Wheen, F., Karl Marx. Biografia

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BKRTRANR EDITOftA

KARL MARX

FRANCIS WHEEN

KARL MARX Tradução de José Luís Luna

BERTRAND EDITORA CHIADO 2003

Título original: Karl Marx © Francis Wheen, 1999 Todos os direitos para a publicação desta obra em Mngua portuguesa, excepto Brasil, reservados por: Bertrand Editora, Lda. • Rua Anchieta, n.° 29, 1.° 1249-060 Lisboa Telefone: 210 305 500 Fax: 210 305 563 Correio electrónico: [email protected] Revisão: André Cardoso

Impressão e acabamento: Tipografia Guerra, Viseu Depósito legal n.° 189121/02 Acabou de imprimir-se em Janeiro de 2003 ISBN: 972-25-1282-X

Para Julia

INTRODUÇÃO

Havia apenas 11 pessoas presentes no funeral de Karl Marx a 17 de Março de 1883. «O seu nome e trabalho resistirão ao longo dos séculos», predisse Friedrich Engels no seu discurso fúnebre no cemitério de Highgate. Parecia uma tirada pouco provável, mas tinha razão. A história do século XX é o legado de Marx. Estaline, Mao, Che, Castro — os ícones e monstros da idade moderna, todos eles se apresentaram como seus herdeiros. Agora que ele os tivesse reconhecido como tal é outra questão. Ainda em vida, as manias dos seus pretensos discípulos desesperavam-no. Ao ouvir que um novo partido francês reivindicava ser marxista, retorquiu que, nesse caso: «Eu, pelo menos, não o sou.» N o entanto, ao longo dos cem anos que se seguiram à sua morte, metade da população mundial foi governada por regimes que professaram o Marxismo como sendo a fé que os guiava. As suas ideias transformaram o estodo da economia, da história, da geografia, da sociologia e da Mteratura. Desde Jesus Cristo que nenhum pobre diabo obscuro tinha inspirado uma tal devoção universal — ou sido tão calamitosamente mal interpretado. Chegou a altora de desmontar a mitologia e tentar redescobrir Karl Marx, o homem. Foram publicados milhares de livros sobre o Marxismo, mas quase todos foram escritos por universitários e fanáticos para quem é quase uma blasfémia tratá-lo c o m o uma figura de carne e osso — u m emigrante prussiano que se tornou um cavalheiro inglês da classe média, um agitador colérico que passou a maior parte da idade adulta no erudito suêncio da sala de leitura do Museu Britânico; um anfitrião bem-disposto e sociável que se zangou com quase todos os seus amigos; um chefe de família dedicado que

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engravidou a criada; e um filósofo profundamente honesto que adorava copos, charutos e piadas. N o decorrer da guerra fria, ele foi para o Ocidente o demoníaco causador de todos os males, o fundador de um culto assustadoramente sinistro, o h o m e m cuja maléfica influência tinha de ser suprimida. N a União Soviética da década de 50, ele adquiriu o estatuto de um deus secular, com Lenine como São João Baptista e, claro está, o camarada Estaline em pessoa como o redentor Messias. Só isto tem sido o bastante para condenar Marx como cúmplice de massacres e purgações: caso ele tivesse vivido mais uns anos, não faltaria agora um jornalista cheio de iniciativa para provavelmente o acusar também de ser o principal suspeito dos assassínios de Jack, o Estripador. Mas porquê? O próprio Marx nunca pediu certamente para ser incluído na Santíssima Trindade e teria ficado consternado pelos crimes cometidos em seu nome. Os princípios corruptos esposados por Estaline, Mao ou Kim II Sung trataram a sua obra como os cristãos modernos utiHzam o Antigo Testamento: grande parte foi ignorada, ou descartada, enquanto uns slogans ressonantes («ópio do povo», «ditadura do proletariado»), são tirados de contexto, virados ao avesso e, depois, citados como justificações aparentemente divinas para a mais brutal desumanidade. Como tantas vezes, Kipling exprime isso bem: Aquele que tem um Evangelho Para dar à Humanidade E m b o r a o sirva totalmente D e corpo, alma e espírito E suba ao Calvário Todos os dias por ele É o seu discípulo que tornará tal tarefa vã. Só um louco pode responsabilizar Marx pelos gulags; mas, infelizmente, há uma imediata provisão de loucos. «De uma maneira ou outra, os mais importantes factos da nossa época conduzem-nos a um só h o m e m — Karl Marx», escreveu Leopold Schwarzschild, em 1947, no prefácio da sua mal humorada biografia, The Red Prussian (O Prussiano Vermelha). «Dificilmente poderá ser contestado que a sua presença é manifesta na própria existência da Rússia Soviética e, em particular, nos métodos dos sovietes.» A semelhan-

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ça entre os métodos de Marx e os do tio José Estaline era, aparentemente, tão indiscutível que Schwartzschild nem se deu ao incómodo de provar a sua absurda afirmação, contentando-se em observar que «se conhece a árvore pelos seus frutos» — o que, a exemplo de tantos provérbios, é menos axiomático do que parece. Deveriam os filósofos ser censurados por todas e quaisquer subsequentes mutilações das suas ideias? Se fí^rr Schwartzschild tivesse encontrado ñ:utos comidos pelas vespas no seu pomar — ou tivesse talvez comido uma torta de maçã demasiado cozida ao almoço — , teria ele pegado num machado e administrado castigo sumário à árvore culpada? Assim como os seu seguidores imbecis, ou sedentos de poder, deificaram Marx, também os seus críticos frequentemente sucumbiram ao mesmo e oposto erro de o imaginar um agente do Diabo. «Houve momentos em que Marx parecia estar possuído por demónios», escreve um biógrafo moderno, Robert Payne. «Tinha uma visão diabólica do m u n d o e a perversidade de Satã. Parecia por vezes saber que estava a reaKzar tarefas demoníacas.» Esta escola de pensamento — mais de reformatorio, para dizer a verdade — atinge a sua conclusão absurda em Was Karl Marx a Satanist? (Era Karl Marx um Adepto de Satã?), livro bizarro publicado em 1976 por um célebre e zeloso evangelista norte-americano, o reverendo Richard Wurmbrand, autor de obras-primas imortais como Tortured for Christ (Torturado em Nome de Cristo) — mais de dois milhões de Livros vendidos — e The Answer to Aloscow's Bible (A Rßsposta à Biblia de Moscovo). Segundo Wurmbrand, o jovem Karl Marx foi iniciado numa «igreja satânica sumamente secreta», que ele depois serviu fiel e malignamente durante toda a vida. Claro que nenhuma prova foi encontrada, mas isto meramente fortalece a intuição do nosso detective clerical: «Como a seita satânica era extremamente secreta, possuímos apenas pistas quanto à possibilidade das suas ligações com ela.» Que «pistas» são essas? Bem, quando era estudante, Marx escreveu uma peça em verso cujo título, Oulanem, é mais ou menos u m anagrama de Emanuel, o nome bíblico de Jesus — e, assim, «faz-nos pensar nas inversões das missas negras dos satanistas». Terrivelmente incriminador; mas há mais. «Alguma vez se interrogaram», pergunta Wurmbrand, «quanto às barbas de Marx? N a sua época, os homens usavam barba, mas não como a dele... O estilo de Marx era característico dos discípulos de Joanna Southcott, uma sacerdotisa satânica que dizia estar em contacto com o demónio Shiloh.» D e facto, a Inglaterra do tempo de Marx tinha uma data

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de homens com barbas hirsutas, desde o jogador de críquete, W. G. Grace, ao político Lorde Salisbury. Também falavam eles com o demónio Shiloh? Após o final da guerra fria e o aparente triunfo de Deus sobre Satanás, inúmeros poços de ciência declararam que tínhamos chegado ao que Francis Fukuyama pretensiosamente chamou o Vim da História. O Comunismo estava tão morto como o próprio Marx e a aterrorizadora ameaça com a qual concluía o Manifesto Comunista, o mais influente panfleto político de todos os tempos, parecia agora não ser mais do que uma pitoresca reh'quia histórica: «Deixem as classes dirigentes tremer perante uma revolução comunista. O s proletários nada têm a perder senão as suas correntes. T ê m um m u n d o a ganhar. Trabalhadores de todo o mundo, uni-voslO% únicos grilhões que, hoje em dia, prendem a classe operária são relógios Ro/é'xde imitação, mas há muito mais coisas que estes proletários modernos odiariam perder — microndas, férias a tempo partilhado e televisão por satéHte. Compraram apartamentos sociais e acções em serviços públicos privatizados e ganharam u m b o m pequeno lucro quando as sociedades que lhes prestavam serviços financeiras se transformaram em bancos. E m resumo, agora somos todos burgueses. Até o Partido Trabalhista inglês se thatcherizou. Quando comecei a fazer pesquisas para esta biografia, muitos .amigos olhavam para mim com pena e incredulidade. Porquê, perguntavam-se, desejaria alguém escrever — e ainda menos 1er — sobre uma figura tão desacreditada, irrelevante e fora de moda? Mas, mesmo assim, prossegui; e quanto mais estudava Marx, mais espantosamente actual me parecia ser. Os pânditas e políticos de hoje, que se julgam pensadores modernos, gostam de usar a palavra de ordem «globalização» sempre que podem — sem se dar conta de que Marx já falava disso em 1848. O domínio mundial de McDonald's e MTV não o teria minimamente surpreendido. A deslocação em termos de poder financeiro do Atlântico para o Pacífico — graças aos sistemas económicos do Tigre Asiático e à expansão das cidades de suício na costa ocidental dos EUA. —- foi profetizado por Marx mais de um século antes de Bui Gates nascer. Há, contudo, um evolução que nem Marx nem eu tínhamos previsto: que, em final da década de 1990, muito depois de até mesmo os liberais em voga e os esquerdistas pós-modernos lhe terem posto uma cruz em cima, ele seria subitamente aclamado pelos próprios velhos e velhacos capitalistas burgueses como um génio. O primeiro sinal desta curiosa reavaliação surgiu em Outubro de 1997, quando um número especial do New lor/è^ranunciou Karl Marx como «o próximo grande pensador», um homem com muito para nos

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ensinar sobre corrupção política, monopolização, alienação, desigualdades e mercados globais. «Quanto mais tempo passo em Wall Street, mais me convenço de que Karl Marx tinha razão», declarou um rico banqueiro à revista. «Estou plenamente convencido de que a abordagem de Marx é a melhor maneira de encararmos o capitalismo.» E, desde então, economistas e jornalistas de direita fazem bicha para prestar a mesma homenagem. Ignorem todos esses disparates comunistas, dizem eles: Marx era realmente «um estudioso do capitalismo.» Até mesmo este cumprimento deliberado serve apenas para o diminuir. Karl Marx era um filósofo, um historiador, um economista, um linguista, um crítico literário e um revolucionário. Embora talvez não tenha tido um «emprego» na verdadeira acepção da palavra, era um trabalhador prodigioso: os seus escritos completos, poucos dos quais foram publicadas durante a sua vida, estão compilados em 50 volumes. O que nem os seus inimigos nem discípulos querem reconhecer é a mais óbvia e, todavia, impressionante de todas as suas qualidades: esse ogro mítico e sagrado era um ser humano. A bruxas mccarthista dos anos 50, as guerras no Vietname e na Coreia, a crise cubana dos mísseis, a invasão da Checoslováquia e da Hungria, o massacre dos estudantes na Praça Tiananmen — todos esses incidentes sanguinários da história do século XX foram justificados em n o m e do Marxismo ou do antimarxismo. Proeza de modo algum mesquinha para um homem que, atormentado por fiirúnculos e dores de fígado, passou grande parte da vida adulta na pobreza e foi uma vez perseguido pela polícia através das ruas de Londres, depois de uma passagem excessivamente animada por diversas tabernas.

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U m comboio avança lentamente e aos solavancos pelo vale de MoseUe — pinheiros altos, vinhas plantadas nas encostas, aldeias pitorescas e fumo a elevar-se tranquilamente no céu de Inverno. Tentando respirar num vagão de gado carregado de gente, um jovem espanhol da Resistência Francesa preso em combate conta os dias e as noites à medida que ele e os seus companheiros são inexoravelmente transportados de Compiègne para o campo de concentração nazi em Buchenwald. Quando o comboio pára numa estação, lança um olhar ao nome da localidade: TRIER. D e repente, um rapaz alemão atira uma pedra contra as grade atrás das quais os passageiros condenados se amontoam. Assim começa o grande romance de Jorge Scmprun, A Longa Viagem, e nada nessa jornada r u m o ao aniquilamento — nem mesmo a antecipação dos horrores que o aguardam em Buchenwald — trespassa mais dolorosamente o coração do narrador do que aquele gesto. — É o raio de um golpe muito baixo que, entre tantos sítios, isto tenha acontecido em Trier, lamenta-se. — Porquê? — pergunta, espantado, um francês. — Costumavas vir cá? — Não, nunca aqui estive. — Então, conheces alguém daqui? — É isso mesmo. Um amigo de infância, explica. Mas, na realidade, está a pensar num natural de Trier, um rapaz judeu, nascido na madrugada de 5 de Maio de 1818. «Abençoado aquele que não tem família», desabafava enfadonhamente Karl Marx numa carta de Junho de 1854 a Friedrich Engels.^

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Tinha trinta e seis anos na altura, e há muito que cortara os seus laços umbilicais. O pai estava morto, assim como os txês irmãos e uma das cinco irmãs; outra irmã tinha morrido dois anos mais tarde, e as sobreviventes pouco tinham a ver com ele. As relações com a mãe eram frias e distantes, sobretudo porque ela mostrava suficiente falta de consideração mantendo-se viva e impedindo, assim, o filho rebelde de herdar. Marx era um judeu burguês de uma cidade predominantemente católica, num país cuja religião oficial era o protestantismo evangélico. Morreu ateu e sem pátria, tendo dedicado a vida adulta a profetizar a queda da burguesia e o enfraquecimento do Estado-Nação. Afastando-se da religião, classe social e cidadania, personificou a alienação que definiu como sendo a maldição infligida pelo capitalismo à humanidade. Este respeitável alemão da classe média pode parecer um estranho representante das massas oprimidas, mas o seu estatuto emblemático não teria surpreendido o próprio Marx, o qual acreditava que os indivíduos reflectem o mundo em que habitam. A educação que recebeu ensinou-lhe tudo o que precisava saber sobre a sedutora tirania da religião, armando-o com a eloquência didáctica e a autoconfiança necessárias para exortar a humanidade a livrar-se das suas cadeias. «Era um contador de histórias único e sem igual», recordou a filha, Eleanor, ao falar de um dos poucos episódios da infância do pai que ':hegaram até nós. «Ouvi as minhas tias dizer que, em rapazinho, tratava de forma tirânica as irmãs, "conduzindo-as" como cavalos a todo o galope por Markusberg abaixo, em Trier, e, pior ainda, obrigando-as a comer os "bolos" de massa suja que fazia com mãos ainda mais porcas. Mas elas aguentavam ser "conduzidas" à rédea solta e comiam os "bolos" sem um queixume, só pelo prazer de ouvir as histórias que Karl lhes contaria para as recompensar da sua paciência.»^ Anos mais tarde — quando as meninas brincalhonas já se tinham tornado respeitáveis mulheres casadas — mostraram-se menos indulgentes para com o irmão rebelde. Louise Marx, que emigrou para a Africa do Sul, jantou uma vez em casa dele no decorrer de uma visita a Londres. «Ela não podia admitir que o irmão fosse líder dos socialistas», relatou u m outro convidado. «E insistiu, na minha presença, que ambos pertenciam à respeitada família de um advogado que contava com a simpatia de toda a gente de Trier.»^ Os esforços determinados de Marx para se afastar da influência da família, da religião, da classe social e da sua nacionalidade nunca foram totalmente bem sucedidos. Velho e venerável continuava a ser o filho pródigo, bombar-

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deando tios ricos com cartas suplicantes ou insinuando-se nas boas graças de primos distantes que estivessem a ponto de redigir os seus testamentos. Quando morreu, encontraram uma fotografia daguerreótipo do pai no bolso do seu casaco. Foi colocada no caixão e enterrada no cemitério de Highgate. Estava tolhido — embora contrariado — pela força da sua lógica. N u m precoce ensaio escolar aos 17 anos, «Reflexões de um Jovem sobre a Escolha de uma Profissão», Karl Marx observava que «nem sempre podemos alcançar a posição para a qual julgamos ter vocação; as nossas relações em sociedades começam, em certa medida, a ser estabelecidas antes de nos encontrarmos em posição de as determinar»."* O seu primeiro biógrafo, Franz Mehring, pode ter exagerado ao detectar o germe do marxismo nesta frase, mas a observação é pertinente. Mesmo em plena maturidade, Marx insistia que os seres humanos não podem ser isolados nem abstraídos das suas circunstâncias sociais e económicas — ou da arrepiante sombra dos antepassados. «A tradição de todas as gerações mortas», escreveu em O Dezoito Brumário de IMÍS Bonaparte, «pesa como uma montanha no espírito dos vivos.» Um dos antepassados paternos de Marx, Joshue Heschel Lwow, foi n o meado rabino de Trier em 1723 e o cargo tornou-se uma espécie de sinecura familiar desde então. O tio Samuel de Karl sucedeu como rabino da cidade ao avô, Meier ílalevi Marx. E mais gerações mortas foram acrescentadas à carga pela mãe de Karl, Henriette, uma judia holandesa em cuja famíHa «os filhos eram rabinos há séculos» — incluindo o pai dela. Como filho mais velho de tal família, Karl talvez não tivesse escapado ao seu destino rabínico senão fossem aquelas «circunstâncias sociais e económicas».^ Ao peso das gerações mortas somou-se a asfixiante tradição espiritual de Trier, a cidade mais antiga da Rehânia. Conforme Goethe observou lugubremente após uma visita em 1793: «No interior das suas muralhas é sobrecarregada e até mesmo oprimida por igrejas, capelas, claustros, estabelecimentos de ensino e edifícios dedicados a ordens religiosas e de cavalaria, para nada dizer das abadias, conventos cartuxos e instituições que a cercam, não! Obstruem-na.»*" Todavia, quando foi anexada pela França durante as Guerras Napoleónicas, os habitantes foram expostos a ideias tão pouco germânicas como à liberdade constitucional e da imprensa e — ainda mais significativamente para a família Marx — à tolerância religiosa. Embora a Renânia fosse reincorporada na Prússia imperial pelo Congresso de Viena, três anos antes do nascimento de Marx, o inebriante odor do Século das Euzes francês ainda pairava no ar.

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O pai de Karl, Hirschel, era dono de várias vinhas de Moselle e membro moderadamente próspero da classe média educada. Mas também era judeu. Apesar de nunca totalmente emancipados sob o regime francês, os judeus da Renânia tinham saboreado suficientemente liberdade para ansiar por mais. Quando a Prússia recuperou a Renânia de Napoleão, Hirschel solicitou ao novo governo o fim da discririíinação contra si e os seus «companheiros de crença». Mas sem resultado: os judeus de Trier estavam agora sujeitos a u m édito de 1812 que os impedia de exercer cargos públicos ou praticar qualquer profissão. Pouco disposto a aceitar as penalidades sociais e financeiras de uma cidadania de segunda classe, HirscheU renasceu como Heinrich Marx, patriota alemão e cristão luterano. O seu judaísmo há muito que não passava de um acidente ancestral e não uma fé constante e profunda. («Nada recebi da minha família», dizia, «a não ser, devo confessá-lo, o amor da minha mãe.») A data do seu baptismo é desconhecida, mas converteu-se certamente por altura do nascimento de Karl: registos oficiais provam que Hirschel começou a exercer advocacia em 1815 e, em 1819, celebrou a nova respeitabilidade adquirida pela família mudando do apartamento alugado com cinco divisões para uma casa com dez quartos perto da antiga entrada romana para a cidade. Porta Nigra. O Catolicismo parece ter sido a escolha mais óbvia para o que, essencialmente, não passou de um casamento espiritual de conveniência, a Igreja à qual ele agora pertencia mal tinha 300 fiéis numa cidade cuja população era de 11 400. Mas esses adeptos contavam com a presença de alguns dos mais influentes indivíduos de Trier. Como um historiador notou: «Para o Estado prussiano, os membros da sua religião oficial representavam o núcleo digno de confiança, leal e sólido, numa Renânia predominantemente católica romana e perigosamente francófila.»^ N ã o que Hirschel fosse imune ao encanto gaulês: durante o domínio napoleónico, fora penetrado por ideias francesas quanto a política, religião, vida e arte, tornando-se «um autêntico "francês" do século XVIII que conhecia Voltaire e Rousseau de cor». Também era sócio activo do Clube do Casino de Trier, onde os cidadãos mais esclarecidos se reuniam para discutir poKtica e literatura. E m Janeiro de 1834, quando Karl tinha 15 anos, Heinrich organizou um banquete no clube para prestar homenagem aos deputados «liberais» recentemente eleitos para a Assembleia da Renânia, sendo o seu brinde ao rei da Prússia ruidosamente aplaudido — «a cuja magnanimidade

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pela criação das primeiras instituições de representação popular estamos gratos. N a plenitude da sua omnipresença, decidiu por vontade própria que os membros da Dieta se reunissem, a fim de a verdade poder chegar aos degraus do trono.» Esta extravagante bajulação a um rei fraco e anti-semita pode parecer sarcástica, e foi provavelmente assim interpretada pelos folgazões mais barulhentos. («A plenitude da sua magnanimidade», que lata!) Mas Heinrich foi perfeitamente sincero; não era nenhum revolucionário. N o entanto, a própria menção de «representação popular», por muito cautelosamente velada pela adulação e a moderação, era suficiente para alarmar as autoridades de -Berlim: a ironia é, com frequência, a única arma do dissidente numa terra de censores e espias da polícia, e os agentes do Estado prussiano — sempre alerta — tinham tendência a detectar troça onde não havia nenhuma. E a imprensa local foi proibida de pubHcar o discurso. Após uma reunião do Clube do Casino oito dias mais tarde, em que os sócios cantaram a Marselhesa e outros cantos revolucionários, o Governo colocou o edifício sob vigilância policial, repreendeu o governador provincial por permitir tais traiçoeiras reuniões e designou Heinrich Marx como provocador perigoso. Qual foi a reacção da mulher perante tudo isto? É bastante provável que ele lhe tenha ocultado o caso. Henriette Marx não partilhava os apetites intelectuais do marido: era uma mulher pouco educada -— meio analfabeta, para dizer a verdade — , cujos interesses começavam e acabavam na família quanto à qual se inquietava incessantemente. Ela mesma admitia padecer de «amor maternal excessivo», e uma das poucas cartas sobreviventes que enviou ao filho — escrita quando ele estava na universidade — comprova amplamente esse diagnóstico: «Permite-me observar, meu querido Karl, que nunca deves tomar a limpeza e a ordem como algo de secundário, pois a saúde e a boa disposição dependem delas. Insiste rigorosamente para que o teu alojamento seja limpo com frequência, e estabelece u m prazo determinado para que o façam — e tu, meu querido Karl, esfrega-te u m vez por semana com esponja e sabão. Como é que te arranjas para tomar café, és m quem o faz ou como é que é? Informa-me, por favor, de tudo sobre a tua casa.»^ A imagem da Sra. Marx como uma pessoa congenitamente inquieta foi confirmada por Heinrich: «Conheces a tua mãe e sabes como ela é ansiosa...» U m a vez fugido do ninho, Karl pouco mais teve a ver com a mãe — excepto quando tentava, sem muito sucesso, extorquir-lhe dinheiro. Muitos anos mais tarde, depois da morte da amante de Engels, Mary Burns, Marx

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enviou ao amigo uma brutal carta de pêsames: «Estou a ser importunado por causa das propinas e da renda... E m ve2 da Mary, não devia ter sido antes a minha mãe que, de qualquer modo, é um poço de doenças e já gozou a sua parte de vida?»^

Karl Marx nasceu no quarto do andar de cima de uma casa localizada em Brückergasse, 664, uma rua movimentada que vai dar à ponte sobre o rio Moselle. O pai tinha alugado o prédio há apenas u m mês e mudou de casa quando Karl tinha 15 meses. N o entanto, o local do seu nascimento, do qual não se lembrava, foi comprado pelo Partido Social Democrata alemão, em Abril de 1928, e tem sido um museu dedicado à sua vida e época desde então — à parte um terrível interludio, entre 1933 e 1945, quando foi ocupado pelos nazis e usado como sede de um dos seus jornais. Depois da guerra, foram enviadas cartas a solicitar dinheiro para consertar os estragos causados pelos grosseiros ocupantes. Uma das respostas, datada de 19 de Março de 1947, vinha assinada pelo secretário internacional do Partido Trabalhista Britânico: «Caro camarada, lamento, mas o Partido Trabalhista Britânico não está preparado, como organização, para apoiar o vosso comité internacional na reconstrução da casa de Karl Marx em Treves (o nome de Trier em inglês), pois os seus recursos são destinados à conservação de monumentos semelhantes de Karl Marx em Inglaterra. Fraternalmente vosso, Denis Healey.» Trata-se de um história incrível: os londrinos procurarão de balde os monumentos aos quais Healey «destinou», supostamente, os recursos do seu partido. Mas, pelo menos, a casa está de pé. A uns cem metros de distância encontra-se o sítio da antiga sinagoga de Trier, presidida por tantos antepassados de Marx. A única marca da sua presença é uma placa num lampião da esquina, que não necessita ser traduzido: Hier stand diefrühere Trierer Synagoge, die in der Progromnacht im November 1938 durch die Nationalsozialisten i^erstört wurd Além da mania de obrigar as irmãs a comer bolos de lama, pouco se sabe da infancia de Marx. Parece ter sido educado particularmente até 1830, ano em que foi admitido no Liceu de Trier — cujo director, H u g o Wyttenbach, era amigo de Heinrich Marx e um dos fundadores do Clube do Casino. E m b o r a Karl rejeitasse mais tarde os colegas de liceu chamando-lhes «campónios», os professores eram, na sua maior parte, humanistas liberais que faziam o que podiam para civilizar os saloios. E m 1832, depois de uma manifestação em Hambach a favor da liberdade de expressão, a polícia invadiu o liceu e encontrou literatura sediciosa — incluindo discursos do

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protesto em Hambach — a circular por entre os alunos. U m rapaz foi preso e Wyttenbach foi colocado sob estreita vigilância. Dois anos mais tarde, a seguir ao nefasto jantar no Casino de Janeiro de 1834, os professores de Matemática e Hebreu foram acusados dos ignóbeis crimes de «ateísmo» e «materialismo». Para diminuir a influência de Wyttenbach, as autoridades nomearam um sinistro reaccionário chamado Loers como co-director. «Acho a posição do b o m Sr. Wyttenbach extremamente dolorosa», disse Heinrich ao filho depois de assistir à investidura de Loers. «Podia ter chorado pela ofensa infligida a este homem, cuja única falta é ser demasiado bondoso. Manifestei-lhe o melhor que podia a alta estima que sinto por ele e disse-lhe, entre outras coisas, que tu lhe és muito dedicado.. .»^° Mas quando Marx provou a sua devoção recusando-se a falar com o intruso conservador, apanhou um raspanete do pai. «O Sr. Loers levou muito a peito o não te teres despedido dele», escreveu Heinrich depois de Karl se ter matriculado em 1835. «Tu e o Clemens (outro rapaz) foram os únicos... Fui obrigado a recorrer a uma pequena mentira e dizer-lhe que tínhamos lá ido quando ele se encontrava ausente.»" Era esta a verdadeira índole de Heinrich, colérico mas tímido, infeliz mas obediente, sempre a deixar a prudência sobrepor-se ao atrevimento. O filho, ao contrário, preferia adoptar a atitude do tigre. «As reformas sociais nunca são concretizadas pela fraqueza dos fortes», escreveu Karl Marx ao avisar a classe operária para não esperar quaisquer gestos filantrópicos por parte dos capitalistas. «Mas sempre pela forças dos fracos.»^^ Podia argumentar-se que ele personificava este princípio. E m b o r a o seu poder intelectual raramente vacilasse, o corpo que continha esta tremenda fecundidade criativa era realmente um recipiente bastante fraco. Era quase como se ele quisesse testar nele mesmo, desafiando as suas limitações físicas e procurando a força da sua própria fraqueza, o que advogava para o proletariado. Até mesmo em pleno vigor da juventude — antes da pobreza, das insónias, da má comida, bebida excessiva e do tabaco o ter debilitado — , ele era um espécime frágil. «Nove cursos parece-me muito e eu não gostaria que fizesses mais do que o teu corpo e espírito podem suportar», aconselhou Heinrich Marx pouco depois de o filho entrar, aos 17 anos, na Universidade de Bona, em 1835. «Ao alimentares saudável e vigorosamente o teu espírito, não te esqueças de que

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neste mundo miserável ele é sempre acompanhado pelo corpo, o qual determina o bem-estar de toda a máquina. U m estudante doente é o ser mais infeliz da Terra. Por conseguinte, não estudes mais do que a tua saúde pode suportar.»^^ Karl não ligou, nem nessa altura nem nunca: e, anos mais tarde, trabalhou muitas vezes noites inteiras à custa de cerveja barata e charutos infectos. Com a sua habitual franqueza impetuosa, o rapaz retorquiu que se sentia de facto doente — o que provocou outro severo sermão do seu polónio pai. «Os pecados de juventude, em qualquer recreação imoderada, ou até mesmo nociva, são horrivelmente punidos. Aqui, o Sr. Giinster é um triste exemplo disso. É verdade que no caso dele não se trata de vício, mas o tabaco e a bebida deram-lhe cabo dos pulmões e ele dificilmente resistirá até ao Verão.»^'* A mãe, inquieta como sempre, incluiu a sua própria lista de recomendações: «Tens de evitar tudo o que possa piorar a tua saúde; não deves excitar-te muito, beber demasiado vinho ou café, comer comida picante, muita pimenta ou outros condimentos. Não deves fumar nem deitar-me muito tarde. E levanta-te cedo. Tem também cuidado para não apanhares frio, querido Karl, e não dances até te sentires novamente bem.»^^ Pode-se sem risco afirmar que a mãe não era lá muito divertida. Pouco depois dos 18 anos, Marx foi dispensado do serviço militar por causa de problemas respiratórios, embora ele possa muito bem ter exagerado o seu estado físico. (A suspeita de cunhas é fortalecida por uma carta do pai aconselhando-o a como escapar à tropa: «Querido Karl, se puderes, tenta arranjar aí certificados de médicos competentes e conhecidos. Podes fazê-lo com boa consciência... Mas sê consistente com a tua consciência e não fumes demasiado.») A suposta incapacidade não prejudicou certamente que ele se divertisse à grande. U m «Certificado de Dispensa» oficial, emitido depois de Marx ter passado um ano na Universidade de Bona, apesar de louvar os seus sucessos académicos («zelo e atenção excelentes»), notava que ele «tinha sido castigado com um dia de detenção por perturbar a paz à noite em estado de embriaguez... Foi subsequentemente acusado de transportar armas proibidas em Colónia. A investigação ainda está pendente. Não se suspeita que tenha participado em qualquer associação proibida de estudantes».^'' As autoridades universitárias não sabiam da missa a metade. É verdade que o Clube dos Poetas — ao qual se juntou no primeiro trimestre — não era uma «associação proibida», mas também não era tão inocente como o

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nome sugeria: os debates sobre poesia e retórica constituíam uma cobertura para conversas mais sediciosas. «Como podes bem acreditar, o teu pequeno círculo agrada-me, muito mais do que as reuniões nas cervejarias», escreveu Heinrich Mark, imaginando, muito satisfeito, que o seu rapaz aproveitava a ocasião para discutir literatura. Dava-se o caso de Marx também não ser nenhum estranho nas cervejarias. Era co-presidente do Clube Taberna de Trier, sociedade com cerca de 30 estudantes universitários da sua cidade natal, cuja principal ambição era embebedarem~se o mais frequente e ruidosamente quanto possível: foi depois de uma dessas pândegas que o jovem Karl se viu detido durante 24 horas, embora a prisão não tivesse impedido os companheiros de lhe trazer ainda mais bebidas alcoólicas e baralhos de cartas para amenizar a sentença. E m 1836, houve uma série de zaragatas entre a malta de Trier e um destacamento de jovens do Borussia Korps, que obrigavam os estudantes calões a ajoelhar e a jurar fidelidade à aristocracia prussiana. Marx comprou uma pistola para se defender contra estas humilhações e, quando visitou Colónia, em Abril, a «arma proibida» foi descoberta n o decorrer de uma rusga policial. Só uma suplicante carta de Heinrich Marx a um juiz de Colónia é que persuadiu as autoridades a não apresentar queixa. Dois meses mais tarde, depois de mais um confronto com o Borussia Korps, Marx aceitou um desafio para um duelo. O resultado deste combate entre um aplicado estudante míope e um soldado treinado era demasiado previsível, e Marx teve sorte em safar-se com apenas um pequeno ferimento acima do olho esquerdo. «Os duelos estão assim tão interligados com a filosofia?», perguntou-lhe o pai em estado de desespero. «Não deixes que essa inclinação, e, no caso de não ser inclinação, essa loucura, se enraíze em ti. Poderás vir a privar-te e aos teus pais das grandes esperanças que a vida oferece.»" Após um ano de «feroz rebalderia em Bona», Heinrich Marx ficou todo contente por autorizar o filho a passar para a Universidade de Berlim, onde haveria menos tentações extracurriculares.
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«Não só concedo a devida autorização ao meu filho, Karl Marx, como também é de minha vontade que ele seja admitido na Universidade de Berlim n o próximo trimestre para ali prosseguir os seus estudos de Direito...» Quaisquer esperanças de que o caprichoso jovem poderia agora concentrar-se nos esmdos sem distracções caíram rapidamente por terra: Karl Marx tinha-se apaixonado. O único amigo dos tempos da escola de Trier com quem Marx manteve ligações em adulto era Edgar von Westphalen, um pateta amigável e diletante com ideias revolucionárias. Esta amizade duradoura nada tinha a ver com as qualidades de Edgar e tudo a ver com a irmã dele, a encantadora Johanna Bertha Julie Jenny von Westphalen, mais conhecida por Jenny, a qual veio a ser a primeira e única Sra. Karl Marx. Era um excelente partido. Ao revisitar a sua cidade natal muitos anos mais tarde, Karl escreveu afectuosamente a Jenny: «Todos os dias e em todos os lados, perguntam-me pela quondam mais "bonita rapariga de Trier" e a "rainha dos bailes". É um enorme prazer para um homem ter uma mulher que vive assim, como uma "princesa encantada", na imaginação de uma cidade inteira.»^** Pode parecer surpreendente que uma princesa de 22 anos, da classe dirigente prussiana — filha do barão Ludwig von Westphalen — , se tivesse apaixonado por u m espertalhão burguês judeu, quatro anos mais novo do que ela e não por um impetuoso nobre de farda bordada e fortuna pessoal; mas Jenny era uma rapariga inteligente e livre pensadora que achou a fanfarronice intelectual de Marx irresistível. Depois de se livrar do seu pretendente oficial, um respeitável jovem alferes, ficou noiva de Karl durante as férias de Verão de 1836. Ele sentiu-se tão orgulhoso que não conseguiu deixar de se gabar diante dos pais, mas a notícia foi mantida secreta da família de Jenny durante quase um ano. O s motivos desta dissimulação são suficientemente óbvios à primeira vista. O barão Ludwig von Westphalen, funcionário superior do governo provincial da Prússia real, era um homem de linhagem duplamente aristocrática: o pai tinha sido chefe do Estado-Maior durante a guerra dos Sete Anos, e a mãe escocesa, Anne Wishart, descendia dos condes de Argyll. U m puro-sangue de tal m o d o magnífico dificilmente desejaria que a filha se encabrestasse com o descendente plebeu de uma longa linhagem de rabinos. U m exame mais minucioso, contudo, revela que tanto segredo é inexplicável, pois Von Westphalen não era snobe nem reaccionário. Após um ca-

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samento aristocrata convencional, que tinha produzido quatro convencionais filhos aristocratas — um dos quais, Ferdinand, se tornou mais tarde num diabólicamente tirânico ministro do Interior do Governo prussiano — , o barão estava agora casado com Caroline Heubel, uma decente e modesta mulher da classe média, que era mãe de Jenny e E d g a r (A sua primeira mulher, Lisette Velthéim, morrera em 1807). Como já não era obrigado a dar-se ares nem graças ou a preocupar-se com o seu estatuto social, as qualidades naturais do barão Ludwig eram mais evidentes — afável, culto e liberal e benigno. Como protestante num cidade católica, pode ter-se sentido um marginal; simpatizava, certamente, com os párias da vida. N o s relatórios oficiais que enviava para Berlim, chamava a atenção sobre a «grande e crescente pobreza» das classes mais baixas de Trier, mas sem apresentar motivos nem propor soluções. Era um espécime quase perfeito do conservador Hberal bem intencionado, pesaroso pelas privações dos pobres, mas desfrutando as regaKas da sua própria vida. Assim como Heinrich Marx, para dizer a verdade. Os dois homens conheceram-se pouco depois de Von Westphalen ser colocado em Trier, em 1816, e descobriram que tinham muito em comum, incluindo o gosto pela literatura e a filosofia do século das Luzes. Apesar de indubitavelmente monárquicos e patriotas, ambos eram favoráveis — soffo voce e com extrema delicadeza — a algumas reformas moderadas que pudessem temperar os excessos do absolutismo prussiano. C o m o Henrich Marx, Ludwig von Westphalen tornou-se membro do Clube do Casino e foi, a partir de então, tratado com circunspecta suspeita pelos seus superiores em BerHm. As duas mulheres nada tinham em comum. Caroline von Westphalen era uma anfitriã generosa e viva, sempre a organizar leituras de poesia ou noites musicais, enquanto Henriette Marx era obtusa, inarticulada e socialmente desajeitada. Para os filhos Marx, a casa dos Von Westphalen, em Neustrasse, era um refúgio de luz e vida. Sophie Marx e Jenny von Westphalen foram amigas íntimas durante a maior parte da infância: quando Jenny, que contava então cinco anos, viu pela primeira vez o seu futuro marido, ele era ainda um bebé de colo. Como o irmão dela, um ano mais velho que Karl, Jenny foi enfeitiçada pelos olhos escuros desta criança dominadora («ele era u m tirano terrível») e nunca mais escapou. O barão começou igualmente a reparar no precoce amigo dos filhos. A o contrário do seu próprio filho, Edgar, o rapazinho Marx tinha fome de conhecimento e a sua rápida inteligência permitia-lhe digeri-lo com toda a facilidade. N o s longos passeios que davam juntos. Von Westphalen recitava

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longas passagens de Homero e Shakespeare ao seu jovem companheiro. Marx veio a saber de cor grande parte da obra de Shakespeare — e utilizava-a com bom efeito, condimentando os seus escritos de adulto com analogias e citações apropriadas das peças. «O seu respeito por Shakespeare era ilimitado; fez um minucioso estudo das suas obras e conhecia até mesmo os seus personagens menos importantes», lembrava-se Paul Lafargue, genro de Marx. «Toda a família dele tinha um verdadeiro culto pelo grande dramaturgo inglês; as três filhas sabiam muitos dos seus textos de cor e salteado. Quando, depois de 1848, ele quis aperfeiçoar os seus conhecimentos de inglês, língua que já conseguia 1er, procurou e assentou todas as expressões originais de Shakespeare.»^^ No fim da vida, Marx recordava esses momentos felizes passados com Von Westphalen declamando cenas de Shakespeare — bem como Dante e Goethe — enquanto conduzia a família até Hampstead Heath para o piquenique de domingo. «As crianças lêem constantemente Shakespeare», disse ele a Engels, com enorme orgulho paternal, em 1856.^° Aos 12 anos, a filha de Marx, Jenny, comparou o seu antigo secretário, Wilhelm Pieper, a Benedick, de Much Ado About Nothing— ao que a irmã de 11, Laura, retorquiu que Benedick era urn homem de espírito e Pieper apenas um palhaço, «e ainda por cima sem graça nenhuma». No decorrer dos longos anos de exílio, as únicas incursões de Marx na cultura inglesa foram para, de vez em quando, ir ver os grande actores shakespearianos Salvini e Irving. Não é coincidência o facto de uma das filhas de Marx, Eleanor, ter-se dedicado ao teatro e uma outra, a pequena Jenny, ansiar fazer o mesmo. Como o professor S. S. Prawer comentou, toda a gente em casa de Marx era obrigada a viver «em perpétua agitação de alusões à literatura inglesa.»^^ Havia citações para todas as ocasiões — para arrasar um inimigo político, para animar um árido texto sobre economia, para realçar uma piada de família ou dar veracidade a uma emoção intensa. Numa carta de amor escrita à mulher 13 anos depois de se terem casado, Marx revelou mais uma vez a duradoura influência que o barão Von Westphalen tinha exercido sobre ele: «Estás diante de mim em carne e osso. Levanto-te nos meus braços e beijo-te toda da cabeça aos pés, caindo de joelhos e gritando, ' Amo-te", E amo-te deveras com um amor que o Mouro de Veneza jamais sentiu... Quem entre os meus numerosos caluniadores e viperinos inimigos jamais me censurou de ser chamado para representar o papel do herói romântico

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numa peça de segunda ordem? E, conmdo, é verdade. Se os patifes fossem espertos teriam representado "as relações produtivas e sociais" de um lado e, do outro, eu a teus pés. E, por baixo, teriam escrito: "Olhem para esta 9?

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imagem e para isto. » A última frase, como Jenny não precisaria que lhe dissessem, era tirada de Hamkt. Porquê, então, se mostraram Karl e Jenny tão relutantes em falar do noivado aos pais dela? Talvez Karl pensasse que a diferença de idades contaria contra ele: casamentos com mulheres mais velhas ainda eram suficientemente raros para parecerem um crime contra as leis da natureza. O u talvez temesse que, apesar de toda a sua generosidade de espírito, o barão tentaria dissuadir a sua adorada filha a unir o seu destino ao de um brilhante, mas pusilânime, não conformista. A vida com Karl nunca seria monótona, mas a promessa de estabilidade ou prosperidade era reduzida. A parte Jenny von Westphalen, a maior paixão da juventude de Max foi por um filósofo morto, G. W. E Hegel. Tal paixão seguiu o mesmo curso de muitos casos amorosos: prudência tímida, a intoxicante excitação do primeiro beijo, rejeição do ser amado à medida que o amor se desvanece. Mas, nos escaninhos da vida adulta, ele manteve-se grato por essa iniciação. Muito depois de repudiar o hegelianismo e declarar a sua independência intelectual, Marx falava com afecto do homem que o tinha emancipado. Tinha ganho o direito de repreender Hegel com a robusta honestidade de u m amigo íntimo; mas os estranhos não eram autorizados a tamanha Uberdade. «Critiquei o aspecto mistificador da dialéctica de Hegel há quase 30 anos, numa altura em que estava ainda na moda», escreveu em 1873. «Mas, quando trabalhava no primeiro volume de O Capital, o grande prazer dos arrogantes, medíocres e rabugentos epígonos que, agora, falam com bazofia na Alemanha culta, era de tratar Hegel como o bravo Moses Mendelssohn na época de Lessing tratava Espinosa, quer dizer, como um "cão morto". Admiti abertamente, por conseguinte, ser discípulo desse considerável pensador e até aqui e aU, no capítulo sobre a teoria do valor, namorisquei com as formas de expressão que lhe eram particulares. A mistificação que a dialéctica sofre nas mãos de Hegel, de modo algum o impede de ser o primeiro a apresentar a sua forma geral de trabalho de maneira consciente e compreensiva.»^^ Era, de facto, muito raro que Marx dirigisse um cumprimento a alguém com quem tinha discordado: normalmente, aqueles que provocavam o seu

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descontentamento podiam esperar ser chamados asnos e imbecis dali em diante. Heinrich Heine era uma excepção, pois Marx acreditava que os defeitos dos grandes poetas deviam ser perdoados; e parece que ele aplicava a mesma regra às imperfeições dos grandes filósofos. Para os medíocres, contudo — poetastros, tolos presumidos, imbecis presunçosos — , nenhum epíteto era demasiado duro. E ao ver Hegel ser atacado por mentes inferiores, Marx soube logo que lado tomar. Sobretudo porque ainda se sentia em dívida para com ele, como confessou muitos anos mais tarde. Hegel empregou uma metodologia radical para chegar a conclusões conservadoras. O que Marx fez foi manter a estrutura dialéctica, descartando a algaraviada mística — como um homem que compra uma capela desconsagrada e transforma numa moradia secular e habitável. O que é a dialéctica? Como qualquer criança de escola com um par de imãs — ou, para o caso, qualquer agência de casamentos — pode confirmar, os opostos atraem-se. Se assim não fosse, a raça humana já estaria extinta. A fêmea acasala-se com o macho e, do seu abraço suado, emerge uma nova criatura que, eventualmente, repetirá o processo. N e m sempre, claro está, mas de forma suficientemente frequente para assegurar a sobrevivência e o progresso das espécies. A dialéctica desempenha a mesma função para o espírito humano. U m ideia, posta a nu, tem uma atracção apaixonada pela sua antítese, da qual surge uma síntese, a qual, por sua vez, se torna uma nova tese que será devidamente seduzida por um novo amante demoníaco. Duas coisas erradas podem dar uma certa — mas, pouco depois do seu nascimento, essa coisa certa torna-se noutra errada, que tem de ser sujeita ao mesmo íntimo escrutínio que os seus antepassados e, desta maneira, seguimos em frente. O próprio entrosamento de Marx com Hegel era em si mesmo uma espécie de processo dialéctico, do qual emergiu a criança sem nome que viria a ser materialismo histórico. É evidente que estou a simplificar; mas somos obrigados a simplificar Hegel pois, de outro m o d o , grande parte do seu trabalho permaneceria impenetravelmente obscuro. Aos 18 anos e recentemente chegado à Universidade de Berlim, o próprio Marx troçou dessa opacidade e ambiguidade numa série de epigramas intitulados «Sobre Hegel». «Ensino palavras todas misturadas numa confusão diabólica. Assim, todos podem pensar o que decidem pensar; Nunca, pelo menos, se é estorvado por limitações rigorosas.

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Saindo às bolhas do dilúvio, mergulhando do alto da falésia, Assim são as palavras e os pensamentos da Amada que o Poeta concebe; Compreende o que pensa, inventa livremente o que sente. E, assim, todos podem sugar o nutritivo néctar de tal sabedoria; Agora sabem tudo, pois disse-vos uma data de nada!»^'* Marx incluiu o poema num caderno de versos «dedicado ao meu querido pai na ocasião do seu aniversário, como insignificante marca de amor eterno». O velhote deve ter-se deleitado por saber que o filho não tinha sucumbido à epidemia de adoração de Hegel que infectava quase todas as instituições do país. N u m a das suas cartas para Berlim, Heinrich preveniu Karl contra a contagiosa influência hegeliana — «Os novos imoralistas que torcem as suas palavras até eles próprios não as ouvirem; que nomeiam produto de génio uma enxurrada de palavras porque é desprovida de ideias.»^^ Era pouco provável que alguém tão infinitamente curioso e argumentador como Karl Marx resistisse por muito tempo. Hegel ocupou a cadeira de filosofia em Berlim desde 1818 até à sua morte, em 1831, e por volta da inscrição de Marx na universidade, cinco anos mais tarde, os seus herdeiros intelectuais ainda se batiam pela herança. N a sua juventude, Hegel tinha sido um simpatizante idealista da Revolução Francesa, mas, a exemplo de tantos outros radicais — então como agora — , acomodou-se quando chegou à meia-idade, acreditando que um homem verdadeiramente maturo deveria reconhecer «a. necessidade objectiva e a natureza razoável do m u n d o que encontra». O mundo em questão — o Estado prussiano — era uma manifestação completa e final do que ele chamava o Espírito Divino ou Ideia (Geist). Sendo isto assim, não restava mais nada para os filósofos debaterem. Quaisquer outras discussões quanto ao status quo era pura vaidade. Este tipo de argumento tornou-o naturalmente muito popular entre as autoridades prussianas que o brandiram como prova que o seu sistema de governo era não apenas inevitável como também não podia ser melhorado. «Tudo o que é real é verdadeiro», tinha escrito Hegel; e como não havia dúvidas de que os estado era real, no sentido que existia, devia por conseguinte ser racional e irrepreensível. Aqueles que defendiam o aspecto subversivo dos seus primeiros trabalhos — os chamados jovens hegeiianos — preferiam citar a segunda metade dessa famosa: «Tudo o que é racional é real.» Uma monarquia absoluta, sustida por censores e polícia secreta, era manifestamente irracional e, por conseguinte, irreal, uma miragem, ou espectro, que desapareceria no momento em que alguém ousasse tocar nela.

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Estudante na Faculdade de Direito de Berlim, Marx tinha um lugar na primeira fila da arena. O seu professor-assistente de jurisprudencia era Friedrich Karl von Savigny, um reaccionario severo e magro que, apesar de não ser hegeliano, era contudo da opinião que o governo e as leis de um país constituíam um processo orgânico que reflectia o carácter e a tradição do seu povo. Pôr em questão o absolutismo prussiano era desafiar a natureza: mais vaüa, então, exigir uma reforma na estrutura dos carvalhos ou a aboHção da chuva. A perspectiva alternativa era representada pelo gorducho e jovial professor de criminologia, Eduard Gans, um hegeliano radical que acreditava que as instituições deveriam antes ser sujeitas a criticismo racional do que a veneração mística. Durante o seu primeiro ano em Berlim, Marx resistiu à tentação da filosofia: estava ali, afinal de contas, para estodar direito e, além do mais, não tinha ele já rejeitado o diabólico Hegel e toda a sua obra? Distraía-se escrevendo poemas líricos, mas produzia apenas «difusas e rudimentares expressões de sentimento, nada de natural, tudo criado a partir de banalidades, total oposição entre o que é e o que deveria ser, reflexões retóricas em vez de pensamentos poéticos.. . rel="nofollow">?'•'' (Quando querelamos com os outros, dizia W. B. Yeats, fazemos retórica; quando querelamos com nós mesmos, fazemos poesia.) E m preendeu então a redacção de uma filosofia do direito — «um trabalho com cerca de 300 páginas» — apenas para deparar com o mesmo velho abismo entre o que é e o que deveria ser: «O que me agradou denominar a metafísica do direito quer dizer, princípios básicos, reflexões, definições de conceitos (estava) separado de todas as leis concretas e de todas as formas concretas da lei.» Pior ainda, não conseguindo estabelecer um ponto de união entre a teoria e a prática, foi incapaz de reconciliar -afirma da lei com o seu conteúdo. O seu erro — pelo qual responsabilizou Savigny — «encontra-se no facto de eu acreditar que matéria e forma podem e devem desenvolver-se separadas uma da outra e, assim, obtive uma forma que não era real, mas algo como uma secretária com gavetas nas quais derramei areia». O seu trabalho não foi totalmente desperdiçado, «o decorrer desta tarefa», revelou. «Adoptei o hábito de fazer resumos de todos os livros que li» — hábito que nunca perdeu. A lista de leituras desse período mostra a amplitude de tais explorações intelectoais: que outra pessoa acharia que valia a pena fazer um minucioso estudo sobre a História ãaA-ri:e, de Johann Joachim Winckelmann, enquanto redigia uma filosofia do direito? Traduziu Germânia, de Tácito, e Tristia, de Ovídio, e «comecei a aprender inglês e italiano sozinho, quer dizer, através de gramáticas». N o semestre seguinte, enquanto devorava

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dúzias de livros de estudo sobre processos civis e direito canónico, traduziu a Retórica, de Aristóteles, leu Francis Bacon e «passei um bom bocado de tempo embrenhado em Reimarus, cujo Hvro sobre o instinto artístico dos animais ocupou deliciosamente o meu espírito». Tudo, sem dúvida, um bom exercício para o cérebro; mas nem mesmo os animais artísticos podiam salvar a sua magnum opus. Abandonando, desesperado, o manuscrito de 300 páginas, o jovem Karl virou-se novamente para «as danças das Musas e a música dos Sátiros». Escreveu um curto «romance humorístico». Escorpião e Félix, uma torrente absurda de extravagâncias e zombarias que foi obviamente escrita sob a influência de Tristam Shandy, de Lawrence Sterne. Há, todavia, uma passagem que merece ser transcrita: «Todo o gigante... pressupõe um anão, todo o génio um filisteu obtuso e toda a tempestade no mar — lama, e assim que os primeiros desaparecem, os últimos começam, sentam-se à mesa estendendo arrogantemente as pernas compridas. Os primeiros são demasiado grandes para este mundo e, assim, são atirados fora; os últimos enraízam-se e ficam, como se pode ver pelos factos, pois o champanhe deixa um travo repulsivo, César, o herói, deixa atrás dele o comediante Octávio, o imperador Napoleão, o rei burguês Luís Filipe...» Ninguém que escreveu sobre Marx parece ter notado a semelhança entre este conceito chistoso e o famoso parágrafo de abertura do De^oitó Brumário de Euis Bonaparte escrito 15 anos mais tarde:

«Hegel nota algures que todos os factos e personagens de grande importância da história do mundo ocorrem, como se diz, duas vezes. Esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia; a segunda como uma farsa miserável. Caussidière para Danton, Louis Blanc para Robespierre, o Montagne de 1848-1851 para o Montagne de 1793-1795, e o polícia de Londres (Luis Bonaparte) corn a primeira dúzia de tenentes gratos que se juntaram ao pequeno sargento (Napoleão) com o seu bando de marechais! O De^oitó Brumário do idiota para o Dezoito Brumário do génio!»^^ À parte o sugestivo eco, pouco há em Escorpião e Fé/ix que nos detenha; e ainda menos em Oulanem, um excessivo drama em verso que range sob o

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peso da influência de Goethe. Depois destas experiências, Marx aceitou finalmente a morte das suas ambições literárias. «De repente, como se por um toque mágico — oh, tal toque foi primeiro um golpe devastador — avistei o distante reino da verdadeira poesia como um longínquo palácio encantado e todas as minhas criações reduziram-se a nada.» A descoberta tinha-lhe custado muitas noites de insónia e muita angústia. «Um cortina caíra, o meu sancta sanctorum ficou em pedaços e novos deuses tiveram de ser instalados.» Sofrendo de uma espécie de quebra física, o médico mandou-o ir descansar para o campo. Alugou uma casa na pequena aldeia de Stralau, nas margens do rio Spree, perto de Berlim. Parece ter ficado ligeiramente desequilibrado nessa altura. Esforçando-se ainda para ignorar a voz de sirena de Hegel («a grotesca melodia desafinada de que não gostei»), escreveu um diálogo de 24 páginas sobre religião, natureza e história — apenas para descobrir que «a minha última proposta era o princípio do sistema hegeliano». Tinha sido entregue ao inimigo. «Durante uns dias, o meu dissabor impediu-me de pensar; percorri, furioso, o jardim à beira das águas sujas do Spree que "lava almas e dilui o chá". (Uma citação de Heinrich Heine.) Até fui a uma caçada com o meu senhorio, parti precipitadamente para Berlim e tive vontade de beijar todos os madraços encostados às esquinas.» Curiosamente, o próprio Hegel tinha atravessado uma crise semelhante no período em que andava a renunciar aos seus ideais e a abraçar a «maturidade». O facto de tanto Hegel como Marx terem escrito a fundo sobre o problema da alienação — o afastamento em relação a nós mesmos e à sociedade — não é nenhuma coincidência. N o século XIX, a «alienação» tinha um significado secundário e era sinónimo de perturbação ou insanidade: daí os patologistas mentais (ou «médicos de loucos») serem conhecidos por alienistas. Enquanto se encontrava em convalescença — restaurando as forças com longos passeios, refeições regulares e deitando-se cedo — , Marx leu Hegel de fio a pavio. Por intermédio de um amigo da universidade foi introduzido no Clube dos Doutores, um grupo de jovens hegeUanos que se encontravam regularmente no café Hippel, em Berlim, onde passavam noites ruidosas a discutir e a beber. Entre os seus membros havia o professor-assistente de teologia Bruno Bauer e o filósofo radical Arnold Ruge, ambos viriam a ser colaboradores intelectuais de Marx — e, uns anos mais tarde, os seus piores inimigos. N a noite de 10 de Novembro de 1837, Marx escreveu uma extensa carta ao pai descrevendo a sua conversão e as peregrinações intelectuais que o

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tinham conduzido a isso. «Há momentos na vida de uma pessoa que são como postos fronteiriços marcando o fim de um dado período, mas que, ao mesmo tempo, indicam claramente uma nova direcção. E m tais momentos de transição sentimo-nos compelidos a encarar o passado e o presente com os olhos de águia do pensamento a fim de nos tornarmos conscientes da nossa posição. Com efeito, a própria história gosta de olhar para trás dessa maneira para avaliar os acontecimentos...» Nenhuma falsa modéstia nestes propósitos: aos 19 anos, ele já estava a experimentar a roupa de um H o m e m de Destino e a descobrir que lhe iam lindamente. Agora, que iniciara a fase seguinte da vida, queria erguer um monumento ao que tinha vivido... «e onde encontrar lugar mais sagrado do que o coração de um pai, o juiz mais misericordioso, o simpatizante mais íntimo, o sol de amor cujo fogo caloroso é sentido no âmago dos nossos esforços!» A lisonja florida não o levou a lado nenhum. Heinrich não se mostrou complacente nem misericordioso ao 1er, com crescente horror, toda a história das aventuras intelectuais do filho. Ter um hegeliano na família era suficientemente vergonhoso; mas o pior era dar-se conta de que o rapaz tinha andado a desperdiçar tempo e talento com a filosofia, quando deveria unicamente ter-se concentrado para obter um b o m diploma de direito e arranjar um emprego lucrativo. N ã o tinha ele nenhuma consideração pelos seus pobres pais? Nenhuma gratidão para com Deus que o tinha abençoado com tantos e magníficos dons naturais? E a sua responsabilidade para com a futura mulher — «uma rapariga que, dados os seus notáveis méritos e a sua posição social, fez um enorme sacrifício ao abandonar as suas esperanças e brilhante situação por um futuro incerto e sem fulgor acorrentando-se ao destino de um h o m e m mais novo»? Mesmo que Karl não se preocupasse com os nervos da mãe e o pai doentes, devia certamente sentir-se obrigado a assegurar um futuro feliz e próspero à Hnda Jenny; e isso dificilmente poderia ser conseguido a 1er livros sobre animais artísticos num quarto cheio de fumo. «Que calamidade!!! Desordem, incursões em todos os departamentos d o conhecimento, ruminações sorumbáticas à luz bruxuleante de uma lamparina, andar por aí descomposto e despenteado numa toga de letrado em vez de procurar distracção num copo de cerveja; comportamento insociável sem nenhum respeito pelo mínimo d e c o r o . . . E é aqui, nesta oficina de erudição insensata e inadequada, que os frutos que te hão-de refrescar, a ti e aos teus entes queridos, vão amadurecer

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e a colheita que servirá para cumprires as tuas sagradas obrigações será armazenada!?»^' Esta mordaz repreensão — a qual também é uma descrição precisa dos métodos de trabalho usados por Marx durante toda a vida — foi dada em Dezembro de 1837, quando Heinrich já se encontrava gravemente doente com tuberculose. Soa como o ultimo grito desesperado de um moribundo que pôs todas as esperanças na geração seguinte — apenas para ver essas esperanças serem amarfanhadas como uma folha de papel inútil. Fortalecendo-se com um punhado de comprimidos receitados pelo médico, ele lançava uma chuva de queixas ao filho desalmado. Karl raramente respondia às cartas dos pais; nunca se informava da sua saúde e, num ano, gastara quase 700 táleres do dinheiro deles, «enquanto os ricos gastavam menos de 500»; tinha enfraquecido o corpo e o espírito com abstracções e «criado monstros»; nunca regressava a casa durante as férias e ignorava os irmãos e irmãs. Até mesmo Jenny von Westphalen, que anteriormente fora louvada até aos píncaros, revelava-se agora como outro objecto de irritação: «Mal se tinham acabado as tuas loucas andanças em Bona, mal te tinhas lavado dos teus antigos pecados — os quais eram realmente inúmeros — quando, para nosso espanto, surgiu a tua paixão... Ainda tão novo, desHgaste-te da tua famíHa...» O que era verdade; mas este rosário de queixumes dificilmente serviria para os reunir. Os pais de Karl suplicaram-Ihe que viesse passar uns dias em Trier durante as férias da Páscoa de 1838, mas ele recusou. A verdade era que Marx tinha abandonado a família. A distância entre eles pode ser avaliada por uma carta de Heinrich, de Março de 1837, em que sugeria que Karl escrevesse uma ode heróica para ganhar nome: «Deveria contribuir para honrar a Prússia e proporcionar a oportunidade de atribuir um papel ao génio da monarquia... Se for executada com espírito patriótico alemão e profundidade de sentimentos, uma tal ode seria em si suficiente para estabelecer os alicerces de uma reputação.» Julgava realmente o velho homem que o filho queria glorificar a Alemanha e a sua monarquia? Talvez não. «Posso apenas aconselhar-te», concedeu lamentosamente. «Superaste-me; nesta questão, és, em geral, superior a mim e, por isso, deixo que decidas como quiseres.» Heinrich Marx morreu aos 57, a 10 de Março de 1838. Karl não assistiu ao funeral. A viagem de Berlim seria demasiado longa, explicou, e tinha coisas mais importantes para fazer.

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Ao longo dos três anos passados na Universidade de Berlim, Marx raramente foi às aulas e estava com frequência endividado. A morte do pai significava o fim de uma mensalidade regiilar, mas também aliviava a pressão paterna de estudar direito. «Seria estúpido dedicares-te a uma carreira prática», aconselhou-o Bruno Bauer.
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Felizmente, Deus tinha amigos prussianos que ocupavam cargos importantes e, depois da subida ao trono de Frederico Guilherme IV, em 1840, a perseguição aos dissidentes duplicou, sendo imposta rigorosa censura a todas as publicações e a liberdade académica suprimida. Perdido na inóspita cidade de Berlim, Marx já não se dava ao trabalho de ir às aulas. D e dia, ficava a 1er, a escrever e a fumar nos seus aposentos e, à noite, discutia e divertia-se com as almas gémeas que frequentavam o Clube dos Doutores. E m b o r a o seu estudo de Demócrito e Epicuro pudesse parecer suficientemente inofensivo, ele sabia que não valia a pena submeter a sua tese aos professores de Berlim — sobretudo porque seria minuciosamente examinada por F W Von Schelling, velho filósofo anti-hegeHano que, por ordem pessoal do novo rei, entrara para a universidade em 1841, a fim de extirpar influências daninhas. Apesar da aparente aridez do tópico de Marx, o estudo comparativo de D e m ó c r i t o e Epicuro era uma obra original e ousada, na qual ele se propunha provar que a teologia devia ceder o lugar à superior sabedoria da filosofia e que o cepticismo haveria de triunfar do dogma. Expôs o seu argumento na primeira página como u m desafio: «Enquanto uma gota de sangue pulsar no seu coração totalmente Hvre e conquistador do mundo, a filosofia há-de constantemente bradar aos seus oponentes o grito de Epicuro: "A impiedade não consiste em destruir os deuses da multidão, mas sim em atribuir aos deuses as ideias da multidão." A filosofia não esconde tal coisa. A proclamação de Prometeu — " N u m a palavra, odeio todos os deuses." — é a sua própria profissão de fé, o seu próprio lema contra todos os deuses do céu e da Terra que não reconhecem a consciência humana como sendo a divindade máxima. Além desta, não haverá nenhuma outra.»^ N o espírito de travessura beligerante que viria a ser uma particularidade das suas polémicas posteriores, Marx acrescentava um pequeno apêndice para troçar da perda de fé liberal d o seu tutor. Citando u m ensaio que Schelling tinha escrito há mais de 40 anos — «Chegou o momento de proclamar a liberdade do espírito à melhor parte da humanidade e deixar de tolerar que eles deplorem a perda das suas correntes» — , perguntava: «A altura já tinha chegado em 1795, e, então, no ano de 1841?» Schelling não teve a possibilidade de responder. Marx decidiu submeter a tese à Universidade de Jena, a qual tinha a reputação de conceder diplomas

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sem debate nem atrasos. Foi obrigado a incluir o certificação de dispensa de Bona (que mencionava as estroinices com armas de fogo e copos) e uma referência dos plenipotenciários do governo real da Universidade de Berlim que não encontraram «nada de particularmente desfavorável quanto a disciplina», a não ser que «em várias ocasiões, ele foi processado por dívidas». O director do departamento do Filosofia de Jena, o Dr. Carl Friedrich Bachmann, decidiu que essas infracções insignificantes podiam ser descartadas pois o ensaio sobre Demócrito e Epicuro «dá provas de tanta inteligência e perspicácia quanto erudição e, por isso, considero o candidato por excelência digno de mérito». A 15 de Abril de 1841, apenas nove dias depois de ter enviado a sua dissertação para Jena, Karl Marx doutorou-se em Filosofia. HerrDoktorMatx estava agora preparado para se lançar no mundo. Mas, no ano seguinte, andou numa viravolta entre Bona, Trier e Colónia, aparentemente sem saber o que fazer. A tese fora dedicada «ao seu querido paternal amigo, Ludwig von Westphalen... como marca de amor filial» e, no decorrer de várias visitas a Tier, ignorou significativamente a mãe, dedicando-se ao barão doente (o qual viria a falecer em Março de 1842) e à paciente Jenny, cuja adoração pelo seu «pequeno javali selvagem» era tão intensa c o m o dantes, apesar das suas Jongas ausências. «O meu pequenino coração está tão repleto, tão tl"ansbordante de amor, desejo e ardentes saudades de ti, meu infinitamente amado», escreveu. «É certo, não é, que posso câsar-me contigo?»^ Claro, claro concordava ele, mas ainda não. O casamento teria de ser adiado até arranjar um emprego remunerado, pois a desgraçada da mãe tinha-lhe cortado a mesada e retinha a sua parte da herança de Heinrich Marx. E m Julho de 1842, Marx foi morar com Bruno Bauer em Bona, onde os dois depravados passaram um tumultuoso Verão a chocar a burguesia local — embriagando-se, rindo na igreja, cavalgando montados em burros através das ruas da cidade e (ainda mais subversivamente) redigindo um panfleto anónimo, «A última Trompeta do Juízo Final contra o Ateu e Anticristo Hegel». A primeira vista, tratava-se de um piedoso ataque contra Hegel, escrito por um cristão devoto e conservador, para provar que ele era ateu revolucionário, mas a sua verdadeira intenção, assim como a identidade dos autores, em breve se tornava evidente. U m jornal hegeliano comentou com ar entendido que todos os bauer (camponês, em alemão) perceberiam o verdadeiro significado. Bruno Bauer foi expulso da universidade e, com ele, desapareceu a última possibilidade de Marx obter um cargo académico.

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«Tenho de ir para Colonia dentro de uns dias, pois acho intolerável a proximidade dos professores de Bona», disse Marx ao filósofo hegeliano radical, Arnold Ruge, em Março de 1842. «Quem desejaria estar sempre a falar com texugos intelectuais, gente que estuda apenas n o intuito de encontrar impasses ao virar de todas as esquinas do mundo!»'* U m mês mais tarde, mudava de ideias: «Abandonei o plano de me instalar em Colónia. A vida é muito barulhenta para o meu gosto e o grande número de amigos que lá tenho não é bom para quem estuda filosofia.. . A s sim, continuo por enquanto a residir em Bona; seria uma pena, afinal de contas, se ninguém ficasse aqui e os homens sagrados não tivessem com quem se 2angar.»^ Mas a atracção de Colónia era difícil de resistir. O «barulho» de que ele se queixava era como um eco das reuniões do Clube dos Doutores no café Hippel — a principal diferença era a qualidade das bebidas. «Como estou contente que te sintas feliz», escreveu Jenny a Karl em Agosto de 1841. «E que bebas champanhe em Colónia, que haja aí clubes hegelianos e que tenhas andado a sonhar.. .»^ O champanhe parecia ser um lubrificante mais apropriado do que a cerveja bebida em BerHm: Colónia era a maior e mais rica cidade da Renânia, a qual era, por sua vez, a província mais política e industrialmente avançada de toda a Prússia, e os banqueiros e homens de negócios locais tinham recentemente começado a reivindicar uma forma de governo mais adequada a uma economia moderna do que o antiquado e asmático sistema da monarquia absoluta e a opressão burocrática sob a qual trabalhavam. C o m o o próprio Marx assinalou muitas vezes anos mais tarde, a natureza da sociedade é ditada pelas suas formas de produção; e agora que o capitalismo industrial se estabelecera, a conversa nos bares de Colónia era a de que a democracia, uma imprensa livre e uma Alemanha unificada tinham de ser estabelecidas. Não constituía portanto nenhuma surpresa que a cidade atraísse, c o m o u m imã, os pensadores heréticos e os boémios descontentes que ofereciam a riqueza do seu conhecimento em troca do conhecimento da riqueza dos magnatas. O filho desta união era Rheinische Zeitung, jornal Uberal fundado no Outono de 1841 por u m grupo de abastados fabricantes e financeiros (incluindo o presidente da Câmara de Comércio de Colónia) para desafiar o conservador e lúgubre Kölnische Zeitung. Retrospectivamente, era inevitável que Marx escrevesse para esse jornal e viesse rapidamente a ser o seu génio. Mas, embora o Marxismo tenha sido

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frequentemente caricaturado como uma doutrina de «inevitabilidade histórica», ele sabia muito bem que os destinos individuais não são antecipadamente ordenados — embora tivesse tendência para subestimar a importância dos acasos e das coincidências na formação de uma vida. O que é que teria acontecido se Bruno Bauer não tivesse sido expulso da universidade? E se o Dr. Marx tivesse encontrado uma sinecura universitária em vez de ser obrigado —faute de mieux-— a exprimir a sua irrequieta inteligência através do jornalismo? A sorte pode tê-lo ajudado a decidir o seu destino; mas era uma sorte que ele procurara. Isto era mais um desses postos fronteiriços que marcam os territórios inexplorados. Hegel tinha servido os seus objectivos e, desde que deixara Berlim, os pensamentos de Marx tinham passado do idealismo para o materialismo, do abstracto para o real. «Como toda a verdadeira filosofia é a quintessência intelectual da sua época», escreveu em 1842. «Deve chegar uma altura em que a filosofia, não apenas internamente pelo seu conteúdo mas também externamente através da sua forma, entra em contacto e em interacção com o mundo real do seu dia.»^ Tinha acabado por desprezar os argumentos confusos e nebulosos dos liberais alemães «que pensam que h o n r a m a liberdade colocando-a n o firmamento estrelado da imaginação e não no solo firme da realidade».^ Graças a esses sonhadores etéreos, a liberdade na Alemanha não era mais do que uma fantasia sentimental. A nova direcção tomada por Marx requeria, evidentemente, outro exaustivo e fatigante curso para se educar a si mesmo, mas isso não desencorajava um autodidacta tão insaciável como ele. C o m p ô s o seu primeiro ensaio jornalístico em Fevereiro de 1842, n o decorrer de uma visita ao moribundo barão Von Westphalen em Trier, e enviou-o para Arnold Ruge, em Dresden, a fim de ser incluído no novo jornal dos Jovens Hegelianos, oDeutsche Jahrbücher. O artigo era uma brilhante polémica contra as últimas instruções de censura emitidas pelo rei Frederico Guilherme IV — e, com gloriosa se não intencionada ironia, o censor proibiu-o imediatamente. E o próprio DeutcheJahrbücher íoi encerrado meses mais tarde por ordem do Parlamento federal. Resmungando contra o «repentino restabelecimento da censura saxónica», Marx esperava ter melhor sorte em Colónia, onde vários dos seus amigos já estavam instalados no Rheinische Zeitung. O director, Adolf Rutenberg, era um camarada que gostava da pinga do Clube dos Doutores (e cunhado de B r u n o Bauer), mas, c o m o estava quase sempre embriago, o fardo de

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publicar o jornal recaía a maior parte das vezes sobre Moses Hess, socialista jovem e rico. Mais tarde, Hess tornou-se um feroz inimigo, mas, nessa época, a sua atitude para com Marx era de reverência. Escreveu o seguinte ao seu amigo Berthold Auerbach: «Ele é um fenómeno e, apesar das nossas actividades serem bastante semelhantes, impressionou-me enormemente. Em resumo, podes prepararte para conhecer o maior filósofo — e talvez o único genuíno — da nossa geração. Quando se dá a conhecer publicamente, quer por escrito ou nas salas de conferência, atrai a atenção de toda a Alemanha... O Dr. Marx (tal é o nome do meu ídolo) ainda é muito jovem — cerca de 24 anos no máximo. Vai dar o coup de grâce a religião medieval e à filosofia; combina a mais profunda seriedade filosófica com a ironia mais mordaz. Imagina Rousseau, Voltaire, Holbach, Lessing, Heine e Hegel fundidos numa só pessoa... Digo "fundidos", não justapostos —, e tens o Dr. Marx.»' Nessa altura, Marx teve o mesmo efeito sobre quase toda a gente que encontrou. Apesar dos homens do Clube dos Doutores de BerHm e do Círculo de Colónia serem oito ou dez anos mais velhos do que ele, a maior parte tratava-o com imenso respeito. Quando Friedrich Engels chegou a Berlim para fazer o serviço militar poucos meses depois de Marx ter partido, descobriu que o jovem renano já era uma lenda. Um poema escrito por Engels em 1842 conta com uma viva descrição do seu futuro colaborador — que ele ainda não conhecia —, baseada inteiramente nas recordações admirativas dos seus companheiros intelectuais: Quem enfrenta tudo com feroz impetuosidade? «Um tipo trigueiro de Trier, uma reconhecida monstruosidade. Não desliza nem dá pulinhos, mas move-se aos saltos. Divagando aos brados. Como se fosse agarrar e puxar a imensa tenda do Céu cá para baixo. Abre os braços e estende-os para o céu. Abana o punho violento, delira freneticamente como se dez mil diabos o agarrassem pelos cabeios'.»^*^ Era, de facto, moreno (daí ser alcunhado Mouro) e a sua pele escura era realçada pelo espesso cabelo preto que parecia crescer de quase todos os poros das faces, braços, orelhas e nariz.

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É fácil deixar escapar o óbvio e talvez seja por isso que tão poucos autores que escreveram sobre Marx repararam no que estava à vista": ele era, tal como Esaú, um homem peludo. No entanto, na recordação de todos qtie o conheceram, o efeito impressionante dessa juba magnífica é repetidas vezes mencionado. Eis a opinião de Gustav Mevissen, um homem de negócios de Colónia, em 1842: «Karl Marx, de Trier, era um homem corpulento de 24 anos, cujo espesso cabelo preto jorrava das faces, dos braços, do nariz e das orelhas. Era apaixonado, dominador, impetuoso, e a confiança que tinha em si mesmo era ilimitada...» E o poeta George Herwegh, que veio a conhecer Marx em Paris, disse: «Cabelo preto luxuriante ocultava-Ihe a testa. Poderia desempenhar soberbamente o papel do último dos escolásticos.» Pavel Annenkov, que encontrou Marx em 1846: «A sua aparência era notável. Tinha uma cabeleira muito preta e mãos peludas... parecia um homem com o direito e o poder de impor respeito.» Friedrich Lessner: «Tinha uma fronte alta muito bem desenhada, o cabelo espesso e preto de azeviche... Marx era um líder nato.» Cari Schurz: «Homem um pouco corpulento de testa ampla, cabelo muito preto e olhos escuros cintilantes que atraía imediatamente a atenção. Tinha a reputação de ser muito letrado...» Wilhelm Liebknecht, ao escrever em 1896, ainda tremia ao lembrar-se do momento em que, 50 anos antes, tinha «enfrentado o olhar daquela cabeça leonina de juba negra». Esta exuberância de aparência negligente era deliberadamente estudada. Tanto Marx como Engels compreenderam o poder do aspecto hirsuto, conforme provaram num aparte sarcástico a meio de um panfleto sobre o poeta e crítico Gottfried Kinkel, escrito em 1852: «Londres proporcionou uma nova e complexa arena onde recebeu ainda mais aclamações ao homem venerado. Ele não hesitou: teria de ser o leão da temporada. Com isto em mente, absteve-se, durante certo tempo, de toda actividade política e retirou-se a fim de deixar crescer a barba sem a qual nenhum profeta é bem sucedido.»^^ Talvez pela mesma razão, Marx deixou crescer o cabelo e a barba na universidade e cultivou-os com orgulho ao longo da idade adulta até ficar tão lazudo como um rebanho de ovelhas. (Um espião prussiano em Londres, ao enviar um relatório em 1852 para os seus patrões em Berum, achou importante incluir que «ele nunca faz a barba».) Friedrich Engels também parece ter formulado uma teoria política quanto ao pêlo facial muito cedo. «Domingo passado tivemos uma noite bigo-

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deira», escreveu Engels, aos 19 anos, à irmã em Outubro de 1840. «Enviei uma circular a todos os jovens em idade de ter bigode dizendo-lhe que chegara finalmente a altura de horrorizar osfiHsteuse que nada seria melhor do que usar bigode. Por conseguinte, todos aqueles que tinham coragem para os desafiar e usar bigode deveriam assinar a petição. Recolhi uma dúzia de bigodes e, depois, fixámos o dia 25 de Outubro, quando os nossos bigodes já teriam um mês, para festejar o bigode comum.»^"* Esta festa pogonológica, ocorrida na adega da Câmara de Bremen, concluiu com um provocante brinde: «Os filisteus esquivam-se aos pêlos Escanhoando esmeradamente o rosto Não somos filisteus e, por conseguinte, Deixamos o bigode florir em liberdade.» Embora o bigode se espalhasse mais tarde pelo rosto, a barba rala de Engels não se comparava à magnífica plumagem marxista. A imagem de Karl Marx, que se tornou familiar através de numerosos cartazes, estandartes revolucionários, bustos heróicos — e a famosa lápida do cemitério de Highgate —, perderia muito da sua ressonância icónica sem aquela auréola frisada. Marx não era um grande orador — era ligeiramente cioso e o ríspido sotaque renano era muitas vezes incompreensível —, mas a mera presença deste javali de pelos eriçados era suficiente para inspirar respeito e intimidar. O historiador Karl Friedrich Koppen, um hahutué do Clube dos Doutores, ficava paralisado sempre que se encontrava na companhia de Marx. «Mais uma vez tenho pensamentos próprios», escreveu pouco depois do seu temível amigo ter partido de Berlim em 1841. «Ideias que (como se diz) produzi por mim próprio, enquanto as anteriores vinham de longe, nomeadamente de Schützenstrasse (onde Marx vivia). Agora, posso realmente trabalhar de novo e agrada-me caminhar por entre imbecis sem rne sentir um deles...» Após ter Hdo um artigo de Bruno Bauer sobre a política do Cristianismo, Koppen disse a Marx que «sujeitei a ideia a um interrogatório poHcial e pedi para ver o seu passaporte, e verifiquei, então, que também emanava de Schützenstrasse. Por isso, como vês, és um autêntico armazém de ideias, uma fábrica inteira ou (utilizando o calão de Berlim) tens o cérebro de um estudante marrão.» Quando Marx começou a trabalhar para o Rheinische Zeitung, os seus colegas notaram que a sua irrequieta impetuosidade intelectual também se

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manifestava através de uma distracção que o tornava simpático aos olhos dos outros. O jornalista Karl Heinzen adorava observar Marx sentado numa taberna a olhar miopiamente para um jornal enquanto tomava o café da manhã. «De repente levantava-se e, depois, sentava-se a outra mesa estendendo a mão para um jornal inexistente; ou, quando ia protestar ao censor o corte de um artigo e, em vez de mostrar o artigo em questão, tirava outro recorte ou um lenço e voltava a sair.»^^ Igualmente divertido para aqueles que tinham estômago forte, era o gosto de Marx por rebalderias e zaragatas. Heinzen descreve uma noite em que teve de conduzir Marx depois de terem bebido várias garrafas de vinho: «Assim que entrei, ele fechou a porta, escondeu a chave e começou a gritar cómicamente que eu era seu prisioneiro. Convidou-me a subir até ao seu gabinete e eu sentei-me num sofá para ver o que é que este excêntrico iria fazer. Esqueceu-se imediatamente de que eu estava ali. Encavalitou-se numa cadeira e pôs-se a cantarolar, num tom meio triste, meio trocista, em voz alta: «Pobre tenente, pobre tenente! Pobre tenente, pobre tenente!» Este lamento dizia respeito a um tenente prussiano que ele «corrompera», ensinando-lhe os princípios da filosofia hegeliana... Depois de lamentar o tenente durante um bocado, levantou-se e, de repente, deu-se conta de que eu estava na sala. Aproximou-se de mim, fez-me compreender que eu me encontrava em seu poder e, com atitudes que mais lembravam um miúdo travesso do que o diabo que ele tentava imitar, começou a atacar-me com ameaças e os punhos. Pedi-lhe para me poupar esse género de coisas, porque não tinha feitio para lhe pagar na mesma moeda. Mas ele insistiu e, então, eu preveni-o seriamente que lhe daria uma Hção que ele não esqueceria tão cedo. Como isso também não desse resultado, atingi-o de forma a ele estatelar-se a um canto da sala. Quando ele se levantou, disse-lhe que o achava um chato e pedi-Ihe para me abrir a porta. Foi a vez de ele se mostrar triunfante: «Então vai para casa, fortalhaço», troçou fazendo caretas cómicas. Era como se estivesse a recitar as palavras de Fausto, «Há alguém preso no interior...» O sentimento era, pelo menos, semelhante, mas a sua ridícula imitação de Mefistófeles tornava a situação muito cómica. Avisei-o, por fim, que se ele não me abrisse a porta, eu abri-la-ia sozinho e ele teria de pagar os estragos. Continuou a fazer troça e eu, então, desci e arrombei a porta..

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Gritei-lhe depois da rua para ele voltar a fechar a porta por causa dos ladrões. Espantado por eu ter escapado ao seu fascínio, ele veio debruçar-se à janela olhando para mim com os seus pequenos olhos arregalados como um fantasma assustado.» A continuação é previsível: anos mais tarde, Marx denunciou Heinzen acusando-o de ser um grosseiro filisteu («chato, bombástico, gabarolas»), e foi por sua vez apodado de «egoísta indigno de confiança» pelo seu temporário prisioneiro. Engels entrou, então, na liça, chamando Heinzen «a pessoa mais estúpida do século»^'' e ameaçando-o dar-lhe uma carga de pancada. Heinzen retorquiu que não se deixava intimidar por «um frívolo diletante». E assim por diante interminavelmente. Em 1860, depois de ter emigrado para os Estados Unidos, Heinzen ainda guardava rancor e descreveu Marx num artigo como sendo um cruzamento entre um gato e um macaco, um sofista, um mero diletante, um aldrabão e um intriguista, conhecido pela sua compleição amarelada, cabeio preto desgrenhado, olhos pequeninos possuído por «um espírito maligno», nariz arrebitado, beiço inferior invulgarmente grosso, uma cabeça que sugeria tudo menos idealismo ou nobreza e um. corpo sempre vestido com roupa suja. Marx foi com frequência acusado de ser um intimidador intelectual, em particular por aqueles que sentiram toda a força das suas invectivas. (Uma das suas tiradas contra Karl Heinzen, publicada em 1847, tem quase 30 páginas.) A sua violência verbal agradava-lhe certamente de sobremaneira. O seu estilo, como um amigo observava admirativamente, é o que o stilus— estilete de ponta afiado usado para escrever e espetar — era originalmente nas mãos dos Romanos. «O estilo é o punhal utilizada para ser lançado certeiramente ao coração.»" Heinzen achava que não era tanto um punhal como uma bateria de artilharia — lógica, dialéctica, erudita — para aniquuar quem quer que discordasse dele. Marx, dizia, queria «quebrar vidros de janelas a canhão». No entanto, a acusação de intimidador não pode ser sustida. Marx não era covarde e não atormentava apenas aqueles que não podiam retaliar: a sua escolha de vítimas revela uma temeridade corajosa, que explica o porquê de ele passar a maior parte da vida adulta no exílio e politicamente isolado. Para provar isto basta ver o primeiro artigo que escreveu para o Jiheinische Zeitung, em Maio de 1842, no qual comentou acerbamente os debates da Assembleia Provincial do Reno sobre liberdade de imprensa. É evidente que

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criticou a intolerância opressiva do absolutismo prussiano e os seus bajuladores, o que, apesar de não ser surpreendente, demonstrava bastante coragem. Mas, com um grito exasperado de «Deus e livre dos amigos!» mostrou-se ainda mais cáustico em relação à pobreza de espírito da oposição liberal. Enquanto os inimigos da liberdade de imprensa eram motivados por uma emoção patológica que dava convicção e sentimento aos seus argumentos absurdos, «os defensores da imprensa nesta Assembleia não têm, globalmente, nenhuma relação real com o que estão a defender. Nunca encararam a liberdade de imprensa como uma necessidade vital Para eles, trata-se de uma questão cerebral em que o coração não desempenha nenhum papel». Citando Goethe — que disse que um pintor pode apenas ser bem sucedido com um tipo de beleza feminina que tenha amado pelo menos em alguém —, Marx sugeriu que a liberdade de imprensa também tinha a sua beleza, a qual uma pessoa tem de amar para a defender. Mas os supostos liberais da Assembleia pareciam levar vidas repletas e satisfeitas, enquanto a imprensa estava acorrentada. Depois de ter criado inimigos tanto no Governo como na oposição, também em breve se virou contra os seus próprios confrades. Georg Jung, um conhecido advogado de Colónia ligado ao Kheinische Zeitung, considerou-o «o diabo de um revolucionário», e os jovens radicais da redacção ficaram muito esperançados quando Marx foi nomeado director, em Outubro de 1842. Mas iriam ficar desapontados. Marx expôs a sua poKtica editorial numa resposta 2JòA.ugshurgerAllgemeine Zeitung,x]}ie acusara o rival de namorar com o comunismo: «O Kheinische Zeitung, que nem sequer admite que as ideias comunistas, na sua presente forma, possuam realidade teórica e, por conseguinte, deseja ainda menos a sua concreti^çãoprática ou até mesmo a considera possível, sujeitará essas ideias a crítica minuciosa... Trabalhos como os de Leroux, Considérant e, acima de tudo, a obra contundente de Proudhon, não podem ser criticados superficialmente, mas apenas depois de longo e profundo estudo. 18 Não há dúvida de que ele tinha um olho no censor — e nos accionistas do jornal, todos capitalistas burgueses. Mas era exactamente isso que quería dizer. Marx não gostava da atitude de alguns colegas, como o bêbedo Rutenberg (que, embora o seu trabalho consistisse principalmente èm inserir sinais de pontaação, ainda lá trabalhava) e Moses Hess. E ainda se mostrava

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mais irritado pelas macaquices dos brincalhões dos Jovens Hegelianos em Berlim que agora se apelidavam «Os Livres» e faziam jus ao nome criticando Hvremente tudo — o Estado, a Igreja e a família —-, e advogavam ostensivamente a libertinagem como dever político. Considerava-os gente entediante e frívola que se autoproclamava. «Numa época em que se exige hombridade, seriedade e sobriedade para alcançar objectivos elevados, a canalhice e a indisciplina devem ser pública e resolutamente repudiadas», disse aos seus leitores. Mas havia uma certa hipocrisia nessa palavras: como os seus companheiros de Colónia poderiam testemunhar, ele nem sempre se portava de modo ordeiro, ou sóbrio; e a solene desaprovação de acções espaventosas vinda de um homem que, há bem pouco tempo, tinha atravessado ruidosamente as ruas de Bona montado num burro soava um pouco estranho. Mas a sua actual responsabilidade como director de um jornal tinha-o feito mudar de ideias: as tropelias juvenis já não erafn aceitáveis. A contrariedade mais persistente era Eduard Meyen, chefe da licenciosa clique de Berlim, que continuava a enviar «montes de escritos repletos de palavras de ordem para revolucionar o mundo e vazios de ideias». No decorrer da débil e indiscriminada intendência de Rutenberg, Meyen e o seu bando vieram a tomar o Kheinische Zeitung como seu território privado. Mas o novo director fê-los compreender que não permitiria que eles empapassem o jornal numa torrente de verborreia. «Considero inapropriado e até mesmo imoral passar clandestinamente doutrinas comunistas e socialistas, e, por conseguinte, uma nova perspectiva mundial, à sombra de críticas teatrais, etc.», escreveu. «Caso o comunismo venha a ser discutido, exijo que o seja de modo diferente e de forma mais pormenorizada.»^^ A capacidade de Marx para falar de comunismo era entravada pelo facto de ele nada saber do assunto. Os seus anos de estudo académico tinham-Ihe ensinado toda a filosofia, teologia e leis que ele viria provavelmente a necessitar, mas em termos de economia e poKtica, ele ainda era um novato. «Como director do Kheinische Zeitun§ rel="nofollow">, admitiu muitos anos mais tarde. «Experimentei pela primeira vez o embaraço de ter de participar em discussões sobre interesses materiais.»^*^ A sua primeira aventura a este território inexplorado foi uma longa crítica à nova lei contra o roubo de madeira nas florestas particulares. Segundo um costume antigo, os camponeses podiam apanhar ramos caídos para lenha, mas, agora, quem apanhasse o mais pequeno galho poderia ser preso.

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Ainda mais escandaloso era o facto de o ofensor ter de pagar o valor da madeira ao dono da floresta, cujo valor seria calculado pelo próprio proprietário. Tamanha desonestidade legaUzada obrigou Marx a reflectir, pela primeira vez, sobre a questão de classes, propriedade privada e o Estado. E também lhe permitiu exercitar o seu talento para demolir um argumento descabido com a sua própria lógica. Ao assinalar os comentários de um dos fidalgos imbecis na assembleia provincial — «É justamente por a pilhagem de madeira não ser considerado furto que acontece tantas vezes» — ele explodiu colericamente com um reductio ad absurdum característico. «Por analogia, o legislador deveria chegar à seguinte conclusão: é por um murro na cara não ser considerado crime que acontece com tanta frequência. Deve, por conseguinte, ser decretado que um murro na cara é um crime.»^' Isto pode não ser comunismo, mas era suficientemente grave para preocupar a Administração prussiana — especialmente porque a circulação e a reputação do jornal estavam a aumentar rapidamente. «Não imagines que nós, no Reno, vivemos num eldorado poKtico», escreveu Marx a Arnold Ruge, cujo Deutsche Jahrbücher uïûiz levado uma severa repreensão das autoridades de Dresden. «Para dirigir um jornal como o Rheinische Zeitung é necessário a mais inabalável persistência.»^^ Durante grande parte do ano de 1842, o censor instalado no jornal era Laurenz DoUeschaU, um poMcia estúpido que chegara a proibir um anúncio da Divina Comédia, de Dante, porque «o divino não podia ser tema de comédia». Todas as noites, ao receber todas as provas, ele marcava a lápis azul quaisquer artigos que não compreendia (a maior parte) e, consequentemente, o director tinha de passar horas a convencê-lo de que eram inofensivos — enquanto os tipógrafos esperavam até altas horas. Marx gostava de citar o angustiado lamento de DoUeschaU sempre que os seus superiores lhe ralhavam por ter deixado passar algum comentário maléfico: «A minha vida, agora, está em jogo!» Este pobre funcionário é quase digno de simpatia, pois qualquer censor suficientemente azarento para ter de discutir com Karl Marx todos os dias deveria sentir-se muito infeliz. Uma história contada pelo jornaUsta de esquerda, Wilhelm Bios, demonstra o que DoUeschaU tinha de aguentar: «Certa noite, o censor foi convidado, juntamente com a mulher e a filha casadoura, para um grande baile dado pelo presidente da província. Antes de sair do emprego, contudo, rinha de terminar o trabalho de censura e, justamente nesse dia, as provas não chegaram à hora do costume.

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O censor fartou~se de esperar. Não podia desleixar os seus deveres, mas, ao mesmo tempo, também não podia deixar de comparecer no baile — além das possibilidades que isso traria à filha núbil. Eram quase dez horas e o censor estava a começar a ficar extremamente agitado. Por fim, enviou a mulher e a filha à frente e mandou um subalterno buscar as provas. Mas este voltou passado pouco tempo dizendo que a tipografia estava fechada. Espantado, o censor dirigiu-se de carruagem a casa de Marx, a qual ficava bastante longe. Já eram onze horas. Depois do funcionário bater à porta durante largo tempo, Marx apareceu finalmente à janela de um terceiro andar. — As provas! — berrou o censor. — Não há nenhumas! — gritou-lhe Marx — Mas... — O jornal não sai amanhã! E Marx fechou-lhe a janela na cara. A furia do censor enganado quase o fez engasgar, mas, a partir daquele momento, mostrou-se mais delicado.»^^

Os seus patrões, contudo, não mudaram de modos e, em Novembro, o governador provincial que deu o baile, OherpräsidentNovL Schaper, queixou-se de que o jornal estava «a ficar cada vez mais impudente», e exigiu que Rutenberg (o qual ele erroneamente assumiu ser o culpado) fosse demitido da redacção. Como, de qualquer modo, Rutenberg era um peso morto, isso não foi um grande sacrifício, e Marx redigiu uma servil carta assegurando Sua Excelência, que o Rheinische Zeitung àe.?,é]'àY'à unicamente fazer eco «dos vo tos que, no momento actual, toda a Alemanha envia a Sua Majestade, o Rei, pela sua carreira ascendente». Como Franz comentou anos mais tarde, a carta revelava «uma prudência diplomática que nunca mais foi repetida na vida do seu autor». Mas não apaziguou Herr Oberpräsident t, em meados de Dezembro, ele recomendou aos ministros da censura em Berlim que processassem o jornal — bem como o anónimo autor do artigo sobre a apanha de madeira — «por impudência e desrespeito às presentes instituições governamentais». A 21 de Janeiro de 1843, um mensageiro a cavalo chegou de Berlim com um decreto ministerial revogando a licença de publicação do Kheinische Zeitung com efeito a partir do fim de Março. Os fiéis leitores de toda a Renânia — de Colónia, Düsseldorf, Aachen e Trier, a cidade natal de Marx — enviaram petições ao rei suplicando a sua anulação, mas sem resultado. Um segundo

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censor foi instalado para impedir quaisquer actividades nefastas no decorrer das semanas finais. «O nosso jornal tem de ser apresentado à poiïcia para ser farejado», resmungou Marx a um amigo. «E se o nariz da poKcia cheirar algo pouco cristão, ou antiprussiano, a sua publicação é proibida.»^'* Como nenhuma justificação foi dada por aquela atitude governamental, Marx só podia fazer especulações. Tinham as autoridades entrado em pânico ao se darem conta da popularidade crescente do jornal? Fora ele demasiado franco quando tomara a defesa de outras vítimas da censura, como no caso do Deutsche Jahrbücher, de Ruge? O motivo mais provável, raciocinou, era um longo artigo publicado uma semana antes do decreto em que ele tinha acusado as autoridades de ignorar a miserável situação económica dos produtores de vinho de Moselle, os quais não podiam competir com os vinhos baratos e isentos de impostos que a Prússia importava de outros estados alemães. Marx estava longe de realizar — embora talvez ficasse satisfeito por o saber — que havia interesses bem mais fortes a ser tramados nos bastidores. Quem pedira ao rei da Prússia para suprimir o jornal fora nada menos do que o czar da Rússia, Nicolau I, o seu mais próximo e necessário aliado, que tinha ficado ofendido por uma diatribe anti-russa publicada no Kheinishe Zeitung, a 4 de Janeiro. N u m bane ocorrido no Palácio de Inverno quatro dias mais tarde, o embaixador da Prússia na corte de Sampetersburgo tinha sido repreendido pelo czar por causa da «infâmia» da imprensa liberal alemã. O embaixador enviou uma mensagem urgente a Berlim, informando que os Russos não podiam compreender «como um censor empregado pelo Governo de Sua Majestade podia ter deixado passar u m artigo de tal natureza». E foi tudo. «Hoje, os ventos mudaram», escreveu um censor do Rheinische Zeitungnva dia depois de Marx ter desocupado a cadeira de director. «Estou bem contente.» O próprio Marx também ficou bastante satisfeito. «Estava a começar a sentir-me asfixiado naquela atmosfera», confiou a Ruge. «É mau ter de executar tarefas servis mesmo quando são por amor à liberdade; combater com alfinetes em vez de varapaus. Estou cansado da hipocrisia, da estupidez, da arbitrariedade grosseira e dos nossos salamaleques, artimanhas e truques por causa de palavras. O Governo devolveu-me a liberdade.»^^ N ã o tinha futuro na Alemanha, mas como a maior parte das pessoas e das instituições que ele gostava estava agora morta — o pai, o barão Von Westphalen, o Deutsche Jahrbücher, o Rheinische Zeitung— não havia nada que o prendesse. O que importava era que, aos 24 anos, ele já soubesse manejar uma caneta que podia aterrorizar as cabeças coroadas da Europa. Quando

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Arnold Ruge decidiu abandonar o país e fundar um jornal no exilio, o Deutsche-Fran^öskhe Jahrbücher, Marx aceitou alegremente o convite de se juntar a ele. Havia apenas um senão: «Estou comprometido e não posso, não devo nem deixarei a Alemanha sem a minha noiva.» Sete anos depois de prometer casar-se com Jenny, até mesmo o pouco sensível Karl Marx estava a começar a sentir punhaladas de culpa. «Por minha causa», admitiu em Março de 1843, «a minha noiva tem combatido as mais violentas batalhas que quase minaram a sua saúde. E m parte contra os seus piosos parentes aristocratas para quem "o Senhor nos Céus" ou "o senhor em Berlim" são igualmente objecto de um culto religioso, e, por outra parte, contra a minha própria família, no seio da qual alguns padres e outros inimigos meus se instalaram. Durante anos, portanto, a minha noiva e eu temos estado implicados em conflitos mais desnecessários e cansativos do que muita gente que é três vezes mais velha do que nós.»'^'' Mas nem todas as aflições e tormentos deste longo noivado podiam ser culpa dos outros. Enquanto Karl se divertia em Berlim ou provocava sarilhos em Colónia, Jenny permanecia em casa, em Trier, perguntando-se se ele ainda a amaria no dia seguinte. As vezes, essas ansiedades eram visíveis nas suas cartas — as quais eram seguidamente interpretadas por Marx como prova da inconstância dela. «Fiquei abalada pelas tuas dúvidas do meu amor e fidelidade», queixava-se Jenny em 1839 — «Oh, Karl, como tu me conheces pouco, como pouco aprecias a minha posição e como desconheces o meu pesar... Se pudesses, pelo menos, ser rapariga por um bocadinho e, sobretudo, uma rapariga tão estranha como eu.» Com as raparigas, conforme ela tentava explicar, era diferente. Condenadas à passividade pelo pecado original de Eva, podiam apenas esperar, sofrer e resistir. «Uma rapariga, claro está, só pode dar ao homem amor, ela própria e a sua pessoa, como ela é, toda inteira e para sempre. E m circunstâncias normais, uma rapariga tem igualmente de encontrar completa satisfação no amor do homem e esquecer tudo em amor.» Mas como pode ela esquecer-se de tudo quando premonições de desgraça zumbem dentro da sua cabeça como abelhas furiosas?
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Para dÍ2er a verdade, a actividade poKtica dele era a menor das preocupações de Jenny: era certamente perigoso, mas também arrepiantemente heróico. N ã o esperava nada menos do seu «selvagem javali preto», o seu «tratante manhoso». O que retinha Jenny de se render à felicidade era o receio do «teu amor ardente cessar». Havia bons motivos para essas inquietações. Enquanto estudava em Berlim, Karl caiu sob o encanto da famosa poetisa romântica Bettina von Arnim — que tinha idade para ser mãe dele — e, numa ocasião, com obtusa insensibilidade, chegou mesmo a levá-la a Trier para conhecer a sua futura noiva. A amiga de Jenny, Betty Lucas, testemunhou esse despropositado encontro: «Uma noite, entrei na sala de Jenny sem bater e vi um pequeno vulto na semiobscuridade agachado no sofá com os pés no ar e os braços à volta dos joelhos, que mais parecia uma trouxa do que uma figura humana. Ainda hoje, dez anos mais tarde, compreendo o meu desapontamento quando essa criatura se levantou e m e foi apresentada c o m o sendo Bettina von Arnim... As únicas palavras que a sua celebrada boca proferiu foram queixas contra o calor. A seguir, Marx entrou na sala e ela pediu-lhe em tom autoritário que a acompanhasse ao Rheingrafenstein, o que ele fez, embora já fossem nove horas e levasse uma hora para lá chegar. Lançou um olhar triste à noiva e seguiu a famosa mulher.»^^ Como podia uma rapariga pouco culta competir com tais serias? O vigor intelectual de Marx intimidava Jenny. E r a espirituosa, animada e supremamente segura quando conversava com aristocratas medíocres nos bailes, mas, na presença do seu adorado, bastava um olhar daqueles olhos negros e profundos para ela ficar sem saber o que dizer: «De nervoso, não consigo dizer palavra. O sangue gela-me nas veias e a minha alma treme.» Quase não vale a pena acrescentar que Jenny era uma criança da Idade Romântica e, como muitos espíritos irrequietos dessa geração, tinha lido e relido o Prometeu Ubertado, de SheMey, cujo herói estava preso com correntes a uma rocha por desafiar os deuses e tentar esclarecer a humanidade. («Prometeu é o santo e mártir mais eminente do calendário filosófico», declarou Marx na sua tese de doutoramento. Uma caricatura publicada depois da supressão do Rheinische Zeitung representava Marx disfarçado de Prometeu agrilhoado a uma prensa de impressão, enquanto uma águia prussiana lhe bicava o fígado.) Incapaz de acompanhar as impetuosas passadas de Karl, Jenny começou a sonhar que também ele teria de ser manietado:

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«Assim, meu querido, desde a tua última carta que me torturo com o receio de que, por minha causa, tu te envolvas numa disputa e, depois, num duelo. Vejo-te, dia e noite, ferido, a sangrar e doente. Para te dizer toda a verdade, Karl, tal ideia não me tornava totalmente infeliz pois ?:•• imaginava vivamente que tinhas perdido a mão direita e isso punha-me •> num estado de êxtase, de felicidade suprema. Pensei então, meu queri•f do, que, nesse caso, eu me tornaria realmente indispensável para ti, que . ! me guardarias sempre ao teu lado e me amarias. Também pensei que seria eu então que assentaria todas as tuas preciosas e sublimes ideias e que te seria realmente útil.»""'' Apesar de ela concordar que isto talvez parecesse «bizarro», trata-se de uma fantasia romântica bastante comum — o herói que tem de ficar aleijado, ou ser emasculado, para ganhar o coração de uma mulher. Anos mais tarde, Charlotte Bronte utilizou a mesma ideia em Jane Eyre. O desejo de Jenny foi, mais ou menos, concedido. N o decorrer dos seus 40 anos de casamento, Marx esteve frequentemente «a sangrar e doente^>; e, como os seus gatafunhos eram indecifráveis, dependia dela para transcrever as suas preciosas e sublimes ideias. O êxtase revelou-se, contudo, mais inacessível na vida real do que nos sonhos estonteantes de Jenny. Meio Prometeu, meio Sr. Rochester: se era assim que a sua adorada noiva o via, pode-se imaginar a atitude dela em relações mais convencionais. Casar com um judeu já era por si bastante chocante, mas casar com um judeu sem dinheiro nem emprego era intolerável. O seu reaccionário meio-irmão, Ferdinand, o chefe da família desde a morte do pai, fez tudo para impedir a união, prevenindo-a de que Marx era um vadio que traria desgraça a toda a tribo dos Von Westphalen. Para escapar aos constantes mexericos e intimidações, Jenny e a mãe — a qual, embora de forma ansiosa, lealmente a apoiou — fugiram de Trier e instalaram-se em Kreuznach, elegante cidade termal a 80 quilómetros de distância. Foi aí, às 10 da manhã do dia 19 de Junho de 1843, que Herr Marx, de 25 anos e doutorado em filosofia, se casou com Frau/em Johanna Bertha Juüa Jenny Von Westphalen, de 29 anos e «sem nenhuma ocupação particular». O s únicos convidados foram o chanfrado irmão de Jenny, Edgar, a mãe dela e alguns amigos locais. N e n h u m a das relações de Karl assistiu ao casamento. A noiva ostentava um vestido verde de seda e uma grinalda de rosas carmim. O presente de casamento da mãe de Jenny foi uma colecção de jóias e uma bandeja de prata com o brasão da

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família Argyll, herança dos antepassados escoceses dos Von Westphalen. A baronesa ofereceu-lhe igualmente uma grande caixa com dinheiro para os ajudar durante os primeiros meses de vida marital, mas, infelizmente, os recém-casados levaram este tesouro com eles numa viagem de núpcias pelo Reno fora e encorajaram todos os amigos indigentes que iam encontrando pelo caminho a servir-se. O dinheiro volatilizou-se numa semana. Uns dias antes do casamento e a insistência de Jenny, Karl assinou um contrato invulgar que estipulava «legal propriedade comum de bens», mas que «cada cônjuge pagaria a sua parte das dívidas que ele, ou ela, contraísse, herdasse ou tivesse incorrido antes do casamento». Deve-se assumir que isto era uma tentativa para apaziguar a mãe de Jenny que estava a par da situação financeira de Marx. Mas o contrato nunca foi aplicado, muito embora, dali em diante, Karl andasse quase sempre endividado. No anos seguintes, a bandeja de prata dos Argyll passou mais tempo nas casas de prego do que no armário da cozitiha. Nesse Verão pós-nupcial de 1843, o Sr. e a Sra. Karl Marx puderam viver quase sem vintém como convidados na casa da baronesa, em Kreuznach, enquanto aguardavam notícias de Ruge sobre quando — e onde — o seu novo jornal seria fundado. Era um pequeno interludio idílico. Ao fim da tarde, Jenny e Karl davam um passeio até ao rio para ouvir os rouxinóis cantar nos bosques da outra margem. De dia, o eleito director do Deutsche-Franiiösische Jahrbücher teút?cv2i-^çi para o seu gabinete onde lia e escrevia co intensidade furiosa. Marx sempre gostou de pôr as suas ideias em ordem numa folha de papel, anotando pensamentos à medida que lhe vinham à cabeça. Uma página do seu caderno de apontamentos em Kreuznach que sobreviveu exemplifica o seu método: «Nota. Sob Luís XVIII, a constituição graças ao rei (Carta imposta pelo rei); sob Luís Filipe, o rei graças à constituição (realeza imposta). Podemos notar, em geral, que a conversão do sujeito em predicado, e do predicado em sujeito, a troca do que determina pelo que é determinado, é sempre a revolução mais imediata. E não apenas no lado revolucionário. O rei faz a lei (monarquia antiga), a lei faz o rei (nova monarquia).» Quando Marx começava com este género de coisas, brincando com as suas adoradas contradições, não havia meio de o parar. Esta simples inversão gramatical, que transformava velhos monarcas em novos, não poderia

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também expHcar por que a filosofia alemã tinha falhado? Hegel, por exemplo, assumira que «a Ideia do Estado» era o sujeito e a sociedade o predicado, enquanto a história mostrava que era o inverso. Nada havia de errado em Hegel que não tivesse solução virando-o de cabeça para baixo: a religião não faz o homem, o homem é que faz a religião; a constituição não cria o povo, mas o povo cria a constituição. Tudo fazia sentido, às avessas. A honra desta descoberta pertence ao filósofo alemão Ludwig Feuerbach, cuja Tese Introdutória à Keforma da Filosofiatinhasido publicada em Março d 1848. «Ser é sujeito; o pensamento, predicado», afirmou. «O pensamento provém do ser e não o ser do pensamento.» Marx foi muito mais longe, estendendo esta lógica da filosofia abstracta ao mundo real — acima de tudo, o mundo da política, o Estado e a sociedade. Feuerbach, antigo discípulo de Hegel, já tinha percorrido uma grande distância a partir do ideaKsmo do seu mentor na direcção do materialismo (o seu mais memorável aforismo, o qual ainda se encontra em dicionários de citações, era: «O homem é o que come»); mas tratava-se de um materialismo deliberadamente cerebral sem relação com as condições económicas e sociais da sua época ou lugar. A incursão de Marx no jornalismo tinha-o convencido de que os filósofos radicais não deviam passar a vida no alto de uma coluna como os antigos anacoretas gregos; tinham de descer e participar no momento presente. Feuerbach foi um dos primeiros escritores a quem Marx soKcitou a colaboração para o Deutsche-Frantiösische Jahrbücher ?L'&sim que soube que a publicação estava assegurada. A 3 de Outubro de 1843, mesmo antes de partir para se juntar a Ruge em Paris, escreveu-lhe para sugerir um artigo demolidor contra o filósofo da corte prussiana, F. W von Schelüng, o seu velho antagonista da Universidade de Berlim. «Toda a poKcia alemã se encontra à disposição dele, como eu mesmo tive a experiência quando era director do Kheinische Zeitung. Quer dizer, uma ordem da censura pode impedir que o que quer que seja escrito contra o sagrado ScheUing passe... Mas imagine ScheUing exposto em Paris, perante o mundo Hterário francês!... Aguardo confiantemente a sua contribuição na forma que achar mais conveniente.»^'' E, como isca suplementar, acrescentou um descarado P. S.: «Embora não o conheça, a minha mulher envia-lhe cumprimentos. Nem calcula a quantidade de admiradoras que tem.» Feuerbach não se deixou seduzir e respondeu que, na sua opinião, seria imprudente passar da teoria à prática sem a teoria ter sido aperfeiçoada. Marx, em contrapartida, achava que as duas eram — ou deviam ser —

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inseparáveis, hpraxis torna perfeito e «crítica impiedosa de tudo o que existe» era a prática mais necessária dos filósofos dessa época. Feuerbach inspirara a crítica de Hegel e, agora, o próprio Feuerbach, depois de alcançar o seu objectivo, deveria esperar ser, por sua vez, criticado — sobretodo emyís Teses de Feuerbach, escrito na Primavera de 1845 e que terminava com o mais sucinto resumo quanto à diferença entre anacoretas e activistas: «Os filósofos apenas interpretaram o mundo de várias maneiras; mas a finalidade é mudá-lo.» Ao contrário da maior parte dos pensadores que Marx mastigou e cuspiu, Feuerbach obteve a sua eterna gratidão. «Agrada-me ter a oportunidade de lhe manifestar o meu mais profundo respeito — caso possa empregar esta palavra — e estima», escreveu a Feuerbach em 1844. «Proporcionou-me — não sei se intencionalmente — uma base filosófico para o socialismo... A unidade entre os homens, a qual se baseia nas suas diferenças reais, e a ideia da espécie humana trazida do céu da abstracção para a terra entre eles, nada mais são do que o conceito de sociedadeb?^ Nas última semanas passadas em Kreuznach, Marx compôs dois importantes ensaios que viriam a ser publicados no Deutsche-Yran^sischeJahrbücher. O primeiro. Sobre Questão Judaica, é normalmente apenas mencionado en passant, ou escamoteado, nas hagiografias marxistas, mas tem dado muitas munições aos seus inimigos. Era Marx um judeu que detestava a sua raça? Embora nunca tivesse negado as suas origens judaicas, também nunca chamou a atenção para esse facto — ao contrário da filha, Eleanor, que orgulhosamente disse a um grupo de operários do East E n d de Londres que era «judia». N o s últimos anos de correspondência com Engels, ele pulverizou prazenteiramente os inimigos com insultos anti-semitas: o socialista alemão Ferdinand LasaUe, vítima frequente, foi várias vezes descrito como semítico, safardana e preto judeu. «Parece-me agora bastante claro — como o feitio da cabeça dele e a maneira do cabelo crescer o provam — que ele descende dos negros que fugiram com Moisés do Egipto ou, então, a mãe ou a avó do lado paterno tiveram relações com pretos», escreveu Marx em 1862, ao debater o sempiterno tema dos antepassados de LasaUe, «Por um lado essa mistura de sangue alemão e judeu e, por outro, a origem negroide devem inevitavelmente produzir uma coisa bizarra. A importunidade deste tipo também é muito à preto.»^^ Certas passagens de Sobre a Questão Judaica têm igualmente u m sabor a ranço, como se tivesse sido tiradas fora de contexto — o que, habitualmente, assim acontece.

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«Qual é a base secular do Judaísmo? Necessidade prática, interesses pessoais. Qual é o culto secular do Judeu? Regatear. Qual é o seu Deus secular? O dinheiro... Por conseguinte, reconhecemos no Judaísmo a presença de um elemento anti-social contemporâneo e imiversal, cuja evolução histórica — avidamente alimentada pelos Judeus nos seus aspectos nocivos — alcançou actualmente o ponto mais alto, o qual há-de inevitavelmente desintegrar-se. A emancipação dos Judeus é, em última análise, a emancipação da humanidade do Judaísmo.»^^ , ,

O s críticos que vêem nisto u m prenúncio de Men Kempfàeï^âm. escapar um ponto essencial: apesar da desajeitada fraseologia e da grosseira estereotipagem, o ensaio fm na verdade escrito para defender os Judeus. Era uma réplica a Bruno Bauer, que tinha argumentado que não deveriam ser concedidos direitos civis nem liberdade aos Judeus a não ser que eles se convertessem ao Cristianismo. Embora (ou, talvez, porque) Baur fosse um ostensivo ateu, achava o Cristianismo uma forma mais avançada de civilização do que o Judaísmo e, por conseguinte, mais próximo da libertação que se seguiria à inevitável destruição de todas as religiões — assim c o m o u m coveiro pode considerar uma viúva senil potencialmente mais promissora como cliente do que uma miss Primavera local. Este perversa justificação do fanatismo oficial, que aUou Bauer aos papalvos mais reaccionários da Prússia, foi demolida com brutalidade característica. É verdade que Marx parecia aceitar que os Judeus fossem caricaturados como usurários inveterados — mas, quanto a isso, quase toda a gente estava de acordo. (A palavra A&cvãijudentum era, regra geral, usada nessa época como sinónimo de «comércio»). E, ainda mais significativamente, ele não os acusava nem censurava: na medida em que estavam proibidos de pertencer a instituições poKticas, era de admirar que exercessem a única actividade que lhes era permitida, a de ganhar dinheiro? Tanto o dinheiro como a religião alienavam a humanidade e, assim, «a emancipação dos Judeus é, em última análise, a emancipação da humanidade do Judaísmo». D o Judaísmo, note-se, não dos Judeus. E m última análise, a humanidade tem de se libertar da tirania de todas as religiões, o Cristianismo incluído.

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mas, entretanto, era absurdo e cruel recusar aos Judeus o mesmo estatuto que a qualquer outro cidadão. O compromisso de Marx em relação a direitos iguais é confirmado por uma carta que enviou de Colónia, em Março de 1843, a Arnold Ruge:
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Muito eloquente. Mas, noutras passagens do ensaio, a sua facilidade verbal degenera, de quando em quando, em meros jogos de palavras — ou, para ser franco, em puro exibicionismo. Eis o que diz sobre Lutero e a Reforma alemã: «Destruiu a fé na autoridade restaurando a autoridade da fé. Transformou os padres em leigos, transformando os leigos em padres. Libertou a humanidade da religiosidade externa tornando a religiosidade o homem interior. Libertou o corpo das correntes, mas aprisionou o coração.» Ou sobre a diferença entre a França e a Alemanha: «Na França, basta ser algo para querer ser tudo. Na Alemanha, ninguém pode ser nada a não se renuncie a tudo. Na França, a emancipação parcial é a base da emancipação universal. Na Alemanha, a emancipação universal é a condição sine qua non da emancipação parcial.» Após uns parágrafos deste flamejar pirotécnica, suspeita-se que a própria exposição se tornou um fim em vez de um meio. No entanto, não aceitar os excessos estiKsticos de Marx é ignorar o seu objectivo. Os seus vícios são também as suas virtudes, manifestações de uma mente viciada em paradoxos e transposições, antíteses e quiasmos. Por vezes, este zelo dialéctico produzia uma retórica vazia, mas levava, com maior frequência, a originais e surpreendentes critérios. Não tomava nada por certo e virava tudo do avesso — incluindo a própria sociedade. Como é que os poderosos poderiam ser derrotados e os humildes exaltados? Na crítica a Hegel, expôs a sua solução pela primeira vez: o que se requeria era «uma classe com cadeias radicais, uma classe de sociedade civil que não é uma classe de sociedade civil; uma classe que é a dissolução de todas as classes... Esta dissolução da sociedade como uma classe particular é o proletariado». Esta última palavra ressoa como o ribombar de um trovão sobre uma paisagem desolada. Pouco importava que nem a Alemanha nem a França ainda não tivessem um proletariado digno desse nome: a tempestade vinha a caminho. A teoria da luta de classes de Marx viria a ser aperfeiçoada e embelezada nos próximos anos — de forma mais memorável no Manifesto Comunista —, mas a sua configuração já era suficientemente clara: «Todas as classes, logo

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que se batem contra a classe acima, envolvem-se em luta com a classe abaixo. Assim, os príncipes lutam contra reis, os burocratas contra os aristocratas e a burguesia contra todos eles, enquanto o proletariado já está a começar o seu combate contra a burguesia.» Por conseguinte, o papel do emancipador passa de uma classe à seguinte até a libertação universal ser finalmente alcançada. Na França, a burguesia já derrubara a nobreza e o clero, e outra revolução parecia iminente. Até mesmo na imperturbável Prússia, o Governo medieval não podia prolongar indefinidamente o seu reino. Com uma estocada de despedida à eficiência teutónica — «Não pode haver uma revolução na Alemanha, a qual é conhecida pela sua meticulosidade, a não ser que seja meticulosa» — partiu para Paris. Era, sentia, o único lugar para estar nesta época. «Quando todas as condições internas forem satisfeitas, a ressurreição da Alemanha será anunciada pelo canto do galo gaulês.»

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«E, assim — rumo a Paris, para a velha universidade e a nova capital do mundo novo!», escreveu Marx a Ruge em Setembro de 1843. «Quer o empreendimento se concretize ou não, estarei de todos os modos em Paris no fim deste mês, pois o ambiente, aqui, transforma-nos em servos e não vejo nenhuma possibilidade na Alemanha de exercer uma actividade livre.» As revoluções de 1789 e de 1830 tinham tornado a capital francesa um local de encontro natural. Era uma cidade de conspiradores e panfletários, de seitas e sociedades secretas — «o centro nervoso da historia europeia que, enviando choques eléctricos a intervalos regulares, galvanizava o mundo inteiro». Todos os mais conhecidos pensadores políticos da época eram franceses: o místico socialista cristão Pierre Leroux, os comunistas utópicos Victor Considérant e Etienne Cabet, o orador e poeta liberal Alphonse de Lamartine (ou, chamando-o pelo seu glorioso nome completo, Alphonse Marie Louis de Prat de Lamartine). Acima de todos estes, havia Pierre Joseph Proudhon, anarquista Kbertário, que tinha ganho imediata celebridade em 1840 com o seu Hvro O que E a Propriedade? — pergunta a que respondeu na primeira página com a simples fórmula, «a propriedade é roubo». Todos estes picadores poKticos acabariam por ser desventrados e atirado para um canto por Karl Marx — sobretudo Proudhon, cujo magnum opus sobre «a filosofia da pobreza» provocou a duacerante resposta de Marx,^ Pobreza da Filosofia. De momento, contudo, o recém-chegado contentava-se em escutar e aprender. Tocava-se música nos cafés à noite e a revolução pairava no ar. Com a «monarquia burguesa» de Luís Filipe a titubear, outro acontecimento de alta voltagem parecia inevitável e iminente.
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era amplamente demonstrada pelas inúmeras tentativas de assassinar aquele príncipe autocrático e dinástico», informou Ruge. «Um dia em que ele passou por mim nos Champs-Elysées, bem escondido na sua carruagem, rodeado de hussardos, observei com espanto que eles não ostentavam as armas no estilo burlesco do costume, mas que as tinham engatilhadas e prontas a disparar. O rei passeava-se com má consciência!»^ Ruge, Marx e o poeta George Herwegh — o triunvirato da direcção do Deutsche-Fran^sischeJahrbücher— chegaram a Paris no Outono de 1843. Ruge veio de Dresden num «grande veículo» acompanhado pela mulher, um enxame de crianças e uma enorme perna de vitela. Inspirando-se no utópico Charles Fourier, propôs que os três casais deveriam formar uma comuna na qual as mulheres fariam turnos para ir às compras, cozinhar e coser. «Frau Herwegh deu-se imediatamente conta da situação», recordou o filho, Marcel, muitos anos depois. «Como podia Frau Ruge, pequenina mulher saxónica, entender-se com a extremamente inteligente e ainda mais ambiciosa Frau Marx, cuja cultura era muito superior à dela? Como podia Frau Herwegh, que tinha casado há muito p o u c o t e m p o e era a mais nova, sentir qualquer atracção por esta vida comunitária?»^ George e Emma Herwegh apreciavam o luxo — e, como o pai dela era um rico banqueiro, possuíam os meios para o desfrutar. Declinaram, por conseguinte, o convite de Ruge, mas Karl e Jenny (que estava grávida de quatro meses) decidiram experimentar. Mudaram para o apartamento dos Ruge na Rue Vanneau, 23, ao lado dos escritórios diO Jahrbücher. A experiência em comunismo patriarcal durou cerca de 15 dias e os Marx foram instalar-se um pouco mais abaixo na mesma rua. Ruge era um homem caseiro, empertigado e puritano que não podia tolerar a desorganização e hábitos impulsivos do seu co-director; Marx, queixava-se, «não termina nada, interrompe tudo, e mergulha de novo num infinito mar de livros... Adoeceu de tanto trabalhar e não se deitou durante quatro, cinco noites a fio.. .»~^ Chocado por esses «loucos métodos de trabalho», os lazeres e diversões de Marx também o escandalizaram. «A mulher ofereceu-lhe no dia de aniversário um pingalim n o valor de cem francos», escreveu uns meses mais tarde. «Mas o pobre diabo não sabe montar nem tem cavalo. Quer possuir tudo o que vê — uma carruagem, roupas elegantes, um jardim com flores, m o bília nova, até mesmo a Lua.»'* Trata-se de uma lista de compras pouco plausível: Marx não se interessava por artigos luxuosos nem trapos. Se desejava tais coisas era sem dúvida por causa de Jenny. Os primeiros meses em Paris

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foram a única vez que, no decorrer da sua vida de casada, ela se pôde dar ao luxo de satisfazer o seu apetite, pois uma doação de mil táleres, enviada de Colónia por antigos accionistas do Kheinische 7.eitung,Y¿\.o aumentar o salario de Marx. Além disso, ele queria que ela desfrutasse aquela última oportunidade antes de ficar limitada pelas exigências da maternidade. A 1 de Maio de 1844, ela deu à luz uma menina, Jenny — mais conhecida pelo diminutivo/¿•««yf^é'« — , cujos olhos escuros e cabeleira preta lhe dava a aparência de um Karl em miniatura. Os pais noviços, embora babados, eram totalmente incompetentes e, em princípios de Junho, concordaram que o melhor seria que Jenny fosse com a filha passar vários meses com a baronesa Von Westphalen, em Trier, para aprender os rudimentos da maternidade. «A pobre bonequinha ficou bastante indisposta e doente depois da viagem», escreveu Jenny a Karl a 21 de Junho. «E veio a verificar-se que ela não só sofria de diarreia como também de sobrealimentação. Tivemos de chamar o porco gordo (Robert Schleicher, o médico da família), e a sua decisão foi que ela precisava de uma ama para a amamentar porque, com comida artificial, ela não consegue recuperar tão depressa. N ã o foi fácil salvá-la, mas, agora, já está quase fora de perigo.»^ A ama concordou vir para Paris com elas, mas, apesar da felicidade de Jenny («todo o meu ser exprime satisfação e ahunáânciaf rel="nofollow">), não conseguia livrar-se completamente dos seus antigos pressentimentos. «Meu mais que tudo, estou muito preocupada quanto ao nosso futuro... Acalma, se puderes, os meus anseios. Fala-se muito por todos os lados de um rendimento regular.» O rendimento regular foi uma das necessidades da vida que sempre escapou a Karl Marx. O seu trabalho em Paris, que parecia prometer segurança financeira, verificou-se ainda mais temporário do que o seu emprego anterior. Apenas um número do Deutsche-Fran^sischeJahrbücher íd\ pubHcado antes dos desentendimentos com Ruge se tornarem irreparáveis — e mal chegou a mostrar-se à altura da promessa do seu nome. Embora França tivesse bastantes escritores, nenhum quis contribuir e, para preencher essa lacuna, Marx incluiu os seus ensaios sobre a questão judaica e sobre Hegel, juntamente com uma versão adaptada da sua correspondência com Ruge ao longo do ano anterior. A única voz não alemã era a de um comunista anarquista russo, Michail Bakunine. «Marx estava, então, mais avançado do que eu», declarou. «Embora mais novo, já era ateu, materialista culto e consciente socialista... Tentei impacientemente convertê-lo, o que era sempre instrutivo e divertido quando

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não se inspirava em ódios mesquinhos, mas, infelizmente, isso acontecia muitas vezes. Nunca houve uma intimidade sincera entre nós — os nossos temperamentos não o permitiam. Ele chamava-me idealista sentimental, e tinha razão: eu dizia que ele era vaidoso, pérfido e tímido, e também tinha razão.»'' Apesar de todas as óbvias deficiências, o primeiro e último número do Jahrbücher teve. um colaborador de prestígio internacional — o poeta romântico Heinrich Heine, por quem Marx sentia veneração desde a infancia e de quem se tornou amigo pouco tempo depois de chegar a Paris. Heine era uma pessoa dolorosamente susceptível que desatava a chorar à mais pequena crítica, e Marx era um crítico impiedoso de formidável insensibilidade. Por uma vez, porém, conteve as suas tendências iconoclastas em deferência por u m genuíno herói da literatura. Heine tornou-se uma visita habitual n o apartamento dos Marx da Rue Vanneau e lia em voz alta as suas obras em curso pedindo a opinião do jovem director. N u m a ocasião, encontrou Karl e Jenny aflitos por causa da ^tc^crúrvà Jennychen que padecia de uma crise de cólicas e estava — ou pelo menos eles assim julgavam — às portas da morte. Heine ocupou-se imediatamente e ordenou que «a criança devia tomar um banho». E, assim, segundo a lenda da família Marx, a vida da criança foi salva. Heine não era comunista, pelo menos no sentido marxista da palavra. Costumava citar a história do rei da Babilónia que julgava ser Deus, mas veio a despenhar-se miseravelmente do alto das suas pretensões para acabar rastejando como u m animal no chão e a comer erva: «Esta parábola encontra-se no esplêndido e notável l^ivro de Daniel. Recomendo-o para a edificação do meu b o m amigo. Ruge, e também ao meu muito mais teimoso amigo Marx, assim como aos Srs. Feuerbach, Daumer, Bruno Bauer, Hengstenberg e os restantes pretensos deuses sem deus.» Heine contemplava a vitória do proletariado com apreensão, receando que a arte e a beleza não teriam lugar nesse mundo novo. «Os líderes mais ou menos clandestinos dos comunistas alemães são grandes lógicos e o melhor deles todos vem da escola hegeliana», escreveu em 1854 referindo-se a Marx. «Estes mestres da revolução e os seus implacavelmente determinados discípulos são os únicos alemãs com alguma vida e temo que o futuro lhes pertença.» Pouco depois da sua morte, em 1856, redigiu u m último testamento pedindo perdão a Deus caso tivesse escrito algo «imoral», mas Marx estava preparado para não ligar a essa recaída devota — facto que, noutra pessoa.

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teria provocado o seu mais feroz desprezo. Como Eleanor Marx escreveu: «Ele amava o poeta e a sua obra, e encarava a sua fraqueza política tão generosamente quanto lhe era possível. Os poetas, explicava, eram gente estranha e deviam ser autorizados a seguir o seu próprio caminho. Nunca deveriam ser avaliados pela mesma bitola que os homens vulgares ou até mesmo extraordinários.»^ O Jahrbücher pode ter sido um desastre financeiro, mas gozou de grande succès d'estime, e não só por causa das odes satíricas de Heinrich Heine sobre o rei Ludwig da Baviera. Centenas de números enviados para a Alemanha foram confiscados pela polícia, que fora avisada pelo Governo prussiano que o seu conteúdo era uma incitação á alta traição. Foi emitida uma ordem para prender imediatamente Marx, Ruge e Heine caso alguma vez tentassem regressar à pátria. Na Áustria, Metternich prometeu «severas sentenças» contra qualquer livreiro que fosse apanhado a vender esse «repugnante» jornal. Arnold Ruge assustou-se e deixou Marx em apuros ao suspender a publicação e não lhe pagando o ordenado prometido. Alguns historiadores pretendem que a discórdia não teria sido definitiva se «não tivessem havido outras diferenças de ordem pessoal, em particular sobre questões fundamentais de princípio que duravam há já bastante tempo»**. Mas a verdade é que a mais importante «questão fundamental de princípio» era uma ridícula querela sobre a vida sexual do seu colega, Georg Herwegh, que tinha atraiçoada a mulher e tinha um caso com a condessa Marie d'Agoult, antiga amante de Lizt e mãe da menina que se tornou Cosima Wagner. «Estou indignado pelo estilo de vida e preguiça de Herwegh», escreveu Ruge à mãe. «Chamei-lhe cordialmente velhaco vários vezes e declarei que, quando um homem se casa tem de saber o que está a fazer. Marx não proferiu palavra e tomou a sua demissão de forma perfeitamente amigável. Escreveu-me no dia seguinte a dizer que Herwegh era um génio com grande futuro e que o facto de eu lhe ter chamado de velhaco enchia-o de indignação, acrescentando ainda que as minhas ideias sobre o casamento eram estreitas e desumanas. Não nos voltámos a ver desde então.»' Apesar de Marx se manifestar muitas vezes contra a promiscuidade e a libertinagem com a ferocidade puritana de um Savonarola — quanto mais não fosse para repudiar a acusação que o comunismo era sinónimo de sexo colectivo —, encarava divertidamente as escapadas amorosas dos amigos e, talvez, com um pouco de inveja, atitude que inquietava certamente Jenny. «Embora o espírito tenha força de vontade, a carne é fraca», escreveu ela de

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Trier, em Agosto de 1844, dois meses depois de deixar o marido sozinho em Paris. «A verdadeira ameaça de infidelidade, a sedução e atracções de uma capital — tudo são forças cujo efeito sobre mim é mais poderoso do que qualquer outra coisa qualquer.»^^ Entre as atracções e seduções de Paris, o restolhar de uma saia de condessa não podia competir com o clamor da política. No Verão de 1844, Marx aceitou a oferta de escrever para o Vonmrts!, jornal bissemanal comunista patrocinado pelo compositor Meyerbeer e actualmente dirigido por Karl Ludwig Bernays, que tinha colaborado no T>eutsche-¥ran^ösische Jahrbücher. Como o único jornal radical em língua alemã não censurado que era publicado na Europa, o l/óní'¿'r/j-.''proporcionava um refúgio a todo o velho bando de poetas e polemistas, incluindo Heine, Herwegh, Bakunine e Arnold Ruge. Reuniam-se uma vez por semana no escritório do primeiro andar, à esquina da Rue des Moulins e da Rue Neuve des Petits, para uma conferência editorial presidida pelos Bernays e o editor, Heinrich Börnstein, que recordou: «Alguns sentavam-se na cama ou em arcas e outros ficavam de pé a andar de um lado para o outro. Todos fumavam imenso e discutiam apaixonada e excitadamente. Era impossível abrir as janelas, porque uma multidão ter-se-ia logo agrupado na rua para conhecer o motivo, do violento tumulto que fazíamos. A sala ficava rapidamente envolta em tais nuvens espessas de fumo que era impossível, para quem quer que chegasse, reconhecer as pessoas presentes. No fim, quase não conseguíamos reconhecer-nos uns aos outros.»" O que, caso Marx e Ruge também lá se encontrassem, fosse provavelmente melhor: de outro modo, o «violento tumulto» talvez degenerasse em pancadaria. Mas, em vez disso, os dois inimigos continuaram o seu feudo na imprensa pública. Em Julho de 1844, e assinando apenas com o nome de «Um prussiano». Ruge escreveu um longo artigo para o 'Vonvärts! ^oht^ a brutal repressão por parte do rei prussiano dos tecelões da Silesia que tinham destruído as máquinas que ameaçavam a sua subsistência. Ruge considerava a revolta dos tecelões como inconsequente, pois a Alemanha não possuía a «consciência política» necessária para transformar um acto de desobediência isolado numa revolução a sério. A resposta de Marx, publicada dez dias depois, argumentava c|ue o fertilizante da revolução não era a «consciência poKtica», mas a consciência de

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classe que os tecelões possuíam para dar e vender. Ruge (ou «o alegado prussiano», como Marx lhe chamava) pensava que uma revolução social sem alma política era impossível; Marx descartou essa «mistura absurda», mantendo que todas as revoluções são tanto sociais como políticas, na medida em que dissolvem a velha sociedade e derrubam o velho poder. Mesmo que a revolução ocorresse numa única região fabril, como no caso dos tecelões silesianos, continuava a ameaçar todo o estado pois «representa o protesto do homem contra a vida desumanizada»^^. Isso era um pouco optimista de mais. A única influência duradoira da revolta foi a de ter inspirado um dos mais famosos poemas de Heine, O Canto dos Tecelões Silesianos, publicado no mesmo número de Vorwärts! «O proletariado alemão é o teórico do proletariado europeu, assim como o proletariado inglês é o seu economista e o francês o seu político», escreveu Marx na réplica a Ruge, prefigurando uma opinião mais tardia de Engels que afirmava que o marxismo em si era um híbrido dessas três linhagens. Aos 26 anos, Marx já era bastante versado em filosofia alemã e socialismo francês; decidiu, agora, educar-se em economia política e, no Verão de 1844, leu sistematicamente as obras principais de economia poMtica inglesa — Adam Smith, David Ricardo, James MiU — , garatujando comentários à medida que ia avançando. Estas notas, cerca de 50 000 palavras, só foram descobertas na década de 1930, altura em que o investigador soviético David Ryazanov as publicou sob o útalo Manuscritos Económicos e Políticos. São actualmente conhecidos pelos manuscritos de Paris. O trabalho de Marx tem sido muitas vezes descartado como «dogmas grosseiros», normalmente por gente que não dá provas de o ter lido. Seria um exercício útil obrigar esses críticos improvisados — que incluem o actual primeiro-ministro britânico, Tony Blair — a estudar os manuscritos de Paris, os quais revelam o funcionamento de uma m e n t e incansavelmente inquisitiva, subtil e nada dogmática. O primeiro manuscrito começa com uma simples declaração: «Os salários são determinados pela feroz batalha entre o capitalista e o trabalhador. O capitalista ganha inevitavelmente. O capitalista pode viver mais tempos sem o trabalhador do que o trabalhador sem o primeiro.» Desta premissa, tudo mais se segue. O trabalhador tinha-se tornado em apenas mais u m produto à procura de comprador; e não é mercado de vendas. O que quer que aconteça, o trabalhador perde. Se a riqueza da sociedade diminui, o

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trabalhador é quem sofre mais. Mas o que é que acontece se a sociedade está a prosperar? «Tal condição é a única favorável ao trabalhador. Nesse caso, a competição ocorre entre os capitalistas e a procura de trabalhadores excede a oferta. Mas...» Naturalmente. O capital nada mais é do que os frutos acumulados do trabalho e, assim, os capitais e rendimentos de um país aumentam apenas «quando cada vez mais os produtos do trabalhador forem tirados dele, quando o seu próprio trabalho o confrontar cada vez mais como propriedade alheia e os meios da sua existência e da sua actividade forem cada vez mais concentrados nas mãos do capitalista» — assim como uma galinha inteligente (caso tal improvável criatura exista) que se tornasse mais consciente da sua impotência no seu estado mais fértil, pondo dúzias de ovos para vê-los serem roubados ainda quentes. Além do mais, numa sociedade próspera haverá uma crescente concentração de capital e competição mais intensa. «Os grandes capitalistas arruinam os pequenos, e uma parte dos antigos capitalistas afunda-se na classe dos trabalhadores, a qual, devido ao aumento em número, sofre mais uma depressão salarial e torna-se ainda mais dependente de um punhado de grandes capitalistas. Porque o número de capitalistas diminui, a competição para procurar trabalhadores deixa de existir; e porque o número de trabalhadores aumenta, a competição entre eles torna-se maior, anormal e violenta. Assim, conclui Marx, até mesmo nas condições mais propícias, a única consequência para os trabalhadores é "excesso de trabalho e morte prematura, ser reduzido a uma máquina, sujeição ao capital". A divisão do trabalho torna-o ainda mais dependente e introduz a competição das máquinas assim como a dos homens. "Na medida em que o trabalhador foi reduzido a máquina, a máquina confronta-o como um competidor." Finalmente, a acumulação de capital dá a possibilidade à indústria de fabricar ainda uma maior quantidade de produtos colocando um grande número de trabalhadores sem emprego ou reduzindo os seus salários a uma ninharia. "Uma tal situação," concluiu Marx com sinistra ironia. "São as consequências de um estado da sociedade que é a mais favorável ao trabalhador, quer dizer, um estado de riqueza crescente. Mas, com o tempo, há-de chegar uma altura em que esse estado alcança o ponto mais alto. E qual será, então, a situação do trabalhador?"» Bastante miserável, o que não é nenhuma surpresa. As vantagens favorecem o capital. Um grande industrial pode guardaros produtos da sua fábrica até eles atingirem um preço decente, enquanto o

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único produto do trabalhador — o suor do seu rosto — perde completamente valor se não for vendido a cada instante. Um dia perdido de trabalho vale tanto no mercado como o jornal matutino de ontem e nunca mais pode ser recuperado. «O trabalho é vida e, se a vida não for trocada todos os dias por alimentação, sofre com isso e em breve perece.» O patrão tem mais sorte, pois o capital é «labor armazenado» com indefinida duração. A única defesa contra o capitalismo é a competição, a qual sobe os salários e baixa os preços. E, por essa mesma razão, os grandes capitalistas tentam sempre contrariá-la ou sabotá-la. Assim como os proprietários feudais antigos possuíam o monopólio da terra — para a qual a procura era quase infinita e a oferta limitada —, também a nova geração de industriais queria obter o monopólio da produção. Era por conseguinte insensato concluir, a exemplo de Adam Smith, que o interesse do proprietário, ou do capitalista, é idêntico ao da sociedade. «Sob o regime da propriedade privada, o interesse que qualquer indivíduo tem na sociedade é inversamente proporcional ao interesse que a sociedade tem nele, exactamente como o interesse do usuário no esbanjador não é de modo algum idêntico ao do esbanjador.» Apesar de os criticar, Marx tinha um grande respeito por Smith e Ricardo. Como com Hegel, usava as próprias palavras e lógica deles para expor os defeitos das suas teorias. E o defeito mais óbvio era o seguinte: «A economia poKtica provém da existência de propriedade privada. Não a explica.» Assim como a teologia explicava a existência do diabo referindo-se ao primeiro pecado do homem, o fruto da árvore proibida que trouxe a morte ao mundo, os economistas clássicos trataram a propriedade privada como uma condição humana primordial. Mas não havia nada estabelecido nem imutável quanto a isso. Já graças à Revolução Industrial, o poder tinha sido transferido dos proprietários feudais para os membros importantes das corporações: a aristocracia do dinheiro suplantara a aristocracia da terra. «Recusamos juntar-nos às lágrimas sentimentais que o românticos derramam por causa disto», comentou severamente Marx. Os proprietários feudais tinham sido uns idiotas ineficazes que não souberam tirar o máximo lucro das suas propriedades e se banhavam na «glória romântica» da sua nobre indiferença. Era, de sobremaneira, desejável que este mito benigno explodisse e que «a raiz da propriedade terrena — sórdido interesse pessoal — se manifestasse sob a sua forma mais cínica». Reduzindo os grande domínios a meros produtos, sem

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nenhuma mística arcádia, as intenções do capitalismo eram, pelo menos, transparentes. O lema medieval, nulle terre sans seigneur (nenhuma terra sem senhor) cedeu o passo a uma admissão mais vulgar, mas honesta: l'argentn'a pas de maître (o dinheiro não tem dono). Sob esta tirania, quase todos e tudo eram «objectifícados». O trabalhador dedica a vida a produzir objectos de que não é dono nem controla. O seu labor torna-se, assim, u m ser externo e separado, que «existe fora dele, alheio e independente, e que começa a confrontá-lo como um poder autónomo; a vida que ele conferiu ao objecto enfrenta-o alienada e hostilmente». N e n h u m investigador ou crítico marxista chamou a atenção sobre o óbvio paralelo com Frankenstein, de Mary Shelley: a história de um monstro que se vira contra o seu criador. (Dado o fascínio de Marx pela lenda de Prometeu, repare-se no subtítulo desse romance, Um Prometeu Moderno). E m D e z e m b r o de 1865, e padecendo de furúnculos, Marx descreveu como «um segundo Frankenstein nas minhas costas» uma dessas horríveis erupções". «Achei que era um bom tema para um conto», escreveu a Engels. «De frente, o indivíduo que regala o seu homem interior com vinho do Porto, clarete, cerveja e uma grande porção de carne. D e frente, o glutão. Mas, por detrás, nas suas costas, o homem exterior, o raio de um furúnculo. Se o diabo fizer um pacto com alguém para o manter sempre bem alimentado em circunstâncias c o m o estas, quero então que o diabo vá para o diabo que o carregue.»^"^ Marx mencionou este incubo pestilento à filha, Eleanor, que tinha oito anos nessa altura. «Mas é a tua própria carne!», exclamou ela. O conceito de auto-alienação foi instilado nos filhos de Marx desde a infância, sobretudo através de contos de fadas que ele inventava para os divertir. «Dos inúmeros maravilhosos contos de fadas que ele me contou, o mais maravilhoso, o mais delicioso, foi o de Hans Köckle», escreveu Eleanor nas suas memórias: «Durou meses e meses; era uma série de histórias... Hans Röckle era um mágico à Hoffmann, que tinha uma loja de brinquedos e que estava sempre "teso". A loja dele estava cheia das coisas mais maravilhosas — bonecos e bonecas de madeira, gigantes e anões, reis e rainhas, trabalhadores e patrões, aves e animais tão numerosos como os que N o é meteu dentro da arca, mesas e cadeiras, carruagens, caixas de todos os tamanhos e feitios. Embora fosse um mágico, Hans nunca podia cumprir as suas obrigações para com o diabo nem para com o h o m e m do talho e, por

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conseguinte, era constantemente obrigado a vender — bastante contrariado — os seus brinquedos ao diabo. Estes viviam maravilhosas aventuras, mas, no fim, voltavam sempre para a loja de Hans Röckle.»^^ Era bastante fácil num conto de fadas, mas como podia u m trabalhador recuperar os frutos do seu trabalho sem recorrer à magia? Para Hegel, a alienação era simplesmente uma realidade da vida, a sombra que cai entre o conceito e a criação, entre o desejo e o espasmo. Uma vez que a ideia se torna um objecto — quer seja uma máquina ou u m livro — era "exteriorizada" e separada do seu produtor. A separação era a conclusão inevitável de todo o trabalho. Para Marx, o labor alienado não era u m problema eterno e inelutável da consciência humana, mas o resultado de uma particular forma de organização económica e social. U m a mãe, por exemplo, não é automaticamente separada do seu bebé logo que este sai do útero, muito embora o parto seja, sem dúvida, um exemplo da «exteriorização» de Hegel. Mas ela sentir-se-ia deveras muito alienada se, sempre que desse à luz, a criança aos guinchos lhe fosse imediatamente tirada por u m m o d e r n o Heredes. Tal era, mais ou menos, a sorte diária dos trabalhadores que constantemente produziam o que não podiam guardar. N ã o admira que se sentissem menos do que humanos. «O resultado é que», observou Marx num paradoxo característico, «o h o m e m (o trabalhador) sente que está apenas a agir livremente nas suas funções mais animais — comendo, bebendo e procriando ou, no máximo, no que respeita a sua habitação e ornamentação — , enquanto nas suas funções humanas não passa de um animal.» Qual era a alternativa? Q u a n d o escreveu os manuscritos de Paris, em 1844, Marx já possuía um formidável talento para detectar as falhas estruturais da sociedade — a humidade, a madeira a apodrecer, os barrotes que não podiam suster o peso colocado por cima deles — e explicar porquê a sua demolição era urgentemente requerida. Mas as suas capacidades de capataz e demolidor ainda não incluíam uma grande visão arquitectónica própria. «A suplantação da propriedade privada é... a total emancipação de todos os atributos e sentidos humanos», escreveu. «Apenas através da exposição objectiva da riqueza da natureza humana pode a riqueza da sensibilidade subjectiva humana—um ouvido musical, um olho para apreciar a beleza das formas, em resumo, sentidos capazes de gratificação humana — ser cultivada ou criada.» Só o comunismo poderia resolver o conflito entre o homem e a natureza, e

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entre o h o m e m e o homem. «E a solução para o enigma da historia», anunciou com u m floreado grandiloquente. «E sabe que é a solução.» Talvez; mas o que era exactamente? Incapaz de fazer elaborações sobre o seu vago humanismo, Marx preferiu dizer o que não. N e n h u m a solução para o enigma da história poderia ser encontrada nas banalidades pequeno-burguesas de Proudhon («as suas homflias quanto ao lar, amor conjugal e outras tolices do género») ou em sonhos de igualitários, c o m o Fourier e Babeuf, que — motivados peia «inveja e desejo de nivelar pelo baixo» — não aboliriam a propriedade privada, mas meramente a redistribuiriam. O seu imaginário Vale Feliz era «uma comunidade de labor e salários iguais a serem pagos pelo capital comunitário, a comunidade como capitalismo universal. A posse material continuaria a ser a finalidade da existência e a única diferença seria que todos os homens — incluindo os antigos capitalistas — seriam reduzidos à categoria de «trabalhadores». E, então, as mulheres? Como o casamento era em si mesmo uma forma de propriedade privada exclusiva, os grosseiros comunistas tencionavam provavelmente que «as mulheres passassem do casamento à prostituição geral» — tornando-se, desse modo, na propriedade de todos. Marx recuou, horrorizado, perante essa perspectiva tão «bestial». Pode perceber-se porquê a tentativa de viver em comunidade com Herr Frau Ruge teve tão pouco sucesso. Apesar de toda a sua troça a respeito da moral e maneiras burguesas, Marx era, no fundo, um patriarca supremamente burguês. Q u a n d o bebia ou se correspondia com amigos, adorava piadas porcas ou palpitantes escândalos sexuais. Mas, acompanhado por pessoas de ambos os sexos, ostentava um cavalheirismo paternal que qualquer chefe de família vitoriano admiraria. «Como pai e marido, Marx, apesar do seu temperamento irrequieto e selvagem, é o mais doce e gentil dos homens», observou, surpreendido, um espião da polícia na década de 1850. O socialista alemão, Wilhelm Liebknecht — seu companheiro em muitas pândegas em tabernas — achava o pudor afectado de Marx tocante e u m pouco cómico. «Embora em discussões políticas e económicas, ele não tivesse costume de medir as palavras e utilizava frequentemente bastantes palavrões, diante de crianças e mulheres a sua linguagem tornava-se tão amável e requintada que até mesmo uma governanta inglesa não teria motivo para se queixar. E se, durante a conversa, fosse mencionado algum assunto delicado, Marx corava e retorcia-se na cadeira como uma virgem de 16 anos.»^'' E m Agosto de 1844, enquanto Jenny se encontrava ainda na sua dispensa devido ao parto em Trier e Karl estudava economia sozinho no apartamento

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da Rue Vanneau, Friedrich Engels, então com 23 anos, passava por Paris vindo de Inglaterra a caminho da Alemanha. E m b o r a os dois homens já se tivessem visto uma vez — quando Engels visitara a redacção do Kheinische Zeitung2i 16 de Novembro de 1842 — , tinha sido u m encontro frio e pouco memorável: Engels desconfiou do jovem director que «se exalta como se dez mil diabos o agarrassem pelos cabelos», conforme Edgar Bauer o tinha prevenido. Marx mostrou-se igualmente desconfiado, pressupondo acertadamente que, como Engels vivia em Berlim, devia com certeza ser cúmplice das loucuras dos irmãos Bruno e Edgar Bauer, hegeUanos livres. Engels redimiu-se dentro de pouco tempo abandonando Berlim para ir morar em Manchester e foi-Ihe permitido escrever vários artigos para o Rheinische Zeitung, o que despertou realmente o interesse de Marx foi uma braçada de ensaios submetida ao Deutsche-Fran^sischeJahrbücher— uma crítica de Passado e Presente, de Thomas Carlyle, e uma volumosa Crítica de Economia Política, a qual Marx considerou uma obra de génio. Percebe-se porquê: apesar de ele já ter decidido que o idealismo abstracto não passava de conversa e que o motor da história era accionado por forças económicas e sociais, os seus conhecimentos práticos quanto ao capitalismo eram nulos. Tinha andado de tal m o d o embrenhado em contendas dialécticas com filósofos alemães que a situação da Inglaterra — o primeiro país industrializado e berço do proletariado — tinha escapado à sua atenção. Engels, da sua posição vantajosa no meio dos teares de algodão em Lancashire, estava bem colocado para o esclarecer. Quando voltaram a encontrar-se em Agosto de 1844, a atitude de Marx tinha mudado e, em vez de desconfiança, manifestou uma curiosidade respeitosa. Depois de tomarem uns aperitivos no Café de la Régence — antigo covil de Voltaire e Diderot — Marx convidou Engels a vir ao seu apartamento para continuarem a conversa. Esta, acompanhada por copiosas quantidades de vinho tinto, durou dez dias intensos que se prolongaram pela noite fora e, no fim, eles juraram amizade eterna. Curiosamente, nenhum deles escreveu sobre esse épico diálogo. N u m prefácio escrito cerca de 40 anos mais tarde, o relato de Engels resume-se a uma frase: «Quando visitei Marx no Verão de 1844, a nossa total concordância em todos os campos teóricos tornou-se evidente e o nosso trabalho comum data dessa época.»'"' C'est tout: ninguém adivinharia que essa brusca passagem de Engels por Paris poderia justamente vir a ser descrita como os dez dias que abalaram o mundo.

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Os antepassados de Friedrich Engels tinham vivido em Wuppertal durante mais de dois séculos ganhando a vida como agricultores e, depois — com maior lucro — , na indústria têxtil. O pai, também chamado Friedrich, tinha ampliado e diversificado a empresa associando-se com dois irmãos, Ermen, e construindo teares em Manchester (1837), Barmen e Engelskirchen (1841). Friedrich júnior nasceu a 28 de Novembro de 1820. A vida caseira era devota e industriosa, sendo a rigorosa ortodoxia apenas ligeiramente aliviada pela alegre disposição da mãe, EKse, cujo sentido de humor era «tão acentuado que, mesmo na sua velhice, ria-se por vezes tanto que as lágrimas lhe corriam pelas faces abaixo».^** O pai, personagem muito mais austera, espiava ansiosamente o comportamento do filho mais velho para que ele não se desviasse do caminho da virtude. «Friedrich obteve resultados médios n o Hceu», escreveu a EHse a 17 de Agosto de 1835. «Como sabes, os seus modos melhoraram, mas, apesar dos severos castigos que recebeu no passado, não parece ter aprendido a ser obediente. Descobri, hoje, mais um Mvro repreensível na sua secretária: um romance do século XIII. Que Deus o proteja pois inquieto-me muitas vezes por causa deste nosso filho que, por outro lado, demonstra ser tão prometedor.» Aparentemente, Deus não se ralava com o jovem Engels, o qual, muito em breve, passou a 1er «livros repreensíveis» muito mais perigosos. Conformou-se às expectativas dos pais entrando — embora sem grande entusiasmo — na empresa familiar. N a sua caderneta escolar, classe de 1837 em Michaelmas, o director observou c o m o nota final que o jovem Friedrich «se julgava inclinado» a entrar nos negócios para fazer «uma carreira secundária». N o íntimo, já tinha outros planos. Mas precisava de rendimentos e u m emprego na firma E r m e n & Engels seria uma sinecura útil que garantia segurança financeira e bastante tempo uvre. Começou a sua aprendizagem em Bremen, onde o pai lhe arranjou uma posição não paga num negócio de exportações dirigido por Heinrich Leupold. «É um ripo terrivelmente simpático, oh, tão b o m que nem imaginam», disse Engels do patrão''. N u m a carta para os seus antigos colegas de escola, Friedrich e Wilhelm Graeber, datada de 1 de Setembro de 1838, ele pede desculpa por não escrever mais a fundo «porque o director está aqui sentado». Mas, como o parágrafo seguinte indica, Leupold não era mau patrão:

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«Desculpem eu escrever tão mal; emborquei três garrafas de cerveja, hurra!, e não posso demorar porque isto tem de ir imediatamente para o correio. Já estão a bater as três horas e as cartas têm de ser enviadas para o correio às quatro. Com mil milhões de macacos, notam de certeza que estou com umas cervejas no b u x o . . . Que estado lamentável! O velhote, quer dizer, o director, vai sair e eu estou em palpos-de-aranha. N ã o faço ideia do que estou a escrever. Tenho a cabeça cheia de toda a espécie de ruídos.» Quando não estava a cumprir a suas mínimas obrigações no escritório, ou a escrever cartas bêbedo, ou deitado numa rede a olhar para o tecto através do fumo de um charuto, ou a vaguear a cavalo pelos subúrbios de Bremen, Engels já ouvia aqueles ruídos no crânio. Compunha música coral — grande parte copiada de cânticos antigos — e andava a praticar poesia. Um dos seus poemas, «O Beduíno», foi aceite para pubKcação pelo Bremisches Conversationsblatt, em Setembro de 1845. Digno de nota por ser o primeiro trabalho publicado de Engels, também assinalou o seu primeiro encontro com a censura dos editores burgueses. O poema começava por lamentar a sorte dos beduínos — «filhos do deserto, orgulhosos e livres» — que tinham sido roubados desse orgulho e dessa liberdade, sendo, agora, meras diversões para turistas. Terminava com um apaixonado grito de batalha: «Voltem de novo para casa, exóticos convivas! As vossas túnicas do deserto nada têm a ver Com os nossos mantos e vestes prussianos. N e m os vossos cantos com a nossa literatura!»^° A ideia, explicou mais tarde, era de «contrastar o beduíno, na sua condição presente, com a audiência, a qual lhe era totalmente alheia». Mas, aquando da publicação do texto, isto foi substituído por uma nova estrofe final acrescentada pelo próprio editor e sem permissão do autor: «Saltam a mando e obediência do dinheiro, E não por vontade primordial da Natureza. Os olhos são inexpressivos, estão em silêncio. Todos menos u m que entoa um canto fúnebre.»

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Uma colérica exortação transformou-se, assim, em nada mais do que um triste encolher de ombros melancólico. Engels mostrou-se compreensivelmente contrariado: de forma primitiva, já tinha reparado que a sociedade era moldada por imperativos económicos, mas o editor não permitiu que ele nomeasse ou condenasse os culpados. «É evidente», concluiu após este infeliz começo, «que o meus versos não têm grande significado.»^^ O seu gosto literário estava a tornar-se mais político e prosaico. Comprou um píLiiñeto, Jacob Grimm über seiner Entlassung, que descrevia a demissão de sete professores da Universidade de Göttingen, que tinham ousado protestar contra o repressivo regime de Ernst August, o novo rei de Hanover. «E excelente e está escrito com uma força pouco comum.»^^ Leu sete outros panfletos sobre o «caso de Colónia» — a recusa, em 1837, do arcebispo de Colónia de obedecer ao rei da Prússia. «Li coisas e encontrei expressões — estou a adquirir uma boa prática, sobretudo em literatura — que nunca seriam autorizadas a ser impressas aqui, ideias bastante liberais, etc... realmente maravilhosas.» Encorajado pela cerveja, referiu-se a Ernst August numa das suas cartas a Graebers chamando-o «velho bode de Hanôver». As vozes mais obviamente «progressivas» da época vinham do grupo de escritores Jovem Alemanha; eram discípulos de Heine queadvogava a Uberdade de expressão, a emancipação das mulheres, o fim da tirania religiosa e a abolição da aristocracia hereditária. «Quem pode manifestar-se contra tais coisas?», perguntava, meio trocista, Engels. Mostrava-se impaciente com o liberalismo fácu e vago do grupo, mas, na ausência de algo mais anaKtico ou rigoroso, não tinha outro lado para se voltar. «O que é que eu, pobre coitado, posso fazer agora? Continuar a estudar sozinho? Não me apetece. Tornar-me leal? Nem pensar!»^-' E, z'&úni, faute de mieux, juntou-se ao grupo Jovem Alemanha. «Não consigo dormir de noite por causa das ideias deste século. Quando estou nos correios e olho para o brasão da Prússia, o espírito de liberdade apodera-se de mim. Procuro, sempre que leio um jornal, marcas de liberdade. Intrometem-se nos meus poemas e fazem pouco dos obscurantistas envoltos em hábitos de monge e arminho.» Na sua casa, em Barmen, os pais nada sabiam da febre democrática do filho pois, então e ao longo de muitos anos, ele fez o possível para os manter na ignorância. Mesmo depois de ter chegado à meia-idade, quando ele e Marx aguardavam alegremente a iminente crise do capitalismo, Engels comportava-se da melhor maneira sempre que Friedrich sénior o vinha visitar a Manchester e desempenhava o papel do filho obediente a quem a fortuna

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da familia podia ser confiada — assim como, ao caçar a cavalo com os membros do clube Cheshire Hunt, se fazia passar por um negociante local conservador. O seu comunismo, ateísmo e promiscuidade sexual faziam parte de uma vida à parte. Para aqueles que estavam a par dessa existência dupla, as opiniões de Engels quanto aos pais e o meio em que viviam já era conhecida desde Março de 1839, altura em que escreveu u m brilhante ataque contra os autocomplacentes e presumidos habitantes de Bramen e Elberfeld para o Telegraphfür Deutscheland, u m jornal da Jovem Alemanha. O autor, de 18 anos, assinou com o pseudónimo de Friedrich Oswald — precaução necessária, pois os artigos constituíam u m verdadeiro parricidio jornalístico. Nas «ruas lúgubres» de Elberfeld, todas as cervejarias ficavam a transbordar nas noites de sábado e domingo: «... e quando fecham, por volta das onze, os bêbedos saem aos trambolhões e, regra geral, cozem a bebedeira na valeta... As razões de tal coisa são perfeitamente claras. Primeiro e principalmente, o grande responsável é o trabalho na fábrica. Salas acanhadas onde os trabalhadores respiram mais fumo de carvão e poeira do que oxigénio — e a maior parte dos casos de intoxicação começam aos seis anos de idade — , privam-nos de toda a energia e alegria de viver. O s tecelões, que têm teares em casa, trabalham debruçados sobre eles de manhã à noite e dissecam a espinal medula diante de u m fogão. Aqueles que escapam ao misticismo são destruídos pela bebida.» Como esta referência ao misticismo implica, Engels já tinha identificado a religião como sendo serva da exploração e da hipocrisia: «Pois é uma realidade que as pessoas piedosas entre os proprietários das fábricas são as que tratam pior os trabalhadores; empregam todos os meios para reduzir os seus salários a pretexto de os impedir de beber, mas, quando há eleições, os padres são os primeiros a corromper a sua gente.» Engels chegou a nomear alguns desses lacrimosos fariseus, embora se tenha abstido de mencionar o pai. As «Cartas de Elberfeld» provocaram alvoroço. «Ha, ha, ha!», escreveu a Friedrich Graeber, um dos poucos a ser posto ao corrente. «Sabes quem escreveu o artigo que apareceu no Telegraph? O autor é quem te escreve estas linhas, mas aconselho-te a não dizer palavra quanto a isto. Podia meter-me num grande sarilho.»^''

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N a Primavera de 1841, Engels partiu de Bremen para ir cumprir o serviço militar em BerKm, aKstando-se na artilharia da Guarda Real. A escolha de Berlim, capital do Jovem Hegelianismo, não foi por acaso: embora a farda o camuflasse dando-lhe um ar de respeitabilidade e assegurasse os pais, passou todos os momentos de folga imerso em teologia radical e jornalismo. Fez um truque semelhante em Outono de 1842, ao ser colocado na filial de E r m e n & Engels, em Manchester: enquanto aparentemente adquiria prática no negócio da família, como um herdeiro consciencioso era suposto fazê-lo, aproveitou a oportunidade para investigar as consequências humanas do capitalismo. Manchester era o locai onde a lei antitrigo tinha nascido, o centro da greve geral dei 842, e uma cidade a fervilhar de cartistas, owenistas e agitadores industriais de todo o tipo. Viria a descobrir, aqui, a natureza desprezível do ser humano. D e dia, era u m jovem e diligente gerente na Bolsa de Algodão; mudava de campo depois do trabalho e explorava a terra incógnita do proletariado de Lancashire, a fim de reunir dados e impressões para a sua obra-prima dos primeiros a n o S j ^ j Condições da Classe Operária em Inglaterra (1845). Frequentemente acompanhado pela nova amante, uma operária ruiva chamada Mary Burns, aventurava-se nos bairros da lata que poucos outros homens da sua classe social conheciam. Foi aqui, por exemplo, que retratou a «Pequena Irlanda», a área de Manchester a sudoeste de Oxford Road: «Uma massa informe de Hxo, detritos e porcaria repugnante em todas as direcções; a atmosfera é envenenada por eflúvios, carregada e toldada por fumo de uma dúzia de chaminés de fábricas. Uma multidão de mulheres e crianças em farrapos anda por aqui, tão nojentos como os porcos que se espojam no lixo e nas poças. E m resumo, todo este chiqueiro proporciona um espectáculo tão odioso e repulsivo, que dificilmente poderá ser igualado. A raça que vive nestes casebres em ruínas, remendados com oleados, por detrás das janelas partidas e portas arrombadas ou em caves escuras, húmidas e fedorentas como se tivesse uma finalidade, deve ter chegado ao nível mais baixo da humanidade. Tal é a impressão e a ideia com que se fica ao ver este bairro. Mas o que é que se deve pensar ao saber que uma média de 20 seres humanos vive em cada destes cubículos?»^^ O que conferiu intensidade e profundidade e este livro foi a hábil teia (era, afinal de contas, um industrial de têxteis) de observações em primeira mão.

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provenientes de comissões parlamentares, funcionários do departamento de saúde e o relatório de Hansard. O Estado britânico pode ter feito pouca coisa, ou mesmo nada, para melhorar as condições dos trabalhadores, mas tinha reunido imensos dados sobre o horror das suas vidas que estavam disponíveis a quem quer que se desse ao trabalho de os retirar de uma poeirenta prateleira de biblioteca. Artigos de jornais, sobretudo de processos criminais, proporcionavam ainda mais pormenores. «No dia 15 de Janeiro de 1844, uma segunda-feira», anotou Engels: «dois rapazes esfomeados foram trazidos à presença do magistrado da polícia. Tinham roubado e devorado logo a seguir uma perna de vitela meio cozida de uma loja. O magistrado decidiu investigar o caso e o agente da poKcia deu-lhe os seguintes pormenores: a mãe dos dois rapazes era viúva de um antigo soldado e vivia com muita dificuldade desde a morte do marido... Quando o poHcia foi ter com ela, encontrou-a com seis outros filhos pequenos literalmente amontoados numa sala do fundo, cuja única mobília eram duas cadeiras sem assento, uma pequena mesa com duas pernas partidas, uma chávena quebrada e um pequeno prato. Na lareira mal havia vestígios de lume e, a um canto, estava empilhado um pequeno monte de trapos velhos que servia de cama para toda a família.»

Engels ficou espantado por descobrir que a administração da burguesia britânica proporcionava tantas provas incriminadoras contra ela mesma. Depois de citar vários revoltas, casos de doença e fome, publicados no jornal da classe média, Manchester Guardian, exultou: «Tenho imenso prazer em ouvir o testemunho dos meus oponentes.» Basta examinar as citações do relatório oficial do Governo e de The Economist mc\\xià2i,s em O Capitalp2xa ver quanto Karl Marx aprendeu através desta técnica. Marx e Engels complementaram-se perfeitamente. Embora Engels não pudesse competir com a erudição de Marx, pois não finalizara a universidade, tinha valiosos conhecimentos em primeira mão sobre o funcionamento do capitalismo. Mas o «acordo absoluto em todos os campos teóricos» não se estendia aos seus respectivos estilos e hábitos. Quase se pode dizer que os dois personagens eram a Tese e a Antítese encarnadas. Marx escrevia em garatujas com inúmeras emendas, borrada demonstração do esforço que lhe custava; a escrita de Engels era nítida, elegante, metódica. Marx era atarra-

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cado e moreno, u m judeu atormentado pela aversão à sua própria pessoa; Engels era alto e louro, com mais do que uma simples sugestão à arrogância ariana. Marx vivia no caos e na penúria; Engels era u m trabalhador eficaz que ocupava um emprego a tempo inteiro na firma da família enquanto, ao mesmo tempo, mantinha uma produção formidável de livros, cartas e peças jornaKsticas... escrevendo igualmente, com frequência, artigos em nome de Marx. N o entanto, arranjava sempre tempo para desfrutar o conforto da vida da alta burguesia: tinha cavalos nos seus estábulos, vinho na sua adega e amantes no seu quarto. Durante os longos anos que Marx passou quase na miséria, fugindo aos credores e debatendo-se para sustentar a família, Engels, sem filhos, prosseguiu a vida de prazer e despreocupação dos solteiros ricos. Apesar das suas óbvias vantagens, Engels sabia que nunca viria a ser a figura dominante e, desde o princípio, sujeitou-se a Marx, aceitando que o seu dever histórico era apoiar e subsidiar o indigente sábio sem queixumes nem inveja — ou, já agora, sem muitas demonstrações de gratidão. «Não posso de todo compreender», escreveu em 1881, quase 40 anos depois de se terem encontrado. «Como é que se pode ter inveja do génio; trata-se de algo tão especial que aqueles que não o possuem sabem, desde o princípio, que é inatingível; para se ser invejoso de um tal dom é preciso ter uma grande estreiteza de espírito.»^'' A amizade de Marx e a culminação triunfante da sua obra seriam recompensa suficiente. N ã o tinham segredos entre eles, nenhuns tabus: se deparava com um e n o r m e furúnculo n o pénis, Marx não se coibia de fazer uma descrição pormenorizada ao amigo. A sua volumosa correspondência constitui um apurado guisado de história e mexericos, economia política e obscenidade de estudantes, ideais elevados e intimidades degradantes. C o m o exemplo mais ou menos ao acaso, Marx, numa carta a Engels de 23 de Março de 1835, discute o rápido aumento de peritos britânicos em territórios turcos, a p o sição de DisraeK n o Partido Conservador, a passagem do projecto de lei sobre as reservas do clero canadiano na Câmara dos Comuns, o tratamento dos refugiados por parte da polícia britânica, as actividades dos comunistas alemães em Nova Iorque, a tentativa do editor de Marx para o vigarizar, a situação na Hungria... e a alegada flatulência da imperatriz Eugenia: «Parece que aquele anjo sofre de um mal indelicadíssimo. É apaixonadamente viciada em peídos e é incapaz, mesmo em companhia, de os suprimir. N u m a certa ocasião, recorreu a montar a cavalo como remédio. Mas, na medida em que

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isso lhe foi agora proibido por Bonaparte, ela "descarrega-se". E apenas um silvo, um pequeno murmúrio, quase nada, mas sabes muito bem que os franceses são muito sensíveis ao menor sopro de vento.» Como cosmopolitas sem terra, chegaram a criar uma linguagem própria; uma estranha algaraviada em inglês, francês, latim e alemão. Todas as citações neste livro foram traduzidas para poupar ao leitor a angústia de tentar decifrar o código marxista, mas uma breve frase dará uma ideia da sua expressiva, embora incompreensível, sintaxe: Diese excessive technicality of ancient law i^eigtjurispruden^asfeather of the same bird, als d. religiösen Formalitäten ^. i3. Auguris etc. od. d. Hokus Fokus des mediane man der savages. Engels aprendeu a compreender esta confusão facilmente e, assim como Jenny, conseguia 1er os gatafunhos de Marx. À parte estes dois próximos colaboradores, poucos foram aqueles que, sem arrancar os cabelos, tiveram sucesso. Após a morte de Marx, Engels teve de dar longas lições de paleografia aos democratas sociais alemãs que desejavam compilar os documentos inéditos do grande homem. Engels serviu Marx como espécie de mãe substituta — enviando-lhe dinheiro, preocupando-se com a sua saúde e lembrando-lhe constantemente para não negligenciar os estudos. Na primeira carta que existe e que foi escrita em Outubro de 1844, já insistia para que Marx terminasse os manuscritos sobre poKtíca e economia: «Mexe-te para que o material que compilaste seja pubHcado em breve. Já não é sem tempo!» E, novamente, a 20 de Janeiro do ano seguinte: «Tenta terminar o teu livro de economia política. Mesmo que haja muita coisa com que não estejas satisfeito, não interessa. As pessoas estão prontas e devemos bater no ferro enquanto ele ainda está quente... Por isso, tenta terminá-lo antes de Abril. Faz como eu, marca uma data para o teres 27 definitivamente acabado e certifica-te de que vai rapidamente para a tipografia.» Mas não havia nada a fazer. Marx era desencaminhado pelo próprio Engels. Este cometeu o erro de propor que colaborassem juntos num panfleto contra Bruno Bauer e a sua trupe de palhaços sob o título de Crítica do Criticismo C^'Z/Vo, assinalando que não deveria ter mais de 40 páginas, pois «acho estas balelas teóricas cada vez mais entediantes e irrita-me o número de palavras que tem de ser consagrado ao tópico do " h o m e m " e todas as Mnhas que têm de ser lidas, ou escritas, contra a teologia e a abstracção...»28 Engels redigiu rapidamente a sua parte de 20 páginas enquanto ainda se encontrava no apartamento da Rue Vanneau e, depois, regressou para casa na Renânia. Vários meses depois, ficou «bastante surpreendido» ao saber que.

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agora, o panfleto era uma monstruosidade com mais de 300 páginas e fora reintitulado A. Sagrada Família. «Vai parecer estranho se mantiveres o meu nome na capa», comentou. «A minha contribuição foi praticamente nula.» Mas este não era o único motivo para desejar que o seu nome fosse retirado. «O Criticismo Crítico ainda não chegou!», disse a Marx em Fevereiro de 1845. «O seu novo titvXo^ASagrada Família, vai certamente causar-me sarilhos com o meu piedoso e já muito exasperado parente, embora tu, claro está, não pudesses estar ao corrente de uma coisa dessas.»^^ O parente irritado era, claro está, o seu beato e despótico pai que começava a recear pela salvação da alma cristã do filho. «Quando recebo uma carta, é farejada por todos os lados antes que ma entreguem», resmungava Engels. «Não posso comer, beber, dormir n e m mandar um peido sem ter de enfrentar a mesma maldita expressão de cordeiro de Deus.»^° U m dia, quando Engels chegou a cambalear duas da manhã, o desconfiado patriarca perguntou-lhe se ele fora preso. D e m o d o algum, ripostou Engels de maneira tranquilizadora: tinha simplesmente estado a discutir ideias comunistas com Moses Hess. «Com o Hess!», gaguejou o pai. «Deus nos valha! Andas com péssimas companhias!» E o pai não sabia da missa a metade. «Agora, tudo o que o meu velho tem de fazer é descobrir a existência do Criticismo Critico pata me pôr, certamente, no olho da rua. E, ainda por cima, há a constante irritação de ver que não há nada a fazer com esta gente; adoram flagelar-se, torturar-se com as suas fantasia infernais e ninguém consegue sequer ensinar-lhes os mais banais princípios de justiça.». yí Sagrada Família, ou a Crítica do Criticismo Crítico: Contra Bruno Bauer e Consortes, foi pubUcada em Frankfürt na Primavera de 1845. Ao voltar a 1er o livro cerca de 20 anos mais tarde, Marx ficou «agradavelmente surpreso por se dar conta de que não há razão para nos sentirmos envergonhados do texto, embora o culto a Feuerbach provoque, agora, uma impressão cómica».^^ Poucos outros leitores partilharam da sua satisfação. Por volta da altura em que Marx começou a escrever esta epopeia desdenhosa, os irmãos Bruno, Edgar e Egbert Bauer — a sagrada família do título — já tinham derrapado do ateísmo e comunismo militantes para uma mera palhaçada, assim como os Dadaístas ou Futuristas dos anos de 1930. Tudo o que eles mereciam, ou precisavam, era uma bofetada e não um bombardeamento em larga escala. Q u e m mata moscas com um bacamarte?

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Os chumbos de Marx acertaram em outros alvos que não mereciam a sua atenção. Havia vários capítulos de invectivas contra Eugène Sue, autor de populares romances sentimentais, cuja única ofensa era ter sido elogiado no Allgemeine Literatur-Zeitung, de Bruno Bauer. Embora Sue possa ter sido tão horrível como Marx sugeria, o castigo era absurdamente desproporcionado em relação ao crime: tentem imaginar, através de um equivalente moderno, uma magnum opus do professor George Steiner que atacasse As Pontes de Madison Country. Até mesmo Engels foi obrigado a admitir que Marx estava a desperdiçar o seu humor azedo no ar do deserto. «A coisa é demasiado longa», escreveu. «O supremo desprezo que nós dois manifestamos pelo Literatur-Zeitung contrasta flagrantemente com as 22 folhas de papel (352 páginas) que lhe dedicámos. Além do mais, a maior parte do criticismo quanto à especulação e ao ser abstracto em geral será incompreensível para a maioria do público e não terá interesse. De outro modo, o livro está lindamente escrito...» Ou, como o vigário cheio de tacto disse quando o bispo lhe serviu um OYO podre: «Não, eminência, há uns bocados que são excelentes!»

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Caso Marx se tivesse limitado a irritar hegelianos obscuros e romancistas de segunda ordem, talvez o tivessem deixado em paz. Mas ele não podia resistir à possibilidade de arreliar criaturas maiores e mais perigosas. N o Verão de 1844, depois de ter escapado a uma tentativa de assassínio, o rei Frederico Guuherme IV, da Prússia, enviou uma breve mensagem de agradecimento aos seus leais súbditos antes de partir para férias: «Não posso abandonar o solo pátrio sem exprimir publicamente a gratidão profundamente sentida em Meu n o m e e no da Rainha, pela qual o N o s s o coração ficou comovido.» Marx achou isto hilariante — e disse-o, con brio, numa artigo publicado no Vorwärts!. A sintaxe do rei, escreveu, parecia implicar que os peitos reais estavam comovidos pelo nome real: «Se o espanto perante este estranha construção de frase força uma pessoa pensar novamente, nota-se que a conjunção relativa "pela qual o nosso coração ficou comovido" se refere não ao " n o m e " , mas à "gratidão" colocada mais longe... A dificuldade é devida à combinação de três ideias: 1 que o rei abandona a pátria; 2 que a deixa apenas por um curto período de tempo; 3 que ele sente a necessidade de agradecer ao povo. A enunciação demasiado concentrada dessas ideias faz parecer que o rei está a exprimir a Ç.UÍLgratidão apenas porque deixa a pátria.. .»^ Se Marx julgou que poderia escapar com estes comentários de lesa-majestade, tinha-se esquecido de que os soberanos têm a sua própria solidariedade

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maçónica. A 7 de Janeiro de 1845, o enviado prussiano, Alexander von Humboldt entregou, no decorrer de uma audiência com o rei Luís Füipe, dois itens: um valioso vaso de porcelana e uma carta de Frederico Guilherme IV protestando contra os ultrajantes insultos e difamações publicados n o l^orwãrtslhuís Filipe concordou que haviam, de facto, demasiados filósofos alemães em Paris: o jornal foi fechado duas semanas mais tarde e o ministro do Interior francês ordenou a expulsão de Marx. Para onde ir agora? O único rei n o continente europeu que, apesar de exigir uma promessa escrita de b o m comportamento, ainda aceitava refugiados era Leopoldo I, da Bélgica. («A fim de obter autorização para residir na Bélgica concordo prometer, sob a minha palavra de honra, nada pubKcar neste país sobre política actual (assinado) Dr. Karl Marx.») Enquanto Jenny permaneceu durante uns dias em Paris para vender a mobília, Marx partiu de Paris acompanhado por Heinrich Bürgers, um jovem jornalista do Vorwärst!, que saía do país revoltado pelo «castigo infligido no h o m e m que foi meu amigo e fiel guia dos meus estudos». Enquanto a carruagem avançava aos solavancos através da Picardia, Bürgers tentou em vão animar o seu mentor entoando canções das tabernas alemãs. Uma boa noite de sono restaurou melhor as forças de Marx que, na manhã seguinte, já estava impaciente para entrar em acção. Apressou Bürgers a terminar o pequeno-almoço, dizendo-lhe que «temos de partir já para ver o Freüigrath ainda hoje». Ferdinand Freüigrath, antigo poeta da corte de Frederico Guilherme IV, tinha fugido para a Bélgica há umas semanas a fim de não ser preso por causa da publicação de uma obra traiçoeira. Confissão de Fé. Outrora alvo habitual do velho Rheinische Zeitung, tinha sido agora instantaneamente absolvido por se ter juntado à causa antiprussiana. Outros recém-chegados da diáspora radical incluíam Moses Hess, Karl Heinzen, o radical suíço Sebastian Seüer, um antigo oficial de artilharia, Joseph Weydemeyer (o qual viria a tornar-se um amigo de sempre), um grupo de socialistas polacos — e, mais importante, Friedrich Engels que não precisou de ser excessivamente persuadido para escapar à asfixiante casa paterna e seguir Marx no exílio. O irmão de Jenny, Edgar von Westphalen, o encantador, embora incontinente, cachorrinho da família, também os acompanhava. Quando a mulher e a filha se juntaram a Marx, já ele tinha voltado à velha rotina — 1er, escrever, intrigas e copos. «Éramos loucamente alegres», recordava Weydemeyer. Longas manhãs passadas em cafés e noites ainda mais longas a jogar às cartas e a conversar meio bebidos. Por uma vez, até mes-

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mo as finanças da família eram prósperas: dois dias antes de partir de Paris, um editor de Darmstadt tinham dado um avanço de 1500 francos a Marx pelo seu embrionário livro sobre economia poKtica e uma colecta feita por Engels, sobretudo entre adeptos na Alemanha, acrescentava mais mil francos ao mealheiro. Engels também entregou o dinheiro que tinha recebido pelo seu livro. As Condições da Classe Operária em Inglaterra, para que «pel menos, esses filhos da mãe não tenham a satisfação de verem a sua infâmia causar-te embaraços financeiros». Mas, acrescentou com presciência, «receio que, no fim, também terás problemas na Bélgica e que a única alternativa será a Inglaterra».^ Jenny, mais uma vez grávida, tentava esconder o seu desapontamento de ter abandonado as lojas e salões de Paris pela enfadonha Bruxelas. No entanto, a mãe ficou preocupada com este último transtorno doméstico e emprestou-lhe permanentemente a criada de Trier, Helene Demuth, a qual passou o resto da vida a manter a casa de Marx em ordem através de inúmeras crises e vicissitudes. Era uma mulher graciosa de origem camponesa com 25 anos — rosto redondo, olhos azuis e sempre bem arranjada e limpa mesmo quando rodeada pela miséria. A sua eficiência doméstica era formidável e infatigável. Em 1922, uma mulher que visitara os Marx em rapariga ainda se lembrava da excelente cozinha de Helene. «As tortas de fruta que fazia ainda hoje são uma constante e doce recordação.»^ Mas Helena não era nenhuma humude criada para todo o serviço: tomava conta dos patrões com uma ferocidade de tigre e os convidados que abusavam da hospitalidade deles eram maltratados. Durante os primeiros meses, Marx e a família moraram em hotéis e quartos de amigos. Mas, assim que encontraram um alojamento permanente — uma pequena casa com terraço na Rue d'Alliance, número 5, na extremidade oriental da cidade —Jenny e a filha foram passar as férias de Verão na residência da baronesa Von Westphalen, na Alemanha, deixando a Karl a tarefa de tornar o lugar habitável.
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Marx tinha-se comprometido com as autoridades belgas de nada publicar sobre a política actual, mas julgou que tinha o direito de participar em política e de prosseguir o seu estudo de historia económica. Daí os apelos a Engels, actualmente um indispensável lugar-tenente. No Verão de 1845, os dois homens fizeram uma visita de seis semanas a Inglaterra, em parte para aproveitar as bem fornecidas bibliotecas de Londres e Manchester, mas também para se encontrarem com os Kderes dos Cartistas, o primeiro movimento operário do mundo. Ao regressarem, Engels alugou uma casa ao lado da dos Marx e pôs-se a organizar os socialistas espalhados em Bruxelas numa fi^rça política comparável. Primeiro, porém, havia o assunto do livro de Marx a tratar. A viagem de estudo à Grã-Bretanha e as longas horas que ele tinha passado na biblioteca municipal de Bruxelas devem ter aumentado as esperanças do editor, Karl Leske, que esperava a conclusão da Crítica Económica e Política por volta do fim do Verão. Mas Marx já pusera o manuscrito de lado de pois de ter escrito pouco mais do que o índice. «Pareceu-me muito importante», explicou a Leske, «preceder o meu desenvolvimento positivo com um texto polémico contra a filosofia alemã e o socialismo alemão até à actualidade. Isto é necessário a fim de preparar o público para o meu ponto de vista em economia, o qual é diametralmente oposto ao dos investigadores alemães passados e presentes... Se for necessário, posso apresentar numerosas cartas que recebi da Alemanha e da França como prova de que esta obra é ansiosamente aguardada.»^ Mas tal não aconteceu: o seu «texto polémico» só encontrou editor em 1932. A única expectativa pública vinha do próprio Marx que, agora, estava a ser caricaturado pelos Jovens Hegelianos como improvável discípulo de Feuerbach. Isso enñarecia-o: a desmistificação de Hegel por Feuerbach tinha sido, na verdade, um glorioso momento de revelação, como o primeiro vislumbre do Homero, de Chapman, por parte de Keats, mas Marx há muito tinha concluído que a crítica apenas substituía um mito por outro. Tinha chegado agora a vez de Feuerbach, o homem que virara Hegel de pernas para o ar, de receber o mesmo tratamento — tratava-se de um «ajuste de contas», como dizia Marx. O seu exercício em contabilidade filosófica começou na Primavera de 1845, ano em que assentou as breves notas actualmente conhecidas por Teses sobre Feuerbach. «A principal falha de todo o materialismo anterior (o de Feuerbach incluído) é que as coisas, a realidade, a sensualidade, são apenas concebidas sob a forma de objecto, ou de contemplação, e não como activida eprática humana sensual.»'^

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Feuerbach tinha exposto as bases seculares da religião, mas, a seguir, permitiu que o p r ó p r i o d o m í n i o secular se dispersasse em nuvens de abstracção. «A questão de saber se a verdade objectiva pode ser atribuída ao pensamento humano», argumentou Marx, «não é uma questão teórica, mas prática... Toda a vida social é essencialmente^ritóVí?.. .Os filósofos interpretaram meramente o mundo de várias maneiras; a questão é mudá-lo.» A teoria sem prática era uma forma de masturbação escolástica — bastante prazenteira, mas, em última análise, infértil e sem consequências. N o entanto, Marx e Engels passaram o Inverno de 1845-46 a teorizar à farta enquanto compunham A Ideologia Alemã. O livro começa com uma daquelas generalizações de Marx para chamar a atenção: «Até hoje os homens conceberam sempre ideias erradas quanto a eles mesmos, sobre o que são e o que devem ser.» Isto é seguido por outro dos seus truques favoritos, a parábola provocadora: «Era uma vez um tipo valente que julgava que os homens se afogavam apenas porque estavam possuídos pela ideia da gravidade. Se conseguissem tirar tal ideia da cabeça, confessando, por exemplo, que se tratava de uma superstição, de um conceito religioso, ficariam sublimemente livres dos perigos da água. Ele tinha lutado toda a sua vida contra a ilusão da gravidade e todas as estati'sticas davam-lhe novas e múltiplas provas das suas nocivas consequências. Este tipo valente era o protótipo dos novos filósofos revolucionários alemães.»^ Esses filósofos eram carneiros atormentados pela ilusão de que eram lobos cujo insípido balido «apenas imitava, em forma filosófica, as concepções da classe média alemã». U m dos carneiros era o próprio Ludwig Feuerbach, cuja concepção do mundo era «limitada, por um lado, à sua mera contemplação, e, por outro, a meras sensações». Assim ele nem sequer reparava que os objectos naturais mais simples são, na realidade, produtos das circunstâncias históricas. «Por exemplo, a cerejeira, como quase todas as árvores de fruta, foi, como é de sobremaneira conhecido, transplantada há apenas alguns séculos através do comércio para as nossas regiões e, por conseguinte, só por esta acção de uma dada sociedade numa dada época é que tornou numa "certeza sensual".» Para Feuerbach, a cerejeira encontrava-se simplesmente alie. constituía um dos dons altruístas da Natureza.

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Curiosamente, e embora a intenção do livro fosse um ajuste de contas com Feuerbach, Marx reservou-lhe apenas alguns capítulos curtos. Bruno Bauer — «São Bruno» — foi despachado com rapidez semelhante. Mas 300 páginas ilegíveis foram dedicadas às loucuras de Max Stirner, autor anarquista dos Jovem Hegelianos, que propunha o egoísmo e o sibaritismo para Hbertar os indivíduos da opressão imaginária. Embora o credo existencialista de Stirner estivesse a pedi-las, um directo rápido teria dado conta do recado com maior eficácia do que o sarcasmo verboso de Marx — o qual, ironicamente, se parece como um bom exemplo do egoísmo sibarita que Stirner advogava. Apesar de todos os seus longueurs, A Ideologia Alemã é u m relato muito revelador do que Marx, que contava então 27 anos, tinha aprendido através das suas aventuras filosóficas e políticas. Tendo rejeitado Deus, Hegel e Feuerbach em rápida sucessão, ele e Engels estavam agora prontos para revelar o seu próprio plano de teoria prática ou prática teórica — aliás, conhecida por materialismo histórico. «As premissas a partir das quais começamos», anunciaram, «não são arbitrárias n e m dogmas, mas premissas verdadeiras das quais a abstracção só pode ser feita imaginariamente. São indivíduos reais, a sua actividade e as condições materiais da sua vida... Estas premissas podem, portanto, ser verificadas de forma puramente empírica.» Enquanto Feuerbach tinha argumentado que somos o que comemos, Marx e Engels insistiam que somos o que produzimos — e como produzir. «A divisão do trabalho no interior de um país conduz, ao princípio, à separação do trabalho industrial e comercial do agrícola, e, daí, à separação da cidade e do campo e ao conflito dos seus interesses. O seu desenvolvimento ulterior conduz à separação do trabalho comercial do industrial » E assim por diante. Estes variados requintes na divisão do trabalho reflectiam o desenvolvimento da propriedade — da propriedade tribal primitiva à propriedade comunitária antiga e do Estado, depois à propriedade feudal e, a seguir, à propriedade burguesa. «K estrutura social e o Estado estão constantemente a evoluir a partir do processo vital de indivíduos definidos... Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência.» A escravatura não podia ser abolida sem a máquina a vapor ou a mula, assim como a servidão não podia ser abolida sem melhoramentos na agricultura, e, em geral, «as pessoas não podem ser libertadas enquanto não conseguirem obter comida e bebida, alojamento e roupa de qualidade e quantidade adequadas.» Como é que seria essa libertação? Apesar do novo materialismo de Marx e Engels ser apresentado como a negação do idealismo, a sua própria visão

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do paraíso era um idílio pastoral — o que, visto o desprezo de Marx pela vida no campo, a qual costumava descrever como uma «idiotice rural», não deixava de ser estranhamente irónico. Sob a presente divisão do trabalho, observaram, todos os homens estavam encurralados numa esfera exclusiva de actividade: «Ele é um caçador, um pescador, um pastor, ou um crítico, e assim deve permanecer, a fim de não perder os seus meios de subsistências; enquanto numa sociedade comunista, onde ninguém tem uma esfera exclusiva de actividade, mas todos podem tornar-se eficientes em qualquer sector, a sociedade regula a produção geral e torna possível que eu faça uma coisa hoje e outra amanhã, caçar de manhã, pescar à tarde, tratar do gado ao anoitecer, criticar o que me apetecer sem nunca ter de me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico.» U m estado de nirvana um tanto ou quanto cansativo, podem algumas pessoas pensar. Engels gostava certamente de caçar e criticar, mas agradava-lhe realmente a ideia de tratar do gado após a refeição? O paraíso marxista era invocado de m o d o mais sedutora na interminável diatribe contra Stirner, o qual tinha sugerido que a divisão do trabalho se aplicava apenas àquelas tarefas que qualquer pessoa razoavelmente treinada poderia desempenhar — cozer ao forno ou amanhar a terra, por exemplo. Ninguém, insistia, podia ter executado a obra de Rafael em nome deste. O exemplo era infeliz: Rafael tinha uma data de assistentes e discípulos para completar os seus frescos, como Marx e Engels rapidamente assinalaram. Além disso, os comunistas não acreditavam que qualquer pessoa devesse, ou pudesse, produzir a obra de um Rafael, mas apenas que deveria ser permitido que um Rafael potencial se desenvolvesse sem entraves. «Sancho [quer dizer, Stirner] imagina que Rafael produziu quadros independentemente da divisão de trabalho que existia em Roma nessa época. Se ele comparasse Rafael com Leonardo da Vinci e Ticiano, veria como as obras de arte de Rafael dependiam enormemente da prosperidade de Roma, a qual ocorreu sob influência florentina, enquanto a obra de Leonardo dependia do estado das coisas em Florença e a de Ticiano, num período mais tardio, dependia do desenvolvimento totalmente diferente de Veneza. Rafael, c o m o qualquer outro artista, foi

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determinado pelos progressos técnicos, pela organização da sociedade e a divisão do trabalho... N u m a sociedade comunista não existem pintores, apenas pessoas que, entre outras actividades, também pintam.» Actividades como a caça, a pesca e, presumivelmente, a tosquia de carneiros. A pergunta de quem é que limpava as casas de banho ou ia buscar o carvão às minas nunca foi posta nem respondida. Quando um espertalhão alemão tentou apanhá-lo interrogando-o em voz alta quem é que engraxaria os sapatos sob o regime comunista, Marx replicou colericamente, «Você!» U m a vez, uma amiga sugeriu que não conseguia imaginá-lo a viver numa sociedade igualitária. «Nem eu», concordou ele. «Esses tempos hão-de chegar, mas, por essa altura, já não devemos cá estar.» Desde a sua tardia publicação neste século que têm sido feitas extravagantes declarações acerca de A Ideologia Akmã, afirmando que se trata de uma «exposição clara» da concepção marxista da história. O próprio Marx era mais realista quanto às suas limitações. «Abandonámos o manuscrito à roedora crítica dos ratos», escreveu, «tanto mais que tínhamos alcançado o nosso objectivo principal — autoclarificação.» As páginas rasgadas do manuscrito parecem, de facto, ter sido roídas nas margens por pequenos roedores, provavelmente de tendência irreconcüiavelmente hegeliana. Depois de terem resolvido a questão da teoria a seu agrado, Marx e Engels passaram rapidamente à prática — «para conquistar o proletariado europeus e, em primeiro lugar, o alemão». E onde é que estava o proletariado alemão? E m Paris, Londres e Bruxelas, claro está. A primeira organização de comunistas alemães exilados, a Liga dos Marginais, tinha sido fundado em Paris, em 1834. Os seus membros eram quase todos intelecmais da classe média — «os elementos mais sonolentos», como lhes chamava Engels — que em breve acabaram por adormecer de vez. A clandestina Liga dos Justos, que se tinha separado em 1836, era mais animada e dirigida p o r artesãos autodidactas que passaram alegremente muitas noites a conspirar. A sua política, contudo, era pouco mais do que uma vago igualitarismo derivado do utopista do século XVIII, Gracchus Babeuf Depois de participarem na sublevação parisiense falhada de Maio de 1839, vários dos Hderes da Liga fugiram para Londres, onde fundaram uma Associação Educativa de Trabalhadores Alemães, como fachada da sua sociedade secreta, que soava respeitável. As figuras mais importantes eram Karl Schapper, um corpulento compositor-tipógrafo e, por vezes, guarda

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florestal que tinha ganho os seus galões de revolucionário num ataque a uma esquadra em 1833; Heinrich Bauer, pequeno sapateiro espirituoso da Francónia; e Joseph Moll, relojoeiro de Colónia de altura média, mas enorme coragem física. «Quantas vezes», escreveu Engeles, «ele e Schapper defenderam vitoriosamente a entrada da Associação contra centenas de oponentes!» (Heróico até ao último momento, Moll foi abatido a tiro num campo de batalha alemão durante a revolta de Baden, em 1849). Engels veio a conhecer este triunvirato no decorrer de uma visita a Londres, em 1843. Eram os primeiros revolucionários da classe operária que jamais tinha conhecido e, para um impressionável jovem burguês, o seu estatuto de «homens a valer» fadlmente superou a estreiteza e ingenuidade da sua ideologia. Além do mais, eram sem dúvida eficazes, pois reestruturaram a Liga dos Justos em Londres e organizaram uma rede de apoiantes na Suíça, Alemanha e França. Onde as associações de trabalhadores eram proibidas por lei, eles faziam-nas passar por sociedades corais ou clubes de ginástica.

Embora esses conspiradores ainda considerassem Paris a cidade-mãe das revoluções, já não tratavam a filosofia francesa com o mesmo assombro ou deferência pois, agora, a Liga tinha o seu próprio teórico, o aprendiz de alfaiate Wilhelm Weitling, cujo livro A. Humanidade como é e como Deveria Se fora publicada pela Liga em 1838. Weitung, filho ilegítimo de uma lavadeira alemã, tinha a atitude angustiada e piedosa de um profeta mártir. Estaria perfeitamente à vontade entre os pregadores viajantes da Idade Média, ou as seitas milenaristas comunistas que floresceram durante a Guerra Civil inglesa, mas tinha pouco em comum com os pensadores e agitadores do século XIX. O seu credo era uma mistura caseira do I^ivro das Kevelações e o Sermão da Montanha, na qual a enjoativa homilia do catecismo era temperada com uma pitada de fogo e enxofre. Quando não profetizava um apocalipse iminente, perorava alegremente sobre um retorno ao Paraíso, uma Arcádia onde a inveja e o ódio não existiriam. Era como se um dos cavaleiros do Apocalipse tivesse de repente desmontado para bater num gato. Não se podia contudo negar que o seu evangeMsmo não tivesse poder. «Os nossos círculos respeitavam-no imenso», escreveu Friedrich Lessner, outro alfaiate comunista da Alemanha. «Era um ídolo para os seus adeptos.» E, por causa das viagens que ele efectuava pela Europa, estes discípulos formavam uma brigada multinacional impressionante. Ao fugir para a Suíça

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depois da abortada rebelião fi-ancesa de 1839, fiandou filiais da Liga dos Justos em Genebra e Zurique, o que acabou por chamar a atenção das autoridades suíças. N o decorrer de uma rusga aos seus alojamentos, a polícia encontrou provas incriminadoras — um manuscrito autobiográfico, O Evangelho de um Pobre Pecador, no qual ele se comparava a Jesus Cristo, o coitado de um marginal que fora crucificado por ousar denunciar a injustiça. Tal impudência valeu-lhe seis meses de prisão por blasfémia, seguida da sua deportação para a Alemanha — onde em breve foi novamente preso, dessa vez por tentar escapar ao serviço militar. Q u a n d o , finalmente, chegou a Londres, em 1844, o alfaiate de 36 anos era uma figura lendária que, com a sua retórica revivalista, atraía grandes multidões de socialistas alemães expatriados e Cartistas ingleses. N u m dos seus favoritos lances teatrais, levantava a perna das elegantes calças (sendo alfaiate, Weitung andava sempre vestido com fatos bem cortados) para mostrar as lívidas cicatrizes deixadas pelos gruhões dos seus carcereiros. É difícil imaginar alguém com menos probabilidade de seduzir Marx do que este vaidoso e utópico sonhador, cujo programa político se encontrava resumido no prefácio do seu Uvro Garantias de Harmonia e l^iherdade: «Queremos ser livres como as aves no céu; passar pela vida como elas, voando alegre e despreocupadamente em doce harmonia.» E a melhor maneira para conseguir levantar voo, sugeria Weitling, era recrutar um exército de 40 000 ladrões condenados — os quais, motivados pelo seu rancor contra a propriedade privada, derrubariam os poderosos e iniciariam uma nova era de paz e alegria. «Os criminosos são produto da ordem actual da sociedade.» Escreveu. «Sob o regime comunista, deixariam de ser criminosos.» N o paraíso terrestre de Weitling, todos se vestiriam com roupa idêntica (feita, sem dúvida, por ele mesmo), e aqueles que quisessem usar algo diferente teriam de o ganhar trabalhando horas extraordinárias. As refeições teriam lugar em cantinas comuns, mas as normas quanto aos talheres ainda estavam por decidir. («Estes alfaiates são tipos espantosos», comentou Engels depois de se ter encontrado com alguns adeptos de Weitling. «Há bem pouco tempo, andavam a discutir muito seriamente a questão dos garfos e das facas.») Ao chegar aos 50 anos, as pessoas deixariam de trabalhar e seriam enviadas para colónias de reforma — uma espécie de Eastbourne comunistas, mas sem os clubes de howling. Quase se pode ouvir Marx rosnar de desdém ao ouvir um tal chorrilho de asneiras. Mas ele hesitou em condená-lo publicamente. Apesar de, 1834,

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ter proclamado com patriotismo hiperbólico que «o proletariado alemão é o teórico do proletariado europeu», a verdade era que, até meados de 1840, ele tinha conhecido muito poucos trabalhadores alemães. («Não sabemos o que o proletariado faz e o facto é que dificilmente o poderíamos saber», lembrou-Ihe Engels em Março de 1845.) Ao princípio, portanto, a sua reacção perante o aparecimento de um verdadeiro pensador da classe operária originário do seu país foi como a do Dr. Johnson ao ver um cão andar sobre as patas traseiras — não anda como deve ser, mas uma pessoa fica espantada por vê-lo andar de todo — e, consequentemente, elogia-se extravagantemente o cachorro. «Onde, entre a burguesia — incluindo os seus filósofos e escritores eruditos — se pode encontrar um livro sobre a emancipação da burguesia — emancipação ^O////Í;<2 — semelhante ao de Weitung, Garantias de Harmonia e Uberdade?», perguntava-se Marx. «Basta comparar a mesquinha e insípida mediocridade da literatura polttica alemã com a estreia literária brilhante e veemente dos trabalhadores alemães, basta comparar estes gigantescos sapatos de criança do proletariado com os sapatos políticos apertados e gastos da burguesia alemã, para se profetizar que a Gata Borralheira alemã terá, um dia, físico de atleta...» A itinerante Gata Borralheira nunca foi ao baile, quer com sapatos de vidro ou de corrida. Embora os Srs. Schapper, Bauer e MoU tivessem feito uma enmsiástica recepção à chegada de Weitling a Londres, em 1845, depressa concluíram que as ideias dele eram demasiado extravagantes. Weitling ficou bastante desconsolado por eles não quererem investir nos seus inúmeros e engenhosos planos — a criação de uma nova linguagem universal, a invenção de uma máquina para fazer chapéus de palha de senhora — e até mesmo arreliado quando recusaram elegê-lo presidente da sua associação. E, em princípios de 1846, partiu para tentar a sorte em Berlim. «Se eu te contasse que género de vida levamos aqui, ficarias certamente surpreendida com os comunistas», escreveu Joseph Weydemeyer à noiva em Fevereiro. «Para cúmulo, Marx, Weitling, o cunhado de Marx e eu passámos a noite inteira a jogar. Weitling foi o primeiro a ficar cansado. Marx e eu dormimos umas horas no sofá e, no dia seguinte, fizemos companhia à mulher e ao cunhado dele. Metemo-nos numa taberna de manhã cedo e, depois, fomos de comboio a Villeworde, onde almoçámos. Regressámos muito bem-dispostos no último comboio»^. Note-se que Weitung, tendo-se retirado mais cedo, não participou na diversão do dia seguinte: a sua auréola de santidade tornava-o uma companhia pouco apropriada, especialmente

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para intelectuais burgueses. Como Engels escreveu: «Ele era, agora, o grande homem, o profeta, perseguido de país para país, que levava uma receita pronta a usar no bolso para a realização do céu na Terra, e imaginava que andavam a tentar roubar-lha. 10 Quando Heinrich Heine conheceu Weitling, ficou escandalizado pela «falta de respeito que manifestou quando conversava comigo. Não tirou o chapéu e, enquanto eu me mantive de pé diante dele, permaneceu sentado com o joelho direito levantado até ao queixo esfregando o tornozelo da dita perna com a mão esquerda»". Réplica do velho truque para mostrar as cicatrizes da prisão, mas mesmo deixou Heine impassível. «Confesso que me mostrei impressionado quando o alfaiate Weitling me falou das correntes. Eu, que uma vez em Münster beijei fervorosamente as reKquias do alfaiate John, de Leyden —- os grilhões que tinha usado e os instrumentos com que o tinham torturado que se encontram na Câmara daquela cidade — eu, que venerava esse alfaiate morto, sentia agora uma aversão insuperável por este alfaiate vivo, Wühelm Welding, embora ambos os homens fossem apóstolos e mártires da mesma causa.» Marx e Engels sentiam a mesma repulsa, especialmente quando Weitung se pôs a tratá-los por «meus caros jovens», mas, por respeito pelo seu estatuto de proletário e os longos anos passados na prisão, fizeram o possível para a ocultar. Em princípios de 1846, convidaram-no para ser membro fundador do novo Comité Comunista de Correspondência, em Bruxelas, cujo objectivo era manter «um permanente intercâmbio de cartas» com a Liga dos Justos e outras associações fraternas na Europa ocidental. Como este comité foi o Adão original a partir do qual todos os outros partidos comunistas subsequentes descendiam, vale a pena enumerar os 18 signatários fundadores: Karl Marx, Friedrich Engels, Jenny Marx, Edgar von Westphalen, Ferdinand Freiligrath, Joseph Weydemeyer, Moses Hess, Hermann Kriege, Wilhelm Weitung, Ernst Dronke, Louis Heilberg, Georg Weerth, Sebastian Seiler, Philippe Gigot, Wilhelm Wolff, Ferdinand Wolff, Karl Wallau, Stephan Born. Como a maior parte das suas sucessoras no século XX, esta célula comunista reivindicou a sua autoridade purgando quem fosse suspeito de divergência com a política oficial; Weitung foi, inevitavelmente, designado como a primeira vítima. A altura escolhida para esta humilhação ritual foi uma reunião na noite de 30 de Março de 1846, a que assistiram meia dúzia de membros mais um observador exterior, Pavel Annenkov, jovem «turista estético» russo que aparecera recentemente em Bruxelas com uma carta de apresentação de um

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dos antigos compinchas de Marx em Paris. E m b o r a não fosse socialista, Annenkov estava fascinado pela personalidade do seu anfitrião: «Marx era o tipo de homem feito de energia, vontade e inabaláveis convicções. Seu aspecto era notável. Tinha uma farta cabeleira muito preta, mãos peludas e o casaco mal abotoado; mas, independentemente da sua aparência ou do que quer que fizesse, parecia alguém com o direito e poder de impor respeito... Usava sempre palavras imperativas que não admitiam nenhuma contradição e soavam ainda mais acutilantes pelo tom quase doloroso que retinia em tudo o que dizia. Tal tom exprimia a firme convicção da sua missão de dominar a mente dos homens e impor-lhe as suas leis. Tinha perante mim a personificação de um ditador democrático.»'^ O janota WeitKng, em contraste, parecia mais um caixeiro-viajante do que um herói da classe operária. Depois de serem feitas as apresentações, todos se sentaram à volta da pequena mesa verde da sala de Marx para discutir a táctica da revolução. Engels, alto e digno, falou da necessidade de se porem de acordo quanto a uma única doutrina comum para benefício dos trabalhadores que não tinham tempo nem oportunidade para estudar teoria. Antes de terminar, contudo, Marx já estava à procura de briga. «Diz-nos uma coisa, Weitung», interrompeu, lançando um oñiar de desafio. «Tu que fizeste tanto barulho na Alemanha com os teus sermões: a que título é que justificas a tua actividade e em que é que tencionas baseá-la no futuro?» Weiding, que não esperava mais do que uma noite de lugares-comuns liberais, ficou desconcertado com este desafio abrupto. Lançou-se n u m longo e desconexo monólogo, fazendo frequentes pausas para repetir, ou se corrigir, que a sua finalidade não era criar novas teorias económicas, mas adoptar as que eram «as mais adequadas». Marx preparou-se para dar o golpe de misericórdia. Sublevar os trabalhadores sem lhes dar quaisquer ideias científicas, ou uma doutrina construtiva, era «equivalente a um modo desonesto e vaidoso de fazer sermões, pois isso pressupõe que de um lado está um profeta inspirado, e do outro apenas burros boquiabertos». Wetling corou e, em voz trémula, protestou que um h o m e m que tinha reunido centenas de pessoas sob a mesma bandeira em nome da justiça e da solidariedade não podia ser tratado daquela maneira. Consolou-se lembrando

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as inúmeras cartas de agradecimento que recebera e de que o seu «modesto trabalho era provavelmente mais importante para a causa comum do que as críticas e as análises de doutrinas feitas confortavelmente sentado numa poltrona e distante do mundo dos que sofriam». Esta tentativa de jogar o trunfo do proletariado foi mais do que Marx podia tolerar. Saltando da cadeira e batendo o punho sobre a mesa com tanta força que o candeeiro quase caiu, berrou: «A ignorância nunca ajudouninguém!» A reunião foi adiada em pleno alvoroço. «Enquanto Marx, extraordinariamente irritado e zangado, percorria a sala de um lado para o outro», informou Annenkov. «Eu despedi-me apressadamente dele e dos seus interlocutores e fui para casa, espantado com tudo o que tinha visto e ouvido.» Ninguém que conhecia bem Marx teria ficado tão espantado: durante toda a vida, ele achou que era necessário e útil denunciar os deuses falsos e os presumidos Messias do movimento comunista. Weitling continuou surpreendentemente a frequentar a casa de Marx durante algumas semanas mais e encontrava-se presente em Maio, durante outro julgamento espectacular. O réu, desta vez condenado à revelia, era o jovem estudante de VestefáHa, Hermann Kriege, que tinha emigrado recentemente para publicar um jornal em língua alemã em Nova Iorque. A 11 de Maio, e apenas com a oposição de Weitling, a seguinte moção foi passada: 1. A unha de conduta tomada pelo editor de Volks-Tribun, Herman Kriege, não é comunista. 2. A pretensão infantil de Kriege em apoio dessa linha está a comprometer o Partido Comunista, tanto na Europa como na América, visto que ele é o representante do comunismo alemão em Nova Iorque. 3. O fantástico sentimentalismo que Kriege anda a pregar em Nova Iorque, sob o nome de «comunismo», deve ter um efeito extremamente pernicioso sobre o moral dos trabalhadores se for adoptado. E m apoio da acusação, Marx e Engels apresentaram um «Circular Contra Kriege», troçando do sentimentalismo piegas do seu jornal, o Volks-Tribun, que descrevia as mulheres como «os ardentes olhos da humanidade», «verdadeiras sacerdotisas do amor» e «irmãs bem-amadas», cujo dever sagrado era conduzir os homens ao «reino da felicidade suprema». O que é uma mulher, perguntava Kriege num editorial, «sem um homem a quem possa amar, a que se possa render a sua trémula alma?» Marx e Engels afirmaram que uma

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tal pieguice amorosa «apresenta o comunismo como o oposto impregnado de amor do egoísmo e reduz u m movimento revolucionario de importancia histórica mundial às meras palavras: a m o r — ódio, comunismo — egoísmo... Cabe a Kriege reflectir a sós sobre o debilitante efeito que esse langor amoroso não pode deixar de ter em ambos os sexos, e na anemia e histeria colectiva que deve produzir nas "virgens"».^^^ Os 18 membros originais diminuíram assim para 16 — e, em breve, para 15, quando Moses Hess se demitiu antes de ser expulso. Com a reputação de Marx como «ditador democrático» a crescer, era difícil encontrar novos recrutas para o seu círculo epistolar. E m Maio, depois de se despedir de Weitling e Kriege, convidou Pierre Joseph P r o u d h o n para se juntar ao clube. «No que respeita a França, todos nós achamos que não há melhor correspondente do que você. Como sabe, os Ingleses e os Alemães têm maior consideração p o r si do que os seus próprios compatriotas... Dê-nos uma resposta rápida e creia, desde já, na minha mais sincera amizade. Respeitosamente, Karl Marx.»^"* As marcas de amizade e respeito, e a garantia de que o comité estava empenhado n u m «intercâmbio de ideias» civilizado eram minados pelo pós-escrito de Marx: «PS — Para seu conhecimento, tenho de denunciar o Sr. Grün, de Paris. Esse homem não passa de um vigarista literário, uma espécie de charlatão que trafica em ideias modernas. Tenta ocultar a sua ignorância através de frases arrogantes e pomposas, mas tudo o que consegue fazer através dessa algaraviada é tornar-se ridículo... N o livro dele sobre os "socialistas franceses", tem o descaramento de se intitular tutor de Proudhon... Tenha cuidado com esse parasita.» Mas Proudhon simpatizava com Karl Grün, publicista conhecida de O Verdadeiro Socialismo, e considerou que o aviso era pouco judicioso e de mau gosto. «Grün encontra-se em exíUo, sem dinheiro, com a mulher e dois filhos para sustentar e vivendo do que escreve. Além das ideias modernas, o que é que queria que ele explorasse para ganhar a vida?... Nada vejo de errado a não ser desgraça e penúria, e não tenho motivos para o condenar.» O carácter vindicativo de Marx preocupava muito mais Proudhon do que a inofensiva vaidade de Grün. «Vamos, se assim o desejar, colaborar para tentar descobrir as leis da sociedade», propôs.^^ «Mas, por amor de Deus, depois de termos demolido todo o dogmatismo a priori, não vamos tentar, por nossa vez, instilar outro género de

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dogmas nas pessoas... Aplaudo francamente a sua ideia de expor todas as opiniões. Que a polémica seja decente e sincera. Vamos dar um exemplo de tolerância erudita e clarividente ao mundo. Mas apenas porque nos encontramos à frente do movimento, não nos tornemos os líderes de uma nova intolerância... Não vamos considerar nenhuma tópico exausto e, mesmo depois de termos utilizado os nossos últimos argumentos, será melhor, caso for necessário, recomeçar outra vez com eloquência e ironia. Nessas condições, aceito com prazer entrar na sua associação. De outro modo — não!» Marx não podia permitir que um tal tratamento desdenhoso ficasse impune — como, aliás, Prodhoun antecipara no final da carta: «É esta, meu caro filósofo, a minha posição actual; a não ser, claro está, que eu me engane e surja uma ocasião em que você me possa repreender, repreensão essa a que me sujeitarei de boa vontade...» Tal ocasião veio a surgir uns meses mais tarde quando Proudhon publicou uma obra em dois volumes, A Filosofia da Pobreza. Marx retaliou com um ataque de cem páginas sob o título de A Pobreza da Filosofia, publicado simultaneamente em Paris e Bruxelas, em Junho de 1848, no qual ridicularizava o guru gaulês pela sua infinita ignorância. No prefácio, escreveu: «O Monsieur Proudhon tem o infortúnio de ser particularmente mal compreendido na Europa. Na França, tem o direito de ser mau economista porque é considerado um bom filósofo alemão, e na Alemanha tem o direito de ser mau filósofo porque é considerado um dos melhores economistas franceses. Sendo alemães e economistas ao mesmo tempo, desejamos protestar contra esse duplo erro. O leitor compreenderá que, nesta ingrata tarefa, tivemos muitas vezes de abandonar as nossas críticas ao Sr. Proudhon para criticar a filosofia alemã; e, simultaneamente, fazer algumas observações sobre economia política.»^''

Apesar dos inesperados ataques ad hominem (contra o homem) a Proudhon serem bastante divertidos, são essas «observações» sobre economia e filosofia que dão valor ao livro. Com A Ideóloga Alemã despachada para um sótão infestado de ratos, A Pobreí^a da Filosofia é a primeira obra pubHcada em que Marx expôs a sua ideia materialista da história. As categorias económicas, como «a divisão do trabalho», eram, argumentou, apenas a expressão teó-

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rica e transitoria das condições reais de produção. Mas Proudhon — «mantendo as coisas às avessas como um autêntico filósofo» — julgava que essas condições reais eram apenas a encarnação de leis económicas eternas, e concluiu que a divisão do trabalho era uma realidade imutável e inevitável da vida. Marx arrasou essa lógica confusa num parágrafo merecidamente famoso: «O economista, MonskurVtouâhon, percebe muito bem que os homens fabricam tecido, de linho ou de seda, em relações bem determinadas de produção. Mas o que ele não compreendeu é que essas relações sociais determinadas são tão produzidas pelos homens como pelo linho, etc. As relações sociais estão estreitamente ligadas com as forças produtivas. Ao adquirir novas forças produtivas, os homens mudam o seu m o d o de produção; e, ao mudar o seu modo de produção, ao mudar o modo de ganhar a vida, mudam todas as suas relações sociais. A produção manual dá a sociedade com o senhor feudal; a vapor, a sociedade com o capitalista industrial.» Aos olhos implacáveis de Marx, o manifesto socialista de P r o u d h o n parecia suspeitosamente c o m o uma relutante aceitação do status quo. O s trabalhadores não deveriam organizar-se para exigir melhores salários, avisava Proudhon, porque, senão, teriam de pagar preços mais caros. N e m havia nada a ganhar através da violência revolucionária. Para lá de uma vaga esperança, ou «providência» era, de facto, difícil perceber o que ele advogava. Quando é que o consentimento dócil tinha alguma vez conseguido o que quer que fosse? perguntava Marx. N a última página de J\ Pobreza da Filosofia, a sua indignação transbordou:

«O antagonismo entre o proletariado e a burguesia é uma luta de classe contra classe, uma luta que, levada a extremos, é uma revolução total. É surpreendente que uma sociedade fundada na oposição de classes culmine em contradição brutal, no choque de corpo contra corpo, como desenlace final?» Não digam que o movimento social exclui o movimento político. N ã o existe movimento político que não seja simultaneamente social. Somente numa ordem das coisas em que não haja mais classes nem antagonismo de classes é que as evoluções sociais deixarão de ser revoluções políticas Até então, na véspera de todas modificações gerais da sociedade, a última palavra da ciência social será sempre: «Combate ou morte, luta sanguinária ou extinção. A questão é, assim, inexoravelmente posta.» (George Sand)

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Proudhon não respondeu publicamente zA Pobrera da Filosofia, mas o seu exemplar tem furiosos gatafunhos nas margens de quase todas as páginas — «absurdo», «mentira», «conversa fiada», «plágio», «difamação descarada» e «a verdade é que Marx tem inveja». Uma passagem encontrada entre as suas notas descreve Marx como sendo «a lombriga do socialismo». O Comité Comunista de Correspondência tinha de encontrar outra pessoa para o representar em França. Engels mudou-se para Paris em Agosto de 1846 para apalpar terreno. «O nosso assunto prosperará imenso aqui», informou depois de falar com August Hermann Ewerbeck, líder local da Liga dos Justos. «O que resta aqui de weitUnguianos, um pequeno grupo de alfaiates, está agora em vias de desaparecer... Mas os ebanistas e os curtidores, por outro lado, são considerados gente fixe.»" Ewerbeck tinha identificado quatro ou cinco indivíduos entre eles que pareciam suficientemente dignos de confiança para serem convidados a juntarem-se à rede de correspondência. (Continuava a persistir a suposição de que todos os revolucionários deveriam ser artesãos: nesse mesmo mês, em Paris, o Journal des Economistes caricaturava Marx como «um sapateiro» com tendência para «fórmulas abstractas». Semanas mais tarde, após ter assistido a várias reuniões da Liga, Engels mostrava-se menos satisfeito. Ewerbeck, embora amigável e bem intencionado, era um chato especializado em meticulosas dissertações sobre «valores autênticos» e palestras sobre etimologia alemã. Pior ainda, ele e os outros membros tratavam as efusões de Proudhon e G r ü n como textos sagrados. «É uma desgraça ter ainda de me opor a este absurdo bárbaro. Mas temos de ser pacientes e não largar os tipos até eu me ver Hvre de G r ü n e varrido as teias de aranha do cérebro deles.»^^ Preparou o «golpe» para meados de Outubro, iniciando um debate na Liga sobre os prós e os contras do comunismo e forçando, dessa maneira, os artesão parisienses a decidirem se eram comunistas confessos ou se eram «simplesmente a favor do bem da humanidade», como G r ü n e os seus seguidores diziam. Engels preveniu que, se o voto lhe fosse contrário, «estar-se-ia nas tintas para eles» e não assistiria a outra reunião. «A força de paciência e um pouco de terrorismo», disse a Marx. «Saí vitorioso com a maioria atrás de mim.»" O principal discípulo de Grün, um velho carpinteiro chamado Eisermann, sentiu-se tão intimidado pelo aríete verbal de Engels que nunca mais apareceu. Estas ruidosas discussões depressa chegaram aos ouvidos do chefe da poHcia francesa, Gabriel Delessert, e, quando Engels soube que uma ordem

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de expulsão poderia ser emitida contra ele e Ewerbeck, decidiu afastar-se da Liga até a situação acalmar. «Graças ao Sr. Delessert, tenho tido deliciosos encontros COWÍ grisettes (jovens operárias) e divertido imenso», confessou maliciosamente, «pois quero aproveitar os dias e as noites que possivelmente me restam em Paris.» Depois de satisfazer os seus apetites carnais, Engels passou uma semana em casa de Karl Ludwig Bernays, antigo director do Vorwärts!, em Sarcelles, mas achou o ambiente intoleravelmente fétido: «O fedor é de cinco mil camas de penas por arejar multiplicado por numerosos peidos — o resultado da cozinha austríaca.»^'^ Escreveu igualmente um panfleto satírico «a fervilhar de piadas grosseiras» sobre Lola Montez, a bailarina espanhola cuja influência sobre o rei Ludwig da Baviera era motivo de diversão tanto para Marx como para Engels. Todos os editores recusaram publicá-lo, e há muito que se desconhece o paradeiro do manuscrito. Como se pode inferir de todos estes divertissements, faltavam estimulações intelectuais a Engels. «Se te for possível, vem passar uns tempos comigo em Abrib), suplicou a Marx em princípios de Março:^' «Vou-me embora por volta de 7 de Abril — ainda não sei para onde — e, por essa altura, também terei um pouco de dinheiro. Por isso, poderíamos divertir-nos ã grande em todas as tabernas... Se tivesse um rendimento de cinco mil francos, não faria mais nada senão trabalhar e divertir-me com mulheres até cair aos bocados. Se as francesas não existissem, não valeria a pena viver. Mas, enquanto \\QMSiexgrisettes, tudo bem Isso não impede uma pessoa de, por vezes, sentir vontade de falar sobre um tópico decente ou desfrutar a vida com certo requinte, o que é impossível com toda a gente que aqui conheço. Tens de cá vir.» É possível que toda aquela rebalderia tenha toldado o cérebro de Engels. Três meses depois de ter escrito essa carta, Jenny Marx deu à luz o seu primeiro filho, Edgar, um irmão pãtajennycòen, com dois anos, e Laura, com um. Como único provedor de uma mulher sempre exausta, três crianças e uma criada, Marx não se podia dar ao luxo de ir divertir-se em Paris. Desempregado e virtualmente incapaz de ser contratado, nem sequer conseguia arranjar dinheiro para uma viagem mais importante a Londres, onde a Liga dos Justos tinha convocado uma conferência para Junho, a fim de debater a sua fusão com o círculo de correspondência de Bruxelas.

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N ã o foi tanto uma fusão quanto uma tomada de passo. Marx tinha recusado aliar-se aos londrinos — Schapper, Bauer, Moll — até eles se reestruturarem numa Liga Comunista, cortando os laços com quem se tinham associados. Estavam agora dispostos a aceitar as suas exigências. Proudhon, G r ü n e Weitling deveriam ser ritualmente denunciados por «hostilidade para com os comunistas», e o lema da antiga Liga que Marx tanto desprezava — «Todos os Homens São Irmãos» — seria substituído pelo imperativo «Trabalhadores de Todos os Países, Uni-vos!» Dois meses depois da reunião inaugural da Liga Comunista em Londres, o comité de correspondência de Bruxelas converteu-se numa filial (ou «comunidade») da Liga sob a presidência de Marx. Segundo os novos regulamentos, todas as comunidades deviam ter pelo menos três e, no máximo, 12 membros, cada um dos quais tinha de «dar a palavra de honra que trabalharia com lealdade e manteria segredo».^^ Tratava-se, no final de contas, de uma organização ilegal. N o entanto, e seguindo o exemplo dos londrinos, Marx também fundou uma Associação de Trabalhadores mais aberta e menos política, que organizou debates quase parlamentares assim como sessões de «canto, recitação, teatro e eventos do mesmo género». Nas primeiras semanas, mais de cem trabalhadores tornaram-me membros. «Por pouco que pareça», escreveu Marx a George Herwegh, «a actividade pública é infinitamente refrescante».^^ Os interesses de Marx foram representado durante o congresso de Junho, em Londres, por outro comunista alemão de Bruxelas, Wilhelm Wolff, bem como pelo delegado da filial da Liga em Paris, um certo F. Engels, que chegou com uma declaração preliminar de princípios para a nova Liga Comunista. Apesar de não ter sido formalmente adoptada, essa declaração foi enviada a todas as comunidades da Europa «para séria e matura consideração». Como uma circular do quartel-general explicava: «Tentámos, por um lado, abstermo-nos de todo o comunismo de caserna que criasse sistemas, e, por outro, evitar a sentimentalidade fátua e insípida dos comunistas emocionais e lacrimosos [quer dizer, utopistas como Weitling]... Esperamos que proponham muitos acréscimos e emendas à autoridade central. Voltaremos a convocá-los para discutir o projecto com particular entusiasmo.»^^ Ninguém recebeu o convite com maior entusiasmo do que Marx, o qual, no espaço de um ano, transformou o embrionário credo de Engels num dos livros mais influentes que jamais foi publicado.

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O Manifesto do Partido Comunista talvez seja o panfleto político mais Hdo da historia humana, mas também é aquele que tem o título mais enganador: nenhum partido com esse nome existiu. Nem, já agora, foi concebido como manifesto. O que os membros da Liga Comunista queriam em 1847 era uma «profissão de fé», e u m primeiro rascunho escrito por Engels, em 1847, demonstra que eles ainda estavam unidos aos rituais de iniciação apoiados pelas seitas clandestinas francesas: l.'' PERGUNTA: És comunista? RESPOSTA: Sou. 2,^ PERGUNTA: Qual é o objectivo do comunismo? RESPOSTA: Organizar a sociedade de modo a que todos os seus membros possam desenvolver-se e usar todas as suas capacidades e poderes em total liberdade, mas sem infringir as condições básicas dessa sociedade. 3.'PERGUNTA: Porque meios queres alcançar esse objectivo? RESPOSTA: Através da eliminação da propriedade privada e da sua substituição pela propriedade em comum. ^ E assim por diante ao longo de mais sete páginas e culminando na 22." pergunta («Rejeita o comunismo as religiões existentes?») à qual a resposta correcta é que o comunismo «tornas todas as religiões existentes supérfluas e suplanta-as». D e uma posição vantajosa moderna, este laborioso questionário lembra irresistivelmente a comédia de Monty Python em que Marx aparece num concurso da televisão apresentado por Eric Idle:

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IDLE: O desenvolvimento do proletariado industrial é condicionado por que outro desenvolvimento? MARX: Pelo desenvolvimento da burguesia industrial. IDLE: Sim, senhor. Muito bem, Karl, estás quase a ganhar um conjunto de mobílias para sala de estar. Vamos, agora, passar à pergunta número 2. O que é a luta de classes? MARX: Uma luta política. IDLE: Formidável! Mais uma pergunta e essa Hnda mobília não materialista será tua. Estás pronto, Karl? És muito corajoso. Aqui vai a pergunta final: quem ganhou a taça da Associação Inglesa de Futebol em 1949? MARX: E h . . . eh... o controlo dos meios de produção pelo operário? A . . . a luta do proletariado urbano? IDLE: Não, Karl. Foi o Wolverhampton Wanderers que derrotou o Leicester por 3 a 1. MARX: O h , porra! O catecismo de Engels talvez fosse adequado a uma sociedade secreta como a velha Liga dos Marginais ou a Liga dos Justos — rnas isso era a tradição conspiratória e furtiva da qual Marx queria salvar a nova Liga Comunista. Porquê, perguntava ele, deviam revolucionários esconder as suas opiniões e intenções? Engels entendeu o que ele queria dizer e admitiu que «como uma determinada porção de história tem de ser narrada, a forma adoptada é bastante inadequada». Ao regressar a Paris em Outubro, depois de um prolongada estada em Bruxelas, descobriu que Moses Hess tinha redigido outro rascunho. Confissão, que tresandava a utopia e mal mencionava o proletariado. Engels ridicularizou linha por linha o documento durante uma reunião da Liga Comunista local — «e ainda a meio quando a rapaziada se declarou satisfeita», como informou triunfalmente Marx em Bruxelas. «Sem encontrar nenhuma resistência, consegui que me confiassem a tarefa de fazer novo rascunho para ser discutido na próxima sexta-feira e enviado para Londres nas costas dos comunistas. Claro que ninguém pode saber isso, senão todos nós perderemos o lugar e haverá o raio de uma zaragata.»^ Engels terminou a nova versão em poucos dias. Era menos do que um credo e mais como um exame, com uma longa narrativa histórica das origens e desenvolvimento do proletariado, bem como «toda a espécie de assuntos

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secundários». No entanto, era ainda escrito em estilo pergunta e resposta do anterior. («O que é o comunismo? Resposta: O comunismo é a doutrina das condições para a emancipação do proletariado. O que é o proletariado? Resposta: O proletariado é a classe da sociedade que procura os seus meios de existência, inteira e unicamente, através da venda do seu trabalho.. .»)^ O local da reunião do congresso foi no quartel-general da Associação Educativa dos Trabalhadores Alemães, por cima da taberna Red Lion na Rua Great Windmill, no Soho. A intensidade do debate pode ser avaliada pelo facto de ter durado dez dias — sem dúvida com ocasionais incursões ao andar de baixo para refrescos urgentemente necessitados. Poucos registos contemporâneos sobreviveram, mas a dominante presença de Marx foi descrita anos mais tarde por Friedrich Lessner, alfaiate de Hamburgo que vivia em Londres desde Abril de 1847: «Marx era um líder nato do povo. O seu discurso foi breve, convincente e irresistível na sua lógica. Nunca disse palavras supérfluas, cada frase era um pensamento e todo o pensamento era um elo essencial na cadeia da sua demonstração. Marx nada tinha de sonhador. Quanto mais me dava conta da diferença entre o comunismo da época de Weitling e do Manifesto Comunista, mais claramente percebia que Marx representava a maturidade do pensamento socialista.»'^ No fim da maratona de dez dias, Marx e Engels levaram tudo à frente deles. O congresso de Junho, ao qual Marx não tinha assistido, declarara simplesmente que a Liga «tem por objectivo a emancipação da humanidade através da divulgação da teoria da comunidade de propriedade e a sua introdução prática o mais rapidamente possível»^. Os regulamentos aprovados no segundo congresso eram muito mais combativos e sólidos: «O objectivo da Liga é derrubar a burguesia, a lei do proletariado, a abolição da antiga sociedade burguesa que assenta no antagonismo de classes e a fundação de uma nova sociedade sem classes e sem propriedade privada»''. Os delegados concordaram por unanimidade quanto a estes prihcipios~i3î[sicoB"e'eîiUiaïr^aifflrp Marx e Engels de redigir um manifesto que resumisse a nova doutrina. Marx não se mostrou muito apressado em aceder a esse pedido. Após regressar a Bruxelas, em meados de Dezembro, realizou uma série de palestras na Associação dos Trabalhadores Alemães sobre economia política, argumentando que o capital não era um objecto inanimado, mas uma «re-

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lação social». Escreveu vários artigos para o Deutsche-BrüsselerZeitungà-tícndendo os comunistas e antecipando com deleite a chegada da revolução em França. Fez um longo discurso sobre o comércio livre e, numa festa do fim do ano dada pela Associação dos Trabalhadores, propôs um brinde à Bélgica — «exprimindo, com vigor, apreço pelos benefícios de uma constituição liberal de um país onde há liberdade de expressão e de associação, e onde a semente do humanitarismo pode florescer para bem de toda a Europa». (Mal ele sabia que, dentro de uns meses, iria denunciar a «brutalidade sem precedentes» e a «fúria reaccionária» deste outrora paraíso liberal quando o G o verno belga lhe deu o prazo de 24 horas para sair do país.) D e 17 a 23 de Janeiro, Marx visitou Gent para criar uma filial da Associação Democrática. A maior parte dos escritores reconhecerão os sintomas: adiamentos incessantes, procura de distracções, vontade de fazer tudo excepto o trabalho entre mãos. E, do mesmo modo, a maior parte dos editores irá simpatizar com a crescente impaciência dos líderes da Liga Comunista em Londres que enviaram um ultimato a Bruxelas no dia 24 de Janeiro de 1848: «O Comité Central encarrega o seu comité regional em Bruxelas de comunicar com o cidadão Marx e lhe participar que, se o Manifesto do Partido Comunista, a redacção do qual ele se comprometeu a executar n o recente congresso, não chegar a Londres a 1 de Fevereiro do ano corrente, outras medidas serão tomadas contra ele. Caso o cidadão Marx não ter cumprido essa tarefa, o Comité Central solicita o retorno imediato dos documentos colocados à disposição do cidadão Marx.»^ Habitualmente, Marx desembaraçava-se às mil maravilhas quando tinha um prazo fixo a cumprir e este aviso final parece ter dado resultado. Embora todas as edições modernas do Manifesto tenham os nomes de Marx e Engels — e as ideias de Engels certamente tiveram influência — , o texto que chegou finalmente a Londres em princípios de Fevereiro foi escrito somente por Karl Marx, o qual, no seu gabinete da Rue d'Orléans, 42, passou sozinho noites a fio a garatujar furiosamente no meio de uma espessa nuvem de fumo de charuto. Kierkegaard diz algures que a vida deve ser vivida em frente, mas pode apenas ser compreendida em sentido contrário. Isto também se aplica a eras e épocas: a realidade de um período particular pode não se tornar aparente até chegar ao fim. Ou, como Hegel escreveu na sua Filosofia do Direito, «o mocho de Minerva estende as asas só ao entardecer». Q u a n d o Marx escreveu o

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Manifesto Comunista, em Janeiro de 1848, imaginou que podia ver o mocho a preparar-se para levantar voo: a breve mas brilhante era do capitalismo burguês tinha servido a sua finalidade transitoria e, dentro de pouco tempo, ficaria enterrado sob as suas próprias contradições. Conduzindo operários isolados para fábricas, a indústria moderna tinha criado condições para que o proletariado se associasse e constituísse uma força dominante. «O que, por conseguinte, a burguesia produz é, sobretudo, os seus próprios coveiros», observou com satisfação n o final da primeira secção do manifesto. «A sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis.» Talvez porque pensava que estava a ensaiar uma oração fúnebre, podia dar-se ao luxo de ser generoso para com o inimigo vencido. Aqueles que nunca leram Marx, mas o conhecem apenas como uma espécie de papão sedento de sangue cujo nome é invocado para assustar a classe média, ficam frequentemente surpreendidos por descobrir os elogios que ele dispensou à burguesia. Marx não era h o m e m para subestimar os sucessos do inimigo: «Historicamente, a burguesia desempenhou u m papel muito revolucionário. Sempre que teve vantagens, a burguesia pôs termo a todas relações feudais, patriarcais e idílicas. Quebrou impiedosamente as correntes feudais que ligavam o homem aos seus "superiores namrais" e não deixou outro elo entre os homens que o interesse pessoal, o empedernido "pagamento a dinheiro". Afogou os êxtases mais celestiais de fervor religioso, de entusiasmo cavalheiresco e de sentimentalismo fariseu nas águas geladas do cálculo egoísta. Reduziu o valor pessoal a moeda de troca e, no lugar das inumeráveis e imutáveis liberdades colocou essa liberdade única e sem escrúpulos •— o Comércio Livre. N u m a palavra, substituiu a exploração brutal, directa, desavergonhada e nua pela exploração velada por ilusões políticas e religiosas... A burguesia revelou como o brutal desenvolvimento da Idade Média, que os reaccionários tanto admiram, encontrou o seu complemento apropriado na maior indolência. Foi a primeira a mostrar o que a actividade humana pode causar. Conseguiu maravilhas superiores às pirâmides egípcias, aquedutos romanos e catedrais góticas; organizou expedições que obscurecem todos os antigos êxodos de nações e cruzadas.» U m crítico moderno descreveu o manifesto como sendo «uma celebração Krica das obras burguesas»^. E, de certo modo, assim é: Marx celebrava o capi-

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taltsmo como um fenómeno temporario, como o precursor de uma verdadeira revolução. Mas o que ele julgava ser o estertor da morte eram, na verdade, as dores de parto. Os sinais que ele interpretou mal — os uivos, o esbracejar, os lençóis manchados de sangue — são ainda mais conspícuos hoje do que na sua época, embora raramente lhe seja dado crédito por ter reparado neles. «Através da exploração do mercado mundial, a burguesia tem dado um cunho cosmopolita à produção e consumo em todos os países», assinalou. «Em lugar das antigas necessidades, satisfeitas pela produção do país, encontramos novas necessidades que, para sua satisfação, precisam dos produtos de países e climas distantes.» Quem observar as frutas e legumes que se encontram nos balcões de um supermercado — pilhas de mangas, abacates, erviIhas-doces e morangos fora da temporada — , verá o que ele queria dizer. Enquanto vai importando produtos exóticos, a burguesia impõe os seus próprios produtos, gostos e hábitos em todos os demais: «Numa palavra, cria um mundo ã sua própria imagem.» Para reconhecer a verdade disto basta visitar Pequim — a capital de um Estado comunista — onde o centro da cidade se parece arrepiantemente com Main Street, EUA: McDonald's, Kentucky Fried Chicken, Haagen-Dazs e Pizza Hut, além de várias filiais de Chase Manhattan e Citybank para depositar os lucros. «O que acontece na produção material, também acontece na intelectual», continua o Manifesto.
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E m 1998, quando da comemoração do 150." aniversário de Manifesto, inúmeros académicos e políticos acorreram para esfregar as mãos de contentes perante a imbecilidade do velhote. Um intelectual britânico, lorde Skidelsky, resmungou que Marx «tinha-se enganado» ao profetizar uma revolução iminente — e que a sua obra não valia, por conseguinte, uma segunda leitura. Mas deu-se caso de que, poucos dias depois da publicação do Manifesto, a revolução rebentou realmente. Primeiro em Paris e, a seguir, com a velocidade de um incêndio no mato, em grande parte do continente europeu. Foi extinguida com a mesma rapidez e o triunfalismo burguês começou o seu longo reino. Nesse sentido, o optimismo de Marx foi deslocado, embora a sua visão do mercado global tivesse sido estranhamente presciente. Como é que ele podia estar tão errado e, contudo, tão certo? E m estado de espírito profético, Marx pensava como um jogador de xadrez e concebia um ataque fatal ao rei do adversário em seis jogadas — sem reparar que, entretanto, o oponente podia fazer-lhe xeque mate muito mais cedo. Se o outro jogador cometia um erro, os cálculos de Marx eram vindicados. E, mesmo que Marx perdesse, podia sempre dizer que, se o jogo durasse mais uns minutos, teria provado que tinha razão. Conhecemos b e m esses jogadores de xadrez — estratégia brilhante, tácticas frágeis — e Marx era, efectivamente, um deles. Apesar de imbatível a jogar às damas, faltava-lhe a paciência manhosa requerida para as complexidades infinitas do tabuleiro de xadrez. O seu estilo era ruidoso, controverso, irascível. N o s princípios da década de 1850, pouco depois da sua chegada a Londres, terminava muitas noites furioso quando mais um exilado alemão lhe encurralava o rei. «Uma noite», contou Wühelm Liebknecht, «Marx anunciou triunfalmente que tinha inventado uma nova abertura e que nos ganharia a todos. O desafio foi aceite e, de facto, ele derrotou-nos a todos, uns atrás dos outros. Aos poucos, contudo, fomos aprendendo à custa das derrotas e eu consegui dar-Ihe xeque mate. Já era muito tarde e Marx pediu irritadamente desforra para a manhã seguinte em casa dele.» As 11 da manhã do dia seguinte, Liebknecht apresentou-se devidamente no alojamento de Marx na Rue Dean e veio a saber que o grande h o m e m tinha passado a noite inteira a aperfeiçoar a sua «nova jogada». A o princípio, parecia novamente dar resultado e Marx festejava cada vitória pedindo bebidas e sanduíches. Mas, depois, o combate recomeçou a sério: os dois homens passaram toda a tarde e parte da noite frente a frente diante do campo

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de batalha branco e preto até Liebknecht, à meia-noite, conseguir dar xeque mate ao seu oponente duas vezes seguidas. Marx estava disposto a continuar até de madrugada, mas a sua enérgica governanta, Helene Demuth, estava farta: agora, ordenou aos adversários fatigados, «já chega!» N o dia seguinte, de manhã cedo, Liebknecht foi acordado por alguém a bater à porta. Era Helena que lhe trazia um recado: «A Sra. Marx suplica-lhe que não jogue mais xadrez, à noite, com o Mouro... Quando ele perde, torna-se extremamente desagradável.» (Ver pós-escrito 3: o único registo de um jogo de xadrez jogado por Marx.) Liebknecht nunca mais voltou a jogar xadrez com Marx, mas a sua descrição da técnica marxista — «tentava compensar o que lhe faltava de conhecimentos com zelo, impetuosidade e ataques de surpresa». — pode ser aplicada ao Manifesto Comunista. Mais cedo ou mais tarde, reis, rainhas, bispos e cavalos eram obrigados a submeter-se, derrotados pela pura determinação dos que os desafiavam. Como a «nova abertora» de que se sentia tão orgulhoso, o manifesto era uma arma de vingança, forjada e aperfeiçoada ao longo de noites de raiva sem dormir, contra os seus superiores adversários. Os seus detractores actuais também estão, por conseguinte, a não entender a questão. Os textos da década de 1840 incluem passagens que, agora, parecem ligeiramente bizarras ou desactualizadas; o mesmo se poderia dizer de muitos manifestos eleitorais e editoriais publicados apenas há um ano ou dois. A intenção de Marx nunca foi de escrever textos sagrados e eternos, embora gerações de discípulos os encarem, por vezes, como tal. O primeiro parágrafo — com a referência a Metternich, Guizot e o czar — realça o facto de se tratar de uma artigo perecível, redigido num momento específico e com uma finalidade particular, sem pensar na posteridade. A coisa verdadeiramente notável quanto ao manifesto é que tenha qualquer ressonância contemporânea. Recentemente, contei nada menos do que nove edições inglesas à venda numa livraria de Londres. Até mesmo Karl Marx, que nunca foi dado à falsa modéstia, mal podia ter esperado que o seu pequeno panfleto ainda teria sucesso no fim do milénio. A inesquecível primeira frase do Manifesto Comunista possui a força de um relâmpago. «Um assustador papão percorre a Europa...» Isso, pelo menos, foi o que apareceu na primeira edição inglesa publicada pelo jornal Ked Republican, em 1850, e traduzido por Helen Macfarlane, feminista Cartista que conhecia Marx e Engels e era muito admirada por ambos. D e certo modo.

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porém, a ideia do papão assustador nunca pegou. A versão que toda a gente agora conhece é a tradução, por Samuel Moore, publicada pela primeira vez em 1883 e reeditada numerosas vezes depois: «Um espectro assombra a E u r o p a . . . o espectro do comunismo. Todos os poderes da velha Europa fizeram uma aliança sagrada para exorcizar esses espectro. O Papa e o czar, Metternich e Guizot, os radicais franceses e os espiões da poHcia alemã.» Esta salva de abertura ficou desactualizada quase logo após Marx a ter disparado. A edição alemã do manifesto foi publicada a 24 de Fevereiro de 1848, ou próximo dessa data, composta, utilizando novos tipos góticos, na Associação Educativa dos Trabalhadores, em Londres, e, a seguir, entregue a toda a pressa numa tipografia perto da rua Liverpool pelo jovem e prestável Friedrich Lessner. «Estávamos intoxicados de entusiasmo», relatou Lessner. Quando ele foi buscar os exemplares — apropriadamente encadernados em amarelo-vivo — já havia de notícias vindas de França que a revolução tinha começado e que se levantavam barricadas nas ruas de Paris. François Guizot, o h o m e m que tinha assinado a ordem de expulsão de Marx em 1845, foi demitido do cargo de primeiro-ministro e o rei Luís Filipe abdicou no dia seguinte com o trono literalmente a arder. Uma outra bete noire de Marx, o chanceler austríaco, Metternich, foi derrubado dentro de três semanas e, a 18 de Março, a agitação alastrou-se para Berlim. O galo gaulês tinha cantado e, de repente, toda a Europa tinha despertado. «A nossa era, a era de democracia, está a desmoronar-se», escreveu Engels num entusiástico despacho ao Deutsche-Brüsseler Zeitung. «As chamas das Tulherias e do Palais-Royal são a aurora do proletariado. O regime burguês cairá por toda a parte ou será destruido. A Alemanha, esperamos, será a próxima e, agora ou nunca, erguer-se-á da sua degradação...» "^ Mas a Alemanha — ou, aüás, o rei da Prússia — tinha outras ideias. Os seus espiões na Bélgica andavam a vigiar o Deutsche-Brüsseler Zeitung com horror crescente. «Este nocivo jornal (informou um agente da poKcia) deve sem sombra de dúvida exercer a mais nefasta das influências sobre o público pouco educado a que se dirige. Apresenta a sedutora teoria da divisão da riqueza aos operários e trabalhadores como sendo um direito nato e inculca neles um ódio profundo à classe dirigente e ao resto da comunidade. Se tais actividades conseguirem minar a religião e o respeito às leis, contaminando assim as classes mais baixas da população, a pátria e a civilização correm grande perigo.»

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Já em Abril de 1847, o embaixador pf ussiano tinha exigido, sem qualquer efeito, a supressão desse incendiário pasquim que «atacava o governo de Sua Majestade com selvajaria e virulência revoltantes». Mas, com a proclamação de uma república em França, a polícia belga entrou em pânico e, na tarde de 3 de Março de 1848, Marx recebeu uma ordem de expulsão assinada pelo rei Leopoldo I, da Bélgica, ordenando-lhe que abandonasse o país dentro de 24 horas e que nunca mais voltasse. Por feliz coincidência, ele já estava a planear partir. Paris era a cidade onde a acção se estava a passar e ele acabara de receber um fraternal convite de Ferdinand Flocon, director de La Reforme e, agora, m e m b r o do governo provisório francês. «Como é burro esse Flocon!», tinha escrito Engels há apenas quatro meses, chamando-lhe um imbecil «que vê tudo através dos olhos de um empregado francês de terceira categoria num banco de quarta categoria.»^" Mas, se Flocon estava a par do desprezo que Marx e Engels lhe votavam, a sua missiva não o dava a entender: «Bom e leal Marx, O solo da República Francesa é asilo e refúgio para todos os amigos da liberdade. A tirania exilou-te, mas, agora, a França livre abre-te as portas, a ti e a todos os que lutam pela nossa causa sagrada, a fraternal causa de todos os povos.»" Marx não precisou de mais encorajamentos para fazer as malas — e, durante o resto do dia, foi exactamente o que fez. A uma da manhã, contudo, dez agentes da polícia entraram-lhe em casa e arrastaram-no para a prisão da câmara municipal, onde foi encarcerado juntamente com um «louco furioso» que passou a maior parte da noite a tentar dar-lhe um murro no nariz. O motivo oficial dado para a detenção foi que o seu «passaporte não estava em ordem», muito embora ele tenha apresentado nada menos do que três passaportes devidamente carimbados e datados além da ordem de expulsão assinada pelo rei. Mas as suspeitas da polícia podem não ter sido caprichosas como parecem. E m meados de Fevereiro, a mãe tinha-lhe enviado a avultada soma de seis mu francos em ouro, parte da herança de Heinrich Marx, e a maior p a r t e desse dinheiro fora i m e d i a t a m e n t e u s a d o em actividades subversivas. Segundo um dos seus biógrafos mais recentes, David

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McLellan, «a polícia suspeitava (embora não houvesse provas) que Marx estava a usá-lo para financiar o movimento revolucionário». Existem realmente amplas provas — uma boa parte delas dada pela própria Jenny von Westphalen. «Os trabalhadores alemães (em Bruxelas) tomaram a decisão de se armar», admitiu ela. «Punhais, revólveres, etc. foram comprados e Karl de boa vontade lhes deu o dinheiro, pois tinha acabado de receber uma herança. O G o v e r n o viu nisto tudo uma conspiração e planos criminosos: Marx recebe dinheiro e compra armas, logo, temos de nos ver livres dele.»^^ O tom de inocência ofendida dificilmente pode ser justificado pela confissão dela: se as autoridades pudessem associar o marido com o arsenal de «punhais, revólveres, etc., ele ficaria metido, até às espessas sobrancelhas, numa grande encrenca. Profundamente alarmada, Jenny saiu imediatamente de casa para dar a notícia da prisão do marido a um advogado da esquerda deixando os três filhos pequenos ao cuidado de Helene. Ao voltar, de madrugada, a porta estava guardada por um polícia que delicadamente lhe disse que, se ela desejasse falar com MonskurMarx, ele teria muito prazer em acompanhá-la. Mas, assim que chegaram à esquadra, Jenny foi presa por "vadiagem" — aparentemente porque não trazia d o c u m e n t o s de identidade com ela — e enfiada numa cela escura com "prostitutas do mais baixo nível". "Quando, no dia seguinte, Jenny compareceu, um magistrado mostrou-se sarcasticamente surpreendido por a polícia não ter, já agora, prendido igualmente as crianças."»" Ela e Karl foram soltos às três da tarde — o que lhes deu apenas duas horas para tratar dos seus assuntos, pegar nos filhos e apanhar o comboio para Paris. Jenny vendeu à pressa algumas posses, mas teve de deixar as pratas da família e a melhor roupa branca com um amigo livreiro. Os Marx foram obrigados a viajar sob escolta da polícia até à fronteira, sem dúvida para poderem apreciar, pela última vez, a hospitalidade belga. Fatigados pela noite passada na prisão, Karl e Jenny fizeram uma viagem horrível. N ã o havia lugares sentados e pouco espaço de pé, pois o comboio ia cheio de tropas belgas a caminho da fronteira para guardar o país contra o contágio revolucionário. N a etapa francesa, os passageiros tiveram de descer em Valencienne — onde os cocheiros «luditas» tinham aproveitado a confusão para arrancar os carris e destruir as locomotivas que lhes roubavam a subsistência — e continuar a viagem de autocarro. Ao chegar a Paris, a 5 de Março, Marx encontrou as ruas cobertas de vidro partido e pedras da calçada. C o m o para compensar o que tinha perdido, mergulhou de cabeça na luta e, sem demora, meteu mãos à obra. Logo no

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dia seguinte avisou a Liga Comunista de Londres que o quartel-general fora transferido para Paris e, a 9 de Março, a liga aprovou por unanimidade a sua proposta de que todos os membros usassem «uma fita vermelha-viva» nos casacos. Como a liga ainda era uma organização meio clandestina, Marx também fundou um Clube de Trabalhadores Alemães, cujo comité foi anunciado no jornal l^ Reforme:«W. Bauer, sapateiro; Hermann, ebanista;}. Moll, relojoeiro; Wallau, tipógrafo; Charles Marx; Charles Shapper.» Este último era, na verdade, compositor-tipógrafo, mas é difícil de imaginar qual o ofício declarado por Marx; provavelmente o de «provocador». Era assim, sem dúvida, que era considerado por alguns camaradas exilados — em particular pelo seu velho colega, George Herwegh, e pelo antigo oficial prussiano, Adalbert von Bornstedt, que tinham concebido o plano louco e romântico de formar uma <degião alemã» para marchar triunfalmente pela Alemanha dentro e Libertá-la. E, depois, invadiriam a Rússia. «Oh, ousem isso pelo menos por um dia!», era o slogan de recrutamento de Herwegh. O governo provisório francês, em pulgas para ver esses quixotescos estrangeiros pelas costas, ofereceu bilhetes de graça e o salário diário de 50 cêntimos ao dia por cada voluntário. Marx acusou Herwegh e Bornstedt de «estarem a portar-se como canalhas», e rejeitou o plano considerando-o uma aventura arrogante que estava destinado a terminar ignominiosamente. E tinha razão: o miserável exército de Herwegh, o qual, provavelmente, não contava com mais de mil homens, partiu para a Alemanha a 1 de Abril, no dia das mentiras, e foi desbaratado assim que atravessou a fronteira. O que era preciso para fazer uma revolução na Alemanha, argumentava Marx, não era um regimento de poetas e professores a brandir baionetas em segunda mão, mas constante agitação e propaganda. Logo que Engels se juntou a ele em Paris, a 21 de Março, ambos escreveram um panfleto intitulado «Exigências do Partido Comunista na Alemanha», o qual foi rapidamente publicado pelos jornais democráticos de Berlim, Trier e Düsseldorf Um crítico moderno declarou que esse programa, com 17 pontos, foi «calculado para intimidar a burguesia». Longe disso: como a Alemanha não possuía proletariado digno desse nome, Marx percebeu que a primeira fase da sua campanha tinha de ser uma revolução burguesa. Pelos seus padrões, as «exigências» eram, por conseguinte, surpreendentemente modestas. Incluíam apenas quatro dos dez pontos do Manifesto Comunista — impostos progressivos sobre os rendimentos, educação gratuita, propriedade estatal de todos

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os meios de transporte e a criação de um banco nacional. Para dar ênfase às suas intenções, Marx acrescentava que o banco do Estado substituiria as notas por moedas, tornando assim os meios universais de troca mais baratos e libertando o ouro e a prata para serem usados no comércio exterior. «Esta medida», escreveu, «é necessária para unir os interesses da burguesia conservadora à causa da revolução.» Houve outras concessões notáveis. O Manifesto Comunista tinha advogado «a aboUção de todo o direito a heranças» (embora isso não tivesse impedido Marx de aceitar uma herança paterna de seis mil francos); as «Exigências sugeriam meramente que as heranças seriam "reduzidas". Enquanto o Manifesto tinha p r o p o s t o a nacionalização de todas as terras, o texto das "Exigências" limitava-se a assinalar as "propriedades feudais e principescas"». Marx tentou mesmo seduzir os camponeses e os pequenos agricultores — os quais em privado desprezava — , concedendo-lhes empréstimos estatais, consulta legal gratuita e o fim de todas as obrigações feudais. Para provar como as «Exigências do Partido Comunista» eram moderadas, basta indicar que muitas delas — incluindo sufrágio universal, pagamento de salários a representantes parlamentares e transformação da Alemanha numa «única república indivisível» — foram desde então aceites por governos cujas credenciais capitalistas são evidentes. Sujeitar-se aos caprichos dos camponeses e da pequena burguesia não fazia mal, mas, agora, a tarefa mais urgente de Marx era sublevar a consciência das massas teutónicas. E m fins de Março e princípios de Abril, os membros da Liga Comunista em Paris partiram para a Alemanha; a maior parte com destino às suas cidades natais para iniciar o processo de educação e organização. Karl Schapper foi para Nassau e Wilhelm Wolff para Breslau.
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Código de Napoleão — herança dos tempos da ocupação francesa — ainda aí se encontrava em vigor e permitia alguma liberdade de imprensa. O s Marx partiram de Paris na primeira semana de Abril de 1848, acompanhados por Engels e Ernst Dronke, um radical alemão de 26 anos, que já tinha a seu crédito um romance, uma condenação e uma fuga da prisão. Após uma breve paragem em Mainz, separaram-se: Engels rumo a Wuppertal, na esperança de persuadir o pai e os amigos a investir no novo jornal; Dronke para casa de um tio em Koblenz; e Jenny e os filhos para Trier, onde tencionavam ficar com a mãe durante umas semanas até Karl obter uma autorização de residência. Assim que chegou a Colónia, Marx solicitou devidamente às autoridades que lhe restaurassem a nacionalidade prussiaha, a qual perdera m 1845. Declarou que queria lá instalar-se com a família/para escrever «um livro sobre economia», omitindo discretamente o seuplano de fundar um jornal diário. As autoridades, de qualquer modo recusaram, deixando assim em aberto a possibilidade de poderem expulsá-lo se ele causasse sarilhos. As tentativas de Engels estavam igualmente a ser contrariadas. «Há poucas perspectivas de vender aqui quaisquer acções», escreveu de Barmen a 25 de Abril. «A verdade é que, aufond, até os burgueses radicais daqui nos vêem como os seus principais inimigos futuros e não tencionam meter-nos nas mãos armas que, dentro de pouco tempo, nós viraríamos contra eles»." Mais valia, pois as intenções de Marx eram exactamente essas. «Não há nada a obter do meu velho», prosseguiu Engels. «Mais depressa no daria um tiro de caçadeira do que mil táleres.» N o fim, Marx teve de deitar à mão ao que restava da sua herança para assegurar que o jornal começasse a ser publicado a 1 de Junho de 1848. A data da saída do primeiro número deveria ter sido 1 de Julho, mas «a renovada insolência dos reaccionários» convenceram-no de que não havia tempo a perder. («Os nossos leitores terão, por conseguinte, de nos desculpar», escreveu no primeiro número, «se nos primeiros dias não conseguirmos oferecer a grande variedade de notícias e artigos que as nossas conexões por todo o mundo nos deveriam permitir fazê-lo. Dentro de alguns dias poderemos satisfazê-los inteiramente».) O conselho editorial era controlado por antigos membros da Liga Comunista, incluindo o poeta revolucionário Georg Weerth, Ernst Dronke e os jornalistas Ferdinand Wolff e Wühelm Wolff (Para evitar confusões, estes dois Wolff não tinham nenhum grau de parentesco e eram respectivamente

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alcunhados Red Wolff & I^upus). Mas, como Engels admitiu, o jornal era essencialmente «uma ditadura governada por Marx». Segundo Stephan Born, que visitou a redacção uns meses mais tarde, até mesmo os súbditos mais leais do tirano achavam por vezes difícil enfrentar esta caótica autocracia. «As queixas mais amargas sobre Marx provinham de Engels. "Ele não é nenhum jornalista", dizia. " E nunca o será. Leva um dia inteiro para escrever um artigo que outra pessoa faria num par de horas, como se se tratasse de u m problema profundamente filosófico. Faz alterações, aperfeiçoa e muda as mudanças, e por causa da sua infatigável meticulosidade nunca termina a tempo." Era um autêntico alívio para Engels poder, uma vez por outra, desabafar.»^^ Embora Marx não fosse certamente cumpridor de prazos. Born talvez esteja a exagerar. O Neue Rheinische Zeitiung era pubHcado diariamente, com frequência acompanhado de um volumoso suplemento para acomodar todas as notícias e artigos que não cabiam na secção principal, e, em ocasiões especiais, também saía uma edição à tarde. Se o director fosse tão lento como Born alegava, o jornal nunca chegaria à tipografia. O que distinguia o Neue Rheinische Zeitung do resto da imprensa «democrática» na Alemanha era a sua preferência por informações sobre teorias de longo fôlego. Reunindo cuidadosamente os factos que convinham aos seus objectivos, Marx achava que conseguia muito mais do que as eruditas reflexões liberais sobre o significado do republicanismo. Também prestava particular atenção às actividades dos cartistas na Grã-Bretanha e aos jacobinos em França, na esperança de que estes alertariam os leitores quanto ao necessário antagonismo entre a burguesia e o proletariado — antagonismo esse que ele não ousava articular mais explicitamente. (A primeira coisa que fez ao chegar a Colónia foi fazer-se assinante de três jornais ingleses, The Times, o Telegraph e o Economist) Os 12 meses que Marx viveu na Alemanha, entre 1848 e 1849, são muitas vezes denominado «o ano louco», e ele parece realmente ter passado esse período a espumar de raiva — sobretudo contra ele mesmo enquanto andava a tentar harmonizar dois impulsos irreconciliáveis. O dilema era óbvio para quem tivesse üdo mais atentamente o Alanifesto Comunista: Mãtx argumentava que os comunistas deveriam encorajar o proletariado a apoiar a burguesia «sempre que esta agisse de forma revolucionária» e, ao mesmo tempo, instilar nos trabalhadores «o hostil antagonismo existente entre a burguesia e o proletariado». As classes médias — não se pode viver com elas nem sem elas.

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Os Hberais burgueses, incluindo vários dos seus accionistas, tinham fé em duas instituições democráticas estabelecidas depois dos motins de Março: a Assembleia Nacional Alemã, em Frankfurt, e a Assembleia Prussiana, em Berlim. U m director que queria assegurar os ansiosos leitores da classe média das suas intenções deveria ser aconselhado a dar o benefício da dúvida, pelo menos durante um mês ou dois, a esses dois recentemente criados parlamentos. Mas a impaciência levou a melhor e, logo no primeiro número, havia um relato impiedoso e mordaz, escrito por Engels, das sessões da assembleia de Frankfurt. «Há duas semanas que a Alemanha possui uma Assembleia Nacional constituinte eleitar^ïèio povo alemão. A primeira acção da Assembleia Nacional deveria ter sido proclamar bem alto e publicamente esta soberania popular e, a segunda, redigir uma constituição alemã baseada na soberania do povo.»^*" E m vez disso, os «filisteus eleitos» — a maior parte dos quais era advogados e professores — perderam tempo a fazer «novas emendas e digressões... longos discursos e muita confusão». Sempre que uma decisão estava prestes a ser tomada, os representantes adiavam o assunto e retiravam-se para ir jantar. Vários homens de negócios que tinham investido n o jornal retiraram imediatamente o seu apoio. «Custou-nos metade dos nossos accionistas», confessou Engels. E, após ter antagonizado os moderados, Marx provocou uma zaragata com o socialista mais popular da cidade, Andreas Gottschalk, que não só era presidente da recentemente formada Associação dos Trabalhadores de Colónia como também Hder da filial local da Liga Comunista. A violenta animosidade entre os dois homens é difícil de explicar ou justificar — embora os ciúmes possam ter algo a ver com o que aconteceu. Como já tinha mostrado por várias vezes, Marx detestava organizações, ou instituições, que não conseguisse dominar; e Gottschalk, médico muito apreciado entre os pobres, tinha mais adeptos do que o irascível director. O Neue Rheinische Zeifungvendia cinco mü exemplares, uma enorme circulação para aquela época, mas a Associação dos Trabalhadores de Colónia, liderada por Gottschalk, contava com oito mil sócios — número alcançado poucas semanas depois da sua criação. Marx acusava Gottschalk de ser um sectário da esquerda e de ter comprometido a «frente unida» constimída pela burguesia e pelo proletariado, ao fundar um grupo de pressão formado exclusivamente por membros da classe operária — além de boicotar as eleições para os parlamentos de Berlim e de Frankfurt. Dada a presteza com que Marx caricaturou a Assembleia Nacional

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como um ninho de gente que perdia tempo com ninharias, pode-se pensar que esta crítica cheirava a hipocrisia. E, ainda com maior perversidade, queixava-se de que Gottschalk estava pronto a aceitar uma monarquia constitucionalmente limitada em vez de um regime republicano imediato. N o entanto, o próprio Marx declarou num editorial de 7 de Junho: «Não queremos utópicamente pedir que, logo de início, seja proclamada uma república alemã unida e indivisível.» O pobre Gottschalk viu-se, assim, simultaneamente condenado por timidez e excesso de zelo; não admira que se tenha demitido da Liga Comunista semanas depois da estapafúrdica chegada de Marx a Colónia. Mesmo quando Gottschalk e o seu amigo, Friedrich Anneke, foram presos e acusados de incitação à violência em princípios de Julho, o Neue Rheinische Zeitung pareceu curiosamente desinteressado. «Reservamos a nossa opinião, pois ainda não obtivemos informação suficiente sobre a sua prisão e a maneira como foi executada», comentou Marx num breve editorial a 4 de Julho. «Os trabalhadores devem mostrar-se razoáveis e não se deixarem levar a provocar distúrbios.» O jornal do dia seguinte continha um artigo mais completo, concentrando-se sobre o tratamento que Anneke recebera por parte dos agentes que o tinham detido e acusando o promotor público, Herr Hecker, de ter chegado meia hora depois da polícia a fim de lhes dar tempo para espancar o suspeito e aterrorizar a mulher grávida. «Herr Hecker declarou não ter dado ordens para cometer brutalidades», acrescentou sarcasticamente Marx. «Como se Herr Hecker pudesse ordenar uma coisa dessas!» Todavia, o coitado de Gottschalk mal era mencionado. Gottschalk ficou cinco meses na cadeia à espera de ser julgado. U m cínico poderá suspeitar que Marx não se sentiu totalmente descontente com o desaparecimento do seu rival, pois isso dava-lhe a oportunidade de impor a sua própria autoridade e unir as facções em litígio. Mas Marx nunca foi u m conciliador nato. Cari Schurz, um estudante de Bona, viu-o actuar no decorrer de uma reunião dos democratas de Colónia, em 1848: «Na altura, ele não devia ter muito mais do que 32 anos, mas já era o reconhecido chefe da escola socialista superior... E u cá nunca tinha visto um h o m e m cuja atitude fosse tão provocadora e intolerável. N ã o concedia nem sequer a honra de considerar de maneira condescendente as opiniões que diferiam da sua. Todos aqueles que o contradiziam eram tratados com desprezo abjecto e respondia a todos os argumentos de que

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não gostava com mordaz desdém pela infinita ignorância que os tinham incitado ou com calúnias infames sobre os motivos de quem os articulara. Lembro-me muito distintamente do tom desdenhoso com que pronunciava a palavra "burguês"; e como um "burguês" — quer dizer, um detestável exemplo da mais profunda degenerescência mental e moral — denunciava todos que ousavam opor-se à opinião dele... É evidente que não só não ganhou nenhuns adeptos como também repeliu muitos que, de outro modo, poderiam ter-se tornado seus seguidores.»" É de assinalar que isto foi escrito cerca de 50 anos mais tarde, muito depois de Schurz ter emigrado para a América e de se tornar um respeitável homem de Estado como senador e secretário do Ministério do Interior dos EUA. N o entanto, soa terrivelmente verdadeiro. Como Marx era raramente capaz de manter boas relações com os seus próprios camarada mais íntimos, seria absurdo imaginar que ele pudesse harmonizar uma coligação já dividida de liberais, esquerdistas, camponeses e proletários. Nos seus discursos e editoriais, insistia que a Alemanha devia ter um governo democrático constituído pelos «elementos mais heterogéneos» e não uma ditadura de comunistas inteligentes como ele mesmo, mas a veemência com a qual declarava isso — lançando escárnios e insultos a quem ousasse discordar com ele — , sugeria que ele era um homem que não reconheceria o pluralismo nem que lhe fosse apresentado numa bandeja de prata enfeitada. As autoridades prussianas nunca se deixaram enganar pelas suas atitudes de reformador benigno. Já em Abril, o inspector Hünermund, de Colónia, tinha avisado os seus superiores acerca do «politicamente incerto Dr. Marx» e, quando o Neue Kheinische Zeitung publicou o cáustico relato da prisão de Anneke, aproveitou a oportunidade. A 7 de Julho, Marx foi levado diante do juiz para interrogatório por «difamações e insultos contra o promotor da justiça», enquanto a poKcia vasculhava a redacção à procura de qualquer documento que identificasse o autor anónimo do pérfido artigo. Duas semanas mais tarde, Marx foi mais uma vez interrogado e, em Agosto, os seus colegas, Dronke e Engels, foram chamados como testemunhas. A 6 de Setembro, o Zeitung publicou uma notícia preocupante: «Ontem, um dos nossos redactores, Friedrich Engels, foi mais uma vez convocado para comparecer diante do juiz no que se refere à investigação em curso contra Marx e associados, mas, desta vez, não como testemunha, mas sim como co-acusado.»

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A perseguição movida a «Marx e associados» não os intimidou nem silenciou; pelo contrário, tornou-os mais imprudentes. «Uma característica da Renânia, disse Engels no decorrer de uma reunião de democratas de Colónia em meados de Agosto, "é o ódio às autoridades prussianas e ao prussianismo puro; esperemos que tal atitude se mantenha".»^* Como ele devia saber, as zntoúda.desprussianas não se importavam que lhes puxassem a cauda; o exército, em particular, parecia estar inteiramente fora de controlo e sabotava alegremente o chamado «Governo de Acção», que fora formado apenas há uns meses. E m Agosto, a assembleia prussiana em Berlim pediu a demissão de todos os militares que se recusassem aceitar o novo sistema constitucional. O ministro da Guerra não tomou quaisquer medidas e, a 8 de Setembro, o Governo foi derrubado por uma moção de censura da assembleia proposta pelo representante da Esquerda e do Centro. De regresso de Viena onde se deslocara para angariar fundos, Marx encontrava-se, por acaso, em Berlim. «Quando se soube da derrota do Governo, uma alegria indescritível apoderou-se da multidão», enviou ele a notícia a Engels que, na sua ausência, dirigia o jornal. «Milhares de pessoas juntaram-se e desfilaram pela Praça da Ópera ao som de constantes vivas. N u n ca dantes se tinha visto aqui uma tal manifestação de regozijo.»^^ Foi uma vitória com consequências desastrosas. A p a n h a d o naquele ambiente de euforia, Marx assumiu ingenuamente que, agora, seria constituído um governo do centro-esquerda. U m momento de reflexão talvez lhe tivesse aberto os olhos: o rei da Prússia nunca toleraria uma tal afronta. E, claro está, quando Marx voltou a Colónia, a contra-revolução tinha começado. Desafiando o desejo dos representantes do povo em Berlim, o rei formou um novo gabinete composto de burocratas reaccionário e de oficiais do exército. «A Coroa e a Assembleia confrontam-se», escreveu Marx a 14 de Setembro. «É muito possível que sejam as armas a decidir a questão. O lado com mais coragem e consistência vencerá.» Heróica ilusão, claro está: a valentia valeria muito pouco contra o poder de intimidação do Estado. N a madrugada de 25 de Setembro, a polícia de Colónia prendeu vários Kderes do recentemente formado Comité de Segurança Pública, incluindo Karl Schapper e Hermann Becker; vieram também à procura de Engels, mas este eclipsara-se. À hora do almoço, Marx dirigiu-se a uma grande manifestação no antigo mercado, avisando os trabalhadores para não reagir às «provocações da polícia» levantando barricadas. O m o mento, porém, ainda não estava maduro para combates de rua.

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Mas o tempo, como os abacates e os marmelos, por vezes apodrece antes de amadurecer. A 25 de Setembro, foi declarada a Lei Marcial em Colonia e o c o m a n d o militar suspendeu imediatamente a publicação do Neue Rheinische Zeitung. Marx enviou uma circular aos assinantes explicando que «a caneta tem de se submeter ao sabre», mas prometia que, dentro em pouco, o jornal voltaria a aparecer em formato maior. Com vários jornalistas na cadeia e os accionistas recusando subsidiar um jornal caído n o esquecimento, isso era bastante optimista — sobretudo porque o mais valioso colega de Marx, Engels, tinha fugido assim que tinha ouvido que a poHcia andava atrás dele. Depois de fazer uma breve pausa em Barmen para dar a notícia aos pais horrorizados, Engels refugiou-se no santuário da Bélgica. O Kölnische Zeitung, patriótico e respeitador da lei como sempre, publicou o mandado de captura: Nome: Friedrich Engels; profissão: comerciante; local de nascimento e residência: Barmen; religião: evangélica; idade: 27 anos; altura: 1,70 m.; cabelo e sobrancelhas: louro-escuro; testa: normal; olhos: cinzentos; nariz e boca: bem proporcionados; dentes: bons; barba: castanha; queixo e rosto: ovais; compleição: saudável; figura: esguia.^" Boa publicidade para um estilo revolucionário de vida. O d o n o desta compleição saudável e nariz bem proporcionado chegou a Bruxelas a 5 de Outubro acompanhado por Ernst Dronke, mas os dois fugitivos mal se tinham sentado para jantar no hotel quando um poUcia, aproveitando-se da lei contra a «vadiagem» aplicada tão eficazmente com Jenny Marx, os arrastou para a prisão Petits-Carmes. Duas horas mais tarde, Engels e Dronken foram levados num coche fechado até à gare e obrigados a tomar o próxim o comboio para Paris sob escolta. Assim que o Neue Rheinische Zeitungvolton a ser publicado após o levantamento da Lei Marcial, a 12 de Outubro, Marx escreveu um furioso editorial sobre o «tratamento brutal» infligido aos seus amigos. «Isto prova que o Governo belga está a aprender a reconhecer a sua posição», comentou^^: «Os belgas estão gradualmente a tornar-se nos polícias dos países vizinhos e ficam todos contentes quando são felicitados pelo seu comportamento paciente e submisso. N o entanto, há algo ridículo, sobre o bom poKcia belga. Até o honesto T/A^ÍJ reconhece ironicamente o desejo de agradar dos belgas e, ainda há pouco tempo, aconselhou a Bélgica a trans-

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formar-se num grande clube com Ne risque^ rien (Não arrisquem nada) como lema depois de se livrar de todas as associações de trabalhadores. É evidente que a imprensa oficial belga, no seu cretinismo, reproduziu esse lisonjeiro artigo e saudou-o com júbilo.» A luta para salvar a recém-nascida democracia alemã atingiu o seu cKmax com uma sublevação revolucionária em Viena e combates de rua em Berlim. Pouco depois de Marx ter sido eleito presidente da Associação dos Trabalhadores de Colónia, a 22 de Outubro, o director do jornal da associação foi condenado a um mês de prisão por difamar Herr Hecker. Encorajado por esta pequena vitória, o vingativo promotor de justiça processou Marx clamando que os discursos dele equivaliam a «alta traição» e, absurdamente, também intentou vários processos por difamação sobre um texto publicado no Neue Kheinische Zeitung sob o nome de «Hecker», muito embora o artigo fosse simplesmente uma mensagem de adeus, dirigida ao povo alemão, do republicano Friedrich Hecker, o qual partia para a América a fim de recomeçar uma nova vida. N o entanto, o ridículo Torquemada de Colónia alegava que os leitores interpretariam aquilo de outro modo. Marx perguntava com incredulidade se o queixoso julgava realmente que «este jornal, com inventiva maKcia, tinha publicado um artigo assinado "Hecker" a fim de fazer crer ao povo alemão que Hecker, o promotor de justiça, vai emigrar para Nova Iorque, que Hecker, o promotor de justiça, proclama a república alemã, que Hecker, o promotor de justiça, aprova oficialmente ideias revolucionárias?»^^ Provavelmente não: mas era outra oportunidade para intimidar os inimigos do Estado Prussiano. E m vez de regressar apressadamente à pátria para assistir ao desenlace destes vários dramas -— meio tragédia, meio farsa — , Engels não pensou mais neles. Depois de ter passado uns dias a descansar em Paris, partiu sozinho num lento passeio pelo interior da França, com vários e agradáveis desvios pelo caminho, em direcção à Suíça. Conforme ele próprio admitiu, «não se deixa facilmente a França». O s camaradas em Colónia podiam estar a bater-se peia liberdade e as suas vidas, mas ele não tinha pressa de se juntar a eles. Será que ele tinha perdido a coragem? O diário inédito de Engels sobre esta odisseia de u m mês e que mal menciona a crise na Alemanha, é escrito com a admiração de u m turista novato. «Que país na Europa se pode comparar com a França em riqueza, na variedade dos seus encantos naturais e produtos, e na sua universalidade?»

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elogia. «E que vinho! Que diversidade, de Bordéus a Burgundy, de Burgundy ao encorpado St. Georges, Lünel e Frontignan do Sul, e destes ao cintilante champanhe!»^^ Parece ter andado meio embriagado todo o t e m p o . . . sobretudo em Auxerre, cidade a que chegou a tempo para festejar a colheita do novo Burgundy. «A colheita de 1848 foi tão pródiga que não havia barris suficientes para conter todo o vinho. E de uma tal qualidade... melhor do que a de 46 e talvez ainda melhor do que a de 34!» N ã o era apenas o vinho que intoxicava. «A cada etapa encontrei companhia alegre, as uvas mais doces e as raparigas mais bonitas.» Após uma procura exaustiva, chegou à conclusão de que as mulheres «esbeltas bem lavadas e penteadas» de Burgundy eram preferíveis às «carnudas» e «desgrenhadas» entre os rios Seine e Loire. «É, portanto, fácil de acreditar que passei mais tempo deitado na erva com os negociantes de vinhos e as suas raparigas a comer uvas, a beber vinho, a conversar e a rir do que a subir colinas.» Percebe-se agora porquê a viagem demorou tanto tempo — e porquê chegou à Suíça sem um tostão. Apelando ao pai e a Marx para lhe enviarem dinheiro e não obtendo resposta de ambos, voltou a escrever para Colónia perguntando-se nervosamente se o amigo estava zangado por ele se ter ausentado sem dar notícias. «Caro Engels», respondeu Marx. «Estou verdadeiramente espantado por ainda não teres recebido dinheiro. Enviei-te (eu pessoalmente e não por vale do correio) seis táleres há séculos... Supores que eu pudesse abandonar-te numa situação destas é pura fantasia. Serás sempre o meu amigo e confidente como eu espero que permanecerei o teu, K. Marx» ^"^ Acrescentava um encorajador e combativo P.S.: «O teu pai é um porco e havemos de lhe escrever uma carta a chamar-Ihe nomes.» Mas, depois, deve-se ter lembrado que isso talvez não fosse uma boa técnica para arranjar dinheiro. «Maquinei um plano infalível para extrair dinheiro ao teu velho pois, agora, estamos lisos», escreveu a 29 de Novembro. «Escreve-me uma carta suplicante (tão crua quanto possível) a enumerar as tuas vicissitudes passadas, mas de maneira a que eu possa passá-la à tua mãe. O teu velho está a começar a ficar assustado.»^^ O Chico-Esperto apelou de forma semelhante à compaixão materna para extrair vales postais, mas não se saiu melhor do que Marx e Engels. Por altura do Natal, Engels estava farto de levar uma «vida de pecado» e «de não fazer nenhum no estrangeiro». N u m a carta de Berna dava uma ridícula nova desculpa pela sua ausência: «Se houver razões suficientes para achares que não serei detido para interrogações, regressarei imediatamente.

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Depois, podem, quanto a mim, pôr-me diante de dez mil juízes. Mas, quando uma pessoa é detida para interrogações, não a deixam fumar e eu cá não me vou deixar prender para isso.» Após ter sido assegurado que não precisava sacrificar os seus charutos pela causa. Engels voltou para a Alemanha em Janeiro — apenas para descobrir que a revolução estava praticamente terminada. Fora formado um novo governo chefiado pelo conde Brandeburgo, reaccionário e filho bastardo de Frederico Guilherme II, e o rei tinha dissolvido a assembleia prussiana: «A burguesia não levantou u m dedo; deixou simplesmente o povo combater por ela», resmungou Marx no Neue Rheinische Zeitung, admitindo que a sua teoria de uma aliança entre os trabalhadores e a classe média não passara de um sonho. A derrocada prussiana provava que uma revolução burguesa era impossível na Alemanha; agora, seria necessário uma insurreição republicana. Mas a classe operária alemã estava incapaz de entrar em acção sem encorajamento do exterior — em particular da França. Após ter reflectido sobre as lições do ano anterior, Marx publicou um menu revolucionário revisto a 1 de Janeiro de 1849: «O derrubamento da burguesia em França, o triunfo da classe operária francesa, a emancipação da classe operária em geral é, por conseguinte, o grito de incitamento para uma acção em conjunto da libertação europeia. Mas a Inglaterra, o país que transforma nações inteiras no seu proletariado, que engloba todo o mundo no seu amplexo imenso... a Inglaterra parece ser o rochedo contra o qual as vagas revolucionárias quebram, o país onde a nova sociedade ainda se encontra em fase embrionária.»^'' Todas as perturbações sociais na França estavam destinadas a ser opostas pelo poder comercial e industrial da classe média inglesa, «e apenas uma guerra mundial pode vencer a velha Inglaterra, bem c o m o só isto p o d e proporcionar aos Cartistas, o partido dos trabalhadores ingleses organizados, as condições para uma sublevação bem sucedida contra os seus gigantescos opressores». Este jogo de consequências segundo as épocas — o qual, cerca de um século mais tarde, viria ser conhecido pela teoria dos dominós, conduziu a uma conclusão inevitável e apocalíptica. «O programa para 1849 é: Sublevarão revolucionária da classe operária francesa, guerra mundial.» E depois? E m 1848, a classe operária tinha sido batida sempre e onde erguia a cabeça por cima das barricadas — França, Prússia, Austria e a pró-

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pria Inglaterra, onde uma demonstração popular em Kennington, a sul de Londres, assinalou o fim da ameaça cartista. Mas, com o seu talento para paradoxos e perversidades, Max podia discernir u m triunfo potencial em todas as catástrofes, o b o m tempo por detrás de cada nuvem, uma nova aurora a despontar na noite mais tenebrosa. Assim, o que é que fazia se as contra-revoluções fossem bem sucedidas? Isso espicaçaria os trabalhadores a preparar um ataque mais eficaz da próxima vez. Marx tinha fé na velha táctica^ reculerpour mieux sauter (recuar para melhor saltar). N a ocorrência, 1849 foi apenas um sinistro pós-escrito de 1848. U m mês depois de ter publicado a mensagem do N o v o Ano, Marx e Engels foram julgados por insultos à magistratura. N u m discurso de uma hora proferido do banco dos réus, Marx mostrou que espírito bruhante a profissão legal tinha perdido quando ele recusara seguir a carreira do pai e desconstruir os artigos 222 e 367 do código penal de Napoleão até nada restar senão um punhado de poeira. Deu uma lição ao júri sobre a importante, embora pedante, distinção entre observações insultuosas e calúnia; argumentou que o promotor público tinha de provar não só o insulto mas a intenção de insultar, pois o artigo 367 autorizava-um jornalista a pubHcar «factos» mesmo que estes fossem ofensivos. N a sua exegese do artigo 222 (que proibia insultos contra funcionários públicos), fez notar que o código penal, ao contrário da lei prussiana, não incluía o crime de lesa-majestade; e, como o rei da Prússia não era funciona- ' rio, também não podia valer-se do artigo 222. «Como é possível que seja autorizado a insultar o rei e não possa insultar o promotor de justiça?» Marx apresentou grande parte da sua defesa de forma calma e eloquente, sem os habituais truques de retórica, ou enfeites, e no seu discurso final apelou para a consciência poKtica do júri: «Prefiro seguir os grandes acontecimentos do m u n d o e analisar o curso da história do que me ocupar com chefes locais, a polícia e promotores públicos. N o entanto, por mais importantes que esses cavalheiros se julguem, não representam nada nas gigantescas batalhas da época presente. Considero que estamos a fazer u m verdadeiro sacrifício ao decidir cruzar as nossas armas com tais oponentes. Mas, em primeiro lugar, o dever da imprensa é defender os oprimidos... O primeiro dever da imprensa agora é sabotar todos os alicerces da actual situação política.»

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Marx sentou-se fortemente aplaudido pela sala apinhada do tribunal e ele e Engels foram absolvidos. Mas não havia muito tempo para celebrações. N o dia seguinte, 8 de Fevereiro, Marx voltou ao banco dos réus juntamente com dois colegas do Comité Democrático Distrital da Renânia; desta vez, era acusado de «incitação à revolta». A acusação provinha dos motins de Novembro de 1848, quando membros da Assembleia Nacional Prussiana — obrigados a sair de arma apontada pelas tropas governamentais — tinham decidido que, em protesto, não cobraria impostos. N u m a proclamação datada de 18 de Novembro de 1848, o comité de Marx declarou que «se devia resistir por toda a parte e de todas as maneiras» ao pagamento forçado de impostos e que deveriam ser formadas milícias populares «para rechaçar o inimigo». Como isto era inegavelmente uma incitação à revolta, como o próprio Marx admitiu em tribunal, a única questão era saber «se os acusados tinham sido autorizados pela decisão da Assembleia Nacional a resistir ao poder estatal e a organizar um força armada contra o Estado». Após breve discussão, o júri decidiu por unanimidade que eles tinham agido em perfeita conformidade com Deutsche'LondonerZeitung, semanário liberal dirigido aos refugiados alemães em Londres: «Hoje em dia, e em julgamentos políticos, o Governo não tem sorte n e n h u m a com os júris.»^'' Mas o Governo tinha outros trunfos na manga. O comandante-adjunto da guarnição de Colónia, u m coronel desgraçadamente chamado Friedrich Engels, informou o Oberpräsident da Renânia que Marx estava «a tornar-se cada vez mais audacioso, agora que fora absolvido pelo júri, e acho que chegou a altura de deportar esse homem, pois não temos de tolerar um estrangeiro que, com a sua língua viperina, conspurca tudo, especialmente porque a nossa própria canalha local está a ocupar-se disso bastante bem.»^^ Enquanto o coronel Engels aguardava uma resposta, dois dos seus oficiais subalternos da 8.* Companhia de Infantaria tomaram a iniciativa de ir a casa de Marx na tarde do dia 2 de Março para o obrigar a dizer quem tinha escrito um artigo recentemente publicado no Neue Renische Zeitung sobre corrupção militar. Tal artigo tinha, ao que parecia, ofendido gravemente «toda a companhia.» Marx observou que o artigo em questão era, na verdade, um anúncio, pelo qual não era responsável. O s visitantes, fazendo literalmente tilintar o sabres, avisaram que, se ele se recusasse a dizer o nome do autor, «aqmlo iria acabar mal». Como resposta, Marx chamou-lhes a atenção para a coronha de u m revólver que sobressaía do seu bolso. O s dois homens despediram-se a toda a pressa.

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«A disciplina deve andar muito relaxada», escreveu Marx ao coronel Engels, «e toda a noção de lei e ordem deve ser inexistente caso uma companhia do exército possa enviar delegados, como um bando de ladrões, a casa de um cidadão para lhe extorquir informações sob ameaças... Tenho de lhe solicitar, meu caro Senhor, que faça um inquérito quanto a este incidente, a fim de me dar uma explicação sobre essa singular arrogância. Lamentaria imenso ser obrigado a ter de recorrer à divulgação deste caso para obter uma resposta.»^^ A missiva de Marx foi uma ameaça mais eficaz do que os sabres dos oficiais. O pobre comandante assegurou-lhe que os homens tinham sido repreendidos e agradecia ao Neue Rheinische Zeitung^th. sua discrição. Magnânimo na vitória, Marx informou o coronel que o sñencio do jornal demonstrava «como era grande o seu respeito pelo corrente estado de espirito de agitação». Historia incrível. Embora Marx estivesse a ser censurado por esquerdistas, como o Dr. Gottschalk (o qual, entretanto, fora solto da cadeia), por falta de müitancia, o que ele publicava era suficientemente provocador — incluindo troça ao «despotismo burocrático feudal-miMtar» presidido pelo rei e o seu aristocrático novo ministro do Interior, o barão Von Manteuffel. «Os governos estão a preparar-se às claras para golpes de Estado destinados a completar a contra-revolução», predisse a 12 de Março. «Consequentemente, o povo seria plenamente justificado se se preparasse para uma insurreição.» Acrescentou igualmente que o povo não devia deixar-se cair nessa «desajeitada armadilha» — mas apenas porque achava que, em breve, haveria uma oportunidade muito melhor. A 8 de Maio, depois de uma série de motins e escaramuças em Dresden e no Palatinado, o Neue VJjeinische Zeitungttouy^c as boas noti'cias que «a revolução estava cada vez mais perto». «Foi manifestado espanto», escreveu Engels anos mais tarde, «por continuarmos as nossas actividades de forma tão despreocupada a curta distância de um quartel prussiano de primeira categoria, diante de uma guarnição de oito mil soldados e confrontando o quartel da guarda, mas, em virmde das oito espingardas e das 250 balas na sala de redacção, e os bonés vermelhos jacobinos dos compositores-tipógrafos, a nossa casa foi considerada pelos oficiais como sendo uma fortaleza que não seria tomada através de um mero coup de main.)?^ A verdade é que a fortaleza foi tomada sem ser disparado um único tiro e, a 16 de Maio, as autoridades prussianas processaram metade do pessoal da redacção recomendando que a outra metade -— os que eram prussianos, incluindo Marx — fosse deportada. Nada mais poderia ser feito. N o último número, e impresso desafiadoramente a vermelho, o Neue Rheinische Zeitung

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anunciava que «a sua última palavra por toda a parte será sempre: emancipação da classe operária!» A seguir, Marx e os outros jornalistas saíram do prédio, com a bandeira vermelha hasteada orgulhosamente no telhado e uma banda a tocar, de armas e bagagem na mão. Depois de vender tudo — incluindo a tipografia do jornal que lhe pertencia e a mobília de sua casa — Marx conseguiu liquidar as dívidas mais importantes, mas ficou sem mais nenhum dinheiro. A prata da família de Jenny foi posta no prego, desta vez em Frankfurt, enquanto ela e os filhos partiram para casa da mãe em Trier. Marx e Engels dirigiram-se para Frankfurt na esperança de convencer os deputados da esquerda a apoiar as tropas insurgentes do Sudoeste da Alemanha que ainda combatiam pelo «governo provisório» em Baden e no Palatinado. Mas ninguém lhes deu ouvidos e, assim, partiram no dia seguinte para Baden, a fim de exortar as forças revolucionárias a marchar sobre Frankfurt sem serem convidados. Mais uma vez os seus apelos foram ignorados, embora tivessem um encontro amigável com o antigo colega deles, WiUich, que chefiava agora os guerrilheiros. Engels, um estudioso de estratégia militar, não resistiu à oportunidade de vestir uma farda e juntar-se à guerra. Alistando-se como voluntário, em breve nomeado ajudante de campo de WiUich e dirigindo conjuntamente a campanha e as operações. N o decorrer das semanas seguintes combateu em algumas escaramuças — todas elas foram perdidas. A sua descoberta mais importante, disse ele a Jenny Marx, foi a de que «a muito vangloriada bravura sob fogo é a qualidade mais comum que uma pessoa possui. O silvar das balas é realmente uma coisa bastante trivial»^^ Assistiu a poucos actos cobardes, mas muita «valentia estúpida». Marx, que não tinha inclinação nem físico para ser soldado, deu-se conta de que não havia mais nada que podia fazer na Alemanha e, em princípios de Junho, partiu para Paris com um passaporte falso, apresentando-se às autoridades francesas como o enviado especial do governo revolucionário do Palatinado. Ao chegar, contodo. Paris estava a braços com uma reacção realista e uma epidemia de cólera. «Por todo isso», escreveu jovialmente a Engels a 7 de Junho, «nunca uma colossal erupção do vulcão revolucionário esteve mais iminente do que actoalmente em Paris... Dou-me com todo o partido revolucionário e, dentro de alguns dias, terei todos os jornais revolucionários à minha disposição».^^ Mas, dentro de dias, não havia mais jornais revolucionários. Q u a n d o a facção dos montagnards da Assembleia Nacional francesa convocou uma

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manifestação para 13 de Junho, as tropas governamentais afugentaram simplesmente os manifestantes da rua e prenderam os chefes. Assim terminou a revolução começada em 1848; depois do galo gaulês ter cantado e se pavoneado, torceram-lhe o pescoço. Jenny, grávida do quarto filho, juntou-se ao marido em Paris em princípios de Julho. «Se a minha mulher não estivesse num étatpar trop intéressant (estado excessivamente interessante), sairia com todo o gosto de Paris assim que fosse financeiramente possível», escreveu a Engels^^. Mas a decisão já não dependia dele. Os reaccionários triunfantes andavam muito ocupados a procurar revolucionários estrangeiros e a expulsá-los da capital agora calma. Na soalheira manhã de 19 de Março, um agente da polícia veio à bater à porta dos Marx, na Rue de LiUe, 45, para entregar uma ordem oficial que os bania para o département àt Morbihan, na Bretanha. A única surpresa foi Marx não ter sido expulso mais cedo: todo leva a crer que a poKcia não o encontrou durante várias semanas porque ele tinha tomado a precaução de alugar o apartamento sob o nome de «Monsieur Ramboz». Marx conseguiu retardar o inevitável apelando para o Ministério do Interior, mas, a 16 de Agosto, o comissário da polícia de Paris informou-o que a ordem fora confirmada, mas Jenny era autorizada a permanecer mais um mês. Marx descreveu Morbihan como sendo «o lodaçal da Bretanha», um pântano infestado de malária que acabaria sem dúvida por matá-lo e a toda a família, a qual já se encontrava bastante doente. «Escusado será dizer», escreveu a Engels, «que não consinto que atentem desta forma velada contra a minha vida e, assim, vou abandonar a França.»-^"* Nem a Alemanha nem a Bélgica o deixavam entrar, e a Suíça recusou o seu pedido de residência — não que ele desejasse particularmente viver naquela «armadilha para ratos». E, assim, virou-se para o último refúgio do revolucionário sem raízes e, quando o SS City of Boulogne chegou a Dover a 27 de Agosto de 1849, o seu comandante, de acordo com a lei, notificou o Ministério do Interior inglês de «todos os estrangeiros que se encontram a bordo do meu navio»^^: os quais incluíam um actor grego, um cavalheiro francês, um professor polaco e um tal Karl Marx que se intitula «doutor». «Tens de partir para Londres imediatamente», escreveu Marx a Engels que estava a recuperar das suas fatigas militares frequentando bares e rnuIheres em Lausana. «Conto absolutamente com isso. Não podes permanecer na Suíça. Recomeçaremos tudo em Londres.»^*"

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O refúgio final de Karl Marx foi na maior e mais rica metrópole do mundo. Londres foi a primeira cidade a atingir uma população de um milhão de habitantes, um enorme tumor que continuava a inchar sem, todavia, rebentar. Quando o jornalista Henry Mayhew a sobrevoou num balão de ar quente para ter uma noção do seu tamanho, não soube explicar «onde é que a cidade monstruosa começava, ou acabava, pois os prédios estendem-se, de um lado e do outro, não só até ao horizonte, mas para lá a perder de vista... onde a cidade parecia confundir-se com o céu.» As estatísticas calculam que 300 000 pessoas se instalaram na capital entre 1841 e 1851 — incluindo centenas de refugiados que, como Marx, foram atraídos pela sua reputação de santuário para os marginais políticos. Mas esta «supercidade de luxo» também era o monstro sinistro e sombrio que surge ameaçadoramente da primeira página de Bleak Home, escrito três anos depois da chegada de Marx: «Tempo implacável de Novembro. Há tanta lama nas ruas que é como se a água tivesse sido quase toda retirada da face da Terra e não seria bom deparar com um Megalossauro de 30 metros de comprido a subir lentamente Holborn Hül como um lagarto paquidérmico. O fumo que sai dos tubos das chaminés provoca uma chuva miúda e negra com flocos de fuligem tão grandes como neve — enlutadas, podemos imaginar, pela morte do Sol.»^ Para lá dos luxuosos salões de Mayfair e Piccadilly estende-se um bairro da lata inexplorado de barracas e oficinas, bordéis e fábricas sujas. «É como

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o coração do universo, e a torrente de esforços humanos jorra para dentro e para fora com uma violência que consterna os sentidos», escreveu Thomas Carlyle ao irmão. «Daí que o nosso pai tenha visto Holborno envolto em nevoeiro!, com o espesso vapor à sua volta absolutamente como tinta fluida; e carruagens, coches, carneiros, bois e gente alvoraçada no meio de berros, gritos e barulho ensurdecedor, como se a terra enlouquecesse.» As doenças eram comuns — o que não era de surpreender, visto que os esgotos escoavam directamente no Tamisa, o qual abastecia a cidade de água. Apenas um mês antes de Marx chegar a Londres, infestada por mais uma das suas epidemias periódicas de cólera, The Times publicou o seguinte grito de socorro na sua página de cartas ao editor: «Sor, suplicamos a sua ajuda e proteção. Vivemos, Sor, em Wilderniss, caso Londres queira saber de nós ou a gente importante e rica se interesse. Vivemos no meio do lixo. Não temos retrete, nem água, nem esgotos. A companhia dos esgotos, na rua Greek, no Soho, todos homens poderosos e ricos não Hgam às nossas queixas. O fedor é nojento. Todos nós sofremos e mviitos estão doentes. Deus tenha piedade de nós se a cók^ra vier aí.»^ Em alguns bairros, uma criança em três morria antes de cumprir um ano de idade. As maravilhas e monstruosidades da Londres vitoriana, que espantavam tantos visitantes estrangeiros, eram invisíveis a Marx. Apesar de todo o seu talento como jornalista e analista social, ele parecia curiosamente ignorar muitas vezes o que o rodeava; ao contrário de Dickens, que mergulhava no horror para trazer vividas observações em primeira mão, preferia 1er os jornais ou dirigir-se às comissões reais para obter informação. Nem manifestava o menor interesse pelo gostos e hábitos dos habitantes — a maneira como se vestiam, se divertiam e as suas canções populares. É verdade que, em Julho de 1850, fico «todo vermelho e excitado» ao reparar na miniatura de uma locomotiva eléctrica na montra de uma loja da rua Regency, mas foram as implicações económicas e não a emoção da novidade que o entusiasmaram. «O problema é resolvido — as consequências são difíceis de prever», disse aos seus companheiros boquiabertos, explicando-lhes, que assim como o vapor tinha transformado o mundo no século passado, também agora a centelha eléctrica poria em marcha uma nova revolução.

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«Na esteira da revolução económica há-de necessariamente seguir-se a revolução poKtica, pois esta última é apenas a expressão da primeira.» Parece pouco provável que mais alguém entre a multidão tenha parado diante da loja da rua Regent para considerar as consequências políticas desse cavalo de ferro troiano; para Marx, contudo, era tudo que interessava. Se tivesse deparado com o megalossauro de Dickens a espojar-se na lama de Holborn Hill, mal teria olhado para ele uma segunda vez. O trabalho era a única coisa que o distraía da desgraça da sua situação. Sem fazer uma pausa para se ambientar, pôs-se a organizar um novo quartel-general para a Liga Comunista nos escritórios da Associação Educativa dos Trabalhadores Alemães, em Londres, uma das muitas associações políticas da diáspora revolucionária, e, em meados de Setembro, foi eleito para um Comité de Ajuda aos Refugiados Alemães. «Encontro-me agora numa situação realmente difícil», escreveu a Ferdinand Freiligrath a 5 de Setembro de 1849, cerca de uma semana depois de ter chegado a Inglaterra. «A minha mulher está em estado avançado de gravidez. Tem de sair de Paris no dia 15 e eu não sei como hei-de arranjar dinheiro para a viagem e para a instalar aqui. Mas, por outro lado, há excelentes perspectivas de eu vir a publicar uma revista mensal.. .»^ Poucos refugiados precisavam de ajuda mais urgente que os Marx. Jenny chegou a Londres em 17 de Setembro, doente e exausta com «os meus pobres três filhos perseguidos». Jennychen tinha nascido em França, Laura e Edgar na Bélgica, e essa paripatética parturição foi continuado pelo nascimento do segundo filho a 5 de Novembro de 1849 ao som de fogo-de-artifício: os londrinos festejavam o facto de Guido (Guy) Fawkes não ter conseguido mandar pelos ares o Parlamento em 1605. Em homenagem ao grande conspirador, a criança foi baptizada Heinrich Guido e instantaneamente alcunhada «Fawkesy» (alcunha essa mais tarde germanizado para «Foxchen»). Marx tinha uma particular afeição por alcunhas e pseudónimos. É evidente que, por vezes, essa necessidade era de ordem poKtica: daí o cómico aliás«MonskurKainhoz», adoptado quando se escondia em Paris. Até mesmo na liberal Londres, onde havia pouca necessidade de subterfúgios, ele assinava por vezes as suas cartas A. Williams para escapar aos denunciantes da poHcia nos correios. Mas a maior parte dos diminutivos que dava tão liberalmente a amigos e à família eram por puro capricho. Dirigia-se a Engels, o soldado de luxo, pela sua patente imaginária, «General». A governanta, Helene Demuth, era «Lenchen» ou, outras vezes, «Nym». Jennychen desfru-

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tava do título, se não dos salamaleques, de «Qui-Qui, imperador da China». Marx, conhecido pelos íntimos por Mouro, encorajava os filhos a chamá-lo Ve/ho Nick e «Charlep rel="nofollow">. Confusamente, o sinal mais seguro do seu desprezo por alguém era chamá-lo pelo nome de baptismo: o poeta Kinkel, o anti-herói do panfleto de Marx, Grandes Homens do Exílio, era sempre tratado por Gottfried. «Sabes que a minha mulher enriqueceu o mundo com mais um cidadão», escreveu Marx a Joseph Weydemeyer, que estava em Frankfurt, pouco depois do nascimento de Fawkesy. O tom bem humorado ocultava uma terrível apreensão: como é que ele iria sustentar quatro crianças pequenas e uma mulher doente? Como o Sr. Micawber, convenceu-se de que algo tinha de aparecer. Tinha-se mudado, em Outubro, para uma casa na rua Anderson, em Chelsea (então, como agora, um dos bairros mais na moda e caros) e pagava seis libras por mês, muito mais do que podia. Pode parecer que um exilado numa terra estranha, desenraizado e sem um tostão no bolso, necessita de todos os amigos que possa arranjar; mas não Marx. O único aliado que precisava era de Engels — o qual, fiel como sempre, se instalou em Londres a 12 de Novembro todo aperaltado para dar batalha a recidivistas e traidores. Seis dias mais tarde, no decorrer de uma reunião na Associação Educativa dos Trabalhadores Alemães, Marx mudou o nome do comité de ajuda aos refugiados para o distinguir de um grupo rival fundado por «liberais» como Gustav von Struve, Karl Heinzen e Louis Bauer, o médico de família recentemente contactado pelos Marx. Com severa formalidade, Karl Marx informou o Dr. Bauer de que «em vista das relações pouco amistosas entre os dois grupos aos quais pertencemos... em vista dos seus ataques directos ao meu comité de refugiados, em todo o caso aos meus amigos e colegas... temos de pôr termo às nossas relações sociais... Ontem à noite, não achei conveniente exprimir a riiinha opinião quanto a este conflito em presença da minha mulher. Exprimo-lhe aqui os meus maiores agradecimentos pela sua assistência médica e peço-lhe que me envie os seus honorários.»"^ Mas, quando o médico lhe apresentou a conta, Marx acusou-o de querer depená-lo e recusou-se a pagar, i Por volta do Natal, Engels informou outro camarada alemão que «visto bem as coisas, está tudo a correr bastante bem por aqui. Struve e Heinzen continuam a fazer intrigas contra nós e a Associação dos Trabalhadores, mas sem sucesso. Juntamente com uns moderados que nós expulsámos, forma-

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ram um clube exclusivo, onde Heinzen se queixa das doutrinas nocivas dos comunistas»^ Quando The Times descreveu Heinzen como um «farol do Partido Social Democrata alemão», Engels enviou uma dura refutação ao Northern Star, jornal cartista: «Herr Heinzen, ao contrário de ser um farol, tem-se incansavelmente oposto desde 1842, embora sem sucesso, a tudo o que é socialismo e comunismo.»'' Era exactamente como nos velhos tempos em Paris, ou Bruxelas — um turbilhão de intrigas, ajustes de contas e luta pelo poder. Na sala da Associação, na rua Great Windmill, no Soho, Marx em breve se encarregou de examinar minuciosamente os recém-chegados e de impor regulamentos. Wilhelm Liebknecht, que fugiu para Londres em 1850, deixou um vivo relato dos métodos intimidadores usados por Marx para estabelecer o seu domínio. Durante um piquenique da Associação, pouco depois da sua chegada, o «père Marx» chamou-o à parte e pôs-se a inspeccionar a forma do seu crânio. Não tendo encontrado nenhuma anormalidade, Marx convidou-o então no dia seguinte a ir à «sala privada» da rua Great Windmill para o escrutinar mais pormenorizadamente: «Não sabia o que era uma "sala privada", mas tive o pressentimento que o exame "final" estava prestes a acontecer. Segui-o confiantemente. Marx inspirava confiança e tinha-me causado boa impressão no dia anterior. Conduziu-me pelo braço à sala privada, quer dizer, o gabinete do anfitrião — ou seria anfitriã? — onde Engels me recebeu alegremente com piadas e uma caneca de cerveja na mão... A maciça mesa de mogno, as canecas de estanho, a cerveja espumante, a perspectiva de um bom bife inglês com acessórios e compridos cachimbos de espuma — era realmente confortável e lembrava as ilustrações inglesas de Boz. Mas, apesar de tudo isso, examinaram-me a sério.»^ Os examinadores tinham feito os trabalhos de casa. Citando um artigo que Liebknecht escrevera para um jornal alemão em 1848, Marx acusou-o de fiüsteu e de ter a «nebulosidade sentimental dos alemães do Sul». Após muitas súplicas, o candidato foi perdoado. Mas o seu suplício não tinha terminado: o frenologista comunista residente, Karl Pfänder, foi chamado para fazer um exame mais aprofundado dos contornos cranianos de Liebknecht. «O meu crânio foi oficialmente inspeccionado por Karl Pfánder, o qual nada encontrou que impedisse a minha admissão no santuário da Liga

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Comunista. Os exames, porém, continuaram...» Marx, que era apenas cinco ou seis anos mais velho que os «camaradas jovens», como Wilhelm Liebknecht, interrogava-os como um professor a pôr à prova uma tristonha aula de estudantes, empregando os seus colossais conhecimentos e prodigiosa memória como se fossem instrumentos de tortura. «Como ele se divertia quando, depois de tentar um "pequenino aluno" a arriscar-se, demonstrava à custa do infeliz a incompetência das nossas universidades e da cultura académica.» Marx era sem dúvida um tremendo exibicionista e um intelectual bruto e sádico. Mas também era um professor inspirado e ensinava espanhol, grego, latim, filosofia e economia política aos jovens refugiados. «Ele que, habitualmente, se mostrava tão impaciente, tinha uma tal paciência quando ensinava!» A partir de Novembro de 1849, iniciou uma série de palestras, cuja tema era «O que é a propriedade burguesa?», que atraiu imensa gente à sala do segundo andar da rua Great Windmill. «Enunciava uma afirmação — quanto mais breve, melhor — e, depois, demonstrava através de uma longa explicação, tentando com o maior cuidado evitar expressões que não fossem entendidas pelos trabalhadores», relatou Liebknecht. «A seguir, pedia à audiência que lhe fizesse perguntas e, se ninguém se propusesse, punha-se a examinar os trabalhadores com tais qualidades pedagógicas que nenhuma falha nem incompreensão lhe escapava... Também utilizava um quadro para escrever fórmulas... entre as quais algumas proveniente de O Capital, que eram familiares a todos.» Os habitantes da rua Great WindmiU tinham um horário muito ocupado. Aos domingos, havia palestras de história, geografia e astronomia seguidas por «perguntas acerca da corrente situação dos trabalhadores e a sua atitude para com a burguesia». As discussões sobre comunismo ocupavam a maior parte das segundas e terças-feiras, mas, mais tarde durante a semana, o currículo incluía aulas de canto, locução, desenho e até mesmo de dança. As noites de sábados eram dedicadas à «música, recitação de poemas e leitura de artigos de jornal interessantes». Nos tempos de folga, Marx passeava até Rathbone Place, perto da rua Oxford, onde um grupo de emigrantes franceses tinha aberto um salão de esgrima no qual se podia praticar espada, florete e sabre. Segundo Liebknecht, as estocadas de Marx eram rudimentares, mas eficazes. «O que lhe faltava em perícia, tentava compensar com agressividade. E, a não ser que uma pessoa se mantivesse calma, assustava-a deveras.» . ,

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O mesmo acontecia com a escrita; quando não brandia a espada, desembainhava mais outro jornal para dizimar os filisteus. No começo de 1850, o seguinte anúncio foi publicado no jornal alemão: «A Neue Rheinische Zeitung Politisch-ökonomische Revue, dirigida por Karl Marx, surgirá em Janeiro de 1850... Esta revista será publicada mensalmente, em pelos menos cinco folhas, ao preço por assinatura de 24groschen de prata cada trimestre.»^ O director comercial era para ser Conrad Schramm, outro revolucionário alemão independente chegado a Londres há uns meses. As ambições de Marx para esta publicação eram heroicamente grandiosas. «Não duvido de que, após terem saído três números, ou talvez dois, da revista, haverá um conflito mundial», predisse'. Entretanto, contudo, era preciso tratar do desagradável problema financeiro. Convencido de que «só se conseguiria o dinheiro na América», Marx pensou enviar Conrad Schramnn numa digressão transatlântica para obter fundos, mas deu-se conta a tempo de que uma viagem dessas acartaria ainda mais despesas. Desde o princípio que a nova revista estava condenada, acabando por expirar ao cabo de cinco meses. O primeiro número teve de ser adiado pelo facto de Marx ficar doente por duas semanas e a impossibilidade do compositor-tipógrafo não conseguir decifrar os gatafunhos dele provocou mais um atraso; Marx passou o tempo a discutir com o editor e o distribuidor, pois desconfiava que eles estivessem combinados com os censores. A revista ter sido publicada foi realmente um milagre. Tinha boas coisas — sobretudo uma longa série de artigos, nos quais Marx empregou todo seu engenho dialéctico para se opor à ideia que a revolução francesa de 1848, tinha falhado. «O que sucumbiu nessa derrota não foi a revolução, mas sim os apêndices tradicionais pré-revolucionários, resultado das relações sociais ainda não terem chegado ao ponto do antagonismo de classes.. .»^*'. O sucesso teria sido um desastre disfarçado: só através de malogros é que o partido revolucionário poderia libertar-se de noções ilusórias e líderes oportunistas. «Numa palavra: a revolução fez progressos e avançou, não através das suas imediatas proezas tragicómicas, mas, pelo contrário, através da criação de uma forte contra-revolução unida.» Tendo provado esta tese contrária para sua própria satisfação «A revolução morreu! — Viva a revolução!»), passou para outro acontecimento: a espectacular vitória de Luís Napoleão nas eleições presidenciais de Dezembro de 1848. Porquê tinham votado os franceses de forma tão esmagadora por esse vadio grotesco — «desajeitadamente manhoso, velhacamente ingénuo.

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imbecilmente subüme, uma superstição premeditada, uma paródia patética, um anacronismo inteligentemente estúpido, uma palhaçada histórica-mundial, um hieróglifo indecifrável?» Era muito simples: a própria inexpressividade deste Bonaparte de tra2er por casa permitia que todas as classes o reinventassem à imagem delas. Para os camponeses, ele era o inimigo dos ricos; para os proletários, representava o aniquilamento do republicanismo burguês; para a alta burguesia, a esperança da restauração monárquica; para o exército, a promessa de guerra. Assim, o francês mais simples de espírito adquiria o mais complexo significado: «Por nada ser, podia significar tudo.» Apesar de todo o seu brilho e coragem, a Repue não se desviou dos seus objectivos para seduzir assinantes. Como E. H. Carr assinalou, «o conjunto dos artigos era tacitamente temperado com acerbos ataques aos outros refugiados alemães em Londres, os quais eram quase os únicos leitores potenciais da revista»". A circulação era reduzida e as receitas insignificantes. E m Maio de 1850, Jenny Marx escreveu implorantemente a Weydemeyer em Frankfurt: «Suplico-te que nos envie o mais depressa possível as receitas da Revue. Estamos muito necessitados.»^^ Marx mostrava-se estóico quanto à falência de u m projecto no qual investira tanta esperança e energia. Como Jenny observou com admiração, mesmo nos «momentos mais terríveis» — e tais momentos foram bastante numerosos em 1850 — , nunca perdeu o b o m humor nem a sólida confiança no futuro. «Por favor não fiques ofendido pelas cartas agitadas da minha mulher», escreveu ele a Weydemeyer. «Ela anda a amamentar o filho e a nossa situação aqui é tão extraordinariamente catastrófica que as explosões de impaciência são desculpáveis.»" Este breve comentário mal dava a perceber o verdadeiro h o r r o r que estavam a passar os Marx para sobreviverem. N u m a longa e lancinante carta redigida em Maio de 1850, Jenny Marx descrevia uma cena que podia sair de u m romance de Charles Dickens: «Deixa-me descrever-te apenas um dia das nossas vidas e hás-de perceber que muito provavelmente poucos refugiados passaram por uma experiência semelhante. Como as amas-de-leite são exorbitantemente caras, decidi, apesar das terríveis dores no peito e nas costas, ser eu a dar de mamar ao meu filho. Mas o pobre anjinho absorveu juntamente com o meu leite tantas ansiedades e aflições que está doente noite e dia. Desde que nasceu que nunca dormiu uma noite inteira — no máximo, duas ou três horas. N o s últimos dias, também tem sofrido convulsões violentas

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e está constantemente entre a vida e a morte. Mama com tanta força que tenho uma ferida no peito que muitas vezes chega a sangrar na sua b o quinha. U m dia, estava sentada a dar-lhe de mamar quando chegou a senhoria, a quem já pagámos mais de 250 tâleres durante o Inverno e com quem concordámos, por contrato, pagar o resto mais tarde. Mas ela, agora, nega a existência de tal contrato e exige as cinco libra que lhe devemos. .. Como não temos dinheiro, vieram dois oficiais de diligências cá a casa e confiscaram o pouco que ainda possuo — camas, roupa, tudo, até mesmo o berço do meu pobre filho e os brinquedos das meninas que desataram a chorar. Ameaçaram levar tudo dentro de duas horas — deixando-me a dormir no chão com as crianças cheia de firio e o meu peito ferido. O nosso amigo Schramm foi imediatamente à cidade à procura de ajuda, mas, ao entrar no coche, os cavalos assustaram-se e abalaram a toda a brida. Ele saltou e trouxeram-no a sangrar para casa onde eu me lamentava na companhia dos meus pobres filhos a tremer de frio. Fomos obrigados a deixar a casa no dia seguinte. Estava tanto frio e húmido que o meu marido foi em busca de alojamento, mas ninguém nos quer receber por causa das quatro crianças. Por fim, um amigo veio em nossa ajuda. Pagámos o que devíamos e vendi tudo à pressa para pagar igualmente aos boticários, padeiros, talhantes e leiteiro que, receosos pelo escândalo provocado pelos oficiais de diligências, nos assaltaram subitamente com as suas contas. As cama que vendi foram levadas para a rua e carregadas num carrinho de mão. E, depois, o que é que aconteceu? O Sol já se tinha posto há muito e a lei inglesa proíbe isso. Então o senhorio vem ter connosco e os polícias e declara que podemos ter metido coisas dele no meio das nossas posses e que vamos fugir para o estrangeiro. E m menos de cinco minutos, junta-se uma multidão de 200 ou 300 pessoas à porta, toda a canalha de Chelsea. As camas voltam a entrar pois só podem ser entregues ao comprador no dia seguinte depois de o Sol nascer, enquanto eu e os meus pobres filhos nos alojamos n o G e r m a n Hotel, 1, Leicester Street, em Leicester Square, onde nos receberam decentemente por 5,10 libras por semana.»" Dias mais tarde, os Marx encontraram abrigo temporário em casa de um negociante de rendas judeu na rua Dean, 64, no Soho, onde passaram u m Verão horrível à beira da miséria. Jenny estava de novo grávida e constantemente doente. E m Agosto, a situação era tão má que ela teve de partir para

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a Holanda e entregar-se à mercê do tio materno do marido, Lion Philips, rico h o m e m de negócios holandês (cuja epónima companhia ainda hoje floresce a vender toda a espécie de produtos eléctricos, de aparelhos de televisão a torradeiras). N ã o precisava de ter-se dado a esse incómodo: Philips, que estava «muito contrariado pelo efeito nefasto da revolução sobre os seus negócios», ofereceu apenas um amplexo avuncular e um presente insignificante ao pequenino «Fawkesy». E, quando ela o preveniu que teriam de emigrar para a América se ele não os socorresse, Philips limitou-se a responder-Ihe que achava isso uma óptima ideia. «Receio bem, querido Karl, que tenha de voltar para casa de mãos vazias, desapontada e cheia de medo de morrer», escreveu Jenny. «Oh, se soubesses quantas saudades t e n h o de ti e dos pequeninos. N ã o posso escrever nada sobre os nossos filhos sem sentir os olhos rasos de lágrimas...» Muitos dos revolucionários exilados em Londres eram artesãos — tipógrafos, sapateiros, relojoeiros. Outros ganhavam a vida ensinando inglês ou alemão. Mas Marx era congenitalmente incapaz de qualquer emprego regular. Considerou efectivamente a possibilidade de emigrar, mas descobriu que a viagem seria <ánfernalmente cara»; mas, se soubesse que era prestada assistência aos emigrante necessitados, teria possivelmente tomado o próximo barco. Como de costume, Engels veio em seu socorro, sacrificando as suas próprias ambições jornaKsticas em Londres para trabalhar nos escritórios da firma têxtil do pai em Manchester, E r m e n & Engels, onde ficou durante quase 20 anos. «O meu marido e todos nós sentimos muito a tua falta e temos imensas saudades tuas», escreveu-lhe Jenny depois da sua partida, em Dezembro de 1850. «No entanto, estou contente por te estares a tornar num grande negociante de algodão. is Mas o desejo de Engels não era aquele e considerava o «vil comércio» como uma penitência. E m b o r a em breve assumisse a aparência exterior de um homem de negócios de Lencashire — fazendo parte dos clubes mais exclusivos, enchendo a cave de champanhe e participando em caçadas à raposa com galgos — nunca se esquece que o objectivo era sustentar o seu brilhante, mas necessitado amigo. O seu papel foi o de uma espécie de agente secreto atrás das linhas inimigas e enviava a Marx pormenores confidenciais sobre o comércio de algodão, observações quanto ao estado dos mercados internacionais e — principalmente — uma mesada regular em notas surripiadas do dinheiro destinado às pequenas despesas da firma ou astuciosamente tiradas da sua

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conta bancária. (Como precaução contra os roubos nos correios, dividia as somas em duas metades e enviava-as em envelopes separados.) Isto dá uma ideia do m o d o negligente como o negócio era dirigido, pois nem o pai nem o sócio em Manchester, Peter Ermen, nunca se deram conta de nada. N o entanto, Engels teve o maior cuidado para não despertar suspeitas, m e s m o se, p o r vezes, isso significava deixar a família Marx sem tostão. «Escrevo só para te dizer que, infelizmente, ainda não posso mandar as duas libras que prometi», escreveu em Novembro. «O Ermen ausentou-se por uns dias e, na medida em que não foi autorizada nenhuma procuração com o banco, nada podemos enviar e temos de nos contentar com os poucos pagamentos que entram. A soma total da caixa é de apenas quatro Libras e tens portanto de perceber que tenho de esperar um certo tempo.»^"" Quando o pai visitou os escritórios de Manchester uns meses depois, Engels conseguiu que ele lhe desse um «subsídio para despesas e representações» de 200 libras por ano. «Com isso, tudo vai correr bem e, se não houver complicações antes de ser feito o próximo balanço e o negócio aqui prosperar, ele terá de me pagar bastante mais dinheiro... Tenciono, este ano, gastar muito mais do que 200 libras. E, como os negócios vão de vento em popa e ele está agora duplamente mais rico do que em 1837, nem vale a pena acrescentar que eu não serei desnecessariamente escrupuloso.»" Mas, dentro de pouco tempo, Engels sénior reflectiu sobre o assunto e, decidindo que Friedrich estava a gastar demasiado dinheiro, reduziu a quantia para 150 libras. E m b o r a o filho pródigo tenha barafustado quanta essa «ridícula imposição», isso em nada diminuiu a sua generosidade para com o amigo e, por volta de 1853, pôde gabar-se que «o ano passado, graças a Deus, saquei metade dos lucros do meu pai aqui».**^ Engels podia dar-se ao luxo de manter duas residências: na elegante casa na cidade recebia a fina flor local e, na outra, instalou a amante, Mary Burns, e a irmã. Liza, com quem viveu em ménage à trois. A 15 de J u n h o de 1850, pouco antes de Engels se exilar no N o r t e , o Spectator^ de Londres, pubMcou uma carta assinada por «Charles Marx e Frede. Engels», moradores na rua Dean, 64, no Soho: «Nunca teríamos realmente pensado, Sr. Director, que, neste país, existissem tantos espiões da polícia como aqueles que tivemos a sorte de encontrar n o curto espaço de uma semana. N ã o só a porta das casas onde vivemos são estreitamente vigiadas por individuos de aparência mais do que duvidosa que tomam notas sem-

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pre que alguém entra ou sai, como é impossível dar um único passo sem sermos seguidos para onde quer que vamos. N e m podemos apanhar u m autocarro ou entrar num café sem termos o prazer da companhia de, pelo menos, um desses amigos desconhecidos, 19 E com toda a razão, devem ter pensado os leitores do Spectator, sobretudo porque os autores orgulhosamente se identificavam como sendo revolucionários fugidos do seu país. Mas Marx e Engels anteciparam essa objecção fazendo astuciosamente apelo à vaidade inglesa e à sua fobia contra os hunos, revelando que nos seus santuários anteriores — França, Bélgica, Suíça — não tinham conseguido escapar ao maléfico poder do rei prussiano. «Se, através de sua influência, formos forçados a deixar este último refúgio na Europa, por que é que a Prússia não há-de julgar que governa o m u n d o . . . Achamos, Sr. Director, que, nestas circunstâncias, nada podemos fazer de melhor do que dar a conhecer o caso ao público, pois acreditamos que os ingleses estão interessados em tudo que possa afectar a bem estabelecida reputação de Inglaterra como o local de asilo mais seguro para os refugiados de todos os partidos e países.» Apesar do tom divertido, Marx precisava desesperadamente da garantia de que a Inglaterra não o abandonaria. Desde a recente tentativa de assassinar o rei Frederico Guilherme IV, que o ministro do Interior prussiano tinha intensificado a sua campanha contra os «conspiradores políticos», enviando espiões da polícia e agentsprovocateurs p2Lt'ã. várias capitais europeias — sobretudo Londres e, em particular, a rua Dean, no Soho. E não era de admirar, pois o ministro do Inteiro era o reaccionário meio irmão de Jenny, Ferdinand von Westphalen. N ã o tendo conseguido impedir que Marx entrasse na família sete anos mais cedo, estava, agora, bem decidido a vingar-se. N a carta ao Spectator, Marx alegava que, uns 15 dias antes do atentado contra o rei Frederico Guilherme, «pessoas que tenho todas as razões para acreditar que sejam agentes do Governo prussiano, ou ultra-reaüstas, apresentaram-se a nós e tentaram quase directamente envolver-nos em regicídios em Berlim e noutras cidades. Escusado será dizer que tais indivíduos não nos convenceram.» O objectivo deles, segundo explicou, era persuadir as autoridades britânicas «a expulsar deste país os pretensos chefes da pretensa conspiração». U m desses agentes não identificados eraWüheltn Stieber, mais tarde chefe do serviços secretos de Bismark, que, fazendo-se passar por um jornalista de nome Schmidt, chegara a Londres em 1850. Stieber tinha recebido ordens para vigiar Karl Marx e, depois de se infiltrar no quartel-gene-

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ral comunista no número 26 da rua Great Windmill, enviou um telegrama urgente confirmando as suspeitas que Von Westphalen tinha quanto ao cunhado. «O assassínio de príncipes é formalmente ensinado e planeado», informou esse agente: «Numa reunião presidida por Wolff e Marx, que teve lugar anteontem e à qual assisti, ouvi um dos oradores afirmar "A Vitela da Lua (a rainha Victoria) também não escapará ao seu destino. O aço inglês é o melhor, as lâminas de machado sobretudo são particularmente afiadas e a guilhotina aguarda todas as cabeças coroadas." Assim, o assassínio da rainha de Inglaterra é proclamado por alemães apenas a umas centenas de metros do palácio de Buckingham... Antes da reunião terminar, Marx declarou à audiência que podia estar tranquila pois havia cúmpHces colocados por toda a parte. Medidas infalíveis foram tomadas para que nenhum dos assassinos das cabeças coroadas europeias possa escapar.»™ U m dos primeiros biógrafos de Karl Marx escreveu que «este relatório é curiosamente convincente»^^ É, de facto, manifestamente absurdo — como o próprio Governo britânico da época reconheceu. Embora o ministro do Interior prussiano enviasse esse despacho para Londres, Lorde Palmerston consignou-o nos arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros onde se encontra até hoje. Tanto quanto se possa dizer, ele nem se quer se deu ao trabalho de alertar a Scodand Yard. Quando o embaixador austríaco em Londres se queixou ao ministro do Interior, Sir George Grey, que Marx e os seus camaradas da Liga Comunista andavam a falar de regicídio, a resposta que obteve foi um breve e sobranceiro sermão sobre a natureza da democracia liberal: «De acordo com as nossas leis, a mera discussão de regicídios, e desde que não diga respeito à rainha de Inglaterra e não haja u m plano definido, não constitui motivo suficiente para prender os conspiradores.» U m esquema para assassinar a rainha Victoria era justamente o tipo de proeza fútil que Marx detestava. Desprezava os revolucionários que preferiam actos que dessem nas vistas ao monótono, mas necessário, processo de se preparar para a crise económica que conduziria à vitória do proletariado. Na verdade, foi a sua própria obstinação quanto a este ponto que destruiu a Liga Comunista em Londres, pois os membros mais impacientes do comité irritavam-se perante a insistência de Marx que deviam aguardar o m o mento oportuno.

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O Kder dos descontentes era August WilUch, o antigo comandante militar de Engels do tempo da campanha de 1849 em Baden, o qual, desde que se juntara à diáspora alemã em Inglaterra, só criava problemas. «Vinha visitar-me», escreveu Jenny Marx anos mais tarde, «porque queria extirpar o bicho do caruncho que se instala em todos os casamentos.» Quase tudo em Wilüch punha Marx fora de si — as suas atitudes e modos, as roupas coloridas, a sua forma ruidosa de chamar a atenção. N o Verão de 1850, ele denunciou abertamente Karl Marx de ser «reaccionário» Este, que nunca perdia uma ocasião para vituperar quem quer que fosse, retaliou chamando-o «mal-educado e um asno quatro vezes corno». N o decorrer de uma tumultuosa reunião do comité da Liga Comunista, a 1 de Setembro, WiUich desafiou Marx para um duelo. Como WilUch era b o m atirador e acertava no ás de copas a vinte passos, Marx teve o bom-senso de recusar; mas o seu lugar-tenente, Conrad Schramm, o qual nunca disparara um pistola na vida, aceitou o desafio imediatamente e partiu com WiUich para Antuérpia, pois os duelos eram proibidos em Berlim. Karl e Jenny ficaram à espera do pior, sobretudo quando ouviram que WiUich levava Emmanuel Barthélémy como testemunha. Barthélémy, u m rufia musculoso de ar feroz, fora preso aos 17 anos por ter morto u m polícia e ainda ostentava no ombro a indelével marca dos condenados às galés. Tendo fugido para Londres há apenas umas semanas depois de ter escapado de uma prisão francesa, já o tinham ouvido dizer que traidores como Marx e os seus amigos mereciam ser abatidos. E, em virtude das suas proe2as com pistolas e sabres, conforme tinha amplamente demonstrado no salão de esgrima de Rathbone Place, não se tratava de uma ameaça para ser tomada a brincar. Que possibUidades tinha o corajoso, mas fraco Schramm contra a formidável perícia de WiUich e Barthélémy? N o dia marcado, Marx e Jenny aguardaram em casa muito preocupados, na companhia de Wilhelm Liebknecht, contando os minutos. N a noite seguinte, Barthélémy veio pessoalmente anunciar-lhes em voz sepulcral que Schramm a une halle dans la tête (Schramm tem uma bala na cabeça), e, depois de baixar hirtamente a cabeça, saiu sem dizer outra palavra. «Claro que julgámos ter perdido Schramm», escreveu Liebknecht. «No dia seguinte, estávamos nós ainda a falar tristemente dele, a porta abriu-se de repente e lá entra o Schramm de cabeça Ugada, mas a rir-se. Contou-nos que tinha recebido um tiro de raspão que o atordoara e que, ao recuperar os

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sentidos, se viu acompanhado da sua testemunha e do médico perto do mar.» Assumindo que o tiro tinha sido fatal, WiUich e Barthélémy tinham tomado o vapor de regresso em Ostende. E assim terminou o sonho de Marx de dirigir a Liga Comunista a partir de Inglaterra. Na sua reunião final a 15 de Setembro de 1850, propôs que o Comité Central fosse transferido para Colónia, pois os agitadores em Londres eram incapazes de proporcionar uma liderança decente. Uma boa solução — excepto que os comunistas de Colónia já tinham problemas de sobra. Desde o atentado contra o rei Frederico Guilherme IV que o governo prussiano tinha redobrado a perseguição aos indivíduos subversivos e, no Verão de 1851, todos os 11 membros do Comité Central de Colónia se encontravam na cadeia à espera de serem julgados por conspiração. O pobre velho Marx, que esperava uma folga bem merecida, foi relutantemente arrastado no caso quando começou a tentar pressionar as autoridades e a protestar em nome dos «conspiradores» alemães. Não se tratou de simples altruísmo: para seu desespero, tinha sido apontado pelo promotor da justiça como o cérebro por detrás dos maquiavélicos planos dos réus. Trabalhou dia e noite, organizando comités de defesa, angariando fundos e escrevendo cartas indignadas para os jornais. «Foi instalado um escritório completo em nossa casa», contou Jenny a uma amiga. «Duas ou três pessoas escrevem, outras fazem recados e outras ainda tentam arranjar dinheiro para que os que escrevem possam sobreviver e consigam provar ao mundo que a administração é culpada dos escândalos mais ultrajantes. E, entretanto, os meus três alegres filhos cantam e assobiam até serem severamente repreendidos pelo pai. Que confusão!»^^ Sete dos 11 acusados foram parar à prisão. A Liga Comunista estava aniquilada e muitos anos se passariam antes de Marx se juntar a qualquer outra organização. Compreensivelmente fatigado de comités, sociedades e ligas, as quais tanto exigiam e obtinham tão poucos resultados, retirou-se para a sala de leituras do Museu Britânico, a dez minutos a pé da rua Dean, e dedicou-se à ambiciosa tarefa de produzir uma explicação compreensiva e sistemática da economia poKtica — um projecto monumental que viria a ser intitulado O Capital. No final de>l 850 — após passarem cinco miseráveis meses na rua Dean, 64 — Karl e Jenny encontraram alojamento a uma centena de metros. Era no último andar do número 28 e tinha duas divisões. Actualmente, o prédio é ocupado por um elegante restaurante cujo patrão é o temperamental

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cozinheiro Marco-Pierre White; uma pequena placa azul na parede, mandada afixar pelo defianto Conselho Municipal da Grande Londres, assinala que «Karl Marx (1818-1883) viveu aqui de 1851 a 1856». Este é o único monumento oficial aos seus 34 anos passados em Inglaterra, país que nunca soube se devia sentir orgulho, ou vergonha, pela sua ligação com o pai da revolução proletária. De forma bastante apropriada, as datas dessa placa são incorrectas. O annus horrihilis estava quase terminado, mas ainda tinha umas quantas crueldades para infligir. Duas semanas antes dos Marx terem mudado para a rua Dean, 28, o seu pequenino Heinrich Guido «Fawkesy» morreu subitamente após uma crise de convulsões. «Ainda há pouco ria e brincava», contou Marx a Engels. «Podes imaginar como nos encontramos todos aqui. A tua ausência neste momento particular faz-nos sentir muito sozinhos.»^^ Jenny ficou de cabeça perdida, «num perigoso estado de excitação e exaustão», enquanto Karl exprimiu o pesar que sentia em estilo característico denunciando a perfídia dos seus camaradas. Desta vez, o alvo principal foi Conrad Schramm, o qual, há apenas umas semanas, tinha arriscado a vida para defender a honra de Marx. «Durante dois dias inteiros, 19 e 20 de Novembro, não apareceu em nossa casa», escreveu raivosamente Marx a Engels, «veio finalmente por uns instantes e voltou a desaparecer depois de fazer uma ou duas observações imbecis. Tinha-se oferecido para nos acompanhar no dia do funeral; chegou uns minutos antes da hora marcada, não pronunciou uma palavra acerca da cerimónia, mas disse a minha mulher que tinha de se ir embora à pressa por causa de um jantar com o irmão.»^'* Schramm juntou-se, assim, a uma longa e sempre crescente lista de traidores. Rudolf Schramm, irmão de Conrad, já lá estava incluído por ter tido o atrevimento de organizar uma reunião de alemães em Londres sem convidar os associados de Marx e Engels. Outro dos escorraçados era Eduard von Müller-Tellering, antigo correspondente da Neue Kheinische Zeitung, conhecido por ser «um zaragateiro de primeira classe» que tinha, contudo, encontrado alguém à sua medida quando certa vez desafiara Marx. Como acontece a maior parte das vezes com estas vendetas, o casus belli oú^nú era insignificante. Sem aviso prévio, TeUerin pediu uma entrada a Engels para um baile organizado pela Associação Educativa dos Trabalhadores Alemães; Engels, ao explicar-lhe que já era demasiado tarde, não pôde resistir e fez-lhe notar que ele nunca tinha ido às reuniões da Associação nem sequer fora buscar o seu cartão de membro —

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«ainda anteontem, um tipo na mesma situação foi expulso da Associação». Pouco tempo depois e aceitando a sugestão, a «corte de honra» da Associação, presidida por WiUich, rescindiu a adesão de Teilering. Este reagiu lançando ataques difamadores à cuque Marx-Engels — ou, como é hoje em dia frequentemente chamada — o Partido Marx. Nessa altura, o chefe do partido em pessoa entrou na refrega. «Se fosses h o m e m para aceitar, desafiava-te agora mesmo pela carta que escreveste ontem à Associação dos Trabalhadores», rugiu Marx. «Espero por ti onde quiseres para te arrancar a hipócrita máscara de fanatismo revolucionário atrás da qual tens, até agora, sabido tão bem ocultar os teus interesses mesquinhos. A tua inveja, a tua vaidade sem limites e o teu raivoso descontentamento pela falta de apreço que o m u n d o tem pelo génio — falta de apreço essa que começou no dia em que não passaste nos exames.»^^ Tinha sido Marx quem encorajara as ambições jornalísticas de Teilering e o recomendara à Associação; era agora Marx quem mandava o infiel servidor para as mais profundas trevas. Após um contra-ataque final — u m panfleto de histéricos insultos anti-semitas — , Teilering emigrou para os Estados Unidos e nunca mais se ouviu falar dele. Marx adorava conflitos e estava sempre alerta a qualquer provocação verdadeira ou imaginária. TeUering e Rudolf Schramm eram «uns desgraçados»; os Kderes da Associação Democrática — grupo rival da Associação Educativa dos Trabalhadores Alemães — eram «charlatães e vigaristas»; outro grupo de refugiados recentemente chegados era «um enxame de democratas velhacos». Se esses desgraçados e velhacos eram tão insignificantes, poder-se-á perguntar, porque não os ignorava? Quando, certa vez, foi difamado na Suíça por um obscuro político chamado Karl Vogt, tinha realmente de redigir uma polémica de 200 páginas — Herr Vogt— como resposta? Marx não era o único que antipatizava com o fanfarrão e vaidoso poeta revolucionário, Gottfried Kinkel, mas mais ninguém achou necessário reagir aos seus comentários absurdos através de um calhamaço de cem páginas escabrosamente trocistas intitulado Os Grandes Homens do Exílio. Sempre que admiradores lhe sugeriam que um leão não devia perder tempo a lutar com insectos, Marx respondia que a denúncia impiedosa de charlatães utópicos não era inferior ao seu dever de revolucionário:
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Além do mais, ele gostava daquele desporto. Basta 1er alguns do fortuitos retratos traçados em Os Grandes Homens do'Exíliopara ver o ptíLzer que ele tinha em dar cabo deles. Rudolf Schramm: «Um homúnculo gabarolas e zaragateiro, cuja lema na vida é saído do Sobrinho, de Rameau, "antes ser um faia-barato insolente do que nada."» Gustav Struve: «Ao ver a sua aparência rugosa, os olhos promberantes de expressão estúpida e manhosa, o brilho baço da careca e as feições meio eslavas, meio calmuques, uma pessoa não duvida de que está em presença de um homem invulgar...» Arnold Ruge: «Não se pode dizer que este h o m e m nobre possa ser recomendado pela sua beleza exterior; os seus conhecidos de Paris resumem os seus traços eslavo-pomeranos chamando-o "cara de fuinha"... A figura de Ruge na revolução alemã assemeIha-se a certas ruas onde se pode 1er o seguinte aviso: "Pode-se urinar aqui."» Longe de lhe tirar o vigor, estas ferozes tiradas renovavam-no. A raiva vulcânica que jorrava sobre deviacionistas obscuros tinha a mesma paixão que iluminava as suas denúncias do capitalismo e das suas contradições. Para dar o seu melhor, Marx necessitava de se manter em estado de fúria efervescente — para enfrentar as numerosas catástrofes domésticas, a sua péssima saúde ou os idiotas que ousavam opor-se à sua sabedoria superior. A o escrever O Capital, Marx jurou que os burgueses haveriam de ter bons motivos para se lembrar dos furúnculos que lhe causavam dores e o mantinham de mau humor. Os Vogt e os Kinkel serviam a mesma finalidade — não para matar mosquitos a tiro de canhão mas para supurar os furúnculos no rabo. As suas condições de vida talvez tivessem sido expressamente concebidaspara não o deixar ser feliz. A mobília e as instalações do seu apartamento com duas divisões estavam partidas ou estragadas e tudo estava coberto por uns centímetros de poeira. N o meio da sala da frente, a qual dava para a rua Dean, havia uma grande mesa com u m oleado onde se encontravam os manuscritos, livros e jornais de Marx bem como os brinquedos das crianças, trapos e o cesto de costura da mulher, várias chávenas rachadas, facas, garfos, lâmpadas, um tinteiro, cálices, cachimbos de cerâmica holandeses e uma espessa camada de cinza de tabaco. Alguém que quisesse sentar-se corria perigo. «Aqui está uma cadeira só com três pernas e as crianças têm estado a brincar a cozinhar numa outra... Esta cadeira aqui tem por acaso quatro pernas», contou um visitante. «É a que é oferecida às visitas, mas está suja dos cozinhados das crianças; se uma pessoa se senta, arrisca um par de calças.» U m dos raros espiões da polícia prussiana que entrou nesta gruta cheia de fumo ficou chocado pelos hábitos desleixados de Marx:

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«Leva a existencia de um autentico intelectual boémio. Lavar-se, pentear-se e mudar de roupa são coisas que mal faz. E gosta de embebedar-se. E m b o r a passe dias seguidos sem fazer nada, trabalha infatigavelmente dia e noite quando tem trabalho. N ã o tem horas para dormir e acordar. Fica muitas vezes levantado toda a noite e, depois, deita-se todo vestido no sofá a meio do dia dormindo até à noite sem que as idas e vindas de toda a gente o incomodem.»^'' A relutância de Marx em ir para a cama parece ser razoável, pois toda a família — incluindo a governanta, Helene «Lenchen» D e m u t h — tinha de dormir num pequeno quarto no fundo do prédio. Como é que Karl e Jenny arranjaram privacidade para ter filhos continua a ser um mistério; presume-se que se aproveitavam das alturas em que Lenchen levava as crianças a passear. Com Jenny doente e Karl inquieto, a tarefa de preservar qualquer aparência de ordem doméstica recaía na criada. «Oh, se soubesses c o m o tenho saudades tuas e das crianças», escreveu Jenny a Karl aquando da infrutífera expedição à Holanda em 1850. «Sei que tu e a Lenchen tratarão deles. Sem a Lenchen, não me sentiria tranquila.» E Lenchen estava, de facto, a cumprir os deveres de Jenny — incluindo os do leito conjungal. Nove meses mais tarde, no dia 23 de J u n h o de 1854, deu à luz u m menino. N a certidão de nascimento de Henry Frederick D e muth, conhecido mais tarde por Freddy, o espaço destinado ao n o m e e à profissão o pai foi deixado em branco. A criança foi pouco depois adoptada, provavelmente por um casal da classe operária, os Lewis, que viviam na parte leste de Londres. (As provas são apenas circunstanciais: o filho de Lenchen mudou o nome para Frederick Lewis Demuth e passou toda a vida adulta em Hackney. Tornou-se um excelente torneiro mecânico e trabalhou em várias fábricas de East End; apoiou entusiasticamente o sindicato e foi membro-fundador do Partido Trabalhista de Hackney. Recordado pelos colegas como um h o m e m sossegado que nunca falava da família, morreu a 28deJaneirodel929). Como Freddy nasceu no pequeno quarto do fundo na rua Dean, 28 — e a barriga inchada de Lenchen daria certamente nas vistas — esta concepção aparentemente milagrosa não pôde ser ocultada de Jenny. Mas, apesar de profundamente chocada e zangada, ela concordou que tal notícia, caso fosse revelada, proporcionaria munições letais aos inimigos de Marx. E assim

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começou uma das mais bem sucedidas simulações jamais organizadas para o bem da causa comunista. Correram muitos boatos de que Marx era pai de um filho uegítimo, mas a primeira referência pública à verdadeira paternidade de Freddy só surgiu em 1962, quando o historiador alemão, Werner Blumenberg publicou um documento encontrado nos vastos arquivos marxistas no Instituto Internacional de História Social, em Amesterdão. Trata-se de uma carta escrita a 2 de Setembro de 1898 por Louise Freyberger, amiga de Helene D e m u t h e governanta de Engels, a descrever a confissão do patrão no seu leito de morte: «Soube pela boca do próprio General (Engels) que Freddy Demuth é filho de Marx. Tussy (a filha mais nova de Marx, Eleanor) importunou-me tanto que eu acabei por lhe perguntar directamente. O General ficou muito surpreendido por Tussy se agarrar tão obstinadamente àquela ideia e disse que, caso fosse necessário, eu deveria desmentir os mexericos que ele repudiara o filho. Lembra-te de que eu te falei disto muito antes de o General morrer. O facto de Frederick Demuth ser filho de Karl Marx e Helene Demuth foi novamente confirmado por uma declaração feita pelo General poucos dias antes de morrer ao Sr. Moore (Samuel Moore, tradutor do Manifesto Comunista e de O Capital) que, a seguir, foi ter com Tussy a Orpington e lhe contou. Tussy contestou que o General estava a mentir e que ele mesmo tinha sempre admitido que era o pai. Moore voltou de Orpington e interrogou de novo o General, mas este insistiu que Freddy era filho de Marx e disse: "A Tussy quer fazer do pai u m ídolo." N o domingo, quer dizer, um dia antes de morrer, o General escreveu isso mesmo numa ardósia para Tussy ver, e esta saiu do quarto tão perturbada que se esqueceu do ódio que me tinha e chorou amargamente ao meu ombro. O General deu-nos... a permissão de usar esta informação apenas se ele fosse acusado de ter repudiado Freddy. Disse que não queria que o nome dele fosse conspurcado, sobretudo porque já não podia fazer bem a ninguém. Ao substitoir-se a Marx, tinha-o salvo de um conflito doméstico. À parte nós, o Sr. Moore e os filhos do Sr. Marx (julgo que Laura sabia da história, embora talvez não a tivesse ouvido bem contada), os - únicos que sabiam que Marx tinha um filho eram Lessner e Pfänder. Depois da cartas do Freddy serem publicadas, Lessner disse-me: "Claro

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que o Freddy é irmão da Tussy, todos nós o sabemos, mas nunca soubemos onde é que ele foi criado. Freddy parece-se cómicamente com Marx e, com aquela cara judia e espessa cabeleira preta, e só por cegueira preconceituosas é que se p o dia ver nele qualquer semelhança com o General. Vi a carta que Marx enviou para Manchester ao General naquela altura (o General, então, ainda não vivia em Londres), mas acho que o General a destruiu, c o m o tantas outras que eles trocaram. É tudo o que eu sei sobre o assunto. Freddy nunca soube quem era o seu pai verdadeiro, pois nem a mãe nem o General lhe contaram... E s t o u a 1er outra vez o que me escreveste sobre a questão. Marx sempre esteve consciente da possibilidade de um divórcio, pois a mulher era muito ciumenta. N ã o gostava da criança e, se ousasse fazer qualquer coisa por ela, o escândalo seria enorme.»^^ Desde que este documento foi tornado público em 1962 que a maior parte dos historiadores marxistas o aceitam como prova conclusiva da infidelidade de Marx. Mas há uma ou outra pessoa céptica. A biógrafa de Eleanor Marx, Yvonne Kapp, descreveu a carta de Freyberger como sendo «uma fantasia» que «em muitos pontos não é críveb rel="nofollow">; n o entanto, concede, «não pode haver nenhuma dúvida aceitável de que ele (Freddy) era filho de Marx»^^. O professor Terrell Carver, autor de uma biografia de Engels, vai muito mais longe. Recusa acreditar que Marx ou Engels pudessem ser pais de Freddy e descarta a carta como sendo falsa — «uma falsificação maquinada, possivelmente por agentes nazis, para desacreditar o socialismo»^'. Assinala que a versão dos arquivos de Amesterdão é uma cópia escrita à máquina, cuja proveniência é desconhecida e que o original (se jamais existiu) nunca foi encontrado. É certo que algumas das alegações feitas no documento desafiam toda a lógica ou senso comum. Tome-se a «carta» que Marx é suposto ter enviado a Engels na altura do nascimento e que Louise Freyberger diz ter visto. Como ela nasceu em 1860 e só foi trabalhar para Engels em 1890, isso significa que ele deve tê-la guardado entre os seus papéis durante muitas décadas. Porquê, então, tendo-se dado ao trabalho de a guardar durante tanto tempo, destruiu ele a única prova que «desmentiria os mexericos que ele repudiara o filho?» Há também uma óbvia implausibilidade psicológica. Quando Jenny Marx descobriu que a criada e o marido andavam a fazer mimos u m ao outro por

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detrás das suas costas — enquanto ela própria estava grávida — devia ter imediatamente posto a traiçoeira Lenchen fora de casa ou, pelo menos, olhá-la com desconfiança. N o entanto, as duas mulheres permaneceram amigas o resto da vida. «No que respeita à identidade do pai, investigações feitas sobre a vida de Frederick Demuth não deram qualquer resultado, e também não existem dados que confirmem a alegada declaração de Engels que ele tinha aceite a paternidade», conclui o professor Carver. «A correspondência e memórias que restam não fornecem quaisquer elementos positivos quanto à história contada por Louise Freyberger.»-^" Isso não é bem verdade. Embora os papéis de Marx e Engels tenham sido cuidadosamente esquadrinhados pelos seus executores que não desejavam embaraçar, ou injuriar, estas duas grandes figuras do comunismo, alguns fragmentos reveladores sobreviveram. O primeiro é uma carta de Eleanor Marx à irmã Laura, datada de 17 de Maio de 1882, a qual prova que as filhas de Marx tinham aceite a história da paternidade de Engels: «Freddy portou-se admiravelmente em todos os aspectos e a irritação de Engels contra ele é tão injusta como compreensível. Penso que nenhum de nós gosta de enfrentar os nossos erros passados em carne e osso. Sou tomada por um sentimento de culpa sempre que vejo Freddy. A vida desse homem! Ouvi-lo contá-la entristece-me e envergonha-me.» Dez anos mais tarde, a 26 de Julho de 1892, Eleanor voltou ao mesmo assunto: «Talvez eu seja muito "sentimental".. . mas não posso deixar de sentir que Freddy sofreu muitas injustiças durante toda a sua vida. N ã o é maravilhoso quando se pode olhar as coisas de frente! Como é raro praticar todas as boas coisas que pregamos — aos outros.» A luz da carta anterior, a zombaria é dirigida a Engels. Tanto Karl Marx como a mulher deixaram pequenas, mas reveladoras indicações quanto à verdade. O ensaio autobiográfico de Jenny, Breve Esboço de Uma Vida Plena, escrito em 1865, inclui uma curiosa revelação entre parênteses: «No começo do Verão de 1851, aconteceu uma coisa que, embora tenha contribuído para aumentar as nossas preocupações, pessoais e outras, não desejo relatar aqui em pormenor.» O evento em questão só pode ter sido o nascimento de Freddy. Se Helene Demuth tivesse sido engravidada por outro amante, por que é que isso teria causado um pesar tão pessoal e durável a Jenny? Mais estranho é uma carta enviada por Marx a Engels, a 31 de Março de 1851, quando Helene estava grávida de seis meses. Depois de muitas épicas resmungadelas quanto às suas dívidas, credores e a mãe avarenta, Marx

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acrescenta: «Tens de admitir que isto é o raio de uma alhada e que estou enfiado até ao pescoço neste lodaçal pequeno-burguês... Mas, finalmente, para dar à situação uma reviravolta tragicómica, há um mystère que te vou contar en très peu de mots. Desculpa, mas acabei de ser interrompido e tenho de ir tratar da minha mulher. O resto, em que tu também estás, seguirá na próxima.» Mas, quando a carta seguinte chegou dois dias depois, ele já tinha mudado de ideias. «Não te vou contar nada sobre o mystère porque, coûte que coûte (custe o que custar), virei ver-te no fim de Abril. Tenho de fiagir daqui por uma semana.» Que outro mystère poderia ser senão a gravidez de Lenchen? O malicioso uso de eufemismos firanceses prova-o sem sombra de dúvidas, pois era a sua linguagem habitual quando se sentia ginecológicamente embaraçado. (Durante os vários períodos de gravidez de Jenny, dizia a Engels que ela estava num «état trop intéressant>>. A sua relutância para dar mais pormenores por escrito é sobejamente explicada mais tarde na mesma carta: «A minha mulher deu à luz uma filha e não ViVa garçon. E, o que é pior, está em muito mau estado.» Quem, ¥rau Marx ou a recém-nascida, Franziska? Provavelmente ambas. Pelo Uvro de memórias de Jenny, sabemos que, no começo do Verão de 1851, ela estava deprimida, e a carta de Marx de 31 de Março confirma isso: «Eu cá, claro está, não m e ralo nada», escreveu Marx. «Nem por u m instante deixo que isso interfira com o meu trabalho, mas, c o m o hás-de compreender, a minha mulher, que está doente e é exposta às mais desagradáveis dificuldades domésticas de manhã à noite, já não suporta respirar as

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infectas exalações que a pestilenta cloaca democrática lhe administra através dos seus estúpidos boatos. A falta de tacto de alguns indivíduos quanto a isto pode ser colossal.»^^ Tais palavras só podiam ter a ver com a misteriosa concepção do pequenino Freddy Demuth. Vale a pena notar que, embora deplorando a falta de tacto daqueles que espalham os «incríveis» boatos, Marx não os nega. A situação dificilmente podia piorar, mas piorou. N a Páscoa de 1852, pouco depois do seu primeiro aniversário, Franziska teve uma grave bronquite e, a 14 de Abril, Marx escreveu uma breve carta a Engels: «Caro Frederick, apenas umas curtas linhas para te informar que a nossa filha pequenina morreu esta manhã à uma e um quarto.» Esta fria mensagem está longe de descrever a agonia e o desespero que reinavam em casa dos Marx. Temos, para isso, de nos debruçar sobre o Brepe Esboço de Uma \^ida Viena, de Jenny: «Ela sofreu horrivelmente. Quando morreu, deixámos o seu pequenino corpo sem vida no quarto do fundo e fizemos as camas no chão da sala da frente. Os nossos três filhos ainda vivos deitaram-se ao nosso lado e todos nós chorámos o anjinho cujo corpo lívido se encontrava no quarto ao lado.» Os Marx nem sequer tinham dinheiro para contratar os serviços de uma agência funerária, mas um vizinho francês teve pena deles e emprestou-lhes duas libras. «O dinheiro foi utilizado para pagar o caixão no qual a minha filha agora repousa em paz. N ã o tinha berço quando chegou a este m u n d o e, durante muito tempo, foi-lhe recusado um lugar onde pudesse finalmente repousar.» Há pouco mais de dois anos que Marx vivia em Londres e já tinha perdido dois filhos. Engels identificou o motivo: «Se, pelo menos», lamentava na sua carta de pêsames, «houvessem meios para tu e a tua família se mudarem para alojamentos mais espaçosos num bairro mais salubre!»"*^ Quer tenha sido, ou não, a penúria a matar Franziska, o certo é que dificultou o enterro. Ao longo das semanas anteriores à morte da filha, Marx tinha esperado poder estabilizar as finanças através de doações provenientes de simpatizantes americanos, mas, na própria manhã do funeral, recebeu uma mensagem de Weydemeyer, o qual vivia agora em Nova Iorque, a dizer-lhe para não contar com essa ajuda. «A carta de Weydemeyer desmoralizou toda a gente aqui, em particular a minha mulher», disse Marx a Engels. «Há já dois anos que ela vê todas as minhas tentativas serem goradas.»

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Certa manhã de Abril de 1853, um padeiro dirigiu-se ao número 28 da rua Dean para dizer aos seus inquilinos que não lhes forneceria mais pão até as contas que eles lhe deviam serem pagas. Q u e m veio à porta foi Edgar Marx, um garoto bochechudo de seis anos que já era um espertalhão. A pequena estatura de Edgar tinha-lhe valido a alcunha de Musch (mosca) na infância, mas, mais tarde, passarain a chamá-lo Coronel Musch em homenagem às suas tácticas. — A Sr.'' Marx está em casa? — perguntou o padeiro. — N ã o — respondeu manhosamente o miúdo e, depois, agarrando em três pães, fugiu. O pai de Musch tinha imenso orgulho no rapazinho, mas não podia esperar que os credores se deixassem enganar tão facilmente. A o longo dos anos passados em Soho, os Marx viveram em permanente estado de sítio: agentes a soldo da Prússia espiavam-nos ostensivamente na rua, tomando notas das idas e vindas, enquanto açougueiros, padeiros e oficiais de diligências lhes batiam à porta. As cartas de Karl Marx a Engels são uma constante litania de desgraças e miséria. «Há uma semana cheguei ao agradável ponto de não poder sair à rua por os meus casacos se encontrarem n o prego e já não posso comer carne por falta de- crédito. E m b o r a pareça fútil, receio bem que isto tudo venha a dar um escândalo» (27 de Fevereiro de 1852). «A minha mulher está doente, a pequenina Jenny também e Lenchen sofre de uma espécie de febre nervosa, mas não posso chamar o médico porque não tenho dinheiro para comprar remédios. N o s últimos oito a dez dias, toda a família se aumenta

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unicamente de pão e batatas, mas duvido que hoje consigamos arranjar o que quer que seja para comer... Como é que eu posso sair desta confusão infernal?» (8 de Setembro de 1852). «Os nossos infortúnios atingiram o seu cHmax» (21 Janeiro de 1853). «Há quase duas semanas que não temos um tostão em casa» (8 de Outubro de 1853). «Só à loja de prego tenho agora de pagar 25 por cento (do dinheiro da casa) e, regra geral, nunca consigo recuperar as coisas por causa cautelas atrasadas... A total falta de dinheiro é o mais horrível — à parte o facto das necessidades familiares não cessarem nem um instante — pois o Soho é um bairro infectado pela cólera e as pessoas esticam o pernil a torto e a direito (uma média de três pessoas por casa na rua Broad) e as "vitualhas" são a melhor defesa contra essa coisa monstruosa» (13 de Setembro de 1854). «Enquanto estava no andar de cima a escrever a minha última carta para ti, a minha mulher era atacada lá em baixo por lobos famintos que, a pretexto dos "tempos difíceis", exigem que ela pague o dinheiro que não tem» (8 de Dezembro de 1857). «Acabei de receber um terceiro efinal aviso do mesmo cobrador de impostos. Se não pagar até segunda-feira, chamam a polícia cá a casa. Por conseguinte, envia-me umas libras se te for possível...» (18 de Dezembro de 1857). Essas poucas libras somadas perfaziam uma boa maquia. E m 1852, um dos mais miseráveis anos de Marx, ele recebeu um total de 150 libras de Engels e outros apoiantes — o suficiente para uma família da classe média viver com certo conforto. Nesse Outono, foi contratado para ser o correspondente europeu do New York Daily Tribune, o joi^nal com maior tiragem do mundo. Enviava regularmente dois artigos por semana a duas libra cada e, embora os seus honorários baixassem ligeiramente depois de 1854, nessa altura também recebia 50 libras ao ano pelas suas contribuições para o Neue Olãer-Zeitung, em Breslau. E m resumo, a partir de 1852 tinha um rendimento de, pelo menos, 200 libras e a renda anual do apartamento na rua Dean era de apenas 22 libras. Porquê, então, andava sempre tão falido? Se Marx fosse o despreocupado boémio descrito em tantos relatórios da poKcia, talvez se desembaraçasse bastante bem. Mas a verdade é que pertencia à classe da gente bem-educada na penúria, desejosa de manter as aparências e recusando abdicar dos hábitos burgueses. Durante a maior parte da década de 1850, mal se podia dar ao luxo de alimentar os próprios e, no entanto, insistia em ter um secretário, o jovem filologista alemão, Wilhelm Pieper, muito embora Jenny Marx lhe pedisse encarecidamente para ser ela a exercer essas funções.

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Pieper, descrito por Jenny como um «pateta desleixado», conseguia a rara proeza de ser dogmático e frívolo ao mesmo tempo. E também não tinha tacto nenhum, era extravagantemente gabarola e insaciavelmente libidinoso. Algumas visitas femininas dos Marx eram reduzidas a lágrimas pelas suas entediantes arengas políticas — e outras pela sua impudente lubricidade. Considerava-se «uma mistura de Byron e de Leibniz»^ mas era, sobretudo, um inútil secretário. A sua principal função era transcrever e traduzir os artigos jornalísticos de Marx, mas as suas traduções tinham tantos erros que, normalmente, Engels tinha de as refazer do princípio ao fim. De qualquer modo, Marx sentiu-se suficientemente à vontade para começar a escrever em inglês a partir da Primavera de 1853. «Não consigo perceber para que é que ainda precisas dele», resmungava Engels numa carta^. No fim desse Verão, Pieper passou duas semanas no hospital onde um pequeno letreiro afixado aos pés da cama anunciava do que se tratava a quem se desse ao trabalho de o 1er: «Wilhelm Pieper, syphilis secundarius.» Apesar de ter prometido ser mais selectivo no fumro, as suas conquistas indiscriminadas continuaram e, pouco tempo depois, foi parar novamente ao hospital. Certo dia, chegou à rua Dean uma carta dirigida a ele. Estava escrita em letra feminina e solicitava um encontro. Como o nome não lhe dizia nada, Pieper p^ssou-a a Jenny Marx que reconheceu logo a assinatura — era a antiga ama-de-leite, «uma velha gorda irlandesa». Karl e Jenny fizeram troça dele por causa desta sua nova admiradora, mas, segundo Marx notou, «ele foi encontrar-se com a grande vaca»^. Todavia, umas semanas mais tarde, Pieper declarava o seu amor infinito por a filha de um merceeiro da zona sul de Londres, a qual era descrita por Marx como sendo uma vela de óculos — «toda ela é verde, mais para o verdete que vegetal e, ainda por cima, sem carne nenhuma»'*. Veio a saber-se que a principal razão do namoro era porque Pieper tencionava cravar 20 libras ao pai, mas, como habitualmente acontecia com todos os seus esquemas, tudo deu para o torto: o merceeiro recusou emprestar-lhe um tostão que fosse, e a apaixonada filha foi a correr à rua Dean propor-lhe que fugissem juntos imediatamente. Pieper desaparecia às vezes durante semanas a fio, quer em perseguição de um corpete jeitoso quer para tentar uma nova carreira — como jornalista, revisor de provas, funcionário municipal, vendedor, mestre-escola —, mas os seus sonhos de amor e dinheiro nunca se concretizaram; regressa, assim, à rua Dean em estado de meter dó, suplicando abrigo e sustento. «Tenho, hélàs, outra vez, o Pieper às costas», gemia Marx em Julho de 1854. «Chegou

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com ar de leitão meio esfomeado depois de ter passado duas semanas com uma puta que ele diz ser um bijou. Gastou umas 20 libras e, agora, ambas as bolsas estão igualmente vazias. Com este tempo é uma chatice ter o tipo a andar por aqui de manhã à noite, pois perturba o meu trabalho.»^ Por causa das condições no apartamento, Pieper tinha de partilhar uma cama como Marx. E, ainda pior, Pieper insistia em tocar música de Wagner — «a música do futuro» — , que Marx achava horrível. E m 1857, Pieper anunciou que lhe tinham oferecido o cargo de professor numa escola particular em Bognor, esperando, aparentemente, que Marx insistisse para que ele ficasse a troco de um melhor salário. Finalmente, contudo, o truque foi descoberto e Jenny tomou o seu lugar. «Transpirou que a sua "indisponibilidade" era apenas fruto da sua imaginação», escreveu Marx, esquecendo-se de acrescentar que ele também tinha caído na esparrela. «A minha mulher desempenha perfeitamente as funções de secretária sem nenhum dos incómodos provocados pelo nobre jovem... N ã o preciso dele para nada 6 Como Jenny já tinha demonstrado as suas capacidades em várias ocasiões, quando Marx estava doente e Pieper andava à caça às putas, porque levou Marx tanto tempo a dar-se conta disso? Há anos que Pieper o irritava, chegando em privado a chamar-lhe palhaço com cabeça de sumaúma e asno pateta. «A combinação de diletantismo e ar sentencioso, insipidez e pedantismo, torna-o ainda mais difícil de aturar. E, como acontece muitas vezes com este género de rapazes, por debaixo de um temperamento aparentemente radioso esconde-se muita irritabilidade,mudanças bruscas de humor e má-fé.»^ Desde o princípio que o emprego de Pieper constitma uma extravagância desnecessária, mas Marx não o tinha despedido porque achava inconcebível que u m h o m e m na sua posição não tivesse um secretário confidencial — bem como férias à beira-mar, lições de piano para as crianças e todas as outras dispendiosas marcas de respeitabilidade. Por mais que os seus bolsos estivessem vazios, recusava-se a aceitar um modo de vida «subproletário», como dizia. Coisas que para outros refugiados pudessem ser consideradas luxos, tornaram-se, para ele, «absolutas necessidades» enquanto exigências mais imperativas, c o m o pagar a mercearia, eram tratadas c o m o extras opcionais. Estas prioridades invertidas são bastante evidentes numa suplicante carta enviada a Engels em Junho de 1854, quando Jenny estava em convalescença e o Dr. Freund, o médico dela, exigia o pagamento dos seus honorários.

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«Estou metido num lindo sarilho», escreveu Marx, explicando que estava falido. «Tinha 12 libras para pagar as contas de casa, mas o que costumo receber foi drasticamente reduzido por causa de uns artigos que acabei por nãojsscrever. Só a factura da farmácia devorou grande parte do orçamento.»^ A compaixão motivada por este apelo é sabotada na frase seguinte em que ele menciona que Jenny, os filhos e a governanta vão passar umas férias de 15 dias numa vivenda em E d m o n t o n — depois das quais, «ela talvez se sinta suficientemente restabelecida pelo ar do campo para fazer a viagem até Trier». Se custava tanto a Marx pagar ao médico, deve ter pensado Engels, como é que ele podia fazer a deslocação à Alemanha? A mesma pergunta ocorreu certamente aos seus pacientes credores quando souberam que Jenny tinha adquirido uma nova colecção de vestidos para a viagem. Marx fingiu não compreender a indignação deles, e insistiu que a filha de u m barão alemão «não podia muito naturalmente chegar a Trier em farrapos». Era ridiculamente orgulhoso por se ter casado com uma mulher fina. Daí os cartões-de-visita que tinha mandado imprimir para ela {«Madame ]ç.nPiY Marx, née baronesa de Westphalen»), os quais às vezes exibia na esperança de impressionar os comerciantes e os Tories. «O mar fez muito bem à minha mulher», notou depois de Jenny ter gozado mais umas férias. «Conheceu, em Ramsgate, umas requintadas e, horribile dictu (horrível de dizer) inteligentes inglesas. Após anos passados em companhia de gente inferior, ou de ninguém, dar-se com pessoas da sua classe social parece fazer-lhe bem.»'^ Jenny teve poucas oportunidades destas e Marx sentia-se culpado pelo esquálido destino que tinha infligido à antiga princesa da alta sociedade de Trier. A humilhação que sofrera ao ser apanhado a tentar vender a prata da família de Jenny lembrava-lhe até que ponto tinham descido. A polícia tinha suspeitado, com certa razão, que um desgrenhado refugiado alemão não podia ter adquirido legitimamente aquela herança ducal, e Marx foi preso até Jenny convencer as autoridades da sua genuína aristocracia. Incapaz de manter a mulher ao nível da «gente da classe dela», ele devia, pelo menos, esforçar-se pelos filhos. As meninas tinham evidentemente de fazer bons casamentos e, para atrair bons partidos, necessitavam de vestidos de baile, aulas de dança e todas as outras vantagens sociais que o dinheiro podia comprar — mesmo que, para isso, tivesse de pedir dinheiro emprestado a alguém. Engels, há muito habituado a ser esse alguém, nunca pôs em causa a convicção do amigo de que valia a pena uma pessoa viver acima dos seus meios para não perder o prestígio da casta e que, a longo termo, fazer

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alarde da riqueza dava lucros. «Por mim, não me importaria de viver em Whitechapel», assegurava Marx. «Mas, para raparigas, de modo algum seria conveniente.»^*^. Na adolescência, as filhas de Marx frequentaram um «colégio para meninas finas» que custava oito Kbras por trimestre e tinham Kções particulares de francês, italiano, desenho e música. «É verdade que a casa onde vivo é demasiado cara para mim», admitiu a Engels em 1865, ano em que mudou para uma mansão no Norte de Londres. «Mas é a única maneira das crianças ganharem estatuto social e garantirem o seu futuro... Acho que tu mesmo hás-de concordar que, de um ponto de vista puramente comercial, levar uma vida proletária não seria recomendável nas presentes circunstâncias, muito embora se eu e a minha mulher estivéssemos só, ou se as raparigas fossem rapazes, não teria mal nenhum.»" Nem mesmo Engels conseguia pagar os enfeites de um enxame de debutantes casadoiras e, depois de muito matutar, decidiu que a única salvação de Marx era um empréstimo da Sociedade de Seguros da Previdência Popular: «Apesar de ter dado voltas ao miolo, não consigo pensar noutra maneira de arranjar dinheiro em Inglaterra. Parece-me que chegou a altura de tratares do assunto...»^^ Aparentemente, uma outra maneira óbvia — arranjar um emprego — nem sequer lhe tinha passado pela cabeça, muito embora o tenha recomendado em outras ocasiões a outros refugiados. «Quem dera que os nossos rapazes em Londres arranjassem um trabalho mais estável», disse a Marx uma vez sem querer ser sarcástico. «Pois estão a tornar-se nuns vadios.»" No decorrer dos seus 34 anos em Londres, houve apenas duas ocasiões em que procurou uma forma de ganhar dinheiro. Numa carta de 1852 a Joseph Weydemeyer, então a viver nos Estados Unidos, sabemos que Marx foi informado acerca de «um verniz de laca recentemente inventado» por um novo amigo, o coronel Bangya, misterioso imigrante húngaro que, mais tarde, se veio a descobrir tratar-se de um agente secreto a soldo de metade das cabeças coroadas da Europa. Weydemeyer deveria alugar um lugar na Feira Industrial Internacional, em Nova Iorque, para atrair cHentes que ficariam tão impressionados com essa invenção que «podes ganhar uma fortuna de uma só cajadada» — e, claro está, render um bom lucro aos comanditarios em Londres. «Responde imediatamente a dar pormenores quanto às despesas que terás», aconselhava-o Marx. Nada mais se ouviu dizer quanto a esse verniz mágico, o qual parece ter tido a mesma sorte que a engenhosa maquineta de Weitiing para fazer chapéus de palha para senhoras. Dez anos mais

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tarde, quando as suas dívidas eram ainda maiores do que de costume, Marx, desesperado, candidatou-se ao cargo de funcionário dos caminhos-de-ferro, mas foi rejeitado por causa da sua letra ininteligível. Sem o seu benfeitor, escreveu Marx, «há muito que teria sido obrigado a começar uma "profissão'V"*. A repugnância representada por essas aspas é quase audível. Assim sendo e graças à generosidade de Engels, podia passar a maior parte dos dias na sala de leitura do Museu Britânico a trabalhar no seu há muito negligenciado estudo sobre economia. Após a dissolução da Liga Comunista, em 1852, não tinha mais afazeres políticos para o distrair e lidava com as suas obrigações para com o Tribune, de Nova Iorque, passando grande parte do trabalho a Engels. «Como ando muito ocupado com a economia política, tens de me ajuda0>, pediu-lhe a 14 de Agosto de 1851. «Escreve uma série de artigos sobre a situação na Alemanha a partir de 1848. E m estilo descontraído e espirituoso.» Assim, a primeira série importante de artigos assinada por Marx no Tribune — «Revolução e contra-revolução na Alemanha», publicada em 19 episódios, entre Outubro de 1851 e Outubro de 1852 — foi, na realidade, totalmente escrita por Engels. U m artigo sobre a guerra russo-turca, publicado sob a forma de um editorial anónimo em D e zembro de 1853, revelava tais conhecimentos de estratégica militar que foi atribmdo, em Nova Iorque, a um conhecido soldado americano da época, o general Winfield Scott. O director do jornal. Charles Dana, citou esses boatos numa carta a Jenny Marx como prova do brilhantismo do marido — sem lhe passar pela cabeça que o autor era, mais loma vez, o «General» Engels, antigo soldado de infantaria na campanha do Paktínado. «O Engels tem realmente muito que fazeD>, admitiu Marx, «mas como é uma autêntica enciclopédia ambulante, é capaz, esteja bêbedo ou sóbrio, de trabalhar a qualquer hora do dia ou da noite. Escreve depressa e tem u m espírito diabólicamente vivo.»^^- Apesar de satisfeito por acarretar com este fardo suplementar, Engels estava tão exausto pelas longas horas passadas na fábrica de algodão que não se podia esperar que escrevesse tudo. N e m Marx o queria: os numerosos e influentes leitores do Tribune— só a edição semanal vendia mais de 200 000 exemplares — eram uma atracção irresistível para um h o m e m acostumado a dirigir-se a audiências de uma dúzia de pessoas numa sala do andar de cima de uma taberna londrina. Por vezes, enviava para Manchester um esboço que, a seguir, Engels desenvolvia; outras vezes — quando, por exemplo, o jornal queria algo sobre guerra ou a «questão orien-

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tal» -— o secreto escritor-fantasma tinha de a escrever sozinho, pois Marx «não entendia nada» dessas coisas. No entanto, Marx merece provavelmente o crédito de ter escrito pelo menos metade dos mais ou menos 500 artigos que submeteu ao Tribune. No momentos de maior abatimento, ele por vezes esquecia-se da velha recomendação jornaKstica de captar a atenção do leitor desde o princípio. («Os debates parlamentares da semana oferecem pouco interesse»,'*^ é a pouco motivadora frase inicial de um artigo enviado em Março de 1853), mas a maior parte dos seus comentários, em particular acerca da política britânica, têm a forte marca das impressões digitais de Marx. Segue-se, por exemplo, um relato das eleições de 1852: «Na Grã-Bretanha, os dias de eleições gerais são tradicionalmente bacanais de deboche embriagado, termos convencionais de especulação para desconto da consciência política, a época de colheita mais rica dos patrões... São orgíacos no antigo sentido romano da palavra. O mestre torna-se então servo e o servo em mestre. Se o servo for transformado em mestre por um dia, a brutalidade reinará nesse dia.»" As suas observações sobre a violenta insurreição dos cipaios, soldados nativos do exército anglo-indiano, ainda são melhores: «Existe algo na história humana que se chama retribuição; e uma regra da retribuição humana é que o instrumento seja forjado não pelo ofendido mas pelo ofensor. O primeiro golpe que caiu sobre a monarquia francesa veio da nobreza, não dos camponeses. A revolta indiana não começou com os camponeses indianos, torturados, desonrados e despojados pelos britânicos mas com os cipaios. vestidos, bem tratados e engordados por eles. 18 E de surpreender — ou, antes, deprimentemente pouco surpreendente — que nenhum dessas farpas jornalísticas seja encontrada num dicionário de citações. Alguém empalou Palmerston de forma mais letal? «O seu fito não é a substância, mas a simples aparência de sucesso. Quando não consegue fazer nada, imagina qualquer coisa. Onde ousa não interferir, serve de intermediário. Incapaz de se bater contra um inimigo forte, improvisa um que seja fraco... A seus olhos, o movimento da história é apenas um passatempo expressamente inventado para a satisfação pessoal do nobre visconde Palmerston de Palmerston.» " Ou esta sobre o infeKz e tímido lorde John Russell? «Nenhum outro homem provou a tal grau a verdade do axioma bíblico que ninguém consegue acrescentar um centímetro ao seu tamanho natural. Colocado por nascimento, relações e acidentes sociais num enorme

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pedestal, permaneceu sempre o mesmo homúnculo — um anão deformado e maligno no alto de uma pirâmide.» Caso tivesse suficientes espectadores e tempo, Marx podia manter este tipo de humor indefinidamente e tornar-se ao mais penetrante jornalista do século. N ã o conseguia, contudo, deixar de ouvir uma voz importuna sussurrar-lhe por detrás das costas: C'est magnifique, mais ce n'est pas la guerre (E formidável, mas não é a guerra). E m princípios de Abril de 1851, Marx declarou estar «tão adiantado que terminarei todo o trabalho de economia em cinco semanas. E, depois disso, finalizarei a economia política em casa e dedicar-me-ei a outro ramo de conhecimento no Museu»^*^. N o decorrer dos dois meses seguintes, ficava na sala de leitura das nove da manhã às sete tarde quase todos os dias. «Marx leva uma vida muito retirada», dizia Wilhelm Pieper. «Os seus únicos amigos eram John Stuart Mill e Loyd [o economista Samuel Jones Loyd] e sempre que alguém o vem visitar é recebido com termos económicos em vez de saudações.»^' Mas ainda não se via o fim da tarefa hercúlea que ele se dispusera a cumprir. «O material sobre o qual estou a trabalhar é tão complexo que, por mais que me aplique, só conseguirei terminar daqui a seis ou oito semanas», disse a Joseph Weydemeyer, em Junho. «Além do mais, há interrupções constantes de ordem prática, o que é inevitável nas circunstâncias em que estamos aqui a vegetar. Mas, apesar disso tudo, a coisa está quase a chegar ao fim. Chega uma altura em que temos forçosamente de parar.»^^ Isto demonstra um cómico desconhecimento de si mesmo. Marx estava disposto a separar-se alegremente, e com impetuoso à-vontade, de todas as velhas amizades ou associações políticas, mas o mesmo não acontecia em relação ao seu trabalho — sobretudo este trabalho em particular, u m vasto volume de estaü'stica, história e filosofia que denunciaria finalmente todos os vergonhosos segredos do capitalismo. Quanto mais estudava e escrevia, mais o Hvro parecia estar longe do fim: como com a interminável Chave para Todas as Mitologias, de Casaubon, tva Middlemarch, surgiam sempre novas pistas a ser seguidas e obscuras investigações a ser feitas. (Dava-se o caso de Marx gostar dos romances de George Eliot. «Bem, o nosso amigo Dakyns é uma espécie de Felix Holt menos afectado e com mais conhecimentos», escreveu à filha Jenny depois de visitar o geólogo J. R. Dakyns, em 1869. «Não pude impedir-me de brincar com ele e de o avisar para não se aproximar da Sr" EKot porque, senão, ela faria dele propriedade literária.»)^-'

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«O principal», aconselhou-o Engels em Novembro de 1851, «é que devias lançar publicamente mais um livro... É essencial pôr fim à tua prolongada ausência do mercado literário alemão.» Vítima de «constantes interrupções» — muitas das quais, acrescente-se, eram feitas por ele mesmo, esse projecto foi posto de lado durante os quatro anos seguintes. Imediatamente após o golpe de Estado francês de Dezembro de 1852, ele começou a escrever O Detrito de Brumário de l^uís Bonaparte, a pedido do novo semanário americano, Die devolution, fundado pelo seu amigo Joseph Weydemeyer: escrever livros volumosos talvez o excedessem, mas não tinha perdido nenhum do seu brio panfletário. Infelizmente, algumas das suas capacidades mais questionáveis também não o tinham desertado e, na Primavera de 1852, Marx desperdiçou vários meses a escrever Os Grandes Homens do Exílio, a sua verbosa sátira sobre os «imbecis mais notórios» e «a canalha democrática» da diáspora socialista. O principal vilão desta galeria de velhacos era Gottfried Kinkel, poeta ocasional e, por vezes, preso poHtico que estava agora a ser homenageado por ilustres anfitriãs de Londres como a baronesa Von Brüningk, châtelaine de um agradável salão em St. John's Wood. Marx passou todo o mês de Junho com Engels em Manchester a temperar o texto com insultos ainda mais elaborados contra Kinkel e companhia. «O processo para secar este bacalhau faz-nos rir até às lágrimas»^'^. Felizmente, para a sua reputação, ç-^t-a folie à deux (loucura a dois) foi mantida em privado. Quando Marx confiou o manuscrito a Bangya para o entregar ao editor alemão, o traiçoeiro coronel vendeu-o imediatamente à polícia prussiana nas instalações da qual permaneceu durante quase um século e ninguém que, agora, lesse o livro o consideraria uma grande perda. Mas Marx ainda não tinha terminado com o bacalhau seco. Em Julho, ouviu contar que Kinkel, no decorrer de um digressão pelos Estados Unidos para angariar fundos, tinha dito diante de uma audiência em Cincinnati, «Marx e Engels não são nenhuns revolucionários, são uns canalhas que foram expulsos das tabernas de Londres pelos trabalhadores». Marx desafiou-o a confirmar a história. «Espero uma resposta na volta do correio. O silêncio será considerado como uma aceitação»^^. Kinkel replicou que desde que tinha sido atacado por Marx na Neue Kheinische Zeitung, em 1850, enquanto ainda se encontrava preso na Alemanha, «não queria ter mais nada a ver consigo».

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«Se acha que pode... fornecer provas que eu, mentindo, disse ou publiquei algo prejudicial para a sua honra ou a do Sr. Engels, devo indicar-Ihe, como faria com quem não tenho contactos pessoais nem políticos, que os trâmites legais estão abertos a todos que se sintam difamados ou insultados. Excepto assim, não desejo ter mais nada a ver consigo.»^'' Marx ficou irritado por o seu desafio não ser aceite. («Como tudo que possa cheirar a duelo ou coisa parecida é rejeitado calmamente. Nem pensar instaurar um processo por difamação, pois um tribunal britânico não poderia julgar um caso de insultos feitos em Cincinnati. Assumindo que Kinkel ignoraria qualquer correspondência futura com o carimbo dos correios de Soho, Marx planeou um elaborado ardil. Convenceu o líder cartista, Ernest Jones, para endereçar um envelope a Kinkel (pois os seus gatafunhos seriam imediatamente reconhecidos) e, depois, pediu a Wilhelm Wolff para o enviar por correio em Wifidsor. O bühete em papel colorido enfeitado com um ramo de malmequeres e rosas estava cheio das previsíveis insignificâncias que ele costumava lançar aos seus inimigos. Marx garantia ainda ter em seu poder declarações de testemunhas feitas sob juramento e vociferava: «a sua carta prova mais uma vez que a baixeza do dito Kinkel é apenas igualada pela sua covardia».^'' Marx orgulhava-se das suas partidas à miúdo de escola. «O melhor», deleitou-se, «é que ele só se dará conta da piada quando o primeiro episódio dos Grandes Homens do Exílio aparecer. Pouco antes do ataque a Gottfried, vou divertir-me insultando-o directa e pessoalmente enquanto, ao mesmo tempo, me justificarei aos olhos dos lorpas dos emigrados. Para isso, precisava de algo a "branco e preto" de Johann etc. Falemos, agora, de assuntos mais importantes.. .»^* Esses «assuntos mais importantes» eram ainda mais querelas provocadas .pelo começo, em Outubro de 1852, do há muito adiado julgamento dos comunistas de Colónia. Como as provas mais incriminadoras eram livros e relatórios que pregavam a insurreição armada, supostamente furtados da Liga Comunista em Londres, Marx passou o Verão e o Outono juntando depoimentos para provar que os documentos eram falsos. Quando julgamento terminou, ele sentiu-se obrigado a escrever um artigo para repudiar as calúnias contra o «grupo de Marx» que tinham sido proferidas no tribunal de Colónia — e aproveitar a oportunidade para desferir um golpe mortal na facção da Liga Comunista favorável a Willich-Schapper. O artigo adquiriu inevitável-

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mente as proporções de um livro, Revelações a Respeito doJulgamento dos Comunista de Colónia, o qual, com igual inevitabilidade, foi denunciado por August WüKch. A seguir, Marx redigiu outro panfleto, «O Cavaleiro da Nobre Consciência», criticando ferozmente a «pretensão mesquinha» e «insinuações imundas» dos seus antigos camaradas. E assim por diante... Com invulgar discrição, Marx omitiu um pormenor desagradável acerca do ignóbil cavaleiro. E m 1852, a baronesa Von Brüningk alojou Willich em sua casa, a norte de Londres, e, segundo a história transmitida por Marx a Engels, «a exemplo do que era seu costume fazer com os outros ex-tenentes, ela começou a namoriscar com o velho bode. U m dia, o sangue subiu à cabeça do nosso asceta e ele assaltou brutalmente a madame, sendo expulso com escândalo. Acabou-se o amor! E acabou-se o alojamento de borla!»^'^ Pouco depois deste acontecimento e com a reputação de rastos em Londres, Willich emigrou para a América onde combateu corajosamente durante a Guerra da Secessão. Muitos anos mais tarde, até mesmo Marx foi obrigado a conceder que o velho bode se tinha redimido, pelo menos em parte. Porque desperdiçava Marx o seu talento em vendetas extravagantes? Uma explicação é que o seu caos doméstico não lhe permitia concentrar-se numa trabalho mais exigente e importante. «Tudo o que uma pessoa pode fazer é produzir montes de estrume em miniatura», suspirava) Talvez também a cicatriz que, em estudante, recebera naquela duelo nunca tivesse cicatrizado. Quando o jornal alemão de Londres, How Do You Do? sugeriu que ele estava secretamente de mecha com o cunhado, Ferdinand von Westphalen, o repressivo ministro do Interior prussiano, Marx foi à redacção desafiar o director para um duelo. O aterrorizado homem publicou imediatamente uma desculpa. E m Outubro de 1852, Marx empregou a mesma ameaça contra o barão Von Brüningk que o tinha acusado de espalhar o boato que a coquete baronesa era espia russa. Marx propôs um encontro no qual provou a sua inocência — «e estou preparado para lhe dar a satisfação habitual entre cavalheiros caso a minha explicação não lhe baste». A disputa acabou por ser resolvida sem derramamento de sangue através de uma troca formal de cartas. Mas, um mês mais tarde, meteu-se novamente noutra. Desta vez enviando uma mal-humorada mensagem ao historiador de esquerda, Karl Eduard Vehse, o qual, aparentemente, andava a fazer mexericos «insolentes e impertinentes» em Dresden acerca do panfleto de Marx sobre Os Grandes Homens do Exílio. «Caso se sinta insultado por esta carta, basta vir a Londres», concluía após vários parágrafos de invectivas.

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«Sabe onde vivo e pode ter a certeza de que estarei sempre preparado para lhe dar as satisfações necessárias.» As únicas pessoas a tirar satisfação deste canibalismo comunista foram provavelmente as autoridades prussianas: As vendetas de Marx contra homens como Willich eram muito mais eficazes do que as fracassadas armadilhas e sabotagens dos seus Keystone Cops. Embora consciente de que estava a ajudar o inimigo, Marx argumentava que o verdadeiro perigo eram os conspiradores que atacava, pois o seu canto de sereia quanto à revolução imediata poderia seduzir os socialistas a levá-la a cabo de forma prematura e desastrosa. Os falsos messias, se não fossem denunciados, atraíam mais o povo do que os monarcas autênticos. Os panfletos adhominem e a ameaça de duelos ao nascer do dia eram, por conseguinte, intervenções políticas essenciais e não meras manifestações de despeito e orgulho ferido — ou, pelo menos, foi disso que ele se convenceu. «Estou empenhado num combate mortal contra os liberais impostores», dizia^^. A arma mais letal contra esses poltrões seria a sua magnum opus que demonstraria de uma vez por todas porquê os revolucionários nunca seriam bem sucedidos sem estudar primeiro economia. «Os néscios democratas a quem a inspiração vem "dos céus", não precisam evidentemente de se fatigar», resmungava. «Porque é que havia essa gente, nascida sob uma boa estrela, importunar a cabeça com estudos de economia e história? É tudo realmente tão simples, costumava dizer-me o bravo Willich. Para esse burros, é tudo muito simples^ 33 Os inimigos de Marx, nessa altura e desde aí, atribuíram aos ciúmes a sua antipatia por Willich e outros «grandes homens do exílio». Depois do malogro das revoluções de 1848, muitos dos heróis dessa gloriosa derrocada chegaram a Londres cobertos de medalhas e glamor romântico — como Mazzini, de Itália; Louis Blanc, de França; Kossuth, da Hungria; Kinkel, da Alemanha. As senhoras da alta sociedade suspiraram pela sua atenção, copiosos banquetes foram dados em sua honra, retratos e n c o m e n d a d o s . . . Gottfried Kinkel, que se refugiara em Londres após a sua ousada fuga da prisão de Spandau, foi elogiado por Dickens em Household Wors e, mais tarde, fez uma série de palestras sobre teatro e literatura ao espantoso preço de um guinéu por pessoa. Conforme Marx comentou, «nenhuma pedinchice, nenhuma publicidade, nenhum charlatanismo, nenhum oportunismo era indigno dele; em compensação, contudo, não passava despercebido. Gottfried mirava-se complacentemente no espelho da sua própria fama e no gigantesco

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espelho do Palácio de cristal do mundo!»^'* Apesar de pobre, desconhecido e quase a morrer de fome, Marx nunca invejou esses libertadores fanfarrões. Citava frequentemente a máxima de Dante, Segui il tuo corso e lascia dir legenti — faz o que o teu coração manda e deixa falar os outros. O que ele admirava no pioneiro britânico das cooperativas, Robert Owen, era que sempre que uma das suas ideias se tornava popular, ele dizia imediatamente algo ultrajante para se tornar de novo impopular. «Detestava os bons oradores e pobre daquele que usava fraseologia barata», observou Liebknecht. «Insistiu connosco, "a gente jovem", que era necessário ter um pensamento lógico e exprimirmo-nos com clareza, e obrigou-nos a estudar... Enquanto os outros imigrantes planeavam diariamente uma revolução mundial, intoxicando-se com o lema "Começará amanhã!", nós, a "malta de mau génio", passávamos o tempo no Museu Britânico a cultivar-nos e a prepararmos as armas e a munição para o combate futuro.» A sua história favorita sobre o perigo de fazer poses tinha a ver com Louis Blanc, um homem pequenino mas muito vaidoso. Apareceu uma manhã na rua Dean, e Lenchen convidou-o a aguardar na sala enquanto Marx se vestia. Ao espreitar pela porta entreaberta, Karl e Jenny tiveram de se conter para não desatar a rir: o grande historiador e político, antigo membro do governo provisório francês, pavoneava-se de um lado para o outro diante de um espelho. Ao cabo de uns minutos, Marx tossiu para anunciar a sua presença. O tribuno afastou-se dos prazeres narcisistas do espelho e «tomou apressadamente uma atitude tão natural quanto lhe era possível». Até os trabalhadores ficarem «espiritualmente embebidos» de ideias socialistas — através da educação não elocução, organização poKtica em vez de ostentação — , os aplausos da multidão nada valiam. E onde é que era melhor começar tal tarefa? A Inglaterra não só era o berço do capitalismo c o m o t a m b é m o local de nascimento d o cartismo. E n q u a n t o os seus confrades exilados se contentavam com sociedades secretas e salões, os nativos já tinham recrutado um enorme exército de resistência proletária. «Os operários ingleses são os primogénitos da indústria moderna», declarou Marx. «Não serão certamente os últimos a ajudar a revolução social produzida por essa indústria.» O cartismo tomou o seu nome e inspiração da Carta Popular de Maio de 1838, a qual fazia seis exigências fundamentais: sufrágio masculino universal; boletins de voto secretos; parlamentos anuais; salário para os membro

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do Parlamento; abolição da propriedade para os parlamentares; e fim dos bairros miseráveis. Apesar das constantes discussões entre os partidários da insurreição violenta e aqueles que confiavam na «força moral», os cartistas continuaram a constituir uma poderosa ameaça para a ordem estabelecida durante a maior parte da década seguinte. U m dos seus jornais, o Northern Star, tinha uma circulação superior a 30 000 exemplares por semana e, como a maior parte era comprada nas fábricas e nas tabernas, os seus leitores eram muitos mais. Foram travadas verdadeiras batalhas com a polícia, sobretudo em Birmingham e Monmouthshire, e vários Kderes foram presos ou deportados. Uma petição dos cartistas apresentada ao Parlamento, em 1842 — e inevitavelmente rejeitada—, contava com 3 317 702 assinaturas e tinha mais de nove quilómetros de comprimento. Nesse Verão, uma greve de duas semanas em apoio da Carta paralisou o centro e o N o r t e da Inglaterra, e certas regiões do País de Gales. E m Abril de 1848, enquanto os anciens régimes da Europa vacilavam e caíam, os cartistas anunciaram que se agrupariam em Kennington Common, a sul do Tamisa, e marchariam sobre o Parlamento. A notícia provocou tal pânico entre as classes dirigentes que o próprio duque de Wellington, o vencedor de Waterloo, foi chamado para impedir que os manifestantes atravessassem o rio. Foi o último hurra dos cartistas. Três anos mais tarde, grandes multidões juntaram-se, de facto, no centro da cidade — mas foi para assistir à Feira Internacional, em Hyde Park. Com a sua riqueza industrial, resistência da classe média e a omnipresença da polícia, a Inglaterra tinha aparentemente superado melhor a tempestade revolucionária do que os seus vizinhos continentais. Mesmo assim, uma espécie de radicalismo submerso continuava a rondar por ali. O Hvro de Henry Mayhew, l^ndon luibour and the Lj)ndon Poor, publicado em 1851, atestava que «os artesão são quase todos proletários entusiastas com opiniões violentas». Karl Marx tinha pouco tempo para consagrar ao Hder cartista, Feargus O'Connor, demagogo irlandês brilhante mas cada vez mais demente. Ficou mais impressionado com os seus dois lugares-tenentes, George Julian Harney e Ernest Jones, que conhecera brevemente aquando da sua primeira visita a Inglaterra no Verão de 1845. Nesse ano, Engels escreveu uma série de artigos para o jornal dirigido por Harney, Northern Star, e, pouco depois, convidou-o para se juntar à rede de correspondência comunista. Tanto Harney como Jones assistiram ao segundo congresso da Liga Comunista, que teve

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lugar em Novembro de 1847 e no qual foi solicitado a Marx e Engels a redacção do seu manifesto. Alarmado pelo galopante optimismo destes revolucionários alemães, Harney puxou desesperadamente as rédeas. «A sua profecia que havemos de obter a Carta n o decorrer do presente ano e a abolição da propriedade privada dentro de três, não será certamente realizada», preveniu Engels em 1846. «O conjunto da nação inglesa, apesar de não ser um povo escravizado, está a tornar-se eminentemente pacífico... Conflitos organizados como os que se passam em França, Alemanha, Itália e Espanha são impossíveis de ocorrer neste país. Conspirar e organizar uma revolução aqui seria uma loucura em vão.»^^ Engels ignorou os sinais de aviso e, logo a seguir à demonstração de Kennington Common, em Abril de 1848, disse ao seu cunhado comunista, Emil Blank, que a burguesia inglesa teria «uma surpresa assim que os cartistas entrassem em cena. Dentro de uns meses, o meu amigo G. H a r n e y . . . substituirá Palmerston. Aposto contigo o que quiseres»-"". Meses mais tarde — para dizer a verdade, dois anos mais tarde — Palmerston ainda era o ministro dos Negócios Estrangeiros. O que é que tinha acontecido de errado? A i de Janeiro de 1848, Marx passou em revista as abortadas revoluções de 1848 no Neue Tihejmsche Zeitung. «K Inglaterra, país que transforma nações inteiras em proletariado, que engloba todo o mundo no seu imenso amplexo, que já reembolsou o custo de uma restauração europeia, o país em que as contradições de classe atingiram a forma mais crítica e sem vergonha — a Inglaterra parece ser o rochedo contra o qual as ondas revolucionárias quebram, o país onde a nova sociedade é asfixiada no útero.» O mercado mundial era dominado peia Inglaterra e esta era dominada pela burguesia. «Só quando os cartistas dirigirem o Governo inglês é que a revolução social passará da utopia ã realidade.» Resumindo, o fuluro da revolução mundial dependia de Harney e dos seus colegas — Marx impunha-lhes uma pesada responsabiKdade, mas também prestava homenagem às suas proezas. Mas, infelizmente, os cartistas já se estavam a dividir em facções e grupos. Encorajado por Marx e Engels, Harney separou-se de O'Connor em 1849 e fundou uma sucessão de jornais criativos, mas evanescentes — Democratic Kevieiv, RßdRepublican (cuja maior realização ao longo de seis meses de existência foi a de publicar a primeira tradução inglesa do Manifesto Comunista) e Friend of the People. Para contrariedade de Marx e Engels, Harney praticou o que pregava, a «irmandade dos homens» — frase que Marx detestava, pois havia muitos

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homens que em nenhumas circunstâncias desejava ser irmão. O emoliente Harney espalhava às mãos largas os seu favores políticos aplaudindo os «vilmente inimigos» de Marx n o seio dos democratas continentais — Mazzini, Ledru-Rollin, Louis Blanc, Ruge e Shapper, entre outros — e, de certo modo, arranjando maneira para se dar bem com todos quando a Liga Comunista se desintegrou. Marx não achava que ele fosse mau, apenas impressionável — «impressionável, quer dizer, em relação a nomes famosos em cuja sombra se sente honrado»^''. N a sua correspondência privada com Engels, Marx alcunhava o pouco selectivo chefe de banda Chefe Hip-hip-hurra — ou, por vezes, O Nosso Querido, referência trocista à sua atenta e enjoativamente afectuosa mulher, Mary Harney. «Estouya//¿í//deste incenso público tão incansavelmente utilizado por Harney para encher as narinas Á.o% petits grands hommes», queixou-se em Fevereiro de ISSL"'^ A promiscuidade ideológica de Harney tinha, porém, um mérito: deixava mais uma vez Marx sem aliados leais. «Estou muito satisfeito pelo isolamento público em que nós dois, tu e eu, agora nos encontramos», escreveu a Engels. «Está totalmente em conformidade com a nossa atitude e os nossos princípios. O sistema de concessões mútuas e meias medidas toleradas em n o m e da decência, e a obrigação de suportar uma parte do ridículo público no partido juntamente com estes asnos acabou-se... Com a excepção de Pieper, quase não vejo ninguém aqui [em Londres], e vivo completamente retirado.» Engels concordou plenamente: «Acho a inépcia e falta de tacto da parte de Harney mais irritante do que tudo. Mas aufondt&ca pouca importância. Tenho, finalmente, a oportunidade —- pela primeira vez há séculos — de provar que não precisamos de popularidade nem do apoio de nenhum partido em nenhum país, e que a nossa posição é totalmente independente dessas ridículas bagatelas. A partir de agora, somos apenas responsáveis por nós mesmos e, quando chegar a altura dessa gentalha necessitar de nós, estaremos em posição de ditar os nossos termos. Até lá, beneficiaremos, pelo menos, de um pouco de paz e sossego... Como é que pessoas como nós, que fogem de eventos públicos como da peste, cabemos num "partido?" E o que é nós, que cuspimos na popularidade e não sabemos onde nos meter quando somos populares, temos a ver com um "partido, um rebanho de asnos que juram por nós porque pensam que somos da mesma espécie que eles?" N ã o se perde realmente grande coisa se já formos tidos como

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a "expressão adequada e correcta' dos cretinos com quem nos temos dado nos últimos anos".»^' anos". Ambos desdenhavam o clube que os aceitasse como sócios: «Impiedoso criticismo de toda a gente» era, agora, o seu lema. «Que mexericos pode todo o bando de emigrados reunir contra ti», perguntava Engeles, «quando lhes respondes com a tua economia política?» Este condescendente desprezo por mexericos era gloriosamente pouco sincero: Marx e Engels adoravam-nos e, durante o resto da vida, nunca perderam uma ocasião para divertir ou enfurecer o outro à custa deles. A pretensa indignação atingiu novas alturas em Fevereiro de 1851, quando Harney ajudou a organizar um banquete em Londres em que Louis Blanc era o convidado de honra. Dois dos raros aliados de Marx que ainda lhe restavam entre os expatriados alemães, Conrad Schramm e Wilhelm Pieper, foram enviados para observar a cerimónia — acabando por ser expulsos da sala, denunciados como espiões e espancados por uma multidão de 200 pessoas, incluindo numerosos m e m b r o s do partido de Harney, inapropriadamente chamado Democratas Fraternais. Shramm pediu socorro a um dos organizadores, Landolphe, mas de nada lhe serviu. A seguir, c o m o Marx prestamente informou Engels, «quem é que havia de chegar se não o N o s so Querido em pessoa. Mas, em vez de intervir energicamente, gaguejou que os conhecia e lançou-se em longas explicações. O remédio ideal para uma situação daquelas.»"^" Engels sugeriu que Pieper e Schramm se vingassem esmurrando Landolphe, mas Marx, de forma perfeitamente previsível, era da opinião que nada menos do que um duelo lavaria uma tal afronta — e «a pessoa a ser desafiada tem de ser o pequenino escocés, o Hip-hip-hip Hurra, George JuHan Harney e mais ninguém. O melhor será que ele comece a praticar tiro ao alvo.» A partir daU, o único uso que Marx e Engels deram ao Cidadão Hip-hip-hip-hurra foi o de ser vítima das suas piadas. Mantiveram, contudo, relações amistosas com Ernst Jones, o qual não fora ao infame banquete. Como Jones tinha passado a infância na Alemanha, eles consideravam-no «pouco inglês» — o mais alto cumprimento que podiam prestar a um cidadão britânico. (Em 1846, ainda na primeiro entusiasmo do n a m o r o , Engels tinha descrito Harney como parecendo «mais francês do que inglês».)'^^ Marx colaborou no jornal de Jones, o People's Paper, e nos artigos que escrevia para outras publicações louvava a insistência dos cartistas em querer •A'à.t^2X o direito ao voto.

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«Depois das experiências que sabotaram o sufrágio universal na França, em 1848, os europeus continentais estão inclinados a subestimar a importância e o significado da carta inglesa», escreveu no Neue Oder-Zeitung. «Esquecem-se que dois terços da população francesa são camponeses e mais de um terço citadinos, enquanto em Inglaterra mais de dois terços vivem nas cidades e menos de um terço no campo. Assim, e a exemplo do que acontece em relação à cidades e ao campo nestes dois países, os resultados do sufrágio universal em Inglaterra devem igualmente ser inversamente proporcionais aos dos conseguidos em França.»'^^ E m França, o sufrágio constituía uma exigência poKtica, apoiada, em maior ou menor medida, por quase todas as pessoas «educadas». N a Grã-Bretanha, tratava-se de uma questão social que marcava a distinção entre a aristocracia e a burguesia por um lado e «o povo» pelo outro. A agitação em Inglaterra a favor do sufrágio tinha passado por «um desenvolvimento histórico» antes de se tornar no slogan das massas; em França, o slogan chegara primeiro sem nenhuma gestação. Vemos aqui mais uma vez a curiosa ambivalência da atimde de Marx em relação ao seu país de adopção. Ao contrário dos seus vizinhos infestados por camponeses, a Inglaterra tinha um imenso e sofisticado proletariado metropolitano: estando, por conseguinte, mais «avançada» e pronta para a revolução. N o entanto, a Inglaterra também possuía uma burguesia mxiito segura de si, o rochedo contra o qual as vagas revolucionárias quebravam em vão. Às vezes, ele convencia-se de que um cataclismo poKtico na Grã-Bretanha não só era inevitável como iminente; mas, noutras ocasiões, ficava desesperado pelo conservadorismo tolo dos seus habitantes. Mas o que é que se podia esperar? Marx, mais do que qualquer outro pensador da sua geração, era um conhecedor de contradições e paradoxos — pois eram essas mesmas contradições que garantiam o fim do capitalismo. «Há uma grande verdade característica do nosso Xix século, uma verdade que nenhum partido ousa negaD>, disse em Abril de 1856 no decorrer de um jantar em Londres para festejar o quarto aniversário do People's Paper. «Por um lado, foram iniciadas forças científicas e industriais que nenhuma outra época da história humana jamais suspeitou, e, por outro, existem sintomas de decadência que ultrapassam o horror dos últimos anos do Império Romano. Nos nossos dias, tudo parece estar prenhe do seu contrário.»'^^ A maquinaria, abençoada com o poder de encurtar e frutificar o labor das pessoas, tinha-as esfomeado e extenuado. Por alquimia inversa, as novas fontes de riqueza tinham-se tornado em fontes de miséria. A Grã-Bretanha —

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a sociedade mais moderna e rica do mundo — era também a que estava mais perto da destruição. «A liistória é o juiz — e o seu carrasco, o proletariado.» Até mesmo jacobinos ingleses sentados à mesa depois de u m lauto jantar, fortificados com «as iguarias e condimentos mais requintados», devem ter franzido u m sobrolho interrogador perante esta retórica apocalíptica. Podia a Inglaterra — o centro financeiro e industrial do mundo e do maior império jamais visto, o coração palpitante do capitalismo — ser realmente assim tão fi-ágil? Para Marx, o paradoxo era mais aparente do que real. Uma «máxima antiga historicamente estabelecida» era que as forças sociais obsoletas faziam apelo a todas as suas forças antes da agonia final e, por conseguinte, embora parecessem intimidadoras, encontravam-se no ponto mais fraco. «Tal é a situação actual da oligarquia inglesa.» Perguntamo-nos se algum dos seus ouvintes se lembrou do t o m mais cauteloso que ele tinha usado no ensaio sobre a guerra civil em França que publicara no Neue Kheinische Zeitung, em 1850. «O processo original ocorre sempre na Inglaterra: ela é o demiurgo do cosmo burguês», tinha escrito então. Mas, enquanto a Inglaterra se abandonar à prosperidade burguesa, «não se poderá falar de uma revolução a sério... Uma nova revolução só é possível em consequência de uma nova crise». Há tempos que aguardava com impaciência a chegada da crise — interpretando inscrições mágicas, procurando presságios. «Desde que nenhuma fatalidade aconteça nas próximas seis semanas, a produção de algodão deste ano será de três milhões de fardos», informou-o Engels em Julho de 1851. «Se a queda do mercado coincidir com esta gigantesca safra é que vão ser elas. Só de pensar nisso o Peter E r m e n já se está a borrar nas calças.»'^'* Tais perdas na indústria têxtil também poriam termo aos subsídios regulares que Marx recebia de E r m e n & Engels, mas isso, aparentemente, era um preço que vaUa a pena pagar para a ruína geral. «À agradável perspectiva de uma crise comerciab/^ ele até lambia os beiços. E m Setembro, contudo, nada aconteceu. E m vez disso, a descoberta de ouro em Victoria, no Sul da Austrália, talvez abrisse novos mercados e, a exemplo da corrida ao ouro na Califórnia em 1848, precipitasse a expansão do comércio mundial e de créditos. «Esperemos que o ouro australiano não interfira com a crise comercial», atormentava-se Engels. Consolava-se com a ideia de que, mesmo no caso do capitalismo ser salvo pelo sucesso nos antípodes, teriam pelo menos o direito a qualquer coisa: «Em seis meses, a circum-navegação do mundo

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a vapor terá avançado e as nossas previsões a respeito da supremacia do oceano Pacífico serão realizadas ainda mais rapidamente do que prevíamos.»'*'' Austrália — esses «estados unidos de assassinos, ladrões, vigaristas e violadores deportados» — espantaria então o mundo mostrando que maravilhas uma nação de bandidos disfarçados podia fazer. «Darão cabo da Califórnia.» D e qualquer modo, a procura do algodão de Lancashire estava ainda a baixar agradavelmente e, em breve, «teremos uma tal excesso de produção que vais ficar todo contente». Um mês mais tarde houve mais um motivo de contentamento, proveniente do cavalo de Tróia instalado por Marx na cidadela do capitalismo: «O comércio de ferro está totalmente paralisado, e dois dos bancos mais importantes que lhe dão crédito — em N e w p o r t — faliram... Há a possibilidade, se não a certeza, de que as convulsões da próxima Primavera no continente coincidam com uma boa crises. Mesmo que a Austrália pareça incapaz de fazer grande coisa; desde os tempos da Califórnia que a descoberta de ouro se tornou uma velha história e o mundo está a começar a ficar indiferente.. .»'"'^ Dois dias depois do Natal de 1851, Marx enviou uma alegre mensagem de fim de ano ao poeta Ferdinand Freiügrath: «Pelo que Engels me diz, os comerciantes agora partilham a nossa opinião de que a crise, sustida por toda a espécie de factores (incluindo, por exemplo, apreensões políticas, o elevado preço do algodão n o ano passado), deve rebentar o mais tardar no Outono. E, desde os últimos acontecimentos, estou mais convencido do que nunca que não haverá nenhuma revolução a sério sem uma crise comercial.»"*^ A queda da administração Whig, de Rüssel, em Fevereiro de 1852 e a nomeação de um gabinete tory chefiado por Lorde Derby deu a impressão que o dia ansiado estava próximo. «Na Inglaterra, o nosso moviínento pode progredir apenas sob os tories», explicou Marx. «Os Whigs conciliam tudo e p õ e m toda a gente a dormir. E, ainda por cima, há a crise comercial, a qual está cada vez mais perto e cujos primeiros sintomas estão a verificar-se em toda a parte, l^s choses marchent. (As coisas estão em marcha).»"*' O comércio livre e uma queda do preço do algodão talvez mantivessem a economia inglesa à tona de água até ao O u t o no, mas, depois, começaria a brincadeira. Engels não tinha tanta certeza. E m b o r a a crise devesse certamente chegar por volta do final de 1852, «de acordo com todas as regras», a força dos mercados indianos e o baixo preço das matérias-primas sugeriam que poderia acontecer algo diferente. «Uma pessoa é quase tentada a prever que o pre-

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sente período de prosperidade será excepcionalmente de longa duração. De qualquer modo, pode muito bem ser que dure até à Primavera.»^'^ E foi o que aconteceu; talvez Marx não tivesse ficado totalmente desapontado. «A revolução pode vir mais cedo do que nós gostaríamos», escreveu em Agosto, comentando uma sucessão de falências e safras abaixo da média. «Nada seria pior do que os revolucionários terem de fornecer o pão.» Aqui, ele foi apanhado pela sua própria lógica explosiva: se a revolução dependesse de uma catástrofe económica, como ele insistia, é evidente que herdaria um mundo sem pão. No entanto, ao longo dos dois anos seguintes, ele ainda se sentia jovialmente seguro de que os tempos difíceis se encontravam ao virar da esquina. «Sendo o estado das safras de Inverno o que é, estou convencido de que a crise está para vir.»^^ (Janeiro de 1853); «As condições presentes... a meu ver, conduzirão muito em breve a uma derrocada.» (Março de 1853) ; Les choses marchent merveilleusement (As coisas march às mü maravilhas). «Será um pandemonio em França quando a bolha financeira rebentar.» (Setembro de 1853). Na ausência de uma crise económica terminal, Marx começou a perguntar se outra centelha pegaria fogo à conflagração. Talvez a guerra da Crimeia? «Não nos podemos esquecer de que existe um sexto poder na Europa», escreveu no ^ew York Daily Tribune, de 2 de Fevereiro de 1854, «o qual, a dados momentos, afirma a sua supremacia sobre os chamados cinco "grandes" poderes e os faz tremer. Esse poder é a Revolução... Basta um sinal e este sexto e maior poder europeu surgirá de armadura reluzente e espada na mão, como Minerva a sair da cabeça de OKmpico. A pendente guerra europeia dará esse sinal...» Mas não teve essa sorte. Aparentemente esquecendo-se de que, conforme insistia, a revolução só era possível em consequência de uma derrocada económica, perscrutou o horizonte à procura de outra nuvem negra. A 24 de Junho de 1855, os cartistas fizeram uma manifestação em Hyde Park para protestar contra a nova lei que bania a abertura de tabernas e a publicação de jornais ao domingo. As senhoras e os cavalheiros que montavam em Rotten Row foram molestados pelos manifestantes e alguns deles tiveram de desmontar para fugir. «Fomos espectadores do princípio ao fim», escreveu Marx no IS^eue Oder Zeitung. «E não julgamos estar a exagerar se disser mos que a revolução inglesa começou ontem em Hyde Park.»^^ Uma manifestação semelhante uma semana mais tarde juntou ainda mais multidão — e Marx voltou a redigir um vivido relato para o ISleue Oder Zeitung

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«A poKcia emboscada entrou logo em acção e, sacando dos cacetes do bolso, pôs-se a bater na cabeça das pessoas até o sangue jorrar, puxando indivíduos aqui e ali da imensa multidão (um total de 104 pessoas foram presas) e arrastando-os para prisões improvisadas.»''^ Mas a nature2a da cena foi bastante diferente da guerra do fim de semana anterior: «No passado domingo, as massas foram confrontadas como indivíduos pela classe dirigente que, desta vez, surgiu como poder estatal, a lei, o cacete. Mas, desta vez, a resistência significou insurreição e o inglês tem de ser provocado durante muito tempo para se revoltar. Assim, a contrademonstração foi limitada, em geral, a assobios e vaias contra os carros da polícia e a isolados e débeis tentativas para libertar a gente presa, mas, acima de tudo, resistência passiva a defender fleumaticamente a sua posição.» Assim, expirou «a revolução inglesa», apenas sete dias depois da fanfarrice de Marx; e tudo porque a timidez dos nativos é deferente perante a majestade do poder institucionalizado. É demasiado parecido com uma cena das operetas de Gilbert e Sullivan, em que os sangrentos piratas de Penzance capturam um destacamento de poKcias e ameaçam as suas vítimas de espada em punho. — Rendam-se em nome da rainha Victoria! — ordena o sargento manietado no chão. O chefe dos piratas não tem outro remédio senão obedecer. — Rendemo-nos já, humildemente, pois, apesar de todas as nossas culpas, adoramos a rainha. Durante toda a vida, a opinião de Marx do proletariado inglês oscilou entre a reverência e o desprezo. E m Janeiro de 1862, citou o apoio dos trabalhadores britânicos ao N o r t e na Guerra da Secessão americana c o m o «nova e esplêndida prova da indestrutível largueza de espírito das massas populares inglesas, que constitui o segredo da grandeza da Inglaterra»^''. Mas, quando manifestantes antigovernamentais destruíram as grades de Hyde Park em Julho de 1866, ele mostrou-se desesperado pela sua moderação. «O inglês precisa, primeiro do que tudo, de uma educação revolucionária», escreveu a Engels. «Se as grades tivessem sido usadas defensiva e ofensivamente contra a poHcia e uns quantos fossem derrubados, os militares teriam de intervir em vez de se limitarem a desfilar. E, então, é que seriam elas. U m coisa é certa, estes estúpidos J o h n Bulis, cujas cabeças parecem ter sido

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fabricadas especialmente para os cacetes dos polícias, nunca hão-de chegar a nenhum lado sem um confronto sangrento com as forças do poder.»^^ Conforme concedeu, contudo, não tinha havido grandes combates: os trabalhadores mostraram-se «servis», «enleados» e incuravelmente debilitados por uma «infecção burguesa». Esta doença tinha pequenos, mas esclarecedores sintomas. O historiador Keith Thomas sugeriu que «as preocupações com a jardinagem, assim como com animais de estimação, pesca e outros passatempos... ajuda a explicar a relativa falta de impulsos poKticos e radicais entre o proletariado britânico»^''. Daí a popularidade dos loteamentos no século XIX e a surpreendente penúria de prédios grandes com apartamentos -— o que «teria privado os trabalhadores de se dedicarem à jardinagem, a qual consideravam uma necessidade». Por cada trabalhador que tinha arrancado grades em Hyde Park havia dúzias que queriam apenas levar os cães a passear ou admirar os canteiros de flores. Até mesmo Ernst Jones, o líder cartista que Marx mais admirava, em breve se revelou um diletante da classe média ao defender uma coligação entre os cartistas e os radicais burgueses. «O que se passa com Jones é revoltante», escreveu Engels após ouvi-lo discursar numa manifestação em Manchester. «Uma pessoa é quase levada a acreditar que o movimento do proletariado inglês na sua antiga forma cartista tradicional tem de desaparecer completamente antes de poder desenvolver uma nova forma viável.» Mas que forma seria essa? Como Engels notou com lúgubre presciência, «o proletariado inglês está hoje em dia a tornar-se cada vez mais burguês e, aparentemente, aspira possuir uma aristocracia burguesa e um proletariado burguês, bem como uma burguesia.»^^ E foi o que veio a acontecer: actualmente em Inglaterra, tanto os aristocratas como os trabalhadores compram alimentos nas superlojas Tesco e assistem ao sorteio da Lotaria Nacional aos sábados à noite. Se os fantasmas de Marx e Engels voltassem à Terra, também notariam a mais esquisita contradição de todas: uma monarquia burguesa cujos príncipes usam bonés de basebol, comem Big Macs e passam as férias na Disneylândia. Em Hyde Park, onde outrora os cartistas provocavam os aristocratas e Karl Marx julgava que a revolução inglesa tinha começado, o maior ajuntamento popular que há memória ocorreu a 6 de Setembro de 1997 — para o funeral de Diana, princesa de Gales. . O veredicto final de Marx sobre o seu país de adopção figura numa carta que escreveu, pouco antes de morrer, em 1883. Depois de troçar dos «pobres

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burgueses britânicos que gemem à medida que vão aceitando cada vez mais "responsabilidades" ao serviço da sua missão histórica, enquanto protestam em vão contra ela», conclui com um grito exasperado: «Ao diabo os Britânicos!»^** A apostasia de Ernst Jones, ao juntar forças com os liberais da classe média, incorreu na punição mais severa que Marx e Engels podiam dar: foi etiquetado de «oportunista». Anos mais tarde, eles proferiram a mesma sentença contra Ferdinand Lassalle por este ter proposto que os trabalhadores e os aristocratas prussianos se juntassem contra a burguesia industrial. Apesar de se opor a estes casamentos de conveniência, Marx andava a formar associações oportunistas com tipos bastante esquisitos. O mais esquisito deles todos era David Urquhart, excêntrico aristocrata escocês e antigo membro tory do Parlamento, que actualmente é lembrado, se o for, por ter introduzido os banhos turcos em Inglaterra. «Até ao fim da vida, Urquhart foi o hei, o chefe, o profeta, praticamente o "enviado divino", para a maioria dos seus seguidores», declarou um dos seus discípulos. «Para a sua pequenina filha, que sonhava com o pai..., não parecia estranho que o pai, à maneira dos sonhos, se transformasse em Cristo. " É realmente a mesma coisa, não é, mamã?", dizia. Mas, para os observadores menos reverentes, ele não passava de uma velha morsa intratável de bigodes pendentes, laço de esguelha e opiniões muito controversas. "A arte que pratiquei com mais assiduidade foi a de fazer os homens odiar-me", gabava-se. "Isso torna-os menos apáticos. Fá-los falar e, depois, posso apanhar-lhes as palavras e arremessá-las contra eles para os abater."»^' Muitas eminências vitorianas são testemunhas do sucesso desta técnica: o h o m e m tinha inimigos para dar e vender. Nascido na Escócia em 1805, educado em França, Suíça e Espanha, Urquhart descobriu a sua longa obsessão com o Oriente quando, aos 21 anos, partiu — por sugestão de Jeremy Bentham, um admirador — para tomar parte na guerra da independência da Grécia e foi gravemente ferido no cerco de Seio. Tendo atraído a atenção de sir Herbert Taylor, secretário particular de Guilherme IV, Urquhart foi a seguir enviado em missões diplomáticas secretas para Constantinopla, onde mudou abruptamente de campo. «Este tipo foi para a Grécia como helenista e, após ter passado três anos a combater os turcos, instalou-se na Turquia e apaixonou-se pelos turcos», escreveu Marx em 1853, depois de se ter divertido com o livro de Urquhart, Turkey and Its ^esources?'^

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«Entusiasma-se pelo Islão de acordo com o seguinte princípio: «Se não fosse calvinista, só poderia ser maometano.» Os turcos, principalmente os do Império Otomano no seu apogeu, são a nação mais perfeita que existe à superfície da Terra, e a sua língua é a mais melodiosa do mundo Se um europeu é maltratado na Turquia, só pode culpar-se a si mesmo; o turco não odeia a religião dos francos nem o seu carácter, apenas o facto de as suas calças serem estreitas. A imitação da arquitectura, etiqueta, etc. dos turcos é fortemente recomendada. O próprio autor levou muitos pontapés no rabo dos turcos, mas, subsequentemente, deu-se conta de que a culpa fora dele... E m resumo, o turco é um cavalheiro e a liberdade existe somente na Turquia.» A sua excessiva turcolilia fascinou os anfitriões de Urquhart em Constantinopla. Segundo o Didonário de Biografias Nacionais, «os funcionários turcos confiavam tanto nele que o informavam acerca de tudo o que o embaixador russo lhes comunicava. N o entanto. Lorde Palmerston ficou alarmado... e pediu ao embaixador inglês, Lorde Ponsonby, que o tirasse de Constantinopla, pois ele era um perigo para a paz na Europa». A parcialidade apaixonada de Urquhart — pró-turco e anti-russo — antagonizou-o com a poUtica britânica e convenceu-o de que o Governo do seu país era influenciado por forças sinistras e concluiu que o ministro dos Negócios Estrangeiros, Lorde Palmerston, devia ser um agente secreto russo. Ao regressar à Grã-Bretanha, Urquhart encontrou vários jornais e uma rede nacional de comités dispostos a disseminar a sua audaz teoria conspiratória. Após ter entrado para o Parlamento em 1847, fez uma série de discursos solicitando um inquérito imediato sobre a conduta do Ministério dos Negócios Estrangeiros «a fim de destituir o Muito Distinto Henry John Temple, visconde de Palmerston». Essencialmente um romântico reaccionário, Urquhart conseguiu, contudo, convencer alguns radicais de que estava realmente do lado deles e defendia os trabalhadores explorados contra os patrões falsos e velhacos. Apesar dos cartistas mais revolucionários o considerarem um espião tory, cujas cruzadas populistas contra Lorde Palmerston eram uma manobra de diversão, os outros louvavam a sua denúncia do «mal causado ao labor e ao capital deste país pela expansão do Império Russo e da quase universal influência russa, a qual procurava destruir o comércio britânico». Isto tudo fazia harmoniosamente coro com o ódio e desconfiança que Karl Marx votava à Rússia czarista. «Excitado, mas não convencido» pelas

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alegações de Urquhart, meteu mãos à obra com característica diligência debruçando-se sobre velhos exemplares do Hansard e dos «Livros Azuis» diplomáticos à procura de provas. Os seus progresso podem ser seguidos através do diferente tom das suas cartas a Engels. N a Primavera de 1853, troçava de Urquhart chamando-o «o membro louco do Parlamento que denuncia Palmerston dizendo que ele é pago pela Rússia». Mas, no Verão desse mesmo ano, já se mostrava mais respeitoso: «Os comentários de D. Urquhart sobre a questão oriental no Advertiser contêm, apesar das excentricidades, muita coisa interés sante»''"). E, antes do final do Outono, rendia-se incondicionalmente ao urquhartismo — se não ao próprio Urquhart. «Cheguei à mesma conclusão que esse monomaniaco do Urquhart — nomeadamente que Palmerston trabalha há várias décadas a soldo dos russos», escreveu a 2 de Novembro. «Estou satisfeito por o acaso me ter levado a observar mais de perto a política estrangeira — diplomática — dos últimos 20 anos. Negligenciámos muito este aspecto. Deve-se saber com quem se está a lidar.» Os primeiros resultados desses estudos foram uma série de artigos para o New York Tribune, no final de 1853, que descreviam as «ligações» clandestinas de Palmerston com o Governo russo. Urquhart, compreensivelmente deleitado, encontrou-se com o autor em princípios de 1854, fazendo-lhe os maiores cumprimentos ao dizer que «os artigos pareciam ter sido escritos por um turco». Marx, um pouco amuado, fez-lhe notar que era um revolucionário alemão. «Ele é louco varrido», comentou Marx p o u c o depois deste estranho encontro: «Está firmemente convencido de que, um dia, será primeiro-ministo do país. Quando reinar a opressão, a Inglaterra virá ter com ele e dizer-Ihe: Salva-nos, UrquhartílL, então, ele há-de salvá-la. Tem autênticos ataques quando fala, sobretudo quando o contradizem... A sua ideia mais cómica é a seguinte: a Rússia governa o m u n d o através de uma onda cerebral específica. Para lhe fazer face, uma pessoa tem de ter o cérebro de um Urquhart e, se tiver o infortúnio de não ser o próprio Urquhart, deveria ser, pelo menos, um urquhartista, quer dizer, acreditar no que Urquhart acredita, na sua "metafísica", na sua "economia política", etc. etc. Um pessoa deve ter estado no "Oriente" ou ter absorvido, pelo menos, o "espírito mrco."»''^

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Quando alguns destes artigos sobre Palmerston no Tribune foram publicados como panfleto, Marx ficou horrorizado por descobrir que a polémica de Urquhart aparecia na mesma série — e imediatamente proibiu outras reimpressões. «Não desejo fazer parte dos adeptos desse cavalheiro com quem tenho apenas uma coisa em comum, nomeadamente, a minha opinião sobre Palmerston», explicou a Ferdinand Lassalle. «Quanto ao resto, sou diametralmente o oposto.»*^^ , A partir disto, pode-se inferir que quaisquer outros convites ou encorajamentos por parte do maníaco seriam rejeitadas com um brusco: «Sai-me da vista, Satanás!» Mas Marx não pôde manter os seus princípios durante muito tempo. Importunado por credores impacientes, não conseguiu resistir a uma encomenda para escrever uma série para um dos jornais de Urquhart, o Free Press, de Sheffield, no Verão de 1856. «Os urquhartistas estão a ser muito importunos», rosnou. «Financeiramente, é bom, mas não sei se,politicamente, devo envolver-me com essa gente.»''^Os artigos eram apropriadamente sensacionais: declarava ter descoberto, entre os manuscritos diplomáticos n o Museu Britânico, «uma série de documentos datados do final do século XVIII à época de Pedro, o Grande, que revelava a secreta e permanente colaboração do gabinete em Londres com Sampetersburgo.». Facto ainda mais alarmante, o objectivo da Rússia ao longo de todo esse período era, nada mais nada menos, a conquista do planeta. «A potítica de Pedro, o Grande, continua a ser a da Rússia moderna, independentemente das mudanças de nome, governo ou disposição pelas quais este poder hostil possa ter passado. Pedro, o Grande, foi de facto o inventor da política da Rússia moderna, mas fê-lo despojando o antigo método moscovita do seu carácter meramente local e as suas acidentais misturas, destilando-o numa fórmula abstracta, generalizando a sua finalidade e exaltando o seu objectivo: da aniquilação de determinados limites de poder à aspiração de poder ilimitado.» Havia uma falha evidente na teoria de que a Grã-Bretanha e a Rússia tinham sido cúmplices nos últimos 150 anos: a Guerra da Crimeia. Urquhart e Marx davam uma pronta explicação. A Guerra fora um truque manhoso para afastar as suspeitas da corrupta aliança de Palmerston com a Rússia; e a Grã-Bretanha tinha deliberadamente prosseguido a guerra de forma tão incompetente quanto possível. Para os dedicados teóricos de conspirações tudo é explicável e quaisquer factos inconvenientes constituem simplesmente mais uma confirmação da diabólica dissimulação das suas vítimas.

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Marx deve ter-se convencido a si mesmo, mas poucas pessoas foram persuadidas. Os seu ataques contra Palmerston e a Rússia foram publicados novamente em 1899, pela filha Eleanor, como dois panfletos, A História Diplomática Secreta do Século XVIII e .A História da Vida de l^orde Palmerston — embora algumas das passagens mais provocantes tivessem sido retiradas. Durante a maior parte do século XX, estiveram fora do mercado e praticamente esquecidos. O Instituto do Marxismo-Lenismo de Moscovo não os incluiu nas suas exaustivas obras completas, presumivelmente porque os editores soviéticos não podiam admitir que o espírito que encabeçara a revolução russa fosse um fervoroso russófobo.'''* Os hagiógrafos marxistas do Ocidente também se mostraram relutantes em chamar a atenção sobre esta embaraçosa mistura de revolucionário e reaccionário. U m exemplo típico é A Vida e o ensinamento de Karl Marx, de John Lewis, publicado em 1965; o leitor curioso pode procurar em vão qualquer referência a David Urquhart ou à colaboração de Marx para a sua obsessiva cruzada. Mais tarde, o próprio Urquhart consagrou-se a outras causas igualmente quixotescas. Devoto católico romano, se bem que não ortodoxo, suplicou durante largos anos ao Papa Pio IX que restaurasse a lei canónica enquanto continuava infatigavelmente a fazer propaganda dos banhos turcos. («Num dos Guardians que me enviaste há uma notícia em que David Urquhart figura como infanticida», escreveu Marx a Engels em 1858. «O pobre diabo deu um banho turco ao filho de 11 meses que provocou uma congestão cerebral e a sua morte. O inquérito do médico legista durou três dias, e foi por um triz que Urquhart escapou a ser condenado.»)''^ A casa de Urquhart em Rickmansworth, Hertfordshire, foi descrita por um visitante como «um palácio oriental com um banho turco... cujo luxo não é inferior a nenhum de Constantinopla»''''. Uma sessão nesta decorada câmara de suor talvez tivesse feito bem aos furúnculos de Marx, mas, que se saiba, ele nunca teve o prazer de ter lá estado.

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Pouco antes da madrugada de 16 de Janeiro de 1855, Jenny Marx deu à luz outra filha, Eleanor. Não se pode dizer que o pai tenha ficado extasiado.
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a encarar a realidade económica e social: como não se esperava que as raparigas da classe média ganhassem a vida ou provessem à sua própria subsistência, Eleanor seria mais um fardo financeiro numa situação já periclitante. Mas, mesmo assim, não há dúvida de que Edgar — o bochechudo e traquinas coronelMusch — era o favorito. Rapaz doentio, cuja grande cabeça parecia demasiado pesada para o seu corpo débil, ele era, contudo, uma inesgotável fonte de entusiasmo e graça. Quando os pais se deixavam abater, ele conseguia sempre animá-los cantarolando cantigas absurdas — ou a Marselhesa—, com muito sentimento e aos gritos. N o dia em que Edgar cumpriu cinco anos, Wilhelm Pieper, o secretário de Marx, ofereceu-lhe um saco de viagem, mas, depois, arrependeu-se e quis recuperá-lo. «Escondi-o bem, Mouro», confiou Musch ao pai. «E se o Pieper me perguntar onde está, vou dizer-lhe que o dei a um pobre.» Marx adorava o pequenino espertalhão, «um amigo que, pessoalmente, me era mais querido do que qualquer outro»^. Este favoritismo é confirmado por uma carta de 3 de Março de 1855 a Engels, em que fazia uma lista das várias maleitas que estavam a transformar o seu apartamento num pequeno hospital: Edgar padecia de uma espécie de febre gástrica; Karl estava de cama com uma tosse terrível; Jenny tinha uma dolorosa e irritante inflamação num dedo; a bebé Eleanor era muito frágil e estava cada vez mais fraca. «A situação de Edgar, é a pior», comentava Marx, o que era bastante surpreendente, pois a vida de Eleanor corria perigo enquanto Edgar «fazia progressos e melhorava a olhos vistos». Mas a recuperação foi cruelmente breve e, quando Edgar piorou gravemente em fins de Março, o médico diagnosticou uma tuberculose e avisou que não havia esperança. «Embora o meu coração sangre e sinta a cabeça a arder, tenho evidentemente de manter a compostura», escreveu Marx. «No decorrer da sua doença, nunca o meu filho se mostrou um só instante contrário à sua boa índole»\ Edgar morreu nos braços do pai pouco antes das seis da manhã de 6 de Abril. Era Sexta-Feira Santa, o dia mais triste do calendário cristão e, assim, o falecimento do rapaz foi marcado pelos sinos das igrejas. Wilhelm Liebknecht chegou à rua Dean pouco depois e encontrou Jenny a chorar silenciosamente ao lado do cadáver com Laura e. jennychen agarradas às sais como para se defenderem da força maligna que lhes roubara os irmãos e as irmãs. Marx, quase de cabeça perdida, resistia furiosa e violentamente a todos as condolências.

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O funeral ocorreu dois dias mais tarde no tabernáculo de Whitefield, em Tottenham Court Road, local do repouso final de Frawkesy e Franziska. N o decorrer do curto percurso até ao cemitério, Liebknecht afagou a testa de Marx e tentou, de forma um pouco estúpida, lembrar-lhe quantas pessoas gostavam dele — a mulher, as filhas, os amigos. «Não podes devolver-me o meu filho!», uivou Marx, agarrando fortemente a cabeça. Quando estavam a baixar o caixão, ele deu um passo em frente e, durante uns instantes, os presentes julgaram que ele se ia atirar para dentro da cova. Liebknecht agarrou-o pelo braço. Marx mal podia resolver-se a regressar a casa, a qual parecia insuportavelmente desolada sem o seu bobo da corte. «Já tive o meu quinhão de azar», disse a Engels. «Mas só agora sei o que realmente significa a infelicidade. Sinto-me destroçado.»'* Durante vários dias, ele teve «a boa fortuna» de sentir tais dores de cabeça que não conseguia pensar, ouvir nem ver. U m das poucas coisas que o reconfortou foi a amizade de Engels, que convidou Karl e Jenny a passar uns dias em Manchester para saírem do detestável ambiente d o apartamento de Soho. Anos mais tarde, muito depois de ter m u d a d o de bairro, Marx declarou que «a área à volta de Soho Square ainda me causa arrepios quando passo, por acaso, por lá perto.»^ Mas, assim que voltaram a Londres, os antigos vestígios da presença de Edgar — livros e brinquedos — mergulhou-os num pesar ainda mais profundo. «Bacon afirma que as pessoas realmente importantes têm uma tal relação com a natureza e o mundo, tantos objectos de interesse, que facilmente recuperam das perdas sofridas», escreveu a Ferdinand Lassalle três meses mais tarde. «Não sou uma dessas pessoas importantes. A morte do meu filho feriu-me mortalmente e sinto a sua perda como no primeiro dia. A minha pobre mulher também está completamente destroçada.»"" D e Julho a Setembro, a família foi morar no subúrbio de Camberwell, no Sul de Londres, onde o refugiado alemão. Peter Imandt, lhes cedeu o apartamento enquanto ele se encontrava na Escócia. E m b o r a lhes agradasse manterem-se afastados da rua Dean por uns tempos, o motivo principal daquela mudança era esconderem-se dos credores que andavam outra vez atrás deles — em particular do vingativo Dr. Freund que, agora, ameaçava processá-los por falta de pagamento dos seus honorários. E m meados de Setembro, quando Freund descobriu o seu paradeiro, Marx teve novamente de maquinar um plano de fuga — inspirando-se, segundo reivindicou, na retirada estratégica das tropas russas do Sul de Sebastopol na semana ante-

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rior, após terem sido derrotados pelos franceses na batalha de Chernaya. «Fui forçado ^otforce supérieure a evacuar a frente sul sem, contudo, destruir tudo atrás de mim», informou Engels num despacho de guerra proveniente de Camberwell. «Mas, na verdade, as minhas tropas permanecerão aqui enquanto eu estiver ausente durante uma ou duas semanas. E m outras palavras, sou obrigado a retirar para Manchester onde espero chegar amanhã à noite. Terei de passar incógnito e, por isso, não fales a ninguém da minha presença.»^ Dois dias depois de 1er esta carta, Engels enviou um longo artigo, «Perspectivas da Crimeia», ao New York Daily Tribune — sob o nome de Marx — no qual justificava a luta aparentemente desnecessária dos russos a sul de Sebastopol. «A resistência numa cidade sitiada é, a longo termo, desmoralizadora», argumentou. «Implica privações, fadiga, doenças e a presença, não do perigo crítico que dá forças mas de u m perigo crónico que acaba por cansar o espírito... N ã o é de admirar que a desmoralização se apodere das tropas; o que admira é que isso ainda não tenha sucedido há mais tempo.» É difícil de acreditar que Engels tenha escrito esta avaliação táctica sem ter em mente a situação precária do seu amigo. N a Primavera de 1855, entre o aniversário de Eleanor e a m o r t e de Musch, deu-se um evento familiar que alegrou imenso Marx. «Fomos informados ontem acerca de um ACONTECIMENTO MUITO FELIZ», escreveu a 8 de Março. "A morte do tio da minha mulher aos 90 anos."» Nada tinha contra Heinrich Georg von Westphalen, advogado e historiador inofensivo, à parte o facto da sua longevidade ter atrasado a repartição da sua considerável fortuna. E m casa de Marx, esse tio indestrutível era denominado «o nega-heranças». A parte que cabia a Jenny, cerca de cem libras, chegou no fim desse ano e, no Verão de 1856, ela recebeu mais 120 libras pela morte da mãe. Nessa ocasião, contudo, até mesmo Marx se mostrou suficientemente delicado para não se regozijar abertamente, sobretudo porque Jenny passara os últimos dias à cabeceira da baronesa em Trier. «Ela parece ter ficado muito afectada pela morte da velha senhora», notou ele em t o m ligeiramente surpreso. Estas duas heranças inesperadas permitiram-lhe escapar finalmente do «velha toca» em Soho e, depois de calcar as ruas durante duas semanas à procura de um alojamento mais salubre, decidiu-se por um prédio de quatro andares localizado no número 9 de Grafton Terrace, em Kentish Town, perto de Hampstead Heath. A renda anual de 36 libras era barata para o norte

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de Londres — provavelmente porque, como Marx explicou a Engels, esta parte de Hampstead tinha permanecido «um pouco inacabada». Mais do que um pouco, deve-se acrescentar: as ruas não eram pavimentadas nem iluminadas, e um enorme estaleiro de construção elevava-se na vizinhança. Até à década de 1840, tinha sido ocupada por campos verdes, mas a chegada dos caminhos-de-ferro transformara os arrabaldes rurais de Londres em subúrbios para a classe média. Como acontece hoje com as urbanizações em subúrbios distantes, o estilo arquitectónico era uma confusão híbrida e caprichosa. O prédio de Grafton Terrace fora oficialmente classificado de «terceira classe» pelo Departamento Metropolitano de Construção, mas Marx achava-a «muito simpático». Jenny deleitava-se com os prazeres esquecidos do conforto doméstico e contratou a meia irmã de Helene Demuth, Marianne Creuz, para ajudar na Hda da casa. «É realmente um alojamento principesco comparado com os buracos onde vivemos antes», disse a uma amiga. «E embora tenha sido mobilado de alto a baixo por pouco mais de 40 libras (sobretudo com mobílias em segunda mão), senti-me ao princípio muito elegante na nossa confortável sala.»* Depois de ter recuperado a roupa branca e prata dos ArgyU do «tio» — da casa de prego — , era com grande prazer que estendia as toalhas de damasco na mesa da casa de jantar. E também houve celebrações de carácter mais íntimo: poucas semanas depois de se instalarem em Grafton Terrace, Jenny ficou grávida pela sétima vez. As três crianças adoravam a sua nova vida no seio da classe média. Jennychen e Laura, agora com 12 e 11 anos respectivamente, passaram a frequentar o colégio para meninas de South Hampstead, tornando-se dentro de pouco tempo excelentes alunas em todas as disciplinas. Eleanor, com dois anos e a quem chamavam Tmsy para rimar com Pussy (gatinha), representava lindamente o seu papel de minichâtelaine e recebia todas as crianças que desejassem visitá-la. Quando estava bom tempo, tomava chá sentada nos degraus da porta principal antes de ir brincar na rua com as outras meninas. A sua fama era tal, que a maior parte dos vizinhos tinha alcunhado a família Marx de os Tussies. Até mesmo o quintal das traseiras, pouco mais de alguns metros quadrados de relva e cascalho, era uma novidade deliciosa. Uma das recordações da infância de Eleanor é a de Marx transportando-a às cavalitas à volta do jardim e enfeitando-lhe os caracóis castanhos com flores.

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«O Mouro era, na opinião de todos, um esplêndido corcel. N o s primeiros tempos — não me lembro bem, mas ouvi falar deles vezes sem conta — as minhas irmãs e o meu irmão pequenino — cuja m o r t e p o u c o depois do meu aniversário foi um imenso desgosto para os meus pais — atrelavam cadeiras ao Mouro, sentavam-se nelas e ele tinha de os puxar... Pessoalmente — talvez por não ter irmãs com a minha idade — preferia montá-lo como um cavalo. Sentava-me às suas cavaHtas bem agarrada à sua crina, a qual era então preta com alguns cabelos grisalhos. Dei grandes cavalgadas à volta do pequeno jardim e nos campos —- agora cobertos de construções — que rodeavam a nossa casa. 9 Aos domingos, os Marx e os amigos de visita iam de passeio até Hampstead Heath para fazer um piquenique, frequentemente a sua única refeição substancial durante toda a semana. Apesar do reduzido orçamento, Lenchen conseguia normalmente arranjar uma perna de vitela acompanhada de pão, queijo, camarões e legumes, bem como cerveja comprada na taberna local, o Castelo, de Jack Straw. Depois do almoço, as crianças iam brincar às escondidas por entre as moitas enquanto os adultos faziam uma sesta ou liam os jornais de domingo — no entanto, a exemplo do que acontece com tanta frequência nos passeios de família, o relutante papá era muitas vezes arrastado do seu torpor e obrigado a juntar-se à brincadeira dos filhos. «Vamos ver quem consegue atirar mais castanhas abaixo!», as filhas gritaram um dia, apontando para o castanheiro carregado de frutos e, durante um hora, ou duas, Marx bombardeava a árvore até esta ficar completamente nua, ficando depois incapacitado de mexer o braço direito durante uma semana. Por vezes, aventuravam-se mais longe, até aos prados verdes e colinas para lá de Hightgate, à procura de jacintos e malmequeres ignorando alegremente os letreiros de «Proibida a Passagem», das propriedades privadas. Wilhelm Liebknecht, que os acompanhou em várias destas expedições, admirava-se pela quantidade de flores que cresciam na Primavera no clima frio e húmido de Inglaterra. «Contemplávamos orgulhosamente dos nossos prados fragrantes, a poderosa cidade sem limites que se estendia a nossos pés envolta numa neblina misteriosa», escreveu. N o caminho de regresso a casa, Marx cantava com as filhas cantigas folclóricas alemãs e espirituais negros ou recitava longas passagens de Dante e Shakespeare. «Julgávamos realmente que vivíamos num castelo encantado, suspirava Jenny Marx. Mas o encanto dependia de prestidigitações financeiras.

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Foi apropriadamente nessa altura que Marx começou a entreter a pequenina Eleanor com os seus contos de Hans Röckle, o feiticeiro sem dinheiro «que nunca conseguia cumprir as suas obrigações para com o diabo nem para com o talho e, por conseguinte, se via constantemente obrigado — apesar do seu desespero — a vender os brinquedos ao demónio.» A herança de Jenny tinha sido toda gasta para pagar as dívidas e mobüar a casa, e, uma a uma, as novas mobílias e a preciosa roupa branca antiga voltaram a ser penhoradas. «As nuvens que se acumulam por cima do mercado financeiro são deveras sombrias», escreveu Engels na própria semana em que os Marx se mudaram para Grafton Terrace. «Desta vez, haverá uma catástrofe nunca dantes vista: toda a indústria europeia em ruínas, todos os mercados com excesso de stock (já nada é enviado para a índia), todos os proprietários nas lonas, a burguesia em falência total, guerra e libertinagem até ao último grau. Também acredito que tudo isso virá a passar-se em 1857 e, quando ouvi dizer que andavas a comprar de novo mobília, disse para comigo mesmo que a coisa é certa e aceito apostas. Por hoje, é tudo. Saudades à tua mulher e crianças.. .»^'^ Vistas as circunstâncias, a piada é um pouco insensível. Assim que se instalou no castelo encantado, Marx apercebeu-se, com horror, de que não havia dinheiro para a renda. «Aqui estou eu, sem nenhumas perspectivas e com crescentes obrigações domésticas, completamente às aranhas numa casa na qual investi o pouco que possuía e onde é impossível viver o dia a dia como fazíamos na rua Dean», escreveu a Engels em Janeiro de 1857. «Não sei o que fazer e encontro-me numa situação mais desesperada do que há cinco anos. Julguei que já tinha bebido a amarga taça da vida até à última gota. Mais non! E o pior é que não se trata de uma simples crise passageira. N ã o estou a ver como é que vou sair disto.»" Engels ficou siderado: julgava que, finalmente, tudo estava a correr pelo melhor — tu a viveres numa casa decente e os teus problemas resolvidos — mas, afinal, tudo está na mesma.. .»^^ Prometeu enviar cinco libras por mês mais um suplemento sempre que fosse necessário. «Nem que isso signifique eu endividar-me. Devias ter-me falado do assunto há duas semanas.» Pois, como confessou, tinha acabado de comprar um novo cavalo com o dinheiro que o pai lhe oferecera no Natal. «Sinto-me muito envergonhado por ter um cavalo aqui enquanto tu e a tua família estão a atravessar um mau m o mento em Londres.» Quem mais sofria com os infortúnios domésticos era Jenny Marx. O marido podia retirar-se para o seu gabinete, barricando-se atrás de livros e jornais;

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e as raparigas distraíam-se com as novas amigas e os deveres escolares. Mas Jenny não podia refugiar-se em nenhum lado. Sentia a falta das ruas animadas de West E n d , dos encontros, dos clubes epubs, e das conversas entre compatriotas alemães com quem partilhavam a miséria do exílio: «O acesso à nossa atraente casinha, a qual nos parecia um palácio em comparação com os sítios em que tínhamos vivido, não era fácil. N ã o tinha estrada e havia uma série de construções à volta. Uma pessoa era obrigada a abrir caminho por entre montes de entulho e, quando chovia, a lama vermelha colava-se aos sapatos. Chegávamos a casa extenuados e com os pés pesados. E, além do mais, o bairro era escuro. Por isso, em vez de termos de enfrentar a escuridão, o entulho e a lama, preferíamos passar o serão diante da lareira. Passei bastante mal naquele Inverno, sempre rodeada de remédios.»" A 7 de Julho, deu à luz uma criança morta, mas mal teve forças para a chorar. «Todos os dias me pareciam iguais.» Para além de Grafton Terrace, o seu único contacto com o mundo era copiar os artigos que Marx escrevia duas vezes por semana para o Dailj Tribune. Mas, depois, até mesmo isso acabou. A o notar que o jornal publicava cada vez menos as suas contribuições — e, claro está, ele era pago pelo que era impresso — , Marx entrou em greve. «É realmente revoltante que uma pessoa seja condenada a considerar uma bênção o facto de ser publicado num jornaleco como este», comentava, enraivecido. Via-se como um mendigo num hospício a ter de esmigalhar ossos para fazer uma sopa. A sua ameaça de ir trabalhar para outro jornal deu resultado — mas, apenas, em parte. O director do Tribune, Charles Dana, propôs pagar-lhe uma coluna por semana quer esta fosse publicado, ou não. «Estão efectivamente a reduzir a minha colaboração para metade»^*, queixou-se Marx. Como concessão, Dana convidou-o então a escrever dois artigos para uma antologia que iria editar, a New American Cyclopaedia — u m sobre grandes generais e outro sobre a história da guerra. Embora se tratasse de uma tarefa entediante e mercenária, Marx não se encontrava em posição para recusar os honorários de dois dólares por página. O pretenso general Engels encarregou-se com prazer da maior parte do trabalho — dar-lhe-ia uma coisa para fazer à noite, disse — e meteu imediatamente mãos à obra: Abensberg, Ajudante, Actium, Alma, Armada, Arti-

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Iharia... Mas uma crise de febre glandular pô-lo efectivamente fora de combate e teve de passar o resto do Verão numas termas de Lancashire apropriadamente chamadas Waterloo. Isto deixou a Marx o espinhoso problema de ter de explicar a Dana o súbito corte de mantimentos. «O que é que eu vou dizer-lhe?», gemeu. «Na medida em que continuo a enviar artigos para o Tribune, não me posso desculpar que estou doente. É uma situação levada da breca.»" Tentou ganhar tempo fingindo que a remessa se perdera nos correios. A revolta dos cipaios contra o domínio britânico na índia veio aumentar ainda mais os seus problemas, pois o jornal esperava, muito naturalmente, que o seu perito em assuntos políticos lhes enviasse uma minuciosa análise da situação. Felizmente, Marx tinha aprendido suficientes manhas com o falecido Musch para resolver a questão. «Quanto ao caso de DeU», confessou confidencialmente a Engels, «parece-me que os ingleses terão de retirar logo que as monções começarem. Sendo obrigado, nas presentes circunstâncias, a substituir-te como correspondente militar do Tribune, decidi adiantar essa teoria... É muito possível que seja uma burrice e, assim, formulei a ideia de modo a poder safar-me com um pouco de dialéctica.»^'' E m Setembro, Engels sentiu-se suficientemente bem para poder continuar com a enciclopédia e enviou uma torrente de artigos da ilha de Wight onde estava em convalescença — sobre Batalhas, Baterias, Blücher e muito mais. A o visitar Jérsia em Outubro, passou para a letra seguinte do alfabeto, começando com Canhões. Podiam Campanha e Cavalaria seguir em breve? Tal produtividade foi, contudo, interrompida pela mais gloriosa notícia imaginável: o cataclismo internacional financeiro tinha, finalmente, começado. A falência de um banco em Nova Iorque tinha espalhado a crise através da Austria, Alemanha, França e Inglaterra como uma apocalipse galopante. Engels voltou apressadamente a Manchester em meados de Novembro para assistir ao espectáculo —• preços em queda livre, falências e pânico. «O aspecto geral da Bolsa (de algodão) aqui foi deliciosa», disse a Marx. «Os meus colegas estão furiosos pela minha súbita e inexplicável boa disposição.»" O d o n o de uma fábrica já tinha vendido todos os cavalos e galgos, despedido a criadagem e posto a sua mansão para alugar. «Mais duas semanas e a crise atingirá o seu apogeu.»'** Seguir-se-ia imediatamente a revolução? Engels duvidava: após um longo período de prosperidade, os trabalhadores mostravam-se bastante letárgicos. Mas tanto melhor, pois os futuros líderes das massas deviam, primeiro.

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preparar-se para o combate. Segundo a visão de Engels, seria ele mesmo quem comandaria o exército insurrecto para esmagar toda a resistência burguesa — com cargas de cavalaria através das ruas de Manchester e Berlim — enquanto Marx dirigiria a facção civil da campanha, elucidando o proletariado quanto aos mistérios da economia política. «É um caso de fazer ou morrer», anunciou Engels, afivelando as esporas. «Isto vai servir para pôr em prática os meus estudos militares. Vou apresentar sem demora a minha candidatura às escolas de táctica elementar dos exércitos austríacos, bávaros, franceses e prussianos e, à parte isso, dedicar-me exclusivamente a montar a cavalo e à caça à raposa, a melhor de todas as escolas.»^' E n q u a n t o bebericavam os seus cocktails, os m e m b r o s d o clube de Cheshire Hunt estavam longe de imaginar que o encantador Sr. Engels estava secretamente a preparar-se para vir a ser o Napoleão do Noroeste da Inglaterra. Mas Engels estava a falar muito a sério: «Afinal de contas, queremos ensinar umas coisas à cavalaria prussiana quando voltarmos à Alemanha. Vai ser difícil a esses cavalheiros competir comigo, porque já tenho muita prática e faço progressos todos os dias... A n d o agora a preparar-me para montar em terreno acidentado; é bastante difícil.»^*' A equitação, julgava ele, era a «base material» do sucesso militar. Por que é que o malvado Luís Bonaparte era considerado um herói pela pequena burguesia francesa? «Porque monta com muita elegância.» Estes comentários deviam irritar imenso Marx, cuja falta de jeito para montar — demonstrada nos passeios domingueiros de burro em Hampstead Heath — era uma piada de família. N o fim de Dezembro, os constantes treinos de Engels tinham transformado o comerciante de algodão num impetuoso cavaleiro. «Fui a uma caçada à raposa no sábado — sete horas na sela», escreveu, ofegante, na véspera do Ano Novo. «Este tipo de exercícios deixa-me num estado de diabólica excitação durante dias; é o maior prazer físico que conheço. Apenas duas outras pessoas, mais bem montadas, eram melhores cavaleiros do que eu. Pelo menos 20 tipos caíram, dois cavalos rebentaram e matámos uma raposa (numa acção em que eu estive presente)... E, agora. Feliz Ano N o v o para toda a tua família e um Bom Ano de combate em 1858.» Marx, sem estar lá muito convencido de que tudo isto servia para grande coisa, perguntava-se como é que iria ganhar mais dólares com a Ciclopaedia, enquanto o seu co-autor andava a saltar fossas e sebes. Elstava cheio de dívidas e os credores andavam novamente a ameaçá-lo. «Não mencionei antes o assunto porque a última coisa que desejo é prejudicar a tua saúde».

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sugeriu amavelmente. «Mas, às vezes, parece-me que, se conseguisses escrever um pouco todos os dois dias talvez te acalmasses.»^' Engels recusou: como é que podia 1er, ou escrever, com a cabeça cheia de visões de «ruína geral»? Marx acusou o toque. Apesar de todos os seus protestos quanto à necessidade de ganhar a vida, também ele se sentia contagiado pelo espírito melodramático daquele m o m e n t o . Aceitava o facto do destino o ter nomeado principal teórico da revolução. Fortificado por «uma simples limonada numa mão e uma enorme quantidade de tabaco na outra», sentava-se no seu gabinete todas as noite do longo Inverno de 1857-58, até às quatro da madrugada, debruçado sobre os seus estudos de economia «para, pelo menos, definir as suas linhas gerais antes do déluge.ypO dilúvio, porém, nunca veio: as sombrias nuvens tempestuosas eram apenas anunciadoras de aguaceiros. Mas Marx continuou a construir a sua de arca, convencido de que, mais cedo ou mais tarde, a terra seria inundada. Quando a aritmética escolar se mostrou inadequada para resolver fórmulas económicas complexas, tirou um curso de álgebra à pressa. C o m o ele mesmo explicou, «é essencial tratar a fundo desta matéria para benefício do público»"\ E, realmente, aquelas suas anotações nocturnas encheram mais de 800 páginas, as quais só foram tornadas públicas pelo Instituto Engels-Marx em 1939 e finalmente publicadas por uma editora alemã em 1953 sob o ü'tulo Grundrisse der Kritik derPolitischen Oekonomie. A primeira edição inglesa apareceu 20 anos mais tarde, em 1971. Grudrisse — nome pelo qual é geralmente conhecida — é uma obra fragmentária e, por vezes, incoerente e foi descrita pelo próprio Marx como uma autêntica salgalhada. Mas, como elo de ligação dos Manuscritos Hconómicos e Filosóficos (1844) com o primeiro volume de O Capital{y 867), dissipa a comum concepção falsa de que há uma espécie de «ruptura radicab rel="nofollow"> entre o jovem e o velho Marx. O vinho pode amadurecer e melhorar engarrafado, mas continua a ser vinho. Há extensas secções sobre a alienação, a dialéctica e o significado do dinheiro que retomam o que ele omitiu nos manuscritos de Paris, sendo a diferença mais impressionante o facto de ele, agora, misturar a economia e a filosofia enquanto, dantes, estas eram tratadas em separado. (Citando Lassalle, ele expôs isto como «um Hegel economista e um Ricardo socialista».) D e resto, a análise do poder laboral e do valor excedentário antecipa a exposição mais completa destas teorias em O Capitai Propõe, na primeira página, que o material de produção — «os indivíduos produzindo em sociedade» — deveriam constituir a base de qualquer inqué-

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rito sério à história económica. «O caçador ou o pescador individual e isolado, que constitui o p o n t o de partida de Smith, ou Ricardo, pertence ãs insípidas ilusões do século XVIII.» Os seres humanos são animais sociais, e a crença de que a «produção» começa com pioneiros solitários agindo de forma independente «é tão absurda como a ideia do desenvolvimento da linguagem sem indivíduos a viver juntos e a falar uns com os outros». Os subtítolos da introdução — A 'Relação Geral da Produção com Distribuição, Troca e Consumo, O Método da Economia Politica, etc. — dão a impressão de que se trata de um trabalho rigorosamente esquemático. Mas Marx nunca consegue cingir-se a um programa determinado durante muito tempo e, muito em breve, começa a entrar em digressões e rodeios pitorescos. N a suas notas quanto à relação entre a produção e o desenvolvimento geral da sociedade em qualquer altura dada, faz subitamente uma pausa para divagar sobre a persistente atracção dos artefactos culturais. Porque ainda damos valor ao Partenon, ou à Odisseia, muito embora a mitologia de onde provêm nos seja, agora, totalmente alheia? «É a perspectiva da natureza e das relações sociais que deram forma à arte e imaginação gregas possível na época das máquinas automáticas, caminhos-de-ferro e telégrafos? O n d e figura Vulcano em comparação com Roberts & Company? Júpiter em comparação com o pára-raios... É a Iliada compatível com a prensa tipográfica e até mesmo as máquinas de impressão? O canto, a recitação e as musas, bem como, por conseguinte, os requisitos indispensáveis da poesia épica, não desaparecem necessariamente com o aparecimento do tipógrafo?» Pelos vistos, não: Marx escrevia apenas uns anos antes de Alfred Tennyson ser laureado como poeta e de o seu Ulisses se tornar num dos poemas mais populares da nossa época. Porquê, então, a estética da Grécia antiga continua a ser não apenas uma fonte de prazer, mas também o padrão, ou modelo, aspirado por tantos artistas e escritores vitorianos? Excelente pergunta — mas a breve resposta de Marx mal lhe fez justiça. Embora nenhum homem possa tornar-se uma criança, escreveu, «não aprecia ele as maneiras naturais das crianças e não tem ele de se esforçar para reproduzir a verdade num plano mais elevado?» Similarmente, «porque não deveria exercer encanto a infância da sociedade humana, quando os mais belos feitos foram alcançados, como a época que nunca mais há-de voltar?»

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Talvez Marx estivesse a pensar nos seus jogos com as meninas em Hampstead Heath: no interior daquele corpo de 39 anos, prematuramente envelhecido, havia um adolescente a esbracejar e a pedir para sair. Por vezes, quando observava as crianças a brincar, ansiava juntar-se a elas para clarear o espírito de todas as misérias acumuladas. A maior dor de cabeça de todas era a que ele denominava «a merda económica». Já em 1845, tinha declarado que o seu tratado sobre economia política estava quase terminado, e no decorrer dos 13 anos seguintes embelezou e repetiu tantas vezes a mentira que as expectativas dos amigos atingiram um clímax impossível. A avaliar pelo tempo que demorou, raciocinaram eles, deve tratar-se realmente de um magnum opus explosivo que iria fazer desabar os edifícios, sem alicerces, do capitalismo — as torres que chegavam às nuvens, os magníficos palácios, os templos solenes, o próprio globo imenso — sem nada deixar de pé. Tal pretensão foi mantida através de boletins enviados regularmente de Londres a Manchester a confirmar os seu progressos na redacção da obra. «Demoli completamente a teoria do lucro como até agora tem sido formulada», informou triunfalmente a Engels, em Janeiro de 1858. Mas tudo o que ele tinha para mostrar depois de todos aqueles longos dia no Museu Britânico e noites ainda mais longas à secretária era uma pilha de livros de apontamentos por publicar cheios de garatujas redigidas ao acaso. A publicação no final daquele mês do novo livro de Ferdinand Lassalle sobre a filosofia de Heraclito — um calhamaço de dois volumes — fê-lo mais consciente da sua incapacidade em concluir o seu trabalho. C o m o tinha Lassalle, que se dizia Hder do socialismo alemão, arranjado tempo para terminar uma obra filosófica tão volumosa? Marx lidou com a sua consciência culpada depreciando o feito de Lassalle e assegurando a Engels que o livro sobre Heraclito era «uma confecção muito imbecü». É verdade que demonstrava grande erudição — mas «desde que uma pessoa tenha tempo e dinheiro, e, como n o caso do Sr. Lassalle, a possibilidade de lhe levarem a biblioteca da universidade de Bona a casa, é bastante fácu reunir uma tal quantidade de citações. Nota-se que ele se julga muito importante... Uma palavra em duas é uma asneira e extremamente pretensiosa».^'^ Lassalle era sete anos mais novo que Marx e embora tivessem muita coisa em c o m u m — eram ambos burgueses judeus alemães, desmamados de Heine e Hegel, com um fraco por mulheres aristocratas — , o contraste em termos de sorte era dolorosamente nítido. Quando ainda era estudante de

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filosofia, Lassalle tinha tomado vigorosamente a defesa da condessa Von Hatzfeldt que estava a contestar uma famosa acção de divórcio. Parecia uma heroína pouco provável da causa socialista, mas, para este jovem dogmático, a situação desesperada dela constituía a prova da velhacaria das classes altas: o conde roubara efectivamente o dote da mulher, mas, segundo as leis alemãs da altura, ela tinha poucas possibilidades de o reaver. Lassalle envolveu-se no caso com total desrespeito por questões legais — subornando testemunhas, sonegando documentos — até, após dez anos de dúzias de processos, o marido exausto acabou por devolver o p r o d u t o do saque. A recompensa que Lassalle recebeu fez a sua fortuna: instalou-se num palacete em Berlim decorado no mais exótico e luxuoso estilo; o seu camarote na ópera ficava ao lado do rei e em nada lhe era inferior. Até mesmo Bismark, que sabia reconhecer um h o m e m bem fadado logo que via um, vinha cumprimentá-lo. N ã o é portanto de admirar que alguns dos trabalhadores que Lassalle dizia representar não confiassem nas suas intenções — além de se mostrarem perplexos pelo apoio aparente que Marx lhe dava. N a Primavera de 1856, os comunistas de Düsseldorf enviaram um emissário a Londres, um certo G u s t a v Lewy, na esperança de convencer Marx a cortar relações com Lassalle. Durante um semana inteira, Lewy regalou o seu anfitrião com histórias sobre as traficâncias, oportunismo e ambição ditatorial de Lassalle. «Lassalle parece ver-se de uma maneira completamente diferente de como nós o vemos a ele», escreveu Marx a Engels imediatamente depois desse encontro. «Apesar dos meus preconceitos em favor de Lassalle e da minha desconfiança em relação aos mexericos dos trabalhadores, tudo isto causou uma profunda impressão sobre mim e Freiligrath. Disse porém a Lewy que era impossível chegar a uma conclusão baseando-me nas informações de um único lado.»^^ N ã o era c o m u m para Marx dar o benefício da dúvida a alguém, mas Lassalle não era qualquer um. Ficara muito impressionado pelo seu entusiasm o e ousadia quando se tinham encontrado pela primeira vez na Alemanha durante a revolução de 48 e, embora a sua amizade desde então fosse puramente epistolar, nada tinha ouvido que o fizesse rever a sua opinião. Talvez Lassalle fosse um tirano potencial, como Lewy o preveniu, um megalómano perigoso, pronto a esmagar os trabalhadores e a formar alianças com o absolutismo prussiano para conquistar o poder; mas tal nunca transparecera, conmdo, nas cartas que ele lhe tinha escrito. Até mesmo no apogeu da fama

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Lassalle manteve-se leal ao seu camarada indigente de Londres — louvando as suas ideias, encorajando-o a terminar o seu livro e enviando ocasionais doações. Deveria repudiar um benfeitor tão generoso simplesmente por causa de mexericos dos trabalhadores? O único conselho de Marx a Lewy e ao comunistas de Düsseldorf foi que «deveriam continuar a mantê-lo debaixo de olho e evitar, por enquanto, qualquer querela pública». Por volta da Primavera de 1858, Marx teve outro motivo para evitar «qualquer querela púbHca»: Lassalle propunha arranjar-lhe um contrato com um editor de Berlim, Franz Duncker (cuja mulher era amante de Lassalle). Embora dissesse mal do livro sobre Heraclito na sua correspondência privada com Engels, transmitia ao autor um veredicto completamente diferente: «Percorri atentamente o seu Heraclito. A sua reconstrução a partir de fragmentos é brilhante e fiquei igualmente impressionado pela perspicácia dos seus argumentos... Não compreendo como é que arranjou tempo no meio de todos os seus fazeres para conhecer tão bem a filologia grega.»^*" E, depois de dar estas pouco sinceras felicitações, descreve a estriitura do seu próprio trabalho em curso. «Estou presentemente a redigir uma crítica das categorias económicas ou, se preferir, a fazer uma exposição crítica do sistema da economia burguesa. .. A ser repartida em seis volumes: 1, O Capital (com alguns capítulos introdutórios); 2. A propriedade latifundiária; 3. A mão-de-obra; 4. O Estado; 5. O comércio internacional; 6. O mercado mundial.»^'' Marx desejava que esta obra fosse publicada em fascículos. O primeiro volume — sobre o capital, a competição e o crédito — estaria pronto para ser impresso em Maio, o segundo alguns meses mais tarde e assim sucessivamente. Os prazos eram bastante apertados e, como acontecia com frequência quando ele se sentia pressionado, o seu organismo revoltou-se. «Tenho andado tão doente esta semana por causa do fígado que me sinto incapaz de pensar, 1er, escrever ou fazer o que quer que seja», disse a Engels a de 2 de Abril. «O meu mal-estar é desastroso pois, até me sentir melhor e os dedos recuperarem a força, não consigo trabalhar no livro para Duncker.» E passou o resto do mês sem escrever uma linha. «Nunca tinha tido uma crise de fígado tão violenta. Cheguei a temer que se tratasse de esclerose... Sempre que me sento e escrevo um par de horas, tenho depois de ficar deitado durante dois dias.»

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Era um queixume famiUar. «Estamos tão acostumados a estas desculpas por o trabalho não ser concluído!», comentou Engels muitas vezes ao reler algumas das cartas de Marx. «Sempre que a sua saúde o impedia de continuar, ficava muito deprimido e tentava encontrar uma desculpa teórica para justificar o não cumprimento da tarefa que tinha entre mãos.»^^ Uma tal declaração assume que a saúde dele sabotava o seu trabalho, mas pode-se argumentar que o que se passava era exactamente o contrário. Embora as maleitas de Marx fossem autênticas, existia indubitavelmente um factor psicossomático. Como ele mesmo admitia, «a minha doença tem sempre origem no meu espírito».^''' N o Verão de 1851, quando começou a escrever regularmente para o New York Daily Tribune, sentiu-se imediatamente doente e suplicou a Engels que o substituísse. Uns meses mais tarde, quando Weydemeyer lhe pediu uma contribuição para o jornal que publicava. Die 'Revolution, ficou de cama uma semana. N o Verão de 1857, quando a pobreza o obrigou a trabalhar para a enciclopédia americana, teve problemas de fígado durante três semanas. E, agora, que LassaUe e Duncker lhe pediam o envio do manuscrito, qualquer pessoa que conhecesse Marx adivinharia a reacção dele. Jenny, por exemplo, não ficou nada surpreendida pelo repentino ataque de bílis. E m Abril de 1858, altura em que Marx estava tão doente que nem conseguia escrever uma carta, ela contou a Engels que «o facto de ele ter piorado deve-se, em grande parte, à sua inquietação mental que, agora, depois de ter assinado o contrato com o editor, é maior e aumenta todos os dias, pois sente-se incapaz de terminar o trabalho».^*^ Pouco depois, Marx passou uma semana em Manchester, onde Engels lhe receitou o seu remédio favorito: exercícios equestres. «O Mouro andou hoje a passear a cavalo durante duas horas», revelou Engels a Jenny num boletim médico, «e sente-se tão bem que está todo entusiasmado.»^^ Mas, assim que regressou à sua secretária em Grafton Terrace, todos as antigas ansiedades voltaram-lhe a cair em cima. Marx era muito irrequieto, sempre à procura de qualquer coisa ou a andar de um lado para o outro no seu gabinete. (Uma parte da carpete entre a porta e a janela estava tão bem assinalada como um atalho através de um prado.) Já em Agosto de 1846, quando a sua «merda económica» já deveria ter sido entregue a outro editor alemão, ele expMcou o atraso da seguinte maneira: «Como o manuscrito do primeiro volume está aqui a apanhar poeira há tanto tempo, não quero que seja publicado antes de o rever novamente tanto no que

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respeita o conteúdo como o estüo. Escusado será dizer que um escritor que trabalha constantemente não pode publicar, palavra por palavra, o que escreveu há seis meses.»^^ Muitos autores conhecem este síndrome — o temor de deixar finalmente um navio ser lançado à água sem lhe passar outra camada de tinta ou apertar mais uns parafiasos. No Verão de 1846, pensava que levaria cerca de seis meses para dar os retoquesfinais.«A versão revista do primeiro volume estará pronta para publicação no fim do mês de Novembro. O segundo volume, de natureza mais histórica, será entregue pouco tempo depois.» Uma década mais tarde, a arca de Marx ainda se encontra na doca seca. «Há já alguns meses que trabalho na fase final da minha economia poKtica», escreveu a Lassalle em fins de Fevereiro. «Mas avanço muito lentamente porque assim que me debruço sobre temas a que dediquei anos de estudo, novos aspectos que exigem uma maior reflexão começam a surgir.»^^ Enquanto faltasse uma fonte a consultar, ou um tratado a ser lido — o que estava sempre a acontecer —, não permitia que o manuscrito fosse entregue ao editor. E, claro está, tinha de debater-se contra os outros inimigos de promessas — a doença, a pobreza e os deveres domésticos. Eleanor adoeceu com tosse convulsa; Jenny estava «uma puha de nervos»; o talho, a casa de prego e demais credores exigiam pagamento. Como Marx brincava lugubremente, «não creio que ninguém tão teso tenha alguma vez escrito sobre dinheiro»^'^. A patinhar num charco de vexames, quase nada escreveu ao longo desse Verão; no final de Setembro, clamou que o manuscrito estaria pronto «em duas semanas, mas, um mês mais tarde», admitiu que «só daqui a várias semanas poderei mandá-lo»^^. Tudo parecia conspirar contra ele: a crise económica mundial, tão alegremente esperada, tinha-se desvanecido demasiado depressa e Marx, de «muito mau humor» por causa disso, sofria as consequências físicas previsíveis — «uma dor de dentes horrível e aftas em toda a boca».^^' Em meados de Novembro, seis meses depois do prazo previsto, o editor de Berlim começou a perguntar-se se o Hvro não seria uma quimera. Com enorme lata, Marx explicou a Lassalle que aquela delonga «devia-se simplesmente ao esforço para lhe entregar (a Duncker) um manuscrito de valor superior à soma que ele pagara». Como assim? «O que me preocupava era a forma. O estilo de tudo o que escrevera parecia-me influenciado pelas crises de fígado e eu tinha dois rríotivos para não querer que este trabalho fosse sabotado:

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1. É o resultado de 15 anos de investigação, os melhores anos da minha vida. 2. Trata-se de urna perspectiva importante das relações sociais que é aqui cientificamente exposta pela primeira vez. Devo, assim, ao Partido não deixar que, por razões de saúde, o estilo do meu trabalho seja desfigurado... Comecei agora mesmo a escrevê-lo e deve estar terminado dentro de quatro semanas.»^^ Só agora começava! Isto deve ter causado um choque bastante grande a Lassalle e a Duncker, os quais tinham sido informados por Marx, em Fevereiro, que o texto estava na «fase final». N o entanto, se a obra fosse realmente tão densa e profunda como Marx assegurava, valia a pena esperar. A medida que o Natal se aproximava, a casa de Grafton Terrace parecia cada vez mais desoladora. Ocupada a copiar o manuscrito de Karl entre idas à casa de prego e respostas às cartas dos credores que chegavam diariamente, Jenny não tinha tempo para organizar uma festa para as crianças. «A minha mulher tem razão quando diz que, depois de toda a misère por que teve de passar, a revolução ainda há-de tornar as coisas piores e dar-lhe a satisfação de ver todos os charlatães daqui a celebrar novamente a vitória», observou Marx. «As mulheres são assim, 38 ; O livro ficou pronto em finais de Janeiro — mas ele não rinha u m tostão para os selos nem para o seguro. Após ter arranjado as duas libras necessárias, Engels foi recompensado por uma espantosa e horrível notícia: «O manuscrito tem cerca de 192 páginas e — não te incomodes por isso — embora se intitule Capital, nada ainda é mencionado sobre esse tópico.»-''' Engels deve ter suspeitado que se passava qualquer coisa: de forma pouco característica, Marx tinha recusado mostrar-lhe o que quer que fosse do trabalho em curso. Depois de tantos anos de gabarolice, era u m grande desapontamento. A montanha tinha parido um rato. Metade deste modesto volume pouco mais era do que um resumo crítico das teorias de outros economistas, e a única parte com algum interesse era um prefácio autobiográfico descrevendo como ele tinha chegado à conclusão de que «a anatomia da sociedade civil se encontra na economia poKtica», através da leitura de Hegel e os anos que passara como jornalista no Rheinische Zeitung. «O resultado geral a que cheguei e que serviu de fio condutor para os meus estudos, pode ser brevemente formulado como se segue. N a pro-

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dução social da sua vida, os homens entraram em relações determinadas que são indispensáveis e independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma fase definida de desenvolvimento das suas forças materiais de produção. A soma total destas relações constitui a estrutura económica da sociedade, a verdadeira base sobre a qual a superstrutura legal e política é construída e à qual correspondem formas precisas da consciência social. O m o d o de produção da vida material condiciona o processo social, poHtico e intelectual em geral. N ã o é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser social que determina a sua consciência.»^«

A uma dada fase de desenvolvimentos, estas «relações materiais» tornam-se intoleravelmente restritivas e inicia-se, deste modo, uma época de revolução social na qual toda a imensa «superstrutura» da consciência — legal, política, religiosa e estética — se funde tão rapidamente como flocos de neve numa manhã invernosa de sol. Isso tinha acontecido em todos os modos de produção anteriores, do asiático ao feudal, e também seria certamente o destino da tirania burguesa moderna. Mas havia uma diferença: «As relações burguesas de produção são a última forma antagónica do processo social de produção — antagónica não n o sentido de antagonismo individual mas resultante das condições sociais da vida dos indivíduos; ao mesmo tempo, as forças produtivas que se desenvolvem no útero da sociedade burguesa criam as condições materiais para a solução desse antagonismo. Esta formação social põe fim, por conseguinte, à pré-história da sociedade humana.» U m «por conseguinte» bastante extravagante, diga-se de passagem. Só estes parágrafos deram azo a uma inteira indústria de controvérsia, na qual filósofos marxistas discutem uns com os outros sobre o significado preciso de «base e superstrutura», enquanto os cépticos se perguntam porquê o capitalismo vitoriano deve necessariamente ser a última forma de produção antagonista antes do aparecimento de um estado de nirvana comunista. N ã o pode a sociedade burguesa transformar-se simplesmente numa versão mais contrastada, embora mais subtil, de si mesma, com instrumentos de tortura mais sofisticados e justificações mais persuasivas para a sua hegemonia? Uma Contribuiçãopara a Crítica da Hconomia Política, como Marx lhe chamou, dava muito que pensar — mas pouco para satisfazer a fome dos seus admiradores. A data de publicação aproximava-se e ele continuava a apregoar que o livro seria admirado e traduzido em todo o mundo civilizado. Mas o seu

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organismo não se deixou enganar: em meados de Julho de 1859, pouco depois das provas finais terem chegado a Londres, foi «contaminado por uma espécie de cólera devido ao calor e vomitava de manhã à noite»'*^ N ã o era de admirar. A reacção dos amigos, quando, finalmente, tiveram a oportunidade de 1er a obra há tanto tempo prometida, foi de consternação. E Wilhelm Liebknecht chegou a afirmar que «nunca um livro o tinha desapontado tanto». N ã o houve publicidade e as críticas foram poucas: a bomba explosiva não passava de um foguete. «A secreta esperança que todos nós alimentámos em relação ao Uvro de Karl foi reduzida a nada pela conspiração de silêncio dos alemães, o qual só foi quebrado por um par de miseráveis artigos à&feuilleton que se Umitaram a falar do prefácio e a ignorar o conteúdo do Hvro» queixou-se Jenny no fim do ano. «Esperemos que o segundo volume desperte os críticos da sua letargia.. .»"^^ Ah, pois... o segundo volume — devido poucos meses depois do primeiro ou, pelo menos, assim tinha prometido o autor. Marx ajustou ligeiramente os prazos, impondo o mês de Dezembro de 1859 como «data-limite» para completar a sua tese sobre o capital, tópico que fora tão excentricamente omitido do primeiro volume. Aqueles que conheciam os hábitos de trabalho de Marx teriam imediatamente predito que ele não cumpriria o plano — e, claro está, durante o ano seguinte os seus Uvros de apontamentos sobre economia permaneceram fechados em cima da secretária, enquanto ele se distraía com uma espectacular e fútil disputa contra um certo Karl Vogt, professor de Ciências Naturais na Universidade de Berna. A causa deste absurdo interludio foi uma observação acidental proferida pelo escritor radical Karl Blind que participava, juntamente com Marx, numa manifestação anti-russa organizada pelos urquhartistas em Maio de 1859. Assim que dois ou três socialistas alemães se juntavam, era quase certo que começavam logo a falar mal de outros refugiados e, nessa ocasião, BHnd mencionou que Karl Vogt — antigo membro liberal da assembleia de Frankfurt agora exilado na Suíça — andava a receber dinheiro de Napoleão III às escondidas. Como Vogt tinha recentemente escrito um panfleto político favorável à causa bonapartista, Marx achou este mexerico suficientemente interessante para o passar ao jornalista Elard Biskamp, o qual o publicou prontamente no seu novo semanário londrino. Das Volk. Entretanto, Blind escreveu u m folheto a n ó n i m o repetindo a acusação que foi transcrito n o Augsburg

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Allgemeine Zeitung, um respeitável jornal alemão. Vogt, assumindo erroneamente que Marx era o autor, processou o jornal — enquanto o h o m e m responsável por aquela confusão. Blind, entrou em pânico e recusou testemunhar, dizendo que o folheto nada tinha a ver com ele. Embora o caso fosse arquivado, Vogt reivindicou uma vitória moral, pois a defesa não conseguira provar as suas alegações. (Documentos encontrados nos arquivos franceses anos mais tarde provavam que ele tinha de facto recebido dinheiro de Bonaparte.) Isto podia ter ficado por aqui, mas Vogt decidiu vangloriar-se do seu sucesso num pequeno livro intitulado Mein Process gegen die Allgemeine Zeitung (O Meu Processo Jurídico contra o Allgemeine Zeitung, no qual denunciava Marx como sendo um charlatão revolucionario que explorava os trabalhadores e se dava com a aristocracia. E também o identificava como líder de um «bando de Brimstone», que chantageava os comunistas alemães ameaçando-os denunciá-los se não lhes dessem dinheiro. As inúmeras páginas de provas a apoiar as suas acusações incluíam uma carta particularmente importuna de Gustav Techow, ex-oficial da campanha de Baden, que descrevia uma reunião da Liga Comunista pouco depois da sua chegada a Londres em 1850: «Primeiro bebemos vinho do Porto, depois clarete (Bordeaux unto) e, a seguir, champanhe. Depois do vinho tinto, ele (Marx) ficou completamente embriagado. Era exactamente o que eu queria, pois ele estaria, assim, mais aberto. Fui elucidado sobre muitas coisas, as quais, até ali, tinham sidomeras suposições. Apesar do seu estado, Marx dominou a conversa até ao último momento. Deu-me a impressão de não só possuir rara superioridade intelectual como também uma personalidade fora de comum. Se tivesse tanto coração quanto intelecto e tanto amor quanto ódio, estaria disposto a sacrificar-me por ele. E isto apesar de, por vezes, me ter dado a entender que sentia desprezo por mim, o que acabou por manifestar abertamente no fim. É o primeiro e o único entre todos nós a demonstrar capacidade de liderança, mas, ao tratar de assuntos importantes, perde tempo com ninharias. Dado os nossos objectivos, lamento que este homem, possuidor de um grande intelecto, não tenha nobreza de alma. Estou convencido de que a sua perigosa ambição pessoal devorou tudo o que havia de b o m nele. Assim como se ri dos comunistas à la Willich e da burguesia, troça

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igualmente dos imbecis que repetem o seu catecismo proletário. As únicas pessoas que respeita são o aristocratas, os genuínos, aqueles que têm consciência de o ser, e moldou o seu sistema aos interesses do proletariado, porque só neles encontra apoio para os expulsar do Governo. Fui-me embora com a impressão de que a finalidade de todos os seus esforços era adquirir poder pessoal. Engels e os seus velhos associados, apesar dos seus inúmeros talentos, não lhe chegam aos calcanhares. E se, um dia, eles ousassem esquecer-se disso, Marx pô-los-ia imediatamente no seu lugar com um descaramento digno de Napoleão.»'*^ Apesar de alguns críticos modernos acharem este retrato «mais do que credível», como aconteceu com Karl Vogt, trata-se de uma caricatura grosseira. Marx pode ter-se sentido orgulhoso da nobreza nata de Jenny, mas não existem provas de que ele admirasse a aristocracia como classe social. Tinha mais respeito pela burguesia, como o provou no Manifesto Comunista com a Krica celebração dos feitos progressistas do capitalismo. E a representação de Engels como mero subordinado é ridícula. N o entanto, a descrição do estilo dominador de Marx é suficientemente verosímil para prejudicar a sua reputação. O livro de Vogt alcançou imediatamente um grande sucesso na Alemanha, mas era difícil de encontrar em Londres. Durante algumas semanas, Marx dependeu do que se contava sobre a «horrível virulência» e «calúnias absurdas» incluídas nas suas páginas. «Escusado será dizer que ocultei este assunto mesquinho da minha mulher», apressou-se a avisar Engels. «Mas ela depressa se deu conta de tudo.» E m fins de Janeiro de 1860, o National-Zeitung de Berlim publicou um longo artigo sobre a acusação de Vogt, confirmando a suspeita de Marx que ele «está obviamente a tentar fazer-me passar por um canalha burguês insignificante e velhaco»; e iniciou um processo por difamação contra o jornal. Quando o Hvro chegou a 13 de Fevereiro, encontrou «apenas merda, pura trampa». Defender a sua honra iria ser dispendioso. Só os selos custaram várias libras, pois enviou dúzias de cartas a convidar vários camaradas — alguns dos quais não via desde 1848 — para servir de testemunhas da sua idoneidade moral. Teve de dar u m sinal de 15 táleres a u m advogado de Berlim, J. M. Weber, que tinha contratado, e pagar a um funcionário da Embaixada austríaca, «esse filho da mãe do Zimmerman», que tratara da procuração a Weber. «Deves ter percebido pelo o que disse antes que fiquei sem um tos-

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tão», disse a Engels. Chegou a pedir uma libra emprestada ao padeiro — gesto saborosamente irónico da parte de um h o m e m refutando a insinuação que ele explorava os trabalhadores. O processo poderia não lhe ter custado nada se, em vez de intentar um processo particular por difamação, ele tivesse utilizados os serviços do procurador prussiano, mas Marx duvidava que esse cavalheiro «mostrasse um zelo especial na defesa da honra do meu nome». E tinha toda a razão: sem Marx ter conhecimento, o advogado dele tinha tentado essa abordagem e fora informado que o caso não servia nenhum interesse púbuco. Tentou levar a cabo um processo civil, mas isso foi igualmente rejeitado (a 5 de Junho de 1860) pois, segundo a decisão do tribunal, os artigos do Natíonal-Zeitungm&o excediam os limites da crítica legítima» e não tinham «a intenção de insultar». («Como a história do turco que cortou a cabeça de um grego sem intenção de o magoar», resmungou Marx). Muito bem: haveria então de encontrar outra maneira de se vingar. A única surpresa é que ele não tenha desafiado Voigt para um duelo: ou foi o preço da viagem à Suíça que o dissuadiu ou, então, começava a sentir o peso da idade. Refugiou-se no seu gabinete e redigiu um vociferante contra-ataque que, tanto em tamanho quanto em ferocidade, excedia de longe o panfleto original ao qual pretendia responder. «Taco a taco, as represálias fazem o mundo andar à volta!», trauteava alegremente dando livre curso ao seu sarcasmo ao longo de mais de 300 páginas. Ora Vogt era um Cícero a preço reduzido, ora não passava de um Falstaff sem humor. Era um palhaço, um fala barato, um cão de circo, mas, sobretudo, um texugo — «o qual tem apenas uma maneira para se defender nos momentos de perigo: um odor nauseabundo». Todos os que tinham alguma vez ajudado ou encorajado o infame Vogt eram tratados do mesmo modo. Vários baldes fumegantes de insultos escatológicos foram vertidos sobre um jornal londrino que tinha publicado os artigos do Natíonal-Zeitung: «Por meio de um engenhoso sistema de canalização, todas as retretes de Londres vertem os detritos físicos no Tamisa. Empregando o mesmo método, a capital do mundo vomita os seus detritos sociais através de um sistema de penas de ganso para uma grande cloaca de papel — o Daily Telegraph... A entrada do esgoto, estão escritas as seguintes palavras em cores sombrias: Hk quisquam faxit oletuml, as quais Byron traduziu poeticamente, "Caminhante, pára e... mijal'V"*

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Quando Marx se encontrava neste estado de espírito, não havia maneira de o deter. Joseph Moses Levy, o director do Telegraph, foi sujeito a muitas páginas de sarcasmos anti-semitas e de mau gosto por ter mudado a ortografia do seu apelido, Levi. «Levy está decidido a ser anglo-saxão e, por conseguinte, ataca a política pouco inglesa do Sr. Disraeli pelo menos uma vez por mês, pois Disraeli, «o mistério asiático», não tem, ao contrário do Telegraph, ascendência anglo-saxónica. Mas o que é que Levy lucra em atacar o Sr. Disraeli e em mudar o
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de costume, ficou decepcionado. Herr Fög/foi recebido a 1 de Dezembro de 1860 com tão poucos aplausos e fanfarras como a Economía Crítica. Consolou-se da maneira habitual. «Uma circunstancia que me ajudou imenso foi ter uma grande dor de dentes», escreveu a Engels na semana em que o Uvro foi pubMcado. «O dente foi arrancado anteontem. O dentista (que se chama Gabriel) extraiu a raiz, magoando-me multo, mas deixou um bocado do dente; e, agora, tenho o rosto todo dorido e inchado. Esta pressão física contribui para eu deixar de pensar e poder abstrair pois, c o m o diz Hegel, puro pensamento, ou puro ser, ou nada, é uma e a mesma coisa.»"^^ Esta anestesia mental era mais necessária do que nunca; à parte o seu desapontamento pelo insucesso de ¥íerr Vogt, também a mulher tinha sido atacada pela varíola há duas semanas. Enquanto Marx e Helene tratavam da inválida, as filhas foram para casa dos Liebknecht durante um mês — embora viessem às vezes espreitar a mãe pela janela a fim de que esta pudesse, ao menos, vê-las da cama. «As pobres crianças estão muito assustadas», disse Marx a Engels. O médico, o Dr. Allen, explicou que, se Jenny já não tivesse sido vacinada duas vezes, teria sucumbido; e a descrição que ela mesma fez numa carta a Louise Weydemeyer confirma que a sua vida tinha corrido graves riscos: «A varíola tomou proporções horrorosas e eu sentia-me cada hora mais doente. Sofria imenso. Dores a queimadura no rosto, insónias e ansiedade mortal quanto a Karl, que cuidava de mim com o maior carinho, e, finalmente, a perda de todas as minhas faculdades exteriores, enquanto as interiores — a consciência — permaneciam enubladas. Passei todo o tempo deitada junto a uma janela aberta para que o ar frio de Novembro me arejasse, com as chamas do inferno na lareira e gelo nos lábios a arder entre os quais me deitavam de vez em quando umas gotas de clarete. Mal conseguia engolir, ouvia cada vez menos e, finalmente, os meus olhos fecharam-se e eu não sabia se não iria ficar para sempre envolta naquela escuridãq. Quando, por fim, as minhas filhas foram autorizadas a regressar a casa na véspera do Natal, desataram a chorar ao ver a sua mãe adorada. Há cinco semanas, ela era uma mulher de 46 anos bem conservada e sem um cabelo branco; comparada à frescura das filhas, não tinha muito mau aspecto. Mas, agora, tinha o rosto desfigurado por cicatrizes e uma tez vermelha arroxeada. Via-se como um hipopótamo, ou um rinoceronte,

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e o seu lugar era mais num jardim zoológico do que no seio da raça caucasiana. Entretanto, o marido, ansioso e exausto, padecia mais uma vez do fígado; e, depois, havia o problema de como pagar as exorbitantes consultas médicas, pois há mais de um mês que não arranjava emprego. A única coisa agradável que nos aconteceu naquele triste Natal foi a prenda do Engels de umas garrafas de vinho do Porto que a Jenny achou ser um remédio muito eficaz. Mas até mesmo isto foi negado ao Karl, cujo médico lhe tinha imposto uma rigorosa dieta de limonada e óleo de fígado de bacalhau.'"' «Estou a ser tão atormentado como Job», gemeu ele. «Apesar de não ser tão temente a Deus.>/^ Segundo todas as leis da aerodinâmica, o zangão não deveria ser capaz de voar. Marx possuía um talento semelhante que desafiava a gravidade: quando estava a ponto de cair sob o peso da desgraça, chegaram notícias da Alemanha que o mantiveram no ar. A 12 de Janeiro de 1861, o novo rei da Prússia, Guilherme I, celebrou a sua coroação proclamando a amnistia de todos os refugiados políticos e dando, assim, a Marx a esperança de poder recuperar a sua cidadania há tanto tempo perdida; uma semana mais tarde. Lassalle propôs que Marx e Engels regressassem à pátria para pubMc^r um novo «órgão do partido» nos moldes do Neue Rheinische Zeitung. Apesar de Marx não ter nenhuma fé no projecto e declarar que «a maré na Alemanha ainda não subiu o suficiente para suportar o nosso barco», deixou-se contudo tentar — especialmente quando soube que a condessa Von Hatzfeldt investira 300 000 táleres no jornal. Agora que o New York Daily Tribune tinha-o mais ou menos abandonado por causa da Guerra da Secessão, precisava de uma fonte de rendimentos mais desesperadamente do que nunca. A proposta de Lassalle justificava, pelo menos, uma viagem de reconhecimento imediata. Viajando com u m passaporte falso e dinheiro que Lassalle lhe emprestou, partiu para a Alemanha n o fim de Fevereiro — parando em Zaltbommel, na Holanda, onde o tio. Lion Philips, lhe passou um adiantamento de 160 libras sobre a herança que receberia quando Henriette Marx esticasse o pernil. Lassalle e a condessa receberam faustosamente Marx durante a sua estada de um mês em Berlim — mostrando, assim, que não o conheciam lá muito bem, pois a última coisa que um antimonárquico deseja é ser tratado como um rei. Levaram-no, uma noite, a ver uma nova comédia à glória da Prússia que ele detestou. N a noite seguinte, foi à ópera, e obrigado a assis-

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tir a um hallet («mortalmente chato») durante três horas num camarote a poucos metros do rei Guilherme em pessoa. N o decorrer de um jantar em sua honra, a que um enxame de celebridades foi convidado, Marx ficou sentado ao lado da editora literária Ludmilla As sing («a criatura mais feia que jamais vi na vida»), que passou a noite a namoriscar com ele — «eternamente a sorrir e a fazer esgares, sempre a falar em prosa poética, tentando constantemente dizer qualquer coisa de extraordinário, fingindo-se entusiasmada e, no transe dos seus êxtases, lançando perdigotos para cima do seu ouvinte».'*^ Após ter sido sujeito à intolerável hospitalidade de Lassalle durante um mês, Marx uivava de tédio. «Sou tratado como uma espécie de leão e forçado a conhecer uma data de "inteligências" profissionais, tanto homens como mulheres», escreveu ao poeta alemão Cari Siebel, amigo de Engels. «É horrível.» O único motivo para prolongar aquela estopada era que tinha de aguardar uma decisão quanto ao seu pedido de cidadania, o qual Lassalle tinha entregue em pessoa ao chefe da poKcia prussiana. A resposta chegou a 10 de Abril. Como Marx tinha voluntariamente rejeitado os seus direitos de cidadão prussiano em 1845, «era considerado estrangeiro», não podendo, por conseguinte, usufruir da amnistia real. A condessa supHcou-lhe que ficasse para mais jantares e divertissements. «É então assim que nos agradece a amizade que lhe temos demonstrado», raIhou-lhe. «Agora que tratou dos seus assuntos, vai já partir de BerHm.» Mas não suportava mais aquele lugar: a presença de homens fardados e mulheres literatas faziam-no sentir-se extremamente inconfortável. Caso uma pessoa não fosse obrigada a viver na Alemanha, decidiu, o país era muito bonito. «Se fosse livre e se, além disso, não fosse importunado por uma coisa chamada "consciência poiïtica", nunca trocaria a Inglaterra pela Alemanha, sobretudo a Prússia, nem muito menos por Berlim.»'*'' Também Jenny se opunha veementemente a mais mudanças. Enquanto Marx estava ausente, ela confiou a Engels: «Sinto poucas saudades da pátria, dos «caros» alemães tão dignos de confiança, essa mater dolorosa de poetas. Q u a n t o às minhas filhas, só a ideia de abandonar o país do seu querido Shakespeare põem-nas doentes; tornaram-se inglesas de gema e agarram-se ao solo da Inglaterra como lapas.»^" E, além do mais, Jenny não desejava ver as filhas cair sob a influência do estonteante «círculo de Hatzfeldt». O próprio Marx gostava da condessa — «senhora distinta, nada literata, com grande intelecto natural e muita vivacidade. Está profundamente interessada no movimento revolucionário e tem uma atitude aristocrática muito

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superior às caretas pedantes das "sabichonas" profissionais»^' — e isto apesar de usar demasiada maquilhagem para ocultar a idade e os estragos do tempo. Para ele, o principal argumento para não aceitar um emprego em Berlim era não querer ser colega, nem vizinho, de Ferdinand LassaUe. E m mais de dez anos de correspondência regular, não tinha conseguido detectar a vaidade e a incipiente megalomania do indivíduo, mas, após ter passado um mês com ele debaixo do mesmo tecto, compreendeu porquê os comunistas de Düsseldorf tinham tentado preveni-lo. Nas suas cartas a Engels, LassaUe passou a ser alcunhado Lábaro, Barão Ii^ ou o Preto Judeu. Este último epíteto começou por brincadeira; embora LassaUe fosse, de facto, escuro — como, aUás, Marx — não tinha sangue negro, mas Marx repetiu a graça tantas vezes que acabou por acreditar nela: «Parece-me, agora, óbvio — como a forma da cabeça e a maneira do cabelo dele crescer atestam — que ele descende dos negros que acompanharam a fuga de Moisés do Egipto (a não ser que a mãe ou avô paterno, se tenha cruzado com um preto)», escreveu. «Essa mistura de judeu e alemão, por um lado, e a origem negroide por outro, tem inevitavelmente de dar origem a um produto pecuUar. O seu carácter importuno também é de preto.»^^ A exemplo dos seus comentários a propósito do nariz do Sr. Levy, director do Daily Telegraph, deve-se assumir que, na época, isto tinha piada. A viagem à Alemanha não foi totalmente improdutiva: antes de abandonar o país, Marx passou dois dias em Trier com a mãe, a qual recompensou esta rara manifestação de solicitude fUial anulando várias das suas dívidas para com ela. Marx regressou assim a Londres a 29 de Abril com 160 Ubras do tio Lion e o bolso cheio de vales rasgados. E m meados de Junho, contudo, estava novamente a pedir dinheiro emprestado a Engels. «O facto de eu ter já gasto o que trouxe não te há-de surpreende»), escreveu-lhe, «pois, além das dívidas contraídas por causa da viagem, há quase quatro meses que não ganho nada. Só a escola e o médico me custaram 40 Ubras»-^^. Voltou, dentro de p o u c o tempo, aos velhos subterfúgios e medidas de emergência. Sempre que o senhorio vinha cobrar a renda, Jenny expUcava-lhe que Karl se encontrava ausente em viagem de negócios — quando, na realidade, ele estava escondido n o andar de cima — e mandava-o embora de mãos a abanar. Foram de novo obrigados penhorar coisas, incluindo as roupas das filhas «até às botas e sapatos». Durante o Inverno de 1861-62, Jennycòen esteve continuamente doente e Marx deduziu que, aos 17 anos, «ela já tinha idade para sentir a pressão e o estigma das nossas circunstâncias, e acho que

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é isso que a indispõe fisicamente.» Engels enviou-lhe imediatamente o seu medicamente patenteado para «sangue fraco» — oito garrafas de clarete, quatro de vinho branco do Reno e dez de sherry — , que lhe levantou o ânimo, mas não produziu efeito no seu corpo emaciado. O estado de espírito em casa de Marx tornou-se ainda mais deprimente no Verãode 1862 enquanto Londres festejava a segunda Grande Exposição, uma gabarolice de orgulho e feitos vitorianos. «O desejo diário da minha mulher é estar, juntamente com as filhas, na sepultura, e eu sinceramente não a culpo, pois as humilhações e tormentos por que temos de passar na presente situação são indescritíveis», escreveu. «Sinto ainda mais pena das infelizes crianças por isto acontecer durante a Exposição. Todas as amigas delas se divertem, enquanto elas passam os dias receosas que alguém as venha visitar e se dê conta da miséria em que vivem... Ainda bem que ninguém me vem ver.» Mas enganou-se. Três semanas mais tarde, estando o Barão I^^ Lassalle na cidade, para ver as maravuhas industriais exibidas em Hyde Park, veio bater-lhe à porta. Era uma altura odiosamente inoportuna, mas Marx sentiu-se n o dever de lhe retribuir a hospitalidade que aceitara — embora sem prazer — o ano anterior em Berlim. T u d o o que não estava pregado às paredes ou aparafusado ao chão foi parar à casa de prego e, no decorrer das três semanas seguinte. Lassalle representou o papel do convidado vindo dos infernos — comendo e bebendo como u m glutão esfomeado enquanto falava pelos cotovelos dos seus talentos e ambições sem limites. Apesar de saber que Marx já não recebia dinheiro do New York Daily Tribune, Lassalle mostrou-se espantosamente insensível em relação à sua situação económica; gabou-se de ter perdido cem Hbras em especulações na Bolsa, como se fosse uma ninharia, e gastou mais de uma libra por dia em táxis e charutos sem nada oferecer aos seus anfitriões. E teve a insolência de pedir a Karl e a Jenny que lhe cedessem uma das filhas adolescentes para fazer companhia à la Hatzfeldt — uma espécie de aia de luxo. «O tipo tem-me feito perder imenso tempo», anotou Marx na terceira semana daquela aflição. «E, ainda por cima, essa besta ousou dizer-me que, como eu não tinha agora nenhum "assunto" a tratar e andava apenas a fazer um "trabalho teórico", poderia passar tempo com ele!» Toda a família tinha agora de acompanhar LassaMe nos seus passeios por Londres — e até mais longe, a Windsor e Virginia Water — e ouvir os seus intermináveis monólogos. Ao admirar a Pedra da Roseta, no Museu Britânico, ele virou-se para Marx e

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perguntou: «Acha que eu deva passar seis meses a estudar isto para criar nome como egiptólogo?» Se Marx não estivesse tão furioso com «este oportunista carregado com sacos de dinheiro», talvez achasse aquilo divertido. «Desde a última vez que o vi, há um ano, que ele enlouqueceu», disse a Engels. E, agora, não somente se julga o maior erudito, o pensador mais profundo, o cientista mais brilhante e assim por diante, como também u m D.Juan e um cardeal Richelieu revolucionário. Acrescente-se a isto o pairar incessante em voz estridente, os gestos histriónicos e poucos estéticos, e o tom dogmático!»^^ U m dia. Lassalle revelou o «profundo segredo» que os libertadores italianos, Manzini e Garibaldi, a exemplo do Governo prussiano, eram piões dirigidos pelas suas mãos. Incapazes de se conter, Karl e Jenny começaram a arreliá-lo por causa daquelas fantasias napoleónicas e, então, o Messias alemão perdeu a cabeça e desatou a gritar que Marx era demasiado «abstracto» para perceber a realidade da política. Depois de LassaUe se ter ido deitar, Marx desapareceu no seu gabinete para escrever outra carta a Engels em que troçava das características «negroides» do seu convidado. O relato de Jenny da invasão de LassaUe é menos rancoroso e mais bem humorado: «Ele era quase esmagado pelo peso da fama que adquirira como erudito, pensador, poeta e político. A coroa de louros que lhe cingia a fronte oKmpica e a divina cabeleira ou antes, a sua carapinha de negro, ainda estava fresca. Tinha acabado de sair vencedor da campanha na Itália — um novo golpe poKtico estava a ser planeado por outros homens de acção notáveis — e batalhas sangrentas destroçavam-lhe a alma. Ainda havia campos da ciência a ser explorados! Os segredos da egiptologia aguardavam-no: "Deveria eu causar o espanto do mundo como egiptólogo ou demonstrar a minha versatilidade como homem de acção, poHtico ou militar?" Era um dilema esplêndido. Hesitava entre os pensamentos e sentimentos do coração e exprimia com frequência esse debate em tons realmente estrondosos. Como transportado pelas asas do vento, caminhava pela nossa casa gesticulando e perorando em voz tão alta e estridente que os vizinhos ficavam assustados e perguntavam o que é que estava a acontecer. Era o debate interior do "grande" homem a jorrar desordenadamente.»^'' Só quando já estava de partida, a 4 de Agosto, é que LassaUe se deu conta da situação desesperada de Marx — como não podia deixar de ser, pois o

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senhorio e outros credores tinham escolhido aquele preciso momento para vir bater à porta e ameaçar chamar a poKcia. Mas, mesmo assim, a sua generosidade foi bastante limitada. Prontificou-se a emprestar 15 libras a Marx a curto prazo, mas só depois de Engels prometer servir de fiador. N o s dois meses seguintes, Lassalle fez tanto rebuliço a propósito deste insignificante empréstimo — insistindo para que Engels assinasse um compromisso e se marcasse uma data de pagamento — , que Max lamentou ter aceite o dinheiro. Após uma furiosa troca de correspondência, contudo, ele apresentou uma meia desculpa. «Vamo-nos zangar por causa disto?... Espero que, apesar disto tudo, as nossas relações continuem como eram dantes.»^^ Era um h o m e m sentado num barril de pólvora, um infeliz desesperado à beira do suicídio: não era isto suficiente para desculpar a sua ingratidão? Lassalle deu como pretexto «motivos financeiros» para o fim da relação, mas as diferenças políticas entre os dois homens teriam, de qualquer modo, provocado uma ruptura dentro de pouco tempo. Lasalle tinha um respeito hegeliano pelo poderio do Estado prussiano e, agora, defendia a cooperação entre a antiga classe dirigentej>/«/èí?r (representada por Bismark) e o novo proletariado industrial (representado, claro está, por ele mesmo) para fazer frente às aspirações políticas da burguesia liberal. E m Junho de 1863, duas semanas após a fundação da Associação dos Trabalhadores Alemães, Lassalle escreveu ao Chanceler de Ferro gabando-se do poder absoluto que tinha sobre os seus membros, «facto que talvez lhe cause inveja! Isto há-de certamente convencê-lo de que a classe operária, uma vez convencida de que a ditadura servirá os seus interesses, se sente instintivamente atraída por ela. E como por conseguinte estaria inclinada, como lhe disse recentemente, apesar de todos os sentimentos repubUcanos — ou, talvez, a esse título — a ver a Coroa como portadora natural da ditadura social, em contraste com o egoísmo da sociedade burguesa»^*^. (Esta carta desmente a reivindicação de um dos biógrafos de Marx, Fritz J. Reddatz, que «a famosa conspiração com Bismark nunca existiu».) O que os trabalhadores queriam não era u m a monarquia criada pela burguesia, como a de Luís Filipe em França, mas uma «monarquia que ainda se ergue moldada na sua massa original e de espada empunho...» É de perguntar se o rei prussiano se sentiria Lisonjeado por esta estranha imagem de uma baguette à espadeirada. Talvez não: apesar da sua exuberante fidelidade, Lassalle encarava a possibilidade de um triunvirato formado pelo rei Guilherme, Bismark e ele mesmo. E, logo que a classe média fosse

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posta no seu lugar pela força, deixaria de necessitar dos dois socios. Este plano ditatorial, excelentemente descrito como «cesarismo social», era anátema para Marx — e tanto mais irritante porque a sua retórica plagiava insolentemente muitas passagens do Manifesto Comunista, às quais Lassalle tinha acrescentado comentários reaccionários para proveito próprio. Ele era o Mestre, o Redentor, o Herói a Cavalo. Já aos 20 anos, num «Manifesto de Guerra Contra o Mundo», o seu egoísmo melodramático tinha-se revelado inesgotável: «Para mim, todos os meios são iguais; nada é sagrado ao ponto de me fazer recuar; e ganhei o direito do tigre, o direito de dilacerar... E n quanto tiver poder sobre a mente de um indivíduo, hei-de abusar sem piedade.. . Só força de vontade da cabeça aos pés.» Se ele não tivesse existido, Nietzsche tê-lo-ia inventado. Era nesse estado de espírito que vivia—e viria a morrer. E m 1864, Lassalle enamorou-se de uma bela jovem com cabelos à Ticiano chamada Helene von Dönniges, prometida a um certo Janko von Rakowitz, príncipe romeno. O pobre noivo desafiou o super-herói para um duelo à pistola e acertou-lhe fatalmente na barriga. LassaUe nem sequer apontou a arma contra ele, Hmitando-se a sorrir enigmaticamente enquanto o rival fazia pontaria. Teria acabado por acreditar na sua invencibilidade? O u tinha decidido que uma morte prematura e romântica lhe garantiria fama imortal? Foi tudo um grande mistério. Como Engels comentou: «Uma coisa destas só podia ter acontecido a Lassalle. Era um homem com uma estranha e única mistura de frivolidade e sentimentalidade, cavalheirismo e características judaicas.»^' A notícia perturbou Marx mais do que ele esperava. O que quer que pudesse ter sido, Lassalle era «o inimigo dos nossos inimigos», um da velha guarda dos quarante-huitards. «Só Deus sabe como as nossas fileiras estão a ser reduzidas e não há reforços à vista.»*^" Ofereceu à condessa Von Hatzfeldt a consolação de que, pelo menos, «ele morreu jovem, num período de triunfo, como Aquiles».''^ E m tais circunstância, foi um tributo generoso. Dois anos antes, Marx quase se tinha arruinado para receber Lassalle em Grafton Terrace; fora recompensado com irritabilidade, desconfiança e, finalmente, suêncio. Desde aquela vista — e, em parte, por causa dela, suspeitava Marx — as finanças da família tinham evoluído de más a piores. E m Agosto de 1862, uns dias depois de LassaUe partir de Londres, Marx deslocou-se a Zaltbommel na esperança de conseguir outro empréstimo de Lion Phiups, mas o tio encontrava-se ausente. Dirigiu-se então a Trier, mas a mãe recusou dar-lhe o que quer que fosse. N o Natal desse ano, Jenny Marx tentou ganhar a simpatia de

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Monsieur Abarbanel, banqueiro francês seu conhecido, mas os resultados ainda foram mais desastrosos. O barco para Bolonha quase se afundou numa tempestade e o comboio que ela tomou até à casa de Abarbanel atrasou-se duas horas; quando ela finalmente chegou, o banqueiro tinha tido uma apoplexia que o deixara paralisado. Ao regressar a Londres de mãos a abanar, Jenny foi vítima de mais acidentes: o autocarro onde estava virou-se e o táxi que tomou em Londres chocou com outro veículo, perdendo uma roda. Ao chegar a Grafton Terrace a pé, acompanhada por dois rapazes que transportavam a bagagem, foi informada que Madame Creuz, a meia irmã de Helene Demuth, tinha morrido de um ataque cardíaco duas horas mais cedo. Imagine-se a cena: uma criada morta na sala da frente, outra a chorar de mágoa, uma mulher exausta e toda enlameada — e o dono da casa a perguntar-se onde é que raio iria encontrar sete libras e dez para pagar ao cangaIheiro. Marx permitiu-se um comentário sarcástico perante este quadro tragicómico: «Um Hndo Natal para as coitadas das crianças.»''^ Por uma vez, porém, esta desgraça grotesca não teve o habitual efeito nocivo sobre a sua saúde e produtividade. Os sarcasmos de Lassalle quanto às suas «teorias» espicaçaram-no a terminar o Uvro que fora tão catastróficamente interrompido por causa da querela com Vogt. «Se pelo menos soubesse c o m o m o n t a r u m negócio qualquer!», escreveu a Engels n u m m o m e n t o de depressão pouco depois da viagem de Lassalle a Londres. «Todas as teorias, meu caro amigo, são pardas e só os negócios, verdes viçosos. Mas, infelizmente, apercebi-me disso demasiado tarde.»*"^ Foi por volta desta altura que Marx se candidatou a u m emprego administrativo nos caminhos-de-ferro, mas foi rejeitado por causa da sua letra. N ã o importa: ainda podia tirar partido da escrita desde que Jenny transcrevesse os seus gatafunhos de forma legível. Com poucas encomendas jornalísticas para o distrair, começou a escrever o segundo volume da sua economia crítica. «É curioso e até certo ponto significativo que o país onde Karl Marx é menos conhecido seja aquele onde viveu e trabalhou durante os últimos 30 anos», comentou o economista John Rae na Contemporary Review, de Outubro de 1881, dois anos antes da morte de Marx. «A sua palavra percorreu toda a Terra e evocou em certos círculos ecos que os governos não deixam viver nem morrer; mas, aqui, onde foi pronunciada, o seu som mal foi ouvido.»^"* Quando Engels enviou uma análise pormenorizada de O Capita/k

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liberal Fortnightly Review, em 1869, a direcção devolveu-a com a uma breve nota explicando que era «demasiado científica para os leitores ingleses da RemiP»''^. Uns anos mais tarde, no decorrer de uma palestra proferida por um economista inglês sobre a «harmonia dos interesses sociais», um socialista na assistência questionou a desatinada suposição de que todas as classes da sociedade tinham os mesmos interesses, referindo-se a O Capital pãía sustentar o seu cepticismo. «Não conheço tal obra», retorquiu o conferencista. Quase nenhum dos principais livros de Marx foi traduzido em inglês durante a sua vida e a excepção mais importante, o Manifesto Comunista, só era conhecida do punhado de cartistas que assinavam o Red Republican, de George Julian Harney, em Novembro de 1850. Dez mais tarde, conmdo, um exemplar foi enviado tardiamente ao The Times, o qual se apressou a prevenir os seus leitores quanto às «publicações de má qualidade que contêm as mais anárquicas e disparatadas doutrinas... nas quais a religião e a moral são pervertidas e ridicularizadas, e todas as regras de conduta sancionadas pela experiência, das quais a própria existência da sociedade depende, são abertamente atacadas»''''. Seguiam-se dois extractos do Manifesto—embora a origem não fosse mencionada, pois The Times «não estava ansioso em nomear os seus autores nem promover aquela obra». O político conservador John Wilson Croker tentou assustar mais as pessoas com o perigo vermelho, denunciando a «Literatura Revolucionária» (com as mesmas citações do Manifesto) n'a Quarterly Review, de Setembro de 1851. Mas ninguém se mostrou interessado, e o Manifesto Comunista desapareceu da circulação em Inglaterra até Samuel Moore publicar uma nova tradução em 1888, cinco anos depois da morte do seu autor. John Rae pode ter achado «curioso» que os ingleses tenham prestado tão pouca atenção à presença da velha toupeira enfiada no centro de Londres, mas isso era perfeitamente razoável. Como é que podiam ter ouvido falar dele? Depois de se ter zangado com o radical Harney e o louco Urquhart, Marx perdeu os seus meios de comunicação com os intelectuais e trabalhadores ingleses. Os artigos com que suportava a família na década de 1850 foram publicados no f^ew York Tribune. Para o público inglês, ele era praticamente invisível. Passava os dias n o museu e as noites na companhia de compatriotas alemães. E m Maio de 1869 juntou-se à Real Sociedade para a Promoção das Artes, Manufacmras & Comércio, que se tinha tornado famosa pelo seu envolvimento no decorrer das Grandes Exposições de 1851 e 1862, mas não há provas de que ele tenha assistido às suas conferências ou usado a biblioteca^^. Pode ter sido desencorajado pela sua experiência durante a

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festa estival da Sociedade, uma Conversazione que teve lugar no museu de South Kensington a 1 de Julho de \8>69. Jennychen, a sua companhia nessa noite, enviou um relatório completo a Engels: «Entre todos os mais entediantes eventos, as conversai^ones são certamente as piores. Que jeito têm os ingleses para inventar diversões aborrecidas! Imagina uma multidão de sete mu pessoas em traje de cerimónia tão apertadas umas contra as outras que não se podiam mexer ou sentar-se nas cadeiras que algumas senhoras idosas tinham tomado de assalt o . . . N ã o se via outra coisa senão sedas, cetins, brocados e rendas, e isto nos modelos mais feios — em mulheres vulgares, de traços grosseiros, olhos baços, pequenas e curtas ou altas e desengonçadas. N ã o havia traços da tão falada beleza da aristocracia inglesa, e vimos apenas duas raparigas razoavelmente bonitas. Entre os homens, havia um punhado de rostos interessantes, provavelmente artistas, mas a grande maioria era gente com ar insípido e demasiado gorda.»*"^ O pai à& Jennychen aliviou o tédio embriagando-se e rindo ostensivamente de um boletim distribuído entre todos os convidados e intitulado «Assalto a Pessoas Distintas», solicitando que fosse permitida a livre passagem dos aristocratas e outras eminências sem ser molestados. Como Jennychen prometeu, «não nos apanharão aqui outra vez». Os encontros de Karl Marx com os nativos foram quase sempre desastrosos, em particular quando ele tinha bebido uns copos. Uma noite, foi com Edgar Bauer e Wilhelm Liebknecht a Tottenham Court Road com a intenção de beber pelo menos uma cerveja em todos os bares entre a rua Oxford e Hampstead Road. Como o itinerário incluía cerca de 18 bares, ele estava pronto para uma zaragata quando chegaram ao último. U m grupo de pessoas que jantava tranquilamente foi acostado por este trio de bêbedos que se pôs a troçar da cultura inglesa. Só a Alemanha, declarou Marx, podia produzir mestres como Beethoven, Mozart, Handel e Haydn; a hipócrita e pretensiosa Inglaterra era uma terra de gente inculta. — Raio de estrangeiros! — rosnou u m dos clientes, enquanto os outros cerraram os punhos. Escolhendo a melhor estratégia, os truculentos alemães fugiram. Liebknecht deixou-nos um relato do resto da história:

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«Agora, já estávamos fartos de cerveja e, para nos acalmarmos, acelerámos o passo até Edgar Bauer tropeçar num monte de pedras. "Eureca, tenho uma ideia!" E em memória das partidas de estudantes, pegou numa pedra e zás! quebrou um candeeiro a gás. As acções absurdas são contagiosas — Marx e eu não nos ficámos e partimos quatro ou cinco candeeiros — , deviam ser umas duas da manhã e as ruas estavam desertas... Mas o barulho atraiu um polícia que, por sua vez, avisou os colegas que estavam a fazer a mesma ronda. A nossa situação tornou-se crítica. Fugimos com três ou quatro polícias no nosso encalço. Marx deu provas de uma agilidade invejável. A perseguição durou uns minutos, mas, felizmente, conseguimos meter por uma viela e os pob'cias perderam o nosso rasto. Estávamos salvos. Desconheciam a nossa identidade e pudemos chegar tranquilamente a casa.»*"^ Quando passeava pelas ruas de Londres, Marx detinha-se muitas vezes para fazer uma festa na cabeça de um miúdo sentado à soleira de uma porta e meter-Ihe uma moeda na mão. Mas a experiência ensinou-lhe que os adultos britânicos não vêem com bons olhos os estrangeiros com sotaque estranho. Um dia, ao passar por Tottenham Court Road de autocarro, ele e Liebknecht repararam numa grande multidão apinhada à porta de uma taberna e ouviram a voz lancinante de uma mulher a gritar por socorro. Embora Liebknecht tenha tentado detê-lo, Marx saltou do autocarro e abriu caminho. Mas a mulher, completamente bêbada, estava apenas a discutir com o marido; a chegada de Marx teve o condão de aHar o casal que descarregou a sua fúria contra o importuno. «A multidão cercou-nos», recordou Liebknecht, «e tomou uma atitude ameaçadora contra o raio dos estrangeiros. A mulher, em particular, ficou furiosa com Marx e concentrou-se na sua magnífica barba preta luzidia. Tentei acalmar, em vão, a situação. Se não tivessem aparecido dois robustos poKcias a tempo, teríamos pago bastante caro a nossa filantrópica intervenção.» A partir dessa altura, notou Liebknecht, Marx mostrou-se «um pouco mais prudente» nos seus contactos com o proletariado londrino. Como o historiador Kirk Willis observou, «por volta de 1860, Marx não estava interessado em ter discípulos, ou propagandistas, ingleses, pois tinha outros planos mais importantes — a destruição intelectual da economia política clássica»^*'.^ N o s quatro anos seguintes, refugiou-se novamente no anonimato da sala de leitura do Museu Britânico a fim de se preparar para o assalto final ao capitalismo. «Quanto a mim, estou a trabalhar imenso e, por

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estranho que pareça, a minha matéria cinzenta está a funcionar melhor do que nunca no meio da misère que me rodeia», disse a Engels em Junho de 1862, acrescentando que tinha descoberto «uma ou duas agradáveis e surpreendentes novidades» na sua análise^^ Entre 1861 e 1862, preencheu mais de 1500 páginas. «Estou a expandir este volume», expHcou, «pois os velhacos dos alemães julgam o valor de um Mvro em termos de capacidade cúbica.» A solução de problemas teóricos que dantes não consegtiia encontrar, surgia-lhe agora cristalina e revigorante como um copo à&gin. A questão das rendas agrícolas, por exemplo — ou esta «merda da questão das rendas», como dizia: «Há muito que tinha apreensões quanto à exactidão absoluta da teoria de Ricardo e, por fim, lá cheguei ao fiindo da vigarice.» Ricardo tinha simplesmente confiandido o valor e o preço de custo. N a Inglaterra de meados da época vitoriana, o preço dos produtos agrícolas eram mais elevados do que o seu valor real (por exemplo, o tempo laboral envolvido) e o proprietário embolsava a diferença sob a forma de rendas mais altas. Sob o socialismo, contudo, este excedente seria redistribuído em benefício dos trabalhadores. Assim, mesmo que o preço de mercado permanecesse o mesmo, o valor dos produtos — o seu «carácter social» -— mudaria totalmente. Estava tão satisfeito com os seus progressos que, às vezes, era ganho pelo optimismo — como na ocasião em que um médico de Hanôver, Ludwig Kugelmann, lhe escreveu em fins de 1862 a perguntar quando é que seria publicada a continuação de Uma Contribuição para a Crítica da Economia Política. «Fiquei encantado por me dar conta, através da sua carta, do caloroso interesse que você e os seus amigos manifestam pela minha crítica da economia política», respondeu imediatamente Marx.
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Jenny Marx nunca poderia partilhar a afeição do marido por Friedrich Engels. É evidente que estava grata pela generosidade dele, bem como apreciava a sua companhia intelectual e os encorajamentos que dava a Karl. E o interesse que ele demonstrava pelas crianças, as quais adoravam o avuncular «General», também a tocava. Para Jenny, contudo, ele continuaria sempre a ser o Sr. Engels. Mulher que dificilmente se deixava chocar e que contemplava com satisfação o advento de revoluções violentas e a derrocada da burguesia, ela ainda tinha suficientes preconceitos da classe média — ou melindres — para se escandalizar com a ideia de um h o m e m e de uma mulher a viverem juntos sem ser casados, especialmente quando a mulher em questão era uma operária analfabeta. Engels tinha conhecido Mary Burns aquando da sua primeira visita a Manchester, em 1842, para reunir material destinado ao seu livro. As Condições da Classe Operária em Inglaterra. E m breve se tornaram amantes e, embora esta animada ruiva de origem proletária irlandesa fosse bastante ignorante, ensinou tanto a Engels quanto aprendeu com ele. Engels admirava nela, assim como na irmã Lydia, a qual se juntou a eles num ménage à trois, «a paixão pela sua classe, que era nata. Tinha imicnso valor para mim e mantivera-se ao meu lado em todos os momentos críticos, dando-me melhores provas do que todas as delicadezas das raparigas "inducadas" e "sintimentais" da burguesia». O romance foi reatado quando Engels voltou com Marx em 1845 e ele então convidou Mary para ficar com ele uns tempos em Bruxelas. Depois de se resignar a uma vida dedicada ao vil comércio em Manchester, Engels instalou-a numa pequenina casa perto da dele e, no final da década de 1850,

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começaram a viver juntos. Nas raras ocasiões em que Jenny foi obrigada a reconhecer a existência de Mary, referia-se a ele como «a tua mulher», embora a relação nunca tivesse sido realmente legalizada. O facto de Lydia (Li^^J se ter juntado ao casal constituiu uma maior afronta à sensibilidade puritana de Frau Marx. Mas Engels não se ralou. A sua dedicação a Mary Burns também provocou o único momento de frieza ao longo da calorosa e ininterrupta relação com Karl Marx. Apesar de Marx não ter objecções quanto ao pouco ortodoxo comportamento doméstico do amigo (e até lhe provocar uma certa titilação por procuração), a sua tendência foi de subestimar a importância das irmãs Burns por deferência para com Jenny. Tal tendência nunca se manifestou de forma mais desastrosa quando, a 7 de Janeiro de 1863, recebeu um breve e horrível bilhete de Engels: Caro Mouro, A Mary morreu. Deitou-se cedo ontem à noite e, quando -L?^,^ decidiu ir para a cama pouco depois da meia-noite, encontrou-a já morta. Tudo se passou muito rapidamente. Uma apoplexia ou um ataque cardíaco. Só fui informado esta manhã; na noite de segunda-feira ainda estava bem. N ã o consigo transmitir como me sinto. A pobre da rapariga amava-me profundamente. Teu, FE Marx respondeu no dia seguinte.
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Bem, para começar, poderia ter tentado dar os pêsames com mais tacto. É verdade que a situação de Marx era realmente calamitosa: desde o Natal que as filhas não tinham voltado para a escola, em parte porque a conta do período anterior ainda não fora paga mas também porque a única roupa e sapatos decentes que possuíam se encontravam no prego. Até mesmo as últimas palavras de despedida de Marx tinham mais a ver com os seus problemas do que com a perda de Engels: «Em vez de Mary, não deveria antes ter sido a minha mãe que está cheia de maleitas e já viveu o suficiente? Estás a ver as ideias estranhas que surgem na cabeça de " h o m e n s civilizados" pressionados por certas circunstâncias. Salut.» Engels leu tudo isto com espanto e raiva. Como ousava Marx falar de dinheiro numa altura destas — em particular sabendo que ele próprio se encontrava numa situação financeira difícil por causa da queda dos preços de algodão? Manteve-se em silêncio durante cinco dias, e depois enviou u m ríspido agradecimento. As suas cartas começavam, normalmente, por «Caro Mouro», mas tal informalidade já não servia: «Caro Marx, Hás-de compreender que devido ao meu infortúnio e à maneira fria como o encaraste me foi impossível responder-te mais cedo. Todos os meus amigos, incluindo meros conhecidos, deram-me nesta ocasião mais provas de amizade e simpatia do que eu esperava. Achaste que era o momento adequado para afirmar a superioridade da "indiferença do teu m o d o de pensar". Seja!»^ Agora, não havia nada de indiferente quanto ao modo de pensar de Marx e, no decorrer das três semanas seguintes, amargas recriminações foram trocadas à volta da mesa da cozinha em Grafton Terrace, enquanto Jenny censurava Karl por não ter alertado Engels mais cedo acerca da estado das suas finanças e ele a censurava por julgar que podiam depender das subvenções provenientes de Manchester para todo o sempre. («Como as mulheres têm o hábito de desejar o impossível, a pobre coitada tinha de sofrer por algo quanto ao qual estava de facto inocente», comentou indelicadamente Marx mais tarde.
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procurar emprego como governantas. Lenchen iria trabalhar para outra casa, e a pequenina Tussy e os pais mudariam para um alojamento reservado aos indigentes. Teve realmente Marx essa intenção ou foi este martírio de autopunição um ardil para comover Engels? É difícil de dizer. Mas não há dúvidas quanto à sinceridade do seu acto de contrição: r.

«Fiz muito mal em escrever-te uma carta daquelas e lamentei-o assim que a pus no correio. N o entanto, o que aconteceu nada tem a ver com crueldade. Como a minha mulher e as minhas filhas poderão testemunhar, fiquei tão abatido quando a tua carta chegou (de manhã cedo) como se se tratasse do meu parente mais querido. Porém, ao escrever-te à noite, fi-lo pressionado por circunstâncias extremamente desesperadas. O senhorio tinha chamado um oficial de diligências, o homem do talho insistia em ser pago, escassez de carvão e provisões e a pequenina Jenny de cama. Regra geral, em tais circunstâncias, o meu único recurso é o cinismo.»^

Apesar desta autolaceração ainda estar misturada com piedade por si mesmo, esta carta constitui o único pedido sincero de desculpas que Marx jamais enviou a alguém. Engels, com a sua habitual generosidade, reconheceu imediatamente o arrependimento do amigo. «Caro Mouro», escreveu, retomando o seu tratamento carinhoso:

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«Obrigado por seres tão franco. Percebes agora a má impressão que a tua penúltima carta provocou em mim. N ã o se pode viver com uma mulher durante anos e não ser terrivelmente afectado pela sua morte. Senti como se, juntamente com a Mary, eu também estivesse a enterrar os liltimos vesti'gios da minha juventude. Quando a tua carta chegou, ela ainda não fora para o cemitério e essa carta obcecou-tne durante uma semana inteira; não conseguia tirá-la da cabeça. Mas, agora, já não importa. A tua última carta reconciliou tudo e estou contente por, ao perder a Mary, também não perdi o meu mais antigo e melhor amigo.»^

A desavença não voltou a ser mencionada e, sem mais histórias, Engels tratou de salvar a família Marx da falência. Incapaz de pedir dinheiro emprestado, tirou simplesmente um cheque de cem libras enviado a Ermen & Engels

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e endossou-o a Marx. «Foi uma acção excessivamente ousada da minha parte», reconheceu, «mas tem de se correr riscos.» Seguiram-se 250 libras uns meses mais tarde para Marx poder aguentar-se até ao fim do Verão — o que veio mesmo a calhar, pois uma crise de fiirúnculos impediu-o quase de trabalhar. E m Novembro, chegou um telegrama de Trier anunciando a morte de Henriette Marx aos 75 anos. Ela previra o seu fim com precisão suspeita — às 16 horas do dia 30 de Novembro, a mesma hora e dia do seu quinquagésimo aniversário de casamento — mas ninguém parece ter-se interrogado quanto a isso. O único comentário de Karl ao ouvir a notícia foi, como era de esperar, fleumático: «O destino reclamou um dos nossos parentes. Eu, por mim, já estive com um pé para a cova. Vistas as circunstâncias, eu sou mais preciso do que a minha mãe.»'^ Engels enviou dez libras para pagar a viagem a Trier, mas nem uma palavra de pêsames: conhecia suficientemente Marx para saber que lamentações falsas seriam mais ofensivas do que nenhumas. A execução o testamento arrastou-se durante meses e, depois de todos os adiantamentos e empréstimos do tio Lion terem sido descontados, a parte de Marx ficou reduzida a pouco mais de cem libras. N o entanto, foi suficiente para justificar uma leviandade. N o seu desprezo pela prudência financeira burguesa, Marx praticava o que pregava: se não havia dinheiro, ele sobrevivia através de expedientes; mas, logo que arranjava umas libras, esbanjava-as sem pensar no dia de amanhã. Os Marx tinham mudado para Grafton Terrace em 1856 à custa da pequena herança que Jenny recebera de Caroline von Westphalen, embora soubessem que a renda da casa era superior aos seus meios. Agora, a mesma loucura repetia-se. E m Março de 1846, assim que o dinheiro da herança de Henriette começou a chegar, alugaram uma espaçosa casa no número 1 de Modena Villas, em Maidand Park, por três anos. A nova morada ficava apenas a 200 metros de Grafton Terrace, mas a u m m u n d o de distância em termos de estilo e estatuto — o tipo de residencia preferido por advogados e médicos abastados com um grande jardim, uma «encantadora estufa» e espaço suficiente para cada uma das meninas ter o seu quarto de dormir. Uma sala do primeiro andar que dava para o parque foi escolhida por Marx para ser o seu escritório. A renda anual de Modena Villas era de 65 libras, quase o dobro da de Grafton Terrace. C o m o é que Marx esperava pagar todo este luxo é u m mistério: mas, como aconteceu tantas vezes, a sua fé foi vindicada. A 9 de Maio de 1864, Wilhelm L.upm Wolff morreu com uma meningite, legando «todos meus livros, mobília, dinheiro que me é devido e todas as minhas

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propriedades, bens imóveis, alugados, ou que venha a ter direito ou poder para dispor, ao dito Karl Marx»^. Wolff era um dos raros antigos companheiros da década de 1840 que sempre se mantivera fiel a Marx e a Engels. Tinha trabalhado com eles no Comité de Correspondência Comunista, em Bruxelas; durante a revolução de 1848 em Paris, e quando Marx fora director do Neue Rheinische Zeitung, em Colónia. A partir de 1853 tinha vivido tranquilamente em Manchester, ganhando a vida como professor de b'nguas e a par das notícias políticas através de Engels. «Não acredito que alguém em Manchester tenha sido tão universalmente amado como o nosso querido amigo», escreve Karl a Jenny após ter proferido a oração fúnebre no decorrer da qual se desfez em lágrimas várias vezes. Como executantes do testamento, Marx e Engels ficaram espantados ao descobrir que o modesto Lupus tinha amassado uma pequena fortuna à custa de trabalho árduo e poupanças. Mesmo após terem sido deduzidas as despesas do funeral, impostos, cem libras para E,ngels e outras cem para o médico de Wolff, Louis Borchardt — o que muito irritou Marx, pois considerava este «bombástico incompetente» responsável pela morte do amigo — , ainda ficavam 820 libras para o principal herdeiro. Isto era muito mais do que Marx jamais tinha ganho com a escrita e explica porquê o primeiro volume de O Capital (pubHcado três anos mais tarde) é dedicado ao «meu inesquecível amigo, Wilhelm Wolff, intrépido, fiel e nobre protagonista do proletariado», e não ao mais óbvio e valioso candidato, Friedrich Engels. Os Marx não perderam tempo a gastar aquele dinheiro caído do céu. Jenny mobilou e redecorou a casa de novo, explicando que «achei melhor usar o dinheiro nisto do que gastá-lo aos poucos em ninharias». Foram comprados animais de estimação para as crianças (três cães, dois gatos e dois pássaros), que receberam os nomes das bebidas favoritas de Karl, incluindo Whisky e Toddy. E m Julho, Marx levou toda a família a passar férias em Ramsgate durante três semanas, embora a erupção de um furúnculo maligno na ponta do pénis tenha estragado a diversão e o obrigasse a ficar de cama na pensão bastante amuado. «O teu amigo filisteu, e ainda mais a sua cara-metade e a sua progenitura feminina, estão aqui a divertir-se à grande», observou, contemplando a praia com inveja através da janela.«É quase deprimente ver o venerável oceano, esse antigo Titã, a ter de suportar estes pigmeus a gozar ã sua frente e a servir-lhes de diversão.»'' Os furúnculos tinham substituído os oficiais de diligência como fonte principal de irritação. Mas, a maior parte das vezes, ele tratava-os com o mesmo desprezo negligente. Nesse

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Outono, deu um grande bañe na nova moradia em honra ác Jennychen e Laura, que tinham passado muitos anos a recusar convites para festas por recearem não poder retribuir a atenção. Cinquenta dos seus jovens amigos divertiram-se até às quatro da manhã, e restou tanta comida que a pequenina Tussy foi autorizada a convidar as crianças da vizinhança no dia seguinte. N u m a carta á Lion Philips, escrita no Verão de 1864, Marx revelou u m pormenor do seu novo estilo de vida ainda mais notável: «Lima coisa que não deixará de te surpreender é que tenho andado a especular na Bolsa — em parte em fundos americanos e, em especial, em acções inglesas, as quais estão a crescer como cogumelos este ano (para espanto de todas as sociedades de acções imagináveis e inimagináveis) e a atingir níveis pouco razoáveis para, depois, na maior parte, cair. Ganhei, desta forma, mais de 400 libras, e agora que a complexidade da situação política permite mais oportunidades, vou começar tudo de novo, Trata-se de um tipo de operação que não exige muito tempo e que, embora se corra alguns riscos para subtrair dinheiro ao inimigo, vale a pena.»^ Como não há provas de tais transacções, alguns historiadores assumiram que Marx inventou simplesmente esta história para impressionar o tio. Mas pode muito bem ser verdade. Mantinha-se certamente inform^ado quanto ao preço das acções e, ao falar com Engels sobre o próximo pagamento proveniente das propriedades de Lupus, mencionou que «se eu tivesse tido dinheiro nestes últimos dez dias, teria feito um grande negócio na Bolsa daqui. Com esperteza e uma quantia modesta pode-se ganhar dinheiro em Londres.»^ A especular no mercado, a dar festas e a passear os cães no parque, Marx corria o grande perigo de se tornar respeitável. U m dia, recebeu um curioso d o c u m e n t o anunciando que fora eleito, sem o saber, para a sinecura municipal de «Grande Oficial da Ordem de São Pancrácio». Engels achou isto hilariante: «Salut, ô connétable de Saint Pancrace! Agot2i devias arranjar um traje adequado: uma camisa de noite vermelha, uma touca branca, chinelos, calças brancas e um cachimbo comprido.»'^ Mas Marx boicotou a cerimónia de investidura, seguindo o conselho de um vizinho irlandês que «eu devia dizer-lhes que era estrangeiro e que fossem para o diabo que os carregue»."' Desde a ruptura da Liga Comunista que Marx estava determinado a não se juntar ao que quer que fosse e rejeitava os comités e partidos que tentavam recrutá-lo. «Agrada-me imenso o isolamento público em que nós dois,

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tu e eu, actualmente vivemos», tinha já dito a Engels em Fevereiro de 1851, e certamente que seria preciso mais do que os filisteus de São Pancrácio para o tirar dessa longa hibernação. Após 30 anos de «autêntico isolamento» (embora nem sempre pacífico e tranquilo), Marx ainda não estava preparado para emergir. A primeira indicação de um novo estado de espírito pode ser detectada na sua entusiástica reacção ao levantamento de 1863 na Polónia contra a opressão czarista. «O que é que pensas do que se está a passar na Polónia?», perguntou a Engels a 13 de Fevereiro. «Uma coisa é certa, a temporada das revoluções abriu novamente na Europa.» Quatro dias mais tarde, ele tomou a decisão que a intervenção da Prússia a favor do czar contra os insurgentes polacos «impele-nos a falar». Nessa altura, ele estava simplesmente a pensar em escrever um panfleto ou um manifesto — e, de facto, publicou uma breve Proclamação sobre a Polónia, em Novembro. Mal podia então imaginar que, dentro de 11 meses, seria o verdadeiro líder do primeiro movimento de massas da classe operária internacional. A vida adulta de Marx tem u m ritmo de maré em que as vagas espumantes, que avançam, são seguidas por um longo rugido de recuo. Este movimento alternativo de envolvimento e isolamento ultrapassava e m grande parte o seu controlo, o qual era ditado por acidentes e circunstâncias — doença, exílio, catástrofes domésticas, reserva política, amizades destroçadas. Mas também pode ser visto como a obstinada necessidade de reconciliar a teoria e a prática, a contemplação privada e o empenho social. A exemplo de muitos escritores, ele era uma espécie de solitário gregário que ansiava por um pouco de solidão, a fim de poder trabalhar ininterruptamente, mas que também desejava o estimulo da acção e do debate. Marx sentia esse dilema mais profundamente do que a maioria, pois a separação dos indivíduos da sociedade constituía uma das suas principais obsessões. • N u m ensaio de 1835 cheio das simples certezas de um rapaz de 17 anos que acabou de comprar a sua primeira navalha de barbear, o problema era eliminado tão facilmente como os pelos da barba de um jovem. «Directiva principal que nos deve guiar na escolha de uma profissão é o bem-estar da humanidade e a nossa própria perfeição», escreveu. «Não se deve pensar que estes dois interesses sejam conflituosos.» E porque não? Porque a natureza hpmana era constituída de m o d o a que os indivíduos alcançassem o apogeu da perfeição através da sua dedicação aos outros. Aquele que trabalha só para si mesmo «pode talvez tornar-se famoso, um grande erudito ou um poeta

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excelente, mas nunca pode ser um h o m e m verdadeiramente perfeito e notável». A história aclama apenas quem se enobrece enriquecendo a sua tribo e «a própria religião ensina-nos que o ser ideal que todos se esforçam por imitar se sacrificou para salvar a humanidade... Quem ousaria não tomar isto em conta?» O próprio Marx, por exemplo. Após perceber que a religião não era cura para a alienação, mas simplesmente um opiáceo para amenizar a dor, viu-se forçado a procurar a perfeição noutro sítio — em primeiro lugar, na autoconsciência unificadora da filosofia hegeliana e, depois, n o materialismo histórico. Mas não havia meio de escapar ao velho argumento teológico da fé contra o trabalho, o qual meramente assumia uma forma secular — teoria contra prática ou palavras contra feitos. «Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de várias maneiras; o ponto fundamental é mudá-lo», declarou em 1845, como se abolisse a divisão do trabalho de uma penada: no futuro, toda a gente seria filósofo e soldado, assim como todos nós deveríamos guardar os rebanhos de manhã, pintar um quadro à tarde e pescar ao anoitecer. Nessa época, Marx, tomado de fervor existencialista, não tinha paciência para com a mentalidade daqueles que viviam em torres de marfim. N u m artigo pouco conhecido de 1847, ridicularizou o jornalista belga, Adolphe Bartels, que se tinha assustado com as actividades revolucionários dos refugiados alemães: «O Sr. Adolphe Bartels declara que, para ele, a vida púbuca terminou. E, de fato, retirou-se para o conforto da vida privada e não faz tenção de lá sair; limita-se a protestar sempre que ocorre qualquer manifestação pública e a proclamar em voz alta que é dono de si mesmo, que o movimento foi feito sem ele, Sr. Bartels, apesar dele, Sr. Bartels, e que tem o direito de lhe recusar a sua sanção suprema. Temos de concordar que isto é uma maneira de participar na vida pública como qualquer outra e que, através de todas estas declarações, proclamações e protestos, o h o m e m público se esconde por detrás da aparência modesta do indivíduo privado. E deste m o d o que o génio pouco apreciado e mal compreendido se revela.»" E m alguns anos, porém, Marx veio a acreditar que um génio mal compreendido como ele podia muito bem participar na vida pública, lançando protestos e proclamações da solidão da sua secretária. Há uma altura para tudo: altura para estragar e outra para remendar; tempo de guerra e tempo

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de paz. Ou, então, para confundir as referências, porquê imitar a acção do tigre quando o clamor da guerra se calou? Daí o impressionante contraste entre o seu sardónico ataque a Bartels e o prefácio autobiográfico em Uma Contribuição para a Crítica da Economia Politica (1859), onde confessou que o encerramento do Rheinische Zeitung, em 1843, tinha-lhe dado a oportunidade há muito aguardada «de trocar a vida pública pelo estudo» que ele «avidamente aproveitou». Esse prefácio foi escrito n o decorrer de u m afastamento muito mais longo dos assuntos públicos — uma abstinência que ele não mostrou desejo de pôr fim, muito embora os jornais alemães censurassem por vezes a sua inactividade. E m 1857, um grupo de revolucionários de Nova Iorque escreveu-lhe suplicando que restaurasse a velha Liga Comunista em Londres; levou mais de um ano a responder e, quando o fez, foi para explicar que «não estou associado com nenhuma organização desde 1852, e que estou firmemente convencido de que os meus estudos teóricos são de maior importância para a classe operária do que me misturar com associações que já passaram de moda no continente». C o m o contou a Ferdinand Freiligrath, em Fevereiro de 1860, «enquanto tu és poeta, eu sou crítico e, para mim, as experiências de 1849-52 chegaram-me. A Liga, como a maior parte da société des saisons em Paris e centenas de outras, foi simplesmente um episódio na história de um partido que está a germinar naturalmente em toda a parte do solo da sociedade moderna»^^. Esta metáfora orgánica é a descrição mais apta de como a Associação Internacional do Operariado emergiu à luz do dia quatro anos mais tarde. Parece quase paradoxal dizer que uma organização com o nome de Internacional podia ter começado em Inglaterra, onde a insularidade há muito não só tem sido um capricho geográfico como um m o d o de vida; gerações e crianças aprenderam a recitar o poema de Shakespeare sobre esta ilha coroada, este outro Paraíso: Esta pedra preciosa incrustada no mar de prata, O qual lhe serve de muralha, O u fosso defensivo de uma casa. Contra a inveja de nações menos afortunados, Este terra abençoada, este reino, esta Inglaterra... Quando os ingleses falam da «Europa», ou «o Continente», não inclui o seu próprio país: referem-se ao estrangeiro, um lugar estranho e selvagem onde os nativos urinam nos sapatos e comem alho na cama. Claro que se

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pode visitar o estrangeiro — e conquistá-lo para criar o maior império que jamais existiu — , mas a finalidade de tais expedições, quer por diplomatas vitorianos apoiados por força armada ou modernos vândalos do futebol, é para lembrar ao estrangeiro que ele será sempre inferior. Afinal de contas, que outra nação pode gabar-se de se ter erguido do oceano azul por ordem dos céus? O humorista do século XIX, Douglas Jerrold, amigo de Dickens e colaborador da revista Punch, não estava a brincar ao escrever: «A melhor coisa que conheço entre a França e a Inglaterra é... o mar.» Estas meias piadas ainda são comuns nas manchetes dos tablóides ingleses. A própria ideia de Inglaterra chega a transformar pessoas inteligentes em vendedores de banha de cobra. «Ao regressar a Inglaterra de um país estrangeiro, tem-se imediatamente a sensação de respirar um ar diferente», escreveu George Orwell n u m ensaio famoso e exageradamente elogiado. «Nos primeiros minutos, dúzias de pequenos pormenores conspiram para dar essa sensação. A cerveja é mais amarga, as moedas mais pesadas, a erva mais v e r d e . . . » " Pobres países estrangeiros: nem sequer sabem cultivar relva decente. Juntamente com a fanfarronice e a xenofobia, existe ainda outra tradição — mais discreta, mas não menos persistente — do internacionalismo inglês, em particular entre os sindicalistas. Basta pensar na sua campanha contra o apartheid sul-africano e na sua recusa em produzir artigos para a ditadura chilena na década de 1970: pelo menos alguns operários britânicos quiseram mostrar, repetidas vezes, uma solidariedade instintiva com os oprimidos. Como disse o cartista George Julian Harney aquando da insurreição portuguesa em 1847: «As pessoas estão a começar a compreender que tanto as questões estrangeiras como as domésticas as afectam; que uma agressão à Liberdade no Tejo é uma ofensa aos amigos da liberdade no Tamisa; que o sucesso do republicanismo em França é o fim da tirania em outros países; e que o triunfo da carta democrática em Inglaterra é a salvação de milhões de pessoas na Europa.»^"^ Seria fácil pensar, como as classes dirigentes dessa época fizeram, que os amigos da liberdade e do Tamisa só existiam na imaginação de Harney. Porque outro motivo se manteve a Inglaterra imune à epidemia revolucionária que se alastrou pelo resto da Europa em 1848? O partido dos Democratas Fraternais de Harney — cujo comité incluía refugiados de França, Alemanha, Suíça e Escandinávia — podia organizar reuniões para debater os empolgantes acontecimentos que ocorriam no Continente, mas estavam os operários britânicos interessados na luta que se travava em países distantes e sobre a qual nada sabiam?

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A resposta foi proporcionada pelo espantoso «incidente Haynau», em 1850 — o qual, por feliz coincidência, teve lugar mesmo à beira do Tamisa. O marechal barão Von Haynau era um comandante austríaco brutal, conhecido por a Hiena; tinha ganho tal alcunha por ter torturado prisioneiros e chicoteado mulheres na supressão de revoltas na Itália e Hungria. E m Agosto de 1850, e para repousar de obrigações tão fatigantes, foi passar umas curtas férias a Londres, onde o seu itinerário turístico incluiu uma visita à torre de Barclay e à fábrica de cerveja Perkins na margem sul do Tamisa. E m b o ra George Julian Harney tivesse encorajado todos os amigos da Liberdade para protestar contra essa visita, tinha poucas esperanças de sucesso — e ficou tão surpreendido como os outros com o que aconteceu a seguir. «Assim que a Hiena entrou na fábrica de cerveja, um grupo de trabalhadores atirou-lhe com um fardo de palha à cabeça e lançou-lhe uma saraivada de estrume. O barão fugiu para a rua, mas outras pessoas juntaram-se à perseguição — rasgando-lhe a roupa, arrancando-lhe tufos do bigode e gritando: "Abaixo o carniceiro austríaco!"»^^ Haynau tentou esconder-se num caixote do lixo da George Inn, em Bankside, mas foi descoberto e apedrejado. Quando a polícia chegou à estalagem e o levou de barco para a outra margem do Tamisa, o esfarrapado e humilhado marechal já não estava ern estado para prosseguir as férias. E m poucas horas, uma nova canção ressoava nas ruas de Southwark: i, Ponham-no daqui para fora, Tirem-no desta margem do Tamisa, Deixem-no ir ter com os tories E as senhoras finas. E pavonear-se em West End, Mas nunca mais há-de voltar a Bankside. O jornal Red Republican, de Harney, viu neste incidente a prova dos «progressos alcançados pela classe operária em matéria poKtica, do seu incorruptível amor da justiça e do seu intenso ódio pela tirania e a crueldade». Tanta gente compareceu a uma celebração em Farringdon Han, no decorrer da qual Engels discursou, que muitas pessoas não puderam entrar. Inúmeras associações de trabalhadores — de Paris a Nova Iorque — enviaram felicitações e até mesmo Palmerston ficou secretamente divertido, considerando que a administração de um pouco do remédio do marechal ao próprio não lhe faria mal ne-

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nhum. Mas os jornais conservadores, como o Quarterly Keview, não acharam piada nenhuma: os motins de Bankside eram uma alarmante «indicação de influência estrangeira no meio do nosso povo» — influência estrangeira era o eufemismo-padrão do século XIX para o temível vírus do socialismo. O Quarterly Keview não precisava de se preocupar; pelo menos por enquanto. Ao longo dos dez anos seguintes, o espírito de Bankside permaneceu invisível e os poucos grupos socialistas na Grã-Bretanha — a Liga Comunista, os Cartistas, os Democratas Fraternais — adormeceram ou desapareceram. Só por volta de 1860 é que o proletariado acordou do seu longo sono. Conforme o historiador Eric Hobsbwan observou, esse despertar manifestou-se numa «curiosa amálgama de acção política e industrial, de vários géneros de radicalismo — do democrático ao anárquico — , de lutas de classe, alianças entre classes sociais e governo, e concessões capitalistas. Mas, acima de tudo, era internacional, não apenas porque, como o despertar do Liberalismo, ocorreu simultaneamente em vários países, mas porque era inseparável da solidariedade internacional das classes operárias»."' O Conselho Comercial de Londres, fundado em 1860, estava por detrás de grande parte dessa actividade. Organizou uma demonstração (a qual atraiu uma multidão de cerca de 50 000 pessoas) para receber o libertador italiano Giuseppe Garibaldi, e, em Março de 1863, em plena Guerra de Secessão, apoiou uma reunião pública em St. James' Hall para apoiar a luta de Abraham Lincoln contra a escravidão. Marx, que se deslocou de propósito para a ocasião, teve o prazer de notar que «os próprios operários exprimiram-se realmente muito bem sem vestígios de retórica burguesa».^'' Mas não se pode ignorar a involuntária contribuição de Napoleão III, o qual convidou uma delegação de trabalhadores franceses a visitar Londres durante a Exposição de 1862, proporcionando-lhes assim a oportunidade de estabelecer contacto com indivíduos como George Odger, secretário do Conselho Comercial. Quando vários desses representantes voltaram a Londres em Julho de 1863 para celebrar a insurreição polaca, Odger fez uma alocução em norae do operários de Inglaterra aos operários de França, propondo que formalizassem a sua solidariedade. Foi convocada outra reunião para o dia 28 de Setembro de 1864 — desta vez no cavernoso St Martin's Hall, em Convent Garden — , a fim de consagrar essa nova união e a criação da Associação Internacional dos Trabalhadores. O nome da associação merece ser comentado: se isto viesse a ser mais do que uma mera aliança anglo-francesa, deviam ter pelo menos acrescen-

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tado outras figuras simbólicas provenientes de outros países. Exactamente por isso é que, uma certa manhã de Setembro de 1864, um jovem francês chamado Victor Le Lubez foi bater à porta do número 1 de Modena Villas e pediu a Karl Marx para sugerir alguém que falasse em nome dos «trabalhadores alemães». O próprio Marx era demasiado burguês para ser elegível e, assim, recomendou Johann Georg Eccarius, alfaiate refugiado e velho aliado da Liga Comunista. É de admirar que Le Lubez e Odger não tivessem pensado em Eccarius, pois conheciam-no bem devido à sua participação no Conselho Comercial de Londres. Talvez a familiaridade tivesse dado azo a desprezo, sentimento que Eccarius despertava com frequência: os seus m o d o s desajeitados e sem humor antagonizaram quase toda a gente que trabalhou com ele e eles devem ter julgado que Maiií conseguiria arranjar um orador proletário mais inspirado. Vale a pena fazer uma pequena pausa para considerar o que o apoio de Marx a Eccarius nos diz acerca do seu próprio carácter. Segundo a lenda incansavelmente divulgada pelos seus críticos, Marx era um snob incorrigível que desprezava os socialistas da classe operária e os considerava uns burros que tinham adquirido ideias que os ultrapassavam. O biógrafo Robert Payne, por exemplo, fala do «desprezo de Marx pela humanidade, *em, particular o sector chamado proletariado»^*^. Até mesmo o sofisticado especialista de Marx, o professor Shiomo Avineri, escreve que «a céptica perspectiva de Marx quanto à capacidade do proletariado conceber os seus próprios objectivos e concretizá-los sem ajuda intelectual exterior tem sido frequentemente documentada. Isto confirma a sua observação de que as revoluções nunca começam com as "massas", mas têm a sua origem em grupos de elite»^^. Onde é que essas perspectivas e observações se encontram documentadas? N ã o nas obras de Marx nem nas notas de Avineri^°. Este menciona que Marx tinha uma atitude arrogante em relação a Wñhelm Weitiing, mas, como vimos, ele até o tratou com bastante generosidade, argumentado que não se devia ser demasiado brutal com um pobre alfaiate que sofrera realmente por causa das suas crenças. E o que provocou a sua zanga não foi desdém pelas classes baixas, mas exaspero perante as ilusões políticas e religiosas de u m egocêntrico insuportável. N o caso de Weitling ter sido um intelectual da classe média, Marx tê-lo-ia tratado de forma muito mais brutal. O que nos traz à segunda prova de Avineri. «Até mesmo um dos seus adeptos mais leais, George Eccarius, também alfaiate de profissão, foi vítima de desprezo imerecicio por parte do seu mestre e professor.» Mas, mais

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uma vez, não cita quaisquer fontes: é evidente que o desprezo de Marx por alfaiates, sapateiros e outras vis profissões era tão universalmente conhecido que nem sequer precisava de ser comprovado. Isto é exactamente o oposto da verdade. Foi Marx quem deu a primeira oportunidade a Eccarius ao publicar o seu artigo, «Alfaiate em Londres», no efémero jornal londrino NRZ Review. «O autor deste artigo», informou Marx os leitores, «trabalha numa das alfaiatarias de Londres. Perguntamos à burguesia alemã quantos autores possui que sejam capazes de apreender o movimento genuíno de maneira semelhante?... O leitor notará como, aqui, em vez das críticas de ordem sentimental, moral e psicológica usadas contra as condições existentes por Weitling e outros trabalhadores, uma compreensão puramente materialista e mais livre, isenta de caprichos sentimentais, confronta a sociedade burguesa e o seu movimento.»^^ N ã o há nisto quaisquer sinais de desprezo. Ao longo dos maus momentos da década de 1850, Marx manteve-se atento e complacente, ajudando Eccarius a publicar artigos em jornais de língua alemã no estrangeiro com a esperança de o salvar do árduo trabalho que o ocupava das cinco da manhã até às oito da noite na alfaiataria. «Se houver dinheiro, sugiro que Eccarius seja o primeiro a receber para que não tenha de passar todo o dia a trabalhar», aconselhou um colega jornalista em Washington. «Tenta, se for possível, arranjar-lhe algum dinheiro.» Por mais dramática que fosse a sua própria situação financeira, insistia sempre para que Eccarius tivesse prioridade. Quando Eccarius adoeceu com tuberculose, em Fevereiro de 1859, Marx descreveu o mal do companheiro como «a coisa mais trágica que vivi aqui em Londres»^^. Uns meses mais tarde, observou tristemente que Eccarius «andava de novo a passar um mau bocado na alfaiataria»^^ e pediu a Engels que enviasse umas garrafas de vinho do Porto ao pobre h o m e m para o animar. E m 1860, obrigado por motivos de saúde a desistir do emprego durante uns tempos, Eccarius foi viver para um quarto à custa de Marx, o qual também lhe arranjou trabalho na imprensa americana a três dólares por artigo. Quando três dos filhos de Eccarius morreram durante a epidemia de escarlatina, em 1862, foi também Marx que, apesar de estar quase na miséria, angariou fundos para cobrir as despesas do funeral, e, finalmente, quando lhe pediram para nomear um orador para a histórica assembleia pública de 1864, foi ele novamente quem deu o nome do seu velho amigo. Eccarius «saiu-se admiravelmente», disse, depois, Marx a Engels, acrescentando que ficara muito contente por ter permanecido calado. N o entanto, muitos his-

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toriadores continuam a repetir ainda hoje que Marx desdenhava gente de profissão modesta. A verdade é que foi a presença de muitos trabalhadores autênticos — e a refrescante falta de diletantes da classe média pretensiosos — que o atraíram para o encontro inaugural da Internacional persuadindo-o «a abandonar a minha habitual atitude de declinar esse tipo de convites». E, apesar de ter estado presente em St Martin's Hall apenas como observador, foi eleito para o Conselho-Geral no fim da sessão. Parece haver aqui um ligeiro paradoxo. N a medida em que Marx era indiscutivelmente u m intelectual burguês, não iria ele diluir a pureza proletária que tanto admirava ao juntar-se a esse conselho? Para responder a esta pergunta precisamos de olhar mais de perto para a composição da Internacional. O Conselho-Geral era formado por dois alemães (Marx e Eccarius), dois italianos, três franceses e 27 ingleses — quase todos da classe operária. Tratava-se de uma mistura confusa: sindicalistas ingleses defendiam apaixonadamente o interesse de liberalizar as negociações colectivas, mas não estavam interessados na revolução socialista; adeptos franceses de P r o u d h o n que sonhavam com a utopia, mas não gostavam de sindicatos; mais alguns republicanos, discípulos de Mazzini e defensores da liberdade polaca. Discordavam sobre quase tudo — em particular do papel, se tal fosse o caso, que a classe média esclarecida desempenharia na Internacional. N u m a carta a Engels, escrita dois anos depois da sua fundação, Marx informava-o de um contratempo típico: «Para exasperar os cavalheiros franceses — que queriam excluir toda a gente excepto os trabalhadores manuais de ser membros da Associação Internacional ou, pelo menos, de ser eleitos como delegados do congresso — os ingleses propuseram-me ontem para Presidente do Conselho-Geral. Declarei que em nenhumas circunstâncias aceitaria tal coisa e propus Odger (o líder sindical inglês), que foi então reeleito, embora algumas insistissem em votar por mim apesar da minha declaração.»^"^ O livro de minutas desta assembleia regista que Marx «se considerou incapacitado porque era um trabalhador cerebral e não manual, mas não foi assim tão simples. (O seu desejo de continuar a escrever O Capita/deve ter tido influência.) Uns anos mais tarde, quando um médico chamado Sexton foi proposto como membro, houve os habituais comentários: «Se deviam ser

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acrescentados profissionais no Conselho; segundo as minutas, "o cidadão Marx achou que, embora a grande maioria do Conselho fosse composta por trabalhadores, a admissão de profissionais não era de temer".»^^ E m 1872, quando houve receio de que várias seitas americanas excêntricas se infiltrassem na Internacional, foi o próprio Marx quem propôs — com sucesso — que nenhuma fosse autorizada a filiar-se a não ser que pelo menos dois terços dos seus membros fossem trabalhadores assalariados. E m resumo, embora aceitasse que a maior parte da direcção e dos membros pertencesse à classe trabalhadora, Marx não se intimidou por não ter credencias proletárias: homens como ele ainda tinham muito para oferecer à associação, desde que não abusassem da sua posição hierárquica nem armassem em vedetas. Engels seguiu este exemplo, mas sendo um capitalista abastado mostrava-se compreensivamente mais relutante em se impor. Depois de ter vendido a sua parte na firma da família e mudar-se para Londres em 1870, aceitou um lugar no Conselho-Geral quase imediatamente, mas recusou ser tesoureiro. «O cidadão Engels objectou que só um trabalhador deveria ser nomeado para um cargo relacionado com finanças», está assente nas minutas. «O cidadão Marx achou que tal objecção não era defensável, pois u m h o m e m com experiência comercial era o mais indicado para desempenhar tal cargo.» Engels manteve a sua recusa — e tinha provavelmente razão. Como o historiador marxista Hal Draper sublinhou, lidar com dinheiro era o posto mais susceptível de uma associação de trabalhadores, pois acusações de irregularidade financeira eram bastante comuns sempre que havia um conflito político; e um homem de negócios recentemente chegado de Manchester era um alvo óbvio para qualquer «cavalheiro francês» que quisesse criar sarilhos. Marx pode ter preferido trabalhar nos bastidores, mas a verdade é que trabalhou a valer: sem os seus esforços, a Internacional talvez se tivesse desintegrado dentro de um ano. O Conselho reunia todas as terças-feiras na sua miserável sede em Greek Street, no Soho — no sítio onde, quase um século mais tarde, comediantes como Lenny Bruce e Peter Cook iriam empregar técnicas diferentes para sabotar os poderes estabelecidos. Os livros de minutas mostram que ele estava satisfeito por fazer o seu trabalho. («Os cidadãos Fox, Marx e Cremer foram delegados para assistir a Sociedade de Compositores... O cidadão Marx propôs e o cidadão Cremer apoiou que o Conselho-Geral agradeça ao cidadão Cottam a sua generosa doação... O cidadão Marx declarou que sociedades na Basileia e em Zurique se tinham

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juntado à Associação... O cidadão Marx informou ter recebido três libras da Alemanha para cartões de sócios que ele devidamente entregou ao secretário financeiro...») A sua influência foi aparente desde o princípio. O assunto que deu início à primeira assembleia do Conselho-Geral, a 5 de Outubro de 1864, foi a proposta de Marx que Wüiam Randal Cremer, do Conselho Comercial de Londres, devia ser nomeado secretário. (O Sr. Cremer foi eleito por unanimidade.) Mais tarde, nessa mesma noite, Marx foi eleito para u m subcomité, cuja tarefa era redigir as regras e princípios da nova Associação. Até aqui, tudo bem. Mas, depois, Marx adoeceu, faltando assim às duas reuniões seguintes. Levantou-se da cama a 18 de Outubro por causa de uma carta urgente de Eccarius avisando-o de que, se não viesse ao Conselho-Geral naquela noite, uma série de medidas confusas e insípidas seriam aprovadas na sua ausência. Marx dirigiu-se a custo à rua Greek e ouviu, aterrado, o bravo Le Lubez 1er «uma declaração de princípios cheia de clichés e mal escrita, em que Mazzini transparecia por debaixo de uma crosta dos mais insubstanciais fragmentos de sociaKsmo francês» "^. Após u m longo debate, Eccarius propôs que este pouco apetitoso menu fosse revisto por um subcomité, mas, para evitar tal m a n o b r a parecesse suspeita, p r o m e t e u manhosamente que o seu «conteúdo» seria mantido. Era a oportunidade que Marx necessitava. Tomando a sua expressão mais inocente, sugeriu que o subcomité se reunisse dois dias mais tarde em sua casa, a qual oferecia maior conforto (e uma cave mais abastecida de garrafas de vinho) do que a pequena sala na rua Greek. Quando os delegados apareceram, Marx pôs-se a discursar sobre regulamentos durante tanto tempo que, por volta da uma da manhã, aitida não tinham chegado ao que interessava. Como é que a declaração estaria pronta a tempo para a próxima assembleia do Conselho-Geral, cinco dias mais tarde? Os seus extenuados colegas aceitaram então, a bocejar e com gratidão, que Marx se encarregasse do assunto, e todos os documentos foram deixados com ele quando se foram deitar. «Vi logo que era impossível fazer qualquer coisa com aquilo para justificar a alteração do conteúdo», contou a Engels. «Redigi então Um Comunicado à Classe Operária (o que não fazia parte do plano original: uma espécie de revisão das tribulações da classe operária desde 1845) e, a pretexto de que todos os factos importantes se encontravam aí incluídos e que não devíamos repetir a mesma coisa três vezes seguidas, alterei o preâmbulo, excluí a déclaration des principes e, finalmente, reduzi os 40 regulamentos a dez.»

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Para apaziguar os membros mais devotos e menos revolucionarios, incluiu umas referências à verdade, moral, dever e justiça, evitando o beligerante floreado retórico que tinha animado o Manifesto Comunista. Como explicou a Engels: «Até podermos novamente usar uma linguagem ousada, vai demorar certo tempo. Temos áefortiter in re, suaviter in modo.» O que significa, essencialmente, falar de forma amena com um varapau na mão. Apesar dos anos passados em reclusão, Marx não tinha perdido nenhuma da sua antiga astúcia. N a reunião de 1 de Novembro, data marcada em parte por sugestão dele, o Conselho-Geral admitiu vários novos membros, entre os quais se encontravam Karl Pfänder, o veterano da Liga Comunista que outrora examinara o crânio de Wilhelm Liebknecht; H e r m a n n Jung, relojoeiro suíço; Eugène Dupont, fabricante francês de instrumentos musicais; e Friedrich Lessner, o alfaiate que, em 1848, tinha levado o manuscrito do Manifesto Comunista à pressa. Todos eles apoiavam resolutamente Marx — e este precisava de todo o apoio que pudesse arranjar, pois alguns dos membros ingleses não estavam nada contentes com o novo texto. Uma das sugestões mais amenas, conforme consta nas minutas, era que «devia ser dada uma explicação (em nota de pé de página) quanto aos termos "nitrogénio" e "carbono". (Marx achou isto desnecessário. «Não há necessidade de lembrar ao leitor que», comentou em tom enfastiado na nota, «além dos elementos da água e determinadas substâncias inorgânicas, o carbono e o nitrogénio constituem as matérias-primas da alimentação humana.») A queixa mais hostil proveio de um tipógrafo, William Worley, o qual, na última reunião, tinha criticado a expressão, «o capitalista opunha-se ao trabalhador». Desta vez, a sua consciência reformista sentia-se ofendida por Marx descrever os capitalistas de «exploradores» e, por 11 votos contra dez, o conselho concordou em omitir a palavra inflamatória. A alocução foi a seguir aceite. A aceitação unânime desta «revisão das tribulações da classe operária» é um tributo à capacidade de Marx saber até onde podia ir. N ã o havia vaticínios nem espectros ou papões revolucionários a pairar sobre a Europa — muito embora ele tivesse tentado arrepiar o leitor descrevendo a indústria britânica como um vampiro que sobrevivia à custa do sangue de crianças. Permitia, sobretudo, que os factos falassem por si, entremeando o documento com estatísticas oficiais tiradas da obra que estava a escrever, O Capital, a fim de justificar a reivindicação que «a miséria da massa operária não diminuiu de 1848 a 1864». Mas, como sempre, a sua tentativa para imaginar uma alternativa era informe. «Como o trabalho escravo, ou o servil, a mão-

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-de-obra contratada é apenas uma forma inferior e transitória destinada a desaparecer perante o trabalho colectivo exercido com determinação, espírito alerta e coração alegre.» A alocução terminava com as palavras, «Proletários de todo o mundo, uni-vos!»; a frase igualmente familiar encorajando-os para se livrarem das correntes era diplomaticamente omitida. Mesmo assim, não se pode deixar de perguntar com que profundidade foi o texto escrutinado pelos seus colegas antes de ser aprovado. «Os senhores da terra e os senhores do capital hão-de sempre utilizar os seus privilégios políticos para defender e perpetuar o seu monopólio económico», anunciava nas páginas finais. «Conquistar o poder poKtico tornou-se, por conseguinte, o dever da classe operária.» Tais ideias eram anátema para muitos dos representantes ingleses do Conselho-Geral que julgavam que o maior dever da classe operária era formar sindicatos a fim de negociar melhores pagamentos e condições, deixando a política para o Parlamento. Tal era certamente a opinião do impecavelmente moderado secretário-geral, William Randal Cremer, o qual foi nomeado mais tarde membro parlamentar da ala liberal e terminou a carreira como cavaleiro do reino. O facto de até ele ter votado a favor da alocução demonstra os poderes de persuasão de Marx. Como os veteranos da Liga Comunista sabiam, entre os quais Pfänder e Lessner, a presença intimidadora de Marx — os olhos negros, a ironia cortante, o seu formidável cérebro analítico ^ haveria sempre de dominar qualquer comité. Há pouco mais de um mês que se sentara silenciosamente em St. Martin's Hall e já controlava tudo. Mas a mera força da sua personalidade não era suficiente para apaziguar as animosidades e querelas que inevitavelmente caracterizavam uma organização tão híbrida e incongruente como a Internacional. Até mesmo o pequeno contigente francês estava dividido em duas facções irreconciliáveis de republicanos e adeptos de Proudhon. Os republicanos, representados por Le Lubez, eram fundamentalmente radicais da classe média — partidários da liberté, égalité etfranternité, mas menos entusiastas quanto a discussões sobre a indústria ou propriedade. Os conscienciosos discípulos de Proudhon, chefiados pelo gravador Henri Louis Tolain, consideravam as repúblicas e os governos tiranias centralizadas que não serviam os interesses dos artesãos e pequenos lojistas, cuja causa defendiam; tudo o que queria era uma rede de sociedades de crédito mútuo e cooperativas a pequenas escala. O u t r o proudhonista que se tinha tornado membro do Conselho-Geral em 1866 era o jovem estudante de medicina, Paul Lafargue, que viria a casar-se com Laura

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Marx. Os seus primeiros encontros com o futuro sogro não foram lá muito prometedores. «O raio do jovem Lafargue está sempre a irritar-me com as suas ideias protagonistas», queixou-se Karl a Laura. «E não há-de descansar até eu lhe pregar uma boa descompostura.»^^ Depois de um dos muitos discursos de Lafargue que afirmavam que as nações e as nacionalidades eram puras tolices, Marx provocou a risota entre os seus colegas ingleses assinalando que «o nosso amigo Lafargue, assim como os outros que aboliram a nacionalidade, dirigem-se a nós em francês, uma Kngua que nove décimos da audiência não compreende»^*. E acrescentou ainda maldosamente que, ao negar a existência da nacionalidade, o jovem fanático «parecia implicar inconscientemente que fora absorvido pela nação francesa». Os bravos sindicalistas ingleses divertiam-se à custa destas disputas de sabor francês, mas ficavam completamente espantados por Mazzini — uma figura heróica em Londres — ser tratado pelos alemães e franceses como u m imbecil, cuja paixão pela liberação nacional tinha eclipsado a consciência de classe. «A nossa posição, agora, é difícil», admitiu Marx após outra tumultuosa sessão na rua Greek, «pois, por um lado, temos de contrariar o imbecil italianismo dos ingleses e, por outro, a errada polémica dos franceses». Era uma tarefa em que se perdia demasiado tempo. N u m a carta a Engels de Março de 1865, Marx descreveu o trabalho típico de uma semana: terça-feira à noite era consagrada ao Conselho-Geral; Tolain e Le Lubez tinham brigado até à meia-noite e, depois, ele ainda tivera de se instalar numa tasca da vizinhança para assinar 200 cartões de sócio. N o dia seguinte, tinha assistido em St Martin's Hall à comemoração do aniversário da insurreição polaca. Reuniões de subcomités no sábado e na segunda-feira dedicadas à «questão francesa», ambas as quais tinham durado até à uma da manhã, E, na terça-feira seguinte, outra tempestuosa sessão do Conselho-Geral «deixara sobretudo os ingleses com a impressão de que a bancada francesa precisava realmente de um Bonaparte!» Entre essas sessões, havia «gente que surgia de todos os lados para falar comigo» sobre um sufrágio a ter lugar na semana seguinte. «Que desperdício de tempo!»'29 Engels pensava a mesma coisa e, após a morte de Marx, disse que «a vida do Mouro sem a Internacional teria sido um anel de diamantes com o diamante lascado»-'^ mas que, ao princípio, não conseguia compreender porquê o amigo gostava de passar horas em lúgubres salas do fundo no Soho quando podia muito bem estar sentado no seu gabinete de Hampstead a escrever O Capital.

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«Estive sempre meio convencido de que a ingénua fraternidade que reinava na Associação Internacional não duraria muito tempo», comentou presunçosamente em 1895, depois de outra zaragata entre os franceses. «Hás-de passar por muitas mais destas crises e vais perder muito do teu tempo.»-^^ Até se retirar para Londres em 1870, Engels nunca participou nessas sessões. Por volta de 1865, Marx era o verdadeiro líder da Internacional, embora o seu título oficial fosse «secretário corresponde para a Alemanha». Mas mesmo isso era um erro: a morte de Lassalle tinha-o deixado com poucos amigos em toda a Alemanha — Wilhelm Liebknecht e o ginecologista Ludwig Kugelmann — , e a maior parte da sua «correspondência» era uma troca de gracejos sobre a alegada homossexualidade do sucessor de Lassalle, Johann Baptist von Schweitzer, mais umas desdenhosas observações quanto ao consternante atraso político da raça teutónica. «Não há nada que, de momento, possa fazer na Prússia», escreveu ao Dr. Kugelmann. «Prefiro cem vezes mais a agitação que passo aqui na Associação Internacional. O efeito sobre o proletariado inglês é directo e da maior importância. Estamos agora a tratar da questão do sufrágio-geral, cujo significado é evidentemente maior do que na Prússia. 32 Ampliar o direito de voto era o problema parlamentar dominante do momento — embora se deva acrescentar que as várias propostas de reforma apresentadas por tories e whigs, em meados da década de 1860, deviam menos a princípios elevados do que a lutas para obter vantagens partidárias. Havia inúmeros debates que, hoje em dia, parecem tão remotos e incompreensíveis como a questão Schleswig-Holstein sobre os direitos de voto dos «proprietários de terras com escritura», «tributários a seis libras» e «arrendatários vitalícios a 50 libras». Mas, no meio de todos os arcanos argumentos quanto a caprichosos direitos de voto e voto colectivo, uma coisa era aceite por todos os pares e membros do Parlamento: tinha de haver um tipo de qualificação de propriedade qualquer para impedir que a populaça tivesse uma palavra a dizer sobre os assuntos do país. «O que eu temo», escreveu Walter Bagehot no seu livro, English Constitution, «é que ambos os nossos partidos soHcitem o apoio do trabalhador e que ambos prometam fazer o que ele quer...» Até mesmo a União de Reforma Nacional, um presumível grupo de pressão radical, desejava apenas a emancipação de proprietários e inquilinos que pagavam impostos. N a Primavera de 1865, após uma reunião à cunha em St. Martin's Hall, foi fundada uma liga reformadora para fazer campanha pelo sufrágio uni-

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versal masculino. (A possibilidade que as mulheres quisessem ou tivessem a capacidade de votar era aparentemente demasiado esquisita para merecer consideração.) Marx e os colegas da Internacional dominaram o evento: «Toda a liderança encontra-se nas nossas mãos», informou triunfalmente Engels. N o ano seguinte, e enquanto se ocupava simultaneamente da Internacional, da redacção de O Capital, das exigências da família e dos credores — e, claro está, dos furúnculos no rabo, os quais era mais prolíficos do que nunca, Marx envolveu-se com entusiasmo na cruzada. Atirou-se aos seus adversários de navalha em punho, contemplando com viciosa satisfação aquele derramamento de sangue. Por vezes, depois de passar várias noites seguidas a deitar-se às quatro horas da manhã, sentia-se «infernalmente esgotado» e desejava nunca ter acordado do seu estado de hibernação. Valia o jogo tantas noites à luz da vela? Convenceu-se de que sim. «Se conseguirmos reelectrificar o movimento político dos trabalhadores ingleses», escreveu depois e lançar a Liga Reformadora, «a nossa Associação já terá feito mais pela classe operária europeia do que seria possível de outra maneira. E há boas perspectivas de sucesso.»^-^ Mas tal não aconteceu. Os líderes sindicais reformistas, como Cremer e Odger, em breve fizeram concessões, decidindo que ficariam bastante satisfeito corno o voto dos donos de casa em vez de um voto por homem. E foi isso, mais ou menos, o que obtiveram. N o Verão de 1867, o Parlamento aprovou a Lei da Reforma de Disraeli, a qual baixou a qualificação de propriedade para os eleitores rurais e ampliou o direito de voto a todos os proprietários urbanos — duplicando, assim, o número do eleitorado. Mas a vasta maioria da população operária permaneceu sem direito a voto. A Internacional nunca foi fiel ã hipérbole de Marx. Houve alguns sucessos ao princípio, nomeadamente na sabotagem das tentativas dos patrões ingleses contratarem mão-de-obra estrangeira como furadores de greves, e a fama assim conseguida convenceu várias pequenas corporações a filiarem-se — entre as quais empresas com nomes exóticos como os Cordoeiros Amalgamados de DarUngton, a Sociedade de Tanoeiros de Mãos Dadas, os Marceneiros de West-End, os Encadernadores Diurnos, os Cabeleireiros Ambulantes Ingleses, a Sociedade dos Tecedores de Teia Elástica e os Fabricantes de Charutos. Mas os grandes sindicatos industriais mantiveram-se afastados. William Allen, secretário-geral dos Sociedade Amalgamada de Engenheiros, chegou a recusar encontrar-se com uma delegação da Internacional. Ainda mais exasperante foi o fiasco de não conseguirem a parti-

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cipação do Conselho Comercial de Londres, muito embora o seu secretário, George Odger, ser também presidente da Internacional. Por altura do primeiro congresso europeu da Associação, que teve lugar em Genebra no Verão de 1866, o número total de firmas filiadas era de 25 173 — número de m o d o algum desprezível, mas longe de constituir prova que o proletariado inglês fora «reelectrificado». A Internacional tinha de alargar os seus horizontes para além dos Cordoeiros de Darüngton, a fim de se expandir e fazer mais jus ao seu nome. Apesar de Marx não ter ido ao congresso em Genebra, conseguiu, no entanto, dominar os debates. Quando os proudhonistas franceses comunicaram o seu bem ensaiado protesto contra os sociaMstas da classe média («todos os homens com o dever de representar a classe operária deveriam ser operários»), WiUiam Randal Cremer defendeu o currículo dos poucos trabalhadores não manuais que faziam parte do Conselho-Geral. «Entre esses membros, nomearei apenas um, o cidadão Marx, que dedicou a vida ao triunfo da classe operária.» Tal defesa foi a seguir retomada por James Carter, dos Cabeleireiros Ambulante: «O cidadão Marx acabou de ser mencionado; compreendendo perfeitamente a importância deste primeiro congresso, onde só deveriam participar delegados da classe operária, ele recusou o convite do Conselho-Geral. Mas não é este o motivo que o impediu, a ele ou a qualquer outra pessoa, de se juntar a nós. Pelo contrário. Aqueles que se dedicam totalmente ã causa do proletariado são demasiado raros para nós os afastarmos. A classe média só triunfou quando, apesar de poderosa e rica, se aliou a homens de ciências...» Após este depoimento de barbearia, até mesmo o Mder da facção proudhonista, Henri Tolain, se sentiu obrigado a felicitar o herói ausente. «Como trabalhador, agradeço ao cidadão Marx por não ter aceite ser delegado. A sua recusa mostra que este congresso deve contar apenas com a presença de trabalhadores manuais.» A intenção do cidadão Marx não era de mostrar nada disso e não existem provas de que ele não se tenha deslocado a Genebra para evitar ofender a sensibilidade proletária. Uma explicação mais provável é que não esteve para aturar as enfadonhas arengas dos exclusionistas franceses e poder, assim, continuar a trabalhar, sem ser interrompido durante alguns dias, na redacção de O Capital.

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N o ano anterior, dissera a Engels que o manuscrito precisava apenas de uns «retoques», os quais seriam feitos em Setembro de 1865. «De momento, ando a trabalhar como um cavalo.» O seu amigo tinha ouvido muitas destas previsões optimistas ao longo dos anos, mas, dessa vez, Marx parecia realmente estar na recta final — apesar da velha pileca ir a trote e não a galope. Tinha passado o Verão daquele ano a vomitar todos os dias («por causa do tempo quente e consequentes crises hepáticas»), e uma repentina invasão de convidados ainda mais o distraira. O pateta do irmão de Jenny, Edgar von Westphalen, veio instalar-se em casa deles durante seis meses, esvaziando todas as garrafas de vinho que havia na cave e «reflectindo sobre as necessidades do seu estômago de manhã à noite»; incluídos nas demais visitas figuravam o cunhado de Marx que vivia na Africa do Sul, uma sobrinha de Maastricht e a família de Freiligrath. Foi o preço que ele teve de pagar por se ter mudado para uma casa com quartos livres, mas era um preço que ele dificilmente podia suportar. «Há dois meses que vivo exclusivamente à custa da casa de prego», resmungava, arreliado. «Tenho uma data de credores a bater-me à porta e a situação está a tornar-se cada dia mais insustentável.»-^'^ N o entanto, no centro deste turbilhão, a sua obra-prima estava a aproximar-se do fim. Por volta de 1865, O Capilal tinha 1200 páginas, uma confusão barroca de gatafunhos, riscos e manchas de tinta. N o primeiro dia do Ano N o v o de 1866, sentou-se para redigir uma versão Hmpa e pohr o estilo — «lambendo o recém-nascido depois de longas dores de parto». Mas, então, os furúnculos voltaram ao ataque. Por ordem médica, exilou-se durante u m mês em Margate onde pouco mais fez do que banhar-se n o mar, tomar arsénico três vezes ao dia e sentir pena de si mesmo. «Posso cantar como o moleiro solitário: " N ã o me importo com ninguém e ninguém se importa comigo." N o fim deste tratamento, os furúnculos desapareceram — sendo substituídos por reumatismo e dores de dentes. A seguir, os velhos problemas de fígado voltaram e, mesmo nos dias em que ele se sentia suficientemente bem para trabalhar, aconteciam novas desgraças, como quando a papelaria recusou fornecer mais resmas de papel até ser paga. Com requintada falta de oportunidade, Paul Lafargue escolheu a altura para pedir Laura Marx, que contava então 20 anos, em casamento. Após ter conhecido Marx através da Internacional, o estudante crioulo de medicina tinha transferido a sua atenção para a filha de olhos verdes e começara a fazer-lhe a corte com um entusiasmo que Karl achava absolutamente indecoroso. Lafargue era de qualquer m o d o suspeito, não pelas suas tendências

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proudhonistas como também por ter exótica ascendencia franco-hispano- afro-indiana, o que, para o eventual sogro, sugeria uma certa leviandade genética. Assim que arranjou papel de carta, Marx escreveu uma carta ao zeloso pretendente digna do mais vitoriano chefe de família. «Meu caro Lafargue, Permita-me fazer as seguintes observações: 1. Se desejar continuar as suas relações com a minha filha, terá de abandonar a sua presente maneira de lhe fazer a corte. Sabe muito bem que não há n e n h u m compromisso e que tudo está ainda p o r decidir. E que mesmo que ela fosse oficialmente a sua noiva, não deveria esquecer-se que se trata de um assunto que demora muito tempo. A prática de excessiva intimidade é especialmente inadequada, pois os dois namorados terão de viver no mesmo lugar por u m período necessariamente prolongado de purgatório e testes severos... Quanto a mim, o verdadeiro amor exprime-se em reticências, modéstia e até mesmo timidez por parte do namorado em relação ao seu objecto de veneração sem dar rédea • solta à paixão em prematuras demonstrações de familiaridade. Se argumentar em sua defesa o seu temperamento crioulo, será naeu dever interpor o meu sólido bom senso entre o seu temperamento e a minha filha. Se, na presença dela, for incapaz de a amar em conformidade com a latitude londrina, terá de se resignar e amá-la à distância.»^^

• • N a verdade, foi Marx, e não Lafargue, que atribuiu esse ardor — e quase tudo o mais — ao «temperamento crioulo». Ainda falava do assunto em Novembro de 1882, contando a Engels que «Lafargue possui o defeito que se encontra habitualmente nas tribos negras — nenhuma noção da vergonha, quer dizer, nenhuma vergonha em fazer figura de parvo».'*'' Antes de dar o seu consentimento, Marx exigiu ao jovem uma lista completa das suas perspectivas futuras. «Sabe que sacrifiquei toda a minha formna à causa revolucionária», escreveu a Lafargue. «Não estou arrependido. Muito pelo contrário. Se tivesse de viver de novo a minha vida, faria exactamente o mesmo. Mas não me casaria. Desejo quanto possível poupar a minha filha aos escolhos onde a mãe dela arruinou a vida... Tem de realizar algo na vida antes de pensar em casar e você e Laura terão de passar por um longo período de provações.»^^^ Mas não foi assim tão longo. O noivado de Laura Marx com Paul Lafargue foi anunciado em Setembro de 1866, apenas

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urn mês depois de Marx ter enviado essa carta, e casaram-se em St. Paneras, a 2 de Abril de 1868. Marx, em veia pouco romântica, descreveu o casamento como «um grande alívio para toda a família, pois era como se Lafargue vivesse connosco, o que aumentava perceptivelmente as despesas»'^^. D u rante a festa, Engels contou tantas piadas sobre a noiva que esta fundiu-se em lágrimas.^' Sem a vivacidade de Jennychen e Eleanor, Laura nunca gostou de ser o centro das atenções. «Como tenho o costume de me manter na sombra, sou muitas vezes esquecida e ignorada pelos outros.)/'^ De todas as filhas de Marx, ela era a mais parecida com a mãe: enquanto as irmãs sonhavam com carreiras no palco, a única ambição de Laura era ser boa esposa. O primeiro filho, Charles-Etienne (a quem chamavam Schnapps), nasceu a 1 de Janeiro de 1869, quase exactamente nove meses depois do casamento, e foi seguido por uma filha e outro rapaz no espaço de dois anos. Todos morreram ainda bebés. Era impossível escapar àqueles escolhos onde a vida da mãe fora destroçada. «Em todas estas lutas pela vida, somos nós, as mulheres, que temos de suportar a parte mais difícil, porque é a mais insignificante», escreveu Jenny Marx, chorando a morte dos netos. «Um homem tira forças do seu combate com o mundo exterior, e a vista do inimigo, mesmo que seja uma legião, revigora-o. Mas nós ficamos em casa a remendar peúgas.»'*^

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H á muito que a casa em Modena Villas, 1 caiu em ruínas, mas Paul Lafargue deixou uma descrição evocadora do caótico covil no andar de cima onde Marx trabalhava, que deve alegrar o coração de todos os escritores desarrumados do mundo: «Do lado oposto à janela e em ambos os lados da lareira, havia estantes alinhadas contra as paredes cheias de livros e pilhas de jornais e manuscritos até ao tecto. Diante da lareira, a um dos lados da janela, duas mesas com livros e papéis empilhados em cima; no meio do gabinete, uma pequena e simples secretária (90x60 centímetros) bem iluminada e uma poltrona de madeira; entre esta e a estante, um sofá de cabedal onde Marx costumava deitar-se de vez em quando para descansar. Mais livros, charutos, fósforos, caixas de tabaco, pesos de papel e fotografias da mulher e das filhas de Marx, de Wilhelm Wolff e de Friedrich Engels cobriam a cornija da lareira... Nunca deixava ninguém arrumar os livros e papéis — ou desarrumá-los. A desordem em que se encontram era apenas aparente, todo estava na realidade onde devia estar e, assim, era fácil para ele encontrar o uvro ou o documento que precisava. Mesmo enquanto conversava, fazia por vezes uma pausa para mostrar num determinado Hvro a citação que tinha acabado de mencionar. Ele e o seu gabinete constituíam uma só entidade: controlava os livros e papéis que lá se encontravam tão bem como os seus próprios membros.»^

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Isto é quase idêntico à descrição do relatório sobre a casa de Marx da rua Dean, no Soho, escrito 12 anos antes pelo espião da polícia prussiana: «Manuscritos, livros e jornais, bem como brinquedos de crianças, trapos e objectos do cesto de costura da mulher, várias chávenas partidas, facas, garfos, lâmpadas, um tinteiro, dedais, cachimbos de espuma, tabaco, cinza — numa palavra, mdo espalhado em desordem total.» Os seus hábitos de trabalho não tinham mudado: continuava a gastar centenas de fósforos para acender o cachimbo e a abandonar charutos que se esquecia de fumar até ao fim. «O Capital», disse a Lafargue, «nem sequer há-de pagar os charutos que fumei enquanto o escrevia.» A impossibilidade de fumar bons Havanas inspirou-lhe uma fantasiosa ideia para fazer economias ao reparar numa tabacaria em Holsborn que, através do slogan «quanto mais fuma, mais poupa», vendia charutos ainda mais baratos e malcheirosos do que os que ele fumava habitualmente. Ao mudar para a nova marca, explicou aos amigos que, assim, economizava um xelim e seis cêntimos por caixa, e, por conseguinte, se fumasse bastante poderia, um dia, viver das suas economias. A teoria foi posta à prova com tantos ataques de tosse que o médico da família teve finalmente de intervir e ordenar-lhe que arranjasse outra maneira de enriquecer. Marx passou o Inverno de 1866-67 com as doenças do costume, mas mesmo elas já não podiam contrariar a sua determinação de terminar o primeiro volume de O Capital. Escreveu as últimas páginas de pé, pois os furúnculos impediam-no de se sentar. (O habitual analgésico, arsénio, «embota-me demasiado o espírito e eu tenho de me manter bem atento».) O olho experiente de Engels notou imediatamente certas passagens no texto «em que os furúnculos tinham deixado marca», e Marx concordou que a febre devia ter dado um tom lívido à prosa. «Espero que, em todo o caso, a burguesia há-de lembrar-se dos meus furúnculos até morrer. São uma cambada de suínos!»^ N o entanto, após 20 anos de gestação, o ovo estava finalmente chocado. «Tinha resolvido não te escrever até poder anunciar o fim do livro», disse a Engels a 2 de Abril de 1867, «e tal é agora o caso.» Uma semana mais tarde, e depois de ter enviado a inevitável carta a Engels a pedir-lhe dinheiro para tirar a roupa e o relógio do prego, partiu para Hamburgo a fim de entregar o manuscrito ao editor, Meissner. «Também não deixar a família sem um tostão e com os credores cada vez mais atrevidos. Para terminar e antes que me esqueça, todo o dinheiro que tinha para gastar com champanhe para Laura desapareceu e ela, agora, quer vinho tinto da melhor qualidade. Voilà

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la situation.y? C o m o sempre, E-ngels resolveu a situation enviando-lhe sete notas de cinco libras pelo correio. Tendo-se despedido dos fiarúnculos e de O Capital, Marx deixou a Inglaterra sentindo-se «tão voraz como 500 javalis»: até m e s m o uma horrível viagem de 52 horas com fortes rajadas e chuva não conseguiu diminuir o seu entusiasmo. «Com toda aquela gente enjoada e a ser atirada de um lado para o outro, poderia ter sido incómodo se um determinado núcleo não tivesse aguentado», informou. O núcleo incluía um negociante de gado («um autêntico John Buli, bovino em todos os aspectos»), um explorador alemão que há 15 anos vagueava pelo Peru e uma senhora de idade com sotaque de Hanôver muito devota. «O que é que fascinava esta bela criatora em circunstâncias tão hostis? Por que é que ela não se retirou para os seus aposentos? O nosso aventureiro alemão regalava-nos com um excitante relato das depravações sexuais dos selvagens.»"^ Marx entregou a sua preciosa carga a Meissner que, por sua vez, a enviou para a tipografia a fim de ser publicada em fins de Maio. O exultante autor alojou-se no mês seguinte em casa do Dr. Ludwig Kugelmann, em Hanôver, para rever as provas. «O Kugelmann é um médico muito famoso na sua especialidade, a ginecologia», escreveu a Engels. «E, em segundo lugar, é um adepto fanático (e, para meu gosto, demasiado vestfaHano) das nossas ideias e, em particular, de nós dois. Por vezes, o seu entusiasmo incomoda-me...» E m b o r a os dois homens não se conhecessem pessoalmente, há anos que Kugelmann lhe enviava cartas admirativas. Além do mais, Kugelmann possuía uma colecção mais completa das obras de Marx e Engels do que os próprios interessados: durante a sua estada em casa do médico, Marx deparou com A Sagrada Vamília, livro que nunca mais vira desde que tinha perdido o seu próprio exemplar pouco depois da publicação. Apesar da sufocante adulação de Kugelmann, Marx escreveu, «ele compreende e é, deveras, um homem excelente; mais importante ainda é o facto de estar absolutamente convencido. Tem uma mulher encantadora (Gertrude) e uma filha de oito anos (Franziska) que é um amor»^ Marx deu-lhes logo alcunhas, sinal seguro de aprovação: a Sra. Kugelmann passou a ser a «senhora condessa» por causa da sua elegância social e bons modos, enquanto o marido foi apelidado «Wenzeb>, nome de dois antigos dirigentes boémios de contrastada reputação. «O meu pai era muito franco em relação às suas antipatias e simpatias», recordou Franciska Kugelmann. «E Marx, em conformidade com as atitudes dele, chamava-lhe o b o m ou o mau Wenzel.»

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Quando o médico começava a discutir política na presença de Franziska ou da senhora condessa, Marx silenciava-o imediatamente: «Não são conversas para senhoras jovens, falaremos disso mais tarde.» E, em vez disso, o prazenteiro erudito entretinha as senhoras com graças, anedotas literárias e canções folclóricas. A única vez que se irritou foi quando uma visita lhe perguntou quem engraxaria os sapatos num regime comunista. «Você», retorquiu Marx, zangado. A Sra. Kugelmann interveio brincando com ele e comentando que não conseguia imaginá-lo a viver numa sociedade verdadeiramente igualitária pois os seus gostos e hábitos eram aristocráticos. «Eu também não consigo imaginar tal coisa», concordou ele. «Esses tempos hão-de vir, mas nós já cá não havemos de estar.» Certa vez, sentiu-se imensamente lisonjeado por Kugelmann o achar parecido com um busto de Zeus que se encontrava na sala — a poderosa cabeça, a cabeleira abundante, a fronte olímpica, a expressão bondosa, mas autoritária. Não foram só os Kugeknann que acolheram triunfalmente Marx enquanto ele permaneceu em Hanôver. «A reputação que nós ambos temos na Alemanha», escreveu a Engels, «em particular entre os funcionários "educados", é de uma ordem muito diferente do que imaginávamos. Assim, o director do departamento de estatística aqui, Merkel, veio visitar-me no outro dia e disse-me que tinha andado a estudar assuntos relacionados com dinheiro há anos sem nenhum resultado, mas que eu o esclarecera imediatamente de uma vez por todas.» Marx foi convidado para jantar pelo director da companhia de caminhos-de-ferro local, que lhe agradeceu profusamente «dar-lhe tal honra». Ainda mais lisonjeiro foi a chegada de um emissário de Bismark que lhe anunciou que o Chanceler desejava «utilizá-lo, a si e ao seu enorme talento, para o bem do povo alemão». E Rudolf von Benningsen, chefe da ala conservadora do Partido Nacional Liberal, compareceu em pessoa para lhe render homenagem. N ã o admira que Marx se sentisse tão jovial. A sua saúde era excelente, sem furúnculos à vista, e, apesar dos jantares bem regados todas as noites, não havia traços de complicações hepáticas. Os anos sem dormir devido a doenças, esqualidez e obscuridade encontravam-se, agora, nos caixotes do lixo da história. «Tive sempre a sensação de que esse raio de Hvro, com que andaste às voltas durante tanto tempo, era a causa de todos os teus infortúnios», escreveu-lhe Engels a 27 de Abril. «E que nunca conseguirias safar-te até te veres livre dele.» • U m atraso na tipografia fez com que ele só recebesse as provas a 5 de Maio, dia do seu quadragésimo nono aniversário; mas até mesmo essa incon-

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veniência, a qual noutra altura teria provocado grande irritação durante um dia ou dois, não conseguiu suprimir a sua boa disposição. «Espero e confiantemente creio que, dentro de um ano, hei-de resolver a minha situação financeira e tornar-me, novamente, independente», predisse. Novamente? ^^L sua vida adulta, nunca tinha havido um momento em que Marx não precisasse de ajuda. Como ele mesmo admitiu numa carta a Engels: «Sem ti, nunca teria sido capaz de terminar o meu trabalho e posso assegurar-te que o facto de deixares a tua energia ser desperdiçada e enferrujar num trabalho comercial, sobretudo por minha causa, além de partilhares as minhas pequenas misérias, sempre pesou como um pesadelo na minha consciência.» Umas frases mais adiante, contudo, a angústia e o desânimo recomeçaram mais uma vez a vir ao de cima. O editor aguardava o envio do segundo e do terceiro volume antes do final do ano; os credores em Londres aprontavam-se para lhe bater à porta assim que ele chegasse; «e, depois, os tormentos da vida familiar, os conflitos domésticos e as importunações constantes em vez de me instalar para trabalhar calmo e sem cuidados». As aflições de um londrino da classe média não são as mesmas dos indigentes. O seu primeiro pedido a Engels, depois de ter regressado a Londres, foi várias caixas de clarete e vinho do Reno, porque «as minhas filhas têm de convidar outras raparigas para um baile no dia 2 de Julho. N ã o puderam convidar ninguém durante todo o ano nem aceitar convites e, por conseguinte, estão quase a baixar de casta»''. Enquanto outrora se tinha batido para arranjar uns cêntimos para comprar pão e jornais, agora as suas necessidades domésticas eram as de um suburbano ansioso para manter aparências. Ao saber que o poeta FreiHgrath, depois de ter perdido o emprego na filial londrina de um banco suíço, vivia actualmente em grande estilo à custa da cotização de admiradores britânicos, americanos e alemães, sentiu-se «muito vexado». O melhor tratamento era enviar as filhas para passar férias em Bordéus (financiado por Engels, claro está), a fim de poder rever, sem interrupções, as provas de O Capital. Comentários entre aqueles que tinham lido partes da obra levaram-no a esperar que, no dia seguinte à publicação, o seu nome e fama ressoariam por toda a Europa. Johann Georg Eccarius dissera a amigos que o «próprio Profeta está mesmo agora a publicar a quinta-essência de toda a sabedoria». Marx terminou a revisão e correcção das provas do primeiro volume na madrugada de 16 de Agosto e enviou um sincero agradecimento ao seu patrocinador. «Este volume, portanto, está terminado. Devo-o só a ti! Sem

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OS teus sacrifícios por mim nunca conseguiria ter lidado com o imenso trabalho exigido pelos três volumes. U m abraço cheio de reconhecimento... Salut, meu estimado e querido amigo.»** Exactamente um século depois da sua publicação, o primeiro-ministro britânico, Harold Wilson, gabou-se de nunca ter lido O Capital. «Só li as duas primeiras páginas... onde há um nota de roda pé quase do comprimento de uma página. Achei que era demasiado para apenas duas frases do texto.»^ Wilson era formado em ciência política, filosofia e economia, mas pensou que confessar a sua ignorância agradaria à classe média educada, a qual, em particular na Grã-Bretanha e nos EUA, tem o perverso orgulho de não 1er Marx. Daí os exasperantes e viciosos argumentos das pessoas que n e m chegaram à segunda página. «O Capitale absurdo.» E como é que sabem isso? «Porque não vale a pena ser lido.» Uma objecção mais requintada é feita pelo filósofo Karl Popper: não se pode dizer se Marx escreveu coisas absurdas, ou não, porque as suas «leis férreas» quanto ao desenvolvimento capitalista não são mais do que incondicionais profecias históricas, tão vagas e incompreensíveis como as de Nostradamus. Ao contrário das hipóteses científicas adequadas, não podem ser demonstradas nem — o teste popperiano crucial — falsificadas. «Em ciência, as previsões normais são condicionais», declara Popper. «Demonstram que certas mudanças (de temperatura da água numa chaleira, por exemplo) serão acompanhadas por outras mudanças (fervura da água, por exemplo).» N a realidade, seria fácil submeter as afirmações sobre economia de Marx a uma experiência semelhante estudando o que aconteceu, na prática, durante o século passado. A medida que o capitalismo vai amadurecendo, previu, assistiremos a recessões periódicas, a uma dependência crescente da tecnologia e ao crescimento de enormes corporações quase monopolistas que estenderão os seus tentáculos por todo o mundo à procura de mercados para explorar. Se nada disto tivesse acontecido, poderíamos ser levados a concordar que o velhote estava a dizer balelas. N o entanto, os ciclos de expansão da economia ocidental no século XIX, como o domínio da Microsoft, de BiUy Gates, por exemplo, sugerem que ele tinha razão. Ah, pois, dizem os críticos, mas, então, o que dizer do facto de Marx ter acreditado na «miséria progressiva» do proletariado? N ã o previu ele que a prosperidade do capitalismo seria alcançada através de uma redução absoluta do salário e dos padrões de vida do trabalhador? Vejam a classe opera-

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ria de hoje com carros e antenas parabólicas: não estão lá muito miseráveis, pois não? O economista Paul Samuelson declarou que toda a obra de Marx pode, com segurança, ser ignorada, pois o empobrecimento do trabalhador «simplesmente nunca ocorreu» — e na medida em que os manuais de Samuelson são há gerações a dieta dos estudantes de economia, tanto na Grã-Bretanha como nos EUA, isto tornou-se aceite. Mas trata-se de um mito baseado numa interpretação incorrecta da «lei geral da acumulação capitalista» de Marx, inscrita no capítulo 25 do primeiro volume. «A indigência» constitui uma condição da produção capitalista e do desenvolvimento capitalista de riqueza. Faz parte das despesas incidentais da produção capitalista: mas o capital sabe habitualmente como se desfazer delas e as passar para a classe operária e a pequena burguesia.»^" Neste contexto, porém, ele não se refere à indigência de todo o proletariado, mas à dos «sedimentos mais baixos» da sociedade — os desempregados, os miseráveis, os doentes, os velhos, as viúvas e os órfãos. Pode alguém negar que tal subclasse ainda existe? Outro pária judeu disse uma vez que «os pobres estarão sempre entre nós», mas ainda nenhum economista sugeriu que os ensinamentos de Jesus estavam desacreditados pela sua previsão de miséria perpétua. O que Marx previu foi que, sob o capitalismo, haveria u m declínio relativo — e não absoluto — dos salários. Isto é obviamente verdadeiro: poucas firmas, se houver alguma, com um lucro de 20 por cento, aumentam imediatamente em 20 por cento o salário dos seus empregados. E, assim, por muitos microndas que o trabalhador possa comprar, a mão-de-obra distancia-se cada vez mais do capital. «Segue-se, por conseguinte, que à medida que o capital se acumula, a situação do trabalhador, quero seu salário seja elevado ou baixo, torna-se pior.»" (Os itálicos são do autor.) Como no caso de Cristo, a definição de pobreza de Marx era tão espiritual quanto económica. Qual é o proveito de um h o m e m ganhar o m u n d o e perder a alma? Ou, como Marx escreveu em O Capital, os meios através dos quais o capitalismo aumenta a produtividade, «reduzem o trabalhador a um fragmento de homem, degradam-no ao nível de um apêndice de máquina e destroem o conteúdo do seu trabalho transformando-o num tormento; alienam-no das potencialidades intelectuais do processo laboral na mesma proporção em que a ciência está incorporada nele como poder independente; deformam as condições em que trabalha e sujeitam-no a um despotismo odioso; trans for mam-lhe o

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tempo de vida em tempo de trabalho, arrastando a mulher e o filho para baixo das engrenagens do capital... A acumulação de rique2a a um determinado pólo corresponde simultaneamente uma acumulação de miséria, tormento laboral, escravidão, ignorância, brutalÍ2ação e degradação m o ral no pólo oposto.» A última frase, isolada, podia ser dada como exemplo de outra previsão do empobrecimento absoluto dos trabalhadores, mas apenas u m idiota — ou um conferencista de temas económicos — manteria esta interpretação depois de 1er a condenação que a precede. «Deve-se ter em mente», admite Leszek Kolakowski, um dos mais influentes críticos modernos do marxismo, «que o empobrecimento material não constituía uma premissa natural da análise de Marx sobre a desumanização do salário laboral ou da sua predição quanto à inevitável ruína do capitalismo»^^. Correcto. Mas, a seguir, Kolakowski ignora o seu próprio conselho e coloca outro naco de queijo na velha ratoeira de Karl Popper. «Como interpretação dos fenómenos económicos», adverte, «a teoria de valores de Marx não satisfaz os requisitos normais da hipótese científica, em particular os da falsificação.»^^ Bem, claro que não: nenhum papel tornasol, microscópio electrónico ou programa informático pode detectar a presença de algo tão intangível como a «alienação» e a «degradação moral». O CapitaloÃo é realmente uma hipótese cienti'fica, nem sequer um tratado económico, embora os fanáticos de ambos os campos tenham insistido em considerá-lo assim. O próprio autor foi bastante claro quanto às suas intenções. «No que respeita ao meu trabalho, vou dizer-te a pura das verdades», escreveu a Engels a 31 de Julho de 1865. «Ainda tenho de escrever mais três capítulos para terminar a parte teórica... Mas não consigo enviar nada até ter tudo à minha frente. Independentemente dos defeitos que possam ter, a vantagem dos meus escritos é que constituem um todo artístico...» Outra carta escrita uma semana mais tarde refere-se ao livro como uma «obra de arte», e cita «considerações artísticas» como motivo do atraso em apresentar o manuscrito. N o caso de Marx desejar produzir um texto de economia clássica em vez de uma obra arti'stica, poderia tê-lo feito. E fê-lo realmente: duas palestras em Junho de 1865, mais tarde publicadas sob o título Valor, Preço eVucro dão um resumo conciso e lúcido das suas conclusões:

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Como os valores permutáveis dos artigos são apenas funções sociais dessas coisas e nada têm a ver com as suas qualidades naturais, temos primeiro de perguntar: qual é o elo social comum de todos os artigos? É o trabalho. Uma certa quantidade de trabalho tem de ser exercida para produzir um artigo. E não me refiro simplesmente ao trabalho, mas ao trabalho social. Uma pessoa que produz um artigo para uso pessoal imediato cria wvaproduto, não um artigo... U m artigo tem um 2^ií/orporque é a cristali^ção do trabalho social... O preço, tomado por si só, não passa da expressão monetária do valor... O que o trabalhador vende não é directamente o seu trabalho mas o ?,e\ípoder laboral, o qual põe temporariamente à disposição do capitalista... Suponhamos agora que um trabalhador precisa de uma média de seis horas diárias para produzir. Suponhamos ainda que são necessárias seis horas em média para produzir uma quantidade de ouro equivalente a três xelins. O preço, ou a expressão monetária do valor diário do poder laboral desse homem, seria então de três xelins... Mas, ao pagar-lhe o valor diário, ou semanal, do pode laboral, o capitalista adquiriu o direito de utiHzar o poder laboral durante todo o dia ou toda a semana. E, por conseguinte, fá-lo-á trabalhar diariamente por exemplo M horas... Ao dar três xelins, o capitalista realiza um valor de seis xelins pois, pagando um valor no qual seis horas de trabalho estão cristalizadas, receberá, em compensação, um valor no qual 12 horas de trabalho estão cristalizadas. A o repetir diariamente este m e s m o processo, o capitalista pagara diariamente três xelins e meterá diariamente seis xelins ao bolso, metade dos quais servirá para pagar novamente salários e a outra metade para formar um valor excedentário pelo qual o capitalista não pagou a soma equivalente. É sobre esta espécie de permuta entre o capital e o trabalho que se funda a produção capitalista, ou o sistema de salários, o que resulta constantemente na reprodução do trabalhador como trabalhador e do capitalista como capitalista.^'* Independentemente dos seus méritos como análise económica, pode ser entendido por uma criança inteligente: não há metáforas elaboradas nem temas metafísicos, digressões confusas, tiradas filosóficas ou floreados literários. Porquê então o estilo de O Capital, que trata exactamente do mesmo assunto, é tão totalmente diferente? Será que Marx perdeu de repente o dom de falar com simplicidade? É evidente que não: na altura em que deu essas conferências, estava também a terminar o primeiro volume de O Capital.

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Encontramos uma pista numa das raras analogias que se permitiu fazer em Valor, Preço e l^ucro para explicar que o lucro resulta em vender artigos ao preço «real» e não — como se poderia assumir — em acrescentar um valor adicional. «Isto parece ser um paradoxo e contrário à observação diária», escreveu. «Também é um paradoxo a Terra mover-se à volta do Sol e a água ser formada por dois gases altamente inflamáveis. A verdade científica é sempre paradoxal quando vista através da experiência diária, a qual capta apenas a natureza ilusória das coisas.» Isto parece um convite para avaliar a sua obra-prima através de padrões científicos. Mas ouçamo-lo mais de perto: ele está a Mdar com «a natureza ilusória das coisas», assunto que não pode ser limitado a um género como a economia política, antropologia ou história. Como Marx indica: «A primeira vista, um artigo parece ser uma coisa muito trivial e facilmente compreendida. Mas a sua anáuse demonstra que, na verdade, é uma coisa muito bizarra cheia de subtilezas metafísicas e pontos teológicos.» Admirava o que era objectivo, a metodologia sem sentimentalismos de Ricardo e Adam Smith: de facto, os aspectos de O Capitalc^c são mais frequentemente ridicularizados hoje em dia -— como a teoria laboral do valor — derivavam destes economistas clássicos e eram a ortodoxia prevalecente da época. N o entanto, sentia que, apesar de todas as suas realizações, «a ciência burguesa da economia tinha chegado aos limites para além dos quais não conseguia passar»^^ As medidas empíricas nunca poderiam quantificar o custo humano da exploração e da alienação. Marx descobrira no Museu Britânico um banco de dados sobre a prática capitalista — registos governamentais, gráficos estatísticos, relatórios de inspectores de fábricas e de funcionários da saúde pública — que ele utilizou com o mesmo efeito devastador que Engels em As Condições da Classe Operária em Inglaterra. Mas a sua outra fonte principal, menos notada, foi a ficção literária. Ao debater o efeito das máquinas sobre o poder laboral, utiUza números do consenso de 1861, estatística essa para demonstrar que há mais criados domésticos do que trabalhadores empregados nas indústrias mecanizadas, como as tecelagens e as siderurgias. («Que resultado notável este da exploração capitalista das máquinas!») Como podem os capitalistas negar as suas responsabilidades pelas vidas humanas perdidas ao longo do progresso tecnológico? Pondo de lado estas estatísticas, Marx cita o discurso de Bnl Sykes, personagem do livro de Charles Dickens, Oliver Tmst. «Senhores jurados, não há dúvida de que este caixeiro-viajante foi degolado, explicou Sykes. Mas a culpa não é minha. A culpada é a faca. Devemos abolir o uso

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das facas por causa desta temporaria inconveniencia?... Se abolirem a faca — voltam a atirar-nos para as profundezas do barbarismo.» Poderemos tirar mais valor de utilização e até mais lucro se lermos O Capital coxxxo uma obra de ficção: um melodrama vitoriano ou um denso romance gótico cujos heróis são escravizados e consumidos pelo monstro que criaram («o capital que vem ao m u n d o conspurcado da cabeça aos pés e sangrando por todos os poros»); ou, talvez, uma utopia satírica, como a terra dos Houyhnhnms, de Jonathan Swift, onde tudo é agradável e só o h o m e m é vil. N a visão marxista da sociedade capitalista, como no pseudoparaíso equídeo de Swift, o falso Éden é criado reduzindo vulgares humanos ao estatuto àç.yahoos exilados e impotentes. Tudo o que é sólido derrete no ar, escreveu Marx no Manifesto Comunista; mas já em O Capital, tudo o que é realmente humano se torna congelado, ou cristalizado, numa força material impessoal, enquanto os objectos mortos se animam de forma ameaçadora e vigorosa. O dinheiro, outrora nada mais do que expressão de v a l o r — uma espécie de língua franca na qual o artigo de consumo se torna o próprio valor. N o mais simples dos mundos, o valor de troca mal existe; as pessoas produzem para satisfazer as suas necessidades — uma perna de carneiro, pão, uma vela — e negoceiam apenas quando esses artigos excedem os seus requisitos. Mas vem então o h o m e m do talho, o padeiro e o fabricante de velas, todos os três corruptos. Para comprar os seus atraentes produtos, temos de nos tornar salariados; em vez de vivermos do nosso trabalho, trabalhamos para viver. Somos arrastados gradual e inevitavelmente para a conjunção social dos artigos de consumo e salários, preços e lucros, uma terra de fantasia onde nada é o que parece. Leiam a primeira frase do primeiro capítulo de O Capital: «A riqueza das sociedades, nas quais o m o d o capitalista de produção prevalece, surge como uma "imensa acumulação de artigos de consumo"; os artigos individuais surgem como a sua forma mais elementar.» O que deve impressionar imediatamente o leitor mais alerta é a escolha do verbo, repetido para dar ênfase — «surgir como». E m b o r a menos dramática do que a frase de abertura do Manifesto Comunista, tem uma finalidade semelhante: entramos num mundo de espectros e aparições. Como ele regularmente nos lembra ao longo das mil páginas seguintes.

- «O valor de troca parece ser'algo acidental e puramente relativo... Vamos olhar para o resíduo dos produtos de trabalho. Nada resta em todos os casos senão a mesma o\i)Q.ctN'\ÒAdL(í fantasma... Isto levou à ascensão

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de um sistema mercantil restaurado que vê no valor apenas uma forma social, ou, antes, o fantasma insubstancial àc?,^2L forma... A diferença entre trabalho complexo e simples, "trabalho especializado" e "não especializado", é, em parte,/i/^nz ilusão... E m vez de revelar a relação-capital, eles [os economistas políticos] mostram-nos a semelhança falsa de uma relação.. .» (Os itálicos são do autor) Expor a diferença entre aparência heróica e a realidade inglória — despindo o disfarce de galante cavaleiro a fim de revelar um homenzinho rechonchudo em cuecas — é, evidentemente, um dos métodos clássicos da comédia. As coisas absurdas encontradas em O Capital, e que foram prontamente usadas por aqueles que desejam denunciar Marx c o m o louco, reflectem a loucura do assunto e não a do autor. Desde o princípio, quando ele mergulha numa furiosa meditação cada vez mais surrealista sobre os valores relativos de um casaco e 20 metros de linho, que isso é quase óbvio. «É verdade que a fabricação do casaco é um trabalho concreto, diferente da tecelagem que faz o linho. Mas equacionar a fabricação do casaco com a tecelagem reduz o primeiro ao que é realmente igual nestes dois tipos de trabalho, às características que têm em comum pelo facto de ambos constituírem trabalho humano... N o entanto, o casaco em si, o aspecto físico do casaco-artigo, é puro valor de utilização. U m tal casaco não exprime mais valor do que a primeira peça de unho com que deparamos. Assim como alguns homens contam mais quando metidos numa farda com galões dourados, isto prova que, na sua relação de valor com o linho, o casaco significa mais do que fora dessa relação.»^'' Esta absurda comparação devia prevenir-nos de que, na realidade, estamos a 1er uma história sem pés nem cabeça, o que se torna cada vez mais evidente à medida que Marx prossegue:
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de B assuma a forma física de A, e, além do mais, modifique as feições, o cabelo e muitas outras coisas com cada "novo pai do seu povo"... Como valor de utiMzação, o Knho é algo palpavelmente diferente do casaco; como valor, é idêntico ao casaco e, por conseguinte, parece o casaco.» A seguir, e ña altura em que a cabeça do leitor começa a rodopiar incontrolavelmente, Marx chega à seguinte conclusão: «O Hnho adquire, assim, uma forma de valor diferente da sua forma natural. A sua existência como valor é manifestada através da sua igualdade com o casaco, assim como a natureza de carneiro do cristão é revelada pela sua semelhança com o anho de Deus.» A não ser que tivesse mandado imprimir a página às avessas e a tinta verde, Marx não poderia dar-nos melhor a entender que nos embarcou numa picaresca odisseia através do reino do absurdo. Vem-nos à cabeça as últimas linhas de Tristam Shandy, livro que ele adorava: « — Deus meu! — exclamou a minha mãe. — Que história é essa? — É a de u m galo e um boi — disse Yorick. — E uma das melhores do género que ouvi.»" Quando da sua primeira paixão de juventude por Laurence Sterne, Marx tentou escrever uma história cómica sem pés nem cabeça e, quase 30 anos depois, encontrou finalmente um tema para a escrever. Segundo o biógrafo de Sterne, Thomas Yoseloff, este escritor «quebrou com as tradições da literatura contemporânea e o seu romance tanto podia ser lido c o m o u m ensaio de filosofia, como uma autobiografia ou como uma sátira local em estilo de panfleto. Escreveu como falava e pensava; o livro não era estruturado e estava cheio de pormenores curiosos e difíceis de entender.. .»^^ O mesmo poderia ser dito da epopeia de Marx. A exemplo de Tristam Shandy, O Capital está repleto de sistemas e silogismos, paradoxos, metafísica, teorias, hipóteses, explicações complicadas e ironia absurda. Uma das passagens tem c o m o protagonista u m capitalista em embrião, o Sr. Moneybags. «A fim de poder extrair valor do consumo de um determinado artigo, o nosso amigo. Moneybags, tem de ter a sorte de encontrar, dentro da esfera de circulação, no mercado, um artigo cujo valor de utilização possua a propriedade

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particular de ser fonte de valor... e, consequentemente, criar valor.» Por sorte, o velho Moneybags encontra exactamente esse artigo na força laboral, a qual tem a capacidade única de multiplicar o seu próprio valor. Para fazer justiça à demente lógica do capitalismo, o texto de Marx está saturado, por vezes inundado, de ironia — ironia essa que há mais de uín século tem escapado a quase todOs os leitores. Uma das raras excepções é o crítico Hterário americano, Edmund Wilson, que saudou Marx como «o maior escritor satírico desde Swift». Trata-se de um tributo de tal modo extravagante que podem ser requeridas provas de apoio e, assim, vamos citar uma passagem de Teorias de Valor Excedente, o quarto volume de O Capital. DIVAGAÇÃO SOBRE O TRABALHO PRODUTIVO

U m filósofo produz ideias; um poeta, poemas; um clérigo, sermões; um professor, manuais, e assim por diante. U m criminoso produz crimes. Se nos debruçarmos sobre a relação entre este último ramo de produção e a sociedade como um todo, livrar-nos-emos de muitos preconceitos. O criminoso não só produz crimes como também leis criminais e, com estas, igualmente o professor que ensina a legislação criminal e o inevitável manual em que o mesmo professor lança no mercado as suas lições como «artigos de consumo»... Além disso, o criminoso produz toda polícia e justiça criminal, agentes, juízes, carrascos, jurados, etc; e todas estas diferentes linhas de negócio, as quais formam igual n ú m e r o de categorias da divisão social do trabalho, desenvolvem capacidades diferentes da mente humana, criam novas necessidades e novas maneiras de as satisfazer. Só a tortura deu origem às mais engenhosas invenções mecânicas e empregou muitos honestos artesãos na produção desses instrumentos. O criminoso produz uma impressão, em parte moral e em parte trágica, consoante o caso, e assim, estimulando os sentimentos morais e estéticos do público, presta um «serviço». N ã o somente produz manuais sobre a lei criminal, códigos penais e legisladores, como também arte, literatura, romances e até m e s m o tragédias — c o m o o provam Schuld, de Müllner; Rauher, de Schiller; e também Édipo e acardo III... Os efeitos do crime sobre o desenvolvimento do poder produtivo podem ser ilustrados em pormenor. Teriam as fechaduras alcançado o seu actual grau de excelência sem ladrões? A fabricação das notas de banco teria atingido a sua presente perfeição sem falsificadores?... E, pondo o sector

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do crime privado de parte, teria o mercado mundial jamais sido criado sem a existencia de crimes a nivel nacional? Teriam até mesmo nações sido criadas? E a Arvore do Pecado não tem sido simultaneamente a Árvore do Conhecimento desde os tempos de Adão?'''' Isto pode ser comparado à modesta proposta feita por Swift de convencer os pobres a comer os bebés a mais a fim de solucionar o problema da miséria na Irlanda. (Talvez valha a pena notar que, em 1870, Marx comprou uma edição das obras completas de Jonathan Swift em 14 volumes, pelo preço de quatro xelins e seis cêntimos.) Como Edmund Wilson justamente observa, o propósito das abstracções teóricas de Marx —- a dança dos artigos de consumo, os fantásticos ziguezagues lógicos — sobretudo irónicos, juntamente com sinistros retratos bem documentados da miséria e sujidade que, na prática, as leis capitalistas criam. «O significado das fórmulas aparentemente impessoais que Marx produz com ar tão científico é, lembra-nos ele de tempos a tempos assim como não quer a coisa, dinheiro retirado do bolso do trabalhador, suor espremido do seu corpo e satisfação natural negada à sua alma», prossegue Wilson. «Ao competir com as autoridades em economia, Marx escreveu algo como uma paródia.. .»^^ N o final, contudo, até mesmo E d m u n d Wilson perde o fio da intriga: umas páginas depois de ter elevado Marx ao panteão dos génios satíricos, ao lado de^wift, protesta contra «a crueza da motivação psicológica subjacente à visão mundial de Marx», e queixa-se de que a teoria apresentada em O Capital é «simplesmente, como a dialéctica, uma criação do metafísico que nunca abdicou perante o economista existente em Marx». Essa queixa nem sequer tem o mérito de ser original: alguns críticos alemães da primeira edição acusaram Marx de «sofismo hegeliano», acusação que ele alegremente aceitou e no posfácio da segunda edição alemã, publicada em 1873, lembrou-lhes que tinha criticado o «lado mistificador da dialéctica hegeUana», quando esta ainda estava na moda, há quase 30 anos. «Mas, quando ainda trabalhava no primeiro volume de O Capital, os arrogantes, mal-humorados e medíocres epígonos que, agora, se pavoneiam nos círculos intelectuais alemães tratavam Hegel... de "cão m o r t o " . Declarei-me então abertamente discípulo desse notável pensador e, no capítulo sobre a teoria, namorisquei aqui e ali com os modos de expressão que lhe eram particulares.» Estes namoros dialécticos que ofenderam E d m u n d Wilson têm a ver com a ironia que ele tanto apreciou: ambas as técnicas empregam a realida-

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de aparente para expor a verdade oculta. «Os fingidos e incongruentes especialistas de economia alemã resmungaram quanto ao estilo do meu livro», escreveu Marx em 1873. «Ninguém pode aperceber-se dos defeitos literários de O Capital meVaot do que eu.» Mas os demais críticos, até mesmo aqueles hostis às suas teorias, elogiaram as qualidades estilísticas. A Staurãaj B^view, revista londrina, comentou que «a visão do autor pode ser tão perniciosa como achamos que é, mas não há dúvidas quanto à plausibilidade da sua lógica, o vigor da sua retórica e a sedutora mestria cotn que trata dos problemas mais enfadonho da economia poKtica»^^ A Contemporary Repkw, embora patrióticamente desinteressada da economia alemã («não cremos que Karl Marx tenha muito para nos ensinar»)^^ cumprimentou o autor por não ter omitido «o interesse humano — "o esfomeado e sedento interesse" subjacente à ciência». Marx ficou particularmente sensibilizado por um artigo no Sampetersburgo Journal c[ue louvava o <ánvulgar vigor» da sua prosa. «Quanto a isso», acrescentava, «o autor não se parece de modo algum... com a maior parte dos eruditos alemães cuja Hnguagem é tão seca e obscura... que racha a cabeça do comum dos mortais.» Apesar de ser lindamente escrito, o primeiro volume de O Capita/ ainda era bastante perigoso para a cabeça do comum dos mortais, cuja tarefa se tornou ainda mais difícil pela decisão de Marx em colocar os capítulos mais impenetráveis logo no princípio do livro. «O começo é sempre difícil em todos os livros científicos», explicou no prefácio.
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livro na forma presente!», perguntou Engels, um pouso exasperado, após ter examinado as provas finais. «O quarto capítulo tem quase 200 páginas e apenas quatro subsecções... Além do mais, o fio do pensamento é constantemente interrompido por exemplos e, como o ponto a ser exemplificado nunca é resumido depois de dares o exemplo, o leitor está sempre a passar do exemplo de um determinado ponto para a exposição de outro ponto. Torna-se terrivelmente cansativo e confuso.» Mas acrescentava de forma pouco convincente, «de qualquer modo, isso não tem importância».^'* Até mesmo alguns dos mais apaixonados discípulos de Marx ficaram vidrados ao tentar perceber estes obscuros primeiros capítulos. «Por favor previna a sua mulher», escreveu a Ludwig Kugelmann, «que os capítulos sobre " O Dia de Trabalho", "Cooperação, Divisão do Trabalho e Maquinaria" e "Acumulação Primitiva" são os que se lêem com maior faciMdade. Terá de lhe expHcar a terminologia mais incompreensível. Se houver outras dúvidas, terei o maior prazer em ajudar.»^^ Quanto ao famoso socialista inglês, William Morris, «sofreu horrores» ao 1er O Capital'unos mais tarde: «Li o que podia e espero ter absorvido alguma informação.» Pura incompreensão e não preconceitos poKticos podem explicar a reacção quando O Capitalíd\ publicado. «O silêncio com que o meu Hvro foi recebido põe-me nervoso», escreveu Marx a Engels, em Outubro, a propósito das noites de insónia que tinham voltado a importuná-lo. «A origem da minha doença é mental.»^'' Engels fez o possível para criar interesse à volta da obra, enviando críticas hostis sob u m p s e u d ó n i m o à imprensa burguesa alemã e encorajou os amigos de Marx a fazer o mesmo. «O importante é que o Uvro seja discutido de qualquer maneira», comunicou a Kugelmann. «E como Marx não é nenhum publicitário e, ainda por cima, é tímido como uma donzela, cabe-nos a nós fazer isso... Citando o nosso velho amigo, Jesus Cristo, temos de ser inocentes como pombas e manhosos como serpentes.»^^ O Dr. Kugelmann fez o melhor que pôde e remeteu artigos para um ou dois jornais de Hanover, mas de pouco serviram, pois ele mesmo mal tinha compreendido o livro. «Kugelmann está a tornar-se cada dia mais palerma», queixou-se Engels. Jenny Marx mostrou-se mais amável: o acólito de Hanover talvez fosse idiota, mas tinha, pelo menos, boas intenções. Deprimida pela indiferença universal com que a magnum opus do marido era acolhida e alarmada pela saúde dele estar a piorar, agradecia todos os gestos de apoio. «Poucos livros foram escritos em circunstâncias tão más», comentou, «e tenho a

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certeza de que eu poderia escrever uma história secreta a contar os inúmeros tormentos, aflições e ansiedades porque Karl passou. Se os trabalhadores soubessem dos sacrifícios que foram necessários para terminar este livro, escrito por causa deles, talvez se mostrassem um pouco mais interessados.»^^ Dois dias antes do Natal de 1867, estava Jenny na cozinha a preparar tristemente um bolo enquanto Marx se encontrava de cama com furúnculos, quando ouviu uma voz chamar do fundo das escadas: «Chegou uma grande estátua.» Era o busto de Zeus, apenas ligeiramente lascado da longa viagem, que Kugelmann enviara da Alemanha como presente de Natal. «Nem imaginam o prazer e a surpresa que nos causaram», escreveu ela a agradecer ao médico. «Obrigado também pelo seu interesse e infatigável esforços em favor do livro de Karl.»^' A forma de aplauso preferida pela maior parte dos alemães, acrescentava amargamente, «é o mais absoluto silêncio». Durante os primeiros três meses de 1868. Marx foi incapaz de trabalhar. O furúnculo na parte interior da coxa roçava nas calças incapacitando-o de se deslocar ao Museu Britânico; sentado à secretária, o furúnculo no rabo obrigava-o passado pouco tempo a ir deitar-se, de lado, no divã; e, quando tentava escrever, o furúnculo localizado abaixo da omoplata vingava-se dolorosamente. Até as suas cartas a Engels se tornaram distintamente mais curtas. «Padeci de inúmeras inflamações durante toda a semana passada; sobretudo na axila esquerda», comunicou-lhe a 23 de Março. «Mas sinto-me bastante melhor...» N ã o por muito tempo: no dia seguinte, enquanto üa um Hvro, «uma espécie de véu negro toldou-me a vista e tive uma terrível dor de cabeça acompanhada de contracções no peito». Se, pelo menos, não tivesse ainda de escrever «o raio dos dois volumes» de O Capital c\u& faltavam e procurar um editor inglês, poderia partir para a Suíça. E m Londres, o custo de vida dos Marx era de 400 a 500 libras por ano, mas, em Genebra, ele calculava que poderiam viver confortavelmente com cerca de 200. Os únicos motivos para permanecer em Londres eram as duas instituições que ocupavam a maior parte do seu tempo — o Museu Britânico e o Conselho-Geral da Associação Internacional do Operariado. N o entanto, outra razão talvez lhe tenha atravessado o espírito: Genebra era agora o lugar onde vivia Michail Bakunine, o qual Marx já identificara como sendo o homem que poderia vir a destruir a Internacional.

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Michail Bakunine era u m russo gigantesco e hirsuto, o modelo em pessoa de um revolucionário, todo ele feito de impulso, paixão e força de vontade. Conta-se que o compositor Richard Wagner, seu camarada de armas durante a sublevação de 1849 em Dresden, inspirou-se nele para criar o personagem de Siegfried, e a sua presença também pode ser notada em Os Possessos, de Dostoïevski. Há naturalmente muitas lendas à volta de Bakunine, mmtas delas inventadas por ele mesmo. Conta-se, por exemplo, a história de como, durante uma revolta em ItáKa, o destemido colosso saiu de uma casa cercada e atravessou uma multidão de soldados sem que nenhum deles ousasse tocar-lhe. Percorreu o mundo clamando ser o líder de uma imensa Irmandade, ou Liga, insurreccional, a qual, segundo se vinha a verificar, não passava de uma dúzia de companheiros de bar. Possuía um entusiasmo juvenil por conspirações — códigos, palavras de passe, tinta invisível. Marx chamava-lhe o hierofante russo, mas Engels sugeriu que elefante seria mais apropriado: a sua estatura gigantesca, o andar de lenhador e o hábito de pisar tudo o que se atravessasse no seu caminho. Bakunine é com frequência apelidado o Pai do Anarquismo M o d e r n o (o principal rival a este tímlo é Proudhon), mas ele não legou grandes teorias. A sua herança foi a ideia fixa que o Estado era pernicioso e devia ser destruído. Os estados comunistas não eram melhores do que os capitalistas; a autoridade continuava a ser centralizada nas mãos de uns quantos e mesmo que o Estado fosse governado por «trabalhadores», estes depressa se tornariam tão corruptos como os tiranos que tinham derrubado. E m vez disso, propôs portanto uma forma de anarquia federal, na qual o poder estaria tão disperso que ninguém poderia abusar dele.

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Ou, pelo menos, era nisso que os seus discípulos queriam que acreditássemos. É extraordinário como ainda existem tantos: em vida, Bakunine pode ter sido um general sem exército, ou um maometano sem Corão, mas, n o século XX, atraiu uma legião de admiradores — muitos deles nada anarquistas nem revolucionários — , que o aclamaram como aquele que tinha previsto que as ideias marxistas poderiam apenas conduzir •àogulag. O s dois homens )ustapõem-se consistentemente e sempre para descrédito de Marx. «Ainda hoje, a luta entre os dois reside no âmago de todos os debates sobre a história do movimento dos trabalhadores», escreve o especialista alemão de Marx, professor Fritz Raddatz. «Não há maneira de evadir a resposta... Marx e Bakunine são iguais a Estaline e Trotsky.»^ Comparando Bakunine e Marx, o historiador britânico, E. H. Carr, fala do «homem com impulsos generosos e incontroláveis e do h o m e m cujos sentimentos eram tão perfeitamente sujeitos ao seu intelecto que observadores superficiais não acreditavam que os tivesse... o h o m e m de personalidade magnética e o h o m e m cuja frieza intimidava e repelia»^. Carr concede, contudo, que Bakunine era por vezes indiferente e incoerente, mas mesmo esses defeitos tornaram-se virtudes quando comparados à disciplina desumana e glaciar da máquina calculadora marxista. Segundo Isaiah Berlin, «Bakunine diferia de Marx assim como a poesia difere da prosa»^. A implicação aparente — que Bakunine era um espírito livre e lírico, e Marx u m tipo prosaico — pouco mais é do que a citação erudita dita em outras palavras da crua fórmula Trotsky/Estaline: o defensor da liberdade humana contra o impiedoso autoritário. Trata-se de um mito com suficiente verdade para o manter vivo. Bakunine era, de facto, um indivíduo com emoções puras que desprezava o meticuloso racionalismo de Marx. A sua falta de interesse pelo complexo mecanismo do capital era compensada pelo desdém de Marx por atitudes clandestinas. Além disso, contudo, quase tudo o que se diz e escreve sobre esta luta de gigantes é absurdo. Encontraram-se em Paris em 1844 e, depois, em Bruxelas, pouco depois da insurreições de 1848, quando Bakunine ainda era mais comunista do que anarquista. Apesar de quatro anos mais velho do que Marx, reconhecia a erudição superior do jovem («Nessa altura, eu nada sabia de economia política»), e adivinhava que os seus temperamentos irreconciliáveis nunca permitiriam «nenhuma intimidade sincera». Nesse Verão, o Nene Rheinische Zeitung de Marx publicou uns mexericos de Paris, atribuídos a George Sand, que alegavam ser Bakunine um agente secreto do czar: a vontade de Marx em es-

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palhar o boato deve-se provavelmente à sua instintiva desconfiança da Rússia e dos russos. N o entanto, não se fez rogado para publicar uma carta de George Sand negando tal responsabilidade, onde incluiu um breve editorial pedindo desculpa pelo engano. Umas semanas mais tarde, os dois homens encontraram-se por acaso em Berlim. «Sabe u m a coisa», ter-lhe-ia dito melodramáticamente Marx, «sou actualmente chefe de uma sociedade secreta comunista tão bem disciplinada, que se eu pedisse a um dos membros para o matar, ele matá-lo-ia»'^. Como a fonte desta história é o próprio Bakunine, um mitómano incorrigível, não devemos necessariamente acreditar nela. Se Marx tivesse realmente proferido essa ameaça, teria o temperamental russo voltado a dirigir-lhe a palavra? Deu-se o caso de não se verem novamente durante 16 anos, mas isso foi uma separação puramente geográfica. Após as suas aventuras com Richard Wagner em 1849, Bakunine passou os oito anos seguintes como um peripatético prisioneiro em Dresden, Praga e Sampetersburgo. E m 1857, a seguir à morte do czar Nicolau, a sua sentença foi comutada para «exílio perpétuo» na Sibéria. Escapou quatro anos mais tarde, escondendo-se a bordo de um barco com destino a São Francisco, de onde regressou à Europa via Nova Iorque. Como com Lassalle, e por muito que não apreciasse os ares de determinada pessoa, Marx sabia reconhecer um homem notável de longe. Engels fez notar isso muito bem ao denunciar publicamente, em 1849, o plano de Bakunine para criar uma nação pan-eslava: «Bakunine é nosso amigo. Mas isso não nos impede de criticar o seu panfleto.»^ O u troçar dos seus hábitos, já agora. A exemplo de Lassalle, Bakunine era motivo de chacota na correspondência entre Marx e Engels. «Bakunine transformou-se num monstro, uma enorme massa de carne e gordura que mal consegue andar», assinalou alegremente Marx em 1863. «E, ainda por cima, é sexualmente perverso e ciumento da rapariga polaca de 17 anos que casou com ele na Sibéria por causa do seu martírio. Encontra-se presentemente na Suécia, onde está a maquinar revoluções com osfinlandeses.»*"N a altura em que escreveu isto, Marx não tinha voltado a pôr-lhe a vista em cima desde 1848, mas renovaram relações no O u t o n o de 1864, quando Bakunine, vindo da Suécia, fez escala em Londres a caminho da Itália para encomendar uns fatos ao alfaiate socialista Friedrich Lessner. Alguns historiadores afirmaram que Marx sempre detestou Bakunine, mas os pormenores desse encontro provam o contrário. E m primeiro lugar porque foi Marx a solicitar o encontro quando soube, através de Lessner (seu

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colega no Conselho-Geral da Internacional), que Bakunine se encontrava em Londres. Porquê dar-se ao incómodo de procurar uma pessoa que desprezava? A carta enviado por Marx a Engels n o dia seguinte confirma que se tratou de uma reunião amigável. «Devo dizer que gostei muitíssimo dele, mais do que dantes... Ele é uma das raras pessoas que, na minha opinião, fez progressos ao longo destes 16 anos.»'' Semanas mais tarde, numa mensagem exuberantemente afectuosa, Bakunine tratava Marx por «meu muito querido amigo», elogiava o seu discurso de abertura da Internacional e pedia-lhe uma fotografia autografada. Bakunine confessou, no decorrer das conversas que os dois homens tiveram em Londres, que abandonara a obsessão juvenil com conspirações e sociedades secretas: de ora em diante, prometeu, dedicar-se-ia exclusivamente ao «movimento socialista», quer dizer, a Internacional. Mas, após ter chegado a Itália, em breve voltou aos seus antigos esquemas — ajudado por uma nova patrocinadora rica, a princesa Obolensky, a qual, pelos vistos, achou irresistível este homem gordo e desdentado. E, ao longo dos três anos seguintes, Bakunine não teve quaisquer contactos com a Internacional. E m 1867, a princesa e o seu anarquista de estimação instalaram-se na Suíça, onde Bakunine rapidamente notou que a Internacional se estava a estabelecer com significativa força. Para compensar o tempo perdido decidiu apoderar-se da organização, e concebeu para o efeito o que o seu biógrafo, E. H. Carr, denomina «um ousado plano». Ousado, mas também incrivelmente absurdo. Como pretenso Hder da Aliança Internacional da Democracia Socialista — o mais recente dos seus minigrupos com nome grandioso — escreveu à internacional p r o p o n d o uma fusão, uma fusão em termos iguais, claro está, para, desse modo, se tornar efectivamente co-presidente da nova organização. Muito naturalmente, Marx e os seus camaradas do Conselho-Geral recusaram tal ideia: juntamente com as associações e sindicatos filiados, representavam dezenas de milhares de trabalhadores, enquanto a totalidade dos membros da Aliança Internacional de Bakunine não contava com mais de 20. A o ver este seu ataque frontal desdenhado, Bakunine decidiu então entrar pela porta das traseiras em bicos dos pés e informou o Conselho-Geral que a Aliança Internacional deixara de existir. Mas a sua nova organização, denominada simplesmente AHança para a Democracia Socialista, desejava, como qualquer outra secção local, tornar-se uma humilde filiada da Internacional. Marx não viu nenhum mal nisso e recomendou que a proposta fosse aceite.

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Aqueles que retratam Bakunine como um heroico oponente do poder centralizado e hierarquias rígidas têm dificuldade em explicar o seu comportamento subsequente — e deve ser por isso que, na maior parte dos casos, preferem ignorá-lo completamente. N o primeiro e único congresso da Internacional em que participou (em Basileia, em 1869), defendeu «a fundação de u m estado internacional composto por milhões de trabalhadores, estado esse que seria construído pela Internacional» — esquecendo-se temporariamente que «estados» de qualquer tipo eram anátema para um verdadeiro anarquista como ele. N o decorrer de outro debate, ele chegou mesmo a propor que o poder do Conselho-Geral fosse fortalecido, a fim de ter a possibiKdade de vetar a admissão de novos membros ou de expulsar os que já existiam. E não admira: como o próprio Carr admite, «a ambição de Bakunine nesta fase era conquistar o Conselho-Geral e não destruí-lo». Quanto mais nos debruçamos sobre este ponto, mais se torna evidente que a sua posterior raiva contra o Conselho-Geral devia-se menos à aversão que sentia pela autoridade do que ao facto de não ter conseguido controlá-lo. Nos bastidores, continuava a fazer maquinações como de costume. U m bom exemplo do modus operandi àt Bakunine é a conversa, citada por E. fI. Carr, com um dos seus acólitos, Charles Perron: «Bakunine assegurou-lhe que a Internacional era uma instituição excelente em si, mas que havia algo melhor a que Perron deveria também aderir — a Aliança. Perron concordou. A seguir, Bakunine disse que, mesmo no seio da Aliança, havia indivíduos que não eram revolucionários autênticos, que prejudicavam as suas actividades e que, por conseguinte, a Aliança deveria ter um grupo de "Irmãos Internacionais". Perron concordou novamente e, quando voltaram a encontrar-se uns dias mais tarde, Bakunine declarou que os "Irmãos Internacionais" era uma organização demasiado grande e que, por detrás deles, deveria haver um Directório constituído por três pessoas — entre as quais Perron. Este riu-se e voltou a concordar.»** Assim falava o grande defensor do poder popular. N o congresso de 1869, em Basileia, foi acordado que os delegados deveriam voltar a reunir-se um ano mais tarde em Paris. Mas este projecto foi cancelado com o rebentar da Guerra Franco-Prussiana, em Julho de 1870 — última tentativa desesperada de Napoleão III consolidar o seu vacilante

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Segundo Império desafiando o poderoso Bismark. Há muito que a Internacional se tinha preparado para este momento. O seu congresso de 1868, em Bruxelas, tinha passado uma moção apelando para uma greve geral assim que a guerra começasse — apesar de Marx ter descartado a ideia como sendo uma «absurdidade belga» e declarado que a classe trabalhadora «ainda não está suficientemente organizada para pesar de forma decisiva na balança». Na sua opinião, tudo o que devia fazer-se era emitir uma adequada «declaração pomposa e cheia de frases pretensiosas» para o efeito, dizendo que uma guerra entre a França e a Alemanha seria ruinosa para ambos os países e para a Europa. E foi exactamente o que ele fez. A 23 de Julho de 1870, quatro dias depois da declaração das hostilidades, o Conselho-Geral aprovou uma alocução escrita por Marx. A derrota da sua velha bete mire, Luís Bonaparte, foi jovial (e correctamente) predita. Mas avisou que, sé os trabalhadores alemães permitiam que a guerra perdesse «o seu carácter estritamente defensivo» e degenerasse num ataquem ao povo francês, tanto a vitória como a derrota seriam igualmente desastrosas. Felizmente, a classe trabalhadora alemã era demasiado esclarecida para deixar que tal acontecesse: «Independentemente do rumo que esta horrível guerra possa tomar, as alianças das classes trabalhadoras de todos os países porá fim à guerra. O próprio facto, sem paralelo na história, dos trabalhadores franceses e alemães se enviarem mensagens de paz e de boa vontade enquanto, oficialmente, a França e a Alemanha estão envolvidas numa luta fratricida, permite vislumbrar um futuro mais brilhante. E prova que, em contraste com a sociedade antiga, com a sua miséria e delírio poKtico, se está a constituir uma nova sociedade cuja regra Internacional será a P Ö ^ pois o seu governante natural será o mesmo por toda a parte — o Trabalho! O Pioneiro dessa nova sociedade é a Associação Internacional dos Trabalhadores.»^ Tudo muito inspirador. John Stuart Mill enviou as suas felicitações, declarando-se «muito agradado com a alocução. Não há uma única palavra que não deveria lá estar; nem poderia ter sido escrita com menos palavras».^*' N o entanto, e embora mantivesse uma neutralidade oficial, Marx não podia resistir, em privado, a calcular as vantagens e a ruminar sobre o resultado que mais conviria aos seus objectos.

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Já em Fevereiro de 1859, ele tinha dito a Lassalle por carta que uma guerra entre a França e a Alemanha «teria naturalmente graves consequências; as quais, a longo termo, seriam certamente revolucionárias. Mas, ao princípio, haveria de apoiar o bonapartismo em França e fazer recuar o movimento interno em Inglaterra e na Rússia, despertar de novo paixões mesquinhas quanto ao problema do nacionalismo na Alemanha e ter, na minha opinião, um efeito sobretudo contra-revolucionário em todos os aspectos»." Ao longo de 11 anos, este jogo de consequências tinha-se tornado uma obsessão. «Há quatro noites que não consigo dormir por causa do reumatismo», disse a Engels, em Agosto de 1870. «Passo o tempo a fantasiar sobre Paris, etc.»'^ Uma dessas fantasias era que ambas as facções se gladiariam, enfraquecendo tanto Bonaparte como Bismark. Mas, depois, os alemães haveriam de vencer. «Desejo que tal aconteça porque a derrota definitiva de Bonaparte há-de provavelmente provocar a revolução em França, enquanto a derrota definitiva da Alemanha prolongaria a actual situação durante uns 20 anos.»" N e m a mulher nem o seu melhor amigo necessitavam tantas justificações complicadas por ele tomar um determinado partido. Jenny achava que a França merecia uma boa sova por ter rido o atrevimento de tentar exportar a sua «civilização» para o solo sagrado da Alemanha. «Todos os franceses, até mesmo o insignificante número dos melhores, têm uma molécula chauvinista a um canto do coração», escreveu a Engels. «E isto tem de lhes ser extirpado.»^'* Engels, que passou a guerra de m o d o lucrativo fazendo análises militares para a Pali Mali Gazette, também sentia essa mesma fidelidade atávica. «A minha confiança nas proezas militares alemãs aumenta diariamente», entusiasmava-se. «Parece realmente que ganhámos as primeiras batalhas.»*^ Uma vez que Bonaparte fosse esmagado, os seus pacientes cidadãos poderiam, finalmente, tomar o poder. Mas tinham os parisienses os meios, ou os Kderes, para levar a cabo uma revolução e, simultaneamente, resistir ao exército prussiano? Esta questão, mais do que qualquer outra, atormentava Marx durante as noites de insónia. «Não se pode ocultar o facto desta farsa bonapartista, que dura há 20 anos, ter provocado uma grande desmoralização», escreveu a Engels. «Não se pode contar com heroísmo revolucionário. O que é que pensas disto?»''' Engels mal teve tempo de responder a esta pergunta: Bonaparte rendeu-se em Sedan e u m novo regime — a III República — foi proclamado em Paris. Se aguardamos à beira do rio, acabamos por ver os cadáveres dos nossos inimigos a flutuar. 20 anos mais cedo, a nomeação do diminuto Napoleão ti-

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nha levado Marx a escrever Debito de Brumário de IJÍÍS Bonaparte; agora, ele tinha o prazer de redigir o obituário. A 9 de Setembro, a Internacional distribuiu uma segunda alocução sobre a guerra que começava com a presumida afirmação de que «não nos enganámos quanto à vitalidade do Segundo Império». E Marx prosseguia, «a nossa apreensão caso a guerra "perdesse o seu carácter estritamente defensivo e degenerasse numa guerra contra o povo francês" também não era incorrecta»". Q u e m tenha presente a primeira alocução talvez se lembre que ele tinha, realmente, negado essa possibilidade e insistira que a heróica classe trabalhadora alemã se anteciparia a isso. Mas a campanha puramente «defensiva» tinha terminado com a capitulação em Sedan e, agora que os alemães pediam a anexação de Alsácia e Lorena, ele rescrevia a história a fim de não passar por uma vergonha. Não devemos ser demasiado críticos em relação a Marx. O seu primeiro tributo à contenção alemã tinha sido um triunfo da esperança sobre a experiência, mas com a notável excepção que a sua leitura era espantosamente correcta. O que é que fazia se a fortuna das armas e a arrogância do sucesso levava a Prússia a desmembrar a França? N a segunda alocução, ele preveniu que a Alemanha se tornaria «o confesso instrumento do engrandecimento da Rússia ou, após um breve interregno, se prepararia para mais uma guerra «defensiva», não uma dessas modernas guerras "localizadas", mas uma guerra de raças — uma guerra das raças romanas e eslavas combinadas». Uma carta ao organizador americano da Internacional, Friedrich Adolph Sorge, era ainda mais presciente. «O que os burros prussianos não vêem é que a presente guerra conduz... a uma inevitável confrontação entre a Alemanha e a Rússia. E essa guerra n.° 2 será a parteira da inevitável revolução social na Rússia.»^** Marx não viveu para assistir ao drama de 1917, mas não teria ficado minimamente surpreendido. Por vezes, parecia estar a olhar ainda para mais longe: «Se por interesse militar forem estabelecidos limites, as reivindicações não terão fim, pois todas as linhas militares são necessariamente incorrectas e só poderão ser melhoradas anexando mais território; além do mais, nunca poderão ser fixadas de forma final e razoável, pois são impostas pelo conquistador ao conquistado e, por conseguinte, transportam com elas a semente da discórdia.»

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O s que se referem aos ocasionais erros de Marx como prova da sua miopia histórica, talve2 não se importem de nos dizer que outras figuras dessa época tiveram uma premonição tão precisa da ascensão de Hitler. A segunda alocução de Marx saudava a nova República Francesa (Vive la République!), mas não sem apreensões. «Essa república não subverteu o trono, apenas ocupou o seu lugar quando ficou vazio», fez notar. «Foi proclamada, não como uma conquista social, mas c o m o medida nacional de defesa.» O governo provisório era uma instável coligação de orleanistas e republicanos, bonapartistas e jacobinos que podia vir a tornar-se numa ponta para a restauração da realeza. N o entanto, os trabalhadores franceses tinham de cumprir o seu dever como cidadãos e banir toda a ideia de revolução. «Qualquer tentativa para derrubar o novo governo na crise actual, quando o inimigo está quase a bater às portas de Paris, seria uma loucura desesperada.» A loucura desesperada era, claro está, o passatempo favorito de Michail Bakunine que seguia as notícias na sua vivenda suíça em França. A o ouvir falar de uma insurreição em Lyons após a derrota em Sedan, apressou-se a lá ir imediatamente, entrou com ar importante na Câmara Municipal e nomeou-se chefe do «comité de Salvação Nacional». E , a seguir, numa proclamação da varanda do edifício, declarou a aboução do Estado — acrescentando [muito libertariamente) que quem discordasse dele seria executado. O estado sob a forma de um pelotão da Guarda Nacional, penetrou prontamente por uma porta da câmara que, por inadvertência, não se encontrava guardada e obrigou o Messias de Lyons a fugir para as margens seguras do lago de Genebra. A admoestação de Marx para a situação não balançar o barco não teve mais influência do que as vangloriosas palhaçadas de Bakunine. Adolphe Thiers, veterano advogado liberal, foi nomeado Presidente da Terceira República e dentro de pouco tempo soHcitou a paz com a Prússia em nome do seu desajeitadamente chamado «Governo de Defesa Nacional». A raiva dos parisienses perante esta rendição redobrou quando ele anunciou que as reparações seriam financiadas pelo pagamento imediato de todas as contas e rendas suspensas durante o cerco. A 18 de Março de 1871, uma multidão indignada invadiu as ruas — apoiada pela Guarda Nacional da cidade, que se recusava obedecer à ordem de entregar as armas ao governo. Thiers e os seus adeptos fugiram para Versalhes, deixando a capital nas mãos dos seus cidadãos.

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O galo gaulês tinha, mais uma vez, cantado. Ao princípio, os governantes da Europa fíngiram-se de surdos, na esperança de que, se não lhe dessem ouvidos, o cacarejar talvez desvanecesse. Quando isto falhou, o pânico que se apoderou deles foi delicioso de ver. The Times, de Londres, bradou contra «este perigoso sentimento da democracia, esta conspiração contra a civilização na sua capital». O próprio Karl Marx, informava, tinha ficado tão horrorizado por aquela insurreição que enviara uma dura repreensão aos membros firanceses da Internacional. O jornal teve depois de publicar um desmentido de Marx, o qual revelou que alegada carta era «uma falsificação impudente»^'. («Não deves acreditar numa só palavra do que se escreve nos jornais burgueses sobre o que se está a passar em Paris», aconselhou Liebknecht, que se encontrava na Alemanha. «São tudo mentiras. Nunca a vilania dos jornais burgueses se manifestou de forma tão esplêndida.»^*' A excitação de Marx quanto «ao que se estava a passar em Paris era apenas temperada pelo receio de que os revolucionários pudessem ser demasiado decentes para o seu próprio bem. E m vez de marchar imediatamente sobre Versalhes para acabar com Thiers e a sua desgraçada equipa, perderam «momentos preciosos» a organizar uma eleição geral para a Comuna. Marx também desaprovou a sua decisão de permitir que o Banco Nacional prosseguisse as suas actividades normais: se fosse ele a mandar, há muito que os cofres teriam sido postos a saque. Mesmo assim, era uma bênção estar vivo naquela madrugada. «Que resiliência, que iniciativa histórica, que capacidade de sacrifício a desses parisienses!», exclamou. «Após seis meses de fome e ruína provocadas por traição interna e não inimigos de fora, erguem-se por debaixo das baionetas prussianas como nunca tivesse havido uma guerra entre a Alemanha e a França e o inimigo ainda não se encontrasse às portas de Paris! A história não tem outro exemplo de tal grandeza!»^^ D o s 92 partidários da Comuna eleitos por sufrágio popular a 28 de Março, 17 eram membros da Internacional. N o decorrer de uma reunião em Londres nesse mesmo dia, o Conselho-Geral concordou por unanimidade que Marx deveria fazer uma nova «alocução ao povo de Paris». Mas, depois, nada aconteceu. Ao longo dos dois meses que durou a Comuna, a Internacional não fez qualquer declaração púbHca e, quando Marx proferiu a sua alocução de 50 páginas, foi mais como um epitáfio: As tropas de Thiers tinham reconquistado a cidade há três dias e pedras de Paris estavam vermelhas com o sangue de, pelo menos, 20 000 partidários da Comuna assassinados.

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Qual a razão de tal demora? N a maior parte dos casos, os seus biógrafos atribuem-na à «ambivalencia pessoal de Marx em relação à Comuna»^^. É verdade que receava que esta falhasse, mas apreensão não é a mesma coisa que ambivalencia. A principal razão, mais banal e familiar, é que, durante Abril e Maio, teve bronquite e problemas de fígado, o que o impediu de participar no Conselho-Geral — quanto mais reunir as provas necessárias para render uma homenagem de 50 páginas à histórica levée en masse (levantamento em massa) dos Parisienses. «A presente situação causa intenso sofrimento ao nosso querido Moura», escreveu a filha, Jenny, em meados de Abril. «É sem dúvida essa a razão principal da sua doença. Muitos dos nossos amigos fazem parte da Comuna.»^-^ U m deles era Charles Longuet, director do àiúÁo Journal Officiel, que se mudou para Londres depois da queda da Comuna e se casou com Jennychen em 1872. Outro partidário da Comuna, Olivier Lissagaray, tornou-se mais tarde o noivo secreto de Eleanor Marx — embora o noivado acabasse por ser desfeito. Paul e Laura Lafargue tinham fugido de Paris pouco antes dos Prussianos cercarem a capital, mas continuavam a fazer campanha em favor da Comuna de Bordéus. Doente e cheio de maus pressentimentos, Marx também tinha de lutar contra o seu obsessivo perfeccionismo: quer em O Capital ou num simples panfleto, mostrava-se relutante em publicar uma opinião definitiva sobre qualquer assunto sem reunir primeiro todas a informação necessária. Durante os dias da Comuna, escreveu dúzias de cartas a camaradas que viviam n o Continente, importünando-os para lhe enviarem documentação e recortes de jornais. A julgar pelas passagens mais caluniosas da sua há muito aguardada alocução -— a qual foi finalmente publicada sob o título de A. Guerra Civil em França — , a sua pesquisa também incluiu um estudo aprofundado das colunas de mexericos. Logo nas primeiras páginas oferece-nos este encantador retrato do ministro dos Negócios Estrangeiros de Thiers: «Jules Favre, que vive em concubinagem com a mulher de um bêbedo residente em Argel, arranjou meio de se apoderar, em nome dos filhos resultantes do seu adultério e através de uma série de ousadas vigarices feitas ao longo de muitos anos, de uma grande herança que o tornou rico.» O ministro das Finanças, Ernest Picard, é alcunhado o Joe Miller ào Governo de Defesa Nacional» — um comediante londrino de musicais. C o m o os conhecimentos de Marx sobre a cultura popular inglesa eram quase nulos, adivinha-se que foram as filhas, apaixonadas por teatro, que sugeriram o nome.

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Mas o resto do ataque a Picard é puro Marx, e cada novo tópico desta lista de acusações é redigido com floreados legalistas. Ficamos a saber que Picard «é irmão de um certo Arthur Picard, indivíduo expulso da Bolsa de Paris por vigarice (ver relatório da Prefeitura da PoKcia datado de 31 de Julho de 1867), e condenado pelo roubo de 300 000 francos efectuado, segundo ele mesmo confessou, quando era gerente da Société Générale, rua Palestro, 5 (ver relatório da Prefeitura da Polícia, 11 de Dezembro de 1868). Arthur Picard foi nomeado pelo irmão director do jornal, l'ÉlecteurI^ibre...» Os partidários da Comuna podem não ter tocado nos cofres bancários, mas foi certamente com muito prazer que revistaram os arquivos da polícia. Depois de ter introduzido os actores secundários, Marx faz a apresentação de Thiers em pessoa — o «gnomo monstruoso»: «Mestre em vigarice a pequena escala, virtuoso do perjúrio e da difamação, artista em todos os estratagemas mesquinhos, planos manhosos e perfídia da guerrilha parlamentar; sem escrúpulos, quando não participa no governo, de provocar uma revolução e de a suprimir num banho de sangue caso seja primeiro-ministro; os preconceitos de classe substituem nele as ideias e aqueles são, por sua vez, substituídos pela vaidade; a sua vida privada é tão infame quanto a sua vida pública é odiosa — m e s m o agora, em que desempenha o papel de um Sula francês, não consegue compensar os seus feitos abomináveis através da sua ridícula ostentação.» A seguir, Marx faz um esboço das origens da Comuna. Longe de ser uma espécie de sublevação contra um Governo legítimo, foi uma tentativa para salvar a III República da ordem inconstitucional de Thiers, para que a Guarda Nacional entregasse as armas e deixasse Paris indefeso. Marx acrescenta ainda orgulhosamente que a insurreição popular de 18 de Março não fora afectada «pelos actos de violência que caracterizam as revoluções, e sobretudo as contra-revoluções, das "classes superiores"». E para dar um exemplo do comportamento dessas classes superiores, menciona o próprio Presidente sem esconder nada aos leitores: «A segunda campanha de Thiers contra Paris teve início em Abril. A primeira leva de prisioneiros parisienses trazida para Versalhes foi sujeita às mais revoltantes atrocidades, enquanto Ernest Picard, de mãos

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nos bolsos, os injuriava, e as senhoras Thiers e Favre, no meio das suas damas de companhia, aplaudiam da varanda os ultrajes cometido pelo povo de Versalhes. Os soldados capturados foram massacrados a sanguefi-io; o nosso valente amigo, general Duval, foi fuzilado sem julgamento. GaUifet, o amante da mulher dele, a qual se tornou sobejamente conhecida pelas suas desavergonhadas exibições nas orgias do Segundo Império gabou-se, numa proclamação, de ter ordenado o assassínio de u m pequeno grupo de guardas nacionais... Com a prosápia de um Polegarzinho parlamentar autorizado a desempenhar o papel de Tamerlão, Thiers negou aos revoltosos todos os direitos de uma guerra civilizada, incluindo a neutralidade das ambulâncias. Como previu Voltaire, não há nada mais horrível do que ver um macaco dar livre curso aos seus instintos de tigre.» A fim de não sobrecarregar o leitor com todo esta fiaria e violência, Marx muda de t o m e faz uma pausa para nos falar da lição aprendida c o m a Comuna. Cita um manifesto de 18 de Março, em que se lia que os proletários de Paris se tinham tornado «donos do seu próprio destino ao apoderarem-se do poder governamental». Que ilusão ingénua, comenta. A classe trabalhadora não pode simplesmente «da maquinaria estatal já estabelecida e utilizá-la para os seus próprios fins»: mais valeria então tentar tocar uma sonata para piano com um gaita de beiços. Felizmente, a Comuna entendeu rapidamente isso e livrou-se da polícia política, substituindo-a por um exército de populares armados, desestabilizando a Igreja, libertando o ensino da influência dos bispos e instituindo concursos para todos os funcionários públicos — incluindo os juízes — para estes serem «responsáveis e revogáveis». A constituição recuperou para a sociedade todas as forças até então absorvidas pelo Estado, e tal acção tornou-se imediatamente visível: «As alterações introduzidas em Paris pela Comuna foram realmente maravilhosas!... Paris deixou de ser o local de encontro de latifundiários britânicos, foragidos irlandeses, esclavagistas americanos e gente suspeita. Já não há cadáveres na morgue nem roubos à noite; pela primeira vez, desde Fevereiro de 1848, as ruas de Paris são seguras e não se vê nenhum polícia.» Mas esse estado de coisas não durou muito tempo. Como Marx assinala, Thiers não podia ter tudo: se a Comuna era obra de um p u n h a d o de «usurpadores» que mantivera os parisienses como reféns durante dois meses, por que é que, então, os carniceiros de Versalhes tinham tido de assas-

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sinar dezenas de milhares de pessoas para debelar a revolução? E, assim, conclui as suas observações com outro rugido de saeva indignation perante a brutalidade do governo e a promessa de que o espírito da Comuna não será suprimido nem em França nem em nenhuma outra parte do mundo. «O solo do qual germina é a própria sociedade moderna e não pode ser espezinhado por quaisquer carnificinas. Para o espezinhar, os governos teriam de espezinhar o despotismo do capital sobre o trabalho — condição da sua existência de parasita. Com a Comuna, os trabalhadores parisienses serão para sempre celebrados como os gloriosos fundadores de uma nova sociedade. O s seus mártires estão guardados como relíquias no coração da classe trabalhadora e os seus exterminadores já se encontram amarrados ao pelouro da história. As preces dos seus sacerdotes nunca conseguirão redimi-los.» A- Guerra Civil em França foi um dos mais inebriantes panfletos de Marx — mas demasiado tóxico para os sindicalistas ingleses, Benjamin Lucraft e George Odger, que se demitiram do Conselho-Geral logo que o texto foi aprovado, protestando que a Internacional não tinha de se envolver em política. (E, a partir dessa data, prosseguiram as suas modestas ambições c o m o membros do velho e apolítico Partido Liberal.) As primeiras duas edições de três mu exemplares foram esgotadas em duas semanas e, logo depois, seguiram-se as edições alemãs e francesas. O feito mais impressionante de Marx foi talvez o de fazer com que as facções rivais da esquerda esquecessem as suas rixas. «A tradução francesa átA. Guerra Civil tevt um efeito excelente sobre os refugiados», escreveu a sua filha, Jenny. «Pois agradou a todos os partidos — blanquistas, proudhonistas e comunistas.» E foi igualmente excelente para a reputação de Karl Marx e da sua Associação. Aqueles que apoiam o status quo não acreditam que as pessoas possam ou queiram desafiá-lo, e, assim, qualquer acto de desobediência civil é invariavelmente seguido pela tentativa de captar o seu instigador — seja ele uma pessoa importante ou «um grupo de gente politicamente motivada». (Um dos mais deliciosos exemplos desta tendência paranóica é o romance de Agatha Christie, The Secret Adversary, publicado em 1922, em que os destemidos detectives, Tomrny e Tuppence, investigam urna repentina série de greves industriais. «Os bolchevistas estão por detrás dos motins laborais», informam-nos, «mas quem está por detrás dos bolchevistas é este homem.»

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E acabam por descobrir que quem planeou e manipulou toda a revolução russa sem dar nas vistas é u m inglês c h a m a d o Sr. Brown,) As versões vitorianas de Tommy e Tuppence não tiveram de ir muito longe para descobrir a força criminosa por detrás da Comuna de Paris. A prova encontrava-se na última página de A Guerra Civil em França. «A desconfiada mente burguesa julga que a Associação Internacional de Trabalhadores está a preparar uma conspiração e que os seus dirigentes ordenam, de tempos a tempos, explosões em países diferentes», anotou sarcasticamente Marx. «Na realidade, a nossa associação é apenas o elo internacional entre os trabalhadores mais progressivos do m u n d o civilizado. É portanto natural que os seus membros figurem em primeiro plano sempre que a luta de classes ganhe consistência.» E m b o r a alguns dos seus membros fizessem parte da Comuna, a Internacional em si nada tinha dito ou feito no decorrer daqueles dois meses à parte ter encarregado Marx de compor uma alocução que apareceu demasiado tarde para ter qualquer influência sobre o resultado. Mas a exagerada afirmação de Karl Marx de que ela se figurava «no primeiro plano» desencadeou umi clamor de protestos em toda a Europa. Jules Favre, que era n o vamente ministro dos Negócios Estrangeiros, solicitou a todos os governos europeus que ilegalizassem imediatamente a Internacional, e um jornal francês, alegando que Marx «organizara» a insurreição de 18 de Fevereiro do seu covil em Londres, identificou-o como o «chefe-supremo» dos conspiradores. Dizia-se que a Internacional contava com sete milhões de membros, todos eles à espera das ordens de Marx para se revoltar. O grande Mazzini, herói romântico do nacionalismo republicano, aproveitou a oportunidade para ajustar contas antigas e informou a imprensa italiana e britânica que Marx era «um h o m e m dominador, ciumento da influência dos outros e governado por crenças desonestas e ateias. Receio que haja mais raiva do que amor no seu temperamento.»^^ Outros governos europeus atearam o pânico. A Espanha expulsou refiigiados da Comuna e o embaixador alemão, em Londres, incitou Lorde Granville, ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, a tratar Marx como um criminoso por causa das suas ultrajantes «ameaças contra a vida e a propriedade». Depois de ter consultado o primeiro-ministro e a rainha, Grandville replicou que «as opiniões socialistas radicais não pareciam ter ganho qualquer influência sobre a classe trabalhadora deste país» e, «que se saiba, a filial inglesa dessa Associação não tomou nenhumas iniciativas de ordem prática

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em outros países estrangeiros». E, além do mais, não se podia prender ninguém que não tinha infringido a lei. Lorde Aberdare, o ministro do Interior, foi constantemente importunado para agir contra Marx e a Internacional, em particular por u m ruidoso m e m b r o do Parlamento chamado Alexander Baillie-Cochrane. Antes de emitir u m parecer, Aberdare pediu ao seu secretário particular para obter cópias da suposta incendiária propaganda da Internacional. Marx teve o maior gosto em cooperar e, a 12 de Julho, enviou ao Ministério do Interior uma resma de papéis que incluía a alocução inaugural, os regulamentos provisionais e uma cópia de A Guerra Civil em Trança. Ao ouvir esta notícia, Bakunine denunciou Marx como sendo um «traiçoeiro espião da polícia» — difamação que, desde essa altura, tem sido periodicamente repetida. U m dos mais recentes biógrafos de Marx, Robert Payne, conclui que há «alguma verdade nessa acusação». Mas porquê não haveria Marx de tentar esclarecer um mal-entendido que, de outro modo, poderia levar o Governo britânico a tomar uma acção drástica? A o contrário de Bakunine, ele não tinha t e m p o para conspirações. A Internacional era uma associação de sindicatos legalmente constituída e, por isso, porquê se comportar então como se houvessem segredos comprometedores? Essa atitude franca foi plenamente vindicada quando Aberdare, depois de examinar os documentos, garantiu ao Parlamento que Marx e os seus adeptos descontentes inofensivos que necessitavam apenas de receber «alguma educação religiosa» para seguir pelo bom caminho. The Times não ficou convencido pois temia que os sólidos sindicalistas ingleses, os quais nada mais queriam do que «um razoável salário diário por um honesto dia de trabalho», fossem corrompidos por «estranhas teorias» importadas do estrangeiro.^'' Graças ao panfleto de Marx, os jornais britânicos encontravam-se, agora, em estado de alerta e de olhos postos no inimigo vindo do interior. «Apesar de pouco vermos ou ouvirmos abertamente da influência da Internacional, esta tornou-se a verdadeira força motivadora cuja mão oculta guiava toda a máquina da Revolução com misterioso e temível poder», noticiou Traser's Magazine, em J u n h o de 1871^^. Uma revista católica. Tablet, preveniu os seus leitores quanto ao sinistro significado de uma modesta livraria localizada no centro de Londres. «Deveríamos considerá-la superior a um palácio ou monumento, pois é o quartel-general de uma sociedade cujas ordens são obedecidas de Moscovo a Madrid e tanto no Mundo Novo como

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no Antigo. Os seus discípulos já declararam uma guerra desesperada a u m governo e juraram declarar guerra a todos os demais. Trata-se da maléfica e ubíqua Associação Internacional do Operariado.»^^ U m editorial do Spectator, embora louvasse o estilo da prosa de Marx («tão vigoroso como o de Cobbett»), achou que a sua alocução era «possivelmente o mais maléfico e significativo sinal dos tempos»^'. Até mesmo a Pali Mali Ga^iette, para a qual Engels tinha colaborado durante a guerra fi-anco-prussiana, se juntou à caçada às bruxas, descrevendo Marx como «um israelita de nascimento» que se proclamara chefe de «uma vasta conspiração cujo objectivo era implantar o comunismo poKtico». Após anos passados na obscuridade, Karl Marx descobriu repentinamente que era «infamoso». «E sem dúvida verdade que o secretário daquela organização, que faia e escreve em seu nome, é um alemão temperamental, impetuoso e provocador chamado Karl Marx», informou os Quarterly Revkw. «E também é verdade que muitos dos seus colegas ingleses estão fartos da sua violência e resistem ao seu comportamento imperativo, recusando ser arrastados num banho de sangue, coisa que a ele não repugna.»-''* Ao princípio, Marx sentiu-se lisonjeado por todo o alvoroço. «Tenho a honra de, neste momento, ser o homem mais caluniado e ameaçado de Londres», confessou seu amigo alemão, Ludwig Kugelmann. «Depois de um aborrecido idíHo de 20 anos nas berças, isso faz-me realmente bem. O jornal do Governo — o Observer— ameaça processar-me. Atrevam-se! N ã o me ralo nada com esses patifes!»-'^ Mas, à medida que a imprensa continuava a publicar falsidades e fantasias quase diariamente, essa despreocupada gabarolice deu lugar a um sentimento de orgulho ofendido e, quando Jenny se ofereceu para exigir um pedido de desculpa em nome dele à revista semanal Public Opinion, Marx deu-Ihe instruções para enviar igualmente o seu antigo cartão-de-visitas (Sra. Jenny Marx, baronesa Von Westphalen) — qual, segundo ele esperava, «amedrontará esses conservadores». N o entanto, Karl preferia, a maior parte das vezes, métodos menos subtis de contra-ataque. «Se o seu jornal continuar a publicar essas mentiras, ver-me-ei obrigado a instaurar-vos um processo», avisou ele o director do jornal francês em Londres, Ulnternational, que tinha afirmado que os «pretensiosos» trabalhadores europeus se estavam a endividar para dar a Marx «uma vida confortável em Londres». Recentes difamações noticiadas na PO//MÍZZ/GÍ?.-^«?//!? provocaram outra reacção:

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Sr. Director, Li na secção da correspondência de Paris do seu jornal de ontem que, embora me tivesse instalado em Londres, eu fora preso na Holanda a pedido de Bismark-Favre. Mas talvez isso não passe de mais uma das inumeráveis histórias sensacionais sobre a Internacional que, nos últimos dois meses, a polícia franco-prussiana não se cansa de inventar, a imprensa de Versalhes de publicar e o resto da imprensa europeia de reproduzir. Com os meus cumprimentos, Karl Marx 1, Modena Villas, Maidand Park^^ A ¥allMall Gazette retaliou, acusando Marx de caluniar o poKtico francês, Jules Favre — e o obediente correspondente de Modena ViUas escreveu nova carta. «Você não passa de um difamador», chamou ao director, Frederick Greenwood. «Não tenho culpa de que, além de ignorante, seja arrogante. Se vivêssemos na Europa continental, exigir-lhe-ia uma explicação e resolveríamos o assunto de outra maneira. Sinceramente, Karl Marx.»^^ É evidente que para os leitores ingleses, a publicação desta carta meramente confirmou os seus piores receios quanto a este perigoso rufia alemão. E m meados de Julho, um correspondente do World, de Nova Iorque, deslocou-se expressamente a Modena Villas para visitar a fera no seu covil. A primeira surpresa foi que a aparência de Marx era a de um h o m e m abastado da classe média — género agente próspero da Bolsa. «O apartamento onde mora é o de um h o m e m com gosto e dinheiro, o conforto personificado, mas sem nada que caracterize a personalidade do seu dono. N o entanto, um excelente álbum com paisagens do Reno sobre a mesa dava uma indicação quanto à sua nacionalidade. Espreitei prudentemente para dentro de um jarro à espera de encontrar uma bomba. Farejei o ar, mas tudo o que senti foi o odor a rosas e não o de explosivos. Voltei a sentar-me e aguardei nervosamente o pior. Ele entrou e cumprimentou-me cordialmente. Sentámo-nos diante um do outro. Sim, estou agora a conversar com a revolução em carne e osso, o fundador e guia espiritual da Associação Internacional, o autor da alocução que ameaça o capital e o previne para não se meter com os trabalhadores — numa palavra, o apologista da Comuna de Paris. Lembram-se da prisão de Sócrates, o h o m e m que preferiu morrer a ter de

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aceitar os deuses da sua época — o filósofo de nobre perfil, cuja fi'onte ampia desee arrebitando ligeiramente no nariz? Guardem na mente este busto, pintem a barba de preto com pelos grisalhos aqui e ali, coloquem a cabeça assim feita num corpo imponente de altura média e eis Marx à nossa frente. Tapem~lhe a parte superior do rosto com um véu e vão julgar que se encontram na companhia de um membro do clero. Note-se na feição essencial, o imenso sobrolho e damo-nos imediatamente conta de que temos de lidar com a mais formidável das forças — um sonhador que pensa, um pensador que sonha.»-''^ A entrevista em si não é comparável a esta elaborada encenação. Era Marx o manipulador invisível por detrás da Internacional? «Não há nenhum mistério para desvendar, meu caro senhoo), riu-se ele. «A não ser talvez o mistério da estupidez humana, daqueles que teimam em ignorar que a nossa Associação é pública e que as suas actas são publicadas para quem as queira 1er. Pode comprar os nossos estatutos por nmpenny e um xelim gasto em panfletos ensinar-lhe-á quase tanto sobre nós como nós mesmos sabemos.» O jornalista americano não ficou, contudo, convencido. A Internacional era provavelmente uma sociedade de trabalhadores autênticos, mas não eram eles meros instrumentos nas mãos de um génio maléfico disfarçado num respeitável cidadão da classe média? «Não existe nada que possa provar tal coisa», respondeu Marx com rispidez. Começou ficar cansado de refutar os boatos sensacionalistas que corriam por toda a Europa ocidental e até para lá das suas fronteiras. Um jornal francês, UA-Venir Libéral, publicou a notícia de que ele tinha morrido; e Marx leu o seu próprio obitoário no World, de Nova Iorque, que elogiava «um dos defensores mais dedicados, mais destemidos e menos egoístas do povo e de todas as classes oprimidas». Não deixava de ser bastante gratificante, mas, na medida em que a sua saúde era frágil, também era uma desagradável lembrança da mortalidade. Em meados de Agosto, o médico diagnosticou «fadiga excessiva» e recomendou-lhe duas semanas de repouso à beira-mar. «Não trouxe o remédio para o fígado comigo», escreveu Marx a Engels do Hotel Globe, em Brighton. «Mas o ar faz-me muito bem.» Esqueceu-se de acrescentar que não parava de chover e que tinha apanhado uma grande constipação. A fama seguia-o por toda a parte. Pouco depois de ter chegado a Brighton, reconheceu um homem que o espiava a uma esquina — tratava-se do inepto espião que costumava muitas vezes segui-lo, a ele e a Engels, em Londres.

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Uns dias mais tarde, farto de ser seguido a cada passo, Marx estacou de repente, virou-se e lançou um olhar ameaçador ao homem que o perseguia. Este baixou humildemente o chapéu e desapareceu para sempre. Se estes espiões soubessem a verdade, teriam poupado muitas solas de sapato. O enorme e disciplinado exército de revolucionários comandado por Marx existia apenas na imaginação dos políticos e directores de jornais excitáveis. Logo após a Comuna ter sido esmaga, a Internacional começou a desintegrar-se. A secção francesa foi ilegalizada e os seus membros mortos ou enviados em exílio para as colónias da Nova Caledónia; os líderes ingleses dos sindicatos juntaram-se ao Partido Liberal de Gladstone e muitas dasfiliaisamericanas passaram a ser controladas pelos adeptos de duas extravagantes irmãs, Victoria Woodhull e Tennessee Claflin, as quais advogavam o espiritualismo, a necromancia, o amor livre, a abstinência alcoólica e a linguagem universal. (WoodhuU, que usava os seus indubitáveis encantos para extrair grandes somas de dinheiro ao milionário Cornelius Vanderbüt, tinha começado a sua carreira como vendedora de banha da cobra. Beneficiara da política marxista da porta aberta, a qual estipulava que todos os que aceitassem mais ou menos os objectivos da Associação seriam admitidos; mas ele acabou por perder a paciência quando ela anunciou a sua intenção de se apre; sentar às eleições presidenciais americanas como candidata da Associação Internacional dos Trabalhadores e da Sociedade Nacional de Espiritoalistas.) Durante a ausência de Marx à beira-mar, vários parisienses refugiados em Londres foram eleitos para o Conselho-Geral, mas como a maior parte era proudhonista, as antigas querelas recomeçaram novamente. E, claro está, ainda havia a ameaça de Michail Bukanine, o qual observava a Internacional moribunda como uma hiena esfomeada. Andava agora a intrigar mais brutalmente que nunca com o seu novo acólito, Sergei Nechayev, um louco anarco-terrorista russo que se refugiara na Suíça em 1869. Bakunine, não menos fantasista, deixou-se impressionar pela gabarolice de Nechayev, que tinha organizado uma rede de células revolucionárias por toda a Rússia, e pelo relato da sua sensacional fuga da fortaleza de Pedro e Paulo em Sampetersburgo. Embora ambas estas coisas fossem pura ficção, a violência de Nechayev era bastante autêntica; antes de fugir da Rússia, tinha assassinado um colega estudante simplesmente porque queria provar que era capaz de o fazer. Depois de se juntar a Bakunine, publicou uma série de proclamações e artigos incendiários, provenientes ostensivamente da Internacional, a anunciar vingança.

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As acções bizarras dos bakuninistas dividiu a Federação Romande, a secção suíça da Internacional, e provou uma confusão sem fim — especialmente porque ambas as facções continuaram a emitir comunicados em nome da extinta Federação. Para resolver a disputa, o quartel-general em Londres convocou um congresso extraordinário em Setembro de 1871, o qual teve lugar na taberna Blue Posts, em Tottenham Court Road. «Foi uma tarefa difícil», escreveu Marx à mulher que, à cautela, tinha ido para Ramsgate. «Sessões de manhã e de noite, com outras sessões nos intervalos, para ouvir testemunhas, redigir relatórios, etc. Mas como não havia assistência e não tínhamos portanto de encenar comédias retóricas, fizemos mais do que em todos os outros congressos juntos.»^^ Marx, que actuava sempre muito bem em tabernas, dominou as sessões e chamou a atenção sobre o facto de que, embora Bakunine tivesse prometido dissolver a sua Aliança da Democracia Socialista para se juntar à Internacional, «a Aliança nunca foi realmente dissolvida e tem mantido u m a espécie de organização». Bakunine não foi directamente condenado, mas os delegados passaram uma moção: Nechayev, que nunca fora membro nem agente da Internacional, «tem fraudulentamente usado o n o m e da Associação Internacional de Trabalhadores a fim de enganar gente na Rússia». E também mandava os bakuninistas deixarem de empregar o nome da Federação Romande, permitindo-lhes apenas formar uma secção suíça separada com o nome de Federação do Jura. Tinham-se mostrado tolerantes em relação a Bakunine, mas este sabia que Marx se preparava para um ajuste de contas final, pois a Internacional não era suficientemente grande para ambos. Pouco depois do congresso de Londres, a nova Federação do Jura reuniu-se na cidade suíça de SonvilUer onde houve muitas discussões sobre a «falta de representatividade» do congresso de Londres. O que era verdade: 13 membros do Conselho-Geral tinham marcado presença na taberna Blue Posts, mas apenas dez representavam o resto do mundo — dois suíços (ambos anti-Bakunine), um francês e outro espanhol, e, pelo menos, seis belgas. A reunião em Sonviliier foi, porém, ainda menos representativa: 16 delegados, todos pró-Bakunine. Produziram uma circular que foi distribuída em todas as filiais da Internacional do continente europeu: «Uma verdade que não se pode negar e que foi provada vezes sem conta é o efeito corruptivo da autoridade sobre aqueles em que cujas mãos tal autoridade é posta...

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As funções dos membros do Conselho-Geral têm vindo a ser encaradas como propriedade privada por uns quantos indivíduos... Tornaram-se uma espécie de governo e consideram natural que as suas próprias ideias constituam a doutrina oficial da Associação e a única que é autorizada, enquanto as ideias divergentes dos outros grupos já não lhes parecem uma legítima expressão de opinião com valor igual à deles, mas sim uma autêntica heresia.» O único remédio contra o autoritarismo, decidiram, era despojar o Conselho-Geral do seu poder e reduzi-lo a uma simples «caixa de correio». Nos meses seguintes, Bakunine enviou uma série de circulares histéricas aos membros da Internacional em Espanha e Itália, apresentando-se como a vítima de «uma conspiração de judeus alemães e russos fanaticamente dedicados ao seu tirânico messias, Marx». Só a «raça latina», acrescentava lisonjeiramente, podia pôr fim aos planos secretos dos hebreus para dominar o mundo. «Todo este mundo judeu constitui uma única seita de exploradores que suga o sangue das pessoas. É uma espécie de parasita colectivo, voraz e organizado não só através das fronteiras mas também através das diferentes opiniões poiïticas. Este mundo, pelo menos em grande parte, está actualmente nas mãos de Marx por um lado e, por outro, dos Roths-, chüds. Sei que os Rothschilds, reaccionários como são e deveriam ser, dão grande valor aos méritos do comunista Marx e que este, por sua vez, se sente irresistivelmente atraído — atracção essa instintiva e cheia de respeitosa admiração — pelo génio financeiro de Rothschild. Essa poderosa solidariedade judaica tem-se mantido ao longo de toda a história e une-os.»^"" Estas pútridas elucubrações eram, pelo menos, sinceras. E m 1869, ele tinha escrito uma volumosa tirada contra os judeus («isentos de qualquer sentido moral e de dignidade pessoal») em que nomeava somente cinco excepções à regra: Jesus Cristo, São Paulo, Espinosa, Lassalle e Marx. E, quando u m amigo lhe perguntou porquê Marx fora absolvido, Bakunine explicou que queria alertar o inimigo: «Pode ser que, dentro de pouco tempo, tenha de lhe dar luta... Mas há tempo para tudo e a hora da batalha ainda não chegou.» Mas, agora que essa batalha tinha começado, já não precisava de esconder os seus verdadeiros sentimentos. Há aqui uma distinção importante a fazer. Até à Segunda Guerra Mundial, escritores populares, como Agatha Christie, faziam por vezes observações anti-semitas nos seus livros («Claro que ele é judeu, mas muito simpá-

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tico»); no entanto, nunca ninguém acusou Christie de querer eliminar seis milhões de judeus. D o mesmo modo, o estereótipo do «judeu avarento» era quase universal no século XIX e o próprio Marx usou-o num dos seus primeiros ensaios, Sobre a Questão Judaica. Bakunine, contudo, dirigia as suas viciosas diatribes contra os «judeus louros» independentemente da sua religião, métodos de negócio, classe social ou ideologia política. E n q u a n t o Marx argumentava que a emancipação da humanidade libertaria os judeus da tirania do Judaísmo, o desejo de Bakunine era apenas de os aniquilar. «Os judeus são detestados em todos os países», escreveu numa circular à secção da Internacional em Bolonha. «Odeiam-nos tanto que, como consequência natural, todas as revoluções populares são acompanhadas por massacres de judeus...» Compreensivelmente, o Conselho-Geral sentiu-se obrigado a distanciar-se dessas tendências genocidas, em particular numa altura em que todos os directores dos jornais europeus queriam conspurcar a Associação Internacional do Operariado. E, em Junho de 1872, publicou um panfleto escrito por Marx, A.s Fictícias Divisões na Internacional— o título era negado logo na primeira página, pois confirmava a existência de uma divisão tão vasta como o canal da Mancha: «Desde a sua fundação que a Internacional não atravessa uma crise tão grave.»^^ E Bakunine era acusado de instigar uma «guerra racial» e de, como parte do seu plano anarquista, organizar sociedades secretas para destruir o movimento dos trabalhadores. Bakunine retaliou exigindo a convocação de um congresso para resolver a disputa uma vez por todas. Como desde 1869 não tinha sido realizado nenhum congresso — em primeiro lugar por causa da Guerra Franco-Prussiana, e, depois, por causa das perseguições policiais que se seguiram à Comuna de Paris — o Conselho-Geral dificilmente poderia recusar e, por conseguinte, anunciou uma sessão plenária para o dia 2 de Setembro de 1872 em Haia. Isto provocou ainda mais uivos de protesto por parte de Bakunine, que queria que o congresso tivesse lugar na sua praça-forte, Genebra, mas o Conselho-Geral fez-lhe notar que três dos quatro congressos da Internacional já tinham ocorrido na Suíça e que não se podia ter tudo. Bakunine decidiu, então, boicotar o evento e instruiu os seus adeptos «para enviar os delegados a Haia com "mandatos imperativos", ordenando-lhes para abandonar o congresso por solidariedade assim que a maioria votasse a favor de Marx sobre qualquer questão». Depois destas escaramuças preliminares, o congresso abriu em Haia num ambiente de frenesim conspiratório no inadequadamente chamado Salão da

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Concórdia. Havia 65 delegados, mas muito mais repórteres, espiões e curiosos que tinham vindo para ver de perto os perigosos revolucionários, como se estes fossem leões de circo. U m jornal belga publicou a triste noü'cia que o Dr. Marx, padrinho do terrorismo e do caos, parecia um «cavalheiro rural». O liberal jornalista holandês, S. M. N. Calisch, assinalou que Marx tinha parentes em Amesterdão. «Se isso é verdade, então a família não verá inconvenientes em apresentá-lo à alta sociedade ou em tomar chá com ele no café Zoo. Com o seu fato cinzento de flanela, tem um aspecto absolutamente correcto, e quem não o conhecer e não souber da sua relação com a temida Internacional, tomá-lo-á por um turista a dar um passeio a pé.»38 Mesmo assim, os ourives trancavam as lojas com medo que os comunistas quebrassem as montras e roubassem as jóias. U m jornal local, o Haager-Dagblaad, aconselhou as mulheres e as crianças a não sair à rua. Para consternação da polícia e da imprensa, o congresso teve início à porta fechada, enquanto a boa intenção dos delegados era verificada. U m espião enviou um deprimente relatório para Berlim informando que «não era permitida a entrada no primeiro andar onde corriam as sessões e nem sequer se conseguia ouvir uma palavra do que se passava lá dentro pela janela aberta»^'. O correspondente de The Times conseguiu encostar o ouvido à fechadura, mas tudo o que ouviu foi «o tilintar de uma campainha acima de uma algazarra de vozes irritadas»'*'^. Os debates foram irados e longos: as facções rivais gladiaram-se durante três dias para obter vantagens pondo em questão as credenciais de quase todos os oponentes. E quando foi dito que Maltman Barry, representante dos trabalhadores alemães de Chicago, era na realidade um conservador londrino e «não um líder reconhecido dos trabalhadores tagleses», Marx replicou que isso não era nenhuma novidade, pois «quase todos os reconhecidos líderes dos trabalhadores ingleses estavam vendidos a Gladstone» — observação que não se pode dizer ter sido calculada para ganhar os votos dos representantes ingleses. N o entanto, podia, pelo menos, confiar nos alemães e nos franceses, nas fileiras dos quais se encontrava o noivo át Jennychen, Charles Longuet. O genro. Paul Lafargue, tinha-se manhosamente juntado à delegação espanhola e o resto era a favor de Bakunine. Ao cabo de uma maratona de três dias, tornou-se evidente que os anarquistas estavam em minoria. Alguns delegados, impossibilitados de se manterem afastados da sua vida profissional durante mais tempo, voltaram para casa sem aguardar o fim dos debates e a votação, enquanto outros partiram à procura de discussões mais estimulantes nos bordéis locais.

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«Assistimos, finalmente, a uma auténtica sessão do congresso da Internacional», informou o jornal L Í Français quando as portas foram abertas ao púbMco na noite de 5 de Setembro, «com uma assistência dez vezes superior ao que a sala podia comportar, aplausos, interrupções, empurrões, vaias, ataques pessoais, declarações extremamente radicais, mas, ao mesmo tempo, extremamente conflituosas, recriminações, denúncias, protestos, chamadas à ordem e, por fim, o encerramento da sessão às dez horas, no meio da maior confusão e de um calor tropical.»''^^ Apesar de Marx tentar passar despercebido e se sentar discretamente atrás de Engels, ninguém duvidou que era aquele «cavalheiro rurab rel="nofollow"> quem dirigia o espectáculo. Logo no primeiro debate sobre a extensão dos poderes do Conselho-Geral, um delegado de Nova Iorque argumentou que a Internacional necessitava de uma cabeça forte «com miolos». Ouviram-se risos quando todos os olhos se viraram para Marx. A moção foi aprovada: 32 votos a favor e seis contra com 16 abstenções. Quando este resultado foi anunciado, Engels ergueu-se subitamente e pediu licença para «fazer uma comunicação ao congresso». Perante a manifesta falta de unidade no seio da Internacional e a impossibilidade de reconciliar franceses e espanhóis ou alemães e ingleses, ele e Marx desejavam propor que a sede do Conselho-Geral mudasse para Nova Iorque. Não podendo acreditar no que tinham ouvido, os delegados ficaram sentados em silêncio estupefacto durante um minuto ou dois. No dizer de um observador inglês. «Foi um verdadeiro golpe de Estado e todos se entreolhavam ã espera que um deles quebrasse o silêncio.»''^ Como a Comuna de Paris tinha mostrado há pouco mais de um ano, a Europa era o berço do novo movimento revolucionário: como poderia a Internacional alimentar e educar os seus filhos do outro lado do Atiântico? O tributo de Engels à superior «capacidade e zelo» do trabalho organizado nos EUA era particularmente pouco convincente, pois todos sabiam que, nos últimos dois anos, a secção americana da Internacional andava preocupada com a luta contra Victoria WoodhuU e a sua extravagante seita. Era verdade que um Conselho-Geral constituído exclusivamente por americanos talvez fosse palco de menos querelas entre protagonistas, blanquistas e comunistas, mas também não poderia contar com as poderosas qualidades intelectuais de Karl Marx. Assim como muitos dos seus aliados votaram contra essa ideia, alguns dos seus piores inimigos aprovaram-na por essa mesma razão. «A sua direcção e supervisão pessoais são absolutamente essenciais», argumentou um marxis-

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ta em pânico. E outro disse que mais valia então transferir a sede para a Lua. No entanto, e graças ao veto anarquista, Marx e Engels conseguiram o que queriam com 26 votos a favor, 23 contra e seis abstenções. Ao exilar a Internacional para os EUA, Marx condenava-a deliberadamente à morte. «A estrela da Comuna já ultrapassou a sua não muito elevada altitude mediana», comentou o Spectator, em 14 de Setembro. «E, a não ser na Rússia, nunca a veremos novamente tão alta.» Então, por que é que ele fez tal coisa? Historiadores marxistas têm tratado a questão como um enigma sem solução, mas não há nenhum mistério: ele estava simplesmente exausto pelo esforço de manter unidas as tribos que se guerreavam. Um ou dois camaradas já estavam a par do segredo. «Ando tão fatigado e isso interfere tanto nos meus estudos que, depois de Setembro, penso afastar-me do "negócio"» (nome de código para o ConseIho-Geral), escreveu a um amigo russo três meses antes do congresso, «é de uma grande responsabilidade, sobremdo para mim, pois tem, como sabe, ramificações por todo o mundo e eu já não consigo combinar duas coisas tão diferentes.»'*-' Numa carta ao socialista belga César de Paepe, datada de 28 de Maio de 1872, parecia ainda mais desmotivado: «Estou ansioso para que o novo congresso comece. Será o fim da minha escravidão. Quando terminar, voltarei a ser Uvre e nunca mais aceitarei funções administrativas.. .»'^"^ Marx sabia que, sem a sua presença, o Conselho-Geral se desintegraria, mas que, antes de expirar, poderia prejudicar seriamente o comunismo. Mais valia pôr fim ao sofrimento do animal ferido. Após a decisão de mudar o quartel-general da Internacional para Nova Iorque, os subsequentes debates do congresso em Haia tornar-se-iam menos importantes. Mas, antes de abandonar o palco, Marx tinha encenado mais um golpe teatral. Duas semanas antes de se deslocar à Holanda, tinha obtido um documento proveniente de Sampetersburgo que parecia provar que Michail Bukanine era um maníaco homicida. Ia agora mostrá-lo e desencadear uma fogueira de vaidades final. No Inverno de 1869, Bakunine, como de costume sem dinheiro, aceitou 300 rublos de um editor chamado Lyubavin para traduzir O Capital çxa russo. Era difícil pensar em alguém menos inadequado para tal tarefa: além de ser um preguiçoso incorrigível, era pouco provável que Bakunine estivesse disposto a enaltecer a reputação de Marx. Mas, aparentemente, Lyubavin nada sabia disso e, passados alguns meses, lembrou-lhe amavelmente que o manuscrito ainda não fora entregue. Como resposta, recebeu uma raivosa carta

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de Sergei Nechayev, o cão de fila de Bakunine, em que este clamava agir em nome de urna organização secreta de assassinos revolucionários. Denunciava Lyubavin como parasita e extorsionarlo e dizia que este queria impedir Bakunine de «ajudar a causa suprema do povo russo», forçando-o a fazer trabalhos literários. Nechayev ordenava-lhe ainda que rasgasse o contrato e não obrigasse Bakunine a reembolsar o dinheiro — caso contrário... «Sabendo com quem está a lidar, fará, por conseguinte, o necessário para evitar a nefasta possibilidade de nos dirigirmos a si uma segunda vez de forma menos civilizada... Somos muito rigorosos e calculámos o dia exacto em que irá receber esta carta. Deverá sujeitar-se às nossas ordens de modo a não termos a necessidade de recorrer a medidas extremas... Depende inteiramente de si mantermos relações mais amigáveis ou sermos obrigados a tomar uma atitude desagradável.» Com os melhores cumprimentos, sinceramente seu... Como indicação da natureza dessas «medidas extremas», Nechayev decorou o papel de carta com uma pistola, um machado e um punhal. Não é uma técnica que recomendamos a um escritor que não cumpra o prazo de entrega. Mais tarde, Bakunine insistiu que não tinha conhecimento dessa carta, assim como não estava a par de que Nachayev fosse procurado pela morte de um estudante em Sampetersburgo: logo que soube a verdade, na Primavera de 1870, repudiou imediatamente o seu violento associado. Desde então, historiadores e biógrafos aceitaram os seus protestos de inocência, mas essa declaração de Bakunine é tão digna de confiança como tudo o que emana dele. A verdade encontra-se nos arquivos da Biblioteca Nacional de Paris onde, em 1966, o professor Michael Confino descobriu uma longa carta de Bakunine a Nechayev datada de Junho de 1870 — quer dizer, após o pai do anarquismo ter, supostamente, deserdado o filho delinquente. Longe de o repudiar, Bakunine propunha-lhe que continuassem a conspirar e a maquinar planos juntos com a condição de Bay (como apeüdava ternamente Nechayev) ser futuramente mais discriminatório na escolha das vítimas. «Esta simples regra deve constituir a base da nossa actividade: verdade, honestidade e confiança mútua entre todos os Irmãos e em relação a todos os que possam e desejem juntar-se à nossa irmandade; as mentiras, a manha e, se necessário.

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a violencia são reservadas aos nossos inimigos.»"^^ Eis o que pode ser dito quanto à rejeição do «gangsterismo» feita por Bakunine. Essa outra carta incriminatória, a de Nechayev ao pobre Lyubavin, teve o efeito desejado quando Marx a mostrou aos delegados em Haia. No último dia do congresso, e por uma maioria de 27 votos contra sete, foi acordado que Bakunine deveria ser expulso. A Internacional caiu em rápido declínio após a sua sede ter sido radicada em Nova Iorque e dissolveu-se formalmente em 1876. Michail Bakunine morreu no mesmo ano, e Nechayev, o seu Boy adorado, foi deportado da Suíça no Outono de 1872 para a Rússia, condenado por homicídio e enviado para a fortaleza de S. Pedro e Paulo onde, após dez anos de solitária numa húmida masmorra, morreu com 35 anos. Marx sobreviveu a todos eles.

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O paradoxo, a ironia e a contradição, os espíritos que animam a obra de Marx, também constituíam a maliciosa trindade que moldaram a sua própria vida. Supõe-se que ele teria aplaudido o credo de Ralph Waldo Emerson: «Uma consistência insensata é o papão das mentes mesquinhas e é adorada por estadistas, filósofos e divindades insignificantes. Com consistência, uma grande alma não tem, muito simplesmente, nada que fazer.» Não é surpreendente, portanto, que um homem perpetuamente sem dinheiro através de toda a sua carreira profissional, só tenha acabado por encontra segurança financeira quando desistiu de ganhar a vida. No Verão de 1870, Engels vendeu a sua parte na empresa da família a um dos irmãos Ermen e, com o lucro do negócio, garantiu ao imprevidente amigo uma pensão de 350 libras por ano. «Fiquei estarrecido pela tua generosa amabilidade», confessou Marx, espantado. Durante duas décadas, Engels sustentou uma vasta tribo — as irmãs Burns, a família Marx, Helene Demuth —, enquanto também escrevia e promovia energicamente a sua causa política. Nunca se queixou nem sequer uma vez. Como Jenny Marx disse: «Mostra-se sempre alegre, saudável, vigoroso, bem disposto e gosta imenso de beber cerveja (em particular a vienense).»^ Acompanhado por Lizzy Burns e a sua retardada sobrinha, Mary EUen (Pumps) — mais uma pobre coitada por quem tinha assumido a responsabilidade — Engels mudou-se para Londres, alugando uma elegante casa em Regent's Park Road, 122. Nem todas as ironias do destino foram tão benignas. Os anos de conflito na Internacional tinham dado a Marx uma violenta alergia aos socialistas

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franceses, os quais tivera a esperança de curar ao demitir-se do Conselho-Geral; mas agora, castigo do destino, dois desses irritantes indivíduos eram seus genros. A 2 de Outubro de 1872, um par de semanas depois do congresso em Haia, Jemjcòen tinha-se casado com Charles Longuet numa cerimónia civil em São Pancrácio. A mãe da noiva, que nem sempre partilhava dos mais extremos preconceitos de Karl, aprovou o casamento de pleno agrado. Quase tudo nos franceses a irritava — a sua hauteur, o seu élan, o seu savoir faire, as suas idées fixe as suas grandes passions e, muito provavelmente, um certo^é' ne sais quoi. «Longuet é muito dotado», escreveu a Liebknecht quando o noivado foi anunciado. «É um homem bom, honesto e decente... Mas não consgo encarar a sua união sem um certo desconforto, e teria realmente preferido que a Jenny tivesse escolhido (por uma vez) um inglês, ou um alemão, em vez de um francês, o qual, embora possua todas as encantadoras qualidades do seu país, também tem as suas fraquezas e incapacidades.»^ Como era de esperar. Longuet provou ser um bruto enfadonho e egoísta que condenou a mulher à lida da casa. «Apesar de eu trabalhar como um preto», confessou ela à irmã, Eleanor. «Ele passa o tempo a gritar comigo e a resmungar sempre que está em casa.»^ Para Karl Marx, a única consolação desse casamento miserável foi o nascimento de netos — cinco rapazes, um dos quais morreu em tenra idade —, e o facto de Longuet ter um ordenado regular como professor na Universidade de Londres. (Dois anos antes do casamento, quando as finanças da família estavam bastante em baixo. Jennychen vira-se forçada a procurar trabalho com governanta.) O marido de Laura, em contrapartida, parecia ser um caso perdido. Paul Lafargue tinha abandonado os estudos de medicina porque a morte dos três filhos o fizera perder a confiança nos médicos; dedicou-se aos negócios e comprou a patente de um «novo processo de emulsão fotográfica». O empreendimento foi prejudicado desde o princípio por causa das constantes discussões com o sócio, o refugiado da Comuna, Benjamin Constant Le Moussu, e, para salvar a honra da família, Marx viu-se na obrigação de adquirir a parte de Longuet (financiado, inútil será dizer, pelo bom velho Engels). Mais tarde, o próprio Marx desentendeu-se com Le Moussu sobre a propriedade de uma determinada patente. Em vez de suportar o embaraço e a despesa de recorrer ao tribunal, decidiram submeter a disputa ao arbítrio particular de um advogado de esquerda, Frederic Harrison, o qual menciona o episódio nas suas memórias:

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«Antes de fazerem qualquer depoimento, pedi-lhes que prestassem juramento sobre a Bíblia, conforme é requerido por lei. Ambos ficaram horrorizados. Marx protestou que não se rebaixaria a tal coisa e Le Moussu declarou que nunca seria acusado de cometer um acto tão vu. Discutiram durante meia hora, cada um deles recusando ser o primeiro a prestar , juramento na presença do outro. Consegui, por fim, convencê-los a chegar a um compromisso: tocariam ao mesmo tempo na Bíblia sem pro: ferir uma palavra. Pareceu-me que, assim como Mefistófeles na cena da ópera em que tem de enfrentar a cruz, ambos receavam a poluição do livro sagrado. Q u a n d o chegou a altura de apresentarem o caso, foi o esperto Le Moussu quem ganhou pois as provas dadas por Marx eram . totalmente confusas.»"* í Esta derrota fortaleceu a convicção de Marx de que, por debaixo das suas «peneiras francesas», os socialistas parisienses eram todos uma cambada de mentirosos e velhacos. Le Moussu foi imediatamente incluído no seu bestiario particular de gente desonesta e classificado de vigarista, «que extorquiu elevadas somas de dinheiros a mim e a outi-os e que, depois, recorreu a infames calúnias para limpar a sua reputação e se apresentar como uma pessoa inocente cuja magnânima alma não fora devidamente apreciada»^. Mas, muito em breve, a ira de Marx virou-se contra Paul Lafargue, o pateta incompetente que o tinha metido neste sarilho. A parte as suas «fraquezas e incapacidades», tanto Lafargue como Longuet eram uns irresponsáveis que recusavam dar ouvidos aos numerosos conselhos e sermões do exasperado sogro. «Longuet c o m o último proudhonista e Lafargue c o m o o último bakuninista!», queixou-se a Engels. «Que o diabo os carregue a ambos!»"^ Que franceses lhe tivessem tirado duas filhas podia ser considerado uma desgraça; mas perder uma terceira às mãos dessa gente era impensável. Pode-se portanto imaginar a reacção de Marx quando Eleanor se apaixonou pelo elegante Hippolyte Prosper Olivier Lissagaray, o qual, com 34 anos, tinha exactamente o dobro da idade dela. Lissagaray teve a infelicidade de chegar a Modena Villas quando as guerras gaulesas contra Lafargue e Longuet já tinha começado; em outras circunstâncias, ele até talvez fosse bastante aceitável. «Com uma única excepção, todos os livros que até agora apareceram sobre a Comuna são lixo. Essa excepção à regra-geral, é a obra de Lissagaray», disse Jennjchen aos Kugelmanns em 1871, repetindo, aparentemente, a opinião do pai.^

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Quando, anos mais tarde, Lissagaray publicou uma História da Comuna mais completa, Marx chegou a ajudar Eleanor a preparar uma tradução em inglês. No entanto, o homem era indubitavelmente francês: caracol colado à testa, sorriso desdenhoso e ostentação negligente, tudo parecia indicar um individualista caprichoso. Lissagaray tinha por conseguinte de dar provas de que poderia vir a ser um marido responsável. «Nada lhe pedi», escreveu Marx a Engels, «a não ser provas, em vez de palavras, que era melhor do que a sua reputação e que havia boas razões para confiar nele... A chatice é que tenho de ser muito circunspecto e indulgente por causa da minha filha.»^ Não era verdade: proibiu 'Tussy de ver Ussa durante longos períodos enquanto a realmente circunspecta e indulgente Jenny Marx era cúmplice do seu namoro secreto. Mas esses encontros às escondidas agravavam ainda mais a dor da separação. Em Maio de 1873, Eleanor aceitou um posto de ensino num seminário para senhoras em Brighton, na esperança de escapar ao pai (e, possivelmente, à sua dependência financeira); regressou a casa por volta de Setembro com uma depressão nervosa. Se tivesse de escolher entre o pai e o amante, não poderia desafiar a força gravitacional da devoção filial -— mas porquê essa escolha deveria se imposta? Uma carta que deixou em cima da secretária do pai uns meses mais tarde revelou o seu desespero e eterna obediência: Meu «'^//o querido Mo//rö, Vou pedir-te uma coisa, mas, primeiro, quero que me prometas não ficar muito zangado. Quero saber, querido Mouro, quando poderei voltar a ver L. Custa-me tanto nunca o ver. Faço o possível por ser paciente, mas é tão difícil que sinto que não consigo aguentar mais. Não espero que digas que ele pode vir cá. Nem sequer devo desejar tal coisa, mas não poderei eu ir dar um passeio com ele de vez em quando?... Quando me encontrava muito doente em Brighton (numa altura em que desmaiava duas ou três vezes ao dia), o L. veio ver-me e, após cada visita, sentia-me mais forte e feliz; e mais capaz de suportar o pesado fardo sobre as minhas costas. [Marx, evidentemente, não estava a par de tais visitas.] Há tanto tempo que não o vejo que, apesar de todos os meus esforços para ser alegre, estou a começar a sentir-me muito infeliz. De qualquer modo, meu muito querido Mouro, se não posso vê-lo agora, podes pelo menos dizer-me quando o poderei fazer. Dar-me-ia esperança e seria menos difícil ter de esperar.

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Meu queridíssimo Mouro, por favor não te zangues por eu ter escrito isto e perdoa-me ser egoísta ao ponto de te causar novas preocupações. Tua, Tussy.' Marx recusou ceder. E Eleanor, a exemplo do pai, tentou distrair-se mantendo-se ocupada. Inscreveu-se num curso de actores dado por uma certa Sra. Vezin, na esperança de iniciar uma carreira no palco e realizar o seu sonho de infância; juntou-se, depois, à Nova Sociedade de Shakespeare e à Sociedade Browning, dois dos muitos grupos fundados pelo professor socialista Fredrick James Furnivall; como Marx antes dela, descobriu o caloroso santuário do Museu Britânico, dedicando-se à pesquisa e a traduções. (Foi enquanto trabalhava na sala de leitura que conheceu um jovem irlandês chamado, George Bernard Shaw, recentemente chegado a Inglaterra, que se tornou num b o m amigo.) Anos mais tarde, após ter dado um recital no decorrer do encontro anual da Sociedade Browning, em Junho de 1882, escreveu excitadamente 2. Jennychen:

«O local estava à cunha — e, ao ver todos a aqueles literatos e gente fina, senti-me ridiculamente nervosa, mas prossegui. A Sra. Sutherland O r r (irmã de Frederick Leighton, o presidente da Academia Real) quer que eu vá com ela visitar Browning e lhe recite os seus próprios poemas! Também me convidaram para ir esta tarde a uma festa em casa de Lady Wilde. E mãe daquele jovem muito malcriado, Oscar Wilde, que tem andado a fazer uma tal figura de burro nos EUA. Como o filho ainda não regressou é muito simpática, sou capaz de lá ir. Que coisa maravilhosa é o entusiasmo!»^" Os pontos de exclamação, bem como o facto de citar gente conhecida, são dignas de Charles Footer. Apesar do entusiasmo lhe trazer alguma alegria e consolação, isso não podia distraía-la completamente do romance com Lissagaray. O que mais pesava a Eleanor era que Jenny, que nunca a tinha compreendido, fosse tão simpática com ela enquanto o adorado Mouro parecia nem sequer reparar no seu sacrifício — muito embora «os nossos temperamentos fossem tão iguais». Como muitas visitas notaram, também havia uma espantosa semelhança

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física entre os dois: uma testa baixa e larga por cima de olhos brilhantes e escuros, e um nariz proeminente. Se desenharmos uma barba numa fotografia de Eleanor, teremos diante de nós a imagem do jovem Karl Marx. «Infelizmente, só herdei o nariz do meu pai», costumava ela brincar. «E não o seu génio.»" Quando comparava as filhas, Marx reconhecia que «Jenny é a que se parece mais comigo, mas Tiissy sou eu exactamente». Seguindo o exemplo dele, Eleanor tentava acalmar os nervos fumando sem parar, hábito bastante comum entre gente literária, mas raro e chocante para uma menina bem educada da época vitoriana. Até mesmo as maleitas de pai e filha se sincronizavam de forma estranha. As depressões de Tussy manifestavam-se através de dores de cabeça, insónias e quase todos os outros sintomas (excepto furúnculos). «Nem o papá, nem os médicos, nem ninguém hão-de jamais compreender uma coisa», queixava-se Eleanor. «O que me afecta são sobretudo preocupações de ordem mentab> — estranho lapso para um homem que tinha uma vez admitido que «a origem da minha doença é a mente»^^. Durante a maior parte da década de 1870, estes semi-invaHdos percorreram as termas da Europa à procura de tratamento, mas é difícil não chegar à conclusão que eles prejudicavam a saúde um do outro. Em Agosto de 1873, quando Tussy tinha repetidos desmaios em Brighton, Marx escreveu a um camarada em Sampetersburgo a seguinte carta, «Há meses que sofro imenso e durante algum tempo pensei que o meu estado de saúde era crítico por causa do excesso de trabalho. A minha cabeça estava tão gravemente afectada que julguei que iria ter um ataque.. .»^-^ Duas semanas mais tarde, ao tomar uma colher de vinagre de amora na esperança de melhorar, engasgou-se. «O meu rosto enegreceu, etc. Mais um segundo e eu teria morrido.»^* Após o regresso de Tussy a Londres, ele começou a pensar na «séria possibilidade de ter uma apoplexia»". Ao princípio, o médico julgou que ele talvez tivesse sofrido um ataque cardíaco, mas, depois, chegou à conclusão de que se tinha tratado de exaustão nervosa. A 24 de Novembro, e para alívio de Jenny Marx, pai e filha foram para umas termas em Harrogate. Ambos desfrutaram as três semanas de repouso e banhos, mas Marx não poupou o seu torturado cérebro e passou o tempo a 1er Saint-Beuve, autor que nunca apreciara. «Este homem deve ter-se tornado famoso em França porque encarna, sob todos os aspectos, a vanitéítancesã... pavoneando-se em trajes românticos e falando idiomas recentemente cunhados», escreveu

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a Engels. «Não era o livro ideal para o fazer esquecer aquele outro francês por quem a filha estava apaixonada. Mas parecia estar bastante alegre, e isso apesar do facto de ter uma crise de furúnculos ao chegar a Modena Villas e os jornais publicarem uma série de mexericos a propósito da sua saúde. «Não dando sinais de vida, eu mesmo permito que a imprensa inglesa noticie a minha morte de vez em quando», explicou a Kugelmann. «Estou-me nas tintas para o púbMco e, se por vezes a minha doença é exagerada, isso tem a vantagem de me poupar toda o tipo de solicitações (teóricas e outras) por parte de pessoas que não conheço e provenientes dos quatro cantos do mundo.»^^ Ao regressar a Londres, tinha passado um dia em Manchester para ser examinado por um amigo de Engels, o Dr. Eduard Gumpert, que detectou «uma certa dilatação do fígado» e lhe recomendou uma temporada na cidade termal de Carlsbad, na Boémia. Como isso o obrigava a atravessar a Alemanha e arriscar-se a ser preso como elemento subversivo, Marx achou que não era possível. Mas teve então uma ideia: um refugiado que vivia em Inglaterra há mais de um ano tinha direito à nacionalidade britânica e usufruía, por conseguinte, de toda a protecção de Sua Majestade Britânica contra os guardas da fronteira. Após ter submetido o seu requerimento ao Ministério do Interior, juntamente com atestados de quatro vizinhos de Hampstead a testemunhar a sua «idoneidade moral», ele e Eleanor partiram para a Alemanha a 15 de Agosto de 1874, julgando que o certificado de naturalização lhe seria remetido dentro de alguns dias. A 26 de Agosto, contudo, o secretário do Ministério do Interior escreveu-lhe para o informar que o seu pedido fora rejeitado. Não foi dado nenhum motivo, mas uma carta confidencial de 17 de Agosto enviada pela Scotland Yard ao Ministério do Interior e actualmente no Departamento de Arquivos Públicos, revela o seguinte: Cari Marx — Naturalização Com referência ao assunto acima, informo que se trata de um famoso agitador alemão, Hder da Internacional e defensor de princípios comunistas, e que não tem sido leal em relação ao seu próprio rei e país. Os abonadores, Srs. Seton, Matheson, Manning e Adcock são cidadãos britânicos e respeitáveis e os atestados por eles assinados quanto ao interessado estão correctos. W Reimers, sargento R Williamson, superintendente"

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Deu-se o caso de Marx chegar a Carlsbad sem ter de solicitar a assistência da rainha Victoria nem dos seus plenipotenciarios — provavelmente por ir acompanhado de Eleanor, cidadã britânica por nascimento. Mas mostrou-se prudente e registou-se no Hotel Germania sob o nome de «Sr. Charles Marx», para que ninguém descobrisse a sua identidade. Apesar da poiïcia local se aperceber imediatamente de quem ele era, foi obrigada a admitir que Marx não dera motivos de suspeita depois de ter passado um mês a vigiá-lo constantemente — o que não era de surpreender, pois o seu tratamento não lhe dava tempo para fomentar uma revolução entre os pacientes e os médicos. «Ambos seguimos rigorosamente os regulamentos», escreveu a Engels. «Vamos para as nossas fontes respectivas às seis da manhã e bebemos sete copos de água. D e dois em dois copos temos de fazer uma pausa de um quarto de hora, durante a qual andamos de um lado para o outro. Depois do último copo, passeamos durante uma hora e, finalmente, tomamos café. E, à noite, bebemos mais outro copo de água antes de nos deitarmos.»^*^ A tarde, exploravam as falésias de granito arborizadas de Schlossberg e os outros pacientes ficavam escandalizados por ver Eleanor a fumar cigarro atrás de cigarro. Toda aquela água mineral deve ter feito maravilhas ao fígado de Marx, mas também lhe causava uma grande irritação — a qual não melhorou com a chegada de Ludwig e Gertrude Kugelmann que se instalaram no quarto ao lado. Ultimamente, andava cada vez mais irritado com o carácter enfadonho e as indiscrições deste autodenominado discípulo e, agora, não conseguia dormir porque ouvia, através das finas paredes do hotel, Herr Kugelmann a ralhar com a mulher. «Perdi finalmente a paciência quando ele começou a impor-me essas cenas domésticas», escreveu Marx a Engels.
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gem demasiado perigosa, transferiu o seu afecto para a insuperavelmente burguesa ilha de Wight, as termas preferidas da rainha Victoria e de Lorde Tennyson. Onde quer que fosse, os outros visitantes ficavam espantados ao dar-se conta de que o aterrador papão comunista era, na realidade, a alma da festa. No decorrer da sua visita a Carlsbad, em 1875, um jornal vienense descreveu-o com sendo o contador de histórias mais popular da cidade: «Tem sempre a palavra justa, um atraente sorriso e a piada mais engraçada. Se partilhamos a sua sociedade acompanhados por uma senhora de espírito — as mulheres e as crianças são os melhores agentsprovocateurs em. conversas, pois apreciam as generalidades e favorecem os encontros pessoais —, Marx brinda-nos com punhados de ricos tesouros da sua memória. Prefere falar do tempo passado quando o romantismo entoava o seu último canto livre, quando... Heine trazia poemas com a tinta ainda fresca no bolso.»^*^ Signficativamente, o mesmo jornal informava que «Marx tem agora 63 anos» quando, na verdade, contava apenas 57. Três anos mais tarde, um entrevistador do Chicago Tribune sublinhava que «ele devia ter mais de 70 anos». Embora ainda a trabalhar nos dois volumes seguintes de O Capital quando o médico lho permitia, era como se ele tivesse tacitamente aceite a derrota e, satisfeito por limitar-se a cumprir o seu papei e a recordar, se dedicasse, agora, a contar histórias benignas. Os anos de militância apaixonada — panfletos e petições, reuniões e manobras — tinham terminado. Com as duas filhas mais velhas casadas e instaladas algures em Hampstead, a vivenda em Maitland Park Road tinha-se tornado demasiado grande para as necessidades do seu reduzido ménage. Em Março de 1875, os restantes membros da casa — Karl, Jenny, Eleanor, Helene — mudaram-se para o número 44 da mesma rua, uns cem metros mais longe. Era uma casa de quatro andares e um terraço, ligeiramente mais pequena e muito mais barata, onde Marx morou até morrer. A medida que envelhecia, os hábitos de Marx tornaram-se mais moderados e regulares. Já não tinha energia para as tabernas cheias de gente de Tottenham Court Road, épicas partidas de xadrez ou para passar a noite inteira sentado à secretária. Como qualquer outro cavalheiro da classe média, acordava a horas convencionais, üa The Times enquanto tomava o peque-

3 0 8 ^ 0 KARL MARX no-almoço e, depois retirava-se para o seu gabinete onde passava o resto do dia. Ao anoitecer, vestia o seu manto preto e punha o chapéu de feltro na cabeça e passeava pelas ruas de Londres durante mais ou menos uma hora. Estava agora muito míope e, às vezes, ao voltar desses passeios, metia a chave na porta da casa de um vizinho. O s domingos eram dedicados à famíMa: roast-heef ao almoço (maravilhosamente cozinhado por Helene) seguido por uma longa caminhada até Heath juntamente com Lauta., Jennjcòen e os filhos desta. August Bebei, u m dos fundadores da democracia social alemã, foi «agradavelmente surpreendido ao reparar nos m o d o s afectuosos e ternos com que Marx, descrito nessa época como o pior dos misantropos, brincava com os netos e no amor que estes lhe manifestavam»^^ Aos 18 meses, o pequenino Edgar Longuet fora apanhado a mordiscar um rim cru julgando que era chocolate — e mesmo depois de o prevenirem do engano, continuou a mastigá-lo. Marx alcunhou-o logo de Wo/f, alcunha que foi mais tarde mudada para Mr. Tea por causa da sua sede insaciável. As visitas eram desencorajadas a aparecer durante o dia, excepto ao domingo, mas como o médico (e a mulher) não o deixavam trabalhar de noite, ele adorava desempenhar o papel de anfitrião cordial ao jantar, servindo vinho e contando histórias aos peregrinos estrangeiros que vinham conhecer o grande homem. «Era muito afável», recordou o revolucionário russo, Nikolai Morozov. «Ao contrário do que me garantiram muitas vezes, não achei que tivesse ar distante nem enfadado.»^'^ Todos os que visitaram Maitland Park Road, descobriram a mesma coisa espantosa: havia um gatinho brincalhão e a ronronar por debaixo daquela juba leonina. «Não era nada como a imagem que eu tinha feito dele e falava com o tom de voz calmo e impassível de um patriarca», declarou o jornalista alemão Eduard Bernstein. «Das descrições que tenho ouvido contar principalmente, devo confessar, pelos seus inimigos, esperava encontrar u m velho enfadonho e irasdvel, mas deparei com um cavalheiro de cabelo branco, cujos olhos pretos e risonhos eram amigáveis e as palavras doces. Quando uns dias mais tarde exprimi a minha surpresa a Engels, este disse-me: «Bem, mas olha que o Marx ainda pode levantar um vendaval.»^^ Outro socialista alemão, Karl Kautsky, chegou a Maitiand Park Road, quase catatónico de ansiedade, pois tinha ouvido contar uma data de histórias sobre essas tempestades. Tinha medo de fazer figura de parvo — como

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o jovem Heinrich Heine que, ao conhecer Goethe, ficou tão intimidado que só conseguiu falar das deliciosas ameixas que se encontravam ao longo da estrada entre Jena e Weimar. Mas Marx não era de modo algum tão distante, ou antipático, como o velho Goethe, e recebeu Kautsky com um sorriso amigável, perguntando-lhe se era parecido com a mãe, a popular escritora, Minna Kautsky. Nem por isso, respondeu Kautsky jovialmente sem se aperceber que Marx, o qual antipatizara de imediato com os seus ruidosos modos juvenis, felicitava mudamente a Sra. Kautsky pela sorte que tinha tido. «Independentemente do que Marx possa ter pensado de mim», escreveu Kautsky muitos anos mais tarde. «A verdade é que nunca me manifestou o mais pequeno sinal de má vontade.»^''^ Como Marx, em privado, considerava Karl Kautsky um «medíocre imbecil», tal tolerância prova que o seu carácter se tornara mais ameno. Já não se arreliava com as difamações nem com as faltas de precisão dos seus adversários. «Se tivesse de contestar tudo o que tem sido dito e escrito sobre mim», confessou a um entrevistador americano em 1879. «Precisaria de uma data de secretários.»^^ Uma biografia «tendenciosa» publicada por um editor de Haarlem foi desdenhosamente ignorada. «Não respondo a picadas», explicou ao ser convidado para comentar o Uvro por um jornal holandês. «Na minha juventude, reagia por vezes com violência, mas uma pessoa torna-se mais sensata com a idade e não desperdiça energia inutilmente.»^'' A idade também lhe conferia eminência; até mesmo os ingleses, que o tinham ignorado durante 30 anos (quando não o denegriam como assassino), começavam agora a manifestar certa curiosidade e respeito pela sua pessoa. Em 1879, a princesa coroada, Victoria, filha da rainha inglesa e mulher do futuro imperador alemão, Frederico Guilherme, pediu a um velho político liberal que lhe contasse o que sabia sobre esse tal Marx. O membro do Parlamento, Sir Mountstuart Elphinstone Grant Duff, teve de admitir que nada sabia, mas prometeu que iria convidar o «Doutor Terrorista Vermelho» para almoçar e que, depois, a viria informar. A julgar pelas posteriores cartas de Sir Mountstuart à princesa, Marx portara-se lindamente durante o almoço de três horas que tivera lugar no Devonshire Club, em St. James. «É baixo e tem barba e cabelo grisalhos que contrastam de forma estranha com o bigode ainda preto. O rosto é um pouco arredondado, a testa ampla e bem desenhada — o olhar duro, mas toda a sua expressão

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é agradável e de m o d o algum a de um homem que, ao contrário do que a polícia pensa dele, tem por hábito comer crianças de berço ao pequeno-almoço. A sua conversa é a de uma pessoa culta e bem informada — interessa-se imenso por gramática comparada, o que levou a estudar eslavo antigo e outros tópicos pouco comuns — variada e com apartes de humor cáustico...»^^ Depois de esgotar as possibilidades da gramática eslava, Marx começou a falar de poKtica. Previa a irrupção de «acontecimentos graves e próximos» na Rússia, reformas e o fim do czarismo e, depois, uma revolta contra «o sistema miutar em vigoD rel="nofollow"> na Alemanha. Quando Grant Duff sugeriu que os governantes da Europa poderiam antecipar-se à revolução reduzindo a sua despesa em armamento e aliviando, desse modo, o fardo económico sobre o povo, Marx assegurou-lhe que isso era impossível devido a «toda a espécie de receios e invejas». «À medida que a ciência for progredindo, esse fardo tornar-se-á cada vez pior», declarou. «Pois os melhoramentos na arte da destruição acompanharão o progresso e, todos os anos, mais dinheiro será investido em dispendiosos engenhos de guerra.» Está bem, concordou Grant Duff, mas, se houver de facto uma revolução, esta não concretizará necessariamente todos os sonhos e planos dos comunistas. «Certamente», respondeu Marx. «Mas todos os grandes movimentos são lentos. Será certamente um passo em frente em direcção a uma vida melhor como aconteceu com a vossa revolução de 1688.» Touché! Apesar de ignorar que os seus comentários seriam anotados, Marx foi suficientemente prudente e sensato para evitar as pequenas armadilhas do astucioso político inglês. Conforme Sir Mountstuart informou mais tarde a princesa: «No decorrer da conversa, Karl Marx mencionou várias vezes Sua Alteza Imperial e a princesa coroada sempre com o devido respeito. E mesm o quando falou de indivíduos eminentes de forma menos respeitosa nunca manifestou azedume nem má-fé — muitas críticas azedas e corrosivas, mas nada que se compare ao tom que Marx emprega normalmente. Falou como qualquer pessoas respeitável faria de todas as horríveis coisas atribuídas à Internacional...

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E m resumo, e tendo em conta que as suas opiniões são o oposto das minhas, devo admitir que a minha impressão não foi totalmente desfavorável e teria muito prazer em voltar a encontrar-me com ele. N ã o será Karl Marx, quer ele queira ou não, que virará o mundo ao avesso...» E m momentos mais deprimentes, Marx receava por vezes a mesma coisa. «Tinha deparado com a exacta descrição da sua ansiedade no romance de Balzac, A Obra-Prima Desconhecida, história de um artista brilhante tão obcecado pela perfeição que passou muitos anos a pintar e retocar o retrato de uma cortesã, a fim de conseguir «a representação mais completa da realidade» ^^. Mas, quando mostra a obra-prima a u m amigo, todo o que vêem é uma massa disforme de cor e linhas desenhados ao acaso. «Nada! Nada! Após dez anos de trabalho...» Acaba por lançar o quadro às chamas — «o fogo de Prometeu» — e morre nessa mesma noite. N o entanto, a obra-prima desconhecida de Karl Marx tinha, pelo menos, um leitor famoso que a apreciava — ou assim julgava. E m Outubro de 1873, uns meses depois da publicação da segunda edição alemã de O Capital, tinha recebido a seguinte carta: Downe, Beckenham, Kent Caro Senhor: Agradeço-lhe a honra que me fez ao enviar-me a sua grande obra, O Capital, e desejaria de todo o coração ser mais digno de a receber para melhor compreender os importantes e profundos temas da economia política. Embora os nossos respectivos interesses sejam bastante diferentes, acredito que ambos desejamos honestamente propagar o conhecimento. A longo prazo, esta obra não deixará certamente de tornar a humanidade mais feliz. Fielmente seu. Charles Darwin^^ Marx e Darwin foram os dois mais influentes e revolucionários pensadores do século XX; e, como viviam apenas a uns 30 quilómetros de distância um do outro, durante a maior parte da sua idade adulta e tinham vários amigos comuns, a tentação de procurar um elo de ligação entre eles é difícil de resistir. Engels fez essa conexão no cemitério de Highgate quando o caixão de Marx estava a ser baixado para a cova. «Assim como Darwin deseó-

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briu a lei da evolução da natureza humana», declarou. «Também Marx descobriu a lei da evolução da história humana.» O pequeno grupo de pessoas presentes incluía um amigo íntimo de Darwin e Marx, o professor Edwin Ray Lankester, o qual, aparentemente, não fez qualquer objecção contra esta associação entre o evolucionista e o revolucionário. E o próprio Marx, o único que podia ter protestado, não estava em situação de o poder fazer. A sua reacção à obra de Darwin, A Origem das Espéães, publicada em 1867, parece justificar a opinião póstuma de Engels. «Apesar de ser redigido em estilo rudimentar», escreveu em Dezembro de 1860, «este Hvro contém os fundamentos da história natural.»^'' Um mês mais tarde, Marx disse a Lassalle que «o livro de Darwin é extremamente importante e constitui a minha base, em história natural, para a luta de classes em história»^^ Mas o seu entusiasmo inicial modificou-se e diluiu ao longo dos anos seguintes: embora a «luta pela sobrevivência» de Darwin possa ser aplicada à fauna e à flora, como explicação da sociedade humana conduzia à fantasia malthusiana que o excesso de população era a força motriz da economia poKtica. O ódio de Marx por Malthus obrigou-o a refugiar-se numa teoria ainda mais aberrante, proposta pelo naturalista francês Pierre Trémaux, em 1865. No seu livro Origem e Transformação do Homem e Outros Seres, Trémaux pos lava que a evolução era governada por transformações geológicas e químicas do solo. Esta ideia atraiu pouca atenção na época e, agora, está totalmente esquecida, mas Marx não pensou em outra coisa durante algumas semanas. «Representa um progresso muito significativo em relação a Darwin», escreveu. «Pois determinadas questões, como a nacionalidade, etc., só aqui foi encontrada uma base na natureza.»^^ Assim como o segredo de como «o tipo comum de negro é uma degeneração de um tipo muito mais elevado» podia ser encontrado nas savanas poeirentas de Africa, a «formações à superfície» da paisagem russa transformara os eslavos em tártaros e mongóis. Engels, que habitualmente exprimia as suas críticas a Marx o mais delicada e respeitosamente possível, não se deu ao trabalho de ocultar a opinião de que o seu amigo tinha perdido a cabeça. Pouco tempo depois, Trémaux foi discretamente retirado do panteão marxista e Darwin reabilitado. A edição de O Capital, que ele enviou em 1872 com a inscrição ao «Sr. Charles Darwin da parte do seu sincero admirador, Karl Marx», incluía uma nota de rodapé referindo-se à influência de :A Origem das Espécies. Se não fosse por causa de outra carta, a qual foi encontrada há 70 anos e que, desde então, tem iludido inúmeros historiadores marxistas, o episó-

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dio da associação entre Marx e Darwin poderia ter terminado nessa altura. A data dessa carta é de 13 de Outubro de 1880: Downe, Beckenham, Kent Caro Senhor: Agradeço-lhe imenso a sua amável carta assim como a encomenda junta. A publicação, sob qualquer forma, das suas observações sobre os meus escritos não necessitam de qualquer consentimento da minha parte. Seria ridículo da minha parte. Preferia que o capítulo, ou volume, não me fosse dedicado (embora lhe agradeça a honra que me faz), pois isso implicaria, até certo ponto, a minha aprovação da publicação em geral quanto à qual nada sei — além do mais, e embora seja um vigoroso defensor do livre pensamento em todos os assuntos, parece-me (quer correctamente ou não) que directos argumentos contra o cristianismo e a crença numa criação divina não produzem qualquer efeito sobre o púbHco; a liberdade de pensamento é melhor promovida pela gradual iluminação da mente humana, a qual segue o progresso da ciência. Por conseguinte, evitei sempre escrever sobre a religião e tenho-me limitado à ciência. Posso, contudo, ter sido indevidamente influenciado pelo pesar que daria a alguns membros da minha família se apoiasse de forma directa quaisquer ataques contra a religião — Lamento recusar o seu pedido, mas estou velho, restam-me poucas forças para 1er provas tipográficas (como me dei conta pela presente experiência) fatiga-me muito. Queira aceitar, caro Senhor, os meus melhores cumprimentos. Seu, Ch. Darwin^^ Esta carta foi publicada pela primeira vez em 1931 num jornal soviético. Sob a Bandeira do Marxismo, o qual formulou a hipótese de a «encomenda» ter sido dois capítulos da edição inglesa de O Capitúlele tinham a ver com a teoria da evolução. É evidente que isso é absurdo, pois o livro só foi traduzido para o inglês em 1886, três anos depois da morte de Marx. E, a seguir, Isaiah Berlin aumentou ainda mais a confusão, afirmando no seu influente ensaio sobre Marx, publicado em 1939, que fora a edição original alemã que Marx tinha querido dedicar a Darwin, «por quem tinha uma maior admiração intelectual do que por qualquer outro dos seus contemporâneos». Segundo Berlin, «Darwin declinou a honra numa carta deUcada e prudente, dizendo que, infelizmente, nada sabia de economia, mas desejando

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ao autor boa sorte para alcançar o que ele assumia ser o objectivo comum de ambos — o progresso do conhecimento humano»^'*. Berlin conseguiu, assim, fundir as duas cartas numa, negligenciando completamente o facto de O Capital— com a sua dedicatória a Wühelm Wolff — ter aparecido em 1867, 13 anos antes de Marx ter, supostamente, oferecido tal «honra» a Darwin, Desde a Segunda Guerra Mundial que todos aqueles que escreveram sobre Marx (e mmtos sobre Darwin) têm aceitado a lenda da dedicatória recusada, diferindo apenas entre eles na questão de saber de que edição se trata. «Marx desejava certamente dedicar a segunda edição de O Capitais, Darwin», escreveu David McLellan na sua biografia de 1973 — afirmação que ainda podemos ver na mais recente edição em livro de bolso (1995). Isto não é mais plausível do que a teoria de Isaiah Berlin: somente depois da morte de Marx é que o volume II foi composto por Engels a partir de vários manuscritos e notas. Darwin não pode ter sido solicitado para «1er provas tipográficas» em 1880, pois tais páginas não existiam. Além disso, a introdução de Engels ao segundo volume confirma que «o segundo e o terceiro livro de O Capital eram para ser dedicados, como o Mouro declarara repetidas ve:(es, à mulher.» Tudo sobre a segunda «carta a Marx» soa a falso. Por que é que Darwin se apoquentaria com «ataques contra a religião», quando o livro que lhe tinham mandado era sobre economia política? No entanto, nenhum sobrolho se ergueu de perplexidade até 1967, ano em que o professor Shlomo Avineri argumentou na revista Encounter o^ç. as apreensões de Marx quanto à aplicação política do darwinismo tornou «impensável» a possibilidade do grande comunista pedir a aprovação do grande evolucionista. Como explicar, então, a carta de 1880? «A dedicatória de O Capital-x Darwin foi, claro está, feita por ironia...», propôs ele de forma pouco convincente.. ?^ O cepticismo de Avineri — se não a conclusão a que chegou — comunicou algo a Margaret Fay, jovem Hcenciada da universidade da Califórnia, quando esta leu o artigo da Encounter sett anos mais tarde.
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mou a atenção, porém, foi a data de pubHcação, 1881, e o nome do autor — Edward B. Aveling, o futuro amante de Eleanor Marx. E se a segunda carta de Darwing não tivesse sido dirigida a Marx, mas sim a Aveling? Num momento de inspiração, Margaret Fay tinha resolvido o enigma que escapara a Isaiah Berlin e a outros numerosos ao longo de meio séculos. Darwin para Estudantes era o segundo volume de uma série chamada «A Biblioteca Internacional de Ciência e Livre Pensamento» e editada por ateus convictos, Annie Besant e Charles Bradiaugh. Daí a referência de Darwin a «capítulo ou volume» de uma publicação mais geral «sobre o qual nada sei» e a sua relutância em ser associado com «argumentos contra o cristianismo e a crença numa criação divina». A intuição de Fay foi confirmada pela descoberta, no meio dos papéis de Darwin na biblioteca da Universidade de Cambridge, de uma carta de Edward Aveling, com a data de 12 de Outubro de 1880, apensa a uns capítulos de Darwin para Estudantes. Depois de solicitar «o ilustre apoio do seu consentimento», Aveling acrescentava que «proponho, sujeito mais uma vez à sua aprovação, honrar o meu nome dedicando-lhe a minha obra.» A única pergunta que restava — como a carta de Aveling fora parar aos arquivos de Marx — era fácil de responder. Em 1895, Eleanor Marx e Edward Aveling começaram a seleccionar as cartas e manuscritos do pai que tinham ficado em sua posse depois da morte de Engels. Dois anos mais tarde, Aveling escreveu um artigo comparando os seus dois heróis e no qual citava a carta de 1873, mencionando de passagem que também ele se correspondera com Darwin. Depois de terminar o seu trabalho, guardou todo o material de investigação num envelope sem se aperceber que estava a dar uma pista falsa — a qual seria seguida por montes e vales durante a maior parte do século seguinte. Recentemente, em Outubro de 1998, o historiador britânico. Paul Johnson, escreveu que «ao contrário de Marx, Darwin era um autêntico cientista que, numa ocasião famosa, tinha delicada mas firmemente recusado o convite de Marx para fazerem um negócio das Arábias».^'' De facto, o único contacto que se conhece entre estes dois sábios vitorianos é a carta indiscutivelmente genuína de agradecimento que Marx mostrava com orgulho a amigos e parentes como prova de que Darwin tinha considerado O Capitalwraà, «obra notável». Mas o Hvro em questão, o que ainda hoje se encontra numa estante em Downe House, em Kent, conta uma história infelizmente diferente. Não tem nenhuma das notas a lápis com que Darwin embelezava habitualmente tudo o que lia, e apenas as 105 primeiras páginas

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do volume de 822 páginas foram abertas. É-se forçado a concluir que ele só lançou uma vista de olhos ao primeiro ou segundo capítulo antes de enviar os seus agradecimentos — e nunca mais voltou a pôr-lhe a vista em cima. «Um inglês ti'pico», teria Marx provavelmente resmungado se soubesse a verdade. Ao 1er pela primeira vez A Origem das E.ípécies, tinha prevenido Engels que «uma pessoa tem, claro está, de tolerar o desajeitado estilo inglês de argumentação». E a reacção incompreensível muda a O Capitai conv&aceu-o de que «o particular dom de cretinice fleumática» era um direito adquirido por todos os ingleses à nascença. Graças a outra farsa do destino, o mestre da dialéctica tinha sido exilado para o país mais filisteu do planeta — uma terra governada por instinto e empirismo grosseiro, onde a palavra «intelectual» era um insulto mortal. «Apesar de Marx viver há muito tempo em Inglaterra», o advogado Sir John MacdonneU escreveu no número de Março de 1875 da ¥ortnightlj Remm «Ele é aqui quase a sombra de um nome. As pessoas podem fazer-lhe a honra de abusar dele, mas não o lêem.»-'^ O facto de não ter sido pubHcada nenhuma edição inglesa de O Capita/ durante a sua vida, parecia a Marx um sintoma, e não uma causa, da miopia nacional. («Agradecemos-lhe muito a sua carta», escreveu Macmillan & Co. a um amigo de Engels, Carl Schorlemmer, professor de química orgânica da Universidade de Manchester. «Mas não acolhemos favoravelmente a proposta de uma tradução de Das Kapital») A barreira linguística era um obstáculo intransponível para os raros ingleses que desejavam realmente 1er o livro. Um antigo camarada da Internacional, Peter Fox, disse que, ao oferecerem-lhe um exemplar, se sentiu como um homem a quem tinham dado um elefante e não sabia o que fazer com ele. Por entre os papéis de Marx há várias cartas desesperadas de um trabalhador escocês, Robert Banner, a pedir ajuda: «Não há esperança que venha a ser traduzido? Não há nenhuma obra em inglês que defenda a classe trabalhadora, todos os livros em que nós, jovens socialistas, pomos as mãos em cima são escritos no interesse do capital e é por isso que a nossa causa não avança neste país. Com uma obra sobre economia cujo ponto de vista fosse socialista, dentro de pouco tempo veríamos aqui um movimento que acabaria com esta coisa, filha da mãe.»^'' Aqueles que melhor apreciariam o livro eram os menos capazes de o compreender, enquanto a elite educada que o podia 1er não se mostrava in-

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teressada nisso. O socialista inglês. Henry Hyndman, queixava-se: «Acostumados como estamos hoje em dia, sobretudo em Inglaterra, a esgrimir com protecções na ponta das nossas espadas, as terríveis estocadas de Marx sobre os adversários, com a lâmina nua, pareciam tão impróprias que era impossível para os nossos distintos e falsos combatentes e ginastas mentais acreditar que este controverso e impiedoso esgrimista que atacava furiosamente o capital e os capitalistas era realmente o pensador mais profundo dos tempos modernos.»'"^ O próprio Hyndman era uma excepção a esta regra — e a todas as outras. Produto de E t o n e do Trinity College, em Cambridge, e antigo jogador do Sussex Country Cricket Club, dizia-se que ele tinha-se tornado socialista «por rancor, pois não fora incluído no clube de críquete de Cambridge»'*^ (Há muito dele no personagem de P. G. Wodehouse, Psmith, o qual se converteu ao marxismo por ter sido expulso de E t o n e não poder, por conseguinte, ter a honra de jogar críquete contra Harrow, em Lord's; a partir dessa altura, passou a tratar toda a gente por «camarada».) Hyndman nunca chegou a desembaraçar-se dos floreados da sua classe social e comparecia frequentemente nas reuniões socialistas de chapéu alto. A sua política era igualmente de haut en has: q proletariado não podia ser Libertado pelos próprios trabalhadores, mas somente por «aqueles com um estatuto social diferente, que são treinados desde tenra idade para usar as suas faculdades.» N o entanto, convenceu-se (embora não tenha convencido mais ninguém) de que era o radical mais vermelho e honesto que havia. «Não poderia continuar», disse. «Se não esperasse que a revolução rebentaria às dez da manhã da próxima segunda-feira.» N o começo de 1880, e depois de ter lido uma tradução francesa de O Capital, bombardeou Marx com tantas e extravagantes homenagens que este acabou por aceitar recebê-lo. «O nosso método de conversa foi muito particulaD rel="nofollow">, escreveu Hyndman a propósito do primeiro encontro em Maitland Park Road, 4 1 . «Quando profundamente interessado numa discussão, Marx tem o hábito de andar de um lado para o outro, como se estivesse a passear n o convés de um galeão. T a m b é m tenho o mesmo hábito, adquirido no curso das minhas longas viagens, quando a minha mente está muito ocupada. Consequentemente, o mestre e o discípulo podiam ser visto a andar em sentido contrário de um lado para o outro durante duas ou três horas, discutindo assuntos passados e actuais.»**^ Embora Hyndman alegasse que estava «ansioso por aprendcD), Marx dizia que quem falava mais era o antigo estudante de Eton.

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Tendo ganho acesso a casa de Marx e sabendo que o médico o proibia de trabalhar à noite, Hyndman adquiriu o hábito de passar em Maitland Park Road depois do jantar sem ser convidado. Toda a família de Marx achava isto muito maçador — em particular nas noites em que o grupo de amigos de Eleanor, o Dogberry Club, se reunia na sala de visitas para representar uma peça de Shakespeare. Marx adorava essas representações e insistia sempre em jogar às adivinhas depois («rindo até as lágrimas lhe escorrerem pelas faces abaixo quando achava graça a qualquer coisa», segundo disse u m dos membros do Dogberry Club)'^^; mas Hyndman entrava pela casa adentro e desatava a dar opiniões sobre o Sr. Gladstone. C o m o Marx escreveu a Jennychen depois de uma dessas ocasiões: «Fomos invadidos por Hyndman e a mulher, cujo poder para se incrustar como lapas é notável. Eu até gosto dela por causa da sua maneira brusca e inconvencional de pensar e falar, mas é divertido ver como ela sorve admirativamente as palavras do marido, que é uma autêntica picareta falante! A mamã estava tão estafada (eram quase dez e meia da noite) que acabou por se retirar.»"^"^ A inevitável ruptura ocorreu em Junho de 1881 quando Hyndman publicou o seu manifesto socialista, A Inglaterra para Todos. Marx ficou espantado ao descobrir que dois dos capítulos plagiavam à grande O Capital Uma referência no prefácio admitia que «muito do material contido nos capítulos 11 e III deve-se ã obra de um grande pensador e escritor original que, segundo confio, em breve poderá ser lida pela maioria dos meus compatriotas». Marx achou tudo aquilo bastante inadequado. Por que é que Hyndman não citava O Capitalç: o seu autor pelo nome? A reles explicação de Hyndman foi que os ingleses tinham «horror do socialismo» e «não gostavam de receber lições de um estrangeiro». N o entanto, como Marx indicou, era pouco provável que o livro apaziguasse esse horror evocando «o demónio do socialismo» na página 86, e o leitor inglês mais obtoso podia dar-se conta logo no prefácio que o anónimo pensador era estrangeiro. Tratava-se pura e simplesmente de uma apropriação desavergonhada — à mistura com a inserção de erros imbecis nos raros parágrafos que não tinham sido tirados directamente de O Capital Hyndman foi banido de Maitiand Park Road. Nas suas memórias, escritas 30 anos depois, ele balbucia umas coisas sobre o entusiasmo de Marx por novas ideias, acrescentando, «se bem tivesse razões para se queixar,

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não se preocupava muito que o plagiassem». Como tanta gente da sua classe social, Hyndman tinha a sensibilidade de um rinoceronte anestesiado. Felizmente, assim que Marx se zangava com u m discípulo inglês, surgia logo outro — muito embora, desta vez, ele tivesse tomado a precaução de nunca o conhecer pessoalmente, pois receava ver-se a braços com outra complacente picareta falante. Ernest Beifort Bax, nascido em 1854, provinha de uma família da classe média de fabricantes de impermeáveis e cristãos devotos, mas a Comuna de Paris tinha-o radicalizado quando ainda andava na escola. E m 1879, a revista mensal de cultura, Modern Thought, iniciou a publicação de uma longa série de artigos sobre os líderes intelectuais da época, incluindo pareceres de Schopenhauer, Wagner e, em 1881, Marx. Tendo estudado filosofia hegeliana na Alemanha, Bax era o único socialista inglês da sua geração a aceitar que a dialéctica era a força motriz interior da vida. Descreu O Capital como um livro «que formula o funcionamento de uma doutrina em economia comparável, na sua natureza revolucionária e importância global, ao sistema astronómico de Copérnio ou à lei da gravidade»."*^ Marx ficou todo contente: tinha, finalmente, encontrado um «bife» que o compreendia. «É a primeira publicação do género imbuída de um verdadeiro entusiasmo por ideias novas que ousa enfrentar a burguesia britânica», escreveu a Friedrich Adolph Sorge, veterano de '48 que vivia nos EUA'^''. Mas o melhor foi que 2L Modern Thought •àn^on cartazes anunciando o artigo nas paredes do bairro de West End, em Londres. Quando Marx leu os comentários de Bax à mulher doente, esta melhorou imediatamente. O plágio e a falta de educação foram sem dúvida os principais motivos que levara à expulsão de Hyndman do pequeno círculo à volta de Marx, mas ele talvez tivesse razão em suspeitar que a doença de Jenny tinha perturbado Marx e «dispusera-o a só ver o lado mau das coisas». N o Verão de 1880, Karl estava tão inquieto por causa de Jenny que a levou a Manchester para ser consultado pelo seu amigo, o Dr. Eduard Gumpert. Este diagnosticou que ela sofria de uma grave doença de fígado e receitou-lhe uma temporada de dolcefar niente, de preferência à beira-mar, e, assim, toda a tribo partiu para passar férias em Ramsgate — Engels, Karl e Jenny, Laura e Paul Lafargue, Jenny e Charles Longuet, mais as crianças, Jean, Henri e Edgar. «A estada está a ser particularmente benéfica a Marx que, espero, ganhará novas forças», escreveu Engels a um camarada comunista em Genebra.
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E m outras palavras, não estava nada bem-disposta. Pouco satisfeito com o diagnóstico do Dr. Gumpert, Marx encorajou-a a consultar um especialista em Carlsbad, o Dr. Ferdinand Fleckles — o qual, como não conhecia Jenny, pediu um relato pormenorizado sobre o seu estado físico. «O que talvez tenha agravado a minha saúde», disse-lhe ela depois de ter feito uma lista dos sintomas. «É a grande ansiedade que nós, os velhos, sentimos.» Agora que o Governo francês tinha amnistiado os refugiados políticos, não havia nada que impedisse o seu genro, Paul Lafargue, de regressar a Paris e de ela ficar sem a filha e os netos. «Caro e bom doutor, gostaria tanto de viver um pouco mais. Como é estranho que à medida que tudo se aproxima do fim, mais uma pessoa se agarra a este "vale de lágrimas".»"*^ Apesar de Marx nunca ter lido esta carta, compreendia os terrores mortais da mulher: depois de passar um mês de ociosidade em Ramsgate, informou que a doença de Jenny «se tinha repentinamente agravado a um ponto que ameaça ser fatal». O próprio Marx sentiu-se ligeiramente mais restabelecido pelo tratamento e o repouso, mas voltou a piorar dentro de pouco tempo por causa do Inverno frio e húmido que «me abençoou com uma constipação constante e tosse que não me deixa dormir, etc.», conforme escreveu a u m correspondente em Sampetersburgo, expHcando-lhe que mal conseguia responder às cartas que recebia quanto mais terminar os volumes de O Capitúlele faltavam. «O pior é que, apesar de recorrer aos melhores médicos de Londres, o estado de saúde da Sra. Marx se torna diariamente mais grave e de eu ter, além do mais, inúmeros problemas domésticos.»'^' U m desses problemas tinha sido a partida repentina de Jennichen e os filhos para Paris, onde Charles Longuet fora nomeado director do diário radical de Georges Clemenceau, Injustice. «Tendo em conta o estado actual da Sra. Marx, esta separação é muito dolorosa. Os nossos netos, três rapazinhos, eram, tanto para ela como para mim, uma fonte inesgotável de deleite e vida.» Às vezes, ao ouvir vozes de crianças na rua, ele precipitava-se para a janela esquecendo-se momentaneamente que as adoradas crianças viviam, agora, do outro lado do canal da Mancha. E, um dia, ao atravessar o parque de Maitiand, sentiu terríveis saudades quando o guarda lhe veio perguntar pelo pequeno «Johnny», aliás, Jean Longuet. Ainda pior foi não ter assistido ao nascimento, em Abril de 1881, de um novo neto, Marcel, na nova morada dos Longuet em Argenteuil. Talvez seja essa a causa do tom rabugento com que enviou os parabéns à filha e ao genro. «Fui, claro está, encarregado pela mamã e pela Tussy... de vos desejar todas as felicidades, mas não vejo que esses "desejos" sirvam para o

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que quer que seja, excepto atenuar a nossa própria impotência.» N o entanto, a criança era, pelo menos, um rapaz. E m b o r a Jenny Marx desejasse uma neta, «por mim, prefiro que as crianças nascidas neste m o m e n t o da história sejam do sexo masculino. T ê m diante delas a época mais revolucionária jamais vivida pelo homem. Ser "velho" e poder apenas prever e não ver é que é mau».^*^ Tanto ele como a mulher sentiam ter a idade de Matusalém. Karl tomava banhos turcos para tratar a perna tolhida pelo reumático e Jenny estava cada vez mais magra e passava dias seguidos na cama. Iam passear de vez em quando ou, então, ao teatro, mas Marx sabia que não havia cura. Jenny tinha u m cancro. «Aqui entre nós, a doença da minha mulher é, infelizmente, incurável», escreveu em Junho de 1881 ao seu velho amigo, Sorge. «Vou levá-la a passar uma temporada à beira-mar, em Eastbourne, dentro de alguns dias.»^^ Enquanto lá estiveram, ela foi obrigada a andar numa cadeira de rodas — «coisa que eu, um "p&àtsttepar excellence, teria considerado abaixo da minha dignidade há uns meses». Depois de passar duas semanas na costa sul, Jeny}'^ ganhou suficientes forças para atravessar o canal com Karl, a fim de visitar o novo neto. Mas, ao chegar a Argenteuil, teve uma crise de diarreia. A anfitriã também não estava lá muito bem. «A casa da Jennychen tem muitas correntes de ar e a asma dela piorou», escreveu Marx a Engels. «Mas, como sempre, mostra-se heróica.»^^ Foi então que chegou a notícia de Inglaterra de que Tussy fora atacada por uma doença terrível, mas não especificada, e regressou apressadamente a Londres sozinho para se dar conta do que tinha acontecido. Encontrou a filha num estado de «abatimento nervoso total» que, actualmente, seria diagnosticado de anorexia. «Há semanas que não come quase nada», escreveu a Engels. «Donkin [o médico] diz que não há nenhum problema orgânico. O coração e os pulmões estão bons, e a causa do seu estado deve-se fundamentalmente ao facto de o estômago não funcionar por se ter desabituado à comida (complicação que ela tornou pior porque bebe muito chá, coisa que ele imediatamente lhe proibiu de tomar) e a uma grave perturbação do sistema nervoso.»^^ Jenny Marx voltou a Londres umas semanas mais tarde, acompanhada pela infatigável Helene D e m u t h , e caiu logo de cama. E m princípios de Outubro, Marx convenceu-se de que a vida dela «estava a aproximar-se do fim»^'^. Ele mesmo estava de cama com bronquite, mas reanimou ao saber que o Partido Social Democrata alemão tinha ganho 12 lugares Reichstag.

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«Se houve um acontecimento exterior que contribuiu para pôr Marx mais ou menos bom de novo, foram estas eleições», escreveu Engels a Eduard Bernstein no fim de Novembro. «Nunca o proletariado se portou de m o d o tão magnífico... N a Alemanha, após três anos de perseguições sem precedentes e pressões constantes durante os quais qualquer forma de organização pública e até m e s m o de comunicação era impossível, os nossos rapazes voltaram à carga, não só com toda a sua antiga força mas realmente mais fortes do que dantes.»^^ Jenny Marx morreu a 2 de Dezembro de 1881. Durante as últimas três semanas, ela e o marido nem sequer conseguiram ver-se; a pleurisia tinha compHcado a bronquite de Marx e ele fora confinado num quarto ao lado sem poder mexer-se. As últimas palavras dela foram para o chamar e gritar-Ihe em inglês: «Karl, estou a perder as forças...» O médico proibiu-o de assistir ao funeral, o qual teve lugar três dias mais tarde a u m canto de terra não consagrada do cemitério de Highgate. Entretanto, a consolação de Karl Marx foi a lembrança do raspanete que Jenny dera a uma enfermeira um dia antes de morrer, a propósito de uma formalidade negligenciada: «Nós não somos gente externa dessa! 56 A outra distracção do pesar que ele sentia era o seu próprio estado de saúde. Tinha de esfregar o peito e o pescoço com tintura de iodo várias vezes ao dia. «Só existe um único antídoto eficaz para o sofrimento mental: a dor física», escreveu. «O fim do mundo não é comparável a uma dor de dentes.» Engels afirmou que Marx tinha, a partir daquele momento, morrido — observação cruel que continha, contudo, uma terrível verdade. Durante os últimos dias de vida de Jenny, exausto por insónias e falta de exercício, ele contraiu a doença que acabaria por matá-lo. Embora o editor alemão tenha escolhido esta inoportona altura para lhe pedir uma nova edição de O Capital, Marx não podia pensar em trabalhar. A conselho do médico e acompanhado por Eleanor, passou duas semanas no «cHma mais quente e ar seco» da üha de Wight — debaixo de tempestade e chuva, além de temperaturas abaixo de zero. Graças aos caprichos do tempo, o catarro brônquico piorou e um médico local teve de lhe dar uma máscara de oxigénio para ele poder passear em Ventnor. O comportamento de Eleanor, que continuava sem comer nem dormir como devia ser, oscilava entre um silêncio mal-humorado e crises de «natureza alarmantemente histéricas». As suas ambições de uma carreira teatral tinham-se agora tornado numa necessidade quase física, e até esta fome ser

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saciada não conseguia alimentar os seus outros apetites. O dia em que regressaram de Ventnor, 16 de Janeiro de 1882, coincidiu com o aniversário de Eleanor (27 anos), dolorosa lembrança que os seus melhores anos estavam a ser sacrificados no altar do dever famüiar. Marx sabia que tinha de a libertar. «Quanto a planos para o ñituro», escreveu a Engels a 12 de Janeiro,
3 2 4 ^ » KARL MARX FILÓSOFO: Quer dizer, então, que desperdiçaste metade da tua vida! Estudaste matemática? BARQUEIRO: Não! FILÓSOFO: Então desperdiçaste mais de metade da tua vida. Mal o filósofo tinha acabado de dizer estas palavras, uma onda virou o barco e eles foram parar dentro de água. O barqueiro grita então ao filósofo, «Sabes nadar?» FILÓSOFO: Não! BARQUEIRO: Então desperdiçaste toda a vida.»^^ A aparência exterior de Marx ainda era imponente: u m inglês que o conheceu por volta dessa altura lembrava-se dele como «um h o m e m grande em todos os sentidos»: uma grande cabeça e uma cabeleira como «São Pedro costumava usar a dele»^^. Ou, então, como Sansão, no poema de J o h n Milton, com «pelos eriçados como os que cobrem o dorso dos javalis selvagens ou ouriços despenteados». Mas durante os últimos anos de vida, enfraquecido pela bronquite e pleurisia, Marx já não tinha força para pôr em debandada os filisteus, armado com uma queixada de burro. Por fim, e resignando-se à perda de vigor, ofereceu a sua preciosa juba a um barbeiro argelino. «Desembaracei-me da minha barba de profeta e da minha gloriosa coroa», contou a Engels a 28 de Abril de 1882. Sem olhos em Gaza e sem cabelo em Argel. É quase impossível imaginar um Karl Marx careca e barbeado de fresco — e ele certificou-se de que a posteridade nunca o veria daquela maneira. Tirou uma fotografia, hirsuto e de olhos cintilantes, antes de ser tosquiado para as filhas não se esquecerem do h o m e m que tinham conhecido. É a última fotografia em nosso p o der: um Júpiter cordial, um pai-Natal intelectual. Como ele mesmo disse por brincadeira: «Ainda estou a encarar as coisas com entusiasmo.» E estava realmente, pelo menos diante da família. A pleurisia resistia teimosamente a tratamentos e, quando ele se encontrava em Monte Cario, um especialista local confirmou que a bronquite era, agora, crónica; mas não contou nada disso às filhas. «O que eu escrevo e digo às minhas filhas é verdade, mas não toda», explicou. «Não há razão para as alarmar.»^' 'Entretanto, Jennychen também lhe escondia u m segredo: tinha um cancro na bexiga. Apesar de grávida e exausta (tinha de cuidar de quatro filhos pequenos) conseguiu ocultar o seu sofrimento quando o pai a veio visitar em Argenteuil n o Verão de 1882 — ajudada, sem dúvida, pela chegada de

o OURIÇO TOSQUIADO . .,. 325

Eleanor e Helene. Desde que tinha partido de França que o pequeno Johnny Longuet andava endiabrado («tornou-se traquinas por tédio», deduziu Marx) e, quando Eleanor voltou a Londres em meados de Agosto, levou-o miúdo de seis anos com ela, prometendo educá-lo e discipliná-lo durante alguns meses. A esperança de escapar à escravatura do dever tinha-se gorado: de enfermeira do pai passara a governanta do sobrinho em menos de um ano. Mas esta nova responsabilidade proporcionou grandes alegrias a Eleanor e, dentro de pouco tempo, tratava Johnny como se fosse filho dela. O s irmãos, Edgar e LIarry, foram passar férias com o pai a Calvados no fim de Agosto, deixando Jennjcòen apenas com o bebé, Marcel. Mas ela continuava fatigada e com dores constantes. E, finalmente, depois de dar à luz uma menina (baptizada Jenny, mas mais conhecida por Memé), acabou por confessar o seu mal numa carta a Eleanor: «Não desejo a ninguém as torturas que sofro há oito meses; são indescritíveis e, agora ter de dar de mamar ao bebé torna a minha vida no inferno.»'''^ Insistia para que a irmã nada dissesse ao Mouro. Mas um Verão passado debaixo do mesmo tecto tinha dado inúmeras indicações que havia algo de grave. D a sua residência de Inverno na ilha Wright, Marx escreveu regularmente a pedir notícias da «pobre Jennychen» e do bebé. «Aflige-me imenso, pois receio bem que ela não possa suportar u m fardo desses», disse a Eleanor. Marx nada podia fazer para aliviar tal fardo. Passou a maior parte do mês de D e z e m b r o sem poder sair do seu alojamento, em St. Boniface, 1, por causa de uma crise de catarro na traqueia — apesar da pleurisia e da bronquite se encontrarem, agora, temporariamente controladas. («Isto é bastante encorajador, pois a maior parte dos meus contemporâneos, quer dizer, gente da mesma idade, estão a esticar o pernil como tordos.»)''^ A 5 de Janeiro de 1883, foi informado por Lafargues que a doença de Jennychen tinha atingido um ponto crítico e, na manhã seguinte, Marx acordou com um ataque de tosse tão violento que julgou que ia morrer sufocado. Havia, por acaso, alguma relação entre estes dois acontecimentos? Perguntou a um médico local, um amável jovem originário de Yorkshire chamado James Williamson, se a angústia mental tinha «influência sobre o fluxo da mucosidade».''^ Jenny Longuet morreu às cinco da tarde do dia 11 de Janeiro, com 38 anos de idade e Eleanor partiu para Vantoor assim que soube da notícia.

326 ^ f c

I
«Vivi muitas horas tristes, mas nenhuma tão triste como esta. Senti que levava ao meu pai a sua sentença de morte. Ao longo de toda a viagem, dei voltas à cabeça para encontrar uma maneira de lhe transmitir a notícia. Mas não houve necessidade de o fazer, porque a expressão do meu rosto denunciou-me, e o Mouro disse imediatamente, "a no^y^y. Jennychen morreu". E, a seguir, insistiu logo comigo para que fosse a Paris tratar das crianças. Queria ficar com ele, mas ele não me deixou. Há meia hora que tinha chegado a Ventnor e já era obrigado a voltar a Londres e, de lá, para Paris. Estava a fazer o que o Mouro queria por causa das crianças. Nada mais direi sobre o meu regresso. Sempre que penso que nesse momento tenho arrepios. A angústia e o tormento que foi. Mas já chega. E u voltei e o Mouro regressou a casa para morrer.»""^ Antes de partir de Ventnor, Marx escrevinhou um recado ao Dr. Williamson explicando-lhe a sua partida apressada. «Por favor, caro doutor, envie-me a conta para Maitiand Park, 41, Londres N W Lamento não ter tido tempo para me despedir de si. A àót de cabeça que sinto dá-me um certo alívio. A dor física é o único "analgésico" do sofrimento mental.» Q u e se saiba, esta é a última carta que escreveu. Marx junto uma fotografia dele como recordação e dedicou-a com mão trémula, «com os desejos de um Feliz Ano Novo». Como Eleanor sabia, o pai tinha regressado a casa para morrer. Sofrendo de laringite, bronquite, insónias e suores à noite, estava demasiado fraco para 1er os romances vitorianos que tantas vezes o tinham aliviado. Contemplava o espaço ou folheava ocasionalmente catálogos de editores com os pés metido num banho de mostarda. Helene D e m u t h tentava animá-lo cozinhando pratos exóticos, mas Marx preferia seguir uma dieta inventada por ele -— u m copo diário de leite (que ele dantes detestava) acompanhado de generosas doses de rum ou brandy. E m Fevereiro, contraiu um abcesso no pulmão e refugiou-se na cama. Engels anotou a 7 de Março que a saúde de Marx «não está realmente a fazer os progressos que devia. Se fosse há dois meses, o calor e o ar teriam dado resultado, mas com vento de nordeste e flocos de neve, quase uma tempestade, como é que uma pessoa se pode curar de um caso de bronquite aguda!»"''^ A 14 de Março, uma quarta-feira, Engels chegou a casa de Marx às duas e meia da tarde, hora a que habitualmente o visitava. Lenchen desceu as escadas para lhe dizer que Marx estava «meio adormecido» na sua poltrona

o OURIÇO TOSQUIADO

-^^ ^ 327

favorita junto à lareira, mas, quando entraram na sala, um ou dois minutos mais tarde, encontraram-no morto. «A Humanidade ficou uma cabeça mais pequena», escreveu Engels a u m camarada nos EUA. — A cabeça mais notável da nossa época. 65 Karl Marx foi enterrado a 17 de Março de 1883, num distante canto do cemitério de Highgate, no mesmo lote onde a mulher fora enterrada 15 anos mais cedo. Apenas 11 pessoas assistiram ao funeral. N u m discurso fúnebre à beira da sepultura, Engels descreveu-o como um génio revolucionário que se tinha tornado o mais caluniado e odiado homem da sua época, predizendo que «o seu nome e a sua obra hão-de perdurar ao longo dos séculos». O s jornais socialistas franceses, russos e americanos publicaram os panegíricos sob títulos semelhantes — O Melhor A^migo e Professor da Classe Operária, Uma Desgraça para a Humanidade, Muito depois dos Reis Serem esquecidos, a Sua Recordação Perdurará, Um dos Homens mais Nobres a Caminhar nesta Terra. Mas a sua morte passou quase despercebida no país onde tinha vivido mais de metade dos seus 65 anos. «Foi anunciada a morte do Dr. Karl Marx, sociaKsta alemão», informou o Daily News. «Viveu para ver partes das suas teorias, as quais outrora aterrorizaram imperadores e chanceleres, desaparecerem... A classe operária inglesa não se identificou com tais princípios.»'''' The Times publicou u m obituário de um só parágrafo, com um erro em todas as frases, afirmando que le tinha nascido em Colónia e emigrara para a França aos 20 anos. Só a Pali Mali Ga^tte adivinhou que ele seria lembrado: «O Capital, embora inacabado, dará origem a inúmeras obras mais pequenas e exercitará uma influência crescente sobre os homens de todas as classes sociais que se interessam por questões sociais.»'^'' Que epitáfio teria Marx escolhido para si mesmo? Quando, no Verão de 1880, passava férias em Ramsgate, tinha encontrado u m jornalista americano, John Swinton, que escrevia uma série dedicada a «viagens em França e Inglaterra» para o New York Sun. Swinton observou o velho patriarca a brincar na praia com os netos («Karl Marx entende a arte de ser avô de forma não menos admirável do que Victor Hugo») e, ao anoitecer, Marx concedeu-Ihe uma entrevista. Enquanto os nossos copos tiniam por cima do mar, conversámos sobre o mundo, o homem, o tempo e as ideias. O comboio não espera por

328^0

KARI.MARX

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ninguém e a noite está próxima. Sobre os pensamentos e a destruição do tempo e dos tempos, sobre a conversa do dia e das cenas da noite, surgiu no meu espírito uma questão que tinha a ver com a lei final do ser, cuja resposta eu procuraria obter deste homem sábio. Descendo às profundidades da Hnguagem e ascendendo ao cume da ênfase, interrompi, durante um espaço de silêncio, o revolucionário e filósofo com estas palavras fatais: «O que é?» E, enquanto ele olhava para o mar revolto diante dele e a multidão irrequieta na praia, parecia que a mente dele se tinha invertido um instante. «O que é?», tinha eu perguntado e ele respondeu em tom profundo e solene: «A luta!» Ao princípio pensei que tinha ouvido o eco do desespero, mas era porventura a lei da vida.^^

POS^ESCRITO 1:

CONSEQUÊNCIAS

Karl Marx morreu sem nacionalidade e sem deixar testamento. Os seus bens foram avaliados em 250 libras, baseado sobretudo no valor da mobília e dos livros da casa em Maitland Park Road, 41. Estes, juntamente com a vasta colecção de cartas e apontamentos, foram guardados por Engels — assim como por Helene Demuth, que foi governanta em Regent's Park Road, 122, até vir a falecer de cancro intestinal, a 4 de Novembro de 1890. Engels dedicou-se a reunir as notas e manuscritos para O Capital. O volume II foi publicado (na Alemanha) em Julho de 1885 e o Volume III, em Novembro de 1894. A primeira tradução inglesa oficial (1887) vendeu-se mal, mas uma edição pirata em Língua inglesa, de cinco mil exemplares, esgotou-se em pouco tempo — provavelmente porque o editor enviou uma circular aos banqueiros de Wall Street a dizer que o livro revelava «como acumular capitai». Eingels morreu de cancro no esófago a 5 de Agosto de 1895. Cerca de 80 pessoas assistiram ao seu funeral no crematório de Woking; Eleanor Marx e três amigas deslocaram-se a Eastbourne, foram de bote a seis milhas de Beachy Head e lançaram as cinzas de Engels ao mar. Após a morte de Engels, a tarefa de guardar e seleccionar os papéis de Marx coube a Eleanor Marx e ao seu amante, Edward Aveling. Embora espantosamente feio e merecedor de pouca confiança, Aveling era um sedutor que «precisava apenas de meia hora de avanço sobre o mais belo homem de Londres para seduzir qualquer mulheD rel="nofollow">. Ele e Eleanor viveram juntos às claras, mas como a maior parte dos amigos eram actores, livres pensadores e boémios, ninguém se escandalizou. O que chocava muitos dos seus convidados era a maneira grosseira como ele a tratava: o escritor Oliver Schreiner

330 *Ä> KARL MARX

descreveu Aveling como sendo um «rufia»; e, na opinião de WiUiam Morris, ele não passava de «um tipo com péssima reputação». Eleanor deu-se conta de como eles tinham razão em Março de 1898 ao descobrir que ele se tinha casado em segredo com uma actriz de 22 anos no Verão anterior. A solução de Aveling para resolver a crise foi propor suicidarem-se juntos. Eleanor redigiu obedientemente um terno bilhete de despedida e tomou o ácido prússico que ele lhe deu. Escusado será dizer que Aveling nunca tencionou cumprir tal pacto e, logo que ela tomou a dose letal, saiu de casa. Apesar de não ter sido condenado, não há dúvida de que foi ele quem a matou. Laura e Paul Lafargue foram viver para os arredores de Paris à custa do dinheiro que tinham conseguido sacar a Engels. Em Novembro de 1911, quando ele tinha 69 anos e ela 66, decidiram que não valia a pena viver e suicidaram-se juntos. Um dos oradores do seu funeral foi um representante dos comunistas russos, um certo Vladimir Ilyich Lenine, que afirmou que as ideias do pai de Laura viriam a reaHzar-se mais cedo do que se julgava. Quatro dos filhos de Marx morreram antes dele e os dois sobreviventes mataram-se. O único membro da família a escapar esta maldição foi Freddy Demuth, que viveu e trabalhou tranquilamente na zona leste de Londres. Morreu aos 77 anos, vítima de um ataque cardíaco, a 28 de Janeiro de 1929. Nem ele nem ninguém nunca suspeitaram que pudesse ser o filho de um homem cujo rosto e nome eram já então conhecidos no mundo inteiro.

POS-ESCRITO 2:

CONFISSÕES

Todas as três filhas de Marx adoravam o jogo de salão vitoriano «Confissões» — actualmente mais conhecido pelo Questionário de Proust — e em meados da década de 1860 convidaram o pai a sujeitar-se a um inquérito. Seguem-se as suas respostas: A Jí A A A A O O A

virtude preferida: virtude masculina preferida: virtudefeminina preferida: sua principal característica: sua ideia de felicidade: sua ideia de desgraça: defeito que mais tolera: defeito que mais , sua aversão:

Ocupação preferida: Poeta preferido: Escritorpreferido: Herói preferido: Heroina preferida: Florpreferida: Corpreferida: Nome preferido:

a simplicidade a força a firaqueza a obstinação o combate a submissão deixar-se enganar o servilismo Martin Tupper (escritor popular vitoriano) a leitura Shakespeare, Esquilo, Goethe Diderot Espar taco, Kepler Gretchen o vermelho Laura, Jenny

332 ^ o

KARL MARX

Prato preferido: Máxima preferida: Divisa preferida:

peixe Nihil humani a me alienum puto (Tudo o que é humano me interessa) De omnibus dubitandum (De\e-sc duvidar de tudo)

POS-ESCRITO 3:

REGICIDA

No decorrer da sua visita à Alemanha, em 1867, e enquanto aguardava as provas de O Capital, Karl Marx foi convidado a uma festa dada pelo mestre de xadre2, Gustav R. L. Neumann. Sobreviveu a anotação de uma partida que jogou naquela noite contra um indivíduo chamado Meyer.

1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15.

Marx

Meyer

e2-e4 f2-f4 Cgl-f3 Bfl-c4 0-0 Ddtxf3 e4-e5 d2-d3 Cbl-c3 Bel-d2 Tal-el Cc3-d5 Bd2-c3 Bc3-f6 Bf6-xBg5

e7-e5 e5-e4 g7-g5 g5-g4 g4xNf3 Dd8-f6 Df6-e5 Bf8-h6 Cg8-e7 b8-c6 De5-f5 Re8-d8 Th8-g8 Bh6-g5 DfSxBgS

16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. 24. 25. 26. 27. 28.

Cd5xf4 Df3-e4 h2-h4 Bc4-f7 Bf7-h5 d3-d4 c2-c3 Cf4-e6 TflxfS De4-xBe6 Tel-fl Bh5-g4 Tfl-f7

Cc6-e5 d7-d6 Dg5-g4 Tg8-f8 Dg4-g7 Ce5-c6 a7-a5 Bc8xCe6 Dg7xTf8 Ta8-a6 Df8~g7 Cc6-b8 Negras abandonam

AGRADECIMENTOS

Agradeço a colaboração das seguintes instituições: Instituto Internacional de História Social, Amesterdão, onde se encontram as cartas e manuscritos de Karl Marx bem como muitos outros arquivos socialistas da época; Museu Karl Marx (Fundação Friedrich Elbert), em Trier, e a sua filial Centro de Estudos Karl Marx, sobremdo por me ajudar a encontrar a anotação de uma das últimas partidas de xadre2 jogadas por KM; Biblioteca Memorial Marx, Londres; Biblioteca Britânica; Biblioteca de Londres; D e p a r t a m e n t o de Arquivos Públicos, Kew; Departamento Estatístico. Os meus agradecimentos também às pessoas que me proporcionaram livros e documentos que, de outro modo, me teriam escapado: Anna Cuss, da Sociedade Real das Artes, Paul Foot, Mark Garnett, E d Günert, Ronald Gray, Bruce Page, Christopher Hawtree, professor Colin Matthews, Bob O'Hara, Nick Spurrier. Ambas as minhas agentes, Pat Kavanagh e Victoria Barnsley, de Fourth State, responderam afirmativamente à minha sugestão de escrever uma biografia de Marx com calorosa alacridade. A minha maior dívida de amor e gratidão é para com Julia Thorogood, a qual nunca perdeu o entusiasmo mesmo nos m o mentos em que a minha fé e pálpebras descaíam. Jack, Frank e George Anna Thorogood também me encorajaram. Quaisquer erros quanto a factos e interpretação são, claro está, da exclusiva responsabilidade dos meus adorados filhos Bertie e Archie.

NOTAS FINAIS

As seguintes abreviaturas foram usadas: MECW

Karl Marx, Frederick Engels, Collected Works (47 volumes publicados desde 1975 por Progress Publishers, Moscovo, e preparados em colaboração com International Publishers Co. Inc., Nova Iorque, and Lawrence & Wishart, Londres).

RME

K.eminiscences of Marx and Engels (Foreign Languages Publishing House, Moscovo, sem data) Karl Marx: Interviews and RecoUecüons

KMIR

1. O MARGINAL 1. Carta de KM a FE, 21 de Junho de 1854 2. De Karl Marx, de Eleanor Marx, RME, p. 25 3. De Meetings mth Marx, de Maxim Kovalevsky, em RME, p. 299 4. MECW, Vol. I, p. 4 5. Eleanor Marx a Wilhelm Liebknecht eva Mohr und General: Erinnerungen anMarx undEngels (Dietz Verlag, Berlim, 1965) 6. «A Campanha Francesa», de Goethe, citado em Karl Marx, Man and Fighter, de Boris Nicolaievsky e Otto Maenchen-Helfen (Methuen, Londres, 1936; edição revista publicada por Penguin, Harmondsworth, 1973) 7. De The Baptism of Karl Marx, de Eugene Kamenka, The Hibbertjournal. Vol. LVI (1958), pp. 340-51 8. Carta de Henriette Marx a KM, 29 de Novembro de 1835 9. Carta de KM a FE, 8 de Janeiro de 1863

338^^

KARL MARX

10. Carta de Heinrich Marx a KM, 18 de Novembro de 1835 11. Carta de Heinrich Marx a I<M, 18 de Novembro de 1835 12. De Speech of Dr. Marx on Protection, Free Trade, and the Working Class, Northern Star de Outubro de 1847 13. Carta de Heinrich Marx a KM, 18-25 de Novembro de 1835 14. Carta de Heinrich Marx a KM, princípios de 1836 15. Carta de Henriette Marx a KM, princípios de 1836 16. Certificado de Dispensa da Universidade de Bona, 22 de Agosto de 1836, MECW, Vol I,pp. 657-8 17. Carta de Heinrich Marx a KM, cerca de Maio/Junho de 1836 18. Carta de KM a Jenny Marx, 15 de Dezembro de 1863 \9. T)e Reminiscences of Marx, de Vaul hãía.rgae,RME, Ç. 74 20. Carta de KM a FE, 10 de Abril de 1856 21. De Karl Marx and World Uterature, de S.S. Prawer (Oxford University Press, 1976), p. 209 22. Carta de KM a Jenny Marx, 21 de Junho de 1856 23. Posfácio à segunda edição alemã de O Capital, MECW, Vol. 35, p. 9 24. De On Hegel de Karl Marx, MECW, Vol. I, p. 576 25. Carta de Heinrich Marx a KM, 9 de Dezembro de 1837 26. Carta de KM a Heinrich Marx, 10-11 de Novembro de 1837 27. Do texto original de 1852 de O Dei^oito Brumário, MECW, Vol. II, p. 103 28. Carta de Heinrich Marx a KM, 9 de Dezembro de 1837 29. Carta de Heinrich Marx a KM, 2 de Março de 1837

2. O PEQUENO JAVALI SELVAGEM

1. Carta de Georg Jung a Arnold Ruge, Marx-Engels Gesamtausgabe, I i (2), p. 261 2. De The Early Texts, de Karl Marx (Oxford University Press, 1971), p. 13 3. Carta de Jenny von Westphalen a KM, 10 de Agosto de 1841 4. Carta de KM a Arnold Ruge, 20 de Março de 1842 5. Carta de KM a Arnold Ruge, 17 de Abril de 1842 6. Carta de Jenny von Westphalen a KM, 10 de Agosto de 1841 7. Artigo em Rheinische Zeitung, 14 de Julho de 1842, traduzido em MECW, Vol. I, p. 195 8. Artigo em Rheinische Zeitung, 19 de Maio de 1842, traduzido em WECW, Vol. I, p. 172 9. De Briefwechsel de Moses Hess, ed. E. SEberner (Haia, 1959), traduzido em KMIR, pp. 2-3 10. De The Insolently Threatened Yet Miraculously Rescued Bible, publicado como panfleto anónimo em Dezembro de 1842, traduzido em MECW, Vo. 2, p. 336 11. Excepção solitária é o grande investigador americano, Hal Draper, que incluiu uma divertida nota final sobre Marx e a Pilosidade em Karl Marx's Theory of Revolution, Vol II The Politics of Social Classes (Monthly Review Press, Nova Iorque e Londres, 1978

NOTAS FINAIS « * ^ 339

12. De Great Men of the Exile, de Karl Marx e Friedrich Engels, traduzido em The ( Communist Trial (Lawrence & Wishart, Londres, 1971), p.l66 13. Carta de FE a Marie Engels, 29 de Outubro de 1840. 14. Marx-Engels Gesamtausgabe, I i (2), p. 257, traduzido em KarlMarx, de Werner Blumenber . (NewLeftBooks, Londres, 1972) 15. De Erlebtes, de Kari Marx (Boston, Mass., 1874), em KMIR, pp. 5-6 16. Yet Against the Current: TheUfeof KarlHein^ien 1809-80, de Carl Wittke (University of Chicago Press, 1945) 17. De Karl Marx: Biographical Memoirs, de Wilhelm Liebknecht, traduzido por E. Untermann (Londres, 1901) 18. Rheinische Zeitung, 16 de Outubro de 1842, traduzido em MECIV, Vol. I, p. 220 19. Carta de KM a Arnold Ruge, 30 de Novembro de 1842 20. D e ^ Contribution to the Critique of Political Economy (1859), traduzido em The Portable K Marx (Penguin Books, Nova Iorque, 1983), p. 158 21. Rheinische Zeitung, 25 de Outubro de 1842, traduzido em MECW, Vol. I, p. 225 22. Carta de KM a Arnold Ruge, 9 de Julho de 1842 23. De Kari Marx ais Mensch, de Wilhelm Bios, Die Glocke v (1919), traduzido em KMIR,

pp. 3-4 24. Carta de KM a Arnold Ruge, 25 de Janeiro de 1843 25. Carta de KM a Arnold Ruge, 25 de Janeiro de 1843 26. Carta de KM a Arnold Ruge, 13 de Março de 1843 27. Carta de Jenny von Westphalen a KM, 10 de Agosto de 1841 28. De RedJenny: A Eife with Karl Marx, de H. F. Peters (Allen & Unwin, Londres, 1986) 29. Carta de Jenny von Westphalen a KM, c. 1839-40 30. Carta de KM a Ludwig Feuerbach, 3 de Outubro de 1843 31. Carta de KM a Ludwig Feuerbach, 11 de Agosto de 1844 32. Carta de KM a FE, 30 de Julho de 1862 33. Karl Marx: Early Writings, traduzido por Rodney Livingstone e Gregor Benton (Pelican Books, Londres, 1975), pp. 212-41 34. KarlMarx: Early Writings, traduzido por Rodney Livingstone e Gregor Benson (Pelican Books, Londres, 1975), pp. 243-57

3. O REI CORRUPTO

1. De Zwei Jahre in Paris, de Arnold Ruge (Leipzig, 1846) 2. De 1848: Briefe von und an Herwegh, editado por Marcel Herwegh (Munique, 1898), traduzido em KMIR, pp. 6-7 3. Tie Arnold Ruge Briefwechsel und Tagebuchblätter 1825-80, editado por P. Nerrlich (Berlim 1886), traduzido em XMJR, pp. 9-9

340^^

KARL MARX

4. Carta de Arnold Ruge a Julian Fröbel, 4 de Junho de 1844 5. Carta de Jenny Marx a KM, 21 de Junho de 1844 6. De MikhailBakunin andKarlMarx, de K. Kenafick (Melburne, 1948), p. 25 y.DeiÖWZR, p. 10 8. De Karl Marx: Man and Fighter, de Boris Nicolaievsky e Otto Maenchen-Helfen (Methuen, Londres, 1936)

9. T>e ArnoldKugeBriefwechselundTagebuchblätter 1825-80, editado por O. Nerrlich (Berlim 1886), traduzido em Karl Marx: Man andFighter 10. Carta de Jenny Marx a KM, 11 -18 de Agosto de 1844

11. De Fünffunsteh^tg]ahre. in der alten und neuen Welt, de Heinrich Börnstein (Leipzig, 1881 12. De «Notas Críticas Marginais sobre o artigo: "O Rei da Prússia e a Reforma Social." Por um Prussiano» Vorwärts!, 7 e 10 de Agosto de 1844. Traduzido pem MECW, Vol. 3, pp. 189-206 13. Carta de KM a FE, 4 de Dezembro de 1863 14. Carta de KM a FE, 17 de Dezembro de 1863 15. De KarlMarw: A Few Stray Notes, de Eleanor Marx, RME, pp. 252-1 16. De Karl Marx: Biographical Memoirs, de Wilhelm Liebknecht, traduzido por E. Untermann (Londres, 1901)

17. De On the History of the Communist League, por FE, 1885, traduzido em The Cologne Co«?«?««?>/Tm/(Lawrence & Wishart, Londres, 1971)

18. De Friedrich Engels: A Biography, de Gustave Mayer, traduzido por Gilbert e Helen Higher, editado por R. H. S. Crossman (Chapman & Hall, Londres, 1936) 19. Carta de FE a Friedrich e Wilhelm Graeber, 1 de Setembro de 1838 20.MECir,Vol. I l , p . 4 21. Carta de FE a Wilhelm Graeber, 17-18 de Setembro de 1838 22. Carta de FE a Friedrich e Wilhelm Graeber, 1 de Setembro de 1838 23. Carta de FE a Friedrich Graeber, 8 de Abril de 1839 24. Carta de FE a Friedrich Graeber, 24 de Abril de 1839 25. The Condition of the Working Class in England, de Friedrich Engels (Londres, 1892) 26. Carta de FE a Eduard Bernstein, 25 de Outubro de 1881 27. Carta de FE a KM, princípios de Outubro de 1844 28. Carta de FE a KM, 19 de Novembro de 1844 29. Carta de FE a K, 22 de Fevereiro-7 de Março de 1845 30. Carta de FE a KM, 17 de Março de 1845 31. Carta de KM a FE, 24 de Abril de 1867

NOTAS FINAIS * < ^ 341 4. O RATO NO SÓTÃO

1. Vorwärts!, 17 de Agosto de 1844, traduzido em MBCW, Vol. 3, pp. 207-10 2. Carta de FE a KM, 22 de Fevereiro-7 de Março de 1845 3. De My Recollections of Karl Marx, de Marian Comyn, em Nineteenth Century and After, Vol. XCI(1922),pp. 161ff 4. Carta de Jenny Marx a KM, após 14 de Agosto de 1845 5. Carta de KM a Karl Leske, 1 de Agosto de 1846 6. De Teses sobre Feuerbach, de Karl Marx, MECW, Vol. 5, pp. 3-5 7. A Ideologia Alemã, de Karl Marx e Friedrich Engels, MECW, Vol. 5, pp. 19-531 8. De Notas Marginais Críticas sobre o Artigo por um Prussiano, de Karl Marx, Vorwärts!, 10 de Agosto de 1844 9. Carta de Joseph Weydemeyer a Louise Lüning, 2 de Fevereiro de 1846, publicada no Münchner Post, 30 de Abril de 1926 10. De «Sobre a Historia da Liga Comunista», de Friedrich Engels, MECW, Vol. 26, p. 320 11. Citado em To the Filand Station, de Edmund Wilson, (Macmülan, Londres, edição de 1972), pp. 193-4 12. De A Wonderful Ten Years, de Pavel Annekov, em RME, pp. 269-72 13. De CircularAgainst Kriege, por Marx e Engels, 11 de Maio de 1846, traduzido em MECW, Vol. 6, pp. 35-51 14. Carta de KM a Pierre-Joseph Proudhon, 5 de Maio de 1846 15. Confessions d'un révolutionnaire, de Pierre-Joseph Proudhon (Paris, 1849) 16. Misère dé la Philosophie, de Karl Marx (publicado por A. Frank, Paris, e C G . Vogler, Bruxelas, 1847) 17. Carta de FE ao Comité de Correspondência Comunista, 19 de Agosto de 1846 18. Carta de FE a KM, 18 de Setembro de 1846 19. Carta de FE a KM, cerca de 18 de Outubro de 1846 20. Carta de FE a I<M, 9 de Março de 1847 21. Carta de FE a KM, 9 de Março de 1847 22. De «Regras da Liga Comunista», adoptadas durante o I Congresso, Junho 1847 23. Carta de KM a Herwegh, 26 de Outubro de 1847 24. De A Circular of the 1" Congress of the Communist Eeague to the Eeague Members, 9 de J nho de 1847, traduzido em MECW, Vol. 6, p. 589

5. O PAPÃO ATERRADOR

1. De Rascunho de uma Confissão de Fé Comunista, de Friedrich ILn.gds,MECW, Vol. 6, pp. 96-10 2. Carta de FE a KM, 25-26 de Outubro de 1847

342 ^ X » KARLMARX 3. De Principios do Comunismo, de Friedrich Engels, MECW, Vol. 6, pp. 341-57 4. De Anies de 1848 e Depois, de Friedrich Lessner, em RME, pp. 149-66

5. De Gründungsdokument des Bundes der Kommunisten (Juni bis September 1847), editado por B Andreas (Hamburgo, 1969) 6. De Die Communisten-Verschwörungen des neun^enhnten Joahrhunderts, de Karl Wermuth Wilhelm Stieber (BerHm, 1853) 7. Citado em O Manifesto Comunista de KarlMarx e Friedrich Engels, editado por David Ryazanov (Russell & Russell, Nova Iorque, 1963) 8. De AJl That is Solid Melts in the Air: The Experience of Modernity, de Marshall Berman (Verso, Londres, 1982) 9. Deutsche-Brüssels Zetung, 27 de Fevereiro de 1848 10. Carta de FE a KM, 15 de Novembro de 1847 l l . M E C i r , V o l . 6,p. 649 12. De Short Sketch of an Eventful Eife, de Jenny Marx, RAÍE, p. 223 13. Ver «Ao Editor de Northern Stan>, de Friedrich Engels, Northern Star, 15 de Março de 1848, e carta de Karl Marx em Ea Réforme, 8 de Março de 1848 14. Carta de FE a I-OM, 25 de Abril de 1848 15. De Erinnerungen eines Achtundviersigers, de Stephan Born (Leipzig, 1898), traduzido em KMJR,p. 16 16. Neue Rheinische Zeitung, 1 de Junho de 1848 17. The Reminiscences of CarlSchm\ (Londres, 1909), Vol. I, p. 138 18. Publicado em Neue Rheinische Zeitung, 13 de Setembro de 1848 19. Neue Rheinische Zeitung, 9 de Setembro de 1848 20. Kölnische Zeitung^ 4 de Outubro de 1848

'

21. Neue Rheinische Zeitung, 12 de Outubro de 1848 22. Neue Rheinische Zeitung, 29 de Outubro de 1848 23. De From Paris to Berne, por Friedrich Engels, MECW, Vol. 7, pp. 505-29 24. Carta de KM a FE, primeira quinzena de Novembro de 1848 25. Carta de KM a FE, 29 de Novembro de 1848 26. De «The Revolutionary Movement», Neue RJoeinische Zeitung, 1 de Janeiro de 1849 27. Deutsche Eondoner Zeitung, 16 de Fevereiro de 1849 28. Carta do coronel Engels a Oberpräsident Eichman, 17 de Fevereiro de 1849 29. Carta de KM ao coronel Engels, 3 de Março de 1849; ver igualmente carta de FE a Karl Kautsky, 2 de Dezembro de 1885 30. De «Marx and the Neue Rheinische Zeitung), de Friedrich Engels, publicado em Der Sozialdemokrat, 13 de Março de 1884 31. Carta de FE a Jenny Marx, 25 de Julho de 1849 32. Carta de KM a FE, 7 de Junho de 1849

NOTAS FINAIS * G # 343 33. 34. 35. 36.

Carta de I<M a FE, fins de Julho de 1849 Carta de KM a FE, 23 de Agosto de 1849 H O 3/53, Departamento de Arquivos Públicos, Londres Carta de KM a FE, 23 de Agosto de 1849

6. O MEGALOSSAURO 1. Bleak House, de Charles Dickes (Cahpman & Hall, Londres, 1853), p. 1 2. The Times, 5 de Julho de 1849 3. Carta de KM a Ferdinand Freiügrath, 5 de Setembro de 1849 4. Carta de KM a Louis Nauer, 30 de Novembro de 1849 5. Carta de FE a Jakob Lukas Schabelitz, 22 de Dezembro de 1849 6. Northern Star, 1 de Dezembro de 1849 7. De Karl Marx: BiographicalMemoirs, de Wilhelm Liebknecht, traduzido por E. Untermann (Londres, 1901) 8. Westdeutsche Zeitung, 8 de Janeiro de 1850 9. Carta de KM a Joseph Weydemeyer, 19 de Dezembro de 1849 10. De ^ j Liitas de Classe em Trança, 1848-1850, traduzido em MECW, Vol. 10, pp. 47-145 11. De Karl Marx: A Study in Fanaticism, de E.H. Carr (}. M. Dent & Sons, Londres, 1934) 12. Carta de Jenny Marx a Joseph Weydemeyer, 20 de Maio de 1850 13. Carta de KM a Joseph Weydemeyer, 27 de Junho de 1850 14. Carta de Jenny Marx a Joseph Weydemeyer, 20 de Maio de 1850 15. Carta de Jenny Marx a FE, 2 de Dezembro de 1850 16. Carta de FE a KM, 25 de Novembro de 1850 17. Carta de F a KM, 6 de Julho de 1851 18. FE a KM, 10 de Março de 1853 19. Spectator, 15 de Junho de 1850 20. FO 64/317, Departamento de Arquivos Públicos, Londres 21. Mtí^, de Robert Payne (WH. Allen, Londres, 1968) 22. Carta de Jenny Marx a Adolf Cluss, 30 de Outubro de 1852 23. Carta de KM a FE, 19 de Novembro de 1850 24. Carta de KM a Eduard von Müller-Tellering, 12 de Março de 1850 25. Relatório de um espião anónimo da polícia alemã, em KMIR, pp. 34-6 26. Original no Instituto Internacional de História Social, Amesterdão; publicado pela primeira vez em Karl Marx, de Werner Blumenberg (Rowohlt, 1962; edição inglesa publicada por Verso, Londres, 1972) 27. De Eleanor Marx: Volume One, Family Eif 1855-1883, de Yvonne Kapp (Lawrence and Wishart, Londres, 1972)

344 ^ ^

KARL MARX

28. Friedrich Engels: His Tife and Thought, de Terrell Carver (Macmillan, Londres e Basingstoke, 1989) 29. Carta de Terrell Carver, Sunday Times, Londres, 27 de Junho de 1982 30. Carta de KM a Joseph Weydemeyer, 2 de Agosto de 1851 31. Carta de FE a KM, 20 de Abril de 1852

7. OS LOBOS FAMINTOS 1. Carta de KM a FE, 22 de Abril de 1854 2. Carta de FE a KM, 1 de Junho de 1853 3. Carta de KM a FE, 13 de Fevereiro de 1856 4. Carta de KM a FE, 10 de Abril de 1856 5. Carta de KM a FE, 27 de Julho de 1854 6. Carta de KM a FE, 23 de Abril de 1857 7. Carta de I
NOTAS FINAIS « « ^ 345 30. 31. 32. 33. 34.

Carta de KM ao barão A. von Brüningk, 18 de Outubro de 1852 Carta de KM a Karl Eduard Vehse, fins de Novembro de 1852 Carta de KM a Karl Eduard Vehse, fins de Novembro de 1852 Carta de KM a Joseph Weydemeyer, 27 de Junho de 1851 De Os Grande Homens do Exilio, de Karl Marx e Friedrich Engels, em «The Cologne Communist Trial»(Lawí:ence & Wishart, Londres, 1971), p. 167 35. Carta de George Julian Harney a FE, 30 de Março de 1846 36. Carta de FE a Emil Blank, 15 de Abril de 1848 37. Carta de KM a FE, 23 de Fevereiro de 1851 38. Carta de KM a FE, 11 de Fevereiro de 1851 39. Carta de FE a KM, 13 de Fevereiro de 1851 40. Carta de KM a FE, 24 de Fevereiro de 1851 41. Ver carta de George Julian Harney a FE, 30 de Março de 1846 42. De Neue Oder Zeitung, 8 de Junho de 1855 43. Discurso feito por KM a 14 de Abril de 1856, publicado em People's Paper, 19 de Abril de 1856 44. Carta de FE a KM, 30 de Julho de 1851 45. Carta de KM a FE, 31 de Julho de 1851 46. Carta de FE a KM, 23 de Setembro de 1851 47. Carta de FE a KM, 15 de Outubro de 1851 48. Carta de FM a Ferdinand Freiligrath, 27 de Dezembro de 1851 49. Carta de KM a Lassaile, 23 de Fevereiro de 1852 50. Carta de FE a KM, 20 de Abril de 1852 51. Ver Cartas de KM a FE, 29 de Janeiro 1853,10 de Março de 1853,28 de Setembro de 1853 52. Neue Oder Zeitung, 28 de Junho de 1855 53. Neue Oder Zeitung, 5 de Julho de 1855 54. Die Presse (Viena), 2 de Fevereiro de 1862 55. Carta de KM a FE, 27 de Julho de 1866

5().T>c Man and theNatural World: Changing Attitudes in England 1500-1800, ácVdáÚiT^h.om (Allen Lane, Londres, 1983), p. 240 57. Carta de FE a KM, 7 de Outubro de 1858 58. Carta de KM a Eleanor Marx, 9 de Janeiro de 1883 59. De David Urquhart: Some Chapters in the Ufe of a Yictorian Knight Errant of Justice andUbe de Gertrude Robinson (Basil Blackwell, Oxford, 1920) 60. Carta de I
346 « 5 ^

KARL MARX

64. Carta de KM a Jenny Marx, 8 de Agosto de 1856 65. Os textos ofensivos foram retirados das obras completas alemãs e russas, mas foram finalmente publicados na edição inglesa — embora apenas em 1986 e após muitos anos de tenaz discussão entre os editores britânicos e as autoridades em Moscovo 66. Carta de KM a FE, 5 de Março de 1858 67. In the Days of the Dandies, de Lorde Lamington (Londres, 1890)

8. O HERÓI A CAVALO L Carta de KM a FE, 17 de Janeiro de 1855 2. Carta de KM a Amalle Daniels, 6 de Novembro de 1855 3. Carta de KM a FE, 30 de Março de 1855 4. Carta de KM a FE, 12 de Abril de 1855 5. Carta de KM a FE, 13 de Fevereiro de 1863 6. Carta de KM a Ferdinand Lassalle, 28 de Julho de 1855 7. Carta de KM a FE, 11 de Setembro de 1855 8. Carta de Jenny Marx a Louise Weydemeyer, 11 de Março de 1861 9. De Karl Marx: A Few Stray Notes, de Eleanor Marx, em KME, pp. 250-1 10. Carta de FE a KM, posterior a 17 de Setembro de 1856 11. Carta de ¥M a FE, 20 de Janeiro de 1857 12. Carta de FE a KM, cerca de 22 de Janeiro de 1857 13. De Short Sketch of an Evenful Efe, de Jenny Marx, traduzido em RME, pp. 229-30 14. Carta de KM a FE, 24 de Março de 1857 15. Carta de KM a FE, 29 de Junho de 1857 16. Carta de KM a FE, 15 de Agosto de 1857 17. Carta de FE a KM, 15 de Novembro de 1857 18. Carta de FE a KM, 7 de Dezembro de 1857 19. Carta de FE a KM, 15 de Novembro de 1857 20. Carta de FE a KM, 11 de Fevereiro de 1858 21. Carta de KM a FE, 5 de Janeiro de 1858 22. Carta de KM a FE, 8 de Dezembro de 1857 23. Carta de KM a FE, 18 de Dezembro de 1857 24. Carta de KM a FE, 1 de Fevereiro de 1858 25. Carta de KM a FE, 5 de Março de 1856 26. Carta de KM a Lassalle, 31 de Maio de 1858 27. Carta de KM a Lassalle, 22 de Fevereiro de 1858 28. Carta de FE a Nikolai Danielson, 13 de Novembro de 1885 29. Carta de KM a FE, 19 de Outubro de 1867

NOTAS FINAIS ^ à * 347 30. Carta de Jenny Marx a FE, 9 de Abril de 1858 31. Carta de FE a Jenny Marx, 11 de Maio de 1858 32. Carta de KM a Cari Friedrich Julius Leske, 1 de Agosto de 1846 33. Carta de KM a Lassalle, 22 de Fevereiro de 1858 34. Carta de KM a FE, 21 de Janeiro de 1859 35. Carta de KM a FE, 22 de Outubro de 1858 36. Carta de KM a FE, 10 de Novembro de 1858 37. Carta de KM a Lassalle, 12 de Novembro de 1858 38. Carta de KM a FE, 11 de Dezembro de 1858

39. Carta de KM a FE, 13-15 de Janeiro de 1859 40. Do Prefácio ÍLA Critique of Political Economy, de Karl Marx, traduzido em MESW, Vol. I, pp. 361 ff 41. Carta de KM a FE, 22 de Julho de 1859 42. Carta de Jenny Marx a FE, 23 ou 24 de Dezembro de 1859

43. De Mein Process gegen die Allgemeine Zeitung, de Karl Vogt (Genebra, 1859), traduzido e KMIR, pp. 17-19 44. De Herr Vogt, de Karl Marx, em MECW, Vol. 17, p. 243 45. Carta de KM a FE, 28 de Novembro de 1860 46. Carta de Jenny Marx a Louise Wydemeyer, 11 de Março de 1861 47. Carta de KM a FE, 18 de Janeiro de 1861 48. Carta de KM a Antoinette Philips, 24 de Março de 1861 49. Carta de KM a Antoinette Philips, 13 de Abril de 1861 50. Carta de Jenny Marx a FE, princípios de Abril de 1861 51. Carta de KM a Antoinette Philips, 24 de Março de 1861 52. Carta de KM a FE, 30 de Julho de 1862 53. Carta de KM a FE, 19 de Junho de 1861 54. Carta de KM a FE, 18 de Junho de 1862 55. Carta de KM a FE, 30 de Julho de 1862 56. De Short Sketch of an Eventful Eife, de Jenny Marx, traduzido em KME, p. 234 57. Carta de KM a Lassalle, 7 de Novembro de 1862

58. Carta de Lassalle a Bismark, 8 de Junho de 1863, traduzida em Karl Marx's Theory of Revolution, Volume TV: Critique of Other Socialisms, de Hal Draper (Monthly Review Pre Nova Iorque, 1990), p. 55 59. Carta de FE a KM, 4 de Setembro de 1864 60. Carta de KM a FE, 7 de Setembro de 1864 61. Carta de KM a Sophie von Hatzfeldt, 12 de Setembro de 1864 (,2. Caita, de KM a FE, 24 de Dezembro de 1862 63. Carta de KM a FE, 20 de Agosto de 1862

3481^

KARL MARX

64. De The Socialism of KarlMarx and the Young Hegelians, de John Rae, Contemporary Kepie vol. XL, Outubro de 1881, p. 585 65. Carta de KM a Collet Dobson Collet, 6 de Setembro de 1871 66. The Times, 2 de Setembro de 1851 67. Ver The "Ked Doctor" Amongst the Virtuosi: Karl Marx and the Society, de D. G. C. Allan, Journal of the Royal Society of Arts, Vol. 129 (1981), pp. 259-61 e 309-311 68. Carta de Jenny Marx (filha) a FE, 2 de Julho de 1869 69. De Karl Marx: Biographical Memories, de Wilhelm Liebknecht, traduzido por E. Untermann (Londres, 1901)

70. De The Introduction and CriticallReception of MarxistThought in Britain, 1850-1900, de Kirk Wilüs, The Historical Journal, 20, 2 (1977), pp. 417-459 71. Carta de KM a FE, 18 de Junho de 1862 72. Carta de KM a Ludwig Kugelmann, 28 de Dezembro de 1862

9. OS BULDOGUES E A HIENA

1. Carta de FE a KM, 13 de Janeiro de 1863 2. Carta de KM a FE, 14 de Janeiro de 1863 3. Carta de FE a KM, 16 de Janeiro de 1863 4. Carta de KM a FE, 2 de Dezembro de 1863 5. De «As últimas vontades e testamento de Johann Friedrich Wolfß>, Manchester Probate Court, Registo N.° 1 (1864), Folio 606 6. Carta de KM a FE, 25 de Julho de 1864 7. Carta de KM a Lion Philips, 25 de Junho de,1864 8. Carta de KM a FE, 4 de Julho de 1864 9. Carta de FE a KM, 28 de Junho de 1868 10. Carta de KM a FE, 27 de Junho de 1868 11. De «Observações sobre o Artigo do Sr. Adolphe Bartels», de Karl Marx, DeutscheBrüsseler-Zeitung, 19 de Dezembro de 1847 12. Carta de KM a Ferdinand Freiiigrath, 29 de Fevereiro de 1860 13. The Tion and the Unicom: Sodalism and the English Genius, de George Orwell (Seeker & Warburg, Londres, 1941) 14. Northern Star, 19 de Junho de 1847 15. Para relatos do caso Haynau, ver The Chartist Challenge:A Portrait of GeorgeJulian Harney de A. R. Schoyen (Heinemann, Londres, 1958); A History of the Chartist Movement, de Julius West (Constable, Londres, 1920); The Common People 1746-1938, de G. D. H. Cole e Raymond Pistgate (Methuen, Londres, 1938) e o editorial de Harney no Red Republican, 14 de Setembro de 1850 ' : ,

NOTAS FINAIS o < ^ 349

16. The Age of Capital, E.J. Hobsbawn (Abacus, Londrs, 1977), pp. 134-5 17. Carta de KM FE, 9 de Abril de 1863 18. Marx, de Robert Payne (W H. Allen, Londres, 1968), p. 322 19. The Social and Political Tought of Karl Marx, de Schlomo Avineri (Cambridge University Press, 1968), p. 63 20. Para uma minuciosa dissecação dos erros de Avineri, ver apêndice em Karl Marx's . Theorrj of K£volution — Volume II: The Politics of Social Classes, de Hal Draper (Month Review Press, Nova Iorque, 1978), pp. 635ff 21. De Neue Rheinische Zeitung, Politisch-ökonomische Revue, N.°' 5-6, 1850 22. Carta de KM a FE, 9 de Fevereiro de 1859 23. Carta de KM a FE, 18 de Maio de 1859 24. Carta de KM a FE, 26 de Setembro de 1866 25. Todas as citações das minutas são tiradas de The General Council of the First International compilação em cinco volumes dos registos do Conselho, publicada por Foreign Languages Publishing House, Moscovo 26. Carta de KM a FE, 4 de Novembro de 1864 27. Carta de KM a Laura Marx, 20 de Março de 1866 28. Carta de KM a FE, 20 de Junho de 1866 29. Carta de KM a FE, 13 de Março de 1865 30. Carta de FE a Laura Lafargue (nascida Marx), 24 de Junho de 1883 31. Carta de FE a KM, 12 de Abril de 1865 32. Carta de KM a Ludwig Kugelmann, 1865 33. Carta de KM a FE, 1 de Maio de 1865 34. Carta de 1<M a FE, 31 de Julho de 1865 35. Carta de KM a Paul Lafargue, 13 de Agosto de 1866 36. Carta de KM a FE, 11 de Novembro de 1882 37. Carta de KM a Paul Lafargue, 13 de Agosto de 1866 38. Carta de KM a FE, 6 de Março de 1868 39. Ver carta de Laura Lafargue a FE, 6 de Março de 1893, na Correspondência Engels-Lafargue, Vol. III, pp. 246-7 40. Carta de Laura Marx a FE, 16 de Outubro de 1893, na Correspondência Engels• -Lafargue, Vol. III, p. 304 41. Carta de Jenny Marx a Wilhelm Liebknecht, 26 de Maio de 1872

10. O CAO PELUDO 1. De «Reminiscencias de Marx», de Paul Lafargue, em RAÍE, p. 73 2. Carta de KM a FE, 22 de Junho de 1867

3501?*:: KARL MARX 3. Carta de KM a FE, 2 de Abril de 1867 4. Carta de KM a FE, 13 de Abril de 1867 .5. Carta de KM a FE, 24 de Abril de 1867 6. Carta de I<:M a FE, 7 de Maio de 1867 7. Carta de KM a FE, 22 de Junho de 1867 8. Carta de KM a FE, 16 de Agosto de 1867 9. Conversations, de Kenneth Harris (Hodder & Stoughton, Londres, 1967), p. 268. Wüson repetiu a afirmação numa entrevista para The Times, 2 de Agosto de 1976 10. De O Capital: «Uma Crítica da Economia PoKoca», Vol. I, de Karl Marx, traduzido por BenFowltes (PelicanBoolcs, Londres, em associação com ÍVÍ?»^LÍ/?RÍW>», 1976), p. 797 11. Ibid., p. 799 12. Main Currents of Marxism: Its Rise, Growth and Dissolution, Vol. I, de Leszek Kolakowski (Clarendon Press, Oxford, 1978), p. 291 13. Ibid., p. 329 14. Conferências de Karl Marx no Conselho-Geral da Primeira Internacional, 20 e 27 de Junho de 1865, publicadas no panfleto Value, Price andProfit, editado por Eleanor Marx — Aveling (Londres, 1898) 15. Posfácio à segunda edição alemã de O Capital, 1873 16. O Capital, Vol. I, pp. 142-3 17. De The Tife and Opinions of Tristam Shandj, Gent, de Laurence Sterne, em The Works of Taurence Sterne, Vol. I (Bickers & Son, Londres, 1885) ÍS.LMurence Sterne: A. Fellow of Infinite Jest, de Thomas Yoseloff (Francis Aldor, Londres, 1948), p. 87 19. M E C I F ; Vol. 30, pp. 306-310

20. To the Finland Station, de Edmund Wilson (MacmiUan, Londres, 1972), pp. 340-2 21. Saturday Review of Politics, Uterature, Science and Art, Londres, 18 de Janeiro de 1868 22. Contemporary Review, Londres, Junho de 1868 23. Carta de FE a KM, 16 de Junho de 1867 24. Carta de FE a ÍCM, 23 de Agosto de 1867 25. Carta de KM a Kugelmann, 30 de Novembro de 1867 26. Carta de KM a FE, 19 de Outubro de 1867 27. Carta de FE a Ludwig Kugelmann, 8 e 20 de Novembro de 1867 28. Carta de Jenny Marx a Ludwig Kugelmann, 24 de Dezembro de 1867 29. Ibid.

NOTAS FINAIS ö ^ 351 II. O ELEFANTE VELHACO

1. Karl Marx: A Political Biography, de Fritz J. Raddatz, traduzido por Richard Barry, (Weidenfeld & Nicholson, Londres, 1978), p. 207 2. Karl Marx, de E.H. Carr (J. M. Dent & Sons, Londres, 1934), p. 224 3. Karl Marx: His Ufe and Environment, de Isaiah Berlin (Butterworh, Londres, 1939), p. 79 4. Archives Bakounine, editado por A. Lehning (International Institute for Social History, Amesterdão, 1967) 5. Democratic Pan-Slavism, de Friedrich Engels, Neue RJjeinische Zeitung, 15 de Fevereiro de 1849 6. Carta de KM a FE, 12 de Setembro de 1863 7. Carta de I<M a FE, 4 de Novembro de 1864 8. Michael Bakounin, de E. H. Carr (Vintage Books, Nova Iorque, 1961) 9. Discurso «Aos Membros da Associação Internacional dos Trabalhadores da Europa e dos EUA» publicado por IWMA, Julho de 1870 10. Minutas do ConselhoGeral, 22 de Agosto de 1870 11. Carta de KM a Ferdinand Lassalle, 4 de Fevereiro de 1859 12. Carta de KM a FE, 17 de Agosto de 1870 13. Carta de KM a Paul e Laura Lafargue, 28 de Julho de 1870 14. Carta de Jenny Marx a FE, 10 de Agosto de 1870 15. Carta de FE a KM, 31 de Julho de 1870 16. Cartade KM a FE, 8 de Agosto de 1870 17. Discurso «Aos Membros da Associação Internacional dos Trabalhadores da Europa e dos EUA», publicado por IWMA, Setembro de 1870 18. Carta de KM a Friedrich Adolph Sorge, 1 de Setembro de 1870 19. Ti)í Tiwé-J, 22 de Março de 1871 20. Carta de KM a Wilhelm Liebknecht, 6 de Abril de 1871 21. Carta de KM a Ludwig Kugelmann, 12 de Abril de 1871 22. Ver, por exemplo, Karl Marx: A Biography, de David McLellan, p. 359 23. Carta de Jenny Marx (filha) aos Kugelmann, 18 de Abril de 1871 24. The Civil War in France (Edward Truelove, Londres, Junho de 1871) 25. «A Internacional Dirigida à Classe Operária», de Joseph Mazzini, Contemporary Revue, XX (Julho de 1872), 155 26. The Times, 16 de Abril de 1872 27. The Commune of 1871, de EBM, Fraser's Magai^ine, Junho de 1871 ^8. The Tablet, 15 de Julho de 1871 29. jr^íí-/«/or, 17 de Junho de 1871 30. «O Proletariado numa Falsa Pista», de W. R. Gt&^, Quarterly Revieiv CXXXII (Janeiro de 1872), p. 133

3 5 2 * 1 ^ KARL MARX

31. Carta de KM a Ludwig Kugelmann, 18 de Junho de 1871 32. Ml Mall Gazette, 9 de Junho de 1871 33. P«//M«//G«^í//í, 3 de Julho de 1871 34. The World, Nova Iorque, 18 de Julho de 1871 35. Carta de KM a Jenny Marx, 23 de Setembro de 1871 36. Archives Bakounine, traduzido em Karl Marx's Theory of Revolution, Volume IV: Critique of Other Sodalisms, p. 296 37. lues Prétendues Scissions dans l'Internationale (Co-operative Press, Genebra, 1872) 38. Ein Zesdaagsch International Débat (Dordrecht, 1872), traduzido em KMIR, pp. 114-15 39. Nicolaievsky e Maenchen-Helfen, p. 382 40. TA? T/Ä'iJ, 7 de Setembro de 1872 41. Nicolaievsky e Maendhen-Helfen, p. 384 42. «Relatório do V Congresso Geral Anual da Associação Internacional dos Trabalhadores, ocorrido em Haia, Holanda», 2-9 de Setembro de 1872, Maltman Barry (Londres, 1873)

43. Carta de KM a Nicolai Danielson, 28 de Maio de 1872 44. Carta de KM a César de Paepe, 28 de Maio de 1872 45. Violence dans la violence: le débat Bakounine-Necaev, de Michael Confino (Maspero, Paris 1973), p. 88; ver igualmente Karl Marx's Theory of Revolution, Volume IV: Critique of Other Socialisms, p. 302

12. O OURIÇO TOSQUIADO 1. Carta de Jenny Marx a Friedrich Adolphe Sorge, 20 ou 2Ide Janeiro de 1877 2. Carta de Jenny Marx a Wilhelm Liebknecht, 26 de Maio de 1872 3. Carta de Jenny Marx (filha) a Eleanor Marx, 10 de Abril de 1882, citada em Eleanor Marx, Volume I: Family Ufe /á'i5-/á'á'i, de Yvonne Kapp (Lawrence & Wishart, Londres, 1972), p. 240 4. T)c Autobiographic Memoirs, de Frederic Harrison (Londres, 1911), Vol. II, p. 33 5. Carta de KM a Friedrich Adolphe Sorge, 4 de Agosto de 1874 6. Carta de KM a FE, 11 de Novembro de 1882 7. Carta de Jenny Marx (filha) a Ludwig e Gertrud Kugelmann, 21-22 de Dezembro de 1871 8. Carta de KM a FE, 31 de Maio de 1873 9. Carta de Eleanor Marx a KM, 23 de Março de 1874; traduzida em Eleanor Marx, Volume I: Family Ufe 1855-1883, de Yvonne Kapp (Lawrence & Wishart, Londres, 1972), pp. 153-4 10. Carta de Eleanor Marx a Jenny Longuet, 1 de Julho de 1882

NOTAS FINAISfi*G<»353

11. Carta de Eleanor Marx a Karl Kautsky, 28 de Dezembro de 1896 12. Carta de Eleanor Marx a Jenny Longuet, 8 de Janeiro de 1882 13. Carta de KM a Nikolai Danielson, 12 de Agosto de 1873 14. Carta de KM a FE, 20 de Agosto de 1973 15. Carta de KM a Friedrich Adolphe Sorge, 27 de Setembro de 1873 16. Carta de KM a Ludwig Kugelmann, 19 de Janeiro de 1974 17. Ficha H045/9366/36228 no Departamento de Arquivos Públicos, Londres 18. Carta de KM a FE, 1 de Setembro de 1874 19. Carta de KM a FE, 18 de Setembro de 1874 20. De Sprudel (Viena), 19 de Setembro de 1875, traduzido em KMIR, pp. 124-5 21. De Going to Canossa, de August Bebei, RME, p. 216 22. De Visits to Karl Marx, de Nikolai Morozov, RME, p. 303 23. De Aus den Jahren meines Exils: Erinnerungen eines Socialisten, de Eduard Bernstein (Berli 1919), traduzido em EMIK, pp. 152-3 24. Tie Aus denErü^toeit des Marxismus, de Karl Kautsky (Praga, 1935), traduzido em KMIR, pp. 153-6 25. Chicago Tribune, 5 àe]ã.neito de 1&79 26. Carta de KM a Ferdinand Dómela Nieuwenhuis, 22 de Fevereiro de 1881 27. Carta de Sir Mountstuart Elphinstone Grant Duff, membro do Parlamento, à princesa real Victoria, 1 de Fevereiro de 1879; primeiro publicada em «A Meeting with Karl Marx»j Times Literary Supplement, 15 de Julho de 1949 28. Ver Karl Marx. Persönliche Erinnerungen, de Paul L,a.ia.i:gae, Die Neue Zeit, Vol. IX, p. (1890-1), traduzido em KMIR, p. 73; e também Karl Marx and the Promethean Complex, de Lewis S. Feuer, Encounter, Vol. XXXI, N.° 6 (Dezembro de 1968), p. 15 29. Carta de Charles Darwin a KM, 1 de Outubro de 1873 30. Carta de KM a FE, 19 de Dezembro de 1860 31. Carta de KM a Lassalle, 16 de Janeiro de 1861 32. Carta de KM a FE, 7 de Agosto de 1866 33. Carta de Charles Darwin a Edward Aveüng, 13 de Outubro de 1880. Esta e a outra carta de Darwdn de O umbro de 1873 podem ser encontradas no HSH, Amesterdão. Ambas têm borrões idênticos onde alguém — provavelmente o próprio Aveling — entornou tinta; como tais borrões estão ligeiramente desbotados na carta de Marx, deduz-se que estas missivas estavam juntas na sua secretária, com a carta de 1880 por cima, quando o acidente ocorreu. Para mais pormenores sobre o mito Marx-Darwin, consultar o seguinte: «Os Contactos entre Karl Marx e Charles Darwin», e Ralph Colp]t., Journal of the History of Ideas, Vol. XXXV, N.° 2 (Abril-Junho de 1974), pp. 329-38; «Quis Marx Dedicar O Capital a Charles Darwin?», de Margaret A. V'ny, Journal of the Histoty of Ideas, Vol. XXXIX, N.° 1 Qaneiro-Março de 1978), pp. 133-46; «O Caso da Carta Marx-Darwin», de Lewis S. Feuer, Encounter, Vol. LI, N.° 4 (Outubro de 1978), pp. dl-ll;

354 < j ^ KARI.MARX «Marx e Darwin: Uma História Policial Literária», de Margaret A. Fay, Monthly Review (Nova Iorque), Vol. 31, N.° 10 (Março de 1980), pp. 40-57; «O Mito da Carta Marx-Darwin», de Ralph Colp Jr, History of Political Economy (Duke University, CaroHna do Norte, Vol. 14, N.° 4 (Inverno de 1982), pp. 461-82

34. De Karl Marx, por Isaiah Berlin (Thornton Butterworth, Londres, 1939) p. 218 35. «De Brincadeira a Dogma: Uma nota de rodapé sobre Marx e Darwin», de Schlomo Avineri, Encounter, Vol. XXVIII (Março de 1967) pp. 30-32 36. Spectator, 17 de Outubro de 1998 37. «Karl Marx e o Socialismo Alemão», de John Macdonneil, Fortnightly Review, 1 de Março de 1875 38. Carta de Macmillan & Co. (Londres) ao professor Carl Schorlemmer, 25 de Maio de 1883 39. Carta de Robert Banner a KM, 6 de Dezembro de 1880 40. The Record of an Adventurous Life, de H. M. Hyndman (Macmillan, Londres, 1911) pp. 271-2 41. V&c The Proud Tower: A Portrait of the World Before the War, 1800-1914, de Barbara Tuch man (Macmillan, Londres, 1980), p. 360 42. Hyndman, p. 273 43. «As Minhas Recordações de Karl Marx», de Marian Comyn em Nineteen Century and _4r/f;r (Londres, 1922), pp. 161 ff. 44. Carta de KM Jenny Longuet, 11 de Abril de 1881 45. Ver The Victorian Encounter with Marx: A Study of Ernest Beifort Bax, de John Cowley (British Academy Press, Londres & Nova Iorque, 1992) 46. Carta de KM a Friedrich Adolphe Sorge, 15 de Dezembro de 1881 47. Carta de FE a Johann Philipp Becker, 17 de Agosto de 1880 48. Citado em EleanorMarx, Vol. I, de Yvonne Kapp (Lawrence & Wishart, Londres, 1972), pp. 215-16 49. Carta de KM a Nikolai Danielson, 19 de Fevereiro del 881 50. Carta de KM a Jenny Longuet, 29 de Abril de 1881 51. Carta de KM a Friedrich Adolphe Sorge, 20 de Junho de 1881 52. Carta de KM a FE, 9 de Agosto de 1881 53. Carta de KM a FE, 18 de Agosto de 1881 54. Carta de KM a Kari Kautsky, 1 de Outubro de 1881 55. Carta de FE a Eduard Bernstein, 30 de Novembro de 1881 56. Ver carta de KM a Jenny Longuet, 7 de Dezembro de 1881 57. Carta de KM a Laura Lafargue, 13 e 14 de Abril de 1882 58. A mulher era Virginia Bateman, mãe do romancista Compton Mackenzie. As suas reminiscências podem ser encontradas em My Efe and Times, de Compton Mackenzie (Londres, 1968), Vol. VII, p. 181

NOTAS FINAIS ^ J 355

59. Carta de KM a FE, 20 de Maio de 1882 60. Carta de Jenny Longuet a Eleanor Marx, 8 de Novembro de 1882 61. Carta de KM a Laura Lafargue, 14 de Dezembro de 1882 62. Carta de KM ao Dr. James M. Williamson, 6 de Janeiro de 1883. Ver igualmente Prometheus Bound: Karl Marx on the Isle of Wight, de Dr. A. E. Lawrence e Dr. A. N. Inso (Departamento dos Serviços Culturais do Conselho do Condado da Ilha de Wight, Newport, 1981) 63. De RME, p. 128 64. Carta de FE a August Bebel, 7 de Março de 1883 65. Carta de FE a Friedrich Adolpe Sorge, 15 de Março de 1883 66. Dailj News (Londres), 17 de Março de 1883 67. PallMall Gazette, 16 de Março de 1883 68. New York Sun, 6 de Setembro de 1^

INDICE REMISSIVO

Aberdare, Lorde, 288 Agoult, condessa Marie d', 65 Aliança Internacional da Democracia Socialista, 276, 293 Allgemeine Uteratur-Zeitung, 83 Anneke, Friedrich, 123-24 Annenkov, Pavel, 97, 98 Antigo Testamento, 10 Arnim, Bettina von, 51 Assembleia Nacional Alemã, 122-123 Assembleia Nacional Prussiana, 131,133 Associação Educativa dos Trabalhadores Alemães {ver também Liga dos Justos), 93, 109-110,115,137,138-140,150-51 Associação Internacional do Operariado, 236-250, 272, 276-283, 286-300 Associação dos Trabalhadores de Colónia, 122-23,127,149-50 Aveling, Edward B , 317, 321-22 Avineri, professor Shlomo, 276, 316 Babeuf, Gracchus, 92 Bachmann, Dr. Carl Friedrich, 37 Bakunine, Michail, 63-66, 272-277, 281, 292-296, 298-300 Bangya, coronel, 164 Bartels, Adolphe, 235-236 Barthélémy, Emmanuel, 148-149 Bauer, Bruno, 32, 35-36, 37-39, 42, 56-57, 83, 90, 104

Bauer, Edgar, 73, 82, 223-24 Bauer Heinrich, 93 Bauer, Louis, 138 Bax, Ernest Beiford, 321-22 Becker, Hermann, 125 Berlin, Isaiah, 315-16 Bernays, Karl Ludwig, 66 Hleak Mouse (Dickens), 135-37 Blind, Karl, 208-9 Bios, Wilhelm, 47 Börnstein, Heinrich, 66 Brandeburgo, conde, 129 Breve Esboço à: Uma VidaPlena (J. Marx), 156-57 Burns, Lydia, 227-28, 301 Burns, Mary, 19,78, 227-30 Capital, O (Marx), 140 censurado, 260-271 dedicação, 232, 315-18 influência dos economistas ingleses sobre, 264 influência de Engels em, 79-80, 232 influência da literatura de ficção sobre, 264-70 Karl Marx termina o volume I, 259-60 nascimento de, 149, 168-169, 199, 221-22, 225, 250-51, 256-57 opinião de Darwin sobre, 313-318 plagiado, 320-321 publicação dos volumes, II e III, 331

358

KARL MARX

Teorias do Valor Excedente, 268-69 tradução inglesa de, 318-19, 331 Carr, E.H, 142, 274 Carter, James, 250 Carver, professor Terrell, 155-56 Cartismo, 78,121,172-73 Claflin, Tennessee, 292 Clube dos Trabalhadores Alemães, 118 Comité Comunista de Correspondência, 96, 101-5 Comuna de Paris, 282-88, 292, 298, 303 Condições da Classe Operária em Inglaterra, As, 78-9, 86-7, 264 Conselho Comercial de Londres, 239-40, 244, 250 Cremer, Randal, 243-44, 245-47, 248-50 Daily Telegraph, 211-12, 216 Dana, Charles, 165 Darwin, Charles, 313-317 Demuth, Helene, 87,114, 117, 153-58,194, 323, 328, 331 Demuth, Henry Frederick, 153-158, 332 Deutsche-Brüsseler Zeitung, 110,115-16 Deutsche-Tran^ösiche Jahrbücher, 50, 54, 62, 63-66,73 Deutsche Jahrbücher, 39, 47, 49 Dickens, Charles, 135-137 Dolleschall, Laurenz, 47-48 Dronke, Ernst, 120-21, 124, 126 . , Duff, Sire Mountstuart Eiphinstone Grant, 311-13 Duncker, Franz, 203-4, 206 Eccarius Johann Georg, 240-42, 259 Engels, Frederick, acompanhando Karl Marx para a Bélgica, 86 alistamento no exército, 133 amizade com Karl Marx, 79-81 apetite carnal, 103-4, 145, 227-231 carácter, 79-81 cavaleiro, 198-99 com Julian Harney, 174-177 com Weitling, 95-6 começa a trabalhar na firma Ermen & Engels, 144-5 , , . ;

conhecimento das infidelidades de Karl Marx, 154-55 contribuição para a A Ideologia Alemã, 88-93 contribuição pzïaA Sagrada Familia, 81-2 contribuição para O Manifesto Comunista, 107-111 críticas à estrutura de O Capital, 270-71 críticas ao jornalismo de Karl Marx, 120-21 denuncia Heinzen, 43-4 desavença com Karl Marx, 229-31 discurso fúnebre no fiinerai de Karl Marx, 329 em Paris (1846), 101-5 em poder do hirsuto, 41-2 encontros com os revolucionários da classe operária, 92-5 encontrou Karl Marx morto, 328-29 escritor fantasma das fichas de Karl Marx para a New American Cyclopaedia, 196-99 escritor fantasma dos artigos de Karl Marx para o Tribune, 165-66, 191-3 expulso da Bélgica, 1848,126 fuga de Colónia, 1848,125-6 infância, 74-79 na Alemanha, 120-1, 125 na Assembleia Nacional Alemã, 122 na contribuição de Karl Marx para a Internacional, 247-48 na preferência alemã, 324 nas revoluções de 1848, 115-16 no cataclismo internacional financeiro, 1885,197-98 no Marxismo, 67 no Neue VJoeinishe Zeitung, 132-33 no proletariado inglês, 182 nos hábitos burgueses de Karl Marx, 233 ódio ao funcionalismo prussiano, 125 passeios pior França, 127-8 predição da crise no mundo de negócios, 178-81,195 primeiras impressões de Karl Marx, 40, 72-73 relacionamento com os pais, 74, 76-77, 78, 79, 85-86 reunir notas para O Capital, 331 suporte financeiro para Karl Marx, 81, 87, 128-29,137-39,144-45,162-165,195-96, 206-207, 216-17, 218-19, 229-31, 232, 257, 258, 301

NOTAS FINAIS

tentativas de criar interesse à volta de O Capital, 271 trabalhos, 72-3, 77-80, 86-7 Engels, coronel Friedrich, 131-2 Ermen & Engels, 74, 78,144-5, 230 Ewerbeck, August Hermann, 102-3 EstaHne, 10-11 Favre,Jules, 287, 290-91 Fay, Margaret, 316-7 Feuerbach, Ludwig, 23, 35, 54-5, 82, 89-90 Flocon, Ferdinand, 116 Frankenstein (M. Shelley), 70 Freiligrath, Ferdinand, 137, 179, 236, 259 Freyberger, Louise, 154-6 Filosofia da Pobrei^a, A., 100 Gans, Eduard, 30, 35 Garibaldi, Giusepp, 239 Goethe, Johann Wofgang von, 17-8, 31-2 Gottschalk, Andreas, 122-4, 132 Grande Exposição, A, 217 Granville, Lorde, 287 Grün, Karl, 99-100, 102-3, 104 Guerra Franco-Prussiana, 277-9, ,295 Guilherme I, rei, 214-5 Guilherme IV, rei Frederico, 36, 39, 48-9, 85-6, 146-7, 149 Guilherme II, Frederico, 129 Harney, JuHan, 173-7, 237-8 Healey, Denis, 20 Hecker, Friedrich, 127 Hegel, G. W. F , 27-32, 35-40, 53-4, 70-1, 88-9,110,206,213,269 Heine, Heinrich, 28, 64-65, 66-67, 76, 96 Heinzen, Karl, 43-5, 86, 138 Herwegh, George, 62, 66-7, 104, 118-9 Hess, Moses, 40, 45, 82, 86, 99,108 Hon' dojou do?, 170 Hyndman, Henry, 319-21 «Incidente Haynau», 238-9 Inglaterra para Todos, ^ (Hyndman), 320-21

359

Jane Eyre (Bronte), 52 Jones, Ernest, 169, 173, 176, 182-3 Kinkel, Gottfried, 138, 168-172 Koppen, Karl Friedrich, 42-3 Kriege, Hermann, 98-9 Kugelmann, Ludwig, 248, 257-8, 271-2, 308-9 Lö BJforme, 116, 118 Lafargue, Paul, 26, 246, 252-3, 296, 302-4, 332 Lassale, Ferdinand, 55, 183, 186, 201-6, 212, 214-6,217,221,248,275 Le Lubez, Victor, 240, 244, 246 Le Moussu, Benjamin Constant, 302 Lenine, Vladimir Iliych, 10, 332 Leopoldo I, 86 Leske, Karl, 88 Lessner Friedrich, 41, 94,109,115, 154, 245, 246 Lev)r, Joseph Moses, 212-3, 216 Liebknecht, Wilhelm, 41, 72-3, 113-4,139-40, 191,194,208,223-24,248 Liga Comunista, 104, 108-10, 118, 119-21, 122-23, 137,138-39,148-49,165,169-70, 173-4, 208-10, 233-4 Liga dos Justos, 92-4 Liga dos Marginais, 92, 102-4,108 Lissagaray, Prosper Olivier, 283, 303, 305 Longuet, Charles, 283, 296, 302, 303-304, 322 Lucas, Betty, 51 Luis FiHpe, rei, 61-2, 86, 115 Manifesto Comunista, O (Marx e Engels) celebração da burguesia de, 111-3, 210 comparações com O Capital, 265-6 comparadas com as «Exigencias do Partido Comunista», 118-20 concluindo a ameaça, 12 contribuição de Engels para, 108-10 críticas a, 113 estilo, 107-10,113-15 inconsistências em, 121-2 paralelismo com trabalhos mais antigos, 58-9 plagiado, 219-20 primeira tradução inglesa, 174-5

360%^

KARL MARX

recepção em Inglaterra, 222 sobre Grafton Terrace, 190-93 ressonância contemporânea, 114 sobre o carácter de Engels, 299 versões antigas de, 107-110 sobre o esforço da família Marx para sobreMao, presidente, 9-10 viver, 139-41 Marx, Edgar, 104, 159,190-2 torna-se secretária de Karl Marx, 160 Marx, Eleanor, 14, 24, 53, 63, 68,152-53,154, Marx, Karl, Carácter 185,187-8,191-3,203,231,281,301-8,314, 318,322,324-6,329-30 absorvido de imediato com as circunstâncias, Marx, Franziska, 157-8, 189 133-135 Marx, Heinrich (anteriormente Hirschel Marx), agente do Diabo, 9 18-9,20-5,33-4,116 alienação de si próprio, 68-70 Marx, Heinrich Guido («Fawkesp), 137,144,150 amante de charutos, 254 Marx, Henriette, 17, 19, 25,116, 212, 214, 229 apetência para duelos, 20-1, 145-6, 168, Marx, Jenny (Jennychen), 24-5, 61,191,203,214, 207-8 216, 221, 228, 230-1, 294, 300, 301, 324-6 arrogância, 237-241 Marx, Johanna Bertha JuUe Jenny (anteriormente consumismo, 61 Von Westphaler) denunciando rivais, 25-6, 42-3, 52-3, 59, atitude em relação ao casamento, 48 80-1,86-8,95-101,121-3,148-50,165-71, casa com Karl Marx, 50 209-11,213-14,309-10 casamento com Karl Marx, 22-5, 34-6 desafiando as limitações fisicas, 18-9 deprimida pela indiferença para com O desespero com dinheiro, 50-51 Capital, 269 desordenação, 31-2, 60-1, 150-1, 253-4 efeitos perante a pobreza, 203-4, 215, 218-9, distraidíssimo, 41 227-8 efeito da barba na percepção dos outros, elogios à vitalidade de Engels, 225-6 10, 38-40, 324-325 herança, 190, 229-30 excesso estíh'stico, 56-57 intimidada por Karl Marx, 49-50 falta de calma, 150 fanfarrão intelectual, 42-44, 94-96, 97,121lamentos pela perda dos netos, 251 morte de, 322 -122,136-138, 206-208, 285-86 opinião da Bélgica, 85 gregário isolado, 232-234 hábitos de bebida, 19-20,31-32,35-37,41paternidade incompetente, 61 perseguida por Willich, 145-6 -42, 44, 70-71, 84-85,150-151, 221-222 preocupada com a fidelidade de Karl Marx, hábitos de trabalho, 31-32, 51-52, 60-61, 64 107-109, 202-204, 206, 253-54 impassibilidade, 47-48, 49, 226-229 prisão, 115,124 isolado de si próprio, 231-233, 307-308 procura angariar suporte financeiro para a manuscritos ilegíveis, 78-80 família, 140-1, 143 paixão pelo xadrez, 111-2, 333 reacções à infidelidade de Karl Marx, 151-2, paixão por pseudónimos, 135-136 153-56 paternidade incompetente, 61-62 saúde, 203-4,211-3, 319-22 patriarca burguês, 70-1,158-62,190-4,229segundo plano, 22-5 -30, 231, 257-8, 288-9, 293-4, 306-10 sobre a Alemanha, 213-14 perfeccionismo obsessivo, 117-119, 202sobre a fraca recepção de Críticas de Economia -203,281-282,311 Política, 206 prática oratória, 40-41 sobre a Guerra Franco-Prussiana, 277 presença dominante, 106-108 sobre Ferdinand Lassalle, 216-17

ÍNDICE REMISSIVO ^ J propensão para a folia, 20-21, 31-32, 35-37, 40-42, 44, 70-71, 84-85, 221-222 protelação, 107-109 prudência diplomática, 45-7 qualidade para o ensino, 138 Questionário Proust, 331-332 talento como contador de histórias 15, 68-69, 193 técnica de argumentação, 138-139 Infância e Mocidade Precoce antigas ambições literárias, 26-29 doutorou-se em Filosofia, 35 infância, 14, 18-19,23-24 Local de nascimento, 13-18 Universidade de Berlim, 33-35 Universidade de Bona, 19-21, 35 Artigos, ensaios, peças jornalísticas e manuscritos, críticas e ¡

361

O Debito Brumário de Fuis Bonaparte, 15,29, 166, 210, 277 Pobreza da Filosofia, 59, 98-100 Proclamação sobre a Polónia, 232 'Revelações a Respeito do Julgamento dos Comunistas da Colónia, 168 trabalhos antigos com título, 26-27 Um Comunicado à Classe Operária, 242-244 Valor, Preço e Fuero, 260-61 Fama antiga, 37-38 na Grã-Bretanha, 219-223, 309-11, 316-320 torna-se infame, 284-290, 293-294 Família afecto por Edgar Marx, 157-158,188-189 afecto pelas filhas, 23-25, 187-188, 191-193, 214-15, 303-304, 317-18, 320, 322-23, 325-26 afecto pelos netos, 307-8, 324-25

«A Última Trompeta do Juízo Final contra anfitrião de u m baile para as filhas, 230-31 o Ateu Anticristo Hegel», 35 desconfiança dos genros, 244-45, 249-251, «Circular contra Kriege», 96-98 300-303 «Exigências do Partido Comunista», 117-118 desmazelo com os pais, 31-32, 34-35, «O Cavaleiro da Nobre Consciência», 168 228-29 «Para uma Crítica da Filosofia do Direito, de filho ilegítimo, 151-155 Hegel: Uma Introdução», 55-57 influência paterna, 13-15 «Sobre a Questão Judaica», 53-54, 61 mãe segura o património, 35-36 «A Diferença entre as Filosofias Demoopinião da sua mãe, 17-18 crática e Epicurista», 33-35 reacção à morte de Franziska Marx, 156 A História da Vida de LMrde Palmerston, 185 reacção à morte de Heinrich Georg Marx, A História Diplomática Secreta do Século XV7II, 190-191 185 reacção à morte de Henrich Guido Marx, A Ideologia Alemã, 86-91, 99 148 A Sagrada Família, 79-81, 255 As Fictícias Divisões na Internacional, 293 Finanças Crítica Económica e PoKtica, 86-87 Grandes Homens do Exílio, 136,149-150,166, ã beira da pobreza, 140-142 doar dinheiro aos trabalhadores alemães 167-169 para armas, 114-115 Grundrisse der Kritik derPolitischen Oekonomie, efeitos da pobreza no trabalho, 203-204 197-198 especulações na Bolsa de Valores, 231 Guerra Civil em França, A, 281-288 esperança na caridade de Engells, 79-80, Herr Vogt, W),2\Çi-2\\ 84-85,126-7,135-36,142,157-158,159Manuscritos de Paris. 65-71, 197-198 -164,193-94,214,216-17,226-231,254Manuscritos filosóficos, yéírManuscritos de -55, 256-57, 299 Paris

3621^

KARL MARX

extravagâncias, 135-136,158-162,190-193, 229-30 fortunas aproveitadas, 190-192, 230-232 fugas aos credores, 189-191, 214-15 herança,35-36,114-115,118-119,212-13, 228-231 honorários do jornalismo, 158 mãe cancela dívidas, 214-15 na casa de penhores, 161-162 objecto de procedimento de dívidas, 34-35 património, 329 pedido de empréstimo ao padeiro, 208-209 recebe uma herança de Wilhelm Wolff, 229-230 sorte com o rendimento regular, 61,101-102 tentativa para arranjar um emprego lucrativo, 162-63, 219-20 tentativa para conseguir empréstimos, 220 Saúde adolescente, 19-20 colapso nervoso, 29-30 deterioração grave, 321-328 efeito de escrever O Capital, perto de, 256-257 furúnculos insuportáveis, 68,150, 228-29, 230, 246-247, 249-50, 253-55, 270 influência psicossomática, 28-30,201-202, 203-04,210-12,268-70,280-81,304-305 visita a centros clínicos, 304-307 Influências Bakunine, Tll-TlS Cartismo, 127-128, 170-176, 178-179 Darwin, 311-313 Engels, 70-72, 79-81 Feuerbach, 52-53, 86-87 Harney, 173 Hegel, 25-32, 33-38, 204-205, 211, 232-233, 267 Heine, 62-63 : Lasalle, 199-201,212-214 Owen, 170 Proudhon, 98-102 Ricardo, 223, 262 Shakespeare, 23-25

Smith (Adam), 223, 262 Swift, 263, 266-67 tradição de Trier, 14-16 Trémaux, 311-313 Tristram Shandy, 29, 265-266 Urquhart, 181-185 Von Westphalen (barão), 22-24 Welding, 92-97 Obras literárias Escorpião e Félix, 29 Oulanem, 9-10, 29-30 poesia juvenil, 26-29 ]/ida amorosa apaixonado, 21-22 casamento, 51 compromisso, 22-25, 34-35, 47-49 pai de filho ilegítimo, 151-156 Movimentos 9 Grafton Terrace, 190-229 28 Dean Street, 147-190 44 Maidand Park Road, 307-328 64 Dean Street, 135-147 aplicados aos cidadãos ingleses, 305-306 Bélgica (1845), 83-114 Bona (1841), 35 chegada à Grã-Bretanha, 132-136 cidadania prussiana, 117-119, 212-214 Colónia (1842), 35-40, 41-48 Colónia (1848-49) «o ano louco», 118-132 expulso da Bélgica, 114 expulso de Paris, 84 Modena ViUas, 229-307 Paris (1843-45), 59-85 Paris (1848), 114-118 Paris (1849), 131-132 passeio pela Europa (1882), 322-325 saída da Alemanha (1848), 59-60 visita a Alemanha (1862), 212-215 visita a Alemanha (1867), 254-258 Molestamente policial briga com os censores, 45-48

ÍNDICE REMISSIVO ^ > molestado pelas autoridades prussianas, 122-124,125,128-132 preso, 114 sob espionagem, 144-46,150-151,157,289-90, 292 envolvimentos políticos Associação Educativa dos Trabalhadores Alemães, 107-08,113,135,136-138,148-149 Associação Internacional do Operariado, 237-248, 270, 273-281, 284-298, 300 Clube dos Doutores, 29-30, 34, 36, 37-38, 39-40 Liga Comunista, 102, 106-108, 115-16, 117-119,120-121, 135,136-37, 146-47, 163,167-68,171-73, 206-07, 232 Liga Reformadora, 246-48 Pensamentos e ideias advogados anulam herança, 116-117 à espera da revolução inglesa, XIA-Xl') anti-semitismo, 53-55, 209-211, 213-215, 292-293 atitude ambivalente para com a Grã-Bretanha, 174-180 atitude para com o proletariado inglês, 179-181 aversão aos socialistas franceses, 300-304 bem-vinda III República, 278-279 carência antiga da visão de uma grande arquitectura, 68-70 críticas à burguesia alemã, 126-127 críticas ao Governo belga, 124-125 descobertas comunistas, 44-45 desdém pela vida do campo, 89 esboço sobre as desvantagens de um estado capitalista, 116-117 estudando o capitalismo, 10-11 experiência no comunismo patriarcal, 60 fantasias acerca do resultado da Guerra Franco-Prussiana, 276-278 fascinação com a lenda de Prometeu, 49-50, 68-69 homossexualidade de Hegel, 51-53 materiaüsmo histórico, 88-90,98-101,232-33

363

mencionar Paris como centro da revolução europeia, 59 movimento do idealismo para o materialismo, 36-38 opinião da Gra-Bretanha, 219-223 opinião do carácter de um poeta, 25 opiniões do comunismo libertino, 63-64, 70 pensamento antigo de esforço do trabalho, 56-57 questões da inacessibilidade inglesa para a revolução, 127-128 recusa perceptiva de que a Revolução Francesa de 1848 será um malogro, 139-140 sobre a natureza da burguesia, 108-111 sobre a natureza da revolução, 64-65 sobre a tirania da religião, 54-57 sobre capital, 65-67 sobre comodidade, 260-263 sobre destino, 30-31, 36-37 sobre interesses militares, 278-279, 310 sobre o proletariado europeu, 65 sobre produtividade, 259-260 sobre propriedade, 67-68 sobre trabalho^ 67-69 vaga humanista, 69-70 Marx, Laura, 24, 154, 191, 227-229, 244-245, 249-251,254,281,300,330 Marx, Louise, 14 Marx, Sophie, 23 Marx-Engels Institute (Moscovo), 197 Mazzini, Giuseppe, 240-241, 285-286 Mein Pro:(ess gagen die Algemeine Zeitung (Vogt), 209-210 Metternich, principe Klemens Wenzel Nepomuk Lothar, 63-64, 113 Meyen, Eduard, 44 Mill,John Stuart, 276 Modern Thought, 321-322 Moll, Joseph, 91,102 Moore, Samuel, 113, 152 Napoleão III, 237, 275-276 National Zeitung, 208-209 Nechayev, Sergei, 290-291, 296-298

364 ^ > B

KARL MARX

Neue Oder-Zeitung, 158,175, 178 Sand, George, 275 Neue Rheinische Zeitung, 117-131, 148,166, 172, Schapper, Karl, 93, 104, 118, 119, 125, 169 272 Schramm, Conrad, 141, 148-9, 176 Neue Rheinische ZeitungPolitisch-ökonomische Revue,Schramm, Rudolph, 150-2 Schurz, Carl, 123-4 139-140 Schwarzschild, Leopold, 10-11 New York Daily Tribune, 163-16A, 178,183-84, 202-3,212,215,220 Semprun, Jorge, 16 New Yorker, 10 SheUey, Mary, 70 Nicolau I, czar, 47-48 Smith, Adam, 67, 69-70, 225, 264 Northern Star, 137, 170-172 Sorge, Friedrich Adolph, 280, 321 Novos hegelianos, 28, 29-30, 33, 37-38, 43Southcott, Joanna, 11 -47,70-71,75,86-87,87-88 Spectator, The, 145-6 Stahl, Julius, 35 Stern, Laurence, 267-8 Obolensky, princesa, 276 Stieber, Wilhelm, 146 Observer, 289 Stirner, Max, 90-2 O'Connor, Feargus, 173 Sue, Eugène, 83 Odger, George, 239-40, 249-50, 286 Sung, Kim 11,10 Swift, Jonathan, 265-6 Pali Mall Gazette, 279, 289, 290-1 Palmerston, Lorde, 147, 174, 184-7, 238 Partido Social Democrata Alemão, 20,139, 323 Thiers, Adolphe, 281-5 Partido Trabalhista Britânico, 12, 20 Tiwj.Tk, 281,288,296 Payne, Robert, 11,240,288 Tolain, Henri-Louis, 246-7, 250-1 People's Paper, 177-8 Trémaux, Pierre, 314-15 Perron, Charles, 277 Trista Shandy (Sterne), 31, 267 Pfander, Karl, 139, 154, 245-6 Turkey and Its Resources (Urquhart), 183-4 Philips Lion, 144-5, 214, 216, 220, 231, 233 Pieper, Wilhelm, 26, 160-63, 167, 176, 190 Uma Contribuição para a Crítica da Popper, Karl, 260 Economia PoKüca, 200-8, 225, 235-6 Prawer, professor S.S, 26 União Soviética, 10-12 Prometeu Ubertado (Shelly), 51-2, 70 Universidade de Jena, 36-7 Proudhon, Pierre Joseph, 61, 72, 99-103, 104, Urquhart, David, 183-7 242,246 Vehse, Karl Eduard, 170 Viagens de Gulliver, As, 265 Quarterly Review, 239, 289 Vida e o Ensinamento de KarlMarK, A (Lewis), Que é a propriedade. Oí", 11 187 Vogt, Karl, 151,208-211 Red Republican, 114, 174, 238 Rheinishe Zeitung, 38-40, 41, 42, 44-50, 54, 73, von Bornstedt, Adalbert, 118-9 von Brüningk, barão, 170 206, 236 von Brüningk, baronesa, 168,170-71 Ricardo, David, 67, 69, 225, 264 von Hatzfeldt, condessa, 212, 214-6, 220 Ruge, Arnold, 32, 39, 47, 49-50, 53-54, 57, von MüUer-Tellering, Eduard, 150-1 62-67,152 von Savigny, Friedrich Karl, 30-1 Rutenberg, Adolf, 39, 45-6, 48 ' von Schaper, Oberpräsident, 48 Ryazanov, David, 67 von SchelHng, F W, 36-7, 54

INDICE REMISSIVO

von Schweitzer, Johann Baptist, 248 von Struve, Gustav, 138, 152 von Westphalen, barão Ludwig, 24-6, 37, 49 von Westphalen, baronesa Caroline Heubel, 25,52,63,87,192,231 von Westphalen, Edgar, 25, 86, 251 von Westphalen, Ferdinand, 25, 146,170 von Westphalen, Heinrich Georg, 192 Vorwärts!, 65-6, 85-6, 103 Wagner, Richard, 273, 275 Was Karl Marx a Satanist? (Era Karl Marx um adepto de Satã?) (Wumbrand), 11 Weber,J.M,210 Weitung, Wilhelm, 93-9, 105, 240 Weydemeyer, Joseph, 86-7, 95-6, 138,142, 157-8, 167-8 WilHch, August, 133-4,148-9,169-171 Wilson, Edmund, 268, 269-70 Wilson, Harold, 260 Wolff, Wilhelm, 104,119-20, 231-2, 316 WoodhuU, Victoria, 292, 297 World, 290^1 Wurmbrand, reverendo Richard, 11-2 Wyttenbach, Hugo, 20-21

4^5^-365

INDICE

1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12.

Introdução O Marginal O Pequeno Javali Selvagem O Rei Corrupto O Rato no Sótão O Papão Aterrador O Megalossauro Os Lobos Famintos O Herói a Cavalo Os Buldogues e a Hiena O Cão Peludo O Elefante Velhaco O Ouriço Tosquiado P.S. 1: Consequências P.S. 2: Confissões P.S. 3: Regicídio Agradecimentos Notas Finais índice Remissivo

9 15 35 61 85 105 133 157 187 225 253 271 299 329 331 333 335 337 357

rancis wheen e um jornalista e escritor e reconhecido talento.Trabalhou como freelancer em jornais e revistas, entre os quais The Statesmanjhe Independente The Guardian. Foi ainda como locutor na BBC. Na sua obra constam títulos como a famosa biografia de Tom Driberg, que esteve nomeada para o prémio Whitbread. KarlMarxM considerado pela crítica especializada o melhor livro do ano de 1999.

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ARMINDO MONTEIRO .

Uma biografia política Pedro Aires Oliveira

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D. AFONSO HENRIQUES, Biografia Diogo Freitas do Amaral

Destino maldito de um rei sacrificado Jean Pailler

NORTON DE MATOS, Biografia. Fronteiras do Tempo José Norton

KARL MARX, Biografia Francis Wheen

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