra, de início acreditare­ mos poder tê-la na mão; mas, se a percorrermos, veremos quão extensa e profunda ela é; sustentaríamos a alta montanha flo ­ rida sem nos dobrarmos ao seu pêso; juntaríamos os rios e os mares em seu seio, sem sermos por êles inundados. Esta mon­ tanha nos parece nada mais que um pequeno fragmento de rochedo, mas, se explorarmos sua extensão, vê-la-emos vasta, elevada, as plantas e as árvores que crescem à sua base, os pássaros e os quadrúpedes que nela fazem seus ninhos e mo­ radas ; e ela guarda em seu próprio seio tesouros inexplorados. E essa água que de longe percebemos parece-nos apenas encher um leve copo; enormes tartarugas, crocodilos, hidras, dragões, peixes de toda espécie vivem em seu seio; riquezas preciosas têm aí sua o rigem ... ” Do livro chinês "Tchung-Yung” * * * "Tão inorportuno é calar quando deves falar, como falar na hora do silêncio. Um segrêdo que te compete guardar, não o comuniques a ninguém. . . nem mesmo àquele que te parece digno de con­ fiança. Porque ninguém está mais próximo de ti do que o teu segrêdo.

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

Mais vale calar do que confiar a outrem o mais íntimo segrêdo, dizendo-lhe "não o digas a ninguém” , contando com sua discrição. Quando tens uma notícia que possa afligir a um coração* cala e deixa que outro seja o mensageiro” . Sadi * * * Com que ânimo exiges honestidade de tua mulher se tu próprio vives na desonestidade? São Gregório * * * Cobre-se de opróbrio quem trata sua mulher como se fosse adúltera. São Jerônimo * * * É a alma e não o corpo que torna indissolúvel o casamento. Públio Ciro * * * A distância que vai da compaixão à caridade é a mesma que vai da intenção à justiça. Condessa Diane *

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Não dês apenas esmolas; dá também caridade. J. J. Rousseau * * * Sem o amor que encanta, é espantosa a solidão de um eremita. Porém, mais espantosa é a solidão de dois sêres que vivem juntos. Ramón de Campoamor * * * Que fora a vida, se nela não houvesse lágrimas? Os des­ graçados, na sua miséria, conservam sempre olhos que saibam chorar. A dor mais tremenda do espírito quebrantam-na e entorpecem-na as lágrimas. A. Herctdano * * * O mais maligno dos teus inimigos é a lascívia que em ti vive. ♦

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Sadi

Não ameis ao mundo, nem ao que há no mundo. Se algum ama ao mundo, não há nêle o amor do Pai, porque tudo o que há no mundo é concupiscência da carne, e concupiscência dos

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO MUNDIAL

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olhos, e soberba da vida, a qual não vem do Pai, mas sim do mundo. Ora, o mundo passa, e também a sua concupiscência. Mas, o que faz a vontade de Deus, permanece eternamente. Bíblia, 1.° São João, 2 — 15, 16, 17. * * * Juntos bebemos na sombra as lágrimas confundidas... E agora, pergunto a mim próprio (lo u cu ra !): eu nunca percebi quais eram as tuas; e tu, percebeste, talvez, quais eram as minhas? Juan Jimenez * * * Não há nada que mais estreite dois corações do que ha­ verem chorado juntos. J. J. Rousseau * ♦ M Se chorares por ter perdido o sol, as lágrimas impedirão que vejas as estréias. Rabindranath Tagore * * * Mas, se não têm dom de continência, casem-se, porque me­ lhor é casar-se do que abrasar-se. Bíblia, 1.° Coríntios, 7 — 9 * * * Não se vive sem fé. A fé é o conhecimento do significado da vida humana. A fé é a força da vida. Se o homem vive é porque crê em alguma coisa. Tolstoi * * * Se um espinho me fere, afasto-me do espinho. . . mas não o detesto. Amado Nervo * * * Quanto aos filósofos. . . são as suas palavras como as es­ tréias que dão pouca luz por estarem demasiadamente altas. Francis Bacon * * * Não arranques flores para guardá-las; continua caminhan­ do e as flores alegrarão o teu caminho. Rabindranath Tagore * * * Aquêle que pergunta: Que comerei com êste meu pão? não tem fome. Talmud Babüônico $

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

Se eu falar as línguas dos homens e dos Anjos, e não tiver caridade, sou como o metal que soa, ou como o sino que tine. E se eu tiver o dom de profecia e conhecer todos os mistérios e quanto se pode saber; e se tiver toda a fé, até o ponto de transportar montes, e não tiver caridade, não sou nada. E se eu distribuir todos os meus bens em o sustento dos pobres, e se entregar o meu corpo para ser queimado, se todavia não tiver caridade, nada disto me aproveita. A caridade é pa­ ciente, é benigna, a caridade não é invejosa, não é obra teme­ rária, nem, precipitadamente, não se ensoberbece. Não é am­ biciosa, não busca os seus próprios interêsses, não se irrita, não suspeita mal. Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade. Tudo tolera, tudo crê, tudo espera, tudo sofre. A caridade nunca jamais, há de acabar, ou deixem de ter lugar as profecias, ou cessem as línguas, ou seja abolida a ciência. Bíblia, 1.° Coríntios, 14 — 1 a 8 Hs

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Todos nós possuímos três caracteres: o que exibimos, o que temos verdadeiramente, e o que julgamos ter. A . K a rr $ $ $ Onde não há caridade não pode haver justiça. Santo Agostinho H * 3* Por homem de caráter entendemos o que persevera no pro­ pósito de continuar a ser aquilo que é, com as suas opiniões e o seu procedimento: o que, com grande força de atenção e firmeza de vontade, não se reveste das cores das coisas que o rodeiam; o que não muda de sentimento conforme as ocasiões, as sensações ou o mêdo do ridículo; o que não acende uma vela ao santo e outra ao diabo, o que não se esforça por pa­ recer diferente do que é e sim por ser o que deseja parecer; o que não namora a popularidade, renegando a sua própria consciência; o que procura menos o bem que pode desfrutar que o bem que pode fazer; o que sabe o que faz e porque o fa z ; o que nobremente sente, virilmente sustenta, e fortemente espera, com elevação de pensamentos, clareza de escopos e fra ­ queza de atos. C. Cantu ❖ 3* Há épocas de tal corrupção que, durante elas, talvez só o excesso do fanatismo possa, no meio da imoralidade triunfan-

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te, servir de escudo à nobreza e à dignidade das almas rija ­ mente temperadas. A . Herculcmo * * * Ouve as palavras dos homens e fita-lhes bem as pupilas. Como poderão esconder o seu caráter? Mêncio * * * Muitas vêzes a testa que esperava receber uma coroa de louro se vê ensangüentada por uma coroa de espinhos. Danton * * * Que é o fátuo sem a sua fatuidade? Arranca as asas a uma borboleta e transformá-la-ás em simples lagarta. Chamfort * * * O homem deve ser bondoso para com os inimigos e não para com os amigos: com êstes, nada mais faz do que seguir a própria inclinação; com aquêles, exerce elevadíssima virtude. Averrois * * * Despertai e cantai louvores, vós os que habitais no pó. Bíblia, Isaías, 26 — 19 * * * O imprudente, que repete a sua loucura, é como o cão que torna outra vez ao que tinha vomitado. Bíblia, Provérbios, 26 — 11 * * * Quem se deita com cães amanhece com pulgas. Sêneca * * * Cita-me um único homem de mau humor que seja capaz de o dissimular, para suportá-lo sozinho e não turvar a ale­ gria dos que o rodeiam. Goethe * * * Não sej ais como as mulheres que, após ouvirem a voz db razão por horas a fio, repetem a primeira palavra que disseram! Schiller * * * Em todos os pátios da vida há o galo da noite de Caifás, que canta três vêzes. . . É o canto a denunciar ao homem descuidado, sua mentira vital; mas só os contritos a ouvem. *

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

Envergonha-te de ser para ti uma honra tua fam ília! Tu é que deves ser uma honra para tua família. ♦

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Benjamim Franklin *

Filho, ampara a velhice de teu pai, e não dês pesares em sua vida; e se lhe forem faltando as forças, suporta-o, e não o desprezes por poderes mais do que êle, porque a caridade que tu tiveres usado com teu pai, não ficará posta em esquecimento. Bíblia, Eclesiástico, 8 — 14, 15 * * * Causa menos dano o assassino que o caluniador. efeito, aquêle mata apenas um, êste mata mil.

Com

Provérbio chinês ♦ * * Dois homens nunca se penetram até à alma, até o fundo dos pensamentos; caminham um ao lado do outro, às vêzes abraçados, mas nunca unidos, e a pessoa moral de cada um de nós fica eternamente sozinha por toda a vida. Guy de Maupassant *

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*

Que será portanto, o homem? Igual a Deus, ou igual às feras? Que espantosa distância! Que seremos, pois? Quem não vê que o homem está extraviado e busca, inquieto, o lugar de onde caiu? E quem lho devolverá? Os maiores homens não lograram fazê-lo. Blaise Pascal *

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Nenhum homem tem o dever de ser rico ou grande ou sá­ bio; mas todos têm o de ser honrado. Rudyard Kipling *

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Se os animais tivessem uma falta, diriam certamente de muitos vícios: "é simplesmente humano” , como dizem os ho­ mens: "é simplesmente animalesco” . M. G. Saphir * * * Ocorre-nos, em geral, na vida, o que ocorre ao viajante, à medida que prossegue: os objetos adquirem formas diferentes das que mostravam de longe, e se modificam por assim dizer, à medida que delas se aproxima o caminheiro. A rth u r Schopenhauer

Eça de Queiroz

TRECHO D A L E N D A DE SÃO CRISTÓVÃO

Assim envelhecia aquêle bom gigante. Ora, um dia que caminhava por uma colina entre rochedos, ouviu um rumor de vozes que parecia vir do fundo do déspenhadeiro. Desceu, agarrando-se à ponta das rochas. E viu um largo rio, negro e tumultuoso, que corria espumando sobre as rochas que o cor­ tavam, com um mugido sombrio. À beira dêle, estava um grupo de mercadores com os seus machos carregados. E do outro lado, eram rochas, a pique, um monte que se elevava, coroado de negros pinheiros. Cristóvão desceu, apareceu diante dos homens. Todos se juntaram, tirando facalhões do cinto, no terror daquela força e daquela deformidade. Depois, como êle de longe falou com humildade, todos, pouoo a pouco, o cercaram, perguntando o que acontecera à ponte que ali havia. Cristóvão não sabia. E então disseram-lhe que aquêle era um caminho curto e fácil que havia naquelas terras. Mas tinha aquela passagem má, o rio tumultuoso. Outrora, houvera ali uma ponte de barcas amarradas com correntes. Mas o rio quebrara as correntes, levara as barcas, como palhas sêcas. Depois tinham lançado uma ponte de madeira e o rio outra vez levara a ponte. No entanto o Senhor daquelas terras morrera, e tendo elas passa­ do a um outro que vivia nas cidades, ninguém mais se ocupara de fazer uma ponte aos viajantes. E agora ali estavam êles, sem poderem passar, e as mulheres e os filhos esperavam-nos debalde, nas suas moradas para além dos montes. Cristóvão, no entanto, olhava a água. E em silêncio, mer­ gulhou no rio, e começou a atravessá-lo. A água cobriu os seus joelhos, subiu até à cintura, por fim bateu furiosamente sobre o seu peito, como sobre o pilar duma ponte. E Cristóvão ca­ minhava. Depois a cinta de Cristóvão saiu da água; depois apareceram os seus joelhos, e a escorrer água, êle pôs pé, en­ fim, nas rochas duras da outra margem, onde um caminho íngreme subia entre fragas. Cristóvão passara. Voltou, e abrindo os braços para os mercadores espanta­ dos, gritou:

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

— Qíiem quer passar? Um mais novo logo se ofereceu. Cristóvão tomou-o sobre os seus largos ombros, em cada braço carregou um fardo, en­ quanto os outros, ansiosos, rezavam à Virgem. Cristóvão pas­ sou, — e do outro lado, o mercador, radiante, fazia grandes gestos aos companheiros, gritava que o gigante era seguro. Então Cristóvão passou os homens, depois os fardos. E por fim, agarrando as mulas, que zurravam espantadas, conduziu para o lado de lá toda a caravana, sem que um pêlo dos ani­ mais, ou uma corda dos fardos, ou um sapato dos homens se tivesse molhado. Tendo combinado baixo, os homens puseram-lhe na mão um punhado de dinheiro, deram-lhe um rolo de cordas, e deixaram-lhe pão para uma semana. Logo nessa tarde, Cristóvão, examinando aquêle lugar agreste, recolheu troncos quebrados, ramarias sêcas, e calando a madeira na fenda das rochas, arranjou com a corda um lon­ go, estreito telheiro, onde o seu corpo se abrigasse das chuvas e das neves. Depois, tendo desembaraçado dos pedregulhos o caminho, esperou, sentado na grande solidão, que aparecessem viandantes. Não tardaram a aparecer na outra margem gru­ pos de frades, que viajavam com o abade, montando numa mula. Apenas os viu, Cristóvão atravessou — enquanto os frades, aterrados, lhe faziam grandes acenos, para que se não arriscasse naquelas águas da torrente. Mas quando o viram chegar, enorme, a escorrer água, e com os braços abertos para os receber, hesitaram, pensando ser uma cilada do demônio. A cruz que o abade traçou no ar, que Cristóvão repetiu sobre o peito, logo os tranqüilizou — murmurando entre si que então certamente era um auxílio do Senhor. Um por um, arrega­ çando o hábito, cavalgaram Cristóvão, e no meio do rio, sen­ tindo a água furiosa bater a cinta do gigante, gritavam o nome da Virgem, Estrêla dos Náufragos. Depois, quando Cristóvão os pousava na outra margem, enxutos, era um espanto, e bai­ xando os hábitos, reapertando as sandálias, riam daquela ponte viva que trabalhava nas águas. O abade passou, passou a sua mula. E os frades deixaram a sua bênção ao gigante e um ramo de buxo benzido. Começou, então, para Cristóvão uma vida estável, quieta, junto daquele rio. Nas horas em que não havia gente, espe­ rava sentado numa pedra, olhando correr a água, ou então alargava o caminho e construía à beira d’água, com pedra, como um cais onde a gente lhe subia para as costas. A cada instante, porém, havia alguém a passar — e como Cristóvão era já conhecido, os viandantes do alto da colina, vinham logo

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gritando: "E h gigante!” Alguns, mais brutais, se êle se de­ morava, rompiam em injúrias. Outros, que o vinho bebido nas tabernas da estrada excitava, arrepelavam-lhe os cabelos. Êle, quieto, e humilde, fendia as águas. Por vêzes era um cava­ leiro que, com a sua pesada armadura, lhe esmagava os ombros, e rindo o espicaçava com os acicates. Outras vêzes era uma dama, que se horrorizava com a fealdade de Cristóvão, tapava a face, e apenas passada para a outra margem lhe fugia das mãos, mostrando o seu nojo. O maior trabalho era com os animais. Havia rebanhos que levavam todo um dia a passar. Os ginetes de guerra, furiosos, mordiam-lhe os braços. E os galgos, latindo, queriam saltar para o rio, entre a indignação dos fidalgos, que atiravam pedras a Cristóvão. Nenhum es­ forço custava ao bom gigante. Passava os fardos mais duros, grossas barricas de vinho, pedras enormes para a construção das abadias. Passou touros, que iam para um curro de fidal­ gos. E passou um bando de leprosos, que fugiam duma cidade, e lhe deixavam sobre a pele pus das suas fístulas. Se lhe não pagavam, baixava a cabeça, saudando com hu­ mildade. Se lhe pagavam, beijava a escassa moeda de cobre — e guardava debaixo duma pedra êsse dinheiro para o repar­ tir com os mendigos. Assim vivia desde longos anos. A sua cabeça já se ver­ gava, os seus braços já não eram tão fortes. Por vêzes, sob os grandes fardos, gemia lamentàvelmente. Todos os seus membros estavam como troncos nodosos, inchados pela umida­ de. De todo êle saía um cheiro à vasa e a limo. E as suas pernas, sempre na água, tinham um tom verde, como as esta­ cas duma levada. O seu leito de folhas sêcas era-lhe doce, e quando sentia vozes que o chamavam, era com um gemido que se erguia. Já lhe levava o dobro do tempo a cortar a corrente — e por isso eram constantes as injúrias que recebia. Para se apoiar na água, sentindo que as suas forças diminuíam, teve de fazer um grande bastão aguçado, com um tronco. E cada inverno pensáva, com inquietação, se a força lhe sobraria para fender a corrente furiosa do rio mais cheio. Agora, apenas passava os viajantes, logo se vinha deitar. E chegou mesmo a pedir por caridade que lhe deixassem um pouco de vinho, para tomar nas noites muito duras, como um cordial que o amparasse. Oh! muito pouco, um pichei somen­ t e . .. Êle, cautelosamente, o pouparia.

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

Ora, uma noite de grande inverno, em que ventava, ne­ va va, e o rio muito cheio mugia furiosamente, Cristóvão, já muito velho, trôpego, com feridas nas pernas, dormia no seu chão molhado — quando fora, na noite agreste, uma voz pe­ quenina e dolorida gritou: "Cristóvão! Cristóvão!” Com um gemido, logo se ergueu aquêle gigante. Abriu o loquete da sua choça. E viu diante de si uma criancinha, pisando descalça a relva, com os cabelos a esvoaçar no vento e na chuva, e apertando sobre o peito, com as mãozinhas, a camisa muito branca que a cobria. Espantado, com lágrimas, Cristóvão abriu os braços. — Oh! meu menino, quem te trouxe? E tremendo toda, no frio e na neve, a criancinha mur­ murou : — Cristóvão, Cristóvão, estou sozinho e perdido, e por quem és te.peço que me leves à casa de meu pai! Já Cristóvão arrancara dos ombros a pele em que se agasalhava, e envolvia nela o corpinho tenro que tremia. — Oh! meu menino, onde é a casa de teu pai? A criancinha estendeu o braço para o outro lado, onde os montes negros se erguiam. E murmurou muito baixo: — Além, para além, muito longe. . . Mas um espanto tomava Cristóvão. Porque, debaixo da pele negra da cabra, de novo a camisinha da criança aparecia rebrilhando na noite negra, toda branca de linho. Muito hu­ milde, baixando para êle a face, o bom gigante disse: — Oh! meu menino, vem, que eu te levo ao colo. A criança estendeu os braços pequeninos. Cristóvão com cuidado e docemente a fo i pondo ao ombro. Mas, bruscamen­ te, os seus joelhos vergaram, tocaram a rocha, sob o imenso pêso que o esmagava. A h ! quanto pesava o menino! Com custo, se firmou nas suas velhas pernas doloridas. Desceu, arrimado ao seu bastão, o caminho escorregadio, mergulhou na água os pés, — e logo a corrente mugiu furiosamente em redor, atirando a espuma até aos pés da criança. Arquej ando, Cristóvão rompeu a água. O vento imenso silvava, e atirava-lhe sobre os olhos, que a umidade embaciava, os seus longos cabelos grisalhos. Êle disse: "A h ! meu menino, meu menino!” A cada passo sentia que o leito limoso do rio lhe fugia sob os

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pés. Todo êle tremia, firmando no bordão. E a água toda branca de espuma, empurrava-o furiosamente, com um marulho medonho. N a densa escuridão, nada distinguia, nem sabia onde estava a outra margem. Grossas pedras de granizo de repente caíram, e o menino, arrepiado, todo se aconchegava à sua face. Já a água temerosa lhe chegava ao peito. Tro­ peçou numa rocha, e quando se susteve sentiu a água, furiosa, gelada, correndo a roçar-lhe as barbas. Arrojou o bordão, e com ambas as mãos ergueu o menino ao ar. Mas mal o podia sustentar, grandes vagas já lhe batiam a face. Arquejando, parava para respirar fora da água, e bebia a espuma turva e amarga. Grossas traves, que a corrente acarretava, batiam-lhe o corpo. Os seus pés rasgavam-se em pedras agudas. E êle, num esforço enorme, os braços esticados ao alto e todo a tremer, sustentando o menino, arrojava o peito para a frente, com gemidos que eram mais fortes que o vento. Duas vêzes os seus joelhos fraquejaram, ia cair sob a força da torrente; duas vêzes, com um esforço sobre-humano, se manteve firme, erguendo ao alto o menino. A água já lhe chegava pela barba, e a espuma das vagas umedecia-lhe os olhos. E, sempre ar­ quej ando, rompia, com as mãos a tremer tôdas do pêso imenso do menino. Mas os seus pés encontraram uma rocha firme, e a água desceu outra vez até ao peito. Na rocha resvaladiça, porém, os seus passos mal se podiam sustentar. E era por um esforço da alma que se empinava ar quejando. Mas ia saindo do rio. A água lhe descera à cintura. E o fragor da torrente parecia abrandado e como remoto. Grandes pedras emergiam da água. Já apenas tinha mergulhado os pés, que êle sentia dilacerados. Um esforço mais, e estava na margem, salvo, apertando contra o peito o menino. Mas, naquele esforço supremo, toda a sua vida se fora. Não podia mais. E já se sentava, exausto, numa rocha, quan­ do o menino lhe murmurou que não parasse, que marchasse ainda, o conduzisse à casa de seu pai. E Cristóvão, arquejando, começou a trepar o íngreme caminho da serra. Uma vaga claridade errava nos altos. E as rochas, os abetos, emergiam da treva densa, que os afogava. Uma frialdade trespassava o ar — Cristóvão tiritava, com o seu pobre saião de estamenha encharcado, que ia pingando na terra mole. E mais baixo murmurava: "A h ! meu menino! meu m enino!... ” Cada vez mais escarpado, entre rochas, se empinava o ca­ minho da serra. E Cristóvão, todo curvado, com os seus ca­ belos caídos sobre a face e pingando, arquejava a cada passo. Subiria êle jamais até à morada do menino? E uma grande

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

dor batia-lhe o coração, no terror de cair sem força, e a crian­ cinha ficar ali, naquele êrmo rude, entre as feras, sob a tor­ menta. A cada instante tinha de arrimar a mão a uma rocha, desfalecido, de se prender à ramagem dum abeto. E a clarida­ de crescia; já no alto dos montes, êle via pàlidamente alvejar a neve. — Oh! meu menino, onde é a casa de teu pai? — Mais longe, Cristóvão, mais longe. . . Então o bom gigante fêz um prodigioso esforço, e a cada passo, meio desfalecido, os olhos turvos, a cada instante lan­ çando a mão para se arrimar, tropeçando, com grossas gotas de suor que se misturavam a grossas gotas de sangue, rompeu a caminhar, sempre para cima, sempre para cima. Os seus pés iam ao acaso, no desfalecimento que o tomava. Uma gran­ de frialdade invadia todos os seus membros. Já se sentia tão fraco como a criança que levava aos ombros. E parou, sem poder, no topo do monte. Era o fim : um grande sol nascia, banhava toda a terra em luz. Cristóvão pousou o menino no chão, e caiu ao lado, estendendo as mãos. Iá morrer. Mas sentiu as suas grossas mãos prêsas nas do menino, — e a terra faltou-lhe debaixo dos pés. Então entreabriu os olhos, e no esplendor incomparável, reconheceu Jesus, Nosso Senhor, pe­ quenino como quando nasceu no curral, que docemente, atra­ vés da manhã clara, o ia levando para o céu. (Extraído do Livro "Últimas Páginas” de Eça de Queiroz)

PENSAMENTOS DE SHAKESPEARE

A

N O I T E

Ó noite insuportável, imagem do inferno! Negra página, receptáculo da vergonha; lúgubre cena de tragédias e de hor­ rendos crimes; vasto caos encoberto de maldades, nutriz de opróbrios, cega e mascarada mediadora, sombrio asilo de in­ fâmia, horrível antro da morte, difamadora confidente da vio­ lação e da perfídia silenciosa! Odiosa noite de brumas tenebrosas — pois és cúmplice de minha irreparável falta — , reúne tuas trevas para sair ao en­ contro da aurora e lutar contra o ordenado curso das horas! E se permites que o sol ascenda a sua altura ordinária, antes que se ponha, circunda sua dourada cerviz de nuvens envene­ nadas. Corrompe a aura matinal com infectos vapores; envenena com suas exalações daninhas a atmosfera de pureza, o supremo esplendor do dia, antes que Febo chegue à penosa cúspide meridiana; e possam tuas densas brumas marchar tão compactas que, afogado o sol em suas massas fumosas, ponha-se ao meio-dia e gere uma noite sem fim.

EXISTÊNCIA Ser ou não ser, eis o problema. Qual é a mais digna ação da alma: sofrer os agravos, os embates da sorte adversa, ou armar-se contra um mar de infortúnios, enfrentá-los e nêles acabar? Morrer, dormir, nada mais. Pensar que um sono acaba com as angústias do espírito e as mil torturas inevitá­ veis que são herança da Humanidade, é solução que se deve anelar com delírio. Morrer, dormir, dormir!, talvez sonhar! A h ! eis aqui o escolho. O meditar que sonos poderão sobre­ vir-nos neste letargo da morte, quando hajamos abandonado êste buliçoso mundo, deve necessàriamente deter-nos. Esta é a consideração que faz nossa infelicidade tão grande. Quem, se não sofresse o castigo e o escárnio do tempo, o jugo do

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

opressor, os ultrajes do soberbo, as agonias de um amor des­ prezado', a lentidão da lei, a insolência do poder e as afrontas que o mérito paciente recebe do homem indigno, quando pode por si mesmo conquistar seu repouso com um simples punhal? Quem suportaria semelhantes opressões, suando e gemendo sob o pêso de uma vida intolerável, se o receio de que há algo mais além da morte, região ignota, de cujos limites nenhum cami­ nhante volta, não conturbasse o espírito e nos fizesse antes so­ frer os males conhecidos que voar após outros que ignoramos? Esta previsão nos faz a todos covardes; por efeito dela, o ful­ gor natural da ousadia se transmuta por completo no pálido reflexo da dúvida e as emprêsas de maior importância e vigor, mudando de rumo pela própria causa, perdem seu caráter ativo.

NOBRE E V U LG A R

"O homem nobre é exigente consigo mesmo, o homem vulgar é exigente para com os outros. Não se reconhece o nobre pelas minúcias, mas pode tor­ nar-se digno de grandes coisas. O vulgar não pode fazer-se digno de coisas grandes, mas pode ser reconhecido nas minúcias. O nobre é tranqüilo e sereno, o vulgar sempre está agitado e cheio de preocupações. O nobre sente um sagrado temor da vontade de Deus, dos grandes homens e das palavras dos santos dos tempos passa­ dos. O vulgar não conhece a vontade de Deus, nem a teme, é atrevido para com os grandes homens e ri-se das palavras dos santos. O nobre ama os valores intrínsecos, o vulgar quer os ter­ renos. O nobre respeita a lei, o vulgar deseja a proteção. N o infortúnio, o nobre permanece firme. gar cai na desgraça, torna-se obstinado.

Quando o vul­

Os erros dos nobres são como os eclipses do sol e da lua: quando o nobre comete um êriro, todo o mundo vê. Se corrige, os homens tornam a levantar o olhar para êle. Os erros dos vulgares certamente têm algum adorno” . Das Conversações de Confúcio *

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"P o r que sou coxo? V il escravo! Acusas a Providência por um pé disforme. Que é mais racional, que a Providência esteja sujeita ao teu pé ou que êste à Providência?” Epicteto *

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*

"H á talvez tantas verdades entre os homens quantos erros, tantas boas qualidades quantas más, tantos prazeres quantas penas: mas nós gostamos de fiscalizar a natureza humana,

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ANTOLOGIA DA LITERATURA M UND IAL

para tentarmos ir além da nossa espécie e enriquecermo-nos com a consideração que porfiamos por usurpar-lhe. Tão presunçosos somos que julgamos poder separar nosso interêsse pessoal do da humanidade e maldizer o gênero huma­ no sem nos comprometer. Esta ridícula vaidade encheu os li­ vros dos filósofos de invectivas contra a natureza. O homem acha-se agora em desfavor entre todos os que pensam e cada qual o onera com mais vícios. É de crer, porém, que se reerga em breve e readquira todas as virtudes, porque a filosofia tem suas modas como as roupas, a música, a arquitetura, etc.” . Vauvemargues #

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"N o problema da imortalidade da alma, tudo depende do que se segue: se se pode afirmar que existiu sempre; pois só se existiu sempre, existirá sempre, mas se teve princípio, deve ter também fim. Pode contestar-se afirmativamente? Não nasce a alma, não se desenvolve, como o corpo; não cresce o sentimento da força? Há nela um fio que vai além de seu nascimento, um vínculo espiritual que a una a Deus e à natu­ reza de um modo reconhecível a ela mesma? E assim como suas raízes não chegam alem do nascimento, tampouco seus fios espirituais chegam além da morte, e o nascimento e a pró­ pria morte a ela se subtraem, como estados que não pertencem a ela somente. Mas embora tenha existido sempre, que ruína para o dogma cristão! Pensar que toda a eternidade vai de­ pender da brevíssima vida terrena!” Hebbel $

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DIVINDADE

DO HOMEM

"Todo homem digno dêste nome é tanto no passado como no futuro algo único, que não pode repetir-se, pessoal, e, neste sentido, divino. Esta personalidade é precisamente o que se ajunta aos elementos químicos nos instantes da concepção. A natureza a ignora, a repele e parece temê-la; e esforça-se por destruí-la pela morte, mas talvez em vão, pois se encontra acima da na­ tureza e depende de uma outra natureza superior. Os falsos homens — a "discórdia” semeada pelo diabo no fermento de Deus — nascem do pai e da mãe somente; os homens verda­ deiros nascem do pai, da mãe e de mais alguém; a carne vem da carne mas a alma de onde vem? No céu da meia-noite um anjo voava; Levava em seus braços uma jovem alma, Destinada a êste mundo de tristeza e de lágrimas. . . Não sabemos o que seja um "an jo” , mas sabemos melhor o que é o oxigênio, o hidrogênio, o enxofre?” D im itry Merejkovsky * * * "N ão existe o bom quando não existe o seu contrário. A circunstância de que o mal se encontra paralelamente ao bem, assegura ao homem o seu triunfo: a reprovação do mal e a opção pelo bem. Somente então existe o bem, de verdade. Cada homem é chamado a levar o mundo para a perfeição mediante uma (boa) o b ra ... Mas, há homens que se encerram em seus aposentos para aprender a rezar, evitando falar com outros. Êsses homens são maus, porque existem somente para si próprios. Se man­ tivessem contacto com o povo, êste aprenderia dêles o bem” . Da sabedoria dos Jasidim * * * "O sol não espera que lhe supliquem para derramar luz e calor. Imita-o e faze todo o bem que possas, sem esperar que te implorem” . Epicteto

O CÉU E A

TERRA

"N ão há maiores originais do que o céu e a te r r a ... O céu produz coisas divinas: o santo e o sábio tomam-nas por modêlo. O céu e a terra modificam-se e modelam-se: o santo e o sábio os imitam. No céu estão suspensas as imagens que revelam felicida­ des e desgraças: o santo e o sábio as reproduzem. Aquêle que conhece o sentido das transformações e das formações, conhece o modo de proceder dos deuses. Somente por meio da profundidade se pode penetrar tôdas as vontades na terra. Somente por meio dos germes se pode correr sem pressa e chegar à meta sem caminhar. O que conhece o divino e compreende as transformações supera sua espécie, elevando-a ao maravilhoso. A o assemelhar-se o homem assim ao céu e à terra, não cai em contradição com êles: sua sabedoria abarca tôdas as coisas, e seu sentido ordena o mundo inteiro” . I King, ,rO livro das transformações99 (Chinês, entre o terceiro e o primeiro milênio A.C.) *

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"Os favores são humilhantes como as vergonhas; as honrarias são deprimentes como o corpo. — Que significa: "Os favores são humilhantes como as vergonhas?” Favor indica subordinação; solicitá-lo, humilhação; perdê-lo, vergonha. — Que significa: "A s honrarias são deprimentes como o corpo?” O corpo é o substrato de tôdas as depressões. Na ausên­ cia do corpo, sobre que pesariam as depressões? Portanto: Aquêle que se mantém à digna distância, tan­ to do Corpo como da Sociedade, guiar-se-á com justiça; Aquêle que se inclina em direção à sociedade como em direção ao cor­ po guiar-se-á lealmente” . Lau Tseu

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO MUNDIAL

221

"Mas recordemos que a unanimidade de pareceres em coisas que não se apresentaram ainda como problemáticas tan­ to pode demonstrar a generalidade de uma verdade como a generalidade de um êrro. Em todo o caso, havia aqui uma obscuridade, e o exato poderia inferir-se da não coincidência de todos os pensadores” . Spengler * * * "Deus não é uma invenção, é uma descoberta. Nesta ques­ tão, que se coloca, cedo ou tarde, de maneira pessoal inevitável e aguda, toda a diferença está entre a procura do ateu e a vo­ cação do místico” . Louis Massignon

DO CONHECIM ENTO

DO HOMEM E

DA NATUREZA

" A forma corporal que, protetora, abraça o espiritual, de forma que ambos revelam seu peculiar modo de agir, isso é o que se chama natureza. Conhecer a ação da natureza e reconhecer a relação que com ela^deve guardar a atividade humana: êste é o objeto. O conhecimento da atividade humana alcança-se reconhecendo o cognoscível e desfrutando, agradecido, do inacessível ao conhe­ cimento. Cumprir os anos de vida e não morrer prematura­ mente na metade do caminho é a plenitude do conhecimento. Mas, aqui se apresenta uma dificuldade. O reconheci­ mento depende de algo, cuja comprovação está fora do seu alcance. Mas, por ser incerto aquilo de que depende, como posso saber se o que chamo humano não será na realidade a natureza? É necessário o homem verdadeiro para que se possa con­ seguir o conhecimento verdadeiro. Aquêle, no qual o natural e o humano se equilibram, êsse é o homem verdadeiro” . " Deschuang D si” O livro verdadeiro do país das flores * * "N ão temas; crê!” Jesus * H * * "Quando o homem é julgado digno de perceber os cantos das ervas, a maneira como a Deus diz seu canto cada erva sem vontade e os pensamentos alheios, quão formoso é escutar êsse canto! Por isso é bom servir a Deus no meio delas, andando solitário pelo campo entre as plantas da terra, deixando fluir a palavra ante Deus em verdade. . . Todo o falar do campo penetra então em ti e aumenta teu vigor, em cada aspiração absorves os ares do paraíso, e quando voltares à tua casa, o mundo se renovou ante teus olhos” . Das Palavras do Rabi Najman de Brazlav *

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ANTOLOGIA DO PENSAMENTO MUNDIAL

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"N a história da Humanidade não há somente doze apósto­ los; contamos e contaremos sempre tantos quantos os corações que tenham ficado jovens, fortes e amantes” . Guyau

"Uma canção ao longe. . . É um mendigo. . . Se êsse ve­ lho que nunca possuiu nada, canta, por que te lamentas, tu, que tens tão belas recordações?.. . ” TvrFu (715)

CEER

"Olhar para cima nos eleva. Seja quem fô r a pessoa hon­ rada e admirada, a honrar e admirar alguém, sèriamente, em­ bora equivocadamente, favorece o progresso interior. O que importa, realmente, não é o em que consista o objeto venerado, mas o que significa para quem o venera. Daí os idealistas ina­ cessíveis — inacessíveis não somente por serem transcendentes, mas porque seus veículos humanos estão longe ou mortos — revelam-se em suma como os mais eficazes; seu efeito não pode sofrer menoscabo por falhas empíricas do modêlo. Por esta razão torna-se indiferente, no religioso, que tal ou qual deus-homem haja vivido ou não. Em sentido religioso,crer não significa ter porverdadeiro, mas aspirar arealizar-se a si mesmo, por concentração das energias espirituais em um ideal pressuposto” . Keyserling *

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"O poeta deve amar a sua pátria como homem e como ci­ dadão; mas a pátria de sua inspiração e de sua obra poética é o bem, o nobre, o belo, e não está limitada a nenhuma cidade e a nenhum país e ê^e a toma e a elabora onde quer que a en­ contre. É semelhante à águia que voa sobre a terra estendendo o olhar pelo amplo horizonte... ” Goethe *

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"Todos dependem do destino, no prazer e na dor, no nas­ cer e no morrer. Quer eu tenha amigos, quer ou não quer tenha adversários, quer aliados; quer seja sábio quer estulto, é o destino que dá a sorte. Não bastam os amigos para tornar-nos felizes, nem os ini­ migos para tornar-nos desditosos. A sabedoria não é suficiente para fazer rico, nem tampouco a riqueza para fazer feliz. A inteligência não basta para conseguir a riqueza nem é a tolice obstáculo para o êxito.

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO MUNDIAL

225

Para o inteligente e para o valente, para o iludido e para o covarde, para o torpe e para o esperto, para o fraco e até para o forte, a sorte é um presente do céu para quem a recebe” . "D o Makshadharma” do Mahabharata "Nada revela melhor do que os olhos o que há dentro do homem. Os olhos não podem ocultar nada mau. Quando dentro do peito de um homem tudo está como deve, os olhos brilham. Quando não está tudo como deve dentro do peito, os olhos ca­ recem de brilho. Escuta o que fala e olha nos olhos. . . Como haveria de escapar-te um homem!” * Das "Conversações” de Mong Dei *

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DO LIVRO HIA LUN

"U m dia perguntaram a Kung-Tseu, o que era a morte. Êle respondeu: "Se ainda não sabemos o que seja a vida, como poderemos conhecer o que seja a morte?” E disse ainda estas palavras: haver atingido. . .

"Ultrapassar é como não

Olhai todos os homens que habitam os quatro mares (mun­ do) como vossos próprios irmãos! Não escuteis as calúnias que se insinuam quase sem ruído como a água que se escoa mansamente, nem as acusações da­ queles que estão prontos a cortar um pouco de sua carne para afirmá-las. . . ” * $ $ "Se elevarmos os homens justos e retos e repudiarmos os perversos, poderemos, procedendo assim, tornar os perversos justos e retos” . "Perdoai as pequenas faltas. . . ” "O homem superior, quando se encontra numa alta posi­ ção, não mostra nem fausto nem orgulho; o homem vulgar mos­ tra fausto e orgulho até sem estar numa alta posição” . "É difícil ser-se pobre e não mostrar nenhum ressentimen­ to; é fácil ser-se rico e disso não se orgulhar” . "Os sábios fogem do mundo. . . ” "Sêde severos para convosco mesmos e indulgentes para com os outros, então afastareis de vós os ressentimentos” . "A s palavras artificiosas pervertem até a própria virtu­ de; uma impaciência caprichosa arruina os maiores projetos” . "Quando a multidão detesta alguém, deveis examinar aten­ tamente antes de julgar; quando a multidão se apaixona por alguém, deveis examinar atentamente antes de julgar” . * Sfc *

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO MUNDIAL

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"Se não estiver em teu poder fazer o bem, ensina pelo menos aos homens o caminho do bem, pois o provérbio diz: "Sinaleiros do bem são aqueles que o praticam” . Quer dizer: o que aconselha a outro o bem é igual ao que pratica o bem. Sabe: o que pratica o bem e o que assinala o caminho do bem, são dois irmãos, cujos laços fraternais a humanidade não rom­ perá. O que fêz o bem afiança tanto o bem daquele que lhe mostrou o caminho, que de nenhum modo poderá ser destruído” . Do " L ivro da Sabedoria” de Kabus (Persa, século I I D.C.) "Uma ligeira tintura de filosofia pode encaminhar à ne­ gação do Supremo Ser; mas um saber mais sólido conduz o homem a Deus” . Bacon *

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"A s queixas que os homens proferem contra o mau emprêgo do tempo já vivido, nem sempre os leva a empregar melhor os anos de vida que lhes falta viver” . La Bruyère ♦ * *

DAS

CIÊNCIAS

"A s ciências têm duas extremidades que se tocam: a pri­ meira é a pura ignorância natural em que se encontram os homens quando nascem; a outra extremidade é onde chegam as grandes almas, que, havendo percorrido quanto os homens podem saber, acham por fim que tudo ignoram, e tornam à ignorância de onde partiram; mas é uma ignorância douta que se conhece. Dêstes, os que saíram da ignorância natural, e não conseguiram chegar à outra, alguma coisa sabem superficial­ mente desta remediável ciência, e julgam-se sábios. Êstes desarrajam o mundo, e julgam pior que todos os outros. A plebe e os astutos regulam freqüentemente o anda­ mento do mundo: os outros desprezam-no e são desprezados” . Pascal sfc

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"Se amas o Criador pelos favores que dêle esperas, és se­ melhante ao cão que agita a cauda e lambe as mãos do dono, na esperança de obter um petisco. Lembrem-se que o amor é o filho da ciência. Quanto mais profunda é a ciência, mais entusiasta é o amor. E não está dito no Evangelho: Sêde prudentes como as serpentes e simples como as pombas?” Merejkovsky *

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"H á apenas uma classe da sociedade que pensa mais no dinheiro que o rico: é a pobre. O pobre não pensa noutra coisa. Esta é a desgraça de ser pobre” . Oscar Wüde $

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"O estado do budista é feliz, pois nada deseja mais arden­ temente do que esquivar-se da existência determinada. Mas o do europeu moderno é trágico, porque o devora o desejo de

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO MUNDIAL

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ser e concebe como impotência o fato de não poder realizar-se. A negação absoluta do ser — salvação do niilista buda — é impossível para o europeu vital. Assim, a mesma circunstân­ cia que no Ceilão afiançou a crença na doutrina de Buda, con­ dicionou, entre nós, o êxito de Nietzsche. A teoria nietzscheana do super-homem não é uma expressão de grandeza, mas de anelo de grandeza, a mais comovedora que jamais se produziu” . Keyserling *

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PERSONALIDADE

" A verdadeira personalidade de um homem consiste, não no que tem, mas no que é. A verdadeira personalidade do homem, quando possamos vê-la, será algo maravilhoso. Crescerá natural e simplesmente como crescem a flor e a árvore. Nela não haverá dissonância. Jamais argüirá nem disputará. Não se empenhará em demons­ trar nada. Saberá tudo; e, contudo, não se esforçará pela sa­ bedoria. Seu valor não será estimado por coisas materiais. Não possuirá nada e, contudo, possuirá tudo, e qualquer coisa que lhe tirarem, acabará tendo-a; a tal ponto será rica. Não se intrometerá nunca na existência alheia, nem exigirá que os outros sejam como êle. Amá-los-á preciosamente por serem diferentes dêle. E, contudo, apesar de não se intrometer em suas vidas, ajudá-los-á a todos, como uma coisa bela nos ajuda­ rá por ser o que é. Sim, a personalidade do homem será ma­ ravilhosa. Tão maravilhosa como a personalidade da criança. Jesus disse ao homem: tens uma personalidade maravi­ lhosa. Desenvolve-a. Sê tu mesmo. Não imagines que tua perfeição consiste em acumular ou possuir coisas exteriores. Tua perfeição está dentro de ti. Se tu pudesses realizá-la, não precisarias ser rico. As riquezas comuns podem ser roubadas ao homem; as riquezas verdadeiras, nunca. No tesouro da tua alma há uma infinidade de coisas preciosas que não te podem ser arrebatadas. Trata de conformar tua vida de tal modo que as coisas externas não possam prejudicar-te, e trata também de libertar-te da propriedade privada. Esta implica sórdidas preocupações, trabalho sem fim, contínuo mal. A propriedade privada faz-nos tropeçar com o individualismo a cada passo. Quando Jesus fala dos pobres quer simplesmente dizer personalidade; da mesma forma, quando fa 7a do rico, suben­ tende sempre os homens que não desenvolveram sua persona­ lidade. "Conhece-te a ti mesmo” , estava escrito no frontispício do templo antigo. Sobre a fronte do novo mundo: "Sê tu mesmo” .

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO MUNDIAL

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estará escrito. E a mensagem de Cristo ao homem é simples­ mente: "Sê tu mesmo” . Êste o segrêdo de Cristo” . Oscar Wüde ♦

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O despeito de sentir-se inferiorizado ante a superioridade alheia é que torna o indivíduo invejoso. Dante Veóléci

TEMPO E ETERNIDADE

"Junto com o Universo, criou Deus uma imagem da eter­ nidade baseada no Um e que se transforma segundo a lei do número, imagem a que nós, os homens, demos o nome de tem­ po. Por que então deu vida no seu laboratório criador, junto com o edifício celestial, aos dias e às noites, às luas e aos anos que não haviam existido antes da criação do céu? Tudo isso — dias e noites, luas e anos — são partes do tempo. O "era ” e "será” também são formas derivadas do tempo que nós, os homens, equivocadamente, e sem nada suspeitar, relacionamos com o ser eterno. Porque, referindo-nos a êste, dizemos que "foi, é e será” , quando na realidade só se pode dizer dêle que " é ” . Ao contrário, os têrmos " f o i” e "será” somente se devem aplicar à criação que muda com o tempo, pois ambas as expressões significam algo perene. Mas ao ser que se mantém eterno e imperecivelmente igual, não lhe con­ vém chegar com o tempo a mais velho ou mais jovem, nem chegar a ser ontem ou hoje, nem chegar a ser no futuro. Portanto, de maneira geral, nada tem o eterno que ver com o que nos toca, a nós que estamos sujeitos à percepção terrena em conseqüência do devir. Tudo isso são formas cria­ das do tempo, o qual representa uma máscara da eternidade e se move no círculo segundo a lei do número. . . Assim, pois, o tempo do homem surgiu juntamente com o Universo a fim de que, criados juntamente, sejam ambos des­ truídos juntos, se é que hão de perecer. Certamente, o tempo formou-se segundo o modêlo do eterno para chegar a parecer-se com êle o mais possível. Porque o modêlo " é ” através de toda a eternidade, enquanto a cópia se forma sempre, sendo e tornando-se a ser a todo momento. Graças a êsse plano e de­ sígnio de Deus, produz-se a criação do tempo. Para que se fizesse o tempo do homem, tiveram que se formar o sol, a lua e outros cinco astros — com o apoio de planêtas — para a diferenciação e conservação das medidas do tempo.” Platão

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO MUNDIAL

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"O homem é o mais nobre de todos os sêres da Terra. E, contudo, há coisas que por sua natureza são muito mais divi­ nas que o homem. É o que demonstram, com singular clareza, os corpos celestes de que se compõe o cosmos. (Porque, de cer­ to modo, os corpos celestes são imagens superiores e mais pu­ ras do que a natureza humana, constituída de corpo e alma). Concomitantemente, há de se compreender que digamos deva a sabedoria do homem consistir, em primeiro lugar, no conhe­ cimento e reconhecimento das coisas, que por sua natureza, são veneráveis” . Aristóteles, " Ética a Nicômaco” *

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PENSAMENTOS ESCOLHIDOS

O verdadeiro valor consiste em enfrentarmos todos os pe­ rigos e em desprezá-los, quando se tornam inevitáveis. Quem não quer prevê-los não tem bastante valor para lhes suportar tranqüilamente a presença. Quem os prevê, evita os que pode evitar, e enfrenta os outros sem comover-se. Fénelon *

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Se vierem dizer-te que alguém falou mal de ti, não te pre­ ocupes com negar o que foi dito; responde somente que o in­ divíduo não conhece os demais vícios teus, e que, se conhecesse, muito pior houvera falado. Epicteto *

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E quisera morrer, uma tarde, sob um céu rosado, mur­ murando palavras formosas por uma formosa causa! ♦

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Edmond Rostand

Simples são as palavras da verdade. Ésquilo *



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Para compreendermos que o céu é azul em toda parte, não nos é necessário percorrer o mundo. Goethe # ♦ * Chamamos perigosos aos que possuem espírito contrário ao nosso, e imorais aos que não professam a nossa moral. Anatole France *

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Costumava Pirro dizer: "N ão há diferença entre a vida e a morte” . E ao lhe perguntar alguém: "P o r que não te matas, nesse caso?” , respondeu: "Exatamente porque não há diferença” . Epicteto

ANTOLOGIA DO PENSAMENTO MUNDIAL

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Existe apenas uma religião verdadeira; mas pode haver várias espécies de fé. Kant *

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Tão habituados estamos a nos disfarçar para os outros que, afinal acabamos por nos disfarçar a nós próprios. La Rochefoueauld ♦

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Houve por bem Páris raptar Helena e houve esta por bem seguir Páris. Se a Menelau houvesse parecido conveniente dispensar uma esposa infiel, que teria sucedido? Teríamos perdido a "Ilíada” e a "Odisséia” . O resto não tem impor­ tância. Epicteto ♦

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A caminho do cemitério, encontraram-se dois amigos: adeus, disse o vivo ao morto; até logo, o morto ao vivo. Anônimo *

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O eco zomba da sua origem para nos provar que êle é que é o original. Rabindranath Tagore * * * Para saber falar é preciso saber escutar. Plutarco

DA MULHER

Há três espécies de mulheres, neste mundo: a mulher que se admira, a mulher que se deseja e a mulher que se ama. A beleza, o espírito, a graça, os dotes da alma e do corpo geram a admiração. Certas formas, certo ar voluptuoso, criam o de­ sejo. O que produz o amor não se sabe; é tudo isto, às vêzes; é mais do que isto, não é nada disto. Não sei o que é; mas sei que se pode admirar uma mulher sem a desejar, que se pode desejar sem a amar. Garret ♦ * * Onde quer que haja uma virgem, há um templo de Deus. Santo Agostinho * * * Que há mais leve que a pena? O pó. Mais leve que o pó? O vento. Mais leve que o vento? A mulher. Mais leve que a mulher? Nada. Epigrama latino da Idade Média * $ $ A mulher está tão perto da criança que, às vêzes, despe­ daça e mata o amor para ver como é feito por dentro. E . Bertarelli * * * No comêço, diz um poeta persa, tomou A lá uma rosa, um lírio, uma pomba, uma serpente, um pouco de mel, uma maçã e um punhado de argila, e, quando olhou para o amálgama. . . viu a mulher. William Sharp * * * Ah, jamais insultes a mulher que caiu! Quem sabe de­ baixo de que pêso lhe sucumbe a pobre alma! V ictor Hugo *

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MORTE

E por falar em morte, que sombrios problemas, só por si, não encerra êsse tremendo fantasma do nada? Para a realidade, o que se pode conceber de mais alto é a vida. Mas, para a vida, o fim necessário é a morte. Como explicar uma coisa em face da outra? Como explicar a morte em face da realidade, quando nesta domina o princípio de que nada se ex­ tingue, nada se acaba? É o mistério dos mistérios. A morte é a cessação da consciência, de todo o afeto, de toda a emoção, de toda a esperança, de todo o conhecimento, de toda a percep­ ção. E não eqüivale isto a dizer a cessação de toda a realida­ de? Está aí, bem se compreende, o problema dos problemas. É a questão do ser ou não ser, de que cogitava Hamlet. Com a morte, desaparece o indivíduo e, com o indiví,duo, desapa­ rece a consciência. É uma negação do particular que, em últi­ ma análise, se resolve em negação do todo, porque, para a cons­ ciência que termina, tudo fica reduzido a nada. A isto, poder-se-á, é certo, responder que embora se extinga a consciência com o indivíduo, todavia, não fica com isso diminuída a exis­ tência, porque o todo permanece sempre o mesmo, impenetrável em seus arcanos, inesgotável em sua fecundidade, revelando sempre novas energias e desdobrando-se sempre em novas mo­ dalidades, agindo incessantemente, e incessantemente produzin­ do novas consciências e novas vidas. Sim, nisto está uma ver­ dade irrecusável. Mas o que temos de mais e de mais poderoso, em nós mesmos, é o sentimento de nossa própria individuali­ dade. E se esta individualidade desaparece com a consciência, fogo-fátuo que se desfaz, luz que brilha um momento e logo se apaga na tempestade do cosmos, neste caso, que valor tem para nós a existência? Que valor tem o todo para uma consciência que deve ter como certa a sua total extinção? Farias Brito * * * Por que muitos santos foram tão perfeitos e contempla­ tivos? É que êles procuraram mortificar-se inteiramente em todos os desejos terrenos e assim puderam, no íntimo de seu coração, unir-se a Deus e atender livremente a si mesmos. Nós,

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

porém, nos ocupamos demasiadamente das próprias paixões e cuidamos com excesso das coisas transitórias. Raro é vencer­ mos sequer um vício perfeitamente; não nos inflamamos no desejo de progredir cada dia, daí a frieza e tibieza em que ficamos. Se estivéssemos perfeitamente mortos a nós mesmos e in­ teriormente desimpedidos, poderíamos criar gosto pelas coisas divinas e algo experimentar das doçuras da celeste contem­ plação. Tomás A . Kempis (Tradução de frei Tomás Borgmeier) *



*

Eis aqui, vos digo, um mistério: todos certamente ressus­ citaremos, mas nem todos seremos mudados. Num momento, num abrir e fechar de olhos, o som da última trombeta soará, os mortos ressuscitarão incorruptíveis; e nós outros seremos mudados. Bíblia, 1.° Coríntios, 51 — 52 * * * Considera êste mundo como se estivesses destinado a viver para sempre, e o mundo vindouro como se devesses morrer amanhã. Avicébron ♦ * * Todo homem de gênio vê o mundo sob um ângulo diferen­ te do dos seus semelhantes, e é nisso que está a sua tragédia. Havélok Ellis * * * De duas uma: ou o mundo é um conjunto de coisas di­ versas, que se complicam ou se dissipam, ou um todo bem unido, ordenado com método, e regido pela Providência. Se a verdade está no primeiro caso, por que hei de querer viver o mais possível no meio de tão grande desordem e confusão? Por que hei de cuidar de outra coisa que não seja mudar-me em terra? Por que hei de perturbar-me? Por mais que faça, serei vítima da dissolução e da separação em partes. Se, porém, a verdade está no segundo caso, devo adorar a Deus, ser constante na virtude e confiar no juiz e guia do mundo. Marco Aurélio *

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ANTOLOGIA DO PENSAMENTO MUNDIAL

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Perguntaram um dia a Confúcio o que era o homem su­ perior. E êle respondeu: "Aquêle que põe imediatamente suas palavras em prática e a seguir fala de conformidade com as suas ações” . E, perguntado sobre o que era a ciência, disse: "É saber que se sabe o que se sabe e saber que se sabe o que não se sabe: eis a verdadeira ciência” . Perguntado sobre a covardia, disse: "Quando se vê uma coisa justa e não se pratica, comete-se uma covardia” . Perguntado sobre o que era moral, disse: "O que não de­ sejo que os homens me façam, desejo igualmente não fazer aos homens” . "Se queres investigar a ti mesmo, olha como procedem os outros. Se queres entender os outros, olha em teu próprio coração” . Schiller *

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"Se, em sua mão direita, Deus tivesse encerrada toda a verdade e, na esquerda, o mero anseio, sempre ativo, da ver­ dade, embora com a possibilidade de equivocar-se sempre e eternamente, e me dissesse: "Escolhe” , cairia com humildade à sua esquerda e lhe diria: "Dá-me, pai! que a verdade pura é só para t i ” . Lessing *

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"Sê atento sobre ti mesmo até em tua própria casa. Cuida de nada fazer, no lugar mais secreto, de que te possas enrubescer” . Do "Tchung-Yung”, livro sagrado chinês * * * "Ser ignorado e desconhecido dos homens e não se indignar por isso, não é próprio do homem eminentemente virtuoso?” Do "Lu n -Y u n ”, livro sagrado chinês

O SUBLIM E

E A

B E LE Z A

"Que é o sublime? Parece que ainda ninguém o definiu. É uma figura? Nasce das figuras de estilo ou pelo menos de algumas figuras? O sublime aparece em todo o gênero de esti­ los, ou existe apenas nos assuntos elevados? Será possível ver brilhar na écloga outra coisa que não seja um estilo belo e na­ tural, e, nas cartas e na conversa familiares, mais do que uma grande delicadeza? Ou não serão o natural e delicado o su­ blime das obras cuja perfeição realizam? Que é o sublime? Onde está o sublime? Os sinônimos são formas variadas ou frases diferentes, que têm o mesmo significado. A antítese é a .oposição de duas verdades que se esclarecem mutuamente. A metáfora ou a comparação vai buscar de um assunto estranho a imagem pura e natural de uma verdade. A hipérbole ultrapassa a verdade, levando, assim, o espírito a conhecê-la melhor. O sublime re­ presenta só a verdade, mas em estilo elevado: descreve-a com­ pleta, nas suas causas e nos seus efeitos; é a expressão ou ima­ gem mais digna dessa mesma verdade. Os espíritos medíocres não encontram a expressão única, e servem-se dos sinônimos. Os novos, deslumbrados pelo bri­ lho da antítese, empregam-na. Os espíritos meticulosos e que gostam de formar imagens límpidas, caem naturalmente na metáfora. Os espíritos vivos, ardentes, aos quais uma vasta faculdade de imaginar transporta além das regras e da per­ feição, não podem saciar-se com a hipérbole. Quanto ao su­ blime, até entre os grandes gênios, só os mais pobres podem dar-lhe vida” . La Bruyère ♦í . ♦



"O belo é, essencialmente, o espiritual que se exterioriza materialmente e se apresenta ao ser material” . Hegel #

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ANTOLOGIA DO PENSAMENTO MUNDIAL

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"O belo, em arte, é sempre verdadeiro: mas nem sempre o verdadeiro é belo” . E m s t Rietschel ♦

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H5

"Para mim a beleza é a maravilha das maravilhas. Só os superficiais não julgam pelas aparências. O verdadeiro mis­ tério do mundo é o visível, não o invisível. A beleza tem tantos sentidos como modalidades tem o ho­ mem. É o símbolo dos símbolos. Revela tudo, porque não expressa nada. A beleza é uma forma do gênio; mais alta, na verdade, que o gênio, pois não precisa de explicação. É uma das gran­ des realidades do mundo, como o sol, ou a primavera, ou o reflexo na água escura dessa concha de prata que chamamos lua. Não pode ser posta em dúvida; tem seu direito divino de soberania. A beleza é a única coisa que o tempo não pode destruir. As filosofias derruem-se como areia; as crenças passam uma após outra; mas o que é belo é um gozo para tôdas as estações, uma posse para a eternidade” . Oscar Wilde *

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"O belo é superior ao sublime, por ser permanente e não saciar, ao passo que o sublime é relativo, efêmero e violento” . Am iel ♦ * * "Verdadeiramente belo só é aquilo que para nada presta. O que é útil é feio, pois é a expressão de uma necessida­ de, e as necessidades humanas são ignóbeis e antipáticas como a nossa pobre e instável saúde” . ♦

*

*

Théophile Gautier

"A té os mais duros corações se comovem perante a beleza” . *



*

Remy de Gourmont

" A beleza é o símbolo dos símbolos. A beleza a tudo reve­ la, porque a nada exprime. Quando se nos apresenta, apresenta-nos toda a esplêndida diversidade do mundo” . Oscar Wilde

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

"O pior é que a beleza é tão misteriosa quão terrível, uma luta entre Deus e o demônio, e o campo de batalha é coração do homem” . Dostoievsky *

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*

"Que estranha ilusão supor que o belo é bom !” Tolstoi

A

PO R T A D A R E V E LAÇ ÃO

"O sentido que se pode idear não é o sentido eterno. O que se pode pronunciar não é o nome eterno. Além do nome está a origem do mundo; aquém do nomeável está o nascimen­ to dos sêres. Por isso a aspiração ao eterno transcendente leva à con­ templação das forças; a aspiração ao eterno terreno, à contem­ plação do espacial. Ambas as coisas têm uma mesma origem e somente nomes diferentes. Essa unidade é o grande mistério. Mas mistério ainda, mais profundo que o mistério é a porta da revelação de todas as forças. O céu alcançou o um e é pouco; a terra alcançou o um, e está firme. Os espíritos alcançaram o um, e obram; a profundidade alcançou o um, e cumpre-se. Todos os sêres alcançaram o um, e vivem ” . "Lau, Tseu,” O livro do caminho e da vida (Chinês, século V I A.C.) * * * "Ousarei dizer que um verme que ama sua terra é mais divino que um deus sem amor entre seus mundos” . Robert Browning t ♦ ♦ " A força de caráter manifesta-se na conservação do justo meio, e a tendência ao justo meio forma parte essencial dela. O poder do mal tem múltiplas formas, porque o mal é da natureza do infinito, segundo já disseram gràficamente os pitagóricos; o bem, ao contrário, é da natureza do limitado. O proceder bem é uniforme. Por isso, aquêle é fácil; êste, difícil. Porque é fácil errar o alvo, mas difícil acertar nêle. Por essa razão, também o excesso e a falta são próprios da debilidade de caráter, enquan­

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

to a observância do justo meio é próprio da força de caráter. Porque os nobres são simples: os vulgares, de índole múltipla” .

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Aristóteles, " Ética a Nicômaco” (Grego, século IV A.C.) * *

"N ão há repouso para o homem que encara com inquie­ tação o futuro. Aguardando o futuro, perde o presente de que poderia gozar. O sentimento de haver perdido e o temor de perder são dois estados igualmente dolorosos para a alma” . Sêneca

A L E I DO G RAND E ESTUDO

" A lei do grande estudo, ou a filosofia prática, consiste em desenvolver e repor a luz e o princípio luminoso da razão que recebemos do céu, em renovar os homens e colocar seu des­ tino definitivo na perfeição, ou no soberano bem. De início, é necessário conhecer o fim ao qual se deve tender, ou o seu destino definitivo, e tomar depois uma de­ terminação; tomada a determinação, ter-se-á, em seguida, o espírito tranqüilo e calmo; tranqüilo e calmo o espírito, gozar-se-á a seguir dêsse repouso inalterável que nada pode tur­ var; atingido o gozo dêsse repouso inalterável e que nada pode turvar, poder-se-á, então, meditar e formar um juízo sobre a essência das coisas; meditado e formado um juízo sobre a essência das coisas, atingir-se-á o estado de aperfeiçoamento desejado. Os sêres da natureza têm uma causa e um efeito; as ações humanas têm um princípio e conseqüências: conhecer as causas e os efeitos, os princípios e as conseqüências consiste em apro­ ximar-se bem perto do método racional com o qual se atinge a perfeição. Os antigos príncipes, que desejavam desenvolver e dar aos seus Estados o princípio luminoso da razão que recebemos do céu, para bem governar seus reinos, interessavam-se primei­ ramente em dar uma ordem às suas famílias; aquêles que de­ sejavam dar boa ordem às suas famílias, interessavam-se em corrigir a si mesmos; aquêles que desejavam corrigir a si mes­ mos, interessavam-se em dar retidão às suas almas; aquêles que desejavam dar retidão às suas almas, interessavam-se em tor­ nar sinceras e puras as suas intenções; os que desejlavam tor­ nar sinceras e puras as suas intenções, interessavam-se também em aperfeiçoar o mais possível os seus conhecimentos morais; aperfeiçoar, perfeccionar o mais possível os seus conhecimen­ tos morais consiste em penetrar e aprofundar os princípios das ações. Penetrados e aprofundados os princípios das ações, atin­ gem êles os conhecimentos morais; penetrados e aprofundados

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

os conhecimentos morais atingem o último grau de perfeição; atingindo os conhecimentos morais o seu último grau de per­ feição, as intenções tornam-se puras e sinceras; puras e sin­ ceras as intenções, a alma penetra em seguida na probidade e na retidão; tendo a alma penetrado na probidade e na reti­ dão, torna-se a pessoa melhor; tornando-se a pessoa melhor, a família é bem dirigida; sendo a família bem dirigida, o reino é então bem governado; sendo o reino bem governado, o mundo goza de paz e de harmonia. Desde o homem mais elevado em dignidade até o mais hu­ milde e mais obscuro, um dever igual para todos: corrigir e melhorar a sua pessoa; o aperfeiçoamento de si mesmo é a base fundamental de todo progresso e de todo desenvolvimento moral” . (" T a H io” : O livro do Grande Estudo)

O FILÓSOFO

"O filósofo emprega a vida a observar os homens, e cansa o espírito em reconhecer-lhes os defeitos e ridículos; se em seguida exprime o seu pensar é menos por vaidade de autor, do que para revelar a verdade que um dia descobriu. Alguns leitores julgam, no entanto, que lhe pagam largamente, se dis­ serem com pedantismo que leram o seu livro, e que acharam interessante; mas o filósofo rejeita os elogios, que o seu tra­ balho e os seus estudos não buscaram. Visa mais alto aos seus projetos, e trabalha para fim mais elevado. Pode aos homens um êxito maior e mais raro do que os elogios e mesmo do que a recompensa: — torná-los melhores” . La Bruyère * * * "Os antigos mestres possuíam a Lógica, a Clarividência e a Intuição. Aquela força da alma permanecia inconsciente. Aquela inconsciência da força interior dava-lhe a aparência de Majestade. Prudentes, como quem atravessa um rio no inver­ no; atentos, como quem teme o que o rodeia. Graves, como ante os estrangeiros; humildes como o gêlo que se derrete; rudes, como a lenha áspera; vastos, como um vale sem fim ; impenetráveis, como a água turva. . . Quem poderia nos nossos dias, com a sua clareza majestosa, iluminar as trevas interiores ? Quem poderia, nos nossos dias, com sua vida majestosa, revivificar a morte interior? Êles traziam o Caminho na alma e foram indivíduos autônomos; como tais, discerniram as perfeições nas suas fraquezas” . Lau Tseu * * * "U m de meus discípulos, que sentia alguma inclinação pela filosofia cínica, perguntou-me um dia que condições devia reunir o filósofo dessa seita e que era preciso fazer para che­ gar a sê-lo. Tudo quanto posso dizer-te, respondi-lhe, é que o homem que enceta tão grande emprêsa, sem ser para ela cha­

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

mado pelos deuses, é tão louco quanto o que entrasse numa casa sem consentimento do dono. — "Cobrir-me-ei de farrapos, ves­ tirei uma túnica; lançar-me-ei por terra, procurarei um bordão e uns alforjes e direi injúrias a todo mundo” . — Se acreditas que nisto consista a filosofia, tens dela um conceito muito er­ rôneo. O filósofo cínico é um homem cheio de pudor, porque nada faz de indecente; é um enviado dos deuses para reformar os homens e para mostrar-lhes, com o próprio exemplo que, po­ bre, nu, sem outro teto que o céu, nem leito que a terra, pode ser feliz, um homem que trata aos viciados, por grandes que sejam, como a escravos; um homem que, maltratado, batido, ama e bendiz aos que lhe batem e maltratam; um homem que os admoesta com bondade e ternura, como seu pai, que olha para todos os outros como se fossem seus filhos, como um irmão e como um ministro dos próprios deuses, um homem, enfim, a quem, apesar de sua humildade, os reis e imperadores não po­ dem olhar sem respeito. Não foi de outro modo que Alexandre olhou para Diógenes” . Epicteto

G O V E R N A N TE S E POVO

"Os soberanos da antigüidade atribuíam os lucros ao povo e todos os prejuízos a si mesmos; atribuíam todo o bem ao povo, e todo êrro a si mesmos. Por isso, toda a vez que acon­ tecia algo inconveniente, retiravam-se para descobrir a falta em si próprios. Hoje em dia, não procedem assim. Dissimulam seus pro­ pósitos, e chamam néscios aos homens que não os adivinham. Aumentam as dificuldades e fazem uma acusação a quem não se atreve a vencê-las. Fazem mais pesada a responsabilidade e castigam quem é incapaz de afrontá-la. Alargam os caminhos, e executam aos que não alcançam a meta. Quando, dêsse modo, a gente chega ao fim de sua ciência e de sua força, dedica-se ao engano. Quando os governantes enganam todos os dias, como espe­ rar que não enganem os súditos? Onde não alcançam as fo r­ ças, recorre-se ao ardil; onde não alcança o saber, recorre-se ao roubo. Todo os atos cometidos pelos ladrões e bandidos, a quem se há de imputar, na realidade?” (Chinês, séculos IV - III A.C.) AFORISM OS DOS SETE SÁBIOS — "Que é o mais sublime? — A divindade, — disse Tales — pois a divindade não nasce nem perece. — Que é o maior? — O espaço. Pois tudo é circundado pelof firmamento estrelado, mas o espaço circunda o firmamento. — Que é mais belo? — O céu estrelado. Pois toda ordem dos sêres é dêle ape­ nas um reflexo.

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ANTOLOGIA DA LITERATURA MUNDIAL

— Que é o mais sábio? — O tempo. Porque êste já descobriu o sábio e êste o irá descobrir ainda. — Que é que de mais comum têm os homens? — A esperança. Porque ela ajuda até aquêles que nada mais possuem de seu. — Que é mais útil? — O aperfeiçoamento do próprio ser. Porque torna tam­ bém as coisas do mundo exterior úteis para um bom emprêgo. — Que é o mais pernicioso? — O poder do mal. Pois, com a sua ajuda, faz o homem perder a maioria das coisas. — Que é o mais poderoso? — A necessidade.

Porque ela somente é invencível.

— Que é o que mais fàcilmente se acomoda? — O que corresponde à natureza. Pois, por outro gozo qualquer, os homens lutam muitas vêzes duramente” . Sete Sábios da Grécia (Séc. V I a V A.C.) A AVAREZA "Para que serve a riqueza do avaro sujo, que usa trajos da má qualidade, sempre come pouco e é mais miserável que um nobre? O dinheiro do avaro, que é causa de mal-estar, penúria, sêde, cegueira e insônia, não é dinheiro, mas uma enfermidade do coração. Para que serve a riqueza que se ambiciona na juventude quando se é capaz de desfrutá-la, mas que não se consegue e constitui, como se diz, uma carga quando a velhice encurva o corpo? Que faz então o ancião com o dinheiro e os prazeres, se por causa da paralisia já não ouve, nem tem mais aprumo, já não sente, nem tem gosto, e se converte em pouco menos que um idiota?

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ANTOLOGIA DO PENSAMENTO MUNDIAL

O dinheiro do rico se converte em reclamo para o estra­ nho, se dêle se fala. Se não se fala dêle, torna-se invisível, e na hora da morte, converte-se em espinha cravada no coração. O dinheiro não satisfaz a avidez interior, como a água salgada não apaga a sêd e... O sofrimento dos avaros, evi­ dentemente, é maior ainda que a penúria do despojado” . Ksemendra, " Vôo da 'presunção” (Hindu, século X I D.C.) ♦ * # "Como pode o falcão voar para o céu, quando traz amar­ rada à asa a pedra da avareza?” Sadi *

*

"A o pródigo e ao avarento falta o mesmo que lhes não falta, porque todos os tesouros da terra são poucos para tor­ nar um a lançá-los no mar, outro a escondê-los na terra” . *

Padre Manuel Bernardes * *

"Expulsa do teu coração a avareza, e dos teus pés serão tirados os grilhões” . J. L. Burckhardt ♦



&

"Vês essas aves famintas que devoram tudo quanto se lhes depara, que se despedaçam umas às outras, que são per­ seguidas por outros que lhes arrancam as prêsas e que, por fim morrem sufocadas umas entre outras? São a imagem dos avarentos” . Sócrates *

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"Quem ama demais a riqueza, a ponto de esquecer os deveres, contanto que consiga lográ-la, em vez da felicidade o que conquista é a desgraça” . *

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Jaime Balmes 9

"O avarento experimenta, simultâneamente, todas as pre­ ocupações do rico e todas as torturas do pobre” . A. Guinon

Êste livro foi composto e impresso para a Livraria e Editora LOGOS Ltda., na Gráfica e Editora M IN O X Ltda., à Rua Mazzini n.° 167, em agosto de 1960 —

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