As Grandes Psicologias Na Antiguidade - Jean Château

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SABER

AS GRANDES

PSICOLOGIAS NA ANTIGUIDADE JEAN CHÂTEAU

DIIDI I P A P n C C

CIIDi

O desenvolvimento das ciências humanas provocou muitas vezes um duplo e nefasto efeito sobre a filosofia e sobre a psi­ cologia. Fechando-se sobre si própria, a filosofia esqueceu um pouco a grande lição que lhe deram Platão e Aristóteles, Kant ou Nietzsche: a análise psicológica é uma das bases mais sólidas para uma construção filosófica. O ponto de vista psicológico deve con­ tar tanto para o filósofo como os pontos de vista lógico, ontológico ou político. Da mesma forma o psicólogo, ao libertar-se da tirania filosófi­ ca, esqueceu demasiadamente que tinha necessidade de recorrer à filosofia, a qual, pelos seus horizontes mais amplos, lhe pode for­ necer hipóteses e noções. Em Platão ou nos Estóicos, tal como em Kant, encontram-se noções fecundas e demasiado esquecidas, ou concepções que permanecem úteis, quer para o experimentador, quer para o observador. Foi para responder a tal situação que Jean Château escreveu esta obra. O autor é professor honorário de Psicologia na Univer­ sidade de Bordéus e é conhecido tanto pelas suas pesquisas no campo da psicologia da criança conio pelas suas obras relativas a Montaigne, Rousseau, Alain e outros.

coleccão SABER

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9

«O saber não ocupa lugar» Verdadeira enciclopédia do saber humano, a Coleccão «Saber» cobre com volumes de pequeno formato e baixo preço( mas de elevado nível cultural, os mais variados temas, desde o Desporto 3 Filosofia, da História à Matemática, da Psicologia &s Ciências iHiras, do Direito & Pedagogia, das Grandes Biografias às Ciên­ cias Aplicadas Professores e alunos encontrarão nela o complemento de infor­ mação que lhes permitirá ir mais longe nos temas aflorados pelos programas escolares Além disso, esta coleccão é particularmente indicada para todos òs que desejam saber mais e não dispõem de tempo para compulsar as volumosas obras de grande erudição A Coleccão «Saber» é uma verdadeira obra de especialistas ao serviço de quantos desejam cultivar-se alargando o horizonte dos seus conhecimentos VOLUMES PUBLICADOS 1 — História das Técnicas, por Pierre Ducassé. 2 — História do Cinema, por Lo Duca. 3 — A G ra fologia , por Herbert Hertz. 4 — Os Sonhos, por Jean Lhermitte. 5 — As Origens da Burguesia, por Bégine Pernoud. 6 — A Batalha dos Trusts, por Henry Peyret. 1 — História da Literatura Portuguesa, por Antônio José Sa­ raiva. 8 — Do Âtomo à Estrela, por Pierre Rousseau. 9 — História do Teatro, por Robert Pignarre. 10 — As Grandes Correntes da Filosofia, por Pierre Ducassé. 11 — Os Regimes Alimentares, por P. Chêne. 12 — A Gênese da Humanidade, por C. Arambourg. 13 — As Etapas da Geografia, por René Clozier. 14 — História da Velocidade, por Pierre Rousseau. 15 — A Polida Cientifica, por Léon Lerich. 16 — As Grandes Doutrinas Econômicas, por Arthur Taylor. 17 — Pasteur e os Micróbios, por Albert Delauney.

18 — O Ocultismo perante a Ciência, por Mareei Boll. 19 — A Contabilidade, por Jean Fourastié. 20 — A Adolescência, por Maurice Debesse. 21 — Femão Lopes, por Antônio José Saraiva. 22 — A Vontade, por Paul Foulquié. 23 — A Canção Popular Portuguesa, por Fernando Lopes Graça. 24 — A Inteligência, por Gaston Viaud. 25 — A Revolução Francesa, por Paul Nioolle. 26 — A Hereditariedade Humana, por Jean Rostand. 27 — A Arte de Pintar, por Trlitan Kllngaor. 28 — Discursos Parlamentares, por Almeida Garrett. 29 — 0 Origem das Espécies, por Amlle Guyénot. 30 — O Voo no Espaço Cósmico, por A. Sternfeld. 31 — A Inquisição Portuguesa, por Antônio Josê Saraiva. 32 — O Mundo dos Ultra-Bons, por V. Koudriavtsev. 33 — As Lutas Sociais na Roma Antiga, por Leon Bloch. 34 — Albert Einstein, por Leopold Infeld. 35 — O Embrião e a Evolução dos Vertebrados, pot* G. F. Sacarrão. 36 — Iniciação Estética, por João José Cochofel. 37 — Femão Mendes Pinto, por Antônio José Saraiva. 38 — A Radioactividade e a Vida, por G. F. Sacarrão. 39 — As Mãos na Medicina e na Psicologia, por Joseph Ranald. 40 — Os Problemas da Vida Mística, por Roger Bastide. 41 — História da Literatura Italiana, por Paul Arrighi. 42 — História da Música Portuguesa, por João de Freitas Branco. 43 — A Pré-História da Sociedade Européia, por V. Gordon Childe. 44 — A Vida nos Fundos Marinhos, por Roger Dajoz. 45 — A Sexualidade, por Juies Caries. 46 — A Escrita, por Mareei Cohen. 47 — ZJin Mundo Que não Vemos, por Lev Patkov. 48 — Introdução à Arqueologia, por V. Gordon Childe. 49 — A Democracia, por Georges Burdeau. 50 — As Filosofias da Existência, por Jean Wahl. 51 — As Cidades da Idade Média, por Henri Pirenne. 52 — O Balanço, por Carlos Vieira de Carvalho. 53 — Os Oceanos, por J. Rouch. 54 — A Orientação Escolar, por Roger Gal. 55 — Introdução à Sociologia, por Morris Ginsberg. 56 — Os Cromossomas, por M. J. D. White. 57 — A Criança e a Família> por Paul Osterrieth. 58 — A Psicologia Contemporânea, por F.-L. Mueller. 59 — Introdução à História, por Marc Bloch. 60 — A D ia léctica , por Paul Foulquié. 61 — Introdução à Poesia, por Johannes Pfeiffer. 62 — Os Grupos de Pressão, por Jean Meynaud. 63 — O Parto sem Dor, por Robert Merger e Pierre-André Chadeyron. 64 — O Cooperativismo, por Georges Lasserre. 65 — A Formação Moral da Juventude, por Paul Archambault.

66 — A R elaxaçâo, por R . D urand d e B ousingen. 67 — A s Técnicas Audiovisuais no Ensino, por Henri Dieuzeide. 68 — História do Teatro Português, por Luiz Francisco Rebello. 69 — Sociologia da Literatura, por Giovanni Ricciardi. 70 — Sociologia das Relações Sexuais, por André Moralí-Daninos. 71 — História da Pintura, por Luc Benoist. 72 — A s Técnicas Documentais, por Jacques Chaumier. 73 — O Socialismo — Do Renascimento aos Nossos Dias, por Claude W illard. 74 — História da Psiquiatria, por Yves Pélicier. 75 — Pedagogia da Comunicação, por Raymond Bali. 76 — Que & o Feudalismo f, por F . L . Ganshof. 77 — A s Filosofias do Renascimento, por Hélène Védríne. 78 — O Jornalismo, por Philippe Gaillard. 79 — A Medicina Psicossomática, por Paul Chauchard. 80 — A s Hierarquias Sociais — D e 1^50 aos Nossos Dias, por R oland M ousnier. 81 — O Primeiro Homem, por Jules Caries. 82 — Sociedades Animais, Sociedade Humana, por Paul Chau­ chard. 83 — A s Civilizações Antigas do Médio Oriente, por Pierre Amiet. 84 — O Sindicalismo no Mundo, por Georges Lefranc. 85 — A Teoria dos Conjuntos, por Alain Bouvier. 86 — Introdução à Música, por Ottó Károly. 87 — Os Jovens e a Autoridade, por Léon Michaux. 88 — Introdução à Fonética, por A . Rosetti. 89 — O Ateísmo, por Henri Arvon. 90 — A Electrónica, por Régis David. 91 — Técnica da Pintura, por Jean Rudel. 92 — A Revolução Industrial, por T. SHAshton. 93 — A Guerra Revolucionária, por Claude Delmas. 94 — Introdução ao Romantismo, por Henri Peyre. 95 — Iniciação Política — O Homem e o Estado, por Raymond Polin. 96 — A Econometria, por Pierre Maillet. 97 — Os Vulcões e a Deriva dos Continentes, por Haroun Tazieff. 98 — Os Testes Psicotécnicos, por Jean-Marie Faverge. 99 — A Revolução Industrial na Idade Média, por Jean Gimpel. 100 — História da U. R. S. S. — I, por Jean Elleinstein. 101 — História da U. R. S. S. — II, por Jean Elleinstein. 102 — História da U. R . S. S. — III, por Jean Elleinstein. 103 — História da U. R. S. S. — IV, por Jean Elleinstein. 104 — História da Revolução Chinesa — I, por Enrica Colloti Pischel. 105 — História da Revolução Chinesa — II, por Enrica Colloti Pischel. 106 — História da Revolução Chinesa — III, por Enrica Colloti Pischel. 107 — A Psicologia Escolar, por Andréa Jadoulle. 108 — O Método Estatístico na Indústria, por André G. Laurent.

109 — Geologia — Uma Introdução á História da Terra, por H. H . Read. 110 — A s Civilizações Africanas, por Donlse Paulrae. 111 — A Anatomia Humana, por André Doimas. 112 — Psicologia Industrial, por Gilbort Tarrab. 113 — História do Socialismo — I, por Glan Mario Bravo. 114 — História do Socialismo — II, por Glan Mario Bravo. 115 — História do Socialismo — III, por Glan Mario Bravo. 116 — Os Jesuítas, por Alain Guillermou. 117 — O Suicidio, por Pierre Moron. 118 — O Coração e as Suas Doenças, por Paul Chauchurd. 119 — O Renascimento, por Paul Faure. 120 — A Guerra Civil, por Charles Zorgbibe. 121 — Maneira de Pensar o Urbanismo, por Le Corbusier. 122 — História da Grécia Antiga, por Jean Hatzfeld. 123 — História Concisa de Portugal, por José Hermano Saraiva. 124 — Psicoses e Neuroses, por Henri Baruk. 125 — O Mito da Idade Média, por Régine Pernoud. 126 — A Genética, por Janine Beisson. 127 — Os Mecanismos Econômicos, por Henri Culmann. 128 — Sensitometria Fotográfica, por Antônio de Figueiredo Cabral. 129 — Sismos e Vulcões, por Jean-Pierre Rothé. 130 — O Cancro, por Simone Laborde. 131 — O Reumatismo, por Florent Coste. 132 — K eynes e o Keynesianismo, por Pierre Delfaud. 133 — Os Animais Pré-H istóricos, por Henri e Geneviève Termier. 134 — A s Invasões Bárbaras, por Pierre Riché. 135 — A Memória, por César Florès. 136 — O Esgotamento, por Leonid Petrescu. 137 — O «Marketing», por Armand Dayan. 138 — Os Músculos, por Paul Chauchard. 139 — O H ip n otism o, pelo Dr. L . Chertok. 140 — Técnicas de Comunicação — Publicidade, Propaganda, Relações Públicas, por J. Martins Lampreia. 141 — Introdução à Economia, por Eduardo J.Costa Reizinho. 142 — A Puberdade, por Robert e Denise Laplane e Géraud Lasfargues. 143 — A Caracterologia, por Paul Naudon. 144 — A Franco-Maçonaria, por Paul Naudon. 145 — O Trabalho na Idade Média, por Jacques Heers. 146 — Os Eclipses, por Paul Couderc. 147 — O Sionismo, por Claude Franck e Michel Herszlikowicz. 148 — O Islão, por Dominique Sourdel. 149 — A Sensação, por Henri Piéron. 150 — O Cérebro Humano, por Paul Chauchard. 151 — O Serviço de Imprensa nas Relações Públicas, por J. Mar­ tins Lampreia. 152 — O Hinduismo, por Louis Renou. 153 — A Ciência Administrativa, por Jacques Chevallier e Danièle Loschak.

154 — ABC da Relatividade, por Bertrand Russell. 155 — Introdução à Estatística, por Michel Louis Lévy. 156 — A Alta Idade Média Ocidental, por Michel Banniard. 157 — O Estado, por Georges Burdeau. 158 — O ^Management», por Baymond-Alain Thiétart. 159 — Introdução à Semiologia,, por Bernard Toussaint. 160 — Introdução à Pedagogia: Teoria e Prática, por Eduardo J. Costa Reizinho. 161 — As Grandes Psicologias na Antiguidade, por Jean Château.

Série especial: 1 3 4 5 6 7 8 9

SE — As Etapas da Matemática, por Mareei Boll. SE — Electricidade e Electrónica, por Mareei Clicques. SE — Iniciação Lógica, por Vieira de Almeida. SE — Nuno Gonçalves, por Adriano de Gusmão. SE — Brasil, por Maurice Le Lannou. SE — A Matemática dos Jogos (1.® vol.), por M. Kraitchik. SE — Introdução à Bioquímica Comparada, por Ernest Baldwin. SE — Elementos de Estatística Matemática, por Gustavo de Castro. 10 SE — Luís de Camões, por Antônio José Saraiva. 12 SE — Ballet, por Arnold Haskell. 13 S E —-.ás Geometrias, por Lucien Godeaux. 14 SE — A Matemática dos Jogos (2.® vol.), por M. Kraitchik. 15 SE — O Sangue, por Samuel Rapoport. 17 SE — A Televisão — Do Preto à Cor, por André Langevin. 18 SE — Introdução à Pintura, por Mário Dionfsio. 19 SE — O Átomo, por Sir George Thomson. 21 SE — Introdução à Teoria das Probabilidades, por Gustavo de Castro. 23 SE — Shdkespeare, por Peter Alexander. 25 SE — Estatística, por I». H. C. Tippett. 28 SE — O Ensino Programado na Escola, por Jean Guglielmi. 30 SE — A Formação Continua dos Adultos, por Pierre Goguelin.

JEAN CHÂTEAU

AS GRANDES PSICOLOGIAS NA ANTIGUIDADE

1c o l e c c a o ]

SABER PUBLICAÇÕES EUItOPA-AMÉRICA

Titulo original: Les Grandes P sycologies dans 1’Antiquité Tradução de A ntônio Gonçalves Capa: estú dios

P. E . A.

€> Librairie Philosophique J. Vrin, 1978 D ireitos reservados por P ublicações Europa-Am érica, Lda.

Nenhuma parte desta publicação pod e ser re­ produzida ou transm itida p or qualquer form a ou p or qualquer processo , electrón ico, m ecânico ou fotográ fico, incluindo fotocópia , xerocóp ia ou gravação , sem autorização prévia e escrita do ed itor . B xcep tu a-se naturalm ente a transcrição de pequenos tex to s ou passagens para apresen­ tação ou critica do li/oro. E sta excepçã o não d eve de m odo nenhum ser interpretada com o sendo exten siva à transcrição d e tex to s em reco­ lhas antológicas ou sim ilares donde resu lte p re­ ju ízo para o in teresse pela obra. Os transgres­ sores são passíveis de procedim ento judicial

E d itor: Francisco L yon de Castro Edição

n.o 1161/S089

E xecução técn ica: Sociedade A stória, Lda.* L isboa

ÍNDICE Pág.

........................... ..............................................

15

Capítulo I — Platão ........................................................

21

1 — A s idéias, a alma e a pessoa ................... 2 — Os saberes e a experiência ....................... 3 — Elementos e pontos de partida do conhe­ cimento .............................................................. 4 —-O procedimento intelectual e a psicologia da verdade ........................................................ 5 —'O coração ........................................................ 6 — Conclusão ..........................................................

22 31

41 53 64

Capítulo II — Aristóteles ..............................................

68

1 — A s noções da ontologia ............................... 2 — A alma ......... .................................................... 3 — A s faculdades cognitivas ........................... 4 —-Prática e poética ............................................ 5 — Conclusão ..........................................................

69 76 79 83 88

Capítulo m — Os vitalismos antigos .......................

91

A — A Índia ............................................................ B — A medicina grega ........................................ C — O estoicismo ....................................................

91 109 116

Capítulo IV — Epicuro e Lucrécio ...........................

136

Prefácio

1— 2— 3— 4—

O A O A

conhecimento ................................................ alma .............................................................. tempo ............................................................ ciência genética de Lucrécio...................

38

137 141 147 151

Pág. Capítulo V — Santo Agostinho ................................ 1 —'O 2 —>0 3— A 4— O 5— A 6— O

158

método .................................................... conhecimento humano ........................... visão interior........................................... tempo ....................................................... memória e a gêneseda pessoa ........... conhecimento e o verbo ...........................

158 161 163 171 175 178

Bibliografia sumária .................................................

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PREFÃCIO E sta obra é destinada tanta aos filósofos com o aos psicólogos, e isto não por o autor, antes de vira/r psicólogo de laboratório, se ter por m uito tem po deleitado com a história da füosofictí, m as por razões m enos pessoais que de m odo nenhum ê supérfluo explicar. «Cada qual fa z D escartes à sua m edida», dizia Alam , m as a «medida» pode d izer resp eito tan to a d iferen ças en tre os leitores com o a rim eis de com preensão, e sabe-se desde o in ício do àéculo que um personagem h istórico apre­ senta ou tros rostos a historiadores de outras escola s; d e igual m odo, em filosofia b o D escar­ tes ca tólico d e G ilson mão é nada o «filó so fo m ascarado» d e L eroy — ou m elh or: ele é a lter­ nadam ente u/m e ou tro, segundo o m om ento e a ilum inação, e m esm o o s d ois sim ultaneam ente, n este ser d e contradições, «ondulantes e diver­ so s», que é tod o o indivíduo humano. A partir daí, alguns quiseram pronunciar-se pela irumidade de toda a óbjectim dade com o de tod o o valor, não tendo cada verdade ou valor senão um tem po e uma p ersp ectiva : é d eitar fora o betié com a água do banho; há utilidade, na história das idéias e dos hom ens, em considerar que, com o em física , a observação depende do observador, e em proced er com o os rom ancistas

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JEAN CHATBAV

que, dando-nos sobre wm homem os pontos de vista suoessivos da sua m ulher, do seu sócio, da sua am iga, do seu concorrente, esquadrinham m elhor as profundezas do seu herói do que se seguissem uma linha única. A sabedoria con­ siste em considerar sirmdtaneamente todas estas tomadas de vistas parcim s que dão as d iferentes perspectivas, porque é só este conjunto que, sem renegar as perspecftwas^ pode a/proximar-nos de u/mm objectw idade e de valores sólidos. S por isso que qualquer sistem a filosófico ganha em ser abordado de perspectivas e até por filosofias d iferen tes, desde que se não pri­ vilegie antecipadam ente nenhuma perspectiva, nenhuma filosofia . D isto, um Leibniz, um D es­ cartes ou um M arx são-nos exem plos fáceis. Mas tanto quanto wm Platão ou um Ducrécio. Ora a perspectiva, desta vez psicológica, com que contam os na nossa visão dos filósofos anti­ gos é, por outro lado, m ais aprofundada ainda porque tem em m aior consideração a persona­ lidade do autor. Que cada sistem a filosófico reflecte esta personalidade, que ele se explica em grande parte por ela , isso é bem certo ; mas nós vam os, sem dúvida, pelo m enos tão longe partindo não da psicologia do homem Pla­ tão — que ê bem d ifícil de restabelecer, apesar das tentativas subtis de um Y. B rès, por exem ­ p lo —, mas das opiniões d e Platão sobre o psir qidsm o humano, das quais é evidente que, sendo por inteiro parte integrante do sistem a, reagem sobre, todo o conjunto da doutrina e fom ecem -The frequentem ente o seu arqueam ento original, o seu estilo, testem unhando m ais que as outras partes da doutrina daquelas atitudes prófumdas, daquele núcleo vivo que está no coração de qual­ quer filosofia e de qualquer personalidade de

AS GRANDES PSICOLOGIAS NA ANTIGUIDADE

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fü ósofo. Podem os, portanto, perna/r que abor­ dar, com o o fazem os, um autor pela sua pers­ pectiva psicológica, pode constituir uma estra­ tégia fecunda. D e qualquer m odo, é olhá-lo com outros óculos, e, sem dúvida, óculos m enos colo­ ridos — de am arelo, com o dizia Ka/nt, cm de verm elho ou de negro — , distinguim os mais por­ m enores, e porm enores outros. Seria fá cil forn ecer sobre, osto ponto exem ­ plos tirados dos ocvpitulos que so seguem (a propósito do thymós de Platão, do hcgemonikón estóioo ou do gcnctism o de L ucrédo) , assim com o de outros estudos feito s no mesmo espí­ rito sobre D escartes, H elvécio ou M ontaigne (v er Les Grandes Psychologies Modernes) . Mas os especialistas, que são os mais visados, verão bem se e a té onde a leitura psicológica proooca luzes novas. Isto, para os filósofos, mas o quê para os psicólogos? E que alim ento, pensarão eles, encon­ trar nestas concepções arcaicas, em cuja consi­ deração parece aqui com prazer-se um psicólogo que teria sem dúvida feito m elhor, esquecendo os seus antigos am ores, em continuar os seus trabalhos de laboratório? Ora, eu creio nada renegar, bem pelo contrário, acho m uito útü rem ergulhar um pouco o psicólogo d este últim o quarto do século xx na atm osfera das psicolo­ gias de outrora. Isto teria, é verdade, apresentado perigos, há cinqüenta anos, quando a psicologia tentava penosam ente afastar essa mãe captativa que era a filosofia. O psicólogo devia, prim eiram ente, ganhar a sua autonom ia, cingir-se à disciplina cien tífica e ajustar-se aos fa cto s: non alas, sed plumbum, com o dizia, bem , F r. Bacon. Os nossos corajosos precursores, W im dt, B inet, Claparède, Saber-161 — 2

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JEAN OBATEAÜ

Wactson, efectuaram esta tarefa. H oje, ela está acabada, bem acabada, m psicologia conquistou o seu d ireito de cidade, mas não o conquistou sem damos, e esta libertação custosa deve dar lugar a um estado de paz em que desapareçam os maus hábitos adquiridos em tem po de guerra. Uma reconciliação com a filosofia im põe-se, o que de modo nenhum quer dizer que será doravante uma coexistên cia; m uito de preferência pertencerá amanhã às ciências psicossociais for­ n ecer e discutir os valores que outrora a filo­ sofia exaltava (v er a nossa Malaise de la psychologie, in fine,): com o a medicina substitui a feitiçaria mas não sem dela integrar partes, a psicologia deve, na seqüência da filosofia , for­ necer as condições de um equilíbrio huma/no e mostra/r as forças que m ovem o ser huma/no. A propriar-se do papel da filosofia e, portanto, num certo sentido, fazer-se também filósofo. Ora, isto não é possível sem aceitar tom ar frequentem ente antigas orientações, seguir as linhas que Platão e E picteto traçaram . Mas sem querer ir tão longe, e invertendo de algum modo o problem a, é preciso reconhecer que as antigas filosofias têm dons a conceder-mos, pois não se pode ser verdadeiram ente filósofo sem aborda/r as questões que o espírito e o coração humanos põem . Ora, presentem ente, a não ser que, nos confinem os a estudos curtos e oada vez mais cu rtos, de um behawiorismo tor­ nado antiquado n/pesar da sua passageira u tili­ dade, se querem os constituir uma psicologia sim ultaneam ente integral e humanista, precisa­ m os de hipóteses e de sín teses. O mesmo Fr. Bacon, que citám os há bocado, dizia também que, qualquer investigação cien tífica com porta um m om ento de intellectus sibi permissus, de

AS GRANDES PSICOLOGIAS NA ANTIGÜIDADE

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im aginação e de risoo: com o ao filósofo, ao d en ­ tista são precisas asas, a única diferença está, em que ele assenta mais frequentem ente os pés na terra. Quem m elhor poderia ajudar-nos nesta etapa da investigação, concebida a u/m alto nível, que aqueles que, com todo o suu génio, tenta/ram apreender a alma humana, jKK.tas, rom ancistas, direotores de consciência v, acima de tudo, filó­ sofos? Quando Platão fala do am or ou da cólera> a sioa voz soa mms justa que a do psicanalista da esquina; quando a psicologia hindu nos des­ cobre os seus meandros e segredos, quem ousa/ria h oje retirar-lh e com pletam ente a pala/ora, pre­ tendendo que se trata d e sonho de teólogos f Sejam os mais m odestos, não confiem os tanto em calculadoras que não têm alma e que também não têm im aginação — e que de m odo nenhum são nós próprios— e , para ir mais longe, não hesitem os em pedir em prestadas aos antigos colonizadores da psicologia técnicas e sáberes, dos quais não som os ainda de modo nenhum demasiado ricos. Pode m esm o suceder que n este assunto os A ntigos e , sobretudo, os G regos sejam m ais ricos para nós que m uitos dos m odernos por­ que, no dom ínio psicológico, os seus preconceitos eram m enores. E les de modo nenhum separavam tão facilm ente as almas dos corpos — e mesmo Platão, envelhecendo, abandonará os excessos do Fédon; eles sabiam m elhor que os nobres e os burgueses da época clássica o que é e o que vale o corpo humano. Além disso, m enos físicos e mais m oralistas, preocupavam -se mais com as apreensões m entais e as gêneses psíquicas. Menos subm etidos a um m onoteísm o transcen­ dente, atribuíam m aior lugar em cada homem àquelas faculdades humanas que criam os deu-

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ses. Ainda que um ser biofísico> o homem não era para eles qualquer criatura de pecado i/ncapaz, sem ajuda do além, de encontrar o seu próprio caminho: Lucrécio não é nada tão excepcional como se pretendeu e, como o homem de Lucrécio, o homem de Platão, que dele parece tão diferente à primeira vista, traz em si o saco das suas virtudes e dos seus vícios; o «Deus está inocente» do mito de Er, o armênio, deixa já o lugar livre a v/ma psicologia que não interes­ sará menos aos cartesianos. E quando Montaigne, esse rei dos psicólogos, quer üummar o seu caminho, os autores que citará mads fre­ quentemente, porque* para ele são mais fami­ liares e mais gerais, serão o Sócrates de Platão e Lucrécio, não aqueles autores cristãos menos Tongmquos que disserta/oam sobre os uni/versais e a graça divina. De nenhum modo hesitemos em olhar para trás; não tem sempre qu/ilquer revolução algo de um renascimento? Platão e Lucrécio, libertando-nos do Marx dixit, do Watson dixit, do Freud dixit, abrem-nos as portas do futuro.

CAPITULO I PLATÃO Platão espanta-me sempre por essa faculdade de ler através do corpo humano até aos nossos mais secretos pensamentos. Sem dúvida ele foi um desses homens raros que, pelo vigor do sangue, tiveram tórax irritável sobre ventre insaciável e, em cima, uma cabeça suficientemente forte para levar a bom êxito a tripla experiên­ cia do prazer, da ambição e do saber. Alain, PropoSj 4 de Abril de 1922 B io g r a f ia . — D e um a ilu stre farrvüia da a risto­ cra cia a ten ien se. D ata d e n ascim ento in certa (427 ou 4 29). V ida m uito m al conhecida p or um a m istu ra do lendário ao h istó rico ; P la tã o é um sob ren om e: cla rg o» (d e om bros? de te s ta f d e g én io ? ) . A tleta . F reqü en ta os so fista s, p or quem con h ece a# doutrm as d e H eráclito . L ig a -se a S ócra tes; d epois da m orte d este (8 9 9 ), fo g e para M égara (on d e con h ece os «m eg á rico s»). Já tom ado céleb re p elos prim eiros d iá logos, via ja p elo E gip to, O irenaica, G rande G récia, onde en con tra escolm filo só fica s. C erca d e 390 prim ew a estad a, com inten g çõ es p olítica s, ju n to d e D en is d e S ira cu sa; vendado com o escra v o, m as resga ta d o, organ iza, em A ten a s, a A ca dem ia, prim eira in stitu içã o d e ensino d e filo so fia (com alojam en tos para os d iscípulos) . Um a ou tra viagem à S icília, vin te anos m ais tard e, é n ovam en te um fra ­ ca sso, tendo o segundo D en is exilad o D ion, am igo de P la tã o, e reten d o e s te num a p risão d e honrarias. D epois d e um a terceira viagem (sa lv o som en te p ela in terven ­ çã o do tira n o-filósofo d e T aren to, A rq u ita s; e o seu am igo D ion a ssassin ad o), P la tã o con sa g ra -se ao en sin o: form a filó so fo s, dos quais u/m certo núm ero será ch efe d e E stad o. M orre com oiten ta e um anos.

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Ordenam-se comummente as suas obras em três grupos: 1 — diálogos ditos socráticos, Protágoras, Górgias, anteriores à primeira viagem à Sicilia; 2 — diá­ logos de maturidade, Menexénes, Eutidemo, Ménon, e sobretudo os diálogos mais célebres, Fédon, Banquete, República, Fedro; 3 — diálogos de velhice, mais inspi­ rados petas matemáticas e mais «científicos», Teeteto, Sofista, Político, Parménides, que formam um conjwato, depois Fllebo, Tlmeu, Crítias e Leis (e Carta VTL), mais tardios. Todos os diálogos nos foram conservados, mas esta obra, conhecida indirerfmnente na Idade Média (por comentadores), só foi retomada dvrectamente a partir da tradução latina de Marsílio Ficino (14831484), depois da edição em grego de Henri Estienne (1578), que serve sempre de referência.

1 — As ideias, a alma e a pessoa Se racionaliza e sistematiza as religiões de m istérios e de salvação, a filosofia platônica continua-as, apesar disso; também ela está sus­ pensa de absolutos: para ela, o além (é k e i) conta mais que o aqui ( en th ade). Isto vê-se bem na concepção do tempo platônico que, se não é absolutamente posto entre parênteses, fica somente uma im itação da eternidade num cír­ culo conform e ao número (Timeu, 3 7 d ); é ape­ nas uma criatura do Demiurgo, e um tanto ilu­ sória. Não é, com efeito, nos existentes cobertos pelo véu da ilusão — da Maya, diria o Oriente — na gên ese, que ©e pode encontrar o conhecimento verdadeiro. M a também não é, para dizer a verdade, deste mundo: o filósofo platônico, cu jo corpo não passa de um túmülo, espera a morte para apreender enfim a verdade, liberto de constrangimentos corporais é têmporais. É, portanto, em prim eiro lugar, no e através do sensível que conseguimos apreender algo des­ sas essências que sõ são em si (xm to à e s ti).

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Assim, é em bocados de madeira pouco mais ou menos iguais que nós apreendemos a ideia de uma igualdade perfeita; mas o igual não está nos pedaços de m adeira; tanto com o o seis não está num dos seis ossinhos nem no seu conjunto CFédon, 74a; T eeteto, 154c). E) a contradição ilusória, a oposição do uno e do múltiplo, do mais ou menos, em poucas palavras, a díade indefinida do Grande e do Pequeno que nos reenvia paira realidades intemporais. Mas estas não estão nas coisas em que nós as pensamos: se Teeteto é pequeno relativamente a Fédon e grande relativamente a Sócrates, grandeza e pequenez, estas contradições, não podem coexis­ tir nele. Onde as encontraremos então? É em nós que encontramos estas relações, número® ou qualidades, estas essências, a res­ peito das coisas percebidas. O conhecimento aparece assim com o uma reminiscência, e mesmo o pequeno escravo do M énon é capaz, se é um pouco guiado, de reencontrar o teorema de Pitágoras. Onde conhecemos então estas ideias intem­ porais senão naquela vida anterior que tantas seitas, e ainda recentemente os Pitagóricos, celebraram? Antes do nosso- nascimento, con­ templámos as Ideias com mais ou menos luz (F ed ro, 247c-e), e as lembranças destas essên­ cias persistem em nós em estado latente, com o faculdades que o acontecimento ou a ocasião vêm acordar. Pode-se certamente duvidar do valor que Platão atribui a este m ito renovado no F edro, no M énon e na R epública, assim com o no Fédon, e esquecido de seguida, mas este valor não é nulo: se Platão não acredita no rio Letes, disse-nos que o m ito permite progredir a partir do ponto em que o raciocínio é dado por impo­

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tente; graças ao mito, podemos participar de um belo risco. Não há nenhuma dúvida de que, para Platão, nós possuímos desde o nosso nas­ cim ento um capital, um stock cognitivo, que devemos explorar com o uma espécie de mina interior. Parece, assim, que o pensamento consiste em desvelar essas essências interiores, em as apreen­ der com o pombas num pombal interior; teremos de aqui voltar, para precisar um pouco esta noção ainda sumária. Antes,, parece-nos mais pertinente aproveitar este primeiro conheci­ mento para estudar o que é a alma para Platão. Platão conhece e rejeita longamente a con­ cepção, exposta por Símia no Fédon e reto­ mada, sem dúvida, em meios atomistas e médi­ cos, para a qual a alma seria com o a harmonia da lira,, com o a organização do vivo; pensa-se sem custo nestas funções sintéticas, para as quais apelaram psicólogos contemporâneos. Tal concepção esquece as Ideias, e esquece Deus. Platão apercebeu-se bem de que havia aí um ponto capital; aceitar espiritualizar assim o corpo e materializar a alma, seria exceder o abismo que o Fédon estabelece entre alma e corpo. Se Platão anuncia aqui uma linha de força do cristianism o, Símia e a sua síntese harmônica anuncia as teorias psicológicas de um Janet, por exemplo. Platão, colocando na alma as Ideias intemporai®, é já Descartes e a sua ideia de Deus ou, melhor, Malebranche e o seu arquétipo eterno no entendimento divino. Disto resta ainda qualquer coisa em Husserl e mesmo em Sartre. Platão, contudo, não é Descartes e a alma substância deste. Â. análise mais exotérica do Fédon acrescenta-se em breve uma concepção

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mais fin a e mais moderna. A alma já não aparece com o um simples» mas com o a mais bela das misturas (haU istê syn th esis da Repú­ blica, 611c), uma mistura que, se teoricamente pode ser desagregada, nunca o será, porque isso suporia um demiurgo mau (Tim ev., 41a-b)\ Assim se vai colocar o problema de uma com­ posição possível, e o de uma unidade sempre ameaçada: o m etafísico cede um pouco lugar ao psicológico. Se é somente o Tinneu, um diálogo de velhice, que expõe com o o Demiurgo compôs a alma com Mesmo e Outro, assim com o todos os outros intermediários psíquicos e metafísicos,, já esta ideia de uma certa diversidade da alma aparece no G órgias, onde Platão diz O' que é a alma depois da m orte: «uma vez despojada do corpo, tudo nela é manifesto, tudo o que o homem possuiu na sua alma, aquilo que é obra da natu­ reza (ta tês physeôsX assim com o as afecções

i o Fédon é mais ©ncantatório que demonstrativo, logo que, em particular, afirma da alma «uma absoluta indissolubilidade ou então qualquer estado que dela se aproxima (ê eggus ti toutou)» (80b). O Timeu, no qual o Demiurgo compõe as almas, é mais explícito, por­ que faz dizer ao Deus criador, perante os seus filhos, os deuses grandes ou pequenos: «Deuses, filhos dos Deuses dos quais eu sou o autor..., nascestes através de mim, e sois indissolúveis, enquanto eu não queira dissol­ ver-vos. Porque, se todo o composto é corruptível, querer quebrar a unidade daquilo que está harmonicamente unido é acto do mau» (41a-b). Esta posição parece anunciar a criação continuada de Descartes, acrescentando-lhe ape­ nas a bondade de Deus que marca bem a diferença de atmosfera entre as duas doutrinas; mas, em Platão, a composição da alma dã uma teoria muito mais maleável e anuncia as instâncias freudianas, por exemplo.

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que resultam do modo como ele disso se utilizou em cada tipo de questões (dia tên epitêdeusin ekastou pragm atos)» (524d). A alma está, por­ tanto, profundamente marcada pela experiência que não se contenta com prender à alma erros e faltas fixos nela com o as algas ao corpo do deus marinho Glauco (República, 612c-d). E é um tanto em vão que se pode tentar considerá-la «uma vez que esta natureza se purificou» (ibid 611d). Mesmo nesse momento, a alma ficará algo poluída: se não é possível que ela «seja abundantemente repleta de miscelâneas, de dissemelhança, de diversidade» (República, 611b), não se deixa de verificar que, entre as duas vidas, a alma conserva ainda uma parte da poluição terrestre, e quando lhe é preciso escolher um destino novo, se os acasos jogam (619c), a experiência adquirida anteriormente, numa vida demasiado feliz e desprovida de filosofia (619c) ou numa vida de provações e de sabedoria (como na pessoa de Ulisses), per­ manece o factor essencial da escolha de um destino novo. Com efeito, «fatalmente, as dis­ posições de uma alma tornam-se outras com a natureza da existência que ela escolheu» (ibid., 618b). Na oposição clássica entre natureza e nurture *, Platão afirma simultaneamente a existência de estruturas intemporais, lembran­ ças das ideias e a de marcas muito profundas feitas na alma péló® acontecimentos. Não se trata aí somente de lembranças passageiras, mas de atitudes, de qualidades profundas (de

* Nature-nuYtwre: oposição, Corrente sobretudo na Inglaterra, que corresponde às do inato ou congênito e do adquirido, da hereditariedade e do meio. (N. do E. P.)

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h exeis). A alma plàtónica, mesmo ao nível em que presentemente estamos colocados, é uma pessoa, mais do que uma substância. Não é possível conciliar estas duas tendências rejeitando a falta — e a poluição— só do lado da função cognitiva; seria exagerar um intelectualismo evidente na teoria das Ideias, mas que dá lugar aos afectos, aos impulsos, ao amor. Sem dúvida que, quando Platão nos repete que «ninguém é maü por si próprio» ( oudeis Tcakos elcôn) (por exemplo, Protágoras, Timeu [86d], mas em muitos outros lugares), é preciso enten­ der qüe, para ele, nenhum homem quer o seu próprio mal, o seu erro é ignorar que o mal dos outros ê também o seu próprio mal: todo o Górgias é uma seqüência de variações sobre este tema de que o erro não está na intenção primeira (todo o homem quer o Bem, pela sua natureza fundamental), mas numa intenção Segunda dirigida pór um falso conhecimento. Mas, por detrás do erro, há toda uma acumula­ ção de qualidade®, de aptidões, de atitudes. Menos que quem quer que seja, Platão não menosprezou a importância da educação (e mesmo da aprendizagem) que visa formar esta face obscura da nossa alma descrita no Fedro, no Banquete, no lon , no Fédon. O difícil aqui é conservar a ideia de uma alma —■substância im ortal— com a de uma poluição de uma alma-pessoa. Abrem-sé duas linhas opostas desde os primeiros diálogos em que a virtude não é, de modo algum, apenas uma qualidade, uma aquisição superficial da alma, e em que se vê mal onde colocar esta virtude numa alma simples. Digamos que bondade é simplicidade não caminham na mesma via: o problema é posto aqui para toda a teologia que

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vai seguir-se, hesitando entre o Deus Uno, e somente Uno, e o Deus bom e por isso sensível e aberto às paixões. O Parm éniães explorará sistematicamente este problema sem o resolver. A solução só pode encontrar-se no apelo a inter­ mediários, e Platão vai multiplicar estes inter­ mediários: como o Uno cristão se tornará Três, a alma simples — ou, antes, quase simples — do Fédon vai dividir-ise na República e Platão che­ gará mesmo no Timeu (69c e segs.; 89e) a dizer que há três almas em nós. Estudaremos mais adiante o intermediário, o tktym os, colocado agora entre o nous (o espí­ rito) imortal e os desejos que vêm do corpo, o épithym êtiJcon. Há nele como que três instâncias da pessoa, mas de valor desigual e de natureza diferente. Só o nous é imortal e, contudo, não é perfeito, o Demiurgo e seus auxiliares mis­ turaram nele ao Mesmo uma parte de Outro, menor que no thym os e no épithym M ikon, mas real, e sem a qual qualquer função cognitiva, fixa em si própria, seria impossível por votada à imobilidade e incapaz de relações (S ofista ). Nada de espantoso, portanto, se mesmo esta parte da alma pode estar doente; de facto, é a alma inteira que é susceptível às duas doen­ ças que lhe são próprias, a loucura e a igno­ rância (i b i d 80b), porque, devido à sua ligação e quase à sua continuidade, estes três inter­ mediários, que são as três partes da alma total, corrompem-se um ao outro: «repetimos frequentemente que há em nós três espécies de almas; se uma delas permanece na inacção, torna-se necessariamente muito débil... Por­ tanto, naquele que se entregou aos apetites e às ambições e que lhes dá um grande desen­ volvimento pelo esforço, todos os pensamentos

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necessariamente nele se tomaram mortais; e, absolutamente a todos os respeitos, em toda a medida em que é possível tom ar-se mortal, não falta, por pouco que seja, para ter aumentado esta parte da sua alma» (i b i d 89e). A notar, nesta citação, não somente esta impregnação progressiva da alma pela debilidade de uma das suas partes, mas também a reserva respeitando a mortalidade que não pode ser total; a mesma reserva nota-se também, por outro lado, quanto à imortalidade, na seqüência da frase: «e, inver­ samente, para o enamorado dos conhecimentos, ser-lhe-á permitido, na medida em que é pos­ sível à natureza humana participar da imor­ talidade, que aí lhe não falta, por nenhuma parte». A alma nunca é nem inteiramente mor­ tal, nem inteiramente imortal, podendo cada uma das duas partes variar de indivíduo para indivíduo. Nem integralmente mortal, nem integral­ mente imortal, a alma é, na realidade, um «daímon» que pode ir de um extremo ao outro; ou, para melhor dizer, é, como o indica o Timeu, uma parte do Cosmo, constituída, como as outras partes do Cosmo, por uma certa mistura do melhor e do pior, do Mesmo e do Outro. Ela situa-se na escala das criaturas, e precisa ficar no seu lugar e manter nos seus lugares os seus diversos elementos. Desde o Fedro (270c) que Platão considera que só se pode compreender a alma se a recolocarmos nò todo — mas esta orientação está já no Fédon. Desde então, saúde física e saúde moral são equilíbrios, boas colocações de elementos; e é conveniente que o erôs (ou a phüia, como diz Eyximaco no Bcmquete) ligue estes elementos e os mantenha a cada um no seu lugar numa

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unidade, faça com que nem a alma seja dema­ siado forte para o corpo, nem inversamente (Timeu, 87c e 89e), que por todo o lado se realize a justa medida, o m etrion. Desembaraçada das suas implicações meta­ físicas — que reencontraremos nos E stóicos— , esta juista medida, este equilíbrio, aparece como a natureza verdadeira da alma e do homem, aquela para a qual eles tendem naturalmente, O Fed/ro, com a imagem do carro, implicava já este m etrion; mas a República, mostrara ante­ riormente que, além das virtudes próprias de cada um destes três elementos da alma (tempe­ rança, coragem e sabedoria), havia uma vir­ tude mais geral, a da justiça, correspondendo a um acordo geral e, por conseqüência, também, ao melhor dos governos de si ou da cidade. A justa medida, o equilíbrio, é verdadeiramente, com o o diz claramente o F ilebo (66a), a causa da melhor composição de inteligência e de prazer que dá uma vida digna do homem. Face a várias teorias possíveis da alma e da pessoa, Platão recusou aquela que, no segui­ mento dos materialistas, só via na alma uma harmonia (e com o uma G estált) : a harmonia é apenas uma modalidade da alma, o sinal pos­ sível de uma alma em bom estado, não esta alma mesma, com o pretendia Símia: em si, a har­ monia nada é. Recusando assim esta teoria pura­ mente psicológica (retomada na pessoa como função de síntese de certos modernos), Platão parece, por um momento, inclinar-se para uma alma-substância; mas aquela teoria, que a filo­ sofia clássica retomará no tempo do cartesianismo, não basta a Platão, que está demasiado preocupado com as qualidades morais, que é demasiado moralista — e, consequentemente.

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também, demasiado psicólogo— para ignorar a parte mortal da alma. Chega ele assim a uma alma composta na qual as partes se equilibram e que se equilibra, ela própria, com o corpo. Concepção moderna, certamente, e que faz pen­ sar nas instâncias freudianas. Mas, vê-lo-emos mais adiante, Platão dá demasiado lugar à inte­ ligência, recusa reconduzir demasiado a pessoa à hidra dos desejos para não tomar um caminho completamente diferente do de Freud. 2 — Os saberes e a experiência Se as essências não dependem nada da expe­ riência, se elas estão em nós antes do nosso nascimento, é, contudo, através da experiência e dos sensíveis que nós as apreendemos: «poder-se-ia supor que, tendo adquirido este conhe­ cimento antes de nascer, o perdemos nascendo, mas que, de seguida, o uso dos nossos sentidos, a propósito dos objectos do conhecimento de que se trata, nos fez readquirir aquele, que pos­ suímos noutro tempo e primeiramente» (Fédon, 75e). Ainda que Platão não considere o sensível como um verdadeiro saber no T eeteto, de modo nenhum é necessário menosprezar o seu papel2: 2 Ser-se-ia tentado a fazer disso um limite, como em Kant, para quem a origem da intuição externa tem necessidade de ser provada, ou em Lagneau, que faz da sensação uma abstracção. E esta tendência é sensível quando, em fim de carreira, o idealismo platônico chega a dizer que o lugar, a existência é apenas conhecida por um «raciocínio bastardo» (Timeu, 52b), como se O Outro não fosse nunca senão uma relação e de nenhum modo uma realidade. Mas não é necessário estender assim demasiado Platão para o idealismo absoluto de um Plotino ou de um Leibnlz.

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se o homem deve, segundo o Féãcm , elevar-se para fora do seu corpo, é do corpo que parte, são as som bras no fundo da caverna que colo­ cam o problem a filosófico. Para dizer a verdade, o problema é o de saber se não há mesmo dois tipos de conheci­ m ento sensível. Platão repete-o várias vezes seguidas, dizendo que há representações que, trazendo em si uma contradição, convidam a um ultrapassar na direcção das essências, e outras que não (R epública, 523b), porque então a per­ cepção é suficiente para d ecid ir8; mas a ten­ dência geral é antes para sublinhar a evanescêneia da sensação dem asiado subjectiva que se desvanece no rio do devir, na m obilidade, se não é sustentada por relações que são essências (T eeteto , crítica de P rotágoras). «N ão é nas im pressões que reside o conhecim ento, mas nas aproxim ações» (T eeteto, 1 8 6 d ): o simples sentir ( oAsthcm estai) supõe, portanto, o ju lgar (d oxa zeim ) (186e e 187a). D izer que há seis ossinhos, e afirm ar um «seis» que não está em nenhum de entre eles (ib id ., 1 5 4 c): o seis subsiste, enquanto a co r dos ossinhos muda consoante a minha disposição (ib id ., 154a). Uma coisa não é, por si própria, nem grande nem pequena 8 T eeteto, 186b, «temos, portanto, que há coisas das quais, por natureza, logo que nascidas, tanto os homens como os antaiais têm percepção, a saber: todas as impressões que, por intermédio do corpo, tendem para a alma. Mas hâ outras que, relativamente a estas impressões, são suputações a respeito tanto da sua unidade como da sua utilidade». Do primeiro tipo são o duro e o mole (mas não a sua contrariedade), as sensações da vista, do ouvido, os cheiros, o frio e o quente. Do segundo, o semelhante, a identidade, o belo, a existência (ibid., 186).

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(F éd on , 102b-d), e se nos bocados de m adeira pouco m ais ou menos iguaisi eu apreendo a noção de igual, é porque aí a coloquei. A s diversas sensações não estão, portanto, isoladas, convocam conjuntos, sínteses, não são com o seriam as funções sensoriais em qualquer cavalo de m adeira (T eeteto , 184e), são instru­ mentos doe quais a alma se utiliza para fazer as suas aproxim ações ( syllogism os) . Mesmo na percepção intervém , portanto, aquilo que, hoje, chamaríamos, com Piaget, uma «actividade perceptiva», que revela, que desvela a » essências no próprio interior do sen sível4. O apelo a uma rem iniscência não é, de modo nenhum, um apelo a um m ecanism o evidente por si próprio. Sem dúvida que a associação desempenha aí um papel (e Platão é o prim eiro a distinguir da associação por semelhança que aí entra em jog o, a associação por contiguidade [F éd on , 73d e 7 4 a ]), mas é p or actividade e esforço mental que cada um de nós apreende as essências: estas são «suputações» e «não é com sofrim ento e tempo, a cu sto de m uitos esforços e de uma educação, que elas chegam a aparecer nos vivos» (T eeteto , 186d). Ê nisto que pode

4 Seriamos tentados — e mesmo contra os textos formais que citámos anteriormente— a reduzir a sen­ sação a uma ocasião,, o que seria reencontrar aqui uma posição bem conhecida do idealismo ( por exem­ plo, em Kant) e da actual psicologia científica. Não há dúvida de que o T eeteto classifica nas sensações primitivas as qualidades sensíveis, mas, como em Kant, elas reduzir-se-ão a pouca coisa, sem comparações. Temos ainda que, e particularmente no Timeu, as sensações são apresentadas como um modo inferior de conhecimento, oposto às ideias. O realismo platônico respeita tanto às existências como às essências. Saber-161 — 3

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ajudar ura mestre com o Sócrates; se ele dá à luz os espíritos, o essencial do trabalho não vem dele mas do interlocutor. Se, com efeito, estes saberes estão em nós, é em estado latente ê nós não o sabemos. Este estado latente não é, contudo, uma ignorância e, graças a este estado singular do saber, pode compreender-se que um homem procure aquilo que não sabe (resposta, portanto, ao argumento dos sofistas, do M énon, 80e: se ele sabe, não tem de procurar, e se não sabe, não sabe que coisa procurar), problema que ê ainda colocado por vezes à nossa psicolo­ gia científica. Reencontrar em nós estas pom­ bas que estão com o que num pombal interior, já não somente possuí-las (k tê s is ), mas tê-las nas mãos (ek em ), isSo não é possível sem uma espécie de caça, no fim da qual se corre o risco de não se ter apanhado a pomba que se pro­ curava, mas uma outra (ibid ., 197b). Não há, portanto, que esperar o aparecimento em nós das essências, mas trabalhar visando descobri-las nós próprios, utilizar uma inteligência des­ perta, capaz de seguir um método, uma dialéctica. Veremos, mais adiante, quais: são estes trâ­ mites da inteligência em busca de recordações5. Procurem os agora antes o que encontraremos nesta busca. «Sendo a natureza inteira hômógénea e tendo a alma tudo aprendido, nãda impede que uma só recordação (é aquilo a que os homens chamain saber) lhe faça reencontrar todas as « Se a doutrina, da reminiscência se esfuma e desa­ parece mesmo nâ República, no Sofista, no Político e nas Leis, a transcendência das Ideias é sempre muito fortemente afirmada.

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outras, se se é corajoso e tenaz na busca»; esta afirm ação do M énon (81d) implica já uma certa ligação das essências6: nâo são aquelas Ideias imóveis que a tradição por muito tempo atribuiu a Platão, mas essências ligadas entre si, pelo menos, por estas relações — outro, mesmo, seme­ lhante, e tc.— , nas quais insiste o S ofista. Pela sua função de síntese, de syllogism os, já a essência operava com o uma relação; reencon­ tramos aqui, na totalidade das essências, este mesmo carácter. E ele vai reaparecer ainda, se nos perguntarmos desta vez de que é que há essência. fi este um velho problema que Platão pro­ gressivamente explorou. Há certamente, em prim eiro lugar, essências dos seres matemáticos (com o se vê no M énon) e relações entre quali­ dades sensíveis (T e e te to ); ma® já no Fédon, se há essências do belo, do justo, do frio e do quente (103c-d), Platão hesita em atribuir essên­ cias à neve ou ao fo g o (103c-e). Se, no Parm ém des, Sócrates exprime uma hesitação análoga em relação ao fogo, à água, e também ao pêlo, à lama, à sujidade (130c), isso resulta de ele ser ainda jovem . A R epública (596a e segs.) falará da ideia de uma cóisa tão artificial com o a cama; o C rátilo mostrará, por detrás e acim a das palavras, form as lógicas incluídas na lin­ guagem, e o Tim eu chegará a dizer: «é em vão que, em cada caso, afirmamos que há uma rea­ lidade inteligível de cada ob jecto? E sta não « De igual modo Feâro, 270c, «Ora, a natureza da alma, achas possível ter dela uma concepção merece­ dora de qúe dela se fale, se é, independentemente da natureza do todo?», pergunta Sócrates; e Fedro res­ ponde, seguindo Hipócrates, que isso não é sequer pos­ sível para o corpo.

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será somente uma palavra?» (5 1 c)7. Crer, toda­ via, com o se pretendeu, que Platão hipostasia os conceitos, seria esquecer este aspecto de rela­ ção que já assinalámos, e confundir o platonism o com esta concepção, sem dúvida m egárica, que é justam ente criticada no início do Parm énides. A s essências não são estruturas im óveis, são relações m óveis, diríam os m esmo potências, des­ lizando assim na direcção de A ristóteles, se seguirm os certos intérpretes para quem as essên­ cias são relações dinâmicas, dynam eis. Tal é bem, com efeito,, a lição que parece desprender-se das análises do S ofista : se «o outro» circula entre todos os gêneros, é porque estes não estão fechados sobre si próprios; m ais ainda, é que, com o as percepções, participam uns do® outros, tom àndo-se o próprio ser, na ocasião, não ser (com o o Parm énides m ostrara), uma vez que ele «não é» semelhante nem próprio. Desde então pareceria abrir-se uma possibi­ lidade de um construtivism o platônico. Mas a porta está somente entreaberta e a luz que, em certos diálogos, se escoa por esta entreabertura mantém-se velada pelo carácter transcendente das Essências. Se Platão chega finalm ente a afirm ar o ser de essências de todas as coisas, é porque para ele toda® as coisas são, com o a cam a da R epública, coisas artificiais, criaturas: o Deus que conhecem os nunca é senão um Dem iurgo, um arquitecto e com o que um mari Afirmação de igual modo' perfeitamente clara na Carta V il,- 342d, «relativamente às figuras, rectas e circulares, assim como às cores, ao bom, ao justo, a um corpo fabricado ou natural, ao fogo, à água e a todas as coisas semelhantes, a toda a espécie de seres vivos, às qualidades da alma, às acgões e paixões de todas as espécies».

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oeneiro que procede com o os m arceneiros, car­ pinteiros de carros e ferreiros de que nos fala Sócrates: o mundo é a obra de um artesão, e é por isso que ele é obra d o espírito, com o Anaxágoras vira. O finalism o professado desde o Fédon vem assim em socorro da teoria das ideias, a fim de perm itir o seu m ais amplo alargam ento no Tim eu*. Mas, justam ente por este alargam ento, o construtivism o é lim itado, porque as essências existem antes que eu es desvele. Com o a alma, o conhecim ento humano per­ tence ao® interm ediários queridos ao1platonism o. E le sobe de um O utro quase puro, com o ao contrário de Deus e dificilm ente apreensível por um «raciocín io bastardo» (Timeu, 52b), até à Unidade suprema e incom preensível sobre a qual gira — e quase sem a a flo ra r— o jo g o sério do Parménides. Mas, neste interm édio, a alma perm anece activa e responsável pelos seus actos. Quer se trate dos nossos pensamentos ou dos nossos actos, eles decorrem , na verdade, num certo campo, mas é a nós que com pete velar para que a nossa conduta siga os m odelos das E ssências, «Deus está inocente» (Republica, fim , 617e). ( i s Que a ideia das coisas físicas vem, na realidade, essencialmente da criação pelo demiurgo, é o que signiíica este texto do Timeu sobre o estado em que se encontravam água, terra, ar e fogo, antes que o demiurgo ordenasse o mundo: eles «tinham já algum sinal da sua natureza, mas encontravam-se, na ver­ dade, completamente no estado em que se pode espe­ rar encontrar qualquer coisa quando Deus dela está ausente» (53b). Nos constituintes primeiros, ainda muito próximos da «alma do devir» (ibid., 52d), o incom­ preensível Outro, não há verdadeiramente elemento estrutural, essência, pois ela vem de Deus.

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3 — Elementos e pontos de partida do conhecimento Se o conetrutivismo é lim itado, o esforço di&léctico de revelação e apreensão das reali­ dades inteligíveis é capital. É preciso tempo e muitas etapas antes de apreender verdades, «é somente quando penosamente se confrontaram nomes, definições, percepções da vista e impres­ sões dos sentidos, quando se discutiu em bene­ volentes discussões em que o desejo não dita nem as perguntas nem as respostas que, sobre o objecto estudado, vem brilhar a luz da sabe­ doria e da inteligência com toda a intensidade que as forças humanas podem suportar» (Carta V II} 344b). Se o caminho é tão árduo, merece ser estudado, há a fazer uma «psicologia da verdade». E esta deve com eçar por analisar os elementos e as acções de partida. Esta análise dos elementos, para nós mais propriamente psicológica, está difusa em toda a obra. Platão junta-lhe, no entanto, as linhas, num outro texto da Carta V II: o® elementos que nos permitem ter um saber são em número de três, sendo a ciência o quarto elemento e a realidade inteligível o quinto: «distinguem-se três elementos que permitem adquirir a sua ciência; ela própria, a ciência, é o quarto; é preciso colocar em quinto lugar o objecto, ver­ dadeiramente conhecível e real ( alethôs o n ). O prim eiro elemento é o nom e; o segundo, a definição; o terceiro, a imagem» (342b), o que se pode compreender bem pelo exemplo de um círculo. Estes três elementos são bem diferentes do círculo em si, esse quinto elemento do qual se aproximam os sabedores colocados em quarto lugar: «ciência, inteligência e opinião verda­

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deira» (342c)« Para chegar a conhecer o círculo em si é preciso necessariamente apreender para com eçar as quatro primeiras representações deste círculo em s i 9. Se não se é naturalmente filósofo e guiado por algum Mestre, pode-se lim itar o saber às etapas inferiores. Élstá aqui, para Platão, o lote do comum dos homens, e a sua doutrina, muito aristocrática, preocupa-se mais com estudar a dialéctica que devem seguir filósofos e chefes de Estado do que a psicologia média. Há con­ tudo um ponto, de seguida muito negligenciado, ao qual Platão voltou frequentem ente: é o papel do espanto que está na origem do esforço de elevação do conhecimento. A í insistirem os um pouco e ainda de melhor grado, visto que a psicologia moderna com eça de novo a colo­ car-se este problema capital (por exemplo, Berlyne, Artemenko, e tc .). Desta investigação platônica procedem todas aquelas observações sobre o m odo com o Sócrates semeia a dúvida e o espanto no seu interlocutor. Este parteiro de espíritos é, na realidade, mais a tremelga marinha que excita, que activa, pelas suas picadelas (M énon, 80a-b). A educação socrátiea é uma educação activa: «és tu que o dirás», e enganar-nos-íamos se tomássemos aqui com o modelo o pequeno escravo do M énon, bem obe» Haveria que fazer estudos de certos elementos psicológicos em Platão (percepção, memória, aprendi­ zagem, Imagem, etc.). Não podemos, evidentemente, sequer esboçar aqui esses estudos. Excepto no respeitante à memória (e sobretudo à reminiscência), não parece que os especialistas tenham respigado grande coisa a propósito deites assuntos. Por outro lado, Pla­ tão consagrou um importante diálogo à linguagem ( Crátüo)*

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diente e dem asiado sábio; a verdadeira criação requer espíritos m ais inclinados a espantarem -se e a dizerem não com o C ébes10, com o A lcibíades, com o Calicles e com o o jovem Teeteto, a quem Sócrates dirige em elogio as suas célebres obser­ vações: «É perfeitam ente próprio de um filóso fo este sentim ento: espantar-se. A filosofia não tem outra origem , e aquele que fez de Íris filh a de Taumas parece ser bastante com petente em genealogia» (155d). E ste espanto requer, por­ tanto, duas coisas a o m esmo tem po: boas qua­ lidades naturais e os encorajam entos daquele M estre que Platão fa z descrever por Sócrates: «Sou o m oscardo que, todo o dia, não cessa de vos acordar» (A pol. S oer., 30e). Ê num encontro que aparece, portanto, o espanto. E ncontro com as coisas sem dúvida, com esse m istério de percepções am bíguas, simultaneamente grandes ou pequenas. Mas, sobretudo, e sem dúvida necessariamente, pelo menos de início, com um M estre. Contudo, se se pode evocar aqui a acção de um adulto, é preciso, com Brès ou Chatelet, m arcar bem que este adulto não é nada na aparência o adulto gratificante sobre o qual a criança m odela o seu ser: «Sócrates encarna a ausência», diz, bem, Brès (p. 8 7 ); com efeito, ele ajuda não a resolver problemas, mas a colocá-lo®, o que é m elhor. É um m estre que usa um m étodo activo, 10 Fédon, 63a, «Sócrates escutara Cébes e gostara tía dificuldade que ele levantara... Na verdade, disse ele, Cébes está sempre em busca de algum argumento: não tem a menor tendência para acreditar imediata­ mente no que lhe dizem». O espanto não é passivo, como a surpresa, é o momento negativo que introduz a uma nova etapa, inclina-se já para a sedução do problema.

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mais próximo de um guru que de um pai11 e que, na seqüência disto, se apagará. Resta que Platão, mesta análise do espanto, atribui um lugar central ao social: serão precisos séculos para reencontrar esta linha directora12, contentiar-nos-emos em fazer apelo às diferença» individuais que também Platão assinalara. 4 — O procedimento Intelectual e a psicologia da verdade Em Platão, como em Montaigne, a alma tem vários estádios, mas, tanto no Teeteto como na Republioa, estes estádios não têm o mesmo valor, são como degraus da escada que sobe na direcção de Deus, como etapas na dialéctica e na virtude* Contudo, se há um apelo de rea­ lidades inteligíveis e divinas, há também forças que chamam para baixo: o cavalo branco de Fedro deve lutar contra o seu camarada, o cavalo negro, a fim de cumprir as ordens do cocheiro que é o nous. Parece então que se pode parar a cada etapa, que cada uma possa bas­ tar-se a si própria: o pensamento confuso não 1 1 São bem-vindas as considerações inspiradas pela psicanálise que Brès aqui faz. Só que Platão não encara ufria educação familiar: nem o amante do Banquete é um Pai. O Mestre é apenas um Mestre em ciências, mesmo que deslize para o amante. Ê por isso que a continuação da história intelectual o verá esfumar-se pouco a pouco, à medida que o sujeito do filósofo e o próprio filósofo, quer dizer, Platão, se afastam de uma inteligência «activada» para uma inteligência «activa». Então poderão aparecer «daímons» interiores, uma espécie de Mestre interior. (República, ix, 589a-b.) 12 A célebre «admiração» cartesiajna nada tem de social. Nem mesmo mais que «a conduta do Ah», notada por Kõhler.

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é aqui uma espécie de regressão, de doença, do pensamento claro e, para o compreender, não é nada necessário — com o em Descartes ou em L eibniz— compreender o pensamento claro; é somente quando este pensamento confuso apre­ senta contradições, com o as do pequeno e do grande no mesmo objecto, que chama em seu auxilio o pensamento claro; mas não o envolve necessariamente nele. Não nos parece nada que se possa, em Platão, fazer verdadeiramente caso de uma emergência progressiva das Ideias (com o mais tarde em H egel), nem de uma queda (com o em Plotino ou em D escartes). Cada estádio de pensamento corresponde a um objecto que lhe é próprio, mais ou menos com posto de Mesmo e de Outro, e a passagem dialéctica de um ao outro supõe a entrada em jo g o de forças opostas que se equilibram tão depressa num ponto como noutro, residindo estas forças no nosso próprio ser ou dependendo da nossa natureza primitiva ou sendo com postos desta com as realidades externas18. Abordando este problema de diferentes ângu­ los em quase todos os seus diálogos, Platão não parece distinguir entre o procedimento psim Há em todo o platonismo um continuado esforço para conciliar as influências vindas de fora, tanto sociedade com Ideias, com uma independência — e uma responsabilidade — interior. As influências externas compõem assim em nós uma espécie de «meio interior» (como diz Leroi-Gourhan): as recordações das Ideias na origem dos nossos saberes mais válidos têm como respondente no plano social um thymos guiado pelo social, b por este apelo, de resto continuado nele, a composições, a intermediários (os metaocu), segundo uma justa medida (m etrion}, que Platão assegura a cada qual a, sua salvação e a Deus a sua inocênciaPsicologia de artista, esta!

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eológico quotidiano e o d o filósofo. Não é que ele despreze o primeiro, o dos marceneiros, carpinteiros de carros e curtidores de quem fala Sócrates, mas ele aparece-lhe — assim o teste­ munha o mito da caverna— com o um esboço d o processo dialéctico. A aetividade psicológica contém sempre em si própria a sua dialéctica: o curtidor toma o mesmo caminho que Sócrates, mas avança menos. N ão há, de nenhum modo, duas espécies de vocação, e dois modos de saber e de ju lgar: alma e pensamento uniformizam-se. N os diálogos, Platão não acentua sempre o mesmo aspecto do conhecimento, varia os escla­ recimentos, mas o tema é sempre o mesmo e, mais que um estudo do psiquismo, o que Platão procura é uma dialéctica, um conjunto de garantiás e de instrumentos visando progredir. Diga­ mos de novo a palavra: é uma «psicologia da verdade» que para ele vale, no que está bem longe de muitas psieologias contemporâneas. Se ele concebe uma ciência objectiva das matemá­ ticas ou da música, à parte de qualquer apli­ cação, o mesmo não se passa no que respeita à psicologia ou, por outro lado, à sociologia. Ciências matemáticas puras, pois seja; ciências humanas puras, de modo nenhum: serão ainda precisos muitos séculos para que esta noção apareça. Compreende-se, assim, que Platão não se tenha debruçado muito sobre os estádios infe­ riores do pensamento. Ele não ignora nem as associações de ideias, nem as aptidões indivi­ duais (às quais volta frequentem ente), nem as ilusões dos sentidos, nem os problemas da memó­ ria, ou os do erro, nem a influência do social, mas contenta-se em assinalar tudo isto de pas­ sagem. Ê que para ele o verdadeiro saber não

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se pode encontrar ao nível do sensível;, aí ainda só encontramos a simples conjectura perceptiva (eihasia) ou, graças a um início de organização, a crença (p istis) da experiência vaga, da opinião (dooca) (R epublica, 511d). Ora, para alcançar uma ciência é preciso ultrapassar a simples opinião, mesmo quando se trata de uma opinião certa, porque esta tem falta de garantia. Ela pode proceder de uma inspiração interior que nos permite julgar bem sem possuir verdadeiramente o conhecimento das coisas, mas estes juízos certos não deixam de ser ins­ táveis, desvanecem-se com o as estátuas de Dédalo (M énon, 97d), «evadem-se da alma humana, de modo que não são extremamente preciosos enquanto não são ligados por um raciocínio causai... ei® o que é a reminiscência. Mas, uma vez assim ligados, eles são estáveis... é a existência de uma ligação que tom a dife­ rentes a ciência (ep istêm ê) e o ju ízo certo» (M énon, 97a). A opinião certa possui, na ver­ dade, um incontestável valor prático (ibid ., 97c), e não é preciso desprezá-la, mas respeitar aque­ les que neste dom ínio beneficiam de uma inspi­ ração maravilhosa (th em ), «os sábios que, sem que haja neles pensamento (m â noun exonte s ), reúnem uma quantidade de coisas impor­ tantes entre aquelas que fazem ou dizem» (ibid ., 9 9 c); mas ter capacidade de julgamento não é ter ciência, e o simples julgam ento pode conduzir ao erro. É, portanto, preciso ligar os juízos entre si e, meste ponto, o T eeteto continuará fielmente o M énon, mas colocará finalmente o problema de saber em que pode consistir a justificação do juízo verdadeiro: se, para ju stificar um juízo certo, é preciso associar-lhe um juízo verda­

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deiro, este últim o não deixará ser, por sua vez, ju stificado? N ão andamos à roda? Nada de espantar, portanto, se o T eeteto, depois de uma análise ser pormenorizada dos primeiros estádios do pensamento, nada conclui, porque colocar este problema é reencontrar a velha aforia do terceiro homem: se uma hipó­ tese ou um modelo se justificam por uma outra hipótese ou por um outro modelo, a cadeia das justificações é indefinida, não está fixa em ponto nenhum; o pensamento discursivo não é sufi­ ciente. N ão há dúvida de que todo o platotonism o — e isto condicionará todas as psico­ logias da verdade que se seguirão— está suspenso de um ponto de apoio ao qual ligar a verdade. O que faltará um pouco a Montaigne, o que Descartes procurará no C ogito, procura-o Platão nas Ideias. Mas a sua solução é mais flexível que as dos teólogas cristãos ou a de Descartes. É preciso, com efeito, em conseqüência do fim do livro v i da R epublica, distinguir dois tipos de raciocínio. Um parte de hipóteses e fica-se por um domínio hipotético: «enquanto eu dizia inteligível este modo de pensar, por outro lado, eu dizia que, para conduzir aí a sua investigação, a alma é forçada a recorrer a hipóteses, a não se dirigir ao princípio, enquanto é impotente para ultrapassar o nível das hipó­ teses» (511a): trata-se então da geometria e das ciências semelhantes. Mas, acima da ciência, há um modo de conhecimento superior, já não intermediário entre a opinião e a inteligência com o o conhecimento discursivo da ciência (dian oia), mas bastando-se a si próprio, o conhe­ cim ento dialéctico: em vez de tomar as suas hipóteses com o princípios sólidos em si próprios,

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a dialéctica só vê neles «hipóteses simples que são como que os graus e os pontos de apoio parà se elevar até ao princípio de tudo que já não admite hipótese ( a/nupotheton) » (511b). A esta via ascendente juntar-se-á, de seguida, uma via descendente que, partindo do princípio e talhando o real seguindo bem as suas arti­ culações, com o faz um bom carniceiro (F ed ro, 265e), permitirá um conhecimento perfeito das coisas. Mas esta via descendente (exposta no P olítico, no S ofista e no F ilebo em particular), que será explorada por Aristóteles e pelos Academistas, é menos característica do que a via ascendente. Com esta, a filosofia dá lugar a um modo de conhecimento que coloca múltiplos problemas. A quilo que ele faz conhecer, já não é somente as qualidades dos seres, o seu poion, mas o seu ser (cm ), a sua essência íntima ( Carta V II, 343b-c). Isto não é possível sem uma compreen­ são total do ser, do ser absoluto e total (o pamtelôs on da R epública, 477a), sem uma ciência última e integral, uma m egiston mathema (Repú­ blica, 504e), ciência simultaneamente do Verda­ deiro e do Belo. Ê uma tal ciência suprema possível desde esta vida? A nossa única espe­ rança é a de nos aproximarmos o mais perto possível? B isto que deixam acreditar textos com o aquele que ooloca o Bem «além da essên­ cia, em dignidade e em potência» (epekeina tês ousias, R epública, 509c) ou esta confissão do Tinneu: «descobrir o autor e o pai deste uni­ verso é uma grande proeza, ma® é impossível divulgá-lo a todos, uma vez descoberto» (28c). Sem dúvida, o Fédon (è o Fedro) já tinham prevenido: é só depois da morte que o homem poderá contem plar as realidades inteligíveis e

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aquele incompreensível Um, enigma do Parm énides, que se dissimula ainda por detrés do Deus criador do Timeu. Más não é este o destino de todas aquelas filosofias que, pensando ultrapassar a psicolo­ gia, nos conduzem a uma apreensão misteriosa de inteligíveis também m isteriosos14? Já não estamos no terreno da psicologia e do poion, mas no do on e da ontologia. O nosso caminho, o dos psicólogos,, segue uma outra direcção. N ão é por isso menos verdade que, a não ser que se escamoteie a psicologia da verdade, o psicólogo deve tentar dar bem conta das causas que nos fazem acreditar que esta ou aquela opinião é verdadeira. Se Platão não resolve o problema, mostra-nos, pelo menos, que não é pelo que respeita ao simples raciocínio que encontraremos o ponto de apoio necessário. Estando os níveis assim fixados,, é pos­ sível compreender o processo intelectual, aquela subida das percepções às Ideias que a célebre alegoria da caverna descreve no início do livro v n da R epublica. Aquilo que os prisio­ neiros, amarrados na profunda caverna, vêem na parede do fundo, e a única coisa que eles conhecem, são apenas reflexos, projectados como num écran, de objectos fabricados transportados 14 Para sair de dificuldades, sem cair num misti­ cismo pouco filosófico — sobretudo para Platão enve­ lhecendo—, é certamente possível fazer intervir a ins­ piração, a aproximar a noêsis da inspiração dos sábios (ton) ou dos amorosos (Êanquete) ou mesmo da grande poesia (Píndaro, por exemplo). Depois dos seus con­ tactos com o orfismo, Platão ficará sempre um pouco tentado por estas comparações, mas dá-se bem conta das confusões possíveis, è é por isso que ele procura um método racional estrito. Dai essa ambigüidade pla­ tônica frequentemente estudada pelos comentadores.

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por escravos diante de fogueiras. R eflexos de reflexos, portanto, porque os objectos fabri­ cados não passam, eles próprios, de reflexos de objectos concretos. Mas esta sim bólica do reflexo encontra-se por toda a alegoria, e é de reflexo em reflexo que progride o homem que, uma vez solto, é atraído em direcção à luz: reflexos no écran, reflexos nas águas, sombras,, tudo isto só tem realidade através de realidades inte­ ligíveis (das quais o sol é também um reflexo) e, para além das essências, através do Bem-Um que é m odelo e força ao mesmo tempo. Contudo, esta alegoria célebre não aprofunda ainda bas­ tante o problema parque, já o sabemos, mais do que em reflexos implicando modelos imóveis, é preciso pensar em intermediários, em relações-potências que, com o «daímons», actuam entre os diversos níveis do ser com o entre os diversos níveis — correspondentes— do psiquismo. Isto não é senão uma espécie de primeira aproxima­ ção, e o lugar, talvez excessivo, que a tradição lhe deu na compreensão do platonismo, não contribuiu pouco para o estagnar. Esta alegoria permanece, contudo, demasiado rica para que nos escusemos de observações importantes a seu respeito. Uma é relativa ao facto de o prisioneiro, uma vez solto, ser, quando se volta, ofuscado pela luz e de ser preciso obrigá-lo a subir para «o mundo de cim a»: digamos que, para Platão, a educação não decorre do próprio, é preciso que a sociedade aja, aqui,, e mesmo que por constrangim ento15. A apreensão do saber ou a virtude seriam impos­ « Dai o papel capital da educação, sempre subja­ cente em Platão. Porque a virtude não ê «de natureza», o «bom natural» não é aí bastante, como Platão diz no Ménon (89a-b) e bem frequentemente, de resto.

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síveis se nenhuma ajuda social (guru ou mestre ou colectividade) viesse activar o impulso que está em nós. Ora, esta mesma observação vale também para a descida: quando o nosso filó­ sofo viu a luz do Sol-Bem, é preciso ainda forçá-lo a descer de novo para junto dos seus antigos camaradas,, e ele é ofuscado pela obs­ curidade com o antes o fora pela luz. Mas a Lei da cidade não lhe perm itirá «recusar voltar a descer para junto dos prisioneiros, em baixo, e tom ar parte nos trabalhos e distinções com im portância para essas pessoas» (519d ): com efeito, só o filósofo que apreende as razões das coisas pode explicar estas razões,, educar e governar. A inteligência aparece, assim, com o um «imenso desvio» e esta concepção, por muito tempo negligenciada, parece ter voltado a ser hoje das mais actuais, em particular depois de Kõhler. O sábio, para Platão, não é nada aquele que, por exemplo, martiriza as cordas para encontrar acordes musicais, mas aquele que deduz a verdadeira música de uma matemática inteligível. O retom o aos existentes só visa a aplicação. Distingue-se, assim, no mais alto grau do desvio científico que os modernos utilizam Para estes, é nos existentes, nas bases expe­ rimentais, que se encontra o ponto de apoio da verdade. Pelo contrário, quando o filósofo pla­ tônico desce às coisas, está já de posse de rea­ lidades indiscutíveis: a sua descida consistirá apenas em analisar de algum modo realidades por um m étodo de dicotom ização que o S ofista e o P olítico dão a conhecer: a pesca à linha pertence à arte de adquirir (não de produzir), de adquirir por captura (não por troca), etc. (S ofista , 219 e segs.). Saber-161 —■4

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Dois tipos de desvio aparecem, assim ; diga­ mos que um é de ciência e o outro de ideologia (consoante se interprete o desvio platônico colo­ cando um ponto de apoio nos existentes ou con­ servando-o ao nível das ideias e das palavras), mas os nossos ideólogos de hoje já não fazem caso das Ideias eternas de Platão, e o seu edi­ fício fica, assim, no ar, com o muito insistiram tanto A. Comte com o Marx. E, contudo, Platão quem também aqui abriu cam inho; e, além disso, teve o m érito de tom ar em consideração factores afectivos e sociais que frequentemente uma psicologia científica demasiado intelectualista ignora. É justamente por isso que, em Platão, a psicologia da inteligência, que se alargou numa psicologia da verdade, toma em consideração dois processos essenciais quase ignorados pela psicologia científica actual. O prim eiro é a puri­ ficação (h a th a rsis): somente a dialéctica não bastará, não apenas ao filósofo do Fédon ou do B anquete, mas também ao da R epública ou do Fedro, porque «não ser puro e apoderar-se, con­ tudo, do que é puro, eis o que não é perm itido» {Fédon, 67b ). Se, na seqüência, Platão acentuou sobretudo a dialéctica intelectual, nunca separou a Verdade do Belo e do Bem. E de aí resulta que há sempre um certo form alismo na psicolo­ gia platônica, com o na moral. Se, com efeito, as essências são relações e não modelos imó­ veis, a ordem vai ocupar o m aior lugar; é inse­ parável da excelência de toda a realidade e, em particular, da alma (Gárgias, 506e); é ela que dá valor ao Cosmo e une nele céu e terra, homens e deuses {ibid ., 508a). Platão toma mesmo, por vezes, a este propósito, acentos kantiano®, com o neste texto do Banquete (181a):

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«nenhuma das nossas acções em si própria é uma bela acção, mas é, eventualmente, do modo de a fazer que resulta para ela um tal carácter». Ainda mais, «não há absolutamente nenhum acto, qualquer que seja, que, com a condição de, pelo menos, ser realizado segundo a ordem e a regra, possa com portar uma repro­ vação legítim a» (ib id .). Compreende-se, por­ tanto, que, mais tarde, no F ilebo, ainda que mais preocupado com as coisas deste mundo, Platão dê um lugar de eleição ao m etrion, para equili­ brar os elementos que constituirão o bem. O segundo processo consiste numa impregna­ ção afectiva e progressiva de todo o ser, impreg­ nação que é assegurada em particular por encan­ tamentos e mitos. Platão é tanto mais inclinado a dar importância a estes elementos, posto que permanece sob a influência das religiões de salvação. É um verdadeiro encantamento que, por várias vezes, Sócrates pede ao seu inter­ locutor (Cármhdo, 157a; Fédon, 78a e 114). Se o Cárm&do censura o ensino do encantamento médica. o Fédon m ostra que, quando a verdade está escondida, o encantamento do m ito permite ao espírito progredir enquanto a dianoia verga; e, expondo o m ito final do Fédon, Sócrates «pro­ longado» de propósito (114d), porque é preciso que nos encantemos com este «belo risco» que é a imortalidade. A consideração desta impregnação impli­ cava, evidentemente, uma tomada em conside­ ração de outros homens capazes de agir neste sentido sobre um sujeito humano e, particular­ mente, sobre uma criança ou um jovem . Platão colocou-se o problema por várias vezes, a pro­ pósito dos pais, verificando que os mais vir­ tuosos dos pais tinham, por vezes, filhos indig­

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nos deles (P rotágoras, A lcibíade I , L achès, M énon, R epública, i x ) ; a co-presença e mesmo o encontro entre pai e filh o que im plica a syncm sia (coexistência e coessência ao mesmo tem po) não parece m uito efica z: se Platão se colocou este problema da influência benéfica do pai sobre o filh o, que está h oje no proscênio da psicanálise, é preciso confessar que a sua resposta é m uito desalentada — o que explica a comunidade dos pais na R epública. Sobre a influência do amante sobre o amado (no con­ texto espiritualizado da pederastia grega ), Pla­ tão é menos reservado e não se pode contestar o papel essencial que o am or desempenha no progresso dialéctico quando Platão escreve o B anquete ou o F ed ro e diz que podem e devem coin cidir o am or dos rapazes e o am or do saber (Banquete, 184d). Ê de notar que Platão permanece sem pre m uito reservado quando, contra conservadores (A nytos) ou jovens (Alcibíades, C alicles), considera que a m ultidão ( o i poTUn) não ensina nunca a virtude e a ver­ dade só pela sua presença (syn cm sia). Só o poderá fazer um m étodo dialéctico sólido, com a condição, contudo, de nele se ser longamente instruído por um m estre filósofo. Mas também aí será preciso tem po e, quando encara o ensino da filosofia, Sócrates insiste nas precauções e no tem po indispensáveis (R epública, v i, 4 9 8 a -c): é uma acção directa que pode perm itir ao dis­ cípulo aprender lentamente com o praticar a dialéctica. A este propósito, só o encontro é eficaz, quer dizer, a palavra, e não os escritos: esta afirm ação do F edro encontrar-se-á de novo na C arta V II. Com estas últimas observações ultrapas­ sam os de fa cto a psicologia da verdade, porque

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tudo o que acabám os de dizer valeria igualmente para condutas não cognitivas. Inversamente, por outro lado, a natureza e o papel do thym os, dos quais vam os falar, respeitam , do mesmo m odo, ao conhecim ento, Pois Platão sabe bem, e vem o-lo o m elhor possível no Bom quete, que não se podem separar acção, am or e verdade. 5 — O coração Se a alma é portadora de verdades, quer estas sejam colocadas nela antes do nascimento, quer pela acção da experiência e da sociedade, vai ser preciso dar-lhe um corpo, tom á-la mais cheia e mais pesada que o espírito. Isto é tanto mais indispensável se esta alma deve com andar os nossos actos, vencer os nossos dese­ jos, triunfar dás tentações. Esta necessidade não está forçosam ente m arcada no F édon, onde a única ajuda à elevação da alma reside na influência do guru, mas está no mais alto grau do B m qu ete, que dá o mais am plo lugar aos interm ediários, aos m etaxu. O am or é um interm ediário, análogo nisso à opinião certa (Bom quete, 202a), mas é um interm ediário móvel,, nota m uito bem Diès que traduz mesmo m etaxu por «im pulso» (pp. 434-435 e n ota ). Ê, com efeito, a noção de im pulso que intervém aqui: o am or é im pulso com o a relação será dynamnÂs. Ã isemelhança da alma, o am or possui uma natureza de «daím on» com posta do Mesmo e do Outro, e activa; é por isso que nos podemos elevar d o am or dq um ser único até ao amor de Deus (Bem, Belo e V erdadeiro), por etapas sucessivas e com o por uma dialéctica am orosa que parece, assim com o a dialéctica intelectual, um dos aspectos da ascensão geral da alma.

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Ora, esta força interior, este im pulso que o A m or revela, não se encontra no que respeita ao espírito, ao pensamento puro (m u s e n oesis). O nous é som ente o frá gil cocheiro d o F ed ro que sabe onde conduzir o carro da alma. Assim , depois d o dualism o algo brutal do F édon, vê-se aparecer, a partir da R epública e do F ed ro, um terceiro elem ento da alma, interm ediário entre os desejos e o intelecto: é o thym os represen­ tado no F ed ro pelo cavalo branco e dócil, am igo da opinião certa (25Sd) com o o am or d o Ban­ qu ete. A interpretação deste thym os não deixa de ter dificuldades para o psicólogo, mas é essencial e, portanto, tom arem os ao assunto. O thym os tem uma base constitucional, com o o prova o seu aparecim ento precoce nas crian­ ça s: «desde o início da sua existência, estão cheias de im periosa vitalidade (th y m o s), mas, no que respeita ao raciocínio, há algumas que, em minha opinião, nunca o alcançam, enquanto o fa cto é tardio para a m aioria» (R epública, 441a-b). N ão se trata aqui, para falar com exactidão, da cólera, com o por vezes se d isse 16, e Platão não usa o term o thym os mas o vizinho org ê quando, na R epública (440a), qualifica o thym os a braços com a cólera contra si próprio. O thym os é «o ardor do sentim ento, aquilo em virtude do que nós ardemos de um generoso ardor» (ib id ., 439e, trad. Robin, com o preceden­ tem ente). Trata-se aí, sem a menor dúvida, de uma espécie de terceira força prim itiva, intro­

i« As expressões variadas que os tradutores utilizata para traduzir a palavra thym os (e das quais damos alguns exemplos) testemunham bastante a difi­ culdade em que eles se encontram.

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duzida entre a razão e os desejos. Ora, é de observar que ela varia segundo o s indivíduos (o que confirm a o seu aspecto constitucional), e que, para escolher os guerreiros e, depois, entre estes, os filósofos, é preciso ter em aten­ ção justam ente esta aptidão antes de os educar. O thym os seria, portanto, um im pulso prim itivo intelectualizado, com o M oreau diz bem, mas parece-nos excessivo falar, com ele, de um «ins­ tin to de cólera» (p. 243). Sem dúvida que tal concepção apresentaria a vantagem de se reu­ n ir h oje à psicologia que atribui m uita im por­ tância à agressividade, mas esta interpretação dem asiado lim itada encobre o fa cto de a posse de, um thym os vigoroso ser tã o necessária aos filó so fo s quanto aos guerreiros; e, por outro lado, ela corta dem asiado a doutrina da R epú­ blica ou do m ito do F ed ro daquela que, no B anquete, une a ascensão dialéctica ao Am or. Se o thym os pode ser simultaneamente cólerá e am or, é porque ele é m ais do que um e do que outro. Ê nos desejas, no épithym êtvcon, que cólera e am or tomam as suas bases específicas a nível biológico, mesmo que, de seguida, dele em erjam para ajudar uma subida na direcção da sabedoria. P elo contrário, o th/ymos é bem diferente tanto dos deseje® com o dos instintos: concluindo a sua anedota de Léontios na R epú­ blica (rv, 440e), Platão escreve: «o ardor do sentim ento apresenta-se aos nossos olhos em oposição ao que acontecia mesmo agora: julgávàmosi então, com efeito, que era uma espécie de desejo ardente; dizem os agora que lhe falta m uito para isso Cos alho on a lio )» 17: quando 17 Platão insiste demasiado vigorosa e claramente neste ponto para que possamos admitir uma comum

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Léontios, recusando o desejo perverso de ir olhar os cadáveres, se encoleriza (orgê) consigo próprio, o seu thymos é então uma força de controlo, participa do espírito, do nous, possui, mesmo na sua cólera, qualquer coisa de espi­ ritual 18. origem das duas força s m ortais da alm a (excepto, evi­ dentem ente, a sua dependência do dem iurgo), com o aquela que supõe B rès quando, depois de ter afirm ado que «h á visivelm ente uma relação entre a n oção pla­ tôn ica de th ym os e a noção freudiana de superego» (o que não con testam os), continua: «nos dois casos uma instância constrangedora extrai a sua força daquilo que ela tem obrigação de coagir» (p . 14 do relatório d e 1973). P latão tem justam ente sobre Freud a van­ tagem de não ter nenhuma necessidade de um a «dessexualização» ou m esm o «deslibidinização». is ê , sem dúvida, bom lem brar que se encontra em P latão um certo parentesco entre o thym os e a o rg ê. A o rg ê é, antes do m ais, com o sentido prim eiro, uma a gitação interior que dilata a alm a, depois, sentim entos violentos e apaixonados, antes de ser ressentim ento e cólera. P ara com preender m elhor o sentido da palavra, pode-se pensar que é aí que está a fo rça que alim enta as loucuras orgíacas, pode-se tam bém lem brar que, na sua origem sânscrita (de uma raiz que sign ifica suco, v ig o r), a o rg ê aparece com o uma dilatação de seiva, um a efervescência do sangue e dos ardores (donde o orgasm o). N ada, portanto, de razoável em si, m as uma espécie de im pulso fo ra de si que desliza facilm ente para o excesso, um a propensão para rom per as bar­ reiras, para ir m ais longe, uma arrem etida para a ctos e horizontes novos (d a í a sua im portância nos m isté­ rio s ); no lim ite, será a desm esura, a ú bris. Diríam os, sem cu sto, que este tertno ícaraeteriza m elhor o indi­ víduo que tem seiva, tem peram ento, assim com o a per­ sonalidade fo rte de P avlov. Ê esta a base biológica do th ym os. M as, quando P latão em prega o term o th ym os, con­ sidera frequentem ente um in flectir desta base biológica, operado pela a cçã o social, para a coragem ( com o no gu erreiro) ou para o am or, e, neste caso, a n oção pri­ m itiva que subtende o rg ê e th ym os distingue-se m elhor

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Repitamo-lo, o thymos é um elemento consti­ tucional, distinto simultaneamente do nous e do epithymíétioon. Como o cavalo branco do Fedro, pode obedecer à razão, mas também aos dese­ jos, ao cocheiro ou ao cavalo negro. O que o caracteriza é o seu ímpeto, a sua força. É por esta potência que ele pode ser útil à pálida e frágil w êsis, que pode conter o cavalo negro — e talvez mesmo a dicmoia, se esta comete erros. Que singular potência, esta; não é verdadeira­ mente compreendida e lhe reconhecem os méri­ tos já tarde porque, segundo a célebre fórmula da República (540a), são precisos cinqüenta anos para fazer um homem. Platão não se preocupou nada com isso quando se deixava levar pela inspiração do Fédon ou mesmo pelo amor do Bcmqwete: o thymos agia nele, mas não ainda suficientemente reconhecido, assediado, respei­ tado. Com a República, depois o Fedro, a tomada de consciência do thymos descobre nele um princípio^ mais espiritualizado, mais próximo das razões. É de notar, com efeito, que esta tomada de consciência se opera também no momento em que Platão parece, a muitos, escor­ regar para um intelectualismo; é que a intelidos d esejos (enquanto, na cólera, se distinguia m elhor da ra zã o), e P latão pode escrever dela: «diríam os antes que, quando se levanta um a rebelião na alm a, ela p ega em arm as a fa v or da razão» (R epu blica, 440e). Logo, não tem os de, dem asiado rapidam ente, assi­ m ilar o th ym os, quer aos desejos, quer a qualquer arrebatam ento, o rg ê ou u bris. O arrebatam ento pode v ir de ou tro lado, com o em certas irrigações que, por vezes, P latão lem bra (a g a le ). O th ym os é, etim ologicam ente, um sopro, um vapor (ra iz indo-europeia d h eu : a alm a virá dele com o um segundo sentido da raiz, m as um a alm a princípio da viida, ligada ao corpo, uma alm a voluntariosa, não uma alm a m editativa).

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gência de Platão não é a inteligência magra e eeca dos lógicos; e, quando ele parece operar um deslize intelectualista e eliminar o seu fervor pelas ideias humanas, ao mesmo tempo ele opera uma espécie de volta e restaura este fervor, melhor compreendido, num princípio distinto. A inteligência platônica supõe sempre «um movimento para ir mais adiante», como dirá Malebranche. Por detrás do movimento dialéctico, são todas as potências do coração, em todos os sentidos desta bela palavra, que subsistem e suportam o intelecto. Coragem, e mesmo por vezes cólera, seja, mas também amor e este dom de si que trará o filósofo de volta à caverna. Não há inteligência eficaz sem thym os, com o não há Estado sem guerreiros. A inteligência pede uma abertura e, com o os guerreiros não servem somente para defender, mas também para conquistar, o thym os também tem uma vocação de conquista, desliza facilm ente para a ambição, para o desejo nobre de sobreviver a si próprio, para o dom de si pelo am or: com o o nota finamente P. Moreau (ibid ., 288 e segs.), entre os guerreiros da R epública e o® enamo­ rados descritos por Diotim a no Banquete há parentesco. Esse parentesco que, com o na cava­ laria, alia sob a mesma palavra de coração simultaneamente o sentido masculino da cora­ gem e a ternura feminina. Se este impulso prim itivo do thym os aparece com o neutro, esta neutralidade é mais favorável à razão. Sem dúvida que o guerreiro que este impulso caracteriza se situa com o que a meio caminho entre o filósofo chefe de Estado e os artesãos, mas estes últimos estão bem longe dos guerreiros, e as tendências aristocráticas

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de Platão reencontram aqui a sua psicologia. Em oposição com os desejos encontra-se o th y­ m os pela sua possibilidade de obedecer à razão; com o o cavalo branco, é a «m elhor» parte da alma mortal (Tim eu, 69e), e é por isso que «a parte da alma que participa da coragem e do ardor (cmdrevus kai th ym ou ), a alojaram mais perto da cabeça, entre o diafragm a e o pescoço», colocando mais em baixo esta espécie de alma que é com o «um animal selvagem » (ibid ., 70a e 70e). Pelo contrário, a partè inferior da alma mortal é má por s i; o Fedro descreve o cavalo negro com o um «animal mau» (255a), e o Timeu dá conta de uma perversão que viria não de fora (exa th en ) mas de dentro ( enãothen) da alma, e à qual o coração, cheio de thym os, teria por missão responder (70b). Sem o coração e o th/ymos, o espírito seria impotente. O thym os é o contram estre forte e inteligente — mas não o engenheiro— , sobre o qual repousa a condução do empreendimento. < Compreende-se por aí o seu aspecto social, porque qualquer intelectualização é também socialização. Platão mostra bem este aspecto do thym os (im plícito no Am or Ao B anquete, esse antepassado do th ym os), quando, nos livros v m e ix da R epública, analisa as más constituições políticas e sociais: o homem tim ocrático, no qual predomina o thym os, entregou em si a autoridade à «parte intermédia, aquela que gosta de triunfar e que tem ardor no senti­ m ento; em suma, tornou-se um homem de espí­ rito altivo e am igo de honras» (550b)19- Mas

19 Alain, sempre alimentado de Platão, comentou muito bem, em vários propos, o problema do thymos

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não é justam ente o fim da educação prim eira conduzir para a opinião certa e para o dom ínio de s i próp rio — na fa lta d o saber d o filó s o fo — esse leão que tem os n o p eito? Ê -se assim tentado a ver numa certa form a­ çã o do th ym os (um a educação d o coração, teria d ito o B a n q u ete), a parte m ais sólida da v ir­ tude que, preludiando os exercícios dialécticos que precisarão desta base, forn ece já essa op i­ nião certa o essa th ei m oira que são, nos guer­ reiros, os substitutos da ciência filosófica . A este propósito, uma passagem da R epú blica é par­ ticularm ente cla ra ; aquela que, no liv ro v i, respeita à degradação possível d o «natural filó ­ s o fo » ( philosoph ou p h ysis) ; acontece com ele o m esm o que com todas as plantas ou todos os anim ais: «se o natural filó so fo encontra o ensino que lhe convém , é necessário que, desenvol­ vendo-se, alcance a virtude sob todas as suas form a s; pelo con trário, se é sem eado, cria raízes e cresce num terreno n ão prop ício, é tam bém necessário que, a m enos que encontre um deus para o proteger, produza todos os v ícios» (4 9 2 a ). Salvo esta últim a assistência, tan to os m aiores crim es com o as m aiores virtudes s ó podem ch egar de uma natureza fo rte (n ea m kê p h y­ sis ) — P avlov teria, sem dúvida, estado de acordo. Mas o m eio am biente é tã o im portante quanto a natureza, e «as almas m elhor dotadas, se encontram um a m á educação, tom am -se em inentem ente m ás» (ib id ., 491a). A m aldade, (ver Propos, Pléiade, Index: «Homme de Platon»). Tirou daí o personagem, que por vezes apresenta, do «homem-tambor» que se extravasa em palavras e projectos de vaidade— como o gorila que bate no peito para ate­ morizar o adversário com o barulho.

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com efeito, pode ter duas origen s: «m au, nin­ guém é por sua vontade, mas é por d efeito ue con stitu ição corp oral ou p or im perícia daqueles que o educaram que o m au se tom a m au» {Ti/meu, 86e). 33 por isso que o mau, se tem con sciên cia d e si próprio, deve pedir o a poio da sociedade num ca stig o (falaríam os h oje de uma psicoterap ia), com o é bem frisa d o n o Górgias. N esta perspectiva, a a cçã o educativa pode desem penhar o seu papel relativam ente a o nous, mas esta acção, que deve ser tardia, não aumen­ tará nada a sua eficácia na nossa actividade: o coch eiro, m esm o que conheça m elhor o seu cam inho, não pode a gir sobre as rédeas do c a r r o 20. Ora, a a cçã o d o m eio sobre os desejos isolados só pode ser, p or essência, nociva, nega­ tiva. !B, portanto, quando a a cçã o social e a m odelagem in terior reforçam e estruturam o th ym os que a actividade encontra estruturas sólidas. N ão tem os aí, n o fundo, atitudes, quer intelectuais, quer m o ra is?21 N este sentido o th ym os opera sim ultanea­ m ente um con trolo e um a d irecção (a o m esm o 20 o Cármido já usava o exemplo dos médicos: «é o cúmulo do disparate imaginar que se possa tratar alguma vez a cabeça isoladamente e por ela própria, sem tratar o corpo inteiro. Por conseguinte... é com regimes que prestam atenção a todo o corpo que eles tentam tratar e curar a parte doente» (156c), intro­ duzindo esta passagem uma análise do papel do encan­ tamento. Se, segundo a célebre fórmula, a virtude é uma ciência, ela não é só isto, porque há condições da ciên­ cia que residem num certo estado, do coração. Nunca o intelectualismo platônico apagou esta necessidade de um fundamento da verdade (diremos, de uma educação do cora çã o?) que não tenha colocado em primeiro plano o amor ou o thym os.

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tempo que uma assistência), mas também uma convergência dos desejos que constituem o épitfyym êticon. N ão esqueçamos, com efeito, que este, colocado ao lado do Outro, não é um mas muito diverso, é um animal monstruoso de várias cabeças (República, x, 588c), enquanto o thym os, um leão com uma cabeça, aparece assim mais próxim o do pequeno sábio que, no saco humano, representa a cabeça, e é facilm ente seu «aliado» (ibid ., 589b). Doravante, podemos conceber o que para Platão é a personalidade e não nos deixarmos ir em falsas analogias frequentemente apresen­ tadas. Deixemos de lado intuições geniais e rápidas que se sublinham, por vezes, para dizer que, em tal diálogo, Platão anuncia já uma teoria psico­ lógica que se desenvolverá dois mil anos mais tarde. Ê tal o génio de Platão e tal a amplitude da sua obra que esse jogo é demasiado fá cil: jogando-o, poder-se-ia também ver no Outro do S ofista uma premonição da teoria da relati­ vidade generalizada. Num dom ínio científico e sobretudo psicológico no qual Platão tinha ainda que desbravar, não é nada espantoso que Platão tenha, por vezes, tido visões cuja actualidade nos espanta. Mas, com o diz Aristóteles, quem, com uma flecha, não acertaria numa porta? Temos ainda que, e sobretudo pela teoria das Ideias, Platão vai influir em quase todas as teorias do conhecimento que se vão seguir (excepto, talvez, os Epicurianos)- Reencontra­ remos, portanto, ainda Platão, ao longo de toda esta obra, sem nem sempre o mencionar. O que merece, contudo, ser mencionado desde agora respeita à aproxim ação que, a propósito sobre­

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tudo da personalidade, se fez com teorias receates, em bases bastante amplas. E, em prim eiro lugar, com Freud, que apa­ rece, contudo, tão longe de filósofos que, por seu próprio testemunho, ignorava22. Pode ale­ gar-se a teoria dos mitos, a concepção de Eros no Banquete, mas o essencial parece-nos estar aqui no problema que o thym os coloca aos psi­ canalistas. Quis-se ver nele o equivalente do Superego freudiano (Klein, B rès), e ele desem­ penha, com efeito, o mesmo papel de função de controlo e de força de correcção; beneficiando das descobertas da inteligência (n o êsis), fo r­ nece-lhes a força ; até aonde o cavaleiro não poderia ir sozinho, este cavalo puxa o carro na boa direcção23; não é um puro ideal (o que jus­ tificaria a distinção entre Superego e Ideal do E u ). Mas, se se pode louvar Freud por ter assim restaurado o platonismo na nossa psicologia

22 Segundo Brès, que é inspirado pela psicanálise no seu estudo da psicologia platônica, a primeira apro­ ximação de Platão e de Freud teria si<Jo feita por Nachmansohn em 1915. P. Moreau cita um texto de Shorey, um editor inglês de Platão, que escreve que Platão «antecipa relativamente a tudo o que há de verdadeiro e de significativo na psicologia freudiana» (1930). Portanto, tentou-se, simultaneamente, elucidar Platão através de Freud e Freud através de Platão. Mas Jones, na sua célebre vida de Freud, não encontra, nenhuns factos que possam levar a acreditar que Freud se inspirou na verdade em Platão. Há convergência. 23 Descartes utiliza uma explicação anãloga para explicar a união da alma e do corpo, mas não distingue o cavalo branco do cavalo preto, permanece no dua­ lismo do Fédon; assim, falta-lhe o intermediário que permite pôr de lado o falso problema da união e explicar a eficácia das vontates humanas. Falta o thymos a todos os cartesianos.

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contem porânea, não faltam as diferenças entre o th ym os e o Superego, e são grandes. O th ym os possui uma base b iológica prim itiva que lhe é própria, e é bem distinto dos desejos (m esm o quando, sendo caso disso, integra alguns, com o o A m or d o B anquete) ; representa uma espécie de «prim itivo» bem diferente da libido freudiana, com o uma outra alma m ortal e, neste aspecto bem afirm ado por Platão, com o vim os, este está bem longe de Freud. O riginariam ente há, em Platão, algo d iferen te desta única libido que, pelos seus choques com os existentes e pelas transform ações que se seguem , dá nascim ento ao E go, a o Superego, a E ros e Thanatos, enfim , a todas aquelas instâncias da personalidade que aparecem e pululam na psicanálise. H om o trip lex, assim é o homem de P latão, um em três, com o o Deus cristã o (e, sem dúvida, não intei­ ram ente a ca s o ). A inda s ó se trata da alm a. Sem in sistir na parte im ortal da alm a, nous que a psicologia de 1977 não conhece, é preciso su­ blinhar em P latão este aparecim ento de uma instância nascida de elem entos diferentes dos libidinais e que, contudo, tem um enorm e peso nas vontades reais. H á, sem dúvida, aqui uma lição que a nossa p sicologia som ente com eça a com preender24.

6 — Conclusão M uitas outras n oções e problem as m odernos se encontram já colocados por Platão, sem am bi24 Ver a nossa obra P sychologie des attitudes in téllectuéUes, na qual, à semelhança de outros psicólogos contemporâneos, tentamos reencontrar esta linha platô­ nica em forças primitivas não libidinais e nos duplos constituídos pelas atitudes intelectuais e morais.

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guidade, além d e rápidas alusões. A insuficiência das estruturas intelectuais. O carácter disperso dos estádios in feriores do psiquism o, que neces­ sita de uma síntese e de um fa cto r desta síntese. A inteligência com o desvio, e a necessidade de volta r a buscar apoio nalgum ancoradouro con ­ creto n o fu n do da caverna. Os estádios d o pen­ sam ento. O s problem as de m etodologia e as estratégias intelectuais (dialéctica in clu ída)2*. A p sicologia diferen cial e as aptidões intelectuais e m ora is26. Quantos ou tros ainda! 25 A afirmação de que o social é como que uma ampliação do psicológico (República,, 358c, 435d, etc.) e. de que o método que, por conseguinte, Platão utiliza em toda a R epública poderiam lembrar um certo organicismo do século passado (Spencer, e mesmo Comte), mas guia-nos também para uma psicologia que se ins­ pira na história das funções psicológicas na sociedade (A. Comte. I., Meyerson). 26 a etapa descendente da dialéctica em que o filó­ sofo procede por dicotomia não prepara apenas a ciên­ cia classificadora de Aristóteles; introduz também as comparações e a psicologia diferencial: esta só é pos­ sível, com efeito, se, antes de considerar as diferenças, se colocaram os objectos a classificar muna mesma classe, senão, ficamo-nos pelo enxame de virtudes do M énon (72a) e, na falta de um conceito geral de vir­ tude, não se podem apreender as diferenças específicas ( os contrários devem primeiramente parecer-se, dirá Aristóteles). E, se na continuidade de Sócrates, Platão mostra com o procurar o conceito de virtude que se aplica a cada virtude particular (por exemplo, ibid., 72c e segs.), não lhe escapam as distinções a fazer e, na mesma passagem, ele faz o interlocutor de Sócrates dizer: «uma é a virtude de utn homem, outra a de uma mulher, e assim sucessivamente». Platão considera também bastante frequentemente as diferenças de natureza — e também de educação — entre os homens. Estas diferenças implicam diversas retóricas {Fedro, 271b), e não devem ser abandonadas demasiado rapidamente por qualquer aptidão geral (con-

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Mais im portante para nós é, sem dúvida, em Platão, a tom ada em consideração de noções e problemas que a nossa psicologia cien tifica do século x x ou a nossa psicanálise ou negligencia­ ram ou esqueceram mesmo. A intuição do sábio que não é apenas o insight dos G estaltistas, mas uma espécie de visão m oral e intelectual, supe­ rior ao raciocínio, no que é ajudada pela expe­ riência dialéctica ou pelo am or ou pelo thym os. Estes am ores diversos, e a diversos níveis, dos quais fala o Ba/nqucte e que h oje mal se vê apa­ recer nas teorias da UbMo. A noção de «ou tro» que é central no platonism o final, e que com eça a reaparecer na nossa antropologia e na nossa psicologia infantil, sem dúvida porque, na ori­ gem do pensamento propriam ente humano de

tra Górgias, 455a e sega.), estão na base da repartição nas três classes da cidade platônica (ver, em particular, República, 503). Contudo, não temos de nos fiar nos sinais da infância porque, «com as crianças, incerto é o resultado que no seu termo darã, tanto na ordem do mal como na do bem, uma predisposição da sua alma ou do seu corpo» (Banquete, 181e): Montaigne terá quase as mesmas expressões, pois também ele sabe todo o peso da educação. E, ainda que Platão insista frequentemente nas diferenças de memória (as ceras do T eeteto, 194a-e), de inteligência e de carácter (o «natural filósofo», e a tipologia
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im itação (nascido de uma synousia, m as pro­ longando-a) , é uma estranha com binação do O utro e do Mesmo. A crença na verdade, ou m elhor, os diversos níveis de crença, que ultra­ passam de longe as estruturas, num plano com ­ pletamente diferente. A psicologia das qualida­ des m orais, da coragem , da amizade, da justiça, da am bição; e a das qualidades intelectuais que delas são tã o próxim as. A da ordem e da medida que, com O utro e Mesmo, são das noções que o S ofista ou o Füébo mais alto colocam . Prati­ cando Platão, a psicologia de h oje não ganhará som ente qualidades de análise, de medida e de agudeza; encontrará também m uitas vias antigas e esquecidas, a abrir de novo.

CAPITULO n A R IS T Ó T E L E S

Biografia. — N a scid o em 384-383 na co lô n ia jó n ic a d e E s ta g ir a , n a M a ced ón m (d on d e o n o m e d e E s ta g ir ita q u e lh e f o i fr eq u e n te m e n te dado n a Id a d e M éd ia ). P a i m éd ico d o r e i d a M a ced ón ia . F a m ília su p o sta d escen d er d e E sciU ápio. A o s d e z o ito a/nos e n tr a n a e s c o la d e P la tã o te perm a/nece a í a té à m o r te d es te, o u s e ja , u m a d ezen a d e a/nosu M u ito a p recia d o , d iz-se, p o r P la tã o , q u e lh e ter ia ch am ad o « o L e ito r » e «a I n te ­ lig ên cia da e s c o la » , s,erá s em p re u m p la tow ista , n ão o b s ta n te im p o rta n tes d iv erg ên cia s. C u rta s esta d a s em T rô a d e e em M itilen e (p esq u isa s c o n c r e ta s d e n a tu ra ­ lista e d e p o lític o ). C ham ado em 343 p e lo r e i F ilip e co m o p r e c e p to r d e A lex a n d re (t r e z e a n o s ), c o m qu em m a n terá b oa s r e la ç õ e s . C om a m o r te d e F ilip e (3 3 5 ), r e g r e s s a a A te n a s e fu n d a a i a su a esc o la , o L ic e u ; r eú n e a í, g ra ç a s à a ju d a d e A lex a n d re, a p rim eira g ra n d e b ib lio tec a e u m a c o le c ç ã o d e d o cu m en to s c ien ­ tífic o s ; a e s c o la é u m a e s p é c ie d e com u n id ad e (r e fe i­ ç õ e s em c o m u m ). A r is tó te le s , con tin u a n d o um a tra d içã o v ís iv e l já n a v elh ic e d e P la tã o , fa z a i cu rso s ex cathedra. P erd id o o a p o io m a ced ó n ico co m a m o r te d e A le ­ xa n d re, e a m ea ça d o p o r u m a a cu sa çã o d e im p ied a d e, v o lta a C á lcis, p e r to d e E s ta g ir a , on d e m o rre em 322. C o n serv a m os a p en a s a lg u n s fr a g m en to s d o s seu s d iá lo g o s, p o e sia s e ca rta s, m a s n u m ero sa s r ed a cç õ e s e sc rita s a n tes e d ep ois dos seus cu rso s, e d estin a d a s a um a p u b lica çã o r e s tr ita d e in icia d os (o s s eu s a lu n o s). A su a co n cisã o , p o r v e z e s d ifícil, ju s tific o u u m a e x tr a o r ­ d in ária a b u n d â n cia d e com en ta d o res.

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O bra im en sa , em m ú ltip lo s d om ín ios . A ssin a lem o s o s ste g u m te s tr a ta d o s : Organon (tra ta d o s ló g ic o s : Analí­ ticos, Categorias, Tópicos, e t c .) , Física, M etafísica,

Da a lima, Da criação e da corrupção, É tica em N icóm aco, Política, Poética. * P la tã o é u m h om em p o lític o e u m p o e ta , Trmitas v e z e s n ã o s e p reo cu p a co m a co n clu sã o , a b r e p e r s p e c ­ tiv a s. A r is tó te le s é p ro fesso r,, m a is d o q u e ed u ca d o r: « a in te lig ê n cia », d izia P la tã o , u m a in te lig ê n cia e x tr a o r ­ d in á ria q u e o le v a a p ô r o s s e r e s e m ord em e a fa z e r d em o n stra çõ es e x tr e m a m e n te rig o r o sa s . M as e s ta in te ­ lig ê n cia e s tá d em a sia d o p e r to do in te le c to , n ã o é d e to d o a q u ela in te lig ê n cia d o co ra çã o q u e um thymos n o b r em en te ed u ca d o fo r n e c e — e o thym os desapa/rece em A r is tó te le s ; o s e u d om ín io d e esco lh a s er á c o n s ti­ tu íd o p ela s c la s s ific a ç õ e s b io ló g ica s, a s d efin içõ e s, o s r a cio c ín io s ló g ic o s . F in a lm en te, teste h om em esp a n to so tra rá m a is a o s te ó lo g o s e m e ta fís ic o s q u e a o s p s icó lo ­ g o s i , m a s d eix o u -n o s n o ç õ e s e n o ta ç õ e s , b em co m o té c n ica s , q u e sã o p a ra n ó s in stru m en to s ou g u ia s p r e ­ cio s o s .

1 — As noções da antologia

Recusa os arrébatamento®; não é de todo o homem do Fédon ou do Banquete* não quer conhecer senão o que exisite, o que se pode apon­ tar com o dedo, o tode ti, Alexandre ou Bucéfalo, o indivíduo. Se a noção de ser ou de substância i Há, sem dúvida, um pressentim ento das ciências humanas objectivas nos estudos que fez de 158 cons­ tituições gregas ou na P o lítica , bem com o no espírito dos -seus estudos sobre a alma ou outros temas de psicologia. Mas este biólogo tem uma alm a seca: um ser tão frio não pode ver senão um dos aspectos da psicologia. E ste problem a continua a ser actual e difícil de resolver.

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(ou sia ) se prende com vários sentidos, o sentido absoluto ou existencial (ele è um Sócrates) conta pelo m enos tanto com o o sentdo relativo ou atributivo (Sócrates está êb rio). Ê , portanto, no próprio indivíduo que é preciso procurar a realidade, e as ideias platonistas, dem asiado «à parte» do concreto, já só serão consideradas com o tom adas no indivíduo, com o atributos do su jeito: assim a ideia de homem para o indivíduo Sócrates. Os problem as da atribuição e, por con­ seqüência, da linguagem , estarão sempre, em A ristóteles, na antecena. DÊ por isso que é levado a fazer a lista das categorias, dos grandes gêneros (assinalados por P latão). Estes «gêneros d o ser» são a qualidade (p o io n ), a quantidade (posam ), a relação (p ros ti), o lugar (p o u ), o tempo (p o te ), a acção (p oiein — por exem plo, passear), a paixão (pasxem — p or exem plo, estar d oen te), o ser em tal ou tal estado (keisthm — p or exem plo, estar sen­ tado ou de pé) ( C ategorias, 25; Tópicos, 103b). N ão há fio director para d irigir estes gêneros do ser, cuja essência eles constituem ; apenas se pode verificá-los. Cada um destes grandes gêne­ ros pode-se dividir ele próprio em classes mais restritas, em gêneros, até à esp écie2. Das diversas determ inações do ser, há as que são essenciais à sua naJtureza (hom em para Sócrates) e outras acidentais (é b r io ); as pri­ meiras são necessárias e é sobre elas que a ciên­

2 Não acontece o mesmo com os determinantes universais (term ini transoendentales), Um ou Ser, que se podem aplicar a todos os gêneros, substância e atributos.

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cia recairá, as outras são o produto do acaso e não podem ser ob jecto de ciência *. N o fundo, com o insistiram alguns com enta­ dores, são as espécies que desempenham aqui o papel das ideias de Platão. iÉ a estrutura das espécies que é necessária e, pela geração contí­ nua de indivíduo para indivíduo, a espécie é dotada de uma «perenidade» que eqüivale à eter­ nidade platônica das essências. A ontologia é guiada pela biologia. Uma grande parte da obra de A ristóteles é consagrada aos diferentes passos desta pes­ quisa científica. Encontra no silogism o um m odo de proceder m ais seguro que a divisão plaJtonista, pois através dele pode-se passar de um gênero a uma espécie m ais restrita, e mesmo a o indiví­ duo; pode-se também com parar classes diferen­ tes. E m esm o um «silogism o da essência» (que põe bastantes problem as aos com entadores) irá das simples verificações gerais e em píricas a relações m ais gerais: A ristóteles lança aqui as bases do raciocín io indutivo, itão do agrado depois dos em piristas. E sta parte da obra de A ristóteles, dem asiado ampla, dem asiado com -

s Não existe ciência senão d© necessário, portanto taínbém~do geral, já que o que caracteriza o indivíduo, Sócrates ou Cálias, são acidentes (a matéria), não qualidades «essenciais» e necessárias: estas (como, por exemplo, a ligação entre homem e mortal) não podem ser próprias de um indivíduo, mas aplicam-se a um determinado número de indivíduos existentes ou pelo menos são susceptíveis de se aplicarem deste modo (ainda que não exista de facto senão um indivíduo na espécie— como Deus). «Há nas coisas sensíveis muita indeterminação» (M etafísica, 1012a).

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plexa e dem asiado fora do nosso propósito para que a expúnhamos aqui, vai, sabem o-lo, com an­ dar quase todas as pesquisas psicológicas até ao Renascimento, e esterilizá-las. Mas quando os humanistas, de M ontaigne a Descartes, vão recusar os quadros dem asiado estreitos da silogística, nem p or isso renunciarão todos eles a procurar «o bom m étodo», esse m étodo que preencherá os sonhos de Fr. Bacon, Descartes, Espinosa ou Leibniz (com o paralelamente os alquim istas). A o tentar precisar e desenvolver a concepção plaitonista cu ja insuficiência eluci­ dava, A ristóteles teve o m érito de m ostrar que havia uma ciência da prova a ed ificar; a o que acrescentou esse outro m érito de ver com o essa ciência era independente das palavras, do logos, era uma lógica. Certamente que FlaJtão (salvo talvez na velh ice), nem sequer M ontaigne m ais tarde, não teria aceitado essa redução da crença à prova e da verdade a simples ligações de pala­ vras : em bora a via aberta p or A ristóteles tivesse o mérilto de não aceitar senão relações perfeita­ mente objeetivas e necessárias, ela conduzia a uma álgebra das noções, da qual se conhece h oje a im portância, a fecundidade, mas também os lim ites. Feio lugar excessivo dado a esta diligência, A ristóteles rejeitava demasiado a psi­ cologia em função de uma teoria do conheci­ mento, de reslto pouco ampla, e apagava perso­ nalidade, vontade, sabedoria e am ores. Voltem os às relações necessárias; elas vão dar origem a várias noções preciosas. Notem os em prim eiro lugar que, quando atribui a Sócrates todas as qualidades humanas que são as suas, não fa z mais que um agrupar de qualidades segundo as diversas categorias, uma «quididade», dirá a Idade Média. Fara este conjunto, é neces­

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sário um centro, uma ocasião, é preciso que escista um Sócrates. Desse m odo, Sócrates ultra­ passa este conjunto, há nele uma espécie de receptáculo dos predicados, um sujeito. Todos os atributos não são nunca senão a «form a» de Sócrates; o su jeito Sócrates é uma outra coisa, uma m atéria, e é por essa maJtéria, não pela sua form a, que Sócrates é individualizado. A subs­ tância Sócrates possui, assim , uma form a e uma m atéria. A m atéria (u lê ) é aquilo que se torna uma coisa ou outra pela mudança e pela geração, é o suporte (to upokeim enon) que não se pode conceber senão em relação com a form a que lhe dá a sua realidade, e que, com pletam ente fora da fôrm a, nem sequer existe. Deste m odo, a m atéria pertence aos seres de relação (tô v pros ti ê u lê — Física, 194b) 4. Form a e m atéria são relativas, indissociáveis. E a verdadeira ousia está no com posto delas. E sta relação recíproca é de um gênero m uito especial: não pode ser confundida com uma sim ­ ples correlação (com o em sentido estatístico), nem com tuna ligação de duplo sentido (entre mãe e filh o ); ela virá a ter um belo fulturo na psicologia contem porânea, onde a noção de Gestalt, entre outras (com o seu corolário, a distin­ ção entre a form a e fu n d o), é sua herdeira directa.

4 Esta ligação da matéria e da relação vai ao encontro desse Outro platonista que, circulando embora através de todos os gêneros, é no entanto a matéria inferior dos seres: como se o mais baixo se encontrasse no mais alto! Deixando esta dificuldade aos ontologistas, podemos contudo assinalar o interesse que apre­ senta aqui um estudo psicológico da noção de outro. A psicologia do outro, esboçada em muitos pontos, con­ tinua por fazer.

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Ora, uma quididade, conjunto de ligações necessárias, pode servir tanlto de m atéria com o de fo rm a 5: assim , a quididade «anim al» é m até­ ria para a form a «hom em ». A partir deste duplo papel possível das essências, A ristóteles pode supor toda urna hierarquia das assências (e das substâncias), sendo cada uma (por exem plo, quadrúpede) simultaneamente m atéria de um determ inado ponto de vista (em relação a homem) e form a de um outro (em relação a ani­ m al) . Como bom m etafísico, A ristóteles leva esta análise até aos seus lim ites, o que o leva a supor uma Form a prim eira e uma M atéria prim eira. Deixem os de lado estes últim os problem as que apaixonaram a Idade M édia; notem os simples­ mente que este processo pode servir ainda com o m odelo, pelo m enos na base da nossa psicologia, onde a construção sucessiva de pontos de apoio d o psiquism o im plica talvez uma organização deste tip o 8. Form a e m atéria não se unem no entanto senão pela acção de um terceiro princípio: é com o o m arceneiro que faz passar para a m adeira a form a da cadeira que tem na cabeça. Três causas aparecem então em jo g o : uma causa fo r ­ mal, a ideia da cadeira; uma causa malterial, a m adeira; uma causa m otriz ou eficiente, a acção do m arceneiro: causa eficiente e causa form al podem confundir-se, sendo o m arceneiro (ou o pai) simultaneamente causa eficiente e

s «A matéria próxima e a forma são uma única e mesma coisa, uma em potência a outra em aeto» (M etafísica, 104%). a Ver, por exemplo, a nossa obra As O rigem do Imaginária, p. 138.

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causa form al; m as sem pre para que se opere a passagem de uma form a em potência (a cadeira n o espírito do m arceneiro, ou o germ e) a uma form a em acto, é necessário um ser já em acto que m odele ou que semeie, e, nesse sentido, não apenas form a e m atéria, m as sobretudo o acto, são anteriores ã geração: «D E o homem que engen­ dra o homem», esta célebre fórm ula de A ristóte­ les constitui, se se estender ao mundo inteiro, a ju stifica çã o de um vitalism o cosm ológico. Quer se trate da arte ou da natureza, é o mesmo pro­ cesso de despertar de uma form a em potência p or uma form a em a cto; a única diferença é que num caso a natureza é princípio imanente (en a u to) e n o outro exterior (en aUo). A form a em acto torna-se por isso itambém causa final, e três das quatro causas acabam por se con fu n dir; apenas a causa m aterial fica à parte nesta geração. Ê a espécie, a substância mais fornecida, que é simultaneamente causa, fim e fo rm a 7. D isso fa z prova itoda a finalidade visí­ vel no mundo. A inteligência humana é compa­ rável à vida animal ou v eg eta l8 e tom ada na mesma hierarquia cósm ica.

7 Nfio o indivíduo, passageiro e nascido de factores acidentais. 18Mas pode subir raiais acima, até à inteligência pura, que o sábio por vezes utiliza. Não deixa de ser verdade, parece, que, como diz o comentador Filopon, «a deliberação marca uma falha de inteligência». O que significa privilegiar o biólogo em detrimento do lógico. Reencontramos muitas vezes — e mesmo na psicolo­ gia contemporânea — estas diades aristotélicas: forma-matéria, causa eficiente jcausa final, potência-acto. Não há nenhuma razão, realmente, para recusar estas noções úteis.

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2 — A alma O estudo da alma faz parte da biologia por­ que a alma é, antes de tudo, o princípio das fun­ ções vitais (D e partíbus animalum)9: esta tomada de posição m ostra já quanto se afasta aqui de Platão este biólogo que é A ristóteles — e com o, nesite sentido, ele está mais próxim o de nós. P or isso, também o tratado da alma se coloca à cabeça d os escritos biológicos, acompanhado de pequenos tratado® psicofisiológicos sobre a sensação, a memória, o sono, os sonhos, a vida e a m orte, a respiração, nomeados os Parva naturaZia. Em bora não separe de todo, com o Platão, a alma do corpo, A ristóteles recusa no entanto, ele também, as explicações sim plistas dos mate­ rialistas (D em ócrito, Em pédocles) e igualmente a teoria da alma-harmonia, de origem pitagórica e m édica rejeitada pelo Féchm 10. Contra esta usa argumentos diferentes de Platão, já que, neste — o que abala a principal crítica de Platão con­

b Estamos longe desse corpo «prisão» da alma de que fala o Fédon, em continuação dos órficos. io A doutrina de Aristóteles está no entanto menos longe dessa teoria que a de Platão, porque para ele a alma continua ligada ao corpo cuja unidade e cuja vida ela assegura. Por isso alguns continuadores de Aris­ tóteles, como Aristóxenes de Tarento e Dicearco de Messina, voltarão à alma-harmonia (Cícero, Tusculwnas). Robín diz bem, em termos «artesianos, que Aristóteles coloca-se no terreno da união substancial, ficando ape­ nas o intelecto no plano do espírito; a alma imortal de Platão, o nous, o espírito, reduz-se assim a um Intelecto bastante ténue apesar da sua importância; o essencial da alma é inseparável do corpo, e a reenearnação deixa de ter sentido em Aristóteles.

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tra a aJma-harmonia — , a alma, ligada ao corpo cujas funções ela governa, já não pode passar de um corpo para ou tro: «é com o se se dissesse que a arte do carpinteiro pode investir-se numa flauta» (D e anima, 4 0 7 b ); toda a alma deve servir-se d o corpo que lhe é próprio. Mas a har­ monia das funções do- corpo não é nunca mais que a saúde, tuna certa modalidade, não essa substância a que cham am os alm a; além disso, a alma não é de tod o um estado, uma realidade estática, é um princípio de m ovim ento: é ela quem dá ao corpo a sua unidade, que comanda os seus «instrum entos» corporais (orga/na) e assegura uma convergência da sua a cçã o: a unidade do vivo é de ordem dinâmica. A ris­ tóteles afasta simultaneamente um cspiritualism o para o qual a alma não é m ais solidária do corpo e um m aterialism o que faz da alma uma resultante das funções corporais, A alma será form a, fim e a cto do corpo. N ão poderia com preender-se a psicologia que vai seguir-se se não se tivesse em conta o facto de A ristóteles distinguir sem cessar níveis de in­ teligência, de actos, de m atérias. Platão teve de dar a m aior atenção aos «interm ediários» a fim de ligar as existências inferiores às ideias e a Deus; A ristóteles instituirá também uma progressão hierárquica, mas a partir de consi­ derações de ordem mais biológica que m etafísica. N d e funciona plenamente essa gradação dos seres, cada um simultaneamente form a e m até­ ria, de que falám os anteriorm ente. Ê certo que a alma é o princípio, ele próprio em acto, que actualiza as potências corporais; de resto, não existe alma senão onde residem essas potências especiais que concernem, nos diferen­ tes níveis, a nutrição, a sensação, a locom oção

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ou a 'inteligência. A alma surge assim «com o a essência ou form a (ousia ou eidos) de um corpo natural que item a vida em potência» (D e anima, 412a). Mas esta alma é «enteléquia», quer dizer, acto, realização. Ora, a ciência, em potência no ignorante, está já em acto no sábio quando ele dorm e: é esse o nível de aptidão da hexis, potên­ cia determinada, actividade, potência segunda ou, se se quiser, primeiro grau da actualização, enteléquia prim eira; do mesmo modo a alma é «enteléquia primeira de um corpo natural que tem a vida em potência» (ibid., 412a), já que, mais que uma actividade atítual, é uma aptidão que subsiste durante o sono, como a ciência do sábio; digamos, com M oreau11, que ela corres­ ponde à função mais que ao exercício (p. 163), vista mais que visão, e ligada ao corpo com o a vista 'está aos olhos. Donde uma terceira defi­ nição (ibid.) da alma com o «enteléquia primeira de um corpo naturalmente organizado». Conjunto das funções corporais, se se quiser, a fljlTna. é, todavia, mais do que isso, senão tornar-se-ia a cair na alma-harmonia: ela dá a uni­ dade, ela inform a, ela conduz as potências materiais ao acto; sem ela, o corpo não é senão um organism o, não um vivo. Esta «form a do corpo» não é, porém, de maneira nenhuma uma form a com o as outras, realiza ela própria uma organização natural susceptível de acção espon­ tânea : a form a do machado não basta por si só para mover o machado, é também necessário um operário, enquanto a vista, que é form a do Olho, basta para que apareça espontaneamente

u Ao excelente A ristóteles e a sua escola de que nos socorremos aqui abundantemente.

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a visão: aqui o princípio m otor e form al possui, ele próprio, os seus próprios utensílios ( orgcma). Todos os seres naturais possuem um certo dina­ mismo conform e à sua form a e fim ; o que no seu ponto mais alto é visível na inteligência humana ou animal, mau também nas funções vitais; é preciso ir ainda mais longe e pensar que cada um dos elementos possui um movimento espontâneo para um «lugar próprio», assim a terra para o baixo e o fog o para o alto. O vitalismo atinge aqui a perfeição; para Aristóteles, «tudo está cheio de almas» (D e gen. ammalium), com o para Tales de deuses. Há, portanto, almas diferentes para cada nível de seres, vegetais (alma nutritiva ou vegetativa), animais (alma desejanlbe ou m otriz) e, enfim, homem (alma racional com portando um intelecto). Melhor dizendo, em cada nível, é com o uma soma de faculdades (tiermo que A ris­ tóteles usa neste sentido) compondo em cada espécie almas de um outro ttipo: pode-se mesmo encarar almas médias, intermediárias entre as do vegetal e do animal (ostras, esponjas. Part. rniim., 616 e segs.). 3 — As faculdades cognitivas A alma define-se nos animais por duas facul­ dades : a de discernir — o que é função da sen­ sação e do pensamento discursivo— e a de se movimentar segundo o lugar (D e anima, 425b), funções estas que não aparecem de todo nos vegetais. Vejam os em prim eiro lugar a função cognitiva. Da teoria bastante com plexa da sensação retenhamos sobretudo que Aristóteles recusa

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fazer dela uma sim ples alteração física. Contra­ riam ente ao que se passa na nutrição, «cada sentido recebe o sensível sem a m atéria» (ibid., 425b), é com o a cera que recebe a m arca do sinete sem receber a m atéria dele, ou ro ou ferro. O ob jecto sensível provoca uma actividade espe­ cializada da função cogn itiva: esta não recebe de maneira nenhuma a form a sensível do exte­ rior, mas recria-a de dentro a partir das suas potências, no momento da alteração vinda do exterior. Donde a célebre fórm ula segundo a qual a sensação é «o acto comum do sentindo e do sentido» (ib id .). Além disso, A ristóteles dá conta de um «sen­ tido com um » que cobre os diversos sentidos e opera uma função de síntese; é ele que des­ cobre os «sensíveis com uns» não próprios de um único sentido com o a cor, mas comuns a vários com o o tamanho, o m ovim ento, a form a e o número (ibid., 418a). É também este «sentido com um » que, depois de ter integrado as percep­ ções, as conserva sob a form a de imagens. Não se trata, porém , de m aneira nenhuma de uma espécie de sexto sentido (senão seria ainda neces­ sário um ou tro sentido para explicar o seu acordo com o s outros sentidos), mas de uma faculdade comum aos cinco sentidos: o sensível comum (por exemplo, a form a) é apercebido no mesmo momento que o sensível próprio (c o r ), na altura da percepção do «sensível acidental» (o filh o de D ia res): ao mesmo tem po que atribuo a bran­ cura ao filh o de Diares, aitribuo-lhe uma deter­ minada form a. Ora, com o «sentido com um », que é já su jeito a erro (por exem plo, na expe­ riência de A ristóteles), intervém qualquer coisa de novo, porque o sensível próprio, èsse, não se presta de tod o a erro: v ejo verm elho o que vejo

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vermelho. Talvez seja já possível ver aqui, eom Robin, uma espécie de «discursão elem entar» (p. 185). De qualquer m odo, A ristóteles não se lim itou a com preender, com o Platão antes dele, que a percepção im plicava uma actividade, ten­ tou também a sua análise: é o «sentido comum» que liga todos o s sentidos e constitui, assim , as imagens objeetos a partir de associações (doce !+ ;+ am arelo = m el) 12. A im aginação ( p fu m ta sia ) im plica a sensação (m as não o inverso). E la «é distinta sim ulta­ neamente da sensação e d o pensam ento discur­ sivo, contudo não se form aria sem a sensação. Sem ela não pode haver ju ízo (u p o le p s is )» (D e an im a , 427b). A imagem é, com efeito, uma per­ sistência da sen sação1S, uma sensação enfraque­ cida, e desse m odo dá origem à memória. Mas a im aginação é também um p h a n ta stifoon , uma faculdade de m anifestar e de criar, com porta uma actividade de escolha entre as im agens; n isto não fa z m ais que continuar a actividade do «sentido com um », fa z igualm ente passar para

12 A propósito do «sentido comum», Aristóteles coloca também o problema dessa «sensação da sensa­ ção» que é para nós a consciência. Essa consciência, ele atribui-a tanto à vista que vê que ela vê (De anima, 452b), como ao «sentido comum». Já Plat&o tinha notado (Cármido, 168d-e) que era absurdo fazer da consciência ela própria, sem lhe atribuir uma cor; mas para Aris­ tóteles a consciência da vista não é de todo colorida. Começam aí a ser entrevistos todos os problemas que a consciência colocará ao psicólogo. ia Sensação transmitida posteriormente, pelo «movi­ mento da alma através do corpo», ao coração que é o centro da sensibilidade. Esse erro de Aristóteles, atri­ buindo ao coração o que pertence ao cérebro, viciará durante muito tempo a ciência. Saber-161 — 6

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o aoto inteligíveis em potência, quando do sen­ sível. Assim se explicam, em prim eiro lugar, as imagens consecutivas, a memória e os sonhos, mas também, através desta actividade, a imagi­ nação serve de base ao desejo, bem com o ao pen­ samento discu rsivo14. Uma vez que os inteligí­ veis estão nos indivíduos, e que a sensação se prolonga em nós sob a form a de imagem, com ­ preendemos a célebre fórm ula: «A alma nunca pensa intelectivamente (n o ei) sem imagem» (De anima», 431a). Um pensamento sem imagem cai­ ria ao nível da sensação que não é ainda um pensamento. Esta afirm ação não se aplica, con­ tudo, ao pensamento noético que não é senão form a sem matéria, quer dizer, a Deus: para este não pode haver objecto do seu pensamento que lhe seja inferior, o que seria o caso se esse objecto fosse uma imagem, e neste sentido «o pensamento é o pensamento do pensamento». Mas este é um caso extrem o; o pensamento humano, esse, só muito raramente depende do único Intelecto puro que existe na nossa alma, e a partir daí supõe quase sempre imagens: «a função intelectiva pensa, portanto, os inte­ ligíveis (to noêtikon) nas imagens» (ibid., 431a) 1S. Se «o pensamento pensa as form as nas ima­ gens» (ibid., 431b), seria particularmente absurdo que os próprios princípios sejam inatos em nós, já que saberes seguros existiriam em nós 14 Aristóteles, prolongando Platão, distingue asso­ ciações de ideias por semelhança, contrariedade e contiguidade (D e memória). is Assim Tales vê o seu teorema na própria per­ cepção: quando a sombra do homem é igual ao homem, a sombra da pirâmide é igual à pirâmide.

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sem o saberm os; uma vez que estes não podem vir de uma demonstração, é preciso que sejam adquiridos por intermédio dos sentidos e da indu­ ção ( epagôgê) e que o intelecto seja semelhante a «uma tábua onde não existe nada aetualmente escrito» (D e anima, 430a). Da sensação nasce a memória, da memória a experiência e da expe­ riência discorrida a concepção do Universal. A intuição intelectual que percepciona as formas emerge em todo o caso das imagens, na seqüên­ cia de uma elaboração empírica. Ê por ela que percepcionamos aqueles indemonstráveis, aque­ les axiomas, de que partirá qualquer dedução necessária. Resta a Aristóteles — com o a Platão — expli­ car essa n o êsis que nos faz participar dos seres imateriais e indivisíveis, cuja percepção não necessita de demonstração porque ela é verda­ deira e a sua verdade basta por si só (com o a sensação enquanto sensação, mas não enquanto relação). Ã falta de poder invocar as Ideias sepa­ radas, Aristóteles faz aqui apelo a uma concep­ ção bastante com plexa — e bem envelhecida— , distinguindo entre um Intelecto passivo e provi­ sório, que contém em potência as formas puras e imateriais, e um Intelecto activo impassível, que está eternamente em acto, sendo o prim eiro a matéria e o segundo a causa eficiente e final do pensamento puro. Com este Intelecto noético ou activo, Aristóteles reencontra a linha de Pla­ tã o; mas deixámos a psicologia. 4 — Prática e poética Recusando a divisão platonista da alma em três partes distintas (reduzidas a duas por Xenó-

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crates na Academ ia), Aristóteles contenta-se em fazer apelo a funções especializadas (facul­ dades), mais que a partes da alm a; mas cada uma destas faculdades apresenta graus, e os da função m otriz correspondem em grosso aos da função cognitiva. Oom efeito, a sensação implica tanto prazer com o dor e, consequentemente, ape­ tite (o re x is ); por outro lado, as decisões práti­ cas são conform es aos juízos teóricos: «o acto de sentir é semelhante ao simples facto de dizer ou de apreender; mas quando o objecto sensível é agradável ou penoso, o espírito, emitindo uma espécie de afirm ação ou de negação, persegue-o ou evita-o» (D e anima, 431b). Desejo e aversão correspondem portanto, pelo menos no homem, a juízos de valor que dependem do «sentido comum». Assim surge uma imaginação prática nos seres capazes de «deliberar em im aginação», e um «intelecto prático». Na origem, com o motor, está uma motivação, um desejável (orek ton ) e a sua acção pode opor-se ao apelo do bem: o prim eiro joga no momento, o outro no futuro: «é tendo em consideração o futuro que o intelecto ordena resistir, enquanto o apetite só é dirigido para o im ediato» (ibid., 455b). Mas este cálculo (logism as), esta aritmética moral que compara os desejáveis entre si tendo em conta o tempo, não introduz qualquer fim novo, «a reflexão não move nada, a não ser aplicando-se a um fim e tom ando-se p r á tic a » (Ética em Nicómaco, 1139a): Aristóteles recusa a posição socrática segundo a qual o mau apenas cometeu um erro, não quis o mal voluntariamente. Para isto, A ris­ tóteles deve proceder a uma análise minuciosa da maneira com o se faz a escolha deliberada (prom resis); esta consideração dos efeitos recí­ procos dos diversos mobiles e das suas acções

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mútuas (em particular do «silogism o prático» que arrasta a decisão) conduz a uma vista objectiva, mais científica que a de Platão. E s ta visão m ais concreta de Aristóteles reve­ la-se ainda melhor quando fa z intervir nos faetores da conduta o carácter e o hábito, com o uma espécie de rela is da escolha racional. É sobre­ tudo no dom ínio das virtudes que Aristóteles procede a este estu do16. As suas posições são célebres: do mesmo m odo que uma andorinha não faz a Primavera (É tica em N icóm a co, 1098a), um acto virtuoso não faz a virtude, não é senão um resultado isolado e frágil. Ê preciso, o maisi possível, confiar o cuidado de dirigir a nossa conduta ao hábito ( e t h o s ) : é nesta mis­ tura de lo g o s e de m odificação corporal que reside a garantia de uma conduta bem dirigida 17, a dialéctica simplesmente não basta, com o parece dizer Platão; é também necessária essa virtude social e cívica, mas sobretudo corporal, de que falam as L eis. Uma tal virtude é uma atitude da vontade ( h ex is p ra a à retik ê — É tic a em N icó­ m a co „ 1105b), que só se ganha à força de habi­ tuação, de hábito. O hábito depende de uma

i« Reside aí um ponto importante para toda a psi­ cologia (e particularmente para a psicologia de vista ourta de 1977): sem psicologia das qualidades intelec­ tuais e morais (quer dizer no fundo das diferentes for­ mas que tomam os conjuntos de atitudes) não é pos­ sível fazer ultrapassar a ciência psicológica do nível dos condicionamentos. ESm toda a psicologia da acção está implicada uma psicologia das qualidades morais, como em toda a psicologia da inteligência está impli­ cada uma psicologia das qualidades intelectuais. ir Inversamente, as emoções são razões tomadas na matéria, logoi enuloi.

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faculdade anim al18 e constitui em nós «com o uma natureza» (D e m em ória, 4 5 2 a ): é por essa espécie de im pregnação pela experiência que nasce a virtude d o caracter (êth o s), fru to do h ábito (eth o s). Uma tal virtude é m ais segura que o sim ples logos, e, quando A ristóteles enu­ m era as três maneiras para os desejos e o pen­ samento entrarem em relação, coloca a virtude habitual, a tem perança (sôph rosu n ê), antes do governo, dem asiado instável, dos desejos pelo ra ciocín io1#. Em bora a m oral de A ristóteles, dando um lugar ao carãcter e ao 'prazer, coloque no entanto a virtude de contem plação à cabeça da escala dos valores, não deixa de ser verdade que A ris­ tóteles dê na vida de cada dia e na psicologia da vida quotidiana um lugar m uito im portante à experiência sim ples; m ais d o que Plaltão, ele sente a insegurança da especulação m oral pura e sim ples, não pensa de tod o que a nossa conduta dependa assim tanto da razão. Ê também por isso

i* Uma pedra, lançada muitas vezes ao ar, nâo adquire só por isso qualquer hábito. is Uma complexa teoria do prazer, desenvolvida sobretudo nos livros v n e x da Ética em Nicómaco, mereceria uma consideração particular, já que ela é tirada de uma análise da acção voluntária e do carácter. Aristóteles soube tirar das concepções demasiado brutais dos seus predecessores (Eudóxio, Antístenes, etc.) e colocar, numa seqüência de rápidas sugestões, o problema do prazer e do acto que é essencial a toda a concepção, não só moral mas psicológica. As célebres fórmulas: «o prazer acaba o acto» e «o prazer acres­ centa-se ao acto como à juventude a sua beleza» (Ética em Nicómaco, x , cap. 4) continuam a ser bons pontos de apoio para colocar os problemas no interior de uma psicologia do prazer ou do interesse (ver aqui as exce­ lentes análises de Robin, op. d t.).

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que dá um lugar im portante às virtudes sociais, porque é a sociedade que fa cilita e pela educação fo rtifica as virtudes éticas. Em Platão, a política permanece em boa parte utopia e ideologia; em A ristóteles, encontram os esboços sociológicos (com o estudos de constituições) e o s com eços de uma psicologia diferencial m ais concreta, mais em pírica que em P latão; não é possível insistir aqui no que diz A ristóteles sobre as mulheres, os escravos, os Bárbaros, as diferentes virtudes, as culturas de cada cid a d e20; digam os apenas que há nele uma constante preocupação com o indivíduo e com o seu m eio psicológico e social, porque a sociedade fa z parte da natureza humana, o homem não é som ente um «anim al divino», é também um «ser sociável por natureza» (Polí­ tica , 1253a; Ê tica em N icóm aco, 1097b). A sociedade não age apenas sobre os nossos hábitos e sobre os nossos caracteres através da educação, que as crianças recebem e que nós rece­ bem os todos os dias d o nosso m eio; ela age também através de uma instituição especial que é a arte. Podem os considerar que A ristóteles fo i o prim eiro a tentar uma psicologia da arte (não apenas da beleza, com o P latão). A P oética continua a perm anecer n o horizonte de todas as pesquisas modernas nesse sentido; A ristóteles não procurou apenas os seus factores constitu­ tiv os: em prim eiro lugar a im itação, porque, «desde a infância, o homem im ita por instinto

20 Entre outras passagens sobre este tema, o da Poética, x v : «uma mulher pode ser boa, e mesmo um escravo, embora, a bem dizer, as mulheres sejam em géral menos boas e os escravos sempre (olôs) maus». (Ver também Política, J, in fine.),

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(s y n v p h u to n ), © um d os caracteres que o distin ­ guem dos ou tros anim ais é que ele é de todos o m ais im itador» (iv, § 1), afirm ação que pre­ cede um a análise célebre da im itação; a seguir, os instin tos de harm onia e de ritm o, Apresenlba-nos tam bém a origem cron ológica (a tragédia nascida d e h in os), põe o problem a d o ridícu lo (V ), m ostra que toda a poesia im plica uma, sim ­ patia d o auditor (xvn) sl, m as sabe, num a aná­ lise h oje das m ais clássicas, m ostrar com o, ape­ sar disso, a arte realiza tuna p u rifica çã o ( ca tJ w rs i s ) das paixões (vi), dando assim da arte uma ju stifica çã o que P latão tinha d escon h ecid o22.

5 — Conclusão O que acaba de ser d ito sobre essa m agnífica P oética vale pou co ou nada para toda essa obra, 21 «A verdade é que agitamos quando estamos agi­ tados; irritamos quando estamos em cólera» (x v n ). 22 Que não se trata aqui de uma purificação reli­ giosa que, como a de que fala o F éd on , aniquila as potências inferiores e mutila o ser, é perfeitamente seguro: inseparável da alTna, o corpo segue-a por toda a parte, salvo no excepcional conhecimento noétieo. Parecer-nos-ia errado, portanto, ver aí com Robin (op. c&t., 296-8) uma simples descompressão, um escape das paixões comprimidas, já que terror e piedade são sus­ citados pela própria tragédia. Os textos alegados (em particular P olítica , 1341 e segs.) parece conduzirem bastante mal a esta vista pré-psicanalítica. Trata-se, antes, de recuperar as forças inferiores e passionais, submetendo-as a regras e a ritmos. A ca tarsis, diz bem Moreau, «descarrega as emoções da sua violência nociva» (op. cit., 256). O que aqui Aristóteles anuncia, sobretudo, é aquela concepção de Alain segundo a qual a arte é a paixão, mas controlada (ver sobretudo a 3.* das V in te liçõ es so b re as b ela s-a rtes).

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densa e forte. Se P latão abre cam inhos, A ristó­ teles parece p o r Vezes fech á-los, é certo, m as só em aparência, já que ele vale tan to p elo p or­ m enor com o pelo con ju n to da con strução metar física que fez a sua glória. E xp or a sua psicologia é extrem am ente árduo porque ela com porta um núm ero dem asiado grande de análises, m uitas vezes dispersas. A qu i a riqueza é difusa, e as ideias m ais rica s surgem m uitas vezes n o can to de uma página. A ristóteles era um espírito dem a­ siado cu rioso d e tu do e um a inteligência dem a­ siado viva, estava dem asiado apaixonado pelo con creto — .apesar dos restos de idealism o pla­ tô n ic o — para poder falh ar qualquer um dos problem as que a p sicologia coloca. Podem os p refe­ rir a poesia platôn ica a estas análises dem asiado secas e excessivam ente bem ordenadas, m as elas têm o im enso m érito de nos coloca r perante uma visão m ais cien tífica , mesmo* que tenha sid o pre­ cisam ente esse tom d e p rofessor, de «cu rioso» e de hom em de b ib lioteca que contribuiu, pelo seu dogm atism o, para coagu lar a p sicologia durante sé cu lo s2S. M as a extrem a acuidade d o seu gén io fez-lh e entrever m uitos dos dom ínios e d os aspectos da ciên cia contem porânea: será, m uitas vezes, necessário esperar d ois m il anos para reencontrar a via que ele tinha aberto.

23 Acontece muitas vezes Aristóteles dizer que não resolveu tal ou tal dificuldade, mas isto como um mate­ mático que não encontrou uma solução que sabe bem que existe, não com o um psicólogo que não chega de todo a penetrar nas profundezas de um carãcter. Salvo nos diálogos de velhice (sobretudo o Tim eu), Platão nunca usa esse tom, permanece o discípulo desse Sócra­ tes que procura a surpresa.

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O psicólogo pode não ser de todo seduzido por essa inteligência demasiado conscienciosa e dema­ siado fria, mas não pode evitá-la» De uma forma ou de outra, Aristóteles permanece sempre no nosso caminho24.

24 F ica assim , não o esqueçam os, graças a essa lógica (que im plica um a teoria d o con ceito e das clas­ ses), cu ja inspiração se prolonga até nós — com o m os­ trou L ew in — , não só nos prolongam entos logísticos, m as nas teorias d a conceptualização e m esm o no factoria* lism o. M as não é esse o nosso tem a.

CAPITULO m OS VITAUSMOS ANTIGOS

A — A Índia AS ESCOLAS E AS OBRAS. — * D a ta s im p r e c is a s . C la s­ s ific a ç õ e s d iscu tid a s. P o d e m -s e n o e n ta n to a v a n ça r as d a d a s s e g u in te s . S o b o n o m e d e V eda (s a b e r ) c o m p r e e n d e -s e u m c o n jim to d e t e x t o s , h in o s, r e c e it a s m á g ica # , c o n s e lh o s r itu a is , e t c ., c u ja r e d a c ç ã o rem o n ta r ia , c o m o R igveda, o ma/is a n tig o , a o s é c u lo XV a . C . E s te s t e x t o s , c o n s id e ­ ra d o s c o m o r e v e la d o s , s ã o a b a s e d a e s p e c u la ç ã o h in d u , q u e a cu m u lo u o s c o m e n tá r io s e o s tr a ta d o s q u e d ela tira m a s u a in sp ir a ç ã o . A n te s d a e r a c r is tã , s ã o e s s e n c ia lm e n te o s BrãhSnana (c e r c a d o s é c u lo IX a . C .), o s A ranyaka e s o b r e tu d o o s U panishad (e n t r e 1000 e 5 0 0 ), b a s e s d o b ra m a n ism o . A s d u a s g ra n d es r e lig iõ e s d e s a lv a çã o d e s e n v o lv e m -s e p o r v o lta d a m e sm a é p o c a : o ja in ism o e m to m o d e J m a (5^0-468?) e o b u d ism o em to m o d o B u d a (588-478?). M a is ta r d e , a p a r tir d o a n tig o tr o n c o b u d ista , to m a d o o P e q u e n o V e íc u lo (H inayâna), d e s e n v o l v e r s e - á o G ra n d e V e ic u lo (M ahâyâna), em p r in c íp io s d a (em c r is tã . P o r s e u la d o , o b ra m a n ism o n ã o d e ix a d e co n tin u a r a s u a v ia , e d á n a s c im e n to , a p a r tir d a n o s s a e r a e d u r a n te to d a a Id a d e M éd ia , a s e is e s c o la s (a s v is õ e s , darçan aj, c u jo s a fo r is m o s d o g m á tic o s (sü tra) a p a r e ­ c e m fix a d o s n o s é c u lo V. E n fim , n ã o p o d em o s e s q u e c e r a s c o n c e p ç õ e s e x p o s ­ ta s n o s d o is g ra n d es t e x t o s é p ic o s , o Mahâbhârata e o Râmâyana (e n t r e 200 a . C . e 200 d . C .) .

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* Seria uma empresa louca tentar expor aqui uma psicologia indiana, pois, durante três m il anos, a Índia tem -nos forn ecido psicólogos a ro d o s1. Mas seria ainda mais louco, numa obra com o esta, deixar de lado a Índia, sob o pretexto de que as nossas concepções são dem asiado afas­ tadas da nossa psicologia ocidental, pois é pre­ cisam ente p or isso que ela nos pode proporcionar ocasião para uma renovação. E as diferenças entre a Índia e a G récia, ou m esm o a Europa, são tais que é possível, neste caso e numa prim eira abordagem , restringirm o -nos às grandes linhas, pondo de parte o s problem as difíceis das signi­ ficações diversas de palavras com o o Karman (o «a cto») ou o âtmrni (o «e u »), ou as diversas concepções do ioga ou do samâdhi (en-stase, segundo o term o forja d o por M ircea Eliade, de preferência a ex-sta se) . Sublinhemos, em prim eiro lugar, duas ©posi­ ções m uito gerais. Prim eiramente, a Índia não tem de m odo nenhum, com o o Ocidente, o culto das estruturas mentais, esse cu lto que, já tão sensível em Platão, desabrochará n o tom ism o ou no cartesianism o. Sem dúvida que certas ten­

i «Não houve nenhuma escola nem nenhuma espe­ culação na índia que tivessem por objectivo desenvolver uma teoria Independente referente à psicologia. Mas desde os tempos mais recuados que se encontra um interesse pelo hotoem, pelo seu espírito e pelas suas actividades psíquicas. E, naturalmente, este interesse engendrou, com o correr dos tempos, um grande número de contribuições significativas que designaríamos hoje como psicológicas.» (S. K. Ramachandra Rao., D evelopment o f psychological thought in índia, p. 184.)

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dências, e particularm ente o budismo, dão um lugar im portante ao conhecim ento, mas, além de não represenltarem senão uma parte do pen­ samento indiano, a lucidez budista não é de m odo nenhum a com preensão ocidental: não aceita nem a dem onstração cairtesiana nem a dialéctica platônica, com as suas longas cadeias de razões. Esta recusa de um intelectualism o levado ao extrem o — ju n to naturalmente a uma igual recusa de um mundo apenas inteligível — é, aliás, facilm ente explicável se atentarm os numa se­ gunda oposição entre a Índia e a Grécia. A Índia visa geralm ente o prattein, o fazer e mesmo o fazer-se, ao passo que a G récia aprecia o theorein, a conlbemplação objectiva. Quando filosofa , Platão inspdra-se na ciência nascente, permanece m atem ático, ao passo que o Indiano mantém sem pre a prática no seu cam po de visão, mesmo que essa prática não seja com andada pela religião ou pela m oral. Digam os mais, o Indiano não cessa de se form ar a si próprio, de se educar, olhando para dentro — e é exactam ente em si próprio que irá enconltrar a energia cósm ica e divina; deste m odo as atitudes, corporais ou mentais, são a sua preocupação principal. O pri­ mado ocidental das estruturas revela, ao contrá­ rio, um tip o de homens que olham para fora, que escrutam o horizonte, que caminham. P or um lado, um sábio senitado, de olhos sem icerrados; por outro lado, um caminhante que olha para longe. Um m edita, o outro contem pla. Um escuta o seu coração, o ou tro fa z uso da vista. Sem dúvida que é preciso desconfiar destas oposições gerais e um pouco sim plistas, mas a 'oposição é aqui tão brutal que o risco é muito pequeno. E haverá toda a vantagem em sublinhar ainda uma divergência im portante: é a aversão

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do Indiano a conceber outras realidades que não as existentes, a construir um mundo mental. O que o levará a ser mais biólogo do que físico, mais psicólogo do que matemático, mas sempre com esse caracter prático que faz de toda a sua ciência uma ciência em curso de aplicação. Estas reflexões preliminares far-nos-ão com ­ preender que a psicologia indiana seja muito diferente da nossa, sempre aplicada, e mais li­ gada às atitudes do que às estrulturas. Isto é particularmente sensível no ioga, que mais nos interessará. Mas, antes de irmos mais longe, este põe um problema histórico que não podemos desprezar. Com efeito, o ioga não aparece nos primeiros textos conhecidos onde se expõe o saber (V ed a), principalmente religiosos, dessas épocas (a partir do século x v a. C .), mas apenas nos Upanishad, nitidamente posteriores, e nos pri­ meiros textos budistas. Houve quem concluísse, no seguimento de Mircea Eliade (Yoga, 1936), que, das duas correntes que esitão na origem do pensamento indiano, uma, a do saber, provinha dos invasores indo-europeus, enquanto a outra provinha de uma velha origem autóctone — e xam ânica— , pouco a pouco integrada, com o cor­ rer do tempo, no pensamento ariano. Em si, o problema — ainda discutido— pouco nos inte­ ressaria, se não testemunhasse uma grande anti­ guidade do ioga. Mesmo que admitíssemos, com Filliozat («O rigines d ’une technique m ystique», R ev. Phüas., 1946), que o ioga deve ser ligado a uma doutrina de sabedoria, mais do que a uma tradição «selvagem» (p. 219), essa doutrina de sabedoria, ou, melhor, essa teoria, não deixaria de ser o pneumatismo, que vamos encontrar, tanlto entre os Pitagóricos, os Estóicos e os anti­ gos médicos gregos, com o entre os médicos hin­

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dus e grande número de outras populações, Pro­ curemos, pois, no ioga um com plexo no qual se encontram unidas (m as desde quando?) uma concepção psicológica muito antiga, e mesmo sel­ vagem, e uma espécie de m isticism o ehamânico. De qualquer modo, não se trata de maneira ne­ nhuma de uma, ciência, verdadeiramente «apli­ cada» : a aplicação faz nele corpo com a ciência, se é que não a precedeu2! Pode-se, com efeito, tentar conceber a psico­ logia ou senti-la, estamos em presença de duas vias m uito diferentes, a do grego e a do indiano. Que essas correntes tenham podido, mais tarde, unir-se, com o acon)teceu com as religiões jainistas e budistas, não restam dúvidas, mas são duas inspirações diferentes. A primeira é a da nossa cultura ocidental, segundo a qual o nosso psicó­ logo científico moderno se esforça por traçar um desenho, e com o que uma «cópia heliográfica», do psiquismo, por desmontar os seus mecanismos, verificar os seus funcionamentos e criar os seus modelos. Mas é igualmente possível tenltar sentir" esse psiquismo por dentro, não por uma espécie de desvio da função cognitiva para o íntimo de si (introspecção), mas vivendo esse psiquismo até aos seus últimos recantos, forçando-o até à sua velocidade lim ite: o corpo, ou, antes, a somatopsiquia, é então com o o instrumento de que se 2 A tese de M. Eliade, que vê no xamanlsmo siberiano sobretudo uma Influência do lamaísmo tibetano e procura na índia a origem do ioga, é confortada pela descoberta em Monhenjo-Daro (Pendjab) de tãbuas nas quais se pretendeu reconhecer, nufria posição cara ao ioga, o deus Xiva, mestre dos ióguis: estas tábuas pre­ cedem de dois milênios e meio jainismo e budismo. Masson-Oursel não hesita em escrever que «o mais velho ioga é indiano da mais velha Índia, a do Indo, a do iv milênio» (ibid., 18).

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serve o desportista, o iógui manobra o seu corpo com o o desportista o seu planador, o b ó b sleig h ou o s k iff. Para ele, o conhecimento não é de modo nenhum um afastamento, um simples conhe­ cer, mas um ser — e mesmo um co-ser, um ser-com-o-mundo, para os sectários, que descobrem a força cósm ica do brahm an no âtm an indivi­ dual; mas dizer isto é ainda desviar demasiado o ioga para o cognitivo, na esteira das seitas, e é mais justo, ibomando-o nas suas origens e na sua pureza original, ver nele, com Masson-Oursel, uma espéce de «desporto psicofisiológico» ( L e Y og a , 1 2 ). Tal com o, numa praia deserta, uma criança que corre depressa, depressa, cada vez mais depressa, até perder o fôlego, assim o iógui força o organism o até aos seus limites. Tanto quanto sabedoria, há frenesia, uma espécie de frenesia de si, nesta mentalidade indiana, frenesia que é sempre prova e experiência — de que dá igualmente testemunho o K â m a sü tra no domínio do amor. Velho reflexo de reacção contra um colectivo imposto, contra um ritual e uma classificação social estritos, esforço de salva­ mento de si contra as castas e, em breve, nas seitas — com o diz M asson-Oursel—| é possível; mas, para o psicólogo, esse esforço de libertação é incomparavelmente precioso. Tentemos, sem nos perdermos em com plicações históricas que nos despistem, captar as suas grandes linhas. Como já se terá compreendido, não se trata de modo nenhum de uma ascese, se dermos a essa ascese significação de paixão e de sofrim en to’ . * Como na ascese do tapas, prova de calor de que se aproxima por vezes o primeiro ioga. Uma tal ascese ritual, de origem nitidamente xamânica, permanece passiva e grosseira; o ioga, esse, é eminentemente activo, cria, não suporta.

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A ascese retoma aqui o seu sentido grego de prática, de trabalho, tanto com o o seu sentido segundo de exercício (fo i o Francês que fez da prática um sofrim ento). Mas este trabalho, esta prática, eslte exercício não se deixam apanhar no ciclo dos trabalhosi, não estão em princípio sob a dependência da sociedade, pois não visam obra nenhuma, salvo a própra obra ascética. Que esta actividade, voltada sobre si própria, possa depois ser utilizada, e mesmo explorada, pelas doutrinas religiosas, que farão dela um dos seus fundamentos, com o o jainism o ou o budismo, não altera em nada a coisa: no ioga há jogo, um jo g o sério com o todos os jogos autênticos, que não é puro divertim ento; e, no esforço do iógui para deixar de respirar, reco­ nhecemos os jogos de não respirar das nossas crianças: sob actividades aparentemente tão diversas, corre uma mesma actividade autô­ noma, distinta dos desejos, dos quais, aliás, quer libertar-se, uma actividade que deve ser um dos objectos mais apaixonantes do psicólogo. A este jogo, ou a este desporto psicofisiológioo, vamos encontrar ligada uma teoria mais ou menos nítida. Anterior ou posterior? Pouco importa, mas essa teoria constitui uma espécie de psicologia em acção que não nos podemos dar ao luxo de desprezar. Na base, uma crença na importância da res­ piração. Por intermédio desta, sentimos um dos sopros orgânicos que contribuem para com por e ordenar o nosso corpo e a nossa psique. Esta teoria pneumática, que identifica o sopro (prâna) à alma, remonta bem longe: é atestada em anltigos Upanishad para além de 500 a. C., e mesmo, em dúvida, em textos védicos. O vento, no corpo corno no corpo do universo (do indivíduo cósSaber-161 — 7

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m ico), é o princípio essencial de que dependem todas as actividades fisiológicas e m entais: cir­ culação do sangue, funções sensoriais, sistem a nervoso, ou, antes, as funções que h oje lhe a tri­ buím os. O venlto é «o dom ador e o guia d o espí­ rito, o estim ulante de todos os poderes sensoriais, o transportador dos objectos de todos os poderes sensoriais» (tratado m édico citado p or Filliozat, airlt. c i t .) ; chega m esmo a ser identificado ao Ser suprem o por certos textos (o que fa z lem brar o fo g o dos estó ico s). A ctuando sobre este prâna através dessa form a específica que é o sopro respiratório, o ioga obterá assim efeitos ao mesmo tem po físicos e espirituais. Uma acção voluntária exercida sobre a res­ piração, é esta, pois, a inspiração prim eira do ioga. E ste princípio é verificado pela verificação de que a atenção está m uitas vezes ligada a uma retenção da respiração. Inversamente, a re/benção do sopro perm itirá a fixação d o espírito sobre um assunto. O treino para essa retenção requer um conjunto de técnicas particulares e de atitu­ des especiais, cu jo estudo vai constituir o corpo dos diversos iogas. O que aparece assim é, pois, sob form as m ais ou menos variadas, mas a partir de uma inspiração única, uma disciplina psicossom ática de base. E sta poderá ser utilizada sem qualquer interesse m oral ou psicológico, ou, pelo contrário, servir de base a com portam entos reli­ giosos sistem atizados. Esta disciplina, com efeito, não Item nada de negativo, pode valer por s i; cultiva todas as descobertas respeitantes ao com ­ portam ento, m as não se preocupa com as expli­ cações teóricas que dele possam ser dadas. É assim conduzida a vulgarizar, para todos os usos, as «técnicas do corp o», com o dizia Mauss, mas que são ao m esmo tem po técnicas menltaís.

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O ioga descobre e utiliza uma espécie de lógica dos gestos e das posturas som atopsíquicas, con­ duz a praticar uma espécie de «experiência vivida» dos com portam entos de dom ínio d o orga­ nismo. M asson-Oursel aproxim a esta procura ao m esm o tem po da psicofisiologia e do pavlovism o: é, com efeito, de um cerlto behavior que se trata, mas captado p or dentro na sua germ inação psí­ quica, e já não a partir de fora. O ioga procederá a uma classificação e a uma enum eração dos diversos com portam entos de d om ín io4. Se o dom ínio da respiração é o princípio ori­ ginal d o ioga, este poderá variar em função de concepções psicológicas que não podem de m odo algum ser idênticas nas diversas escolas que se têm sucedido desde há quase três m ilênios. Pode­ m os, no entanto, apresentar as grandes linhas destas psicologias, grandes linhas tanto mais im portantes quanto o Indiano é m enos levado a construir m odelos da psique d o que a u!fcilizá-la.

* Ê propositadamente que substituímos aqui o termo «ascese», demasiadas vezes entendido no seu sentido cristão, pelo de «domínio». Se, aparentemente, o iógul e o cristão adoptam comportamentos análogos, se se pode aproximar os exercícios dos ióguis dos exercícios espirituais dos místicos cristãos, as atitudes mentais, de ambos os lados, são opostas: uns têm os olhos vira­ dos para o passado e' para o pecado, os outros para uma realização futura de um tipo particular. O que permanece comum às duas atitudes é a recusa de pro­ curar a realização num iwpeíits dionisíaco ou no deixar-correr do hedonismo. O impulso humano, aqui,, procura avançar para dentro e não para fora, e é por isso que o ioga mantém um carácter espiritual igno­ rado pelos impulsos do combate ou do desporto, pouco propícios aos sucessos do espírito.

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Os cinco poderes sensoriais apreendem impres­ sões que são conduzidas a uma espécie de senso comum, de ócrgão central do psiquismo, o mamas; é este que coordena essas impressões,, para fazer delas sensações. Mas, acim a desta espécie de espírito inferior, encontra-se uma faculdade de consciência, a buãdhi (seriamos tentados'a dizer uma vigilância, encarregada de despertar; o Buda e «o D espertado»). A estes elementos presen­ tes, ou, antes, presentificados, vêm juntar-se elementos latentes vindos das experiências pas­ sadas, «form ações psíquicas», samskâra, ou «im pregnações», vâsacm, que não são necessaria­ mente conscientes. O ioga não suspende apenas a acção dos ele­ mentos externos, esse é apenas o seu prim eiro efeito; tem também de afastar as form ações mentais e as impregnações, raciocínios, é certo, mas também e sobretudo posturas, desejos, ati­ tudes m orais e intelectuais. Neste sentido, cada escola usará, com algu­ mas variantes, técnicas pelas quais o espírito é levado a concentrar-se e com o que a reduzir-se, pelo menos aparentemente, a si (de facto, este «si» é finalmente o cosm os ou o seu vazio). Para isso, são primeiramente necessárias posturas físicas que, muitas vezes desconfortáveis para o ocidenftal, parecem naturais para o Indiano (com o a postura do lotu s), respondendo todas elas a uma tradição e a investigações anteriores. Vêm a seguir etapas bem traçadas para cada escola. Citaremos com o exemplo as fornecidas pelo mestre Patânjali (primeiros séculos da era cristã), que constituem o ioga clássico: 1 — Os refream entos: não roubar, dizer a verdade, ser desinteressado, etc.;

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2 — A s disciplinas: puleritude, contenta­ mento, ascese, estudo, etc.; 3 — A s .posturas, atitudes do corpo fixas com precisão e favoráveis ao equi­ líbrio do corpo (geralmente sen­ tadas) ; 4 — O controlo da respiração, cujos três tempos, enchimento, retenção e esvaziamento, são estritamente re­ gulados, em modalidade® e em duração; 5 — A retracção das funções sensoriais; subtraídas aos estímulos exterio­ res, estas são com o que reabsorvidas na matéria pensante; 6 — A fixação da adtividade mental num lugar bem circunscrito, ponta do nariz, umbigo, coração, ponta da língua, ou mesmo objeeto externo ; 7 — O recolhimento ( dhyâna) do pensa­ mento sobre o objeeto fixado, afas­ tando da corrente psicológica toda a representação heterogênea; 8 — A concentração perfeita (literalmente a «confixação» ou en sta se) do psiquismo (sam âdhi). Dhyâna e samâdhi, as duas operações decisi­ vas, são concentrações de si, não se trata de m odo algum de adquirir qualquer conhecimento intelectual de um mundo inteligível (com o num Píatão ou num E spinosa): o esforço termina num ajustamento (ioga), numa ligação de si a si: o sujeito é aqui com o a roda do abegão, cujos raio® encaixam sem dificuldade no cubo e na jante. Unidade na com plexidade onde se reúnem os ritm os respiratórios e orgânicos do sujeito,

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m as tam bém o s d o universo, um a vez que é a m esm a energia cósm ica, o m esm o bráhm an que se enconltra em tod o o lado e que o iógu i sectá­ rio d escobre n o fun do de si. L igação, pois, de si a s i com o universo, o que dá a o m esm o tem po liberdade e p o d e r5. E sta m archa para o samâdMj e o próprio samâdhi põem , evidentem ente, bastantes proble­ m as a o p sicólogo m oderno. N otem os apenas que, através das etapas dessa m archa, variáveis segundo asi escoias, se trata sem pre da m esma procura d e um aprofundam ento. O fim não é nunca um ex -stm e m ístico que fa ria sair o su jeito d e si próprio, o p oria em presença de ou tro m undo ou de um a divindade; é antes uma concentração do psiquism o que lh e assegura uma direcção, uma posição aju stada — a o acrescen­ tarem o encontro com o brahm an, as seitas não m odificaram esse fim prim eiro do ioga. H á aqui um a abordagem , um a seqüência de processos ignorada pela nossa p sicologia m oderna, e cu ja realidade é, n o entanto, testem unhada p or m ilê­ n ios d e prática. Pensa-se num a descida às «p ro­ fundezas» (term o utilizado pelos m estres tibetanos, segundo D avid-N eel, L e bouãdM sm e, 59, n o ta ), o que, com o verem os a seguir, n ão é intei­ ram ente fa ls o ; m as há m ais, pois n ão se trata apenas d e um a espécie de cath arsis, com o no Fédon (e na 'psicanálise), m as de tuna construção p elo nascimenlto de um a atitude e de aquisições

5 Pensamos aqui na dupla ligação pela qual A. Comte define a religio, mas com a diferença de que o cosmos substitui aqui a humanidade. A o «é a huma­ nidade que pensa» responde o tat tucvm asi (tu és isto), realizado no aprofundamento dò ioga budista.

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que asseguram : o ajustam ento de s i a s i a. E ste ob je ctiv o d o ioga, pelo qual se aproxim a de um desporto p sicofisiológ ico e m oral a o m esm o tem po, pode, é certo, esfum ar-se um p ou co nas seitas, m as não deixa d© ser capital, p ois é devido a ele que a p sicologia indiana perm anece uma p sicologia d o acto. O pensamenito indiano, com efeito, ignorou essa distin ção da alm a e d o corpo, esboçada par P latão e que D escartes exacerbará. H á uma assegura as funções vitais,, sensoriais e m entais. O espírito, com o a s funções vitais, é o a cto desse sopro. N ão existe, pois, um espírito substancial e eterno, um espírito a p riori (na m aior parte das e sco la s), m as o espírito fa z-se p ou co a pouco no decorrer dos actos su cessivos; se prolonga o vital, é com o um a aquisição, representando os restos de aportações su cessivas; daqui resulta que o espírito não tem qualquer fim em si, nem um a vocação ete rn a 7, antes constrói) a sua vocação ta l com o o

8 Na realidade, neste ajustamento, «a consciência subjectiva esvazia-se por assim dizer de si, desapare­ cendo o dualismo do conhecimento e do objecto conhe­ cido» (O. Lacombe, M udes carm élitaines, Out., 1937). Este estado primeiro termina, aliás, num samâdhi sem conhecimento de objecto, no qual o sujeito psicológico (citta j cede o passo ao sujeito espiritual (pwrusha). O sujeito «libertado» será então ainda consciente, ou terá passado como que para além da consciência, para essa consciência absoluta onde o isolamento espiritual ( kawalya) atingido pelo ioga se abre para uma superconsciência onde a matéria cósmica é sem diversidade? Há aqui muitos problemas interessantes para os espe­ cialistas do pensamento indiano, mas que talvez um dia se venham a pôr aos próprios psicólogos. i O que passa de um corpo para outro no sam sârâ, não é de modo nenhum uma alm a eterna, como nos pitagóricos ou em Platão, mas sim as •aquisições,

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seu s e r : « o esp írito, se n ão é dado, p ode fa ze r-se; um a vez em cu rso d e realização, pode se rv ir para ou tros fin s q u e n ão os d o am hecim enlto; tem eficiên cia s p róp ria s» (M asson-O ursel, L a P hü. en O rien t, 1 1 2 ). N ã o está, pois, su bm etido à razão, com o n o m undo ocid en tal m ais clá ssico. T al com o o e sp írito su bstan cial ced e perante o esp írito-a ctos, o ra cion alism o ced e aqu i perante um a d ou trin a q u e in voca exp eriên cias e pesqu isas: é este, p o r alto, o sen tid o d este ioga , d esp orto e p esqu isa que, p o r natureza, se op õe às p ráticas trad icion a is, apesar de, em p articu la r n a Idade M édia, te r con h ecid o um a ritu a liza çã o e com o que um a escolástica . N ão haverá aqu i, pela ausên cia d e valores a p riori com o p ela con stru ­ çã o p síqu ica, elem en tos q u e não são tã o estra ­ nhos a os contem porâneos qu e frequenltaram um p ou co o exilsteneialism o ou a p sico lo g ia da cria n ça ? C om o procedem esta con stru çã o e esta p ro­ cu ra de s i? C om o n asce e ste esp írito, qu e é um

as sedimentações deixadas pelos actos superiores, pois um acto não m orre por si. P or este primado do acto, a filosofia indiana elimina as dificuldades encontradas por Platão na sua exposição da transm igração das almas, pois a alm a eterna e perfeita deve conservar vestígios das suas falhas. O sam sârâ é a recusa de um absoluto, « o fio geral da existência, tuna inconsistência do ser [ ...] a afirm ação de uma relatividade sem limites» (Masson-Oursel, L a Phü. en O rient, 85). A fonte desta inconsistência reside na própria lei implicada em todo o acto, n o karma/n, cada acto implicando um outro acto: «é certamente, a partir de agora (com Jainismo e budismo), a íntima persuasão indiana: som os arrastados por um devir inultrapassável, e a sua verdadeira causa pode encontrar-se na sucessão dos nossos actos» (ü n d j.

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fazen do-se, m ais d o q u e um fa c to ? A ín d ia leva aqu i a su a b io lo g ia em a u x ilio d a su a p sicolo g ia : esta n ã o está n o ar, é um a p sio o fisiolo g ia em a cto. N o n osso co rp o existem cen tros regu lado­ res ( M m ) , e o e s fo rço d o iógu i con siste em fa z e r su b ir a fo r ç a p rim itiva d e um desses níveis p a ia o s e g u in te 8. Oom esta subida, o s p oderes d o s u je ito aum entam , e d escobre em s i fo rça s descon hecidas, p ode op era r proezas em vá rias d irecções. P orque, n a origem , as técn ica s d o ioga n ão têm nenhum sen tid o relig ioso, elas podem , com efeilto, con du zir igualm ente a fin s puram ente la icos, em bora n ão interessados, a fin s d e poder e d e p roe za : sã o esses o s fin s d o s h eróis ép icos d a ín d ia . A in vestiga çã o p sicológ ica leva a d es­ cobertas, verdadeiras ou fa lsa s: a o -lado d o dom í­ n io e d o aju stam en to d e si, d a ju n çã o íntim a, haverá um p od er so b re a s coisa s e sob re o org a ­ nism o. D aí a p rocu ra, sobretu do n o io g a tibetan o, da telepatia, d a telequ inesia, d o v o o m á gico, d o «ca lo r m á g ico », e t c .9

® N ão tanto refrear com o prolongar e elevar — a repressão exercendo-se apenas, num primeiro toomento, contra elementos empíricos, a fim de desbravar o cami­ n h o— •, tal é o principio indiano, próxim o assim de concepções psicológicas modernas, e oposto à corrente mais importante do antigo cristianismo: se, com o diz Masson-Oursel, S. Paulo recomendou: «N ão extingam o espírito» ( /, Thess., 7, 19), esta fórm ula mantém-se bastante isolada e sem grande efeito. Inversamente, só no Pequeno Veículo é que se encontra nitidamente afirm ado o desejo de extingulr o sopro vital; o Grande Veículo e as outras escolas redescobrem uma potência cósm ica no fim do caminho. s Eliade referiu numerosas pretensões de origem xamânica, indianas ou tibetanas, relativas a estes pode­ res (ver, entre outros, L e Chamanisme, 386 e segs., e

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Ê certo que nos podemos interrogar sobre qual seja essa energia despertada pela prática do ioga, essa «serpente» situada na base da espinha dorsal, que o esforço de concentração faz subir pouco a pouco até ao peito (e então cessa a lin­ guagem) e mesmo mais alto, de Tatus em lotus. A tradição tântrica, posterior à Idade Média, vê nela uma força sexual, donde o lugar importante

412, sobre o «calor m ágico»). Mas não têm faltado testemunhos de autores sérios. Em 1929, A . DavidNeel, por ocasião de resumos destes poderes relativos a O s m ís tico s e m á g ico s d o T ib e te (228 e segs.), bem com o anteriormente na sua V ia g em a L h a ssa (1927), deu exem plos espantosos, e vividos por si própria, deste calor m ágico. N o mesmo ano de 1929, R . Rolland expunha, na sua V ie d e RannaJcrisTma (nota 1 ), as alterações corporais, as mudanças de coloração da pele, os coágulos de sangue e os cancros provocados por um exercício extrem o do ioga. Portanto, já há cinqüenta anos, ou quase, que factos im portantes e indubitáveis eram apresentados aos investigadores franceses. Desde então, o interesse de psicofisiologistas e psicoterapeutas tem -se com eçado a virar um tanto para estes problemas (relaxação, m editação transcendental, e tc.), mas de maneira m uito lim itada. Contudo, têm -se empreendido investigações, a partir da psicofisiologia, sobre os ióguis indianos, e um laboratório indiano consagra-lhes os seus trabalhos. Sobretudo, dotados de créditos im por­ tantes, e em boa parte de origem m ilitar, laboratórios soviéticos e am ericanos com eçaram a explorar os pro­ blemas da parapsicologia, e têm obtido resultados bas­ tante sugestivos. Trata-se de portas que finalm ente se abrem a uma investigação cien tífica que poderia abalar por com pleto uma boa parte das nossas concepções psicológicas. Ouçamos uma vez m ais Masson-Oursel: «Uma tradição várias vezes m ilenar de prática assídua, tal cottio o ioga, não poderia ser inteiramente vã e falaciosa; uma vez que dá resultados em técnica mental e terapêutica, é porque contém , por entre curiosidades e superstição, observações ou pressentimentos Justos.» (Op, cm , 112.)

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reservado ao domínio sexual no ioga dessa ten­ dência: não se trata, aliás, de pregar a conti­ nência, como no -budismo, mais de fazer uso da sexualidade para a dirigir, e preservar assim a disponibilidade das forças viitais — estamos bem longe do Kâmasütra. Mais esta tendência, que mencionamos sobretudo por fazer lembrar a sublimação dos psicanalistas, bem como o valor romântico do «eterno feminino», está longe de englobar toda a ascese, de que é apenas uma interpretação possível; há outras, reais ou pos­ síveis. Panece-oos últil insistir também numa outra tendência, ou, melhor, num outro aspecto dessa ascese que se desenvolveu sobretudo no budismo. Com efeitoi, este ipõe o acento sobre o caracter ilusório deste mundo, nascido do malefício dos nossos aetos, e sobre o véu de ilusão que temos de afastar, a fim de nos libertarmos dos três grandes males da condição humana. Com isto, a ascese budista tende a dissolver as «formações mentais» 10 (diríamos facilmente, hoje em dia, os «complexos») que outrora colocámos em nós:i aquilo que o acto fez, pode desfazê-lo (e o fim do Pequeno Veículo era já, essencialmente, o de 10 o ioga clássico (P atânjali) deixa de ser uma simples ascese, com o no jainism o e no budismo, ou uma sim ples ginática respiratória (Idade M édia), para se tom ar, p or volta do século IV da nossa era, uma influência sobre o pensamento, uma «regulação psico­ lógica» pura e simples (J. H. W oods, citado por MassonOursel, L e Y-oga, anexo IV ). W oods, que prefere este term o ao de «concentração» ordinariamente utilizado, sublinha também que se trata de eliminar as «flutua­ ções do pensam ento»: o ioga de Patânjali lim ita-se a isto; é apenas catártico, «poderosa catarse, m uito posi­ tivista, não rom ântica com o o tantrism o... ou a psi­ canálise».

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inverter assim a roda do® aictos, a fim de dissi­ par as suas conseqüências), quer dizer, os pró­ prios seres. Aparece assim um esforço e nume­ rosas técnicas destinadas não apenas a nos «desembaraçar» dessas formações mentais, mas também a cortá-las pela base e como que a podar o psiquismo. Esta preocupação com o subcons­ ciente e esta luta para o desembaraçar, a fim de dar lugar a uma inteligência lúcida, continuam a não comportar necessariamente métafísica alguma. Permanecemos numa psicologia apli­ cada, ou, antes, numa psicagogia, que dissolve as estruturas mentais e não conserva senão algumas atitudes. Encontraremos, com um carac­ ter bem menos marcado, tendências análogas em certos ocidentais (Montaigne). Não faltariam outras aproximações possíveis entre as tendências das psicologias indianas e as nossas actuais teorias da personalidade ou as nossas terapêuticas psicológicas11. Paira isso, seria necessário um estudo separado das concepções psicológicas desenvolvidas em cada escola. Um 11 É assim que, desde o século xv, Tson Khapa considerava que o nosso ser real é sempre, no estado de vigília, ocultado por uina restrição (censura) vinda da consciência que tem os do nosso lugar e do nosso papel na sociedade; pelo contrário, ao libertar o espírito desta censura, o sono perm ite a em ergência das pulsões naturais nos sonhos. A partir daqui, ®ão nume­ rosos os m estres do Grande V eículo que recomendam a observação dos sonho®—-mas aconselhando igual­ mente ter em consideração os efeitos de rem iniscência ou as sensações físicas para a sua explicação (D avidNeel, O Budismo, 63-64). Talvez seja tão fundado— ou, antes, tão pouco fundado— procurar a origem do freudismo nesta via com o em Platão, tal com o alguns o têm tentado. Haveria também m uito a dizer das investigações

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tal estudo é desejável, mas não pode ser aqui o nosso objecto. Mais importante para nós será marcar nitidamente como o pensamento indiano abriu caminhos que ainda mal começamos a entre­ ver. Sem ir ao ponto de a£irmair, como o fez um dia Lévi-Strauss, que nos encontramos na matéria dois mil; anosi atrasados em relação ao pensa­ mento hindu, é preciso reconhecer que estamos em presença de riquezas que dormem ainda, e tal­ vez mais do que no pensamento ocidental dos nossos filósofos. B — A medicina grega As obras (E3 OS HOMENS. —
indianas sobre a linguagem e a lógica, que têm uma direcção original, como o provou em particular M. Biardeau, de cuja interpretação se poderá entrever o sentido através de uma citação (tirada de L. Dumont, J . P s y c h o l., 1966, pp. 85-86): «É difícil separar as teo­ rias indianas da fala... das da percepção, pois elas formam conjuntamente, e de acordo com um esquema comum, o essencial da estrutura da epistemologia indiana. Por alto, poder-se-ia dizer que os Indianos puseram no estudo da fala a aplicação que os Gregos e os seus sucessores puseram em perscrutar a razão.» Numa obra recente, este autor opõe as várias concep­ ções indianas (realismo ou nominalismo) e mostra a sua evolução.

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escola de Cos, •permanece de longe o mais célebre dos m édicos gregos. O Corpus Hippoeraticuín compreende wns sessenta tratados, de autores desconhecidos, sendo alguns certam ente de H ipócrates, e a maior parte da escola de Cos — outros da escola de Cnido. F oi tra­ duzido em francês por IÂttré no século xix.

í* N ão se pode contestar a influência que teve —<e que conserva ain da— a m edicina grega sobre as concepções psicológicas. É verdade que já n o E gipto se podem apontar — e mesmo no N eolítieo— proezas cirúrgicas que são testemu­ nho de observações prolongadas e de um evidente saber anatôm ico; mas é só com os físicos e fisio logistas gregos que aparece uma mentalidade cien tífica oposta à m agia e aos encantamentos rituais. Não há dúvida de que o pneumatismo com um aos filósofos gregos — e hindus— se apoia em observações tã o lim itadas que a tendên­ cia é para não ver nele mais do que o prolonga­ mento de um pensamento selvagem ; mas o que é novo, com o bem diz A bel R ey (L a je u n e s s e d e la S cien ce g r e c q u e )} é que o homem não aparece já fora da natureza, é a partir de então uma parte da natureza semelhante às outras: «uma das conquistas científicas da época que estuda­ mos é precisam ente o ter ligado o homem, o corpo do homem e o seu espírito, à natureza, ao uni­ verso, ter procurado explicá-lo por princípios já estabelecidos, que pareciam necessários para a explicação d o universo, da natureza e da m até­ ria» (p. 485). Ê assim que aparece entre os m édi­ cos desta época uma concepção geral do orga­ nism o ligada a uma concepção do mundo, que pode, aliás, variar de escola para escola: um vitalism o universal, e por isso sistem atizado, pode

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bem absorver o homem num Cosm o divino ou numa E nergia cósm ica (oom o um bráhman), mas logo que intervém o gosto grego de explicação lógica, com Tales e os que se 'lhe seguiram , o homem encontra-se, com o todas as coisas, sub­ m etido às explicações igualmente válidas para os seres sem vida e sem inteligência. Uma visão m uito am pla da mentalidade destes m édicos gre­ gos, pouco depois partilhada igualmente pelos m édicos hindus, é um pneumatismo com plicado de considerações sobre os elementos prim itivos. É assim que, para Alcm éon de Crotona (fim do século v e princípios do século IV a, C .), aliado ao pitagorism o, o corpo humano é constituído por pares; quente e frio , húmido e seco, branco e negro, doce e ácido, grande e pequeno. O equi­ líbrio (ison om ia) entre estes ãunameis constitui a saúde. Já nesta época as dissecações permitem avanços da anatomia que possibilitarão um me­ lhor ju ízo acerca da natureza e do papel dos órgãos dos animais e, por conseqüência, do hom em : a anedota célebre de Anaxágoras, disse­ cando o com o único e m onstruoso de um car­ neiro para m ostrar que ele resultava simples­ mente de uma fusão dos ossos da cabeça, não é m ais do que um testemunho, entre m uitos outros, e preludia as dissecações de animais que serão frequentem ente praticadas pela medicina rom ana (G aleno). Sem esta preocupação cientí­ fica, Alcm éon não teria certam ente situado o sensorium commune no cérebro (Platão segui-lo-á, mas não A ristóteles), rejeitando assim o lugar eminente dado pela m edicina anterior, seja ao fígado, seja aos rins, seja ao coração; assim com o não teria pensado numa com unica­ ção entre os sentidos e os centros nervosos. Estas tendências objectivistas vão tom ar o pri­

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m eiro lugar em alguns dos p e r ito s d o C orpus Hvppocraticum (d o m eio d o sécu lo v a o m eio do sécu lo i v ) . O que n os seduz em H ipócrates é, antes d o m ais, o aparecim ento incontestável de um m étodo experim ental: n otação 'm inuciosa das analogias e paralelism o®, sentimenifco d o que são as variações concom itantes, bem com o das con cor­ dâncias e diferenças, preocupação de n ão des­ prezar nenhum dos elem entos m ateriais em jo g o , m as sobretudo «visão n ítida d e que é preciso interrogar a natureza, fa zer-lh e... perguntas, ir à fren te d os fa cto s pela hipótese inteligente» (A . R ey, L a m aturité d e Ia p en sée scien tifiq u e en G rèce, 4 58). H ipócrates está liberto das con ­ cepções m ágicas e m esm o esp iritu alista s12. A aplicação deste m étodo novo, na bela época da

12 Um bom exemplo pode encontrar-se no tratado Da doença sagrada. Hipócrates reconheceu que esta doença mental estava ligada ao cérebro. Oom efeito, o cérebro é o «intérprete» ou o «mensageiro» da inte­ ligência (H ipócrates, ed. Joly, 105) e, «por um lado, os prazeres, as alegrias, os risos e os jogos, por outro lado, os desgostos, os sofrimentos, os descontentamentos e as queixas não vêm de outro lado senão do cérebro» (ibid., 103); este é, assim, «o órgão mais poderoso do homem», ainda que, num sentido, «todo o corpo parti­ cipe na inteligência, na proporção em que participa no ar» (104-105) — contudo, embora o coraçãp entre em jogo nas emoções, é no cérebro que reside a sua causa (106). Ora, a doença sagrada (a epilepsia) tem a sua origem no cérebro, tal com o as outras grandes doenças (9697), e há que explicá-la recorrendo ao jogo dos humo­ res e das veias no cérebro, ele próprio na dependência de influências externas; assim, esta doença dita sagrada «nasce das mesmas influências que as outras, isto é, do que vem e do que vai, do frio, do sol, dos ventos que mudam sem cessar» (107).

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G récia, teria p odido conduzir já então a uma experim entação psicológica, pois, n o fundo, é o m esm o sop ro que explica vida e pensam ento. A hora ainda não tinha chegado, masa além desta sugestão, a m edicina grega devia legar tam bém à nossa p sicologia elem entos estruturais. Oom efeito, o pensam ento hum ano será com ­ posto, ta l com o o m undo, p o r pares m ais ou m enos bem equilibrados; Hipóerafce® subsifcitui as qualidade© d e A lcm éon p or hum ores postos a des­ coberto pela observação d irecta : sangue, fleum a ou pitu íta (lin fa e secreções d iversas), b ílis (am arela) e atrabílis (n eg ra ). E stas realidades experim entais estão na base da saúde; a sua m istura (c r a s is ) deve, em cada indivíduo, manternse fix a em ceritos equilíbrios, a doença rebenta quando a m istura se a lte ra 13, e a saúde resta­ belece-se p or crises de que H ipócrates com eçou o e stu d o 14. E stes equilíbrios dependem d e fa ctores con stitu tivos, mas tam bém de facitoires de m eio. H á assim tipos humanos, um m ais grosso e m ais apopléctieo, o ou tro m ais esguio e m ais su jeito à tu bercu lose: reconhece-se aqui a origem

rs «o corpo do homem contém em si sangue, pituíta, bílis amarela e bílis negra; é isto que constitui a suá natureza, e cria a doença e a saúde. Há essencialmente saúde quando estes princípios se encontram numa justa relação de combinação, de força e de quantidade, e quando a mistura é perfeita; há doença quando um destes princípios se encontra quer em defeito, quer em excesso, ou quando, isolando-se no corpo, não combina com todo o resto.» (H ipócrates, ibid., 58.) 14 Este estudo não se encontra acabado. Ver, por exemplo, «Le concept de crise en médecine hippocratique et en psychologle du développement». J. de P sychol., 1970, pp. 295-312, de A. Guillain. Saber-161 — 8

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longínqua das distinções de Kretschmer e de Sbeldon. A predominância em cada indivíduo deste ou daquele humor permite também distin­ guir temperamentos, cujos quatro tipos, corres­ pondentes aos quatro humores de Hipócrates, bem como ao® elementos de Alcméon de Crotona, se irão desenvolver na medicina grega, vindo a ser claramente expostos por Galeno (131-201 d. C .): colérico (seco e quente — a bílis), melancólico (frio e seco — a atrabílis), sanguí­ neo (seco e quente — a b ílis), melancólico (frio e seco — a atrabílis), sanguíneo (quente e hú­ mido — o sangue) e fíeumático (frio e húmido — a fleum a). Além disso, a escola de Hipócrates insiste sobre a influência dos meios, sobre a eco­ logia: o tratado Dos ares, das águas e dos luga­ res assinala, a acção das estações, da natureza das águas, dos ventos predominantes, dos solos, dos meios geográficos amplos (as doenças da Ásia diferem das da Europa) e dos gêneros de vida. Distingue ainda, a par das doenças, as qualidades morais e intelectuais dos Asiáticos e dos Gregos, função de estações e de meios diferentes; mas não esquece que o uso e a tra­ dição também contribuem para acentuar essas diferenças (e mesmo as das cabeça®, frequente­ mente modeladas à nascença). Assinala já os efeitos da instituição: «mesmo aqueles a quem a natureza tivesse dado coragem e bravura seriam pelas instituições desviados do seu carac­ ter» (ibid., 85). Um meio constante e mole só pode ser desfavorável, pois «são as mudanças de todas as coisas que despertam a inteligência humana e a tiram da indolência» (ibid., 84). Hipócrates é assim levado a conceber o indi­ víduo na sua originalidade concreta, ao mesmo tempo que na sua totalidade: o doente — mais

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do que a doença— e todo o doente. Respeitar a natureza de cada um implica primeiramente uma psicologia e uma medicina diferenciais, mas também uma concepção «molar» da psicologia e da medicina. Cada indivíduo possui a sua própria mistura dos humores, a sua própria natureza, e o objectivo do médico será descobrir essa natureza, e não modificá-la. Nesta direcção, Hipó­ crates vai muito longe, ao distinguir três solu­ ções possíveis a tornar em face do doente: com­ bater o elemento em excesso ou defeito, fazendo intervir o elemento inverso (será o método de Galeno), mas também utilizar o elemento em jogo com vistas a restabelecer a sua própria medida (o princípio é o que, em 1810, Hahneman colocará na base da hom eopatia); e, enfim, sim­ plesmente esperar que a natureza actue. Traita-se, para um médico, de uma atitude geral bastante afastada da da maioria dos médicos e mesmo dos psicólogos modernos. Esta propensão para «seguir a natureza» encontramo-la, na mesma época, ou um pouco mais tarde, em numerosas práticas e morais, em particular entre os estóicos — mas, para Hipócrates, a natureza em questão é mais a natureza individual do que uma natupráticas e morais, em particular entre os estóicos — mas, para Hipócrates:, a natureza em ques­ tão é mais a natureza individual que uma natureza cósmica (com o na Índia ou entre os estóicos),. Mais que as contribuições doutrinais, o que nos importa nos hipocrátieos é esse sentido do con­ creto que, recolocando o homem, com o micro­ cosmo, no macrocosmo, tem em conta as suas singularidades, toma com o ponto de partida a observação, recusa o que é «filosofia» e «arte lite­ rária» (Tratado da Medicina Antiga, citado por A. Rey, m , 445). A. Rey escreve precisamente:

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«H ipócrates deve ser louvado sem reservas por ter, mil anos antes de Galileu e de Bacon, proclamado o direito, a necessidade da observação e da expe­ riência» (ib id ., 448). Forçado pela sua profissão a debruçar-se sobre o indivíduo doente, o médico é, mais que qualquer outro, levado a fazer ceder o raciocínio © as ideologias diante da observação. Não é por acaso que, com o nota Duhem, é entre os m édicos que o espírito expe­ rimental preludia aos renascimentos: «poder-se-ia quase dizer que, para a primeira metade do século x v i, a história da ciência não é mais que a história da medicina, e reciprocamente» (citado por A. Rey„ ib id ., 455). N o entanto, não é menos verdade que este empirismo pode deixar o cam po livre aos m etafísicos: já vim os como se operava, em Aristóteles, uma estranha mis­ tura das duas tendências. Só as ciências físicas podem fazer compreender o que é a hipótese científica necessária a uma boa regulação da observação. Ã falta desta base, à falta de «ciên­ cias exactas» que criem o espírito científico, as concepções médicas estavam expostas a sofrer a sorte que ameaça todos os vitalismos, um res­ valar para concepções m etafísicas e doutrinas de aplicação moral estranhas a uma visão directa e seca dos seres. F oi o que sem cessar nos apa­ receu nas concepções da Índia. E é o que encon­ tramos num estoicism o inspirado pelo mesmo pneumatismo que a escola de Hipócrates. C — O estoicismo T rês é p o c a s : 1 — 0 A ntigo Estoicism o. T rês m es tr es da e sco la , o s t r ê s d e o r ig e m a siá tica . Z en ã o d e

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Cittium, o fundador (836-264), de origem cipriota, segue em A tenas o ensino do cm ico Cratès, mas oonhece igualmente m egáricos e platônicos. Funda a sua escola por vólta de 294, perto de um Pórtico (Stoa), de onde os nomes de E stoicism o ou de escola do Pórtico. A s suas lições são abertas a, todos, daí um carácter popular já presente nos cínicos, esses vagabundos filó­ sofos. M uito respeitado em Atenas. Cleanto, antigo operário, fiel aluno de Zenão. Poeta (831-232). Crisipo (280-210), o teórico subtil e orgulhoso pelo qual a escola renasce. Dá ao estoicism o o seu carácter sistem ático. E scritor m uito fecundo. 2 — O Médio Estoicism o. A doutrina expan­ de-se no mundo grego e no mundo romano, vul­ gariza-se, mas ao mesmo tem po banaliza-se pelos seus em préstim os às filosofias de Platão e A ris­ tóteles. D ois grandes nom es: Panécio (185-112) e Possidónio (185-51), o m estre e am igo de Cícero. 3 — O N ovo Estoicism o. O estoicism o renasce na sociedade decadente romcrna, mas limiturse a uma moral e a uma prática. Se Séneca (4-65) é sobretudo um literato e um homem de corte, E picteto, um escravo mais tarde liberto (50-180), é o grande m odelo do estoicism o. O imperador Marco A urélio (121-180) contribuirá, com os seus Pensamentos, para fazer do estoicism o a grande doutrina rioal das religiões de salvação que por essa altura disputam ente si os fié is ; mas, dema­ siado intelectual amda, e demasiado desprovido de uma esperança que seduza o vulgo, nunca passará de uma doutrina moral em favor entre certos «quadros superiores» (M ontaigne, Descar­ tes, V igny).

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à parte o s D iálogos de E picteto, recolhidos por A rriano (e o Manual que deles se tirou ), e os doze livros de Pensamentos d e M arco A urélio, a/penas possuím os dos estóicos fragm entos e apre­ sentações feita s p or filósofos de outras escolas e p or historiad ores: C ícero, D iógenes Laérck», Plutaroo. D evem os acrescentar-lhes Séneca. Todos os fragm entos relativos aos estóicos foram reco­ lhidos no Stoicorum veterum fragm enta, de Von A m im (1921-192%). * Tanto para Platão com o para A ristóteles, a Alm a do mundo não era de m odo nenhum, e justam ente parque m isturada com o mundo, o Deus supremo. Para Platão, este era um Uno ou um Mesmo, separado de qualquer Outro e um pouco m isterioso; para A ristóteles, era «o pen­ sam ento do pensamento», isem ou tro objeeto para além de si próprio. T odo este plano teológico da concepção filosófica e toda esta transcendência desaparecem à chegada da nova vaga dos epicuristas e dos estóicos15. P$ra estes tudo é co r­ poral; o que existe não são nem realidades intelígiveis com às suas cópias; nem form as inteligíveis e os indivíduos qué elas inform am : a realidade não é dupla, apenas existe m atéria. Ê que não se trata aqui de filosofias um tanto gratuitas,, concebidas p or m embros da aristocra­ cia letrada, mas sim de éticas que se situam ou pretendem siituar-se ao nível de camadas popu­ 15 Havia poucos anos que Epicuro tinha Instalado a sua escola no célebre Jardim quando Zenão se veio instalar ao pé do Pórtico. Apesar das suas diferenças, e das suas guerras contínuas, as duas escolas respondem a necessidades análogas; são irmãos inimigos.

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lares anais largas; s© estas éticas são acom pa­ nhadas por uma física, uma psicologia, uma lógica, é para assentarem em fundações mais firm es. E, com o decorrer dos séculos, assistir-se-á a um progressivo esfum ar dessas fundações intelectuais, para deixar m ais espaço às preo­ cupações éticas. Pensar h oje nos estóicos ou nos epicuristos não é de m odo nenhum pensar na sua psicologia. N o entanto,, seria inju sto desprezar urna psi­ cologia estóica real, que equacionou m uitos pro­ blem as novos, ou a uma luz nova. Obrigados, para responderem aos ataques dos acadêm icos e cépticos (em particular C arneades), a proceder a uma severa crítica das suas concepções, homens com o Zenão ou, sobretudo, C risipo souberam construir um ed ifício coerente, a m eio cam inho entre o s filosofias gregas anteriores e as concep­ ções orientais. Um sentido agudo d o esforço voluntário, que só de longe pode fazer pensar no ioga, e um sentido igualmente agudo desse indi­ víduo cósm ico que é Zeus (o Purusa indiano, bem com o a Alm a do mundo de Platão) presi­ dem a uma psicologia original. o

MUNDO

O estóico crê num poder espiritual, e é nisso que se opõe ao epicurista, menos psicólogo,, mas se aproxim a do academismo, com o qual chegará por vezes a fundir-se no m édio estoicism o. Para Zenão, o mundo com porta dois princípios: o prin­ cíp io maiterial, que com põe os quatro elementos prim ordiais, e — o que, excepto no Oriente, é m ais n o v o — um princípio ao mesmo tem po corporal e espiritual, um fo g o artista (pu r tech -

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nihon) espaílhado pelo mundo com o o mel pelos favos, e fundido numa estreita simpatia com o outro princípio, expandindo-se nele com o uma gota de água no mar, embora m ais concentrado em certos pontos, a fim de assegurar a o mesmo tempo a vida e o pensamento. Este fogo, este sopro (pm unm ), é também a Razão, o Logos, e é Deus. Ê nele que se absorve o mundo inteiro quando, num dos seus eternos retornos, no ritm o lento das suas respirações, ele se concentra num fogo universal ( eJcpurôsis) , antes de se distender uma vez mais na diversidade dos seres. !É eüe que desempenha, para os estóicos, o papel repre­ sentado pelas Ideias em Platão e, m elhor ainda, o brahman entre os hindus. Do mesmo modo,, a alma estende-se no corpo e, tal com o o fo g o universal, pela sua tensão (to n o s), assegura a coerência do Grande Vivente, assim a alma humana assegura a simpatia e a ligação entre os órgãos. Na verdade, aliás, este papel é destinado essencialmente à «parte mestra» da alma, ao seu hêgêmomhon (seria­ mos tentados a traduzir por «o G overnador»). A alma, com efeito, compreende oito partes: os cinco sentidos, o princípio gerador, o prin­ cípio da linguagem e o hêgênvonikon. 32 este que, concentrado no coração (ou no cérebro, segundo 0 ® autores), estende com o um polvo os seus tentáculos através do corpo. Cada alma possui a sua própria natureza, o seu próprio tonos, o seu impulso original, e com o que o seu carácter individual (que a representação irá captar). Que (todos os seres sejam assim únicos e irredutíveis, que não existam indisoemíveis no plano corporal o qual, para o estóico,, é o único plano, o estoicism o afirm ou-o m uito antes de Leibniz. Assim, enquanto Hipócrates ou Aris-

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tõtieles traçam classificações entre homens, os estóicos não farão uso de tais tipologias, nunca distinguirão senão os sábios dos insensatos. Tal com o os hindus, terão o sentido do ser total, molar, inteiramente penetrado por um princípio único e unificante. Não serão de m odo nenhum analistas. Para eles, nada de classes, apenas indi­ víduos e acontecimentos. AS FUNÇÕES COGNITIVAS

Estas características são bem marcadas nos estudos da lógica e da linugagem, m uito diferentes do que eram num Aristóteles. Uma vez que a realidade é individual,, uma proposição nunca poderá enunciar a atribuição de um pre­ dicado a um sujeito (homem i+ m ortal), mas sim um acontecimento (é de d ia ). Esta nova visão das coisas retira toda a realidade aos conceitos e conduz a um nominalismo no qual o conceito não é m ais que um exprimível, um lekton : toda a ciência d o geral parece, assim, tocada de interdito, cedendo o lugar a uma consideração original e única de cada ser no seu tonos parti­ cular. Vemos despontar aqui um esforço em direc­ ção a uma ciência qualitativa, mais fiel e mais próxima dos indivíduos concretos, mas não menos susceptível de sistem atização e de progresso do que a ciência quantitativa, tom ada possível, por exemplo, pelo atomismo dos epicuristas. Mas o problema está longe de ser simples, e a nossa psicologia moderna permanece igualmente divi­ dida entre a visão molar exigida pela aplicação e a visão molecular do fundamentalista. A partir daqui, a psicologia dos estóicos irá necessariamente fazer apelo a «incorporais»

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sem realidade auítêntica. Mesmo levando o materialism o até aos seus extrem os lim ites, e con si­ derando com o corporais a noite,, a palavra, rneia-noiite, Deus e as virtudes, o estóico esbarra com resíduos de outro tipo, Estes incorporais são de quatro espécies: o exprim ível (lek to n ), o vazio, o lugar e o tem po: com o se vê, tem as bem deli­ cados para os sucessores dos estóicos. Notem os, por fim , que também as categorias adquirirão um sentido diferente das de A ristóteles; visito que já não podem ser «grandes gêneros», tom ar-se-ão categorias física s: o substrato ( upokeim enon), a qualidade (povon ), a maneira de ser (p ô s ex on ) e a relação (jrros t i), as duas prim ei­ ras referidas às coisas reais e as outras duas às incorporais. O estoicism o não itiem, com o Platão, neces­ sidade de realidades não sensíveis para com ­ preender o sensível. Em vez de abandonar os sensíveis em favor dos inteligíveis, m ostra que a coordenação destes sensíveis pela actividade do espírito basta para explicar o funcionam ento do pensamento. Se esta inversão total da teoria do conhecim ento se pode operar, é porque existe uma continuidade sem am bigüidade d o nível mais baixo ao nível m ais elevado. Onde o platonism o crê ser indispensável fazer apelo a novos objectos, o estoicism o contenta-se em aprofundar, o que é 'possível devido ao fa cto de todos os processos superiores do pensamento nascerem, no fim de contas, dos dados prim eiros; não há necessidade algum a de um novo instrum ento de organização. N a base de todo o psiquism o animal e humano não há maiis que duas faculdades, a sensação (a isth esis) e a tendência (orrn ê), e é nelas que aissenta tod o o ed ifício.

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E sta continuidade, esta unidade do psiquism o no homem está bem patente na célebre imagem utilizada por Zenão, que com parava os diversos níveis de com preensão e de ju ízo a diversas posi­ ções da m ão: 1 — A m ão estendida: é a representação com preensiva ( phcmtasia kataleptík ê) ; 2 — ' A m ão ligeiram ente flectid a: o assen­ tim ento ( sugkatathesis) ; 3 — A m ão fechada: a com preensão (IcataTepsis)■; 4 — A mão fechada apertada pela outra m ão: a ciência ( epistêm ê) . N ão é nada fá cil fix a r aqui a natureza exaeta dos elementos em jo g o ; a doutrina dos estóicos nem sem pre fo i estável e clara, com o o m ostram bem a s divergências entre os próprios esltóicos, ou entre o s seus intérpretes m odernos. Mas essas divergências levantam problem as im portantes. Existem representações com preensivas ou não com preensivas; as prim eiras incluem o assenti­ mento, que não deixa de ser uma actividade do sujeito, aqui um ju ízo de existência ou de percep­ ção que decreta a conform idade da imagem repre­ sentativa com o objeeto. Em que critério é que se baseia esse a cto do espírito que é o assenti­ m ento? Tem -se discutido m uito sobre a questão, mas parece tratar-se, para o estóico, de uma evidência, o assentim ento patrece ser uma coiBa natu ral16. N ão é esta mesma posição que iremos i® A representação compreensiva distingue-se das outras, segundo uma célebre comparação, como a ser­ pente com cornos das outras serpentes.

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encontrar, não tanto1 na evidência cartesiama, m as antes naquela pela qual o su jeito de Sartre distingue o im aginário d o real? V erificar não chega, contudo, e assim se com preende que se tenha podido failar de uma espécie de com unidade entre o ob jecto percebido e o su jeito percebente, cu jas tensões esltariam de acordo entre si, havendo com o que uma ressonância entre eles: esita interpretação (ver, p or exem plo, Brun, L e S toidsm e, 42-45) decorreria directam ente da com um origem das tensões, dos fog os ou sopros entre o ob jecto e o sujeito. A acção volunltária constituir-se-á de m odo idêntico. J. Moreau (E p icteto, 23) vê aqui também uma evidência que arrasta o assentim ento para um ju ízo de va lor: é este ju ízo de valor que põe em jo g o a orrnê; a vontade não pode actuar na ausência desse juízo, e este provoca-a necessaria­ mente (D escartes irá buscar esta teoria aos estói­ co s ). Mas,, ainda aqui, não existe nenhuma heterogeneidade, p ois entre a orrnê e o assentim ento há um parentesco que vem da natureza de ambos. Ê o m esm o processo que actua em ambas as espé­ cies de juízos, «pois, assim com o o ser vivo não pode deixar de procurar aquilo que lhe parece estar de acordo com a sua natureza, o que lhe está apropriado (oih evon ), também não pode recusar o seu assentim ento a um ob jecto evi­ dente» (Cícero, A cad., n ). Em ambos os casos nos encontram os em presença de uma espécie de adaptação instintiva; «m ais do que um crité­ rio lógico, diz Moreau (ibid., 27), a evidência perceptiva é um efeito fisiológico». Se há assim uma evidência natural na origem dos juízos., é que existe um acordo com o que preestabelecido entre o nosso espírito, por um lado, e as coisas e os valores, por ou tro lado. Segundo uma fórm ula

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bem conhecida, a natureza dotou-nos de inclina­ ções rectas, e podem os con fiar nela. N ão há, aliás, nenhuma necessidade de inter­ venção da consciência, e, m uito antes de Malebranche, os estóicos concebem no aniimail e no homem (ju ízos naturais», im plícitos— .tudo se passa, pois,, no anim al com o se a phantasia pro­ vocasse imediatamente a orm ê. N o homem apa­ rece então uma tom ada de consciência: «Uma coisa é o uso, outra a tomada de consciência. B eslta reflexão, esta tom ada de consciência que caracterizam o homem.» (E picteto, citado por Moreau, 29.) E sta reflexão perm itirá organizar as representações em ciência e fix a r uma linha de com portam ento; m as é notável que ela se irá apoiar numa orm ê log%k% uma tendência razoável (Cícero, De Fin., m , 7 ). O raciocínio não é aquf simplesmente concatenação de estruturas men­ tais, antes com porta atitudes, e é, sem dúvida, por isso que tem tanto poder sobre as paixões, com o verem os17.

17 Há que ter sempre presente esta base fisiológica quando se emite um juízo sobre o intelectualismo estóico. Este soube lançar os seus fundamentos, ao mesmo tempo sobre a função tónlea (é o tonos que assegura a coerência orgânica) e sobre as bases fisio­ lógicas de todo o processo psíquico. Mesmo na percep­ ção, isto é marcado pela emissão de sopros por cada um dos sentidos interessados: concepção bastante pri­ mitiva, sem dúvida, mas de longe superior ã dos eplcuristas, para quem percepcionar não é mais que captar películas (eidola) desligadas dos objectos. O pro­ blema da actividade perceptiva, já entrevisto por Platão e Aristóteles, não está aqui separado do fisiológico. Mas este aspecto da doutrina atenuar-se-á quando ela se reduzir a uma ética resvalando para um cristianismo menos popular.

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NATUREZA E PSICOLOGIA: AS GÊNESES

O m aterialism o estóico é ainda actual por um oultro aspecto: ele incita já um pouco a uma visão genética — a qual, é certo, só virá a ser desen­ volvida p or Lucrécio. Anteriorm ente aos estóicos, são bastante raras as alusões à infância ou aos anim ais; para eles, elas constituem a própria base da sua p sicolog ia 18. A m oral manda seguir a natureza, viver de acordo com ela (hom ologoum enôs) , com o disse Zenão. Mas que natureza? E quando? Determ i­ ná-lo é constituir uma espécie de psicologia natural. Em cada um de nós existe um m ovim ento prim eiro, uma tendência fundamental ( orm ê) que lhe é própria, um instinto de conservação, se se quiser, mas perfeitam ente ajustado a o nosso ser individual, à nossa pTiusis, que é também o nosso logos. E ste m ovim ento prim eiro, tem os de nos adaptar a ele ou, se se quiser, de o apropriar, de o tom a r verdadeiram ente nosso. A sua apro­ priação ( oikeiosis) , ou assim ilação, é com o o ordenam ento da nossa casa (o ik o s) e d o seu m eio circundante im ediato; é um apego eficaz aos bens próprios, preferidos aos bens vindos de fora, aos prazeres; «assim que nasce, um animal is O estoicismo encontra-se aqui, uma vez mais, muito em avanço sobre o seu tempo. O epicurismo não se preocupa com a infância. Ê certo que não nos pode­ mos esquecer de Lucrécio e dessa esplêndida parte do livro v do De natura rerum, na qual, ao retraçar os progressos da humanidade, Lucrécio lança as próprias bases das nossas ciências humanas. Este magnífico fogo-de-artifício nunca deixará de encantar, tanto os psicólogos como os poetas; mas, logo a seguir e a toda a volta, é a noite. E isso até ao século xvm .

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quer bem a si próprio e dedica-se a conservar a constituição (statu s, correspondente ao grego systa sis) que fa z dele o que é ; gosta daquilo que pode servir para a sua m anutenção» (Cícero, D e Fm ., v ) ou, se se quiser, «o am or de si pró­ prio é o prim eiro princípio» (ib id .). Ê, pois, da própria natureza que o anim al tira esta afeição por si próprio e p or aquilo que é útil à sua cons­ tituição. O instinto prim itivo não é de modo nenhum o d o prazer, m as sim o da salvaguarda de si. Este impulso, que dá a sua coerência e a sua unidade a cada ser,, está já presente n o vegetal, e subsiste naquilo que em nós permanece do vegetal (D iógenes Laércio, Zenão). N os animais, é uma espécie de «razão natural» (Diógenes Laér­ cio, ibid.) que regula os outros instintos, mas de m aneira insuficiente, porque este instinto, que ainda não é l o g o s linguagem , actua apenas no presente: «o anim al sem linguagem capta pelos sentidos o presente, rem em ora o passado quando um acaso lh o chama aos sentidos. P or exem plo, um cavalo lem bra-se de um cam inho quando por ele o levam os, mas, uma vez no estábulo, esque­ ce-o, por m uito que o tenha trilhado. Quanto à terceira parte do tempo, o futuro, não é feita para os anim ais» (Séneca, C. a Luc., 124). À falta de poderem ser reorganizados no tempo, os im pulsos (im petus ou oonatus) dos animais per­ manecem, pois, desordenados e con fu sos: o que, aliás, é conform e com a sua natureza anim al19. 19 Seria aqui necessário ler a carta 121 a Lucilius, na qual Séneca expõe a sua psicologia dos animais e discute demoradamente a noção de constituiç&o de cada ser. Os animais vêm ao mundo com ciência dessa cons­ tituição, não nenhuma necessidade de uma arte como

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A criança, essa, perm anece por m uito tem po pouco capaz de razão, só acede às noções com un s20 aos sete anos, só as possui verdadei­ ram ente p or volta dos catorze anos e só recebe o princípio gerador m puberdade (o s estóicos estão aqui m uito perto da noção de m atu ração); é ainda aos catorze anos que o hêgêm om kon, segundo Possidónio, se tom a capaz de resistir às p aixões21. aquela pela qual os artistas adquirem pouco a pouco um comportamento dúctil e apropriado: «o que a arte faz para eles, fã-lo a natureza para os animais... todo o ser animado tem o sentimento da sua constituição, que tom a os seus membros tão maleáveis, e nada prova melhor o carácter inato desse conhecimento que a habili­ dade de todo o animal para empregar o seu corpo». É já, mas em mais amplo, o problema do esquema corporal. Lewis, A Moral Estóica, 25). 2o As noções comuns são pré-noções (prolepseis). Anteriores a todas as outras noções, mas não inatas (pois tudo provém dos sentidos), formam-se natural­ mente (ptm sei) na alma a partir de percepções sensí­ veis. Formam-se por sobreposição das imagens, e não (como as ermom) por um trabalho voluntário do espí­ rito. São as mesmas em todos os homens, que não discutem nunca, por exemplo, que o bem seja útil ou que a justiça deva ser observada. A educação ensina-nos a aplicá-las aos casos particulares. Acerca desta noção, ver Bréhier, Crisypo, que dela faz uma exce­ lente exposição. Cícero e Séneca descrevem beta esta marcha para o Bem, começada a partir do instinto animal: á razão «enxerta-se sobre as sensações; não tem outro ponto de partida para o seu esforço, a fim de tomar o seu impulso em direcção ao verdadeiro» (D e vita beata, § 8). Como o homem, ao contrário do anitaal, depressa se põe a prever e a prover no tempo, ássiste-se a um assentimento e a uma escolha; produz-se utaa espécie de «cristalização progressiva à base de experiência, que constitui a primeira aproximação de uma noção comum em todos os homens», e que «só atinge essa compreensão num verdadeiro acto racional» (G. RodisLewis, A Moral Estóica, 25).

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N o entanto, «cada idade, bebé, criança, velho, tem a sua constituição. Todas elas concordam com a constituição que é a su a... Diferentes são a prim eira e a segunda infâncias, a adolescência, a velhice. Assim , p or m uito que a constituição varie para cada uma delas, a acom odação ( oomoiIw tio) permanece igual. Oira, não é a minha infância, a minha idade madura ou a minha velhice que a natureza m e confia, mas sim eu próprio. Portanto, a criança concorda com a sua constituição d o momenlto, a de criança, e não com a de fu tu ro hom em »; neste texto, a o mesmo tem po rico e obscuro de Séneca (C. a L uc., 121), vem os o estóico equacionar já problem as bem nossos con h ecidos; continuidade das idades, mas independência possível de cada uma delas em relação à seguinte, o que faz do tonos mais um simples tono d o que um impulso, um im petus. Com efeito, há qualquer coisa de estático nesta obediência a uma natureza determ inada de idade para idade; não se traJta do im pulso do iógui, mesmo que, um pouco m ais longe, Séneca insista nos esforços que a criança fa z para aprender a andar (o que m ostra que não é o prazer que a m ove), visto que, por detrás desse esforço, entrevem os agora uma espécie de m aturação. N ão há dúvida que o estoicism o opõe, neste ponto, a arte d o homem dotado de razão ao ins­ tinto anim al; resta no entanto uma dificuldade, essa dificuldade que descobre, m ais tarde ou mais cedo, toda a psicologia que liga o esforço humano, m ais a um apelo vindo dos m odelos que a um im pulso que nos m ove para diante. Entre estas tendências constitutivas, os estói­ cos dão, com o A ristóteles, e m esmo m ais ainda, um lugar m uito im portante à sociabilidade e à am izade: «estam os destinados pela natureza Saber-161 — 9

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a form ar grupos, assembleias, cidades»,, o mundo é «a cidade comum dos homens e dos deuses», um homem, pelo próprio faoto de ser homem, «não deve ser um estranho para os seus semelhan­ tes»; estas fórm ulas de Cícero (D e Fim., m ) encontram análogos em todos os textos dos estói­ cos. Aqui,, a virtude é social porque a natureza é sociável, digamos mesmo, porque o cosmos se encontra, ligado por uma espécie de simpatia entre as suas partes; ma® esta tendência social é uma noção comum, uma prólepsis, está incluída na nossa constituição, embora não seja inata. Não é menos verdade que, por não ser adquirida, ela não depende em nada da pequena pátria, do meio ambiente, encontrando-se na origem de um cosmopoliitismo. Nada de humano é estranho ao estóico, porque no fundo da sua constituição individual ele encontra toda a humanidade. É no entanto bastante claro que esta noção comum não pende nada, m uito pelo contrário, com uma educação bem dirigida e uma sábia dialéctica. Nenhuma virtude existe por si só, e devemos agora virar-nos para a moral, esse desfecho do estoicism o, para nela descobrirmos, ainda melhor, com a sua originalidade moral, a originalidade psicológica que lhe vem da sua teoria das virtudes e das paixões. AS VIRTUDES E AS PAIXÕES

É conhecido o célebre paradoxo: quem possui uma virtude possui-as todas. Ora, a virtude é uma disposição (diathesis) estável da alma. Esta estabilidade diz respeito à alma inteira, por­ que não é divisível, com o para Pkutão, parque é essa razão, esse tonos, que penetra intimamente

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a parte mestra da alma, mais do que as outras partes do organism o. A virtude é, pois, uma tensão interior, depois que as apreensões (katar lepseis) e raciocínios deram coerência à alma. Esta visão intelectualislta de Zenão fo i precisada e temperada pelos seus sucessores, os quais, a partir de Cleamto, insistiram,, e cada vez mais, sobre a importância dos actos e a sua primazia em relação às palavras: a dialéctica, por si só, não é suficiente. Aliás, é preciso, com o incessan­ temente insiste Epicteto, utilizar técnicas para evitar as armadilhas da im aginação: ater-nos ao presente, não (nos ocuparmos do que não depende de nós, etc. Atitudes intelectuais sem as quais o assentimento não passaria de um sim­ ples «exprim ível». Se, com o os estóicos gositam de repetir, após Sócrates, ninguém faz o mal voluntariamente (eJcôn), a vontade supõe uma certa ascese, é constituída ao mesmo tempo que constituinte: podemos vê-lo bem nos neo-estóicos, nomeadamente em Epicteto. Compreende-se assim melhor que esta. virtude,, atitude ao mesmo tempo que juízo, possa ser simultaneamente domínio de si, temperança, prudência e alegria. Etete paradoxo, que tento tem feito discutir os filósofos, esfuma-se talvez um tanto se, por detrás do seu enunciado demasiado intelectualisita, se vir que ele é da mesma ordem desses paradoxos, m ais próximos de nós, da cultura geral — essencialmente conjunto de atitudes coe­ rentes— ou do factor G da inteligência. Tanto com o no domínio da ética, encontramo-nos no domínio das funções cognitivas,, mas de funções cognitivas que possuem um fundamento. Voltamos a encontrar o mesmo intelectualismo a propósito das paixões, onde coloca pro­

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blemas análogos. Aqui, nada de alma coneupiscível, de epithumia, a incriminar, nem mesxno de thumos. A alma é fundamentalmente razão natu­ ral,, e a natureza é sempre boa. Ora, como é que esta potência natural se imflecte em paixão? Não há divergência alguma acerca deste ponto, «os estóicos pensam que a® paixões nascem do juízo e da opinião» (Cíoero, D e Fm ., m ). É certo que Zenão diz que a paixão é «um movimento da alma irracional e contra natura... uma tendência que se exagera», mas este desregulamento da tendência tem com o causa uma espécie de vertigem da razão que orienta a ten­ dência numa má direcção; a melhor prova é que o animal é desprovido tanto de razão com o de paixão. N o homem, ao contrário, acontece que a razão «já não adere imediatamente à solici­ tação natural» (Rodis-Lewis, op. cit., 90), devido ao faoto de que maus hábitos, um m eio medíocre, as opiniões e a educação nos ligam ao prazer. É assim que se produz um excesso, uma hybris, que privilegia em excesso este ou aquele objecto, por termos dado o nosso assentimento, não a uma representação com preensiva e evidente, mas a uma simples «opinião». E ste discurso falso pro­ duz-se mais facilm ente quando existe uma espécie de aibonia moral que facilita os erros de cálculo na origem do impulso violento e mal dirigido, instável e desordenado, que ultrapassa o fim v isad o22.

22 Possidónio não deixará de objectar uma diver­ sidade interna da alma inferida das perturbações cor­ porais que acompanham a paixão; mas o arguínento não colhe, se nos lembrarmos de que o hêgêmonikon, situado por Crisipo no coração, as explica bastante bem.

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Ora, para esses m oralistas que serão acima de tudo os homens do novo estoicism o, o que importa é, mais que a natureza exacta das paixões, a maneira de delas triunfar: será, pois, sobretudo ao estudarmos eslta que veremos melhor o que é para eles tuna paixão. Nesta luta entre o hêgêmonihon e as paixões, o intelectualismo reaparece em força, e a paixão parece, à primeira vista, um simples desequilíbrio das funções cognitivas. É a E picteto que devemos recorrer em prim eiro lugar a este respeilto, e o que surpreende é que,, embora os estóicos tenham muitas vezes posto em relevo a criação progres­ siva de uma inclinação passional por uma espécie de som atório dos acontecimentos, é no entanto para a função cognitiva que se viram para encon­ trar uma terapêutica. É que, ao criar afecções irracionais (tal com o o juízo recto cria afecções boas), a opinião possibilita técnicas de ataque mais fáceis. É aetuando o mais cedo possível sobre as opiniões, «pedindo o santo-e-semha» a cada imaginação, que se conseguirá lutar con­ tra as paixões, tomadas à nascença. A evolução das paixões dependerá então dos raciocínios e de uma dialéctica internos. Controlando a imagina­ ção,, é possível dissolver os conexões passionais em vias de solidificação. Daí todo um conjunto de regras, de técnicas que o filósofo poderá ensi­ nar aos seus alunos. V isto que a paixão é opinião falsa, imaginação, será necessário proceder a uma espécie de redução da im aginação; o filósofo far-se-á terapeuta23; não só com o dissemos, irá 23 Haveria que resumir aqui as classificações das paixões e o estudo de cada paixão levados a cabo, e não sem cuidados de pormenor, pelos estóicos (ver, por exemplo, Rodis-Lewis, op. cit., 94-98). Digamos

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fazer tudo para desconsiderar passado e fu tu r o 24, m as tam bém para objeetivar as circunstâncias e bem circunscrever aquilo que não depende de nó® (os ou k JocctWephêmm), em suma, para dar aos seres um a capa d e in d iferen ça 2S. Nesita luta contra o s im aginários há um ponto capital para o s psicólogos, é a preocupação dos estóicos para tira r aos papéis sociais o seu valor. Que ise diga, com Séneca e m uitos outros, que o sáb io só tem um papel, o seu papei de sábio, p ois é o ú n ico que con ta ; ou que, a o con trário, se insista n o fa cto de, sendo os papéis de m endigo ou de rei equivalentes na sua nulidade, o sábio dever ser capaz d e representar ta n to Thersite com o Agam ém non, estas concepções têm o m érito de equacionar, n o plano de um a p sicologia ética, mais tam bém já d e um a p sicologia socializada, simplesmente que Zenão reconhece quatro paixões prin­ cipais: desgosto, medo, desejo e prazer. Os seus suces­ sores irão complicar este quadro acrescentando-lhe variedades, e analisarão cada paixão em função do seu objecto e do seu nível. Daí estudos psicológicos interes­ santes, como os que Séneca consagra ã cólera (D e ira). Até áo século xvii, estas classificações estóicas opor-se-ão à distinção de origem platônica entre as paixões provenientes da concupiscência e as paixões provindas da potência irascível. a* «O passado e o futuro estão igualmente longe de nós: não sentimos nem um nem outro. Ora, se não sentimos, não sofremos.» (C. a Lucüm s, 124, fim .) 25 Recusa da imaginação, essa louca da casa, faz lembrar a recusa budista das «formações mentais»; mas aqui, por detrãs desta espécie de parada intelectual contra as paixões, não hã mais nada; falta-lhe a severa técnica dos ióguis que, esses, são verdadeiramente fisiologistas, não em filosofia, mas na prática. Mesmo a recusa do imaginário, aliás, permanece limitada; não é suficientemente pronunciada para considerar, com o budismo, o mundo como ilusório; muito pelo con­ trário, faz dele o Zeus e o guia supremo.

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o problem a d o papel. Saudem os esta entrada na psicologia,, ainda que fe ita sob a égide de um sáb io ideal e dos in sen satos26. Oom este vitalism o m uito especial, a o m esm o tem po m aterialism o e espiritualism o, entram os nessas psicologias intelectualistae que floresce­ rã o depois d e passada a grande vaga cristã. Nem P ascal nem D escartes se enganarão sobre isso. O p erigo está em que eslta p sicologia d os m odelos intelectuais tom a pouco con ta cto com as realida­ des orgân icas e m ateriais, as quais tin ge de indiferença. O sáb io estóico, que concentra em si tod os os valores, substitui certam ente as ideias platônicas, m as perm anece dem asiado a lto e longe. A con sciên cia deste m odelo exige alm as de elite, e o estoicism o perm anecerá sem pre dou­ trin a d os aristocratas, dos quadros. O cristia ­ nism o ven cê-lo-á sem esforço, porque conhece m elhor a p sicologia d os hum ildes, lhes dá a ora ­ ção, os põe de joelh os, lhes forn ece im agens vene­ radas, à sua m edida. P or ou tro lado, não é m enos verdade que o estoicism o, a o apagar a s antolo­ gias m etafísicas, a o fa zer o filó s o fo concentrar-se sobre s i p róp rio segundo o conselho d e E picteto («V olta i-vos para vós p ró p rio s»), prepara a via para um a p sicologia subjeetivislta e desenha, segundo a inteligência, o s cam inhos que seguirão os corações c r is tã o s 27. 20 Anteriormente, tratava-se simplesmente de mes­ tres ou de gurus com os quais se praticava, por assim dizer, um co-viver intelectual. Agora, o modelo é objectivo e exterior, já pode ser objeeto de ciência. 27 E. Escoubas: «Paradoxalmente, o cosmologismo estóico, o materialismo epicurista assinalam o apagamento da questão ontocosmológica em filosofia e abrem a era das teorias da subjectividade.» (Études Phüoso'phiques, 1967, 2, p. 172.)

CAPITULO IV EPICURO E LUCRÉCIO Epicuro (348 ou 341 a 270). O riginário d e A te ­ nas, aonde regressa por volta dos trinta e cin co anos para fundar a sua escola , depois de ter filosofad o desde a idade )dos ca torze amos e viajado a tra vés da G récia. Vida irrepreen sível, num erosos am igos. A n tes de tudo, m oralista. Inspirações d iversas: D em ócrito sobretudo, m as tam bém A ristóteles e a A cadem ia; contudo, d iz-se « autodidacta» . A escola epicurista fo i um a verdadeira seita), e m esm o com um ca rá cter religioso, apesar de uma recu sa proclam ada da religião (d euses longínquos e quase nada a ten tos aos hom ens, nos «in term u nd os»). P artida do p ra zer im ediato, a doutrina fa z-se ascetism o, p or cálculo da razão. Os fiéis de JEpicuro ( en tre os quais escravos e m ulheres) reverenciam o M estre, cu ja doutrina transm itirão escrupulosam ente durante sete sécu los. Das obras de Ephcu/ro, não restam senão extra ctos reduzidos fMáximas e Sentenças^, três cartas autên­ tica s citadas p or D iógen es L aércio na sua Vida de Epicuro, cita ções dispersas em num erosos autores (sobretudo adversários) e exp osições, sem dúvida m uito fiéis, feita s p or D iógen es de Oenanda, e, quanto à paicologkb, sobretudo I/uorécio (e ainda em adversários com o C ícero ou P lu ta rco). L u c r é c io . Vida quase desconhecida, sem dúvida en tre 95 e rel="nofollow">55. Um discípulo no m ais a lto grau, fie l ao M estre, que reveren cia com o um D eus (V , 8 ). O seu poem a inacabado, o De natura rerum, publicado p or C ícero, (com preende seis livros, dos quais o III, o IV e o V são sobretudo psicológicos. N ão só o prim eiro dos poetas rom anos, m as tam bém certam ente um poeta de prim eira grandeza, pois, em bora sig a de p erto E pi-

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curo sem pre que nos é possível verificá-lo (em parti­ cular graças à C. a HeródotoJ, não restam dúvidas de que o seu génio lhe permitiu muitas vezes prolongar o pensamento do m estre (sobretudo no livro v ), bem como o de Empédocles, Ioutro (poeta filósofo. A té à época clássica, o De natura rerum será aquilo a que hoje chamamos um best-seller, a/pesa/r das condenações dais sieitas cristãs (é |o |autor mais citado por Montaigne). Se, para a moral epicurista, há que procurar em fontes variadas, para a psicologia, as outras fontes (por exem plo, C. a HeródotoJ pouco ou nada acrescentam a Lucrécio: eis o m otivo pelo qual nos basearemos essencialm ente nele.

1 — >0 conhecimento

à primeira vista, Epicuro aparece como um filósofo do imediato e„ conjuntamente, do tacto. O primeiro ponto, justificado pelo lugar dado ao prazer corporal, ao «prazer do ventre», mostra-se falso quando se considera quanto o sábio epi­ curista calcula a felicidade da sua vida inteira e tem em conta o tempo; encontraremos igual­ mente em Lucrécio, mas dirigido diferentemente, este sentido agudo do tempo. Em contrapartida, nesta teoria do conhecimento qúe,, para Epicuro, é uma propedêutica da moral, a importância do imediato e do tacto, esse sentido do próximo, do que está ao alcance da mão, é evidente. Os áJtomos com os quais Epicuro irá compor o mundo e a alma possuem unicamente caracteres apreensíveis pelo tacto: forma, grandeza e peso (C. a Heródoto, L»uc.,, n, 842 e segs.); a cor, por exemplo, depende de certas disposições variá­ veis dos átomos, o que permite resolver a velha dificuldade levantada pelos cépticos, devida ao faCto de uma cor poder transformar-se noutra (tons do mar, noite, etc., Luc., i, 730). Ora, esta

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distinção das qualidades primeiras e da® quali­ dades segundas não favorece aqui — corno mais tarde num D escartes— em nada o idealism o; pelo contrário, antes alimenta o materialismo miais puro, reconduzindo-se a percepção a com­ binações dos átomos. Enlfcra aqui em jog o a célebre concepção dos «sim ulacros», essas películas de átomos que, des­ ligadas de cada objeeto, nos fornecem o seu desenho (Luc., iv , 104). Esta teoria, tão vilipen­ diada, merece melhor, pois afirm a que, do objeeto ao sentido humano,, há sempre uma transmissão material — as ondas luminosas substituirão mais tarde os simulacros — , e que mesmo a luz é maltéria, o que não está longe de sei* uma ideia tão antiga nem tão evidente, O que é m ais original é que esses sistemas de átomos que são os simu­ lacros são geralmente suficientemente estáveis para subsistirem bastante tempo (donde os sonhos animais, IV, 98709; ou em nós, por exem­ plo, as imagens dos m ortos) e„ por vezes, com­ porem-se entre si (sonhos, im aginação). A ima­ gem adquire assim uma realidade, não é de modo nenhum tão vã com o o pretendem poetas e filó ­ sofos, pode ser submetida a hipóteses concretas, eu ia escrever científicas, tendo em conta e argu­ mento observações reais. Lucrécio chegará a dizer que a visão do espírilto é semelhante à dos olhos (IV, 750). E, para dar conta das imagens do espelho, construirá uma teoria que, por fraca que nos pareça hoje, esboça uma explicação cien­ tífica (rv, 244 e 268). Trata-se de uma espécie de realismo existencial, oposto ao realism o das essências platônicas, e que abre a porta à inves­ tigação científica. Éace a um mesmo problema, o da relatividade das percepções,, que dominou todo o pensamento antigo, se Platão faz intervir

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modelos no mundo das Ideias, Epicuro volta-se, ao contrário, para o mundo físico, o que lhe dá simultaneamente um m eio de se ver livre das argúcias dos cépticos (rever, em particular,, Luc., iv , 324-363 e 379-461) e de afastar os fantasmas religiosos. Este realism o leva os epicuristas a conside­ rar que toda a sensação é verdadeira enquanto ta l: «a sensação [...] não pode ser refutada por nenhum critério» (Epicuro, citado por Diógenes L aércio). O erro não existe a este nível, mas apenas m ais acima, ao nível do juízo referente à sensação: é certo que vejo o pau quebrado na água, ou a torre redonda ao longe, e «as ima­ ginações dos loucos; os sonhos são igualmente verdadeiros» (ib id .). Ê porque no meu juízo não tenho em conta as m odificações sofridas, em caminho ou no curso do tempo, pelos simulacros, é por isso que eu me engano. Por outro lado, a percepção está longe de ser uma simples impregnação desses simulacros,, pois há ainda uma acção do organismo, e este já fo i m odificado pela experiência. O organism o, com efeito, projecta sim ulacros de encontro ao objeeto e, pelo facto de e s te poderem convir mais ou menos ao objeeto, a percepção nascida do encontro poderá ser m odificada pela projecção (ja ctu s animi, ep ib ólê); esta percepção activa (Luc., iv , 807), na qual se reúnem o que senlte e o que é sentido, incita então a falsos juízos e falsas antecipações. Não nos devemos enganar, os três elementos que condicionam a percepção: objeeto de onde provêm os simulacros, m eio que os deform a e organism o humano que os antecipa e os recebe, são, todos eles, igualmente materiais. O epicurismo reage violentamente contra Platão e

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Aristóteles. A antecipação (prolepsis) não é mais que um depósito, uma impregnação (ty p o s) deixada em nós pelas percepções anteriores — pode-se pensar na imagem genérica de Galton; toda a representação depende assim do sensível, e mesmo toda a operação: «Todos os nossos conhecimentos provêm efedtivamente das sensa­ ções, seja por concomitância, seja por compara­ ção, seja por síntese. A elas se vem acrescentar o raciocínio que as elabora.» (Epicuro,, citado em D. L .) O erro está na hipótese ( u p olep sis), que projecta por vezes indevidamente o conceito, a antecipação, sobre a experiência. Estamos aqui em face do mais puro empirismo, que reduz completamente a razão à experiência— e, por uma retroacção que há que não deixar passar em branco, a sensação já não pode ser errônea sem tornar igualmente errônea a razão, o que faria desmoronar toda a verdade (Luc., iv , 483 e 500)..* Verifica-se aqui, no fim de contas, uma certa desconfiança do raciocínio e mesmo da lógica, à qual, contrariamente, os estóicos davam um lugar im portante1. A doutrina epicuris!ta, cien­

i Montaigne conservará sobretudo dos epicurisias esta desconfiança em relação à razão, ao verbal, ao «muthos». Ao contrário, Hume insistirá sobre a expli­ cação etnpirista da razão, prolongando racionalmente os pontos de vista epicuristas. Duas linhas de pensa­ mento bem diferentes. E5 não é certo que aquele que parece ser o mais fiel à letra do epicurismo, quero dizer Hume, não esteja muito mais longe do espírito epicurlsta. Para uma análise aprofundada da teoria do conhe­ cimento no epicurismo (e também da linguagem, e aliás em geral), ver a excelente obra de 6 . Rodis Lewis: Epicuro e a sua escola (pp. 91-117).

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tífica pela sua preocupação de se apoiar sempre nos factos, deixa de o ser se tiverm os em conta o seu aspecto dogm ático e a sua preocupação tão limitada da prova: a m ística, e mesmo a poe­ sia, tenderão a substituir curiosamente as seqüências silogísticas. Partindo de um mesmo materxaiismo (do «fogo artista» ou dos átom os), epicurismo e estoicism o encontram-se assim nos antípodas, porque Epicuro dá grande importân­ cia aos encontros casuais e não sente necessidade alguma de enconltrar na natureza uma ordem dos fin s; se existe para ele uma ordem do mundo, é uma ordem mecânica, que justamente ohsta a toda a intervenção dos fin s e dos deuses, a todo o m ito; e dessa ordem mecânica,, se os seus prin­ cípios estão assegurados, ignoram os muitas vezes o percurso exacto: a existência ultrapassa o lagos. Uma outra diferença importante entre estói­ cos e epicuristas, no plano psicológico, é que, com o o mundo estóico, incluído num ciclo sempre renovado,, não está verdadeiramente submetido aos acasos da duração; daqui se segue que esta última quase não intervém na psicologia estóica, ao passo que Lucrécio poderá lançar as bases de uma verdadeira psicologia genética — voltare­ mos a este ponto adiante. 2 — A alma Esta importante diferença a propósito do tem po que acabamos de assinalar m arca-se já na concepção da alma, que Lucrécio herda, pelo menos na sua m aior parte, de Epicuro: a alma é material e inteiramente m ortal; a seguir, nasce, cresce, sofre transform ações e dissolve-se. Do platonismo, Lucrécio não retém senão a parte m or-

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tal da alma, e não essa Alma-Ideia que ocupava muito particularmente Platão, sobretudo nos seus primeiros diálogos (F éd on ). É que os médicos e os fisiologistas passaram por aqui, Empédoeles enitre outros: o estudo vai da m oral à biologia, muitas vezes seriamos tentados a dizer à psicofisiologia. A alma não é de modo nenhum uma harmonia do corpo (m , 95 e segs.),, com o a saúde, neste ponto Epicuro e Lucrécio estão de acordo com PlaJtão, contra os m édicos; mas além disso, para eles, a alma é uma parte do corpo. Que ela lhe pertença, prova-se pelos laços estreitos que a unem ao corpo: ela sofre dos seus males como dos seus terrores, franzina num corpo franzino, roída muitas vezes de medos e desejos, de rem or­ sos e lamentações de origem temporal, perdendo por vezes a memória devido aos avatares do organismo, sujeita por razões análogas a ausên­ cias e desmaio®, sujeita também a males (com o a epilepsia) que lhe são próprios mas aJtingem o organism o inteiro (m , 44 e segs.,. 824-829 e passim ). A alma não é, pois, mais que um sistema orgânico de ordem material, constituído por átomos particularmente móveis disseminados através dos. outros átomos do co rp o 2: sem corpo a alma não vale nada, e sem alma o corpo não pode viver. Todo o livro m do D e natura rerum não é senão tuna espécie de tratado fisiológico e psicológico de um tipo m uito novo, pois não encontramos nele nem elementos eternos nem princípios vitais, mas sim pequenos átomos, lisos

2 O fogo artista dos estóicos está assim difundido por todo o corpo, cuja unidade realiza pelo seu tonos.

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e móveis, cuja convergência passageira está na origem do pensamento e da vida. Uma tal alma está longe de ser simples — com o o não eram as de Platão ou dos estói­ cos —., ela supõe quatro elementos; o sopro, o ar, o calor e um quarto elemento mais subtil, que não tem nome e que é corno a «alma da alma» (nr, 280-281). A predominância de um ou outro destes elementos marca a alma com caracteres especiais,, com o se vê no leão (calor), no veado (sopro), no boi (ar) (m , 282 e segs.). O mesmo acontece com os homens, e assim se esboça uma cairacterologia de fundamento fisiológico, muito comparável à dos médicos gregos. Contudo, para Lucrécio, há iaqui um pensamento original de im portância: se a filosofia não é capaz de apagar completamente essa natureza prim itiva de cada um de nós, não deixa senão fracos ( parvula) traços seus, que em nada prejudicam uma vida de acordo com a sageza (m , 320-322). Aparece aqui, corno corolário do primado m oral de Epi­ curo, uma das preocupações maiores da psicolo­ gia moderna: o adquirido apaga em grande parte o inato, há um devir dos caracteres. Esta alma é ainda com posta sob um outro aspecto, a saber: que convém distinguir da alma propriamente dita (anim a) expandida por todo o corpo, com o o mostra a dor física ®, o espírito (anim us) concentrado num lugar privilegiado, o coração (m , 140): com efeito, é no coração que se sente o medo e a alegria, por isso Lucrécio situa também nesta espécie de centro das emo-

s A sensibilidade é orgânica e presente em cada unidade do corpo (n, 904 e segs., 931, 973 e segs.: m, 335, 350 e segs.).

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ções «esse concelho ( concüium) a que chamamos espírito e pensamento ( animum mentem que)» (m , 139). Situando assim o raciocínio no peito, Lucrécio reage brutalmente, com o se vê, contra o inteiectualismo platônico: transforma o thymos num mens. Ora, esta distinção entre anima e ammus (como, sem dúvida, a introdução paralela da «alma da alm a») introduz a uma concepção dinâmica do psiquismo humano concebido como iima. série de seqüências cada vez mais vigorosas: o espírito do coração actua sobre a alma, esta sobre o sangue, as carnes, os ossos e as moedas (m , 159-160 e 246-251). Como é que funciona este mecanismo com o que de dilatação do pro­ jecto, eis um ponto interessante, ao qual Lucrécio regressa mais demoradamente a propósito da marcha (iv , 877-906). Tentemos compreendê-io. Ê o problema da alma e do corpo que está aqui em jog o; ou, se se quiser, o da liberdade, digamos mais simplesmente,, para não colocar o problema metafisicamente, da espontaneidade. Afirm ar que a alma é material e parte do corpo não, basta; se se evitou a dificuldade metafísica da interacção entre substância espiritual e subs­ tância material, encontramo-la de novo, em parte e transposta a outro nível, sob a acção da maté­ ria pensante sobre a matéria mais pesada do resto do corpo: com o é que o elemento intelectual (átomos lisos e móveis) pode animar os elemen­ tos inferiores, comunicar-lhes o movimento, o projecto da alma? Mais amplamente, digamos que se traJta de um problema geral de animação do corpo, e tanto mais vasto em Lucrécio quanto a sensibilidade se encontra difundida em todo o organismo, mesmo nos dentes (m , 621-624), e quanto toda a vida implica uma alma, inclusive

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nos animais (por exemplo, no leão, no veado, no boi, cujas alunas são parentes da alma humana). Lucrécio tenta resolver o problema pela interposição de intermediários entre o quarto ele­ mento sem nome e os órgãos mais pesados, como os ossos: tudo se passa, ao que parece, como se a energia muito limitada desse elemento subtil induzisse uma energia mais importante nos outros elementos da alma, e seguidamente de todo o corp o4. Ora, esta espécie de cascata por incitações sucessivas não pode hoje satisfazer leitores bem habituados, desde Mayer, ao prin­ cípio de conservação da energia: o termo «indu­ zir», que empregámos aqui expressamente, é muito ambíguo. É certo que Demóerito já disse que nada morre e que nada nasce de nada, prin­ cípio prestamante retomado por Lucrécio: se não se pode ver nele uma conservação da energia, mas antes da m atéria,,resta que a posição de Lucrécio seria delicada se se limitasse a isto. Vemos assim, mais à frente, que o elemento pri­ meiro não é verdadeiramente um animador, mas antes um regulador: o que Descartes significará pela imagem do cavaleiro e do seu cavalo, Lucré­ cio di-lo também pela imagem do piloto que capta e utiliza a força do vento graças ao leme e às velas (v , 898-906).

* Um bom resumo deste processo em II, 269-271:
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N otem os ainda, a este propósito, que o re­ gulador (o governador, hêgêm onücon, dizem os estóicos em sem elhante ocasião) não poderia actuar se não conseguisse fazer su rgir energias novas opostas às antigas. E m erge assim aqui uma n oção nova, a d e equilíbrio instável entre essas fo rça s opostas. Ou, se se quiser ainda, d e lim iar, um a vez que o desequilíbrio não pode ser atingido ou invertido senão a p artir de um a diferença mínima lenltre o s opostos, d e um lim iar de acção. SÊ p or aqui que deveria orien tar-se um a reflexão m aterialista seguindo a linha epicurista, fo i p or aqui que se d irigiu a n eu rofisiologia de h o je s. S eja com o fo r, estas reflexões sobre o p ro­ blem a, a que o s epicuristas procuraram d ar uma solução,, contribuem igualm ente parã fa zer com ­ preender o sentido profu ndo d o célebre clim m en ou ãeclinatio, essa espécie de desvio que infleete a queda linear de certos átom os, em m om entos e lugares não fixa d os (n ec region e loci certa wsc tem pore certo , n , 293) . Tem -se escarnecido m uito desta m aneira d e reintroduzir uma certa con tin ­ gên cia n o determ inism o epicurista, a fim de devolver a o sáb io a sua liberdade. M as ela cons-

s A bem dizer, a noção de informação hoje na moda tende frequentemente a ocultar demasiado a de limiar. Mas, se esta noção se impôs deste modo nos processos vitais que exigem uma programação da construção daa células e órgãos, não pode afastar a necessidade de fazer intervir um equilíbrio mais ou menos instável sobre o qual se dá a acção dos elementos nervosos. O problema com que esbarrou Lucrécio continua pre­ sente. E pde, seta dúvida, ainda mais para o psicólogo do que para o neurofisiologista. Mas este imenso pro­ blema — devidamente posto pela primeira vez por Hel­ v écio— é demasiado vasto para ser abordado aqui.

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titu i tam bém , e talvez m ais ainda, um m odelo de explicação fisio ló g ica da a cçã o voluntária, m odelo que, apesar das sua© fraquezas, reapa­ recerá, com o se sabe, num D escartes e em m uitos ou tros (B outroux, p or exem plo), e que, quando m ais tarde se irá apoiar m ais firm em ente nas n oções de equ ilíbrio e de lim iar (im plicadas igualm ente na teoria cartesiana da glândula p in ea i), conduzirá aos m odelos d a n eu rofisiologia m oderna, finalm ente liberta d o velho pesadelo m etafísico da união da alm a e d o corp o. Também h oje, para exp licar a origem d o processo volun­ tário, n os vem os obrigados a fazer intervir, pelo m enos nas sinapses neurónicas, um a espécie de infinitesim ais, um «perpaulum , quo nihil p osset fie ri m inus» (C ic., D e F in ., i, 6 ), d e «n ec plus qwam, m inim um» (L u c., n , 2 44). M as a explicação n ão pode fic a r p or a qu i: o que basitava a uma doutrina essencialm ente m oral com o a de ESpicuro n ão pode já satisfazer a ciência de hoje. E isto constitui um a enorm e d ife re n ça 6.

3 — O tem po O p rin cíp io avançado p or D em ócrito de qué nada se perde e nada se cria leva L u crécio a daí

« Menos, contudo, se se considerar Lucrécio do que Epicuro. Sem dúvida que o espírito científico perma­ nece em ambos subordinado à finalidade moral. Mas Lucrécio tem uma real preocupação de objectividade, procura uma verdade científica: entre as diversas solu­ ções propostas, por exemplo, para explicar o movimento dos astros, só uma é válida; toas a nossa ciência só avança passo a passo (pedetenvptim progr&dientis) (V, 526-533).

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deduzir a im portância do tempo, visto que nesse caso, sem o tempo, o mundo seria im óvel, mas esite tem po é para ele a mudança das realidades físicas, sociais e psicológicas (i, 180-190). É um tem po concreto, real, e já não apenas um número (com o para Platão o número d o M ovimento, imi­ tação dia eternidade): para os epicuristas não existem , lem brem o-lo, elementos «incorporais», ao contrário do que acontece com os estóicos. E ste deslizar do tem po para a duração, se não chega até ao tem po vivido, apenas introduzido p or A gostinho, im plica contudo uma visão psico­ lógica d o tem po, com o se pode ver bem por este texto de Epicuro, transm itido p or Diógenes L aércio: «a sim ples reflexão m ostra que com po­ m os o tem po com os dias e as noites e outras partes semelhantes, e ainda com as nossas afecções e os nossos estados calm os, com movimentos e repousos, concebendo com tudo isto, pouco a pouco, um acidente particular em função do qual dizem os que existe o tem po». E ste não se aplica, pois, a partir da percepção propriam ente dita (ib id .), mas de uma espécie de construção sobre as percepções. Ê obra de experiência, não de percepção7. Mas sem pre em pírica, o que im plica que os problem as reais não podem ser

i Tem pus item p er se non est, seã rebu s ab ipsis ccmsequitwr sensus tra/nsactum quid sit in a e v o . . . nec p er se quemquam tem pus sen tire fatendum st sem otum ab rerum m.otu plaoidaque q u iete: do mesmo modo o

tetnpo não existe por si próprio, mas é dos próprios acontecimentos que deriva o sentimento do que sucedeu no passado ... e ninguém, há que confessá-lo, possui o sentimento do tempo em si, considerado separadamente do movimento das coisas e do seu repouso (V, 459-463).

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encarado® fo ra do tem po: é por isso que Lucrécio tem sem pre em conta processos, m ais do que estado®: toda a sua ciência, m esmo física, é dinâ­ m ica e genética. Há aqui uma novidade capital (que se encon­ tra igualmente, quase na mesma época, no cris­ tianism o, m as num dom ínio m uito m ais restrito) ,, é o sentido de uma direcção da história. A p syché deixará de se ver agarrada à® Essências eternas de Platão ou presa no círcu lo eterno e no fundo im óvel do devir cósm ico dos orentais ou dos estóicos^ será sim efeito de um certo m eio cultu­ ral e, m uito m ais ainda,, da m aneira pela quali nos seus esforço® frenéticos, e geralm ente m al avisados, o homem fo r capaz de se m odelar a si próprio. A psicologia une-®e aqui à m oral: em am bos os casos, há uma aprendizagem, ou, antes, uma conquista a efectuar, e esta tensão não está, com o o tonos estóico, sob a dependência de Leis eternas, m as é livre no interior de um certo m eio e de certas regras, sem Deus e sem destino. O homem m oderno, perdido no mundo, nasce aqui. N ão é, poi®, surpreendente que, quando se lê com atenção o D e natura rerum , se encontre sem cessar referências ao tempo. N ão ao tem po m atem ático e astronôm ico de Platão ou A ristó­ teles, m as ao tem po real, concreto — à duração do mundo inteiro (n , 1105 e segs.). P or vezes, durante a leitura, pensa-se nesse tempo que é o lote do® seres d o mundo sublunar, esse escoa­ mento, esse devir, essa genesis pela qual chorava H eráclito, segundo a lenda. Mas o tem po de L ucrécio — e apesar do pessimismo que se quer ver na sua o b ra — é tanto o do® nascimentos com o o das destruições, não é só o rio do tempo que arrasta toda® as coisas em desordem (por exem plo, fim li), é também um tem po que se

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desenrola e cria de acordo com ordens universais, de acordo com as leis (e já não um d estin o): «Omnia enim pariter crescunt e t róbora sumunt» (tudo cresce e se fortifica segundo uma marcha igua'1) (v , 820). Ê certo que por vezes se item a impressão de encontrar acentos heraclitíanos: m utat enim mundi naturam totius aetas (a natu­ reza do mundo inteiro m odifica-se com o itempo) (v , 828; também 1276), mas logo surge uma fórm ula que, com algumas variantes, se encontra várias vezes no poem a: res quaeque suo ritu procedit, e t omnes foed ere naturae certi discri­ mina servant (cada coisa segue a sua marcha própria, e todas, conform emente às leis fixadas pela natureza, conservam os caracteres que as diferenciam ) (v , 924), fórm ula que, justamente, introduz à exposição das ciências sociais e psico­ lógicas que com eça no verso 925 (ver também v , 56-58, uma fórm ula análoga). Este tem po concreto, se não é certamente o tempo vivido de Agostinho ou dos nossos fenomenologiistas, é o Itempo quotidiano, ao qual é preciso, com o diz Epicuro (D. L., ibid.) , aplicar as palavras correntes, esse tempo de que faz uso a ciência balbuciante, um tempo dos factos, vindo dos factos. Assim, Lucrécio nunca hesita em fazer frequentemente alusões discretas ao progresso do psiquism o: desde as primeiras ida­ des que a alma e o espírito «se exercitam » ( discunt) a form ar os seus movimentos vitais, e já mesmo no ventre da mãe (m , 345); também do mesmo modo a alma cresce ( crescere) com o corpo (m , 683, 770, etc.).

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4 — A ciência genética de Lucrécio Do mesmo m odo que há uma juventude do mundo (novitias mundi, v , 780, etc.), há pois uma, juventude do psiquismo e, em conseqüência, uma, evolução dirigida; esta evolução, ora posi­ tiva e progresso, ora negativa e perversão, encontrar-se-á igualmente na sociedade. Lucrécio inscreve assim no quadro do tempo, no quadro genético, tanto as ciências sociais (segunda parte do livro v ) , com o as ciências psicológicas (sobre­ tudo livros m e iv ), e mesmo as ciências cosmológicas (inicio de v ) . Se, em referência ao livro V, 783 e segs., se tem podido fazer de Lucrécio um precursor do evOlucionismo bioló­ gico e da iteoria biológica da adaptação, esta visão genética estende-se, com efeito, a todo o universo luereciano, e mesmo físico : por exem­ plo, sem um acordo e um contrato im plícito entre homens «genus humanum, jam tum foret omne peremptum», o gênero humano teria desa­ parecido completamente (v , 1027), só uma adap­ tação social, nascida a dado momento, permitiu a linguagem, o fogo, a realeza, a propriedade, etc. Estamos em presença do único exemplo verda­ deiramente séirio de uma tentativa de psicologia genética na Antiguidade, mesmo que muitas vezes reduzida a princípios esparsos e fadtos isolados. Chegamos assim a esse passo de v„ 925-1457, o mais célebre do poema, cuja conclusão resume bem o que acabamos de dizer: «É assim que, passo a passo, o tempo traz à luz cada descoberta que a ciência (ra tio ) ergue em pleno dia. De fadto, os homens viam as ideias iluminarem-se uma após outra na sua alma, até ao dia em que a sua indúãtria os levou ao sumo da perfeição.»

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Trata-se de una verdadeiro tratado do homem. — ao mesmo tempo que de uma defesa, pois este tratado desbrava o terreno com vistas à m oral; tem em conta tanto a pré-história, a antropolo­ gia, sociologia, psicologia, polemologia, ciência das religiões, numa palavra, todas as ciências humanas, e lança as bases, as mesmas bases (e m étodos) de todas elas. Passaremos aqui em revista apenas alguns pontos mais interessantes para o psicólogo. Em prim eiro lugar, a relação do inato e do adquirido, que intrigava já os Atenienses no tempo de Platão. Este, corno vimos, tinha em grande consideração o inato ; Lucrécio, pelo con­ trário, e com o dissemos rapidamente mais acima, ao citarm os um texto isolado de nr, 320, privi­ legia frequentemente o adquirido. Epicuro pare­ ce-nos m uito menos preciso: «É preciso admitir que, nos homens, a experiência e à necessidade vieram muitas vezes em socorro da natureza. O raciocínio aperfeiçoou os dados naturais e acrescentou-lhes novas descobertas.» (C . a H eródoto.) N o livro v , Lucrécio, e imediata­ mente antes dos versos 925 e segs., dá um lugar m uito bem determinado a uma espécie de ordem do mundo, de leis das coisas. Estas são já, sem dúvida, necessárias para permitir, durante a juventude d o mundo, a adaptação e o desapa­ recim ento dos inaptos; mas, uma vez esta esco­ lha devidamente explicada (v , 837 e segs.), Lucrécio considera cada espécie com o imutável e afirm a que ela contém em si instintos sem os quais não poderia sobreviver. Tais instintos foram primeiramente apreendidos da natureza (IV, 846„ prius ncetura oogit). Mais à frente, é ainda m ais explícito: «Todo o ser, com efeito, possui o sentimento do uso que pode fazer das

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suas faculdades» (v , 1033), corno o provam os exemplos dos vitelos, leõezinhos ou passarinhos. No entanto, não deixa de ser o uso, e seguida­ mente o esforço d o espírito humano ( usus e t imprigrate exp erien ta m en tis), que há que invo­ car primeiramente. Com efeito, é o homem que conta em prim eiro lugar, e não deuses ineficazes ou um destino puramente imaginário. A® leis naturais, se são estritas, são indiferentes ao homem; cabe-lhe a ele —- e é bem capaz disso — tirar partido delas sem se deixar iludir. A pas­ sagem de um destino com finalidade humana a leis naturais não pode ainda, é certo, em Lucrécio, liquidar completamente os «instintos»; estes subsistem, incompreensíveis,, o poéta não pode nem negá-los nem explicá-los. Còntudo, num passo espantoso, chega a afirm ar, sem ambigüi­ dade alguma, que o órgão precede a função (o que é ainda recusar todo e qualquer d estin o): «nü id eo quoniam natum st in oorp ore u t u tí possemius, sed quod w itu m st id p rocrea t usum » (iv , 834-

835), e precisa através de exem plos: as orelhas precederam a audição, a língua precedeu a fala, «em suma, em meu entender, todos os órgãos são anteriores ao uso que deles pudemos fazer. Não puderam, pois, ser criados com vistas ao nosso uso» (ibid., 8 4 0 ) ; e isto mesmo quando, com o em relação aos nossos membros, a sua uti­ lidade apareceu sem dificuldade. Notemos esta posição extrema, ainda um tanto no ar, por urna insuficiência da teoria da evolução, que perma­ nece apenas adivinhada; esta posição aparecerá novamente nos nossos dias, por exemplo num Watson, mas sem a inspiração m oralista que a justificava em Lucrécio. Por agora, irá desa­ parecer por uns vinte séculos; O próprio Desear-

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tes pensará que os animais-máquinas são obra do divino Arquiteeto, o que é bem outra coisa. Algumas palavras agora para a teoria da linguagem, que é muito nova nos epicuristas. Lucrécio distingue, com efeito, vários níveis da linguagem. Em prim eiro lugar, uma espécie de linguagem natural,, não aprendida, que se ex­ prime, por exemplo, nos grunhidos furiosos e nos latidos de contentamento dos m olossos. Em seguida, esta linguagem natural desenvolve-se pela experiência: «utüitas eocpressit n&mina rerum ». N ão se trata aqui, de m odo nenhum, de urna invenção individual apreendida pelo grupo, mas antes de uma invenção coledüva que desenvolve a linguagem natural dos animais. Antes da sociedade baseada na palavra humana, havia uma ligação (am ioities) que aproximava já os homens e lhes permitia exprim ir sentimen­ tos elementares sem uma autêntica linguagem: fo i precisamente graças a isso que puderam indi­ car-se confusamente (ba lb e) o contrato im plícito que iria regulamentar a sua vida m eio civilizada (v , 1011-1090). Existe aqui em Lucrécio uma dupla preocupação: em prim eiro lugar, de ter em conta um progresso genético, individual e social; seguidamente, de conservar, no interior desse progresso, uma continuidade. A partir daqui, éJlhe necessário, o que é conform e à expe­ riência, ter em conta, antes da sociedade cons­ tituída e antes da linguagem, esboços mais elementares, níveis psíquicos inferiores: a des­ coberta da linguagem não deve nunca ser atri­ buída a um qualquer génio divino, e a sociedade não resulta de um contrato explícito entre alguns homens, patrocinado por este ou aquele deus (posição de Dem ócrito ou de Diodoro de S icília). F oi o homem comum, o homem anônimo, com

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as suas virtudes e os seus defeitos, que outrora empreendeu estas conquistas e que, aliás, as falhou por vezes (v , 1024: n ec ta m en om nim odis p o te r a t ooncordia g ig n i ).

Chegamos assim ao problema psicológico que constituem para o epiourista as crenças religio­ sas. É saJbido com que vigor Lucrécio lamenta a humanidade, esmagada por uma dura religião (oppressa gra/vi sub religione), é conhecido esse «tamtum réligio potuit suadere malorum» (de ítal m odo a religião pôde persuadir ao crim e) que conclui o relato do sacrifício de Ifigênia: essa fórm ula brutal, ponto de união do ateísmo,' não terá igual antes do século xvnr. Mas, se Lucrécio (talvez m ais ainda que E picuro) colocou no cora­ ção da sua doutrina esta guerra, contra as form as religiosas do mal,, nem por isso deixou de com­ preender que a explicação d o erro devia vir com pletar a sua condenação (é o movimento de Kant perante as antinom ias). Donde um interes­ sante esforço para explicar as fontes da religião, uma espécie de fenom enologia e igualmente de história da religião. Na origem da credulidade está o medo, esse medo que é concentrado e com o destilado pelos relatos dos padres. Foi das fábu­ las divinas e do raio que Epicuro teve de triun­ fa r (I, 68). Se o homem não fosse infeliz, se além disso não matutasse nas suas misérias, se não temesse a morte (m , 31 e segs.) ,, poderia ver-se livre das religiões (ibid., 107-109). Mas o mundo está longe de ter sido feito para nós, Lucrécio dá-nos disso pormenorizadas provas naiguns passos célebres (v , 195 e segs., e 925 e s e g s .); a desgraça do homem com eça desde a nascença, desde o prim eiro vagido doloroso (V, 224-225). Há no fundo do poema, reconheçamo-lo, uma angústia surda, um desprezo pela vida (v , 174)

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(quidve m áli fu era t nobis non es se crea tis? [que m al para n ós se nunca tivéssem os n aiscido?]). Q uis-se ver aqui o tem peram ento d e L u crécio e um germ e de loucura (S. Jerón im o), a fim de m ais facilm ente o condenar. Mas traita-se antes d o sentim ento da existên cia sin istra d o homem perdido num m undo ch eio d e perigos, d e um hom em atacado pela im aginação (v,, 1430) e pelos seus tem ores d e um m undo que n ão pode am ar, de tal m odo ele se encontra m anchado de defeitos (tan ta sta t praedita culpa, v , 199). A ngústia existencial, diríam os nós. E a exp licação da o ri­ gem da religiã o está justam ente em o homem se sentiir «atirado para aqu i» (com o d irão os existen cialistas) e tom ado d e uma angústia con­ tín u a 8. R econheçam os aqui aJtitudes estranha­ m ente m odernas. M as, não n os esqueçam os, d o fun do dessa angústia sobe um can to de esperança, e fo i o D e natura rerum , esse hino sem dúvida aos n ovos tem pos e a E picuro, que, pela sua própria arte e pela sua própria virtude, soube arrancar

s Este sentimento de ter sido atirado para aqui justifica-se ainda mais por aquilo que contribui para quebrar o egocentrismo, por exemplo, pela possibilidade de outros mundos e de outras raças de homens (n, 1075-1076). Ideia, uma vez mais, extremamente moderna, a de um tempo e um espaço infinitos, a qual, longe de aterrorizar os epicuristas, lhes permite sonharem, com CJyrano, Voltaire e os nossos engenheiros, com viagens e aléns promissores. Mas que nos expõe também a todos os riscos: nem a evolução dos mundos está rigi­ damente fixada: depende dos acasos mais ínfimos; nem o progresso se encontra assegurado: depende da cora­ gem, do trabalho e da virtude dos homens. Com o infinito do mundo, é a actividade humana que é valo­ rizada.

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a nossa, existência a essas vagas e a essas trevas, por essa via da razão a que se chama sabedoria, mas também à humanidade inteira, cujas lutas corajosas são reconstituídas por Lucrécio. Lucré­ cio é demasiado moralista para deixar estrebuchar a sua psicologia nas pulsões primárias e na angústia existencial. O existeneialismo aparece aqui ma® é ultrapassado, a psicologia faz intervir uma coragem que é, sem dúvida, essa alma da alma, essa força livre à qual, pelo seu clmamen, Epicuro deu lugar. A partir de agora,, com esita psicologia epicuriana, «a vitória eleva-nos ao nível dos deuses» (nos exaequast victoria caelo, i, 79).

CAPITULO V SANTO AGOSTINHO B i o g r a f i a . — Africano, nascido em Tagasto, perto de Hipona (Bona) em S54. Mãe (M ónica) cristã, que terá grande influência sobre ele. Conduzido à filosofia pela leitura de Cícero, em seguida arrastado para o maniqueísmo, cujo dualismo parece resolver para ele o problema do mal. Ensina retórica em Tagasto, Cartago, Roma (S8SJ e Milão. D escobre o neoplatonismo numa tradução latina de Plotino, o que (com a influência do bispo Am.brósk>) o leva a encontrar o Cristo-Deus numa luz interior (ver C o n f i s s õ e s , V III, o relato da sua con­ versão). Em 386, abandona a sua cátedra e retirasse, com a mãe e alguns amigos, para o campo, a fim de preparar o seu baptismo (387); célebre êxtase de õstia (com M ónica). Morta a mãe no mesmo ano, regressa a África. Ordenado padre em 391, em seguida bispo de Hipona (396). Passa o resto da vida a lutar contra os helenistas (racionalistas) , maniqueus (dualistas), pelágicos (naturalistas) e donatistas (nacionalistas). M orre em Hipona, cteroada pelos Vândalos (430). Escritor extrem am ente fecundo: além de 500 ser­ mões e 200 carta#, cerca de 150 obras, muitas vezes polêmicas, das quais as mais conhecidas são as Con­ fissões ( 400), escritas por volta dos quarenta anos, e a Cidade de Deus (413-462); e também, para o psicó­ logo, o De Trinitate (400-416). Sem dúvida o mais influente dos doutores cristãos.

1 — O m étodo

Talvez se pudesse dividir a história da psico­ logia ocidental em três períodos. Após os esboços psicológicos dos selvagens, os Gregos constróem

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uma psicologia racional do homem em si, da natureza humana. Agostinho, psicólogo do cris­ tianismo, sobrepõe a esta psicologia um tanto neutra uma psicologia subjectiva, uma psicologia da pessoa, uma psicologia empenhada, e o longo período que se vai seguir comportará uma espécie de diálogo, por vezes bastante animado, entre o Eu e a natureza humana, tomando ora um ora outro a dianteira. Enfim,, o fim do século xrx itraz consigo a psicologia científica, sem no entanto pôr fim a este diálogo, tomado talvez ainda mais difícil. Iremos ver, sem necessidade de o sublinhar, este novo espírito agostiniano através de Itodo este capítulo; J. Guitton nota-o excelentemente quando, a propósito do método, considera Agos­ tinho como «muito menos dialéctico do que psicó­ logo» (Le temps et Vêtemité... r161) e caracteriza a sua psicologia como um vaivém incessante entre os dados da fé e os da experiência (181). Por um lado, os dados de uma observação parti­ cularmente subtil; por outro lado, os dados vin­ dos da história, e essencialmente do Evangelho. O conhecimento, com efeito, não é mais que um meio de salvação, encontra os seu® fins fora de si e, para o® definir e os atingir, irá beber ao mesmo tempo nos textos sagrados ou nos dos autores inspirados1, e numa experiência ao i Antes do m.ais, Plotino, do qual Agostinho fez «como que um Padre da Igreja» (diz Guitton), e nos autores mais ou menos discípulos de Platão, acadêmi­ cos e cépticos. Mas Agostinho não separa estes textos gregos dos textos cristãos: «caíram-me nas mãos alguns livros dos filósofos platônicos traduzidos do grego para o latim, nos quais li, a bem dizer, não em termos pró­ prios, mas sugerido por razões numerosas e diversas»,

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mesmo tempo inlterior e exterior. Resulta daqui um método muito dúctil, no qual as hipóteses provenientes da fé ajudam uma observação* avi­ sada e minuciosa. Se Agostinho «esta à espreita daquilo a que chamaríamos hoje os dados da experiência» (Guiittan, 181), ele faz uso de qua­ dros fornecidos pela fé a fim de compreender esses dados2. Esite esforço de conciliação é particularmente sensível na teoria do conhecimento. que «no princípio era o Verbo e que o V erbo estava em Deus e que o V erbo era Deus» ( Confissões, v n , 9 ); a estes autores faltava, contudo, a ideia da Encarnação. 2 Surpreendente é, deste ponto de vista, a utiliza­ ção da noção de trindade. Iftna vez que Deus criou o homem, à sua imagem e que ele próprio é em três pes­ soas, podemos esperar encontrar igualmente no homem semelhantes trindades (jDig Trinitate, x iv ). Agostinho faz muito uso desta noção. N ão apenas são evidentes para o meu conhecim ento: o meu ser, o meu pensamento e a minha vontade, de tal m odo que o meu indivíduo é sujeito de existência, de cogn ição e de conação, mas também a percepção une, graças à vontade, o objeeto, por um lado, e o órgão sensorial, por outro; a recor­ dação concilia também, graças uma vez m ais à von­ tade, a form a sentida e a form a conservada na memó­ ria. Estas trindades irão sobrepor-se em graus cada vez mais elevados e cada vez m ais semelhantes a Deus (recordação de P lotino). Trata-se de um m étodo de investigação comandado pelo dogm a religioso que, por estranho que nos possa parecer, pode no entanto con­ duzir a ideias interessantes; provoca hipóteses e fan­ tasias (diríam os quase «criatividades»). Faz pensar na dialéctica hegeliana e na sua célebre tríade, mas esta, m ais dinâmica, consegue construir um edifício e equa­ cionar problem as (e mesmo resolver alguns), fa z melhor uso do tem po linear, mesmo se este se transform a em tempo lógico. Em Agostinho, a criação respeitou certas estruturas provenientes de Deus (quadros que respon­ dem simultaneamente às três pessoas cristãs e às hiposfcasias plotinianas), m as estes quadros nunca pas­ sam de modelos, e não espécies de «m oldes» dialécticos.

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2 — O conhecimento humano

Pode-se notar primeiramente a parte da observação psicológica, de que damos um exem­ plo tirado do De Trinitate, referente ao papel da vontade: «A vontade desvia a memória dos; sen­ tidos quando,, virada para outra coisa, lhe não permite fixar-se sobre os objectos presentes... por exemplo, pensando noutra coisa, pensamos não ter ouvido alguém falar-nos... ouvimo-lo muito bem, mas mão nos lembramos..., pois a vontade, que de ordinário fixa as palavras na memória, estava ocupada aigures... Isto acon­ tece também com a leitura, e no meu caso muito frequentemente: a ponto de, depois de ter lido uma página ou uma carta de uma ponta à outra, não saber o que li e recomeçar... É assim que, ao caminhar, a vontade se ocupa de outra coisa, e não se sabe por que caminho se passou; e, no entanto, se não tivéssemos visto,, não teríamos andado» (xi, vm, 15). É já o tom de Bergson. O último exemplo 'leva-nos a procurar onde é que se faz o corte entre as actividades propria­ mente humanas e as que o não são3, Agostinho

a Agostinho não deixa de notar com o próprios do homem «o gracejo e o riso», mas vê neles «o lado mais pequeno do homem, se se ju ígar devidamente a natureza humana» (L ivre arbítrio, i, vm , 18). Este cristianism o anuncia o jansenism o, não vê a grandeza do riso: para ele, o riso, m ais que a cto do homem, é acto de pagão — e será uma literatura popular m uito pouco cristã que restaurará o riso na Idade Média. N este ponto, a filosofia clássica e a sua psicologia seguiram fielm ente Santo A gostinho: onde está o riso de D escartes? E o nosso psicólogo cien tífico tem ainda uma rude batalha a travar antes de conseguir ver no homem mais que um cavaleiro da triste figura.

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pôs-ise o problem a p or várias vezes. Se admite, com o os Gregos, que só a alma dá vida ao corpo, só ela «realiza e mantém a sua unidade e não lhe perm ite dissolver-se e corrom per-se», só d a reparte os alim entos no organism o, desperta para o crescimento' e para a geração — tudo isto sendo igualm ente válido para as plantas — , se é igual­ mente ela que se aplica ao® cin co sentidos, enca­ deia e com bina as imagens n o sono e no sonho, assegura os hábitos e os instintos prim ários, tudo isto não passa ainda de vida anim al; mas ela eleva-se à vida humana quandoi se m anifesta «nessa mem ória que não é hábito da® coisas ordinárias, mas recai sobre a observação e sobre os signos de factos inúmero® que lhe são con­ fiados e que ela retém » (Grandeza, da alma,, x x x v , 7 9 ). E ste acento p osto nos signos e na língua é a o mesmo tem po p osto na m em ória e na von­ tade; com o se, segundo as ocasiões, a humani­ dade pudesse aparecer mais com o memória, ou mais com o vontade, ou m ais com o função dos signos. A gostinho viu bem que havia uma ligação entre estas três faculdades, e que elas definiam por igual o hom em : «reconhecer estes [o® ob jectos corporais], reter não som ente as recordações amontoadas naturalmente, mas também as con­ fiadas voluntariam ente à memória, im prim ir de novo nela, pela evocação e pelo pensamento, aque­ las que deslizam pouco a pouco para o esque­ cim ento (pois, do mesmo m odo que o pensamento se form a sobre o que está contido na memória, assim também o que está na m em ória é conso­ lidado pelo pensam ento), com por visões im agi­ n árias... [e te .]... nenhum destes fenôm enos é atribuição do® animais, m as sim nossa» (D e Trinitate, xn, n , 2 ). É possível aproxim ar desta distinção o lugar dado à noção de ordem nos

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com portam entos humanos (R eligião, x u v , 8 2 ); esta rem iniscência plaitónica é aqui aprofundada pelas observações visando m ostrar que é por esta ordem que a im aginação humana se tom a fecunda: a andorinha fa z o ninho de uma só m aneira, m as o homem, m ultiplicando, dividindo, ordenando os seus conceitos (de corpo, de espaço, de tem po), pode criar uma «harm onia ordenada» ignorada pelo animal. 3 — A visão interior M ais d o que isso, esta harmonia guia-nos para uma luz interior, sem a qual nenhuma das nossas faculdades mentais poderia subsistir, mas que pode também a gir de maneira autônoma, «a verdadeira luz, aquela que ilumina todo o homem vindo a este m undo» (D e Trinitate, xn, x v , 2 4). Já encontram os elem entos internos implicado® pela m em ória nas funções inferiores. N ão apenas no m odo pela qual ordenam os per­ cepções e imagens, mas também nos juízo© nelas incluídos: assim, quando digo que as muralhas de C artago me agradam, suponho um certo crité­ rio estético que não provém da experiência (D e Trinitate, xx, v i, l l ) 4; quando julgam os uma coisa quadrada, ou igual, ou sem elhante: «é segundo toda a lei da quadratura que se julgará uma * Citemos um belo exemplo, no qual se ligam os critérios de ordem e de estética: «devemos perguntar porque é que somos chocados quando, de duas janelas não colocadas uma por cima da outra, mas sim uma ao lado da outra, uma delas é maior ou mais pequena, quando poderiam ser iguais. Se, em compensação, esti­ verem uma por cima da outra, e mesmo que sejam desiguais em metade, essa desigualdade não nos choca tanto» (Religião, xxx, 54-56).

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praça quadrada, uma pedra quadrada, um quadro e uma jóia quadrados; é segundo toda a lei da igualdade que se julgará harmonioso o movi­ mento das patas da form iga, bem com o o cami­ nhar de um elefante... uma vez que esta lei de todas as artes é absolutamente imutável, mas que o espírito humano, a quem fo i dado vê-la, pode sofrer as variações do erro, parece sufi­ cientemente que há, acima da nossa alma, uma lei a que se chama verdade» (Religião, xxx, 54-56). Esta verdade é uma verdade interior, quer diga respeito às matemáticas,, à beleza ou à jus­ tiça. Sem dúvida que é também em elementos interiores que me baseio ao fazer apelo às minhas recordações de Cartago ou à imagem de fantasia das muralhas de uma Alexandria que nunca vi, mas existe aqui uma diferença, a saber, que no caso do verdadeiro, do quadrado,, do justo, do belo, não se trata já de qualidades inspiradas pela experiência. Há aqui qualquer coisa de espantoso, pois esta visão difere da experiência externa pelo facto de não ser uma autêntica experiência: «o que é espantoso é que uma alma veja em si própria o que nunca viu noutro qual­ quer lugar, que ela veja a verdade, que ela se veja com o uma verdadeira alma justa, mas que seja ao mesmo tempo uma alma e não a alma justa que vê em s i» ; é pois que em cada alma existe assim uma verdade interior, que ela pode ou não captar. A luz interior, já não observação (nós diríam os introspecção), mas captação de uma verdade, constitui com o que uma segunda direcção da nossa razão, quando esta se aplica, não já a uma realidade, mas a uma verdade interior. Em última instância, é o próprio Deus, verdade das verdades, que aparece a esta luz interior,

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quando conseguiu ultrapassar as etapas necessá­ rias (Malebranche retomará esta visão em D eus). Esta concepção implica uma psicologia do erro que está longe de poder ser desprezada, mesmo que nos faça lembrar Platão. A dificul­ dade não está aqui, com efeito, do lado da ver­ dade, que possui uma base inexpugnável nas evidências da luz interior: não é a razão que cria estas evidências, ela descobre-as. Elas subsistem, pois, em si próprias antes de serem descobertas e, quando são descobertas, regene­ ram-nos (R eligião, x l, 74). O que é de difícil compreensão é o erro. Ora, é claro que o falso só é falso em relação ao verdadeiro, que se asse­ melha portanto ao verdadeiro e induz em erro por essa semelhança enganadora (Agostinho aplica aqui a semelhança necessária entre con­ trários assinalada por A ristóteles). Agostinho enumera algumas destas semelhanças que indu­ zem em erro: «Dizemos igualmente falsa a árvore que vemos em pintura, e falso o rosto que um espelho nos reflecte, falso o movimento das torres na margem tal com o aparece àqueles que nave­ gam » (Solilóquios, n , VI, 10). N o entanto, não podemos julgar falsa toda a semelhança, o que seria nela englobar o fictício. Mais que isso, em si nenhuma imagem ou percepção é falsa, «os olhos,, por si próprios, não enganam; eles não podem anunciar à alma nada mais que a sua impressão», por exemplo quando um pau mergulhado na água aparece partido (Religião. xx xiv , 62). Não é, por conseguinte, em coisas passivas que reside a falsidade, «aquele que se engana não é aquele que vê coisas falsas, mas aquele que dá o seu assentimento a coisas falsas..., a falsidade não está pois nas coisas, mas nos sentidos» (Sólilóqutos, n, m , 3 ). Verdade

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e falsidade não estão, de modo nenhum, no m esmo piano: a alma descobre a verdade, mas cria a falsidade. A visão interior agostiniana continua e pro­ longa, é certo, a rem iniscência, «essa m agnífica descoberta de Sócrates» (E p., v il, 2 ); mesmo quando uma criança aprende a falar, é sim ples­ mente porque uma aptidão natural passa ao acto (D e quant. cm., 28-34). Mas,, em Platão, a luz interior não passava de redescoberta de reali­ dades inteligíveis para todos e exigia essencial­ mente uma purificação racional, uma dialéctica. Pelo contrário, A gostinho, prolongando uma tese de juventude de Platão, seguidamente abando­ nada, considera que cam inhar para o verdadeiro m obiliza toda a alma, e mesmo m ais o coração que o espírito. Ê possível que a visão final seja intelectual, mas a demanda é, em prim eiro lugar, fé e am or; uma fé, essa fiã es quaerens inteUectum (fé procurando a inteligência) que a Idade Média bem conhecerá, e um am or: ãilige et fa c quod vis (am a e fa z o que queres) (In epist. Joan. aã Parthes, n, 8 ). N ão se trata, pois, aqui de um procedim ento que exija gén io: o am or conduz m elhor à verdade d o que a erística. Trata-se antes de um procedim ento que pode dispensar a dialéctica dos filósofos, e é por isso que A gostinho e M ónica poderão um dia elevar-se conjuntam ente até essa visão suprema que é êxtase. Mesmo colocado sob o signo de Platão, este cristianism o mantém-se e quer-se popular; é ao íntim o do ser que fa z apelo, à história pessoal de cada um de n ós: na sua Carta VII, Platão nunca conta senão a sua doutrina e as suas disputas com Denis e ou tros; Agostinho, esse, escreve as suas C on fissões: estam os num outro mundo, um mundo cristão.

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E sta espécie de intimismo, esta conversão de A gostinho à subjectividade põe-lhe um problema delicado, já encontrado por Plotino, o da com u­ nicação das con sciên cias5. Com efeito, a cons­ ciência agostiniana é insular, cortada das outras consciências, que não pode conhecer senão por analogia con sigo própria (D e Trm itate, vm , v i, 9 ). Aparentem ente, deveria ser possível um acordo através da linguagem , m as esta requer duas condições prévias: 1 — O discípulo deve saber que os sons contêm uma certa significação em geral, que têm um sentido; ora, este conhecim ento d o sim bolism o lingüístico não pode senão prece­ der a linguagem , e não segui-la; 2 — O discípulo deve conhecer o sentido preciso de cada palavra em parti­ cular, e vê-se m al com o é que pode­ ria aprendê-lo p or sim ples expe­ riên cia: «quando um signo me é dado, se me encontrar ignorante do que esse signo designa, isso não significará nada para mim ( docere m e nihíl p o te s t); se o conheço, que me poderá ensinar?» (D e M agistro, x, 33).

s Platão aflora por vezes o problema, por exemplo, a propósito dos universais — e, no fundo, esboça a sua solução — , mas só se preocupa verdadeiramente com ele quando se trata dessa comunicação imperfeita que se opera pelos escritos, não pela palavra.

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Por aqui se vê como a linguagem pode ser um instrumento de incompreensão. Na realidade, não existe comunicação das consciências pela linguagem, nem portanto qualquer tipo de ensino: «Nusquam igitur discere» (De Magistro, xu, 40). Se, no entanto, encontrarmos um certo acordo entre os homens, não quer dizer que uma infor­ mação passe verdadeiramente de um a outro na linguagem, mas sim que ouvem a mesma voz que diz a mesma coisa. Do mesmo modo que só concordamos acerca das nossas percepções porque podemos percepcionar conjuntamente e da mesma maneira os objectos, assim mais geralmente as ideias que temos em comum procedem em nós a partir de uma foultie comum. Esta fonte* que Platão via nos resquícios de uma vida anterior, vê-a Agostinho, que rejeita essa teoria®, num «Mestre interior, que fala a cada um de nós». Como o diz lindamente J. Pépin, «a lição dos mestres não é, na realidade, senão a ocasião de escutar a lição do Mestre» (Comm. Consc., n, 321) 7: a linguagem nada mais faz que vol­ tar-nos para o Verdadeiro que está em nós, que incitar-nos a escutar o Verbo divino, o Cristo que nos fala na intimidade do nosso ser e que diz a todos as mesmas coisas: «Ille mitem qui oonsulitur, âocet, qui in interiore homme habi­ tare dictus est Christus» (De Magistro, xn, 38).

« Se se admite a reencarnação em seres inferiores (que Platão de modo nenhum recusa), porque não num raposo, e porque não numa pulga? E, ao matar piolhos e pulgas, não nos arriscaremos a matar os nossos parentes? ( Adimante, XII, 2.) i Não será já o espirito de redescobrimento pre­ gado pela «escola activa»?

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Este Mestre interior não nos faz apenas conhecer os conceitos racionais (como ao escravo do Ménon), pois é igualmente capaz de nos fazer conhecer a® coisas sensíveis (De Trinitate, xn, XV, 24); com efeito, afinai de contas, podemos bem considerar que não exisibe outra causa actuante para além de Deus, «intimus et summus catosarum cardo, orígináliter ac primordialiter» (De Trmitaste, m, ix, 6), base íntima e suprema das coisas, na sua origem e fundamento. Escor­ regamos aqui, é certo,, na metafísica agostiniana, mas como não ver que a psicologia não é sepa­ rável dela8? É, com efeito, que esta descoberta de uma transcendência na imanência já não se faz como

s Não nos iludamos sobre o facto de esta noção de luz interior, que legitima um conhecimento estranho ou anterior aos sentidos, responder a uma crença reli­ giosa, tanto entre os Indianos como em Platão, Plotino, Agostinho ou, mais tarde, Descartes. O ateu já não aceita assim tão facilmente a existência de noções atem­ porais, o realismo dos universais repugna-lhe e, se o aceita, trata-se de uma sobrevivência religiosa (como nos neokantianos); precisa de ir procurar os seus qua­ dros psicológicos no dinamismo psicobiológico do orga­ nismo, mais do que em «estruturas» existentes em si. Há, sem dúvida, doutrinas mistas entre estas duas tendências (fazendo intervir um Deus misterioso sem acção visível, ou «estruturas» existenciais, o que justifica nominalismo, por um lado, realismo, por outro). Mas nunca se pode fazer que a metafísica não comporte uma psicologia. E inversamente, e por isso mesmo, a psicologia científica e experimental não pode deixar de ter um impacte, por sua vez — pelo menos destrui­ dor—, sobre as crenças metafísicas; não ê nunca neu­ tra, não é senão objectiva (ou pelo menos tenta sê-lo), o que é completamente diferente. Se toda a metafísica tem a sua psicologia, também toda a psicologia implica uma visão metafísica.

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nos estóicos ou nos Indianos, ou mesmo em Plo­ tin o: a pessoa imortal subsiste e a salvação é indi­ vidual, com o é individual a visão em Deus : desde este mundo que há uma participação d o indivíduo no divino (e este invade o indivíduo por momen­ tos.) Uma das contribuições essenciais do cristia­ nismo é, com efeito, uma ideia do desenvolvimento do indivíduo ignorada dos Gregos e ainda, con­ sequentemente, uma concepção da pessoa. Ante­ riormente,, a psicologia, em Aristóteles (e mesmo em Platão), permanece muito objectiva, apenas ocupada com a essência humana. Está assim im­ plicada em toda uma m etafísica ou, para dizer melhor, uma vez que a alma é parte da natureza, numa cosm ologia. «A psicologia de Aristóteles, tal com o Aristóteles lhe fixou por longos séculos o tipo, é uma psicologia impessoal, que estuda a alma com o uma coisa» (Guitton, op. d t., 228). Ora, «nas Confissões, Santo Agostinho não se propõe de m odo nenhum reform ar a psicologia aristotéliica. Ignora-a, felizm ente» (ib id .). Expõe uma psicologia da consciência, do Eu, a qual, por isso mesmo, é também uma psicologia do temporal, da história, pois toda a consciência está carregada de história. Se Agostinho redeseobre a reminiscência platônica, não é apenas a fim de a fazer concordar com os novos dados que a sua fé 'lhe fornece, é também e sobretudo por vias totalm ente diversas. E devemos agora insistir nessa originalidade maior. 4 — O tempo O qüe está aqui em jog o é igualmente o tempo e a concepção do tempo imposta pelo cristia­ nismo, pois, com esta psicologia na primeira

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pessoa, vai aparecer também um tempo na pri­ meira pessoa, e já não na terceira pessoa, com o o tempo grego. Fazer intervir o Eu e a pessoa é encarar os eventos, o que impõe que se dê um lugar à história do® seres ao 'lado da antiga filosofia (D e Trinitate, iv ). Isto impõe-®e, não apenas porque a salvação individual, a imorta­ lidade individual, são o objectivo final, mas tam­ bém — e é a mesma coisa — porque Cristo é um indivíduo e um evento, porque Ele apareceu num tempo e que, pela primeira vez, trouxe a Boa Nova. Com Ele, o tempo deixa, pois, de ser esse tempo circular submetido à eterna 'lei, ao Karman, é um tempo em que acontecem a Criação, a Encarnação, a Redenção e o Julgamento, cada um dos quais é um acontecimento único. Tempo linear, pois, ao mesmo tempo que individual. Tempo pessoal, tempo que dura, que muda, que deixa margem de manobra aos homens e a Deíu®. Cristo reconcilia assim o tempo eterno dos Gre­ gos e a duração, o eterno retom o ou o Grande Ano e a incerteza das intenções, do® aconteci­ mentos e mesmo da graça. O antigo tem po era feito de ritmos, aparecia com o uma ordem cósm ica submetida ao número e à aritm ética, e não existia por isso lugar para uma psicologia do tempo. Ê esta que aparece com A gostinho: ses, para Deus, o tempo se reduz a uma ordem, para as criaturas é essa ordem desenrolada na qual as coisas já não estão juntas com o num projecto divino, mas em seqüência com o na realização do projecto. Pela Criação opera-se uma diversificação, uma espécie de mer­ gulho da ordem no diverso, de tal m odo que, se conserva, das suas origens, ordens e números, o tempo vivo é totalmente diferente, e m uito mais (D e Musica, v i).

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Q tem po não é, no entanto, m ais claro por eu o encontrar em mim. Agostinho, nas páginas célebres do livro x i das Confissões\, tenta ana­ lisá-lo. Levanta, em prim eiro lugar, as dificu l­ dades provocadas pelas noções de passado, pre­ sente e fu tu ro: «se o futuro e o passado são realidades, quero saber onde se encontram ... sei, pelo menos, que essas realidades, estejam onde estiverem , não são nem futuras nem passadas, mas sim presentes. A supô-las, com efeito, futu­ ras, ainda aí não estão, e, passadas, já lá não se encontram : não são, pois, senão presentes.» Nunca encontram os um futuro em si, m as apenas as suas «causas» ou os seus «sign os». Falando com propriedade, deveríam os distinguir um pre­ sente do futuro, um presente d o presente e um presente do passado: «há, com efeito, na alma três dados que não vejo em nenhuma outra parte: um presente em que se 'trata d o passado, a recor­ dação; um presente em que se trata do presente, a visão; um presente em que se trata do futuro, a espera.» Somos, assim , conduzidos a supor que o tem po depende da alma, a qual é a única a poder representar o passado e o futuro neste presente que, aliás, aparece com o uma espécie de indivisível, com o um instante sem dimensões. Com o é que conseguim os, pois, fixa r um inter­ valo de tem po ? Isso parecia possível ligando o tem po ao m ovim ento, com o o fizeram os platô­ nicos, mas essa concepção não é válida. Que o tem po não possa ser um número do m ovim ento celeste, é evidente: se não giram já os astros, m as gira ainda a roda do oleiro, esta mede ainda um tem po e, além disso, o m ovim ento da roda é mais ou menos lento. M ais ainda, que o Sol se detenha a pedido de um general desejoso de cul­ m inar a sua vitória, o Sol não parará p or isso.

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O tem po não é, pois, nem um m ovim ento nem «qualquer coisa d o m ovim ento», é «um a espécie de distensão» (disstentio). Longe! de o tem po re­ sidir no m ovim ento, o corp o é que só se m ove no tempo, e permanece igualmente em repouso no tempo. Que é que se distende pois assim ? «E spantar-m e-ia que não fosse a própria alm a.» A liás, já no D e Imrnortàtitaste animae (387) notava A gostinho que, no decurso de uma acção tranf sitiva, o que subsiste é a acção de finalizar, I que se resolve num duplo m ovim ento, espera do fim e lem brança d o passado. Ê, no fundo, em direcção às intencionalidades e às atitudes tern, porais que A gostinho distende o tempo, com o bem o m ostra o fin al do m esmo livro xi. O que tem os no espírito quando falam os de tempos longos ou curtos, tal com o a propósito das sílabas longas ou breves, é a im pressão que é feita sobre n ós: «a im pressão que, quando passam, as coisas fazem sobre ti, e que, quando já passaram, per­ manece, é a ela que eu m eço: é ela que está pre­ sente, e não as coisas, que já passaram quando eu m eço o tem po.» A única explicação da exis­ tência das três partes do tem po, le d o próprio (tempo, «é que, na alma que assim opera, há três actos: espera, visão, recordação; a medida do tem po aplica-se, pois, para o futuro, não a um tem po que não existe, mas sim a uma longa espera relativa ao futuro, e do m esm o m odo para o passado, não a um tem po que não existe, mas sim a uma longa recordação relativa ao pas­ sado» 9. 9 Esta concepção está de acordo com a metafísica da Criação — inspirada de Plotino—, que consiste numa espécie de distensão do Ser, pela passagem do Uno ao múltiplo. O movimento moral, inversamente, será como

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Qual o sentido desffca concepção revolucioná­ ria ? TOtt) prim eiro lugar, o de reconduzir o tem po à alma. Em seguida, o de reconduzir por igual todos os seres à consciência presente — mesmo que ^yist-flTn ainda, com o existem , esses rochedos debaixo da terra que nós não podem os v e r— , o que preludia ao idealism o da idade clássica (M alebranche). O de fazer esbaterem -se a ordem e a medida, expulsando-as para fora do tempo, não sendo este m ais que a duração íntima, uma duração psicológica sentida, m ais que medida, e m ais qualitativa que quantitativa. Mas há mais, uma vez que, a partir daqui, vai ser nesta duração que a pessoa se vai constituir. Não há dúvida de que A gostinho acredita muna alma im ortal que conserva a sua individualidade após a m orte, mas esta concepção m etafísica e religiosa perm ite, e provoca mesmo, uma con­ cepção puramente psicológica, e m esmo genética, da pessoa. 5 — A memória e a gênese da pessoa Para A gostinho, a mem ória é, no fundo, a consciência, a faculdade pela qual a alma é pre­ sente a si própria, a parte m ais interior do espírito: «interior m entis m em ória qua sui m em init», p or isso ela ultrapassa largam ente o sim ­ ples conhecim ento do passado: esta reduplicação, pela qual a consciência tom a consciência de si própria e de todos os seus estados, não pode

que uma «contensão», contrária à distensão da vida, e pela qual a alma se concentrará na direcção de Deus (o qual não está no tempo, e não pode, pois, ter prece­ dido o mundo criado).

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fazer-se senão de m odo m em orial, de tal m odo que há nesta consciência ou nesta memória, ao m esm o tem po, urna m em ória das coisas externas e uma m em ória de D eus; d o hábito à memória de Deu® há continuidade. Há, contudo, ocasião de fazer distinções, p or exem plo entre a mem ória das coisas que foram percepcionadas e a das realidades inteligíveis e permanentes — a qual nos faz ainda conhecer Deus. A propósito do pri­ m eiro nível, A gostinho sublinha bem a distinção — igualm ente sublinhada por B ergson — entre a recordação das noções e a recordação das cir­ cunstâncias da sua m em orização. Mais geral­ mente, todo o ^pensamento se duplica 'imediata­ mente de uma recordação desse pensamento, e essa recordação tom a uma coloração afectiva nova, p ois a m em ória tira à em oção o seu sabor, despoja o passado das suas tonalidades afeetivas. Tudo aquilo que podem os percepcionar, imaginar, pensar, entra assim na m em ória; por onde se cria uma pessoa im plicada no tempo, mas vito­ riosa do tem p o10. Esta im obilização dos aconte­ cim entos passados, que assim lhes retira o seu carácter afectivo, é uma verdadeira espirituali­

zo Este triunfo sobre o tempo não é total; restam partes de mim próprio que, apesar de estarem conser­ vadas na minha memória, não reaparecem ordinaria­ mente à minha consciência, tal como os hábitos e outras inclinações; de tal modo que o eu nunca se conhece perfeitamente, ao mesmo tetapo que também não con­ segue compreender-se a si próprio: nec ego ipse capio totum, quod sum ( Confissões, X, 15). O psiquismo, o eu, permanece muito obscuro, é «uma terra de dificuldade e de suor» (ibid., 25); é por isso que Deus nos escapa facilmente.

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za çã o11; por este seu aspecto, a m em ória apro­ xim a-nos de Deus, ela é con cen tração12. E, de facto, não será pela memória que caminhamos para D eus? De outro m odo, com o poderíam os procurá-lo, se não possuíssem os já em nós uma qualquer imagem su a? Sem mergulharm os aqui nas im plicações desta concepção, há lugar para sublinhar o m odo com o A gostinho reabilita a memória, fazendo-a governar o pensamento in­ teiro. Mas isso não o impede, de m odo nenhum, de se debruçar sobre as modalidades da rememoração. V iu m uito bem que esta supunha geral­ mente uma vontade de rem em oração, um esforço, mas este esforço supõe já uma certa presença da recordação ausente: «não é possível rem e­ m orar a recordação se„ seja o todo, seja uma parte d o que querem os rem em orar, não estiver já presente no fundo da m em ória» (D e Trinitate, XI, 12). A rem em oração é, pois, tuna operação com plexa, a vontade procede nela à união da imagem oculta com a imagem que se constrói na m em ória («é m esm o isso» ou «não é isso») para constituir aquilo a que chamamos uma re­ cordação. O m ovim ento da consciência não é um m ovim ento efectuado no vazio; supõe uma me­ m ória latente, em potência, ao m esmo tem po que

11 De verificações análogas tirará Bergson conclu­ sões contrárias, o espiritual encontrando-se para ele do lado do afectivo, do qualitativo. 12 Ao contrário, observa bem Guitton, a remainiscência platônica é dispersão, queda na temporalidade e o Outro de elementos imutáveis. Há, assim, dois movimentos contraditórios no nosso ser, como o exige a metafísica agostiniana (e plotiniana). Queda e redenção.

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uma mem ória em acto. Se eu chego, sob certos aspectos, a conhecer-m e e a conhecer Deus,, é porque desvendo as suas imagens em mim. Há aqui em germ e um ror de m etafísicas, m as tam­ bém algumas concepções psicológicas (Leihniz, por exem plo). E ste carácter com o que progressivo da cons­ ciência e da pessoa, A gostinho encontra-o taníto em toda a vida com o num pensamento parti­ cu lar: é este mesmo m ovim ento de desvendamento que nos faz passar da infância à velhice. Pela prim eira vez é tentado um estudo genético das idades a partir de dados autobiográficos, no prim eiro livro das C onfissões. Ê também a prim eira tentativa de m onografia de uma criança, feita a partir de recordações. Ê certo que Se trata de uma visão bastante pobre, o homem de qua­ renta anos não é capaz de recuperar o seu ser de criança, e isso tanto menos quanto se preo­ cupa sobretudo com os níveis do ser m oral e reli­ gioso. Será preciso esperar pelo século x ix para ver aparecer m onografias objectivas de crianças. Mas há aqui uma novidade de im portância: uma via que se a b re 1*. Ê certo que a noção de visão interior, assim concebida em ligação com a memória, põe imen­ sos problemas, e, em prim eiro lugar, o da natu­ reza da representação. A gostinho responde, em parte, pela sua teoria do verbo interior.

Não faltam, contudo, excelentes notações, como aquela em que Agostinho assinala quão fortemente o recêm-nacido é atraído pela luz, o que, nalguns casos, pode tomã-lo vesgo (De Trinitate> sxv, 7-8). Saber-161 — 12

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6 — O conhecimento e o verbo A gostinho considera o desejo de conhecer com o prim itivo: uma vez que toda a procura supõe um conhecimento, «esse desejo que con­ cebe e engendra o conhecimento não pode, legi­ timamente, dizer-se criado nem derivado» (De Trinitate, ix, xn, 18), ele é já uma vontade, mas não especificada; não se trata, de modo nenhum, de amar coisas desconhecidas, mas sim de gostar de saber coisas desconhecidas (ibid., x, i, 3 ). Essa vontade, esse amor, esse desejo são vazios na origem ; aproximamo-nos assim um pouco do thym os platônico — também retomado por Plotin o — , mas o thym os resvalou aqui um pouco para o lado das faculdades cognitivas, e é a inte­ ligência que começa por uma vontade nua, uma boulesis. B notável que, desde este princípio da psicologia na primeira pessoa, se encontre uma recusa de separar a inteligência do querer: bela advertência para muitos psicólogos, e mesmo de hoje! De igual modo, Agostinho tem mais tarde em consideração a compreensão da função sim­ bólica, do signo com o signo, anterior à com ­ preensão deste ou daquele signo em particular: «suponhamos que ouve dizer a palavra temetum e que, não a conhecendo, procura o seu sentido. É desde já necessário que saiba que se trata de um signo, isto é, que não se trata de uma palavra vazia de sentido, mas que ela representa, ao con­ trário qualquer coisa» (D e Trinitate, x, i, 2 ). Que ama, pois, o homem no que está m orto por saber e ainda não sabe, se não fo r uma ciência das significações e da sua utilização? Esta ciên­ cia é, aliás, indispensável às relações sociais, e é a sociedade, o «ouvir-dizer», que dirige a pro­

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cura das significações nesta ou naquela direcção (ibid., 2 ). Se se caminha assim de um desejo amplo para os signos,, e em seguida para as coisas, deve certamente criar-se, durante esta marcha, uma espécie de saber interior; este é o verbo divino que nos habita: «a propósito de todas as coisas que compreendemos, a verdade que consulta­ m os... não é aquela que se exprime fazendo ressoar palavras exteriorm ente... o verdadeiro mestre que se consulta é o Cristo, do qual se disse que habitava o homem interior» (D e Magistro, xi, 38). Em si próprio, o homem desco­ bre, com efeito, «não aquilo que ignorava, mas sim aquilo em que não pensava» (D e Trinitate, xrv, v , 7-8), a luz interior que nos desvenda a verdade. Agostinho, com o vimos, pensa reto­ mar, nesta direcção, ao mesmo tempo os platô­ nicos e o João do Evangelho, que coloca no prin­ cíp io de tudo o Verbo. Este saber interno que precede a linguagem na qual se exprime é, com efeito, o verbo,, conhecimento mesclado de amor, que pertence à natureza da nossa alma e é sim­ plesmente actualizado pela nossa vontade de conhecer. Se despojarm os a concepção agostiniana das suas cores religiosas, encontramos assim representações interiores que precedem e permitem a linguagem: «este verbo não é nem grego, nem latino, nem de nenhuma língua. Mas, quando há necessidade de dele darmos conheci­ mento àqueles a quem falam os, utilizamos um qualquer signo paira o significarm os»; a pala­ vra, o verbo exterior é, pois, o signo do verbo interior. Agostinho chega assim a uma tentativa de análise do pensamento sem linguagem, que se transmite de língua para língua, o que o leva, contudo, a aproxim ar o verbo da linguagem, pois,

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se o nosso verbo se faz palavra, é parque possui uma certa afinidade com a palavra corporal: ultrapassando a linguagem, o pensamento con­ tém em si alguns dos seus caracteres. Ê a razão pela qual, desta vez a contracorrente, podemos pensar em silêncio nas palavras, e recitar poemas interiormente; fazemos então uso «de uma. espé­ cie de imagens incorporais»; na realidade, é ainda necessário ultrapassar estas imagens para en­ contrar o verbo interior do homem, arremedo do Verbo de Deus » (D e Trimtate, passim). Após o que Agostinho está apto a comparar o verbo do homem (que se faz palavra) com o Verbo de Deus (que se faz C arne): colocou assim, ex­ celentemente, num plano puramente psicológico, o problema dessa realidade interna que anima e precede a linguagem: este realismo de origem (teológica ressoa ainda, não apenas nas nossas teorias do conceito e da linguagem, mas mais geralmente em todos os domínios nos quais, ao mesmo tempo que se procede a um estudo cien­ tífico, convém conservar a originalidade dos fac­ tos psicológicos e não se deixar escorregar numa «redução» aventurosa e precoce às ciências an­ teriores. Ê ainda por este verbo que, segundo Agos­ tinho, a alma pode conhecer-se e, a partir de agora, ver-se-á aparecer este carácter de «duplo», que se encontra hoje frequentemente em concep­ ções psicológicas ou sociológicas. Se a alma con­ segue chegar a conhecer-se claramente, é porque há nela um conhecimento de si primitivo que, de qualquer modo, «desencadeia» o conhecimento em acto. Agostinho não tem, com efeito, ideia alguma de um conhecimento da psyché a partir de fora e, se concebe já o processo hegeliano de conhecimento de si no Outro, é para lhe denegar

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todo o valor (De T rin ita tex, m , 5 ): a alma não é com o os olho®, que podem ver-se num espelho; se ela se conhece, é por ser presente a si própria: «que há de mais presente à alma que a alma?», o que está longe de querer dizer que este conhe­ cimento de si própria, esta presença a si, seja inteiramente consciente. Para ela, conhecer-se é criar um verbo; quando, pelo pensamento, ela «opera essa conversão em direcção a si própria, forma-se uma trindade, na qual se pode já com­ preender o verbo: ele form a-se a partir do pen­ samento, que a vontade junta à memória». Con­ tudo, esta conversão em direcção a si não é de modo nenhum um desdobramento, esta memória de si é ainda si; pensar num desdobramento é usar de imagens corporais inadequadas. A cons­ ciência de si faz parte da própria alma. Mais ainda, encontramo-nos neste ponto perfeitamente seguro® da nossa existência, mesmo que nos en­ ganemos; «uma vez afastado o que nos vem ao espírito pelos sentidos, quantas coisas restarão que saibamos tão bem com o o faeto de que vivemos ? Quanto a este ponto, não devemos ter receio de ser enganados por qualquer aparência, pois é certo que aquele que é enganado vive» (De Trinitate, xv , xn, 21). Vem aqui enxertar-se o programa cartesiano14. 14 Ver (por exemplo, na selecção de textos de J. Cl. Fraisse— que utilizámos frequentemente) o passo do De Trinitate, no qual não somente Agostinho faz intervir a «ciência interior» da existência de si, mas mostra ainda que ela vale mesmo contra o argumento do sono. ES, o que vai mais longe, insiste no redobramento que é o «sei que vivo», o qual justifica um «sei que sei que vivo», e assim até ao infinito; e destas afirmações primeiras deduz-se igualmente uma afirma­ ção de capacidade da alma como recordação, compreen-

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Es'fca psicologia da pessoa, que o cristianismo havia facilitado em Agostinho, vai passar por muito tempo a pano de fundo das preocupações dos filósofos, tanto durante a baixa Idade Média, em que a discussão dos problemas teológicos (por exemplo, relações do Uno e das Três Pes­ soas) ocultara o intimismo agostiniano, como por altura dos Renascimentos dos séculos xn e xv. EJ se mesmo Descartes continua Agostinho (e mais ainda Malebranche), fá-lo-á num terreno mais metafísico do que psicológico. A filosofia clássica ignorará o intimismo psicológico, se não mesmo a psicologia pura e simples. Há Montaigne, é certo, mas não provém de fonte agostiniana15.

são e vontade (De Trvmtate, X, x, 14-16). Estas aná­ lises alimentarão a psicologia dos filósofos até Lagneau ou Sartre. A bem dizer, a dúvida agostiniana é menos radical que a dúvida cartesiana, mas o traçado geral está já presente, pronto para uma outra utiliza­ ção— e mesmo, por um redobramento do Cogito, para uma ultrapassagem do cartesianismo. « Agostinho não é citado nos Ensaios mais antigos, anteriores a 1579, e apenas três vezes na recolha de 15801. Montaigne leu sem dúvida a Cidade de Deus depois da última edição dos EnsaAos, publicada durante a sua vida. E a sua concepção é demasiado laica para se aparentar ao agostinianismo.

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P e f i n — « L e p r o b lè m e d e l a c o m m u n ic a tio n d e s c o n s c i e n c e s ch iez P l o t in e t S a i n t A u g u s t i n » , In Bevue de M étaphysique et m orale, 1950 e 1956.

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