Donaldo Schuller - Mito, Ontem E Hoje

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O que é realidade? Como havemos de atingi-la? Estas são questões que freqüentamos hoje com assiduidade maior do que ontem. Por mais rigorosa que seja a observação hoje, ela se encolhe provisória e lacunosa. Para ver as coisas como elas realmente são, teríamos que nos colocar no lugar em que elas estão, e o faríamos com o sacrifício do nosso lugar. Desde o momento em que nos separamos da natureza para a aventura da llumanação, sentimo-nos exilados e feridos. Percebemonos cercados por muralhas de signos que proliferam, envelhecem e se renovam. Fracassam as tentativas de ganhar os espaços que se alargam além das muralhas. Nosso destino é viver cercados de signos. Eis aí nossa força e nossa danação. Cientes dos limites, a evasão já não nos seduz. Habituamo-nos às pedras que nos cercam. Sabemos que, desprotegidos de signos, perderíamos a condição humana O silêncio da natureza, nós o recu-

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL Reitor Tuiskon Dick Pró-Reitor de Extensão Waldomiro Carlos Manfrói Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Abílio Afonso Baeta Neves Pró-Reitor de Administração José Serafim Gomes Franco Pró-Reitor de Planejamento Edemundo da Rocha Vieira Pró-Reitor de Assistência

à Comunidade Universitária Fernando Irajá Félix de Carvalho Pró-Reitor de Graduação Darcy Dillenburg EDITORA DA UNIVERSIDADE

Diretor Sergius Gonzaga CONSELHO EDITORIAL

Celi Regina Jardim Pinto Fernando Zawislak Günter Weimer Ivo Sefton Azevedo Joaquim B. da Fonseca Luis Alberto De Boni Mário Costa Barberena Sergio Roberto Silva Sergius Gonzap Luiz Duarte V1anna, presidente EDITORA DA UNIVERSIDADE

Av. João Pessoa, 415 Fone (0512) 24-8821 90040 -Porto Alegre, RS

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Editora filiada à ABEU - Associação Brasileira das Editoras Universitárias, e participante do PfDL - Programa Interuniversitário para Distribuição do Livro.

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Direitos reservados desta edição: Univenidade Federal do Rio Grande do Sul 1: edição: 1990 Capa: Paulo Antonio da Silveira Editoração: Geraldo F. Huff Revisão: Marli de Jesus Rodrigues dos Santos, Anajara Carbonell Closs, Mônica Ballejo Canto, Letícia Bispo de Lima Montagem: Rubens Renato Abreu e Jos6 Pereira Brito Filho Leitura de originais: Dêa Portanova Barros Divulgação: Jurandir Soares Administração: Antonio A. Dallazen

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Mito ontem e hoje I organizado por Donald Schüler e Miriam Barcellos Goettems. - Porto Alegre : Ed. da Universidade/ UFRGS, 1990. Os trabalhos que integram o livro Mito ontem e boje foram apresentados no Seminário Internacional Atualidade do Mito realizado em Porto Alegre, 1987. 1. Mito - Sociologia - Artes - Bruil. 2. Mito - Sociologia - Literatura brasileira. 3. Mito - Sociologia - Cultura. I. Schüler, Donald. II. Goettems, Míriam Barcellos. III. Tftulo. CDU 316.642.1:7(81) 316.642.1:869.0(81) 316.642.1:008

Catalogação na publicação (CIP): Zaida Maria Moraes Preussler- CRB-10/203

ISBN 85-7025-187-4

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO Dooaldo Schüler e Míriam Barcellos Goettems ..................................

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MITO E LITERATURA Mito e linguagem na antiga poética grega José Cavalcante de Souza •••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••.••••• 1O Raízes míticas do helenismo: o pensamento mítico na literatura grega Guida Nedda Barata Parreiras Horta................................................. 17 O mito em Virgílio

Zelia de Almeida Cardoso............................................................... 22 Tradição e revelação: para que serve o mito? J acyntho Lins Bra.ndão •••••••••••••••••••••••••••.••••••••••••••••••••••••••••••••••.•••• Problemas do mito no Ocidente Medieval Jean-claude Schmitt ••.•••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••.• O mito literário de Don Juan lrlemar Chiampi e Antonio Gómez Moriana ...................................... O modernismo lê a mitologia: Ezra Pound e Os cantos James F. Knaoo ••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••..•••••.•••••••••. Mito, judaísmo, literatura Moacyr Scliar ••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••.•••••.•.•••••••.••••••.•••••.•••••. Nosso mítico messianismo: apelo ou apelação? José Santiago N aud •••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••• Reflexões sobre a atualidade do mito na literatura popular do Nordeste Fra.ncisco C6sar Leal •••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••• MITO E TEATRO Mito e tragédia - a tensão subjacente Filomena Yoshie Hirata Garcia •••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••• A comédia greco-latina - de Aristófanes e Menandro a Plauto e Terêncio Carlinda Fragale Pate Nuõez ••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••• O ritual no teatro shakespeariano Marlene Soares dos Santos •••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••• O mito no teatro alemão contemporâneo: Filoctetes, de Heiner Müller Wille Bolle •••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••• Aspectos do mito no teatro brasileiro Luiz Paulo Vasconcellos •••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••

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MITO E MÚSICA O mito de Orfeu na música Bruno Kie :fer ••••••••••• •••••••••• •• •• •••• ••• ••• •• ••••• ••• •••••••••••• ••••• •••• ••••• •• •••• •• ••• 150 Mito como silêncio e som: premissa de uma estética musical que tende a superar o dualismo Hans-J oachim Kflell:reutter •••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••• 160

Mito e mósica no Alto-Xingu: o ritual do Yawari Rafael José de Menezes Bastos ......................................................... 165 MITO E OUTRAS ARTES Mito e artes plásticas Armindo Trevisan •••••••••••••••••••••••••••••••••••••.•••••••••••••••••••••••••.•••••••••• 170

A dança, um meio de expressão do mito Miriam Clareia Mendes ••..•....•..•.•.•...•..•...•...........••••............•.•.••••..... 175 Cinema - uma mitologia induzida Salim Miguel .....................•.................................................•......... 183 MITO E FILOSOFIA Mito e filosofia grega· Emmanuel Carneiro Leão ............................................................•... 196 Mito e racionalidade filosófica Augusto Novaski ........................................................................... 201 MITO E HISTÓRIA Mitologia e história Carlos R. V. Cime Lima .................................................................. 208 Mito e historiografia clássica: a natrativa e a construção do acontecimento, o trabalho dos conceitos e o jogo das representações (leituras tucidideanas) Francisco Mura.ri Pires •••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••• 217 A mitologia como fator de penetração e povoamento na América do Sul Luise Bundy ...........................................................•...................... 225 O discurso da crise - uma presença constante na História gaúcha Celi Regina J. Pinto ........................................................................ 258 MITO E ANTROPOLOGIA México: mitos indígenas y mitos nacionales Blanca Rodriguez ........................................................................... 268 Mitos de brasilidade na umbanda Maria Helena Villas Boas Concone .................................................. 280 Mito hoje no Nordeste José Maria Tavares de Andra.de ....................................................... 292 MITO E PSICANÁLISE O mito em Sigmund Freud: uma abordagem filosófica à mitificação José Nicolau Heck ..............................................•........................... 300 Mitologia e psicanálise Luiz Viegas de Carvalho ................................................................. 324 Mito y neurosis Juan Carlos Montero ...................................................................... 333 Édipo e psicanálise Cyro Martins .............., ................................................................... 340 Entre mito, música e psicanálise Sergio Domeles Messias ................................................................. 348

APRESENTAÇÃO O leitor tem em mãos os trabalhos apresentados no Seminário Internacional "Atualidade do Mito", realizl!do no penodo de 1.• a 5 de junho de 1987, em Porto Alegre, pela Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, através de sua Secretaria Regional Sul-I, e pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, através da Pró-Reitoria de Extensão e do Instituto de Letras. Foram objetivos do seminário proceder a uma análise diacrônica do mito, desde a Antiguidade Clássica até os nossos dias, examinando sua irradiação nas mais diversas áreas de estudo - literatura, teatro, música, artes plásticas, dança, cinema, filosofia, história, antropologia e psicanálise -,bem como ativar a discussão sobre a presença do mito na cultura brasileira e no contexto da América Latina. Para que se pudesse alcançar esses objetivos, foram convidados mais de trinta especialistas de renome do Brasil e do exterior, que apresentaram as contribuições reunidas neste volume e as discutiram com os demais participantes do evento, cujo número expressivo foi um dos índices do sucesso obtido. O seminário, cuja comissão organizadora foi constituída pelos professores Donaldo Schüler (presidente), Míriam Barcellos Goettems (coordenadora executiva), Myma Mariza Bier Appel e Vânia Lúcia Santos de Barros Falcão, recebeu o apoio do CNPq, da CAPES, do Conselho Britânico, da Fundação Calouste-Gulbenkian e das Pró-Reitorias de Graduação (através da COPERSO) e da Pesquisa e P6s-Graduação da UFRGS. Pela abrangência e pela representatividade dos autores, este livro apresenta um elenco de abordagens que interessa a quantos se dedicam ao estudo das questões ligadas ao mito. DONALDO SCHÜLER MÍRIAM BARCELLOS GOETTEMS

DJn&DJI&III O&IMI

MITO E LIN:;UAGEM NA ANTIGA POÉTICA GREGA JOSÉ CAVALCANTE DE SOUZA*

Num congresso de estudos clúsicos sobre a atualidade do mito, cabe ao helenista a oportunidade de infletir a noção do atual na direção do atuante. O que não se fará sem uma correspondente passagem, no mito tematizado, de um estado pummente obj~tivo e passivo para uma condição ativa. O que, por sua vez, não implicará em prejuízo de um tratamento conveniente do mito, quanto às exigências de objetividade, mas talvez em justamente melhor atender a essas exigências. Foi pensando nessa oportunidade que cheguei à fórmula do título, cujo enunciado temático pretende introduzir metodicamente ao que há de específico no mito, quando se tenta objetivamente apresentá-lo. No enunciado, a própria palavra mito, seguida da palavm linguagem, fonna com esta um conjunto, e este se relaciona com a poética grega como dois objetos num recipiente. A imagem pode parecer grosseim, levando-se em conta a natureza dos objetos em conjunto. Mas ela se impõe por uma analogia que imediatamente dizemos ser com outros objetos, mas que, de fato, é produzida pelo esquema si.ntático da fórmula, esquema capaz de comportar os mais diversos tennos, muitos dos quais parecem impor de si mesmos uma relação mais nuanceada. Mas esta aparência de uma diversidade de relações apenas encobre o esquema sintático como instância insuspeitada, que abriga e condiciona relações e procedimentos allltmtivos. E essa instância insuspeitada é parte do próprio mecanismo da linguagem, pelo qual se regula a fórmula em que, ao lado do mito, a linguagem é posta como objeto no recipiente da antiga poética grega. Ao mesmo tempo em que faz aparecer o objeto linguagem, o esquema sintático fica inaparente enquan· to linguagem não-objeto, pois que instância objetivante. Precedendo no conjunto o tenno linguagem, cuja duplicidade anima o que parecia inerte no objeto designado, a palavm mito, por sua vez, sob a diversidade das. interpretações que o enfocam, designa, em última análise, uma interessante criação do espírito humano, modelada no material da linguagem, material cuja diferença constitui cada língua particular. Enquanto assim modelada, essa criação manifesta-se como fonna espec!ílCa, não como um processo, e assim é o manifesto que se designa com o nome "mito", aplicável a todas as formas específicas. Om, este nome de uma aplicação universal é extraído de um determinado material de linguagem, o que, aliú, se dá com muitos outros, e aparentemente sem maiores conseqüências. Mas isso é uma questão de perspectiva. E na que se pode abrir nesse caso do mito em conjunto com a linguagem, • José Cavalc:antede Souza. Professor de Língua e Literatura Grega na USP (aposentado) e professor de Filosofia Antiga na USP c na UNICAMP. Doutor em Letras Clúsicas pela USP. Ensatsta.

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importa considerá-lo reincorporado em sua própria língua. Os antigos textos poéticos gregos permitem supor que a palavra "mito" tinha uma cilculação anterior e paralela à que servia para a estrita designação de um produto que, no antigo mundo grego, é para nós análogo ao de outros povos e de outras épacas. Nessa circulação anterior e paralela, o mythos designava simplesmente -a fala, no sentido Imediatamente abrangente do· que talll e do que se fala. Entenda-se: o que nessa abrangência estamos discriminando do que se fala, não é a pessoa, mas a própria fala em seu aspecto ativo, a fala falante. E se é legítimo supor resíduos semânticos em termos antigos circulando em novos contextos, minha fórmula estaria afetada de uma fermentação tautológica, que esfuma a nitidez da diferença entre mito e linguagem e altem a relação do conjunto com a poética grega. Em vez de uma relação inerte de inclusão, ela pretende articular um movimento único em que mito e linguagem se contaminam como expressão modema do que unitariamente se desdobm e resulta em antiga poética grega. Que isto s6 agora lenha sido dito, após um longo circuito, coaesponde, em tUtima análise, a uma razão de economia. O llhto grego é particularmente mediatizado por uma antiqiüssima tmdição literária, enriquecida neste século por contribuições valiosas de diversas ciências humanas. Tamanha acumulação em geral pesa desfavomvelmente sobre o estrito legado de antigos textos gregos, onde queremos ver o mito em seu habitat nativo. Ele está residualmente depositado em algumas obms escritas com a expressa finalidade de registmr uma infinidade de histórias disseminadas pelas cidades e templos gregos, mas sobretudo ele está perfilado paradigmaticamente nas versões poéticas. E símbolo dessa condição paradigmática é o mito das Musas, o qual justamente fundamenta o exercício da épica grega e, por extensão, o da lírica e dramática. O que há de efetivo nessa fundamentação corresponde ão que foi explicitado no final do último parágrafo como o sentido enfim descoberto da minha fórmula: sob mito e linguagem um movimento do que unitariamente se desdobm e resulta em poética; ao contrário do meu longo proémio, a esse sentido o mito das Musas dá imediato acesso, ou antes, ele é propriamente a sua manifestação. Basicamente essa manifestação consiste em que elas são filhas do soberano olímpico Zeus, que as teve de Mnemosyne em uma de suas hierogamias constitutivas do mundo. E ainda, em que elas são jovens que em coro dançam e cantam a glória do pai e, por extensão, a de deuses e homens. Os textos épicos começam todos no âmbito dessa manifestação, e com variações de procedimento que uma visão estritamente literária minimiza como formas de invocação às Musas, entendida esta como um artificio poético alusivo à idéia de inspiração. No final de um longo prelúdio de 115 versos, Hesfodo, na Teogonia, pede às Musas um amável canto, mas esse pedido se intercala entre uma saudação que as exorta à alegria e um convite a que elas mesmas celebrem a santa raça de imortais que sempre são, numa cadeia homogênea de formas imperativas: alegrai-vos, dai amável canto, celebrai santa raça... O extenso prelúdio se estrutura numa complexa exposição do aprendizado do poeta com as Musas, as quais, desde os primeiros versos, se apresentam de um modo cosmogônico, apenas sentido em 11

termos de força poética. No canto delas enquanto noturnas caminham vindas do monte Hélicon, onde em coro dançaram em tomo do mais alto pico, desfilam os nomes divinos num movimento cuja circularidade é marcada pelo primeiro e óltimo deles, o luminoso Zeus e Noite negra. Concomitante ao caminhar notumo das cantoras, o seu cantar se objetiva em um ciclo de nomes divinos como epifania do mundo. Nos Trabalhos e dias, o mesmo poeta faz um prelódio bem mais breve, de apenas c1ez versos, que apresentam o mesmo efeito epifânico dos que iniciam a Teogonia, mas aqui restrito ao nome ónico de Zeus. Os dois primeiros interpelam: Musas de Pi6ria. que pelo canto glorüicais, aqui Zeus ponde em voz, vosso pai louvando em hinos.

A precisão do apelo, incidindo sobre o "aqui" (deute), que no original alitera com a fonna flexionada de Zeus (Dia), detennina a seqüc?ocia de mais se-is versos, introduzida pelo relativo "o qual", referido ao Zeus-Dia do segundo, mas regido pela preposição "através de", que no grego (diá) é homófona do referente. A homofonia e a sintaxe do relativo operam uma hábil passagem do estado objetivo de Zeus no segundo verso para uma condição ativa, que, no terceiro e quarto, embora efetiva, ainda não é explícita: Pelo cpal mortais homens juntamente com fama e sem fama, com lustre e sem lustre como ao grande Zeus apraz.

Desse conjunto meio infonne pela presença exclusiva de frases nominais (a minha fórmula "como ao grande Zeus apraz" recob~ o que literalmente seria "por do grande Zeus vontade") facilmente emerge a condição ativa de Zeus no efeito que ela produz, a saber, as vicissitudes do homem, até que, enfim, como o que só então se completa, explicitamente é nomeado o sujeito dessa condição ativa, o agente Zeus: Pois flcil di vigor, f4cü o em vigor dobra, f4cü o ilustre humilha e o humilde ilustra. f4cil corrige o torto e ao soberbo exaure Zeus altitroante, que a mais alta casa tem.

Advindo ao aqui do apelo inicial às Musas como objeto do seu canto, através dos versos que retomam esse objeto como ação entre os homens, Zeus é agora, sem descontinuidade, o destinatário desse apelo, no final do prelúdio: Atende, que viste e ouviste; em justiça corrige sentenças tu mesmo; e eu a Perses umas verdades posso dizer.

Pois mais uma vez é preciso insistir na precisa articulação do apelo. Aqui ela tem o seu ponto forte na seqüência nodal "tu mesmo; e eu", que amarra a possibilidade de o poeta dizer algumas verdades ao que "tu mesmo" é instado a fazer: com justiça conige sentenças. Mas essa instância é apenas a expansão discursiva da anterior, um belo fragmento da fala épica arcaica, realmente intraduzível. O que nesse fragmento está traduzido 12

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por "atende" é a chave da dificuldade. Trata-se de kluthi, imperativo de kljo (= ouvir), um verbo exclusivo da linguagem poética e ao qual coaesponde o tema nominal kléos ( = glória), do mesmo modo como se correspondem légo-lógos (= dizer-discurso). Pela correspondência, glória é imediatamente a fixação nominal do ouvir em sua completude, que inclui o que se ouve. E é desse ser imediatamente que iiradia sobre o fragmento aJCaico o sentido de kluthi, ao mesmo tempo "ouve" e "sê glorioso". A hradiação se refrata na dificuldade de combinar o sentido 6nico de "ouve" com os dois particípios que o complementam, "tendo visto e ouvido". A solução tradicional consiste em infletir o sentido de "ouve" para o de "atende", mas com um resultado precário. O conjunto ganha coerência mas pennanece opaco, escondendo uma eficácia que explicitamente de início se anuncia na antiga épica grega. Segundo este princípio, o "ouve" dirigido a Zeus nesse contexto compleU'enta-se com dois particípios que, por serem tais, ao mesmo tempo o qualificam e nominalizam o seu ouvir, isto é, a sua glória. O que Zeus é instado a ouvir é imediatamente "que viste e ouviste", isto posto em forma nominal, que opera a qualificação, e sem que o tempo verbal indique um vago passado mas a pontualidade instantânea da fixação nominal do ouvir. E desse modo, inscrita na fónnula do apelo, a glória de Zeus sem descontinuidade se detalha na estrutura temática dos Trabalhos e dias, como manifestação de sua justiça. Se de Hesíouo remontamos aos extensos poemas homéricos, veremos que os seus dois prel6dios apresentam um esquema bem mais simples que o dos Trabalhos e dias e, por isso mesmo, para nós menos explícito em sua funcionalidade. Em ambos, o objeto do canto - na l/fada, a cólera de Aquiles e na Odisséia, o homem errante - se desdobra nos versos seguintes em sujeito de ações que esboçam o seu perfil heróico, mas, no final do prel6dio, a Odisséia, com variantes, repete a mesma fórmula invocativa do primeiro verso, enquanto a lltada simplesmente tennina o esboço com o nome de Aquiles defrontado com o rei Agamêmnon. A repetição da Odisséia deve alertar-nos para o relevo da fónnula invocativa, que tem a precisão de um ato ritual. Na Odisséia, 1." verso: "O homem põe-me em voz, ó Musa, multímodo, o qual muitíssimo/ foi errante"; 10." verso: "Donde queiras, ó deusa fllha de Zeus, diz também para nós". E na I/fada, sem repetição: "A cólera decanta, 6 deusa, do Peleída· Aquiles". Nossa leitura desses versos evidentemente não os toma em sua literalidade, e é uma pena que não o faça, presa à evidência de uma imagem aliás momentânea. Pois a literalidade desmonta essa imagem e a reduz a um gesto, de quem faz um convite que implica a presença de um convidado. Mas o nome do convidado novamente reintroduz a imagem, pois Musa ou deusa, evidentemente, são nomes de um convidado fictício. Entretanto, assim reintroduzida, a imagem está subordinada ao gesto de quem faz o convite diante de uma assistência. E esta vê o gesto e ouve o convite, do qual o leitor lê variantes nos quatro grandes textos da épica grega. Para a assistência que ouvia o que se lê nessas variantes, o convidado tinha o nome feminino, ou de uma divindade, cuja flliação mítica, inscrita diretamente no tecido da fala interpelante, acabava de se 13

produzir ali mesmo, com uma evidência de que a imagem em nossa leitura é um pobre resíduo. Os assistentes sabiam: no flagrante da produção não cabia o nome da mãe, que, nomeada, desaparece, pois Mnemosyne é Memória. Cabia o nome do pai, a1.1e, pelo da mãe, se explicava COIJIO essência diurna de Zeus. Nomeada filha de Zeus, a lYlusa tmha os traços do pai e da mãe, o patente e o latente. Esses traços configuravam a unidade do ouvir da assistência e do declamar do rapsodo. Da parte deste um gesto inicial, de convite, que se via como um movimento de membros - dos braços, dos olhos, da boca e da garganta -, o qual resultava em iJIUpção da voz. Esta se articulava ritmicamente, segundo um esquema fixo denominado marcha (stikhos = verso) e composto de unidades menores chamadas pés. Tais designações supõem a percepção de uma analogia com o que faz o nosso corpo, ou antes com o que fazem os nossos membros, como diziam os gregos homéricos de um corpo vivo, que anda, dança e canta. Da parte da assistência, o seu ouvir o puro som e o puro ritmo da voz era um estado latente, suporte do que imediatamente se lhe patenteava com uma presença plena aesae a filiação mítica da Musa: a glória de deuses e homens, isto é, o ouvir (cf. klyein - kléos) o que, no estofo latente de som e ritmo, se articulava em nomes uuminados por aquela filiação. os antigos gregos tinham a palavra adequada para designar esse plexo em que o mito das Musas e o ato poético originariamente se enlaçavam no circuito declamar-ouvir. Essa palavra é alétheia, que, a partir do nosso adjetivo "latente", podemos transcrever com uma formação Iatma, "ilatência".* que supõe e nega a "latência" do latente como alétheia supõe e nega léthe = estado de esquecimento. A analogia da composição semântica permite ver em "ilatêncía" o nexo ilatente-Iatente, pelo ÇJal ela serve para designar diretamente o que desdobr?.mos em patente-latente no circuito declamar-ouvir. Ora, o desdobramento, por definição, aliás literalmente, explica o que a designação nesse caso implica. E nesse caso, ter a explicação sem a designação importa em não ter o essencial, o decisivo. Pois o que se requer de "ilatência" = alétheia é precisamente que ela designe o implicado, o plexo, que, explicado, se desfaz. Entretanto, bom para esta designação, o termo "ilatência" não engloba ao mesmo tempo a de "verdade", que é a tradução corrente e afinal correta de alétheia. Ocorre-nos às vezes falar de uma verdade poética em nossa poesia. A qualificação supõe um campo restrito da verdade, o qual pode ser visto de um modo em que, afinal, se reconheça a ilatência. Obviamente, essa ilatência será própria de um campo da verdade, o da arte poética. Assim confinada, ela não terá a extensão de toda a verdade, que em outros domínios se manifesta de outros modos menos ou mais decisivos. Ora, os antigos gregos, por assim dizer, instituíram essa compartimentação da verdade: a poesia, a retórica deliberativa, a filosofia, a ciência. Mas entre eles a verdade assim compartimentada denominava-se alétheia, isto é,

•o termo já foi utilizado por meu colega, o Prof. Jaa Torrano, como traduçlo de alltheia no sentido heideggeriano de desvelamentn. 14

filhas, o que recobre: elas, enquanto palavras cantantes, são filhas de ZeusDia e Mnemosyne-Memória. Não insistamos na projeção imagética sobre este mito, que se apresenta com a concisão e o rigor de uma fórmula científica. E também com a sua aplicabilidade. Pois o ato poético das Musas, porque primordial, repete-se necessariamente ao convite ritual do rapsodo. Tudo está em saber perceber onde precisamente o mito situa o primordial, não em uma vez única que o fixe em defiuitivo, irrepetível, mas na fonte mesma da repetição, na filiação das palavras cantantes. O primeiro verso nos dois poemas homéricos é um desenho nítido de procedimento ritual decantado em forma de arte, a qual se abre ao nosso gesto de abrir um livro capitulado em ..:antos. O nosso gesto se inscreve em outro ritual, o da ciência. As últimas leituras qualificadas da /Uada e da Odisséia primeiro insistiram em redescobrir um conteúdo enciclopédico entretecido no relato mítico. E mais recentemente elas supõem a forma adventícia do livro e consideram o conte'lído em sua textualidade oral, comparável aos media eletrônicos. Tais leituras naturalmente produzem um impacto que perturba o seu prosseguimento nonnal. Fascinados pela comparação, desmontamos o texto, à procura de mais sinais que a confirmem, mais ou menos esquecidos da qualidade específica do que é comparado. Mas os sinais que assim detectamos são primariamente sinais dessa qualidade específica. Vimos acima, por esses sinais, como a articulação temática dos Trabalhos e dias se apresenta explicitamente como revelação da essência de Zeus justiceiro. O prel'lídio dall(ada descreve brevemente a cólera de Aquiles em seu desdobramento que se consuma como plano de Zeus. O primeiro canto é a irrupção dessa cólera. Nos seguintes é a execução do plano, que se prolonga e como que se apaga na dispersão das iniciativas humanas. Esta disposição - o plano de Zeus oculto sob as ações humanas -parece à primeira vista corresponder literalmente à noção de alétheia enquanto esta supõe o latente, o oculto. Mas é exatamente o contnúio. O plano de Zeus, verdade final da cólera de Aquiles, é, por definição, ilatente, claro como o dia. E é precisamente o que acentua o breve prelúdio em dois versos do segundo canto, os quais, já no clima da dispersão, lemos com um simples interesse pelo que há neles de episódico: Os outros todos, sim, deuses e homens encasquetados dormiam notumos, mas Zeus não o tinha em seu ventre o sono.

Mas os antigos gregos, sem d'lívida, musicalmente neles percebiam também o não episódico, a essência diurna de Zeus, que o sono não podia conter. Que no 14: canto ele caia em sono profundo, isso lhe ocorre enquanto esposo de Hera, naturalmente passível de sua sedução. A ocorrência em nada afeta o Zeus-Dia deste prel'lídio, aliás ao mesmo tempo perceptível episodicamente enquanto "Zeus que não tinha sono". E é justamente essa concomitância que estabelece um duplo nexo do prelúdio com a seqüência episódica e o conjunto do canto. Na primeira, desfilam o plano de Zeus, o sonho de Agamêmnon e, numa continuidade surpreendente, uma série de episódios parlamentares, que se desenrolam num acidentado crescendo 15

primariamente a verdade poética, pois alétheia 6 a designação exata do ato poético primordial evidente no mito das Musas: elas cantam enquanto até se conseguir que as tropas convocadas tenham o ânimo necessário para se tentar o combate decisivo. Então a narrativa é interrompida por uma invocação às Musas, que preludia a apresentação final das tropas gregas e troianas, can seus respectivos chefes, em ordem de combate. Em tradução este final é um monótono catálogo de nomes próprios, de chefes, povos e regiões, e que a um gosto moderno parece mal ajustado ao impulso das cen~ anteriores. Mas os nomes eram familiares dos ouvintes, e no original se articulam no mesmo ritmo das cenas, o do hexâmetro épico. E certamente os ouvintes o sentiam como um gmnde final, o ordenamento - como eles diziam, o "cosmos" - das tropas rematando a plenitude de uma jornada luminosa, que, atmvés do que se passou no acampamento grego, desde o despertar de Agamêmnon enganado pelo sonho enviado por Zeus, é o próprio desdobramento de sua essência diurna, anunciada nos versos preludiantes. Aliás, propriamente eles não sentiam um final, mas o ouviam sem descontinuidade, finalizando uma epifania do mundo, a verdade do canto, ou antes, o canto verdade.

BIBLIOGRAFIA DETIENNE, M. Les maftres de vlritl dans la Grece archaique. Paris, François Maspero, 1973. HEIDEGGER, M. Vortraege und Aufsaetze. Trad. franc.: PREAU, Andrê. Essais et conjlrences. Paris, Gallimard, 1954. (Cf. os dois dltimos ensaios "L6gos" e "Alétheia".) SNELL, B. Die Entdeckung des Geistes. Trad. it.: ALBERT!, Vera Degli & MARIETTI, Anna Solmi. La cultura greca e le origini del pensiero europeo. Torino, Piccola Biblioteca Einaudi, 1'll53. WEST, M.L. Hesiod. Works and days. Editcd with Pro~gomena and Commentary. Oxford, Clarendon Press, 1978.

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RAIZES M(TICAS DO HELENISMO:

o pensamento mítico na literatura grega GUIDA NEDDA B. P. HORTA*

INTRODUÇÃO Sempre que se fala em mito ou em mitologia, vem-nos à mente a lembrança da civilização helênica, embora saibamos que ambos os conceitos são universais, não exclusivos do helenismo antigo. Mas também é certo que o pensamento mítico - que acompanha o homem desde suas origens, precedendo a supremacia do pensamento lógico, sem contudo perder sua posição ímpar em no~a vida psicológica - sempre se revelou aturnte e produtivo em todos os momentos da formação e da evolução do povo e da cultura gregos, embora sob formas diversas e até mesmo su tis. É que os gregos sem iJre tiveram viva curiosidade a respeito de seus mitos mais antigos, mui tos deles ligados, diretamente, às suas origens préhistóricas, perdidas nos tempos em que não se conhecia nenhuma forma de escrita, sendo indispensável manter, como verdade, a transmissão oral memorizada e, por isso mesmo, sujeita a infmitas variações e acréscimos, ao sabor do narrador e das conveniências do momento. Isso é tão evidente que, mesmo em pleno classicismo ático, o historiador Tucídides, celebrado, entre outros motivos, por sua objetividade no trato da matéria político-social de seu tempo, e por seu espírito crítico e analítico diante dos fatos que relata, pôde afirmar, sem hesitação, em sua História da Guerra do Peloponeso (Livro I, 3, 1-3), o seguinte: ·-Antes da guerra de Tr6ia, ê evidente que a Hêlade nada realizou em comum. A meu ver, ela nem mesmo teria essa denominação para todo o seu conjunto. Antes de Heleno, filho de Deucaiião, esse apelativo nem sequer existiria e seri1111 as populações de per si, entre elas, em maior grau os pelasgos, que viriam a estender seu no~ o mais poss[vel; quando, pois, Heleno e séus filhos fortaleceram-se na Fti6tida, sendo chamados em aux[iio das outras cidades, com o trato constante entre eles cada uma dessas cidades veio a adotar o nome dos helenos; entretanto, foi preciso longo tempo, para que esse nome prevalecesse em todas as regiões. Homero ê quem melhor testemunha isso: tendo vivido muito tempo ap6s os eventos troianos, em nenhum lugar usou essa denominação para o conjunto dos gregos, nem para as restantes populações, mas tão s6 para os companheiros de Aquiles, providos da Fti6tida (na lessllia), justamente aqueles que foram os primeiros helenos; ele tamb&n usa em seus poemas os nomes de dânaoã; argívos e aqueus. Tampouco ele citou os bârbaros, pelo motivo que, segundo -me parece, riem os pr6prios helenos se distinguiam ainda por uma s6 denominação oposta àquela.

*Guida Nedda B. P. Horta. Professora de Língua e Literatura Grega na UFRJ. Doutora em Letras Clássicas pela UFRJ. Ensaista.

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Como se pode observar, ao tempo de Tucídides (século V a.C.) os gregos só podiam basear-se em tradições míticas, para reconstituir seu passado pré-histórico, esbarrando na Guerra de Tróia, como o mais antigo acontecimento relevante de que tinham notícia. E o mais interessante é que as observações do historiador, quanto às várias denominações primitivamente atribuídas ao povo que chamamos grego, são quase todas baseadas nos poemas homéricos, justamente os textos literários mais antigos que conhecemos (do mesmo modo que os contemporâneos de Tucídides), sendo que eles estão fundamentados, essencialmente, nas tradições míticas trazidas pelos aqueus micênicos para o litoral asiático voltado para a Europa, onde fundariam numerosas colônias, após dominarem as populações locais. Assim, a denominação genérica de dânaos, conferida por Homero aos assediadores de Tróia, tanto pode provir do antropônimo Dânae a mãe do herói Perseu, fecundada por Zeus Olímpico sob a forma de uma chuva de ouro - quanto pode originar-se do nome de Dânao, pai das Danaides e rei mítico de Argos, e cujos descendentes viriam a ser os argivos, antepassados dos gregos, no continente europeu. Cesse ponto de vista, dânaos e ll"givos chegam a ser sinônimos, embora a primeira denominação derive de um nome q~ítico e o segundo de um gentfiico, geograficamente explicável pela antiqüíssima existência da cidade de Argos, no Peloponeso. Seus habitantes achavam-se sob o comando de Atrida Agamêmnon, o comandante-em-chefe dos aqueus, no cerco de Tr6ia, segundo a /Uada. Verificamos, assim, a pen~tração do mito nas formas literárias mais antigas, produzidas pela civilização que viria a criar o fenômeno inigualável do helenismo, como forma específica de cultura. Podemos ainda afirmar que isso ocorreu desde suas origens, propagando-se através da multissecular tradição poética oral, que precedeu a criação e a fixação literárias dos cantos heróicos e (los contos folclóricos que estão na base das grandes epopéias, que os absorveram e reelaboraram pelo gênio de Homero - a l/fada e a Odisséia. Como definiu Pierre Grimal, em La mythologie grecque, nio existe nenhuma diferença de natureza entre as explica,.ões mfticas primitivas e as mais modernas teorias (cientificas) que sabemos não passarem de hip6teses de trabalho, destinadas ao abandono, mais cedo ou mais tarde.

De fato, muitas idéias cietú(ficas, que, com o tempo, provaram ser fecundas, a princípio não foram mais que uma forma de intuição pessoal, isto é, a ciiação imaginária do investigador que, confiante em sua capacidade de pesquisa e de observação, acabou por transformar um simples sonho em realidade. A esse propósito, cite-se, entre muitos outros, o mito de !caro, que pretendeu voar, colando asas às cós tas com cera, mas, chegando demasiado próximo do sol, o calor derreteu a cera, ele perdeu as asas e caiu, mergulhando no mar Egeu, que, em sna homenagem, também se chamou mar de !caro. Hoje em dia o homem domina os ares e já começa a explorar o cosmo, começando por nosso sistema ·planetário, indo muitíssimo além do ingênuo propósito do mítico Ícaro. 18

O fato é que não há fenômeno natural, nem pertinente à vida humana, que não seja passível de interpretação mítica e, às vezes, até reclama esse tipo de interpretação, o dnico capaz de humanizar a apavorante presença dos seres inanimados, tomando menos temível tudo quanto existe de inumano na natureza. Através da interpretação m(tica do Universo, passa-se a atribuir-lhe intenções, sensibilidade e motivação, análogas às que os seres racionais experimentam, no dia-a-dia de suas vidas. É essa percepção m(tica da realidade que humaniza, progressivamente, o mundo hostil que rodeia o homem racional·, consciente da precariedade de sua condição mortal. O surgimento do mito se dá no justo momento em que as forças difusas do não-natural (ou do sobrenatural), a princípio indiferenciadas e obscuramente pressentidas, passam a encarnar-se e a individualizar-se em seres mais ou menos divinos. A partir daf, o relato dos feitos, prodígios ou desgraças, atribuídos a tais seres, começa a se difundir, passando de umas gerações às outras, sob a forma de narrativas, em que as alegorias e os símbolos permitem a aceitação de experiências não-racionais, ou melhor, indiferentes ao princípio da contradição que a lógica nos obriga a encarar, diante de qualquer explicação racional que se pretenda dar a algum fenômeno, natural ou não. O fracasso constante de todas as tentativas de teorização do mito decorre da impraticabilidade em simplificar, superficial e gratuitamente, o fenômeno mítico, por sua própria natureza extremamente complexo e de insuperável vitalidade. Por um lado, o pensamento m(tico se aproxima do pensamento cientffico, apesar de serem antagônicos em muitos sentidos, inclusive pelos processos mui to diferentes de que se utilizam e pela atitude divergente dos pesquisadores, num e noutro caso. É que ambos - o mito e a ciência - têm o mesmo objeto de investigação: a realidade. Por outro lado, o mito se entrosa facilmente com a criação artística, pois ambos- mito e arte, mormente a poesia - procedem da mesma necessidade espiritual, psicológica, de recriar, estética e emocionalmente, a realidade exterior ao homem. Os processos de realização divergentes levam, no campo científico, a uma atitude objetivante do investigador, em busca de um conhecimento positivo e racional da realidade, ao passo que, na área do poético e do mítico, é a reelaboração subjetiva das experiências vividas - à margem da lógica e da racionalidade - que traduz a expressão do real. Enquanto para a poesia a expressão dessa vivência é individual e única e independe de um objeto fora da imaginação do poeta, para o mito, porém, são múltiplas as formas narrativas das reações humanas, diante de um objeto essencialmente o mesmo, mas em constante variação de forma e de situações, no tempo e no espaço: a condição do homem, no universo em que ele vive e sobre o qual atua. Seja c -mo for, o fenômeno mítico exige ser apreendido direta e globalmente - como a poesia e a mósica, por exemplo - sem qualquer pretensão de aprofundá-lo racionalmente: desmontâ-lo ou analisâ-lo criticamente é destruí-lo sem conseguir penetrar em sua essência. Acresce o fato de que 19

o mito tem mui tos pontos de contato com a religião e, às vezes, é muito di11'cil distinguir onde acaba o mito e onde começa a religião, embora um e outro - com o mesmo ponto de partida numa fonna de crença - tendam a diferenciar-se cada vez mais, à proporção que o homem vai, progressivamente, demaiCaodo os limites entre o sagrado e o profano e fixando as formas de seu relacionamento com o sobrenatural e o divi;zo, através de ritos e práticas.do culto. Para Cassirer, o "mito é, desde suas origens, religião em potencial" e é j ustam ente esse ponto de coo vergência entre ambos que dificulta aconcei tuação precisa do que seja o mito; mas é 6bvio que o mito não é religião (embora existam religiões mitológicas, como a dos gregos antigos), porque o mito tem sempre um caráter representativo e narrativo, é um relato que funciona como uma espécie de véu que os poetas lançam sobre as experiências com o sobrenatural. Num sentido específico, podemos dizer com Untersteiner, que o"mitonadamaiséque uma fonna poética de compreender, gerada pela inspiração" - compreensão daquilo que de outra fonna não seria compreensível. A vivência do mito leva-nos a uma forma de expressão de um sentido global da realidade, conhecida através de um tipo especial de percepção não cognitiva, não intelectiva, mas emotiva e subjetiva. PRESENÇA DO MITO NA LITERATURA. OS GREGOS E O MITO

O caráter narrativo do mito fê-lo integrar-se logo cedo nos textos literários. Na tradição do helenismo, verifica-se que esses mitos, tão difundidos através de cerca de trinta séculos de história literária, na cultura ocidental, revelam, à luz da análise, uma fonnação (ou evolução) do tipo cumulativo, pois os escritores (e também os artistas plásticos) recolheram as tradições mitológicas, com freqüência, dos santuários dedicados aos grandes deuses. Em seguida, reelaboraram suas criações artísticas de modo individual e subjetivo, evidentemente sob a influência das condições socioculturais do tempo em que viveram. Nosso grande problema, como modernos, é a dificuldade que temos em identificar-nos com a mentalidade dita arcaica, essencialmente miticizante, pois os hábitos mentais que temos dificultam a penetração no real significado que tinham os mitos para os povos antigos que os criaram. Para os gregos antigos, pelo menos, o mito sempre foi, em seu significado mais profundo, uma crença transportada à ficção. Por isso mesmo ele participa, geralmente, da natureza religiosa (que também é encontrada na mitologia de outros povos), mas inclui também aspectos históricos (estes últimos predominantes na mitologia latina). A mentalidade dos gregos, desde cedo, iria transformar o conceito de divino, diversificando-o e espiritualizando-o, ao assimilar e transformar todas as influências asiáticas e min6icas que recebeu, a par de crenças ctônicas, encontradas entre as populações esparsas pela região balcânica, submetidas pelas invasões aquéias e, mais tarde, dóricas. Todas essas influências, porém, foram reelaboradas e moldadas, ao sabor das tendências dominantes no espírito do povo, que criou uma religião mitológica sui generis. 20

Foi assim que a religião grega veio a caracterizar-se, principalmente, pelo antropomorfismo (projeção idealizada da busca da perfeição e da imortalidade pelo homem, no plano divino, concebendo as divindades não s6 com a forma ffsica, mas também com os sentimentos, as paixões, as fraquezas e a racionalidade humanas); a fabulação mítica (pela tradicional narração, de caráter figurado, das experiências com o divino ou o sobrenatural, não-racional); pelo laicismo (em virtude da ausência de dogmas ou de textos sagrados que servissem de guias aos crentes, um.t vez que todas as crenças se baseavam em mitos, que nanavam fatos dos tempos primevos, sujeitos a infinitas variações em sua forma de expressão) e o individualismo (que permitia tradições conflitantes nos diversos santuários, ainda que fossem consagrados ao culto do mesmo deus). Uma vez incorporados à literatura. tais mitos também sofreram a mol· dagem que lhes imprimiu o escritor, utilizando-os a serviço de suas intenções estéticas, e, então, cristalizados no texto poético, assumiram uma determinada forma, como se pode observar nos Poemas Homéricos. Com o tempo, os mesmos mitos puderam sofrer variações, devidas à mentalidade dos escritores das várias épocas ou regiões da Grécia, ou à própria necessidade de interpretação de textos cuja origem já não era conhecida, tendo-se perdido até, muitas vezes, a noção de seu real significado, no contexto histórico-cultural em que surgira o mito. O curioso é que ainda hoje as narrativas míticas são mais reveladoras dos valores espirituais heiênicos, do que seus próprios ritos religiosos. Na verdade, o mito constituiu sempre para os gregos um meio eficiente para alcançar 9 entendimento do incognoscível, razão pela qual ele é tão fugidio e escapa por completo a qualquer análise racional. Ele é, como diz Marcelino Põuelas, "agente e produto de cultura", e, como tal, o mistério que o rodeia "perde-se no poço do passado, e nas mais fundas raízes da natureza humana", o que explica o fascínio que sempre exerceu sobre os estudiosos. Dos mitos antigos s6 temos, na verdade, o reflexo ou a representação narrativa da experiência que ele proprio narra - sombra mutável e fugidia de uma realidade muito distanciada no tempo e, por isso mesmo, nem sempre bem compreendida (conforme os mitos vivos). Em essência o mito é sempre o mesmo, quaisquer que sejam as formas em que se apresente, porque sua natureza permanece idêntica, visto que o ser humano também ainda é o mesmo, quanto às aspirações, temores e dt1vidas que o perseguem através dos tempos. Do mesmo modo que o poético, o mito, que lhe está muito próximo, embora não se confunda com ele, enceJ.Ta sua própria verdade subjetiva, tem um sentido específico, não em frontal oposição à realidade histórica ou à verdade dita científica, mas como um complemento vital e indispensável a ambos. Através do mito pode-se revelar a condição atual do homem ou de qualquer outro ser no mundo, inclusive a morte ou as instituições religiosas. E sua generalização entre os gregos, como afirma Grimal, essa liberação de seus poderes transcendentes, foi uma das contribuições fundamentais, talvez mesmo a essencial, do Helenismo para o pensamento hmnano.

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O MITO EM VIRGILIO ZELIA DE ALMEIDA CARDOs:>*

Discorrer sobre o mito em Virgfiio é tomar a Eneida por ponto de partida. Em seus poemas anteriores, tanto nas pequenas obras da juventude quanto, mais tarde, nas Bucólicas e nas Geórgicas, o poeta havia aflorado o mito, valend
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nos seis cantos finais. Virgfiio se ocupa das dificuldades enfrentadas pelo chefe troiano para estabelecer-se em solo itálico. o molde bàsico e a I/fada. Só nessa fusio, ou melhrecisa .. em que o divino e o humano não são ainda claramente diferenciados: o tempo dos heróis e semideuses". 3 O espaço cronológico que separa os poemas homéricos da Eneida foi preenchido por numerosas outras tentativas no campo da poesia épica. Dumnte o século VI a.C. surgiram, na Grécia, os chamados poemas cfclicos, de autoria de~KX>nhecida, e perdidos, pmticamente, em sua totalidade. No século ill a.C., em plena época alexandrina, portanto, Apolónio de Rodes compôs, em quatro cantos, seu poema Argonáutica, uma estória de viagens mesclada com um mnance de amor. Na mesma época, Uvio Andronico introduziu em Roma a epopéia clássica, traduzindo a Odisséia e abrindo caminho para o aparecimento de textos congéneres. Névio e Ênio são os primeiros poetas latinos a acompanhá-lo nesse pe!Curso, ao escreverem, ambos, poemas épicos de caráter histórico, nos quais a lenda se mescla com a realidade e fatos do momento atingem dimensões nitidamente épicas. Na primeira metade do século I a.C., embora não cheguemos, como alguns, a considerar o poema de Lucrécio como uma epopeia cosmogônica e prefiramos classificá-lo como um tratado filosófico em versos, não podemos deixar de lembrar as experiências no campo do épico realizadas pelo poeta neótérioo Varrão de Átax. Em 7:9 a.C., pois, no momento em que Virgílio aceitou o encargo de escrever a "epopéia mnana", uma longa estrada já havia sido percorrida. O texto é sempre um espaço intertextual, de carâter cronotópico, a revelar, de alguma forma, a existência de todo um universo literário que o precedeu. _ A Eneida, mais, talvez, do que outras obras do mesmo gênero, mas de é'pocas diferentes, é o texto de um momento que procurou preservar a cultura de um mundo que se encaminhava para profundas tmnsformações. VirgOio conseguiu realizar a tarefa mágica de condensar em seu poema, 1TODOROV, T. Estrutumli.rmo e poltica. Slo Paulo, Cultrix, 1971. p. 47. 2oRIMAL. P. Virgile ou la seconde Missance de Rome. Paris, Arthaud, 1985. p. 171. 3 Idcm. ibidem.

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ntuna fusão perfeita, elementos dispersos provenientes de civilizações distintas. Assim como Roma foi uma cidade aglutinadora que, em seu cosmopolitismo e heterogeneidade, conseguiu resguardar a unidade, a Eneida possui o poder de concentrar, de forma harmoniosa, forças polarizadas e sob certos aspectos antagônicas. Para que isso ocorresse, Virgílio teve a seu dispor o mito, o mito em suas múltiplas acepções: mito-palavra, mito-discurso, mito-narrativa; mito-discussão, mi to-crença religiosa e, sobretudo, mito-lenda, mito-fábula, mito-estória sagrada fantástica, alegórica ou simbólica. Não nos cabe aqui discutir o conceito de mito ou procurar explicá-lo, falar do enigma de suas origens, aventar a hipótese de algo inerente ao homem ou às civilizações. Tal tarefa é da alçada de psicólogos ou antrop~ logos. Não pretendemos também levantar o problema dos interesses que se escudam nos mitos - interesses políticos, sociais, morais, peda,góJricos. religiosos; interesses elevados, nobres, paradoxalmente .. desinteressados .. e interesses mesquinhos. escusos, espúrios; interesses ingênuos e camuflados, legítimos e torpes. Cabe-nos, isso sim, delimitar o espaço do mito num contexto literário e explorá-lo na Eneida. Quando falamos em mito literário, defrontamo-nos com mais uma de suas numerosas faces polivalentes. Mito literário é basicamente uma estória, uma estória que pode corresponder à interpretação primitiva do mundo e de suas origens, ou seja, à explicação do inexplicável, ou ser, simplesmente, uma estória de deuses ou de heróis, uma dessas narrativas que Miroea Eliade4 designa, ao estudá-las em algumas comunidades humanas do presente, como estórias sagradas dos primórdios, "verdadeiras" se referentes adeuses, "falsas" se a heróis. São, portanto, ti& categorias distintas de estórias que, por contarem aparentemente com ingredientes comuns -os chamados elementos míticos -, se viram agrupadas na mesma classe. Virgílio, na Eneida, trabalhou predominantemente com a terceira categoria - as lendas de heróis. Incursionou também, entretanto, de forma eventual. pelas outras duas. Escolheu como personagem central do poema uma das figuras pertencentes ao mundo éi>ico homérico - a do nobre Enéias, filho de Vênus e de Anquises, descendente, pois, em linha direta, segundo a lenda, de Tros, o epônimo de Tróia, e de Dárdano e Teucro, os primeiros reis da Frígia. Comparada com a grega, a mitologia romana é bastante pobre. As divindades itálicas primitivas - nísticas e simples - não se relacionam umas com as outras por laços de parentesco. Poucos são os heróis cuja memória se preservou no relato das lendas. Tal fato fez com que o romano, ao entrar em contato com a brilhante civilização helênica, adotasse o panteão

4ELIADE, M. Mito e realidade. São Paulo, Perspectiva, 1963. p. 7-8.

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olímpico, incorporando est6riasjáelaboradas a um acervolendúiode dimens6es bastante reduzidas.s Em Homero, Enéias é um herói de segundo plano. Muito embora ao ser menciooado na llfada6 haja uma referência explícita à. sua excelência no combater e no tomar decisões,· a Odisséia o ignora. Após Homero, a figura do chefe troiano é lembrada por muitos autores gregos, aparecendo em numerosas lendas. Vincula-se, constantemente, à. da migração de troianos, após a gueiTa fatídica que destruiu Tróia. Seria uma figura real que a imaginação do povo transformou em herói mitológico? A guerra de Tróia foi considerada fictícia durante muito tempo em decorrência dos inúmeros incidentes lendários a ela relacionados. A arqueologia, porém, ao identificar as ruínas da cidade de Príamo, exigiu que a crítica histórica e literária se reposicionasse diante do material mítico proveniente da velha Grécia. Os heróis mitológicos, por conseguinte, passaram a ser julgados por outros parâmetros dimensionais. As lendas que envolvem a f1gura de Enéias se disseminaram nas regiões que se situam entre o Mar Negro -o antigo Pontus Euxinus- e a Itália. Dionísio de Halicamasso, historiador grego que viveu na época de Augusto, ancorando-se em autores antigos, como por exemplo Menecrates de Xantos, historiador lício do século IV a.C., reporta-se à migração dos troianos para Oeste, após a guerra de Tróia, liderados por Enéias. Fala de tradições existentes na Trácia, na Grécia e na Sicília, segundo as quais muitas cidades, santuários e templos desses locais deviam sua fundação e edificação a troianos que por ali passaram. Por outro lado, são também freqüentes as lendas que concernem à presença de Enéias em solo itálico. Helânico de Mitileno e Timeu de Tauromênio, historiadores respectivamente dos séculos V e m a.C., referem-se à chegada de Enéias e de troianos às terras da Hespéria. Tal lenda era bastante conhecida na Itália, pelo menos desde o século IV a.C., tendo surgido provavelmente nos arredores de Lavinium, pequena cidade situada ao sul do Lácio. Segundo Grimal, havia ali uma velha sepultura, ou melhor, um cenotáfio, conhecido como "túmulo de Enéias". As lendas que giravam em tomo do estabelecimento do guerreiro troiano no Lácio, de seu casamento com Lavínia, da morte do rei Latino e de Turno, rival de Enéias, eram bastante populares. É possível que tenham sido preservadas em canções latinas pré-literárias que não passaram da fase oral e eram entoadas por ocasião de banquetes. Enéias tomou-se uma espécie de herói nacional, diretamente relacionado com a fundação de Roma, e as famílias romanas mais antigas tinham grande honra em dizer-se de origem troiana. A estória da ligação afetiva que uniu Dido e Enéias, entretanto, não é uma lenda corrente nem uma tradição popular. O epitomador Justino, no início de nossa era, procurou encontrar um conteódo histórico na lenda Ser. BOISSIER. G.

'l-8.

ÚJ

reUgion romaine d' Aug~Gte aux Ailtonlns. Paria, Hachette, ald. p.

611/ada, VI, 77.

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de Dido, a rainha tfria. 7 e coligiu algumas informações importantes a respeito da personagem. A fundação de Cartago, no entanto, atribuída à soberana em questão, distancia-se muito, cronologicamente, da suposta data da guerra de Tróia. Teria sido Névio, provavelmente, o idealizador do encontro entre o guerreiro e a rainha e o primeiro a referir-se à trágica paixão por ela nutrida. Em s~u poema épico, A guerra púnica, verdaderra novidade na história da epopéia, Névio relatou um fato de seus dias, do qual ele próprio participara, na condição de soldado - a primeira guerra que se travou entre Roma e Cartago - e, justapondo a ficção à história, deve ter querido mostrar, no episódio imaginado, a justificativa de um acontecimento real. A inimizade entre as duas metrópoles mediterrâneas deixaria, com isso, de ser uma questão meramente política: passaria a ter sua origem no passado lendário e seria compreendida como fruto de algo prenunciado muito tempo antes, se a lenda pudesse ser apresentada como causa da história. Virgílio dispunha desse vasto material quando encetou o trabalho de escrever a Eneida. Cabia-lhe ordená-lo e reelaborá-lo. O poeta, no entanto, não se limitou apenas a realizar essa tarefa, muito embora fosse ela, por si, de grandes dimensões. Foi muito além. Usou as lendas como instrumento que lhe permitisse a consecução de vários objetiva;. Permitiram-lhe elas, inicialmente, demonstrar seu virtua~ismo na arte de manejar a palavra, submetendo-a a um tratamento estético-literário. Antes de ser um poema épico em que se exploram as lendas mitológicas, a Eneida é uma obra de arte, sob todos os sws aspectos. é uma obra de arte quanto à versificação e à linguagem e quanto ao assunto que ali se desenvolve. Vilgfiio, com seu admirável poder de síntese, foi capaz de dar unidade a um emaranhado de estórias, descobrindo-lhe o fio condutor e usando-o como linha axial de sua epopéia; foi capaz de conferir ao poema uma estrutura arcpitetõnica simétrica e equilibrada sem cair na monotonia; teve a habilidade de seguir os modelos conservando a originalidade e permitindo-se grande liberdade de criação; revelou, sempre, segurança no narrar e no descrever e mostrou grande competência em criar personagens com caraterísticas próJrias. Dido, a figura central do canto IV, é extremamente cuidada em suas particularidades. Desde que surge pela pritreira vez no texto, esboçada em seu~ contornos pelas palavras de Vênus, s até sua óltima aparição a Enéias, já em pleno mundo dos mortos,~ a retribuir com o mais frio desdém as palavras inúteis do troiano, Dido vai-se compoodo como caráter, como estrutura psicológica dotada de grande força coostrucional. Enéias, diferentemente, é uma figura simbólica. Encarna a pietas romana, a razão que se sobrepõe às paixões, a consciência do dever. O mito, para Virgfiio, também se presta à apresentação da história. Névio e ~oio, em suas epopéias, haviam justaposto a lenda e a verdade

7cr. JUSTINO, XVIII, 4-6. I, 237 e ss. 9 Enelda, VI, 450 e ss.

8Enelda, 26

factual. Virgílio usa a lenda como uma espécie de moldura para o fato histórico ou como o pedestal que dá sustentação à estátua. Roma é o que tmiJorta: sua glória, majestade e gmndeza. Roma é o momento presente, o pináculo, o apogeu. Para chegar a tal ponto foi preciso o percurso histórico, o escalar dos degraus. Esses degmus vão surgindo como flores, na selva intrincada formada pelo material lendário, configurados nas profecias, nas visões, nas representações pictóricas e plásticas: ora é o próprio narrador a informar o narratário sobre as futuras realizações dacldade,to ora é Júpiter consolando Vênus e falando-lhe dos feitos vindouros dos romanos.u ora é Anquises que apresenta a Enéias as almas das figuras ilustres de Roma, ainda por nascerem,12 ora é Vulcano que gmva no escudo de Enéias a história dos albanos e a da Cidade Eterna, mostrando que, de Ascãnio a Rômulo e de Rômulo a César Augusto, os feitos são grandiosos e brilhantes, fazendo a honra da pátria. O mito desempenha outros papéis ainda na epopéia de Virgílio. Prestase à divulgação de idéias filosóficas e religiosas, à descrição da paisagem geográfica e, possivelmentt.. tem a função de ercobrir de forma alegórica ou simbólica aquilo que talvez não fosse conveniente apresentar às claras. E qual o tratamento, poderíamos perguntar, dado pelo poeta ao mito, em si? Aceitaria a verdade das lendas que apresentava? Admitiria a existência dos deuses que manipulava, fazendo-os participar de uma açàO que se sobrepõe à humana, determinando-a? Não há elementos conclusivos na obra virgiliana para que se possa responder de forma cabal, definindo-se uma posição clara a respeito do assunto. É provável que o poeta considerasse os mitos como uma espécie de matéria-bruta que se submete a tratamentos particulares, deformando-se, ou melhor, fonnando-se nas palavras do escritor. Há trechos, na Eneida, que nos mostram claramente isso. Se analisannos o canto VI, por exemplo, considerado por muitos como o momento mais importante da obra, seu clímax, por assim dizer, teremos uma amostra de como o poeta encara, à sua maneira, o mito que existe. O canto VI é o relato da viagem de Enéias à mansão das almas. Fundemse, nesse relato, as três categorias de mito a que antes nos referimos. De um lado, ali encontramos a noção da pós-vida, presente, praticamente, em todas as civilizações. O medo da morte, a certeza de sua inexorabilidade, o desejo de sobreviver, a impressão de que os bons e maus atos praticados pelo homem devem ser premiados ou punidos, a espemnça de reencontrar parentes e amigos desaparecidos, tudo isso em conjunto ou separadamente deve ter suscitado nas civilizações humanas o culto do morto, a idealização do "reino das sombras". Virgílio trabalha, pois, com o mito universal da pós-vida. Trabalha-o, porém, partindo do mito particular greco-romano, segundo o qual a mansão das almas se configura no império de Hades-Plutão, o terceiro dos filhos de Cronos-Satumo, o esposo de Perséfone-Prosérpina. lOcf. Eneida, I, 24 e ss. llcf. Eneida, I, 266 e ss. 12cf. Eneida, VI, 760 e ss.

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Virgílio utiliza na composição de "seu" inferno os ingredientes míticos que aparecem nas velhas estórias: os rios subterrâneos, o barqueiro imundo, o guardião terrível, as Fúrias, os monstros, os prisioneiros. E, ao mencionar os condenados, Virgílio ~enetra no mundo lendário dos heróis - daqueles que pertencem à primeira geração, fllhos de deuses como Tântalo ou S!süo; daqueles que, como Anquises ou as Danaides, guardam apenas lembranças de uma ancestralidade divina. O inferno de Virgt1io tem algo comum com os "infernos" de todas as crenças; revela traços sensíveis da tradição lendária greco-romana, tão familiar ao poeta; traz, entretanto, as marcas pessoais de quem o concebeu. É um mundo sui generis, cheio de mistérios e enigme!'. Virgfiio escreveu o canto VI antes dos demais. Chegou a lê-lo diante de Augusto e Otáv~a. Colocou-o no meio do poema, como a representar o momento maíor. Por quê? Tudo par...ce ser um porquê no canto VI. Virgfiio se inspira na Odisséia, em cujo décimo-primeiro canto existe um relato da viagem de Ulisses ao reino de Hades. Compõe, todavia, uma narrativa bastante diferente da do poema homérico, cheia de incidentes e de pormenores que propõem indagações ao leitor. Ao inici~se o canto, Virgílio fala da chegada de Enéias a Comas, cidade grega próxima do golfo de Nápoles. O cbefo troiano mergulha, então, na floresta densa e procura avistar-se com a sibila Deífobe. Não se aparenta ela, porém, com as profetisas comuns. É a mulher que recebe a palavra de Apolo, reveladora do futuro, mas vive nos bosques de Trívia, invoca Hécate, conhece o segredo das ervas e tem o poder de abrir aos mortais as portas do inferno. Virgflio a construiu dessa forma híbrida. É, simultaneamente, pitonisa e feiticeira. Exerce as funções no mesmo lugar onde, no tempo de Augusto, se realizavam cerimônias clandestinas, estranhas e misteriosas. Ao ser procurada por Enéias, a sibila o ater:de. Recebe a palavra de Apolo e revela-a aos troianos, numa cena espantosa em que se vê "tomada" pelo espírito do deus. Aquiesce em acompanhar Enéias ao reino dos mortos, desde que ele cumpra duas exigências: deverá encontrar na floresta um ramo de ouro para com ele presentear Prosérpina, a soberana dos mortos, e terá de providenciar os funerais de Mi seno, cujo cadáver insepulto maculava a armada. A exigência é estranha. Nenhum dos escritores gregos ou latinos que haviam feito referências a viagens de mortais ao reino das sombras mencionara o ramo de ouro. Que ramo seria esse? Qual a sua importância? Qual a sua razão de ser? Sir George Frazer, em sua vasta obra The golden bough, 13 procura encontrar uma explicação para a presença do ramo de ouro na narrativa virgiliana; compara-o com o visco, utilizado pelos druidas em cerimônias religiosas, e faz referências às solenidades em homenagem a Diana, realizadas no bosque de Trívia, todos os anos, durante o mês de agosto: estranhas cerimônias em que rapazes e moças faziam procissões noturnas, iluminadas por archotes, invocavam Hécate, a deusa da magia, 13FRAZER, Sir J. G. The golden bough McMillan. 1933. Cap. II.

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a study in magic and religion. London.

participavam de danças frenéticas e de sarabandas, e entregavam-se a um ato coletivo de prostituição. Plessis e Lejay, 14 por sua vez, tentam explicar a questão do cadáver de Miseno: em algumas civilizações, para que os vivos possam entrar em contato com os espíritos dos mortos, exige-se um sacrifício humano, dissimulado, talvez, na Eneida, na referência ao funeral. As peças do quebra-cabeças virgiliano parecem começar a encaixar-se. Cumpridas as duas exigências, Enéias e a sibila preparam-se para entrar no reino dos mortos. Animais são sacrificados, acende-se o fogo, fazem-se libações e oferendas com vinho e sangue. A sibila invoca Hécate e o chão se fende com estrondo, possibilitando a passagem para o interior da terra. Inicia-se a viagem ao mundo das almas. O vestibulum do inferno, segundo a descrição virgiliana, é ocupado por estranhos seres: sombras pálidas e terríveis representando o Choro, o Remorso, a Doença, o Sono, a Velhice, o Medo, a Morte, o Trabalho, a Guerra. No meio dessa espécie de pátio, um olmeiro enorme, opaco a Árvore dos Sonhos Mentirosos. Por que essas figuras esfumaçadas e pálidas? Por que a árvore? Em seguida, Enéias vislumbra monstros disformes, criaturas híbridas, tais como os centauros e cilas, górgonas e hidras. As águas do Estígio separam o vestibulum do inferno propriamente dito. O velho barqueiro Caronte reluta em permitir que os visitantes atravessem, mas consente quando vé o ramo de ouro que Enéias ocultava' entre as vestes. Cérl>ero, o guardião assustador, é adormecido com um bolo de ervas oferecido pela sibila. Todos esses pequenos detalhes vão ter a sua importância mais tarde, como veremos. O inferno descrito por Virgílio, diferentemente do que ocorre com outras "pintums" de tal mundo, é dividido em setores, cada um com a sua especificidade. Enéias atmvessa o primeiro setor, reservado às tristes sombras dos que morreram sem cumprir totalmente o seu destino: o "limbo" dos meninos mortos, o espaço reservado aos condenados por um falso crime, aos suicidas, aos que pereceram por dores de amor, aos soldados jovens, feridos mortalmente na guerra. O segundo setor é o Tártaro, ocupado por criminosos célebres que ali sofrem castigos eternos. É o meio da viagem. Enéias lava o rosto e se desvencilha do ramo de ouro, pendurando-o P-O portal do palácio de Prosérpina. A "viagem" vai chegando ao fim, mas lhe resta aiooa passar por dois outros setores: os Campos Elísios, espécie de "paraíso" que acolhe as almas dos bons, merecedoras de descanso eterno - é ali que Enéias se avista com a sombm de Anquises, seu velho pai -,e o setor das almas penadas, aquelas que se purificam das faltas cometidas e aguardam o momento de reencarnarem-se em novos corpos. Enéias observa tudo, ouve as explicações e conselhos de Anquises e sai do reioo dos mortos pela porta dos Sonhos Falsos. É diffcil chegar ãs intenções de Virgfiio, às razões que o movemm a relatar tais fatos. A crítica, em gemi, considera obscuros alguns pontos da "viagem": a presença do ramo de ouro, as referências aos "sonhos 14 oEtNRES DE VIRGILE. Introdução e notas de F. Plessis e P. Lejay. Paris, Hachette, s/ d. n.2. p.506.

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falsos", a setorização do inferno. Talvez o poeta tivesse tentaoo dissimular, valendo-se de "ingredientes" míticos, uma alucinação do príncipe troiano, provocada por algum a~ente externo. Tudo parece concorrer para a proposta de tal hipótese. É possível que o famoso e inexplicável ramo de ouro se associe, de alguma fonna, aos fachos luminosos utilizados nas procissões de Hécate. Archotes acesos, afinal, se assemelham, pelo aspecto externo, a ramos de ouro. E tais archotes, sabemos, queimam resinas altamente tóxicas, aromáticas que, pela combustão, liberam fenóis que produzem alucinações. O vinho utilizado nas libações favorece a intoxicação e o sangue derramado pode afetar a mente das pessoas predispostas. A sibila era a feiticeira que conhecia o segredo da magia e das ervas - o bolo oferecido a Cérbero, para adormecê-lo, feito de grãos e mel, atesta a habilidade da mulher no manejo de estupefacientes. Era, sem dúvida, a sacerdotisa das trevas, posta a serviço de Hécate. E era também a profetisa de Apolo, a que fala por símbolos e enigmas. O ramo de ouro é mágico e muda comportamentos. Na pa<>sagem em que Enéias o mostra a Caronte, tirando-o de entre as vestes, observa-se tal fato. Por outro lado, Enéias, ao entrar no inferno, perc~be a presença da árvore dos "Sonhos Mentirosos" e é pela porta dos "Sonhos Falsos" que ele retoma à vida e à realidade. Que são sonhos mentirosos ou falsos? Sonhos que não se realizam? Ou sonhos diferentes dos "verdadeiros", sonhos provocados e por isso não-naturais como aqueles que se têm quando se dorme? E os setores que compõem o reino de Plutão? Qual a sua razão? Não seriam, talvez, fases distintas de "visões" provocadas por agente tóxico? As figuras esfumadas, as deformações teníveis dos monstros, o horripilante dos seres condenados ... E, em seguida, a tranqüilidade, a paz, o "despertar"? É uma suposição. Mas não foi só para esse fim que Virgílio construiu o canto VI se é que tal fim realmente existiu. O trecho da Eneida - um dos mais belos e ricos do poema - apresenta outras facetas, importantes todas elas nas funções que desempenham. Mais do que em outros passos, nesse canto faz o poeta a verdadeira exaltação de Roma. A descrição das almas que aguardam a reencarnação talvez seja o pretexto para que Virgílio, fazendo Anquises apresentá-las a Enéias, revele o presente de Roma, no futuro da diegese: Roma é exaltada na sua pujança e glória, os heróis são celebrados, Augusto é homenageado em sua pessoa e na de familiares que, como Marcelo, contribuíram para engrandecer o nome da cidade. Fundindo passado, presente e futuro na atemporalidade do tempo eterno, Virgílio mostrou Roma sobreposta ao tempo, ela também eterna como os deuses. E além disso Virgílio se valeu do assunto para atingir, pelo menos, mais duas finalidades. Sem tomar qualquer partido, fez uma síntese das teorias que então existiam sobre a vida futura. Valeu-se dos dados fornecidos pela ooutrina estóica quando colocou Anquises a discorrer sobre a origem do universo e dos homens, falando da grande chama inicial da qual os seres vivos são centelhas e da tendência à volta, para integração total nessa força que comanda os mundos; lembrou as doutrinas de Platão, o neopitagorismo 30

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e o oxfismo em numerosas passagens, sobretudo quando aventa, de forma simbólica, a possibilidade de reencarnação. Qual a posição de Virgílio, em face de tais idéias? O poeta jamais a deixa clara. Em todo o poema, sua figura se esconde por trás de nairadores, disfarça-se, encobre-se. Não é possível chegar a ela, desvendá-la. O cuidado foi grande, sob esse aspecto. E talvez o poeta não tivesse, realmente, a posição definida a re~opeito de uma vida futura. Ao lado das doutrinas que demonstrou conhecer, havia, evidentemente, a epicurista, que prega a mortalidade da alma, em sua materialidade, e a inexistência de um local de sombras, onde os bons seriam premiados e os maus condenados. Virg~.1io conhecia o epicurismo em profundidade. Deixou, em muitas passagens, entrever influência de Lucrécio e mostrou que a complexa teoria construída por Epicuro lhe era bastante familiar em todos os seus aspectos. De outro lado, o canto VI é a oportunidade encontrada pelo poeta para redimensionar a figura do herói. Enéias entra no reino dos mortos após ter tido conhecimento, pelas palavras da sibila, do destino que o esperava. Sua entrada no inferno é um ato de vontade, talvez o primeiro, em todo o poema. Ao sair do reino de Plutão, o herói conhece suas verdadeiras dimensões. Deixa de ser joguete dos deuses e assume, realmente, sua função de chefe missionário. Como se pode depreender, o mito, em Virgílio, é um objeto polivalente e multifacetado. Fornece-lhe os elementos de que necessita para relatar os episódios épicos e lhe propõe uma infinidade de caminhos para realizar as mais diversas intenções. BIBLIOGRAFIA BOISSIER, G, La religion romaine d'Auguste au.x Antonins. Paris, Hachette, s/d, ELIADE, M. Mito e realidmie. Trad. de P. Civelli. São Paulo, Perspectiva, 1963. FRAZER, J. G. The golden bough - a study in magic and religkm. London, McMillan, 1933. GRIMAL, P. Virgile ou la seconde naissance de Rome. Paris, Arthaud, 1985. HOMERE. lliade. Texte et. et trad. par P. Mazon. Paris, Les BeiJes Lettres, 1949. HOMERE. L'Odyssée. Trad. de M. Dufour et J. Raison. Paris, Garnier, 1934. OEUVRES DE VIRGILE. Introd. et not. de F. Plessis et P. Lejay. Paris, Hachette, sld. PETERSON, A. De epitoma lustini quaestiones criticae. Upsal, 1926, TODOROV, T. Estruturalismo e poética. Trad. de J. P. Paes e F. P. Barros. São Paulo, Cultrix, 1971.

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TRADIÇÃO E REVELAÇÃO: PARA QUE SERVE O MITO? JACYNTHO LINS BRANDÃO*

O objeto de reflexão que lhes proponho é um momen~o de aguda crise na história de nossa cultura, crise cujo resultado será justamente a passagem do mundo antigo para o chamado Ocidente moderno. Proponho pensarmos um aspecto do momento de gestação, ou, mais exatamente, de parturição de nossa pr6pria cultura, em que se dá o embate violento do cristiimismo contm o paganismo, a que a posterior vitória daquele como religião da Europa coo ferirá esse aspecto de essencialidade para a compreensão do Ocidente. Seria impossível tmtar aqui de todo o processo, de que as gmndes perseguições contm os cristãos, as carnificinas e os martírios são apenas um aspecto que os martirológios cuidaram intencionalmente de realçar, visando à glorificação da nova fé. Pretendo focalizar um período determinado de tempo - o século ll depois de Cristo, quando surgem as primeims apologias escritas por autores cristãos - e um domínio bem determinado da polêmica - o problema da mitologia grega em face do cristianismo. Não se tmta, nesse caso, de tomar um dado marginal, mas de enfocar mesmo o cerne da polêmica, já que ela se dá como uma luta religiosa de grande envergadura, cujas conseqüências se espalham pelos demais setores do universO sociocultural. Embora os estudiosos da história do cristianismo abordem preferencialmente outros aspectos, como os choques cruentos dos primeiros cristãos com o poder político, os embates com a filosofia, a segregação social e as divergências de práticas cívico-religiosas, não teria receio em considerá-los como. conseqüências daquele de que trato aqui, sem lhes negar a devida importância. Na verdade, eles decorrem de um fundamento que, anacronicamente, poderíamos chamar de "ideológico", constituído por um corpo de mitos dos quais se extmi uma certa visão de mundo e que vem a constituir o cerne da polêmica, no confronto entre uma tmdição que cwnpre a função de garantir e avalizar o sistema estabelecido e a revelação que se introduz nele como elemento estranho e desestabilizador. Nesse contexto do choque entre tradição e revelação, proponho as perguntas que nortearão nossa reflexão: que função tem o mito? para o que é que ele serve? - o que tentarei rastrear, analisando a leitum do mito antigo efetuada por três dos primeiros padres apologistas gregos: Aristides, Taciano e São Justino. Antes de tudo, é preciso frisar que a revelação cristã é um corpo estranho no contexto do mundo helenizado, o que os próprios cristãos cuidaram de realçar ao opor-se aos pagãos ou gentios , termo que em grego se diz tà éthna, isto é, o conjunto dos povos. Aristides de Atenas, • Jacyntho Lins Brandão. Professor de Língua e Literatura Grega na UFMG. Doutorando em Letras Clássicas na USP. Escritor e ensaista.

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na primeira das apologias cristãs que possuímos, provavelmente dirigida ao Imperador Adriano e escrita em 125-126 d.C., divide a humanidade em três grandes grupos: "existem três raças de homens neste mundo: os adoradores dos entre vós chamados deuses, os judeus e os cristãos" (fragmen· tos gregos. l/l. * Como toda divisão. essa pretende captar diferenças a partit de certos critérios, nesse caso o fato de se ter muitos deuse~ ou um 6nico. Judeus e cristãos se separam portanto dos demais, vindo a constituir o diferente num ambiente dominado por religiões politeístas, o que por sua vez fundamenta a necessidade da apologia como defesa da legitimidade da diferença. Esse é, de fato, o motor que levará o cristianismo a efetivar uma leitura do paganismo, num contexto polêmico, em que se afirma reiteradas vezes: se a todos, no orbe romano, é dado ter suas próprias crenças e seus próprios deuses, por que os cristãos são perseguidos? Qualquer leitura do mito grego pelos apologistas tem essa tmalidade imperiosa de situar o cristianismo num universo cultural que o repele como estranho e nocivo. Embora perpasse essa leitura problemas mais urgentes, como a necessidade de demonstrar que os cristãos, como grupo social, não representam perigo para a ordem política vigente, ela se detém especialmente em pontos mais gerais e, por isso, de conseqüências mais amplas, em que se envolve não apenas a esfera humana, mas igualmente o mundo natural e supranatural. Assim, na versão siríaca da apologia de Aristides, que os especialistas consideram como provavelmente mais fiel ao original perdido, a divisão das raças humanas se faz entre bárbaros, gregos, judeus e cristãos (134-151), correspondendo à divisão dos quatro elementos - vento (ou ar), fogo, água e terra- os quais se relacionam com os quatro tfpos àe seres-inteligentes: Deus, anjos, demônios e homens. Diversos estudiosos têm tentado compreender como se conjugam as três seqüências, tendo Wilamowitz, entre outros, sugerido que se deva agrupar Deus, vento (isto é, céu) e cristãos; anjos, fogo e judeus; demônios, água e bárbaros; homens, terra e gregos. Mas tudo não passa de conjecturas. O texto mesmo não oferece pistas, dizendo simplesmente: "são pois quatro os gêneros de homens: bárbaros e gregos, judeus e cristãos. A Deus pois serve o vento, aos anjos o fogo, aos demônios por sua vez a água e aos homens a terra". Fórmula absolutamente enigmática, mas que mostra a contento como se transporta a divisão dos elementos para uma divisão dos seres inteligentes, em que se incluem os homens, os quais se subdividem por sua vez espelhando as divisões superiores. Não é contudo tão simples. Ao ser enquadrado numa distribuição que inclui Deus, anjos e demônios, o homem é deslocado para uma esfera supranatural e supra-humana; como os cristãos, ao serem opostos a bárbaros, gregos e judeus, eocontram-se deslocados, já que ser cristão não é critério êtnico, ou mais exatamente étnico-lingüístico como os demais. Através desses deslocamentos, o que se logra é introduzir os cristãos num contexto a que não pertencem, como se introduz a humanidade em geral numa esfera *As referências a fragmentos gregos e versão sirlaca da Apologia de Aristides remetem para a edição de D. Ruiz Bueno, que consta da bibliografia.

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que não é a sua. Não tenhamos dúvidas de que a Aristides interessa, antes de tudo, situar os cristãos. Estes são o dado que regula a classificação proposta, que os ins«e no mundo sobrenatural, natural e humano. Por outro lado, já que a classificação étnico-lingütstica de Aristides parte na verdade de uma classificação mítico-religiosa, atentando aos deuses que são honrados por cada raça, fica marcada a singularidade do cristianismo nos seguintes termos: cada raça adora seus próprios deuses; apenas os cristãos tém um outro deus. Ou seja, sendo bárbaros, gregos ou judeus, os cristãos não são bárbaros, gregos ou judeus - são uma outra coisa, inclassificável segmdo os critérios correntes, o outro. Procede-se assim a uma separação entre raça, língua e cultura, de um lado, e religião e mitologia de outro, a partir da qual e sa:nente a partir da qual os cristãos poderiam ser classificados, preparando-se o sentido ecumênico do próprio cristianismo. Considerando esse esquema de oposição, o ataque de Aristides será dirigido contra as mitologias dos demais grupos: os bárbaros, isto é, egípcios e caldeus, cometeram a estultícia de fazer deuses dos seres irracionais e dos elementos da natureza; os gregos, "que são mais sábios que os bárbaros, erraram mais que os bárbaros, porque introduziram muitos deuses feitos à sua imagem " (versão siríaca, Vlll, 2); os judeus "são semelhantes aos gentios por mais que de certo modo parecem acercar-se da verdade, da qual verdadeirameute ,se distanciaram" ao negar Cristo (f.g., XIV, 2). Da consideração das diversas mitologias é que surge a esPecificidade do cristianismo, se constrói sua identidade e sé localiza a nova mitologia no contexto da tradição. Com relação à mitologia grega, que aqui nos interessa, Aristides é implacável: os gregos fizeram seus deuses "adúlteros e assassinos, iracundos, invejosos e rancorosos, parricidas e fratricidas, ladrões e assaltantes, cochos, corcundas, feiticeiros e loucos" (f.g., VIII, 3 ). "Ridículas, néscias e ímpias palavras" -continua Aristides- que têm como finalidade justificar que os próprios gregos, "seguindo seus maus desejos, pudessem praticar adultério, roubar, assassinar e fazer todas as coisas mais terríveis. Pois se os próprios deuses fizeram isso, como seus adoradores não fariam?" (f.g., Vlll, 4-5). Toda mitologia grega é, portanto, perniciosa, pois parte do princípio imoral de procurar dar justificativa para os vícios humanos. Dela decorre "que tenha havido para os homens guerras contínuas, matanças e amargos cativeiros" (f.g., VIII, 6). Ela só ensina coisas que não é "justo nem dizer nem ter na memória" (f.g., XI, 5). É preciso avaliar bem o alcance do ataque: os mitos dos deuses e heróis constituem o alicerce sobre o qual se ergue a cultura grega, a garantia de sua identidade pelo resguardo da memória, realizada principalmente na locução das obras de sua literatura, através das quais um grego podia apreender o que seria a grecidade da Grécia. Pois tais histórias não é lícito dizer nem guardar na memória. É, portanto, o próprio fundamento da cultura - a memória e sua expressão - que se põe em jogo. O ataque envereda ainda pelas nuanças da exegese do mito, em que, desde eras muito antigas, os gregos se tinham exercitado, distinguindo nele ora um sentido histórico ou ffsico, ora um sentido alegórico ou simbólico. 34

Cito ainda Aristides: "se pois as histórias sobre os deuses são míticas, não são senão s6 palavras (lógoi); se são ffsicas, não mais são deuses os que estas coisas fizeram e sofreram; se são alegóricas, são mitos e nada mais"' if.g., Xlll, 7). Raciocfnio cin:ularmente intrincado, direcionado para desautorizar totalmente o mito: se o mito nana fatos realmente acontecidos, não podem ser deuses suas personagens; se não narra fatos reais, não passa de mito, mera palavra, apesar do sentido alegórico que neles se possa querer ver. O conceito comum que n6s recebemos do mito grego está muito próximo do de Aristides: o mito é apenas mito, não tem uma relação de verdade com os fatos, e o máximo que se pode tirar dele fica por conta de relações alegórico-analógicas. Solução fácil e simplista, cujas deficiências se fazem sentir para os próprios cristãos. Afinal, o ataque aos mitos gregos se fundamenta no contraponto com uma outra mitologia, a judaico-cristã. No âmbito do judaísmo alexandrino já se levantara o problema do sentido das Escrituras e de como conciliar as exigéncias da moral com as nauativas amorais ou imo~ do Antigo Testamento envolvendo os patriarcas. O método alegórico fora aplicado à Bíblia por Ffl.on de Alexandria, discernindo o que nela teria sentido histórico (ou fJsico), alegórico e espiritual. Desclassificar sumariamente o mito envolvia, assim, riscos para a própria revelação cristã - como atirar pedras no telhado do vizinho, tendo telhado igualmente de vidro. De um certo ponto de vista, o problema coloca-se, pois, em termos da defesa da legitimidade de uma outra mitologia em face da estabelecida, ou seja, defende-se o direito à diferença: "não estamos loucos, 6 senhores gregos, nem anunciamos tolices espalhando que Deus veio a ser em forma humanà' - escreve Taciano, por volta de 170 - "os que nos insultais, comparai os vossos mitos ( mjthous) com nossas narrativas ( diegémasin)" (Discurso contra os gregos, 21). Segue um apanhado de exemplos literários de metamorfoses ou manifestações dos deuses gregos sob forma humana, que conclui com a apóstrofe: "por isso reparai nos memoriais a vós familiares e aceitai-nos como igualmente criadores de mitos" (21). O termo grego é exato: toU.S mythologoúntas, isto é, os que dizem mitos, ou, tentando ser mais ex ato através de um neologismo, os que "mitologam". A diferença estaria, do ponto de vista de Taciano, em que os cristãos, ao mitologarem, não agem insensatamente, enquanto os mitos dos gregos são pura tagarelice (21), o que serve ainda como critério de distinção entre o mythos e o diégema, entre mito e narrativa ou história. O estabelecimento da diferença e, conseqüentemente, da identidade do cristianismo depende de qualquer modo da admissão de semelhanças, a partir das quais se tenta erigir critérios definidores: há evidentes semelhanças entre o mitologar grego e o cristão, mas é preciso discernir entre eles, separando o mito da revelação. De qualquer modo, fica marcada a precedência do primeiro, o que faz com que a revelação possa ser entendida efetivamente como o, outro do mito. O próprio fato de a defesa do cristianismo dever processar-se sob a forma de ataque contra a cultura grega denuncia sua posição de alteridade, isto é, que sua identidade é flutuante e só se institui com relação à diferençL ..Filosofia báibara", é como Taciano deíme a nova religião. Bárbaro não 35

se define por uma afinnação, mas por uma negação: aquilo que não é grego. Sem o ponto referencial do que é grego não se pode saber o que é bá.Ibaro, o que fica bastante claro quando Taciano, dirigindo-se aos gregos, declara: "Tais coisas, o s~nhores gregos, compôs para vós Taciano, que filosofa segundo os bátbaros, nascido na terra dos assírios, educado primeiro nas vossas coisas, depois nas que agora anuncia a proclamar'' (42 ). Um bá.Ibaro de nascimento e dt. crença, culturalmente colonizado, que investe contra a matriz cultural dominante: um exemplo particular da situação geral do cristianismo nascente. A investida apologética passa, em primeiro lugar, pela destruição da pretensa homogeneidade do dominante, tido como o modelo, o clássico: "por que pois, 6 homem, desencadeias a guerra das letras? por que, como em luta, fazes chocar sua pronúncia com o sussurro dos atenienses? se pois aticizas, não sendo ateniense, diz a causa por que não dorizas? como este dialeto te parece mais bá.Ibaro e aquele mais agradável para a conversação?" (Taciano, 26). O que se passa com a língua grega repete-se com a fllosofia e a mitologia, em que não há unidade, argumento levantado insistentemente pelos apologistas: "divergências tendo de doutrinas, fazeis guerra, sem acordo de opiniões, contra os entre si concordes?" (Taciano, 25). De fato, ao apresentar os cristãos como um grupo coeso em face de um grupo em que se detectam tantas diferenças, Taciano visa a problematiz.ar a pr6pria identidade do ser grego: "havendo divergência entre v6s no que não deveria haver, não atino a quem deva chamar grego" (1). Em segundo lugar, a defesa supõe mostrar como as instituições bá.Ibaras são mais antigas que as gregas, como os gregos mentem ao se proclamarem inventores daquilo que apenas aprenderam de outros povos. Entre outros exemplos, Taciano declara que os gregos tomaram dos babilónios a astronomia; dos persas, a magia; a geometria, dos egípcios; o alfabeto, dos fenícios; de Orfeu, o canto e a poesia, bem como a iniciação nos mistérios; dos etruscos, as artes plásticas; dos egípcios, a historiograíJ.a; dos ciclopes, o trabalho com os metais; e até, curiosamente, de uma mulher que reinou sobre os persas, a arte de escrever cartas (1). Como tudo isso os gregos aprenderam dos bá.Ibaros, também aprenderam a sabedoria- o que Taciano demonstra provando, através de complicadas cronologias, como Homero, "o mais velho dos poetas e historiadores", é posterior a Moisés, o principiador," o autor (arkhegón) de toda a sabedoria bá.Ibara" {31). Essa prova de antiguidade Taciano toma de São Justino, seu mestre, que havia escrito suas apologias alguns anos antes, em tomo de 155. Judeu da diáspora helenizado, fil6sofo que, convertido, não abandonou a filosofia, Justino não se deixa levar apenas pelo ataque direto das instituições gregas, mas despende um grande esforço em conciliar parcialmente a revelação cristã com a tradição filos6fica antiga. Geralmente os modernos estudiosos s6 enfocam esse aspecto de sua obra, descartando o esforço de aproximação com a mitologia como irrelevante, devido unicamente ao meio para o qual Justino escreve, o que considero uma atitude evidentemente preconceituosa. Ora, na verdade, a famosa teoria do lógos spermatikós, o lógos (ou razão) divino disseminado entre os gentios, que os teria levado a conhecer parte 36

da verdade revelada totalmente em Cristo, s6 tem sentido se em mlação com a prova de antigüidade de Moisés e com a teoria da ação dos demônios na mitologia. As três soluções, com efeito, procuram responder ao problema das semelhanças entre cristianismo e cultura grega, urgente e essencial naquele momento de afirmação da nova fé, a partir do que se marca ao mesmo tempo sua novidade e seu caráter 6nico. Não é aqui o lugar de considerar em detalhes o interessante problema da filosofia. Gostaria de dizer apenas que, em geral, admitindo que nos filósofos gregos, sobretudo em Platão, há aspectos de verdade, Justino intenta demonstmr sua dependência de Moisés, pela prova de antigüidade, "pois Moisés é mais velho que todos os escritores gregos. E tudo quanto a respeito da imortalidade da alma ou dos castigos após a morte ou da contemplação das coisas celestes ou de doutrinas semelhantes disseram os f"llósofos e poetas, dos profetas tomamm ocasião tanto para podeS-lo entender quanto para expressar. Por isso parece haver em todos sementes de verdade, mas demonstram não terem entendido com clareza quando falam uns contra os outros" (Apologia I, 44, 9-10). Se as coincidências no campo da filosofia se explicam através de influência literária, o que se passa com relação à mitologia? Logo no início da primeira apologia, Justino formula sua teoria sobre os mitos: "Pois direi a verdade: nos tempos antigos, demônios maus, fazendo aparições (epiphaneía), tanto violaram as mulheres, quanto corromperam os jovens e mostmram espantalhos aos homens (••• ) (estes), não sabendo que eram demônios maus, os chamaram de deuses, e a cada um chamaram pelo nome que cada um dos demônios p6s em si mesmo" (I, 5, 2). Notem bem como a teoria de Justino não descarta que os deuses tenham existido de fato e que de fato constituam epifania do sobrenatural, o que implica no reconhecimento de que o mito possa ter um sentido tisico. Essa demonologia mítica, em vez de desautorizar o mito como mera invenção de poetas, de um certo modo o referenda, assimilando-o para o âmbito da mitologia judaicocristã, atitude sem d6vida mais eficaz para o objetivo sempre presente de defender o espaço do cristianismo no seio do helenismo e mais desestruturadora para o imaginário grego que a negação radical do mito. A ligação entre as duas mitologias toma-se mais clara quando, para explicar a origem dos deuses pagãos e a forma como agiram, conforme o relatado pelos poetas, Justino recorre à interpretação então corrente de passagem do Gênese (6, 4), segundo a qual, "depois que os iJlbos de Deus tiveram relações sexuais can as filhas dos homens", geraram os gigantes. Conforme Justino, desse processo é que surgiram os deuses gregos quando, depois que Deus criou e regulou o mundo, por amor dos homens, "entregou o cuidado destes, assim como das coisas sob o céu, aos anjos (-.) Mas os anjos, ultrapassando esta ordenação, deixaram-se vencer pelo amor das mulheres e geraram filhos, que são os chamados demônios. E a seguir escravizaram o gênero humano, por meio de signos mágicos, por meio do medo e do terror (••• ) E semearam !entre os homens assassinatos, guerras, adultérios, vícios e toda maldade. Daí tanto poetas quanto mitólogos, desconhecendo que os anjos e os demônios nascidos deles estas coisas 37

faziam com homens, mulheres, cidades e povos, estas coisas escreveram e atribuíram ao próprio Deus e aos filhos nascidos de sua semente e aos chamados seus innã<~~, Poseidon e Plutão, e igualmente aos filhos destes" (ll, 4, 2-6). Néo podemos negar que, com essa explicação, Justino logra descobrir num dado bíblico totalmente estranho ao imaginário grego, por envolver a idéia de um Deus único, a criação do mundo e a angelologia judaica, um meio de enquadrar toda a mitologia grega no sistema judaicocristão, fazendo agir sobre os dados dispersos de que dispõe um esforço hermenêutico direcionado pelo interesse da defesa do cristianismo. A doutrina da dependência dos filósofos com relação a Moisés tem, pois, aqui, seu equivalente, no campo da mitologia. Mas se assim se explica de um ponto de vista cristão a natureza d9s deuses pagãos objeto da mitologia, não se explicam as inúmeras coincidências d<11 mitos com a revelação, que a Justino interessa ressaltar, a fim de tomar mais consistente a apologia, nos termos referidos por pmticamente tooos os primeiros padres apologistas: se nós proclamamos coisas semelhantes às.ensinadas por vossos mitos, por que só nós somos perseguidos? Chega-se, por força dessa nece&-;idade, a nova teoria relativa aos demônios: "os que transmitem os mitos feitos pelos poetas nenhuma demonstração dão aos jovens que os aprendem de cor, e nós demonstramos que foram ditos para engano e desvio do gênero humano pela forçados maus demônios" (1, 54, 1). A explicação que segue, a um tempo justifica as semelhanças e estabelece um sentido para a mitologia pagã, cujo objetivo escondido e de longo alcance seria provocar confusão no meio historicamente determinado, segumo o plano divino, para receber a revelação cristã: os demônios, "ouvindo pois através dos profetas o anúncio de que Cristo havia de vir e de que os ímpios dentre os homens haviam de ser castigados, lançaram muitos adiante, dizendo-se filhos nascidos de Zeus,julgando poder conseguir que os homens considerassem as coisas a respeito de Cristo uma história fantástica (teratologia), semelhante ãs que são ditas pelos poetas. E isso se disse também entre os gregos e entre todos os povos onde ouviram ser proclamado pelos profetas que mais se haveria de crer em Cristo" (I, 54, 2). Ao fazer dos demônios, como dos filósofos, ouvintes (leitores) dos profetas, várias intenções cruzam-se no texto de Justino: de um lado, a necessidade de reconhecer que há semelhanças entre as histórias dos poetas e a revelação; de outro, o interesse de provocar alguma espécie de discernimento entre esta e aquelas, para evitar o risco de reduzir a revelação à mitologia ou, dito de outro modo, para negar o caráter mitológico da própria revelação; enfim, o esforço de enquadrar o mito no plano salvacionista cristão, através da admi&-;ão de que a existência da mitologia demonstra como desde sempre estava prevista a cristianização dos pagãos. Indício da eleição dos gentios e transmitindo algo de verdade, fica o problema de como discernir o que há de verdadeiro no mito e de como utilizá-lo legitimamente. Justino repete então, com relação aos demônios, o que supusera a respeito dos filósofos: "ouvindo o dito através dos profetas não o entenderam com clareza, mas, errantes, imitaram ( emimésanto) o que dizia respeito a nosso Cristo" (I, 54, 4). Imitação (em grego mímema) neste caso é um 38

conceito básico, que o próprio Justino esclarece: de um lado há um conhecimento parcial, procedente de sementes ( spérmata) e efetivado como imitação (mímema) segundo a capacidade (dfnamin); de outro, está a revelação, o próprio lógos que se dá a conhecer segundo a graça (khárin) dele mesmo, da qual procedem a participação e a ação de imitar (metousla kai mlmesis), o y_ue gera uma opoSição entre o imitado (mimema) e aquilo de que provém a imitação (mfmesis). A sabedoria antiga. com sua mitologia, se enquadram no primeuo upo, correspondendo .o segundo a revelação cnstã. Assim, por exemplo, os demônios ouviram o que, no Gênese, átz Moisés: "não faltará governante em Judá nem chefe em suas coxas, ate que venha aquela a quem está reservado; e ele será a expectação dos povos, ãtando à vinha seu Jumento, lavando sua túnica no sangue da uva" (1, 54, 5). Ouvindo, pois, estas palavras proféticas, aplicadas pelos exegetas cristãos a Cristo, e pretendendo confundir a posteridade, "os demônios disseram que Dioniso era ftlho de Zeus, transmitiram que tinha sido o inventor da vinha, inscreveram em seus mistérios o asno e ensinaram que ele, tendo sido despedaçado, subiu aos céus" (I, 54,6). Compreensão incompleta e confusa do dito profético, que Justino descobre ainda no remedo dos mistérios de Cristo presentes em outros mitos, como os de Belerofonte, Perseu, Héracles, Asclépio (I, 54, 7-10), Core e Atena, cujo comentário vale a pena citer, pois remete para dados básicos da personalidade de Cristo - o ser o lógoJ divino e o ter nascido de uma virgem sem contato carnal: "com semelhante malícia disseram que Atena era ftlha de Zeus, não procedente de união sexual mas, já que souberam que, tendo pensado, Deus criou o mundo através do lógos, disseram que Atena era como o primeiro pensamento: o que consideramos ser muito ridículo, apresentar uma imagem do pensamento em forma de mulher" (I, 64, 5-6). A crítica à mitologia grega assume assim em São Justino um aspecto especial, pois visa não à destruição sumária do mito, mas à sua inclusão na órbita da mitologia cristã, o que o desclassifica como equívoco demoníaco. Incluído no contexto do mundo helenizado, creio que Justino percebe relativamente bem que a sobrevivência do cristianismo depende da leitura que se lograr fazer da totalidade da história: o paganismo prepararia o cristianismo, ainda que imperfeitamente, como o mito pagão prepararia a revelação, ainda que através de remedos, já que a epifania de Cristo, segundo a expressão de São Paulo, vem a ser a "plenitude dos tempos". Envereda-se assim pelo campo da mitologia comJ:Urada e da hermenéutica do mito, em que as diversas leituras dependem dos interesses de quem Ié. Movido por esses interesses, Justino não tem escrúpulos de apossar-se da totalidade da cultura antiga, afirmando que "quanto junto de muitos está dito bem, pertence a nós, cristãos" (II, 13, 4); ou ainda: "os que viveram conforme o lól(os são cristãos, ainda quando chamados ateus, como, entre os gregos, S6crates, Heráclito e os semelhantes a eles, e, entre os bárbaros, Abraão, Azarias, Misael, Elias e muitos outros" (I, 46, 3). Ele vai ainda mais longe, movido pela necessidade historicamente premente da apoio gia: Sócrates foi peiSeguido e morto pelo mesmo motivo por que os cristãos também soo, sob a acusação de que introduzia novos demônios e não reconhecia os que a cidade tinha 39

por deuses (I, 5, 3-4). "Mas a verdade é que, expulsando da reptíblica Homero e os outros poetas, ensinou os homens a rechaçar os maus demônios que cometeram as abominações de que falam os poetas, ao mesmo tempo em que os exortava ao conhecimento de Deus (••• ) Isso foi justamente o que fez nosso Cristo por sua própria virtude (••• ) Cristo que em parte foi conhecido por Sócrates" (II, 10,6-8). Se Cristo equivale parcialmente a Sócrates, elimina-se o problema da diferença, o outro torna-se igual ao mesmo. Mais ainda: já que ambos combatem os demônios e transmitem o conhecimento do Deus verdadeiro, inverte-se todo o sistema, passando os deuses antigos à condição de alteridade. Na verdade, conforme o imaginário cristão, o demoníaco é a esfera do outro - a Deus se reserva o estatuto do mesmo, realizado em grau supremo na sua absoluta unidade, singularidade e simplicidade, na absoluta igualdade consigo mesmo. É a mesma necessidade de subverter o sistema que justifica a prova de antiguidade, pois, se os mitos são remedo dos profetas, como a filosofia, o ponto de referência passa a ser a chamada "filosofia bárbara", em torno da qual se colocam outras filosofias. Curiosamente, do lado grego, o filósofo Celso, escrevendo na mesma época, critica o caráter mitológico do corpo de doutrinas dos cristãos, afirmando que foram estes que tomaram as doutrinas dos filósofos e dos poetas ao tigos, deturpando-as por não poderem compreendê-las com clareza (cf. Orígenes, Contra Celso). Além, pois, de saber quem rouba de quem, e justamente por isso, o que fica claro é como ser reduzido à condição de alteridade envolve riscos para os dois lados. Negando o mito grego sumária ou parcialmente, os apologistas cristãos não agem com isenção, nem seria de esperar que o fizessem, pois suas doutrinas não são fruto de debates acadêmicos, mas de urgentíssimos problemas de identidade vivenciados no dia-a-dia. Por outro lado, o fato de se ocuparem do Il"ito pagão, já de antemão tendo certeza inamovível de que era forçoso que representasse o erro em face da revelação, demonstra como constituir uma identidade supunha entrar em diálogo com a tradição. A revelação sozinha não tem eficácia se ignorar a tradição. Taciano declara que fala das coisas gregas à moda grega não porque veja nelas algum valor, mas porque só assim se poderia fazer entender pelos gregos. Eu diria: não porque desejasse o verdadeiro diálogo, que supõe a abertura para assimilar opiniões alheias, mas porque sem um mínimo de inteligibilidade no contexto de uma tradição rica e, ao contrário do que se afirma freqüentemente, ainda viva e atuante, o cristianismo se inviabilizaria. É preciso, pois, problematizar o lugar comum de que, num mundo decadentista, o cristianismo se teria difundido por ser a tíoica força capaz de dar renovado sentido à existência. O que se constata, de fato, é um paciente trabalho para tirar a nova religião da marginalidade, o qual, desenvolvido com radical constância através dos séculos, logrará formular uma visão global e teleol6 gica da história sob a 6tica cristã, como a que A cidade de Deus, de Santo Agostinho, lega à posteridade.

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Quando se introduz Cristo como o critério da história e o plano divino para a salvação do mundo, realizado historicamente em cada cristão, como seu motor, alcança-se finalmente o objetivo que. no universo cristocêntrico da Idade Média européia, cristalizarâ o mito grego como o outro monstruoso da revelação, oposta a ele sob a roupagem de história sagrada, do modo como o demônio é o outro de Deus. BIBLIOGRAFIA BULTMANN, R. Primitive chrlstianity in its contemporary aetting. Cleveland, World Pub., 1966. B URCKARDT, I. Dei paganismo ai cristianismo. México, Fondo de Cultura Económica, 1982. GIGON, O. La cultura antigua y el cristianismo. Madrid, Gredos, 1970. JAEGER, W. Cristianismo primitivo y paideia griega. México, Fondo de Cultura Económica, 1985. . LABRIOLE, P. de. La reaction pafenne. Paris, 1934. ORfGENES. Contra Celso. Madrid, BAC, 1967. ROUGIER, L. Celse contre les chrltiens. Paris, C opemic, 1977. RUIZ BUENO, D. Padres apÓlogetas griegos. Madrid, BAC, 1979 (cont&n os textos utilizados de Aristides, Taciano e São Justino, em edição bilíngüe). WI FSTRAND, A. Die alte Kirr:he und die griechische Bildung. Bern, Francke, 1967.

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PROBLEMAS DO MITO NO OCIDENTE MEDIEVAL JEAN-ClAUDE SCHMITT*

Há várias maneiras de entender a palavra "mito". A mais comum, que é também a mais vaga, contém a idéia de um saber coletivo, imaginário e falacioso, que preenche uma função social de mobilização: a crítica não apenas .. desmiti.ficadora" mas .. desmistificadora" de um determinado mito é a única que pode elucidar suas vítimas. Mito e ideologia são, portanto, aqui, noções muito próximas, e nossa época- que reconhece suas ideologias com a mesma facilidade com que proclama periodicamente a sua morte - é muito rica em mitos: mitos racistas que af"lrmam a superioridade de uma raça humana ou de um povo sobre os outros; mitos políticos anunciadores de uma sociedade sem classes ou de outros "futuros promissores"; mitos mercantis que impõem a cada um as vertigens do consumo, as miragens do dinheiro ou a fascinação do auLOm6veL Essa acepção da palavra "mito" destaca mais as funções sociais do que sua forma narrativa. Por outro lado, a palavra "mito" pode ser entendida também em um sentido mais restrito, mais técnico: um mito é um tipo de nmativa muitas vezes transmitida oralmente antes de ser eventualmente registrada por escrito e que exprime as verdades essenciais de uma sociedade; fala dos deuses, das origens do mundo e das razões da organização social; enuncia o fundamento dos costumes e das atividades dos homens. Tal é a noção do mito para as ciéncias religiosas, a antropologia e a história da Antiguidade. Tomado nesse segundo sentido, o mito parece ausente de nossa sociedade contemporânea. Consideramos que a expressão das verdades essenciais de nossa cultura passa por outros canais: pelo discurso da ciência, principal fator de desmiti.ficação da explicação religiosa do mundo; pela filosofia, discurso reflexivo sobre todos os outros saberes. O fato, aliás, não é novo: a partir do século V a.C., a emergência do logos se faz acompanhar do distanciamento crítico do mythos. Esse processo teria sido concluído pela ciéncia e pela filosofia modernas a partir dos séculos XVII e XVIII. Mas, se a causa parece clara para a Grécia Antiga e para a Época das Luzes (e também, em oposição, para as "sociedades sem escrita"), o que dizer da "idade teológica" da história européia, em que as categorias de religião, de ciência e de fllosofia parecem muito mais misturadas? Como se coloca a questão do mito na cristandade medieval? Vários traços fuodamentais parecem caracterizar a questão do mito no Ocidente medieval: 1. O cristianismo constitui aí, sem dúvida, urna mitologia, em todos os sentidos da palavra. Mutatis mutandis, ele é o equivalente, para essa • Jean ·Claude Sdtmitt. Diretor de Estudos na Ecole des H autes Etudes en Sciences Sociales/ França. Doutor em História pela Sorbonne. Ensaísta.

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sociedade, das mitologias das "sociedades sem escrita" ou de Homero e Hesíodo. 2. Mas, ao mesmo tempo, a cultura cristã erudita nunca deixou de construir sobre seus "mitos" um discurso crítico que a reaproxima, em uma certa medida, da Itlosofia grega. 3. Longe de estar esclarecida definitivamente, a mitologia cristã não deixou de se desenvolver durante os séculos, e a literatura ',ap6crifa, a hagiografia e as lendas cristãs vêm completar, amplificar o núcleo original do mito cristão. 4. Ao contrário do que o antropólogo descobre nas "sociedades sem escrita" ou do que o historiador da Antiguidade observa na Grécia, a cristandade não teve uma mitologia unificada, homogênea, mas, antes, uma mítica nebulosa, da qual seria necessário analisar os componentes e as relações internas. A MITOLOGIA CRISTÃ 1. O cristianismo possui todos os traços de uma mitologia. Apresenta longas nall'lltivas, conhecidas, às vezes, por várias versões diferentes (como os quatro Evangelhos), que dizem tudo sobre a origem do mundo, do homem, dos poderes invisíveis, da ordem social, e que orientam, na cristandade, todas as ações individuais (ver o tema do pecado) ou coletivas (por exemplo, a instituição da realeza ou do sacerdócio). O Antigo Testamento presta-se, antes de tudo, a essa definição: há muito tempo foram reconhecidos, nas nanativas do Gênese, do Dilúvio ou da Torre de Babel, esquemas míticos partilhados pelas antigas civilizações do Oriente próximo.! O próprio Novo Testamento não foge à ciência dos mitos: como não reconhecer na história do Filho de Deus nascido de uma virgem, levado à morte, ressuscitado, um esquema mítico bastante comum? Além disso, Cristo falava por parábolas, inscrevendo assim, ele mesmo, a presença do mito na sua história. Não há, portanto, nada de smpreendente no fato de que, a partir do século XIX, a ciência do folclore, com, por exemplo, Paul Saintyves, 2 tenha procurado nas Escrituras, inclusive no Novo Testamento, esquemas míticos igualmente registrados em outras culturas. Hoje, esse reconhecimento de uma "mitologia cristã" pode ser proposto sem espírito polêmico: ele emana somente de uma atitude antropológica 1 Para uma abordagem de conjunto, ver a contribuição de SZNYCER, Maurice sobre os semitas ocidentais no Dicticnnaire des mythologies. Paris, Fliunmarion, 1981. p.421~. t.II. Em uma publicaçio mais antiga, ver a obra cl4ssica de FRAZER, J.G. Folklore in the Old TestQ11U!IIt: studies in comparative religion, legend and law. Londres, 3v. Em dltimo lugar: LEACH, Ed. Genesis as myth and other e.ssays. Londres, Cape, 1969. IEACH, Ed. & AYCOCK, D. Alan. Structuralist interpretations of biblical myth. Cambridge, Cambridge Univ. Presa, 1983. 2SAINTYVES, P. Essais de folklore biblique. Magie, mythes et miracles dans f Ancien et /e Nouveau TestQ11U!IIts. Paris, E. Nourry, 1922.

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que, ao se afastar do "etnocentrismo" tradicional da cultura ocidental, aceita ver no cristianismo um sistema religioso dentre outros, sem que nada seja extraído de sua especificidade. Há quarenta anos, um teólogo, R. Bultmann, chegou a propor, não sem provocar polêmica, "desmitologizar" ( Entmythologisierung) os Evangelhos: sob a influência de Heidegger, parecialhe necessário reencontrar a verdadeira essência daRevelação, seu kerygma, sob o inv6lucro do mythos da história de Cristo. 3 2. No entanto, exceção feita de sua evolução recente, o cristianismo sempre procurou preservar-se de ser visto como uma mitologia: a partir da era apostólica, depois entre os padres da Igreja, ele definiu-se, ao contrário, por oposição ao mito. Para ele, o mito era a verdade dos outros, isto é, o erro, a fábula. Essa atitude negativa estava relacionada, antes de tudo, ao paganismo greco-romano. Os deuses antigos eram identificados a demônios (omnes dii gentium daemonia, diz Santo Agostinho), a personificações dos astros e das forças da natureza, ou ainda - segundo a antiga teoria evemerista, retomada pelos autores cristãos - a homens divinizados devido a seus méritos: quos pagani deos asserunt, homines olim fuisse produntur, diz Isidoro de Sevjlha. 4 Os pagãos eram também acusados de terem copiado e falsificado as verdades reveladas do Antigo Testamento, anteriores a todo o paganismo. 5 Já na latinidade pagã, a palavrafabula havia sido tomada como equivalente do grego mythos: tradução que reforçava a idéia pejorativa de uma narrativa fictícia e vã. Para Macróbio, só uma pequena parte de fabulae narrationes era digna de alimentar a reflexão do filósofo. 6 No Novo Testamento, as cinco ocorrências de fabula (ou de mythos na Bíblia grega) têm todas uma conotação pejorativa que atribui aos judeus e aos pagãos as "fábulas ineptas contadas por velhas senhoras" e os "mitos artificiosos". 7 A esses mitos, opõe-se o acontecimento único, "que só ocor-

3BUL TMANN. R. Neues Testament und mythologie. ln: _ _ • Kerygma und MytluM. I. Hambourg, H.w. Bartsch, 1948. 4DE SEVILLE, lsidore. Etymo/ogiae. VIII. 11. De diis gentium (MIGNE, PL 82, 314). 5PEPIN, Jean. Christianisme et mythologie. Jugements ch.rétiens sur les analogies du paganisme et du christianisme. ln: Dfctionnaire des mytho/ogies, sob a direçio de Yves Bonnefoy. Paris, Flammarion, 1983, ~ p.161-71. A tese da anterioridade e do furto desfrutou de uma considerável longevidade; para CORBLET, Jules. Parai/Ales des traditions mytho/ogiques avec les rkits bibliques. Beauvais, 1845, ela vale para todas as religiões do mundo, incluindo a ''chinesa ou a hindu: •Todas as mitologias buscam sua origem na tradiçlo judaica que os povos antigos travcstiram a ponto de torná-la quase irreconhectvel (p.1). 6 MACROBIUS. Commentary on tire dream of Scipio. Éd. W.H. Stahl. New York Londres, Columbia Univ. Prcss, 1952. 7 Todas essas passagens pertencem às eptstolas: 1 Tim. 1-4: •Neque intenderent fabulis et genealogia". 1 Tim. 4-7: •Ineptas autem et aniles fabules devita••. 2 Tim. 4-4: •Et a veritate quidem auditem avertent, ad fabulas autem convertentur".

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reu uma vez", "uma única vez", diz São Paulo (Heb., 7-27 e 9-26), da Paixão redentora de Cristo. Para os cristãos, a Encarnação não pode ser um mito. Em nossa época ainda, para o teólogo Oscar Cullmann, esse acontecimento único é o núcleo sólido da história da Salvação, que foge a toda interpretação mitológica.s Na Alta Idade Média, as Etimologias de Isidoro de Sevilha também rejeitam a parte ficcional das fabulae, de que é preciso desconfiar: "os poetas denominaram as fábulas segundo o verbo fari porque elas não são fatos que realmente aconteceram, mas apenas ficções da linguagem". Isidoro cita, por exemplo, as fábulas de Esopo, que já constituíam a categoria inferior dasfabulae distinguidas por Macróbio, aquelas dentre as ficções que não têm outro objetivo senão distrair e que o filósofo' deve deixar para as contadoras de história. À fabula, Isidoro opõe a historia, que é "a narração dos fatos acontecidos que possibilita conhecer as ações do passado" .9 Historia versus fabula: essa oposição é, por essência, a da verdade e do erro, do cristianismo ou do judeu-cristianismo e do pagani!mo. Para Isidoro, retomado por toda a tradição dos enciclopedistas medievais - por exemplo, por Vincent de Beauvais no século XIII -, Moisés foi o primeiro apud nos a escrever "histórias" •10 A "história santa" não pode ser um mito. Ao que certamente podemos responder hoje: não há razão alguma para não considerar a "história santa" como o mito fundamental da sociedade cristã. Mas é um mito particular, que se distingue de outras mitologias por sua dimensão histórica. Ele se desdobra efetivamente em um tempo acabado desde as origens do mundo (o Gênese) até os últimos dias (o Juízo Final do Apocalipse) de um lado, e de outro, de um instante crucial, marcado por uma inversão da cronologia: a Encarnação do Filho de Deus. A cristandade não apenas não é uma "sociedade fria", para retomar aqui os termos do velho debate entre história e estruturalismo, mas é uma "sociedade quente", que teve plena consciência de sua natureza histórica. Ao contrário, por exemplo, do helenismo, seu pensamento sobre um tempo acabado fundamenta todo o seu mito. 11 3. Em contrapartida, a exemplo da fllosofia grega, toda uma parte da cultura cristã- seu nível de sabedoria - acompanhou sempre a expressão Tite. 1, 14: •Non intendentes Judaicis fabulis et mandato is hominum•. 2 Petr. 1-16: •Non enim doctas fabulas secuti-" Tradução do grego: •sesophismenoi muthoi". 8cULLMANN, o. Le mythe dans les êcrits du Nouveau Testamento ln: BAR TH, K. (ed.). Comprendre Bultmann. Un dossier. 1970, p.15-31. Cf. PUECH, H..Ch. Temps, histoire et mythe dans le christianisme des premiers temps, (1951), retomado em: En quite de la gnose. I. Paris, Gallimard, 1978. p.1-23. 9oE SEVILLE, Isidore. Etymo/ogiae. I, 40 (MIGNE, PL 82, 121·2). 10oE BEAlNAIS, Vincent. Speculum doctrlnale. III, cap. 113. 11 PUECH, H..Ch. Temps, histoire et mythe dans le christianisme des premiers temps, (1951), retomado em En quite de la gnose. I La gnose et ie temps. Paris, Gallimard, 1978. p.1-23.

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do mito cristão de um discurso "distanciado" e "desmitologizante" sobre esse mito: esse discurso é, desde os padres da Igreja, o da exegese bíblica. 12 Na Idade Média, a função "desmitificadora" da exegese dizia respeito, antes de tudo, ao Antigo Testamento. A Lei Antiga era, com efeito, reduzida pela Encarnação, senão ao nível do mito, ao menos ao de uma prefiguração do Novo Testamento, o único que era plena e literalmente história. A verdade do Antigo Testamento só podia ser decifrada sob o véu das imagens, que são precisamente o peculiar do mito. É o que explica Orígenes em Contre Ce/se (II, 4 ): "Aos judeus, que têm uma inteligência de criança, a verdade era ainda proclamada sob a fonna de mitos" •13 Daí o status ambíguo do Antigo Testamento: ele é já a "história santa", mas sem que a sua verdadeira significação seja dada claramente; como o mito, ele deve ser interpretado pela exegese cristã, que se distingue da exegese rabínica por sua recusa a limitar-se a uma interpretação literal do Antigo Testamento. Ao fazer isso, a cultura cristã erudita forjou, em relação ao texto bíblico, instrumentos de análise e de interpretação que ela saberá utilizar também em um outro domínio: aquele, como será analisado, da mitologia greco-romana. Esse discurso "desmitificador" do cristianismo sobre seu próprio mito religioso teve um impulso considerável nos séculos XII e XID, quando se afinnaram nas escolas urbanas, depois na universidade, os métodos da teologia escolástica. A lógica de um Abelardo ou as regras da disputatio universitária procuravam reduzir as contradições e recusavam a ambivalência característica do símbolo e do mito. A razão teológica afinnava-se contra a razão do mito; ela carregava em si mesma a condenação desta última. Com Platão, a cidade grega havia conhecido uma evolução análoga e que influenciou bastante a história particular da racionalidade cristã: quando se começa a falar do mito, toma-se cada vez mais diffcil falar por mitos. O DESENVOLVIMENTO DO MITO CRISTÃO Se a Bíblia é o receptáculo de mitos, ela foi também o ponto de partida de um grande número de tradições mais ou menos legítimas, apócrifas e, às vezes, até heréticas, que o cristianismo (como anterionnente o judaísmo) não deixou de engendrar. Do vasto corpus de textos apócrifos, a Igreja distinguiu pouco a pouco os textos que ela julgava "autênticos". Aqueles que eram ofiCialmente rejeitados não inspiraram, no entanto, menos profun-

12 ver a sfntese sempre fundamental de SMALLEY, BeryL The study of the Bibk ln the Middk Ages. Notre Dame, lnd., Univ. of Notre Dame Presa, l~re 6d., 1952. RICHE, Pierre & LOBRICHON, Guy. Le Moyen Age et la Bibk. Paris, Beauchesne (Bible de tous les temps, IV), 1984. 13citado por DETIENNE, MarceL Le mythe en plus ou en moi1111o L'lnfini, 6, 1984, p.27-41.

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damente, durante a Idade Média, a literatura devota e a arte religiosa: eles pertencem inteiramente à mitologia cristã. A parte apócrifa da mitologia cristã pôde se desenvolver ainda mais pelo fato de não estar contida nos cânones estreitamente controlados do dogma. Completando os textos legítimos, ampliando-os, preenc!lendo suas lacunas aparentes, retomando apócrifos judeus anteriores ao cristianismo (como o Livro de Henoch), a literatura apócrifa preocupou-se, particularmente, em esclarecer os episódios obscuros da vida de Cristo, as origens do Mal e os Fins últimos da humanidade. Assim, os Evangelhos silenciam inteiramente sobre os doze primeiros anos da vida de Cristo; ao contrário, os Evangelhos da infância procuraram preencher essa lacuna. No final da Idade Média, uma sensibilidade maior em relação à infância garantiu o sucesso de seus temas realistas e, às vezes, bastante engraçados. 14 O silêncio é quase completo também em relação ao tempo transcorrido entre a morte de Cristo e a sua ressurreição: três textos canônicos fazem uma breve menção à ressurreição de Cristo "de entre os mortos" •15 O apócrifo Evangelho de Nicodemo desenvolve, ao contrário, a narrativa da "Descida ao Limbo", que desfrutou de uma popularidade considerável a partir do século XII. 16 De origem oriental, as narrativas apócrifas da vida e da morte de Cristo não pemtaneceram literatura morta depois de traduzidas no Ocidente: durante toda a Idade Média, elas não deixaram de ser ampliadas e ornamentadas com legendas hagiográficas e com a imensa literatura das peregrinações e das viagens à Terra Santa. 17 A partir do século Xill, a narrativa de viagem de Jean de Mandeville - cujo autor talvez nunca tenha deixado a cidade de Liege, onde era médico 18 - foi a origem de numerosas narrativas que se repetiram pelo menos até o fmal do século XVI. Na Palestina, no Sinai (no mosteiro de Santa Catarina) e até no Egito, os cristãos vinham passar sobre as marcas ainda visíveis de Cristo, da Virgem ou dos santos dos primeiros tempos. Cada um dos locais marcados pela "história santa" - Belém, Canaã, o Gólgota, o Santo Sepulcro, ou, mais além, a árvore da Virgem de Matarieh - tinha seu tesouro de narrativas maravilhosas e edificantes. Para além, abriam-se, ainda, outros espaços que o imaginário povoava de pagãos e de raças monstruosas: é o que afirmava a literatura de ficção, como a legenda de Alexandre ou a Carta do Padre 1 oão, e

14r_~vANGILE DE L'ENFANCE. R6dactions syriaque, arabe et arm6nienne. Paris, 1914. Sobre a literatura ap6crifa, ver: TISCHENDORF, c. de. Evangelia apocrypha. 2.ed. Leipzig, 1876. 15Matth. 27, 64 e 28. 7.- Act. 2, 31.- Eph. 1, 20.

~m dltimo lugar: LE GOFF, I. Les limbes. Nouvelle Revue de Psychanalyse XXXIV. ("'L'attente"). Outono 1986. p.151-73. 17ver o estudo clâssico de HALBWACHS, M. La topographie llgendaire des Evangiles en Te"e Sainte. 2.ed. Paris, 1971. 18LETTES, Malcolm. Mandevtlle's traveis. Londres, 1953. 1

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que vinham confmnar autênticos relatos de viajantes. Dentre elas, apenas uma minoria - como a narrativa de Guillaume de Rubrouck 19 - atesta um verdadeiro senso de observação. No interior da cultura cristã dos séculos XIII-XIV, todas essas tradições formam um conjunto notável por sua amplitude e também por sua coerência. Em um estudo pioneiro da mitologia cristã dos aromatas e, mais especificamente, das representações relativas à busca do Santo Crisma, Jean-Pierre Albert resgatou recentemente a estrutura mítica de todo esse corpus de textos -narrativas de viagem, hagiografia, bestiário, liturgia, etc. A simbologia, os hábitos litúrgicos (unção do batismo, dos padres, dos doentes) e os mitos relativos ao Santo Crisma - fruto presumível do bálsamo de Matarieh, que as gotas do suor do Menino Jesus tinham feito crescer enquanto a Virgem repousava nesse local durante a fuga no Egito - permitiam diariamente, ao Ocidente, reatar a memória do mito cristão e o sonho da Terra Santa. 20 Um outro conjunto de mitos dizia respeito aos fundamentos da história humana e às origens do Mal: é encontrado nas narrativas concorrentes, ortodoxas ou hereticas da Queda dos anjos. Um primeiro mito tem sua raiz em um dos episódios mais estranhos do Gênese (6, 1-4): os "filhos de Deus" - em quem a tradição verá os anjos caídos - vieram à Terra para se unirem aos "ftlhos dos homens". De sua união, nasceram os gigantes. Partindo deste episódio, o Livro de Henoch explica que Deus puniu os homens com o dilúvio e enclausurou os anjos culpados nas trevas para que eles pennanecessem ali até o Juízo FinaL Quanto aos gigantes, eles geraram os demônios, que, desde o dilúvio, não cessam de atormentar os descendentes de Noé. Um segundo mito, já presente nos apócrifos judeus do século I a.C., coloca a Qued? dos anjos antes da criação do homem. Santo Agostinho (Cidade de Deus, VIII e XIV) e Gregório, o Grande (Morais sobre Jó, XXX) retomaram-no por sua conta: para eles, Satã é o principal "anjo de luz" que, tomado de orgulho, quis se igualar ao Criador. Ele foi, pois, precipitado nas profundezas com seus cúmplices. Essa queda é o início da história humana, já que Deus criou os homens para que eles viessem ocupar no paraíso as cadeiras que os anjos caídos deixaram vagas. Mas, depois da Criação, Satã, para se vingar de Deus, retomou sob a forma de Se~ente do Gênese para tentar os primeiros homens. É interessante reaproximar este último mito da origem do Mal, de sua versão cátara, que está de acordo com a idéia do antagonismo dos 19LE GOFF, J, L'Occident m6di6val et rocéan Indien: un horizon onirique (1970),

reed. ln: Pour un autre Moyen Age. Temps, travai/. et cullure en Occident: 18 essais. Paris, Gallimard, 1977. p.28Q.98, - RUBROUCK, Guillaume de. Voyage dans rempire mongol. Trad e coment4rio de Cl. e R, Kappler, Paris, Payot, 1985 e o estudo de AUZEPY, M.F. Guillaume de Rubrouclc chez les Mongols. L'Histoire. 100, Maio 1987,, p.l14-24. 2°ALBERT, J.-P. Le Saint Chrlme dons /es traditions populaires et /es /Lgendes chrltknnes {Thhe de Je cycle, Paris, EHESS, 1986. 2 v.).

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dois princípios do Bem e do Mal. Eva é aqui a criatura de Satã, que a utiliza para seduzir os espíritos de Deus. Através de um buraco, eles fogem do paraíso. Quando Deus se apercebe disso, coloca seu pé sobre o buraco, mas é tarde demais, e quase todos os espíritos haviam partido. No entanto, esses espíritos fugitivos conservam, junto a Satã, a nostalgia da glória celeste que eles tinham conhecido primeiramente. Para fazer-lhes esquecê-la, Satã lhes dá um 001p0, que é, portanto, uma criação do Mal, e não de Deus. Com a morte do corpo, a alma passa para um outro corpo, o de um animal ou o de um homem, o de um "perfeito" na melhor das hipóteses. Com a morte deste, se o rito da endura foi respeitado, a alma purificada é definitivamente arrancada da matéria. A elucidação dos últimos dias foi um outro fator de desenvolvimento do mito cristão. A Escritura era aqui um guia mais explícito, graças ao Apocalipse de João, pois só ele havia escapado à condenação que atinge as escatologias apócrifas. Mas a sua interpretação viu a Op<'Sição cada vez mais radical de duas correntes: a escatologia ortodoxa, preocupada em preservar apenas o sentido espirituai do Apucalipse, de reduzi-lo a um aprendizado para a Salvação da alma, e o milenarismo, que, a partir de Joachim de Aore, no final do século XII, inspirou a maior parte das heresias populares do final da Idade Média. Para essa corrente, tratava-se de fazer do mito histórico uma história real e de converter o anúncio do Reino dos Justos em projeto de edificação de um reino terrestre conquistado no sangue contra os aliados do Anticristo: os senhores e a Igreja. O que se atinge aqui, no ponto extremo de desenvolvimento do mito, é a utopia. 21 Ela questiona a ordem social e religiosa estabelecida. Observa-se isso no caso das utopias heréticas ou revolucionárias da Baixa Idade Média, contra as quais se coligaram os poderes temporais e espirituais - primeiro, a Igreja Romana, mas também Lutero durante a Guerra dos Camponeses. Observa-se também no caso da utopia folclórica do País de Cocagne, mundo de inversão de todos os valores de renúncia e de jejum impostos pela Igreja Medieval. 22 MITOLOGIA INDO-EUROPÉIA E FOLCLORE Uma característica da mitologia do Ocidente medieval é sua complexidade: ela não forma um conjunto homogêneo, mas é composta de tradições diversas que se integram, mais ou menos bem, no plano geral da "história santa". Há nisso duas razões: a cultura cristã, longe de estar isolada no 21ver sobre esse tema: GRAUS, F. Social utopias in the Middle Ages. Past and Present, 38, 1967. Sobre o mito e a utopia: VIDAL-NAQUET, P. Esclavage etgynécocratie dans la tradition. le mythe et rutopie. ln: Recherches sur les structures sociales dans l' Antiquitl classique. Paris, CNRS, 1970. p.63·80. 22cOCCHIARA, G. ll paae di cuccagna. Reed. Turin, Boringhieri, 1980. Ver tamb6m: GRAF, A. Miti, leggende e superstizioni del Medio Evo. Reed. Milan, A. Mondadozi, 1984. Especialmente p.142-9.

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tempo e no espaço, se apropriou de numerosas heranças culturais Uudaísmo, paganismo, herança greco-romana, tradições autóctones celtas ou germânicas, etc.). Ela era, por outro lado, a cultura de uma sociedade complexa, na qual uma minoria de clérigos - litterati detentores da escrita e do monopólio da interpretação das Escrituras - se distin_guia de um povo de illitterati, cuja cultura se manteve por muito tempo exclusivamente oral. A uma sociedade complexa, cultura e mitologias complexas. As tradições indo-européias e a mttologia greco-romana são os dois conjuntos míticos que o cristianismo, bem ou mal, teve de assimilar. 1. Sabe-se a que ponto a obra central de Georges Oumézil inspirou importantes pesquisas sobre a reaparição, no Ocidente dos séculos XI e XII, do esquema trifuncional indo-europeu de organização social. Mas os documentos geralmente estudados, como a famosa carta de Adalbéron de Laon ao rei Roberto, o Piedoso, exprimem somente uma representação ideológica da sociedade, sem a dimensão narrativa característica do mito. 23 É preciso, portanto, distinguir nela as narrativas históricas ou as obras literárias mais desenvolvidas que parecem influenciar, até na cristandade medieval, versões de antiga mitologia indo-européia. É o que ficou demonstmdo recentemente a propósito da crônica polonesa de Gallus Anonymus (aproximadamente em 1117) 24 e, da fonna mais inesperada, no caso de uma canção de gesta tardia, a Chanson de Narbonnais, escrita por volta de 1210, e de sua adaptação italiana I Narbonnesi, atribuída a Andrea de Barberino por volta de 1410. Joel H. Grisward comparou a tmma dessa epopéia à história de Yayàti na epopéia indiana do Mahàbàrata. 25 O conde de Narbonne Aymeri tem sete filhos, dos quais o mais jovem, Guibert, permanece junto a ele e herda o condado paterno; nele unicamente - como, de modo mais geral, todo monarca feudal - o conde encarna o conjunto das funções indo-européias. Estas, em contrapartida, são distribuídas entre os seis outros irmãos, todos obrigados a se exilar para irem se estabelecer em outros feudos ou prestarem serviço ao imperador: entre os três primeiros, Beuve, no Oeste, toma-se rei da Gascooha (primeira função, de soberania); Aimer, no Sul, vai combater os sarracenos (segunda função, militar); Garin, no Leste, possuiria as riquezas da Lombardia (terceira função, de fecundidade). Os três últimos innãos- Bernard, Guillaume e Hemaut- irão a Aix-la-Chapelle, ao Norte, obter, respectivamente, junto a Carlos Magno, os cargos de conselheiro (primeira função), de gonfaloneiro (segunda função), e de senescal (terceira função). 23ouBY, G•• Les trois ordres ou fimaginaire du jlodaüsme. Paris, Gallimard, 1978. - LE GOFF, J. Les trois fonctions indo-europ6ennes et rEurope fêodale. Annales E.S.C. 1979. p.ll87-215. NICCOLLI, O. I sacerdoti, i guerrieri, i contadini. Storia di un imagine deUa societd. Turin, Einaudi> 1979. 24BANASZKIEWICZ, J acek. Note sur le si~ge triparti: Capitole, Narbonne et Glogow. Anrwles E.S.C. 1984. p.n6-82. 25oRISWARD, Joel H. Arr:hlologie de flpopie midilvaJe. Structures trifonctionnelles et mythes indoeuroplens dans le cycle de Narbonnais. Paris, Payot, 1981.

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Com exceção do jovem Guibert, cada uma das três funções indo-européias é pois representada por dois innãos distintos: uma das principais preocupações da análise de Joel Grisward é mostrar como cada par de innãos encarna as duas modalidades distintas de cada uma das três funções indo-européias. Assim, para a função guerreira, Guillaume representa o ideal da guerra organizada, da "batalha", enquanto que Aimer encarna o das escaramuças e das emboscadas, conduzidas pelas pequenas tropas de "jovens donzéis". Com razão, Joêl Grisward aproxima essa imagem das fonnas de combate dos "jovens" na sociedade feudal (estudadas rec~ntemente por Georges Duby) do tema da guerra selvagem na mitologia gennânica e também da Caça Selvagem, do exército dos mortos ou "Mesnie Hellequin", que experimenta, na época feudal, um desenvolvimento sem precedente. A influência das estruturas míticas indo-européias teve de ser exercida também sobre a literatura medieval através de suas origens célticas e, mais particulannente, gaulesas. Sabe-se que os três romances de Chrétien de Troyes, Perceval ou le conte du Graal, Yvain ou le Chevalier au Lyon e Krec et Enide, estão relacionados às três namtivas gaulesas de Pérédur, Owain e Geraint. Ora, para alguns especialistas da literatura gaulesa antiga, cada uma dessas três narrativas parece ilustrar uma das três funções indo-européias. Sem que ela possa pretender dar conta de toda a sua significação, a hipótese merece ser estendida às obras literárias francesas que se inspiram na "matéria da Bretanha". Na namtiva de Pérédur, "os juramentos, a8 profecias e os destinos desempenham o papel decisivo": 26 a culpa do herói, como, mais tarde, de Percival, é a de não perguntar o significado da lança que sangra; se ele tivesse feito a pergunta, o rei seu tio teria sido curado, e seu reino teria recobrado a paz. O segundo, Owain, distingue-se por suas proezas guerreiras: elas lhe possibilitam obter a mão da Dama de la Fontaine, cujo marido ele matou; como Yvain, ele liberta igualmente um leão, que se toma seu fiel companheiro. EnfliD, Geraint perde seu valor de guerreiro e de caçador ao demorar-se nos festins da corte e na companhia das ·mulheres; esta será também a desventura de Erec, herói, como ele, da terceira fuócão. Se todas essas obras literárias podem estar relacionadas a sistemas míticos anteriores e mais vastos, elas devem sua coerência à sua inscrição na sociedade feudal, às estruturas de poder, hierarquias e valores dessa sociedade. Assim, quando Jacques Le Goff vê na legenda medieval de Mélmine a expressão da terceira função indo-européia de fecundidade e de abundância material, ele destaca também a ligação entre a emergência dessa legenda do século XII e as ambições contemporâneas das linhagens de milites preocupados em dar, por tais empréstimos à cultura folclórica, uma justificativa ideológica frente à cultura oficial dos clérigos e da grande nobreza. 27 26REES, Brinlcy. Arthur ct les h6ros arthuricns au Pays de Gallcs. ln: Dictionnaire du mythologiu, sob a dir. de Y. Bonnefoy. Paris, Flammarion, 1981. I. p.78-80. 27LE GOFF, J. M6lusinc matcrnclle et d6chifrcusc. Annales E.SC. 1971. p.587-603, retomado cm Pour un autre Moyen Age_ op. cit. p.307·34. Para LECOUTEX, Claude.

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2. É a propósito das tmdições orais do folclore que os historiadores e os folcloristas fitlamm mais facilmente da mitologia: em 1835, a Deutsche Mythologie dos irmãos Grimm deu o exemplo e em 1949, mais de um século depois, foi imitada pela Mythologie française de Henri Dontenville. À semelhança da "escola céltica", este último rels::iona ao herói de Rablllais Gargântua, todos os gmndes personagens legendários da Idade Média: o rei Artur, a fada Morgana, o mago Merlin, a mulher-serpente Mélusine, o cavalo Bayard, a Tamsca, etc. Há, portanto, sem dúvida, nesse autor, a vontade de reconstituir a totalidade de uma mitologia, de seus personagens, de seus lugares (do Mont-Saint-Michel ao Mont-Gargan na Itália do Sul) e de sua inscrição calendária. Mais recentemente, um projeto análogo mas em uma área geográfica que não se pretende mais estritamente nacional - anima a pesquisa de Claude Gaignebet sobre a "religião do Carnaval" e, mais particularmente, sobre o folclore em Rabelais. 28 Pode-se indagar, entretanto, sobre o gmu de autonomia dessa "mitologia popular" e sobre suas relações com a mitologia cristã. Deve-se, como Claude Gaignebet, sustentar a hipótese de .uma "religião calendárla" trans·histórica, na qual as festas e o simbolismo cristão tivemm, além de outms coisas, de ser introduzidos? Ou deve-se pensar, ao contrário, como Nicole Belmont, que "o sistema folclórico (fmncês) não teve necessidade de se constituir em verdadeim mitologia, uma vez que ele se formou e se desenvolveu apoiando-se sobre o mito cristão"? 29 Seguindo essa hipótese, o cristianismo desempenhou o papel de princípio organizador, e os contos e legendas do folclore, díspares e de alcance mais limitado, viemm se ligar af secundariamente e sofremm uma cristianização mais ou menos rápida e profunda. Dizer que o folclore não se "constituiu em mitologia" é, pelo visto, estabelecer uma distinção e uma hierarquia entre diversos "gêneros" narrativos: mitos, contos, legendas. Georges Dumézil dizia, no entanto, não perceber, entre os contos e os mitos, diferença notável: nuns e noutros, conforme Claude Lévi-Stmuss, encontmm-se os mesmos jogos de oposição e de homologias, mas, no caso dos contos, eles se apresentam sob uma forma "atenuada";30 além disso, o contexto dos contos é o passado, enquanto que o dos mitos é o presente: o mito explica o estado atual da sociedade humana, do mundo dos deuses e da natureza. No entanto, Claude Lévi-Stmuss toma também posição sobre a questão da gênese dos contos e, por conseqüência, do folclore: em oposição a Vladimir Propp, que procumva nas mitologias

Mllusine et /e CMvalier au Cygne. Paris, Payot, 1982, M6lusine 6 o &timo avatar de uma raça de •deusas" da terceira função, de origem c6ltica, e do tiço Epona, Ryanon ou Macha; Loheq:rin 6 o seu equivalente masculino, mas procede da mitologia escandinava e germlnica; ele se parece com os deuses Freyr e Njõrdr.

28oAIGNEBET, Claude. Le cnrnaval. Essais de mytlwlogie populaire. Paris, Payot, 1974. 29BELMONT, Nicole. Mythes et croyances de f Ancienne FrQIICt!.· Paris, 1973. p.10.1. 30r_~vi-sTRAUSS, Claude. La structure et la forme. Reflexiona sur un ouvrage de Vladimir Propp (1960), reed. ln: Ailthropologie structuraie II. Paris, Plon, 1973. p.139-73 (em particular p.154).

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muito antigas, senão pré-históricas, as "raízes do conto maravilhoso", 31 o antropólogo afirma que a relação dos contos e dos mitos é de uma outra ordem; há, com efeito, sociedades que têm ao mesmo tempo contos e mitos; os primeiros não provêm dos segundos, mas têm funções e fonnas diferentes. Em certas condições históricas, é possível que os mitos desapareçam e que somente os contos permaneçam: tal seria a situação do conto na Europa. Mas será preciso se deter numa tipologia tão estrita dos gêneros narrativos? Tomemos, por exemplo, o domínio imenso e instável da legenda hagiográfica, na qual Paul Saintyvez reconhecia, não sem razão, uma "mitologia cristã" rica em temas oriundos seja do folclore seja da mitologia greco-romana.32 A Légende dorée de Jacques de Voragine constitui, sem dúvida, uma espécie de "teogonia" cristã, fundamentada na recorrência dos mesmos "mitemas" legados por treze séculos de tradição hagiográfica e organizada conforme o ciclo anual das celebrações litúrgicas. 33 Em muitos casos - para legitimar uma peregrinação, uma. festa ou origens dinásticas - a legenda hagiográfica funciona plenamente como um mito. Pode ocorrer também que ela organize em uma mesma narrativa tradições de origens diversas, eruditas e folclóricas: assim, ela contribui para a integração da sociedade cristã por meio de uma mitologia que tende a se unificar. A MITOLOGIA GRECO-ROMANA Apesar da oposição do cristianismo ao paganismo, em momento algum a cultura greco-romana foi completamente esquecida pela cultura cristã medieval. Esta encontrou naquela, ao mesmo tempo, os instrumentos lingüísticos ·e conceituais que lhe permitiram pensar a questão do mito e um tesouro inesgotável de imagens e de figuras míticas próprias pam enriquecer seus próprios mitos. 1. A mitologia antiga foi relevante, ao longo da Idade Média até a Renascença, para o conjunto da cultura cristã e das artes. 34 A rejeição dos deuses pagãos não impediu a "cristianização" mais ou menos consciente de figuras e de narrativas da mitologia greco-romana. P. Saintyves pôde até arriscar, antigamente, uma fórmula muito expressiva, se não completamente justa: 31PROPP, Vladimir .Ia. Les racines historlques du conte mervellkux (1946), (trad. fr.) Paris, Gallimard, 1983. PrefAcio de Daniel Fabre e J..Cl. Schmitt. 32SAINTYVES, Paul. Les salnts successeun des dieux. &sais de mythologie chrltienne, I, Paris, 1907 e En marge de la Ugende Dorle. Songes, miracles et survivances. Essai sur la formation de quelques ti!Jmes hagiographlques. Paris, 1931. 33 BOUREAU, Alal11o La llgende dorle. Le syst~me narratif de Jacques de Voraglne ( + 1298). Paris, Cerf, 1984. 34ver antes de tudo a grande obra de SEZNEC, Jean. La survtvance des dieux antiques. Essai sur le 1'6/e des traditions mythologiques dans fhumani.lme et dans fart de la Renaissance. Londres, 1940 (rced. Paris, Flammarion, 1980).

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os santos seriam os "sucessores dos deuses". O folclorista via, por exemplo, no mito de Édipo, a matriz da legenda de São Julião, o Hospitaleiro. Essas influências impulsionaram particularmente dois domínios da cultura da Idade Média central: a mitologia política e a reflexão fJ.losófica e científica. A constituição de uma mitologia política, dinástica e nacional foi inseparável da construção das monarquias européias. Essa mitologia política se valeu de várias fontes, especialmente hagiográficas: é o caso, na França, da lenda de Saint Denis, que confundia em um mesmo personagem Denis, o Aeropagita, convertido por São Paulo, um Denis bispo de Paris no século Ill, e o renomado autor da Hiérarchie céleste, o Pseuáo-Denys. E o caso também da lenda do batismo de Clóvis por Saint Rémi, que teria ungido o rei com um óleo sobrenatural trazido pela pomba do Espírito Santo: essa lenda tornou-se a justificativa da unção real dos reis da França, que se manteve em vigor até o final da monarquia no século XIX. No entanto, em todos os países, o prestígio da Antiguidade exexceu uma fascinação particular. Todas as nações nascentes quiseram, sob o modelo romano ilustrado na Eneida de Virgílio, atribuir-se uma origem troiana. É o que exprimem as crônicas (desde a de Frédégaire, no século VII, no reino dos francos, às Grandes crónicas de França do século XIII), os libelos políticos, as obras literárias. O ponto de partida desses mitos é a narrativa da tomada de Tróia pelos gregos, na tradição homérica,3 5 Para os troianos sobreviventes, teria começado, então, um longo êxodo que conduziu alguns deles à Alemanha, outros à Inglaterra, outros ainda à França. Para dizer a verdade, de um autor e de uma época a outra, importantes variantes aparecem no mito, tanto em razão da diversidade das fontes como das necessidades de utilização política do mito. Durante toda a Idade Média central, ficou entendido que uma parte dos troianos tinha ido se instalar sobre o Danúbio, na Sicâmbria. Mais tarde, recusando-se a submeter-se aos romanos - daí o nome de francos, que eles tomaram como signo de sua liberdade -, eles chegaram à Gália. No século XV, como bem mostrou Colette Beaune, esta tradição foi cada vez mais questionada: ao mesmo tempo porque o conhecimento da Antiguidade - e sobretudo da história da Gália -pelos humanistas rejeitava progressivamente a reconstrução mítica do passado, e porque a idéia de um povo franco invasor combinava mal com a vontade de dar à nação francesa uma ligação original com seu território. Daí uma reescritura do mito que culmina por volta de 1500 na obra de Jean Lemaire des Belges, lllustrations de Gaule et singularités de Troie. O destaque principal é colocado, daqui para frente, nos gauleses, ligados à descendência de um dos filhos de Noé: Jafé.36 Para Lemaire ces 35ver a respeito de tudo o que segue: BEAUNE, Collette. Naissance de la nation France. Paris, Gallimard, 1985._ p.l9-54, 36Dos dois outros filhos, Sem passava por estar na origem da "raça" judia, e Cã, da dos africanos e depois, por elltensão ao século XVI, dos índios do

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Belges, uma parte
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As mitologias de Fulgêncio (que foi talvez cristão) constituíam uma outra ronte Importante. Seu prologo tem uma tonalidade autobiográfica: a musa da poesia, Calíope. aparece ao autor para auxiliá-lo, com Filosofia e Urânia la Físicâ), a alegorizar o~ mitOs gregos. Fulgêncio utiliza largamente Ovídio (as Metamorfoses), Cícero (De natura deorum, o Son!(e de Scipion) e outros autores mats tantios."37 Essa tradição de alegoria do mito atravessa toda a cultura latina e cristã da Alta Idade Média; é encontrada na Boécia no século VI, nos Mithographes du Vatican no século VTI, no Liber monstrorum de diversis generibus no seculo VIU, em Jean Scot "Erigene no século IX. Mas ela floresceu sobretudo a partir do século XII. Nessa época, a reapropriação do mito antigo caracteriza as escolas urbanas. Ela se faz em torno da palavra involucrum, que designa o "revestimento" da verdade pelos "véus" do mito e da alegoria. JH O princípio de "desvelamento", quer dizer, de interpretação, não era inédito na cultura cristã, uma vez que beneficiava tradicionalmente a interpretação do sentido "espiritual" das Escrituras em oposição ao sentido "literal". Mas agora tratava-se, acima de todos os outros textos, de desvelar a alegoria para criar uma filosofia e uma dência cristãs. Essa foi a obra dos comentadores chartrenses do Ti meu de Platão (Bernard de Chartres, Guillaume de Conches, Jean de Salisbury) e de Bernard Silvestre em Tours. Para tomar apenas um exemplo, cuidadosamente estudado por Brian Stock, a Cosmographia de Bernard Silvestre, escrita por volta de 1143-1148, se apresenta ao mesmo tempo como ••um mito dramático repleto de ações de um grupo de personificações alegóricas", um modelo de ordem universal baseada no comentário neoplatônico de Calcídio e que coloca em relação o macrocosmo e o microcosmo, e uma obra científica que utiliza os últimos ensinamentos da medicina e da astronomia árabes. 39 Na primeira parte, destinada ao macrocosmo, Natureza, chorando, se lamenta a Noits (a Providência divina) da confusão da matéria primordial (hyle) e suplica-lhe para instaurar a ordem do mundo. Natureza empénha-se em criar a harmonia estável dos quatro elementos. Depois o anima mundi ( endelichia) desce do céu como uma emanação, e Noits procede à união do corpo e da alma do mundo. Bernard Silvestre descreve em seguida todas as partes do universo ejustifica seu caráter de et~rnidade. . A segunda parte da obra é dedicada ao microcosmo, ou seja, à criação do homem. Essa criação é concebida ao mesmo tempo a partir do texto do Gênese e do Timeu: o esforço de síntese das tradições das Escrituras e das filosóficas é eloqüente. A criação do homem é, ao mesmo tempo, um problema de inteligência - e por isso é Nous que a ela preside 37FULGENTIUS THE MYTHOGRAPHER. Trad. L. G. Whitbread. Ohio State Univ. Press, 171. (Ed. do texto latino por R. Hehn, Leipzig, Teubner, 1898). 3SCHENU, M. D. Involucrwn. Le mythe selon les thêologiens mêdiévaux. Ar.:hives d'Histoire doctrinale et littlroire du Moyen Âge, 22, 955, p.75-9. 39sTOCK, Brian. Myth and science in the twelfth century. A study of Bernard Silvester. Princeton, Princeton University Press, 1972.

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e um problema de necessidade; ela é realizada por Natureza, assistida por Urânia e Physis. Ta~s elaoorações alegóricas tiveram apenas partidários no século XII; Guillaume de Saint-Thierry, Daniel de Morlay mostmram-se hostis a ela. Em t;Ontmpartida, na virada do século XIII, o Anticlaudianus de Alain de Lille marca um apogeu nessa tradição retomada nos séculos XIII e XIV pelo Roman de la Rose, depois pela Divina comédia de Dante. Este ofereceu, além do mais, no Convívio, uma teoria da le1fura alegórica dos mitos retomada de comentadores antigos. 40 No início da Renascença, a relação entre o mito cristão e a mitologia greco-romana. distinguida por um prestígio crescente, está prestes a se modificar uma vez mais. Ao mesmo tempo, reforça-se o processo de ·'desmi.: tologização" do mito cristão na obra, na própria cultura clerical, desde suas origens e, sobretudo, desde a emergência, no século XII, de uma razão teológica. Essa crítica leva até mesmo a cle11unciar o caráter mistificador dos mitos: quando Maquiavel diz de Numa que ele impôs aos romanos a disciplina de crenças cuja falsidade ele não ígnorava, falta pouco para que o argumento se volte contra o cristianismo. No entanto, esse trabalho de sapa somente chegou ao século xvm quando, paradoxalmente, a sacralização dos mitos, por tanto tempo desprezados pelo bons selvagens ou até pelos antigos bárbaros da Europa - descobre-se Ossian, os bardos cehas e oEdda escandinavo -leva a ver no cristianismo uma mitologia como as outras. Pode-se admitir, assim, que o longo processo de "desmitologização", encetado por Platão no século V a.C., traz, enfim, seus frutos, face ao cristianismo, na ~poca das Luzes.4 1 Mas a história nunca é linear e a dos mitos não mais do que as outras: concentrando aqui a elucidação sobre a Idade Média, ter-se-á pretendido mostrar, ao contrário, a complexidade do problema do mito e as variações de sua cronologia.

(Tradução de Denise Maria Cogo, sob a supervisão de Maria José Rôa.)

4DRENAUDET, A. Dante humaniste. Paris, Les Belles Lettres, 1952. 41ST AROBINSKI, Jean. L e mythe au XVIII e. siecle. Critique, 366, 1977. p.975.iJ7.

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O MITO LITERÁRIO DE DON JUAN IRLEMAR CHIAMPI* ANTONIO GÓMEZ MORIANA ••

A abordagem filos6fica e antropológica do mito - em sua busca de universais - focaliza suas constantes atemporais e anespaciais, ou seja, os seus mitemas. O estudo literário do mito, ao contrário, se pretende centrar a sua atenção nos fatos da linguagem - nas formas que revestem cada manifestação textual concreta-, não pode perder de vista o seu caráter particular, hist6rica e socialreente definido. A própria literatura, se a entendemos como sistema modelizador secundário da língua, dá forma a mitos preexistentes na cultura e produz os seus próprios mitos. Por isso, mais do que verificar a presença do mito na literatum -como um "conteúdo", uma constante invariável -, em perspectiva substancialista, nos interessa observar como o texto literário perfaz as variantes hist6ricas de um mito, conforme os imaginários sociais nele inscritos. Assim, se é a linguagem literária uma concreção de um determinado mito que modifica o seu sentido, importa verificar como essa construção recorta o discurso cultural do seu momento hist6rico. Um exemplo privilegiado- por sua persistência na literatum ocidental - é o mito literário de Don Juan. As diferentes versões - em diversas línguas natumis, como em gêneros literários variados - mostram a sua capacidade de sobreviver ao tempo, mas revelam, sobretudo, que as cristalizações dos seus mitemas se produzimm em diálogo com as mudanças de mentalidade do nosso universo cultuml. Sem exagemr, poder-se-ia afirmar que as grandes linhas da hist6ria desse universo se encontram inscritas nas metamorfoses sofridas pelo mito de Don Juan. PERCURSOS TEXTUAIS DE DON JUAN Antes que viesse a constituir um poderoso pamdigma da sedução masculina, através da grande literatura, Don Juan freqüentava as lendas populares medievais, com outras designações. em o "doo galán", ou o "mozo alocado" que gostava de ir à missa "pam mirar las damas" e que, um dia, tropeça numa caveim e a convida pam cear à meia-noite. 1 *Irlemar Chiampi. Professora de Literatura H is pano-Americana na USP. Livre-Docente em Literatura H is pano-Americana pela USP. Ensaista. **Antonio Gómez Moriana. Professor de Estudos Hispânicos e Literatura Comparada na Universidade de Montreal/CanadA. Doutor em Filosofia pela Universidade de Salamanca/Espanha e Doutor em Filologia Românica pela Universidade de Munique/RFA. Ensaista. 1ARMESTO, Victor Said. La leyenda de Don Juan. Orfgenes polticos de El burlador de Sevüla y convidado de piedra. Buenos Aires, Espasa-Calpe, 1946.

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Com El burlador de Sevilla y convidado de piedra (1630), Tirso de Molina dilata aquele elemento embrionário do penchant para as mulheres, convertendo o "don galán" provinciano no aristocrata espanhol que procura, no ato amoroso, a voluptuosidade de uma profanação. Inserido no debate moral da era barroca, o Sedutor encarnará, em perspectiva teológica, a questão do livre arbítrio e da relação tempo/eternidade. Moliere (Don Juan, 1665) o submeterá à condenação por sua libertinagem e, como Tirso, o converte numa peça essencial para a estética barroca: coloca-o em cena como o homem cambiante, o ator metamórfico, o portador de máscaras. Proteu do amor, um homme à femmes, que faz das aventuras galantes o exercício da inconstância amorosa, Don Juan Tenorio recusa o que é fixo e permanente com a sua risada ímpia ("Qué largo me lo fiais!"), para entregar-se à paixão de conquistar sem possu!r. Nas vésperas da Revolução Francesa, a opera buffa Don Giovanni, de Mozart/Da Ponte, imprime ao personagem uma dimensão social e política, assentada na relação entre o prazer t"Vivan le femmine!/Viva el buon vino!l Sostegno e gloria/ D'umanità.") e a rebeldia desafiante ("Viva la libertà"). Na aurora da modernidade, a sedução e a blasfêmia compenetram-se de uma afinidade intrínseca, tendo o erotismo como o seu denominador comum. E o Dissoluto punito vai gravar na consciência moderna a sua ironia rebelde e a sua crítica insolente à autoridade, na musicalidade jubilosa que neutraliza o julgamento moral dos seus pecados. Os românticos (Hoffmann, Byron, Musset, Zorrilla, Baudelaire) reinserem a metamorfose settecentista de Don Juan num desenlace diverso: a salvação do Sedutor das chamas do inferno. As inclinações naturais, a sensualidade angelical ou o comportamento antiburguês do fidalgo espanhol - que uma certa cumplicidade masculina põe em relevo - o absolvem, o redimem, o glorificam. No ensaio, Kierkegaard o examina como um destino ideal - típico da estética do demoníaco. Vindo, como Fausto, do terror místico medieval, o Sedutor fala, luciferinamente, no auge da modernidade, a partir do Eros sensual. E como fala Don Juan aos ouvidos contemporâneos? No balé (Jouvet, Béjart), no cinema (Joseph Losey), Don Juan resiste em sua natureza infinitamente contraditória. Posto no divã, hoje, percorre facilmente uma boa panóplia de representações libidinais: um Narciso paranóico, o filho que desafia o Pai, mas que procura o seu abraço mortal, um Édipo fracassado, o perseguidor da Feminilidade Ideal, a Mãe originária e impossível. Mas poderia ser também o próprio Poder Fálico, potência e dominação efêmera, puro desgaste. Ou ainda: na mitologia amorosa do Ocidente, pode encarnar a paixão outra, como um reflexo invertido de Tristão - o amante de uma única mulher - a errância infatigável do desejo. Don Juan é, certamente, o eterno condenado à significação e por isso mesmo transformou-se num mito. E, como tal, não poderia deixar de submeter-se (fatalidade de fatalidades) à teoria dos signos. Recentemente, os semiólogos descobrem no discurso da sedução donjuanesca um tipo de semiose que ilustra as astúcias, a perversão e o escândalo da linguagem auto-referencial. 59

Agora, na era feminista, o Sedutor das "mille e tre" mulheres promete superar o simbolismo do poder cínico do macho sobre a fêmea, para encarnar, desafiante, os enigmas da sexualidade masculina, no seu enfrentamento com a outridade feminina. Não mais ameaça à honra da mulher, mais um objeto de estudo e reflexão. Seja como for, o nosso Don Juan continua sendo o mascarado do drama barroco de Tirso - "un hombre sin nombre": ridículo, fascinante, proteiforme, uma vertigem de identidades. 2 Nosso objetivo, nas páginas que seguem, é tentar recuperar alguns elementos dessa identidade do mito donjuanesco, de acordo com a hipótese de trabalho esboçada na introdução. Dois textos-objeto servirão como corpus para delinear os discursos culturais de dois momentos polares na construção do mito. O primeiro é o drama barroco de Tirso de Molina - ponto de partida para a constituição do mito; o segundo texto é um romance recente, Babel de una noche de San Juan ( 1983 ), primeiro da série Larva, do escritor espanhol Julián Ríos - ponto de chegada do mito donjuanesco na era pós-modema. 3 DON JUAN EM TIRSO DE MOLINA Dizia Kierkegaard que Don Juan, como Fausto, são produtos medievais. Com efeito, somente no quadro da sacralização de uma ordem social pode dar-se a ruptura demoníaca do mesmo, que constitui a base estética de ambos os personagens trágicos, assim como do efeito catártico dos seus castigos exemplares. No caso concreto de Don Juan, sabemos que a sua origem medieval está bem documentada e que Tirso não fez outra coisa senão unir numa peça dramática duas lendas medievais. O duplo título da peça nos revela essa dupla origem: o burlador, a lenda do dissoluto; o convidado, a do convite da caveira. Mas a elaboração dramática operada por Tirso não consiste na mera justaposição de duas lendas medievais. Trata-se de um todo orgânico em que a passagem da primeira para a segunda marca, na escalada vertiginosa das burlas donjuanescas, a passagem da ordem natural (a sociedade visível) ao sobrenatural (o reino dos mortos), e do plano 2A questão donjuanesca aqui esboçada teve em conta os seguintes estudos, alêm das diversas versões do mito: ROUSSET, J. L'interieur et l'exterieur. Essais sur la polsie et le thMtre au XVIIe. siecle. Paris, Corti, 1968. p.127-50; Vârios Autores. Don Juan. Les actes du Colloque de Treyvaux 1981. Fribourg, Ed. Univ., 1982; KIERKEGMRD, S. Les êtapes êrotiques spontanées ou rerotisme musical. ln: Ou bien-. ou bien I Enten-Eller, 18431. Paris, Gallimard, 1943. p.41-105; KRISTEVA, J. Don Juan ou aimer pouvoir. ln: Histoires d'amour. Paris, Denoel, 1983. p.187-201; ROUGEMONT, D. de. El amor y Occidente/19391. 2.ed. Barcelona, Kair6s, 1981. FELMAN, S. Le scandale du corps parlant. Don Juan avec Austin ou la slduction en deux tangues. Paris, Seuil, 1978; REICHLER, Cl. La diabolle. La slduction, la r~nardie, l'~criture. Paris, Minuit, 1979. 3Rfos, Juliân. Larva. Babel de una noche de San Juan. 3.ed. Barcelona, Dei Mali, 1983.

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temporal ao eterno. Por outro lado, essa escalada em que se opem a confluência de ambas as lendas não se dá de modo puramente mecanicista, mas em diálogo com uma conjuntum sócio-histórica concreta; e esta é mediatizada por instâncias ideológicas múltiplas e participa, além disso, do quadro plural e contmditório das formações discursivas vigentes no contexto em que se produz e recebe a representação dmmática. É preciso analisar, pois, os significantes postos em jogo por Tirso - a linguagem da sua peça dmmática- pam compreender esse "grande diálogo" em que se inscreve, segundo Ducrot, 4 o "pequeno diálogo" dos personagens/atares do espaço dramático. Diante da impossibilidade de uma análise exaustiva da peça dmmática de Tirso, nos limitaremos à análise do funcionamento nela de dois sintagmas repetitivos: o "prometo", enfatizado depois pelo "juro cumplir mi promesa (mi palabm)", com que Don Juan verbaliza as burlas das suas quatro vítimas; o segundo é o "m uy largo me lo fiais", o qual (com variantes pouco significativas) se repete sete vezes ao longo do texto como resposta de Don Juan às admoestações do seu criado, das suas vítimas, do coro e da estátua. "Muy largo me lo fiais" passa, 'nclusive, a título de algumas edições e variantes do texto de Tirso, e tem uma clam correspondência no drama de Lope de Vega La fianza satisfecha (ainda que a tese teológica dramatizada por Lope é a contrária da que é dmmatizada por Tirso, já que Laurêncio se salva na obm de Lope de Vega, graças à sua fé na satisfação redentom de Cristo). O castigo de Don Juan no drama de Tirso consiste precisamente na negação desse "senhorio sobre o tempo" que proclama aquele sintagma. Pois, ao pedir um confessor, quando vê próxima a sua morte, a estátua do Comendador responde: "no hay lugar; ya acudes tarde", sentença que afirma igualmente o coro com a advertência geral: no hay plazo que no se cumpla ni deuda que no se pague.

As promessas de Don Juan às suas vítimas e os jummentos com que enfatiza tais promessas têm um antecedente no Quixote. Depois de ter sido armado cavaleiro com a "gmciosa manem", como se narra no capítulo 3: da primeim parte, Don Quixote tem dois encontros nos quais pretende atuar segundo os preceitos da "orden de la caballetia andante" que acaba de receber: um, com o rico lavmdor que açoitava o seu criado Andrés; outro, com uns mercadores toledanos que "iban a comprar seda a Murcia". Nesses dois encontros, assistimos a diálogos de surdos que põem em jogo concepções con:flitivas do mundo: uma é a da (já decadente) sociedade feudal, a outm a da (nascente) burguesia. A primeim concepção do mundo encontra a sua expressão em Don Quixote, que pede justiça mediante desafios, promessas e juramentos (caso do lavmdor Juan Haldudo), ou exige um ato de fé cega em Dulcinéia (caso dos mercadores). A concepção do mundo própria da burguesia encontm a sua expressão nos cálculos econômi4 ct. DUCROT, O. Le dire et le dit. Paris, 1984, especialmente o cap. 8: "Esquisse d'une théorie polyphonique de l'énonciation", p.171-233.

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cos de Juan Haldudo e na exigência, por parte dos mercadores, do conhecimento experin..ental: "no conocemos a esa seíiora que decís; mostrádnosla". É precisamente em resposta a esse pedido (tão lógico em sua lógica) dos mercadores que Don Quixote proclama a sua axiologia (lógica conseqüência igualmente da sua concepção sobre a fé e a virtude): La importancia estâ en que sin veria lo habêis de creer, confesar, afirmar, jurar

y defender.-5

O desenlace de ambas as aventuras quixotescas é bem conhecido: os mercadores abrem caminho derrubando Don Quixote do seu cavalo e deixando-o surrado e descomposto; Juan Haldudo consegue a mesma coisa mediante suas promessas e juramentos, em que Don Quixote ingenuamente crê. Do não cumprimento dos mesmos será advertido o próprio Don Quixote (e com ele o leitor), quando, no capítulo 31 do romance, encontra de novo Andrés. As promessas e juramentos de Don Juan às suas vítimas e as promessas e juramentos que o lavrador Juan Haldudo faz ao seu criado Andrés na presença de Don Quixote têm um elemento comum: a falta dessa comunidade ideológica ou de convicções que, juntamente com a aceitação do procedimento e a intenção de participar na ação lingüística, constitui (segundo Austin) 6 a tripla condição necessária para que os atos de linguagem realizem, de modo "perforrnativo", aquilo que enunciam. É precisamente essa falta de comunidade ideológica, ou -como os sociólogos a chamam- de "reciprocidade de perspectivas", o que permite as "burlas" tanto de Juan Haldudo como de Don Juan. Ambos os textos põem, assim, de modo manifesto, a crise em que se encontra a sociedade que enfeixa tai~ burlas e a linguagem em que se realizam: a luta entre dois sistemas diametralmente opostos de interpretação do mundo que convivem na Espanha barroca. Convivem ali, com efeito, elementos pertencentes a um passado não muito remoto (mas sentidos já corno anacrônicos) com outros que apontam já para um futuro não excessivamente longínquo (mas não aceitos ainda pela ideologia dominante). Não se trata apenas das azmas, das vestimentas ou da linguagem arcaizante do fidalgo rnanchego que contrastam com as expectativas que mostram a sua estranheza tanto às criadas, corno ao dono da venda ou aos arrieiros com os quais topa e conversa desde as suas primeiras andanças. Trata-se de concepções do mundo e de lógicas irreconciliáveis, tão opostas ao ponto de impossibilitar qualquer diálogo autêntico entre os seus protagonistas. O que não significa que não seja eficaz a palavra, tanto para Don Juan corno para Juan Haldudo. É esta eficácia da sedução pela palavra o que põe de modo manifesto, precisamente, quanto ao resultado - sintoma, profundidade da crise, da ruptura epistemológica que está se operando. É, portanto, na dualidade social destacada acima, que é preciso situar e interpretar a origem do contínuo quid pro quo que caracteriza os diálogos contlitivos 5 Don Quijote, tomo 1:, na edição de Martfn de Riquer (Barcelona, Juventud, 1971).

6cc. AUSTIN,

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JL. How to do things with words. Cambridge, Harvard Univ. Press, 1%2.

por disglossia, tanto no Quixote quanto na peça dramática que nos ocupa. Os interlocutores não compartilham o mesmo "horizonte" epistemológico e axiológico. Não há "convenção"; daí que os signos funcionem num duplo código no pequeno diálogo de ambos os textos. Somente o leitor (no caso do romance cervantino) ou o espectador (no caso do d~..ma de Tirso) resolve, enquanto vetor situado no vértice de ambos os códigos, a homon(mia que dá lugar ao equívoco - no grande diálogo da leitura ou do espetáculo representado. A base desse grande diálogo da leitura está precisamente nessa "competência comunicativa" que falta aos personagens postos em ação, mas que pressupõe o público ou o leitor como condição necessária ao reconhecimento (anagnórise) progressivo da dualidade em que trabalham ambos os textos. Evidentemente, tanto Juan Haldudo como Don Juan conhecem a duplicidade de significados utilizados em seus juramentos e promessas. É este saber o que lhes outorga um poder quase demoníaco: o poder-fazer-crer na palavra, poder retórico que os converte em homens modernos, enquanto as suas vítimas (as de Don Juan, tanto mulheres nobres como do povo, e o próprio Don Quixote) vivem ainda na etapa ideológica anterior- ainda não completamente superada: a da "boa fé" (é esta boa fé que ainda hoje exploram os políticos e as agéncias publicitárias - daí a atualidade da sedução pela palavra). Don Juan constitui o "ator" por excelência, e os dramas que o põem em ação desde o Burlador de Tirso de Molina criam, no interior do próprio espaço dramático, uma teatralidade - se nos é permitida a expressão de "segundo grau". Não se trata apenas das mudanças de personalidade que lhe permitem, mascarado em capas alheias, o engano das "que aguardam". Mais que nada, trata-se dessa máscara discursiva que lhe permite o disfarce da palavra pela palavra mesma em seus juramentos e promessas. É a linguagem-ação, a palavra, o que se põe em cena - assim como no Quixote -, 7 mas aqui no interior de outra cena: a do espaço dramático em que se movem o burlador, e os burlados e as burladas, de modo que se poderia falar de um "teatro no teatro". O contraponto disso constituem as promessas em negativo, as sérias ameaças que as vítimas, criado, coro e estátua pronunciam num vertiginoso crescendo que leva Don Juan à morte - ao silêncio. Com a palavra dá-se igualmente no Burlador toda uma série de gestos concomitantes igualmente codificados por um uso que lhes atribuía - em certos casos, atribui ainda - um valor simbólico: o estender e tomar a mão de modo especial, gesto que se repete através das burlas e pelo qual a estátua do Comendador inflige o castigo por todas elas a Don Juan. Archimede Marni interpreta esta correspondência entre o castigo final e a repetição através da peça dramática dos motivos que o compõem, como 7 Na 'teatralidade' do Quixote insistiu Marthe Robert em L'ancien et le no1111eau: de Don Quiclwtte à Kafka. Paris, 1963; também Cesare Segre destaca a 'metâfora teatral' no romance cervantino, ainda que limitando-a à segunda parte, em''Construzioni rettilinee e construzioni a spirale nel Don Chisciotte", ln: Le structure e iJ tempo. Torino, 1974. p.193-219.

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uso por parte de Til'So - no momento de configurar o castigo às burlas de Don Juan - do princípio dantesco do contrapasso. Junto à estruturação do drama por parte de Tirso, cré explicar assim Archimede Marni dois problemas que, segundo ele, postula a atitude da estátua no castigo final: o (falso) "no temas" que Don Gonzalo de Ulloa pronuncia ao pedir a Don Juan a mão, por um lado; por outro, o "No hay lugar; ya acuerdas tarde" com que responde à súplica de Don Juan de que lhe permita ter um confessor antes de morrer. 8 Parece que Marni não tem em conta já que destacou tantos detalhes comuns entre as burlas de Don Juan e o castigo final: a mão, já citado, mas também o fogo, etc. - que Don Juan é burlado precisamente com o instrumento das burlas, ao ser seduzido pela palavra desafiante de Don Gonzalo de Ulloa, e que - se há contrapasso (e cremos que há verdadeiramente) - este tinha que aplicar-se sobretudo ao (ab)uso por parte de Don Juan do "tempo de prova" concedido ao homem. Don Juan o malgasta e enuncia presunçosamente, ao mesmo tempo, que o prazo é longo... Seu rigoroso castigo consiste no inesperado da sua confrontação com a morte, fim do tempo de prova e passagem à eternidade feliz ou infeliz na concepção da existência que subjaz no drama de Til'So, como, em geral, no drama barroco espanhol. E com isto entramos no segundo elemento verbal que nos propusemos a analisar: o "muy largo me lo fiais" com que Don Juan responde quando o seu criado, vítimas, etc., .o advertem de que há Deus Uusticeiro) e de que há morte. O tempo constitui o eixo conceptual da obra de Til'So num duplo sentido: ao invadir sua linguagem, marcando-a por um discurso econõmico (burguês), e ao emoldurar essa linguagem-ação, que aparece assim como um uso (gasto) contínuo e inevitável. O verbo componente do sintagma que passamos agora a analisar "fiar", encerra um duplo sentido: de dívida contraída e de entrega em fidúcia, de confiança depositada em outro; unido a lexias de duração ("muy largo", "tan largo", "qué largo, "si tan largo me lo fiais", com os seus contrários: "breve te ha de parecer", "siendo tan breve el cobrarse") entranha a idéia de "prazo" no seu sentido etimológico de placitum (tempo concedido para algo), sempre limitado por um "vencimento" o. Todos esses elementos de um discurso econõmico que contagia o discul'So teológico da época (e certamente de um modo inconsciente), não são exclusivos do Burlador. N6s os encontramos também nos cânones de Trento, em que se define a teologia da salvação do homem e- antes mesmo- os encontramos no Libro de los exercicios de Ignacio de Loyola, como também em suas cartas. Sequer o próprio Quixote consegue, em seu idealismo à toda prova, subtrair-se completamente ao avanço avassalador da mentalidade econômica (burguesa), como tampouco o conseguem os cronistas do descobrimento e conquista da América, por muito que queiram insistir no caráter evangelizador (portanto, puramente religioso) da "empresa". A linguagem delata aqui um inconsciente reprimido (coletivo) que, por meio da palavra, SMARNI, Archimede. Did Tirso employ counterpassion in bis "Burlador de Sevilla"? Hispanic Review, (20):123-33, 1952.

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deixa a sua pegada indelével no texto. A idéia do tempo recupera assim um sentido econômico e, com ela, a ação e a linguagem no drama de Tirso. A antiguidade grega emprega, além de o L.}( o v o fl Ca, sobretudo duas palavras para designar o "tempo": xpóvo s;· (tempo que flui regularmente como uma força cega) e }(a l. pÓs; (um lapso de tempo especialmente apropriado para algo, possível durante esse tempo e não antes ou depois do mesmo). Os kairói se marcavam nos calendários, do mesmo modo que se faz hoje no começo e no fim de prazos importantes na vida pública, nas finanças, etc. Este conceito de "tempo-apto-para-algo" aparece igualmente na Bíblia com o significado de "tempo de graça". Segundo uma velha alegoria. da qual são ecos os livros proféticos, Deus "recorta", em certos momentos da hist6ria da salvação, "períodos limitados de tempo" que se distinguem do curso normal do tempo por ser "tempo de salvação". A tradução grega dos LXX emprega aqui a palavra kairós. Um exemplo especialmente conhecido é o anúncio das "setenta semanas" de salvação em Daniel 9,24: Setenta semanas estão pré-fixadas sobre o teu povo e sobre a tua cidade santa, para acabar as transgressões e dar fim ao pecado, para expiar a iniqüidade e trazer a justiça eterna, para selar a visão e a profecia e ungir uma santidade santissima.

No Evangelho de São João fala-se também de uma piscina à qual, em "determinados momentos", descende um anjo e põe em movimento as águas. Quem nesse momento entrasse na piscina se curava de qualquer doença que tivesse (João, 5,4). E São Paulo chama a Jesus "kairós recortado", fazendo ao mesmo tempo uma chamada para que se considere a brevidade do "tempo de salvação". Nela baseia sua recomendação do celibato para os ap6stolos (1.• Epístola aos Corintios, 7 ,29-35). A parábola dos talentos reduz igualmente o "tempo de negociação" concedido a cada um, ao termo do qual tanto deve prestar contas quem recebeu apenas um, como aquele que recebeu dois ou cinco. O "tempo de salvação" exige sempre uma resposta do homem e, não poucas vezes, põe à prova a sua confiança ou sua fé. É o caso, por exemplo, do "sacrifício de Abraão". Se não se exigisse tal resposta, a justificação do homem seria o efeito automático de certas cerimônias legais. É esse legalismo que caracteriza a doutrina farisaica, o que Jesus tenta reformar. Mas o cristianismo se toma romano muito rapidamente e, com isso, reaparece o caráter "legal" da relação homem-Deus. É a conseqüência da concepção romana da religião, que Cícero define como iustitia apud deos. Aparece, assim, uma síntese muito precoce entre estoicismo e cristianismo. Com isso, converte-se o "tempo de salvação" em "tempo de prova" e a religião do dom gratuito de Deus na religião do rendimento do homem. A patrística e os sínodos oscilarão a partir daqui entre a ênfase na justiça divina e a ênfase na sua miseric6rdia e graça, na hora de estabelecer o modo como se justifica o homem. Santo Agostinho encontra-se justamente diante de ambas as tendências e luta tanto contra os maniqueus como contra os pelagianos, desenvolvendo em sua refutação de ambas as posições opostas à sua doutrina da graça. É assim que surge a teologia soteriol6gica medieval: a salvação do homem é efeito da graça sobrenatural mas, ao mesmo tempo, da conespondência do homem à mesma. 65

Essa correspondência do homem é livre. É a síntese escolástica em Que Tomás de AQuino e, sobretudo, o Tomismo posterior insistirão na "verdade única", com o que se aproxima de novo o connecimento natural, racional, ao sobrenatural, revelado, e - com isto - a ética natural (aristotélica) aos atos meritórios realizados sob a ação da graça sobrenatural. Estabelecem-se, portanto, as bases doutrinais e morais que ainda são vigentes na igreja católica. Contra elas - a partir de diferentes pontos de vista - surgem Maquiavel e Lutero. Ambos têm um antecedente no Nominalismo francês, a tentativa mais realizada de uma separação de competências (a humana e a divina) e, com elas, de duas verdades: a adquirida pela luz da razão humana e a revelada por Deus. Se em Maquiavel se trata de liberar a ação humana no campo da política dos ditames da religião e da moral, para convertê-la em uma autêntica "técnica", em Lutero é o divórcio entre fé e razão o que priva. A salvação é obra da graça divina e ao homem somente cabe aceitá-la mediante a fé-esperança nela. Com isso postulava uma volta à velha concepção bíblica de uma religião do dom, da gratuidade, que fizesse de novo do tempo da existência do homem "tempo de graça e de salvação" no lugar de "tempo de prova". A reforma tridentina, animada em boa parte pela (neo)escolástica espanhola em sua luta contra as doutrinas de Lutero e em seu empenho pela volta à síntese medieval, leva a uma revitalização da religião do rendimento, do crescimento e da acumulação de mé; itos ("riquezas"). Estamos precisamente nos momentos do surgimento de um capitalismo que substitui a microeconomia do pequeno investimento pela macroeconomia do investimento total e, noutra ordem de coisas, que substitui a aventura cavaleiresca pela aventura financeira ••• 9 Não é, pois, oe estranhar que, em ta~s circunstâncias, assistamos igualmente à formação de uma ideologia que tanto vai alimentar a idéia da brevidade da vida, incitando o gozo do instante - o que explica, por exemplo, a floração do soneto com o tema "carpe diem" 10 e do hedonismo epicúreo que caracteriza tanto a Don Juan quanto as suas vítimas11 como uma concepção do tempo-economia que apela para a boa administração do mesmo (precisamente devido à sua brevidade), na ordem da maior acumulação possível, não de riquezas materiais (transitórias), mas de méritos para o gozo maior possível da vida eterna (perdurável). É essa ideologia de dupla face que contagia o discurso e o pensamento teológico, justamente no momento em que se tenta uma volta ao "espírito" da religiosidade medieval. Nela - e participando de todas as suas contradições e tensões 9 Sobre este ponto, veja-se NERLICH, Michael. Kritik der Abenteuer- Ideologie. Beitrag zur Erforschung der bürgerlichen Bewusstseinbildung 1100- 1750. Berlin, 1977. 2 v. 10r:scADRÓN, Blanca Gonzâlez de, Los temas del "carpe diem" y la brevedad de la "rosa" en la poesia espaííola. Barcelona, 1938; BERRIO, Antonio Garcia. Tipologia textual de los sonetos clâsicos espalioles sobre el Carpe Diem., DiJpositio, (111):243-93, 1978. llSobre a sociedade (degradada) que toma possfvel as burlas de Don Juan, cf. MAUSEL, Serge, L'univers dramatique de Tirso de MoliM. Poitiers, 1971; SÁENS.ALONSO, Mercedes. Don Juan y el donjuanismo. Madrid, 1969.

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- surge esse drama de Tirso, El burlador de Sevilla y convidado de piedra, em que se cristaliza com força trágica o mito de Don Juan. Se na prática dos Exerdcios propunha Ignacio de Loyola antes de Trento um programa de salvação e acumulação de méritos para o "todo" da eternidade, com a perspectiva de uma antecipação imaginária da morte que devia mover o leitor ou ouvinte a investir nesse Tudo cada minuto da vida te~rena, Don Juan, ao contrário, representa na cena, mediante a palavra e o gesto, a atitude contrária ao programa inaciano que sancionam 'os cânones de Trento. 12 Por isso Don Juan, como diz Kierkegaard, é um homem sem história. lgnacio de Loyola e Don Juan participam, no entanto, de um mesmo pathos. E participam também dessa contradição que Marx destacara na economia capitalista: para ganhar, é preciso gastar. ~ para seguir esse desgaste minuto a minuto através da palavra-ação de Don Juan que é convidado o público do Burlador. DON JUAN NA ERA PÓS-MODERNA

Babel de una noche de San Juan não constitui, a rigor, uma nova "versão" do mito de Doo Juan; não encontramos na sua história narrada uma estrita adaptação dos mitemas originais, como nos dramas bam>cos ou a ópera, já mencionados. 13 A modelização do mito em Babel realiza-se na modalidade par6dica, em que os mitemas estão submetidos a transformações que não só supõem as anteriores elaborações literárias do mesmo, como inscrevem os valores culturais da nossa época. Como uma vasta experimentação intertextual, interlingüística (e também intersemiótica), esse romance toma Don Juan como um referente artístico/cultural para desencadear uma espetacular peiformance verbal de desmontagem do idioma castelhano, convertendo a erótica da sedução donjuanesca numa estética da sedução do texto.

12En Ia Sessio VI (Decretum de iustificatione), cap. 10, •ne acceptae iustüicationis incremento", proclama Trento: "Si c ergo iustificati... euntes de virtude in vir tu tem, renovantur de die in diem, hoc cst, mortificando membra carnis suae et exhibendo ea arma iustitiae in sanctificationem per observationem mandatorum Dei et Ecclesiae: in ipsa iustitia per Christi gratiam accepta, cooperante fide bonis operibus crescunt atque magis iustificantur". En los cânones De iustificatione de la misma sesi6n VI Icemos a4n: "Si quis dixerit, iustitiam acceptam non conservari atque etiam non augeri coram Deo per bona opera, sed opera ipsa fructua solummodo et signa esse iustificationis adeptae, non etiam ipsius augendae causam: AS." (Canon 24); e! Canon 32 habla incluso de merecer e! "augmentum gratiae. •• atque etiam gloriae augmentum•. Sobre la difusi6n que estas doctrinas alcanzan on la Espaiía do! siglo XVII, cf. MARAVALL, J.A. La phllosophle politique espagnole au XVI/e. siecle dons ses rapports avec fesprlt de la Contrerlforme. Paris, 1955. 131. Rousset propôs as três invariantes do mito donjuanesco (Q, Inconstante, o grupo feminino, o Morto), como suas drama tis periDnae fundamentais (Cf. op. cit. nota 2, p.138). Propomos aqui as unidades narrativas a partir do •teixo de l:'elações• sugerido por Rousset, mas adaptando-as ao conceito de mi tema de L6vi-Strauss (Anthropologie structu· rale. Paris, Plon, 1964. p.233-4).

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O personagem que encarna nesse romance o papel do Inconstante é Milalias - um nome-máscara de um indivíduo cujo verdadeiro nome é Emil Alia. Desde logo, é aquele (como este) nome um achado lingüístico que compatibiliza o personagem com o Sedutor paradigmático. Mil-alias é apresentado pelo narrador com o qualilicativo que consagrou o Sedutor para a posteridade, desde o drama de Tirso: "un hombre sin nombre" mas acrescenta; "Sí, porque los tiene todos. Llamémosle para abreviar: Don Johannes Fucktotum••• " (p.12). Assim, em vez da carência ontológica, uma ausência do Ser - cara em versões anteriores - o Don Juan atual• é uma pluralidade de identidades, uma summa de homens ou o gênero masculino em sua totalidade. Mas, contrariamente ao Burlador de Tirso- que era "mancebo excelente, noble y galán" (Jornada 1:, 168) - Milalias é pobre e desengonçado: usa óculos (que se perdem em muitas camas). É escritor boêmio, marginal e vagabundo, que faz trabalhos ocasionais para sobreviver (traduções ou "lesiones d'espaiiolé"). Espécie de Don Juan intelectual, Milalias encarna o antiburguês, dentro do modus vivendt hippie dos anos setenta, mas também corno Baudelaire o imaginou em" La fio de Don Juan". A atividade amorosa desse sedutor não se estende por várias cidades - como as que o seu antepassado percorria a cavalo -mas por uma apenas, plural e babélica, "The Waste London", onde faz as suas "pornoctambulaciones", de pub en pubis (p.239). Como o seu modelo, Milalias converte o objeto amoroso numa palitopia, de acordo com aquele princípio básico de toda atividade donjuanesca: a ausência de diferenciação quanto às "doõas", para encontrar o prazer na combinação. "Amor es rey/ que iguala con justa ley/ la seda coo el sayal", dizia o Burlador de Tirso (Jornada 1: , 178-179); "Cameriere, cittadine;/ E v'han contesse, baronesse,/ Marchesine, principesse,/ E v'han donne d'ogni grado,/ D'ogni forma, d'ogni età" (Ato 1,2,202) -conforme consignava Leporello, na vivacidade da música de Mozart. As fêmeas de Milalias (ou Johannes Fucktotum) percorrem toda a escala social e intelectual, ideológica e religiosa, de nacionalidade, raça, profissão e conformação física. Mais de 60 aventuras eróticas sorna esse "camaleón que corre de cama en cama" à "noveleta dei Burlador" '(p.40). Essas aventuras parecem compendiar as tarefas habituais da prática donjuanesca, na qual a masculinidade se reduz ao fantasma do poder fálico aplicado, com desenvoltura, ao atletismo sexual. Corno êrnulo de Don Juan, Milalias mantém, no entanto, com respeito ao seu modelo, uma similaridade perversa; se, como no mito, seus objetos de sedução constituem um universo poli tópico, sua libertinagem, em troca, carece de qualquer conotação profanat6ria. As "seduzidas" não são vítimas inermes, as conquistas não são atos de violação, nenhuma delas grita por socorro ou apela, desesperada, para o pai ou o noivo, como Doõa Elvira, Zerlina ou Aminda. Os tempos de Milalias são outros. Assim como a primeira unidade constitutiva do mito clássico (seduções, burlas, crime e blasfêmia - que formam o rnitema atos transgressivos) estão reduzidos, em Babel, a meros atos de sedução, também o segundo 68

mi tema. punição, será atualizado mediante simetrias e transposições, deslocamentos e ampft.ficações que reforçam a paródia romanesca. Milalias, que, no exercício sedut6rio, é apenas um "don juan histórico", somente assumirá a sua condição mítica no momento em que se converte em Don Juan Tenorio, ou seja, vestindo um traje de fantasia para ir a uma festa-bacanaí, numa velha mansão londrina. Com um "sombrero de ala ancha coo plumas blancas, antifaz negro, capa negra" (p.13), Milalias se metamorfoseia em Don Juan Tenorio para cair num vertiginoso carnaval, em que as drogas, as bebidas, os jogos, os espetáculos de rock and rol! e a dança animam a mascarada. É nessa noite de noites que a "vida" de Milalias se transforma no destino de Don Juan: a festa se transfigura no banquete fatídico em que o Sedutor enfrenta o sobrenatural -as mulheres seduzidas na vida "real", ali presentes, convertem-se nos fantasmas vingadores das burlas; as amenas conquistas eróticas em suas andanças londrinenses adquirem o estatuto de atos delituosos. Em cinco capítulos são narradas as miragens, as lembranças alucinatórias das muitas máscaras, os delírios e os giros de Milalias/ Don Juan, em meio ao torvelinho carnavalesco, que vão pontualizando o mitema punição. O protéegoniste ensorcelé (p.278) conecta progressivamente as imagens das suas andanças londrinas com o destino paradigmático do Sedutor, para forjar o relato como um "archivo expiatorio" (p.30): - Delit de lit- Don Juan delirando liado en su capa. El hecho delictuoso... Desatai Todos esos enlaces•• Lazos ai retorcerse v(boras anudadas. En camastros de fuego. Apenas se apaga uno se enciende otro. Fatuo fuego eterno! (p.67) -A liquidar ya las cuentas, evacuenl Fontenoriol II Dissoluto punito, o sia Don Giovannish! (p.69) -Anos de engaiios, aií.os de daiios. Y con las horas contadas en este baile. (p.79) - (...) y torci6 su cabeza de buitre hacia el Comendador blanqueado que estaba de estatua junto a la puerta. Ya le llegará el justo castigo al castigador••• (p.l05)

Contrariamente às versões barrocas e românticas do mito, a punição em Babel não se consuma mediante a intervenção do Comendador. Apesar de que este esteja presente à festa e ronde o Burlador, o Convidado de Pedra não consegue executar o castigo exemplar. O agente da punição é o "círculo de las mujerinias" (p.305) - um tribunal de 60 mulheres furiosas - que imputam as culpas ao Sedutor (p.305-411), o martirizam e finalmente o reintroduzem no útero para fazê-lo renascer como mulher. Don Juan se transforma em "Juana" (p.412-3). Nesta cena fantasmag6rica, temos a culminação paródica do mitema da punição do Sedutor e a projeção do seu sentido para uma direção diversa do que fora constituído pelas versões anteriores do mito. A forma do castigo - pelas mãos das Erínias, ou seja, as Fúrias, que na tragédia grega atormentavam o matricida Orestes -, o retomo ao útero (à matriz) e a reencarnação como menina são inversões da forma original: em vez da punição paterna - pelas mãos de pedra do Comendador, o Pai Eterno, temos a punição materna; em vez da morte de Don Juan nas chamas do inferno, temos o renascimento, na "umidade paradisíaca" do útero. Desse modo, tanto o agente como a conseqüência da punição são simetricamente inversos aos

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desse mitema tradicional. Como no mito donjuanesco a punição fonna um correlato lógico com a causa da mesma, ou seja, os atos de sedução, o sentido dessas inversões deve situar-se no modo e no objeto das seduções de Milalias. Qual é afinal de contas o objeto de sedução desse Don Juan da nossa era? Seria o obscuro objeto do desejo desse Sedutor a Mãe originária (o tabu), esse objeto sempre diferido e sublimado pela politopia das muitas mulheres, simulacros da única verdadeiramente desejada? A alegoria de Julián Ríos involucra maior complexidade do que pode Cflber numa superficial interpretação freudiana. Milalias, como todo doo juan, é tributário da outridade feminina, na qual arroja fantasmaticamente a sua identidade masculina. Mas seu modo de sedução remodeliza essa busca de identidade com tais peculiaridades, que o romance acaba por nos proporcionar uma teona da sedução donjuanesca como uma concepção da linguagem. "Loco por las mujeres y las palabras" (p.305), os atos de sedução de Milalias consistem em desviar do caminho '(se-duc'ére) as mulheres com as suas "diabladas de poliglotón", suas "fraguas de parolas", suas "jergas eo jergón" (confonne referem, insistentemente, as mulheres do tribunal de acusação). Se para o Don Juan molieresco "tout le plaisir d'amour est dans le changement" (de mulheres) (Ato 1,2,p.719), o Don Juan babélico acrescentará" ••• e das palavras". Suas conquistas começam pela metamorfose dos nomes das seduzidas, como, por exemplo, a gorda Mrs. Mitchel, que vira "Madame Michelin", a psicanalista Ana Fleck vira "Ana Lista", a garota de seios abundantes vira "Titty Titania", Luz vira "Luzana Andaluza", etc., etc. Cada ato de sedução se perfonna mediante a performance lingüística, na qual a violação verbal é o modo de apropriação da outridade feminina. Esse Don Juan exercita-se sexualmente no e pelo ato de linguagem. E, ao revés, ele se exercita lingüisticamente na sexualização da língua, sendo a figuração mais notória disso as suas "lesiones d'espaõolé", onde pratica com as discípulas certos fonemas castelhanos a modo de foreplay (cf. p.314-5 e p.470). Para esse Don Juan cunning lingüista, cada conquista converte-se numa "verbacanal", em que se confundem o erotismo carnal com o lingüístico. O virtuosismo verbal no ato sedutor não é, certamente, uma invenção de Julían Ríos para criar o seu próprio mito donjuanesco. Em Tirso, em Moliere ou em ZorrilJa, a burla passa pela habilidade de fascinar/persuadir pela palavra, num discurso que funciona como tal porque não há comunidade ideológica de perspectivas entre o burlador e as burladas (confonne já argumentado aqui). Mas, se o Sedutor dramático consegue seduzir pelo poder-fazer-crer em sua palavra, porque sabe (e já como homem moderno) que a sua vítima pertence ao universo ideológico da boa-fé, o Sedutor babélico/pós-moderno consegue seduzir por um poder1azer(poético)- vale dizer- uma sedução pelo significante, que já não requer nenhuma promessa. Seu modo de sedução já não é o ato de linguagem que produz simulacros referenciais por um saber demoníaco que ilude o objeto de sedução, mas 70

um desfrute perverso e hiperbólico da própria linguagem, destituída da (pseudo) referencialidade, própria do discurso donjuanesco moderno. A sedução, agora, converteu-se numa trans-sedução: o efeito Don Juan tornou-se, de um ponto de vista pragmático, o gozo pleno, em si, da performance lingüística, desobrigada de "enganar" a destinatária, desobrigada, portanto, de simular um conteúdo (prometer casamento, amor eterno ou fidelidade). O modo da trans-sedução insinua, pois, que o objeto do desejo do sedutor babélico é a "outra mãe" - a língua materna, fonte de permanente excitação, do gozo oral/genita1. 14 Cada mulher é uma línr.ua de uma vasta família (daí que no capítulo "Corrido", elas recebam epltetos como "Madres", "Hermanas", "Sombras chinescas", "Niiias de sus ojos") -e cada uma é seduzida para que o Sedutor aceda à sublime violação da língua espanhola. "Y todas van a hacerse lenguas de mi lengua" (p.l54) -exulta o Sedutor, para quem "desbaratar elllano castellano, descastarlo y desencastillarlo, sacaxlo de sus Castillas" (p.440) figura a voluptuosa profanação da Lingua Mater. Se voltamos, agora, ao mitema da punição invertida, tendo em conta o sentido dos atos transgressivos do Sedutor, verificamos que o conteúdo do "castigo" - devolvê-lo à matri.x geradora - alegoriza a própria busca do escritor pós-moderno: o espaço originário, o locus indiferenciado das línguas, do caos sonoro/semântico, anterior a toda normativização e diferenciação lingüística. O Paraíso, antes da separação histórica entre o significante e o significado. Em sua metamorfose (a última?) como escritor, Don Juan nos fascina como o performista da linguagem, o mestre da paródia romanesca que, mascarado como narrador, rege o espetáculo do "carnavais de las parolas". "Un hombre sin nombre", o escritor, como o mito que é o seu modelo na escritura, encarna a inconstância da narração, o prazer da combinatória dos signos, o triunfo do múltiplo e transitório do significante sobre o fixo e verdadeiro do sentido. Com essa perspectiva estética, o Don Juan babélico absorve a fórmula barroca de Tirso de Molina e a converte numa proclamação mais afinada à sensibilidade contemporânea: "Y o soy el que es hoy" I" Yo soy el que soy", com a qual afi;rma a sua identidade (divina), negando-a, ao mesmo tempo, pela paródia, máscara e fantasma (larva, em latim) da autoridade, Don Juan-escritor somente pode legitimar-se aqui e ag9ra, na pura duração do interplay texto/leitor. Seduzir/profanar a língua é projetar 14Para S. Felman, o discurso doqjuanesco 6 o "discurso da promessa'" (Op. cit., nota 2, p.43 ss.) que promociona a confusão entre "sentido e referência" (Ibid. p.lOS-9). CL Reichler, tomando o mesmo Dom Juan, de Moliere, avança em argumentação similar, para postular que o "sistema Don Juan" 6 a contrafacção da relação simbólica (binãria: entre o signo e a coisa), que instaura a concepção ternãria do signo, na qual "signification et d6signation sont separ6es" (Op. cit. nota 2, p.45-7). Nossa tese da trans-sedução pretende descaracterizar tanto a dicotomia conflitiva entre sentido e referência, como a oposição ao código simbólico - para o caso do Don Juan pós-moderno. Este dissolve, assim, a relação com outro tipo de código (essencial para a estética barroca, como se argumentou aqui). para gozar o ~-u triunfo de Sedutor na performance do significante.

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o ato transgressivo numa donjuanização da escritura - um poder-fazer que converte os leitores nas vítimas (consentidas) da (trans)sedução- E o que é a literatura senão a expressão da energia sensual donjuanesca que nos leva pelo ato verbal/amoroso ao infinito do sentido?

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O MODERNISMO LÊ A MITOLOGIA: EZRA POUND E OS CANTOS JAMES F. KNAPP*

"Afaste as mitologias antes que elas estabeleçam valores claros."l I!i!o diz Ezra Pound, escrevendo quase quarenta anos depois de ter começado seu épico moderno, os Cantos. Sua linha deverá trazer-nos à memória que, para os artistas e intelectuais de sua geração, o estudo da mitologia não foi simplesmente uma busca acadêmica. Pound estava atacando o que acreditava ser a degradada e opressiva natureza da modernidade, mas, ao fazê-lo, confiou numa premissa que pode ser encontrada através de grande párte da arte do modernismo europeu: que a mitologia antiga, como as imagens do sonho ou a arte das assim chamadas culturas "primitivas", pode ser usada, efetivamente, para dar forma às realidades prementes da história. Para os artistas que começaram a formular o discurso do modernismo, ler mitologia nunca foi somente uma releitura do passado morto, nunca o simples ato de preservação e repetição do arquivista. Ao invés disso, foi uma re-produção, um novo ato de imaginação que sempre esteve comprometida, de alguma forma, com o presente. Contudo, esse compromisso histórico podia tomar formas muito diferentes, e grande parte do debate crítico atual sobre o significado social e intelectual do modernismo poderia girar em tomo da questão de como esses artistas buscavam entender, e usar, os antigos mitos. Quando Pound era jovem, escreveu sobre os mitos gregos de uma forma que estava de perfeito acordo com suas próprias origens artísticas no esteticismo do fin-de-siecle: Acredito em uma espécie de base permanente na humanidade, isto 6, acredito que o mito grego surgiu quando alguêm, tendo passado por uma experiência pstquica agradável, tentou canunicâ-la a outros e achou necessârio proteger-se da perseguição. Falando esteticamente, os mitos são explicações de disposição: pode-se parar aí, ou explorar mais a fundo. O certo ê que esses mitos são inteligíveis somente em um sentido vívido e resplandescente àquelas pessoas a quem eles ocorrem. Eu conheço, de fato, um homem que compreende Perséfone e Deméter, e outro que compreende o Laurel, e outro que, devo dizer, encontrou Ártemis. Essas coisas, para eles, são reais.Z

Nessa versão do esteticismo, que tanto caracterizou a poesia inglesa de vanguarda da década de 1890 e que continuou a dar forma ao trabalho de muitos dos modelos de Pound (W. B. Yeats, por exemplo), os mitos são uma ocasião para intimidade, para experiências psicológicas que são *James F. Knapp. Professor de Língua e Literatura Inglesa na Universidade de Pittsburg/EUA. Doutor em Ll~ua e Literatura I~lesa pela Universidade de Connecticut/EUA. Ensaísta. lPOUND, Ezra. The cantos. New York, New Directions,1970. Canto 87, p.570; referências subseqüentes a pâginas serão feitas no pr6prio texto. 2Psychology and troubadours (1912). ln: The spirit ofromance, New York, New Directions, s/d. p.92.

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únicas, quase hennéticas. Compreender Perséfone, por isso, toma-se menos um ato de história intelectual do que um modo de iniciação ao culto do sentimento. Quando Pound decidiu, em seus versos, usar essa abordagem para materiais mitológicos, escreveu poemas como este: The The The The

tree has entered my hands, sap has ascended my arms, tree has grown in my breast- Downward, branches grow out of Íne, Iike arms.

Tree you are, Moss you are, You are violets with wind above them. A child - so high - you are, And ali this is folly to the world.3

A experiência de Dafne de ser transformada em uma árvore é vividamente imaginada na primeira estrofe desse poema despretencioso. Mas, na segunda estrofe, Pound se situa tanto em relação à experiência dela, com a qual está em harmoniosa comunhão, quanto em relação ao que ele chama de "o mundo", uma sociedade presumivelmente indiferente, incapaz do tipo de sensibilidade emocional que por si só toma possível o fenômeno psíquico da miraculosa mudança de Dafne. A ação de Pound é a do esteta que responde ao materialismo crasso da sociedade industrial modema simplesmente virando-lhe as costas completamente e abraçando, em vez disso, o domínio alternativo da experiência psíquica agradável. Embora um mito como o de Dafne e Apolo possa, portanto, servir para revelar a "insensatez" do mundo moderno, ele não procura mudar esse mundo, mas sim oferece um espaço imaginativo no qual a vanguarda artística possa admirar sua superioridade ao materialismo de sua época. Em 1920, entretanto, quando Dafne apareceu outra vez nos poemas de Pound, sua importância tomou-se bem diferente. Citando duas linhas de um poema de Théophile Gautier, Pound alude ao mito de um modo que questiona profundamente os valores sociais que haviam sustentado implicitamente seu esteticismo anterior: Daphne with her thighs in bark Stretches toward me her teafy hands, Subjectively. ln the stuffed-satin drawing room I await The Lady Valentine's commands, Knowi~

my coat has never been Of precisely the fashion To stimulate, in her,

A durable passion. 4

O falante é precisamente o tipo de artista de vanguarda que teria desprezado a insensatez "do mundo", mas agora o antigo mito da paixão 3 POUND, Ezra. Personae. New York, New Directions, 1971. p.62. 4 Personae, p.196.

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e transfiguração serve somente para zombar de seu desejo atual de seduzir uma protetora rica tão superficial que sua imaginação está limitada à apreciação de roupas elegantes. Hugh Selwyn Mauberley, o poema no qual se encontra essa passagem, foi a rejeição de Pound de seu antigo compromisso com um esteticismo como o do fim do século XIX. O fracasso dos esforços do fim -de-século de criar uma bela miscelânea do mito grego e do Catolicismo Apostólico Romano é representado, para Pound, por Victor Plarr, ''autor de The dorian mood (O humor dórico)", que é descrito no poema como uma figura isolada e irrelevante, "tora ao compasso com a década". Três anos antes, em 1917, Pound havia publicado sua Homage to Sextus Prope•tius (Homenagem a ~exto Propércio), uma tradução livre do poeta romano que marcou o final da apropnaçào -ae Pound do mundo anngo como um objeto estético ou como um espelho para admirar seu próprio processo psíquico. Ele acreditava que os poetas romanos eram "os únicos que conhecemos que tiveram aproximadamente os mesmos problemas que temos. A metrópole, os correios imperiais para todos os cantos do mundo conhecido" .l,Juanto a seu Propércio, disse que queriaincluir"algo de Ovídio", e que sua figura complexa "incluiria o espírito do jovem da Era de Augusto. odiando a retórica e sem ser ludibriado pela porcaria imperial". 5 O Império Romano que o poema ataca é, na verdade, r uma representaç-ão substituta do imperialismo britânico. O alvo principal de Pound é o uso da tradição (incluindo a tradição mítica) para formular uma retórica que apóia a conquista imperial, e seu estilo rebate ironicamente essa retórica: Out-weariers of Apollo will, as we know, continue their Martian generalities, W e h ave kept our erasers in order. A new-fangled chariot follows the flower-hung horses. 6

Pound acreditava que a visão genuína dirigida pelo mito para dentro da natureza que se abre -sua qualidade metamórfica -haviasidocomprometida muito cedo pelo desejo de poder social. Argumentou que "a incontestável tradição das metamorfoses nos ensina que as coisas não permanecem sempre as mesmas. Elas tomam-se outras coisas por um processo rápido e inanalisáveL Foi somente quando os homens começaram a desconfiar dos- mitos e a contar mentiras sórdidas sobre os Deuses com um objetivo moral que essas questões se tomaram i9-corrigivelmente confusas. Então algum desagradável semita, parse ou sírio, começou a usar os mitos para a propaganda social; por esse tempo o mito foi degradado a uma alegoria ou fábula, e esse foi o início do fim". 7 O uso do mito para fins de propaganda estava ligado, para Pound, a uma distinção que ele fazia entre dois tipos de religião. Uma, que chamava 5PAIGE, D. D. (ed.). The letters of Ezra Pound, 1907-1941. New York, Harcourt, Brace, 1950. p.90, 150. 6Personoe. p.207. 7ELIOT, T. S. (ed.). Literary essays of Ezra Pound. New York, New Directions, 1954. p.431.

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de "tipo do império britânico", era fundamentalmente um meio de controle social, um meio de "manter a incómoda plebe em ordem". 8 Em oposição a esse tipo de religião oficial, ele oferecia o exemplo dos antigos cultos dos mistérios. Algumas ve.~:es suas categorias mudavam, quando ele fazia essencialmente a mesma distinção em termos diferentes: "Para entender isso, deve-se fazer uma clara clivagem entre 'religião' e 'administração'. As assim chamadas dificuldades de penetrar no culto eleusino ou de alcançar o significado de uma 'religião' são devidas à indiferença do culto ao império",9 Nesse ensaio, ele continua argumentando que, tão logo um culto se associa ao governo, fatalmente ele é solapado, porque "o governo deve governar por fórmulas. O desconhecido deve ser, senão formulado, pelo menos dissimulado e tratado por f6rmulas". Em um ensaio intitulado "Provincialism the enemy" (Provincialismo o inimigo), Pound imagina Cristo ditando um texto novo a seus discípulos: "Tu não deves 'salvar' a alma de teu vizinho por qualquer panacéia clara ou kultur. E, especialmente, tu não deves 'salvá-la' contra a sua vontade".IO Por kultur :Pound entendia o tipo de mitologia de estado que ele via congelar a propensão natural da vida de crescer e convertia-se em uma ordem rígida que somente servia a poucos. Para Pound, essa cultura repressiva podia remontar ao passado distante, e, em determinado momento, viu seu começo no que chamou de "o ataque à natureza" da filosofia grega. 11 Dessa maneira a história tomava-se uma longa batalha entre a Natureza, que era infinitamente produtiva, esquivando-se sempre dos esforços humanos de refreá-la, e uma tradição metafisica que procurava conhecer - e assim dominar - essa Natureza. O interesse de Pound na cultura da Provença medieval foi, em parte, um resultado de sua crença de que aquilo que ele chamava de "uma luz de Elêusis", isto é, uma introspecção mítica que pré-datava à filosofia grega, havia persistido na Idade Média e ainda podia ser vista nos versos dos trovadores. Quando começou a escrever os Cantos, Pound usou suas hipóteses sobre o mito para construir um épico moderno no qual a história é uma infindável batalha para recuperar a antiga proximidade da Natureza que as instituições da civilização queriam destruir para presetvar e estender seu poder. Os Cantos contêm uma grande extensão de história, incluindo a Idade Média da Europa, a Itália da Renascença, as primeiras e ainda revolucionárias décadas dos Estados Unidos e a China de Confficio, e eu não poderia aspirar a resumir a forma global do poema. Porém, o uso que Pound faz dos materiais que configuram a batalha de construir uma civilização que preserva a antiga ligação mítica à Natureza - uma batalha perdida e ganha e perdida novamente através da história- é a característica de seus métodos

8The spirit of romaru::e. p.95. 9COOKSON, William (ed.). Selected prose, 1909-1965, New York, New Directions, 1973. p.56. 10Selected prose. p.l94. llselected prose. p.86.

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gerais no poema. Por exemplo, no Canto 23, ele lembra a c;ultura provençal que havia sido destruída pela Cruzada Albigenésia do século treze: And he went down past Chaise Dieu, And went after it all to Mount Segur, after the end of all things, And they hadn't left even the s ta ir, And Simone was dead by that time, And they called us the Manicheans Wotever the hellsarse that is. And that was when Troy was down, ali right, superbo llion.•• And they were sailing alo!ll Sitting in the stern-sheets, Under the lee of an island And the wind drifting off from the island. "T et, tet••• what is it?" said Anchises: "Tethnéké," said the helmsman, •r thinc they "Are howling because Adonis died virgin." "Huh! tet-." said Anchises, "well, the:(ve made a bloody mess of that city."12

O monte Segur, local de'\ uma fortaleza no topo de uma colina, onde os últimos maniqueanos foram cercados e mortos durante a Cruzada Albigenésia, toma-se para Pound o símbolo de uma cultura vital destruída pelo poder repressivo, institucionalizado da época. Mas o monte Segur também havia sido o local de um templo a Apolo em tempos pagãos, e, portanto, sua associação à luz solar relacionou-o àquela outra "luz de Elêusis" que Pound acreditava ter sido preservada na cultura provençal. Os exércitos do Papa, representando o poder da religião "administrativa", eram, nesse ponto de vista, meramente mais uma na longa série de tentativas de varrer a sabedoria da Natureza por uma civilização repressiva que podia remontar aos primeiros filósofos gregos. Pound relaciona esse momento de luz provençal a momentos posteriores na história, tais como os criados por Sigismundo Malatesta na Renascença, e por Thomas Jefferson durante o Tiuminismo da Revolução Americana. Mas ele também relaciona a tragédia Albigenésia a acontecimentos mitológicos mais primitivos. Ao justapor o monte Segur à cidade devastada de Troia, Pound estende o que chamava de "a rima do assunto" de volta a um complexo mítico que lhe permite construir uma elaborada estrutura conceituai para sua crítica do presente. Se Tróia havia sido destruída, Anquises e Enéias irão, não obstante, reconstruir seu mundo arruinado em outro lugar, estabelecendo um padrão no qual a luz da vitalidade cultural nunca será definitivamente extinguida, mesmo na mais sombria das épocas históricas. Se a alusilo de Pound antecipa ass1m os numerosos locais do Mediterâneo que se diz terem sido fundados por Enéias em suas perambulações, também lembra um nível mais arcaico do míto cultural, quando os sobreviventes de Tróia ouvem ao longe os lamentos de um povo que celebra o antigo ritual da morte de Adônis. Esse ritual, que tinha por finalidade assegurar a recuperação da fertilidade perdida com a morte do deus, lembranos que aquilo que é sempre perdido em acontecimentos como a destruição 12The cantos. New York, New Directions, 1970. p.l09.

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do monte Segur é (de acordo com Pound) o conhecimento de que a vida dos homens e das mulheres não deve ser divorciada dos processos da natureza da qual ela depende. Os Cantos simbolizam a produtividade da natureza em passageru; wmu esta, que a~;;:>~~-eve uma tapeçaria vista através dos olhos de um Senhor de Ferrara do século quinze, Niccolo d'Este: Ju~le:

Glaze green ano red feathers, jungle, Basis of renewals, renewals; Rising over the soul, green virid, of the jungle, Lozenge of the pavement, clear shapes, Broken, disrupted, body eternal, W ii derness of renewals, confusion Basis of renewals, subsistence, Glazed green of the jungle; (91f)

Essa visão de fertilidade natural é, para Pound, a base essencial para a renovação cíclica de toda a vida. Mas também é, não obstante, uma "selva", sem forma e às vezes apavorante, e Pound não era de modo algum um simples místico da natureza. Demasiadamente investigador da alta arte ocidental para jamais recorrer ao primitivismo romântico, ele buscou não a Natureza em si, mas um tipo de civilização que pudesse incluir a plenitude da Natureza dentro da sua própria esfera de razão e justiça. A figura que representava mais completamente o ideal de uma civilização consciente de suas origens e limites era, é claro, a de Odisseu. Pound foi capaz de encontrar nas lendas de Odisseu um conjunto de temas suficientemente complexos para permitir-lhe torcer as histórias antigas para os propósitos de sua própria crítica da história. Os Cantos começam com uma tradução de uma parte do Livro XI da Odisséia, mas a versão de Pound é apresentada nas convenções poéticas da poesia anglo-saxônica e baseia-se em uma tradução de Homero no latim da Renaseença. O ponto principal desta técnica semelhante ao palimpsesto é que as formas culturais devem ser continuamente renovadas com o tempo, e sempre nos termos historicamente específicos de cada nova era. Dessa maneira, quando Pound visualizava a história européia, podia encontrar o antigo herói vivo novamente na pessoa de Niccolo d'Este: "E ele em sua tenra juventude, no despertar de Odisseu/Para Citera (a.d.l413)" (111). No entanto, seguir no despertar de Odisseu não era simplesmente ser Odisseu renascido. O Odisseu do poema de Pound é uma figura mediadora que se situa entre o domínio do instinto animal e as leis da sociedade. No Canto 39, Pound retrata a ilha de Circe, enfatizando o desejo tisico da deusa ("discuta isso na cama, disse a dama") e terminando com uma exaltação a Afrodite e um hino nupcial. Beaten from flesh into light H ath swallowed the fire-ball A traverso le foglie His rod hath made god in my belly Sic loquitor nupta Cantat sic nupta (196)

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Mas o canto abre com um relato da transfonnação, provocada pela deusa, dos homens de Odisseu em porcos, em uma cena que enfatiza não simplesmente a rica sensualidade da natureza como também seu potencial para a desordem, em um tumulto sem lei que é o lado mais sombrio da generosidade proliferante da natureza: "A primavera renascida no verão I a primavera tardia no outono folhoso"~ O apetite Ilimitado de Circe é também a potencialidade para derrubar a regularidade dos ciclos da natureza, uma regularidade que Pound via, também, como fundamental ao estabelecimento da ordem humana. O imperativo para coordenar a atividade humana com os padr5es da natureza está expresso mais claramente no Canto 47, no qual Odisseu é mais uma vez a figura central. O uso da agricultura por Pound, para representar a sociedade humana corretamente ordenada, é apresentado como uma conseqüência 16gic~. da história odisseana nesta passagem que reúne Homero e Hesíodo: To the cave art thou called, Odysseus, By Molü hast thou respite for a little, By Molü art thou freed from the one bed that thou may'st return to another The stars are not in her counting, To her they are but wandering holes. Begin thy plowing When the Pleiades go down to their rest, Begin thy plowing 40 days are they under seabord, Thus do in fields by seabord And in valleys winding down toward the sea. When the cranes fly high thidc of plowing. (237)

Assim como Odisseu deve resitir aos prazeres de Circe para voltar a seu lugar legítimo com Penélope, assim devem aqueles que querem criar a civilização permanecer em contato com as regularidades de uma ordem natural na qual a primavera não pode renascer no outono tardio, como no reino desordenado de Circe. A passagem é precedida por uma descrição dos rituais da fertilidade que comemoram as mortes de Tamuz e, em seguida, Adônis, cujas luzes votivas são postas à deriva no mar. A viagem de Odisseu é, portanto, moldada por esses antigos rituais de morte e renascimento por um lado e, por outro, pela simples ordem de pensar em arar quando as garças voam alto, um exemplo rudimentar da lei humana baseada nos processos da natureza. As garças voam por instinto, e, se os homens de Odisseu tivessem que permanecer sob o encantamento de Circe, eles também se comportariam de acordo com as pressões do apetite selvagem. Mas observar as garças, por mais simples que possa ser, é um ato da mente. E, como uma figura que permanece entre a cultura e a natureza, o Odisseu de Pound deve usar seu conhecimento para sobreviver: Knowledge the shade of a shade, Yet must thou sai! after knowledge Knowing less than drugged beasts. (236)

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É claro que Odisseu havia sido visto, desde os tempos clássicos, como uma representação da curiosidade intelectual. Porém, para Pound, que queria apropriar a tradição antiga de maneira a usá-la em sua própria batalha com a modernidade, o conhecimento era um elemento vital na disposição modema do poder social. Quando criou seu próprio inferno dantesco no Canto 14, colocou no local mais profundo aqueles a quem chamou de "monopolistas, obstrutores do conhecimento, I obstrutores da distribuição". As desordens de uma economia industrializada, modema, eram compreendidas por Pound como dependentes, em parte, da restrição do conhecimento. Essa restrição podia tomar a forma de uma falsificação da história através de generalizações acadêmicas simples, ou podia representar a habilidade dos comerciantes de armas de vender suas mercadorias para as duas partes envolvidas na guerra, revelando informações sobre as capacidades militares de forma a aumentar o medo e a paranóia de cada lado. Os heróis odisseanos de Pound, pelo contrário, eram gerálmente retratados como capazes de suportar o fluxo de informações, muitas vezes sob a forma de livre expressão artística. Sigismundo Malatesta, por exemplo, estipula no Canto 8 que oferecerá a um pintor, a quem contratou, um ,salário anual garantido, bem como a segurança de "trabalhar como preferir, I Ou gastar seu tempo como quiser" (29). Contudo, encontrar em meio à enorme complexidade do presente uma re-incorp0ração dos padrões heróicos que ele pensava ter visto, pelo menos intermitentemente, através da história, não é uma tarefa tão fácil. Procurando por Odisseu, ou Jefferson, ou Confúcio, Pound prendeu-se, em vez destes, a Benito Mussolini e seu Estado fascista italiano. A escolha levou-o, em última análise, a um campo de prisioneiros do Exército dos Estados Unidos, para um julgamento por traição, e a anos de confinamento em um hospital psiquiátrico. De muitas maneiras, Pound via-se como Odisseu, e a terrível derrota de sua própia batalha para purificar sua casa do século XX lembra a leitura da Odisséia que Max Horkheimere Theodor Adorno fizeram durante a mesma guerra que arruinou Pound. Em sua Dia/ética do Iluminismo, eles argumentaram que, quando Odisseu alcançou o sentido de sua própria individualidade, ganhou uma nova liberdade sem precedentes, um poder de dominar a natureza e de não mais ser seu escravo. Porém, esse domínio sobre a natureza foi conseguido às custas de uma profunda auto-alienação, uma negação de que a natureza estava dentro dele, ou de que ele alguma vez estivera dentro da natureza. O iluminismo odisseano foi, portanto, uma vitória perigosa. Prometendo libertar homens e mulheres da opressão e dos temores antigos, não obstante dependia de seu próprio mito de domínio, um mito que podia muito facilmente ser colocado a serviço de tipos mais novos de escravidão. Durante os meses em que esteve confinado na prisão militar dos Estados Unidos fora de Pisa, na Itália, Pound começou a escrever os Cantos pisanos. Mais uma vez, voltou-se para a mitologia e para a figura de Odisseu, a fim de compreender seu próprio século:

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"the great periplum brings in the stars to our shore." You who have passed the pillars and outward from Herakles 1hen Lucifer fell in N. Carolina. if the suave air give way to scirocco OY TIL, OY TIL? Odysseus the name of my family. (425)

O périplo de Odisseu havia sido uma viagem pela costa do Mediterrâneo, enquanto que o de Pound foi uma viagem da imaginr ;ão para dentro da história. Tanto o personagem fictício como o homem real haviam procurado o conhecimento para redimir suas épocas, mas, para Pound, uma imagem extraída da mitologia antiga finalmente o cegou para as complexidades históricas de seu mundo, e ele foi dominado. Mais tarde nos Cantos msanos, ele caracteriza sua época "quando a balsa se partiu e .di aguas vieram sobre mim", e (lembrando François Villon) vê o oceano no qual se debate como sua própria criação: Les llümes que !ai crel!es m'inondent Tard, tres tard je t'ai connue, la Tristesse (513)

A mitologia não foi para Pound o que havia sido para muitos de. seus companheiros modernistas - um meio de fugir das disputas históricas de sua época. T. S. Eliot contemplara o mito como um domínio eterno no qual podia evadir-se do enfadonho caos de Londres, enquanto que D. H. Lawrence procurara refúgio dos rigores da avançada industrialização em fantasias do antigo México. Pound, ao contrário, confrontou a história e viu nela um declínio de luz e visão no materialismo da modernidade emergente: · ali that Sandro knew, and Jacopo and that Velasquez never suspected lost in the brown meat of Rembrandt and the raw meat of Rubens and J ordaens (511)

Ele tentou opor-se àquela escuridão colocando os mitos antigos contra uma nova realidade de guems mundiais, desemprego em massa e exploração monetária. Apesar de estar desastradamente errado em seus comprometimentos políticos, Pound demonstrou que a tradição somente existe enquanto for reproduzida em novas palavras, em meio às disputas dos novos tempos. Seu sucesso foi ter-nos mostrado que Odisseu ainda pode interrogar o presente.

(Tradução de Marguit Elisa Landmeier.)

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MITO, JUDAfSMO, LITERATURA MG\CYR SCLIAR •

A palavra mito pode ser utilizada em sentido estrito ou amplo. Em sentido amplo, mito é uma narrativa de caráter sacro que nos fala da cosmogonia ou procura nos explicar os fenômenos da natureza. Mas mito pode ser considerado, como queria Coleridge, como um sinônimo para os produtos do imaginário. Em seu sentido estrito, o mito cumpre uma importante função. Para apaziguar a aroaica ansiedade do espírito humano, ele nos oferece a esperança de uma verdade eterna que precede a História e que acabará por superá-la. Roland Barthes diz que o mito procura fazer o contingente parecer eterno. O mito é não só linguagem sem História, mas é também linguagem sem política. O povo judeu sempre teve uma atitude ambivalente em relação aos mitos. Como outros povos da antiguidade, criou sua mitologia, que incluía o clássico relato da criação do mundo e do primeiro homem e da primeira mulher, do dilúvio universal. No entanto, os textos bíblicos diferem de outros relatos mitológicos em alguns pontos Lásicos. Em primeiro lugar, incluem preceitos rituais e éticos; em segundo lugar, introduzem nestes relatos um elemento dialético, representado sobretudo pela voz dos profetas que, recotrendo à linguagem metafórica, procuram despertar a consciência popular para os problemas do poder e da injustiça social. Mais que isso, a Bíblia acompanhou o povo judeu na peregrinação da Diáspora; e passou a cumprir, nessa penosa contingência, papel de relevante importância. Não s6 recordava o passado, mas servia também como marco referencial no presente e pennitia esperança para o futuro. Aos poucos, a nostalgia de um passado glorioso foi sendo utilizada para modelar as aspirações deste singular grupo humano. Era aqui na Terra, e no quotidiano das pessoas, que as transfonnações deveriam ocorrer. Assim, os grandes revolucionários do pensamento Marx, Freud, Einstein são herdeiros diretos dos profetas bíblicos. E coube a eles solapar os mitos que acompanharam a humanidade até nossos tempos: o fetiche da mercadoria, a ilusão dos falsos padrões morais, a concepção do universo como um perfeito mecanismo de relojoaria. Desde a Diáspora, o judaísmo aprendeu a temer o mito e apostar na História, ainda que os mitos sobre judeus se tenham originado da História; assim, o mito do judeu errante nada mais refletiu do que o próprio fenômeno da Diáspora.

*Moacyr Sdiar. M6dico. Formado pela UFRGS. Escritor.

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,.-....

Aos poucos, porém, esse aspecto histórico submerge nas águas turvas do preconceito. Assim, o mito do usurário judeu escamoteia o fato de que, no mundo feudal, o empréstimo de dinheiro a juros era vedado aos cristãos. Confiando a usura a mãos impuras, os senhores feudais não se sentiam obrigados a pagar os empréstimos contraídos; em caso de aperto, tudo o que tinham a fazer era desencadear um massacre, como a criança que quebra o cofre quando precisa de dinheiro. Aliás, não deve ser coincidência que o cofrezinho da poupança infantil tem tradicionalmente a forma de um porco, a evocar, por contraste, a figura do usurário. De outra parte, havia uma espécie de macabra cumplicidade entre criminoso e vítima; os nobres massacravam os judeus que viviam da usura, e estes, em contrapartida, cobravam juros altos. Não tão altos quanto cobram os bancos atualmente, mas de qualquer maneira bastante elevados, refletindo, nesta primitiva taxa de spread, o risco corrido pelos financistas da época. Do mito do judeu usurário passou-se ao mito do capital judaico internacional, isso já no século XIX, época em que apareceram os Protocolos dos sábios de Sião. Na mesma época surgiu o mito do revolucionário judeu. De novo, este mito corresponde a um fato histórico; marginalizados da vida social, confinados nas aldeias e guetos ou forçados a emigrar, os judeus adquirem aquela capacidade que tem o estranho de mirar a estrutura da sociedade e detectar nela fissuras, os poros de que falava MaiX. O olho comanda a mão; o estranho mete a mão quer para tirar proveito, quer para mudar; comerciante, empresário, financista no primeiro caso, revolucionário no segundo. O que explica, na história judaica, o aparecimento quase simultâneo de um MaiX e de um Rotschild. Outro mito dos tempos modernos é o da ciência judaica, termos que Hitler aplicou à psicanálise e que explica a peiSeguiçãfl desencadeada por Stalin aos médicos judeus, acusados de conspirar contra sua vida. Esse mito remonta à época em que o judaísmo era associado à alquimia, que foi o embrião da química moderna. O nazismo foi um caso limite na perseguição aos judeus. É interessante, aliás, que Hitler tenha mobilizado os velhos mitos germânicos como suporte emocional de seu movimento. Freud, vítima do nazismo, tinha suas razões para desconfiar da valorização, em Jung, dos arquétipos e do inconsciente coletivo. Freud era um racionalista que acreditava em abrir os p
a mobilizar grande ntímero de seguidores. Um outro mito curioso foi o do Golem. Tmtava-se de uma gigantesca criatura, feita de barro, e a quem o Rabino Yehuda Low, de Praga, tinha dado vida. Sua missão era a de defender os judeus contia seus inimigos. De novo, porém, deve-se dizer que os mitos correspondiam à fase de desespero. O messianismo, por exemplo, não subsistiu, ainda que hoje se possa encontmr tiaços dele nos grupos de fanáticos religiosos em Israel. Porque não foi apenas no escapismo do misterioso que os judeus buscamm refúgio a seu sofrimento. A este reagiam também com o humor; o famoso humor judaico, rangente, agridoce, o humor que represente uma defesa contia a desesperança. . Humor e mito se excluem. Um povo que ri, ou que, no mínimo, sorri, não é um povo sujeito à credulidade; o humor é uma faceta do ceticismo judaico que infonnou as atitudes iconoclastas de um Marx, de um Freud, de um Einstein. A história dos judeus na América Latina é também a história de um conflito entre mito e História. Mitos tinham os portugueses que aqui chegamm, entre eles o mito do sebastianismo messiânico. É de se notar que este mito tem origem provavelmente judaica, refletindo a influência dos judeus na Península Ibérica, principalmente à época dos descobrimentos marítimos. Convertidos à força pela Inquisição, os judeus continuamm confiando nas forças da História pam sua emancipação do grupo feudal. Muitos cristãos-novos et;tavam associados aos empreendimentos marítimos; pam eles, o Novo Moodo representava uma promessa não só de riqueza mas também de liberdade. Não por acaso o Brasil foi arrendado ao consórcio de cristãos-novos. presidido pc; Fernando de Noronha. Os judeus foram responsáveis pela introdução da primeira riqueza brasileira, o açúcar, e seu beneficiamento pelos engenhos. Importante foi também a contribuição que deram à cultum do novo país. Judeu foi o primeiro poeta brasileiro, Bento Teixeim; judeu foi também o primeiro dmmaturgo, Antônio José, condenado pela Inquisição à morte na fogueira; judeus foram os primeiros médicos, os primeiros advogados, os primeiros cientistas. Mas também no Bmsil foram os judeus alcançados pelo longo bmço da Inquisição. As visitações do Santo Oficio começaram em 1591, inaugurando. um tenebroso período de denúncias, de perseguições, de torturas, e de execuções, que se prolongaram por mais de dois séculos. A pesar do sofrimento e da permanente ameaça, os judeus aferraram-se teimosamente às suas crenças e costumes, dando, em muitos casos, comovente exemplo de dignidade. Um breve interregno ocorreu quando do domínio holandês no Nordeste brasileiro (1624-1654). Sob os tolerantes calvinistas, puderam os judeus pmticar sua religião e prospemram do ponto de vista económico. Tão logo, porém, os holandeses foram expulsos, recomeçaram as perseguições. No final do século XVIII os marranos desaparecem, como por encanto, do cenário brasileiro. Costuma-se associar o fato ao decreto assinado em 1773 pela Coroa portuguesa e que declarava ilegal a discriminação contm os m manos, decreto este obtido pelo esforço de José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal (1699-1782), um reflexo dos novos tempos que culmina84

riam com a Revolução Americana, a Revolução Francesa e o deímitivo triunfo da burguesia sobre o feudalismo. Da importante presença judaica nú Brasil colonial restam apenas vestígios. Há comunidades no Nordeste que continuam a praticar rituais judaicos, embom não saibam o porquê. Contudo, não se pode dizer que o país tenha passado indene por este doloroso episódio. Basta que comparemos o início da colonização brasüeim com o início da colonização norte-americana. Os Estados Unidos, como o Brasil, acolheram pessoas que fugiam da intolerância religiosa e política; mas essas pessoas puderam praticar a sua religião, dentro de uma ética de liberdade e de austero tmbalho. A sistemática perseguição aos numerosos marmnos, no Bmsil, gerou um clima de intmnqüilidade, favoreceu a dissimulação, a astúcia. A mentim tomou-se uma questão de sobrevivência. A repercussão desta conjuntum no ethos brasileiro é diffcil de avaliar, mas certamente existe. Em 1822 o Brasil toma-se independente de Portugal. A Constit1Jição de 1824 consagm oficialmente os princípios da liberdade religiosa; e em 1828 se estabelece a primeira congregação judaicaL modema, na cidade de Belém do Pará. Ao Norte e Nordeste do Brasil vieram ter judeus sefaradim oriundos do Marrocos, Turquia e de países árabes. Posteriormente chegam judeus ashkenazim, provenientes da Europa Ocidental (Alemanha, Áustria, Hungria), que se localizaram, provavelmente por causa do clima temperado, em estados do Sul. O grande fluxo migratório deveria ser, contudo, constituído, em finais do século XIX, por judeus das comunidades pobres da Europa Oriental, quase toda sob o domínio russo. Ali, o governo tzarista toleraya, e até fomentava, os pogroms como forma de desviar a ira popular, situação que preocupava os afluentes judeus da Europa Ocidental. A emigração foi estimulada, principalmente para os Estados Unidos, mas também para o Brasil e a Argentina, onde extensas áreas de terra haviam sido adquiridas por iniciativa do Barão ~aurice de Hirsch, fundador da Jewish Colonization Association (ICA). O vice-presidente da ICA, o banqueiro Fmnz Philipson, presidente de uma Companhia de Estradas de Ferro, também adquiriu terras no Rio Grande do Sul. Em 1903 foi fundada a Colônia Philipson, que recebeu, em 1904, os primeiros colonos. Em 1910 foi fundada a Colônia Quatro Innãos, que recebeu 350 famílias. Essa experiência de colonização agrícola não deu certo, por várias razões. As condições de vida eram duras; a terra não produzia na proporção do esforço despendido, e os emigrantes tinham escassa experiência agrlcola. Finalmente, em 1923 ocorreu no Rio Grande do Sul uma sangrenta revolução, e os colonos foram vítimas do saque e da pilhagem. Dirigiam-se então, como até hoje acontece com os gaúchos que deixam o campo, no fenômeno conhecido como êxodo ruml, para as cidades vizinhas, e posterionnente a Porto Alegre, que veio a ser a primeira coletividade judaica ashkenazi organizada no Brasil. Ali se dedicaram ao pequeno comércio, à pequena indústria e à venda à prestação. A vida comunitária judaica no Brasil apresenta razoável grau de estruturação, através de instituições, clubes, publicações. A representação judaica em certas profissões liberais é grande em proporção ao tamanho da comunidade 85

(cerca de 150.000 pessoas), como também o é nas artes plásticas e no jornalismo. Cerca de 80% dos jovens estão matriculados em instituições do ensino superior. No entanto, como diz Henrique Rattner, constata-se a ausência de uma atividade intelectual autônoma que contribua para o patrimônio cultural judaico. Apesar do elevado número de intelectuais judeus, sua produção não é dirigida especificamente ao público judeu, e, enquanto criação litemri.a, artística ou científica, não reflete a condição judaica de seu autor. A isto voltaremos mais tarde. A extensa trajetória judaica no Brasil ajudou a fomentar os mitos a respeito desse grupo étnico. Esses mitos são persistentes, como o demonstram as conclusões de um inquérito de opinião encomendado em 1968, pela revista Realidade, à socióloga Vera Lúcia Brisola, abrangendo 1.000 pessoas em São Paulo, no Rio e em Porto Alegre; 63% destas pessoas achavam que os judeus são um grupo diferente; 55% achavam que são mais esfoiÇados; 26% achavam que os judeus estavam ligados à ameaça comunista, ainda que 32% pensassem que a principal razão pela qual Hitler havia perseguido os judeus era de que estes tinham poder e estavam ricos demais. 32% admitiam a existência de preconceito no Brasil, mas 78% achavam que judeus e não judeus deveriam freqüentar os mesmos clubes; 45% achavam que os próprios judeus eram culpados da existência do preconceito "porque se consideram diferentes e superiores às pessoas comuns". Não é preciso, porém, recorrer a inquéritos de opinião para identificar sentimentos antijudaicos no Brasil. A imagem do judeu como um cruel perseguidor de Cristo está contida em vocábulos como "judiar", "judiaria", etc. Enfim, mitos sobre judeus existem no Brasil. A pergunta é: o que significam tais mitos na literatum brasileira? A resposta é óbvia: muito pouco. O que era de se esperar. Entre mito e literatura há uma gmnde distância. Um escritor pode ser um fabricante de mitos, um usurário destes, mas ele é mais freqüentemente um desmitificador. O mito faz parte de uma tradição predominantemente oral; a literatum depende fundamentalmente da palavm escrita. Fixada no papel, a palavm estabelece um limite para a irracionalidade, um limite que o mito não pode aceitar. O mito remete-nos constantemente para o passado; a literatum, ainda que contemple o passado, fala para o presente. Os heróis míticos são poderosos, ainda que possam ser trágicos; os heróis da literatura são freqüentemente problemáticos. O mito vai contm a corrente da História; a literatura dá um testemunho da História, mesmo, e principalmente, quando se tmta de História não registmda, de que fala Vaxgas Llosa. Mas, se os mitos judaicos não são freqüentes em nossa literatum, que dizer dos personagens judeus? Também eles são raros, pelo menos em obras literárias de valor reconhecido. Por exemplo, há poucos romances brasileiros que falam da Inquisição e dos cristãos-novos. Entre estes, deve-se destacar Judeu Nuquin, de Octávio Mello Alvarenga, Prêmio Walmap de 1967. Narra a história de judeus que, 86

perseguidos pelo Santo Ofício, deixam a Bahia e seguindo o curso do Rio São Francisco chegam a Minas Gerais. Ali deram uma contribuição importante para a formação deste tipo humano que é o mineiro. Na dedicação deste aos negócios e às finanças vê Antônio Olinto, prefaciador do livro, um traço do espírito judaico. · Antônio Olinto faz também uma curiosa afirmação. Por causa deste Judeu Nuquin, diz ele, criei o neologismo estórico*. Tal termo designa a transformação que faz o ficcionista das verdades históricas. O neologismo não prosperou, em contraste com o inglês, onde há dois termos diferentes: History designa a História propriamente dita, história com H maiusculo, ao passo que story se refere à ficção ou a um relato não necessariamente documentado. History implica registro, codificação, um processo pelo qual story não passa. Pelo visto, preferimos a ambigüidade lingüística, evidência de uma ambigüidade conceituai que é - naturalmente! - histórica. Continuando, porém, com a literatura da Inquisição. A peçá de Dias Gomes O santo inquérito baseia-se na personagem lendária - Branca Dias, nascida na Panlíba, e utiliza a Inquisição como uma alusiiO ao clima de perseguição política ainda recentemente vigindo no Brasil. Em Érico Veríssimo encontramos dois outros personagens judeus: o Marcos Silberstein, de Saga, combatente na Guerra Civil Espanhola, e o médico judeu de O prisioneiro, que tenta proteger seu paciente da tortura. Nos quatro exemplos citados encontramos compreensão e até simpatia com os personagens judeus; uma atitude, portanto, bem diferente daquela preconceituosa antes descrita. O que dizer dos escritores judeus no Brasil? A primeira coisa que se constata é que raramente a condição judaica se reflete numa temirtica judaiêa. O caso de dois grandes escritores judeus-brasileiros ilustra bem este ponto. Samuel.Raw~tt (1925-1984) pode ser considerado o primeiro grande escritor judeu brasileiro. Seus Contos do emigrante descrevem, de maneira pungente, o contato dos recém-chegados judeus com a realidade brasileira. Esta obra ficcional, contudo, não teve continuidade. Do Rio de Janeiro, Rawett, um engenheiro, mudou-se para Brasília, como um dos primeiros integrantes da equipe que planejou e construiu a nova capital na vastidão do planalto central brasileiro. Em Brasflia, Rawett levou uma existência reclusa - problemas psiquiátricos surgiram, motivando internações, - e ele desenvolveu nova atitude frente ao judaismo, caracterizada por um feroz anti-semitismo, de que deram testemunho artigos que publicou na imprensa do país. De outra parte, temos o caso da grande escritora Clarice LispectoL Como Samuel Rawett, também ela era imigrante, viera da Rússia, ainda criança. Morou em Recife, e posteriormente mudou-se para o Rio de Janeiro. Seu talento literário, amplamente reconhecido, expressou-se numa obra que compreende romances, contos e ensaios. Nenhum destes tem uma temática judaica, a qual, segundo comunicação pessoal da escritora a este autor, nunca chegou a lhe interessar. Contudo, a leitura de seus livros revela um indiscu• Ou terá sido João Ribeiro, em 1926?

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tível tom judaico, expresso num humor melanc61ico, que serve também para mitigar o sentimento de culpa constantemente expresso pelos personagens. Mais que isto, há alusões indiscutivelmente judaicas em sua obra, como, por exemplo, no último romance, A hora da estrela, cuja heroína, uma empregada nordestina, chama-se Macabea. Como os Macabeus, essa mulher resiste à opressão, tanto s6cio-econômica como cultural; e, como um judeu do gueto, resiste sobretudo por seu humor. No meu caso pessoal, a adoção de uma temática judaica resultoo de uma gama de influências: as histórias ouvidas na infãncia, a vivência de movimento juvenil, uma passagem por Israel, a leitura de autores que vão de Kafka a Michael Gold, de Scholem Aleichem a Isaac Babel, sem falar na Bíblia, nas histórias talmúdicas e nas anedotas sobre judeus, anti-semitas ou não. Minha trajet6ria no judaísmo não foi livre de conflitos, mas proporcionou-me o acesso a uma temática muito rica; e, sobretudo, uma oportunidade de elaborar a condição judaica, algo que, segundo creio, nunca deve ser aceito primafacie. Esta elaboração interna ajudou-me a aceitar com tranqüilidade a situação de escritor judeu, situação esta que tenho discutido com milhares de pessoas, que se mostram surpresas ao encontrar uma visão do judaísmo que difere profundamente de seus estereótipos. Haja ou não uma satisfatória vida cultural judaica, a dúvida quanto a seu futuro persiste. No caso do Brasil, esta questão está diretamente ligada aos rumos que o país tomará, em seu período de redemocratização. O problema crucial é a viabilidade da democracia liberal num país onde a economia ainda é frágil, onde as desigualdades sociais são clamorosas, onde as instituições carecem de solidez. Se a democracia fixar raízes no Brasil, então a posição econômica dos judeus como indivíduos provavelmente estará garantida, e bem assim seus direitos civis; mas não a vitalidade de sua cultura. Isso depende do surgimento de um modelo capaz de estimular a manifestação de diferentes grupos étnicos ou sociais. Neste momento em que o país exorciza seus mitos e em que a literatura procura responder à angustiante e secular pergunta- que país é este? - estes grupos têm uma oportunidade de ouvir sua voz. Que será uma voz débil, ou dissonante, mas uma voz - também - brasileira.

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NOSSO MÍTICO MESSIANISMO: APELO OU APELAÇÃO? JOSÉ SANTIAGO NAUD*

A mesma diferença que há entre o mistério e o enigma separa, unindo, mito e história. Importa situar essas diferenças antes de desenvolver o nosso arrazoado. Pois, o oráculo de Delfos, o nascimento de Cristo, aquela estela negra que Arthur Clark pôs na lua em seu 2001: uma odisséia no espaço, participam do mistério, que é falso quando se usa para definir o enredo de uma novela policial. Já o enigma oculta algo que pode ser revelado, é cifra que homem deve resolver - o enigma da Esfinge; o mistério é indecifrável como a substância mesma dÕ oculto, relação essencial entre gente e cosmos -os mistérios da vida, os mistérios do universo. Ao mistério a inteligência chega só por comunhão, ato ou rito ligando invisível e visível; infinitamente grande, a luz da nossa mesquinhez abrindo caminhos onde o espaço contrai ou dilata nas dimensões do tempo, a reverter ou avançar a nossa compreensão. Da mesma forma, história é trajetória linear ou circular que Se traça com a existência do homem na terra. O mito é aquilo que é ou podia ser, essencialmente força virtual, em nós ou fora de nós, engendrando possíveis anseios ou raras execuções; fruto e raiz da mente. A dicotomia éolonizador-colonizado separa a certa altura Portugal do Brasil; isto é história. Nos dias atuais, Pessoa ou Drummond os reúne; este é um fato, e tão real quanto Adamastor ou Avaloo. Vive ou vivem, existem, além do poeta. Mistério e mito, uma soma. Indagar portanto sobre a natureza do mito, e mito relativo ao Brasil, é iluminar a sua história. Cabe pois questionar como valor geral o messianismo na literatura brasileira e, neste contexto, não me parece impróprio interrogar mais extensivamente o nosso mítico messianismo. Com efeito, será ele um apelo ou uma apelação? Esclareça-se desde já que apelo não exclui em sentido próprio chamado nem vocação; apelação, embora, impropriamente talvez, tenha aqui mais a ver com a força da gíria, também não exclui o que é em jurisprudência. Não obstante sem poder decisório, como o carnaval é a literatura uma das coisas que está surpreendentemente organizada no Brasil; a par da igreja católica, das forças armadas ou do futebol, apesar daqueles encartados que fazem tudo para o escangalhar. Desde o texto herdado de Caminha, que sem ser nosso é de nós, desenvolveu-se a literatura nacional tal qual um organismo vivo, que cresce e atua, até plena confirmação com 1922, quando se fez adulta. Ao longo e ao largo desse trajeto, lucidamente ou não, às vezes de modo consciente, outras irrompendo a sombra coletiva, surge o mito dei rei D. Sebastião. Como saudade do futuro, liga os sonhos • José Santiago Naud. Professor fundador da UnB. Colaborador da Editora ThesaurusBrastlia. Poeta.

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arcaicos às ânsias presentes. Explícita ou obscuramente, constitui-se num dinamismo do espírito infletindo de modo reto ou sinuoso a mente e o corpo nacional, segundo o bem ou mal que libera. Atualizando o antiqüíssimo, vira conforme o caso em apelo ou apelação; quer dizer, chamado do ser profundo ou escamoteação escarrada de torpe demagogia, forma de luz irradiada ou massa informe e superficial. Os espaços imensos do nosso país, antes muito mais vazios do que hoje, ajudaram a expansão do mito facilitando a sua dilatação. Logo o domínio filipino, ironicamente, parece favorecer as teses providencialistas, propiciando a sua fixação. De norte a sul, ao mesmo tempo que avançam as nossas fronteiras, firma-se o sentimento nacional, e o rei português desaparecido em Alcácer-Kibir não tem mais que esperar a restauração de 1640 para fazer-se presente na palavra e no espírito, influindo o político e inspirando o poético. Popular ainda hoje, na prãía de LençÓis ele contínua a aparecer com seu cavalo estrelado, prometendo justiça e paz, e anuncia a revolução quando profetiza a transformação do sertão em mar e do mar em sertão. Mais importante porém que a mutação :física é sua alquimia espiritual. Não faz muito ainda, em São Luís do Maranhão o filho bonito nascido sem pai era filho dele. Então, fundamentalmente, a estrutura do mito se dá a partir de um mistério oriundo no fato histórico, e configura a_ urgência que temos de um pai amparando o filho para que o espírito da equanimidade inspire a liannonia e os contrários. Nessa teologia da trindade e das duas cidades, a de cima e a de baixo, reúnem-se Ocidente e Oriente. Com certeza, o mito sebastianista está vinculado ao culto do· Divino, louvação ou devoção do Espírito Santo vastamente documentada no folclore brasileiro. Em nossos dias ainda. as festas remanescentes assinalam três pontos notáveis, nas chamadas folias do solstício de inverno, integradas ao ciclo mítico e univemal do fogo: coroa-se imperador um menino, abrem-se as grades das prisões e distribui-se pão a toda a gente. Que é isso senão, ao ritmo profano de um baile ou no offcio sagrado da missa, uma noção entranhável de liberdade em comunhão coletiva, sem prejuízo da força de individuação consubstanciada na criança. que levamos afinal no fundo do ser incolTUpto? Através de quase meio milênio de história o mito sebastianista. que melhor representa o messianismo brasileiro, insinuou-se em nosso comportamento permeando múltiplas manifestações. Termina por integrarem dinâmica cultural as três raças constitutivas do nosso povo, e não exclui sequer as correntes adventícias, se prestarmos atenção às correspondências do bumba-meu-boi na região meridional, tomada como exemplo essa dança dramática por representar com originalidade a miscigenação mágico-religiosa ocorrida no Brasil. Em literatura o mito precede a letra. e essa promissória sem cobrança é notável nos primeiros cronistas, que testemunharam a terra descoberta como promessa da unidade ou, segundo aspiram os mitos, regresso ao paraíso. O que vem depois, já consumado o desastre histórico e desfeita em bruma a figura real, é, numa ponta, o aviso do Bandarra e, nos fiapos da outra que se nos abre com o sinal de João de Castro e Vieira, tudo quanto se documentou como exaltação patriótica, desânimo, desejosa promessa ou

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saudosa aspiração. E não me recriminem a menção de portugueses. pois dinâmica idêntica espraia-se em nós. Vieira, em ato e exercício, é também brasileiro; e, o outro, iniciou com nobreza contra a prepotência a reação de uma consciência insurgente que se confirmou aqui. O sebastianismo, pois, configura como mito messiânico as crises da decadência e, pelo movimento da saudade, constitui-se em força dinâmica capaz de reagir em tom e som de profecia a favor da restauração. Demanda um ser perdido, na busca de claros horizontes que urge desvendar. Inevitáveis assim suas relações com o divino. E é altura de referir sua antiguidade, mais tarde desdobrada em dois flancos. Atuais estudos de antropologia e etnografia arqueológica consagram na Península Ibérica a designação de atlantes para aqueles povos que, elevando enorme construções líticas, também deixaram aquelas poderosas pedras erguidas, noje popularmente co11hecidas por gigantes, ~,to­ tas, mamoas ou cov.as-da·moura, implantadas ao longo da costa atlântica. Tais dolmens e menires resistiram aos milênios (e ponham-se dígitos neles!), sugerem o mito da A tlântida recortando os dois flancos dessa montanha de cultura e mistério que deixa escorrer, por um lado, a tradição solar de uma demanda infinita voltada ao eterno e, pelo outro, a própria demanda situada, restrita às lendas do Graal. Confirmada a pré-história na protohistória dos celtas, referenda-se em letra de fôrma com os romances de cavalaria da tradição medieval, que o padre Augusto Magoe crismou em brasileiro nos anos 40, e participa da mesma substância que, vestida de sebastianismo, hoje atualiza-se em nós. Diluída ou concreta, explícita ou disfarçada, aparecerá sempre como apelo ou apelação de um ato criador ou reflexo, segundo a coragem ou as covardias da alma, nossa inclinação consentida para o mal ou para o bem. Primeira evidência irrefutável é a literatura de cordel. Ali estão em prosa e verso os cavaleiros do rei Artur, as lutas de bem e mal, a estrada que transita desde a terra ao céu, esquemas ou propostas de como descobrir as veredas da salvação e redimir o povo e o país; até um bandido pode tomar-se her6i.Talé.tica literária reveste-se de um inequívoco caráter messiânico. Saudades, desânimo, exaltação permeiam os séculos subseqüentes e recrudescem às vezes um momento assinalado pelo político ou intelectual. Um caso foi o ufanismo, na transição do império para a república. Mas sempre, mesmo quando depois da explosão barroca a literatura parecia esgotar-se nos jogos florais das academias, perdendo embora para a objetividade lírica e a contundência crítica do penodo arcádico, o ediffcio não pára de erguer-se em cima do que continua o mito de nossa aspiração salvífica. No Romantismo, obviamente marcado pelas "europas," a temática sofreu transformação mas não interrompeu a seiva no afundamento expansivo das raízes. Gonçalves Dias com saber etnográfico o adverte, na incorporação do índio à cultura nacional, não indiferente por certo, ele de sangue indígena, aos movimentos messiânicos de grupos tribais, na sua peregrinação em direção do mar à busca de Tupã. O Realismo também, com a codificação metodológica iniciada por Sílvio Romero, coleta a suma antológica da nossa cultura popular e, a partir dele, com o incremento dos estudos folclóricos, mais ou menos sistematizados, o estudo da tradição não sofre solução de 91

continuidade. Mas será com Os sertões que as tendências sebásticas, tema maior d-Ô nosso mito messiânico, ganham vigência e voltam a pôr-se em questão. Até para o espírito ecumênico evocado no mito, não chega a ser uma pena que fosse afinal um romancista estrangeiro quem viria a engarçar tal jóia na coroa da literatura universal. Curioso também que o livro de Euclides da Cunha tenha sido, ao lado do mito, a pedra angular da sociologia brasileira cujo objeto, antes ou depois do seu próprio fundamento, eclipsou tantas vezes aos nossos criadores a visão da p~pria face, quando se tratava de aprofundar e não equiparar a realidade nacional. Inserese neste caso o messianismo ocorrido no Sul, o episódio gaúcho dos Muckers e a Guena do Contestado, no Paraná. Portanto, de modo conspícuo, o sebastianismo como plenitude assumida pela literatura brasileira somente passa a ocorrer com os autores do século em curso. Ariano Suassuna, fabulando com valor universal o seu "mundo mítico" centrado em Princesa. leva-lhe a palma; e Guimarães Rosa, embora sem âlusão expressa, já o confirmara anteriormente, quando de forma implícita o celebra com as cores e o sabor das justas medievais em pleno sertão mineiro. Mais diretamente voltado ao épico, sem os prejuízos que podem separar Ocidente e Oriente, Grande sertão: veredas, como via da revelação, evoca-nos o assunto em tela ao estabelecer o entrechoque de forças contrárias, complementares pelo exercício do amor e da guerra. Em sua inquietude metaffsica desenvolve-se o drama que, contrapondo graça e demônio, de tal modo os assimila até se resolverem os episódios profanos, intimamente como promessa de redenção. Isso o relaciona com o nosso messianismo mítico, manifesto ao apelo místico que petpassa toda aquela obra-prima. Igual valor pode ser encontrado em A pedra do reino, este um livro claramente inspirado em D. Sebastião, o alumioso, abandeirado, porta-estandarte do alto. E a trama se enriquece na incorporação do elemento popular, que o autor foi. buscar ao sabor autóctone da literatura de cordel, paralela irresistível do picaresco espanhol, não só instrumento de crítica social quanto recurso quantitativo para apreensão qualitativa das densidades consubstanciais à vida. Serão esses dois romances, ao lado da Guerra do fim do mundo do peruano Vargas Llosa, o testemunho ostensivo do fenômeno messiânico em terras brasileiras, na composição de um mistério herdado ao sebastianismo, feito aqui forma e substância da alma nacional. Outras referências poderão confirmar tal mencionada presença. Ariano Suassuna menciona os ritos sacrificiais de Pedra bonita, cujo enredo serviu a José Lins do Rego para compor seu romance de mesmo nome. Igualmente, no teatro Jorge de Andrade aproveita outro caso messiânico, transposto depois ao cinema com o título Veredas da salvação, e Joaquim Cardoso tem a peça O coronel de macambira, calcada no bumba-meu-boi pernambucano, onde o sebastianismo é patente. Glauber Rocha, cineasta e escritor, notavelmente realiza toda uma obra genial, polêmica e extraordinária, fiel às mesmas generosas águas. Mas o influxo do modernismo, preferindo posição mais imediata, descritiva, ctítica e tantas vezes psicológica, esteve antes atento ao fenômeno social que ao misterioso mítico. Na redescoberta do Brasil, augurava-lhe

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as transformações almejadas mediante o esforço consciente; e as produções do ciclo nordestino ou dos movimentos regionais, onde hão de incluir-se as notáveis perspectivas do romance urbano, não fogem disso. Ainda assim, certos temas como o de João Abade, de J. Felício dos Santos, ou O livro de Damião, de Paulo Dantas, acordam o inconsciente coletivo einscre:vem-se na rota do messianismo, mesmo que a aproximação evoque apenas a memória de chefes religiosos com carisma político, como o Conselheiro e o Padre Cícero. N~ste mesmo enfoque caberia incluir os primeiros tempos modernistas quando, contra o nosso liberalismo mofino, de molde e elite, antee_useram-se proposições extremas, como a de Jorge Amado, com O cavaleiro da esperança, e Plínio Salgado, com O esperado, os quais, sem forjar uma liturgia da e~>perança a que os tít·Ilos poderiam induzir, não excluem certa postura messiânica permeável, ao fim e ao cabo, no sebastianismo. Como quer que seja, se o mito ou o messianismo deixa de ser detectado de modo inconteste na maioria dos textos da produção nacional, fica subjacente na intenção épica que perpassa a complexidade do excelente surto criador ainda em processo, e f~ da nossa literatura antena direccionada à realidade nacional, sem menosprezo dos apelos mundiais que representa. No que concerne· ao tempo, então, percebe-se a velocidade com que as obras enlaçam o atual e o arcaico. E o caso exemplar de Grande sertão e A pedra do reino, já que o Quarup, de Antônio Callado, restringe-se ao índio e à sua exploração. No caso que nos ocupa, através da herança luso-céltica entrevê-se aquela já referida cultura lítica, convergindo juntas pelo medievo o mesmo desejo de unidade e remissão. Completam-lhe a circularidade questões relacionadas com a graça e, neste particular, a obra brasileira tem seu par mais ao norte, no Moby Dick de Melville, caracterizando-se de resto a dupla herança que receberam, via Portugal ou Inglaterra, os Estados Unidos da América e o Brasil. Assim o mito de Avaloo persiste e nos preside, deflagrando com o reino arruinado de Camelot a demanda angustiosa do vaso sagrado, na relação das nossas ficções e política. Nesta altura toma a palavra a Poesia Brasileira, e não será somente com a óbvia genialidade de Jorge de Uma, quem, sobretudo na Invenção de Orfeu, articulou uma reconquista fiel ao mistério e à história, mais diretamente comprometendo o seu estro com o assunto em tela. Ademais, o senso épico e a consciência social assinalam nossos poetas, desde o movimento inicial de 22. Pela adesão à tell'll devastada e aos tempos de crise que nos tocam, formulam com maior ou menor veemência o seu protesto contra o peso abrumador da alienação urbana que urge vencer; e recrudesce aquele compromisso com as origens fazendo valer, pela indignação ou a saudade, os princípios informadores ou os fins enformadores de um messianismo mítico, que aponta as reformas sem a pecha nostálgica de um paraíso perdido. Em som de burla ou epopéia, também Cassiano Ricardo ou Raul Bopp, Ribeiro Couto ou Menotti dei Picchia, Oswald de Andrade ou Cecília Meireles, o auguram. E a lucidez cntica recorre ao mito, quando se trata de recortar as falhas do caráter nacional, segundo o rapsodo Mário de Andrade, ou reduzir as vastidões do universo à humildade humana quando, em .Claro enigma, Carlos Drummond de Andrade desiste de decifrar a "Máquina do 93

mundo". Entretanto, por este mesmo poeta fixou-se em brasileiro a linguagem universal da poesia, e assim tem condições a Gemção de 45 pam remontar às raízes partindo daí, como adesão à tel1'8 ou ao espírito do lugar, e tentarem os seus poetas o ato de redenção que, de modo estent6reo ou velado, irá confinnar o mito ou desmistificá-lo. Este enlace secular já se anuncia com a antecipação modema de Sousândrade e, hoje, desde o norte ao sul, uma sucessão de nomes o enuncia ou denuncia; na pletom de tantos, os mais notáveis ou notados: Mário Faustino e Nauro Machado, ao Norte; João Cabral, Ferreira Gullar, Carlos Costa Pena, Artur Eduardo Benevides, Marcos Acioly ou Waldemar Lopes, no Nordeste; Moacyr Felix, Otávio Mora, Afonso Romano Sant' Anna, Adélia Prado,' Paulo Bonfim ou Luiz Paiva de Castro, a Leste; em Bras:t1ia, Fernando Mendes Vianna, Oswaldino Marques, Domingos Carvalho da Silva ou Anderson Braga Horta; no CentroOeste, Godoy Garcia, José Barros Boquady, Afonso Felix, Gilberto Mendonça Telles ou Cora Coralina; e, no Sul, Carlos Nejar, Walmir Ayala ou Hugo Mund. Mito ou protesto são-lhe essenciais, emergindo do oficio poético a visão política; assim considerada, avessa à contrafação, no seu sentido próprio finne - e fiel ao étimo. Em conseqüência, a nostalgia de um paraíso perdido e os anseios por sua reintegração dinamizam-se no protesto social, que transpassa a poesia brasileira e amplia a síndrome do mítico em tennos de Brasil. Trata-se então de resgatar o sujeito decaído do estado de abjeção em que, hodiemamente, também a sociedade de consumo o precipitou. E é aí que, amplificado o mito, mesmo não ostensível o messianismo resiste. Mora e demora na urgência que, desde Canudos, circula as espirais de um misticismo ativo, pois o 811'8ial destruído nos instiga e preserva os sertões da alma, é convergência de mito e revolução, consciência operante da alvorada que reúne em poético e político as fibras da nossa devoção, e comove ·o ser nacional de lés a lés do país. Do sossobro em que foi precipitada, ergue-se dilacerada a integridade da face nacional. E ao mítico messiânico, que lhe perpassa como ventos de liberdade ou devastação, ressurge a imagem primordial e futurante do que nós somos aqui e fomos lá atrás, ainda antes de nós, a recompor macunaímas fmgmentários em que nos tmnsformamm e nos ofuscam a inteira identidade. Quando esse apelo do longe esmorece, uma apelação vem ocupar o vazio aberto, e o mesmo mito que resgata se distorce em manifestações caricatas brotando o totalitarismo e a corrupção: são tantos os ismos e os clichês que infelicitam o nosso percurso histórico! Mas o apelo persiste, inscrito literariamente como ato criador ou, politicamente, como alerta contra a anarquia e a repressão. Os contrários ativam o complementar de ambos os atos, e temos os cantos do poeta ou os grandes movimentos coletivos como instrumentos de transformação, sejam: a fundação de São Vicente - "histórico burgo", a entrada das bandeiras seguindo o Tietê, a fuga de Dom João VI, a subida dos quilombos, a marcha pam o Oeste, os exercfcios do Correio Aéreo Nacional - CAN ou a criação de BrasOia; é possível recortar-se então o perfil do estadista, segundo ocorreu exemplarmente, não faz muito, com Juscelino Kubitschek, JK.

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Agora que se instalou uma nova Assembléia Constituinte, pelo que se ouve ou vê nada ou ninguém autoriza esperar que desove uma Carta cabal, liberta do inócuo contumaz que permitiu às outras a construção de um patamar de iniqüidades. Duas décadas de arbítrio pretenderam outorgar uma revolução que não houve, e nominalismos tais são reiterados entre n6s em todos os planos, limitando-se a designar. irrealisticamente a coisa, como se isso bastasse para resolvê-la. Sucedem-se assim os nossos desastres, por ciclos que alternam as promessas e a desordem. Neste sentido o mito é de novo essencial; por el rei D. Sebastião ressurge a A valon que repete em nossa América os sinais da advertência, assimilando como perigos da decadência os erros da usura imperialista e as chagas do subdesenvolvimento. Mas autores e obras amarram linhas de força latente no povo, que submetido guarda os milênios de uma herança riquíssima, distribuída basicament.- entre o indígena, o negro e o peninsular. Se por um lado este apelo profundo não se fez ainda consciente ou se concretizou, vige pelo outro o surto da apelação que nos ameaça com as aventuras do caudilhismo ou da alienação, que obnubilam de modo cronico o verdadeiro apelo da vocação 9Utêntica, para que o mito se realize. Quando ele se fizer idéia, corpo e ação, ou como espírito baixar fecundando a carne, a palavra da salvação há de vir nos redimir em singular os pluralismos da nossa virtude. Propício, o ser individual se integrará harmonioso ao coletivo, para promover ajustiça, o amor, a eqüidade, cintilando os frutos do messianismo, que continua (por nós todos) ainda ansiosa virtualidade. Em conclusão, não creio que sirva a literatura de puro entretenimento ou distração, maná para os pós-graduados ou pão das nossas vaidades, "irritantes e irritáveis" conforme diria o Antero. Se não fosse um referencial, corpo e espírito do nosso povo, e dela não se pudessem sacar as lições do prático, melhor seria que sumisse esgarçada em seus véus bizantinos. E literatura no Brasil é o maravilhoso vigor de navegar-se por meandros que refletem a nossa própria cara, seguir a marcha sinuosa do país, seus avanços ou recuos à volta da gravidade da história, em direção ao mar comum da alma universal. Notamos, enfim, que o nosso mítico messianismo tem nela o seu testemunho e aponta por ela soluções de independência, que faltou à nossa por ser estritamente política. Também nos falta, como massa humana, ousar a identidade de uma revolução econômica que liberte o social, já antecipada literariamente decerto, mas para os políticos ainda um apelo emaranhado em torpe apelação. Neste sentido o mito parece de novo essencial. Qesde o remoto, entre atlantes e lusos, pelo Viriato ou o rei D. Sebastião, aponta Avalon. E, entretanto, Canudos continua um vetor, núcleo, cuja explosão pode fazer irradiar a solução definitiva, não só para nós brasileiros como para todo o Terceiro Mundo.

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REFLEXÕES SOBRE A ATUALIDADE DO MITO NA LITERATURA POPULAR DO NORDESTE CÉSAR LEAL*

Ernst Robert Curtius, no capítulo introdutório do seu livro Literatura européia e Idade Média latina,** aftrma que a criação de mitos, histórias e poemas é produto da fantasia criadora, uma função primitiva da humanidade. Começa, então, por formular uma pergunta: seria essa fantasia um fato ftnal, impossível de ser decomposto, ou poderá ser investigado e esclarecido atmvés do pensamento filosófico? A seguir, com uma franqueza própria dos scholars alemães, diz não ver, pelo menos no quadro dos mais vigorosos sistemas ftlos6ficos do seu país, nenhum que possa responder satisfatoriamente a essa questão. Mas reconhece que um filósofo, "o único" que teria apreendido o problema, Henri Bergson, chegam a uma completa solução dessa questão, ao colocá-la no quadro de um élan vital, atmvés da obm L' évolution créatrice. Explicando Bergson, escreve Curtius: A Natureza rrocura realizar a vida, que se eleva A consciência. A vida sobe por d iferemes caminhos (muitos dos quais verdadeiros becos sem saida) para formas cada vez mais altas. No mundo dos insetos ela ati~e até às modalidades sociais entre as formigas e abelhas. Estas trabalham com perfeição porque são guiadas pelo instinto. Mas, por isso são tambêm imutflveis, estacionflrias. Só no homem se realiza a consciência. (CURTIU>, E. R. 1948, I)

Essa afirmativa de Curtius é de importância fundamental pam a compreensão de que a força de inventar é privilégio do homem, ao qual "foi concedida inteligência e, com ela iniciativa, independência e liberdade". Mas a inteligência não propoiCiona segumnça à vida. A inteligência não só constitui uma ameaça à vida individual mas também à vida social, à vida coletiva. Por isso, a segumnça da vida dos animilis é maior, por se encontmr sob a proteção do instinto. Daí a famosa frase: "Tão segum é a vida sob a direção do instinto, quanto arriscada na esfem da inteligência". Mas, pam evitar os perigos da inteligência, a Natureza deu ao "homem percepções e capacidade de produzir fatos fictícios". Com isso, explica Curtius, a inteligência é também a criadom de superstições. "Só os seres inteligentes - diz Bergson - são supersticiosos." Os mitos surgem da fonction fabulatrice, indispensável a uma vida pouco protegida pelo instinto. No homem o instinto funciona como um resíduo Que. à semelhança de *César Leal. Professor de Teoria Literflria e Teoria da Poesia na UFPE. Poeta e critico de poesia. **Literatura européia e Idade Média latina, de Ernst Robert Curtius, foi publicado originalmente na Alemanha em 1948, sob o titulo Europaische Literatur Und Lateinisches Mittelalter; essa obra foi traduzida muito cedo para o português e editada pelo Institutõ Nacional do Livro em 1956. Em 1979, o INL publicou a '2: edição.

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uma "aura", citcunda a inteligência. Convém recordar Curtius em sua análise de L' évolution créatrice: A inteligência s6 reage a imagens de percepções •imaginárias• que podem aparecer depois como consciência indefinida de um presente eficaz (o 1IU1T 'I dos romanos), em seguida como espíritos e, s6 mais tarde, como deuses. A mitologia ê um produto tardio, e o caminho para o politeísmo ê um progresso culturaL A fantasia, fonte de ficção e mitos, tem o sentido de "fabricar- esptritos e deuses.

A inteligência e a função fabuladora, segundo a teoria de Bergson, são mecanismos gerados pela Vida ou pela Natureza. A con.:lusão de Ernst R. Curtius é motivada pelo fato de o impulso criador estar presente tanto nos fundamentos da Natureza quanto da Vida. O homem começou criando ferramentas e daí chegou ao conhecimento das estrelas e hoje busca dominar completamente o espaço. Pela função fabuladora, diferente da função do homo faber, o homem começou produzindo ficções com fins biológicos até chegar à criação de deuses e mitos, buscando, através dessas forças, libertar-se, por desligamento, do religioso. Ele formou a epopêia de Gilgamesh e o mito da serpente do paratso, a Iltada e o mito do Édipo, a Divina Comldia, de Dante, e a Comldia Humana de Balzac, É a raiz e fonte inesgotlvel de toda a Grande poesia. Grande poesia. nesse sentido, ê aquela que atravessa os séculos e os milênios. (Curtius, E.R., 1948, I)

Ao tratar o tema que me foi atribuído neste painel - o mito na literatura popular do Nordeste- não posso deixar de confessar as düiculdades que me são oferecidas. Contudo, buscarei limitar-me, tanto quanto possível, ao conceito de mito como alegorias que traduzam ou expressem as relações existentes no universo ou na vida, sem colocar à margem as conceituações tradicionais do mito como narração ou lendas dos tempos heróicos, tais como as encontramos no mundo antigo entre os gregos e seu universo de deuses e heróis. Preferia falar sobre o mito em Dante, sua versão do Ulisses e de seu último dia no oceano, o mito da águia coroada formada pelo espírito dos monarcas que na Terra se destacaram pelo modo como aplicaram a Justiça entre os homens, e que faz sua aparição a partir do Canto XVIII, do Paraíso, o mito de Beatriz e tantos outros que fizeram de Dante o maior criador de mitos nos tempos modernos. Ou também o mito da raça superior ou o mito da união de todos os trabalhadores do mundo. Hoje, podemos verificar que a questão dos mitos, segundo me parece, tem menos importância em sentido de especialização do que em termos de dimensões temporais específicas. Por outras palavras, não importa a geografia dos mitos, a que dá tanta importância o grande Luís da Câmara Cascudo, mas a compreensão histórica do fenômeno, o que é uma questão de natureza temporal. Por exemplo, teria sentido falar sobre a regionalização dos mitos? Um mito como o do lobisomem, conhecido em todos os países do mundo e presente não apenas nas narrativas populares mas também nas eruditas, por que no Brasil adquire mais interesse e mais força no Nordeste do que em outros Estados, inclusive no Rio Grande do Sul, onde a sua presença creio que seja menor do que no Ceará e em Pernambuco? Acredito que só 97

um estudo comparativo dos mitos poderia mostrar, de fonna mais precisa, a diferença ou diferenças entre o lobisomem nordestino e o lobisomem sulista. Aliás, Luís da Câmara Cascudo mostra-nos que a principal característica do lobisomem - assim como dos demais mitos brasileiros - é, como ele próprio diz, "o fácies ambulatório, não fixo, irregular". Para Câmara Cascudo, tais seres mitológicos correm continuamente do Acre ao Rio Grande do Sul, dos araxás goianos às sombras dos pinheiros de Santa Catarina e do Paraná, das montanhas de Minas aos tabuleiros do Nordeste, do sertão da Bahia aos buritizais do Maranhão. Em escritores do Nordeste ele aparece com freqüência nas interpretações da sociedade nordestina em Gilberto Freyre, em romancistas como José Lins do Rego, Jorge Amado, no quase nordestino José Cândido de Carvalho, em Jaime Griz, autor de um livro muito popular em Pernambuco: O lobisomem da porteira velha. Todavia, ainda que os principais mitos de origem européia sejam conhecidos em quase todos os Estados do Brasil, não há dúvida quanto à riqueza do folclore nordestino e sobretudo do pernambucano, especialmente em razão da influência portuguesa, no início da colonização, logo acrescida dos componentes africanos e ameríndios. Câmara Cascudo afinna que o elemento branco colonizador foi o principal responsável pelos mitos que - via Portugal - chegavam aqui de toda a Europa. "O português - diz ele - fez a fa0111ia, multiplicou os mestiços, amou os índios e negras e fundou, com seu braço amoroso, a raça arrebatada, emocional e sonora. Cada noite, metendo os pés na terra fria, olhando as estrelas claras, erguia a voz contando estórias (••• ) povoou a noite com seus assombros, assombros que também vieram com eles em seus galeões, com o Governador Geral. Lobisomens, mulas-sem-cabeças, mouras tortas, animais espantosos, cavalos marinhos, gigantes, c.nões, mágicos." Pela força das derivas, tudo isso foi lentamente se transformando, enquanto novos mitos iam sendo criados e penetra\/am com força no sertão, criando-se, assim, uma rica tradição na literatura "oral". Essa literatura podia, posteriormente, ser recolhida por pesquisadores profissionais ou pelos poetas que a transfonnavam e publicavam, sendo distribuída através dos mascates ambulantes ou se fixando nos cordéis das feiras das grandes cidades e das capitais nordestinas. A literatura popular tem sido estudada pelos folc~oristas gue a dividem em ciclos: Ciclo dos Bandeirantes, do Natal, dos Vaqueiros, dos Caboclos, além das Histórias, Lendas e Superstições. A esses aspectos corresponde a classificação do cearense Gustavo Barroso. Luís da Câmara Cascudo refere-se à literatura "oral", que sabemos ser uma das acepções da literatura comparada, como os Romances, Pé-Quebrado, Os ABC, Pelos-Sinais e Orações. O Ciclo do Gado trata de gestas de animais, apartações e vaquejadas; o Ciclo Social abrange elementos míticos, como os cangaceiros e jagunços que se tomaram mitos: Antônio Conselheiro, Antônio Silvino, Lampião. No Ciclo Social, são ainda incluídos o louvor e deslouvor às damas e o negro nos desafios do Nordeste. Os Desafios já pouco têm de elementos míticos a não ser a parte relativa aos Temas e a intitulada Perguntas e respostas. Muitas dessas perguntas que o repentista 98

faz ao outro se reterem a animais míticos, tais como o lobisomem, a mulasem-cabeça, a caipora, etc. O cantador repentista forma uma longa tradição que vem desde os tempos coloniais. Eles não se ocupam apenas de mitos, mas também das estórias que eles próprios inventam. Ou ainda dos acontecimentos cotidianamente registrndos. A morte de um grande político, de um cangaceiro, a reportagem sobre fatos sensacionais, vitórias esportivas, publicadas em jornaL É claro que o elemento maravilhoso dessa rica literatura popular está quase sempre presente nas narrativas que têm nos mitos os seus fundamentos. O livro A pedra do reino, de Ariano Suassuna, apesar de profundamente erudito, baseia-se no J:
A descrição prossegue por muitas páginas, inclusive mostrando sua transformação de monstro marinho em monstro terrestre, onde toma a forma de uma onça gigantesca. Antes de sair do mar, o monstro agita suas asas, causando um repelão nas águas e um "estremeço" na terra. As árvores próximas à praia são incendiadas e as crianças que nascem naquele momento ficam cegas, com os olhos queimados pelo fogo demoníaco provocado pela aparição de Bruzacã. Dali, ruma a toda velocidade para o sertão, deixando nas matas uma clareira por onde podem passar dois trens, abrindo um túnel de cinzas em sua passagem. Como se vê, o romance de Ariano Suassuna, já traduzido em várias línguas, wostra a atualidade do mito até a evidência. Mostra-nos, também, como os mitos continuam a ser alterados, modificados, graças à função fabuladora do homem a que nos referimos no início desta comunicação. Esse mito, de origem indígena, hoje está se incorporando ao universo dos

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mitos que recusa existência dentro de fronteiras nacionais rígidas. Daí por que o conceito de literatura nacional toma-se cada vez mais esvaziado, pois a história dos estilos, dos mitos, das formas e dos movimentos literários em geral não pode subsistir dentro de uma literatura encerrada em paróquias, regiões e até mesmo fronteiras nacionais. Sob esse aspecto, dois grandes livros têm contribuído para uma crítica mais severa ao conceito de literatura nacional, conceito puramente romântico, nascido graças ao "super-estado napoleônico": refiro-me a Mimesis, de Erich Auerbach e Literatura européia e Idade Média latina, de Ernst Robert Curtius. Concluindo, poderíamos dizer que a criação de mitos, ficções é uma atividade da vida superior do espírito e só no homem ela se realiza. O homem não viverá apenas no meio de uma "mitologia realizada". Ele sentirá sempre a necessidade de manter os seus mitos e de criar outros como meio de proteger, de reforçar o instinto, a "aura" bergsoniana que circunda a inteligência. Assim, a modernidade, ou pós-modernidade, por mais que desenvolva os seus poderes no âmbito da Física, da Química, da Biologia Molecular, não conseguirá apagar a função fabuladora do homem. Como viu muito bem Edgar A. Poe, os monstros e almas penadas que se encontram relatados em seus contos não se encontram nos castelos da Virgínia ou da Alemanha, porém na alma. Quero terminar, mas com uma inevitável citação de um texto do Professor J. Laberge, do Centro de Estudos Freudianos de Pernambuco: "A lenda do Lobisomem nos é particularmente preciosa, entre outros motivos, pelo seguinte: Freud, próximo à linguagem popular, afirma que o bicho representa o pai, ou, conforme certas circunstâncias, irmãos ou criancinhas, pulsões agressivas e/ou sexuais e até os próprios órgãos sexuais. A preciosidade da lenda do Lobisomem provém de uma contribuição que somente ela nos fornece: realiza o elo faltante nas afinnações freudianas, pois mostra o ser humano se transformando em bicho, e retomando posteriormente a forma humana".' Laberge mostra o problema da continuidade-descontinuidade entre homem e animal e como a questão foi vista por Freud e Lacan. A familiaridade entre criança e bicho situa Freud na linha da continuidade. Lacan teria precisado o aspecto da descontinuidade pelo não acesso do animal aos significantes, ao Outro, à transferência, à liÓguagem.

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OUDII I OIIW

MITO E TRAGÉDIA- A TENSÃO SUBJACENTE FILOMENA YOSHIE HIRATA GARCIA*

Mito e tragédia são duas palavras carregadas de significado, independentes, sem dúvida, mas indissociáveis, quando se trata de tragédia grega. Tal identificação, tragédia e mitologia, já nos vem da Poética de Aristóteles (1450 a 38), quando este, de fonna bem precisa, nos indica que o mito que constitui o enredo, é "princípio e algo como alma da tragédia" (&px~ ~~v o~v xa! otov ~ux~ 6 ~~Bo~ T~~ Tpay~6~a~)! Compreende-se isso na medida em que o poeta trágico, ao compor uma peça, não inventa personagens nem intriga, mas as encontra no saber comum dos gregos, no que eles acreditavam ser seu passado. Com efeito, ele busca seu assunto num enonne repertório de lendas de heróis que Homero e outros poetas épicos haviam posto em forma. Assume diante do mito razoável distanciamento para poder tratá-lo com certaliberdooe. Sua atitude, portanto, não é passiva nem pacífica, porque, à medida que as lendas do passado heróico assumem a forma tmgica, os valores heróicos são questionados à luz da realidade da pó/is. A tragédia exprime e elabora uma visão trágica, uma nova forma para o homem entender-se, situar-se na sua relação com o mundo, os deuses e seus próprios atos. Esse confronto é marcante, sentido pelo poeta e passado ao espectador do século V. W. Nestle sintetiza muito bem esse momento dramático numa frase exemplar que me sinto, de bom grado, forçada a citar depois de tantos já o terem féito: "a tragédia grega nasce quando se começa a olhar o mito com olhos de cidadão" •2 Que essas lendas épicas fossem as preferidas do espectador é uma certeza. Não que os poetas não tivessem enveredado por outros caminhos. Em 494, Frínico colocou em cena o desastre da queda de Mileto. Segundo Heródoto (VI, 21), os espectadores caíram em lágrimas e o poeta foi multado por ter~hes evocado desgraças nacionais. Vale a pena citar ainda Os Persas de Ésquilo, apresentada em 472 a.C. O acontecimento histórico era recente, a batalha de Salamina em 480, e, nesse caso, os gregos eram vitoriosos. Ésquilo, abusando de seu engenho e do patriotismo de quem guerreou, compõe uma tragédia, compensando a proximidade do acontecimento no tempo pelo distanciamento no lugar: a ação se passa na Corte persa e as desgraças são dos persas. A História dá seu recado: o poeta apresenta, no período florescente da democracia grega, a vit6ria da inteligência grega sobre o poderio bélico dos persas. No entanto, apesar das poucas informações •Filomena Yomie Hirata Garcia. Professora de Língua e Literatura Grega na USP. Doutora em Letras Clbsicas pela USP. Ensaísta. 1 Servi-me do texto grego estabelecido por J. Hardy, da Sociêtê d'~dition "Les BeiJes Lettres•. 2 VERNANT, J. P. Mito e tragldia na Grlcia Antiga. São Paulo, Duas Cidades, 1977.

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e do pouco material que nos restou, é possível verificar que essa experiência não foi mui to repetida. De qualquer forma, o que os gregos chamam História é assunto de Heródoto e Tucídides. A tragédia fica com as velhas lendas. Ela se recusa a tratar do curso natural dos acontecimentos, isto é, "contar o que aconteceu" (To Tà y~::vÓ]JEva lcÉyEL\!).Segundo Aristóteles, "a obra do poeta é contar o que poderia acontecer" ( o~a ãv yÉvot..To) (1451 a 36). Essa é a diferença fundamental entre História e Poesia. Ainda, segundo Aristóteles, a Poesia é mais filosófica que a História, porque o poeta tem mais liberdade no tratamento do mito. A História por seu objeto é mais particular. No final do século V, o elo com a tradição já é pequeno. Sabe-se, por exemplo, que Agatão, personagem dos diálogos de Platão, já escrevia peças, cuja trama era invenção sua. Testemunho interessante é o de Aristófanes nas Rãs, quando faz Dioniso descer ao Hades para trazer de lá Eurípides, morto no ano anterior, porque os poetas vivos não agradavam ao público. Nesse momento, verifica-se que, embora sobreviva como gênero literário, a tragédia clássica já desapareceu. O mito histórico não é necessanamente trágico. Tem ingredientes que atraem o poeta: mortes, assassinatos, incesto, enfnn, grandes transgressões. É o poeta que às vezes lhe empresta o caráter trágico, impondo-lhe julgamento, isto é, uma instância que julga os atos, o que é próprio da pólis, do advento do Direito. Por exemplo, Édipo, em Homero, motre no troou. É Sófocles que o faz cego e exilado. Odisseu, pelo caráter peculiar que a tradição lhe legou, não se enquadra nos moldes de um herói trágico e, embora figure em tragédias, não é nunca a personagem que sucumbe ao páthos, dilacerada na encruzilhada do destino, mas sempre a que propõe soluções. Parece que na poesia épica pós-homérica Ájax era levado ao suicídio em plena crise de delírio, sendo, portanto, obra de Sófocles a introdução do momento trágico, em que o herói recobra a consciência e sabe que delirou. Na epopéia, o poeta inspirado pelas musas não imita a realidade, ele a revela. Insistentes são os apelos, as invocações no sentido de que os poemas falem a verdade. Donde, os mitos eram aceitos como realidade. Em Homero, até o mundo dos mortais parece pertencer ao reino do mito. A tragédia ·impõe uma experiência inovadora: coloca diante do público figuras do passado distante. Ela implica uma figura real. O público tem diante de si não um poeta que narra sofrimentos de homens desaparecidos no passado, mas personagens que existem para expressar uma visão trágica do mundo em ação, pois a tragédia é imitação de uma ação. As experiências se produzem sob fonna de existência real na atualidade dos espectadores. O poeta se apaga por trás das personagens que agem, como se estivessem vivas. Nesse sentido, o drama é diferente da épica e da lírica, porque uma peça é dependente das condições de sua encenação. Eventos míticos são comunicados ao povo como uma experiência presente e imediata. O resultado é essa relação entre mito e realidade, entre poesia e verdade. 3 3 SNELL, B. The dircovery of the mind. Trad. do alemão por T. G. Rosemneyer. New York, Torchbooks, 1960.

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Eu gostaria de ilustmr um pouco essa questão. Para tanto, escolhi, dentre as tragédias, o Aja.x de Sófocles. Vou resumir rapidamente o enredo para facilitar a compreensão do desenvolvimento. 4 Após a morte de Aquiles, os Atri.das atribuem suas annas a Odisseu, o que provoca a revolta de Ájax, que se considerava o mais bravo guerreiro depois de Aquiles e, portanto, seu sucessor natural. Ferido na sua timé, honra, ele tenta vingar-se, matando os Atri.das e Odisseu, mas não chega a realizar tal intento porque Atena, deusa protetora de Odisseu, o impede, enviando-lhe uma grande crise de de1írl.o. Na cegueira mental, Ájax se lança sobre o rebanho grego e massacra animais em lugar de homens. Quando recobra a consciência e sabe o que fez, não encontra saída para sua desonra senão na morte. A tragédia ainda continua. Na seqüência, há mais discussão em tomo d~ enterramento do herói. Os Atri.das proíbem-lhe as honras fúnebres, apesar dos protestos do meio-innão Teucro. Odisseu, então, intervém, a favor de Ájax e, persuadindo os chefes de seu valor, assegura o enterramento.5 A primeira leitura sugere um exemplo de hjbris punida: Ájax, o grande herói, por sua grande transgressão, sofre um grande castigo. É, sem dúvida, o grande herói da peça. Todavia, a presença de Odisseu no começo e no final não passa despetcebida e pode auxiliar-nos a elucidar e a compreender a figura trágica que Sófocles criou. Logo no início, no prólogo, Odisseu e Atena nos esclarecem o sentido da condição humana. Atena, a única testemunha da matança, que Ájax imagina perpetmr, a única que pode dizer do instante em que o caçador ludibriado se transfonnou na caça, mostra claramente a Odisseu até onde pode ir o poder dos deuses. Depois de submeter o herói à mais atroz das humilhações, ela ainda o expõe demente ao público, numa" cena cruel e grotesca, em que o ridiculariza diante de seu par, Odisseu, para mostmr o imenso abismo que a tragédia estabelece entre os homens e os deuses. Diante da constatação de Odisseu: Vejo que n6s, quantos vivemos, nada mais somos senão imagens ou leve sombra. (v. 125-6)

Atena responde, atribuindo a Ájax função paradigmática: Vê esse espetáculo e palavra insolente nunca digas tu mesmo contra os deuses, não te enchas de orgulho, se ultrapassas alguêm, ou por força da mão ou por profundidade de grande riqueza. Um dia declina e eleva de novo tudo que é humano; os sensatos os deuses amam e odeiam os maus. (v. 127-33)

4 Servi-Ire do texto grego estabelecido por A. Dain, da Sociêtê d~dition "Les Belles Lettres". 5 Alguns coment!irios sobre o Ájax fazem parte de minha tese de doutoramento: O delúio na tragldia grega.

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O que chama nossa atenção nesses versos mencionados é a oposição que existe entre as últimas palavras dos dois 61timos versos: sóphronas e kakoús, sensatos e maus. Depreende-se, pelo que está ocorrendo, que, das duas personagens humanas em ação, que ladeiam Atena, uma é sóphron e a outm kakós. Respectivamente, Odisseu e Ájax. A oposição sóphron e kakós é relevante, pois se esperaria que o poeta usasse kalós ou agathós no lugar de sóphron. Compreende-se que Odisseu seja sóphron, assim como que Ájax não o seja, mas como entender que Ájax seja kakós? A questão só será esclarecida, quando se compreender o sentido de sóphron no nível de tens&> trágica, subjacente à obra, isto é, quando se esclarecer o papel de Ájax no nível da realidade do mito e da realidade do século V. Com efeito, que Ájax não seja sóphron, três situações comprovam isso. Duas dizem respeito ao passado. Vêm nas palavras de Calcas, o adivinho, e explicam sua ruína final e a cólera da deusa. Duas vezes antes, ele rejeitara o auxnio divino. Na primeira, quando seu pai o aconselha a pedir sempre auxílio dos deuses antes do combate, ele responde: Pai, com os deuses mesmo o homem sem valor obteria o poder, mas eu sem aqueles estou certo de levar essa glória. (v. 767-9)

Na segunda, quando Atena vem ajudá-lo no combate, ele diz: Senhora. perto dos outros argivos fica, do nosso lado nunca romperâ a frente de batalha. (v. 774-5)

Portanto, embora mortal, Ájax tem mais do que pensamentos mortais. Se Ájax não é sóphron, seguramente é hybristés ( descomedido, violento, orgulhoso). Assim sendo, a loucum vem associada à noção de castigo por causa da hybris.Sen~se ferido na timé, na honra, por ocasião da atribuição das armas, n&> justifica a vingança sangrenta pretendida, mas só Ájax tem profundamente sentida a dimensão de dor que se mistura à cólera, o que Sófocles desenvolve muito bem nas cenas seguintes até o suicídio. Situação semelhante a essa é a de Aquiles, na Ilfada (I, v. 127 e seg.), quando Agamenon o priva da escrava Briseida. Ele chega a empunhar a espada para matar o At1ida, mas Atena o retém no momento preciso. B1iseida tinha as faces brilhantes, as armas de Aquiles foram forjadas por Hefesto. Ambas representavam na época heróica testemunhos da areté, da excelência, nos combates. A honra é exclusiva por essência ou, pelo menos, hierárquica. Se cada um partilha uma honra igual, ela deixa de existir para todos. Assim, quando um herói se vê privado de seu géras, seu privilégio, seu prêmio de guerra, sua existência moral é arrasada. A vida perde a razão de ser. Essa maneira de ser de Ájax, essa grandeza heróica, esse individualismo, essa arrogância de quem acredita demais no próprio valor, que justificam sua qualificação como mégas, grande, adjetivo empregado reiteradas vezes, constituem valores aristocráticos que estão sendo questionados através do ideal ilimitado de Ájax. Nos poemas épicos, o herói percorre isolada105

mente sua trajetória na expectativa de ser considerado o melhor, o _áristos. Mas, na pólis do século V, não há mais lugar para atitudes indiVIduais. E é por isso que a Atena de Sófocles talvez exija demais. Ájax tem e preserva sua ~randeza. m~ esta é essencialmente heróica, portanto, não se enquadra nos limites que a d1vmdade impõe. Conseqüentemente, no contexto trágico, fica nítida a alternância hybris e sophrosjne, representadas por Ã)ax e OdlSseu. Torna-se clara a liçao moral apregoada por Atena. quando ambos se defrontam, de que um é o modelo -a seguir e- outro a rejeitar. Assim, A tena se define como divindade política conclamando o público ateniense do século V à sensatez, à prudência, à medida, à sophrosjne, enfim, virtude política do século V, que Odisseu simboliza. Ájax pode ser um grande heroi, mas sóphron é Odisseu. É ele que sabe mostrar grandeza de caráter, condoendo-se da sorte do inimigo louco; é ele que sabe mostrar humildade, aceitando a ordem divina que considera o homem uma "sombra leve". Toda tensão dramática se concentra nas cenas em que Ájax recobra a consciência. Descrições de massacre de animais, duas, antecipam a descrição do único animal massacrado. Ájax, dentro da barraca, grita e urra de dor, cólera e humilhação. Quando os gritos cessam, o silêncio é total no meio dos animais mortos. Sucedem-se, então, quatro longos monólogos de Ájax, reflexões solitárias, discuiSos sem resposta. A violência do princípio cede, aos poucos, lugar à calma: Ai, ai! quem alguma vez imaginou que tal epônimo meu nome combinaria com meus males? (v. 430..1) 6

Pela segunda vez, ele é ferido na sua honra. Repensando o plano frustrado, ele ni> volta atrás. Continua não se confonnando com a ordem do universo nos aspectos divino e humano. No seu raciocínio, não se deixa uma injustiça impune. E esta vingança. tentada, evidencia seu caráter soberbo, seu espírito indisciplinado, herói magnífico de outros tempos e, portanto, ápolis, sem pólis. Sófocles explora com perfeição, nesta primeira parte, as características arcaizantes do heroi, expostas sob forma de longos monólogos, que evocam as narrativas épicas numa bela combinação, que vão contrastar com os diálogos rápidos da segmda parte. Os monólogos, como os cantos corais que os entremeiam, em especial o primeiro estásimo, constituem reflexões da vida passada e presente. A retomada da consciência coincide com a necessidade de recuperar o passado. Tudo isso para salvar a vida. a honra: Esconder-se no Hades ê melhor para quem sofre de loucura. (v. 633)

Eis o qoo canta o coro de marinheiros de Salamina.

6 Assinalo ç;u,e a lamen!ação ~i, ai! evoca o vocativo do nome Ai;a.s;, que evoca

o verbo àLa.l;E:LV, dizer aiS. 106

Mas o herói deve assumir seu destino sozinho. Os caracteres de Sófocles são bastante solitários. Agem segundo suas idéias, mas, no contexto sofocleano, isso significa que eles agem em oposição deliberada ao mundo que os rodeia. Recobrar a consciência se confunde com o conhecimento da própria essência. Da loucum ao suicídio verifica-se a ascensão do herói à altura da decisão finaL A morte deve ser consciente. Em meio a tantos pensamentos, move-se a mente de Ájax. Na verdade, a tragédia se passa em vinte e quatro horas, mas o tempo psicológico, o tempo da memória do herói é imensurável. E é fundamental para se compreender a longa caminhada que ele faz até a compreensão da condição humana. 7 O tempo explica tudo: O tempo longo e imensurâvel expõe tudo que ~ invisível e o vistvel esconde. (v.646-7)

Assim ele começa esse terceiro monólogo, de gmnde riqueza poética, cuja tônica é a ambigüidade. Há revelações inesperadas: No futmo saberemos ceder aos deuses, aprenderemos a prestar honras aos Atridas. Eles aio os chefes; 6 preciso ceder, por que nio? (v. 666-8)

Palavms espantosas na boca de um herói como Ájax! No entanto, convincentes, pois persuadem Tecmessa, a mulher, e o coro de marinheiros de Salamina, que, na sua ingenuidade, as entendem como lhes I convém. Mas a ambigüidade deixa exposto o outro flanco. Na realidade, Ájax fala ironicamente da ordem do universo, à qual ele não pretende curvar-se. Se viver é ser sóphron, se viver é reconhecer que o homem é uma "sombra leve", então a morte é preferível. Dessa forma, no discurso ambíguo, Ájax anuncia a sua morte. Na segunda parte da tragédia, com a polêmica suscitada pelo enterramento, configura-se a luta de classes na pólis. A caracterização das personagens diante do cadáver de Ajax exprime ao espectador uma situação do século V. Essa caracterização é secundada por uma forma de expressão poética diferente. Os mon6logos cedem espaço a diálogos rápidos cuja inspiração o poeta não devia buscar longe, mas nas assembléias públicas. Discutindo sobre o destino de Ajax morto, apresentam-se quatro personagens: de um lado, Agamenon e Menelau, os chefes que, marginalizados por um excesso do tipo tirânico, proíbem o enterramento. De outro, Teucro, irmão bastardo e arqueiro no exército, e Tecmessa, mulher, escrava e concubina que, igualmente marginalizados por um excesso mas de carência de poder, lutam pelas honms fúnebres. Essas quatro personagens limitam-se a aceitar a pólis, definem-se em relação a ela. como podem, mas, de fato, não a integram. Atena é a divindade política que norteia a conduta humana na pólis. Seu fiel seguidor é Odisseu. Ambos representam a mesma sabedoria, o 7 WINNINGTON-INGRAM, R. P. Soplwcles. An interpretation. Cambridge, Cambridge University Press, 1980.

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mesmo ideal político. Um ideal de versatilidade, de fácil adaptação, de habilidade diplomática, de curiosidade intelectual. No Ájax, é Odisseu quem aceita a mutabilidade das coisas humanas, quem resolve a querela entre os mais fortes e os mais fracos, íntercedendo pelo enterramento do inimigo. Sua ação mediadoca, conciliatória, sua persuasão permitem que seja considerado o modelo do novo ideal democrático, oposto à intransigência aristocrática de Ãjax e também à aliluáe tírâníca áos Atridas, como já mostrou muíto bem B. Knox. 8 De todas as personagens Ájax é a única caracterizada como ápolis. Tardiamente ele p-ercebe que o mundo em que vive não é o heróico. Não lhe era mais pennitido, portanto, reivindicar direitos pela espada. As annas de Aquiles tinham importância decisiva em sua vida, pois representavam seu ponto fixo, símbolo incontestável da aquisição de seu lugar na pólis: o lugar de Aquiles, do melhor guerreiro. Após a loucura, tudo vem à luz. Não apenas passa a ter certeza de estar fora do lugar, de estar desenraizado da comunidade à qual se julgava preso, como também passa a recusá-la deliberadamente. Na morte, bem planejada, os sinais da recusa são fortes. O ponto fixo arduamente almejado é, enfim, encontrado na morte. Ájax se lança sobre a espada de Heitor, espada inimiga, plantada com a ponta para cima, em terras troianas, virgens, nunca pisadas pelos homens, longe do acampamento dos gregos: Ou mbremente viver ou nobremente morrer convém a um homem rle boa mça." (v.4 78-80)

Na morte, Ájax recusa a pó/is, que é incompatível com seu ideal de nobreza.

8 KNOX, B. M. W. The heroic temper: studies in soplwclean tragedy. Berkeley and Los Angeles, University of California Press, 1966. p.121-2.

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A COMÉDIA GRECO- LATINA DE ARISTÓFANES E MENANDRO A PLAUTO E TERÊNCIO CARLINDA FRAGALE PA TE NU!ÍII::Z•

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"Malgré des differences notables, tous ces phénomenes (stylisation. parodie, dit, dialogue) ont un trait commun: leur mot a une double orie..otation - vers robject du discours, comme il est de r~gle, et vers un autre mot, vers le discours d'autrui," Mikhail Bakhtine

1. Apesar de a comédia grega ser contemporânea à tragédia enquanto invenção estética e, tal qual esta, uma modaiidade do gênero dmmátJ.co, nmca mereceu dacríticao mesmo tratamento, quase que laudatório, dedicado às obras de ~squilo, Sófocles e Eurípides. Aristdfanes, o mais antigo canediógrafo grego cujos textos nos chegaram, poderia ser apontado, pela economia de estudos sobre o gênero por ele ilustrado e pela parcimônia com que se v~rp tratando suas obras ao longo da história da critica literária, como o primeiro poeta marginal/izado da literatura do Ocidente. Tal fato suscita o questionamento sobre os mecanismos que decidiram a nobilitação da cena trágica, garantiram-lhe o estatuto prevalecente e assegurar~~n-lhe a respeitabilidade artística, em detrimento da manifestaÇão cômica, sobre a qual incidem olhares suspeitosos, quando não exorcizantes. Sem dóvida, as razões que conduzem ao prestígio de uma e às reservas em relação à outra estão depositadas na ordem cultural, cuja síndrome se ddincia segundo seus traços ideológicos. A postura da comédia aristofânica, entretanto, é de inequívoca importância, quando vista como reduto de acusações à ordem vigente e -mais que isto - quando se lança a indagações sobre o próprio exercício poético dos tragediógmfos atenienses, pactuados sobremaneira com o poder estabelecido. Ao questionar o sistema democrático e o modelo, àquela altura já canonizado, da tragédia, a comédia antiga se investe de uma dicção subversiva e demolidora, própria dos momentos de crise que decidem o curso epocal e providenciam renova;ão estética. Não gratuitamente, a comédia grega se inscreve entre o apogeu da tragédia e os albores da produção filosófica. Por ser exatamente um módulo de transição entre dois gêneros positivamente conotados no percurso histórico da literatura, minimizaram-se as prerrogativas próprias do gênero, quais sejam a diagnose de um sistema já desgastado e a preconização de uma ordem outm, tanto ao nível políticosocial quanto estético. •earl..ta Fragale Pate

Nuia. Professora de Literatura Grega na Universidade Santa Úrsula-Rio de Janeiro. Doutoranda em Literatura Comparada na UFRJ. Ensa1sta.

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No bojo de seu exereício crltico-criativo, a comédia traz toda uma proposta ioovadora, a partir da desmontagem do mecanismo trágico e da reoperacionalização de seus constitutivos básicos. Nesta medida, o cômico se emancipa da condição de contrário-complementar do trágico, para definil'se como uma leitura paródica deste, não mais dependente do maniqueísmo historiográfico, mas produção autônoma, norteada por estratégias próprias. 2. Assim se dá a inaugumção do teatro cômico grego, a comédia antiga: enquanto a tragédia questiona a pólis e coloca seus estatutos e heróis a descoberto para melhor definil'-se e especializar o mecanismo político-social, a comédia empregará uma metodologia crítico-cotrosiva para alcançar a sobrevivência do cidadão apesar do sistema - leitum evidentemente incomodativa e inconveniente. Se a tragédia foi admitida no âmbito da pólis a partir de 536 a.C., com foros de instituição (concursos trágicos), a comédia só obteve tal primazia em 486 a.C., quando o regime democrático assegurava o direito à total parres(a, ou seja, à absoluta liberdade de expressão. O próprio atraso de cinqüenta anos para a inserção da comédia no calendário cívico da pólis demonstra o serviço prestado pela tmgédia ao estabelecimento do novo regime político e, sob outro aspecto, a inconveniência de conferir à comédia o estatuto de ceosora oficial do estado inaugurante. Como num jogo de espelhos deformantes, a comédia pensa a tragédia, que pensou a Cidade. Assim como a poética trágica captou as ambigüidades e incertezas do seu tempo, a poética cômica dialoga com a sua precursora, recolhendo dela subsídios que pretende denunciar. O gênero dmmático alcança, portanto, através da dimensão cômica, o retrato perfeito do universo em que foi gera:lo. Os seus pressupostos evidenciam, em tennos da tensão estatutária do gênero, as dualidades encaradas pela sociedade do século V a.C., o que justifica a organização do discurso teatral a partir do dialogismo em todos os níveis: da mesma forma que a síndrome epocal se estabelece pela avaliação do novo aparato ideológico em confronto com as instituições decadentes, o teatro incorpom a técnica da defrontação para definil'-se e discursar eficazmente. 3. A análise, ainda que breve, de alguns aspectos referenciais do teatro grego possibilita a captação da mecânica que decide a realização trágica e/ou cômica do evento dramático. Vejamo-los em sepamdo: a) Distanciamento O distanciamento participa da própria gênese da concepção dramática. A utilização dos mitos tradicionais como acervo donde se extmíam os temas da tmgédia preconiza um estatuto fundamental para que o efeito de empatia se realizasse satisfatoriamente. A atmosfera trágica se nutrirá exatamente dessa hipnose, pela qual a platéia se projeta num mundo remoto e é envolvida de tal forma a manifestar determinadas emoções e pretender para si os paçlrões e os valores representados. 110

... .,._ ::...

Já no caso da comédia grega, ao contrário do i"eal de retificação das lições míticas, objetivava-se o exercício crítico, de tal forma que, ao buscarem no corpus mítico seus temas, os comediógrafos acentuavam os traços anacrónico-s advindos desse distanciamento para, justamente, assegurar a r.nusciência da atualidade. Na medida em que o artista se afastava de seu tempo, assumindo o olhar dos antepassados, penetrava automaticamente no próprio âmago da tradição, podendo, por isso, submetê-la a novas possibilidades de realização. Além disso, seu ponto de vista deixa de ser subserviente para manifestar competência quanto à análic;e do estabelecido e pretensamente imutável. O afastamento, para a poetica cômica, funciona como a chance de remanejar os significados poéticos, mantendo os mesmos significantes, a fim de reestruturar o real, que então se desapetrechava da aura sublime, idealizante e bem-comportada que a ida ao passado impunha. Vale dizer que o distanciamento é aqui entendido como a possibilidade de melhor aproximar o crítico do criticado, a fim de que as diferenças se dissipem. b) Tenor e compaixão O célebre efeito de éleos kai phóbos, terror e comp~ixão, presente na definição aristotélica sobre tragédia, também integra a concepç·ão cômica. Em ambas as modalidades do discurso dramático existe um míaron, uma falta, que precisa ser expiada. Ela se consubstancia a partir do conceito de hybris que, no seu modo descomedido, escandaliza e presentifica os aspectos negativos da existência. O exagero de proporção a que o tratamento cômico destina as démesures humanas couesponde ao horror implacável manifestado contra estas realidades. Conforme afinna Hayman: repugnância, medo, riso, escândalo e desmedida fornecem um distanciamento necessariamente negativo, limitam a participação dos espectadores, criam tensões, lembrando regularmeme ao espectador que o caos não ê realmente o ambiente de sua vida habitual.1

E Olson ratifica tal idéia ao dizer que: the comic character (••• ) is unüke us, insojar as he is comic, and the misfortunes insofar as th~ are comic, either are not grave or are deserved. The comic action, thus, neutralizes the emotioos of pity and fear to produce the contrary - again I must insist, not the ~gative or contradictory - of the serious. 2

c) Hybris Ao éonstituir-se um discurso transgressor, comprometido tão-somente com seus métodos particulares de construção da ação, a comédia incorpora o conceito de hybris numa direção diametralmente oposta à da tragédia. Nesta, é desmedida a ultrapassagem do métron (medida), a ação deliberada 1HAYMAN, D. Um passo al&n de Bakhtine: por uma mecânica dos modos. ln: MONEGAL, E.R. et alii. Sobre a par6dill. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1980. p.29-52. 20LSON, E. The theory of comtdy. London, Indiana University Press, 1975. p.37.

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dos heróis, que se opõe ao desígnio divino. Na comédia. as instâncias do enredo se emanc1piun para que a pr6pna atitude poético-discursava se enquadre no percurso da transgressão. O coprol6gico, a liberdade na selçção de temas, ns gestos, a indumentária ridícula, os espaços disparatados, as personagens de baixo valor morali;t;ante, o espetáculo descontraído, a postura à vontade da platéia, e a própria despreocupaÇão assumida pelo comediógrafo em relação ao status quo àe sua obra compõem o perfil de hybris na comédia. Êste conjunto de atitudes exteriores, marcadas pela aparente falta de seriedade, são subsídios que possibilitam a aproximação escamOteada dos assuntos solenes e imperscrutáveis, pretensamente adequados aos gêneros oficiais. Note-se que a dinâmica cômica estipula uma mfmesis absolutamente autônoma, que não se restringe a determinado ternário. O livre trânsito da visão cômica por qualquer assunto demonstm que a obcecada tentativa de estandardizar domínios (em qualquer setor da vida) pode denunciar a dicção do poder, disfarçado sob determinismos injustificáveis. É ainda Olson quem explica que: if we take the grave view (of human life), life is full of perils and misfortunea, whicb evoke in us fear and pity; if we take the ligbtbearted view, tbere is nothil~ to be greatly concemed about. It is not the events by tbemselves which are matter for gravity or Ievity; it ia the view taken of tbem.

E acrescenta: convention may determine that this is a solemo matter, and not to be joked about; but ao far as things themselves are concerned about, death, murder, rape, incest are no less matter for comedy tban for tragedy.

Na medida em que o fazer cômico se apropria dos mesmos fatos geradores Cio páthos trágico, faculta-se a condição privilegiada de desmitificar a postura autoritária e veridict6ria c:bs discursos referendados pela ideologia dominante. Uvre de comprometimentos, pode discorrer corr<~~iva e decisiva~mnte, fazendo da própria obm um veículo de diálogo com a tradição e um lugar onde se especula a atuaJidade. d) Relaxação A proposta dramática potencializa seus estatutos ao promover a liberação das tensões levadas ao clímax durante o espetkulo. Se, por um lado, a representação trágica culmina na catarse, no alívio de emoções, a representação cômica, por outro, vai-se resolver em termos de catástase, ou seja, de relaxação do interesse pelo absurdo dramatizado. A difere~a entre os dois conceitos se encontra na dicotomia a eles correspondente: êxtaselestase. O conceito de "êxtase", haurido do repertório sagrado dos cultos dionisíacos, compreendia um movimento místico de esvaziamento da essência humana, para que se promovesse o fenômeno de enthousiasmós, ou seja, que o próprio deus da orgia e das emoções exaltadas mergulhasse no devoto. Esse movimento de "saída de si" dá 112

conta da teleologia trágica, que, premiando o espectador com a cat111e, atenuava-lhe os padecimentos morais enfrentados dmante a encenação, enquanto lhe inculcava, didaticameote, os elementos fundamentais da ideologia vigente. A recoocJliação do herói com a ordem divioacoll'Cspoodia à readmissão ao estado de normalidade e equilíbrio da platéia. Ao fmal do esp~..áculo trágico, o público experimentava um regozijo por se ter liberado da dor ex perimeo ta da. Já a "estase" cômica funciona de forma diversa. O caráter iocoocluso ou artificialmente flnalizante da comédia não propõe a superação da ex periêocia vivida no teatro. Ao contrário, significando "manutenção", suspende a ação, a fim de que o efeito final seja a catástase, ou seja, a manutenção da atitude de pexplexidade perante a incoerência dos eventos enunciados. O modo descontínuo do discurso cômico assegura a eficácia da ironia, que leva à paz (eiréne) atmvés da atitude reflexiva e do questionamento da própria realidade - certamente sustido para além da encenação. 4. Estas divergências funcionais entre tragédia e comédia no decurso do ~éculo V a.C. vêm para ratificar a dinâmica do fenômeno dramático, dinâmica' essa haurida de suas próprias origens litúrgico-religiosas. A comédia tem suas origens em épocas muito anteriores ao século V. como drama litúrgico representado por ocasião da vindima, em honra a Dioniso, constituindo uma prática ritual de fertilização da terra. Para tanto, realizavam-se procissões em que se escoltava um falo, símbolo de fecundidade. Tais kômoi eram festas de caráter agrário compostas de cerimônias mágicas que simbolizavam a união de mulheres com o demônio ctoniaoo, daí a presença do falo como elemento básico. Estes cantos fálicos, ou falofórias, em honra a Dioniso, com seu caráter orgiástico, constituem a origem religiosa da comédia. Este elemento religioso reconhecido por Aristóteles é verdadeiro, porém não cobre os diferentes sentidos recolhidos na etimologia do kômos antigo. Paralelamente ao kômos dionisíaco, outro tipo de festas populares, também denominadas kômoi, constituídas de danças cômicas e farsas, aconteciam na Ática. Nelas, jovens, quer das aldeias, quer das cidades, num verdadeiro bloco ou cordão carnavalesco, à noite, mascarados ou não, batiam às casas, em busca de donativos e prendas, e aproveitavam para provocar os transeuntes. Estes jovens traziam animais às mãos, ou mesmo improvisavam dLfarces de animais, imitando os kômoi rituais- o que testemunha, popularescamente, talvez, resquícios de fases zoomórficas da religião aquéia. A comédia ática, por se ter adstrito ao domínio popular por mais tempo que a tmgédia, preservou sua natureza antitética, congraçando tmços religiosos e profanos. Este substmto profano é que falta à lição aristotélica sobre a origem do gênero cômico. Paradoxalmente, a herança religiosa que é levada para a orquestm é a aiskrología, ditos grosseiros e obscenos, presentes no culto dionisíaco; a herança profana, a variedade de motivos e disfarces que lhe gamntem o tom burlesco. 113

5. Por esse caráter híbrido, a comédia antiga, que tem em Aristófanes seu maior representante, aparece em meados do século V a.C. como um género ainda em evolução, ostentando uma estrutura que subverte a 6tica da seriedade e assegura sua autenticidade porintennédio da ~,tparente desordem e ampla possibilidade de variação das suas partes constitutivas. A oxganização estrutural da comédia antiga, de acordo com os onze textos aristofânicos que nos chegaram, nos apresenta duas partes nitidamente demarcadas. A primeira parte, vivamente influenciada pelo kômos ático, obedece a um esquema ÍlXo. Inicia por um prólogo, geralmente entregue a uma personagem que reaparece no decurso da peça; nele se apresenta um resumo da intriga e se esclarecem detalhes sobre a ação. A seguir, vem o párodo, a primeira intervenção do coro, que constituía a glória de Aristófanes, por sua inventividade e fantasia córeo/cenográfica. Nele, os coreutas se apresentavam caracterizados das formas mais inusitadas, representando rãs, aves, nuvens, vespas, cantando e dançando numa azáfama louca. Uma vez na orquestra, o coro procede ao agón, o combate, que se instaura entre protagonista e coro. Lembremo-nos do kômos antigo, em que ialdeões e participantes trocavam motejos e troças à passagem do bloco can1avalesco. Durante o agón, uma verdadeira enxurrada de idéias e argumentos, truncados ou não, denuncia a influência evidente da sofistica. Au agón sucedia a parábase. Nela, o coro avança para o póblico, dando-se a quebra da ilusão dramática e da própria seqüência da peça. O chefe do coro, o corifeu, abandona a máscara e fala, em nome do poeta, sobre as suas queixas, das quais não eram poupados os homens póblicos de Atenas, os cidadãos e nem mesmo os deuses. Este longo monólogo, crítico, político, ferino, direto, acaba sempre por uma longa frase, que tem de ser pronunciada de um só fôlego, marcando o fim dessa primeira parte. A segunda parte se compõe de uma seqüência de cenas freqüeotemente mal encadeadas e muito vagamente relacionadas com a ação, uma verdadeira revist~ cowposta de sketches. Como conjunto de cenas burlescas, revela influência da farsa dórica, de caráter grosseiro e violento. As personagens representam categorias sociais, offcios, sempre vestidas com tónicas muito curtas, que lhe deixam à mostra o baixo ventre, geralmente adornado por um falo gigante. Os trajes são acolchoados, de modo que as personagens pare.Çam ridiculamente obesas. As máscaras traduzem semblantes bestiais, tanto por sua fealdade quanto por suas deformações. A comédia antiga, em sua organização livre e criativa, é reflexo da vitoriosa ordem democrática, à qual ela própria não poupa. Aristófanes a modaliza por um tom eminentemente político. Suas comédias funcionam como uma imprensa de oposição, contra os abusos do regime ultrademocrático de Atenas, a demagogia dos homens póblicos, a inconstância da Assembléia Popular, a corrupção dos tribunais e seus magistrados, a argócia enganadora dos sofistas, as inovações no âmbito religioso, o vanguardismo de Eurlp1des•••

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Aristófanes era um patriota à maneira conservadom, obcecado pela paz, propondo não exatamente o que achava conveniente para Atenas, mas denunciando o que não reputava digno dela. Por isso, colocou seu teatro a serviço da revalorização da vida rústica, atacando, pessoal e diretamente, os responsáveis pela decadência de Atenas. 6. Na verdade, a Grécia democrática do século V a.C. cede espaço a um panorama totalmente diverso no século seguinte. Já não há mais a autonomia política grega, pois vige a hegemonia macedônica. A Grécia se encontra empobrecida e ocupada. Neste ambiente, a comédia abandona seu conteódo político e se reorganiza enquanto comédia nova, Néa Komod(a, ou simplesmente Néa, a partir da temática da famfiia. A transfonnação da sociedade ateniense implica a evolução da comédia. A encenação passa a ser mais sóbria; as personagens abandonam seus tmjes grotescos; já não se vêem os seus ventres, cobertos agom por uma tónica comprida (somente os escravos se vestem com roupas curtas, pois requerem maior liberdade de movimento). As máscaras crescem em importância, multiplicando-se à razão direta dos diferentes tipos de personagens propostos. Vão à cena indivíduos que representam classes profissionais, categorias sociais, tipos de caráter: o pai resmungão, o camponês, a cortes~ o debochado, o interesseiro, o avarento, o alcoviteiro, o parasita, aduladores, escravos e cozinheiros. A galeria de tipos que passam a povoar a comédia nova se deve ao fato de que, desativada a tmgédia, a comédia passa a ser contemporânea da filosofia, sofrendo dela influência direta, principalmente atmvés dos estudos sobre o homem, seu caráter e comportamento. Já nas últimas peças de Aristófanes percebem-se mudanças e inserção de elementos novos, que se consagrariam na Comédia' Nova: a substituição das personagens por tipos sociais ou tradicionais; a valorização da intriga, que encadeia coerentemente o enredo do início ao fim; a diminuição ou quase supressão do papel do coro, que não participa mais da ação, cabendolhe apenas a apresentação de intermezzi musicais; não há mais agbn, nem pará base. Finda a era da sátim pessoal e política. É época da valorização do coletivo, da sátim de costumes e de condições sociais. O maior representante desta época é Menandro, do qual nos chegou apenas um texto, O misantropo. A peça nos apresenta um velho ateniense que se retira para o campo, onde pretende, sem o auxílio de escravos, zelar por suas terras. Confina-se aí por desprezo a seus concidadãos. Neste contexto figura uma história de amor entre sua jovem filha e um pretendente que, após muitos obstáculos, acabam por se casar. A tirar-se pelo texto de Menandro, os amores impossíveis e os conflitos entre gerações são os temas preferenciais da çomédia nova. A forma pela qual se reproduz a sociedade do século IV a.C., com seus costumes aburguesados, numa linguagem delicada e elegante, 'dispensada de gírias, calão ou pornografia, é reflexo do governo moralizante de Demétrio de Falero. 115

A moral oficial, pautada pela excelência e pelo belo, aiaretl defendida pela filosofia aristotélica, foi assimilada por Menandro. ESte parece ter popularizado bastante nas suas peças a concepção ideal do homem que lhe fora transmitida por Teofrasto, discípulo direto de Aristóteles. A veiculação deste ideal através da comédia de Menandro para a comédia latina e desta para as comédias clássicas foi, com certeza, mais profunda que a leitura direta dos filósofos. 7. A comédia nova continuará o seu processo evolutivo em Roma, no século n a.C., com Plauto e Terêncio. Na verdade, a comédia nova latina é uma reapropriação de modelos gregos. Esta transplantação era imposta pelo fato de as comédias fazerem parte dum ritual, cujo fim era justamente evocar ~ Roma os jogos gregos. A compilação das comédias de Plauto compreende vinte e um títulos, todas elas muito proximas pela intriga, mas refletindo sempre os costumes e as preocupações da sociedade grega de fins do século IV a.C. Esporadicamente, Plauto se permite fazer referências ao mundo romano a ele contemporâneo. Se sua originalidade não se pode aferir pelo ternário, ela reside na forma como adaptou a. tradição da cênica romana, multiplicou as intervenções corais, alterou a seqüência das ações da peça grega de referência, soube engendrar como que um teatro openstico, variado e que revaloriza os elementos da represen t~Ção. Sua verve cômica melhor é apreendida pela caracterização de tipos, pela montagem de qüiproquós hilariantes, pelos torneios verbais ágeis e ainda hoje de efeito insuperável. A partir de sua obra abrem-se veios temáticos ao longo da literatura cômica pós-clássica, principalmente com as peças Anfitrião e Aululária. Terêncio, sucessor de Plauto na arte cômica, enfrentou inteligentemente o problema da originalidade, já que o acervo de comédias gregas não era inesgotável e só dele se podiam extmir modelos. Para contornar a dificuldade, já existente desde Plauto, Terêncio abusou da contaminatio, fundindo duas peças originais, de modo que suas comédias não se parecessem com qualquer outra reapropriação latina. De Terêncio temos seis peças, através das quais percebemos novo estádio na evolução do gênero cômico: substitui o prólogo, obrigatório na Néa grega e no texto plautino, por cenas de exposição, tão necessárias à comédia clássica francesa; suprimiu todo e qualquer vestígio da parábase antiga, reativada por Plauto; suprimiu as cantigas de cena, a fim de criar um clima de ilusão o mais eficaz possível. Terêncio não alcançou a mesma popularidade de Plauto em seu tempo, talvez pelo fato de ser porta-voz do grupo aristocrático a que o destino o ligou. Neste, a antiga austeridade romana é vista como extemporânea e exagerada. . Sua fidelidade a Menandro não o impede de ser atual - Terêncio propugnava por que se gozasse a vida. 116

8. O trajeto até aqui enfocado, na verdade, demonstm a abertura que a comédia greco-latina propõe a todá uma tmdição pós-clássica, que virá a reescrever seus mitos e textos através de Moliêre, Kleist, Shakespeare, Peter Hacks, Giraudoux, Ariano Suassuna, Guilherme Figueiredo e tantos outros, que, ao longo dos tempos, vêm perpetuando a sonoridade do gargalhar olímpico.

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O RITUAL NO TEATRO SHAKESPEARIANO MARLENE SOARES DOS SANTOS*

O ritual. no sentido de cerimônia de caráter sacro ou simbólico 9!le segue preceitos estabelecidos, é uma das formas de expressão do mito. Segundo Mircea Eliade• ... a principal função do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas: tanto a alimentação ou o casamento, quanto o trabalho, a educação, a arte ou a sabedoria,!

Por isso, ele prossegue mais adiante, ... não se pode realizar um ritual, a menos que se conheça a sua "origem•, isto 6, o mito que narra como ele foi efetuado pela primeira vez.2

E, partindo da importância do ritual para as sociedades primitivas, Eliade traça a seguinte comparação entre aquelas e as sociedades modernas: _ ao passo que um homem moderno, embora considerando-se o resultado do curso da H ist6ria Universal, não se sente obrigado a conhec&-la em sua totalidade, o homem das sociedades arcaicas 6 obrigado não somente a rememorar a história mítica de sua tribo, mas tamb6m a ritualiztJ-la periodicamente em grande parte)

Daí, poderemos concluir que o homem, já descrito como ser racional, social, político, econômico e lúdico, também pode ser definido como um ser ritualístico. S6 que, enquanto as outms definições permanecem inalteráveis, a última se enfraquece à medida que ele se moderniza. Em outms palavras, com o passar do tempo, o ritual desaparece ou perde a sua força ou sobrevive camuflado. Se há várias teorias e pouco consenso entre os estudiosos do assunto para explicar a natureza e a origem do ritual devido à riqueza de daqos - a exist~ncia de rituais tem sido observada no mundo inteiro atmvés da História - parece haver relativa concordância no emprego dos termos "sacro" e "profano"4 nos estudos dos comportamentos ritualísticos. O sacro - significando o reino da transcendência - e o profano - o do tempo, espaço e causa-e-efeito - se apresentam como classificações úteis para se explicar a referência do ritual A rigor, o referencial ritualístico seria o sistema de crenças de uma sociedade que é constituída pelas suas definições *Marlene Soares dos SmCos. Professora de Literaturas em Língua. Inglesa na UFRJ. Doutora em Literatura I~lesa pela Universidade de Birmi~ham/lnglaterra e P6t-Doutora pela Universidade de Yalo'EUA. Ensaista. 1 Mito e realidade. São Paulo, Perspectiva, 1972. pJ3. 2 lbid. p.20. 3 lbid. ~.17. 4 ELIADE, Mircea. Le sacrl et le profane. Paris, Gallimard, 1965,

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de sacro e profano. (Cabe aqui ressaltar o componente variável de tais classificações: o que é sacro para uma sociedade pode ser considerado profano por outra e vice-versa). E as funções primordiais do ritual na comunidade seriam, então, as de determinar as regras apropriadas à ação no reino do sacro, assim como fornecer meios de passagem para o reino do profano. Tais fun~ões poderiam ser consideradas determinantes das principais características da ação ritualísiica em geral, a saber: a) emotiva, por provocar sentimentos tais como respeito, reverência, fascinação e temor diante do sacro; b) dependente, por depender de um sistema de crenças geralmente expresso pela linguagem do mito; c) simbólica, por estar diretamente relacionada com o seu referenciaL RITUAL E TEATRO Tais características da açao ntuaiística nos possibilitam compreender por que as relações entre literatura e ritual são tão estreitas. Por exemplo, Jessie L Weston, no seu livro From ritual to ro111.aHCe, 5 nos conduz por caminhos fascinantes às origens dos romances de cavalaria que têm por tema a lenda do Santo Graal, encontradas no ritual secreto de um culto de fertilidade. E estes registros fragmentados de um comportamento ritualístico que chegaram até nós camuflados nos romances medievais inspirariam o maior poeta moderno de língua inglesa - T. S. Eliot - a escrever a sua obra mais conhecida - The waste land. Entretanto, relações mais ostensivas e profundas são encontradas entre o ritual e o teatro. Segundo Sir James Frazer, há toda uma classe de mitos expressos sob a forma de ritual a fim de produzirem os efeitos naturais descritos em linguagem figurada. 6 E, como já vimos, os homens das sociedades mais arcaicas ritualizavam a história mítica de suas comunidades. Dessas ritualizações nasceram o teatro da Grécia Antiga (oriundo de cultos pagãos) e o da Europa Medieval (originário da liturgia cristã). Desde os seus primórdios até hoje, o teatro ocidental reafirma o seu caráter ritualístico. Se, no passado, as misteriosas necessidades ritualísticas de uma comunidade eram orientadas para o reino do sacro, hoje elas são direcionadas para o do profano. Atualmente, sendo menos fortes, não deixam de estar presentes. Como já foi corretamente observado, a função essencial do teatro reside ••• numa detenninada ritualização das relações: "ritualização", porque o teatro, mais do que qualquer outra arte, ê ritual na sua essência, e "detenninada", porque a arte tea trai converte os valores rituais em valores estéticos atravês de uma mudança de c6digo, por um •mecanismo" que, ao assimilar os caracteres gerais do ritual, lhes confere uma qualidade especffica.7 5 New Yorl<:, Doubleday & Company, Inc., 1957. The golden bough. New York, The MacMillan Company, 1971. p.705. 7 GIRARD, Gilles & QUEI.LET, Rêal. O universo do teatro. Coimbra, Almedina, 1980. p.1&-7. 6

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RITUAL E TEATRO ELIZABETANO Foi sugerido inicialmente que, à medida que as sociedades avançam no tempo, o ritual perde o seu impacto. Mas Shakespeare, escrevendo as suas obras na se~unda metade do século XVI e na primeira do século XVII, se situa num momento histórico ideal que lhe possibilita equilibrar o seu teatro esteticamente entre o ritualismo remanescente da Idade Média e a mimese crescente da Idade Modema. A suprema síntese do drama shakespeariano pôde ser efetuada porque ele foi produzido quando o agente do ritual começou a abdicar de sua função de representar para assumir a de interpretar, ao mesmo tempo que o público, ainda que participante da ação ritualística, se conscientizava do seu papel de espectador. As tensões resultantes das ações entre o agente do rirual/ator do drama e o partiCipante do ritual/espectador do drama marcam as potencialidades mas também os limites da interação do ritual e drama, que informam o drama elizabetano em geral e o shakespeariano em particular. O leitor e/ou especiador atento nota que Shakespeare, deliberadamente, se utiliza de cenas ritualísticas para sublinhar ou iluminar determinados aspectos de suas peças. E, quando há a presença ostensiva do ritual através da experiência fictícia dos atores inserida dentro da experiência real dos espectadores, dá-se uma duplicação do processo ritualístico - o ritual dentro do ritual - o que enriquece a estética shakespeariana sobremaneira. É importante repetir o que já foi dito, _que o pdblico de Shakespeare, como o de Sófocles, estava preparado para aceitar a peça não apenas como uma histcSria excitante. mas como "celebração do mistério" da vida humana.s

O RITUAL E AS PEÇAS HISTÓRICAS O crítico J. L. Stejan comenta que -·a tradição ritualfstica dos predecessores e contemporâneos de Shakespeare era um deleite especial para os elizabetanos e o forte de Shakespeare.9

Isso se toma muito evidente nas peças que Shakespeare escreveu baseadas na história da Inglaterra. Além dos mitos tradicionais, Shakespeare tinha à sua disposição os novos mitos criados pela monarquia dos Tudors, 10 com seus rituais de pompa e circunstância. Pois, na Renascença inglesa, "a monarquia e seus ritos estavam assumindo parte do significado religioso da Igreja e seus ritos". 11 8 FERGUSSON, Francis. Evoilção e sentido tkJ teatro. Rio de Janeiro, Zahar, 1964. p.llh 9 Shakespearb stagecraft. Cambridge, C_ambridge University Press, 1975. p.37. 10 TIIL YARD, E. M. Myth and tire English milfd. New Y ork, Collier Books, 1962. p.42·59. 11 FERGUSSON. p. 112.

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Henry VIII termina com a celebração do batismo da princesa Elizabeth, futura rainha idolatrada peJos ingleses, e que emprestou seu nome a toda uma época. Thomas Cranmer, Arcebispo de Canterbury, "prevê" um futuro próspero e feliz para a Inglaterra no reinado de Gloriana ou a Rainha Virgem. A peça que, ao que parece, foi representada pela primeira vez em 1613 -dez anos após a morte da Rainha- e as "profecias" na cerimônia final poderiam ser ironicamente interpretadas pelo público já extremamente desiludido com o reinado do sucessor de Elizabeth, James L12 Henry V, no seu final, aponta para as núpcias do jovem rei inglês com Catarina, princesa de França, numa tentativa de unir reinos tradicionalmente inimigos. Entretanto, se os rituais de batismo e casamento são associados a acontecimentos -felizes e, nas peças acima mencionadas, se apresentam como tais, o mesmo não se pode dizer do tratamento que Shakespeare dá ao ritual da coroação - e suas variações - nas suas outras peças tendo como tema a história inglesa. Este ritual é apresentado diversas vezes com funções diferentes. Em King John, para enfatizar a humilhante sujeição do rei à autoridade do Papa, representado pelo Cardeal Pandulph, Shakespeare inverte o ritual dã co-rõaçao, Tãzenóo com que o re1 refu-e a coroa da careça e a entregue ao Cardeal. Este, por sua vez, devolve-lhe a coroa mostrando à corte que John permanece rei pela vontade papal (King John. V.1.1-5). A humilhação de um possível herdeiro do trono inglês e a crueldade de uma rainha ameaçada são enfatizadas quando Shakespeare, travestindo o ritual, faz com que a rainha Margareth, zombeteiramente, coloque uma coroa de papel na cabeça de Richard, duque de Yorlc, antes que ele seja executado, na terceira parte de Henry VI (IL4). Na segunda parte de Henry IV (IV.5), o jovem e supostamente delinqüente príncipe Hal, entrando no quarto do pai moribundo e vendo a coroa colocada perto do seu travesseiro, apanha-a e a coloca sobre a própria cabeça, antecipando o ritual da sua próxima coroação. O gesto simbólico é acompanhado por palavras grávidas de sentimento, revelando um lado do príncipe até agora desconhecido e funcionando como índice de sua transformação no sério e glorioso Henry V. Em Richard II, uma outra variação do ritual da coroação nos é apresentado quando Richard, deposto pelo primo Bolingbroke, transforma o que se poderia chamar de coroação do usurpador num patético rito de abdicação. Num determinado momento os dois rituais se confundem, quando ambos os príncipes seguram, ao mesmo tempo, a tão cobiçada coroa, obviamente disputando-a. A cena marca - inequivocamente - o fato de que o trono inglês foi ilegalmente tomado e não legalmente herdado pelo rei Henry IV (IV.1). Entretanto, o ritual da coroação realmente representa um momento de celebração e assinala o restabelecimento da harmonia e da ordem em Richard III, quando, após a morte do rei usurpador e tirano, o duque 12 HUMPHREYS, A. R. Hannondsworth, Penguin Books,l971. p.14. Todas as referências às peças shakespearianas se baseiam nos volumes da série New Penguin Shakespeare.

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de Richmond é coroado rei da Inglaterra no final da peça.,~ um momento de grande importância, pois não só comemora o início da' dinastia dos Tudors - Richmond subiria ao trono como Henry Vll - mas, também, o término da guerra civil - a Guerra das Rosas - que tanto mal causou à Inglaterra na segunda metade do século XV. O RITUAL E AS COMÉDIAS A comédia elizabetana é essencialmente romântica, assim como a comédia jacobina é essencialmente satírica. Shakespeare, cultivador do primeiro tipo, segue o seu modelo tradicional, que era o de proporcionar ao seu público um final feliz. As peças tenninavam sempre em casamentos, reconciliações e reuniões de pessoas há longo tempo separadas, exercitando, assim, uma das tendências principais da comédia romântica: a de incluir todos os personagens, por vezes, até o vilão, quando este existe. "Os finais felizes não nos impressionam como verdadeiros, mas como desejáveis, e concretizam-se por manobra," 13 alerta-nos·Northrop Frye. Mas Shakespeare, aceitando a convenção - e, conseqüentemente, executando a manobra o faz de uma maneira muito pessoal: ele· sugere que uma harmonia maior com a ordem natural do universo também se efetua com esses casamentos, reconciliações e reuniões. Dessas celebrações festivas, que ambiciosamente almejam a um congraçamento universal, a que mais freqüentemente acontece é - como seria de se esperar - a do casamento. Cabe aqui registrar como Shakespeare também ritualiza a escolha de um dos cônjuges, independente da vontade deles. Assim é que Helena - depois de realizar a cura do rei doente, ritual que é apenas narrado - escolhe o relutante Bertram através de uma dança, como é sugerido em All's well that ends well (n3). E Pórcia, em The merchant .of Venice (IT.1; II.9; ITL2), tem que se submeter à vootade do pai morto, que exige que ela seja esposa daquele que adivinhar em qual dos três cofres está guardado o seu retrato. Depois das tentativas infrutíferas dos príncipes do Marrocos e de Aragão, Bassânio, já eleito pelo coração de Pórcia, finalmente escolhe o cofre certo, ao que tudo indica, discretamente auxiliado pela futura esposa. O ritual do casamento encerra duas comédias essencialmente românticas em grande estilo, sublinhando o seu caráter singularmente festivo. Assim é que oconem ntípcias tií_plices em A midsummer night's dream e quádruplas em As you like it. Às vezes, o casamento que não é apresentado no final da peça é obviamente indicado para ser realizado logo após. Tal acontece em The comedy of errors, The two gentlemen of Verona, Much ado about nothing e As you like it. Em All's well that ends well, The merchant of Venice e Twelfth night, casamentos são celebrados no meio do desenrolar da trama, mas Shakespeare resolve omitir as cenas. Porém, quando faz opção pelo ritual é porque 13 Anatomia da critica. São Paulo, Cultrix, 1969. p.l70.

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este será utilizado de maneira importante, e não apenas como mera representação de pompa e circunstância. Petrúquio, o herói de The taming of the shrew, para começar a domar a sua Catarina, se veste e se comporta da pior maneira possível durante a cerimônia do casamento. O ritual não nos é mostrado, mas é como se o fosse, pois "' vívida e detalhadamente narrado por Grêmio, o lacaio de Petrúquio, que conclui o relato dizendo: "such a mad marriage never was before" (lll.2.181). Em Much ado about nothing (IV.l), o ritual do casamento é interrompido quando Cláudio repudia Hero pubiicamente, por ter sido levado a duvidar da honra de sua noiva pelo vilão da peça. Esta interrupção vai mudar os rumos da trama amorosa, causando desordem e rompendo a harmonia social. Só depois de muito sofrimento e penitência é que os amantes se reencontrarão, inseridos nas ordens humana e universal. Além do casamento, Shakespeare também emprega outros ritos festivos para reunir todos os participantes do seu mundo cômico numa grande confraternização. Ele apresenta um banquete no final de The taming of the shrew, com uma Catarina aparentemente submissa e realmente apaixonada pelo seu Petrúquio, ensinando os deveres de uma boa esposa às outras presentes. Much ado about nothing termina com um grande baile, sendo o vilão excepcionalmente- excluído da comunidade; Cláudio- depois de ter expiado a sua culpa - se reconcilia com Hero; e Beatrice e Benedick finalmente se rendem ao amor. E The me"y wives of Windsor afirma, mais uma vez, o princípio de inclusão da comédia romântica, com o seu final apontando para uma grande festa para a qual até o vilão cômico - Sir John Falstaff - é convidado. A comédia shakespeariana também é permeada por rituais de caráter sério que, aparentemente, não condizem com a atmosfera predominantemente festiva da maioria das peças românticas. Mas Shakespeare, assim como seus contemporâneos, sempre se permitiu colocar o cômico e o trágico lado a lado com a maior ousadia e eficácia. The comedy of errors inicia com a cena do julgamento de Egeon, que é condenado à morte, e a quem são dadas vinte e quatro horas de prazo para encontrar alguém que pague a vultosa quantia exigida para que sua vida seja poupada. O clímax de The merchant of Venice é a cena do julgamento, que termina por libertar Antônio e punir Shybock (IV.l). Em Love's labour's lost, Shakespeare vai mais longe ainda na sua ousadia anticlássica de colorir o cômico com cores trágicas: quando tudo leva a crer que a peça se encaminha para nópcias tríplices no final, à semelhança de A midsummer night' s dream, eis que ele frustra as expectativas de leitores e/ou espectadores, introduzindo a figura sinistra de um "mensageiro da morte". Este vem trazer para a princesa a notícia do falecimento de seu pai. Ela, que assistia a uma peça no momento, recebe-o com palavras que parecem refletir o pensamento de leitores e/ou espectadores decepcionados: "-· th~u interrup'st our merriment" (V .2. 718). E a comédia termina apontando para os ritos fiínebres a que a princesa se prepara para assistir. Como já vimos anteriormente em Much ado about nothing, Shakespeare lança mão da interrupção de um ritual festivo para indicar uma ruptura na ordem 123

vigente. Enquanto que nesta peça à sociedade cómica é concedida uma outra oportunidade de reequilíbrio,. em Love' s labour' s lost não ocorre a hannonia final, característica das comédias românticas: Our wooi~ doth not end like an old play; Jade ha th not Ji!L (V.2.875-6)

Para dois grandes críticos - N orthrop Frye e C. L. Barber- a presença do ritual na comédia shakespeariana é muito mais abrangente do que foi sugerido até agora. Frye considera as convenções da comédia romântica como modelos estruturais relacionados com um ritual arquetípico de comemoração da vit6ria do verão sobre o inverno e da vida sobre a morte. 14 A abordagem de Barber se assemelha à de Frye no considerar a estrutura cômica como resultante de modelos de celebrações ritualísticas. Entretanto, sua leitura é mais especificamente histórica, uma vez que ele se preocupa em explorar os modos pelos quais a fonna social dos festivais elizabetanos, originários de rituais arcaicos, contribuiu para a forma da comédia shakespeariana. 15 A fim de mostrar a influência do ritual na estrutura das peças cômicas, torna-se imperativo discorrer sobre as teorias acima mencionadas mais detalhadamente. Entretanto, como os limites impostos pcla falta de espaço exigem uma opção, a leitura de Frye é a escolhida por ser mais convincente. De acordo com o critico canadense, algumas comédias shakespearianas se assemelham às antigas peças rituais de estação. A este grupo ele denomina de "drama do mundo verde", "sendo sua trama assimilada ao tema ritual da vitória da vida e do amor sobre a terra estéri1". 16 Ele observa ainda que ... a ação da comédia começa num mundo representado como um mundo norma~ ingressa a! em metamorfose na qual o desenlace cômico se completa e volta para o mundo normal 17

É o que acontece, por exemplo, quando Valentim, o jovem herói de Two gentlemen of Verona, foge para uma floresta e para lá se dirigem - por motivos vários - os demais personagens. Os amantes e os rósticos também se encontram na floresta de A midsummer night' s dream. Em As you like it, o duque destronado e seus súditos fiéis se refugiam na floresta de Arden, enquanto que a de Windsor se toma o ponto de encontro de vários personagens em The merry wives of Windsor. Em todas essas peças, o "mundo verde" é o lugar onde os conflitos do enredo são resolvidos e, ao voltarem ao mundo normal, os seus membros re-estabelecem a sua relação harmoniosa com ele. O "mundo verde" impregna algumas comédias com o simbolismo do ritual da vitória do verão sobre o inverno. Isso aparece de modo muito evidente em The merry wives of Windsor onde, como nos recorda Frye, 14 Ibid., p.l81-2.

15 Shakespeare's festive comedy. Princeton, N, J., University Press, 1959. 16 FRYE. p.l81. 17 Ibid.

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-hl um elaborado ritual da derrota do inverno conhecido pelos folkloriataa como •levar a morte para fora•, do qual Falstaff 6 a vítima; e Falstaff deve ter sentido que, depois de ter sido atirado k água vestido como bruxa e expulso a pancadas e pragas de uma casa, 8dornado com uma cabeça de animal e chamuscado com velas, fez quase tudo que pode ser razoavelmente requerido de qualquer espírito de fertilidade.l 8

A leitura acima nos possibilita detectar em toda a sua extensão a importância das cenas ritualísticas na comédia shakespeariana. Além das funções do ritual como elemento eficaz na complicação, explicação ou finalização da trama, se acrescenta, também, a de elemento estruturador. O RITUAL E AS TRAGÉDIAS Segundo Albin Lesky, grande conhecedor do drama da Antiguidade, -toda a problemltica do trágico, por mais vastos que sejam os esGaços por ele abrangidos, parte sempre do fenômeno da tragédia ática e a ele volta}

Não cabem aqui fonnulações sobre a essência da tragédia, mas vale lembrar que a grega estava muito próxima da ação ritualística que lhe deu origem. Pode-se concluir que o ritual é um dos espaços abrangidos pela grande problemática do trágico, havendo mesmo relativo consenso entre os estudiosos da matéria de que o modelo ritual por trás da catarse da tragédia é o sacriffcio: "qualquer pessoa acostumada a pensar arquetipicamente em literatura reconhecerá na tragédia uma imitação do sacriffcio". 20 A tragédia shakespeariana, além de sua herança do modelo estrutural do sacrifi'cio, atribui ao ritual outras funções que sempre resultam em enriquecimento: quer no enredo, quer na composição de um personagem ou no significado total da ação teatral. Isso acontece com maior ou menor ênfase, dependendo das intenções do autor, mas cumpre reafirmar que, em Shakespeare, a estetização da ação ritualística nunca é gratuita. A tragédia Romeo and Juliet nos brinda com uma grande festa no início da ação. Capuleto, o pai de Julieta, influenciado pela alegria contagiante da atmosfera, esquece os seus rancores e se deixa dominar pelo espírito de conciliação, proibindo ao seu sobrinho Tybalt que expulse Romeu - o filho do seu feroz inimigo Montague - que havia comparecido à festa sob disfarce. Proibição esta que se mostrará fatal, pois, na dança que se segue, Romeu vê Julieta - e por ela se apaixona perdidamente. À festa sucede o casamento dos jovens, que é apenas mencionado; logo após o exílio de Romeu, começam os preparativos do casamento de Julieta com Paris. Shakespeare assinala a relação entre eros e tanatos apresentando os ritos festivos se metamorfoseando em ritos fúnebres, quando a noiva é tomada como morta. 18 lbid. p.182. 19 A tragldia grega. São Paulo, Perspectiva, 1971. p.l8. 2 FR YE. p.211.

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Uma variação dessa metamorfose do ritual ocorre numa outra tragédia - Hamlet - onde as cerimônias fónebres da morte do pai do herói são imediatamente seguidas pelas do casamento da mãe com o tio. É o que se deduz do comentário de Hamlet, quando Horácio lhe diz que veio a Elsinore para assistir aos funerais do rei: I prithee do not mock me, fellow-student; I think it was to see my mother's wedding. (I.2.177·8)

A proximidade dos dois rituais e tudo que ela implica são algumas das causas da angóstia de Hamlet. Em Romeo and Juliet, numa trama informada pelo binômio amor e morte, a alternância de ritos festivos e fúnebref enfatiza a estreita relação dos dois elementos. Uma outra tragédia regida por eros e tanatos é Anthony and Cleopatra. Ao contrário dos jovens e inexperientes amantes de Verona, Antônio e Cleópatm são pessoas maduras e vividas; enquanto a morte dos primeiros é principalmente causada por circunstâncias externas, a dos segundos é gr111demente devida às suas personalidades. Em Anthony and Cleopatra também há uma festa (11.7), que só aparentemente sugere congraçamento. A função da mesma é assinalar as diferenças entre Antônio e Otávio; eles não só 9.ferem em personalidade - a exuberância do primeiro contrastando com a ftieza do segundo - mas também em fJJ.osofia de vida - enquanto Antônio prega .. Be a child o'th'time" (11.7.98), Otávio prefere dizer: "Possess it, 1'11 make answer'' (11.7.99). A incompatibilidade dos dois temperamentos tão claramente exposta prepara o leitor e/ou espectador para a rivalidade entre os dois homens, e que é fatal para Antônio. No final da peça, Cleópatra se engrandece ao preparar ela mesma o ritual de sua morte. Com o amante morto e ameaçada de ser levada como escrava para Roma, ela não hesita em imitar os romanos, escolhendo uma saída honrosa da vida. Shakespeare faz da morte de Qeópatra uma cena justificadamente famosa: magnificamente vestida em trajes reais, ela" se deixa morder no seio por uma víbora venenosa. Proporcionando a Cleópatra uma cerimônia espetacular, digna de uma grande rainha, Shakespeare enfatiza-lhe a realeza. Além disso, ele impressiona leitores e/ou espectadores não só com o ritual mas, também, com a reação do frio Otávio, o novo César: tocado pela beleza de Cleópatra e a grandeza da cena, ele ordena que os amantes sejam enteaados juntos como o foram Romeu e Julieta, chamando atenção para o simbolismo ostensivo da união inteiTOmpida em vida e conquistada na morte. Em Julius Caesar, Shakespeare faz do funeral de César o clímax da peça, uma vez que, imediatamente após o discurso fónebre de Antônio, a multidão se rebela dando início à guerra civil. Há ainda um outro ritual menos importante em termos de trama, mas muito significativo em termos de caracterização. Incapaz de aceitar a idéia de que a morte de César não seria mais do que um assassinato a sangue frio, Brutus, o nobre idealista, se convence de que ela será um ritual de sacriffci.o: "Let's carve him as a dish fit for the gods" (11.1.173) e se vé como .. sacerdote" e não

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como "carniceiro": "Let us be sacrifi.cers, but not butchers••• " (IL1.166). E, após terem assassinado César, ele insiste com os companheiros para que todos manchem as mãos com o sangue da vítima, num esforço desesperado para tmnsfonnar o crime num ritual (ID.l.l05-8). É a maneira mais eloqüente que Shakespeare encontrou para ressaltar as de: ;iências da personalidade de Brutus, um intelectual deslocado no mundo cruel e prático da política. Outro que tenta tmnsfonnar um assassinato em ritual de sacriflcio é Otelo. Enlouquecido de ciúme mas, ao mesmo tempo, extremamente apaixonado pela esposa, a única justificativa que ele enconaa para conseguir perpetrar o crime, é a convicção de que irá matar Desdêmona para o bem da sociedade: "She must die, else she'll betmy more men" (V.2.6). É interessante notar que Desdêmona parece se preparar para o sacri:ffcio quando pede à sua dama de companhia - Emília - que faça a sua cama usando os lençóis da noite de núpcias como se estivesse preparando o "altar" onde seria sacrificada. É mais uma trama infonnada pelo binómio amor e morte, ritualisticamente assinalado. O banquete, ritual caracteristicamente festivo, é inversamente apresentado em duas tragédias shakespearianas, colorindo as cenas em que aparece com tintas muito escums. Em Macbéth, no banquete oferecido pelo usurpador do trono escocês a fun de angariar as simpatias da corte, os nobres se sentam à mesa ordenadamente, obedecendo à hierarquia social. Ao representar o papel de bom anfitrião, Macbeth vê o espírito de Bânquo - o amigo que mandara matar - e se descontrola totalmente. Lady Macbeth, alegando que o marido não está bem de saóde, pede aos convidados que se retirem rapidamente sem respeitar a ordem hierárquica. Já foi sugerido anteriormente que Shakespeare usa a interrupção do ritual como sinal de desordem e desarmonia; em Macbeth este sinal é claramente indicado pela desordenada saída dos convidados. Assim, o ritual do banquete, 'siiDbólico de inclusão e congmçamento, marca não só a ruptum da ordem vigente - que já começara com o assassinato de Duncan - mas a exclusão do casal da sociedade pela enonnidade do crime cometido (ao matar o rei,' Macbeth infringe as leis do sangue, da vassalagem e da hospitalidade). Daí em diante, o isolamento de Macbeth e Lady Macbeth se acentua progressivamente: afastados do seu povo, eles se afastam de sua corte e, finalmente, até um do outro. Em Titus Andronicus, o banquete da última cena da peça constitui a utiliza;ão mais crua e chocante da ação ritualísticajamais feita por Shakespeare. Nesta sua primeira peça, o jovem autor, muito influenciado pelo horror presente nas obms de Sêneca, se esfOiça por suplantar o mestre. Ele nos apresenta Tito Andrônico, que, enlouquecido pelos sofrimentos que lhe foram causados pela rainha Tamora, résôlve Vingar-se. Ele mata os dois filhos dela, esquarteja-os e cozinha pedaços que servirá à. mãe no banquete sinistro ao qual ela foi convidada. É a transgressão maior numa tmgédia em que vários personagens, sucessivamente, tmnsgridem códigos éticos, morais e sociais.

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Outro ritual inteuompido com conseqüências irreversíveis para o enredo da tragédia é o ritual da abdicação em King Lear. No início da peça, o rei, autoritário e vaidoso, decide transformar o ritual de sua abdicação num ritual de adoração, fazendo com que as fDhas declarem publicamente_ a intensidade do amor que sentem por ele. Ao se furtar a dar ao pai a resposta par ele "estabelecida", Cordélia rompe as regras do ritual, e é punida pelo pai, que a repudia. A partir desta cena se inicia a gradativa decadência - social, tisica e mental - do rei Lear. Mais tarde, ao desabrigo e louco, ele teotará abdicar da ,própria humanidade. É importante registrar a presença de um outro ritual importante na peça: o do i julgamento das filhas pelo rei louco, assessorado pelo bobo da corte e por Edgar, que se finge de louco (ITI.6). As falas antifônicas dos três loucos entrelaçam os temas obsessivos de traição, possessão ,demoníacil e injustiça na mais complexa estrutura lírica do drama moderno, 21 justificando o desespero que levou Lear a perder a razão. Mas é Hamlet, a peça shakespeariana mais complexa e por isso mesmo a mais discutida, que se distingue pela presença mareante de uma série de rituais. Dois grandes críticos - F. D. Kitto~e Francis Fergusson23aproximaram-na da tragédia grega e, assim fazendo, alertaram-nos para a força da ação ritualística nesta tragédia. Enquanto Kitto lê Hamlet como drama religioso semelhante ao grego e aborda o ritual perifericamente, Fergusson considera-o parte essencial da estrutura da peça, fornecendo mesmo uma das chaves para se decifrar o mistério hamletiano. É necessário notar que Fergusson vê grandes semelhanças entre Édipo Rei e Hamlet. Em ambas as peças, um nobre sofredor de grande status social é associado com a poluição de toda uma comunidade; em ambas, os destinos do indivíduo e da comunidade estão estreitamente ligados; as duas tramas apresentam um crime oculto - o assassinato de um rei do qual depende o desenrolar da ação; finalmente, tanto em Édipo Rei como em Hamlet, o sofrimento do protagonista se nos apresenta como necessário antes que a purgação e a renovação possam ser conseguidas. 24 A grande diferença entre as duas tragédias reside no tratamento conferido à ação ritualística. Enquanto Édipo Rei se apresenta como ritual, Hamlet apresenta uma série de rituais destinados a iluminar, gradativamente, o significado da fala de Mareelo: "Something is rotten in the state of Denmark" (14.90). Segundo a observação de Fergusson, Sófocles usa o teatro trágico com bases rituais para refletir diretamente a vida humana, Shakespeare usa o teatro elizabetano do mesmo modo; mas paralelamente observa num outro espelho - na percepção supermoderna de Hamlet e dele próprio - a execução do ritual ali ironicamente refletido,25

21 HUNTER, G. K. (ed,), King Lear. p.258. 22 Form and meaning in drama. London, Methuen, 1960. p.246-337. 2 3 Evolução e sentido do teatro, p.93-137, 24 Ibid. p.lll-5. 25 lbid. p.114.

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Além dos dois rituais apenas sugeridos na peça - o funeral do pai logo seguido pelo casamento da mãe - e já aqui mencionados, há vários rituais ostensivamente presentes em Hamlet: a mudança da guanla (1.1); a primeira reunião de Cláudio com a corte (I.2); a apresentação da peça -dentro-da-peça escrita por Hamlet (III.2); o funeral - incompleto e ínte~ rompido -- de OI!lía {V.I) e a segunda 1.1;umão de Cláudio com a corte na qual se realiza o duelo entre Hamlet e Laertes na última ..:ena da peça. A estes, Fergusson também acrescenta a cena da loucura de Ofélia (IV .5), classificando-a como "falso ritual" e usando argumentos interessantes mas pouco convincentes, o que, em absoluto, não empalidece o brilho da leitura que ele faz da função do ritual na tragédia. De acordo com Fergusson, Shakespeare usa a sucessão de cenas ritualísticas de modo que elas apareçam na peça para atrair nossa atenção para o reino da Dinamarca e sua doença oculta. As cenas da mudança da guanla e da primeira reunião de Cláudio com a corte seriam invocações cerimoniosas da ordem e da segurança da comunidade; juntas, elas transmitem a preocupação geral com o ameaçado bem-estar do Estado. Um dos momentos mais importantes da tragédia é a apresentação da peça de Hamlet pelos atores ambulantes, não só pelo seu impacto no desenrolar da ação mas, também, porque: ... é na cena dos atores que a teatralidade peculiar de Hamlet - ritual como teatro e teatro como ritual;a um tempo improvisação ligeira e ocasião solene - estâ mais claramente visfvel.26

Este ritual é uma espécie de resposta aos dois primeiros: se a ordem e o bem-estar do Estado se alicerçam ou na ignorância ou na ocultação do crime, a representação pública do mesmo já é, por si só, um ato de agressão, atingindo em cheio o representante do Estado: o rei. Ao se retirar- interrompendo de uma vez por todas o ritual que já havia sido interrompido pelo próprio Hamlet na sua excitação em observar a reação de Cláudio - o rei dissipa as dúvidas de Hamlet: seu tio era o assassino e o fantasma, o espírito de seu pai. Uma vez revelados o crime de Cláudio e a conu pção do regime e, conseqüentemente, a doença da Dinamarca - os rituais que se seguem à apresentação da peça-dentro-da-peça têm qualidades e funções diferentes das dos que os precedem. Os rituais dos atos IV e V são claramente apresentados cano sinistros. O funeral de Ofélia, além de ser incompleto - devido às dúvidas de que a sua morte teria sido, na verdade, um suicídio - é também interrompido pela chegada inesperada de Hamlet, que agride Laertes, atiçando o ódio deste. Na segunda reunião da corte, o duelo entre Hamlet e Laertes é, aparentemente, um ritual mas, na verdade não passa de um assassinato premeditado. Hamlet é a prova maior de como Shakespeare recorre a cenas ritualísticas para enriquecer sua ação dramática: a sucessão de rituais na peça vai, gradativamente, revelando a verdadeira e dolorosa realidade do reino da Dinamarca até o seu desfecho. 26 Ibid. p.ll7.

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A análise da função do ritual em Hamlet realizada por Fergusson contribui, como já foi enunciado, para a elucidação do mistério hamletiano. A maioria dos críticos, fascinada pela figura carismática e complexa do protagonista, nele concentra as suas atenções, lendo a peça à luz da problemática do herói. Fergusson ajuda a corrigir este desequilíbrio através de sua leitura da ação ritualística, pois ela ilumina fatos obscurecidos pela obsessão crítica pelo personagem principal. Ele nos alerta para um fato freqüentemente esquecido: de que o protagonista e a sua canunidade estão indivisivelmente relacionados. Em outras palavras, Hamlet, além de homem, é, também, príncipe da Dinamarca. Para ·concluir, é importante enfatizar que o teatro de Shakespeare, por causa de suas origens antiqüíssimas e da jmportância do papel que ocupava na sociedade da época, possibilita a existência de muitas dimensões no seu drama, inclusive a ~ensão ritual!stica. O público elizabetano, por estar historicamente capacitado a usufruir de tal dimensão também a possibilitava. O público moderno, por motivos já expostos, sente dificuldades em apreciar o aspecto ritualístico do drama shakespeariano. A solução é preparar-nos para tal conscientemente: alertando-nos para a observação de cenas ritualísticas e tomando-nos leitores e/ou espectadores atentos, poderemos resgatar - mesmo que não inteiramente - um dos elementos mais enriquecedores do teatro shakespeariano: o ritual.

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O MITO NO TEATRO ALEMÃO CONTEMPORÂNEO: FILOCTETES, DE HEINER MÜLLER WILLI BOLLE*

Heiner Müller · tomou-se conhecido no Brasil, recentemente, pelas encenações de suas peças Quarteto (montada por Gerald Thomas, em 1986, no Rio de Janeiro) e Hamletmachine (dirigida por Márcio Aurélio, em 1987, em São Paulo) e pela edição de Quatro textos para teatro (além dos dois já referidos, as peças Mauser e A missão), organizada por Fernando Peixoto. 1 Nascido em 1929 em Eppendorf (Saxônia), Heiner Müller vive e trabalha na Repóblica Democrática Alemã. Desde meados dos anos 50, é colaborador da Associação dos Escritores da RDA, tendo trabalhado, de 1970 a 76, como dramaturgo no Berl.iner Ensemble. Sua obra se caracteriza por uma intensa reflexão sobre a peça didática - o Lehrstueck, na tradição de Brecht -, o realismo socialista e o socialismo real. Vários elementos dessa tripla experiência - teatral, estética e política - foram incorporados por Heiner Müller em suas peças e, por outro lado, houve um distanciamento. Incorporação, na medida em que, desde seus primeiros textos -comoDer Lohndruecker (1956), Traktor (1955-61), Der Bau (1963-64) -,10 aut
de Bochum/RFA e Livre-Docente em Literatura Alemã pela USP. Ensaísta. 1MÜLLER;' Heiner. Quatro textos paro teatro. Apres. F. Peixoto. São Paulo, Hucitec, . 1987. 2MÜLLER, ! Heiner. Philoktet. ln: MAUSER, H.M. & ROTBUCH·VERLAG. Berlim, 1978. p.7-42. Em janeiro de 1987 foi realizada uma tradução da peça por Márcio Aurélio e Willi Bolle; é dessa tradução que são tiradas as citações da peça. Porém, como a tradução é inédita, as referências remetem à página do original alemão.

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o uso generalizado da violência como um meio para os fins do Estado", esclarece Walter Benjamin no ensaio Crítica da violência - crítica do poder, que denuncia as instituições jurídicas do Estado moderno como repousando sobre arcaicas estruturas míticas de violência. 3 Decifrar o mito - isto é: arrancar de seu potencial de violência as energias vitais no sentido de uma emancipação- é um trabalho a ser realizado por cada cultura. Assim, os trágicos gregos, como mostraram Benjamin 4 e Vemant, 5 desenvolveram a consciência da dimensão do direito e da justiça na pólis. Sófocles, em Filoctetes. mostra a recusa do personagem-título - repwsentante da Poesia e do desejo de paz - diante dos apelos e da persuasão de Odisseu de partir para a guerra. Tragédia de final feliz, cujo conflito se resolve graças à intervenção de um deus ex maquina: Héracles, que assume, em nome de Zeus, a responsabilidade pela derradeira ação guerreira de Filoctetes. 6 Quanto a Neoptólemo, que veio com Odisseu para enredar Filoctetes, houve uma evolução no sentido de uma recusa do valor instrumental do ser humano e uma "solidariedade humana com o enfermo". 7 Heiner Müller retoma a peça para lhe dar uma orientação diferente e rever, um a um, os papéis dos personagens. Antes de analisar a construção dos personagens, é bom relembrar a fábula da peça, que é idêntica em Sófocles e Heiner Müller, exceto o desfecho: no decimo ano da guerra de Tróia, Odisseu e· Neoptólemo, filho de Aquiles, desembarcam na llha de Lemnos para persuadir Filoctetes a segui-los até Tróia, a fim de ajudar, com seus homens e sua arma um arco com flechas mortais que ele recebera das mãos de Héracles -pois s(f asSim sena possível tomar a cidade. Nesse empreendimento, o conflito está implícito: Filoctetes nutre um ódio mortal contra Odisseu, o qual, dez anos atrás, o abandonou na ilha deserta, porque o arqueiro, mordido por uma serpente e com o pé gangrenado, se tornara inútil para a empresa guerreira. O conflito se desdobra em outro: Neoptólemo também odeia Odisseu, porque este ficou com as armas e o espólio do .pai, que, de direito, seriam seus. Apenas acompanha Odisseu porque tem um compromisso próprio com a causa guerreira dos gregos, em que pesa o ilustre exemplo do pai. Os conflitos dos personagens são mostrados diante do pano de fundo mítico da onipotência do Estado, engajado na causa da guerra. Na peça de Heiner Müller, cada um dos personagens representa um tipo de discurso. 3BENJAMIN, Walter. Documentos de cultura - documentos de barMrie. Sei. e apres. W, Bolle. São Paulo, Cultri.x/EDUSP, 1986. p.164. 4BENJAMIN, Walter. Origem do dmma barroco alemão, Trad., apres. e notas Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo, Brasiliense, 1984, 138-41. Svf:RNANT, Jea&Pierre & VIDAL-NAQUET, Pierre. Mythe et tragldie en Grece ancienne. Paris, Maspero, 1973. 6sóFOCLES. Filoctetes/Philoctete. ln: Thl/itre de Soplwcle. Trad. Robert Pignarre. Paris, Garnier, 1947. v.2. p.76o163, 7~ essa a interpretação de WILSON, Edmundo. Filoctetes: a chaga e o arco. ln: - · Raizes diz criação Uterdria. Trad. Edilson A. Cunha. Rio de Janeiro, Lidador, 1965. p.215-32.

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ODISSEU OU O DISCURSO DA PERSUASÃO Odisseu representa o discurso da persuasão, inteiramente dedicado à causa da guerra. Longe de ela representar para ele algum ideal - pois Odisseu preferiria viver em paz, como Neoptólemo, como Ffioctetes -, ela se impôs em sua vida como dever, destino, força mítica à qual é impossível escapar. Em vão, Odisseu tentou se subtrair da compulsão de ir para a guerra. Na disputa inicial com Neoptólemo, conta-lhe seu drama pessoal: Nesse negócio você não é o primeiro A fazer aquilo que não quer.... A mim mesmo os príncipes me aprisionaram Em sua guerra: quando me fazia de louco Espalhando sal nas !eiras, alrâs do arado Chamando os bois na canga meus generais E fi~indo desconhecer pessoas conhecidas Eles arrancaram dos seios de minha mulher Meu filho e jogaram diante do arado Mal consegui frear a parelha... Assim, provada minha sanidade Me foi imposstvel escapar ao dever. (p.13)

Eis a experiência de vida de Odisseu: mesmo ao mais astuto dos cidadãos foi impossível escapar à onipoténcia do Estado; ele teve de se curvar diante da compulsão e da violência. Daí em diante, porá seus dons de persuasão a serviço dessa causa, já que - dentro do círculo vicioso de uma razão instrumental que não questiona seus valores - não há outra saída para a paz senão dedic~se. com todas as energias disponíveis, à guerra. Diferentemente do desiludido Odisseu, o jovem Neoptólemo vê sua razão de estar na gueaa nos valores de "heroísmo" e "glória", representados na idealização coletiva pela figura de Aquiles. Em nome desses ideais, Neoptólemo quer humilhar Odisseu, o qual se apropriou indevidamente das armas de Aquiles: NEOPTÓLEMO: Seu joelho estA acostumado a beijar o pó Meu pai te viu assim e viu os generais Diante dele com pernas assim diminuldas Quando sua lo1J8a ira sustou a guerra de vocês Porque ap6s sua primeira batalha vocês se adornaram Com sua vitória diminuindo-lhe a glória. (p.14)

A essa invectiva, Odisseu responde friamente mostrando ao jovem que o que mantém os homens na guerra não são retóricos ideais, mas substanciais interesses econômicos: Mais o vexava a partilha do esp61io E mais inteligente era seu pai que seu filho Ele sabia muito bem que nós, o olhar no pó ContAvamos as pedras, e ele seria morto para ncSs Se se entregasse l ira, e seu ferro ao orvalho. ~ por sua vida que estou de joelhos. (p.14)

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Longe de se sentirem inferiores a Aquiles, Odisseu e os demais generais "representam" diante do herói a comédia do heroísmo. Porque cada guerra precisa de heróis, e o próprio Aquiles, com os demais chefes, "representa" seu papel diante do povo. Súplica e ira são máscaras, enquanto os homens mentalmente "contam as pedras", como se contam segundos, para fazer passar o tempo, ou como se faz um balanço das perdas e dos lucros de uma guerra. Quanto vale uma vida humana? Para Odisseu esta pergunta se resolve em tennos de um cálculo político-econômico, como mostra a Neopt6lemo: A minha lança tem poder de mil lanças Pelo acaso do nascimento, como tambêm a sua E mil lanças nós ganhamos Ou perdemos, se você me faltar. Eis por que te arrastei até Tróia. (p.lO)

Aqui a imagem de Odisseu já aparece sob uma outra 6tica: ele, que diz que foi para a guerra porque não lhe restava outra saída, na verdade se fez uma razão de estar ali- a guerra como negócio-, e, com essa motivação, é perfeitamente coerente que represente o sistema de compulsão e violência. Ele percorre as linhas atrás da frente de batalha em busca de soldados, vale dizer: de mão-de-obra para a empresa da guerra. Quem não quiser participar da matança será morto. A rede desse discurso persuasivo é tecida com perfeição, ali se encontram argumentos aos quais, em princípio, não se oporia nenhum homem de valor. Contra a ameaça de Filoctetes, o qual, tendo recuperado seu arco, tenta matá-lo, o astucioso Odisseu, para ganhar tempo, apela para a solidariedade do seu rival com a causa de seu povo: Três mil você abate, matando a mim, um só Três mil mortos e Tróia fica intacta, a cidade E se ela fica intacta, nossas cidades estão perdidas. (p.36)

Quando esse apelo não functona e Filoctetes insiste em querer matá-lo, Odisseu mostra a coragem de estar disposto a morrer e faz o "belo gesto" de tentar aplacar com sua morte o ódio de Filoctetes, o qual, assim, pouparia a vida de Neopt6lemo: Existe ainda uma outra safda de sua desgraça. Se não for para nossa vitória, será para a vitória de vocês Passando por meu cadáver siga-o /Filoct a Neopt/ a Tróia Ele não tem parte em sua antiga desgraça E a contragosto na nova desgraça, no logro. Lá, inventem-me uma morte de mentira, que mantenha Meus homens na guerra e um tillnulo inencontrivel, seja Um peixe que me devorou, de inveja de meu discurso Seja, por haver cuspido na igua, um deus marinho. (p.37)

Um apelo que funciona. Prontamente, Neopt6lemo- sempre vacilando sem saber qual partido tomar entre os dois guerreiros experientes - coloca-se diante de Odisseu, protegendo-o com seu corpo: Entreguei o arco. Agora serei teu escudo. (p.38)

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Nobres impulsos e valores de apelo, com os quais o dramaturgo privilegia o personagem Odisseu diante dos outros dois, construindo uma imagem forte junto ao espectador, que tem dificuldades de não se deixar enredar na admiração pela arte persuasiva do personagem. Como se isso não bastasse, no final da peça, outra prova da habilidade de Odisseu, o qual, com o brilho de sua fala, ofusca os antagonistas. Contra Neoptólemo, que agora ameaça matá-lo, Odisseu emprega uma dupla astúcia: a ação preventiva - ele carrega o cadáver de Filoctetes, que lhe protege as costas - e um discurso sarcástico com o qual ele, o desarmado, desarma seu adversário: ODISSEU (volta-se, o cadâver nas costas); Te empresto minhas costas mortas. Atira, faça-nos mais críveis, a mentira precisa disso. E saiba: se o troiano me matar também a mim8 Eu não posso te servir de testemunha E pouca fé se dâ a um s6 e nenhuma a você Em nossa causa, três mil homens sabem De 111a boca e da minha o seu 6dio Contra mim, que carrega as armas de seu pai ê contra você mesmo que você arma seu arco E contra você mesmo salta a flecha Com o peso das pearas que te abaterA Pesadas nas mãos de nossos homens. Um bom escudo ê a pele de touro emprestada Um melhor ainda o cadâver na nuca, todo de ferro me veste seu 6dio. (volta-se de novo) (p. 41-2)

Desmoralizado, Neoptólemo guarda a flecha. Venceu a persuasão de Odisseu, o qual, na visão uin tanto idealizada de Heiner M_ü.Iler, representa um arauto e policial da guell'll que não suja as próprias mãos de sangue.

FILOCTETES - DO DISCURSO POÉTICO AO DISCURSO FÚNEBRE Com sua aparição inicial e sua primeira fala - um hino à energia vital da linguagem - o Filoctetes de Heiner Müller quase confirma o papel que ele teve na peça de Sófocles: a figura que representa a voz da Poesia. A semelhança, no entanto, é apenas aparente, porque o ódio que Filoctetes nutre contra os gregos que o abandonaram na ilha, está subjacente à sua primeira fala e, no decorrer da peça, se tomará o tom dominante. Desde o início, a natureza dessa poesia vai se desenhando com sons sombrios. Abandonado numa ilha solitária, fechado dentro de um tempo circular, sempre igual, Filoctetes, que há dez anos não pronuncia uma palavra, saiu do tempo histórico da comunidade humana e, 'convivendo, a contraBTrata-se de um estratagema de Odisseu: contar aos gregos que Filoctetes foi morto por troianos, quando defendeu lealmente a causa de sua pâtria.

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gosto e sujeito a privações terríveis, com o tempo mítico dos animais, está a um passo da loucura: Bem-vindo na loucura, filho de Aquiles. -diga-me do meu tempo Quanto tempo durou a guerra pela cidade de PrtamoPois eu parti com a primeira frota E fui vencido antes da primeira batalha Nenhuma ãrvore aqui me ajudou a contar os anos O sol percorre o circulo sempre igual A lua, em mudança sempre iguàl, b seu Sob o caminho dos astros màis longtnquos Imóveis ao olhar, sobre a estrada negra. Depois de mil, cansei de contar O nascer e o morrer. Diga-me, por quanto tempo Eu tenho sido na minha guerra meu próprio inimigo. (p.18)

O discurso poético é um discurso melancólico, desiludido, penneado de violência- ódio, desejo de vingança-, que vai se tornando discurso fúnebre: Meu terror: meu inimigo não tem rosto. Pudesse eu olhar em meus próprios olhos Cravar o vento com flechas contra o sol, Ele, que me mancha com vagas o mar, o espelho. Nos olhos dos abutres eu me veria, pode ser Mas só os tornaria para mim bastante próximos A flecha que cega o olhar deles e ao mesmo tempo o meu. Eu não veria meu rosto senão na hora da morte E não por um tempo maior que um piscar de olhos. (p.19)

Um discurso fúnebre que encontra seu prazer em retratar a morte em detrimento da vida. Ao contrário do discurso persuasivo de Odisseu, que aposta no brilho demolidor de uma lucidez que desmascara, em qualqueisentímenlo, o núcleo interesseiro, a fala de Filoctetes aposta na função emotiva da linguagem, apelando para a compaixão, uma identificação barroca com o desengano, o prazer de uma morte consciente que resgata uma vida inótil. De bom grado por esse piscar de olhos eu morreria De bom grado, para me ver longamente, na minha longa morte Eu seria então o dltimo a me ter visto Antes de desaparecer na fome de meus hóspedes. O resto, ossada comum Nas intempéries vai ficando leve, pó. Tão leve que o vento espalha e resta nada. (p.19)

Na maioria de suas falas, o personagem se entrega ao prazer de autodestruição; assim, por exemplo, quando Filoctetes, envolvido pelas mentiras de Neopt6lemo, acaba entregando-lhe seu arco. Impotente, Filoctetes entrega-se à lamentação e ao discurso fúnebre. A morte é sua ónica razão de viver, a morte sua e a dos demais homens. Quando Neopt6lemo volta com Odisseu, que exorta Filoctetes a segui-los para a guerra, insistindo na urgência _: 136

Cada instante, perdido aqui, nos mata Na long(nqua batalha um homem. (p.30) -,

Filoctetes descarrega seu ódio implacável contra os gregos. Ódio sem limites, que se transfonna em desejo de vingança contra seu povo inteiro. Sarcasticamente responde Filoctetes: Apressarei a marcha, até que o dltimo grego Sobre um monte de cadâveres gregos, amontoado Abatendo o dltimo troiano sobre um monte de cadiveres troianos E só os mortos sob a batalha A se baterem, apodrecendo, por um lugar para apodrecer. O momento custa pouco, preço um grego. O que ê um grego? Um momento caro. Guarde o arco, para mim uma arma melhor ~ o tempo. Não movo uma mão e Morre um grego. E de novo morre um grego E não movi uma mão. Tempo, assassino, sem idade Durante dez anos amaldiçoei seu percurso, que Me poupou nenhum passo e a cada passo Me curvou mais profundamente sobre a pedra e agora não sei Como louvar seu decurso... (p.3ü-l)

Impassível, prático, Odisseu pede a Neoptóletno uma corda. Ameaçado de ser arrastado dali à força, impotente, a fala de Filoctetes é o ódio encarnado: discurso fúnebre em que alternam a ameaça de suicídio com a maldição de seus inimigos: F: Vocês agarram o vazio, se eu avançar Amarram o ar com sua corda, e eu sigo livre Despencado da pedra de cima li pedra de baixo. Pelo próprio peso segundo a própria vontade E a cada impacto menos dtil a vocês Nesse percurso onde nenhum ser vivo me alcança. Com suas unhas vocês podem desgrudar da rocha Minha carne cem vezes rasgada, com cordas Podem amarrar em suas velas minha carcaça Cem vezes quebrada, e aos pês de seus senhores Colocar a minha podridão, dtil Para manter afastada a carne deles e a sua Uma hora a mais da goela dos cães troianos Lâ, transformado em cão, esperarei Vocês, cães. Quando em sua carne fincarem Os dentes os cães troianos, sou eu Ao fjncar o dente em sua carne, eu, Filoctetes De Meios, que lhes escapou em Lemnos Para dentro da goela dos cães, precursor de vocês, cães. (p.31)

No momento em que Filoctetes recupera sua anna (Neoptólemo devolveu-lhe o arco), a intenção de Filoctetes - que fustigou a báibara disposição dos gregos para a guerra - não é outra, senão usar a anna para matar. Uma perspectiva de matança que o personagem expressa com indisfarçado prazer:

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FILOCTETES /a Neopt6lemo e OdiRseu, que lutam de espadas; O. quer golpear N. por ter devolvido o~ arcoi: Parem. (a Neopt6lemo): Jogue o ferro. Eu o quero inteiro. (a Odisseu): Você pode cortâ-lo Em pedaços, não tenho nenhum 6dio Por ele... Jogue também o teu ferro • ••• Sua morte é meu trabalho E esse eu quero inteiro. Fôssemos imortais Para que eu pudesse te matar agora e sempre. (p.35)

Completamente embrutecido pelos longos anos de abandono, solidão, privações, Filoctetes - possuído pelo ódio -abjura as cidades, ou seja, a comunidade dos homens. Heiner Müller · mostra em que estado mental a guerra deixa os sobreviventes: · F: Nada sei de cidades, tem alguma aqui? E o que elas significam para mim. Também não acredito nelas Ediflcios de palavras e morada de sonhos · Armadilha preparada por olhos cegos No ar vazio, planta de cabeças podres Onde a mentira copula com a mentira Elas não existem-

No momento em que quer disparar a arma contra Odisseu, querendo fazer da morte do outro um espetáculo para seu próprio regozijo, Filoctetes é morto, de costas, por Neoptólemo. NEOPTÓLEMO OU A INICIAÇÃO NA MENTIRA E NA MATANÇA Representante da juventude, prestes a ser iniciado na cultura dos adultos, Neoptólemo tem de optar entre as alternativas que lhe são apresentadas pelos dois veteranos de gueiTa. O fato de ser filho do ilustre Aquiles predispõe esse jovem - a seus próprios olhos e aos do póblico - a realizar ações exemplares e memoráveis, a ser um modelo de virtude. De fato, suas primeiras falas são uma declaração de intenções elevadas, que se chocam contra uma realidade que espera dele sua autonegação: NEOPTÓLEMO: Estou aqui para ajudar, não para mentir. ODISSEU: Mas precisamos aqui de um ajudante que minta. (p.9)

Uma vez em ação, isto é, confrontado com Filoctetes, Neoptólemo declara: Me foi duro encouraçar meu coração Deixo a frente de batalha...

A primeira frase revela seu estado emotivo real - a segunda já é uma mentira. Filoctetes acredita em suas falas e o segue, confiando que vai 138

levá-lo de volta à sua terra, para que possa doravante gozar de uma vida em paz. Depois de ele ter entregue o arco a Neoptólemo, este começa a proferir um discwso estranho. Desanna o outro, porém lamenta agir assim; continua manifestando boas intenções, mas de fato sujeita o outro e se sujeita, como Odisseu, a um mítico dever: NEOPTÓLEMO (pega o arco): Ah, se eu não tivesse visto Letimos, nem Tróia. Ah, se eu não tivesse dado nenhum passo Eu gostaria que houvesse uma outra satda da guerra Um outro caminho atê a glória para você e para mim Do que este que sigo agora nas malhas da imlmia Atê a praia, para anunciar a vitória da mentira Ao meu inimigo e ao teu, voltando depois com ele Te amarrando e te arrastando para o barco Eu mesmo com a nuca presa dentro do dever Enquanto sua nuca se retesa contra ele Eu preferia levar sua flecha dentro do meu peito Do que seu arco cm minhas mãos. (Sai com o arco). (p.23 e 27)

O peiSonagem diz uma coisa nobre, bem intencionada, e pratica outra, infame. É o franco cinismo: De mau grado recuso-te o arco De mau grado empresto minha mão a ele /Odisseu/ para te amarrar Mas não hâ outro caminho para te libertar.

Quando menos se espera, esse jovem tem um impulso desinteressado. Por um momento, parece que o mundo pode mudar. O gesto evoca o humanismo de Sófocles, a possibilidade de paz: NEOPTÓLEMO: Quero te devolver o arco. Siga-nos para Tróia ou viva em Lemnos Segundo sua vontade, mas tome de volta O que te tomei, usando a sua fraqueza Para que sua sorte futura não macule minhas mãos Como sua sorte passada a ele. (p.33)

Mas a opção dramática de Heiner Müller é diferente. Longe de suscitar em Filoctetes um sentimento fraternal de paz, o gesto de confiança de Neoptólemo apenas reanima Filoctetes a satisfazer sua sede de vingança. De posse do arco, ameaça matar a Neoptólemo e, sobretudo, a Odisseu. No momento da luta de vida e morte, Neoptólemo tem que optar e mata Filoctetes: NEOPTÓLEMO: Eu sinto horror do meu trabalho. (Toma sua espada, fincando-a nas costas de Filoctetes). (p.39)

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Odisseu, que foi salvo, agradece com um comentário sarcástico: Você aprendeu rapidamente a lição. (p.39)

Pouco depois, Neoptólemo já quer matar de novo: Se antes não precisâvamos dele /Filoctetesl, agora não precisamos de você. O melhor de mim eu pisei seguindo seu modelo. Mentiroso, ladrão, assassino pela sua escola. Vi o troiano e vi como ele matava Doia.9 /Prepara-se para atirar em Odisseul. (p.41)

Astucioso, Odisseu apara o golpe com sua fala e ação, desviando as energias destrutivas de Neoptólemo para onde ele quer. Completando a iniciação desse jovem na mentira e na matança - e com isso, a peça termina seu mentor indica-lhe, sarcasticamente, o caminho do futuro: ODISSEU: Vai na frente. Diante de Tróia te contarei a mentira Com a qual você pudesse ter lavado suas mãos Se tivesse derramado meu sque aqui e egora. Mais râpido, para que sua ira não se dissipe. Em Tróia .sua mesa estâ posta, mais rápido. (p.42)

MITO E HISTÓRIA NA VISÃO DE HEINER MÜLLER Com essa caracterização dos personagens delineia-se a visão de história de Heiner Müller. O dramaturgo põe em cena situações de "compulsão objetiva", determinadas pelos interesses do Estado, situações nas quais o indivíduo é subjugado. A ação compulsiva atinge a todos os tipos de indivíduos. Odisseu, que tentou em vão esquivar-se do serviço da guerra, doravante põe toda sua astúcia a serviço de uma retórica de aliciamento. (Aliás, pode se perguntar a posteriori se a história em que ele aparece como vítima da guerra não foi por ele inventada, como mais uma peça de persuasão.) Filoctetes - seu principal antagonista - pela ação, pela fala e pela construção puramente emotiva - tem seu justo sentimento de revolta contra a guerra, pervertido pelo ódio que gera o desejo de vingança e de matar. Assim, os dois caminhos tão divergentes, a sofisticada razão instrumental de Odisseu e a radical volta de Filoctetes ao estado natural, acabam levando à mesma encruzilhada: a razão-de-viver dos homens é uma eterna guerra fratricida. Ali se dá o ritual de iniciação do jovem para 9ct. notas.

l~itual de iniciação bem diverso da efebia. VIDAL-NAQUET, Pierre. Le Philoctete de Sophocle et I'éphêbie. ln: VERNANTMDAL-NAQUET. Op. cit. p.l59-84. 140

a sociedade dos adultos: o verniz superficial de um humanismo verboso ao QUal correspondem ações infames. 10 Rapidamente o jovem assimila a lição. Na visão de Heiner Müller; a história, inclusive a mais recente, é profundamente mítica. isto é, determinada por um grau de violência que mostra quão pouco o humanismo se conhece a si mesmo. O pessimismo dramatúrgico de Müller lembra as considerações de Walter Benjamin nas Teses sobre a filosofia da história: "O espanto de que as coisas que nós prese_nciamos, em pleno século XX, AINDA sejam possíveis, não é um espanto filosófico•• •11 O humanismo bárbaro do século XX é a matéria-prima do projeto dramatúrgico de Heiner Müller. A construção de suas cenas e de seus personagens levantam a pergunta inquietante se a dimensão de humanismo ainda existe. 12

11 BENJAMIN, w. Sobre o conceito da história. ln: __ • Obras escolhidas. Trad. Sergio Paulo Rouanet. Slo Paulo, Brasiliense, 1985. p.226. 12 Para uma interpretação das peças de Heiner Müller em relação com seu contexto de produção, WIEGHAUS, Georg. Heiner Müller. ·Munique, Beck, 1981.

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ASPECTOS DO MITO NO TEATRO BRASILEIRO LUIZ PAULO VASCONCELLOS*

É numa ocasião como esta, em que se é convidado a dissertar sobre detenninado assunto, que se é obrigado a sistematizar aquele conhecimento que, pelas mais variadas circunstâncias, foi-se acumulando de fonna mais ou menos confusa, de maneira mais ou menos nebulosa, de modo mais ou menos impreciso. Assim se deu comigo, agora, com relação ao tema deste Seminário. Saber o que é mito, afinal, todo mundo sabe, ou pensa que sabe, mas aplicar este conhecimento de fonna mais ou menos organizada, é outra história. Por isso, devo um agradecimento aos organizadores do Seminário que, ao formularem o convite para que eu introduzisse o tema do teatro brasileiro no contexto da Atualidade do Mito, me possibilitaram um mergulho, tão profundo quanto a disponibilidade do tempo permitiu, nos conceitos em tomo do mito, e na relação deste com o teatro brasileiro. O primeiro diagn6stico que fiz da presença do mito no teatro e no drama ocorridos no Brasil foi aparentemente muito alentador: a primeira manifestação teatral verificada em terras brasileiras foi toda ela povoada de elementos míticos, símbolos e alegorias, protagonizada por heróis e semideuses, todos pertencentes a uma mitologia definida e específica. Refiro-me ao teatro catequético levado a efeito no Brasil pelo Pe. José de Anchieta em meados do século XVI, orientado a partir da mitologia cristã e identificado com a ideologia dessa mesma fé. Esta constatação, contudo, não me estimulou a prosseguir a investigação nesse sentido. Por um lado, se o teatro de Anchieta mostrava-se pleno de personagens heróicos e míticos, o que me permitiria descorrer sobre anjos, demônios, santos e mártires, e sobre a fúnção dessas figuras numa estética de conformação medieval, o uso feito pelo autor de toda essa imagística não possuía caráter mítico ou mitificador, mas sim, místico ou mistificador. Tratava-se, pois, do mito, ou da mitologia, servindo como instrumento de doutrinação, instrumento político, portanto, embora sob a aparência de atividade espiritual. Assim, se do ponto de vista estético vamos encontrar em Anchieta um escritor ultrapassado, adepto de velhas fónnulas medievais, num tempo em que a maior parte da Europa postulava uma vanguarda baseada na inviolabilidade das três unidades, na verossimilhança e no decoro, do ponto de vista ideológico encontramos o intelectual consciente do papel do teatro no processo de colonização que se tomava rotina na Europa renascentista. Falar do teatro de Anchieta, aqui, seria, pois, falar de uma manifestação portuguesa, a serviço de interesses portugueses, sem qualquer traço de uniáo cu1tural entre espetáculo e espectador, a não *Luiz Paulo Vasconcellos. Professor de Arte Dramática na UFRGS. Mestre pela Universi· dade Estadual de Nova Iorque/EVA. Ator, diretor teatral e pesquisador.

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ser, talvez, o sabor exótico que tal manifestação deve ter tido para o índio brasileiro. Seguindo, então, na direção apontada . ela seqüência cronológica, e avançando de um s6 fôlego por três séculos, destacamos três fatos isolados entre si, mas que, no contexto das relações mi to-teatro, podem mostrar-se de alguma maneira esclarecedores: primeiro, o vazio teatral que caracterizou os séculos XVII e xvm, no Brasil; depois, o ressurgimento da atividade dramatárgica no século XIX; e, finalmente, o advenm do moderno teatro brasileiro, no início dos anos 40. O primeiro fato mencionado - o vazio de dois séculos - assinala, fundamentalmente, a ausência de identificação do habitante do país com a própria terra. Como disse anteriormente, ao me referir à distância entre as aspirações do teatro feito por Anchieta e as aspirações dos espectadores desse mesmo teatro, o habitante do Brasil do século XVII, fosse ele português, índio ou mesmo brasileiro, não possuía ainda relação cultural de destaque com a terra. Não havendo vínculo cultural, não havia o que celebrar, o que imitar, para usar a expressão consagrada por Aristóteles. Afinal, por que "imitar" o que era estrangeiro ao habitante da terra que, por sua vez, era também estrangeiro? Afora isso, o habitante do Brasil estava ainda por demais envolvido com as questões de sobrevivência, ameaçado que estava pelas sucessivas invasões de holandeses, ingleses, franceses, e por quem mais estivesse interessado nas riquezas da terra. Dessa forma, no meio de guerras invasoras e defensoras, não prevalecia um clima, digamos, construtivo, para a criação literária e al!fstica em geral. No século XIX, porém, o panorama era outro. A Colônia passara a sede do Reino. A fixação dos limites com as possessões espanholas, a Guerra do Paraguai, a expulsão dos jesuítas, a Inconfidência Mineira, entre outros acontecimentos de posse e defesa da terra, que tiveram lugar de meados para fins do século xvm, já haviam começado a forjar os primeiros laços afetivos do brasileiro com o Brasil, fazendo surgir as primeiras manifestações de expressão de uma vontade própria, que se consolidaria nos períodos pré e pós-Independência. Mesmo vestindo roupas emprestadas, mesmo tendo o mais importante de sua história decidido do outro lado do oceano, o brasileiro começava a ter um rosto, a desenhar um comportamento, a esculpir uma atitude cívica e política. O brasileiro, enfim, reconhecia-se na imagem de outro brasileiro, e já podia, pois, repartir ansiedades e esperanças comuns. A fixação desses novos usos e costumes foi o primeiro passo. Essa fixação se deu no teatro brasileiro da mesma forma como havia se dado no teatro romano e, mesmo, no último período da Idade Média, ou seja, através do cômico, sob a forma da comédia, particularmente da comédia de costumes, que é o gênero dramático, como o próprio nome indica, que fixa os costumes, que reflete os modos de vida. A forma usada é a da sátira mais ou menos ingênua, que atribui os males da sociedade ao mau funcionamento das instituições, numa linguagem em que predominam o humor espirituoso e o ridículo. Aliás, a comédia de costumes, ou o teatro 143

de costumes, sedimeotou o filão mais rico de nossa tradição dramática. A prova disso é que ligados a alguma forma de narrativa de fixação de costumes, estão os melhores autores dramáticos brasileiros num período de mais de cem anos, de meados do século XIX a meados do século XX: Martins Pena, o primeiro e, indiscutivelmente, o mais eficiente; Joaquim Manuel de Macedo, Machado de Assis, França J unior, Arthur Azevedo, Coelho Neto, João do Rio, Gastão Tojeiro, Oswald de Andrade, entre muitos outros. A comédia de costumes, porém, bem como o Naturalismo emergente do final do século XIX, foram formas narrativas essencialmente fac-similares, ou seja, reJrQdutoras de uma realidade objetiva circundante. A gênese desse Oltimõ movimento, 1oc1usive, associada que estava à emergência da classe média, abordava preferentemente uma problemática vinculada a questões sociais da época, o que, vale dizer, constituía terreno pouco fértil, inóspito, mesmo, para o florescimento de uma expressão tão emocional e simbólica quanto o mito. Foi preciso esperar, portanto, pela explosão instintiva de um movimento como o Expressionismo para que no Brasil ocorresse o encontro do teatro com o mito. Este encontro ocorreu na década de 40, especificamente em 1943. Os principais responsáveis foram Zibgoiew Ziembinski, um jovem diretor polonês, e Nélson Rodrigues, um jovem jornalista brasileiro. A primeira obra -criada, Vestido de noiva. Estava inaugurado o moderno teatro brasileiro e, com ele, a incorporação do mito ao fabulário dramático nacional. Uma das características essenciais do movimento expressionista foi não pretender imitar a realidade objetiva, mas, sim, enfatizar a subjetividade dos eventos, geralmente através da ótica de uma figura central. Assim, ao assegurar que a realidade aparente não representava a verdade como ela era conhecida pela mente consciente, o Expressionismo assegurava que a verdade era algo subjetivo. A não fixação da realidade objetiva constituía, de certa forma, a negação dessa mesma realidade. A partir desse dado, a narrativa expressionista concentrava-se na eliminação de tudo o que pudesse ser circunstancial, sobretudo o histórico e o psicológico, a fim de que, descamado de características imediatas, pudesse ser ressaltado o essencial do objeto da narrativa. O teatro de Nélson Rodrigues é fundamentalmente um teatro de essências. Mesmo nas peças em que a cor local dada pelos costumes, hábitos e personagens que habitam a periferia do Rio de Janeiro se mostra elemento de importância do enredo, como no caso de O boca de ouro ou de A falecida, em que elementos como o jogo-do-bicho ou o futebol adquirem relevo no decorrer da ação, mesmo nessas peças, Nélson Rodrigues jamais deixou de abordar temas essenciais que refletissem - como numa espécie de expressão de um inconsciente coletivo, para usar o termo forjado por Jung - as ansiedades mais profundas da sociedade. Em outras palavras, mesmo quando ligado a um fato tão circunstancial quanto um episódio da cl6nica policial, Nélson Rodrigues jamais deixou de observar as raízes mais profundas do seu subconsciente e, por extensão, de exprimir os problemas e situações essenciais do homem. Entre os temas que, com mais freqüêocia, aparecem nas suas peças, estão o amor, a culpa, a crueldade, a humilhação e a morte. 144

Se os temas variaram numa certa medida, um único peuonagem central permaneceu fiel ao longo de toda a obra rodriguiana: a família. A família, para Nélson Rodrigues, constitui um núcleo mediador do indivíduo, um núcleo de atração e repulsão, para onde convergem todas as neuroses dos seus membros, e de onde são projetadas as principais energias que originam, por sua vez, as mais profundas emoções que essas mesmas pessoas são passíveis de sentir. A idéia da família, aliás, em Nélson Rodrigues, é o primeiro elemento nitidamente mitizado que aparece, ou seja, é o p-\meiro elemento transfonnado em mito, gntças à magnitude que lhe é conferida no contexto das forças que movem a ação. Como disse anteriormente, nos textos de Nélson Rodrigues não há preocupação de reprodução, de imitação realista do mundo objetivo, embora uma das caractensticas do autor seja o extremo cuidaó da linguagem, digamos, "dialetal'',_ usada por seus personagens. Mas, apesar da linguagem, o univeuo rodriguiano permanece não-realista por excelência. Assim, a famfiia rodriguiana toma-se habitante de um espaço intemporal que faz dela algo único, distante, isolado das coisas deste mundo, embora, ao mesmo tempo, no plano emocional, expressão dessas mesmas coisas. É. nesse exato sentido que a idéia da famfiia na obra de Nélson Rodrigues adquire o status de elemento arquetípico, ou seja, que não se situa historicamente, mas que sobrevive num espaço e tempo "míticos", tomando-se, por isso, projeção simbólica de emoções antigas e fundamentais. Quanto à questão da ambivalência mencionada, ou seja, do elemento dramático permanecer histórico e a-histórico ao mesmo tempo, fiquemos com a palavra de Anato! Rosenfeld, que diz que "os fenômenos históricos são para o mito apenas máscaras através das quais transparecem os padrões eternos. Sua visão temporal é circular, não há desenvolvimento. O mito salienta a identidade essencial do homem em todos os tempos e lugares" (O mito e o herói no moderno teatro brasileiro, p.26). Nesta altura, creio que vale a pena mencionar a verdade que é conhecida de todos, de que os temas, por mais novos que sejam, são insuncientes para sustentar qualquer revolução literária autêntica. O que serve de fundamento a uma modificação estética é a forma, a linguagem, e neste sentido Nélson Rodrigues foi também um artista impecável. A respeito da linguagem propriamente dita, fiquemos com o que Sábato Magaldi disse acerca do uso da palavra na obra de Nélson Rodrigues: "ele restringiu a expressão cênica a uma absoluta economia de meios, conseguindo de cada vocábulo uma ressonância admirável. Tem-se a impressão, sob a aparente pobreza literária do diálogo rodrigufano, que as palavras só poderiam ser as que se encontram ali, como uma cadeia de notas exatas, as únicas capazes de obter o maior rendimento rltmico e auditivo" (Panorama do teatro brasi· leiro, p.203). Em matéria de elogio à linguagem de uma peça ou autor, creio que não é preciso dizer mais nada. Em termos de linguagem cênica, Nélson Rodrigues se mantém coerente com os passos dados em relação à temática, ou seja, rompimento com a realidade objetiva, materialista. Nélson Rodrigues, em Vestido de noiva, rompe pela primeira vez no palco brasileiro com a linearidade do tempo 145

e do espaço, situando a ação da peça em ~s planos simultâneos - a realidade, a memória e a alucinação. A ação, assim, transcone entre o que aconteceu realmente - o acidente com Alaíde e a mesa de operação, onde a protagonista se encontra no momento -.o que ela, acidentada, delirante, sob o efeito da anestesia,lembm ter acontecido, e o que imagina possa ter acontecido; e, após sua morte, o caminhar da ação em direção a um futuro que envolve o casamento do vióvo com sua innã, esta, por sua vez, presa a culpas que trazem a visão de Alaíde constantemente a uma nova realidade delirante. A cena final da peça, com as duas innãs vestidas de noiva e a superposição da marcha fi1nebre e da marcha nupcial, constitui, em si, uma das visões cénicas mais poeticamente iluminadas pela presença do mito, de toda a dramaturgia universal. A partir de Nélson Rodrigues, outros autores, dmmaturgosi e diretore_s têm perseguido, de uma forma ou de outra, a questão do mito no teatro. Assim, poderiam ser citados, no plano nacional, os nomes de Dias Gomes, José Vicente, Ariano Suassuna, Jorge Andrade, bem como, no plano regional, Ivo Bender, cujo teatro tem mergulhado na iuacionalidade dos comportamentos familiares do colono alemão, retomando, de certa forma, os temas rodriguianos do amor, da família e da morte. Na área da criação cénica, citaria, ainda, os nomes de Augusto Boal, Antunes Filho, José Celso Martinez Conea, Amir Haddad, Marialena Ansaldi, entre muitos outros, como diretores comprometidos com a busca de uma linguagem cénica - independente da linguagem literária, é oportuno frisar- em que tanto a função mítica como a forma mítica, o herói mítico ou o ritual ocupem espaços significativos. Eu havia intitulado esta comunicação Apontamentos para um estudo critico a respeito da presença (ou da não-presença) do mito no teatro brasileiro. Depois, achei o título muito longo, pomposo demais, pedante mesmo, pam tão pouco material. Mas não culpemos o teatro nacional por essa pucimônia. As pressões têm sido muitas, tanto no plano político quanto no plano estético, exercidas, por um lado, pelo não controle de uma economia e, por conseguinte, de uma cultura; e, por outro, pelo gosto (ou pela necessidade) de reproduzir o mundo de uma maneim objetiva, fac-similar. Tudo isso afasta o homem e o teatro da perspectiva do mito, da perspectiva do inconsciente, da perspectiva do ritual. Nós, bmsileiros, ainda estamos tentando construir os alicerces sobre os quais ergueremos nossa própria história e, mesmo tentando, somos algo céticos a respeito do resultado a alcançar. O mito 6 estranho ao ceticismo. O mito exige fé, maciça e inabalável.

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Bill LIOGRAFIA CACCIAGLIA, Mario. Pequena história do teatro bra.rlkiro. Sio Paulo, EDUSP, 1986. HESSEL, Lothar & RAEDERS, George. O teatro jGU/tico no 81'0811. Porto Alegre, Ed. da Universidade/UFRGS, 1972. - - • O teatro no Brasil, do coMnla à reglncia. Porto Alegre, Ed. da Universidade/UFRGS, 1974. MAGALDI, Slbato. Panorama do teatro brasileiro. Rio de Janeiro, MEC/SNT, 1962. PRADO, D6cio de Almeida. Apresentação do teatt'o bra.rlkiro moderno. Sio Paulo, Martins Ed., 1956. ROCHA, Everardo P.G. O que I mito. São Paulo, Brasiliense, 1986. ROSENFELD, AnatoL O mito e o heroi no 1110lkmo teatro bra.rlkiro. Slo Paulo, Perspectiva, 1982. SOUZA, J. Galante de. Teatro no 81'0811. Rio de Janeiro, MEC/INL, 1960. 2v.

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DOISOW 8 OIIMI

O MITO DE ORFEU NA MÚSICA BRUNO KIEFER*

"Orfeu é uma das raras figuras míticas gregas que a Europa. fosse ela cristã. iluminista. romlntica ou modema, não quis esquecer," Mircea Eliade 1

PREÂMBULO Cumpre realçar, inicialmente, que, no milenar mito órfico, a música

é elemento essencial e não apenas acessório. Orfeu é um citaredo. Dele é insepamvel a fórminx, palavra grega que às vezes designa a cítara, às vezes sua irmã, a lira, esta mais primitiva e de som mais delicado do que aquela. Formalmente são muito semelhantes. A música, no mito em questão, não é mero agente de diversão; não se destina a facilitar o tmbalho ffsico, nem tampouco serve para preencher o vazio auditivo. A música aqui é um poder, uma arte capaz de influenciar, modificando comportamentos, homens, deuses, animais ferozes, e mesmo de subjugar os seres todos. Ésquilo, no século V a.C., refere-se a Orfeu, em Agamêmnon, pondo na boca de Egisto, initado com o Corifeu que o acusa: Mais lágrimas farão brotar tuas palavras! A voz de Orfeu não era em nada igual li tua: enquanto ele subjugava os seres todos com o encanto de uma fala irresistivel, a tua vociferação te perder4.2

Não há dóvida, existe a poesia subjacente ao canto. Suas possibilidades de nomear, de estabelecer um discurso mcional, escapam à mósica. Mas esta, como expressão mais pum e direta das nossas emoções, possui a capacidade de intensificar em grau superlativo as emoções veiculadas ou apenas sugeridas pela poesia, acrescentando a esta dimensões insuspeitas. "Onde termina a poesia, começa a mósica", diziam os românticos. E tem mais: a mósica, de acordo com o mito - e aí poderíamos também incluir estudos modernos - tem o poder de agir sobre os iiracionais, incluídas as plantas. •Bruno Kfefer. Professor de História da Música e Música Brasileira na UFRGS. Compositor, musicólogo e ensaísta. (Publicaçlo póstuma.) lELIADE, Mircea. Hi.rt6rla das crt!IIÇa.J e das idllas religio.ras. Trad. do original francas por Roberto Corte de Lacerda, publ. em 1978 por Ed. Payot. Paris, p.216, tomo II, v.1. 2,ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1983. 2asQUILO. Agamlmnon. Trad. do grego por Mlrio da Gama Kury, versos 190MO, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1964.

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Mais do que qualquer outra arte, a música tem a possibilidade de nos cativar de tal fonna, de integrar-se de tal modo no âmago de nosso ser, que nos sentimos compelidos a ouvir e reouvir determinadas obras ao lon~ de nossa vida. Otto Maria Caroeaux diria que a música é uma arte reiterativa. E os gregos acrescentariam que a boa música equilibra o nosso ser. Para eles: "Quem está penetrado pela ordem dos sons reconhece o sentido do estado, do cosmo e do mundo dos deuses". 3 Aliás, não é só o mito orfico que, na mitologia grega, narra o poder da mósica. Há outros exemplos. Vejamos um deles: Anfião, irmão gêmeo de Zeto, filho de Zeus, apenas dedilhando a lira, enquanto ambos estavam construindo a muralha protetora de Tebas, conseguiu este milagre: "as pedras moviam-se ao som dos acordes, e iam se colocar no lugar que lhes cabia, amJmando-se sozinhas sobre as largas muralhas. Sete portas, em honra das sete cordas da lira de Anfião, foram abertas no muro". 4 Para finalizar este preâmbulo, lembremo-nos de que a mósica, à diferença de todas as demais artes, está presente em todos os momentos importantes de nossa vida. Não há festa sem música; os ritos religiosos se empobrecem sem ela, e nada melhor do que a mósica para estabelecer a união emociooal de multidões. O MITO DE ORFEU NA GRÉCIA ANTIGA A rigor, deveríamos falar em mitos. Há numerosos. E há também contradições e lacunas nos relativamente poucos documentos acessíveis. E tem mais. Segundo Eliade: A anAlise das fontes permite-nos disti~uir dois grupos de realidades religiosas: 1) os mitos e as tradições fabulosas relacionadas com Orfeu; 2) as idéias, crenças e costumes vistos como 6rficos.5

Estas últimas, que constituem o Orfismo, relacionadas a Orfeu xamã e fundador de iniciações, ou seja, de revelações de ordem cósmica e teosófica, estão fora das nossas cogitações. De resto, ignora-se o essencial da doutrina, apesar de sua importância ao longo de vários séculos. A história de Orfeu e do Orfismo perde-se na vaguidão e multiplicidade das lendas e DI! escassez de documentos. Há uma lenda segundo a qual Orfeu teria VÍvido e morrido na Trácia, antes de Homero (cerca de 800 a.C.). P<X" outro lado, a iconografia apresenta-o sempre em trajes gregos. Há uma versão segundo a qual teria sido filho de Apolo e da ninfa Cal!ope. Teria tido existência real?

3RENNER, Hans. Guchichte der MUJik. Stuttgart. Deutsche Verlags-Anstalt, 1965. p.30. 4GUIMARÃES, Ruth. DlcioMrto dtl mitologia grega. Slo Paulo, Cultrix. 1983. p.44. 5ELIAOO, Mircea. Op. cit. p.199.

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Orfeu é mencionado, pela primeira vez, na Grécia do século VI LC. Datam do século V as primeiras referências à descida de Ormu aos lf'femos, o sombrio reino de Hades, impiedoso deus dos mortos, a fim de resgatar, movido pelo amor, sua esposa Eurldice. Desses dados, no entanto, n&> se pode inferir que o mito em foco tenha se originado na época do aparecimento de documentos. Seu nascimento, certamente, é muito anterior à sua fixação em documentos escritos ou iconográi~eos. Considerando os documentos e seu conteódo, Eliade afinna: Tudo isto bastaria para situar o cantor lendlrio •antes de Homero•, como alegava a tradição e como repetia a propaganda 6rfica.

E mais adiante: ~ igualmente significativo que, entre as raras descidas aos Inferngs atestadas

na tradição grega, a descida de Orfeu se tenha tornado a mais popular.

Fonte importante de infonnações é também a iconogmfia relativa a Orfeu, sobretudo a partir do século V a.C. Aparece aí tocando a fórminx, cen:ado de pássaros e animais selvagens. O mito apresenta variantes quanto ao sucesso de Orfeu na sua intenção de resgatar Eurldice do reino de Plutão (o "Rico", eufemismo com o qual os gregos designavam o terrível Hades). 7 Uma delas diz que não teve êxito porque, contmriando ordem de Plutão, olhou para ela antes de ultrapassar as fronteims do reino das sombras. Uma outra versão dá como frustrado seu intento em virtude da oposição das forças infernais. Platão, em Banquete, depois de dizer: "Eros inspira coragem a seus adeptos e os toma semelhantes aos que por natureza são bravíssimos," e também depois de tecer elogios a Alceste, que se prontificara a moll'Cr em lugar de seu marido por amor, condena Orfeu. Vejamos: Os deuses sancion11n o esforço e a coragem nascidos do amor! Mas os deuses não fizeram isso com Orfeu, filho de ~agro. Nada lhe concederam, isto 6, apenas permitiram que vislumbrasse uma sombra de mulher a quem ele fora buscar, e isto porque, como não passasse de um simples tocador de cttara sem coragem, nio soubera morrer por amor ao seu amor, como Alceste, quando procurou meio de penetrar vivo nas regiões do Hades. Os deuses, irados, castigaram-no pela sua covardia e fizeram com que ele fosse morto por mulheresr8

Também quanto à morte de Orfeu há mais de uma versão. Para uma das lendas, Orfeu encontm-se no Hades ao lado de outras divindades. Para outta, Dioniso, irritado com a veneração de Apolo por parte de Orfeu, teria mandado as Mênades, as Possessas, suas seguidoras, para estraçalhar o cantor e espalhar seus membros. Sua cabeça, atirada ao Hébron, teria flutuado cantando até chegar à ilha de Lesbos, onde teria sido recolhido por mãos piedosas, passando a servir de oráculo.

6Ibid. p.201. 7GUIMARÃES, Ruth. Op. cit. p.163. SPLATÂO. O banquete. Trad. de Jorge Paleikat. 4.ed. Porto Alegre, Globo, 1960.

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REINTERPRETAÇÃO DO MITO DE ORFEU NA MÚSICA PÓS-RENASCENTISTA Como já referimos, o mito de Orfeu está vivo até hoje. Vejamos apenas alguns exemplos do campo da mósica pós-renascentista. Os pontos culminantes da reinterpretação musical do mito de Orfeu, durante o período em foco, são, sem dóvida, o Orfeo de Cláudio Monteverdi (1567-1643), ópem que mais adiante merecerá considerações mais demomdas, e Orfeo ed Euridice, famosa ópera, com a qual Christoph WiDibald Gluck (1714-1787) realiza importante reforma no campo da ópera. Deixando de lado, por instantes, essas duas obras máximas que têm por tema o mito de Orfeu, convém registmr que, desde 1600, o tema é tmtado em numerosas obras até o século XX. Seria cansativo apresentar aqui uma lista exaustiva de tais obras. Limitar-nos-emos a alguns exemplos significativos. O ano de 1600 assiste à encenação de duas óperas intituladas Eurfdice, na Itália. A primeim delas, de Jacopo Peri, composta logo após a fundação do género ópem pelo mesmo autor, possui um valor documental muito grande, pois constitui a primeim ópera da qual se conhece a partitum completa. A segunda, de Giulio Caccini, foi escrita, por uma questão de rivalidade, em resposta à primeim, no mesmo ano. Daí em diante os títulos se multiplicariam: ao lado de Orfeo dolente, su~ge La morte ãOrjeo, ainda no Barroco. Na segunda metade do século passado, Jacques Of:fenbach, alemão radicado em Paris, o grande caricaturista da ópem séria, lança, em 1858, sua conhecida opereta Orfeu nos infernos. Na mesma época, Franz Uszt compõe seu poema sinfônico Orfeo (1854). No século XX, Igor Stmvinsky escreve a mósica pam um balé intitulado Orfeo, em tlés atos, no ano de 1947. Ernst Krenek compõe, em 1923, sua ópem Orfeo e Euridice.Quase concomitantemente,.Darius Milhaud compõe, na França, a ópem Les malheurs ãOrphée (1924). Estaria fom da nossa tarefa arrolar os Orfeus suigidos na poesia e no cinema durante o século XX. Uma coisa é certa: a cultum européia não consegue esquecer o mito de Orfeu. Deve haver razões muito fortes pam isso. O exame mais detalhado das duas obras antes referidas, o Orfeo de Monteverdi e o de Gluck, projetarão alguma luz sobre o problema. O ORFEU DE CLÁUDIO MONTEVERDI O início do período barroco é marcado, entre outros fatos, pelo nascimento de um gênero musical novoc a ópera. Foi em Florença que o compositor Perl fez nascer o gênero, com Dafne. A estréia deu-se em Florença, provavelmente no ano de 1597. As prlmeims produções, deste e de outros compositores, careciam, no entmto, de qualidades estéticas suficientemente marcantes para garantir a cootimidade histórica do novo gênero. O mérito de ter criado a primeim ópera genial e, com isso, ter assegumdo a permanência do gênero até os nossos dias, coube ao compositor cremoneose Cláudio Monteverdi. Fm 1607, dá-se a estréia dessa ópera, L'Orfeo, 153

a primeira do compositor, na Accademia degl'Invaghiti, em Mântua. Trata-se de uma Favola in musica, confonne se pode ler na capa da primeim impressão. O libreto é devido a Alessandro Striggio. Sua estrutura compreende um prólogo e cinco a tos. O elenco é constituído, além dos personagens que fonnam o mito, por pMtores, espíritos, mensageira e personagens alegóricos como La Música e Speranza. A raiz teatm! dessa ópera é o drama pastoral, ou favola pastora/e, renovada, pouco tempo antes, por Torquato Tasso. Tudo indica que libretista e compositor, servindo na mesma corte de MAntua, tenham elabomdo em conjunto o texto. O tratamento teatral do mito é bastante livre. A apresentação do mesmo sob a fonna de favola pastora/e, os personagens alegóricos, os espíritos, pam citar apenas alguns exemplos, são sintomas disto. Ainda veremos outros. O prólogo está a cargo do personagem A Música. Esta tece o elogio da arte dos sons: Eu sou a Mdsica que, com doces acentos, Sei tranqüilizar todo coração aflito E ili11111ar as mentes mais geladas Ora para a ira nobre, ora para o amor.9

E diz a que veio: pam natrar a história de Orfeu, que, com seu canto, acalmou as feras e, mesmo, subjugou, com seus rogos, as forças dos Infernos. No primeiro ato, pastores e ninfas cantam a boa nova: nesse dia a bela e orgulhosa Eurídice atendeu os rogos do citaredo, entregando-lhe seu coração. Intervém Orfeu, um semideus pam os pastores, extmvasando sua inf'mita felicidade. Também Eurídice demonstra seus sentimentos. Convém observar a íntima vinculação entre o amor e a natureza, esta, co-participante dos movimentos emocionais dos amantes. No segundo ato, o clima emocional muda bruscamente. A Mensageim, companheira de Eurídice, traz a triste notícia de que a sua ama motreu, mordida por uma serpente. Lamentam-se os pastores, desespera-se Orfeu. Mas acaba reagindo com decisão: Nlio! Se meu canto tem algum poder Irei até os mais profundos abismos Para subjugar o coraçlio do senhor das trevas Trazendo-te de volta ll luz das estrelas.

O terceiro ato mostm Orfeu chegando ao sombrio mundo de Plutão (Hades), ao "reino tenebroso, jamais atingido por um mio de sol". O personagem A Esperança, que acompanham o citaredo, anuncia a vinda do implacável barqueiro Caronte, cuja tarefa é conduzir "as almas nuas" pam o outro lado do Aqueronte, o rio sombrio de águas pesad• e lodosas, pam o reino de Plutão. A Esperança declam que não poderá acompanhar mais Orfeu, pois 1mplacáveis são as palavms: "Lasciate ogni speranza voi ch'entmte". Ouve-se aqui um eco da Divina Comédia. ~ibreto que acompanha a gravação, dirigida por Nikolaus Harnoncourt, realizada em Viena, em 1968 (Telefunken). Tradução livre pelo autor deste trabalho,

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Caronte quer impedir o avanço de Ormu. "Nenhum vivo pode momr com os mortos", proclama, com voz dura. E Orieu, por acaso, tem a pretensão de expulsar Cérbero, o terrível cão que guarda a entrada dos Infernos? Orfeu retruca que, na veniade, não está vivo. Desde que moiTeU sua esposa, ele não tem mais coração. E sem coração ninguém pode estar vivo. Diante da implacabilidade de Caronte, no entanto, Orfeu decide reagir, recorrendo à única arma que possui: sua lira dourada. Consegue adormecer Caronte e constata: "E minha lira, se não consegue despertar compaixão no coração endurecido, pelo menos faz com que o sono se tome irresistível aos olhos". Animado de novas esperanças, atmvessa o Aqueronte. No quarto ato, Proserpina, esposa de Plutão, tocada pelos sons suaves do canto de Orfeu, implora a seu marido que dê permissão ao citaredo para levar Eurídice de volta à luz das estrelas. Plutão acaba consentindo, contmriando férreo destino. Mas impõe uma condição: enquanto não sair de seu reino, Orfeu não poderá voltar-se para olhar Eurldice, sob pena de perdê-la eternamente. Intervém o coro dos espíritos e canta: "Piedade e amor vencemm hoje nos Infernos". Orfeu, ao conduzir Eurídice, canta o elogio da música: Que honra te cabe, Minha lira onipotente: No reino dos Infernos Venceste os corações petrificados.

Repentinamente, porém, Orfeu é assaltado por cruel dóvida: Eurldice o estaria seguindo? E mais, quem me oculta a luz de seus olhos? Não resistindo mais, canta: O que Plutão proíbe, ordena Cupido. A um deus mais poderoso, Que conquista homens e deuses, Devo obedecer.

Ao se vimr para olhar Eurídice, assusta-se com a escuridão na qual desaparecem as luzes de seus olhos. É o castigo pela desobediência. Eurldice ainda consegue exclamar: "Então perdeste-me por excesso de amor". Enquanto isto, Orfeu sente-se· arrastado por forças poderosas para fora do reino de Plutão. E o coro dos espíritos canta: Orfeu venceu os Infernos e foi vencido Por sua paixão. Gl6ria eterna s6 merece aquele Que se vence a si me1111o.

No quinto ato, Orfeu encontm-se nos campos da Trácia, no mesmo lugar em que recebeu a triste notícia da morte de Eurldice. Lamenta seu destino e toma a decisão: jamais as flechas de Cupido atravessarão seu coração, inflamando nele o amor por outra mulher. 155

Aparece Apolo e repreende o desespero de Orfeu (tratado pelo deus como filho). Este procura se justificar, mas acaba cedendo aos argumentos cantando: "Ordene e eu obedecerei". Apolo pergunta se Orfeu não sabia que aqui na Terra todas as alegrias são efémeras e' propõe: Por isso, se almejas vida eterna Sobe comigo ao c6u que te convida.

E os dois, cantando: Lá, a verdadeira virrude Tem seu digno prêmio: alegria e paz.

A ópera termina com um comentário do coro dos pastores, cuja essência é esta: Quem semeou com dores Colhe o fruto da graça plena.

Parece-nos que o fascínio exercido pelo mito de Orfeu sobre os dois autores se desvela através dos motivos que seguem. 1. Desde o prólogo, até o fim, o texto, intensificado pela música, insiste em descrever o poder da música, arte capaz de tranqüilizar corações aflitos, apaziguar 111imais ferozes, inflamar mentes petrificadas, quer para a ira quer para o amor, adoimecer personagens sinistras ou despertar compaixão em corações empedernidos. A exaltação, neste sentido, vai até a qualificação do instrumento de Orfeu como lila onipotente. 2. Um outro aspecto essencial é a exaltação do amor, do amor de um homem por uma mulher. O milenar tema é levado a um extremo: Orfeu decide penetrar no reino de Plutão, em busca de sua amada, a despeito do destino implacável, a despeito das feras que guardam as portas dos Infernos. Enfrenta o próprio deus dos mortos. 3. O insucesso de Orfeu é devido ao seu excesso de paixão. Não resistiu e olhou para trás, contrariando ordem expressa de Plutão. O texto ainda vai além na interpretação. Explica o insucesso: esse teria sido motivado pelo excesso de paixão, pela falta de domínio da razão sobre os impulsos. E o velho ditado: "Victor qui se vincit", insinuado pelo coro dos espíritos. O final da lenda foi modificado pelos autores. O dilaceramento de Orfeu pelas Mênades, as Possessas, seguidoras de Dioniso, foi contornado, pois, como escreve o regente Hamoncourt: "Um final tão antibarroco não podia ser satisfatório naquele tempo". 10 Daí a solução exposta há pouco. ORFEO ED EURIDICE DE GLUCK

Esta ópera, que se mantém nos palcos até boje, tem libreto do italiàno Raniero de Calzabigi e música de Christoph Willibald Gluck, nascido na lOHARNONCOUR T, Nikolaus. Uma lntroduç/Jo a fOTj'eo de Cl4udio Monteverdi. Encarte do disco.

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Alemanha. A primeira versão, com texto em italiano, teve sua estréia em Viena, no ano de 1762. É a primeira das óperas com que Gluck reformou a Seria italiana, vítima, de longa data, de um convencionalismo ll toda prova e da repetição monótona de alguns estereótipos emocionais. A despeito de alguns restos de elementos banocos, a obra pertence, pela época de estréia e pelo estilo, ao período rococó-clássico, correspondente ao Neoclassícismo em artes plásticas. Ao contrário da ópera homônima de M
Além de Orfeu, aparece, como segundo personagem, Amor (Cupido), o deus do amor, trazendo a boa nova: Amor te socorre! Orfeu, J4piter teve piedade De tua pena.

E o que diz depois situa a reinterpretação do mito numa perspectiva muito diferente da de Monteverdi e Striggio: Ele te permite atravessar As lentas ondas de Lete! Jl estás no caminho para o abismo tenebroso. Se, com teu canto, conseguires aplacar as F6rias, Os moostros e a morte cruel, Tua cara Eurfdice retomará À luz do dia contigo.

Observemos as diferenças. Em primeiro lugar, não é mais Perséfone, esposa de Plutão, que, comovida, consegue amolecer o coração do deus 157

dos Infernos, mas sim Júpiter (Zeus), o deus supremo. E é Júpiter que, pela boca de Amor, impõe as duas condições: Eurtdice permanece proibida ao teu olhar, enquanto não tiveres passado o rio Estige. E tu deves calar que estás seguindo uma ordem. (Estige, um dos quatro rios dos Infernos.)

Em segundo lugar, aparece aqui também o rio Lete, no qual os mortos bebiam para esquecer as coisas deste mundo. Em terceiro lugar, Eurídice encontra-se nos Campos Elísios, que "era a morada feliz dos bem-aventurados. Para lá iam as almas virtuosas. Reinava nessa regtão uma eterna primavera. Gozavam as almas afortunadas do mais completo repouso, viviam em perene mocidade, sem sobressaltos e sem dor. Deitavam-se sobre leitos de flores ou reclinavam-se em macia relva. Os heróis iam em alma, mas também em corpo, para os Campos Elísios, onde ouviam sem cessar cantarem os poetas os seus altos feitos". 11 Para chegar a este 1ugar, Orfeu teria de enfrentar as Erlnias (Eumênides, Fúrias) sanguinárias e os uivos raivosos de Cérbero. O segundo afo aese~ la-se às margens do rio Cocito, afluente do Aqueronte. Orfeu, cercado pelas Fúrias, clama por misericórdia, mas o coro responde com um "não" tenebroso, famoso na história da ópera. O canto doloroso de Orfeu, no entanto, acalma por fim as Fúrias. Abrem-se as portas e a estrada que conduzirá aos Campos Elísios está livre para Orfeu. Ele põe-se a caminho. O coro dos heróis e heroínas canta: Venha ao reino do repouso, Herói sublime, esposo sem par, Raro exemplo em todas as êpocas! Amor te dá Eurfdice; Ela acordará e viverá A flor de sua beleza. 12

Orfeu, por fim, caminha, esforçando-se para não olhar para ela. l''- terceiro e último ato, desencadeia-se o conflito entre Orfeu e Eurídice, durante a sua caminhada rumo ao mundo dos vivos, em função das condições impostas por Júpiter. Eurídice, imp!k:iente, insistente e desconfiada, quer que Orfeu olhe para ela, que a abrace amorosamente; não entende a conduta do citaredo. Orfeu, que cada vez menos consegue juntar forças para resistir, luta desesperadamente para cumprir os mandamentos de Júpiter. Em dado momento, porém, fraqueja. Olha para Eundice, mas só para vê-la morrer novamente. Desesperado, chora sua imensa dor e tenta matar-se. No último instante, porém, aparece Amor com a boa notícia de que Orfeu terá de volta Eurldice, pois "já o suficiente sofreu Orfeu para a glória de Amor!" A ópera tennina com um balê gracioso e louvores ao deus Amor. São visíveis as diferenças entre as reinterpretações do mito por MontelloUIMARÃES, Ruth. Op. cit. p.95. 12Libreto impresso no encarte da gravaçlo completa de Or~o ed Euridice, sob a regência de Karl Richter, editada pela Deutsche Grammophon Gesellschaft, em 1969.

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verdi/Striggio e Gluck/Calzabigi. Examinemos, inicialmente, o pnnCiplls motivos do mito em Gluck, para depois estabelecer a compamção. 1. O motivo principal da reinterpretação do mito na ópera de Gluck é, sem dóvida, o amor de O~eu por Eurídice, tão intenso que encoraja o citaredo a enftentar as Fthias dos Infernos para reav8-la. 2. O poder da mósica é expresso aqui com menos &úase, 6 mais pressuposto, embc:ra possa se tomar bem pronunciado como nestas palavras: "se, com teu canto, conseguires aplacar as Fórlas". De resto, a mósica dos coros, dos solistas e orquestra tmduzem bem a' capacidade da mósica de comover. 3. Os acontecimentos no mundo 1dos mortos são descritos, de modo bastante livre. Orfeu recebera dois mandamentos: a) o de não olhar para Eurídice enquanto caminhassem nos Campos Elísios; b) o de não poder revelar nada a respeito do porquê de sua conduta. 4. Orfeu acaba sucumbindo diante da insistência e desconfiança de Eurídice e não pela falta de controle de sua paixão. 5. A segunda morte de Eurldice não é definitiva. O amor vence tudo; Eurídice volta ao mundo dos vivos para ser feliz. O confronto com a ópera de Monteverdi faz ressaltar aspectos comuns e outros diferentes. Sem dóvida, comuns são estes dois motivos da reinterpretação do mito: a) a intensidade e profundidade do amor de um homem por uma mulher, mais forte que o férreo destino e que as Fórlas dos Infernos. b) o poder da mósica, mais implícito ou menos, pouco importa, de transformar homens, animais ferozes e os próprios deuses dos Infernos; c) comum a ambas as reinterpretações é o final feliz; difurentes são as condições em que se dá. Em Monteverdi, Orfuu perde definitivamente Eurídice, mas acaba subindo ao céu pela mão de Apolo. Em Gluck, o deus Amor vence o destino e Orfuu alcança o fim almejado: trazer Eurldice de volta à terra. Pelo que apuramos, nenhum dos dois finais tem respaldo na tradição grega. Trata-se de acomodações ao gosto de cada época. Afinal, tmta-se de um mito. Düerentes são as motivações que fazem sucumbir Orfeu ao reconduzir Eurídice. Em Monteverdi/Strlggio é a paixão incontrolada de Orfeu que motiva a perda definitiva da mulher amada; em Gluck/Calzabigi é a insistência de Eundice em obter demonstmções de amor, bem como sua desconfiança em relação a Orfeu, que provoca o malogro do empreendimento. Deixando de lado aspectos e detalhes não essenciais, parece-nos que são estes os motivos principais da retomada do mito de Orfeu. Notemos que amor e música desde sempre se encontram intimamente vinculados; o amor sem m-úsica é impensáveL E como moldura desta vinculação nunca falta. a natureza. Notemos também que, tendo em vista ser a ópera um gênero híbrido, oscilando entre o predomínio da música e o da poesia, com soluções mais ou menos felizes ao longo de sua história, o mito de Orfeu é o assunto dos assuntos para uma ópem. A mósica é-lhe essencial; há ação e festeja-se o que é eterno no ser humano: o amor. 1

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MITO COMO SILÊNCIO E SOM: PREMISSA DE UMA ESTÉTICA MUSICAL QUE TENDE A SUPERAR O DUALISMO H. J. KOELREUTTER*

Nosso século, o século XX, transformou radicalmente a imagem do mundo, evento esse ainda não assimilado por uma grande parte da humanidade. Os conceitos tradicionais de espaço e tempo, de matéria e energia, de objetos isolados, de causa e efeito perderam seu significado. Tivemos que aprender que aquilo que chamamos de nossa realidade, não é a nossa realidade. Tivemos que aprender que a nossa verdadeira realidade é um universo dinâmico e inseparável, em que o homem desempenha um papel decisivo, influenciando continuamente as propriedades desse mesmo universo e tomando-se, cada vez mais, consciente de que a verdade é inacessível ao homem. Os mitos, nesse contexto, seriam sonhos coletivos da humanidade, delineando - quem sabe - uma nova realidade mais adequada ao gênero humano, em que a individualidade se dissolve em uma unidade indiferenciada, em que o mundo dos sentidos é transcendido e a noção de coisas isoladas, de coisas materiais e aparentemente reais, é ultrapassada. Mitos são sonhos que se tomaram palavras e, freqüentemente, canto e música, som e silêncio. Pois, somente quando aquilo que não foi dito, o não-dito, tem uma co-realidade silenciosa, por assim dizer, o dito adquire aquela profundidade e autoridade que o levam à tensão da vida cotidiana. "O mito - diz Ananda Coomaraswamy -incorpora a abordagem mais próxima da verdade absoluta, capaz de ser expressa em palavras." Realizando pesquisas em tomo da origem da palavra grega mythos, da qual provêm as palavras mouth e Mund, em inglês e alemão, respectivamente, encontra-se uma raiz primária, aparentemente contraditória. O verbo do substantivo mythos é mytheomai, que significa falar, dizer, narrar. Sua raiz é mu, que significa "começar a falar em voz alta". Um outro verbo da mesma raiz é a palavra grega myein, q_ue significa fechar-se, ce~se. cerrar os lábios ou os olhos, fa;har feridas. No sânscrito, a raiz mu gera a palavra mukas, que se torna mutus em latim e mudo em português. Também as palavras gregas mystés (místico) e mystérion (mi~tério) provêm da mesma raiz e se referem à capacidade do homem de atingir o mais fundo do pensamento, sem palavras, de olhos fechados, voltados para dentro. *H. J. Koellnutta-. Professor de Estética na USP e professor de Educação Musical na UFRJ. Diplomado pelo Conservatório de Música de Genebra/Su1ça. Doutor honoris causa pela UFBA. Ensatsta.

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A raiz mu, raiz da palavra mito, então, compreende dois sentidos, aparentemente irreconciliáveis: falar e calar-se, som e silêncio. - Há outras palavras que coii1preendem significados aparentemente contraditórios, refletindo dessa maneira um nível de consciência qut. Jesconhece a oposição dos contrários. Encontra-se esse nível de consciência em quase todas as culturas originárias. Na Vulgata, a primeira tradução da Bíblia feita no século IV, ainda encontram-se palavras desse tipo. Assim, a palavm latina altus significa alto e baixo, a palav~ sacer, sagrado e pecador. Ainda hoje em hindustani, a língua oficial da India, a palavra kal significa ontem e amanhã. Em japonês e chinês, a palavra aoi, símbolo do céu azul e da vegetação verde da terra, significa azul e verde, e, ew muitos ídiomas do Orieóte, há uma s6 palavra para aprender e ensinar. Seria errôneo, no entanto, querer optar. por um só dos significados da raiz mu, geradora da palavra mito. Seu caráter contraditório é apenas aparente, poís apresenta-se contraâitóno apenas ao pensamento racionai e racionalista. Não há, de fato, contradição, mas sim, ambivalência, autêntica e característica do nível de consciência dessa fase originária de nossa cultura. Ambivalência, aliás, que se encontra em quase todas as culturas originárias, ainda existentes entre nós, ambivalência elementar, genuína e vivida. Em 1924, o :ffsico francês Louis de Broglie, comprovando que a luz é, ao mesmo tempo, onda e corpúsculo, isto é, energia e matéria, abriu o caminho à descoberta da natureza dupla das partículas do mundo microffsico e revelou uma realidade, a nossa realidade, que transcende a linguagem e o raciocínio, unificando os conceitos que, até então, se afiguravam opostos e irreconciliáveis. A descoberta de Broglie e a formulação teórica por Schrõdinger e Heisenberg derrubaram uma lei, válida não somente a partir da Renascença, mas, de fato, desde os primeiros dias do pensar ocidental, representado por Sócrates e Platão. Refiro-me à lêi do dualismo, ou seja, modo de pensar e de raciocinar que tem por base a existência de conceitos duais, interpretados como opostos e antagônicos, que se excluem mutuamente, assim como, por exemplo, bem e mal, belo e feio, matéria e espírito, alma e corpo, dia e noite, vida e morte, imanência e transcendência. Assim, também a música e as artes em geral - reflexos da imagem do mundo, válidas na época em que surgiram, ou melhor, produtos do nível de consciência predominante em nossa cultura até o século XX, basearam-se em conceitos opostos. Refiro-me à música e às artes chamadas tradicionais, aos estilos do barroco, do rococó, do classicismo e do romantismo. Ainda hoje, mais de 60 anos depois da descoberta de Broglie, a música é apreciada, analisada e estudada em tennos de dualismo, assim como maior. e menor, consonância e dissonância, tônica e dominante, tempo forte e tempo fraco, melodia e hannonia, primeiro tema e segundo tema, etc. No entanto, à medida que nos encaminhamos, cada vez mais, para a descoberta do mundo microffsico, em que as partículas são destrutíveis e indestrutíveis, em que a matéria é igualmente contínua e descontínua, e energia e matéria não passam de aspectos diferentes de um mesmo fenôme-

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no, todos esses conceitos clássicos, dualisticamente opostos, são ultrapassados. Visando chegar a uma compreensão mais adequada dessa relação entre pares de conceitos clássicos, o ffsico dinamarquês Niels Bohr introduziu a noção de complementaridade, ou seja, duas descrições complementares da mesma realidade. Essa noção de complementaridade tornou-se parte essencial da maneira pela qual cientistas e artistas pensam acerca da natureza. Niels Bohr, condecorado pelas suas grandes contribuições à ciência e à vida cultural dinamarquesa, escolheu, para seu escudo de annas, a inscrição Contraria sunt complementa (os contrários são complementares). Uma vez que critérios, conceitos e valores se acham reduzidos ao papel subjetivo de elementos da linguagem que um determinado compositor ou artista utiliza em sua obra para descrever sua realidade, estética e intelectual, naturalmente - não esqueçamos que a música é uma linguagem como qualquer outro sistema de signos - todas as obras de arte apresentam aspectos düerentes e, em última análise, representam uma realidade mítica. Pois o homem não pode desempenhar o papel de um observador objetivo e distanciado, porque se toma forçosamente envolvido em tudo que cria, mas também em tudo que aprecia... Desse modo, a obra de arte deve ser considerada como apenas aproximada e necessariamente imprecisa, tomando-se parte do mundo simbólico do mito. Acontece que o conteúdo de uma obra musical, por exemplo, nunca pode ser assimilado pela simples audição, mas, sim, somente através da plena participação co-criadora do ouvinte. Acontece que o conteúdo de uma obra musical é alcançado em um estado de consciência em que a individualidade se dissolve em uma unidade indiferenciada em que o mundo real, o mundo dos sentidos, é transcendido. Desse modo, a obra musical, assim como toda obra de arte, se toma mito. Porque, como este, não é objetiva, nem subjetiva, mas sim, onijetiva, ou seja, fenômeno que desconhece a divisão rigorosa entre as realidades subjetiva e objetiva. Mito é revelar, significar, simbolizar o real e o irreal, o dito e o não-dito, som e silêncio. É tornar audível o que a alma sente, o que a alma sente e vive. É afumação e depoimento. É negação e afumação, aceitação e recusa. Eu diria: o mito é a obra de arte mais perfeita, mais íntegra e mais completa que o homem criou. Porque transcende o dualismo e integra os opostos em um todo. Porque funde o dito e o não-dito, imanência e transcendência, som e silêncio. Tanto no mito quanto na música o que soa não é decisivo, quando não se leva em consideração o que não soa. De-cisão significa anulação da cisão, anulação daquilo que cinde, separa. Assim no mito, o dito revela e valoriza o não-dito, e o não-dito revela e valoriza o dito, e, na música, o som revela e valoriza o silêncio e o silêncio revela e valoriza o som. O dito 6 o não-dito e o não-dito 6 o dito. Som 6 silêncio, e silêncio 6 som.

O dito e o não-dito, som e silêncio como dois aspectos de um mesmo fenômeno, como premissas de uma estética transcendental, que transcende o reino dos conceitos intelectuais do racionalismo e, ao fazê-lo, conscientiza 162

a relatividade e a relação complementar de todos os opostos. Assim como bem e mal, prazer e dor, vida e morte não constituem experiências absolutas que pertencem a categorias diferentes. Em vez disso, são simplesmente dois lados de uma mesma realidade, partes extremas, polares de um único todo. Essa estética considera maior e menor, consonância e dissonância, melodia e harmonia, tempo forte e tempo fraco, etc., como dois lados de uma mesma realidade, partes de um único todo. A consciência de que todos os contrários, aparentemente opostos, são complementares e devem ser entendidos como unidade, é a idéia fundamental da nova estética. É evidente que, nesse contexto, não se entende por silêncio apenas a ausência de som. Silêncio, em uma estética transcendental da música, é índice alto de redundância, reverberação, simplicidade e austeridade, delineamento em lugar de definição, e, não por último, monotonia. Napoleão, respondendo a uma pergunta, por que se identificava com a música do compositor italiano Paisiello, cuja música era considerada naquele tempo como extremamente monótona, escreveu o seguinte: "Eu amo essa música intensamente. Ela é monótona, é verdade, mas somente o que é monótono nos comove verdadeiramente". Tudo, portanto, que causa expectativa, serenidade, tranqüilidade, reflexão intensa, concentração, equihôrio e estabilidade mental e emocional, é silêncio, no sentido da estética modema. Tudo, enfim, que não desvia a atenção do ouvinte da vivência daquilo que não soa. A estética modema abandona a distinção tradicional entre som e silêncio. Pois o som não pode ser separado do espaço, aparentemente vazio, do silêncio em que ele ocorre. Da mesma maneira como as partículas não podem ser separadas do espaço que as circunda. É o som que determina e define a estrutura do espaço do silêncio, não podendo ser considerado como entidade isolada. Porque tem de ser compreendido como condensação de um campo sonoro contínuo, presente por toda a parte. E o silêncio deve ser considerado como fundo gerador de todos os sons e suas interações mútuas. O aparecimento e desaparecimento de sons, por seu lado, deve ser compreendido como formas de movimento desse mesmo campo. A unificação dos conceitos opostos som e silêncio, na estética transcendental da música, destrói, forçosamente, a noção tradicional de signos musicais isolados. Os signos sonoros da partitura tradicional dissolvem-se em estruturas. Essas estruturas, no entanto, através da produção musical dos últimos trinta anos, dissolveram-se, cada vez mais, em estruturas de probabilidade. Não representam probabilidades de som e silêncio, mas probabilidades de interconexões. Uma análise fenomenológica de música tradicional ou modema mostra que os signos sonoros, em última análise, sempre carecem de sentido como elementos isolados, e somente podem ser entendidos como interconexões ou correlações entre vários processos de percepção e julgamento. Essa mudança dos signos sonoros da partitura para relações, sem dúvida, terá implicações de longo alcance para a estética e arte musical como um todo; pois representa uma reviravolta muito maior na sintaxe da linguagem musical 163

do que dodecafonismo e serialismo, por exemplo, que deixaram intactos os fundamentos estéticos da composição musical. Essa nova estética, naturalmente, pressupõe um novo homem, não dividido, livre do ego, que não percebe partes, mas realiza a inteireza da existência humana pelo espírito e intelecto, o diáfano anterior à origem, transluzindo o todo. Talvez tudo isso seja um mito: a unificação de conceitos que até agora se afiguravam opostos e itreconciliáveis, tomando-se uma das caracteósticas mais notáveis de uma nova realidade, que se toma consciente, através de uma nova arte musical

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MITO E MÚSICA NO ALTO-XINGU: O RITUAL 00 YAWARI* RAFAEL JO~ DE MENEZES BASTOS* •

Os índios Kamayurá- xinguanos de língua Tupi-Guarani -pensam a estrutura de seu ritual (torjp, etimologicamente, 'exclusivamente nosso modelo') como tripartidamente articulada em suite. No ponto de entmda do sistema, vem a mito-cosmologia, que desenha os pemonagens e eventos arquetrpicos. Narra-se aqui a invenção dos princípios, entendida, sempre, por esses índios, nos termos da aparição do homem num mundo que sempre existiu. Na saída, alocam a dança e as artes plumárla e da pintura corporal. Tmta-se agora de dramatizar, em espéCie, o discurso mi•o-cosmol6gico (morõneta, 'explicação') tomada a cosmese do corpo como fulcro cruciaL A mósica (maraka, 'mdsica') comparece na sufte em consideração como linguagem (oposta à ye' eng, 'l(ngua') tmnsformadora, definindo-se como o pivô da estrutum ritual, responsável pela "tradução" do vemo em corpo. O ritual do Y awari ('jaguatirlca') congrega duas tribos xinguanas, uma anfitriã (no caso, os Kamayurá) e outm convidada. Note-se que os índios Karlb da área são convidados preferenciais dos Kamayurá, que os nominam, genericamente, 'Outros' (Amõnap). O rito em análise se expressa como um gmnde "desafio", tendo como ponto culminante um jogo de dardos entre os oponentes tribais. Observe-se que, dentro do sistema social xinguano, o casamento preferido se faz sempre entre ego e sua prima cruzada bilateral. Relações de namoro seguem também esta direção básica. Assim, homens primos cruzados entre si são ou rivais (-mõy, 'sócio') quanto a uma mesma mulher ou aliados (-a'yrdyt, 'cunhado') atmvés das innãs que trocam ma1rimonialmente. de se notar que essas duas relações de alteridade se expressam, na "patologia" Kamayurá, atmvés das emoções, respectivamente, de vexgonha-cidme e de respeito. O mito do Yawari nma, arquetipicamente, a "tmição" que Mytüakang ('Cabeça de Mutum') perpetua com relação a um chefe primordial, seu primo cruzado, namorando-lhe as esposas. Isso provoca, no chefe, o cidme (raivoso), que se concretiza na agressão ao "traidor", que tem o seu cabelo queimado. Este, com vergonha, foge para os confins do mundo "civilizado", atingindo, ao final, suas mugens máximas: uma tribo de "índios brabos". Na fuga, Cabeça de Mutum e os irmãos que o acompanham na catábase vivenciam grandes perigos, metaforizados por embates com felinos (onças, gatos do mato, jaguatirlcas, etc.) e gaviões (caburés, tem-tens, etc.). No pensamento Kamayurá, estes animais t!m a essência mesma da alteridade ("ferocidade") com o estado de humanidade. Ao final da viagem, os "tmidores" chegam a uma outm aldeia, onde se passa, exatamente, a festa

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*Resumo da comunicação. **Rafael José de Menezes Bastos., Professor de Antropologia Social na UFSC. Doutor em Antropologia Social pela USP. Enaaiata, compositor, violonista e cantor.

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do Yawari. Os innãos a! ficam, aprendendo o rito com estes "selvagens". Ao final de algum tempo - necessário para a tenninação do cióme e da vergonha e, assim, para a recomposição do respeito -, os Cabeças de Mutum voltam à aldeia original, numa regressão heróica. Aí chegados, se ressocializam. A m6sica do Yawari (vocal e masculina exclusivamente) define-se como uma suite de canções com texto süábico. Este texto se compõe de expressões-chaves tiradas do mito. A suite em análise, por assim dizer, re-narra o mito, de maneira altamente compacta; a mósica das canções assumindo um papel de sujeito axiológico com relação ao objeto que é a sua letra. Há canções, assim, orjp ('alegres', etimologicamente, 'exclusivamente nosso modelo') e õcin ('tristes', literalmente, 'rejeitivas'). Na grande síntese proposta por Claude Lévi-Strauss nas Mitológicas, o mito é visto orquestralmente, no sentido de que o pensador vai buscar na m6sica a inspimção até expositiva. Tal busca sustenta-se, na perspectiva lévi-straussiana, na postulação de que a linguagem musical elabora-se nos planos tanto do sensível quanto do inteligível, a nada "enviando", no entanto, senão a ela mesma. Observe-se que esta missão significante - c<m demissão de significado -musical, segundo Lévi-Strauss, prende-se à falta congénita que esta linguagem teria de um nível correspondente ao lexical das línguas faladas. Contrariamente, pois, ao mito - cujo significado, por "bricolage", se reportaria tanto à natureza quanto à cultura e às suas interconexões -, a mósica, apesar, paradoxalmente, de poder compor a ponte sensibilidade-inteligibilidade, isto o faria de maneim paralftica e ineficaz, nela mesma congelando-se. Note-se que o modelo de Lévi-Strauss quanto à 'm6sica -se é que disto se pode falar- mereceu, desde sua mais antiga elaboração, as mais severas crl'ticas, sobretudo por parte da comunidade musicológica e, especialmente aqui, daqueles empenhados num projeto de Semântica Musical. Acrescente-se que este "modelo" se, por um lado, concede notoriedade ilustrativa à mósica, nada adianta na direção da superação do paradoxo musicológico, por outro: não obstante toda evidência empíricoetnográfica, em escala mundial, da vigência de um plano de conteódo musical, o paradoxo se estabelece na grande maioria das tentativas teórico-metodológicas e epistemológicas. Tal postura paradoxal pode ser remontada às mais remotas origens do pensamento ocidental sobre a mósica, deste constituindo-se como tendência dominante. A presente comunicação baseia-se numa pesquisa antropológica de relativa duração que intenciona, ao nível de uma teoria especial, apresentar evidência na direção da constituição de uma Semântica Musical. Para longe das posturas meramente "fonográficas" sobre a mósica, o que o exame do Yawari traz à tona é o estabelecimento dessa linguagem nos termos de uma semântica, eminentemente axiológica, e da analiticidade. Esta competência da linguagem em consideração é que lhe propiciaria a posição "pivotalmente" relevante que detém na trama ritual xinguana. Aqui, a mósica não é meramente ilustrativa do mapa mitocosmológico que a informa, nem, por outro lado, tão somente pano de fundo das corporificações que ambienta. Muito pelo contrário, ela transforma, por assim querer dizer, verbo em 166

corpo, reoo:lenando um e outro com a intencionalidade valorativa. Observe-se que a teoria daí originária, apesar de metodologicamente especial e, pois, limitada ao caso que estuda, intenciona contnlstar-se com as demais existentes, procurando, assim, também, o estatuto geral, o que, no entanto, evidentemente, dependerá de novos esforços.

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SIUD SDJinO 8 OIIW

MITO E ARTES PLÁSTICAS ARMINDO TREVISAN•

EM BUSCA DE UMA DEHNIÇÃO Ao que parece, a palavra mito procede de uma raiz indo-européia: mau ou mou; o verbo ático mythizo significa: falar, discorrer, pensar.t G.S. Kirk, numa obra clássica,z lembra, porém, que no presente caso a etimologia pouca utilidade apresenta: os mitos gregos, diz ele, significavam precisamente uma narração, ou algo que alguém expunha com grande extensão significativa: um relato, uma história, o argumento de uma obra teatm1. 3 Deixemos, pois, de lado semelhante questão; interessemo-nos, antes, pela definição de seu conteódo específico. Paul Tillich, por exemplo, propõe a seguinte: "uma manifestação da suprema preocupação do gênero humano, representada simbolicamente em personagens e atos divinos". 4 Mitos, conclui ele, "são símbolos da fé associados a lendas, os quais falam dos encontros dos deuses entre si e dos deuses com os homens" .5 Já o grande historiador de religiões, Mhcea Eliade, declara, incisivo: Pessoalmente, a definição que me parece menos impeifeita, por ser a mais ampla, é a seguinte: o mito conta uma hist6ria sagrada; relata um acontecimento que ocorreu no tempo primordial, o tempo fabuloso dos •começos". Dito de outra maneira: o mito narra como, graças b façanhas dos Seres Sobrenaturais, uma realidade veio à exist~ncia, seja a realidade global, o Cosmos, seja tão s6 um fragmento dela: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. ~. pois, um relato de criação; refer~e como algo foi produzido (.-) Os mitos, portanto, revelam a atividade criadora e desvelam a sacralidade (ou simplesmente a sobrenaturalidade) de suas obras. Descrevem, em suma, as diferentes e, às vezes, dramáticas irrupções do sagrado que fundamenta realmente o Mundo e o faz ser o que hoje ê. Mais ainda: o homem é o que é, um ser mortal, sexuado e cultural, em conseqll~ncia das intervenções dos seres sobrenaturais.6

Existem, sem dúvida, outras fonnas de abordagens. Uma delas, de ordem antropológica. Assim, para Ernst Cassirer, os mitos não passam de "projeções da vida social do homem mediante as quais a natureza se toma a imagem do mundo social", refletindo-lhe todos os "traços fundamentais, •Armindo Trevisan. Professor de Hist6ria da Arte e Estética na UFRGS (aposentado). Doutor em Filosofia pela Universidade de Fribourg/Sufça. Poeta e ensaista. 1GRASSI, Ernesto. Ane como antiarte. São Paulo, Duas Cidades, 1975, p.12.o4. 2 El mito. Su significado y juncimes en las distintas culturas. Barcelona, Barrai, 1973. 3Ibid. p.22. 4Dintimica da jl. São Leopoldo, Ed. Sinodal, 1974. p.35. 51 bid. p.35. 6Mito y realidad. Madrid, Guadarrama, 1968. p.18-9. (Grifo nosso.)

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a organização e a arquitetura. as divisões e subdivisões". 7 A o que acrescenta: o verdadeiro substrato do mito não é de pensamento, mas de sentimento. 8 Citemos dois outros textos, que merecem cuidadosa ponderação, uma vez que seus autores figuram entre os melhores estudiosos do mito na atualidade: Rudolf Bultmann e Gastou Bachelard. Escreve o primeiro: (••) o mito pretende falar de uma realidade que se situa além da realidade objetivlvel, observlvel e dominlvel, de uma realidade que possui, para o homem, uma importlncia decisiva, que significa para ele a saivaçio ou a perdiçio, a graça ou a cólera, que exige respeito e obedi!ncia. 9

Bachelard, mais lírico, diz: (•• ) antes da cultura o mundo sonhou muito. Os mitos saf11n da terra, abriam a terra para que, com o olho dos seus lagos, ela olhasse o céu. (-) O homem exprimia a terra, o céu, as lguas. O homem era a palavra desse macro-anthropos, que ê o corpo monstruoso da terra. Nas fantasias cósmicas primitivas, o mundo ê corpo humano, olhar humano, sopro humano, voz humana.lO

Resumamos, pois: a) o mito relaciona-se com algo essencial ao homem, sua necessidade de tomar inteligfvel sua existência e a do universo que o circunda; b) semelhante necessidade de compreensão necessita manifestar-se, ou seja, encarna-se numa expressão não conceituai, em que as imagens se coordenam formando um todo lógico, ou antes, metalógica; c) a tiltima base do mito parece ser a convicção de que o homem é solidário de todas as coisas, ou, ao menos, solidário da vida. 11 Observa, aliás, G!JSdorf: para o primitivo não existe "personalidade". 12 Cita Renan: Em alguns povos n1o há nomes individuais, nem vaidade pessoal, nem promiscuidade, hl menos egotsmo do que entre nós (o sentimento do eu afirma-se em proporção à civilizaçlo). 13

A partir do exposto, convém assinalar duas coisas: primeiramente, a relação do mito com o rito. Este é garantia da lei mítica: o que aconteceu pode repetir-se. A função do ri to consiste, justamente, em semelhante reiteração, em tomar o "era uma vez" muitas vezes. O conhecimento do mito, portanto, é uma necessidade, já que pemrite o domínio das situações vitais. 14 · Em segmdo lugar, a cultura representa o fim dos mitos: Para o homem civilizado, a cultura é o homem acrescentado à natureza, 6 o homem que exerce um direito de reconquista sobre o universo, remodelando-o segundo a

1 Antropologia jiloa6jictl. Sio Paulo, Mestre Jou, 1972. pJ31.

sibid. p.134. 9 Foi et comprihension. Paris, Seuil, 1969. p.390. 1°Cit. por QUILLET, Pierre. ln: Introdução ao penst~~~ento de &cheiDI'd. Rio de Janeiro, Zahar, 1977. p.105. 11CASSIRER, ' E. Ibid. p.143. 12ousooRF, Georges. Mito e metqflsica. Slo Paulo, Convlvio, 1980. p.105. 13Ibid. p.101. Nota 14. 1"'ELIADE, Mircea. Op. cit. pZ/ e 29.

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sua imagem para nele melhor se instalar. Jl o homem do mito, para o qual fazer 6 sempre refazer, não conhece outra realiilac:le sc:nâo uma global em que lhe falta a iniciativa radical e em que se associam estreitamente natureza e sobrenatureza. 15

MITO E ARTES PLÁSTICAS Como, pois, relacionar o mito com as artes plásticas, à luz de tais pressupostos? Antes de mais nada, é certo que o mito mantém com elas profundas afinidades. São ambas linguagens emotivas, cuja pátria óltima é a imaginação. O problema maior não diz respeito à natureza, em si, de ambas, mas à sua evolução histórica. À medida que esta ocorre, mais se afirma o domínio do homem sobre o mundo. O homem toma-se, consoante a observação de Renan, um ser extremamente consciente de si, de seu eu. Nesse clima, podem ainda subsistir os mitos? E, sem eles, serão viáveis as artes plásticas? A rigor, a imaginação e a emoção consti toem qualidades intnnsecas ao homem. Nem a história, nem a tecnologia podem destruí-las. Marx viu isso ao escrever, embora com outra fmalidade: Pensava-se até recentemente que a formação dos mitos cristios sob o Imp6rio Romano não tinha sido posstvel senão porque a imprensa não havia sido ainda inventada. é justamente o contrArio. A imprensa cotidiana e o telEgrafo, que düundem as suas invenções num piscar de olhos em todo o universo, fabricam num dia mais mitos (e o rebanho dos burgueses os aceita e os divulga). do que antigamente num s6culo.16

Portanto, existirá sempre uma linguagem emotiva ao lado da linguagem reflexiva. Nesse sentido, podemos afirmar que os mitos, embora se modifi· quem, não desaparecerão. Quanto à questão da possibilidade de existência das artes plásticas sem eles, devemos ser cautelosos. Recobrirão os mitos toda a expressão emotiva humana? É lógico que não. A linguagem emotiva pode subsistir apenas com imagens e metáforas. À diferença do mito, que encarna a imagem num ser com um enredo definido: Apolo, Vênus, fcaro, a llha dos Amores de Camões, as imagens e metáforas contentam-se em oferecer aspectos fragmentados da realidade transfigurada. De resto, imagens e metáforas, freqüentemente, são mitos do passado que sofreram uma transformação. Na medida em que estes se espamunam, transbordando de seus leitos originais, tomam-se ineconhecíveis à primeira vista. Par isso a arte moderna está repleta de mitos subliminais, desfeitos ou travestidos. Temos, por vezes, até a impressão de que a metáfora suplantou o mito, roubando-lhe o miolo. Deixou-lhe a estória, o carácter nllll'lltivo. Obviamente, é hora de nos perguntarmos se a metMora não passa de um mito in nuce que, para se desbobinar, necessita da emoção e da imaginação do contemplador/leitor. No caso específico das artes plásticas, parece que sua visualidade exige uma base mítica mais explícita. Queremos, com isso, dizer que o referencial mítico p_arece 15ousoo~F, Geo~ges. Mito e metaftsica. pA3-4. 16Cit. por GUSDORF, G. Op. cit. p.299. Ver tb. p.208 as.

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enriquecer mais uma tela ou uma estátua do que um poema. Esclareçamos semelhante ponto de vista com dois exemplos: Guernica, de Picasso (Museu do Prado), e Criança morta, de Portinari (MASP). São telas particularmente apreciadas, a primeira ao nível mundial, a see:unda. ao nível nacional. Seria compreensível o sucesso de ambas sem a dimensão mítica que as sustenta? Sem dúvida, Guernica evoca o bombardeio de uma cidade sagrada basca, na qual morreram centenas de pessoas; a publicidade conferiu-lhe, também, uma aura poUtica. Mas não é s6: se observarmos atentamente a tela de Picasso, descobriremos nela uma série de mitos camuflados, a maioria deles pertencentes ao acervo da consciência cristã ocidental. Por exemplo: lá está uma Pietà, na mulher com o fDho morto nos braços; a sugestão (vaga, sem dóvida) de um anjo com uma limpada; os mártires (destroçados); e, genericamente falando, a presença de uma teofania (ou "aparição") na iluminação vinda do alto que, desta vez, oculta a presença mortífera dos aviões. O mesmo sucede com a tela de Portinari, na qual o espectador redescobre o mesmo motivo: o da mãe com o filho morto nos braços, transposto para outra situação, a de um Nordeste assolado pela seca e pela fome. Trata-se, pois, em óltima análise, de um subconsciente mítico, cuja leitura é possível graças à bagagem de mitos que o leitor leva, ou oue a cultura leva por ele. Pensamos que, nas artes plásticas contemporineas, os mitos surgem de duas fonnas: primeiramente, através da recriação, como acabamos de exemplificar, seja por referências explícitas a mitos do passado já de uso comum, seja mediante abordagens iconográficas ou tratamentos formais, que os metamorfoseiam. Nalguns casos, a identificação é imediata; noutros, mais diffcil. Qu111do um pintor ou escultor intitula uma de suas obras Apocalipse, é claro que está se referindo a um mito que tem sua origem longínqua no Velho Testamento, e sua realização mais sugestiva no Novo, passando pelas interpretações que dele se fizeram nas mais variadas épocas, como a de Dürer, por exemplo. A segunda forma é diversa: ocorre quando o pintor ou escultor (ou, mesmo, diretor cinematográfico) resolve criar um mito P!ÓI!Ti_o. . Obviamente, em princípio não poderiam existir mitos individuais. Na realidade, isso acontece por razões de ordem cultumL A tradição tem o mérito de introjetar os mitos, em especial graças aos meios de reprodução. Mitos que, nas sociedades de linguagem pummente oral, não se tranllllitiriam, acabam alastrando-se pelo universo inteiro. Dá-se uma planetarização mftica. Conseqüentemente, já quase não existem mitos puros; a hibridação é normaL Assim, mitos cristãos mesclam-se a mitos pagãos, e os das sociedades primitivas fundem-se com outros, criados por mentes particularmente poéticas. Em vista disso, as artes plásticas regurgitam de mitos - aparentemente - pessoais, mas que, efetivamente, pertencem a um patrimônio comum. Os artistas limitam-se a adaptá-los, implícita ou explicitamente, às suas necessidades de expressão. Marino Marini, com seus Cavaleiros (ou Milagres), e Henry Moore, com suas figuras reclinadas, estendem suas raízes, o primeiro, aos Cavaleiros Medievais e aos Caudilhos Renascentistas; o segundo, aos Chacmools toltecas e às veneráveis Maternidades Bizantinas, retomadas pelos primitivos sienenses, nas quais a Virgem 173

aparece reclinada (com eventuais acr6scimos, sem d6vida, de arte egfpcia e grega). Em conclusão: o mito em si, imediato, nio-fragmentado, quase não existe nas artes plásticas de hoje; o mito, porém, mediatizado, inspirador, é encontradiço. A foiÇa ~ste já não reside na estória proprlamen te dita (como nas pinturas mitolÓgicas de outrora, tanto as greco-romanas, como as culturalizadas do Renascimento e Barroco), mas no eros criador do próprio artista, que retrabalha personagens e aventuras exaustivamente tratadas. De qualquer modo, o mito é essencial para as artes plásticas, pelo menos na medida em que pretendem transcender o factual, didamos até, o meramente histórico. É sabido que o mito se situa "como que fora do tempo, ou o que vem a dar no mesmo, na extensão total do tempo".17 Portanto, quando o artista deseja ultrapassar o sentido meramente histórico de sua obra, que pode ser de den6ncia, profecia, valorização, etc., é obrigado a recorrer a uma dimensão mftica, a 6nica que condiz com a necessidade psicológica que todos temos de perenizaçio. O histórico, seja dito, não é eliminado; é apenas guudado, como um s&nen que se congela, e que pode, a seu tempo, fecundar outras mentes e fantasias criativas. O mito, entendido na sua acepção mais ampla, preserva, no artista e no contemplador, o que não se reduz ao conceito e à téarlca, aquilo que a humanidade sempre denominou "inspiração". Ou seja: o que é "sentido e vivido antes de ser inteügido e formulado", como escrevia E.M. Leenhudt.ts Ele é, em definitivo, "a palavra, a figura, o gesto que cilcunscreve o evento no coraçio do homem, emotivo como uma criança, antes de vir a ser ruurativa fixada". 19

17HUBERT ET MAUSS. Cit. por GUSDORF, G. Op. ciL p.38. 18CiL GUSOORF, G. Op. ciL p.28. 19r.EENHARDT, E.M. CiL lbid. p.28.

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A DANÇA, UM MEIO DE EXPRESSÃO GO MITO MIRIAM GARCIA MENDES*

Primeiro o homem dançou; depois criou os mitos, histórias verdadeiras que procurava explicar a criação, por obra de entes sobrenatunlis, de algo, de um acontecimento oconido no "tempo primordial", o tempo fabuloso do princípio, que daí então passara a existir, seja total, seja parcialmente. O mito é, portanto, uma narrativa de criação, conta como algo foi produzido e começou a ser e fala apenas sobre o que realmente occxreu. Tradição sagrada, revelação primordial, modelo exemplar, é como os etnólogos, sociólogos, historiadores de religiões entendem o mito. Mas ele é também entendido como ilusão, ficçlo, coisa lendária, conceitos cuja origem poderia ser localizada na Anti~idade Clássica, quando Xen6fanes (565/470 a.C.) criticou e rejeitou as expressões mitológicas utilizadas por Hesíodo e Homero (a maioria dos mitos gregos foi recontada e, conseqüentemente, modificada, articulada e sistematizada pelos dois e pelos rapsodos e mit6grafos). Não temos elementos para verificar o grau de desenvolvimento intelectual do homem do paleolítico superior, muito embora ele tenha deixado registro& de sua capacidade artística em muitas paredes e tetos de cavernas espalhados pelo mundo. Desse período e de seus vestígios inferem-se até os motivos que possivelmente o teriam levado a manifestar-se daquela forma. Os homens viviam então praticamente desorganizados, em pequenas hordas isoladas, cultivando um primitivo individualismo, apenas ocupados em colher ou capturar alimentos. Não há indicação de que cultuassem alguma divindade ou acreditassem na existência de uma outra vida. Ao contrário, eram dominados pelo pensamento mágico, que os fazia acreditar, ; por exemplo, ser possível, através da representação pictórica e mesmó dramatizada do que desejavam (abater o animal que lhes daria alimento e agasalho), atingirem realmente esse objetivo. Nesse sentido é que se poderiam interpretar as pinturas e desenhos encontrados em tais foCais, nos quais ·às vezes aparecem figuras humanas disfarçadas de animais, aparentemente ocupadas em executar danças de caráter mágico. As mulheres também deviam dançar, por um motivo ou outro, como se vê em um mural descoberto em 1908 no Levante Espanhol, representação de uma dança ritual com a participação de mulheres com o tono nu e de animais. Paralelamente, podíamos lembrar que a máscara, elemento de disfarce, teve um papel de singular imJ)Ortincia na vida do homem primitivo, consti-

•MJriUl Garcia Meodes. Professora na Escola de Comunicação e Artes da USP. Doutora pela ECAIUSP. Enaafsta. (Publicaçlo p6stumL)

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tuindo mesmo o elemento básico em su~ práticas mágicas, complementado, às vezes, com a pele do animal que pretendia abater. Com seu uso, o feiticeiro escondia sua verdadeim personalidade, transfonnando-se, momentaneamente, no ser que estava imitando. Prática que, desenvolvida, levaria, milênios depois, a outro tipo de ritual, que estaria na origem do que se conhece como sendo Teatro. Assim, a máscara, inicialmente disfarce de caçador, constitui também o primeiro documento histórico do teatro, fato que, de pronto, estabelece estreita ligação entre a dança e ele. E a prática do disfarce, atmvés de máscaras, facilita o jogo comum a ambos: o da imitação. Pois o homem primitivo, ao disfarçar-se em animal mediante o uso da máscara, estava, na verdade, imitando-o num procedimento também básico na atividade teatml, uma vez que o ator, ao substituir momentaneamente sua identidade pela do personagem que interpreta, está também fazendo uma imitação dele. Primitivamente, pois, a dança constituiria. um agrupamento de gestos e movimentos, com um sentido mãgtco-encantat6rio,logo tomado simbólico e necessitando de uma interpretação que só os indivíduos mais capazes do grupo saberiam dar. Essa capacidade, aliada a uma forte personalidade, possibilitaria a esses indivíduos se tomarem os feiticeiros do grupo. Deviam dançar nus, a princípio. Posteriormente, quando a dança se tomou um elemento do ritual e sua execução quase que só um privilégio dos sacerdotes, se cobrimm de amuletos, na presunção, talvez, de que assim teriam mais forças para enfrentar os poderes sobrenatumis e a própria natureza. A origem da dança, portanto, poderia ser buscada no mais remoto passado humano, e, por várias mzões, seria lfcito acreditar que o homem já dançava na Idade da Rena (paleolítico superior). E já fazia m6sica no neolítico, como se depreende do achado, em escavações arqueológicas, de assobios talhados em osso, flautas e matmcas, muitas vezes também representadas em pintums mumis. O estádio de desenvolvimento mental que pennitirla a elaboração de mitos deve ter ocorrido no neolítico, quando ritos e cultos já substituíam a magia e a feitiçaria, e o homem começava a ocupar seu pensamento em algo mais que a obtenção de alimento. Predominava o animismo, isto é, a crença na existência de uma alma, um espírito habitando seres humanos e coisas da natureza. Isso o levaria a adorar os espíritos e cultuar os mortos, por ele já devidamente enterrados. Nas cerimônias e cultos, a dança tinha um papel muito importante, sendo, mesmo, a arte predominante no período, com sua execução a cargo dos homens, principalmente magos e sacerdotes. As transfonnações ocorridas no período neolftico parecem ter-se efetuado muito rapidamente, se atentarmos para o fato de que a sua dumção teria sido de uns 8.000 anos e a do paleolítico, de quase 1.000.000. Num espaço de tempo muitíssimo menor o homem modificaria completamente seu modo de vida, passando a viver numa forma peculiar de organização social, assentada em certas práticas mágico-religiosas. Os conhecimentos sobre agricultum e pastoreio adquiriram aspectos de crença e superstição, 176

cujo desrespeito podia aCill'l'etar pesados castigos. Nesse estádio agdcola, a dança parece ter estado sempre ligada a rituais de fertilidade. Segundo Sachs, 1 pol6m, a capacidade de dançar e dr imitar não seria exclusiva do homem. Certos animais "dançam" e,! observando-os, o homem teria sido estimulado a fazer o mesmo, isto 6, a imitá-los. A prop6sito, cita exemplos de galos, pássaros pernaltas, chimpanzés, que executam, em grupo ou como solistas, verdadeiros passos de dança. Os homens primitivos poderiam ter presenciado esse tipo de atividade desses aU:mais e desejado fazer o mesmo. Hipótese que descarta, entretanto, qualquer sentido mdgico, encantatório ou ritualístico das danças que os homens primitivos executavam, como se pode inferir dos indícios por eles mesmos deixados. Executada por esse ou aquele motivo, por6m, a dança parece ter sido sempre companheiia do homem desde a sua pr6-história. Sempre houve grupos organizados de dança nas aldeias, nos templos, onde quer que existisse uma coletividade reunida, só faltando mesmo em agrupamentos carentes de vida social, despojados de todos os elementos que caracterizam as civilizações. E quando o homem separou o rito da dança, abrindo caminho por onde a estética se infiltraria, ela passou a constituir, na sua forma mais pura, uma arte expressiva de sentimentos e emoções, transmitida através de dois elementos. que tinha em comum com a arte dramática: o movimento e o gesto. Pois dança é, basicamente, movimento. Movimento e gestos, executados dentro de certas regras e medidas, não necessariamente regulares ou aparentes, mas que os tomam um conjunto homogêneo e fluente no tempo. Quando têm, enfim, sua duração no tempo dividida em determinados intervalos; isto é, ritmados, fator indispensável para que essa atividade se configure como Dança. O ritmo, pois, maroado de diversas maneiras (batidas de pés, de mãos, em tamborins, com castanholas, etc.), ao som ou não de mtisica (também com seu ritmo próprio), seria o ponto de partida, o momento mais recuado da dança, quando ela se encontra com o homem pr6-histórico. Atividade que se desenvolve no espaço e num tempo determinado, cuja configuração é o ritmo. E quando, através dos séculos, o seu desenvolvimento a foi tomando altamente complexa, ela passou a ser executada também por pessoas ou grupos organizados, com estudos específicos, em palcos ou outros espaços adequados, sendo, então, conhecida como Balé, atividade que começou a delinear-se na Renascença, união da dança, da mtisica, das artes plásticas e da declamação. Refen!ncias a danças são encontradas desde a mais remota Antiguidade Clássica, pois elas sempre integraram os rituais religiosos, antes mesmo de fazerem parte e de estarem na origem das manifestações teatrais. Os mist6rics de Cibele, mãe dos deuses, eram celebrados pelos coribantes (sacerdotes) da Frígia por meio de danças. Os de Zeus, em Creta,

lSACHS, Kurt. World hinory of tlw doltt:& New York,

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W. Nortou. ald.

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pelos curetas, que enun mestres em danças guerreiras, mágicas e mesmo orgíacas. A dança grega tinha um caráter educacional e cívico, fazendo parte de cerimônias solenes. ~eligiosas ou civis,jogos p6blicos de todas as espécies. Nas cerimônias ~eligiosas, a dança comportava. às vezes, elementos eroticos e orgíacos, como no culto a Dioniso, que ensinava a união dos deuses e dos homens (religião re-li-gare, isto é, unir). Suas adoradoras, as bacantes, deixavam-se envolver num desesperado turbilhão durante a adoração orgíaca. A dança sagrada tinha tal poder que conseguia obscUieCer os cérebros, como o culto exigia, afogando a razão e a personalidade dos indivíduos no oceano dos :sentidos. Orgasmo erotico, Ieligioso, se exp~essavam, se expandiam até a catarse nessa dança. Há também um orgasmo e êxtase que da mesma forma se res01vew ba aaoça guer~eira, CUJa natu~eza é iguaJmente orgíaca e extática; o que explica o fato de certos povos, em combate, se atirarem contra o inimigo numa espécie de dança de saltos selvagens, que os embriagam e entontecem. A dança, pois, foi um elemento muito importante no processo evolutivo do culto de Dioniso, que culminou na forma da tragédia ática e nela se manteve, como parte integrante do seu todo. Roma deu pouco apreço ã dança, s6 a prestigiando quando misturada à pantomima. Aliú, o que ela apreciava mesmo eram os selvagens e sangrentos espetáculos de circo. Relegada às buracas de feiras, acompanhando a decad.Sncia do Império Romano do Ocidente, a dança iria degenerando em acrobacia e acabaria sofrendo um longo eclipse no decorrer da Idade M6dia. A Igreja Cristã, no s6culo III, ainda a aceitou como um elemento importaote no seu misticismo e mais tarde, quando já Igreja Oficial, experimentou manter na sua liturgia a foDDa "nobre" da dança, única aprovada por Platão, justificando o fato par ter ela integrado serviços divinos outrora. · J4 as danças populares comuns fonun tenazmente combatidas pela Igreja desde o s6culo II, par entender que o seu conteúdo era pagão e estava demasiadamente ligado às velhas religiões. O que de fato acontecia, pois até hoje são visíveis em velhas culturas camponesas da Europa, nas quais a dança Iepresenta papel importante nos ritos mágicos, nos costumes da vida familiar, na economia pastoril e nos ciclos de agricultura, traços de mitos arcaicos nela embutidos. Foram os saltimbancos, dançarinos profissionais, que não deixaram moJrer a arte da dança durante grande parte da alta Idade Média. Conheciam muitas dmças, algumas trazidas do Oriente, pam onde iam acompanhando as Cruzadas, e elas acabariam sendo imitadas pelos nob~es, para seu proprio divertimento. Adaptadas e aCiescidas de características pessoais, elas se tnmsformariam finalmente em danças da corte ou de salão, em grande expacsão na baixa Idade Média, e, mais tarde, de teatro. Na Renascença ocoJre a grande cisão na dança, levando-a a definir-se em tr& linhas: as danças populares, as danças da corte delas originadas, ambas de caráter Iódico não exibicionista, e as executadas em balletos (balés). Estes vão constituir, por assim dizer, as raízes do teatro de dança moderno, ou da dança no teatro, uma vez que uniam elementos característicos 178

de duas formas de arte em espetáculos apreciados por um pdblico arlstocdtico principal1nente espectador. Isto é, um pdblico que extraia o pmzer 14dico da apreciação do espetáculo e não de sua participação nele. Daí em diante, sofrendo influências relacionadas com a 6poca, o momento histórico, as transfonnações sociais, etc., a dança ilia pel'COI'rel' seu caminho, sempre se destacando como uma das mais belas expressões da cultura humana, talvez a primeira, porque é parte da natureza do homem, tão velha quanto ele. E ao longo desse caminho acabaria perdendo sua relação com o mito, entendido este como uma história verdadeiJ:a que procura explicar a criação, por obra de entes sobrenaturais, de algo, de um acontecimento ocorrido no "tempo primordial", o tempo fabuloso do princípio, e que, daí entlo, passara a existir, seja total ou plll'Cialmente; o mito, narrativa de criação, que conta como uma coisa foi produzida e começou a ser. As danças populares de muitas regiões européias, asiáticas e até americanas, cada uma à sua maneira, contêm traços ritua)(sticos latentes ou a descoberto, reportando-se a velhos mitos que teodem a persistir em sociedades menos desenvolvidas. fsto, para nãO falar nas danças rttuais de povos americanos, asiáticos, africanos, que vivem ainda em sociedades arcaicas, nas quais a foiÇa dos mitos pennanece muito grande. Atrav6s dos ritos, eles reatualizam o conte4do de seus mitos mais significativos, empregando meios de expressá-los que vio das palavras à mímica, ao canto e à dança. PodelÍamos citar como exemplo a cerimônia do Quarup no alto Xingo, ritual religioso realizado pelos índios xinguanos para libertação dos mortiJS0 cerimonial reatualiza a criação de dinastias indígenas e a libertação dos espíritos dos mortos, que continuam habitando a aldeia, ilepois da morte de um grande cacique, o motivo para a realização do Quarup. Os índios de condição inferior na constituição social da tribo aproveitam a ciiCUnst!ncia para também render culto a seus mortos. Cerimônia exótica que exige grandes preparativos, incluindo várias atividades e exercícios, pinturas corporais, lutas (ruka-ruka), treinos musicais com flautas (uruá), pesca de timb6, convites aos habitantes de aldeias vizinhas e o corte, por gueueiros, de troncos da árvore quarup que servido para representar os mortos. Estes troncos, bem gros8os e- com lm40cm de altura, vão ser pintados com tintas preta e vermelha e os ornamentos representam, simbolicamente, os que vão ser usados nos corpos humanos, com motivos indicativos de cada sexo. Cumprindo todos os passos do ritual, chega o momento em que o grosso da tribo se aproxima (as mulheres são mantidas a apreciável disttoáa) e dança. em volta dos troncos, trazendo nas mãos, além das armas, tochas de buri tirana, evocando os peixes que, conforme narra o mito, saltaram d'água e dançaram para Maivotsinin. O mito narra que um velho cacique, chamado Maivotsinin, h01'6i cultural de seis tribos indígenas, criador do seu povo, vivia solitário na contlu6ncia dos rios formadores do Xingo. Querendo gerar seus descendentes, fundar sua dinastia, a dos caciques, entrou no mato e cortou vários troncos de 179

uma árvore chamada quarup, doze troncos: seis representando homens, e seis, mulheres. Pintou a cobra jibóia como símbolo da mulher e o peixe; do homem. Enterrou os troncos na areia, com a face voltada pua o nascente. À noite, fez um fogo diante de cada um e começou a cantar, desde aquele momento at6 a madrugada, tendo apenas um arco no ombro e um maracá na mio, pedindo aos protetores que dessem vida aos troncos. Mas nada aconteceu e Maivotsi.nin começou a chorar. Entio os peixes saltaram do rio e começaram a dançar em volta dos troncos (no ritual eles são reJRSCntados pelos guerreiros das tribos vizinhas convidadas e dançam ao redor do terreiro com archotes nas mãos). Com o sol nascente, os troncos começam a animar-se; adquimm vida. Os peixes e os púsaros se alegram, bem como as onças que chegam (no ritual elas são representadas pelas tribos vizinhas). Peixes e onças lutam em homenagem a Maivotsinin o ruka-ruka. Assim, ele gerou sua descendência. Ao cair da tarde, atira n'água os troncos, pua libertar os espíritos que neles habitam. Este mito refere-se tão-somente à criação de um determinado povo, não da espécie humana, razão pela qual cada tribo d' um nome diferente pua o criador da dinastia de seus caciques. Todas as tribos do Xingu, menos os !rumai, realizam a cerimônia do Quarup. Os toro11 criados por Maivotsinin representam o reduzido número de indivíduos impoctaotes (cacique, capitio) da hierarquia social da tribo. Os de men
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simples vestuário de musselina dmpeada, coipete e saiote; posteriOI'IIlellte, chegou a moldar o corpo com véus apenas, numa tentativa de romper cam a obsoleta roupagem feminina da dançarina da época, sem se preocupar com o escândalo que causava. La Camargo, de origem espanhola, também contribuiria Data a reforma do vestuário da dançarina. Não ousando ir tão longe quanto La Sallé. foi capa~ entretanto, de encurtar umas cinco polegadas o camprlmento das saias, assim possibilitando a criação de um passo de dança ainda boje muito usado: o entrechat. Foi também a primeira dançarina a mover-ae para cima, gmças às maiores facilidades proporcionadas pelo encurtamento das saias. Porém, o mais lendário dos nomes masculinos da d111ça é o dos Vestrls, Gaetan e A uguste, venezianos, pai e filho. Até boje, quando se quer enaltecer as qualidades excepcionais de um dançarino, diz-se que ele é um verdadeiro Vestris. Até hoje, isto é, mais precisamente até a década de 1910/20, quando começou a brilhar a estrela de Nijinsky, primeiro considemdo um novo Vestris e, posterionnente, passando a servir de modelo exemplar da atividade humana da dança. Mas, ainda no século XIX, o Romantismo produziria o seu gmnde mito, a extraonlinma Maria Taglione, a primeira dançarina a realizar plenamente a concepção do que seria conhecido como dança clúsica, em que a total elevação sobre as pontas de modo mais permanente conferia à mulher uma aparéncia etérea e fugidia, encantando os olhos e o espírito do espectador. A sua consagração se daria em 1832, com o balé La Sylphide, composto por seu pai, o coreógrafo e mestre de dança Filipe Taglione, membro de uma famOia dedicada à dança. O sucesso foi tão grande que La Sylpbide, Maria Taglione, se tornou até inspiradora de moda. Penteados à Sylpbide, turbantes à Sylphide e outros acessórios mais prolimraram entre as clegantell da época. Mas sua importância maior foi a de ter campletado a revoluçlo do vestuário feminino da dança, popularizando o tutu, o corpete rígido e a malha, tais como ainda hoje se vêem nos balés bmncos. Na passagem do século XIX para o XX, outro grande e imoaedouro mito se criaria sobre a figura ímpar de Isadom Duncan, com sua ousada e revolucionária tentativá de libertar a dança, atrindo-lbe caminhos po1 onde ela iria desenvolver-se em novas e sucessivas formas. Outro grande mito da dança no começo do século XX não foi dançarino, compositor ou artista, mas influenciou o balé, a m6sica e toda a arte das três primeiras décadas do século (morreu em 1929): Serge Diagbilev. Os seus Balés russos, que estrearam em Paris em 1909 no teatro du Chltolet, uniram habilmente a hemnça clássica ao folclore russo e aos elementos novos tmzidos pela modema concepção de arte, e estimulamm giiDdemente o desenvolvimento da dança e se tornariam um patrlmônio universal. A dança deve, ainda, a Serge Diaghilev a descoberta para o muodo da extmordinária figura de Vaslav Nijinsky, que, com Ana Pavlova, outro mito da dança, e mais dançarinos, integrou o grupo principal de seus Balls russos. A vida trágica de Nijinsky reforçaria o caráter mítico que ela adquiriu, já de si pródiga de elementos pam tom,·la lendária. 181

Mitos da dança, como de outras esfeiaB da atividade humana, estão sondo continuamente criados. Mas estão ainda dependentes de que o tempo possibilite o surgimento de um consenso que lhes coofinne essa qualidade. Bm LIOGRAFIA DUJICAN, Iadora. Ma vle. Paris, Gallimard, 1932. ELIADE, Mircoa. Mito 11 r~~~Úid~Jt:fe. Slo Paulo, Perspectiva, 1m. ENCYCLOIJaDIE I..AROUSSE. La danso. Paria, 1971. FI~HER, ErDit. A uccrldt;uk da art11. Rio do Janeiro, Zahar, 1983. HASKEU., Arnold. Balkt. LondoD, Ponguin Books, 19«l. HAUSER, Arnold. Hilloria MJCial tk h Utuatwa y tu'ltJ. Madrid, Aguilar, 1964. LANGE, Rodorick. Thll nature of tlanc&. London, Macdonald & Evans, 1975. LANGER, Suzanno K. FU0110jla 11m nOI'tl chavtl. Slo Paulo, Ponpoctiva, 1971. LIFAR, Sorgo. La daniJtJ. P1ris, Gouthior, 196.5. MOUSSINAC, L6on. H~ria do litlatro. Lisboa, Bertrand, s/d. NlflNSKY, Romola. Nlilnsky. Rio do Janeiro, J. Olympio, 1940. PASI, MArio ot alii. El baUot. ln: ENCICLOPEDIA DEL ARTE COREOGRÁFICO. Madrid, Agunar, 1980. REYNA, Fordinand. H181oire tbl bGllet. Paris, Armory Somagy, sld. SACHS. Kurt.- World hlrtory of thtJ danctJ. Now York, w. W. Norton, s/d. SENET, Andr6. O homem dacobrtJ lfiU anlltlpt181ftU/o8. Bolo Horizonte, ltatiaia, 1959. SPENCER, Cbarlos. T1te world of Serg11 Dlaghilev. New York, Ponguin Books, 1979. TUGAL, Piorro. La diUIIO ot les danseurs. ln: PETITE HISTOIRE DE L'ART ET DES ARTISTES. Paris, Nathan, sld.

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CINEMA - UMA MITOLOGIA INDUZIDA SALIM MIGUEL •

U~a proposta de trabalho instigante: mito e cinema. Pelas respostas que pode provocar e oferecer. Tentaremos analisar sucintamente como o mito se criou e se mantém. De que maneira veio ele se desenvolvendo nesses quase cem anos, desde que o filme surgiu. Se é que na verdade existe uma mitologia cinematográfica, semelhante à que subsiste, através dos tempos, nas letras e nas artes. Mais: se o mito chegou, ainda que de fonna embrionária, à cinematografia brasileira. E, neste caso, em que medida pode ser detectado e avaliado.. Arte do nosso século, arte jovem, portanto, nem seus criadores, os Lumiêre, nela punham fé. A primeira sessão póblica de cinema se deu no Boulevard des Capucines, em Paris, no dia 28 de dezembro de 1895. Os Lumiêre consideravam o cinema um brinquedo sem mais interesse ou importância, que logo sumiria. E quando os procuraram pam propor a aquisição do invento por uma polpuda soma, recusaram, alegando que não queriam furtar ninguém. Os que assistiram àquela pioneira exibição, que mostrava uma saída de fábrica, a chegada de um trem, um banho inesperado, jamais poderiam imaginar o espantoso crescimento que o cinema viria a ter, e sua rápida influência na vida social, modificando e/ou criando e adaptando hábítos, costumes, gostos, tendências e comportamentos. Síntese de todas as artes, na magia da sala escura se interpenetram e complementam a literatura e o teatro, a fotografia e a arquitetura, a música e a pintura, a escultura e a dança, o som e a cor. Através de figuras que se movem, temos uma nova dimensão (e sensação) da vida com todos os seus componentes e implicações: alegrias, dores, angústias, sonhos, tristezas, drama· e comédia, o psicológico e o social, o real e o fantástico. E hoje todos são unânimes em reconhecer: para além do que absorveu das outras artes, já é uma arte autônoma, de linguagem pr6pria e camcterlsticas peculiares. Seis meses depois da exibição de Paris - relata Alex Viany em seu Introdução ao cinema brasileiro- chegava ele ao Brasil. Temos até, fato insólito num país que timbra em não preservar sua memória, a data e o local da primeira projeção no Rio de Janeiro: 8 de julho de 1896, numa sala devidamente preparada na Rua do Ouvidor, 57. Diz Manuel Villegas Lopez em Cinema - teoria e estética da nova arte que, "com essa máquina que é o cinematógrafo, se faz uma arte e uma arte nova: a arte das imagens vivas. Os dois grandes setores das

*Sallm Miguel. JpmalistL Diretor-13xecutivo da Editora da UFSC. Escritor. Argumelllista

e roteirista de cinemL

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artes - as formas do tempo, as formas do espaço -, até então incompatíveis, se encontram e se fundem no cinema, dando lugar, assim, a princípios estéticos novos, que definem uma arte nova. Por isso lhe demos a seguinte definição: o cinema é a arte do tempo em forma de espaço. Sobre ela se apóia toda uma teoria estética do cinema, com suas imediatas aplicações ráticas". Já Eisenstein em O sentido do cinema afirma: "uma obra de arte p concebida dinamicamente, consiste nesse processo de ordenar imagens nos sentimentos e na mente do espectador. Ele constitui a peculiaridade de uma obra de arte verdadeiramente viva, o que o distingue de uma produção sem vida, na qual o espectador recebe a criação já consumada em lugar de ser arrastado, através do processo, tal como este se vai desenvolvendo". Antes de continuarmos abordando tais aspectos, parece-nos necessário nos determos, 11 fim de traçar breve retrosoecto que irá nos situar melhor. Vamos recriar. Vamos colocar diante de nós o mito. Suas diferentes categorias. Na perspectiva de estudiosos que sobre ele se debruçaram. De que maneira foi encarado e examinado, a influência que exerceu (e exerce) nas letras e nas artes, as modificações que sofreu, por quais transformações passou, porque se mantém (ou não se mantém) atuante em nosso dia-a-dia. Como não poderia deixar de ser, artes e letras vêm reutilizando o mito dentro de suas infinitas possibilidades de reelaboração. Limitemo-nos a um só campo: literatura. Tanto na clássica como na modema os exemplos proliferam. são sem conta. Voltaire escreveu seu Édipo e O'Neill sua Eletra. Fedra e Hipólito são temas para as tragédias de Eurloides. Sêneca, Racine. Da Antfgona de Sófocles pudemos chegar às peças de Cocteau e Brecht. O Ulisses de Joyce se nutre de Homero. Muitos temas míticos perpassam as histórias coligidas pelos irmãos Grimm. E são de agora No palácio do rei Minos, de Nikos Kazantzaki, e Sedução em Creta, de Nelson Coelho. São apropriações e adaptações mais ou menos livres que, partindo de uma raiz comum, atendem às necessidades e aos interesses de autores os mais variados e das mais diferentes épocas e regiões. Até entre nós, em nosso rico populúio, não será di.ft'cil detectar a marca, consciente ou inconsciente, do mito. Não é meu propósito, claro, me alongar sobre um tema, tão fascinante e tão vasto, que a maioria deve conhecer melhor do que eu. E que já foi exaustivamente abordado. Mas devo acrescentar algumas definições, que ajudarão em nossa intenção: ver de que fonna o mito pode ser inter-relacionado com o cinema universal. E a ioteração cinema universal x cinema brasileiro.

Comecemos pela definição do dicionário. Ele nos esclarece que o mito é "uma narrativa tradicional de conteúdo religioso". Ainda: "omativa dos tempos fabulosos ou heróicos", considerando-se o estudo das concepções mitológicas encaradas como um dos integrantes da vida social. Ou: "narrativa de significação simbólica". Por fim: "representação de fatos ou penonagens reais, exagerada pela imaginação popular, pela tradição, etc.''. 184

O mito tem como ponto de intersecção, entre o estado primordial da realidade e sua transformação última, o homem, dentro do ciclo permanente nascimento/morte. Poder-se-ia dizer que os mitos são "formas das , sociedades refletirem sobre suas contradições e exprimirem seus paradoxos, suas dó vidas, seus anseios, suas certezas, seus sonhos, suas angóstias". São temas obsessivamente recorrentes, elevados a um nível de cata.Ise. Isso, ao mesmo tempo, assegura uma determinada coetência ao grupo que o aceita e uma certa permanência ao mito. O que nos remete para a palavra grega mymos, que tem como primitiva acepção narração. Antes de retomarmos ao cinema, vejamos rapidamente o significadc do mito na concepção de pesquisadores que ajudaram a melhor compreendê-lo, interpretá-lo e/ou modificar nosso conceito a respeito dele. Para Gianbatista Vicco, seria .. produto oa tacuJdaae poética do gênero humano". James Frazer diz que os mitos são "explicações narrativas de ritos". Jean Chevalier vê o mito surgindo como "um teatro simbólico das lutas interiores e exteriores que o homem trava no caminho de sua evolução, na conquista de uma personalidade. O mito condensa numa história uma multidão de situações análogas". Se Lévi-Strauss vislumbra no mito "reflexos de determinadas estruturas sociais dos povos primitivos", na análise de Mircea Eliade, "de regional e provincial, a mitologia popular se converte em ecumênica". Já Antonio José Saraiva afirma que os "mitos históricos são uma forma de consciência fantasmagórica com que um povo define a sua posição e a sua vontade na história do mundo". E não podemos esquecer Freud, que centrou boa parte de sua psicanálise no mito de Édipo. Para o que pretendemos é mais do que suficiente. E é supérfluo tentar aprofundar tais questões. Elas nos bastam e nos ajudam na caminhada, pouco importando saber qual delas é a mais pertinente. A partir daí retomamos o fio da meada de Ariadne. Para ver como escapar do labiri.Óto ~ e chegar ao filme e ao mito do filme. O início do cinema foi documental. A saída da fábrica, o trem que chega, a multidão em movimento- eis o singelo brinquedo que os Lumiêre não acreditavam que tivesse futuro. Logo, num passe de mágica, passou do corriqueiro para o fantástico: a viagem à lua, de Georges Mêliés, ainda na França. A nova possibilidade de utilização do cinema, como ficção e como fantasia, surge ao mesmo tempo. Isso não bastava. Havia o real. E no outro lado do mundo, nos Estados Unidos, é o real invadindo o ficcional com O grande roubo do trem, de Edwin S. Porter. Seria curioso determo-nos (mas isto não é uma história do cinema) para examinar por que o cinema se desviou de seu caminho, deixando o documental dos primitivos filmes de Lumiêre, tão rico em possibilidades. Talvez a inquietação, que deve ser apanágio do ser humano, a inquietação que marca o homem, talvez o desejo de aquilatar até onde podia ir o novo brinquedo. A vertente documentarista só mais tarde retomaria, sempre minoritária, com nomes como Joris !vens, Dziga Vertov, Cavalcanti, Flaherty. Aliás, ao nos referirmos ao cinema, melhor falar em arte e ind6stria. Nenhuma outra forma de arte demanda tamanha soma de recursos para 185

se realizar. Af surgia o primeiro mito do cinema, um mito em parte induzido, em parte verdadeiro: para se concretizar o cinema necessitava de substanciais investimentos, elidindo-se por vezes o fato de que, se era indtlstria, era também arte. Embora necessitando de investimentos, nio pode se subordinar aos capitães de indústria que nada enxergam além do deus dinheiro. Nem é por outro motivo que, nascido na França, o cinema teve como pátria de adoçio os Estados Unidos. Logo ali se construíram enonnes esttldios, uma cidade multiplicada por infindáveis cidades de fantasia. Surgia Hollywood, cognominada "usina de sonhos". Dumnte décadas os norte-americanos domioaram o mercado do filme. Ou da "fita", conforme se dizia entre n6s até não faz muito. Ou se diz ainda, sei lá. Da fita. A fita. O mito. Isso nos leva pam outm série de considerações pamlelas. Temos novo e rico filão a ser explomdo. Diz-se "fita" eno sentido que pode significar, melhor, que significa simulação, engodo, fingimento. Não é incomum ouvi~se a expressão "és um fiteiro, não faz fita". Querendo significar "és um fingido, um simulador, não me tapeias". Não estaria embutido na fita o mito? O mito não seria também uma fita, com a qual se constroem sonhos e ilusões que nos embalam, novos fcaro? Que, a partir de um início simples, foi crescendo, desejando alcançar o céu, sem imaginar que suas asas pudessem ser dealocad• pelo calor do sol. Assim, a fita/mito foi crescendo até atingir foros de verdade. Atingir não. Até alcançar foros de verdade. Ser verdade. Ou ainda: chegar à categoria do fantástico? Do mitológico? Consciência fantasmagórica - como quer Saraiva - com que um povo define sua posição e sua vontade na história do mundo. Categorias de filmes como o do gansgter, do cowboy, não poderiam representar uma mitologia popular se convertendo em ecuménica, conforme a definição de Mircea Eliade? São questões que deixamos em aberto. Não sem antes transcrever o que diz Roger Manvel em seu O filme e o público: "tal como em outras artes, o cinema produz uma intensificação da experiência normal Sendo uma arte fotográfica, convida o público a acreditar na realidade que se ·apresenta no écran". A fita vim verdade inquestionável Jean Epstein, em O espfrito do cinema, é mais incisivo ao afirmar que a influência do cinema é tamanha que, se o homem comum não leu, depois que saiu da escola até os 40 anos, mais de uns quinze livros, segummente, mesmo que só veja um filme por mês, já terá assistido mais de trezentos filmes. E o que ele apreendeu não foi pelo livro, mas pelo filme, pela via emocional e intuitiva de imagens muito simplesmente justapostas, representação bem mais sintética e mais próxima de uma realidade concreta. Será que hoje ainda subsiste a extensa mitologia cinematográfica que, não faz muito, alcançou dimensões insuspeitadas? Ela penetrou sub-repticiamente no nosso cotidiano, influenciando-o e modificando-o, levando-nos pam outms proporções do ver e do sentir. Parece-nos que o cinema perdeu 186

parte do seu domínio, transferido para um novo monstro sagrado: a televisão. Mas esse é outro filme. Fiquemos no nosso. Que ainda se proieta como mito, como fantasia, como sucedâneo do real e/ou do fantasmagórico, com uma extensa galena de nomes. Vejamos alguns: Greta Garbo, que, incólume, atravessa décadas intrigando com seu fascínio e seu inexplicável mistério. Mary Pickford e sua construída ingenuidade; Marilyn Monroe e seu, igualmente construído, sensualismo. · Avancemos: Carlitos, que se confunde com seu criador Charles Chaplin. Avancemos ainda. Fixemo-nos em detenninadas categorias de filmes que, na sua aparentedivenidade narrativa, se estratificam num modelobatizado com um nome Uplco que passa a ser sua marca registrada: o gangster, o cowboy. Isso pode nos remeter para a definição de Jean Chevalier quando afirma: "o mito condensa numa história uma multidão de situações análogas". Pode até suceder que homem e personagem se fundam e complementannente se confundam, um mito interpenetrando outro mito através de um criador. E o caso de Cidadão Kane, de Unon Welles. Até onde temos ali Kane, que é Welles, que é o Hearst do império jornalístico. Uma ficção calcada numa realidade que vira ficção mais forte do que a realidade com seu mitológico Rosebud. Especulando podemos avançar mais. Avançar sempre. Chegar aos nossos dias. Acompanhar como, através dos meios de comunicação devidamente manipulados e de uma campanha promocional bem montada, se constroem e se impingem mítos. Um mito moderno: Rambo. Rambo. Protóttpo da violência desenfreada; protótipo do homem que, acima da lei e da moral vigentes, busca resolver sozinho os problemas do mundo impondo suas regras; protótipo de uma detenninada visão maniqueísta de mundo, marcada pelo entrechoque estereotipado e absoluto entre bem e mal, como se fossem duas categorias estanques e claramente definidas; protótipo de uma sociedade injusta. Nesse caso (e em tantos outros), o cinema elabora uma espécie de degradação do mito, um erzáts do mito. A mitologia induzida, que não nasce das mais autênticas raízes; que não é, como quer Vicco, "produto da faculdade poética do gênero humano", nem "reflexo de detenninadas estruturas sociais dos povos primitivos", confonne vislumbra Lévi-Strauss. Em Estética do filme diz Bela Balázs: "O espírito do filme, como o CS(>Írito da l!ngua, é objeto da psicologia dos povos. Mais concretamente: da psicologia de cfllsse. O filme é econômica e tecnicamente tão condicionado, que pouca ou nenhuma possibilidade oferece de criações individuais. Os realizadores cinematogl'áficos, naturalmente, julgam ter caractensticas pessoais, como os escritores têm espírito próprio; e têm-nas, naturalmente, mas só até ao ponto em que estas não comprometem a compreensão geral e a p(ipula#idade, isto é, o rendimento econômico de seus filmes". Acrescentadamos: há toda uma manipulação, que transfonna uma arte num jog_o matreiro de interesses escusas. Vejamos um exemplo concreto: 187

Orson Welles. A partir do momento em que não quis se subordinar aos grandes estúdios e suas leis, foi marginalizado. Seu mito de criador sobreviveu à sua capacidade de realizadorinventivo. engolido pela máquina, proscrito pelo SIStema. Da ingenuidade dos pnmitivos filmes até nossos.dias, um longo caminho foi percorrido. Um longo e, por vezes, tortuoso caminho. Os primitivos filmes fomm demonstrativos. Sem nenhuma criatividade. Colocava-se a câmem diante de um objeto e se filmava até acabar o rolo. Logo chegou-se a um impasse. Assim o filme se limitava, se auto-impunha uma camisa-de-força. Buscou-se uma saída pam provar que Lumiêre não tivem mzão quando falava em brinquedo de curta dumção. Só então o cinema começou a ser. Isso se deu a partir do momento em que, em lugar de apenas mostmr, o filme passou a contar e a interpretar. Descobriam-se as infinitas possibilidades da chamada sétima arte. Começava-se a elaborar em cima dela toda uma complexa mitologia. Industrial e artística. Diz Rudolf Arnheim em A arte do cinema que o filme "s6 principiou a se desenvolver quando os produtores começaram a estudar, consciente ou inconscientemente, as possibilidades técnicas do cinema". Renato May, em seu A linguagem do cinema, vai mais longe: "queremos dizer que a técnica não tem nada a ver com o estilo. A técnica se aprende, o estilo se domina, ou não há nada a fazer". Deixou-se a trilha dos Lumiêre, da câmem fixa apenas gravando sem intervir. Passou-se a interpretar. Já um Georges Mêliés intuía as infinitas possibilidades da nova arte com seu Viagem à lua, calcado em Júlio Veme, caminho aberto para o fantástico, para o sonho, pam o Ícaro, para os Santos Dumont, para o ilreal/real ou o real/irreal. Em contrapartida, como se estivesse sendo preparada uma tomada de campo/contra-campo, em outro continente abria-se nova e inesgotável vertente com o grande roubo do trem, um fato autêntico tratado ficcionalmente com o máximo de realismo pam retomar à sua categoria de real. Foi também com esse filme que se deu mais um grande passo: a transformação de um pequeno em um gmnde negócio. Que traria em seu bop equívocos. Desvendavam-se as infindáveis possibilidades da nova arte, com toda a sua envolvente magia; trabalhava-se sobre alguns códigos básicos que podiam ser desenvolvidos, revolvidos e modificados, dois deles levando criadores, produtores, teóricos a acirradas discussões: os movunentos da câmera e a montagem. Foi a partir daí, com os longos planos, com os primeiros planos, com os planos de conjunto, com os detalhes que levavam, até o mais próximo possível, a visão do espectador a respeito do que estava ocorrendo, por um lado, e, por outro, dos cortes e das intercalações nas salas de montagem, que se estruturou uma linguagem especifica. E foi com o surgimento de nomes como um Griffith, um Chaplin, um Eisenstein, que o cinema adquiriu sua maioridade, sua dimensão de aite, começando a criar uma linguagem fflmica peculiar e independente e a elaborar (e laborar) seus mitos. Referindo-se ao cinema, em Linguagem. Poética. Cinema, já em 1933 dizia Roman J ak:obson: "assistimos à génese de uma nova arte. Ela cresce 188

a olhos vistos. Desvincula-se da influência das artes precedentes; começa já a influenciá-las. Cria suas normas, suas leis e, em seguida, com determinação, as subverte. Toma-se um poderoso instrumento de propaganda e de educação, um fato social cotidiano, de massa: ultrapassa -nesse sentido todas as artes". Ampliando e, sob certos sentidos, complementando a colocação anterior, aduzia Christian Metz em A significação do cinem~: "mais do que o romance, mais do que a peça de teatro, mais do que o quadro do pintor figurativo, o filme nos dá o sentimento de estarmos assistindo diretamente a um espetáculo quase real". Um espetáculo quase real montado sobre artifi'cios que para se concretizarem depende da capacidade do criador. Para isso, é preciso saber conviver com as dificuldades e aprender a superá-las no momento exato. Relata Chaplin: a famosa seqüência das luzes das janelas do trem, no filme A mulher de Paris, depois imitada até a exaustão e de tamanho efeito expressivo, resultou da necessidade de uma tomada indispensável numa realização de parcos recursos financeiros: não havia trem nem como consegui-lo. De que modo dar a impressão de que o trem existia e se movia? Usou-se um recurso através do jogo de luzes: no rosto do ator tinha-se a sensação da passagem do trem. E a partir daquele momento o trem passou a existir, graças ao artifi'cio utilizado, criando o clima exigido pela cena. É a fita suprindo o inexistente, que passa a existir graças à criatividade do realizador. Aquilo que pela inventiva de um artista criava pasmo no espectador, intrigando-o e emocionando-o, passou a ter foros de verdade, a ser mais um elemento na cadeia de elementos que forja a magia do cinema e uma empatia que o mitifica. Por isso é que Renato May insiste em dizer: "no plano da arte as regras não interessam; a única regra é produzir o filme; o resto é ofi'cio". Oficio que se aprende, se domina- e do qual pode sair o hábil artesão ou o inventivo criador. Uma questão que sempre se coloca é a do filme de autor. Existirá essa figura no cinema? Como nenhuma arte, o cinema é produto de equipe. Ao contrário ·do escritor, que, com- todas as condicionantes do meio em que vive, pode sozinho escrever seu livro, no filme há necessidade da participação de outros elementos: o argumentista, o roteirista, o produtor, o montador, os atores, o cenógrafo, os músicos, etc. Nem por isso se pode ignorar figuras que, na estrutura geral de um filme, têm preponderância. Caso de um Chaplin, um Houston, um Welles, um Buiíuel, um Fellini, um Bergmann, um Kurosawa, um Griffith, um Eisenstein e tantos mais. Ainda assim, mesmo que éles ocupem a maioria das funções e interfiram nas demais, são dependentes de um iluminador que saiba dar o tom exato para criar o impacto exigido ou de um ator que saiba transmitir com precisão o que o realizador pensou e deseja. Pode parecer que o cinema, como arte, tenha tido uma tranqüila aceitação. Não foi. A discussão se prolongou. Ainda em 1939, o crítico português Roberto Nobre insistia em seu Horizontes do cinem~: "muitos, mesmo dos que nasceram depois de 1900, ainda não o entendem como arte. Falta-lhe

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um passado, falta-lhe classicismo, falta-lhe Grécia. S6 entendem o complexo das artes quando este lhes chega bem mastigado, já meio digerido". A desconfiança tinha razão de ser, se nem os próprios inventores acreditavam que aquilo fosse arte. O cinema cresceu e se finnou rápido demais. Com pouco mais de vinte anos, quando buscava seus melhores meios· expressionais, deixou de ser mudo. Muitos realizadores (Chaplin é o exemplo sempre lembrado) relutavam e/ou recusavam aceitar o som. O mesmo ocorreu com a cor, ela não podia substituir o contraste entre o preto e o branco, as nuanças, os meios tons. Como imaginar o expressionismo alemão esfusiante de cores! Mais tentativas surgiam a cada dia. Eram tantas que deslumbmvam-desnorteavam o ávido espectador. Claro, tudo pooe ser válido quando conveníentemente utilizado. E a linguagem universal do cinema pennanece, ultrapassa idiomas, modelos de sociedade, hábitos, costumes, simpatias e idiossincrasias. Em qualquer parte, tanto pode motivar e emocionar um filme direto e duro como Vidas secas, de Graciliano Ramos/Nelson Pereira dos Santos, como a descabelada aventura fantasiosa de um King-Kong. Presos à envolvente magia da sala escura, às figuras que transitam na tela e adquirem vida, tudo se iguala. Ousamos mesmo afinnar. dependendo do momento psicológico que vivemos, a qualidade do espetáculo pouco importa, tamanho o fascínio que a fita exerce sobre o espectador. Nosso senso cntico se esfumaça, somos envolvidos por aquela singular aura mitológica provocada por fotogramas e um projetor. Passamos a (con)viver em um novo universo pleno de encantamento, que nos ag81I'a e nos amarra à sua teia. Nao, nos quesâonamos ao sair da sala escura e mágica; não, o Super-Homem não pooe- voar, o Homem Aranha não pode subir pelas paredes, os homens não têm como chegar ao centro da terra nem viajar pelo interior do corpo humano. Aí recuamos, repensamos nossas colocações tão racionais. Nos lembramos: os homens também não podiam chegar à lua. Chegaram. Os homens não podiam violar o fundo do mar. Invadiram, violaram. O sonho de Ícaro de chegar ao céu se cooaetizou; e a fantasia de Veme com seu submarfuo e boje banal diante do que se conseguiu. Mesmo que os homens não cheguem a voar com as próprias asas coladas ao corpo, confonne desejava fcaro, ainda que continuem se utilizando dos aviões, pouco importa. Pelo poder da imaginação, pela força da mente, pela mítica fantasia, os homens tudo conseguem. Tudo vencem. E no cinema existe esse momento único em que o impossível se toma possível e o iJreal plenamente real. Passando a existir o inexistente. "A imagem ffimica - diz Gilbert Coben-Séat em seu Ensaio sobre os princfpios de uma filosofia do cinema - não se dirige somente nem diretamente à inteligência, nem à sensibilidade através da inieligéncia.· An-tes ela é, por uma espécie de comunicação direta e sutil, a innã p6s-Platão do mito. E sua herdeira. Fica claro que é do encontro dessa significação de idéias que se fazem as alegorias e as hipérboles, sob uma fonna voluntariamente poética e quase religiosa. Trata-se, com efeito, de técnicas e procedimentos cuja função é produzir idéias e sentimentos e de os fazer viver 190

pela expressão. Toda realidade ffimica se encontra normalmente elaborada e apresentada em função de uma significação que nos transmite algo.'' A transcrição aclara aspectos antes colocados e nos situa no âmago do problema. Estamos aqui em oleno território do mito e em r'eno universo ffimico interligados. Esse "algo" a que se retere o ensaísta, esse "algo" que não se dirige diretamente à inteligência nem à sensibilidade, depende, para ser melhor assimilado, da maior ou da menor capacidade tanto do transmissor como do receptor. É quando se forma uma coaente de empatia que tudo supera. De que modo se insere o cinema brasileiro no esboço que intentamos traçar? Qual seu significado na cinematografia universal? Já oferece contribuição própria? Dá uma idéia do que somos como povo, com todas as nossas diversidades e dificuldades? Teve o Brasil condições objetivas e subjeti vas para criar uma linguagem cinematográfica específica e uma mitologia que a ela aderisse? Já vimos que a primeira projeção no Brasil se deu apenas seis meses após a invenção do cinema. Mas não se tem data precisa da primeira rodada de manivela. Diz Alex Viany que muitos filmes em um rolo foram produzidos até 1910. Eram registras de acontecimentos sociais e pollticos, ou cenas apanhadas em locais pitorescos. Já em 1906, no entanto, Antônio Leal produzia um filme de ficção baseado num crime notório. O filme teve diversos títulos, mas é lembrado como Os estranguladores. Nem por isso a produção nacional de fitas teve uma caminhada regular ou tranq üil a. No decorrer de nossa história foram plantados no subconsciente popular inúmeros mitos. Um que deu muito trabalho para anular foi que o Brasil não tinha petróleo; e por sinal era bom que não tivesse, pois não tenamos capacidade quer financeira quer técnica de explorá-lo. Entre outras coisas, dizia-se também que o brasileiro não sabia fazer cinema (e saberia fazer qualquer outro tipo de arte, pois questionava-se nossa literatura, nossa música, nossa pintura) e jamais teria condições práticas de ter uma indóstria cinematográfica sólida e criativa. Tal afirmação reforçava a atitude hipercrítica para com nossas realizações eventuais. Enquanto isso, do cinema de fora tudo se aceitava. De repente, isolado, surgia não se sabe como nem por quê, um Limite, de Mário Peixoto. Em tomo dele se formava toda uma irreal mitologia. Mais citado do que visto, mais aplaudido do que apreciado, -seu exemplo não proliferaria e seu realizador ficava neste filme ónico, prometendo outros que jamais sairiam do papel ou de sua cabeça. Anos vazios se passavam. Quase não se tomava conhecimento da obra de Humberto Mauro. Depois, aos poucos, despontavam outros títulos: O cangaceiro, de Lima Barreto; O pagador de promessas, de Anselmo Duarte; Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos; São Bernardo, de Leon Hirshmann; Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha. Poucos mais. Até hoje nossa produção vem se processando em ciclos mais ou menos estanques. Tendências e influências pululam, se sobrepõem, se entrechocam. 191

Não se pode falar em predomínio constante, mas é patente a preponderAncia do modelo ~encano e o desejo de imitá-lo. Não existiam (nem existem) recursos para seguir os grandes espetáculos cecildemilianos, incompatíveis com a realidade social e econômica do país e que nada significam em termos de arte. Nem a vanguarda francesa nem o expressionismo alemão motivavam produtores e póblico. A penetração do cinema inglés, russo, japonês sempre foi pequena. Durante algum tempo, a partir da década de cinqüenta, uma saída provável pareceu estar no neo-realismo italiano, de temas viáveis e menor custo. Falemos dos ciclos. Eis alguns: o de Cataguases com a figura predominante de Humberto Mauro. O da Atlântida, com a chanchada que laborava uma espécie de pastiche ou paródia do musical e da comédia americana. O baiano e o mineiro em busca de suas raízes. O gaócho recuperando um modo de ser da juventude dos anos setenta e o da Vera Cruz, na década de cinqüenta, tentando transplantar para o nosso meio, iiiealisticamente, uma indóstria moldada nos grandes estódios hollywoodianos. Por fim, o cinema novo e a pornochanchada. A ordem cronológica pode não ser essa nossa desordem. Pouco importa para o que pretendemos. A pornochanchada apelava para os instintos mais primários, vivia do epidénnico, utilizava-se de meia dózia de fórmulas estereotipadas. Tem sido salientada, com propriedade, a ligação do filme pornô com o AI-5. Banido o debate e o questionamento das artes de massa (e não só delas), apelou-se para a aparente transgressão dos bons costumes, enquanto se reduzia o sexual ao genital, reforçando o estereótipo dQ brasileiro com os testículos na cabeça. Com o cinema novo abria-se uma promissora fase. Era o assim chamado "cinema de autor". Uma câmera na mão, uma idéia na cabeça. Se, por um lado, puxava para o neo-realismo italiano no que diz respeito a orçamentos baixos e a uma certa visão desmistificadora da vida, por outro, investia, quase sempre, num intelectualismo distanciado dos produtores que temiam arrisclll"'se nele e mais distanciado do espectador comum, a quem a mensagem custava a chegar ou não chegava. Criava-se novo impasse, que, mesmo com o surgimento da Embrafilme (pensada para um diferente contexto político), não foi solucionado. Tornava-se diflcil criar um padrão, uma marca identificadora. Discutia-se que os filmes estavam sendo feitos para ganhar prêmios em festivais. O mercado interno continuava dominado pelas superproduções, pelos filmes sem conteúdo, que nada contribuíam para melhorar o nosso produto ou o nosso espectador. Forjar uma indóstria forte? Forjar uma arte? Forjar mitos? Competir mesmo internamente com o produto estrangeiro? De que maneira? Cármen Miranda seria a nossa Greta Garbo? Cadé nosso Carlitos? Estaria na pele de um Grande Otelo ou de um Oscarito? Queremos deixar bem claro: não que eles não tivessem qualidades histriônicas ou carisma. Mas faltava ao nosso cinema um embasamento, 192

uma proposta, uma continuidade. Faltava, acima de tudo, pensar-se o cinema como arte e como inddstria. Uma indústria atenta à nossa realidade, ao que temos a mostrar como povo, não querendo inutar ou copiar modelos alheios a ela. tomemos !lm exemplo: o do filme musical. Rio, zoruz norte, de Nelson Pereira dos Santos, poderia ter sido um rico filão. Dar início (ou continuar, se pensarmos nas chanchadas musicais da Atlântida) a uma prolífica mitologia do compositor popular, do sambista de morro, do sambista de carnaval, do cantor rural Não houve como prosseguir. Ficou-se naquele embrião. E por insólito que pareça, nessa trilha o melhor resultado (sabemos das restrições que se levantaram e das críticas que continuam se fazendo ao filme) é o do diretor francês Marcel Camus, calcado na peçá de Vinícius de Moraes. Queremos nos referir a Orfeu da Conceição, onde um tema da mitologia grega é adaptado à nossa realidade de hoje. Aqui é bom esclarecer que, embora defendendo leis protecionistas para nosso cinema (número mínimo de dias de exibição, preço do filme virgem e do equipamento, taxação do produto estrangeiro, combate à venda em "pacotes") - pois estamos na situação, que seria ridícula, caso lhe ignorássemos as causas, de lutar para conquistar o mercado brasileiro embora nesta posição, não defendemos reserva de mercado temática ou confinamento temático. Que outros nos usem como tema (e nos reservamos o direito de gostar ou não) e que nossos artistas se sintam livres para explorar o mundo sem fronteiras e o tempo sem limites. Apenas é bom lembrar que, para que a mente possa sonhar, as raízes que buscam a seiva precisam de chão. Prossigamos com exemplos: o futebol. Como explicar a inexistência de uma filmografia sobre a paixão maior do brasileiro! Mais exemplos? O cangaço. Nem importa, para o que pretendemos, saber se a melhor escola seria a de um Lima Barreto ou de um Glauber Rocha. O tema em si é o que interessa - suficientemente rico, havendo campo para abordá-lo de todos os ângulos imagináveis. A maneira de tratar o tema é outra história. Melhor: outro filme. Basta percorrer, mesmo que superficialmente, o nordeste. Logo nos deparamos, entranhado no povo, com o mito do cangaço. Pois, conforme acentua René Gardies ao examinar a obra de Glauber Rocha, "o universo mítico permite a seus signos uma impressionante disponibilidade. Estão livres para migrar e para depositar seu sentido tanto entre juncos brumosos como no ventre da areia ardente; fica abolida a distância entre uma e outra. Tal geografia tem uma regra fundamental: a não-contradição". O CINEMA (assim mesmo, em caixa alta), como toda arte que se preze, deve ampliar sempre mais seu leque de abrangência, deve possibilitar vários níveis de leitura, deve, também, preservar um componente Iódico. Paulo Emffio Salles Gomes dizia ser o cinema .. a mais impura das artes e seu destino é refleti-las todas". Se assim é, por que então não termos uma indústria fllmica contínua, ambiciosa, que elabore seus mitos, que trace um expressivo painel do país, de sua gente, de suas transformações? 193

Pois, como dizia o profeta Noel Rosa, "o cinema falado/é o grande culpado/da tnmsfonnaçio/". Perfeito. Uma transfonnaçio que nos atinge, que nos toca, que nos influencia. Quer queiramos, quer nio. E que transita em nosso cotidiano (con)viver. Cheguemos lá? Chegaremos. Basta querer. Como nos gostosos seriados de antanho, aguardemos com ânsia o próximo episódio. Quando o Minotauro devent ser dell'Otado, acabando com a incredulidade e a desesperança que campeiam entre n6s. Vamos torcer pelo happy end. Ajudando, lógico, a acontecer o happy end.

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MITO E FILOSOFIA GREGA EMMANUEL CARNEIRO LEÃO* \

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Provindo do mistério temporal da realidade, os MITOS nos remetem para fontes inesgotáveis de inconsciência e consciência histórica. São criações da experiência humana com os movimentos de seu próprio princípio e os gestos de suas transformações. PELO MITO, a sobre-vivência se recolhe à densidade do verbo, em que se concentra toda a autoridade da história, a força criadora da linguagem. PARA O MITO converge a diversidade essencial das experiências do homem com a realidade. DO MITO corre hoje o sangue de ontem para um novo amanhã: possibilidade de vida e condições de herança para o advento de uma história sempre já vigente e sempre ainda por vir. COM O MITO, nos chega "o amor ainda não aprendido, a dor não conhecida", sabor deste mistério insondável da realidade na vida-morte. SEM O MITO, nem a música da história ressoa nas festas nem a dança da capoeira ginga nas celebrações dos projetos. Todo mito é uma avalanche da linguagem que toma corpo e se encarna numa história. Ler os mitos significa recolher-se à escuta desta encarnação, na medida em que vai desaparecendo na própria carne a dicotomia entre corpo e alma, carne e espírito, linguagem e história. Recolher-se a tal escuta é o que faz a Filosofia, quando pensa a realidade em suas realizações. Por isso, também Aristóteles nos diz no 2." capítulo do 1.• Livro de sua Metafísica: ó~o xa~ ~ C(I~ÀÓwu-0oç ~~ÀÓoo~oç nwç É:OTLV "um filósofo é de alguma maneira amigo dos mitos!". É que a Filosofia vive a vida que desperta com os acordes e se acorda com as vibrações de cada som da realidade. Assim, toda obra é mítica por ter a vida própria do pensamento, a sobre-vida da vida; por alcançar suficiente autonomia a ponto de desligar-se da biografia dos indivíduos e da história das comunidades; por transcender para a universalidade da sobre-vida de todos os homens, para aquela vida, portanto, donde no momento oportuno ela mesma assomou, a fim de concretizar-se numa história humana. É esta universalidade concreta, esta autonomia transitiva que decide da verdade e não verdade do mito nos mitos. Isso significa: a obra do mito nos liberta não apenas de todas as coisas já prontas e acabadas: substâncias, individualidades, sistemas, mas nos liberta, sobretudo, para •Emmanuel Carneiro Leão. Professor de Filosofia na UFRJ. Doutor em Filosofia pela Universidade de Romalltâlia. Ensafsta.

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o verbo de todas as coisas, seu nascimento, sua vibração e morte. É com a arte desta libertação que os mitos presenteiam os filósofos. É nesta profundidade que os gregos teceram as relações entre mito e Filosofia para toda a história do Ocidente. Em suas realizações, o mito é anônimo. Não tem autor. A atribuição não é obra mítica. É apropriação indébita. A obra do mito só possui mesmo a autoridade da história, tem a autoria da convivência humana. Pois nela nos chega o desafio de conviver com o outro no tempo, na medida em que nos convoca a sennos mais livremente o que fomos, descortinando o que seremos no horizonte do que somos e não somos. Só escutaremos o sentido originário do mito aceitando esta convocação, colocando-nos em questão, submetendo à força do questionamento nossas pretensas sabedorias. Ler um mito não é nem ver nem ouvir ou sentir realizações, mas ser em tudo isto e no mais o desafio que a realidade nos faz a cada instante. Desse poder do mito nos advém a estranheza nunca domesticada de suas obras: o mito acabado não acaba, nunca deixa de provocar novos sentidos, de rasgar novos horizontes, de gerar outras possibilidades. É a independência transbordante e difusa de sua obra. Dela sabem os criadores de todos os tempos, com um sabor feito de criações. Do mito valem as palavras de André Gide sobre a obra de arte: "a obra de arte acabada tem a propriedade misteriosa de nos proporcionar mais do que pretendia seu autor''. Esta experiência pertence às grandes surpresas do encontro do mito com a Filosofia, desde sua primeira vez. Surpresa é algo inesperado que não pode ser controlado. Com a surpresa nós nos poderemos encontrar depois do primeiro contacto, às vezes após muitos contactos, mas sempre na tentativa de escutar-lhes as pausas sonoras de expectativas musicais. Mas, não há dúvida, a obra do mito não é apenas transcendente. É também imanente às épocas, ou melhor, sendo fiel às épocas é que as transcende. No grau de insersão desta imanência e fidelidade, o discurso mítico presta esclarecimentos sobre as épocas, dá informações sobre mentalidades, indica maneiras de estar no mundo com os outros, anuncia concepções de homem, de vida, de mundo. Mas, se tudo isto nos proporcionam os discursos do mito, uma leitura conduzida apenas por estes interesses passaria à margem da obra criadora do mito. E por quê? - Porque não concentraria a escuta, a visão e a sensibilidade na obra do mito, na arte de ser "novo princípio, gesto de transfonnação". A ironia de toda tentativa interesseira de leitura dos mitos está na segurança de sonâmbulo com que evita encontrar-se e medir-se com a originariedade do mito e a criatividade de sua obra. Pois ambas só existem e se dão encarnadas nas realizações reveladoras da linguagem. E estas só podem ser escutadas num único interesse, no inter-esse da história. Sem o inter-esse da história, não se ouve o mito, só se ouve a si mesmo até nos mitos. As palavras do pensamento sobre o inter-esse da história nos ajudam a ler o mito como obra de criação, mesmo no horizonte de compulsão de repetição de muitos interesses, interes197

seiros e interessantes, que nem se opõem mas passam à margem do inter-esse da história nas relações com as obras de criação: Inter-esse significa propriamente: estar (esse) no meio e entre (inter) as realizações, morar e permanecer no interior do advento da realidade. Mas para o interesse de hoje vale apenas o interessante. Interessante ê tudo que permite ficar indiferente jâ no momento seguinte ao encontro e substituir a coisa encontrada por outra que, tanto quanto a primeira, não transforma o relacionamento. Hoje em dia se pretende valorizar especialmente uma coisa por achâ-la interessante. Na verdade, jâ se empurrou seu encontro para a indiferença, a monotonia e a repetição.*

Uma leitura filosófica dos mitos renuncia de bom grado a "explicar" o mito. Espera apenas preparar as condições para um encontro originário com seu advento. Nesse encontro a densidade da linguagem mítica nos leva a superar o desnível e a dualidade entre ouvido externo e ouvido interno, entre audição e escuta. A cada passo da passagem dessa leitura fazemos sempre .a experiência do silêncio da fala. No mito, toda palavra só fala por já não poder calar-se. Silêncio da fala não diz, porém, ausência da palavra. Ao contrário, diz vigência tanto no falar como no calar da obra essencial do próprio mito. Ler filosoficamente uma realização significa também acolher nas peregrinações dos discursos a diferença entre língua e linguagem; significa propiciar o diálogo entre a fala do mito nos mitos e a escuta da realidade no advento histórico das realizações. Mas realizações históricas nunca constituem motivos para o mito. A obra de um mito não pode ser explicada por nenhum motivo. Só se explica o que não é criador. O criador é sempre inexplicável para poder ser criador. Tocados pelo "coração intrépido da verdade de circularidade perfeita" do mito, todos os motivos, quando chegam à obra dos mitos, já deixaram de ser motivos para integrar-se na originariedade de uma palavra mítica. Em nossas peregrinações de ser, não ser e vir a ser, encontramos, a cada passo, uma diferença entre real, realização e realidade. É uma diferença, entretanto, que não uma coisa entre coisas, seja dada, feita ou pronta. Trata-se do diferenciar-se próprio de toda história de realização da realidade. Pois a realidade é sempre sub-reptícia, dá-se como realização na medida e enquanto se retrai e retira. A fortaleza e o modo de ser de uma época se definem pela integração das obras dos homens dentro dessa diferenciação. A existência humana é a viagem que o homem faz entre realização e realidade. Para realizar-se e ao realizar-se, o homem irrompe na totalidade e nesta irrupção instala estâncias de relacionamento com tudo que existe e não existe. Nesse sentido, o homem realiza em sua existência todas as realizações. Impulsionado pelo impacto oblíquo da realidade, constrói sua existência num contacto direto da ação transfonnadora do trabalho com as realizações. As épocas históricas são as vicissitudes daquele impacto oblíquo e deste contacto direto, isto é, das variações provocadas nos contactos com as realizações pelo impacto da realidade. Na mira de suas ações, o homem nunca pode ter a realidade. Só realizações servem de alvo a suas relações. Para fazer a sua história, o homem é feito pela História. Por isso Marx *HEIDDEGER, Martin. Was heisst Denken? M. Niemeyer, 1957. p.7.

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lembrou no 18 Brumário de Luís Bonaparte aos revolucionários de ontem e de hoje uma frase muito citada mas pouco pensada. Uma frase tão histórica que poderia figurar na Teogonia de Hesíodo e de fato figura na dinâmica de todos os seus versos: "Os homens fazem sua história mas não a fazem arbitrariamente nas condições por eles escolhidas e sim nas condições diretamente dadas e herdadas do passado. A tradição de todas as gerações mortas pesa com grande peso no cérebro dos vivos". Por causa desta circulação de futuro e passado no círculo virtuoso do presente, perguntaram de certa Troéra; Tales respondeu num feita a Tales de Mileto: Ti próteron nyx círculo: Nyx mía rloéra pr6teron! Nesta circulação, o homem é, pois, uma realização que diretamente só alcança realizações e jamais chega à realidade. Mas às vezes produz realizações privilegiadas que parecem abolir a diferença da temporalidade. Pois dão acesso, embora indireto e oblíquo, aos mistérios da realidade. São os mitos. Em seu envio se faz a experiência de momentos intensos de uma temporalidade não apenas povoada de realizações mas, sobretudo, integrada pela realidade. As leituras filosóficas do mito proporcionam um encontro com esta temporalidade originária. Abordam as realizações pela taumaturgia do instante. Descolam a existência do desejo de poder e continuação em beneficio da criatividade temporal. Nos interstícios entre realização e realidade, intervém mediadora a força criadora do mito: sua obra não é ser, nem não ser, mas a temporalização pura do vir a ser. Na sua dinâmica de inauguração se des-vela o verbo real: a realidade, retirando-se, faz desabrochar o tempo das realizações, transforma o instante numa sucessão de momentos abraçados criativamente por um mesmo impacto. Com força irresistível sente-se, então, que só é possível viver os fundamentos do tempo em termos de criação. O mito demonstra a invenção de um momento puramente ativo de ser. Ora, ação, criação e invenção são pontos de passagem, nas palavras de Nietzsche, "o que há de grande e amável no homem". Entre a realização e o nada negativo, age o instante criativo. Toda a obra do mito está aí inserida na pobreza destes interstícios. A criação histórica provém desta pobreza. Pois o movimento de subtrair-se da realidade se dá numa aventura e é todo um salto no escuro. O instante de invenção não apenas nunca se repete como nunca se aprende. Todo instante se improvisa num risco e se arrisca numa improvisação. Hoje o instante de risco e improvisação se nos propõe nas experiências, tensões e impulsos de uma passagem histórica com todas as inseguranças, hesitações e ansiedades mas também com toda a ousadia, aventura e fascínio próprios de toda passagem. Nosso século XX se torna cada vez mais um século vespertino e o homem de hoje é um homem de transição, "ein Hinüber-Mensch". O que é um século vespertino? - Século vespertino é um século de acumulação e esvaziamento, onde relacionamentos, afazeres,. conquistas, recursos, instituições, grupos e indivíduos, tudo enfim é protegido, promovido e favorecido mas, ao mesmo tempo, perde a liberdade e fenece em originalidade. Impera por toda parte um vazio saturado pelas dependências

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de ter e não ter. Por outro lado, mobilizam-se em compensação as forças da grandeza humana e crescem os empenhos de descer e as tentativas de passar. Só se fala do passado, dirigindo-se para o futuro em sintonia com o que está por vir. Toda a grande filosofia grega nos liberta hoje para um encontro com essa essência originária do mito, que se re-vela, ao velar-se na própria funcionalidade vigente tanto de sujeitos como de objetos. Escutando o ditado do mito nas transições d.a história, o filósofo toma-se profeta no sentido de escutar o por-vir no silêncio das falas. Neste presente de futuro se concentra toda sua autoridade. Hesfodo o sentiu na obscuridade essencial das palavras silenciosas das Musas do Monte Helicão "Pastores agrestes, más línguas, somente ventres, nós sabemos dizer muitas falsidades como verdades, mas, quando queremos, sabemos também dizer verdade na forma de mitos". A obscuridade do mito não é negativa no sentido de mera recusa ou simples negação de possibilidades. A obscuridade do mito é sobretudo positiva no sentido de nos atrair e pôr em condições de aceitar, nos limites de que não sabemos, a doação de novas possibilidades de ser e realizar-se. Os limites não apenas nos retiram e recusam alguma coisa. Os limites, quando o fazem, só o fazem para nos conceder e pôr nas possibilidades que somos e por isso mesmo temos. Pretender eliminar obscuridades tão criadoras equivaleria à impotência de poder tudo, de saber tudo, de fazer tudo. Pretender esclarecer tudo, é não ver nada. Para o homem finito, definido pela mortalidade, uma clareza sem sombras não esclarece, cega. Assim, o filósofo não fala de moto próprio. E por isso ele se faz todo ouvido para escutar a voz silenciosa, no alarido das passagens e transições, do mito. É o que nos lembra ao pensamento Aristóteles na passagem em epígrafe que abriu, desenvolveu e agora conclui estas colocações sobre Mito e Filosofia Grega: "Por isso também um filósofo é de alguma maneira o amigo dos mitos"!

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MITO E RACIONALIDADE FILOSÓFICA AUGUSTO NOVASKI*

Uma boa abordagem do pensamento mítico já esbarra em alguns escolhos aparentemente intransponíveis. É que a especificidade desse modo de ver a realidade tem componentes que são impermeáveis às estocadas da racionalidade, esta por sua vez constituindo-se como o instrumental mais aguçado de que dispomos, com sua lógica própria e de certa maneira implacável na destituição de tudo o que não se enquadra em seus moldes. Tal qual faz o rigor da lógica racional na abordagem da realidade, também o pensamento mítico tem uma unidade fundamental, mas já em outro registro, çm outra modulação em relação ao racional. É outro registro, dissemos, e não necessariamente um pensamento que se contraporia à razão, à qual ele sempre se esquiva quando o intuito dela é explicá-lo com a lógica a que o nosso modo técnico-científico nos acostumou. A esse propósito, diria a respeito da razão e do mito o que Chesterton dizia em relação ao poeta e ao lógico: o primeiro quer enfiar a cabeça no céu, o segundo quer enfiar o céu na cabeça: é por isso que esta arrebenta. Para a razão o mito, na acepção que aqui adotamos, não é ficção, engano e falsidade; é, isto sim, um modo de falar, ver e sentir dimensões da realidade inatingíveis racionalmente, dando-lhes significado e consistência. Nesse sentido o pensamento mítico põe limites à reflexão filosófica, que é de ordem estritamente racional, está aí toda a tradição milenar para constatá-la. Por assim ser, a racionalidade filosófica sempre relutou em aceitar os componentes míticos da vida como critérios que legitimassem uma visão de mundo, uma visão do outro, uma visão da vida. Séculos demoraram para que toda uma antropologia ftlosófica se desse conta de que era preciso redescobrir no ser humano outros níveis de "pensar" a vida que não os de ordem estritamente racional. Em outros termos, descobrir que o ser humano é colocado no ser não pela razão ou pelo intelecto, mas pelo desejo. Resguardados os diapasões e os registros, hoje ousamos dizer que há dimensões tão importantes no ser humano quanto a razão, na árdua tarefa da sua humanização. E toda uma tradição sempre colocou como distintivo específico do humano a racionalidade. O ser humano é um animal racional ... É nesse sentido que o mito perdurou na filosofia como sendo um produto um tanto ou quanto deformado da soberana atividade intelectual. Algo como uma forma primitiva de pensar, coisa de pessoas de pouca *Augusto Novask:i. Professor na Faculdade de Educação da UNICAMP. Doutor em Filosofia da Educação pela UNJCAMP. Ensaísta. Trabalho publicado em As razões do mito (Campinas, Ed. Papiros, 1989).

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cultura. É compreensível, dentro dessa lógica, que os sentimentos, em grande parte da tradição filosófica, não eram alçados à categoria de critério de verdade. Aventurar-se pelo terreno adentro do mito, na tentativa de auscultar-lhe um movimento que, dentro da sua especificidade, concorreria para a decifração da vida humana e para sua maior realização, seria, por parte da filosofia, fazer concessões indecorosas em detrimento daquilo que foi no século XVII magnificamente catalogado como sendo "idéias claras e distintas". Ainda dentro de um esquema de aproximação do significado do mito, que gostaria de ressaltar, podenamos aventar a hipótese de que o pensamento ou atitude míticos são um instrumento de controle social. Nessa lógica, a função do mito seria indispensável a toda cultura, consistindo no esforço da tradição, dando-lhe maior valor e prestígio. Este ponto de vista tem a vantagem de explicar a função que o mito exerce nas sociedades progressistas, e os caracteres despropositados que pode assumir em tais sociedades. Nessa concepção tomam forma de mito não só as narrativas fabulosas, históricas ou pseudo-históricas, mas também personalidades humanas: o herói, o duce, a super-raça, etc. Não podemos desmerecer tal abordagem do mito. Colocamo-la entretanto entre parênteses, para descermos à filosofia da subjetividade, onde a densidade do pensamento mítico pode esclarecer a complementaridade que deve haver entre ele e a racionalidade humana. Mythos yuer dizer Palavra. "No princípio era o Verbo... " diz lá o maior livro clássico do Ocidente. Há uma "palavra" no começo de tudo, algo que pronuncia o mundo, tornando-o mundo humano. Há que distinguir, entretanto, uma palavra primeira, a "palavra falante", e uma outra, a palavra segunda, a "palavra falada". A primeira é a existência humana como tal, estuante de sentido, muito mais vivida do que tematizada. Essa é de ordem mítica, referindo-se à experiência integral do ser humano com todos os seus níveis e dimensões. Entre esses níveis está a própria racionalidade, instância de sentido que só encontra seu significado se vista dentro de uma unidade fundamental, que a ela mesma sempre escapa. Tentar penetrar nessa unidade com esquemas lógicos é violentá-la. E, ao que tudo indica, essa violência é feita na medida em que é julgado inadequado tudo aquilo que racionalmente não possa ser comprovado. É assim que entendo em texto de J. Ladriere: ... a desestruturação da cultura não são somente o questionamento, ao mesmo tempo prãtico e teórico, da tradição, de sua autoridade e de suas garantias, a perd8 de eficâcia das diferentes formas de li!lluagem nas quais essa tradição encontrava-se incorporada, a dúvida sistemática lançada sobre as normas recebidas, a relativização cada vez mais radical de todas as crenças e de todos os valores; ela é, muito mais profundamente, o abalo das bases mesmas sobre as quais a existência humana, até então, havia conseguido construir-se, a ruptura de certo acordo que, bem ou mal, pôde estabelecer-se entre o homem e os diferentes componentes de sua condição, o cosmos, seu próprio passado e seu próprio mundo exterior (tal como ele se manifesta na afetividade, no imaginârio e em todas as representações oriundas da vida pulsional). Começa, então, um modo de existência em que cada um encontra-se ao mesmo tempo em toda parte e em parte alguma, em que tudo parece, pelo menos potencialmente, poder ser apreendido pelo conhecimento e transformado pela ação, mas em que nada mais tem sabor, significação concreta, repercussão no vivido, porque

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foi rompida a comunicação com as fontes do sentido. É o tempo do "desencantamento" de que falava Max Weber. O domínio do mundo faz cessar a ação das forças que mantinham o homem como que fora de si, aprisionavam-no numa espêcie de existência segunda, agora julgada irreal. Todavia, o que ela faz advir, com a destruição dos grandes súnbolos e de todos os mundos •pr6-dados", são uma profunda desilusão e a nostalgia, consciente ou inconsciente, daquilo que foi perdido e que em vão tentamos reencontrar nessas formas nobres ou irrisórias de evasão que são a pesquisa etnológica, a exploração do passado, a preocupação com a "vida selvagem", ou, então, o êxodo periódico para aquilo que hoje serve de substituto às grandes celebrações da vida cósmica. (LADRIERE, J. Os desqfios da racionalidade. p.ll6.)

Está Ladriêre a falar dentro do contexto do seu livro, que é uma análise do impacto da racionalidade técnico-científica nas culturas. E nos dá muito bem a entender que o alijamento dos componentes míticos da vida, ou sua desvalorização, trouxe a ruptura de que fala. E sem dúvida essas vicissitudes não podem menos que htfluir no modo pessoal de cada um ver o mundo, já que cada um de nós é não só artesão mas também paciente da cultura em que vive. Falamos acima que era dentro de uma filosofia da subjetividade que também se poderia buscar toda a densidade do teor mítico da existência humana. Poderíamos dar dois exemplos dessê teor. O primeiro diz respeito a essa coisa já desgastada chamada afeto. Psicologias as mais diversas "dizem" o que é o afeto. Mas não o dizem, pois sempre se lhes esquiva o que seja o afeto. É que as psicologias sem desmerecer seu precioso estatuto - são palavra segunda. São uma tematização de segundo grau, em cima de uma palavra primeira que é a experiência natural. Sei o que é afeto, porque experiencio intensamente esse grande valor humano. Mas acontece que esse "saber" meu não é de ordem racional (e as ciências o são) mas de ordem do vivido. Mas sei. E esse "saber" é tanto mais profundo quanto mais intenso o afeto. Mas acontece que a razão não consegue medir tal intensidade. Está aí um exemplo da grandeza e da miséria humana, como diria Pascal; encontro em mim níveis de conhecimento- experiência natural- e ao tentar esclarecê-los tenho que alçá-los ao nível da racionalidade para explicá-los, esmiuçálos, quantificá-los. E esbarro na impotência da razão. E por isso que ela enfeza. Mas ao ilustrar o pensamento mítico com o afeto, vem a pergunta: é ele um mito? O que tem ele a ver com a acepção de pensamento mítico que adotamos aqui? Gostaria de abordar um outro exemplo que certamente provoca a mesma pergunta. Esse exemplo tiro do meu dia-a-dia do magistério, e refere-se àquilo que poderíamos chamar de "aprendizagem do humano". Quando falamos em ensino-aprendizagem referimo-nos aos conteúdos formais transmitidos por determinada disciplina, por determinado ramo do conhecimento humano. Até numa simples conversa isso ocorre. Entretanto, gostaria de recuar um pouco mais, em proveito de uma questão ou de uma aprendizagem mais radical. Refiro-me ao conhecimento que se pode ter cada vez mais do ser humano. Aprender isso é ir se inteirando da aprendizagem mais profunda e que realmente interessa na vida: conhecer 203

o humano, o mundo humano. Essa experiência, que se dá (ou deveria se dar) ao nível do vivido e não propriamente do tematizado, configura aquilo que fundamenta um processo de ensino-aprendizagem realmente humano. Ora, em filosofia nada é fundamental enquanto algo não for derivado dele. Esse "aprender o que é humano" é fundamental nesse sentido: dele derivam todas as aprendizagens. Creio que é por aí que vai o Rubem Alves, ao dizer que o saber precisa ter sabor. Ainda falando em fundamento, em filosofia, ele não é ponto de partida somente, é tarefa, trabalho de reconstituir-se a cada momento, a cada instante em que percebemos que o processo ensino-aprendizagem está deixando de ser humano, quem sabe na iminência de tomar-se um instrumento com o qual aproprio-me do outro, reduzo o outro a mão-de-obra barata por ser eu o dono do capital intelectual. Quero com isso dizer que, ao longo dos conteúdos que devem ser cuidadosamente planejados e transmitidos, pode e deve ir sendo vivida essa aprendizagem: o humano. Dificil e árdua às vezes essa aprendizagem, pois se dá quase sempre dentro dos conflitos que são componentes muito encontradiços no relacionamento humano. Mas deve ser buscada, ou, pelo menos, não impedida. Creio mesmo que se poderia dizer que os títulos acadêmicos que o professor adquiriu só têm sentido na medida em que, entre outras finalidades, lhe propiciem encontros com gente, encontros que, através dos conteúdos arduamente adquiridos na pesquisa, resultem num bem-querer que é o sabor do saber. Retomando. Falávamos do mito como um tipo de pensar a realidade, impermeável às estocadas da razão. Ele é da ordem do vivido. Para ilustrar tomamos dois exemplos que no fundo refluem para a mesma coisa: o afeto e o bem-querer, fundamentos da aprendizagem humana. É o afeto um mito? Duas coisas gostaria de ressaltar, respondendo à questão. Primeiramente, quer-me parecer que o afeto transcende a categoria de sentimento: é também uma categoria do conhecimento. Não me refira, aqui necessariamente ao afeto recíproco entre educando-educador. Refiro-me ao afeto não como condição de possibilidade do conhecimento, mas ele próprio sendo uma categoria epistemológica. Pelo sentimento não só gosto mas conheço mais. Em segundo lugar, e conseqüentemente, esse "conhecer mais" não é de ordem racional. Dizia atrás que mythos é palavra primeira, palavra que pronuncia tacitamente o mundo, a vida, o outro. É palavra mais vivida do que refletida. Creio nesse sentido que essa experiência de "conhecimento" ao nível do vivido está na esteira de todas as considerações que fizemos do mito como uma forma de conhecimento ou de vida. E há filosofias que querem penetrar aí nessa experiência, detectar-lhe as estruturas, buscar nela um alento a mais na grande empreitada do ser humano, que é tomar-se cada vez mais humano, empreitada que é o mais alto desígnio do pensamento, seja ele filosófico ou mítico.

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Feliz ou infelizmente a racionalidade, qualquer que seja ela, científica ou filosófica, aí não penetra. Nesse sentido, em vez de citar Pascal quando fala do coração e da razão, prefiro citar ao inverso a grande máxima de Descartes: SUM ergo cogito.

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MITOLOGIA E HISTÓRIA CARLOS R. V. CIRNE LIMA*

Os filósofos, desde a antiguidade grega, costumam contrapor mythos e lógos. Mythos, segundo essa visão, parece ser somente a lenda, a fábula, a história narrada erradamente, o fato não comprovado. O mythos seria só um discurso, agradável de se ouvir. mas que não é verdadeiro. À inverdade do mythos opõe-se a verdade do lógos, o discurso racional e crítico, no qual as idéias e as histórias são examinadas e fundamentadas. Essa é, como sabemos, a exposição tradicional que se faz de Platão. No entanto, o filósofo diz bem mais do que isso. No estado ideal, a juventude deve ser educada pelo aprendizado e pelo exercício da música, da ginástica e do discurso, ou seja, do lógos (Politéia, 376 e 377 a). O discurso, porém, pode ser verdadeiro e pode ser falso. Educação, sob este aspecto, é exatamente o aprendizado de como fazer discursos verdadeiros. O discurso falso, o pseúdos lógos, deve ser desmascarado como tal, pois ele não educa e, sim, deseduca (377 a). Por isso devem, na educação dos JOVens, ser eliminados os discursos falsos, as fábulas, "os mitos que, embora contenham alguma verdade, não passam de mentiras" (377 a). É nesse contexto que Platão critica severamente Homero por misturar, na narração mitológica, a verdade e a inverdade, o que é fato real e o que é apenas imaginário (378 d). Os poetas com seus mitos, diz Platão, citando nominalmente entre eles Homero e Hesíodo (378 d. 377 e), são elementos perturbadores da educação e da ordem pública e devem ser afastados da pólis, permitindo-se apenas aqueles mitos que conduzam à verdade e à virtude (378 e). Vê-se, analisando este texto básico da Politéia, que, segundo Platão, há mitos bons, como há também mitos maus. Não se !@ta, pois, simplesmente- a e opor mythos e lógos, e, sim, de examinar e avaliar, a partir do lógos, a qualidade boa ou má de um determinado mito. Platão não só afinna que existem, de fato, alguns mitos bons. Ele afirma tambem que há mitos que são engendrados pelo próprio lógos. O discurso lógico, ao chegar ao fim de si mesmo, descobre-se como sendo um mito construído pela razão e que, já agora, deve ser executado na prática e tomar-se realidade pelo trabalho da ação. A Politéia contém uma passagem que lembra a frase de Marx, nas Teses sobre Feuerbach. Marx escreve que o filósofo e a filosofia devem passar à ação. Platão diz: Enquanto os fil6sofos não forem governo, nem o estado nem os cidadãos verão o fim de seus males, e a constituição (a politlia) que nós estamos logicamente mitologizando nio se efetivarâ como algo feito (501 e). •Carlos R. V. Clrne Lima. Professor dt> Filosofia da H ist6ria na UFRGS. Doutor em Filosofia pela Universidade de Insbruck/Áustria e Livro-Docente em Filosofia pela UFRGS. Ensafsta.

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A verdade da politéia é dupla, ela é tanto um lógos, como também um mythos. O discurso racional e crítico sobre o estado e o dever-ser do homem na sociedade, quando levado a seu término, não é apenas um discurso verdadeiro, um lógos aletós, mas um mythologoümen !ógo, um mito emergente do espírito lógico e nele fundamentado. O lógos racional, levado no curso de seu discurso a fim e cabo, sublima-se, condensa-se e manifesta-se como sendo um mito rdcional. O mito ficou razão, a razão ficou mito. Não se trata aqui de um texto isolado que pinçamos dentre ""'lUitos outros que afirmam o contrário. Trata-se de uma articulação fundamental do pensamento platônico, expressa em diversos lugares (Politéia 376 d, 501 e; Timaios 26 c, e; Nomoi 752 a, 790 e, 841 c, 980 a). O discurso lógico, ao chegar a seu fim, vira novamente um mito a ser transformado, pelo trabalho da ação prática, em realidade efetiva. O mito inicial é eaminado e avaliado pelo lógos, que se elabora como discurso lógico e racional, o qual, ao chegar a seu fim e ápice, se mostra como sendo também um novo mito, um mito mais alto e mais nobre, construído pelo lógos e nele fundamentado, mas que é, ainda e apenas, mito imaginário e não a obra efetivada pelo trabalho. Do mythos Platão passa para o lôgos, deste novamente para um tipo superior de mythos, deste, então, para a realidade feita, para o érgon. A racionalidade do lógos, em Platão, só se consuma no retomo, em nível superior, ao mythos a ser efetivado pelo trabalho dos homens. Racionalidade plena é só aquela que, partindo do mito, perpassou o discurso de fundamentação e de avaliação crítica, voltou a ser mito e se objetivou como realidade efetivada pelo trabalho e pela obra. Eis a idéia platônica da pólis, origem de todas as utopias sobre o estado. A filosofia medieval parece, à primeira vista, fazer uma oposição simplista entre mythos e lógos, caracterizando o mito como a história mal contada e em contntdição com a razão e a fé. Os mitos, na Idade Média, são as lendas pagãs com seus deuses, semideuses e heróis, a serem combatidas e expurgadas em nome da razão e da fé. A palavra "mito", nesse período, tem conteúdo e conotação totalmente negativos. No entanto, também os medievais criaram e cultivaram seus mitos bons, certos e verdadeiros, embora não os designassem por este nome. Pensemos na Legenda Áurea de Jacobus de Vorágine, por exemplo, ou nas lendas em verso, já em língua germânica, de um Hartmann von Aue ou de um Rudolph von Ems, bem como nas muitas lendas sobre os cavaleiros andantes, sobre o Rei Artur e sua mesa redonda. O conteúdo da mitologia antiga, na Idade Média, é eliminado por ser contrário à fé e à razão, mas esta racionalidade dominante, ao se completar a si mesma, faz brotar de dentro de si mesma novos mitos e novas lendas com novos conteúdos. Estes, por sua vez, serão objeto de crítica, às vezes de chacota, pelo iluminismo, quando as luzes da razão luzem novamente à maneira grega. A Filosofia, no iluminismo, resgata o jogo de oposição e de conciliação dos opostos, que há entre razão e mito, fazendo renascer o classicismo 209

dentro de uma racionalidade cristã. A lógica e a lenda se opõem, mas também se unem, se reconciliam ao nível mais alto, constituindo-se mutuamente. Hegel, aparentemente o mais racionalista de todos os racionalistas esclarecidos e iluminados, é prova disso. O jovem Hegel, num fragmento de 1796 ou 1797, sobre o programa de sistema do idealismo alemão, ao traçar as linhas mestras da organização lógica do pensamento, escreve· que a Lógica e a Metafisica devem ser essencialmente uma Ética, que esta Ética se concretiza no Estado e na História da Humanidade e que este movimento da idéia culmina com a Beleza (Edição Suhrkamp, I, 234-235), que é a conciliação do verdadeiro e do bom. A Poesia ganha, assim, uma honra mais alta; ela fica, de novo, aquilo que no começo ela era: mestra da humanidade; pois, não hâ mais nenhuma Filosofia, nenhuma História, a Poesia, só ela, vai sobreviver para al!m das ciências e das artes (ibidem, I, 235).

O jovem Hegel continua: Primeiro vou falar aqui de uma idéia que, quanto eu saiba, ninguém ainda teve: nós devemos ter uma nova mitologia, mas esta mitologia deve estar a serviço das idéias, ela deve tornar-se uma mitologia da razão (ibidem, I, 236).

O jovem Hegel retoma, assim, a Platão e aos gregos e marca uma nova etapa no estudo da mitologia e na valorização do mito, etapa esta que perdura até nossos dias. Mito, para nós, não é, como para os antigos, primeiramente algo errado e mal contado, mas a razão sábia e antiga, que se esconde sob roupagem que simultaneamente a oculta e a revela. Dois problemas especulativos aqui se colocam. Como se processa logicamente a passagem do mito para a razão? Como a razão, uma vez alcançada e consolidada em seu discurso, volta a produzir mitos? À primeira pergunta Hegel respondeu, em meu entender, satisfatoriamente; à segunda, só esboça-lhe uma linha de solução. Tentemos acompanhar-lhe o pensamento. Como se passa do mito para a razão? O mito é sempre um discurso de explicação e de justificação. As coisas e fatos do mundo precisam ser contadas, de homem para homem, na comunidade de um povo, de maneira que façam sentido. A multiplicidade dos fatos e eventos, na evolução de seu desenrolar-se, precisa ser captada e entendida como uma unidade, como um universo, como uma história. Captar e compreender a multiplicidade das coisas e fatos do mundo como a unidade do universo, ver e compreender a universalidade existente nos múltiplos indivíduos singulares, eis o sentido uno e unificante do mito. O mito é sempre, em última instância, a história sobre a origem primeira e o fim último de todas as coisas, de todos os eventos, de todos os homens. Essa história tem começo, tem meio e tem fim e, assim, faz sentido. Fazer sentido ou ter sentido é, inversamente, estar, como indivíduo, colocado na universalidade de uma história, na qual o indivíduo singular ganha validade e sentido universais, onde um começo e um fim radicalmente últimos permitem que se determine a sua localização atual, ou seja, que se determine o sentido atual, aqui e agora, que o indivíduo singular tem. Assim, mito é sempre, em sua raiz mais profunda, uma genealo210

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gia, em que os homens e eventos atuais são colocados dentro de uma série processual de heróis, semideuses e deuses, que se origina necessariamente num início absoluto que é, então, o primeiro deus, o Deus maiúsculo. Ora, essa estrutura básica do mito é exatamente a mesma da razão. A razão é o conhecimento sistematicamente organizado das causas, não só das causas intermediárias, mas também das causas últimas. As ciências particulares cuidam das causas intermediárias, a Filosofia, ciência universalíssima e radical, busca a causa ou a razão última. A mitologia chama este primeiro-último de Deus, a Filosofia o designa como o Absoluto. Pergunta-se, então, como diferem, entre si, a mitologia e a Filosofia? O mito e a razão? A resposta inicial, espontânea e aparentemente ingênua, é que o mito se apresenta mesclando a lógica da razão com a contingência de imagens, figuras, metáforas, parábolas e similares. O mito, em seu discurso, não consegue dissociar e separar o conteúdo racional e sua roupagem metafórica. A razão o faz. Aqui, já agora, a pergunta e o problema se repõem de forma aguda e específica. Por que e através de quais critérios a razão consegue dissociar-se da roupagem do mito? E qual roupagem vestirá, então, a razão? Existirá uma razão pura, uma razão nua? A razão se dissocia e se distingue do mito pelos simples fato de, por princípio, questionar sempre seus próprios fundamentos, isto é, suas perguntas e suas respostas. A pergunta radical, quando sistematicamente reposta, constitui a própria reflexão crítica, ou seja, a razão. A razão emerge de dentro do mito pela reflexão crítica, pela pergunta, sempre de novo reposta e recolocada, sobre a primeira e última causa. A razão, assim, aparece como movimento processual de depuração, no qual a logicidade insita nos homens, em seus eventos, em suas histórias parciais, questionando sempre de novo sua fundamentação, está a despir-se de seus momentos inessenciais, de seus aspectos contingentes, para luzir, finalmente, em sua luminosidade transparente a si mesma, em sua logicidade pura, livre de toda e qualquer opacidade, de toda a imperfeição. Eis o ideal de razão de Descartes, de Leibniz e, de modo geral, do lluminismo. Na Era das Luzes procura-se a perfeição, sem jaça, da luminosidade racional completa e acabada: a luz da razão, por princípio, não tem sombra. Se, em algum lugar, vislumbl'IU1llos sombras e espaços escuros, para lá devemos dirigir o foco luminoso da razão. Os escuros ficarão, então, claros, as sombras desaparecerão. A razão, em sua transparência perfeita e luminosidade irresistível, não projeta sombras, ela as elimina. A Era das Luzes é uma época em que o sol a pino não cria sombra nenhuma, sombra que, em todas as outras horas do dia, é algo correspondente e necessário, que acompanha o jogo da luz. Já Kant percebe que esse ideal é absurdo e que traz consigo dificuldades insuperáveis. A razão total e absolutamente sem sombra é algo que não existe. A razão não po-·~ despir-se tão completamente de toda e qualquer roupagem, pois nada sobraria dela. Ela mesma desapareceria, vítima última da rad:-::alidade de seu criticismo. E assim Kant isola um campo de racionalidade perfeita mas delimitada, separando-o cuidadosamente da irracionalidade das sombras que o cercam. A isso ele chama de Crítica da Razão 211

Pura. O opaco, o não-racional é retirado do campo estreito, em que luz a razão pura, ficando, apenas, um objeto do agir prático do homem e de seu juízo estético. A amplitude universal da razão, em sua luminosidade sem sombra alguma, já em Kant está quebrada. O idealismo alemão, com Fichte, Schelling e Hegel, é a história das tentativas de, mais uma vez, conciliar razão e núto. Sem podermos acompanhar os meandros desse desenvolvimento especulativo, recapitulemos o argumento central, fruto maduro desse longo processo. A luz da razão, mesmo na perfeição de sua luminosidade, sempre projeta sombra. Isso significa que a razão jamais pode apresentar-se nua, luzindo sozinha e sem roupagem nenhuma, que a oculte parcialmente. Há sempre, onde luz a razão, uma sombra correspondente, uma roupagem que a oculta parcialmente, ou seja, há sempre um mínimo de mito no próprio âmago da razão. Toda razão, em seu íntimo, tem algo de mito. Por quê? Porque se a razão fosse luminosidade perfeita e sem sombra, a sombra e a opacidade lhe adviriam de fora, do exterior, de um princípio radicalmente oposto a ela. Teríamos, então, que admitir a subsistência de um princípio das trevas, da opacidade, da contingência, princípio e,ste tão radical e importante, em seu subsistir, como o princípio da razão. A razão se oporia, como subsistência, o princípio do irracional ou da irrazão. A unidade teria um princípio, a multiplicidade teria um outro princípio, diferente do primeiro e a ele oposto. Ora, exatamente isto foi já por Platão, no diálogo Parmênides, refutado. Não pode haver um princípio próprio e autônomo da multiplicidade, senão sendo, ele, este princípio, um Uno e Único. O que significa que a multiplicidade se origina do princípio do Uno, isto é, que ela provém do mesmo e único princípio, do qual emerge também a unidade. Só se pode pensar o múltiplo a partir do uno, que é seu princípio. Só se pode pensar o uno como diferenciando-se, dentro em si, na variedade de seus múltiplos momentos. Um único princípio é a origem da luz da razão e da sombra a ela correspondente, sombra esta que revela e esconde a luminosidade, sempre imperfeita, da razão. A razão, mesmo em sua mais alta pureza lógica, veste alguma roupagem, carrega em si alguma figura, alguma metáfora, algum elemento do mito. E assim a razão, que nunca é completamente isenta de mito, tem em si a tendência de voltar ao mito, de mergulhar, de novo, no mito. Só que esse mito, que entrementes passou pelo crivo da razão e pela depuração de sua quintessência, ficou, agora, um mito racional, uma lenda de acordo com os princípios da razão, uma sombra que remete à luz, à qual corresponde. A Lógica, na dinâmica de seu processo, rompe seus limites, amplia-se e toma-se Filosofia da Natureza e Filosofia do Espírito. As categorias lógicas, que não deixam de ser e de valer, aparecem, agora, como figuras ou figurações. As figuras, que são as estruturas lógicas na Filosofia da Natureza e do Espírito, têm mais roupagem que as categorias da Lógica. Elas são mais complexas, contêm momentos contingentes, contêm elementos mais e mais históricos e míticos. As figurações, em Hegel, são arquétipos, algo intermediário entre a categoria lógica e o evento em suas circunstâncias 212

concretas. A passagem se faz, passo a passo, da categoria lógica para a figuração na Filosofia da Natureza e do Espírito e, partindo destas, para um discurso ainda mais livre, em que, rédeas soltas para a imaginação criativa, se produzem, a partir da razão, novos mitos e novas lendas. O novo mito racional é mito por sua roupagem livre e contingente, por sua apresentação, é racional por corresponder à razão. Hegel não criou nem produziu esses novos mitos racionais. Ele não os escreveu. Um discípulo dele, entretanto, que julgava o velho mestre laborar em alguns graves erros, reescreveu sua íJosofia, transformando-a em partes essenciais e produzindo os mitos racionais a ela correspondentes. Karl Matx e seus seguidores brilham por terem tentado conciliar, melhor que qualquer outro nos tempos modernos, a razão e sua mitologia correspondente. · Penso, pessoalmente, que Marx errou ao tentar conigir Hegel, mas julgo que ninguém pode negar que a mitologia criada e produzida por ele e seus seguidores seja algo incrivelmente importante e atuante no mundo em que vivemos. Um terço, quiçá metade da humanidade, vive hoje, em grau maior ou menor, sob a influência da mitologia marxista. A inevitável revolução, que libertará definitivamente todos os oprimidos de seus opressores, o estágio final do comunismo, em que, como na aurea aetas dos velhos romanos, tudo será paz e prosperidade. O mito marxista, com seus heróis, suas figuras legendárias, é e quer ser um mito racional, isto é, é e quer ser o contraponto mítico de uma determinada filosofia, que é considerada como sendo a única e a verdadeira. Nisso Marx e os marxistas têm, em meu entender, toda a razão. Eles conseguiram, como ninguém nos tempos modernos, unir e conciliar a razão e o mito, criando um mito racional que lhes serve de motivação e guia em sua ação prática. Eles fizeram o que Platão, na Politéia, preconizava como obrigação de toda filosofia legítima. Sem entrar no mérito da verdade ou inverdade da filosofia elaborada por Marx, é inquestionável que ele e seus seguidores conseguiram fazer a passagem para o mito racional, ou seja, para o mito que corresponde à filosofia pressuposta. A este mito marxista de luta de classes, da sabedoria e virtude do proletariado, da revolução inexorável e do estágio final de paz e hannonia numa sociedade sem classes e sem lutas, que vimos ser um mito baseado e fundamentado em uma determinada filosofia hegeliana de esquerda, opõe-se outro mito, este fundado em bases filosóficas menos sistematizadas. Falo do mito da livre iniciativa, do livre mercado, da lei da oferta e da procura, da mão invisível que corrige os erros dos indivíduos e restabelece o necessário equilíbrio do sistema. É o mito da regulação automática dos preços, do progresso sem fim através da produção de bens materiais, da paz e prosperidade pelo consumo sem limite. Esse é o mito da Coca-Cola, da calça Lee, do cigarro Marlboro que cria homens livres numa terra livre, do Super-Homem, do Capitão América. Os mitos atuais pululam, às vezes claros e provocadores, outras vezes subliminares e insidiosos. Mas eles estão aí, Js mitos modernos, com suas razões e suas irrazões, tudo de acordo com as filosofias que pressupõem e da qual se originam. Se o sistema 213

filosófico, no qual o mito se origina, está errado, então o mito também está errado. A verdade é o todo, diz Hegel, a verdade de uma filosofia implica a verdade do mito dela decorrente. E vice-versa, da falsidade de uma filosofia decorre a falsidade e, digamos com toda a clareza, a periculosidade do mito dela oriundo. Os mitos atuais são certos e verdadeiros ou são, eles, errados e perigosos? A pergunta e o problema nos vêm desde Platão. É necessário que cada época e cada povo examinem criticamente seus mitos, verificando a verdade ou falsidade da filosofia que lhes é subjacente. Essa é a tarefa, sempre nova, que se põe para o filósofo, para o pensamento crítico. Como a razão não é algo estático, completo e acabado, que se possa pôr no bolso da algibeira; como a razão é essencialmente processo, é pôr e repor, sempre de novo, a pergunta sobre o fundamento, também nós, em nossos dias, temos que examinar os novos mitos, cotejando essa mitologia com a razão, da qual ela emerge, dizendo, por fim, se esta razão é uma razão certa ou uma razão errada. Trata-se de um lógos alethós ou de um pseúdos lógos? A pergunta do velho mestre grego continua sempre atual e nos obriga a retomar, sempre de novo, a filosofia. Esta, a filosofia, deve renascer, em cada povo e a cada geração, como Vénus sai das águas, para que se possa fazer a crise, a separação, do que está certo e do que está errado. Mas não basta, para isso, a História? A História, enquanto apenas enumem fatos, pessoas e eventos, não é propriamente História, mas, apenas, uma lista cronológica de coisas disparatadas e sem nenhum sentido. História fica História, quando os fatos e pessoas são concatenados em eventos inteligíveis, de tal maneim que eles, agora, façam sentido. História, para ser verdadeim, pressupõe, por certo, uma cronologia de fatos e pessoas reais, mas ela só fica História, quando ela é contada como história, quando a gente, decifrando o sentido e as razões dos fatos e dos eventos brutos, conta a história. Contar história é dizer, não os fatos que foram, mas o sentido que eles tiveram, entrelaçando-se mutuamente e constituindo uma rede de razões, ou seja, fazendo sentido. Só isso é História no sentido verdadeiro, mas mesmo esta História é uma História parcial e particular, de um povo, de um penodo, sempre contada por um viés que permite e possibilita outras maneiras de contá-la. As Histórias particulares, entretanto, só fazem sentido e satisfazem, quando se ampliam e ficam a História Universal. Esta, por ser univeiSal, deve contar como foi o primeiro começo e como se vislumbra e antecipa o 6ltimo fim. A História UniveiSal, exigência intelectual da razão, deve contar o começo e o fim. E isso ela não pode. Não pode contar o fim, porque este ainda não aconteceu, não é um fato que possa ser contado. Não pode contar o primeiro começo, pois o que é radicalmente começo é 6nico e solitário; não pode haver um historiador ou cientista a fazer a crônica do primeiro começo, pois este é, por definição, o começo de tudo, inclusive dos futuros historiadores e cientistas. Assim, a História Universal, sem a qual as Histórias particulares não adquirem sentido pleno, deixa de ser História e fica Mitologia. A História Universal, não podendo contar o 214

primeiro começo e o último fim como fatos cronológicos de uma série temporal, descobre que o verdadeiro começo e o fim último da série estão sempre fora dela, constituindo-a em todos os seus momentos, mas, simultaneamente, transcendendo-os. Contar o começo e o fim, isso é História que volta ao mito racional, que fica, ela mesma, Mitologia. Mito é, assim, em última instância, a absolutidade de todos os relativos intermediários, é o princípio simultaneamente imanente e transcendente da série. Mito é a história de como Deus fica criatura e como a criatura fica divina. Este é o cerne duro e verdadeiro, o núcleo necessário de todo mito racional, que, em sua profundidade e radicalidade, é o coroamento da Filosofia e da História. Muitas são as roupagens que ele veste. É o mesmo e único Absoluto que, nas Histórias parciais e mitologias não depuradas de suas contingências, aparece como Javé, o Senhor, que escolheu um povo para ser o seu povo predileto e que irá guiá-lo para o paraíso na terra. Aparece como o Deus cristão, que se institucionaliza numa organiza9ão que é e deve ser católica, isto é, universalíssima e omni-abrangente. E o Deus que se fez homem e habitou entre nós, transformando-nos, pela graça santificante, em seres divinos, partícipes de sua divindade. O Absoluto aparece e fala por profetas e homens santos, como Maomé e Buda. As grandes religiões, em seu núcleo duro e verdadeiro, são o mito racional, que, desenvolvendo-se, não como razão, mas como mito, conjuga e conjumina verdades da razão com fatos, pessoas e eventos contingentes. Deus se faz homem contingente, os homens contingentes e históricos ficam divinos. Se a razão afrouxa as rédeas do controle racional, o mito, então, se desenvolve pela fantasia criadora. Surgem, assim, os santos que não existiram de fato e, apesar disso, não deixam de ser santos; surgem os heróis, cujas façanhas são aumentadas desmesuradamente, para que patenteiem sua natureza divina. é bom que seja assim. A razão pode e deve, em torno de seu núcleo crítico e duro, que é sua lógica, ela pode e deve transformar-se em lenda. Ela, a razão, sem perder sua luminosidade e dignidade, veste, por sobre sua roupagem lógica, outra sobre-roupagem. Ela veste uma fantasia e se mostra como mito, às vezes como mito delirante. Esse delírio mítico, fruto do deus Dioniso, enquanto sob a luminosidade de Apolo, continua fazendo sentido. Este é um delírio racional, uma theia manía, pois, nele, a razão se sabe vestida com uma roupagem, tecida pela fantasia, mas que lhe é correspondente. E isso faz sentido. Isso dá sentido ao indivíduo singular e aos povos, que, ampliando sua identidade e sua História parcial, instituem uma História omni-abrangente, uma História Universal e, a partir desta, novas mitologias que podem e devem incorporar os antigos e venerandos mitos. É permitido delirar. Tanto as fllhas de Maria como os fllhos de Exu o fazem, quando, assumindo o delírio que sobrevoa o vazio existente na História particular, assumem plenamente sua genealogia que começa sempre com um Deus. Seja-me, a mim também, permitido delirar. Eu, Cime, batizado como cristão católico e educado numa tradição típica para muitos de nós 215

brasileiros, sei que sou filho de Ruy, o professor e advogado, que é filho de Elias, o dentista, que é filho de Francisco, o juiz que veio de Pernambuco, que é filho de Antônio de Souza Cime Lima, o alferes, que em Vitória de Santo Antão casou com Clara Izabel de Lima. Todos são Cimes, provavelmente descendentes de Manoel de Vargas Cime, o sargento-mor, que no começo do século XVII veio para Salvador da Bahia. Ou, então, do capitão Peixoto Cime, que em 1609 era comandante da guarnição de quarenta homens no forte dos Reis Magos, onde hoje é a cidade de Natal. Ou, então, descendem todos de Antônio Cime, que em 1597 foi, perante o tribunal da Santa Inquisição, testemunha de Simão Peres numa pendência, em tomo de uma égua que emprestara a Jerônimo de Albuquerque. É certo que todos esses Cimes vieram de Viana do Castelo, em Portugal Para lá, para a Ibéria, foram, em antiguidade remota, a partir da ilha da Córsega, que os gregos denominavam de Kyme. Por isso os gregos que tinham vindo da Córsega eram, na Ibéria antiga, chamados de Kymes ou Cimes. Eles vieram de Argos, no coração da Grécia antiga. Eles descendem de Kymos, o chefe guerreiro que o rei fnaco envia à procura de sua filha lo, seqüestrada pelos pérfidos persas, seqüestro esse que desencadeou, como conta Heródoto, as guerras entre gregos e persas. Kymos, o chefe guerreiro, era um herói, era filho de Héracles, o qual, como todos sabemos, era filho de Zeus. Eis o primeiro começo, a genealogia mítica de todos os Cimes que eu, em meu delírio, escolhi para completar minha história, completando-a e tomando-a universal. Este meu mito, entrelaçando-se com formas cristãs de muitas gerações, bem como com elementos africanos assimilados de minha redondeza próxima, me fez o que sou. Somos todos homens contingentes, eu e muitos de nós somos historicamente irrelevantes, mas somos todos racionais, dotados de uma racionalidade que critica e desmitifica, para, ao depois, mitificar de novo, retomando à lenda e à fantasia, sob a luz apolínea da razão, num discurso que, embora em honra de Apolo, entra em delírio e faz sua oferenda a Dioniso, como também a Xangô. Este tipo de delírio é tarefa e obrigaÇão de todos os homens e de todos os povos, pois, nele, o humano e o divino se conciliam, o mito fica razão, a razão fica mito. A embriaguez do delírio nos faz rir, pois toda embriaguez tem algo de ridículo e de tolo. Mas este delírio tem um núcleo racional, ele é uma theia manía. A seriedade do mito é que Deus se faz homem e nós todos ficamos divinos. Nota: Platão foi citado de acordo com a Edição Les Bel!es Lettres, Paris, à maneira tradicional, isto é, sendo mencionados o nome do diálogo e a paginação estandardizada. Hegel foi citado de acordo com a Edição Theorie Werkausgabe, de 1981, Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main, G.W.F. Hegel, Werke in zwanzig Biinden. O número romano indica o volume, o número arábico a página.

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MITO E HISTORIOGRAFIA CLÁSSICA: a narrativa e a construção do acontecimento, o trabalho dos conceitos e o jogo das representações (leituras tucididianas) FRANCISCO MURAR! PIRES*

A conjunção das ..:ategorias -mito, de um lado, historiografia clássica de outro - suscita de imediato pensar a oposição mesma que tal conjunção supõe: mito e história. E esta oposição, por sua vez, é automaticamente traduzida por meio de uma mútua definição de proposição excludente: o universo mítico é distinguido do mundo da realidade opondo-se os atributos constitutivos da imaginação lendária e fabulosa aos atributos constitutivos dos acontecimentos e fatos. Tais deslocamentos conceituais supõem, certamente, o pensar conformado pelos horizontes da racionalidade ocidental. Nesse horizonte a noção de mito, por nós herdada da pólis grega onde ela se constitui por oposição a ,lógos, é definida em termos negativos por meio de uma dupla relação de oposição: ao real, o que faz do mito ficção, e ao racional, o que faz do mito absurdo (J.P. Vemant, Raisons du Mythe, em Mythe et société en Grece ancienne, texto de que nos valemos para tecer as considerações destes parágrafos iniciais). É especialmente pela plena constituição do lógos filosofia com Aristóteles e Platão que essa oposição culmina a sua radicalidade, afirmando a cisão que dissocia inelutavelmente uma categoria da outra, de modo que o acolhimento de uma supõe necessariamente a supressão da outra. E, ao herdar da pó/is essa noção negativa de mito constituída por oposição a lógos, a tradição de pensamento ocidental carreou também as modalidades gregas pelas quais o lógos apreendeu e enquadrou o mito. Por um lado, o lógos apreendeu o discurso mítico como expressão alegórica, como forma outra que a sua de dizer as verdades mesmas que ele afirma diretamente. Aqui o mito é integrado pelo,lógos por assimilação, pois que seu desvendamento exige sua tradução pelas categorias e formas de expressão de seu oposto. Por outro lado, o lógos apreendeu o mito como forma de expressão mesma daquilo que é algo que não a verdade, exterior a ela, que não é objeto de saber porque inapreensível pelo discurso articulado conforme a ordem da demonstração. Aqui o mito é simplesmente rejeitado pelo lógos. Mas, seja por assimilação depuradora que o purifica de suas irracionalidades, seja por exclusão categórica, o mito, constata Vemant, é exorcizado pelo lógos. O estigma dessa exorcização alcança plenamente o historiador quando ele pensa e enquadra o mito em nome da história. Pois, mesmo quando *Francisco Murari Pires. Professor de História Antiga na USP. Doutor em História pela USP. Ensaísta.

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momentos de constituição do discurso de saber da historiografia modema elegem o imaginário mítico como seu objeto privilegiado de análise, preterindo ou, até mesmo, revoltando-se contra a hegemonia dos fatos e acontecimentos, a história reafirma seu império contra o mito, já que o que se busca é apreender o que no mítico é histórico, o que no mito não é ele mesmo, mas a sua negação: a racionalidade de historicidade que o determina. Mas aqui parece que se nos depara um impasse, pois como poderia a história assim não apreender o mito, a não ser que renunciasse e negasse a sua própria identidade de lógos? Afastando-nos, então, das sendas tortuosas do mito, a reflexão proposta por este texto, no intuito de contribuir para os debates que o Seminário solicita, envereda pelas trilhas da história, almejando situar que ordem de realidades essa trilha oferece ao deslocar o mito. O que nos remete, de volta, ao ponto de partida: mito e historiografia clássica. É com Tucídides que a exclusão do mito é categórica: a constituição mesma da narrativa supõe a eliminação do fabuloso (mythõdes). Essa recusa do mito advém do estatuto de saber que a narrativa proclama, mais precisamente da qualidade de objetividade que ela afirma ao sistematizar os princípios de método que comandam a sua constituição. Pois o domínio onde reina o fabuloso não admite, para a grande maioria de suas manifestações fixadas pela tradição, a verificação comprovadora de verdade operada pela razão. Com o mito impera a crença. Então, as narrativas que se debruçam sobre os tempos antigos - poetas e logógrafos -, imersas no domínio do mito, jamais podem aspirar à pretensão de saber, pois que preterem a busca da verdade (he zétesis tês aletheías), ou porque estão comandadas pela parcialidade do engrandecimento do objeto particular por elas consagrado - caso dos poetas -, ou porque estão primordialmente interessadas em promover o entretenimento dos auditórios -caso dos logógrafos. Daí que a constituição de saber (saphõs heurein, to saphês skopein) sobre aprá.xis humana supõe a delimitação do presente, campo dos acontecimentos presenciados. Na narrativa tucididiana, portanto, a constituição do fato desloca o mito. Mas que atrativo ou encanto pode despertar uma narrativa que, obstinada por alcançar o saber objetivo acerca das ações dos homens e assim fundar a política, dedica-se a uma austera reconstituição de fatos e acontecimentos, alinhavados segundo a seqüência mesma do seu suceder? E, todavia, o texto tucididiano empolga, seduz, fascina. É que a narrativa transcende o acontecimento, ela não se constitui como mera reprodução, pelo contrário, ela cria o acontecimento, ela o constrói, ele é seu produto. É muito mais o acontecimento que resulta e advém da narrativa, do que esta dele. Mas, então, que fatos e acontecimentos ela narra? Assim, a narrativa tucididiana compõe, enquanto acontecimento ou realidade efetivada, um saber sobre a democracia ateniense comandada pela liderança pericliana. Compõe, igualmente, enquanto acontecimento ou realidade efetivada, um saber sobre a demagogia comandada pela liderança que sucede Péricles, especialmente Cleonte. Mas esses saberes, que asseguram

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sua objetividade porque alicerçados na reprodução dos acontecimentos, que fatos narram? Sobre a demagogia o lugar privilegiado do texto tucidid~ano que compõe seu conhecimento é o relato do desenrolar da Assembléia ateniense que decidiu o ataque à ilha de Sfactéria, encerrando a campanha de Pilos. O desfecho da mesma com a vitória ateniense, e mais especialmente o inusitado que essa vitória marcara- a derrota da falange hoplita espartana, mais o aprisionamento de um contingente de 290 guerreiros, dos quais 120 espartanos - é assinalado pela narrativa tucididiana como um acontecimento incompreensível, inacreditável mesmo: Esse foi o evento mais inesperado da guerra, no entender dos gregos; pois a opinião a respeito dos lacedemônios era que nem a fome nem qualquer outra necessidade lhes faria entregar suas armas, antes eles as manteriam combatendo como pudessem até à morte, Assim, duvidava-se mesmo que aqueles que haviam entregue suas armas fossem valorosos como os que morreram (IV,40,1-2; segundo a tradução de J, de Romilly).

Ora, o incompreensível e inacreditável que o acontecimento provoca encontra, pela narrativa tucididiana que o reconstitui, um entendimento e explicação. Nos sucessos que se desenrolaram em Pilos, desde sua ocupação pelas forças atenienses até a rendição espartana em Sfactéria, aparece pela narrativa a presença marcante do acaso (ryche). Nas discussões e debates que tomaram as duas Assembléias atenienses que comandaram os acontecimentos, aparece pela narrativa a presença do demagogo, ressaltando-se a estapaf6rdia loucura (maniódes) de sua atuação. De modo que a narrativa tucididiana apreende o sucesso da iniciativa de Cleonte no episódio de Pilos como obra ocorrida fora dos quadros da razão previsiva, num plano porque o acaso interferiu decisivamente, e no outro porque a deliberação foi comandada pela irracionalidade que caracteriza a demagogia. · E no corpo mesmo da reconstituição dos acontecimentos a narrativa compõe uma percepção da demagogia como movimento dialogado que se trava na Assembléia entre a atuação do demagogo, de um lado, e a intervenção decisiva das massas, de outro. Na atuação da multidão, a narrativa desnuda a irracionalidade das paixões impulsivas que a comandam. Daí, a volubilidade que marca suas decisões, sujeitas às reviravoltas do ânimo popular. Segundo os caprichos dos momentos, ora manifestam uma propensão - querem a paz -, ora se inclinam pelo oposto - desejam a guerra. Irresponsáveis, as massas não admitem o erro como decisão sua, de imediato identificam o culpado, e contra ele voltam sua animosidade catártica: o demagogo que as induziu e conduziu ao erro. Irritadas e agastadas, dão vazão à descompostura de seu vozerio e berros. Mas, para elas, a Assembléia é divertimento, onde o demagogo é seu palhaço: a multidão compraz-se em encurralá-lo, hilaria-se com suas gabolices. O pólo complementar das massas, o demagogo. Mobiliza-o exclusivamente seu horizonte de interesses pessoais. Sua promoção individual é a única preocupação de sua participação. Não pauta sua conduta por qualquer ética. Inescrupuloso, a mentira e a calúnia constituem sua forma normal de proceder. Porque se orienta exclusivamente por sua promoção pessoal, 219

não pondera e reflete suas propostas. Estas são levianas, inconseqüentes, estapafúrdias. Palhaço r bobo das massas, adula e satisfaz seus caprichos, pois que as propostas do demagogo não resultam de iniciativa própria ou de política conseqüente, mas simplesmente elas ecoam as inclinações impulsivas da multidão. E a narrativa tece, dessa forma, através da reconstituição dos acontecimentos, uma percepção conceptualizadora de demagogia. Já sobre a democracia, certamente o lugar privilegiado do texto tucididiano que efetiva seu conhecimento é a célebre passagem inicial do discurso fúnebre de Péricles, reconstituindo a oração por ele pronunciada em honra dos guerreiros de Atenas mortos no início da guerra: Observamos um regime político que nada inveja as leis de nossos vizinhos; antes somos n6s mesmos muito mais modelo para uns do que imitamos outros. Pelo nome, em razão da administração estar voltada não para poucos mas para a maioria, chama·se democracia; agora, pelo que cabe efetivamente a cada cidadão: em conformidade com as leis, hâ igualdade para todos no tocante aos lit1gios privados, mas, em conformidade com o apreço, na medida em que cada um obtenha boa reputação por algo, não é pela classe mais do que por mérito que se dã preferência para os cargos pdblicos, e nem, inversamente, pela pobreza que alguém, entretanto capaz de fazer algo de bom para a cidade, é impedido pela obscuridade de sua condição (11.37.1).

Essa passagem, pela delimitação mesma do recorte que a produz, comporta uma interpretação mais imediata, dominada pela significação que ressalta a apologia da democracia pericliana. O apanágio principal que afirma a excelência dessa forma de tegime político é o fundar-se no princípio da igualdade, por ela consagrado tanto no âmbito privado, onde ele é expressamente assegurado pelo sistema jurídico, quanto no âmbito público, pois que a democracia, que reconhece a desigualdade no campo social - há ricos e há pobres -, ignora-a no campo do político, já que irreleva e desconsidera as diferenças de classe social como instância de privilegiamento no acesso à direção estatal. Todos os cidadãos são politicamente equalizados pela democracia, pois que a diferença pertinente para a definição da participação política é a distinção por mérito, diferença esta que não nega a igualdade, antes a sublima. Tal interpretação, portanto, constrói um conhecimento sobre a realidade histórica da democracia, particularmente concretizada sob a liderança pericliana, o qual a afirma como a forma da política que efetiva o princípio da igualdade. E, suposto e ao mesmo tempo corolário implícitos na interpretação, a positividade do elogio projetada pela apologia pericliana da democracia estende-se à apreciação tucididiana que releva a figura de Péricles. No entanto, apreendida a interpretação no horizonte mais amplo das significações que o discurso tece desde o seu princípio, ressaltam nuanças significativas no que diz respeito ao entendimento tucididiano de democracia pericliana que ele constrói. Assim, em seu pronunciamento de abertura, o discurso marca, em relação à própria prática da oração fúnebre em honra dos guerreiros que tombaram pela cidade, uma reivindicação de originalidade cntica. o discurso principia contestando e, pois, divergindo frontalmente 220

do que ele declara ser a praxe de se iniciá-lo tecendo louvores ao legislador que instituiu tal prática: A maioria dos oradores que me precedeu neste lugar louva aquele que introduziu esta alocução no cerimonial de costume, considerando como belo que, no momento de seu enterro, as vitimas da guerra sejam assim celebradas. De meu lado, estimaria suficiente que, para homens cujo valor traduziu-se em atos, fossem prestadas homenagens igualmente por atos, como vedes que se faz hoje nas medidas oficiais aqui tomadas para seu sepultamento. Os méritos de todo um grupo não dependeriam de um único individuo, cujo talento maior ou menor lhes coloca em causa o crédito. Pois que é diffcil adotar um tom justo, num assunto em que a simples apreciação da verdade encontra penosamente bases seguras: bem informado e bem disposto, o ouvinte pode muito bem julgar a exposição inferior ao que ele deseja ou sabe; mal informado, pode, por inveja, estimft.lo exagerado, quando aquilo que ele ouve ultrapassa suas pr6prias capacidades; pois, não se tolera ilimitadamente elogios pronunciados a respeito de um terceiro, cada um o fazendo na medida em que se acredita capaz de realizar, ele mesmo, os feitos que ele ouve relatar; além disto, com a inveja, nasce a incredulidade (11.35.1-2; de acordo com a tradução de J. de Romilly).

O discurso inaugura-se, pois, contestando a praxe que, pelo louvor que presta ao instituidor da oração fúnebre, aceita inquestionadamente a beleza da mesma. Ele, pelo contrário, assinala sua singularidade denunciando-a duplamente. Antes de mais nada, a instituição é não só desnecessária como equivocada. Desnecessária, porque bastam os próprios atos constituintes do cerimonial de sepultamento para manifestar o reconhecimento do valor das ações e feitos dos guerreiros mortos. E equivocada porque, ao colocar esse reconhecimento na dependência do talento retórico do orador que os celebra, corre-se o risco de, paradoxalmente, não se reconhecer tal valor, mas sim colocá-lo sob suspeição. E, mais ainda, a instituição é totalmente inadequada em si mesma, dada a aporia insolúvel própria do empreendimento que ela se propõe, pois que a fala não comporta habilidade suficiente para superá-la: qual o tom justo a ser empregado enquanto elogio, de forma que este seja apreciado como a adequada manifestação de reconhecimento daquele valor? Como encontrar a medida de elogio que responde com justeza pelo valor dos feitos cumpridos? Ora, descortina-se um horizonte de possibilidades para o orador que o colocam num impasse em que fica condenado a desagradar seus ouvintes: ou se acusa a insuficiência do elogio, quando desgosta aqueles que, conhecedores dos feitos dos guerreiros, dispõem-se e esperam que o discurso não inferiorize seu valor; ou, pelo contrário, se acusa o exagero, quando desgosta aqueles que, desconhecendo os feitos, medem-nos por sua própria capacidade de realizá-los e, por inveja, estimam exagerada a apreciação que refere feitos que a ultrapassam. E o resultado é que sempre o orador é desacreditado por seu público. A seguir, ultrapassado o obstáculo que o próprio discurso colocara para si mesmo - ele desacredita a prática da oração fúnebre no momento mesmo em que a efetiva enquanto tal- por meio da alegação de observância do orador às imposições legais incidentes sobre a cidadania, o começo do discurso coloca novamente em questão a praxe que recomenda inicialmente a exaltação dos feitos dos ancestrais. Não que aqui o discurso novamente condene e não aceite tal praxe. Ele a acolhe conferindo-lhe um 221

tratamento, porém rápido e sucinto. Particulannente, o discurso descarta-se do arrolar os momentos de feitos guerreiros percorridos por Atenas, justificando por que são eles passados em silêncio: Em tudo isso, trate-se tantos dos feitos guerreiros que permitiram a seqüência de tais aquisições, quanto das ocasiões nas quais, n6s ou nossos pais, tenhamo-nos dedicado a rechaçar as investidas da guerra, seja bârbara seja grega, pretendo, a fim de não insistir aqui diante de pessoas às quais nada ensinaria, passâ-los em silêncio. Porém, quais princtpios nos levaram a esta situação, por que regime e graças a que traços de carâter ela ganhou amplitude, eis o que revelarei inicialmente, antes de tecer o elogio destes homens. Estimo que, na presente circunstância, este tema seria adequado e que todos, cidadãos e estrangeiros, podem vantajosamente dispor-se a ouvir (II.36.4; novamente de acordo com a tradução de J. de Romilly).

O discurso desobriga-se do relato dos feitos guerreiros dos ancestrais argumentando a sua desnecessidade, porque redundante: todos os conhecem, nada teriam a aprender. Mas, afinna o discurso, há outro lugar temático onde cabe ensinamento, e há vantagem em tecer esclarecimentos: os princípios fundadores da forma de politéia consagrada em Atenas. É neste momento, na esteira dessas colocações inaugurais de teor primordialmente crítico e que reclamam para o discurso uma singular postura de divergência contestadora, que se insere aquela alocução sobre a democracia. O que coloca para a alocução a solicitação de prestar esclarecimentos, tecer ensinamentos, sobre o que é a democracia. Primeiro tópico a esclarecer sobre a democracia: que entendimento de seu conteúdo ela própria, enquanto denominação (ónoma men ... ), designa? O discurso não propõe como tal o entendimento imediato, propriamente literal, posto pela mera composição dos conceitos constituintes da denominação: democracia não é por ele afirmada como o krátos do demos, como a forma que consagra o exercício do poder pelo povo. Esse, o primeiro equívoco a desfazer: Péricles entendia como o conteúdo designado por democracia não a efetivação do poder popular, mas somente a consecução da administração pública voltada para a maioria, e não para poucos (dià to me es olígous ali' es pleíones oikein demokratía kékletai}. A denominação de democracia, pelo entendimento pericliano, afinna que, nessa forma de politéia, "o demos aparece sim como beneficiário, e não como soberano" (N. Loraux. L'lnvention d'Athenes). Esse o conteúdo de democracia que o entendimento pericliano apreende e afirma em termos da própria denominação. O entendimento se amplia e precisa, apreendido agora em termos do que a prática da democracia efetivamente determina como direitos que ela reserva a cada cidadão (métesti de ... ). De pronto, coloca-se a questão da igualdade. E o discurso concede: há igualdade na democracia. Porém, a ressalva restritiva: no domínio do privado, onde as leis conferem um tratamento indistinto, indiferenciado a todos os cidadãos no tocante a seus litígios particulares (katà men tous nómous pros tà ídia diáphora pãsi to íson ). ,Assim' o discurso como que "rechaça a eficácia dos nómoi no instituir a igualdade para o domínio do privado, retirando toda significação à noção de isonomia, tomada irreconhecível e caduca" (N. Loraux). 222

Mas a igualdade afirmada pela democracia pára aí. No domínio público, no que concerne aos princípios que definem os privilégios piU'a o acesso à direção da coisa pública (es tà koinà ... protimãtai ), a democracia afinna plenamente o império da desigualdade. Aqui, a instância que determina tais princípios é a axíosis: o apreço, a consideração socia1 atribuída distintamente a cada cidadão pela coletividade, na medida mesma em que cada cidadão se distingue e diferencia dos demais pela boa reputação que seu viver político constrói (katà de ten axíosin, hos hékastos én to eudokimeí). O que implica privilegiar a excelência, a areté, como princípio definidor do acesso à direção estatal. Ou seja, na democracia predomina, para a composição do quadro estatal, a identidade qualitativa que diferencia singularmente cada indivíduo-cidadão, não podendo, pois, a identidade da pertinência à categoria socia1 sobrepor-se a ela (ouk apà mérous to pléon ... e apà aretés). Assim, desde que satisfeito o requisito que aprecia a participação do cidadão como benéfica para a cidade, não é a pobreza que impede, pela obscuridade mesma dessa condição social, esse acesso. O que implica dizer, como a outra face da mesma afirmação, que também não é a riqueza que o assegura, pois, se ser pobre, por si, não impede nem desqualifica, também ser rico, por si, não garante nem recomenda. É a interpretação deste entendimento do discurso tucididiano que gostanamos de enfatizar. Certamente o discurso não ignora que não tenha sido a pobreza que efetivamente atuou na direção do estado ateniense, mesmo desde a instituição do regime democrático. Pelo contrário, esta esteve em Atenas, desde sempre até pelo menos Péricles inclusive, em mãos aristocráticas. Após Péricles, comenta Aristóteles na Constituição de .Atenas (XXVlli.l ), a liderança do démos perdeu sua identidade aristocrática, "tendo sido nessa ocasião que o povo adotou pela primeira vez um líder que não gozava de boa reputação entre os cidadãos de respeito" (ouk eudokimoúnta parà tois epieikésin). Ora, o comentário aristotélico tem alvo certo em sua -mira: Cleonte, em primeiro plano, Cleofonte logo a seguir. Ele acusa, portanto, a impropriedade da ascensão política do segmento social identificado com o domínio da produção artesanal, segmento este economicamente afluente. Referida, então, a interpretação do texto tucididiano ao contexto histórico pós-pericliano, o discurso pericliano parece subentender que, se a questão da pobreza não solicita da democracia maiores cuidados, nem lhe coloca maiores problemas - pois, destino curioso o da pobreza que, apesar de não lhe ser barrado o acesso à administração pública, por algum impedimento institucional, efetivamente não ascende a esse plano (e o discurso, então, sutilmente, interrogaria que tal não acontece porque não é a pobreza "capaz de fazer algo de bom para a cidade"?)-, o caso afigura-se totalmente outro ao se pensar as pretensões da riqueza. O discurso comporia, então, belo recado a alvejar as pretensões de exercício da liderança do estado ateniense alicerçadas na riqueza que, entretanto, negam e sobrepõem-se ao princípio que consagra a dignidade da distinção individual socialmente reconhecida.

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É nesse sentido que, parece-nos, o texto que compõe o discurso fúnebre de Péricles, apreendido como a apreciação tucididiana que evoca o entendimento de democracia que a sua prática pericliana supõe, alcança sua proposição particular de ensinamento, de lição e saber que Tucídides retira da narrativa reconstituidora dos acontecimentos. O texto esclarece e ensina, aos atenienses especialmente, o que entender por democracia pericliana. O que Péricles ensina sobre a democracia que ele exaltava é o consagrar ela o princípio da areté. Democracia não é a afirmação da soberania popular, a remessa da direção estatal ao povo. Democracia não é a consagração da igualdade na definição política. Pelo contrário, na democracia a isonomia restringe-se ao âmbito do privado. No âmbito público, impera a desigualdade que a exceléncia supõe. Os ensinamentos tecidos pelo discurso tucididiano solapam, então, toda proclamação e pretensão de domínio político que sustente tais entendimentos equívocos de democracia - o 1krátos do ,démos pela isonomia - reclamando a autoridade de Péricles .como sua herança. O texto volta contra as vertentes políticas pós-periclianas defensoras da democracia sua própria arma, pois que a autoridade por elas conclamada precisamente as desautoriza. De forma que, ensina Tucídides, a democracia pericliana, certamente que é recomendável, porém o é precisamente na medida mesma em que não é a democracia que pensais ou quereis que seja. Democracia e Demagogia afloram, portanto, como conceitos tmbalhados pela narrativa tucididiana no movimento e operação mesmos de re-constituição dos acontecimentos. E a manifestação dos conceitos pela construção narrativa, comandando a determinação do sentido, eminentemente político, do desenrolar e suceder dos acontecimentos, constrói um jogo de representações, um mosaico de percepções que atua tanto dissolvendo-depurando conceitos -o entendimento de democracia construído pelo Discurso Fúnebre de Péricles -, quanto condensando-decantando conceitos -o entendimento de demagogia construído pela naxrativa da Campanha de Pilos. Jogo de representações que tecem ensinamentos a orientar a política. Ensinamentos que afirmam seu estatuto de saber, cuja autoridade alicerça-se na qualidade de objetividade que comanda a constituição da narrativa. E é o fato, o acontecimento que constitui a categoria produtora da objetividade. O acontecimento, portanto, categoria fundadora da narrativa histórica, afirma o alcance político de sua autoridade. Ora, mas o fato, o acontecimento assegura e inaugura a identidade histórica da narrativa deslocando o mito que assinalava a identidade poética. E se o acontecimento, porque produto configurado pela autoridade do lógos, legitima a condução da política, haveria, por implicação, algo que poderlamos conhecer sobre o valor político do mito, por espelhamento desse espaço do qual ele é excluído pelo fato?

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A MITOLOGIA COMO FATOR DE PENETRA"ÃO E POVOAMENTO NA AMÉRICA DO SUL LUISE BUNDY*

Ao iniciar meus estudos sobre a História Colonial Brasileira, notei a existência de uma lacuna na explicação de grande parte dos fatos ocorridos no território que atualmente compõe o Brasil, bem como a ausência da análise do elo que visivelmente ligou o povoamento do Brasil a grande parte das áreas que integram o restante da América do Sul. Senti, então, ser importantíssima a verificação do porquê dos acontecimentos. Percebi a necessidade de procurar conhecer as "idéias" que moveram aqueles indivíduos que deram início à penetração e colonização destas terras. Quis saber o que havia por trás do pensamento econômico manifestado pelos reis de Portugal e Espanha, bem como o que realmente regia a atitude dos seus representantes na América. Todas as ações praticadas, obviamente, o foram sob o efeito do consciente e do inconsciente. Por que, então, a História só se limita a analisar e a levar em conta aquilo que se concretiza no campo social, político e econômico? Há outras nuanças fundamentais para a real compreensão da história de qualquer povo; além de outros fatores, existem também os mitos, as ideologias e as utopias. No presente trabalho vou procurar me limitar aos mitos, pois, através do mesmo, não procuro saber quem agiu estando sob o "efeito" de ideologias ou utopias, mas, sim, saber por que um indivíduo, ou um grupo humano atuou sob certa "influência", em determinada época de sua história. Acredito que o progresso do conhecimento histórico não caminha do simples ao complexo, mas do abstrato ao concreto, através de uma oscilação contínua entre o conjunto e as partes. Deste modo, ao procurar conhecer a estrutura social, econômica e política do(s) grupo(s) que sofreu(ram) determinada influência, sinto a necessidade de encontrar as principais causas que geraram mudanças, ou seja, as relações entre as ideologias e suas infra-estruturas. Não cabe, pois, à História, estudar somente os fatos conscientes, porque a consciência, apesar de ser um estado real, o é também parcial em relação à atividade humana. Numa mesma sociedade e época histórica, podem existir vários tipos de estrutura mental interna, pois, segundo Mannheim, ao haver uma ruptura da integridade da experiência individual, o homem cai numa espécie de "vácuo social", sendo então afetada também a sua atividade intelectual. *Luise Bundy. Prdessora de História Moderna e Contemporânea na UNESP (Campos de Marília). Doutora em História Econômica pela USP. Ensaísta.

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Deste modo, muitos homens, levados pelos sonhos dos beneffcios da ciência, quando vítimas da desilusão, passam a ter um anseio romântico pelo retomo de uma época que já passou, à medida que outros procuram contornar as ambigüidades, os conflitos e as incertezas. Ao que parece, foi o que ocozreu com parte dos portugueses vindos ao Brasil durante o período colonial. Ao verificar as atitudes dos europeus então estabelecidos na costa atlântica e, posteriormente, a de parte dos paulistas (ainda no mesmo período histórico), pude constatar a presença dessas reações contraditórias e aparentemente dissociadas entre si Surge, pois, a problemática do que vem a ser a realidade, diferente para cada grupo que a buscou. Mas, talvez, a realidade tenha sido a "mesma", sendo diferentes os modos de experimentá-la.1 Durante o desenvolvimento deste trabalho, tive ainda em vista que, em última análise, uma sociedade passa a existir sob determinada 11 'forma" porque os indivíduos que nela vivem, são portadores de algum tipo de imagem mental dessa sociedade. Porém, muitos são os questionamentos que podemos fazer sobre esta "imagem". Como defini-la? Qual a sua origem? A que se destina realmente? Qual é o mecanismo presente que leva esta imagem interna e individual a se transformar numa realidade coletiva sempre diferente da imagem original? É curioso notar que os europeus que desembarcaram na América não vieram em busca da realidade-América, mas, sim, daquela que estava contida em cada um dos indivíduos, o que gerou as diferentes buscas realizadas pelos diversos grupos que penetraram o território americano. E foi ao analisar os mitos sempre presentes entre esses navegantes e/ou aventureiros e sonhadores que surgiu a possibilidade de detectar algo referente às "idéias" que moveram os primeiros aventureiros vindos à Colônia Portuguesa e as bandeiras paulistas, bem como as que geraram as atitudes dos governantes em relação à nova terra. A princípio, pensei em trabalhar somente com os mitos, de uma maneira geral em relação à América do Sul e, muito particularmente, em relação ao Brasil. Notei, entretanto, que não teria sentido apresentar simplesmente estes mitos, ou fatos relacionados com a sua procura, sem que se estabelecesse algo mais profundo, o porquê, a causa da ação do indivíduo em relação ao grupo, da ação do grupo em relação à sociedade. Portanto, ao mesmo tempo em que estruturo a pesquisa de modo a apresentar "aquilo" que moveu os homens renascentistas vindos para a América, bem como os seus descendentes, procuro mostrar a relação desses mesmos homens com o Universo, o que ocozreu através do mito, pois cabe ao mesmo explicar a origem de uma realidade ora existente. Ou seja, ele conta como ocozreu um acontecimento primordial, que teve início no começo lMANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. 2.ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1972, p.l6-24, 124-{í; LUKÁCS, G. Teoria do romance. Trad. Alfredo Margarido. Lisboa, Presença, s/d. p.33.

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do tempo, não permitindo, de certa fonna, que o homem social se dissociasse do homem natural. Portanto, o mito narra como as coisas vieram à existência, ao passo que o homem, procurando explicá-las, responde indiretamente outra questão: o porquê. É, pois, o mito que fixa o modelo de todas as atitudes humanas significativas. Toma-se ainda necessário frisar que as mitologias não são o produto do inconsciente, pois integra o modo de ser do mito, a sua revelação como mito, isto é, ele proclama que qualquer coisa se manifesta de uma maneira exemplar. 2 E, por ser um modelo sagrado, o mito ocorreu antes do tempo histórico, ao passo que tanto a utopia como a ideologia ocorrem durante o mesmo. Deste modo, temos que, ao mesmo tempo que o europeu penetrou a América movido por ideologias, ou até mesmo utopias, motivadoras de diversos tipos de expedições e do conseqüente avanço português e espanhol sobre o território sul-americano, estava também implícita nessa ação apresença da mitologia inserida em diversos níveis. Este tipo de pensamento nos remete a Goldmann, pois desenvolvo este trabalho visando a que a ciência histórica não estuda o mundo sobre o qual recai a ação dos homens, sendo, ao contrário, a análise dessa própria ação, "de sua estrutura, das aspirações que a animam e das alterações que sofre". 3 Parto, portanto, para a análise de um penodo compreendido entre aquele que antecedeu de imediato o descobrimento oo Brasil e o final do século xvm. quando os colonizadores portugueses se voltaram para o plantio da cana-de-aç6car, como uma compensação material para os sonhos que não conseguiram alcançar, tentando captar as suas aspirações, esperanças e propósitos. Alguém poderá perguntar o porquê de uma análise tão extensa, abrangendo a América do Sul. E a explicação, bastante simples, é que não consegui "isolar" o mito, ou a própria procura do mito, a uma 6nica região da América do Sul. A sua busca integra uma enorme teia, um emaranhado onde alguns perseguiram a essência, outros o seu reflexo e muitos as suas deformidades. Devido a isso, percebi não poder tratar de forma direta e isolada a Amazônia, por exemplo, fonte riquíssima para a análise da mitologia sul-americana, pois grande parte dos homens que "procuraram" uma expressão concreta dos seus mitos, partiram de São Paulo para o Amazonas, a fim de fazê-lo. Houve, portanto, uma penetração do tenit6rio a partir da margem atlântica, tendo como foco São Paulo e anterionnente Santa Catarina. Outras penetrações se fizeram a partir do Pacífico, vindo a se chocar, muitas vezes, com estes grupos, pois todos se moviam sobre um 2ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Lisboa, Livros do Brasil, s/d. p.67, 81, 83, 162; RUDHAR T, Jean. Coherence and incoherence. Revista D~genes. Italy, copyright 1972 by Mario Casalini Ltda. Editor Roger Caillois, 77. p.16; MELA TTI, J.C. fndios do Brasil. Brasflia, Coordenada Ed. de Brasnia, 1970. p.125; MALINOWSKI, Bronislaw. Estudios de psicologia primitiva. Buenos Aires, Paid6s, 1949. p.27-30, 36, 40, 89. 3 GOLDMANN, Lucien. Cilncias humanas e filosofia. 2.ed. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1970. p.25-8.

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mesmo pano de fundo, constituído por estórias sobre a América, divulgadas na Europa e vinculadas através de inúmeros processos com a mitologia originária da Europa e por histórias sobre a realidade americana de então. Destaco, portanto, em primeiro lugar, a presença dos aventureiros e/ou navegantes, à medida que retratam a "elite" e a "massa", frutos do Renascimento, e que representam um elo entre o Velho e o Novo Mundo. Estes elementos foram diretamente afetados pela desintegração do monopólio intelectual da Igreja, que ocorreu somente no final da Idade Média. Sofreram a ação da recém surgida burguesia, bem como dos grupos de oposição que integravam também a própria Igreja e que então tiveram a oportunidade de revelar ao mundo quais eram os significados contraditórios através dos quais compreendiam esse mesmo mundo. Ocorreu, então, uma derrocada da visão do mundo objetivo, que era assegurada na Idade Média pela Igreja. Aquilo que os filósofos tratavam com uma terminologia racional, se manifestou entre a "massa" sob a forma de conflito religioso. Mediante o sucesso do estado moderno e da burguesia, a visão do mundo naturalista e racionalista foi deslocando a religiosa. Tivemos uma quase independência da matéria em relação ao reino dos céus, surgindo a esperança de uma salvação extraterrena, a ilusão de que a salvação da alma estivesse em alguma parte desconhecida deste mundo. Fez-se, pois, necessária uma nova Idade do Ouro, um novo apoio, que correspondesse à imagem paradisíaca. Dessa forma, o Renascimento praticamente reencontrou e revalorizou o paganismo. Para o historiador Lucien Febvre, os homens de então tentavam sobreviver entre o racional e o irracional. 4 Para eles não existia o impossível. Viviam num meio em que estava presente a fé cristã, embora afetada, e o pensamento grego, então reintroduzido. Ante tal quadro, resta perguntar como ocorreu a conciliação das especulações dos filósofos com a sua submissão de crentes da Igreja? Febvre acreditava que os homens do século XVI não as conciliavam, a não ser com a ajuda de uma hipocrisia. Os homens daquela época tinham atingido um estado em que criavam a sua própria verdade, verdade esta que se confundia com o bem. Porém, quando a busca era feita com espontaneidade, ela deixava de ser exterior, para se tomar integrante dos indivíduos. Os seres humanos de então sofreram uma imensa transformação, passando de espectadores para agentes. Tiveram a revelação de uma verdade que não lhes era imposta, mas que era necessária por si mesma. O século XVI contou com a autoridade da palavra, que era invocada pelos reformadores. Era necessário que se prestassem ouvidos à palavra, pois uma aparição, uma ação, uma comunicação à distância, ou até mesmo um sonho profético, eram todos tidos como fatos. E como seria possível duvidar de um fato? Transmitiam-no através de palavras e estas eram os 4 FEBVRE, Lucien. El problema de la increduüdad en el siglo XVI: la religion de Rabelais. México, Union Tipogrâfica Ed, Hispano Americana, 1959. Prólogo de Henri Beer.

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documentos. 5 Era normal e contínua a comunicação entre o natural e o sobrenatural. Assim como não possuíam a noção do possível em relação ao impossível, tampouco possuíam a noção de natural em oposição ao sobrenatural. Dentro de sua visão do primitivo, em sua visão mística do Universo, não questionavam as causas assim como o fazemos. Procuravam descobrir essas causas simples e poderosas em um mundo que, por definição, escapa rt experiência, em um mundo povoado de poderes invisíveis, de forças, de espíritos, de influências que os rodeavam, determinavam e regiam os seus destinos. Buscou-se algo de novo em tudo aquilo que estava envolto em brumas. Isso tudo foi, portanto, uma reação natural contra uma religião demasiado civilizada; constou de um momento em que esses homens do século XVI, extraordinariamente crédulos, desprovidos de todo o espírito crltico, admitiram tudo que é sobrenatural, tendo real valor e existência os presságios, sinais, doenças assombrosas, aparições e milagres de Deus e de Satanás. Apelar ao sobrenatural foi um esforço importantíssimo dos homens submersos nos fatos, para dominar a sua confusão mertal. Justificava-se isso, pois, para eles, não existia a possibilidade de imaginar um Universo como o atual. Todo o seu minúsculo Universo estava ordenado em função da Terra. Eles não tinham a infinidade de mundos desconhecidos, sendo levados, então, a povoar o seu espaço celeste com seres estranhos, mas que, todavia, se mantinham ao alcance da imaginação humana. Além de não sentirem a necessidade da existência de provas, não tinham uma preocupação com a objetividade, ou até mesmo o temor à contradição. Deste modo, todos, em maior ou menor escala, misturavam a "natureza" e o "sobrenatural". No entanto, parece não ter havido um movimento de oposição ao cristianismo. Houve uma superposição e uma convivência de crenças e tradições. Neste novo estágio, os homens passaram a querer mais do que existia na realidade. Desenvolveu-se, então, a fantasia e esta nasceu da idealização e do atavio de tudo aquilo que era mundano e que necessitava ser modificado. Como resultado, talvez do desengano, talvez da impaciência, julgaram alguns poder ver, no seu presente, as maravilhas que os homens aguardavam do futuro. Povoara-se, portanto, de sonhos o seu mundo, surgindo o problema da aceitação da realidade do presente. O absoluto, outrora utilizado para entrar em comunhão com o divino, passou a ser o instrumento usado por alguns, para ocultar, perverter ou distorcer o próprio presente. Seria essa uma forma de fuga do vazio, que restou aos que não se integraram às ideologias reinantes? Quanto aos "satisfeitos" com a ordem das coisas, para o que provavelmente erigiram uma situação causal do mundo

5Malinowski, em suas obras, Magia, ciencia, religwn e Estudios de psicologia primitiva, defende a tese de que existe uma conexão Intima entre a palavra, os mitos, os contos sagrados de uma tribo e seus a tos rituais, sua ação moral, organização social e atividades práticas. MALINOWSKI, Broníslaw. Magia, ciencia, religwn. Barcelona, Ariel, 1974. p.l17, 120; Idem. Estudios de psicologia primitiva. Buenos Aires, Paid6s, 1949. p.25, 37-8.

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como sendo absoluta e eterna, de modo a ter ao que se apegar, não puderam fazê-lo, senão recorrendo o tempo todo ao mito e às noções românticas. O mundo complexo que se apresentou aos homens, cheio de incertezas e dúvidas, criou a necessidade de as pessoas abraçarem um objetivo imediato, como se fosse absoluto, maneira esta de fazer com que seus problemas parecessem concretos e reais. Entre os portugueses vindos para a América, por exemplo, parece ter ocorrido, a princípio, um dos tipos de "falsa consciência", que é uma interpretação incorre ta que faz o indivíduo de si mesmo e do seu papel. Em alguns casos, as pessoas chegaram a encobrir as suas relações "reais" consigo mesmas e com o mundo, falseando para si os fatos básicos da existência humana, deificando-os, idealizando-os ou romantizando-os, recorrendo à fuga de si mesmas e do mundo. Portanto, quando há a tentativa de resolução de conflitos e ansiedades, em que o indivíduo recorre a absolutos, apresenta-se um caso de distorção ideológica. Tal coisa ocorre, como provavelmente ocorreu no início da colonização da América, quando foram "criados" mitos, ou quando ocorreu a adoração da "grandeza em si", ou ainda a invocação da submissão a "ideais", à medida que, na conduta efetiva, foram seguidos outros interesses, mascarados por uma retidão inconsciente, por demais transparente. Na relação Portugal-J:Srasil, aesde o inicio do período colonial, vê-se expressa de maneira clara o patrimonialismo, organização política básica predominante então em Portugal e que passou ao governo a tarefa de tutelar os indivíduos, como se estes fossem seres incapazes. Assim, vemos a projeção desses moldes portugueses atingirem a sociedade brasileira, que, segundo Faoro, constituiu um mundo "condenado à mansa agonia de muitos séculos". 6 A monarquia absolutista portuguesa, habituando o seu povo a servir, acostumou-o à inércia daqueles que esperam tudo receber sem esforço; adormeceu a iniciativa particular, vindo a obliterar o sentimento de liberdade, próprio aos homens. Dentre os seres de tal forma moldados, que vieram a povoar as terras brasileiras, destacaram-se os paulistas, devido, talvez, à solidão em que viveram, o que, de certa forma, atuando conjuntamente com os mitos, devolveu-lhes o direito de sonhar e os anseios de liberdade. Creio ver aqui um reflexo da "crise ideológica" ou da "desintegração ideológica" ocorrida num espaço de tempo em que a Idade Média européia entrou em decadência, e São Paulo, cujas características sociais devem ser analisadas para uma melhor compreensão das abstrações de seus habitantes, não passava de um aglomerado de nobres, jornaleiros, aldeões, vagabundos e mercenários que se guerreavam mutuamente na América, assim como o fizeram na Europa. Esses homens, especificamente os vindos de Portugal, já não concordavam com o significado de Deus, da Vida e do Homem, não existindo mais uma capacidade unânime de decisão, em relação ao que se deveria compreender por pecado, salvação, desespero e solidão.

6FAORO, Raymundo. Os donas do poder: formação do patronato politico brasileiro. 2.ed. Porto Alegre, Globo, 1975. t.l, p.85.

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Na América do Sul tomava-se ainda mais visível o con.úito religioso em que se encontrava o europeu, pois, além de todas as dúvidas que afloraram em seu espírito, teve que se defrontar com o indígena, que não só lhe transmitiu conceitos de crença diversa, como ainda abalou os seus hábitos sociais, no que tange ao contato com a mulher ameríndia. Mesmo quando ainda se encontrava na Europa, vendo ruir a sólida estrutura da Igreja Católica, no que passaria então a se apoiar o homem comum, destituído de noções filosóficas? Revestindo-se de um sentimento de profunda nulidade, viu crescer o seu pavor diante do sagrado, que se tomava inatingível. Verifico aqui uma analogia deste comportamento com o dos homens das sociedades primitivas, para os quais, quando um objeto qualquer chegava a manifestar o sagrado, transformava-se em outra coisa, ao mesmo tempo em que continuava a ser ele mesmo. O sagrado tomava-se, então, o real e o profano, o irreal. Fazia-se, pois, necessário, procurar apoio em outras partes. Desse modo, o inacessível deveria sê-lo, apenas pela não possibilidade de posse, de penetração, excluindo-se inconscientemente a não capacidade individual de fugir ao caos e atingir o cosmos. Foi, portanto, na América, sob a atuação de um processo semelhante, que o europeu veio procurar o seu mundo religioso, que seria identificável através de sinais misteriosos. No Novo Mundo, procurou-se, então, o "sagrado", que, ao mesmo tempo, equivalia ao "poder", o qual seria a realidade por excelência. Tornava-se necessário desbravar terras desconhecidas e povoá-las, pois unicamente um território habitado corresponderia às terras sacralizadas. Fazia-se necessária a presença do homem que soubesse invocar o Deus verdadeiro, pois, somente após feita a sua invocação, é que a comunicação com o "mundo dos deuses" estaria assegurada. Não estaria, então, associada a esta maneira "confusa" de ver as coisas, a idéia de que se situaria na América o Paraíso Terrestre, 7cabendo tanto aos portugueses, como aos espanhóis, a procura de riquezas incontáveis e o gozo de delícias que estariam diretamente ligadas ao sagrado? As próprias penetrações no Continente não teriam sido uma fonna de procurar um modo de vida social mais justo, ou mais agradável a Deus? No entanto, quanto mais penetravam naquelas terras e se adiantavam em sua análise, tanto mais o objetivo primeiro desaparecia.8 Já no início do século XVI, não se faziam sentir também, no Brasil, os dois aspectos entre os quais se "movia" a "massa" européia? Não 7segundo Mircea Eliade (O sagrado e o profano. p.78-9), a nostalgia da "perfeição dos começos", então revelada pelo homem, representa o seu desejo de reencontrar a presença ativa dos deuses, "Em termos cristãos, poderia dizer-se que se trata de uma 'nostalgia do parafso', se bem que, ao nível das culturas primitivas, o contexto religioso e ideol6gico seja de todo diferente do do judeu-cristianismo. Mas o Tempo mttico que o homem se esforça por reatualizar periodicamente ê um tempo santificado pela presença divina e num mundo perfeito (porque muito recentemente nascido) correspondente à nostalgia de uma situação paradisíaca." 8"Ich habe meine Gründe vergessen." Nietzsche, citado por MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. p.47. 231

oscilavam os aventureiros e/ou navegantes entre o absoluto, ainda tomado como meio de comunhão com o divino, pela sua não capacidade de total desligamento da Igreja, e os objetivos imediatos, tomados como absolutos, correspondendo a uma fuga do presente caótico? Creio que temos aí uma fase em que o pensamento era simplesmente desiderativo, forma essa que sempre figurou entre os seres humanos. 9 Esse tipo de manifestação ocorre, quando a imaginação não encontra satisfação na realidade existente, buscando refúgio em épocas e lugares desiderativamente construídos. Noto essa ocorrência entre os primeiros portugueses vindos ao Brasil, ou seja, a crença nos mitos (tais como vinham da Antiguidade e da Idade Média), os contos de fada, as fantasias humanísticas, promessas supraterrenas de religião e romances de viagens. Todas estas formas representam, pois, expressões, em contínua mudança, do que estava faltando na vida real. Portanto, neste caso, mesmo a crença nos mitos não atuou como uma utopia, pois, enquanto existiram como uma espécie de sonho, não tiveram uma atuação efetiva. 10 Os portugueses seguiram para a América, procurando imagens da literatura épica, que ficaram a povoar as suas mentes, ao lado dos mitos e da própria imagem do Paraíso, até então perdido, e que, a partir de sua busca vã, tomou-se irremediavelmente penlido, dando origem a um abandono resignado. A irracionalidade do cosmos teria feito surgir a sombra de Deus como qualquer coisa de demoníaco, que, vista na perspectiva desta vida, "não poderia ser apreendida nem ordenada; não poderia, portanto, revellll'-se como Deus". Forçado a aparecer como demoníaco, pela inadequação da matéria que o assumia, Deus tomou-se realmente um demônio que, num mundo sem orientação transcendental, pretendia desempenhar o papel de divindade. O mundo visado, neste caso, era o mesmo de outrora, feito por Deus, pleno de maravilhas, com a diferença de que esse se tomara prosaico, repleto de um heroísmo cheio de fé, que esperava o retomo à sua fonna primitiva. Deste modo, o que não era mais que um simples perigo no universo dos contos de fadas, do qual era necessário defender-se apenas para que não houvesse quebra do benéfico encanto, tomou-se, neste "novo" mundo, um ato positivo, uma luta pela posse do Paraíso, pela posse do 9com isto não quero negar a anterior existência da ideologia e da utopia, ou a continuidade de sua existência durante esta "fase de desintegração". A ideologia e a utopia, bem como esta fase que denominamos de "desintegração ideológica• sempre existiram, constituindo os graus de um mesmo processo mental, atuando no tempo e no espaço. 1ÜELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. p.14, 19-22, 32-5, 39-40, 59, 63-4, 67, 77-9; HOLANDA, Sêrgio Buarque de. Visão do parafso. São Paulo, Nacional, 1969. p.1, 4-6, 182-3, 189, 304; FEBVRE, Lucien. El problema de la incredulidml en el siglo XVI: la religion de Rabelais. p.XII·XIII, 304, 327, 330-2, 381·3, 385-6, 391, 399; Idem. O homem do sêculo XVI. Revista de Hist6ria. São Paulo, USP, 1:15, 1950; MANNHEIM, K. Ideologia e utopia. p.36, 44, 47, 50, 61-3, 92·3, 113, 121, 229, 231, 235-7, 249-250, 252; FRAZER, J.G. Le rameau d'orltude sur la magie et la religion. Trad. de R. Stiébel. Paris, Schleicher Freres & Cie. Edit., 1903. t.1. Magia et religion; Ies tabous. p.71.

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maravilhoso aqui na Terra. Verifica-se, então, que o Deus cristão ameaçou desamparar o mundo, no qual o homem se tornou solitário, não mais encontrando pátria em parte alguma. 11 Até certo ponto, posso dizer ter sido bastante estranha a maneira de agir do homem do século XVI, nos seus extremos de fantasia e de racionalidade. No entanto, ao procurar verificar o pensamento e ação dos portugueses no Novo Mundo, durante esta época, me defrontei com duas linhas diversas de análise. A de Sérgio Buarque de Holanda, segundo o qual existia uma moderação na fantasia reinante entre os portugueses, uma esperança sossegada que não os desligava do viver cotidiano, dos cuidados terrenos. E a de Lucien Febvre, que veremos logo a seguir. Porém, mesmo Sérgio Buarque não deixa de ressaltar que essa primeira impressão, que sugere um relativo desapego "de certas formas e imagens tradicionais", pode também ser ilusória. Parece-me ser sobre esta faceta dos portugueses, na qual é possível ver um certo realismo desencantado, voltado para o particular e o concreto, que se baseia esse historiador, para dizer que a obsessão de irrealidade é o que menos parece mover essa raça, na sua procura de terras desconhecidas. Mas tenho que levar em conta outra de suas afirmações, na qual diz que quanto menor a experiência, maior será a fantasia, sendo que a navegação do Atlântico e a tom ada de conta to com as terras americanas foram, ao que parece, novidades para os portugueses. Mas, aos poucos, a penetração do homem no mundo que lhe era desconhecido foi destruindo o encanto, o aspecto irreal. Deixou-se de acreditar na inabitabilidade da zona tórrida e em certas idéias sobre as dimensões da Terra. Até mesmo as ilhas fantásticas perderam o seu significado mítico, com o avanço dos pilotos portugueses pelo Atlântico. Porém, pode-se notar, através do desenvolvimento deste trabalho, que, apesar da quebra do encanto em relação ao todo de cada terra "descoberta", restou, no fundo do espírito do desbravador português, a esperança de encontrar algo que fizesse jus aos sonhos de seus antepassados, ou mesmo algo que alimentasse o "fundo" de sua mente, que se opunha à própria atitude lógica, que muitas vezes era obrigado a tomar. Isso pode ser notado através do contato com terras até então desconhecidas. Por outro lado, encontramos os conceitos de Febvre, segundo os quais vemos os portugueses analisados em conjunto com os outros homens dos séculos XV e XVL Nesta análise, nada encontrei que excluísse o português da "maneira estranha de agir" e dos "extremos de fantasia" que integravam o modo de ser da "massa européia". Por contraditório que possa parecer, não me foi possível aceitar a opinição de um ou outro, mas a de ambos, pois encontrei tal mescla de atitudes lógicas e fantasiosas entre os portugueses, que procurei elaborar 11 Este demonismo foi integrante "da grande confusão dos valores dentro de um sistema axiológico ainda subsistente"; foi o que restou do esforço fanático de uma religião em vias de naufragar (durante o Renascimento), e que lutou para se renovar pelas suas próprias forças. Foi, portanto, o resultado de uma última época de aspirações ocultas, realmente vividas, mas jâ privadas do seu fim. LUKÁCS. Teoria do romance. p.ll8.

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"etapas", nas quais pudesse focalizar o português, ora sob um prisma, ora sob o outro, dependendo do tempo e da escala social. Dessa forma, pode-se notar que, na realidade, tanto os cronistas, como os marinheiros e os colonos portugueses, estavam inseridos no consenso universal, pois já tinham se acostumado a contar com a presença de seres extraordinários. Encontrei um exemplo irrefutável de crença na própria figura do príncipe português, Infante D. Fernando, irmão do rei Afonso V, que, em 1457, chegou a doar a Fernão Dulmo, cavaleiro de sua casa, as ilhas perdidas sobre as quais existiam tantos rumores. Acredito que não se pode chamar a essa atração por "países" desconhecidos, ou mesmo pelas "ilhas e terra firme" das Sete Cidades, de fantasias inconseqüentes,12 Nessa sua busca de terras, os portugueses não se mostraram metódicos ou racionais. Não se deslocaram, em absoluto, para difundir a sua vontade construtora pelos "reinos" procurados. Nota-se, positivamente, através de seus métodos de colonização, que esta se fez "com desleixo e certo abandono", tendo sido efetuada por aventureiros e não por "trabalhadores". Diz Sérgio Buarque que ela se fez, apesar de seus autores, sendo a própria ocupação econômica do território brasileiro, em boa parte, uma conseqüência da pressão política exercida sobre Portugal e Espanha pelos demais países europeus. Creio, portanto, que alguns dos portugueses, assim como alguns dentre os espanhóis, partiram em busca dos mitos. No decorrer deste trabalho, pude verificar que, em muitas ocasiões, os portugueses se viram às voltas com os mitos, em terras que vieram a constituir o Brasil, como ainda, em muitas outras circunstâncias, constatou-se a presença de um realismo desencantado, através de manifestações visivelmente políticas e, posteriormente, através da "manifestação" de uma quase apatia. Quanto aos espanhóis, confirma Florescano 13 que acreditavam realmente nos mitos quando chegaram à América, porém, faz-nos ver que mesmo a penetração destes não se deu sempre através da ilusão, pois, como já citei, tudo o que é atingido, tomando-se realidade, perde o seu misticismo. Porém, mesmo assim, a penetração espanhola continuou, pois os resultados estavam sendo compensadores; isso mostra que, até certo ponto, também eles já estavam imbuídos desse tipo de busca mais objetiva, a que se refere Sérgio Buarque. Comparando a penetração portuguesa e a espanhola na América do Sul, crê este historiador ver aguçar-se, entre os espanhóis, "o senso da maravilha e do mistério" na tomada de contato com um mundo distante.I4

12HOLANDA, S. Buarque de. Virão do parafso; FEBVRE, Lucien. El problema de la incredulidad en el siglo XVI. 13FLORESCANO, Enrique. Colonizaci6n dei suelo y frontera. ln: Expansion territorial y ocupaci6n dei suelo de America (siglo XVI a XIX). Colejo de Mexico, Dir. de Álvaro Jara, 1969. p.45. 14HOLANDA, Sêrgio Buarque de. Virão do parafso. p.l2.

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Já quanto aos portugueses, de início, ao menos, segundo ordens oficiais, limitaram-se ao litoral, passando a fazer a penetração do território de maneira mais modesta. Esse modo de fazer a penetração não teria sido a forma ideal para atingir o interior, pois ele evitava que todos se deslocassem das costas, para não deixá-las totalmente despovoadas e à mercê de tantos outros povos, que então queriam a sua posse, pelos mesmos motivos? Por que a busca de "algo" distante, através do Peabiru e rios que levavam em direção aos Andes? As penetrações feitas "respeitando-se" o Tratado de Tordesilhas não teriam sido uma grande corrida em busca dos metais preciosos, na qual se disputava primeiramente o Potosi e depois o Reino Dourado? O que justifica a luta constante dos portugueses para tomar posse dos grandes rios (Prata e Amazonas) e a procura dos grandes lagos? Existiria apenas a associação de idéias com a procura do Paraíso Terrestre, ou este último já estaria, para os portugueses, diluído com a noção da existência real do atual Rio Amazonas e a do Lago Titicaca, relacionados com o Império Incaico? O que levou os portugueses a continuarem as penetrações pelo sertão americano, mesmo ap6s os insucessos iniciais quanto às riquezas fantásticas? Não estaria a resposta nos mitos, dos quais já vinham imbuídos, reforçados e (ou) complementados em muitos casos pelos indígenas, além do clima psicológico da nova terra, que continuou favorecendo a sua aceitação? Ao que parece, na Colônia Portuguesa, mesmo muitos dos que não se deixaram penetrar por tais "idéias" na Europa, as assimilaram ao entrar em contato com os "náufragos", os índios e a natureza exuberante do Novo Mundo. Mas, provavelmente, não teria sido este rápido contato com os "náufragos" das costas brasileiras, ou um primeiro acesso aos índios, cuja língua não falavam, a causa da movimentação em busca do fantástico, por parte dos portugueses. Da mesma forma como os outros povos europeus (alemães, ingleses, franceses e holandeses), teriam vindo já imbuídos de sonhos, animados por referências às "riquezas fáceis" da América, que circulavam na Europa. Ainda no Velho Mundo, embebedaram-se os habitantes da Península Ibérica da literatura farta de figuras míticas, de modo que se tornara natural a crença em fontes mágicas, monstros e homens disformes, bem como que fosse intransponível a linha equinocial e inabitável a zona tórrida, ou, ainda, a crença nos antípodas, que seriam seres que habitavam sob a terra. Como resultado de um "romantismo insular", ilhas distantes, por estarem além da área habitada, adquiriram dimensões mitológicas, chegando certas pessoas até mesmo a visualizar uma grotesca imagem do Éden. Provavelmente devido a estas imagens de ilhas fantásticas que deveriam estar a oeste da Europa, acreditaram alguns ser o Brasil, ou mesmo toda a América do Sul, uma imensa ilha. Esse conjunto de "crenças" e de "visões", ao ser transposto para a América do Sul, encontrou campos diversos para a sua sedentarização, ou evolução, dependendo da área geográfica tomada. Neste caso, foram os espanhóis enormemente favorecidos quanto às suas esperanças. Encontraram tesouros de verdade, reinos miríficos. E, no início, o fabuloso tesouro em ouro e prata encontrado pelos espanhóis veio, provavelmente, a afogar as crenças trazidas pelos portugueses, para a "sua parte" da Colônia. Contrariamente aos espanh6is, não tinham os 235

lusos infonnações tão exatas, através dos indígenas, sobre um riquíssimo império, e, se as tinham (bem como notícias sobre o Potosi), havia já, desde o início, a certeza de que tais riquezas se encontravam além do Meridiano de Tordesilhas. Restou, então, aos portugueses, uma noção difusa sobre os mitos. Quanto ao sertão, era vasto e não permitido oficialmente, e não era certa a hipótese de nele haver outro império, que não o já pertencente aos espanhóis. Ao mesmo tempo, persistia, ainda, a idéia de um Paraíso, sempre associado a lagoas e riquezas fabulosas. · Já com a própria instalação do primeiro governo da Colônia na Bahia, nota-se que todo o movimento português girou, desde o início, em tomo das riquezas, pois acreditavam ficar esta região nas proximidades, ou ao menos na latitude do Serro do Potosi, há pouco descoberto em terras espanholas. Portanto, para os portugueses, o próprio Peru não distaria muito das costas brasileiras. Com o decorrer do tempo, mesmo as imagens dos mitos incaicos migrados para a Colônia Portuguesa foram sendo defonnadas, dando origem aos mitos da conquista. Deve-se isto ao fato de terem sido concebidos pela instituição de uma realidade mal conhecida, e que, por este mesmo motivo, era desfigurada pela imaginação, segundo um modelo ideal. Frutos de épocas heróicas, os mitos geográficos corresponderam a uma necessidade de ação, tendo sido estímulo de grandes empreendimentos. Em verdade, a própria expansão incaica foi responsável pela expansão dos mitos referentes ao Império Inca. Alegando outros interesses (vinculados ao Mercantilismo), mesmo as primeiras companhias de comércio que se entusiasmaram pela América, mal conseguiram disfarçar suas idéias de conquista, em relação às riquezas fabulosas que diziam existir em terras distantes, tanto que o nome dado a uma das mais primitivas companhias de mercadores foi "Mistério e Companhia dos Aventureiros Mercadores para a descoberta de regiões, domínios, ilhas e lugares desconhecidos". Não tenho a intenção de discutir aqui quais as causas dos descobrimentos das Américas; porém, chama a atenção a vinda constante (desde o início) de europeus para a "caça ao tesouro", sagrado ou profano. Também quanto ao Brasil, os que dele se ocuparam em seus relatos, falam com constância de suas riquezas fantásticas, chegando-nos infonnações sobre este país, desde Pero Vaz de Caminha e Américo Vespúcio. Quanto a estes aspectos, resta perguntar, ainda, em que medida imperaria, entre os recém-chegados, o espírito mercantil e o da "coleta" de riquezas. Esses dois tipos de manifestações apresentavam-se, ao mesmo tempo, nos mesmos indivíduos? Ou podemos negar aos primeiros portugueses vindos para a Colônia a sua essência aventureira, deixando-lhes somente o seu espírito mercantil? Para João Lúcio de Azevedo, praticamente todos se arremessaram à conquista das terras, esperando encontrar inauditas riquezas. Este entusiasmo atingiu não só, em grande escala, todas as classes sociais, mas se estendeu, também, através de Portugal, da Espanha e ainda de outras nações. Vieram, portanto, além dos sentenciados, monges fanáticos, fidalgos pobres, soldados de fortuna, negociantes ousados, bacharéis e outros, de diversas nacionalidades. Porém, essa vinda em maior escala só 236

se efetivou realmente após 1537, pois, até esta data, se sentiam, ao menos em Portugal, dificuldades para recrutar elementos para vir ao Brasil. Nota-se, então, que o "medo" do desconhecido não durou muito. Logo, a atitude de desconfiança e hostilidade foi modificada em face das notícias de descoberta de novas riquezas. Mas, apesar da existência da atração pelo fantástico, não posso deixar de frisar que, para muitos, a vinda para a Colônia Americana não foi mais do que uma atitude de sobrevivência. Para o Brasil, tais fatos tiveram, logicamente, largas conseqüências. Houve um rápido crescimento da população e conseqüente expansão da colonização. Após a primeira metade do século XVII, durante a qual a colonização do Brasil se limitara a uma estreita faixa ao longo do litoral (pequenos núcleos esparsos) e um início de ocupação no interior nordestino, a população se avolumou, rapidamente, nos setores que já estavam ocupados, estendendo-se, além disso, sertão adentro, invadindo importantes áreas pertencentes à Espanha. A partir de 1650, em um século, os portugueses conseguiram ocupar, embora de maneira dispersa, todo o território que constitui o Brasil atualmente. No entanto, somente no século XVIII, com a economia mineira, é que se abriu um ciclo migratório europeu, com novas caracterlsticas, pois só então a própria Coroa Portuguesa descobrira que seu último recurso econômico estava na Colônia Americana. 15 Também a história da conquista da América, da invasão do desconhecido, não é mais do que a história dos seus mitos, tendo boa parte dos descobrimentos e penetrações girado em tomo da busca do sagrado. Ao descobrir a América, que para Colombo era o próprio Paraíso, os aventureiros trouxeram consigo uma considerável carga de tradições e crenças, transportando para o Novo Mundo as esperanças do encontro de riquezas que primeiramente depositaram sobre a "Antilha". Na América, desde o seu descobrimento, estes locais misteriosos e plenos de magnificências logo encontraram apoio nas notícias dadas pelos índios, sobre os Impérios do México, dos Chibchas e do Peru. Verdadeira febre enlouquecedora atingiu, então, boa parte da Europa, gerando a emigração. Essa chegou a tal ponto que, em 1525, segundo relatou um embaixador veneziano, a cidade de Sevilha pareceu ficar exclusivamente em mãos das mulheres. E, ao dirigirem-se estes aventureiros para a América, em vez de encontrarem uma realidade adversa aos seus sonhos, encontraram ricos impérios, o que gerou a alucinação, em nome da qual atravessaram inúmeras vezes o Continent~. Porém, quanto maiores as riquezas que procuravam, 15 HOI.ANDA, S.B. de. Vüão do parafso. p.1, ~7, 11·2, 9ü-1, 124, 127, 130, 140, 147, 151, 153, 182-3, 189, 304; FEBVRE, Lucien. El problema de la incredulidad. p.304, 327, 331-2, 399; FURTADO, Celso. Formação econ8mica do Brasil.. São Paulo, Nacional, 1968. p.5-6, 15-6,39, 8ü-1, 87; CORTESÃO, Jaime. Rapôso Tavares e a formação te"itorial do Brasil. Rio de Janeiro, Ministêrio da Educação e Cultura, 1958. p.31; D'AZEVEDO, J. Uicio. Os jesuftas no Grão Paro: suas missões e a colonização. Lisboa, Ed. Tavares Cardoso & Irmão, 1901. p.89, 153, 158; VIOTTI, Emília. O problema dos degredados. Revista de Hütória. São Paulo, USP, 27:~5; PRADO JR., Caio. Hüt6ria económica do Brasil. 10.ed. São Paulo, Brasiliense, 1967. p.49-50.

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mais quiméricas estas pareciam, tomando-se impossível alcançá-las. Perseguiram, pois, mitos e simples exageros formulados em nome das riquezas, que foram denominadas Quivira, Cibola, Lago Parime, ou País dos Omáguas. Na América do Sul estaria situada também uma fantástica Serra de Prata, para cujo acesso tomava-se necessária a passagem pelo litoral sul do Brasil, bem como atingir o Rio da Prata. Mesmo antes da expedição de Francisco César, que partiu especificamente à sua procura, várias embarcações tinham vindo à América, a fim de conquistar o território do Rio da Prata (via de acesso às terras fabulosas), voltando à Europa para pedir reforços, mediante a confirmação da extraordinária riqueza da região. Mas não só do Prata tentaram atingir as ricas terras do Peru. Já desde o início do século XVI, fizeram-no também através do Rio Amazonas, empenhando-se numa verdadeira corrida para a posse das terras sul-americanas tanto espanhóis, como portugueses. Porém, a boa sorte perseguiu desde o início os espanhóis, sendo coroadas de êxito não só as suas buscas de minas de prata, como também as de ouro, que ficavam nas proximidades da cobiçada "Ciudad de los Confines" e de Tucapel. Pode-se pensar, a princípio, que a crença ou procura de cidades tais como estas não tenha passado de uma confusão, na qual os espanhóis, diante das informações desencontradas dos índios, teriam criado diversas imagens de um único e real império, que seria o Peru. No entanto, através de carta de 1535, 16 tem-se notícia da busca do próprio Peru. E, para tal, segundo indica esse documento, tinham suficientes informações sobre a sua verdadeira localização geográfica, tendo em vista que procuravam alcançá-lo através do sul do Brasil, do Prata e do Rio Amazonas. Neste caso, e através de muitos outros fatos ocoiridos na história sul-americana, podemos verificar a existência de dois tipos de mentalidades paralelas. Uma, conhecedora dos aspectos geográficos (girando provavelmente em tomo de uma política) da América do Sul, e atuando em função desta realidade; e outra, ofuscada pelas visões fantásticas, penetrando o meio geográfico, cuja existência se confundia com o mitológico. Portanto, ao mesmo tempo em que comandantes e comandados embarcavam em busca do desconhecido à procura de riquezas fantásticas, as coroas ibéricas já esboçavam uma política de posse, ainda não transformada em ação efetiva, que viria a dar início a toda a problemática do estabelecimento das fronteiras sul-americanas. Excluo, pois, a hipótese de os aventureiros e sonhadores, tanto portugueses como espanhóis, terem vindo para o Novo Mundo "às escuras", pois em mapas antigos já podiam ser encontraoas representações do contorno da América do Sul, contendo esboços do Amazonas e do Prata. 16carta de 11 de julio de 1535, escrita a Carlos V por el embajador en Lisboa, Luis de Sarmiento, apud GANDIA, Enrique de. Historia de la conquista dei Rio de la Prata y dei Paraguay. Los Gobiernos de Don Pedro de Mendonça, Alvar Nunez y Domingo de Irala - 1535-1556. Buenos Aires, Libreria de Garcia Santos, 1932. p.19. (rod.12).

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Por todo o litoral atlântico os indígenas confirmavam e ampliavam as vagas notícias trazidas pelos europeus sobre as riquezas dos sertões americanos. No sul, onde circulavam rumores sobre muita prata, ouro e cobre, D. Nuno Manuel e Cristóvão de Haro ou .iram também notícias sobre um povo das serras, tão rico, que utilizava armaduras confeccionadas com finas chapas de ouro, que os combatentes usavam no peito e na testa. Provavelmente, o local atingido por essa expedição foi o estuário do Prata, onde circulavam, entre os indígenas, notícias sobre a Serra de Prata e informações, mais ou menos exatas, sobre o Império Inca e sua localização a oeste. Há cogitações de que a empresa, realizada posteriormente por Magalhães, tivesse alguma ligação com os planos de D. Nuno, pois Fernão de Magalhães partiu em busca do Estreito, que, além de ter sido representado por Schõner, 17 já havia sido anunciado pela Gazeta Alemã, à qual tivera acesso D. Nuno ManueL 18 Através de empresa despachada por D. Manuel ao Prata, e que provavelmente teria sido chefiada por Cristóvão Jacques, soube-se que, nas costas do Brasil, existiam rumores sobre grandes tesouros minerais. Devido às referências sobre um maravilhoso rio de água doce, já desde então temos registro das desconfianças do embaixador castelhano, Juan de Çuõiga, ao qual pareceu que estas terras seriam de seu Imperador. Provavelmente, o próprio navegante não chegou a eliminar a possibilidade de aquelas terras pertencerem a Castela, pois se tomaram visíveis os poucos esforços que fez junto a Portugal, para continuar a sua exploração. A primeira entrada de que se tem notícia, realizada nas costas do Brasil, teria sido a de Américo Vespúcio, que, por volta de 1504, penetrou pelo sertão de Cabo Frio, obtendo, assim como todos os aventureiros e navegantes que o sucederam, notícias sobre a existência de ouro naquela terra. Faz-se curioso notar que, já nesta época, uma expedição tenha tentado seguir para oeste por essa rota, tendo-se em vista que então a fama de "porta de entrada para as riquezas" pertencia ao Rio da Prata. Balboa, ao efetuar sua expedição, mostrou-se ainda mais ousado que seus concorrentes às posses das maravilhas, pois realizou o feito de desmontar duas de suas embarcações do lado do Atlântico, transportando-as, peça por peça, através da selva, para ir armá-las no Pacífico, a fim de poder navegar o Mar do Sul, sobre o qual lhe haviam falado os índios. De acordo com o relato de Las Casas, 19 seguindo para Darien, souberam os integrantes da expedição, através do filho de um chefe indígena, que ao sul havia mais ouro "do que ferro em Biscaia". A partir de então, tiveram cada 17Globo construido em 1515 por Schõner - ABREU, Capistrano, Caminlws antigos e povoamento do Brasil. 2.ed. Livraria Briguiet, Ed. Sociedade Capistrano de Abreu, 1960. p.17. 18scHULLER, Rodolpho R. A Nova Gazeta da Terra do Brasil (Newen Zeytung auss Presillg Landt) e sua origem mais provâvel. ln: Annaes da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Of, Graphicas da Bibl. Nacional, 1915. v.33, p.l15-37. 19Apud HOLANDA, S, Buarque de. Vi.!Üo do parafso. p.73.

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vez mais notícias sobre o Império do Sol, tornando-se estas sempre mais fascinantes. O segundo indício sobre a existência do Peru foi fornecido a Balboa por um cacique chamado Tumaco, na costa do Pacífico, que lhe informou que os "nativos" do sul possuíam ouro e certos animais com os quais transportavam as suas cargas, que eram as "ovejas de aqueDas províncias". Sob o efeito das alucinações importadas da América, atuaram na Europa homens que não hesitavam nem mesmo em tentar conseguir a adesão de seus concorrentes, na disputa americana. Entre eles, destacaram-se o português Afonso Álvares, que tentou atrair para Portugal o piloto espanhol Juan Barbero, como ainda o piloto João Afonso, contratado por Portugal e que, segundo João Lúcio de Azevedo, teria realizado "fantasiosa" viagem, que resultou numa tentativa malograda. Outra viagem sua tomou-se conhecida devido a uma obra manuscrita, 20 em que o navegador deu asas à imaginação. As idéias constantes nesse seu relato foram bastante difundidas na Europa, sendo motivadoras de outras vindas à América. Porém, as grandes empresas marítimas, que realmente atingiram as costas brasileiras e o Prata, deixando enorme "marca" na história da procura dos mitos na América do Sul, foram as de Solis e de Caboto. Não s6 eles acreditaram, como também os homens que os acompanharam, surgindo das expedições realizadas pelos mesmos resultados fantásticos quanto ao início da penetração do imenso tenit6rio. Mas, apesar da importância da sua viagem, Juan Dias de Solis não foi feliz em sua expedição, pois, logo ao desembarcar no Rio da Prata, foi morto com diversos de seus companheiros. A importância do feito deveu-se aos sobreviventes, que, divididos em dois grupos, atuaram de maneiras diversas. A maior parte dos homens, e entre eles Diogo Garcia, voltou para a Europa levando novas sobre a região. Mas, para completar o desastre da expedição, ao tentar retomar para a Espanha, uma das caravelas ou galeões naufragou nas proximidades da ilha de Santa Catarina, no local denominado Porto dos Patos. Devido a este fato, ficaram abandonados na região dezoito homens, que se tornaram elementos fundamentais para a divulgação, entre os europeus que atingiram as costas atlânticas, das notícias sobre um fabuloso império, do qual falavam os indígenas, bem como da existência do Rei Branco e de suas incríveis riquezas. Destacaram-se dentre eles: Aleixo Garcia, Melchior Ramírez, Henrique Montes e Pacheco. Aos náufragos já existentes nas costas brasileiras vieram ainda se juntar alguns homens, que faziam parte da tripulação da nau São Gabriel, pertencente à armada de Loaisa e comandada por D. Rodrigo de Acuõa. Diziam preferir viver entre os selvagens a morrer desesperados no mar. Vindo a se estabelecer na região que atualmente corresponde a Santa Catarina, tiveram grande desempenho junto a Sebastião Caboto, que veio à América, logo a seguir. ZO..com o tftulo de Cosmografia. Em resumo no livro Voyages Aventureux du Capitaine Jean Alfonce, saictongeois, dado à estampa em 1559.• AZEVEOO, J. Lácio de. Os }esuftas do Grão Par6: suas missões e a colonização. 2.ed. Coimbra, Imp. da Universidade, 1930. p.24. (rod.l).

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Desde o início, o desejo de Caboto teria sido o de subir o Rio de Solis. Após ter alterado a sua rota original e ter entrado em contato com os náufragos, soube que, subindo o Paraná, tal seria a quantidade d-- ouro e prata encontrada, que poderia carregar seus navios. Acreditava Melchior Ramírez que, na direção a que levava esse rio, estava situada a serra encontrada por Aleixo Garcia, bem como o Rei Branco, de que falavam os indígenas. Essas notícias sobre o Ocidente ignoto foram confirmadas mais adiante pelos índios, quando Caboto avançou em direção à boca do Pilc.>maio. Estabelecendo contato com um grupo, que pertenceria aos Quirandies, obteve novos informes sobre a Serra e o Rei Branco, bem como sobre muitas espécies disformes, a respeito das quais disse Luís Ramírez, náufrago que participou da empresa, preferir não escrever, por parecer coisa de fábula. Os Quirandies descreveram-lhe uma espécie de seres, que mantinham contato com eles (dos joelhos para baixo, estes tinham pés de avestruz). Referiu-se ainda a outras raças, "extraiias a nuestra natura". As únicas notícias fornecidas, dignas de crédito, foram as da existência de um mar, do outro lado da Serra. Ramírez, em sua carta, informa que os Guaranis, também conhecidos por Chandris, confinavam com os índios que habitavam na Serra, sendo possuidores de muito ouro e prata, sob a forma de numerosas lâminas, orelheiras e "machados", com que "cortam a montanha", para semear. Completa, no entanto, provavelmente influenciado pelo que se dizia na Europa sobre os habitantes da "ilha misteriosa", que esses indígenas comiam carne humana. Na própria carta de Caboto, relativa à expedição do Prata, encontra-se referência a cinocéfalos, também citados por Colombo, como tendo sido vistos nas Antilhas. Confirma-se, ainda, a "semelhança" de crença entre os dois navegantes, pois ambos tinham lido os relatos de Marco Pólo. Baseado em tal obra, Caboto chegou a representar a figura do Gran Can, em plena "Terra Incógnita", e a ilha de Cipango. Estando no Rio Paraguai, Caboto e seus homens ficaram sabendo da aproximação de uma outra armada, que vinha sob as ordens do capitão Diego Garcia de Moguer, um dos sobreviventes da expedição de Solis, que também conseguira uma "Capitulación", para ir em busca das especiarias, e, do mesmo modo que Caboto, se viu fascinado pelas riquezas, deixando sua rota para subir o Rio Paraná. Tendo em vista que o objetivo era comum e que serviam ao mesmo Rei, l!airam-se as duas expedições, a fim de continuar a busca através da América. Nesse espaço de tempo, Caboto deu licença a Francisco César e a seus homens, para tentarem descobrir as minas de ouro, prata e outras riquezas, que acreditavam existir terra adentro. As notícias trazidas por esses exploradores foram de tal modo fantásticas que, após o seu retomo, teve início uma atividade febril, a fim de que todos estivessem preparados, o mais rápido possível, para efetuar a penetração. Deste modo, ainda em fins de 1529, encontrava-se Caboto no Forte "Sancti Spiritus", tentando vencer a natureza e chegar à Serra de Prata, cuja atração se lhe tomara irresistível. No entanto, até o final daquele ano, os dois capitães deixaram-se abater pelo meio ambiente e, completamente desalentados, retomaram à Espanha. 241

Mesmo não tendo encontrado a fabulosa Serra de Prata, a expedição de Sebastião Caboto teve grande importância, desempenhando o papel de elo fundamental na procura dos mitos na América do Sul, pois os relatos feitos pelos seus soldados na Espanha fizeram com que grande número de aventureiros embarcasse na armada de Pedro de Mendonça, em direção ao Prata. Este mesmo objetivo de alcançar o Peru através do Prata animou também a expedição que veio ao Brasil, sob o comando de Martim Afonso de Sousa. Tais notícias, que haviam se propagado por Lisboa, chegaram mesmo a ser acolhidas pelo Rei de Portugal. Alguns autores acreditam que, devido à disputa do grande rio, tivesse sido doada a Martim Afonso toda a costa, desde o Cabo de São Tomé, até o Rio da Prata, o que, no entanto, não passa de um engano. Na época de Martin Afonso, a "costa do ouro e da prata" (terras localizadas de Cananéia até aproximadamente o Porto dos Patos) conservava ainda um mágico prestígio, que foi se perdendo aos poucos, sendo substituído pela busca do Carijó. Estando no Brasil, Martim Afonso enviou duas expedições ao sertão. A primeira, composta por quatro homens, partiu das costas do Rio de Janeiro, retomando após dois meses, com informações sobre a existência de muito ouro e prata no Rio Paraguai. Talvez, mas isso é pouco provável, devido ao tempo de duração da empresa, estes homens tenham penetrado na região atual de Minas Gerais. Rumando para o sul, provavelmente devido às notícias sobre as riquezas, Martim Afonso ancorou em Cananéia, onde entrou em contato com vários "náufragos", recebendo notícias estimuladoras. O objetivo de alcançar o Peru através do Prata, fundamentado em informes de Francisco Chaves, animou a expedição de 1531, ordenada por Martim Afonso de Sousa e que partiu sob o comando de Pero Lobo (ou Lopes), sendo guiada por Henrique Montes, que fora um dos companheiros de Aleixo Garcia. Nota-se que, de certa forma, todas essas expedições se entrelaçam, sendo o elemento comum de motivação a atuação dos "náufragos", que, em sua maioria, conviveram longamente com os índios, deixando-se influenciar pelas notícias sobre o Império Inca. No entanto, esta expedição de Pero Lobo também nada descobriu, tendo todos os seus integrantes sido mortos pelos índios. Na mesma época em que Martim Afonso chegou ao Brasil, Francisco Pizarro deixou o Panamá, a fim de conquistar a lendária Serra de Prata, ou terras do Rei Branco. Sabe-se que o mito da Serra de Prata, bem como o do Rei Branco, correspondiam, na realidade, a imagens deformadas do Peru, sendo que, ainda por volta do século XVI, encontramos o mito do Rei Branco relacionado com o Reino de Paititi. 21

21GANDIA. Historia critica de los mitos de la conquista americana. Buenos Aires, Juan Roldan y Compaiiia Ed., 1929. p.19, 68, 104-6, 109-10, 157-60, 162, 169-71, 174, 176-7, 194-5, 223, 245, 251-2, 275; Idem. Historia de la conquista dei Rio de la Plata. p.19, 27; HOLANDA, S. Buarque de. Vi.!iio do paralso. p.71-2, 74-8; STADEN, Hans. Meu captiveiro entre os selvagens do Brasil. Rio de Janeiro, Nacional, s/d. p.23; GANDAVO, Pero de Magalhães. Histoire de la Province de Sancta Cruz, que nous nommons ordinairement

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Também é famosa a expedição, já citada, de Francisco César, que partiu sob as suas ordens e de Caboto, no final de 1529, liderando um grupo que seguiu em busca das riquezas míticas. Desta empresa retomaram somente, ap6s quarenta ou cinqüenta dias, seis ou sete pessoas e o capitão César. Esses expedicionários nada trouxeram de concreto em matéria de riquezas, ficando essas apenas em seus relatos, pois narraram ter visto grande quantidade de ouro, prata e pedras preciosas. No entanto, assim como sobre o seu roteiro, nada se tem de positivo sobre a localização da "nação" por eles encontrada. A ónica coisa que ficou comprovada, é que César retomou à Espanha com Caboto e que, ap6s essa sua viagem à Europa, voltou para a América. A primeira viagem de Francisco César através das terras sul-americanas chegou a transformar-se numa verdadeira lenda, não faltando, até fins do século XVIII, iludidos pelo que naiTavam os índios, os que procuraram, na Patagônia, aquilo que se chamou Cidade dos Césares, cuja origem se perdeu com o decorrer do tempo, chegando a atribuir-se a existência da mesma aos náufragos da armada do Bispo de Placência. Mesmo no Conselho das Índias deu-se crédito a essa lenda, de forma que, em 1782 ou 1783, foram dadas ordens reais para que se favorecesse a expedição que estava sendo projetada pelo capitão Dom Manuel de Orejuela, para ir em busca da cidade fabulosa. De tal modo foi aceita a idéia da existência da cidade mítica, que se passou a encará-la, simplesmente, como mais um dos descobrimentos espanhóis na América. Foi o caso de Centenera, que, em carta ao Rei de Espanha, referiu-se à Cidade dos Césares, como sendo um lugar muito rico "de oro y jente", que foi descoberto por um indivíduo chamado César. Nascia, pois, ap6s a expedição de Francisco César, este que seria o último mito da conquista americana. 22 O reflexo do Peru iludiu grande número de expedicionários, entre eles Caboto, Garcia e César, porém, com coloridos düerentes. Por exemplo, nas costas do Brasil e na altura do Rio da Prata, as minas de Charcas eram conhecidas com o nome de Serra de Prata, sendo que, na região percorrida por César, era diversa a imagem, pois se entrevia o aspecto civilizado e rico do Império Peruano. O mito fundamentou-se, pois, nos le Brlsil. Paris, Arthus Bertrand, Libraire-f:diteur, 1837. p.157-8; MAFFEI, Lucy &

NOGUEIRA, Arlinda Rocha. O ouro na Capitania de São Vicente. ln: Anais' do Museu Paulista. v.20, p.9-10; CORTESÃO, Jaime. Rap8so Tavares e a formação territorial do Brasil. p.21, 35; ABREU, Capistrano, CamÜihos antigos e povoamento do Brasil. p.17·23, 254, 286, 288; MEDINA Y ZABALA, J o sê Toribio. El veneciano Sebastwn Caboto al servido de Espaíía y especiaúnente de su proyectado viaje aslas Molucas por el Estrecho de Magallanes y al reconocimiento de la costa del contÜiente hasta la govemac:Wn de Pedrariru Dllvila. Santiago de Chile, Imprenta y Encuadernaci6n Universitaria, 1908. v.1, p.442, 444-50, 452-6; HERRERA. Description de las lslas y Tierra firme de el Mar ocx:eano que llaman lndias Occidentales. 2.ed, Madrid (Nueva Reimpresion de Amberes), 1729. v.1, p.52; Carta de Pedro Taques ao Fr. Gaspar da Madre de Deos, de 29/11 (o ano não consta). ln: Documentos interessantes. t.4, p.14-5; SCHMIDEL. Vera Hirtaria Admirandae, Ovivsdam Navigationir, quam Huldericus Schmidel- Noribergae, Imprensis, Levini Hulsij, 1599, p.9, 22GANDIA. Hirtoria critica de los mitos. p.253 (rod.13), p.260 (rod.22).

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reflexos peruanos aplicados às fantásticas povoações dos náufragos da Patagônia e da Terra do Fogo; ou seja, o mito nasceu de fatos históricos rigorosamente certos, porém, estranhamente confundidos na imaginação dos conquistadores. A partir daí, a lenda dos Césares adquiriu vida própria, porém sempre dependente das civilizações das áreas que futuramente viriam a integrar o Chile e a Argentina. Devido a tal ocorrência é que o mito mudava de aspecto, com o decorrer do tempo, segundo o ângulo sob o qual era visto de um ou outro lado da cordilheira. Nesse entremeio de notícias falsas e fatos históricos, vamos notar, por fim, que a história de César, ouvida por Guzrnán no Peru, deslocou-se até o Chile, dando seu nome às lendas que circulavam sobre os náufragos do Estreito. Desta forma, também os nomes de mitos mais ou menos fantásticos com os quais denominavam outras conquistas, passaram a ser aplicados para denominar a já "mitológica odisséia dos Césares patagônicos". Por exemplo, em 1542, Francisco de Mendonza, estando no Paraná, foi informado pelos indígenas de que na parte sul havia uma província muito rica em ouro e prata, a que davam o nome de Yungulo. Essa terra, nunca descoberta, foi muitas vezes identificada com a Trapalanda, e estas duas, confundidas com a Cidade dos Césares. Também a Trapalanda, que surgiu na segunda metade do século XVI, veio a desaparecer somente em princípios do século XVlll. A Trapalanda, em si, seria um mito patagônico constituído por urna bela cidade, que teria sido erguida pelos náufragos da armada do Bispo de Placência. Acreditavam os espanhóis ser esta cidade encantada habitada por cristãos, que praticavam o batisrno e freqüentavarn igrejas, imitando as cerimônias e os costumes católicos. Houve até mesmo os que julgaram ter estado na Cidade dos Césares e ter convivido com os seus habitantes, que teriam sido os náufragos da armada de Dom Gutiérrez de Caravaxal. Transcorridos pouco mais de vinte anos após o naufrágio, lhes teriam crescido tanto os pés, que passaram a ser chamados de "Patagones". Diversas foram as expedições que procuraram as cidades míticas, confundindo-as ou não. Aliás, toma-se difícil usar o termo "confundir", se tivermos em vista que nenhuma delas pode ser realmente definida, não passando as mesmas de frutos de deformações. Por exemplo, em 1562, Juan J ofré foi encarregado de procurar, ao sul das províncias de "Cuyo", as províncias dos Césares, Telán, Linlín, Trapalanda e Conrala. No entanto, sabe-se, certamente, que Trapalanda, Linlín e "Província de la Sal" pareciam indicar urna mesma região. Partiram, especificamente, em busca da Cidade dos Césares, Hemanderias (em 1604), Luís del Pero (em 1620), Dom Jerônirno Luís de Cabrera, que saiu de Córdoba em 1622, Pérez de Zurita e os governadores de Tucurnán, Aguirre e Castaíieda. Já anteriormente, em 1586, Juan de Torres de Navarrete iniciou os preparativos de urna expedição que partiria em busca da Cidade dos Césares ou Elelín. Apesar de o mito dos Césares ter-se localizado nos extremos da Patagônia, buscaram-no desde o Paraguai, partindo à sua procura, além dos aventureiros, também os missionários. Entre eles encontrou-se, realmente com a intenção de levar a palavra de Deus aos náufragos, o Padre Nicolás 244

Mascardi, que realizou uma primeira empresa em fins de 1670, vindo a partir, novamente, dois anos ap6s, quando encontrou os restos do acampamento de Juan de Narbourough, que havia vindo para explorar a Patagônia e tomar posse do Estreito em nome do Rei da Inglaterra. O golpe definitivo desferido contra a Cidade dos Césares foi a guerra efetuada contra os índios pampeiros, na metade do século XIX, que desfez todos os vestígios de tal ilusão. 23 A expedição de Aleixo Garcia, que foi a primeira a efetuar a travessia da costa atlântica ao Império Incaico, ou ao menos até as suas imediações, serviu de modelo e de inspiração tanto a portugueses como a espanhóis, que procuraram repetir a sua façanha. O náufrago Aleixo Garcia partiu, provavelmente, do Porto dos Patos, acompanhado por cinco companheiros, fascinados pelas notícias que circulavam entre os índios. Para efetuar a penetração em direção ao oeste, conseguiram se juntar a várias centenas de guaranis, atravessando com eles as selvas do Brasil, em direção à Serra de Prata. Coube então a Aleixo Garcia certificar-se das notícias que corriam sobre as terras lendárias do sertão, efetuando viagem ao que na realidade eram os Andes Peruanos, entre os anos de 1521 e 1526,24 Posterionnente, também o governador Cabeza de Vaca, utilizando guias indígenas, tentou trilhar os mesmos caminhos.

23 GANDIA. Historia critica de los mitos. p.174 (rod.S6), 215, 250.73, 275-6; Idem. Historia de la conquista dei Rio de la Plata. p.S8 (rod,10); MEDINA. Sebasti!m Caboto- T.1, p.194-7; Idem, Coleccion de r./ocumentos ineditos para la historia de Chile (1558-1572). Rodrigo de Quiroga - M. Bravo de Saravia. Fondo Histórico y Bibliogrâfico J, T. Medina. Santiago de Chile, 1957. t.2, p.l33 (carta de Juan L6pes de Porres a S,M, de 31 de dezembro de 1574); HOLANDA, S.B. de. Visão do parafso. p.74; COR TESÃO, Jaime. Rapôso Tavares e a formação territorial do Brasil. p.54; BASTOS, Uacury Ribeiro de Assis. Expansão territorial do Brasil CoMnia no Vale elo Paraguai (1767-1801). São Paulo, 1972, Tese de Doutoramento apres. ao Depto. de H ist6ria da Faculdade de Fil. Letras e Ciên. Hum, da USP. 24HOI.ANDA, S.B. de, Visão elo parafso, p.71-4, 78, 83, 88; ABREU, Capistrano de. Caminhos antigos e povoamento do Brasil. p.11-2, 14, 17, 286, 288; MARQUES, Manuel E. de Azevedo, Apontament06 hist6ricos, geogr4ficos, biogeogroficos, estatfsticos e noticiosos da Provfncia de São Paulo. São Paulo, Martins Ed. (1953). t.1, p.39-40; SCHMIDEL. Vera historia admirandae ... p.V (prHace); GANDIA. Historia critica de los mitos... p.161-7; Idem. Historia de la conquista dei Rio de la Plata, p.S7-8, 98-9, 118-20, 164, 166; CORTESÃO, Rapôso Tavares e a formação territorial elo Brasil. p.21, 53-4, 56-7; Carta de Luiz Ramirez, de 1528, reproduzida por MEDINA. Sebastian Caboto ... t.1., p.442-56; MAFFEI, Lucy & NOGUEIRA, A.R. O ouro na Capitania de São Vicente... ln: Anais do Museu Paulista. n.• 20. p.9; TAQUES, Pedro. Carta ao Fr. Gaspar da Madre de Deos (de 29/11 - s/ano), ln: Document06 interessantes. t.4, p.13-4; ELLIS, Myriam. Pesquisa sobre a existência do ouro e da prata no Planalto Paulista. Revista de Hist6ria. 1:61, 69, 1950; ADONIAS, Isa. A cartografia da região amazónica: Cat4/ogo descritivo (150fJ..J961). Rio de Janeiro, Conselho Nacional de Pesquisas/Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, 1963, t.1., p.70; NORDENSKJÕLD, Erland, The Guarani invasion- Geographical RevÍew, New Yorque, 4:103-121, 1917; BASTOS, Uscury R. de Assis. Expansão territorial elo Brasil Colônia no Vale elo Paraguai. p.51-8.

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Logo a seguir, numa fase distinta deste trabalho, quero assinalar também a importância da ação de Tomé de Sousa e de Dom Francisco de Sousa, que chegou ao Brasil em 1591, com o cargo de governador. A estes denomino de sonhadores, numa tentativa de distingui-los dos demais chefes das expedições até aqui descritas, pois lhes coube uma "atuação mental", ou seja, a elaboração de ordens e permanência em expectativa, ao passo que os integrantes das bandeiras por eles ordenadas atuaram fisicamente, avançando em nome dos mitos, desbravando o sertão, criando novos núcleos habitacionais e expandindo as fronteiras portuguesas. Ao vir para a América, Tomé de Sousa conheceu o castelhano Felipe de Guillén, antigo boticário de Sevilha, que sonhava atingir o Paraíso, que, provavelmente, deveria estar localizado entre as montanhas do Brasil. No entanto, Guillén não conseguiu concretizar a sua expedição, apesar da sua certeza sobre a existência de muito ouro, esmeraldas e outras pedras finas na região a ser procurada. 25 Posteriormente, em 17 55, São Paulo chegou a ser retratada com características paradisíacas, ou como se fosse um dos reinos fantásticos procurados na América. 26 E foi em busca das afamadas minas de ouro e prata que Dom Francisco de Sousa, um dos maiores promotores do bandeirismo paulista, se transportou da Bahia para a capitania vicentina. Este governador, que pode ser tachado de eldoradomaníaco, foi um indivíduo obcecado pelo objetivo de encontrar a Serra de Sabarabuçu. Sob as suas ordens partiu a segunda expedição de Knivet, que teria percorrido trechos dos atuais estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Também ao ser efetuada esta empresa, seguiu-se a opinião, corrente na época, de que o Peru não poderia estar muito distante das costas do Brasil e que, portanto, não seria muito dificil atingir o Potosi. Essa expedição, apesar de ter apresentado resultados positivos somente quanto ao apresamento de índios, levou ao partir, como objetivo, ao menos aparentemente, o descobrimento de metais em terras do Alto São Francisco, onde se deveria encontrar a famosa serra resplandecente de Sabarabuçu. Assim como ocorreu com tantas outras expedições, também esta encontrou algumas pedras, provavelmente preciosas, mas não no local sonhado. Em 1602, apesar de já ter deixado o governo, Dom Francisco de Sousa ainda ordenou uma segunda expedição, que foi a de Nicolau Barreto. Já em 1605, Dom Francisco deixou a Colônia, voltando para Madri. Mas, uma vez na Europa, foi de tal lábia e força persuasiva, que conseguiu 25HOLANDA, S.B. de. Vi.lüo do ParaCro. p.35-7, 39-41, 44-7, 49, 91; ABREU, Capistrano de, Caminhos antigos e povoamento do Brasil. p.171-8, 180-7, 190, 199-202, 205; ELLIS, Alfredo. Meio slculo de bandeirismo. p.35; LEITE, Serafim. His~ria da Companhia de Jesus... t.I., p.294, 486; t.2., p.79, 173-4, 233, 244-250; MAFFEI, L. & NOOUEIRA, A. O ouro na Capitania de São Vicente- ln: Anais do Museu Paulista. lf 20; SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado de.scriptivo do Brasil em 1587. 3.ed. São Paulo, Nacional, 1938. p.61-2, 69, 73-4; CUNHA, Euclides da. Os sertões: Campanha de Canudos. 27.ed, Brasilia, Ed, Universidade de BrasUa, 1963. p.73, 26yAISSETTE, hist6r. géograp. ecclesiast. et civil. t.12, p.215 da Edição Pasiens, em 1755, apud MADRE DE DEUS, Mem6rias para a Capitania de São Vicente. p.127-8.

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enormes poderes. Foi nomeado "Governador e Administrador Geral das três capitanias de São Paulo, do Rio de Janeiro e do Espírito Santo", as quais ficaram totalmente separadas da jurisdição do governo geral da Bahia. Com a notícia do retomo de Dom Francisco, deu-se grande alvoroço entre os paulistas, que o estimavam bastante. É interessante notar, porém, que, apesar do grande entusiasmo do mesmo, que conseguiu contagiar a Corte, fazendo-a crer na existência de ouro, prata, esmeraldas e até mesmo pérolas na Colônia, ao retomar para o Brasil, Dom Francisco encontrou apenas as mesmas minas já descobertas no século anterior. Devido às atenções que o Senhor de Beringel conseguiu despertar, com as suas esperanças e promessas, sobre o sul da Colônia, tivemos uma substituição dos centros de atividades de pesquisas. Porto Seguro e Bahia, para onde se dirigiram as expedições anteriores, foram relegadas a um segundo plano, passando as capitanias do sul a ser o centro das explorações oficiais das minas. Por fim, em 1611, Dom Francisco de Sousa faleceu em estado de absoluta pobreza, sendo que, pouco tempo após, Felipe Ill resolveu acabar com os dois governos do Brasil. 27 Também Pedro de Mendonça participou das buscas da Serra de Prata, vindo esta empresa a se constituir numa verdadeira réplica da expedição de Pero Lobo. Este empreendimento de Dom Pedro de Mendonça, apesar de se basear praticamente num "sonho", trouxe algo bem mais estável e concreto que as expedições anteriores, que se limitaram quase que a "aranhar" o litoral. Mesmo não tendo sido contínua a existência da povoação, coube a Dom Pedro ter fundado Buenos Aires, fruto desse seu empreendimento. Graças ao mesmo, colonizadores vieram a povoar a região do Prata, que era tida como sendo a porta de acesso às riquezas americanas, devendo conter, provavelmente, boa amostra delas. Mas, de início, perante a mísera realidade com que se defrontou, relegou a planos remotos a colonização da área. Nota-se na ordem de efetuação desta expedição o medo que sentia a Espanha de que Portugal se lhe antecedesse, havendo, então, praticamente, uma conida entre as duas nações, para chegar em primeiro lugar às minas sul-americanas. Vindo ao Prata em 1535, foi esta a mais importante expedi27coRTESÃO, J. Rapôso Tavares e a formação territorial do Brasil. p.75; TAUNAY. Hist6ria seiscentista da Vil/a de São Pau/c (16()()-1653). São Paulo, Ideal, 1926. t.I., p.3-7, 30; LEITE, Serafim. Hist6ria da Companhia de Jesus. t.2, p.I69-70; LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Nobüiarchia pcmlista, hist6rica e geneal6gica. 3.ed. São Paulo, Martins Ed., 1953. t.l., p.l12, 178-9; ADONIAS, Isa. A cartografia da região amazlmica. t.I., p.70. Map. 1522-1762. Microfilme do Setor de Documentação do Departamento de H ist6ria da USP; HOLANDA, S.B. de. Vi.!Üo do para!so. p.38-9, 53, 58-9, 70, 93-4, 98; ACTAS ,DA Câmara da Vil/a de São Paulo. 1596-1622. t.2., p.23-4 - 8/211597; MAFFEI, L. & NOGUEIRA, A.R. O ouro na Capitania de São Vicente." ln: Anais do Museu Paulista. n: 20. p.l2-4, 16, 23-5, 34-5; Documentos interessantes. t.2. Carta de Pedro Taques para Fr. Gaspar da Madre de Deus, de 29 de dezembro (s/ano). p.I8; ELLIS, Alfredo. Meio slculo de bandeirismo. p.21-4, 27, 29, 31-2, 35, 37, 40, 89-90, 210; MARQUES, Manuel E. de Azevedo. Apon. hist., geogr.- t.l., p.32-3, 114; AUSTREG~SILO, Myriam Ellis. Pesquisas sobre a existência do ouro e da prat~. Revista de Hist6ria, 1:60-61, 64.

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ção que até então se fizera àquela região da América. Para garantir o sucesso da empresa, vieram na annada pilotos e tripulantes que já conheciam aquelas regiões, pelo fato de terem participado da expedição de Sebastião Caboto. Entre eles veio Ayolas. que, após a fundação de Buenos Aires, partiu em direção do Forte de ~· Sancti Spirltus". monendo-lhe durante o percurso quase cem homens, de pura fome. Mesmo assim, foi possível a criação de um novo nácleo de povoação, que recebeu o nome de "Corpus Christi". Sendo notificado da sua fundação, decidiu Dom Pedro de Mendonça transladar-se para este local, visando a estar mais pnSximo da famosa Seaa de Prata. Seguiu Dom Pedro, doente e faminto, em companhia de Juan de Ayolas, deixando pelo caminho os cadáveres de sua gente, que morria de fome e de exaustão. Ao chegarem a "Corpus Christi", encontraram um náufrago, Jerônimo Romero, sobrevivente da annada de Caboto, que surgira das selvas. Também este trazia fantásticas notícias sobre as riquezas que teria visto, bem como sobre outras· das quais lhe haviam falado os índios, o que ajudou os espanhóis a continuar sonhando, apesar das misérias materiais. Fisicamente incapacitado, Dom Pedro de Mendonça nomeou Juan de Ayolas para seguir em busca da Serra de Prata. Com Ayolas partiram Carlos Guevara e lrala. Durante todo o período em que seus homens penetraram o sertão, Dom Pedro de Mendonça manteve-se na expectativa, sonhando com o seu regresso. Enquanto aguardava, completamente alheio à realidade geográfica, fez procurar as riquezas desordenadamente, através de outras pequenas expedições, que redundaram em total fracasso, após o que Dom Pedro resolveu deixar de lado a empresa. Mediante a renáncia de Dom Pedro de Mendonça, a Coroa enviou um novo governador, Alvar Náõez Cabeza de Vaca, que. aoesar de não ter se estabelecido no litoral, também nada conseguiu efetuar de concreto. Seu acesso ao sertão e estabelecimento em Assunção deveu-se exclusivamente aos homens de Dom Pedro, que tinham avançado em direção ao Peru, criando esse nácleo de povoamento.28 Logo ao chegar a Santa Catarina, o governador Cabeza de Vaca foi informado sobre a empresa de Aleixo Garcia. por Durango, náufrago da annada de Dom Rodrigo de Acuõa e pelo franciscano Bernardo de Armenta, o que fez com que partisse dos Patos (entre 1541 e 1543) com o Frei, vindo a percouer o caminho de São Tomé, em toda a sua extensão. Nesta viagem, seguiu cerca de uma centena de índios, que devotavam grande respeito ao religioso. Cabeza de Vaca, apesar de não estimá-lo, foi, em companhia de Frei Armenta, usufruindo da sua popularidade, enquanto que os índios, por terem julgado o novo governador filho desse religioso, trataram-no muito bem. A popularidade ~ veneração do Frei, tratado pelos indígenas de "Payçumé•• (ou Pai Zumé), deveu-se, provavelmente, à sua identifi28GANDIA. H ln. crlt. de las mlt08- p.13. 182. 18
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cação com Sumé, figura mítica indígena. Neste caso teria oconido tamb6m uma associação com o mito de São Tomé, que, segundo Gandia, teria sido criado pelos jesuítas da Colônia Portugues<:.. A imagem deste Santo foi divulgada na América, propositalmente com características idênticas às de Sumé, para facilitar a aceitação destes religiosos entre os Tupis. Tanto Sumé, o herói civilizador indígena, como São Tomé, teriam tido um companheiro em suas andanças, o que também serviu para maior identificação com as figuras mitológicas. Além disso, houve também uma identificação com o próprio Frei Armenta, pois este andava acompanhado por outro franciscano, cujo nome era Alonso Lebron. O mito de São Tomé foi o único mito da conquista cuja difusão na América esteve a cargo dos portugueses, tendo-se expandido, contrariamente aos demais, do Brasil para o Paraguai, o Peru e o Prata. Em verdade, muitas teriam sido as causas da sua "invenção". Os Jesuítas complementaram lentamente o auadro de São Tomé com os detalhe!! necessários. Criaram a sua imagem como sendo a de um homem branco, tendo o mesmo sido "descoberto" quando se começou a falar do caminho que teria surgido milagrosamente, na "Bahia de todos los Santos", para facilitar a fuga de "Mairapé", o homem branco citado pelos indígenas. Ao mesmo tempo, os Jesuítas não deixaram de utilizar a lenda em proveito próprio. Segundo eles, o Santo teria vindo à América e percorrido todo o Continente, somente para anunciar que, muitos séculos mais tarde, os índios senam convertidos pelos membros da Ordem de Ináçio de Loyola. Desta forma, os direitos da Companhia de Jesus se sobrepunham aos de todas as outras que se dedicavam à conversão dos indígenas. Ao efetuar a análise de tal aspecto, notei ter sido uma constante a utilização dos mitos, bem como de símbolos já existentes na América, por parte dos Jesuítas. Também as inúmeras cruzes, que já existiam e apresentavam um significado ritual na América, antes da chegada dos cristãos, foram utilizadas pelo clero, como se essas significassem a aceitação do cristianismo pelos nativos. 29 Portanto, parece que houve um aproveitamento da figura de São Tomé, para que conseguissem bases geográficas, ao passo que utilizavam o Peabiru, para a tomada de posse destas bases. 29SCHADEN. Aculturação ind(gena. p.109-10, 125, 133-4; GANDIA. Hlst. crlticG de los mitos._ p.157, 228-39; Idem. Hist. de la conquista dei Rio de la P/ata. p.1oo-1, 103-4, 114, 232-4; HOLANDA, S.B. de. Virão do parafso. p.XIX, 83-4, 104-10, 112-25, 137, 300; Idem. Caminlws e fronteiras. Rio de Janeiro, José Olympio, 1957. p.24; LEITE, Serafim. Hist6ria da Companhia de Jesus. t.1. p.ll7, 145, 153-4, 285, 288, 379-80, 385, 397, 411; MADRE DE DEUS. Mem6rias para a Capitania de São Vi«nte. p.233-6; CORTESÃO, J. Rap8ao Tavares e a form. ter. do Brasil. p.46-7; GANDAVO, Pero de Megalhlcs. HisúSria da Provfncia de Santa Cruz. p.24; SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descrlptivop.231; MELATTI, Jdlio César. lndios do Brasil. Brasfiia, Coordenada/Ed. de BrasUia, 1970. p.162-4, 169, 171; HENNIG, Richard. Terras incognitae. Leiden, E.J. Brill, Printcd in the Netherlands, 1936. t.2., p.47, 204-7, 380, 383-4; SCHULLER, Rodolpho R. A Nova Gazeta da Terra do Brasil (Newen - zeytung auss Presillg Landt) e sua origem mais provãvel. ln: Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro. 33, 1915. p.ll8; KNIVET, Anthony. Vdria fortuna e estranho.r fados de Anthony Knivet que foi com Tom4s Cavendish, em sua segunda viagem, para o Mar do Sul. no ano de 1591. Slo Paulo, Brasiliense, 1947. p.174.

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Quanto a Cabeza de Vaca, &O chegar a Assunção, o novo governador tomou a direção das mãos de lrala, preparando-se para subir o Rio Paraguai. Enquanto isso, despachou o próprio Irala em busca de notícias sobre os "Seõores verdaderos dei Metal". Por volta de 1543, o governador, acompanhado por Domingo de lrala, seguiu para o Porto da Candelária, onde alguns índios lhe falaram sobre a morte de Juan de Ayolas. Nesta ocasião, durante a subida do Rio Paraguai, lrala teve notícias sobre as Amazonas, mulheres gueJreiras que eram donas de "mocho metal de oro y plata". Interrogando os indígenas, Cabeza de Vaca soube da existência dos "Xarayes", que seriam possuidores de alguma prata e ouro, riquezas estas conseguidas com indígenas que habitavam mais adiante. Mas os índios que realmente possuiriam os metais preciosos, viviam cm uma ilha que os conquistadores passaram a chamar de "tielTB del 1,Parafso", supondo (baseados no que deduziram das narrações dos índios) que nela se haviam refugiado os índios Orejones, descendentes de Manco Capac. ~ interessante verificar que Alvar Núõez não seguiu em busca da Se1T8 de Prata e do Rei Branco, mas sim dos "Seõores dei Metal", motivo pelo qual se dirigiu para a Se1T8 Tapoaguaçu, a qual era o princípio da povoação destes índios. Cabeza de Vaca ordenou ainda uma expedição a ser comandada por Hernando de Ribera, que deveria avançar para o interior do "país" através do Paraguai. Após nove dias de viagem, Ribera encontrou uma tribo que designou "Jacarés", provavelmente devido à existência deste animal na região, ou talvez pelo uso de sua pele por parte dos nativos. Era cOITente entre os brancos a crença de que o jacaré matava com o hálito, que a sua vista era letal, e que a única maneira de matar um era colocá-lo diante de um espelho para que morresse com o reflexo do próprio olhar de basilisco. Em oposição às notícias trazidas anterionnente por homens de Cabeza de Vaca, que entraram em contato com os índios \Xaraies, Hernando de Ribera, ao atingir seu povoado, teria visto cerca de mil casas, sendo muito bem recebido pelo chefe Camire. O velho Camire teria então presenteado os espanhóis com a pouca prata e um pratinho de ouro que possuía, dizendo que era tudo que tinha e que mesmo isso havia sido conquistado às Amazonas. Teriam então os expedicionários ouvido, ou julgado ouvir, a tradicional lenda sobre as Amazonas que cortavam um seio, eram visitadas por gueJreiros de uma tribo vizinha e que, após o parto, entregavam os filhos do sexo masculino aos pais. Os índios que se juntavam com estas gueJreiras, seriam os próprios Xaraies, raça constituída por homens muito pequenos, que a princípio eram combatidos pelas Amazonas. Estas viviam numa grande ilha, no meio de um lago, e extraíam ouro e prata em grande quantidade, da terra firme. Segundo infonnaram aqueles indígenas, para atingir o Reino das Amazonas fazia-se necessário empreender uma viagem por terra, que duraria uns dois meses. No entanto, tal não seria possível naquela ocasião, pois o país estava inundado. Por fim, a tão almejada expedição à te1T8 de Candire, à "Tietra Rica" e ao Reino das Amazonas, não chegou a ser efetuada durante o governo de Cabeza de Vaca, bem como de seus sucessores, Salazar e depois lrala. Durante o governo deste último, deu-se a desunião entre os cristãos que ficaram na América Espanhola, seguindo-se 250

uma guerra dós mesmos contra os Cúios, após o que as tribos se uniram contra os brancos.30 Ao desenvo~ver esta pesquisa, senti ter existido uma certa diferença ent;re a mentalidade espanhola e a portuguesa, no tocante ao processo de colonização da América. À medida que os espanhóis agiram em sua própria área, não tomando, portanto, posse de novas terras, modificaram o modo de viver do indígena e do próprio branco, alterando também aspectos da natureza americana. Os portugueses, bem como os seus descendentes, no entanto, além de terem atuado sobre os mesmos elementos, obtiveram resultados materiais (geográficos) mais amplos, tendo em vista que, ao se deixarem levar pelos mitos, penetraram áreas espanholas, das quais tomaram posse. Foram, portanto, amplos os resultados econômicos e políticos obtidos pelos lusos e paulistas. Devido à forma como foi feita esta penetração, tenho a impressão de que, apesar de os portugueses terem se deixado também levar pelos mitos e pela utopia, foi posta em prática uma política de ocupação territorial que se beneficiou largamente de todo o "quadro fantástico" em que a América do Sul se viu envolvida. Ao vir para a América, o europeu procurou, como num todo, o simbolismo cosmológico através do qual se chega ao "Centro do Mundo", pois, como tudo o mais, também o Mundo teria tido início, devendo existir nele alguma parte que seria o "Centro do Mundo", ou uma espécie de "umbigo do Mundo". Ou seja, este centro seria a maneira de o homem situar-se no espaço "aberto para cima", o que equivaleria a estarem comunicação com o divino. Ele procurou um paraíso e, dentro deste, esperou encontrar tudo que lhe era "desconhecido", desde monstros representantes do Caos, até riquezas materiais e a felicidade eterna. Tal local, naturalmente, deveria apresentar algum grande marco, pois não poderia passar despercebido aos que o encontrassem. Portanto. este deveria ser o lugar onde se ergueria a "montanha cosmica"t• ou um santuário. E este centro seria JUStaíi.. ...ute o lugar onde se efetuaria uma rotura de nível, o local onde o espaço se

30aANDIA. Hill. crit. de lo8 mitos- p.31, 83, 100.1, 164, 199-200, 203-7; Idem. Hill. de lo conquista dei Rio de lo P/ota. p.36, 87-93, 95-6, 98·100, 102-5, 108, 114, 118-21, 133-46, 149-50, 152·3, 155-6, 158-60, 162·3, 179, 203, 205, 211-2, 224-26; SCHMIDEL. Vem hillorio admlrandoe- p.132, 136-7, 140-1, 143, 145-7, 149-50, 155-7, 160-3, 166-7, 172-7, 179-80; FERNANDES. Loureiro & BLASI, Oldemar. As jazidas arqueol6gicas do Planalto Paranaense - Nota pr6via sobre a jazida do •Estirio Comprido". Boletim do IJVtituto H~rlco e GtJOgr4fjco e Etnogmjico Pa'frJIUUII8tl, Curitiba, 6(3-4):70; LOPEZ, Vicente Fidel. MtlliUDl de hi.rt6rio argentina. p.S8; CORTESÃO, J. Rapbso Tavares e a jorm. ter. do Brasil. p.36, 56; MEDINA. Sebasti4n Caboto- t.1., p.l42; HOLANDA, s.B. de. Vl.ti1o do paralso. p.26, 122; MAFFEI, L. & NOGUEIRA, A.R. O ouro na Cap. de Silo Vicente- ln: Anais do Museu Paulista. n: 20. p.l2; SOUTHEY, Robert. H~rio do Bmzil. Rio de Janeiro, B.L. Garnier, 1862. t.1., p.224-6; ADONIAS. lsa. A CtJrtogmflo t/Q regi/Jo amazbnlca. t.1., p.264; Carta do Ir. Antonio Rodrigues aos padres e irmão de Coimbra. ln: LEITE, Serafim. Cartas aos primeiros jesultas do Brasil. t.l., p.479.

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tomaria sagrado. Tendo em vista ser próprio do homem religioso o dcacjo de atingir o sagrado e, portanto, o de viver o mais próximo possfvel do "Centro do Mundo", em absoluto se toma estranha a procura efetuada, tanto por espanhóis, como por portugueses, no "centro" da América do Sul, de um local grandioso e resplandecente, que ora se lhes afigurava como uma enorme montanha repleta de riquezas, ora como um reino fantástico e muito rico. Ao encontrar o "Centro do Mundo", estariam no local em que o Cosmos veio à existência, havendo então a possibilidade de comunicação com o próprio Deus. Na América, os índios denominavam o Império Incaico de "Las Quatro Partes dei Mundo", sendo que a sua capital era tomada como sendo o centro do Universo. Em especial, a cidade de Cusco era tida como a casa e a morada dos deuses e, como tal, exalava uma aura de mistério. Mas não s6 Cusco, a cidade sagrada dos Incas, era possuidora de incalculáveis tesouros; encontravam-se também palácios reais e Templos do Sol em todas as povoações incaicas. No entanto, para Gandia, o mais fabuloso Templo do Sol, que se tomara mitológico por suas riquezas, ficava realmente em Cusco, o que implica ser esta a terra lendária que tantos procuraram. 31 E esta foi procurada sob os mais variados aspectos e diferentes nomes. Uma das expedições que partiu à sua procura, conforme já vimos, foi a de Juan de Ayolas, que, após se separar de Dom Pedro de Mendonça, realizou a primeira expedição que realmente atingiu o interior das terras sul-americanas, vindo a atingir a região onde estava situado o povoado dos Cários. Neste local ordenou a construção de um forte que recebeu o nome de •• Assomption", e que veio a se tomar um ponto básico para a continuidade da exploração das áreas que vieram a constituir o Paraguai, a Bolívia e o Peru. Feito isto, Ayolas internou-se cada vez mais pelo sertão, em busca de uma nação denominada "Carcariso", ou "C arcara", na qual habitavam os Caracaras, donos do Potosi, e que, segundo informações dos indígenas, eram tão brancos quanto os cristãos. Desta aventura veio a participar Schmidel, marinheiro alemão que adquiriu fama, devido ao relato que fez sobre esta expedição e suas complementações um tanto quanto fantasiosas. Conforme o atesta em sua obra (de 1567), Schmidel e os demais expedicionários teriam visto, na margem de um dos rios, uma serpente monstruosa. Seu comprimento era de vinte e cinco pés, sendo a sua grossura a de um homem. Souberam através dos índios que aquela serpente já lhes havia feito muito mal, pois enlaçara muitos homens quando estes se banhavam, arrastando-os para o fundo da água, a fim de devorá-los. No entanto, não me parece que tal monstro seja fruto exclusivo dos exageros de Schmidel, pois encontrei referência à "cobra grande" também no relato de Gabriel Soares de Sousa (datado de 1587), vindo a mesma a constar ainda nas lendas dos indígenas, de onde Schmidel, provavelmente, deve tê-la retirado. Posteriormente, tomou-se uma constante a referência aos monstros do Rio Tietê, sendo habitual a vista de "minhocões" neste rio. que infundiam 31..(,..) •tesouro', imagem sensfvel do sagrado, da realidade absoluta; (_)," ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano, p.l09.

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pavor aos navegantes. Segundo Taunay. Juzarte, ao escrever sobre os dltimos anos seiscentistas, referiu-se aos perigos do .. Passo do Pirataraca". que ficava à jusante do salto de Avanhandava. Este local era especialmente temido pelos antigos. Diziam que ali vivia um grande bicho. Era também tradição entre os .. marinheiros" das monções que, no poço de Banharon havia um bicho marinho, ou peixe grande, que levantava ondas que chegavam a atemorizar os navegantes. Relata ainda Taunay que, segundo Lacerda de Almeida, tanto a tripulação como o proeiro do seu canoão eram muito supersticiosos, sendo que este óltimo lhe falava com const!ncia na existência das mães d'água nos poços profundos dos rios, causadoras da morte de muitos homens. Com referência às navegações do Tietê, ainda quando as monções estavam se extinguindo, Juzarte teria sido avisado, certa manhã, de que uma canoa fantasma estava à vista da expedição que ele estava conduzindo ao matadouro de Iguatemi. Acreditou-se ser uma nau catarineta que, provavelmente, seria tripulada pelas almas dos que, famintos de ouro, teriam morrido no caminho de Cuiabá. Foram também vistas formigas de tamanho respeitável, que nos remetem àquelas já citadas por Estrabão e Heródoto, bem como por autores medievais. Para Piexre D' Ailly, as formigas gigantes, que apresentavam presas e eram antropófagas, chegavam até mesmo a transformar-se em grifos e dragões. Neste tipo de metamorfose verifica-se uma espécie de fusão entre os seres míticos que teriam sido vistos povoando as diversas regiões do Mundo onde se julgou que poderia estar localizado o Paraíso Terrestre, pois o Dragão é a figura exemplar do Monstro Marinho, 32 da Serpente Primo~ dial, que é o símbolo da Noite, da Morte e das águas cósmicas, ou seja, de tudo aquilo que ainda não tem uma forma. O próprio Mundo teria nascido do corpo de um dragão marinho, ou de um gigante primordial. A representação de uma grande serpente faz-se também presente entre as lendas indígenas, sob a forma da serpente Lik, que era enorme e tinha a cauda repleta de peixes. Somente pessoas especialmente favorecidas pela sorte podiam encontrar Uk encalhada em teiTa firme. 33 Tal lenda surgiu também na América do Norte, entre os Sioux. Neste caso, porém, o monstro não era uma "Mãe dos Peixes", mas uma "Mãe dos Bisões".34

32-(...) por vezes os dragões montam a guarda em volta de 'tesouro', imagem sensfvel do sagrado, da realidade absoluta; a vit6ria ritual (iniciltica) contra o monstro guardião equivale l conquista da imortalidade.• ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. p.109. 33L~I-sTRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1975. p.305-7. 34GANDIA. Hist. ck ia conq. ckl Rio ck ia Piata. p.57; Idem. Hist. crlt. ck los mitos... p.34, 156; SCHMIDEL. Vera historio admirandoe ... p.75, 101, 103-4, 244; TAUNA Y. Relatos monçoeiJW. Sio Paulo, (Oficinas da Empr. Grlf. da Rev. dos Tribunais) (1.953), p.18-9, 76, 80, 86-7, 174-5, 185, 234-5; SOUSA, Gabriel Soares de~ Tratado descriptivo••• p.306-7; GANDAVO. Hist6rlo da Pruvfncia de Santa Cruz. p.77; HOLANDA, S.á de. Vifc!o do pam&o. p.65; ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. p.45-7, 52; LêVI·STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. p.305-9.

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Apesar de todas as dificuldades até agora descritas para efetuar a penetração da América do Sul, a grande fonte dos mitos americanos, Cusco, capital do Império Inca, foi conquistada de maneira relativamente fácil pelos espanhóis, com base nas informações fornecidas pelos próprios indígenas. Porem, o seu conquistador, Gonçalo Pizarro, não se contentou com a posse de Cusco, cuja fama se diwlgara como sendo a de um reino lendário, pois a realidade que buscava era outra, transformada em algo ainda mais fantástico por sua mente. Isto o levou a voltar-se contra os índios, pois. ao serem interrogados, não conseguiram dar-lhe informações sobre a região imaginária, por ele procurada. Acompanhou-o, na procura do Reino de Canela, Francisco de Orellana. que, após se separar da expedição, decidiu continuar a viagem através da Amazônia, por conta pr6plia, sendo eleito por sua gente para poder comandar a empresa e fazer descobertas para si mesmo. Coube-lhe então a primazia, ao menos oficialmente, de navegar, por toda a sua extensão, o Rio Amazonas. Ao que tudo indica, provavelmente, a expedição de Francisco de Orellana não foi somente um acaso, uma tentativa de navegação com destino final ignorado. Ao tenninar a travessia do grande rio e desembocar no Atlântico, Orellana sabia onde se encontrava, dirigindo-se logo a seguir para a Europa, a fim de solicitar a posse das terras, ou de parte das terras atravessadas. Neste caso, bem como nos de lrala e Hemando de Ribera, percebe-se claramente uma espécie de rebelião, na qual o indivíduo deixa de obedecer ao seu superior, tentando tomar para si as glórias da conquista. A empresa de Orellana, que teria partido abandonando Pizaao e suas tropas, com um objetivo pré-estabelecido, chegou a ter forte repercussão política na Península Ibérica, pois sua inesperada façanha deixou o governo português tão preocupado com a "posse" do Amazonas, porta de entrada para as riquezas, que o Rei de Portugal ordenou que se preparasse uma armada muito bem equipada, com quatro navios, artilharia de bronze e farta munição. Trataram então os portugueses de propagar que aquele era o armamento para o Brasil (costa atlântica); no entanto, era sabido que tudo aquilo se destinava ao Rio Amazonas. A notícia sobre a armada propagou-se de tal fonna, que chegou a Sevilha, tendo o Conselho das fndias sido prevenido. Com isto, efetuou-se a prisão de João de Sande, responsável pela expedição portuguesa, que havia ido para a Espanha. Este foi solto somente após a partida da nova expedição de Orellana. Crê João Lócio de Azevedo que, devido a isto, provavelmente, a empresa tenha malogrado, pois dela não mais se teve notícia. 35 Quanto aos fatos oconidos (ou supostamente oconidos) com Orellana em sua primeira expedição, podemos classificá-los como tendo sido bastante pitorescos. Entrando em contato com diveiSos grupos indígenas, habitantes das margens do grande rio, teria não s6 ouvido falar das riquezas, como também 35HOIANDA. S.B. de. Vi.w'Jo do parafso. p.11, 87, 308; LEITE, Serafim. Hist. da Comp. de Jau. t.2, p.127; COR TESÃO, 1. Rap8110 Tavares e a form. ter. do Brasil. p.21; GANDIA. Hi8t. crlt. de lol mitos- p.160, 163, 172, 182·3; AZEVEDO, J.L. de. Os jesuflas no Grlo Pard. 1930. p.14, 17-8, 24.

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visto caciques adornados com plumas de ouro, que traziam sobre o peito chapas desse mesmo metal. Através dos índios, Orellana e seus homens tiveram notícias sobre um grande senhor, cujo nome era Ica. possuidor de fabulosa riqueza em ouro e que moraria afastado do rio, além de ouvirem refel.'ências sobre as guerreiras denominadas coniupuyaras (ou cuni.Jaapuyarás), que significava grandes ou poderosas senhoras, na língua dos indígenas. Torna-se interessante observar alguns dos dados do relato do Padre Carvajal, que acompanhou Orellana, pois dão base à hipótese de Enrique de Gandia sobre a Amazônia; Gandia apresenta a possibilidade de a Amazônia (inclusive a brasileira) ter sido subordinada ao Inca. Consta no relato de Carvajal que, durante a sua viagem pelo Rio Amazonas, Orellana teria tido notícias sobre a existência de ouro e prata entre os indígenas, bem como da presença de "estradas reais", que seriam longos caminhos com diversas bifurcações, que se estendiam das proximidades do Rio Amazonas, para o interior da floresta amazónica. Estas estradas, segundo informações dos indígenas, levariam a teli'as distantes, onde vivia um grande senhor, do qual eram tributárias as Amazonas. Para Gandia, tanto as notícias sobre este grande senhor, como sobre as riquezas, não passariam de refel.'ências ao Inca e às ricas minas e cidades do Peru. No entanto, em se tratando das mulheres gueaeiras que vieram a se tomar conhecidas pelo nome de Amazonas, cl.'ê na possibilidade de estas terem realmente vivido na floresta amazónica e de terem sido vistas por Orellana e Carvajal. Contrariando relatos, tais como os de Acuõa e de Yves D'Evreux, segundo os quais seguramente existiam Amazonas (tais como as da mitologia grega) na região que viria a ser a Amazônia, ou a alguma distância dela, Gandia acredita que essas mulheres que viviam sós, para os lados do ocidente, em palácios com imensas riquezas, não eram guerreiras, ou puras "imagens clássicas", tal como muitos queriam e ainda querem fazer crer. Na América do Sul, o mito das Amazonas, reflexo de uma realidade "palpável", adquiriu uma característica totalmente distinta daquela das "Amazonas clássicas", bem como das gueaeiras da América do Norte e Central, apesar de que, com o descobrimento do Novo \1undo, avivou-se a lenda das Amazonas, que perdurara durante a Idade Média. Na realidade, essas "índias gueaeiras" sul-americanas teriam sido as escolhidas do Inca e as Virgens do Sol, que desapareceram com a conquista espanhola. Como o Inca mandava edificar casas idênticas às das "Virgens dei Cuzco" por todo o seu império, cl.'ê Gandia ser de grande interesse ressaltar quais eram as comunidades submetidas ao Inca, a fim de comprovar a sua hipótese de que as "mulheres que viviani s6s", vistas por Orenana. teriam sido também "Virgens do Sol". Baseado no Padre Carvajal, afirma que foram conservados os nomes dos lugares aos quais iam os "factores" do Inca e das comunidades ribeirinhas, submetidas a um tributo chamado Mano. Entre outras que estariam submetidas, cita: Mano, Mano, Manaos, Tahuamanu, Thauautimanu, Cuantamanu e Manuripe, sendo que "Mano" em quíchua significava dívida, tributo, ou a quantidade de "espécies" que determinada comunidade era obrigada a pagar em certo prazo aos "factores"

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do Inca. O local onde todos os "manus" recolhidos deveriam ser acumulados, recebia o nome de Manoa. Mas as Amazonas já foram procuradas na América bem antes da chegá· da de Orellana. At6 mesmo Colombo foi influenciado pelos autores antigos e geógrafos medievais, pois chegou a sublinhar no seu exemplar da Historia rerum ubique gestarum, escrita pelo Papa Pio II (Enéias SOvio Piccolomini), a passagem onde a teml das Amazonas é citada, constando esta não no Continente, mas numa ilha. Aos poucos, a idéia de que deveriam existir Amazonas na América, foi-se tomando mais forte. Em 1504, algumas delas foram avistadas em uma praia, próximo ao local onde Colombo tentou situar o Paraíso Terrestre. Posteriormente, surgiram no Reino de Nova Granada, especialmente na cidade de Pasto. E além de terem sido vistas nas margens do Rio Amazonas por Orellana, a sua presença foi também registrada pela Real Audiência, em Quito. Teriam combatido Gonzalo Jiménez de Quesada em Tunja, e Benalcázar, em Popayan. Ainda na região que veio a constituir o Chile, foram vistas pelos homens de Pedro de Valdívia. Mesmo nas Atas da Câmara de São Paulo, encontrei um registro que narra um "encontro" com as afamadas guerreiras, de cuja existência, ao que tudo indica, praticamente não se duvidava. No entanto, o mito perseguido na América do Sul jamais teve uma localização geográfica exata, por ser extremamente móvel. O fascínio exeiCido pelas Amazonas estendeu-se por largo penodo, pois, ainda em 1743, vamos encontrar o cientista francês La Condamine, em sua viagem a Belém do Pará, recolhendo notícias da passagem das guerreiras no Puros, de onde teriam seguido para o norte, penetrando nas selvas do Rio Negro. Além do relato dos indígenas, seriam testemunhos da presença das Amazonas, na América, as cobiçadas pedras verdes, denominadas Muiraquitãs. A elas fizeram refel'ISncias os Tapajós, quando visitados por La Condamine, em 1743. Estas pedras verdes eram conhecidas como "das Amazonas", sendo que seus pais as teriam herdado das "mulheres sem marido". Na realidade, ignora-se a origem de tais pedras, que comprovadamente existem, sabendo-se somente que foram muito procuradas no passado, devido às virtudes que lhes atribuíam (à semelhança do que oconia com as esmeraldas), para curar a "pedra". a cólica nefrftica e a epilepsia. Estas pedras serviriam ainda para curar a melancolia, bem como doenças do fig ado, febres e picadas de cobra. Tais pedras, que não diferem na cor nem na dureza do jade oriental, foram talhadas em formas de diversos animais.3 6 36oANDIA. Hist. cril. de 106 mitos- p.72-91, 94·7, 99--100, 248; Idem. Hist. de la

conq. del Rio de la Plata. p.88, 157-8, 235; HOLANDA, S.B. de, Vwo do paralso. p.17, 23·32; CORTESÃO, J. Rap&o Tavares e a fonn. ter. do Brasil. pM-5; SCHMIDEL. Vera historia admirandoe- p.15~; AZEVEDO, João Ldcio de. Os jesultar no Grão Paro. 1930. p.13·7, 19-24; BOXER. A idade do ouro no Brasü, 2.ed. São Paulo, Nacional, 1969. p.301; LA CONDAMINE, Ch. M. de. Viagem na AmlriaJ Meridional. p.77-81, 101-3; RALEGH, Sir W. The discovery of the Large, Rich and Beautifol E!71Pire of Guiana with a relation of the great and golden cily of Manoa (which the ISpaniards call El Dorado), etc, London, Printed for the Hakluyt Society, 1848. p.18, 29; ÁDONIAS, lsa. A cartografia da regiílo amazbnica. t.1, p.l16, 265; SOUTHEY, R. H ist6ria do Brazil. t.1. p.131·7, 142-3, 145·50, 152-8; CARVAJAL, Gaspar de. Relaci6n del 1IUeW)

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Muito poderia ser dito ainda sobre os mitos na América do Sul. No entanto, como este trabalho não se propõe a esgotar o assunto, apenas vou fazer menção à lenda do Eldorado, que começou a "existir de fato" quando um grupo que acompanhava Sebastián de Benalcázar, em 1533, por ocasião da conquista de Quito, teve notícias sobre um estranho ritual, durante o qual um "monarca" indígena era totalmente coberto com ouro em p6. A principal conseqüência da busca das terras do "príncipe dourado" por Quesada e também por Benalcázar e Nikolaus Federmann, que partiu da Venezuela, foi a fundação, em 1538, do povoado de Santa Fé de Bogotá, num local denominado Guatavitá pelos chibchas que ali viviam. Na realidade, essa área correspondia às terras onde outrora se realizara a cerimônia do" cacique dourado", porém os europeus que vieram a dominar esta localidade, nem ao menos Juspeitavam disso. 37 Desse modo, vinculadas à imagem do Paraíso Terrestre, inúmeras toram as riquezas, figuras humanas estranhas, reinos e serras procuradas por toda a América do Sul, tanto pelos espanhóis como pelos portugueses e seus descendentes. Ainda vamos encontrar a presença do fantástico e do mítico também entre os próprios bandeirantes quando esses, desrespeitando os limites impostos pelo Tratado de Tordesilhas, penetraram as tell'aS das Gerais, indo alcançar o Amazonas na busca dos seus mistérios.

daiUbrimiento dei jamo60 Rio Grande que da:ubrM por muy gran llentura el Capit4n FTtliiCia:o de Orellona. Quit~Equador, sld. p.12, 19, 36-8, 40, 47-9, 5~; SOUSA, Gabriel Soares de. Trutodo dGcrlptivo- p.9. 37GANDIA. Hist. crlt. de lar milos- p.109, 11~, 137.

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O DISCURSO DA CRISE

(uma presença constante na História gaúcha) CELI REGINA J. PINTO*

O presente texto tem como ponto de partida a proposição de que para se discutir, adequadamente, a problemática atual do Estado do Rio Grande do Sul, se faz necessário, mais do que analisar uma possível crise político-econômica, analisar a construção do discurso da crise e suas repercussões no processo decisório ao nivei regional e nacional. A tese que será defendida nas próximas páginas é a de que as elites político-econômicas do Rio Grande do Sul tendem ao longo de sua História a construir um discurso da crise que tem sido fundamental para a reprodução destas mesmas elites no poder, quer econômico, quer político. Com o intuito de desenvolver o exposto, o texto será dividido em três momentos: no primeiro, se farão algumas considerações a propósito do conceito de crise e da importância do discurso da crise; no segundo, será tratado o conceito com relação à História do Rio Grande do Sul, e, finalmente, discutir-se-á a eficácia do discurso da crise nos últimos anos no Estado. O conceito de crise tem sido usado por grupos detentores do poder político muito freqüentemente, e sem nenhuma relação com crises reais. Mesmo assim, o seu uso tem provocado conseqüências concretas no quadro político-social e econômico, na medida em que tem criado situações e sujeitos concretos, e tomadas de decisões políticas também reais. Uma crise tem um perfil muito bem delimitado, o mesmo não acontecendo com o discurso da crise. Uma crise tem existência a partir de padrões anteriores para comparação. ê um momento de exceção, de quebra de padrões anteriormente aceitos ou de pactos sociais e políticos que haviam até o momento funcionado. Sendo um momento de exceção, a crise traz em sua própria natureza a sua superação, quer pelo retorno de uma situação anterior a ela, quer por sua superação através de um projeto (solução) alternativo. Em termos políticos e sociais, e pensando em sociedades que se constroem a partir do modo de produção capitalista, os momentos de crise são bastante claros e bem definidos. Podem se localizar três tipos principais de crise: no processo de acumulação, nas relações capital-trabalho, no sistema de dominação política, ou seja, uma crise de hegemonia ou de legitimidade.

*CeU Regina J. Ploto. Profeaora de História e Cihcia Polttica na UFRGS. Doutoraem Ci!ncia Política pela Universidade de Essex/Inglaterra. E118aiata.

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Enquanto sistema econômico, o capitalismo se realiza pelo proceiSo .de acumulação de capital; portanto, uma crise clara se constitui quando este processo não tem condições de completar-se. A política de conéentraçio de renda posta em prática pelo governo militar no Brasil, nos primeiros anos da década de 70, é um claro exemplo de como se gerencia uma crise deste porte. As dificuldades encontradas a partir do Plano Cruzado para adequar a relação demanda-produção também se configura como crlse. Um outro tipo de crise perceptível em sociedades capitalistas 6 o da relação capital-trabalho, que aparece tanto a partir da organização dos sujeitos do lado do trabalho, como em conseqüência de uma crise da própria acumulação de capital. O continente europeu é um cenário rico de crises desse tipo. A própria construção do · ',welfare state foi a solução dada pu:a uma crise capital-trabalho, assim como a importação de trabalhadores do terceiro mundo nos liltimos cinqüepta anos. Finalmente, deve-se considerar o aparecimento da crise ! política, que, para os propósitos generalizantes deste texto, pode ser chamada de crise de legitimidade, isto é, o momento em que o poder estabelecido é incapaz de manter o pacto político, quer por seu próprio desgaste enquanto poder, quer pelo desenvolvimento ao nível da sociedade civil de novos interesses, que façam frente ao bloco de poder de tal forma que este não tenha condição de incorporá-los ou neutralizá-los. A existência de crises reais longe está de corresponder ao discurso da crise que tem como enunciadores, na grande maioria das vezes, os grupos detentores do poder político ou os grupos econômicos poderosos. A questão que aparece imediatamente é a de por que o discurso da crise é tão presente. A resposta parece ser bastante simples: o discurso da crise é altamente eficaz e por isso é construído todas as vezes em que os grupos dominantes não se sentem capazes de tomar decisões que coaespondam às suas próprias propostas e às pressões da sociedade civil. Essa eficácia transparece em 6 caractedsticas deste discurso: (1) a crise privilegia a exceção, (2) por sua natureza é superável, daí, (3) camuflar as condições concretas de existência dos sujeitos envolvidos. Se baixo salúio é construído como parte de uma crise, a primeira conseqüência disto é a de que a condição do trabalhador não é ter baixo salário, mas que o momento de baixo salmo será superado porque é exceção -é um momento de crise. O discurso também se apresenta como o momento onde (4) causa e conseqüência transcendem a responsabilidade dos agentes da conjuntura, deslocando desta forma as responsabilidades pelas soluções. A crise sempre é apresentada de uma maneira pouco definida, e de sua própria indefinição surge um dos pontos básicos de sua eficácia, pois toma opacas políticas concretas e tomadas de decisão dos grupos no poder. A solução também é transcendente, pois depende de soluções alheias às condições concretas. Pelas caractensticas anteriores, o discurso da crise constrói (5) a necessidade do esforço concentrado e a união de todos para superá-la. Todos os sacriffcios são válidos e todas as diferenças devem ser relegadas a um segundo plano. Interesses de grupos e classes perdem o sentido, o discurso cria um sujeito 259

• unificado - o sujeito da crise. Da construção do sujeito deriva a óliima, e talvez mais importante caractenstica do discuiSo: a construção da crise nio é irreal mas é concreta e provoca conseqüências concretas tanto ao nível da sociedade como um todo, como ao nível da luta política. O sujeito dessa sociedade é igualmente construído pela crise - é parte do discUISo e, portanto, age "como se" crise houvesse. É tomando as questões aqui discutidas que se deve pensar no discuiSo político da crise no Brasil e, especificamente, no Rio Grande do Sul. O Brasil é um campeão do discurso da crise econômica e de seus efeitos sociais e políticos, onde a referência sempre está em fatores externos. Na verdade, o discuiSo da crise no Brasil não passa de renovadas fonnas de colocar as desigualdades estruturais de um país no Terceiro Mundo. A crise, se existe no país, afeta parte pouco significativa da população, pois a maioria dela tem uma condição histórica crítica.. No entanto, a crise é vendida como se cada brasileiro, independente da sua situação anterior, fosse um novo sujeito -o sujeito da crise. Na perspectiva do que foi exposto, a situação do Rio Grande do Sul é especialmente significativa. Em primeiro lugar, deve-se ter presente que a "crise do Rio Grande do Sul" tem uma permanência histórica surpreendente, sua aparição é cíclica e corresponde a condições de emergência muito claras: aparece na História_ gaócha quando há um conflito entre os interesses do Estado Nacional e os interesses dos grupos dominantes gaóchos. Não é a poSlção periférica do estado na economia nacional que leva à crise, mas a fonna como estas condições são articuladas ao nível regional, tomando os interesses dos grupos dominantes sinônimo de interesses do povo gaócho. Atualmente, o discuiSo da crise encobre as questões fundamentais do estado, como a posição periférica da sua economia, as opções políticas das lideranças nos óltimos 20 anos e a inexistência de uma elite política de fato. A afinnação de que o Rio Grande do Sul constitui uma região periférica no contexto brasileiro é verdadeira para toda a história do Estado, desde o penodo colonial até a Repóblica; entretanto, s6 em alguns momentos essa condição gerou o discurso da crise. A região do atual estado do Rio Grande do Sul se incorporou tardiamente aos domínios portugueses na América Latina; essa incorporação se deu em um primeiro momento muito mais pelos interesses portugueses na região do Prata do que pelo valor em si que as tems gaóchas representavam. Era, em síntese, necessário garantir o tenitório gaócho para garantir o Prata; a fundação de Sacramento em 1680, e a de . Laguna em 1684 são bons exemplos dessa preocupação. A posição agressiva de Portugal em relação ao Prata se estende até o fim do domínio português no Brasil - tendo sido incorporado por Dom Pedro I, já imperador do país independente. O Rio Grande do Sul, desde a sua incorporação em meados do século xvn, até 1828, data da independência do Uruguai, esteve em constante estado de guerra, sendo que os grandes proprietários de terra dedicados à pecuária estiveram envolvidos concretamente nos conflitos, quer como oficiais, quer como provedores de gado 260

para alimentação e montaria, quer como provedores de pessoal para as tropas. Se analisarmos de uma perspectiva externa, poderemos falar em penodo de crise, ou pelo menos de sério desammjo no cotidiano da região gaócha. Apesar disso, no entanto, não encontramos nesse penodo um discurso de crise. Havia, por paradoxal que possa parecer, uma identidade de intereses entre a Coroa Portuguesa e os criadores do Rio Grande do Sul - a perspectiva de aumentar seu território para a criação de gado nas regiões platinas e os próprios interesses dos criadores na região, já que muitos lá possuíam terras, faziam com que o estado de guerra que o Governo Português - e posteriormente o governo de D. Pedro I -impunha à região. não fosse vivido como opressão e, conseqüentemente, como um penodo de crise, mas como uma luta unitária em defesa de interesses comuns. O primeiro momento em que a idéia de crise apareceu no Rio Grande do Sul foi no período regencial, quando, após a primeira década de problemas como país independente, o Brasil se defrontou com a possibilidade de desagregação de uma unidade que havia sido forjada pela presença do Estado Português, desde 1808, em território nacional. A chamada Revolução Fauoupilha está inserida em um contexto miUor de revoltas proVlDClaiS que aconteceram na época. Se, por um lado, a Guerra dos Furapos tem pontos de encontro com as demais revoltas do penodo, que aconteceram principalmente no Nordeste, por outro se distingue delas por sua longa duração (10 anos) e por seu caráter de unificador do povo gaócho frente a uma crise. Esse foi o primeiro momento de discurso da crise construído pelas elites do Rio Grande do Sul. Foi tão importante e tão eficaz que até os dias atuais qualquer discurso de crise no estado incorpora a Revolução Farroupilha. Sem a intenção de discutir aqui o processo que levou à revolução, pode-se sintetizar a situação gaócha naquele momento da seguinte fonna: em termos de região periférica, a situação do Rio Grande do Sul não havia mudado. Na verdade, a economia da região, mais do que anteriormente, se estabelecia como subsidiária à economia central através da produção de carne seca, alimentação básica dos escravos que formavam a massa dos trabalhadores brasileiros. É da contradição entre os interesses dos grandes proprietários de escravos do centro do país em comprar o alimento por preços baixos e do interesse dos produtores gaúchos em vendê-lo por preços recompensadores, que surgiu o conflito. A incapacidade do produt~r_ gaúcho de colocar o seu produto no mercado era agravada pela concoa&lcia do charque uruguaio, com mais baixo custo de produção e, conseqüentemente, mais barato no mercado brasileiro. Não há crise nessa situação. Há, isto sim, um momento de afrouxamento dos laços estatais, uma reorganização das relações de poder ao nível das elites dominantes nacionalmente. Há, em síntese, espaços para que os grupos dominantes ga11chos reivindiquem uma nova posição no jogo de poder. A condição periférica do Rio Grande do Sul, somada à vontade política dos grupos dominantes em um momento propício da história brasileira, deu as condições necessárias para o discUIBo da crise. Apareceu pela prirr ~ira vez a linha mestra de um discuno que tem tido uma formidável persistência histórica: o Rio Grande contra o Brasil.

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O Rio Grande, no discurso dos Farrapos, era a união de todos os gaóchos: fazendeiros, peões de estância e até mesmc escravos. Todos estavam ameaçados pela política do governo central e, exatamente por isso, ·todos deviam chegar até ao sacriffcio da guerra. O discurso da crise crl.ou ·sujeitos que lutaram dez anos em nome de uma causa que, na verdade, pouco ou nada lhes dizia respeito. Mas essa massa de soldados não lutou sob pressão; di:ffcil seria admitir tal hipótese na situação de pecuária extensiva e quase nômade praticada na época. Lutaram e morreram em nome do Rio Grande do Sul, em nome da salvação da província e, evidentemente, de sua própria salvação. O Rio Grande unido lutou para fazer valer os interesses dos pecuaristas, para realizar a vontade política de um grupo econômico em uma situação política propícia. Foi tal a eficácia do discurso que os líderes da revolta tiveram de forjar uma derrota no campo de batalha, para poderem assinar o tratado de paz com os detentores do poder nacional. O discurso da crise dos Farrapos não s6 foi o primeiro construído pelos grupos dominantes gaóchos, como foi a matriz que norteou todos os demais. Fundamental neste discurso foi a construção de uma imagen de Rio Grande do Sul altivo e ultrajado. A altivez da região se concretizava em outro conceito: um passado de glória, que tinha significantes difusos, tanto poderia ser um passado de "fartura" econômica, como poderia ser a própria "coragem" e determinação do povo, representado pelo peão nômade. O que tem ocorrido nos discursos de crise que se sucedem na história do estado é a rearticulação do discurso farrapo de acordo com conjunturas diversas. Antes de apontar outros exemplos deste discurso, vale chamar a atenção para o período posterior à Revolução Farroupilha, que se estende até a Proclamação da República. A situação da economia rio-grandense nesse período ainda se encontrava totalmente dependente da indóstria do charque, não revelando nenhuma alteração significativa que indicasse o fim da "crl.se". Menos de uma década após a assinatura do tratado de paz com o governo central, a situação do charque no mercado interno enfrentava os mesmos problemas que levaram os produtores gaóchos a se envolver em uma revolta armada. No entanto, o período foi de surpreendentes boas relações entre os grupos dominantes rl.o-grandenses e o governo central. Deve-se enfatizaJ o fato de o Partido Liberal gaócho, a grande força política da província da época, ter-se mantido fiel ao regime monárquico até o 15 de novembro, quando, nas demais províncias, as dissidências republicanas afloraram com grande força, a ponto de ameaçar de fato o velho regime. A chamada República Velha no Rio Grande do Sul apresentou uma situação peculiar. O estado, ao contrário do que aconteceu no resto do Brasil, não viveu sob a égide de um partido único; ao contrário, a divisão das forças políticas resultou em uma constante tensão que chegou ao seu ponto máximo em duas revoluções, em 1893 e 1923. As revoluções são eventos concretos de crises políticas de legitimidade do grupo dominante reunido no Partido Republicano Rio-Grandense. Entretanto, o discurso da crise não apareceu ao nível estadual. A análise de editoriais do jornal do PRR durante o período, A Federação, o mais popular e importante 262

periódico do estado, ao contrário do que se poderia esperar, sempre construiu um discurso de força, de tranqüilidade, minimizando os efeitos de uma crise de legitimidade do partido. Os adversários políticos sempre foram mostrados como fracos e incapazes de ameaçar o partido que dominou por todo o penodo o Governo do Estado•. · Em alguns momentos, na República Velha, o discurso da crise apareceu, mas correspondeu a tensões entre o Governo do Estado e o Governo Federal. Fundamentalmente, a questão central desses perlodos de tensão reteria-se à ameaça por parte do Governo Federal de intervir no estado, tanto para pôr fim aos conflitos annados, como para forçar as instituições políticas gaúchas a se adaptarem à Constituição Federal.* Nesses momentos apareceu claramente a rearticulação do discurso da crise, onde o PRR tratou de construir a imagem do Rio Grande do Sul altivo, guerreiro e consciente de sua liberdade ameaçada pela intervenção. Mais uma vez o grupo dominante unificou as diferenças: o interesse do PRR em manter-se no poder - e a continuidade da constituição gaúcha era fundamental para isto - tomou-se mais uma vez o interesse do Rio Grande do Sul, do povo gaúcho, uma ameaça à independência, uma afronta à altivez. Os exemplos são muitos no decorrer da História do Estado: "O Rio Grande do :sul de pé pelo Brasil" em 1930, o Rio Grande do Sul um novo Nordeste da década de 50, o Rio Grande do Sul baluarte da legalidade em 1961 são todos momentos de discurso de crise que ciclicamente constrói o gaúcho como uma unidade, onde interesses diversos, posições de classe perdem o sentido. Chama-se o gaúcho a lutar contra a ameaça às suas tradições, sua altivez, seu sentimento de independência. Para finalizar esta reflexão, cabem algumas observações sobre o atual discurso da crise no Rio Grande do Sul. O discurso é construído por um agente definido - o governo do Estado. Sua eficácia se revela em dois níveis: na administração pública direta e na sociedade como um todo. Os reflexos são diferenciados. Na primeira, o governo do Estado fica colocado em uma ·situação bastante cômodá em relação ao funcionalismo público, que, com exceção dos professores (que são funcionários, mas não estão ligados à administraçao direta), revela· um grau surpreendente de desmobilizãçio. Em reTaçâo à sociedade como um todo, o discurso conseguiu construir um sentimento de antagonismo entre o Rio Grande e o restante do país, onde claramente aparece a "honra" gaúcha ultrajada. A crise é construída pelo Governo do Estado e tem como pólo central a contradição entre os interesses do Rio Grande e a política do Governo Federal. As promessas do candidato, não cumpridas quando feito governador, passam a ser trabalhadas, como a traição do Estado Nacional, que impede o pleno desenvolvimento do plano do governo e o crescimento em geral *A Constituiçio do Rio Grande do Sul de 14 de julho de 1891 contrariava frontalmente a Constituiçlo FederaL Nela nio se privilegiava a separaçlo dos poderes. O Presidente do Estado reunia grande soma de poder, quer por acumular o poder Executivo e Legislativo, quer por sua possibilidade de ser reeleito indefinidamente.

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da economia do Estado. No ano de 1985, por ocasião do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha, o Governo do Estado rearticula claramente os valores de 1835, de altivez e de honra ofendida. Comerciais do Governo do Estado veiculados nas redes de televisão foram taxativos: o mais claro desses comerciaiS foi o da Caixa Econômica Estadual, onde, junto com um texto que enfatizava que ninguém mexe no que é nosso, apareciam imagens de uma batalha que representava a Revolução Farroupilha. O discurso da crise em relação à política do Governo Federal aparecia com grande força quando os funcionários da administração direta revelavam qualquer tipo de mobilização por aumento de salário. A qualquer movimento dos funcionários corresponde a ameaça de atraso no pagamento dos salários devido à negação de emprestimos federais ou devido à centralização, também ao nível federal, dos tributos arrecadados no estado. Se, por um lado, a ameaça de atraso no pagamento por culpa do Governo Federal dilui responsabilidades, por outro, provoca a desmobilização do funcionalismo. pois qualquer movimento contra o Governo do Estado é uma açáo contra a vftima e não contra o cu1pado. O discurso da crise construído pelo governo estadual estende sua eficácia para além dos limites da relação governo-funcionalismo póblico. O sentimento de que o povo rio-grandense está em crise por culpa do Governo Federal esteve muito presente e foi, de certa form~ definitivo na campanha pela criação do Banco Meridional, em 19M5. A falência do Banco Sul BraSileiro teve causas muito claras e responsáveis facilmente apontáveis. Sem entrar nos méritos da questão, a falência representou a crise de um grupo financeiro privado estreitamente ligado com o poder militar. A falência da casa bancária esteve, de certa forma, relacionada com a própria falência desse poder. A pesar das evidências, a campanha que se montou no Estado pela estatização do banco, reuniu todos os partidos políticos, o Governo do Estado e, o que parece mais difícil de entender, os banqueiros e os bancálios. Por um longo período, o Sindicato dos Bancários (liderado pelo Partido dos Trabalhadores e seguramente um dos ativos sindicatos do estado) liderou uma mobilização popular pela estatização, onde a manutenção do emprego era a bandeira de luta. Como explicar que um sindicato com a tradição política da dos bancários não tenha tido capacidade de perceber que interesses do sistema financeiro gaúcho não poderiam corresponder aos seus; que a estatização do Banco não era garantia de emprego? Se juntarmos tudo que foi escrito e dito na época sobre a estatização do Banco, não haverá surpresa. Durante o período que se estendeu do fechamento do Sul Brasileiro até a criação do Banco Meridional, o discurso da crise foi construído com grande requinte -o Rio Grande do Sul estava novamente ameaçado pelos interesses nacionais; o estado, o povo, deveriam u~se para mostrar, mais uma vez (a Revolução Farroupilha foi fartamente articulada), ao país sua força, sua altivez. O Rio Grande do Sul unido foi a Brasflia; governo, deputados, banqueiros e bancários. A criação do Banco Meridional foi a vitória do povo gaúcho frente ao Governo Federal. Mais uma vez os grupos dominantes econômica e politicamente conseguiram unir o povo a favor 264

de seus interesses. Mesmo as demissões em massa que aconteciam no Banco Mericional no óltimo ano nio tiraram o sabor da vit6riL O Rio Grande do Sul pode ter enfientado e pode at6 estar enfientando crises em sua estrutura produtiva. mas a crise da qual se fala nio 6 uma crise real, mas um eficaz discurso que constrói sujeitos concretos que agem "como se" crise houvesse, possibilitando o imobilismo de elites políticas despreparadas e a sua própria reprodução.

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MÉXICO: MITOS INDIGENAS V MITOS NACIONALES BLANCA RODR1GUEZ*

M~XICO, UN ESPACIO SAGRADO

Cada vez que pronunciamos la palabra México, renovamos una antigua palabm que proviene de la lengua náhuatl, lengua dei pueblo mexica o aztcca, uno de tantos grupos que babitaron esa porei6n de territorio llamado Mesoam6rica por bistcxiadores y arqueólogos. Guiados por su deidad HuitzilopochtJi, los mexica finalizaron en el aõo 1325 su larga peregrinación coando en medio de la Iagwa dei agua de la luna (A tezcatl, Meztlí, A pan) encontmron una águila (Huitzilopocbtli, dios solar) posada sobre 1m nopal (tenochtli) cargado de tunas (corazones humanos) que devomba a una serpiente. De acuerdo con Ia Cronica Mexicáyotl el suceso es relatado así: Aquf eati gran ciudad, M6xico-Tenochtitlan, en el lugar dei renombre, en el lugar que ea ejanplo, donde se yergue la tuna silvestre, en medio dei agua. donde estl erguida el lguila. donde el 4guüa grita. donde extiende sus alu, donde devora au aUmento, desgarra la aerpiente, por donde nadan loe peces, en lu aguas azules... en el lugar de la ajorca de plumas, donde se encucntran, vuelven, toda clue de gemes, desde los cuatro rumbos dei mundo- 1

Coo eae nombre tan sugerente, ya hemos palpado la entraõa de lo mítico en la historia de México, y awque el muco de este coloquio es la Actualidad del mito, debemos detenernos levemente en otro mito prebispánico. Antes deju6 sentado que reconozco como mito la explicaci6n de un suceso considemdo como sagrado por una sociedad y que es renovado en el tiempo a trav6s de ciertos ritos y ceremonias. El México antiguo se encontnba poblado por muy diversas cultums que habían forjado para sl una explicaci6n de su origen divino. Centros cer:anoniales, templos, cmtos, códices guardaban la sabiduna de pueblos como el mexica. el maya, el totonaca, el mixteco, etc., pero infinidad *Biaaca Rodrigus. Coordenadora de Relações do Instituto Nacional lndigenista/M6xico. Doutora em Letru lber~Americanu pela Universidade do M6xico. Poeta e ensalsta. lpoRTILLA, Miguel Le6n. .Mixico-Tenochtitlan: su espacio y tiempo sagradOif. M6xico, INAH, 1978. p.71.

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do mitos 110 perdieron dobido a la aaiquilaci6n do la clllo siCeldotal y seftorial ai consumano la conquista do M6xico por parte do los ospdolos on ol allo 1521. A posar doi otnocidio y la consiguiente dost1Ucci6n do la cultura do doceoas de grupos 6tnicos, perrivioron eo la tacici6o oral o on loa c6dicos, algunos testimonios do mitos fundamontales pua ciortos pueblos. Entre ollos ao onc:uontmn la loyeoda tootihuacana doi Quinto Sol, las valias loyeodas sob~e ol dios Quotzalc6atl {Kukulcm pua los mayas), el ~ey Condoy, do origen mixo, ol príncipe mixteca 8 Vonado-GIID do Tigre, por mencionar unos ojomplos. Algunos do los significativos mitos probisp*Ucos fueron rocogidos por los ovangelizad01'08; destaca ontJe ollos Fray Bomardino do Sabagdn, a quion se lo donomina .. el padre do la antropolog{a mexicana". Durante 60 aõos, en el siglo XVI, Sahagón, coo paciencia infinita, oscuch6 a indígenas sobrovivieotes y transclibi6la informaci6n on su monumental Historia general de las cosas de la ~eueva Espana, fuonte de );Kimor ordon para conocor la vida de los moxica. Adem ás do ose libro, existeo otras obras tostimonialos, alén · do docenas de crónicas ya publicadas y otras mochas que osperan ser estudiadas en los archivos do M6xico, Estados Unidos y Europa. La desclipci6n que proporcionan c6dicos, crónicas y ostudios arqueológicos, ai cabo dei tiempo han ~efrondado mutuamente sua conclusioues, pero dosa· fortunadamente la mitología antigua ha sido JeCOnstiUida do mauera parcial UN MITO PREHISPÁNICO Y UNO COLONIAL Habiendo aludido ai mito de la fundaci6n de M6xico, pro110guir6 coo el dei origon dei dios Huitzilopocbtli, que se onc:ueotra on valias fuentes. A continuaci6n se transcribc lo que ~efiore ol C6dico Matlitense: En Coat6pec, por el rumbo de Tula. habta estado viviendo, aur habitaba una mujer de nombre CoadicueEsta Coadicue allt hacfa penitencia. barrfa. tenta a su cargo barrer asf hacta penitencia. en Coat6pec, la Montafla de la Serpionte 1 y una vez, cuando barrfa Coadicuo, sobre olla b~6 un plum~e, como una bola de plumas finas. En seguida lo recogi6 Coadicue, lo coloc6 en su sono. Cuando termin6 de barrer, busc6 la pluma. que habfa colocado on lU 1ono, pero nada via ant en esc momento Coadicuo qued6 oncinta...2

2 POR TILLA, Miguel Le6n. Op. cit. p.29.

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Cuando los hijos de Coatlicue, Coyolxaubqui (la luna) y los Centzonbuitznabua (las estrellas) se enteraron, urdieron mataria, pero enterada la criatura en elseno de su madre, la oonso16 y naci6 pam defenderia, "tmyendo consigo una rodela coo un dardo y vara de color azul, (••• ) y el dicbo Huitzllopocbtli dijo a uno (••• ) que encendiese una culebra de teas y asf la encendi6 y coo ella fue berida la dicba Coyolxaubqui, de que murl6 becba pedazos, y la cabeza qued6 en aquella sierra Coatépec y el cuerpo cayóse abajo becbo pedazos'', 3 exterminando además, a las estreDas. Huitzilopocbtli repite todos los dfas la bazaõa, poniendo en fuga a los astros de la nocbe y su tliunfo significa la vida pam los bombres, que deben retribuir al dios ofreci6ndole sacrificios humanos. La sangre, cbalcbiuatl o líquido precioso, es la sustancia mágica que alimenta a Huitzllopocbtli (los corazones en el tunal). Aunque este mito es fundamental, lo interrumpimos pam retomar la figura de la diosa Coatlicue, cuyo nombre significa "la de la falda de serpientes" y su representación en piedra se considera una de las olras cumbres dei arte mexica. La diosa, conocida también como Tonantzin, Nuestra Madre, era venerada por el pncblo mexica, su adoratorio se encontraba en el cerro dei Tepeyac, eo la inmediaciones de la ciudad. AI paso de la evangelización católica su culto debla ser eliminado. El pmceso tuvo características muy singulares que desembocamo no sólo en un nuevo culto sino que éste rebas6 los lfmites religiosos para fmalmente modelar una parte sustantiva de la identidad mexicana. Una de las imágeoes espaiiolas que los conquistadores trajeron a la Nueva Espaõa fue la de la Viigen de Guadalupe de Extremadura, a quien se le edific6 una ermita en el aludido Tepeyac, en donde se fueron recogiendo numerosos testimonios de sus milagrosas intercesiones. Alrededor dei afio 1556, una indígena pint6 una imagen que se distanciaba dei modelo original: su tez ahcra era aceitunada y su rostro mostraba facciones indígenas. En 1600, la fecha de su devoción se traslad6 ai 12 de diciembre para distinguiria de la fiesta de Guadalupe de Extremadura, celebrada en septiembre; a través de esos cambios, los fieles crioDos iban procurando una devoción más adberlda ai suelo en que babfan naci9o. Los indígenas participamo en el culto desde un principio, pem no reconocieron ,. Guadalupe como tal, ya que detrás de su imagen escondfan figurillas que representaban a Tonantzin; sólo basta mediados dei siglo xvm comenzaron a llamarla de esa manera, coincidiendo casi coo el reoonocimiento indirecto que la Ssta Sede coocedi6, en 1754, a la tradición aparicionista. Esa tradición se origin6 coando un fraile, Miguel Sáncbez, publicó en 1648 un libro en el que daba cuenta de las apariciones de la prodigiosa Vilgen ame el índio Juan Diego en el afio 1531, becbo dei que el entonces Arzobispo de México, Fray Juan de Zumáaaga no dej6 ningón testimonio. A raíz de esa obra la Iglesia inici6 las gestiones para que el milagro fuera reconocido por el Vaticano. La devoción a Guadalupe devino en un cobesio3SAHAGÚN, fray Bernardino de. Historia general de /Qs coaas de la Nueva Espailt.. (ed. ~el Ma. Garibay.) M6xico, Porrda, 1975. p.l91·2.

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oaote social y espiritual pam indígenas, mestizos y cliollos, cre6 el seotimieoto de perteoeocia a lo americano como algo 6oico, escogido, diltinto de lo europeo; fue emblema de la madurez política que alcmzaroo los habitantes de la Nueva Espana, pues los insUigentes se abaodcrllron coo Guadalupe coando pugoaroo por la independencia de México en el siglo pasado. Desde eotoooes, la Virgen Morena protege todo caminho, ceDO, fábrica, hospital, taxi y sobre todo a cada mexicano, que evoca pua sf. la figura dei iodio Juan Diego. La mitad de las mujerco dei país se llaman Guadalupe, Lupe, Lupita, pero tambi6n conocemos en todos los pueblos a José Guadalupe y a Doo Lupe. Durante su festividad, la Virgeo es velada desde la víspera, a su grau Basílica concorreu miles de devotos, especialmente indígenas que se posesiooan dei atrio pua danzar. como segUJ8.1Dente lo hicieroo sus antepasados frente a Tonaotzio. Las peregrioaciones de los fieles llegan de todos los rincones dei país, lo cual significa una enorme movilizaci6n humana y económica. La imageo ha servido tambiéo de control ideológico de grandes masas; como madre de todos los mexicanos, ha sabido inculcar la obediencia y respeto a la autoridad. Desde la Refonna Liberal dei siglo pasado, las funciones de Iglesia y Estado se eocuentran sepamdas; los políticos pueden atacar a la Iglesia y defenderse de ella, pero jamás rozarin la cuestión dei culto a la Guadalupana, sino que por mutua conveniencia, los dos poderes ban demostmdo estar de acuenlo eo ese ponto. MITOS INDÍGENAS EN EL M~XICO ACTUAL Aunque bacia el exterior sea un país occidental en sus manifestaciones de orgaoización política, económica y cultural, México es un pafs pem1eado por lo indio y eo ese contexto es donde actualmente existe una gmn rlqueza de mitos. Antes de entrar eo particularidades,IX"Oporcionaré una someminformacióo sobre el México indígena. Preponderantemente se define a1 indio a través de su leogua, sus costumbres, su vestimenta. Tao importantes soo esos factores como poseer mentalitúld de indio, lo que conBeva valores religiosos, sociales, culturales y agmrios. Frente a 70 millones de mestizos, eo México sobreviveu alrededor de 12 millones de indivíduos denaninados indígenas, de los que aproximadamente 3 millones soo monoliogues. Esa poblacióo está grupada e o 56 grupos étnicos coo características muy particulares y se encueotrao diseminados por casi todo el territorio nacional. La poblaci6n indígena tiende a crecer bacia dentro, pero fmnte a la sociedad eo general ba decrecido, lo que ba significado pua ena desplazamiento económico y social a pesar de las reiviodicaciones emanadas de la Revoluci6n de 1910. Por lo general, las creencias religiosas de los indios actuales soo resultado de la fusióo de sus antiguos mitos coo las tmdiciones y enseõanzas de la religi6o católica, becbo que se conooe coo el DOIJ!bre de sincretismo. Los pueblos que babitab111 · el Noroeste fueron los menos afectados por este fenómeno, debido a que su colonizaci6n ocumó tardla271

mente. P« otra parte, los gmpoa oran n6madu; llg1Blo, como o1 Yatai. dofendi6 su torritmio hasta ol siglo preaonto y algunu otru etnias ao rofugiaron on las altas montafiu do la Sieua Mldro Occidontal En lu otras rogioDDS dol país, ol contacto con los misiODOI'OI fuo m" conatlllte y on todas sua festividados y crooocias 80 evidencia ol dogma cat61ico. Los mitos que subsiston han sido objoto do rocopllaci6n por parte do otn61ogos que visitaron M6xico a principios do siglo (Kali Lumholtz, Konrad Prouu), por lingflistas y antropólogos mexicanos y oxtmnjoros, por pcriodistas (Fem~mdo Benftez) y rociontemonto por algunos indfgoou. No puodo asogurarse la pureza absoluta do las rocopilacionos a posar do la scriodad do los tmb~os que han ompmndido los ostndiosos, porque 10 depondo oxclusivamonto do la tmdici6o oral, y los indfgenas gust~m do matizar los mitos do acuenlo con sua vivencias. Por otra parte, longua y mito son indivisibles y como la mayotia do los estudiosos ni compreodon y menos dominan la longua aborigon en cuesti6n, dobo rocUDirse a la traici.6n de los traductores. Este es un modismo conocido entro literatos, paro no es aveotumdo supooer quo aón do buona fe el significado dei lenguajo 80 altera y sufre valiaciones. Existen mitos de dominio general y mitos consorvados en secreto por chamanos, bmjos e iniciados; para conocorlos, la amistad abre caminos y entoncos se tropieza con una ética do la loaltad bacia los socrotos revelados, de manera quo no eslab« eoncilla la omprondida" por los estudiosos y para nosotros, hombms 6vidos do reexplicamos ol mundo, resulta importmte captar siquiora a través de un rayo de luz algo de la grandeza doi ponsllDliento aborigen. A pesar do la historia de atentados culturales sufrida porcasi quiniontos afios, el indio americano ha domostrado su fuerza sobreviviondo en condiciones absolutamente adversas, y una de las hip6tesis que se ha planteado es que su fuorza provieno de sus propias creencias y. on particular, do su intensa vida religiosa. A manera de ejomplificaci6n har6 un recuento de ciertos rasgos que rovelarán la cosmovisi6n do cicrtos grupos étnicos. Los mitos indfgenas no pueden aislarse y oxplicarso maravillosamento. Soo mitos que ostú unidos a alimentaci6n, vestido, danzas, poroglinaciones, medicina tradicional, arte, artesanfas, esto os, el mito convivo contínuamonto coo ollos y define toda su cultura. Inicialmente abordaremos al pueblo huichol que habita en la intrincada Sierra Madre Oocidontal, cilcunstancia quo nos poDDite acercamos al pensamiento mágico monos contaminado por lo ouropoo ya que la sioll'8 fuo conquistada por los Ospafioles OD la segunda década del 1siglo XVill y la evangelizaci6n la iniciaron los jesuitas, expulsados en 1767. Los dioses principales de los huicboles soo: Tatowati, Nuestro Abuelo, el fuego; Tayaupá, Nuestro Padre, ol sol, y Nuestra Madre, que 8011 las diosas del agua, o del maíz o de los poscados. La cosmovisi6~ huichola constituye un sistema filosófico y simbólico aún no desentraõado pero que está regido por tres divinidades que se retroalimentan entre sí: el venado o Kauyumari, su héroe cultural, el maíz y el peyote. A continuaci6n se sintetiza uno de sus mitos: Kieli Tewiyari nace dei viento y, aunque es un niõo, de su boca salen alimaõas que daõan al hombre. Dice así ol texto, que, por los rocunos literuios 272

vertidos en él, lo configuran como un poema en prosa en su veni6n espafíola, quizá en buicbol sea poesf'a pura: Bata es la historia dei Arbol dei Viento, el maligno Arbol dei Viento quien es llaniado Ki6ri. Ki6ri T6wiylri, aquella Persona Ki6ri, quien es conocido como Tutakdri, a quien uno ll~ma Tut..Kdri. Kiêri y Tutakdri son los miiiDo•o C6mo naci6, c6mo subi6, queriendo ser mú que KAuydmari. l C6mo era cuando naci6, aquella persona Arbol dei Viento? Era maio, maligno, cuando naci6. Naci6 dei viento, naci6 sobre el viento. No naci6 de madre ni de padre. Viento dei viento, sobre el viento; un viento maligno. El viento fue su padre. Cuando êl naci6 los brujos esperaban. Cinco brujos esperaban, sentados en círculo. Lo esperaban a êl. Algo ocurri6, algo pas6 aht. Algo sucedi6 dentro de êl cuando naci6. Se movi6 algo en 6L Algo se movi6 dentro de êL Fue transformado. Murc~l~~gos salieron de su boca. Apenas era un nifio pequelío, un nundsti. Sin embargo, murci6lagos salieron de su boca. Salieron volando. Lobos salieron de su boca. Abri6 su boca y lobos salieron de su boca. Cosas que se arrastran salieron de su boca. El vio c6mo era 6L Se dijo a s1 miiiDo: •si as( es como soy, as1 es como ser6•. El dijo: •eso es lo que voy a hacer de mi vida. Ser6 un colecionista de serpientes, de víboras venenosas. Ser6 amo de víboras, de cosas que se arrastran. Yo las voy a gobernar. Eso es lo que voy a hacer". De aht en adelante creci6. Fue afligido con una enfeD!Iedad en ese momento; desde esc momento en adelante. Una enfermedad dei viento. Tenta una locura dentro de êL Cuando era pequelío, cosas oscuras saüeron de su boca. Cosas azules salieron de su boca. Cosas color carmesl. As( es como era. As( era 6L l Quê fue lo que pas6 aht? Vino sobre el viento; naci6. Era maio el jefe de los brujos. Ast es como naci6. Se vio c6mo era. Nuestras Madres vieron c6mo fue. Ellas dijeron •vamos a observar lo que dice Ki6ri. Lo que hace. Estamos algo preocupadas por e ao• _ 4

Kiéri Téwiym se convierte después en un Mará'acame, utiliza un tambor, canta y ofrece un peyote a los buicboles. EI cactos los enloquece, pero Káuyómari espía a Kiéri para aprender sus secretos. Los dioses observan y saben que ambos pelearán. Kiéri pide ayuda ai Padre Sol y oftece sabiduria y poder a Káuyómari, pero como él ba aprendido sus becbicenas, no cede. En la Iucba Kiéri es berido y su poder neutralizado par medio dei peyote y Káuy6mari finalmente lo mata coo una simbólica quinta flecha. En la vida cotidiana, la comunidad buicbola vive en tomo dei Mará'acame que es su cantador y curandero, el bombre sabio que conoce a cada uno y los cum del alma y cuerpo. Bajo su vigilancia se prepara la peregrinaci6n a Viricuta, el sagrado desierto donde se aparece el venado bajo la forma dei cactus sagmdo. Antes de iniciarse las siembras, bombres y mujeres cumplen coo una serie de pruebas para participar en la peregrinaci6n; el Mará'acame consulta a los dioses para saber quién es digno de efectuada y tms de ritos significativos parten de sus montaõas rombo ai Oriente. La peregrinaci6n dura quince días en cada sentido, caminan 500 ki16metros atravesando el centro dei país y deteniéndose cada vez en los míticos lugares que sus antepasados nómadas ya recorrieron miles de afios atrás. Igual que para sus ancestros, el recorrido supone la caceria dei peyote, 4 FURST, Peter T. & MEYERHOFF, BArbara G. El mito como historia: el ciclo dei peyote y la datura entre los huicoles. ln: NAHMAD, Salom6n et aL El peyote y los huichola. M6xico, Sep-Setentas, 1972. p.63-5.

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sinónimo dei venado sagrado. AI llegar a Vilicuta, disparan flechas antes de extraerlo de la tierra. Coando han recolectado lo suficiente retoman ai Occidente y organizan Ia gran tiesta dei Hikuri Neira. En ella, los huicholes mascan porciones dei peyote, el chamán canta durante la nocbe cientos de versos, entre ellos los siguieotes: Miren ustedes colibr1es, ciert1111ente vamos bacia donde los peyotcros ban. ido, 1Qui6n sabe si lleguemos o no! porque este vi~e es muy peligroso. Se debe volar alto para pasar sobre el viento, ligero como el aire. Acamparemos ahl, · bajo los ârboles más altos.

Maxa Kwaki los gula. 61 les da los nombres bacia donde deben volar, para que puedan entrar sin peligro. Se elevan, se elevan, Como cuerdas de cbaquiras. "Qu6 bermosa es esta peregrinaci6n, que bella es" asf dice Maxa Kwaki, Cola de Venado.5

Para finalizar coo la parte dedicada a este pueblo, deseo seõalar que los objetos rituales huicholes han sido reconocidos como exceleocias artísticas en numerosas exposiciones intemacionales. A continuaci6n comentaremos la Semana Santa entre los índios cora, como un ejemplo dei ansia por recuperar los mitos primitivos frente ai cristianismo. Unos 8,000 coras habitan también en la Sierra Madre Occidental y la organización de la ceremonia es la culminaci6n de intensas tareas realizadas durante largos meses. El tabaco, que para los coras representa la planta sagrada, es el desencadenante principal de esas fiestas. El mito original relata c6mo ellos "(jeseaban descobrir una planta que prendiéndole fuego, despertara su inteligencia, avivara sus pensamientos" y en síntesis describe c6mo el Dios dei Tabaco, Yaná Tacua fue sotprendido por una mujer que percibi6 su aroma picante; ella le revel6 cuál seóa la forma que él tomaóa. Un amigo buscaba ai Dios dei Tabaco y, ai ver a la mujer, sinti6 amor por ella; la llev6 a jogar ai óo y coando estan tendidos en la arena, ella se apart6 de él y el hombre fecund6 la arena hómeda y tíbia coo un chorro de semillas de tabaco y la mujer a los pocos días vio que sus hijos estaban verdeando.

5FURST, Peter T. Para encontrar nUQtra vida: el peyote entre los huicholes. Op. cit. p.l32-3.

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Los coras explican acla vez, lo siguiente en otra versión, coo influencia occidental: Cuando los coras y los mestizos velaban el Santo Sepulcro, de pronto resucit6 Jesucristo y, advirtiendo que los índios se habfan dormido, dej6 a los mestizos como herencia e! dinero, las tiendas, las buenas tierras, las aguas y los bosques. En el momento en que el Sefior ascendta, acert6 a despertar un viejo Principal y, oyendo sus palabras, le pregunt6 angustiado: - Y a nosotros, Sefior, i. Quê nos dejas? - A ustedes, por haberse dormido, les dejo el tabaco y la pipa, e! algod6n sagrado y las plumas de ãguila y de urraca.6

Estos objetos, junto coo flores y jícaras coo pinole y maíz, constituyen las ofrendas sagradas que en la Semana Santa se colocan en la Casa Fuerte, asiento de los Principales. El martes santo, el Basta o chamán cora, sentado dignamente en su equipai, inicia un rito donde se canta, se fuma tabaco en pipa comunitaria y se implora bacia los cuatro puntos cardinales benevolencia para coo las próximas cosechas. AI exterior, en el pueblo, la Judea o encarnación dei mal, ha empezado a recorrer el pueblo. Bajo la luz de la luna, coras fantasmales, vestidos coo calzón blanco, portan bellísimas máscaras hechas en cartón, pintadas en blanco y negro, que representan caras de coyotes, venados, pájaros, etc. El miércoles santo, la Judea pide de casa en casa donaciones de tabaco; por la noche, tiene lugar la Danza de la tortuga, verdadero rito de iniciación para los adolescentes que partici· pan en ella, pues imitan las contorsiones de una tortuga que fecunda a la madre tierra. El jueves, junto al río sagrado, los coras decoran su cuerpo coo tierras blancas y trazos negros hechos coo maíz quemado. Los hombres hao desaparecido, su cuerpo es el dei demonio que buscará al Nazareno para sacrificarlo y posesionarse dei mundo. El espacio ritual, en el centro dei pueblo, se le h a arrebatado a las autoridades municipales y a la Iglesia. Ellos corren, danzan, cantan; la eucaristía se celebra, la gran comida éomuni· taria reúne a todos los participantes, los alimentos se comparten igualitaria· mente. El viemes, día de la sangre, el males el dueiio absoluto dei espacio, ahora la Judea ha decorado máscaras y cuerpo coo vivos colores vegetales, lo que enciende el tono dei drama que se avecina, pues ahora se rastrea ai Nazareno hasta coo animales disecados. Cristo muere a manos de una Judea que es representación dei antiguo seiior de los animales. La sangre nazarena es alimento. El viejo pueblo cazador renació por horas. Pájaros, coyotes, venados vuelven ai río que les dió vida, hunden el cuerpo en el agua, las máscaras navegan rumbo ai mar. Dei agua emergen los coras, su humanidad recuperada, para alcanzar las márgenes dei río ahora nueva· mente profano. Aludiré a continuación, muy someramente, a algunos aspectos cultura· les relacionados coo creencias míticas. En las ceremonias prehispánicas relacionadas coo los ciclos agrícolas, existían una o varias deidades a quienes se imploraba protección para el buen levantamiento de cosechas. Cu ando la Iglesia católica impuso su santoral, el indígena se acogil' a la protección de los santos más cercanos a 6BENfTEZ, Fernando. Los intlios de Mlxico. Mê:xico, Era, 3.ed. 1979. v.3. p.309.

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sua fechas tradicionales. En otros casos, si el atributo dei dios era el agua, por ejemplo el dios TWoc, se buscaba un santo cuya tradición fuera interceder por lluvias, en este caso, San Isidro Labrador. Entre los nahuas dei estado de Gueaero, el día de la Santa Cruz, adoman coo cruces floridas los campos agncolas en los lugares donde se colocaban sus deidades primitivas. Se danza, ai soo de flauta y tamborcillo, la Danza de tigres y la de Tlacololeros; los prlmeros simulan animaies y los segundos portan indumentaria que recuerda el tejido de ixtle prebispánico, máscara pintada a imitación de gotas de Ouvia y un chicote coo el que golpean la tierra simulando los truenos de la tormenta. La traza de los pueblos indios los divide en mitades o cuartos, siguiendo ejes de orientación cardinal. Cada porción constituye un banio bajo la advocación de su sato patrono y debe respetar obligaciones comunales muy precisas. Tocante a los alimentos, subsisten los míticos conceptos de "lo fiío" y "lo caliente", por ello se observan regias que indican qué alimentos pueden combinarse y cuáles soo incompatibles. En cuanto a la bebida, la boD'IICbera originalmente tiene un caráter ritual y, en principio, es colectiva, pero la circunstancia ba sido aprovechada por los vendedores de aguardiente y mezcal adulterado, lo que ha incrementado el índice de alcoholismo entre los indígenas. Otro aspecto comprende el nabualismo que es una creencia sumamente extendida. Nabuàl puede ser-ei alter ego ae Ia pique, el curandero transformado en animal que acecha la vida de los recién nacidos. La aptitud para el nahualismo es una caracterlstica congénita. Los otomís creen que los nabuales nacen coo una pequeiia cola, acaso signo de potencia en la medida que cola y miembro tienen el mismo nombre. i,Recuerdan ustedes las historias de Garáa Múquez? Otros grupos distinguen "la tona" que es la alma encarnada en un animal y que probablemente se acerca a la idea de "la sombra" en las culturas africanas. El ciclo de la vida dei individuo sigue el miamo proceso que el dei animal ai que está ligado: peno, jaguar, etc. MITOS NA ClONA LES En la actualidad, existen varios mitos que comprenden aspectos religiosos, nacionales y nacionalistas. Como ba sido visto, el de Guadalupe-Tonantzin es el mito más representativo a lo largo y ancho dei pal's y a su lado, la festividad de muertos tampoco lo es menos, pues es una celebración que cohesiona a la sociedad mexicana. Cierto es que se cuenta coo escasos elementos para conferirle un origen de carácter exclusivamente prehispánico y relacionado coo algún mito específico. Lo que sí se conoce esla reverencia de los pueblos mesoamericanos bacia sus muertos y la idea de la muerte vista como un tránsito ent~ dos mundos, pero distanciada de una intelectnalización. Entre los mexica, por ejemplo la manera de morir condicionaba el lugar de vida futwa; no era-lo miamo morir ai servicio de los dioses por sacrificio o por guerra, que morir por muerte natural; las mujeres muertas en el parto 276

o quieoes moiÍan abogados o por rayo iban a un lugar privilegiado. La idea de castigo fue desconocida entre los pueblos prebispmucos. Debido a la evangelizaciõn, es posible supooer que la tradici6r. esU asentada en antiguas costumbres espaiiolas ya que existen testimooios de oraciones. m6sica y ofrendas compuestas para los difuntos. A pesar de esas salvedades, la creencia. tanto en el mundo indígena como en la sociedad mestiza, revela que en la víspera dei 2 de novie.nbre se re6nen las almas de los seres muertos coo sus deudos supervivientes para disfmtar no s61Cll de la companía, sino de los alimentos que al efecto se preparan y la m6sica que se toca en los panteones. Este ritual no corresponde a la explicaci6n de un origen, pero de alguna manera se vuelve una creaci6n instant4nea. en la que coexiste un tiempo y un espacio sagrados en donde se fusion111 dos opuestos: una realidad y una il:realidad. En el mundo indígena no puede tmsgredirse ning6n aspecto de la fiesta, baijo pena de sufrlr la venganza dei alma no agasajada. En el mundo mestizo se celebran represeotacioncs, algunas recuerdan la Danza de la muerte dei siglo XV. otras, como Don Juan Tenorio, adoptan bien su forma clásica, bien alguna parodia. Los tmdicionales altares de muertos, diferenciados seg6n la regi6n, por lo general exhiben una riquísima ornamentaci6n artesanal, floral y ali· menticia, por lo cual no ha sido aveotumdo suponer que las festividades indígenas de recolecci6n agncola en otoõo hubieran podido coincidir coo la fecha católica de remembranza de los fieles difuntos. lo que favoreci6 la implantaci6n de la fiesta. de la que existen testimonios ya en el siglo . XIX. Otros aspectos interesantes soo la publicaci6n en periódicos de las "calaveras", versos satíricos que se dedican a personalidades políticas, y la venta dei delicioso pan de muerto. De manera que lo que otl'IS culturas podrían considerar como una ceremonia 16gubre, en el mexicano tiene acento de vida. Los mexicmos somos un pueblo de dualidades, dirlamos eo respuesta a una definici6n. En esa actitud dual se encuentra inscrita la propia persona dei indígena. que ha sido objeto de un proceso mitificador tlllto por la sociedad como por el Estado. El proceso se inicia desde el momento miamo dei descobri· miento de América, pues se design6 a los aborígenes coo un gentilicio relativo a las Indias, objetivo de los viajes de exploraci6n. En la mentalidad social existe un solo tipo de indio y por lo tlllto se _piensa en un estereotipo, ya que no se distingue la variedad de las culfums indígenas a pesar de que en aõos recientes el Estado ha reconocido a la sociedad mexicana como una sociedad pluriétnica y pluricultural. Los círculos de la cultura a veces los mimo de manera romántica, se les pinta o se escribe de eDos idealizándolos. Los altos estratos losjuzgan retlógrados y los considemn una rémora para el desarroDo, ignorando que su prudencia para aceptar cambios es un mecanismo de defensa nacido en las agresiones sofridas por más de cuatro siglos. Las clases hajas que justamente provieneo de eDos. · Jn frecuencia olvidan sus ongeoes de mancra que la sociedad en general los discrimina por su piei morena. su pobreza y su incultura en términos occidentales.

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Si por una parte la sociodad ba mitificado oogatiVImCDte al ind(gCDa, . "1 Estado ba pugnado per domostrar que goz111 do lu millllU gáaot(a que otcrga la CoDBtituci6u Política. El argumento principal que se esgrimo cs que, ou cl siglo pasado, uo iodígCDa zapoteca. de raza pura, fue PmsidCDte de M6xico. Eu bueoa medida cl Estado tiooe DZ6o pmquo Bonito Júroz cs la figum sobrcsaHoote dei liberalismo, fuorza política raíz doi Mexico modcmo, que se cofieota a la Iglosia católica y docrcta las Lcyos do Reforma que secularlzan los biooes eclesiásticos. Jdmz 10 babía integrado al mundo mcstizo y conscrvaba, a la vez. fucrtcs IBigos de cadcter indígena: cautela, sabidwía y sllcucio. Eu la actualidad, los libros de texto escolar recogoo, por ojomplo, esta parte de la historia dei país, poro no dau cuaota de la historla doi M6xico indígena, ai de los eucarcelamientos o asesinatos do indígenas que defiendon sus aspimciones agradas, económicas y políticas.

CONCLUSIONES Como se ba apreciado, la sociedad mexicana es una sociedad impmgnada por divemos mitos, de los que se ban mostmdo solamente algunos ejemplos. Los mitos prebispánicos y los mitos indígenas ban enrlquecido sustancialmente la cultum mexicana a lo largo de varios siglos. Sin embargo, los mitos prehispánicos soo de escaso cooocimicnto gcueral; se distinguem nombres de algunos dioscs, poro el mito on sí es ignmldo. Los eruditos han privilegiado los mitos mcxica, poro cxisten otms cultums que aguardan estudios más profundos. Numerosas obras artísticas. contemporáneas han tenido como ponto de partida a los mitos pmhispánicos como en el caso de la obra poética de Octavio Paz y Rub6n Bonifaz Nufio. Los mitos indígenas contemporáneos han nutrido la excelente obm narrativa de Rosario Castellanos y de Emclio Zepeda. Como una manera de reforzar posiciones nacionalistas, el Estado mexicano ha exaltado ciertos hechos o person~es históricos que han devcnido en mitos pam la población. Otro tipo de mitos, los que bonlan sobm la identidad dei mexicano, por ejemplo, han nacido de especulaciones intelectuales y han dejado campo abierto a discucionos curiquecodoms. Esta exposición no se realizó coo la intcnción de demostrar la aplicación de un método lingüfstico, histórico, antropológico, ost6tico o filosófico que plantea el estudio de una mitologfa determinada. Mi doseo fue enfatizar la gran riqueza mítica-cultural que la bumanidad polCO a trav6s doi indígena mexicano y que está siendo puesta en jaque por on6sima vez.

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MITOS DE BRASILIDADE NA UMBANDA MARIA HELENA VILLAS BÔAS CONCONE*

Falar em mitos e de "mitos de brasilidade" implica necessariamente retomar algumas questões conceituais teórico-metodológicas. Precisar, enfim, o campo do discurso. Tanto mais necessário, quando nossas reflexões se fazem a partir de uma manifestação religiosa específica. É na Umbanda, e mais especificamente a partir da Umbanda paulista, que procuramos delinear figuras míticas e interrogar sobre o seu signffi.cado. Antes, pois, de mergulhar nesse mundo simbólico densamente povoado, não podemos fugir a algumas questões introdutórias. A QUESTÃO DA UMBANDA Sem polemizar desnece~sarlamente no contexto deste trabalho, que tem um outro endereço, gostaria de fazer algumas colocações fundamentais para a análise a que nos propusemos. Inicialmente, devemos considerar que, de modo geral, os estudiosos da Umbanda parecem não ter dúvida em apontar para ela uma origem, · história e epicentro difusor. De fato, o movimento umbandista, relativamente recente, dataria da terceira década do século atual. Movimento originado na .região, Sul do país, mais especificamente no estado do Rio de Janeiro, seria um movimento coerente com uma área de intenso desenvolvimento econômico e urbano. O epicentro seria o centro Kardecista de Zélio de Morais em Niter6i. 1 Desde R. Bastide, idéia retomada por numerosos pesquisadores mais recentes, considera-se ainda que o movimento umbandista teria respondido a um processo ascensional e às expectativas ascensionais de parte da população de pólos dinâmicos do país, tradicionalmente ligados às religiões populares de origem africana. 2 O próprio momento de adoção do nome Umbanda pode ser rastreado (de acordo com depoimento de velho umbandista) até o primeiro encontro de adeptos, com caráter de congresso, acontecido no Rio de Janeiro, na

*Maria Helena VUlas Bôas Concooe. Professora de Antropologia na PUCSP e peaquia.. dora do Centro de Estudos da Religião Duglas Teixeira Monteiro-São Paulo. Doutora em Antropologia pela PUCSP. 1Diana Brown foi a primeira a traçar em detalhes essa história. V. tamb6m "Uma história da umbanda no Rio". ln: Umbanda e politica. Cadernos 18. ISER. 2Roger Bastide primeiro, R. Ortiz depois, trabalharam a partir dessa hipótese. Também eu, 1t .mesma época de Ortiz (uma religião brasikira: umbondo. Tese doutorado, PUCSP, 1973), trabalhei a partir dessa idéia.

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década de 40, e ao qual compareceram lideranças do vúios lugues, Sio Paulo inclusive. Se tais elementos podem ser estabelecidos, a religião de Umbanda, enquanto tal, contudo, deita raízes bem mais longe. Parece, pois, fundamental, que se pense, ao tratar da Umbanda, numa distinção entre o movimento umbandista e a religião de Umbanda. O mov~ mento responde pelo esforço sistematizador, racionalizador, organizativo da Umbanda. A religião, por outro lado, oferece uma face cambiante, mas diz respeito à crença, ao culto, aos ritos. É evidente que há um contínuo intel'Câmbio entre esses dois aspectos, mas não considerá-los introduz um viés na análise. Ao considerar a religião de Umbanda, há que tomar em conta vários elementos que entraram na sua constituição. É de novo Bastide, ao estudar pela primeira vez de modo sistemático o conjunto dos chamados "cultos afro-brasileiros", que sugere a Macumba fluminense (ela mesma descendente modificada do culto banto da Cabula) como matriz da Umbanda. Não obstante tais colocações, em pesquisa realizada em São Paulo,3 pudemos notar, a partir de depoimentos e de levantamento de jornais desde o final do século XIX, a presença de manifestações as mais variadas, às quais se dava nome de Macumba Uomais e depoimentos), baixo espiritismo Uomais), feitiçaria Uomais), Catimbó (depoimento), Candomblé (depoimentos), "seita" (depoimento). Em depoimento de Pai Jau,-4 homem de seus 78 anos à época (1982), encontramos referência ao seu processo do iniciaçio no culto. A sua primeira referência data dos seus nove anos de idade, quando sofreu uma vertigem e uma !Sra. Buzzi (sic), moradora do Alto da Lapa e, segundo ele, espírita, o tratou dessa "manifestação espiritual"; diz ele ter durante muito tempo freqüentado a casa dessa senhora, "trabalhando com ela" no atendimento de quem a procurava. Passou ele mesmo a ser procurado para fazer "rezas" para curar dor de cabeça, quebrante, etc. Essa atividade era realizada em casa e "tudo escondido, porque tudo era proibido". Sua vida de jogador de futebol o levou do Corinthians ao Vasco no Rio de Janeiro, e lá, através de amigos, conheceu Mãe Firmina, de um terreiro de Niterói. Mãe Firmina, "confiando !nos Orixás" de Pai J au, o iniciou formalmente no culto, culto esse que não é nomeado por ele. Quando se refere à Umbanda, Pai Jau diz que "a Umbanda é hoje uma religião, um Espiritualismo; então (nos anos 30), tratava como macumbeiro, ou então como rezador"; e acrescenta:· "isso magoava muito a gente, porque eu procurava;fazê o bem a todos". Nossos dados mostram, pois, uma intensa atividade religiosa onde elementos afro, de catolicismo devocional e popular e espiritismo cristio (sem pensar em outras manifestações populares de origem européia) estão 3Umbanda em São Paulo: mem6rla e atualidade. Liana Salvia Trindade (USP e CER), Lisias Nogueira Negrio (USP.CER), Maria Helena Villas Bôas Concone (PUCSP e CER). 4oepoimentos colhidos por Marisa Riccitelli Sant'Ana, como parte de sua pesquisa Umbanda e poder: uma pesquisa explorat6ria, realizada enquanto bolsista da FAPESP.

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presentes; mostram também uma grande mobilidade espacial (além da religiosa), que estabelece uma complicada teia de relações religiosas entre pessoal de candomblé da Bahia, de cultos do Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul. Por isso nosso cuidado em falar de uma origem pontual da religião de Umbanda, sem negar, contudo, sejam os elementos de análise para o momento de organização do movimento, seja evidentemente a importância dos trabalhos de pesquisa exaustivamente realizados. Há, entretanto, muito ainda a aprender. Do ponto de vista dessa comunicação, o que importa reter é que, na busca da compreensão do fenômeno umbandista, entendemos que a religião parte de uma tripla articulação estruturante: afro, católica (na fonna do catolicismo popular) e Kardecista (também na forma cristã assumida pelo Kardecismo brasileiro). Há que considerar, ainda, sempre para rastrear os caminhos do imaginário umbandista, a própria fonna de inserção da Um banda, enquanto tal, na sociedade brasileira, responsável pela importância que a questão da legitimação social assume para o movimento umbandista. Tudo isso, além do fato de a Umbanda se considerar como uma fonna de religião legitimamente brasileira, a coloca como palco de um trabalho simbólico, rico e· revelador. Ao tentar definir sua identidade religiosa, a Um banda se define como religião brasileira e desenha seus espíritos protetores como verdadeiros arquétipos de brasilidade. De um certo modo, ao panteão oferecido pela historiografia oficial, a Umbanda contrapõe seu próprio panteão de personagens e heróis de uma miúda vida cotidiana: são pretos, são índios, são brancos, mas são também baianos, prostitutas, boiadeiros, ciganos, marinheiros, Exus e Zés Pelintras, ou ainda "espíritos japoneses" que entram pela mão dos numerosos descendentes de imigrantes vindos do Japão. Todos eles figuras do cotidiano e do imaginário popular. A UMBANDA EM SÃO PAU LO O único levantamento possível do campo umbandista paulista, 5 a partir dos registros realizados em cartórios de títulos e documentos da capital do Estado, revela o crescimento da Um banda em São Paulo a partir da década de 50. Antes disso, graças à oposição da Cúria Metropolitana Paulista e à perseguição policial não menos constante, havia uma certa "invisibilidade" da manüestação umbandista,. mal encoberta por uma fachada de "centro espírita", ao nível dos registros oficiais. Só depois de vencida a oposição religiosa e do Estado, nol início dos anos 50, é que centros e terreiros podem se registrar segundo sua própria identidade - isto é, como centros ou terreiros de Umbanda. O crescimento mais acelerado, contudo, da Umbanda em São Paulo se dá nos anos 70. 5Levantamento realizado como parte do Projeto umbanda em São Paulo: memória e atualidade. Os dados foram trabalhados por Lisias N. Negrão (relatórios à FAPESP e à ANPOCS e artigos). NEGRÃO, Lisias N. & CONCONE, Maria Helena V.B. Umbanda: da repressão à cooptação. ln: Umbanda e polftica. Cadernos 18. ISER.

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Quando comparamos as curvas traçadas pela Umbanda, Kardecismo e Candomblé em São Paulo a partir dos anos 30 até o início da década de 80, encontramos que, grosseiramente, ao movimento ascensional de umas corresponde o movimento descendente de outras. Umbanda e Kardecismo desenham trajet6rias opostas, a Umbanda crescendo seguramente a partir de 50 e o Kardecismo fazendo o movimento inverso; ao pico de uma curva, corresponde o ponto mais baixo de outra. Quanto ao Candomblé em São Paulo, praticamente invisível nos registros até os anos 60, começa então a aparecer, e seu número se mantém relativamente estável até o início dos anos 80, quando assistimos a um crescimento bastante acelerado. De novo assistimos ao mesmo processo anteriormente indicado: à curva ascendente do Candomblé, corresponde uma pequena queda dos registros de Umbanda. Em termos numéricos, até o início dos anos 80 encontramos cerca de 16.000 terreiros (ou centros) de Umbanda registrados na capital do Estado, cerca de 1.000 terreiros de Candomblé e por volta de 500 centros espíritas que se diziam Kardecistas. Há que notar que, ao aumento do número de unidades de culto (centros ou terreiros) de Umbanda, correspondeu um crescimento proporcional das organizações federativas umbandistas no Estado. Até o início da década atual, cerca de 60 federações disputavam, por assim dizer, o espaço de organização do movimento. Ora, tal fato nos obriga a lembrar de novo que, quando se fala em Umbanda, há que considerar duas dimensões: a dimensão dos centros ou terreiros - unidades de culto que podem ser descritas como mais ou menos independentes (do ponto de vista da prática e da orientação religiosa); a dimensão das federações -organizações que foram surgindo com o papel (geralmente auto-atribuído) de organizadoras do movimento umbandista e, quando não, mentoras religiosas, doutrinárias ou éticas. Do ponto de vista do nosso trabalho, às federações correspondem exatamente os esforços sistematizadores, o papel teologizador no sentido dado ao termo por Berger. Não são de líderes federativos todos os textos publicados pelos umbandistas, mas, sem dúvida, boa parte deles, enquanto que jornais e revistas (instrumentos mais ágeis de comunicação) são sempre, por força, de órgãos federativos. Nos terreiros, graças à sua relativa independência e à liderança do Pai ou Mãe-de-Santo (cuja autoridade se baseia no conhecimento dos "fundamentos" da religião e na força mágica que daí advém), o trabalho é muito mais gerador que codificador, se se pode dizer assim. Não é preciso dizer que, dependendo da dimensão contemplada em qualquer análise, o resultado poderá ser bastante diverso, embora, evidentemente, essas duas dimensões não sejam, e nem poderiam ser, estanques. A realidade variada e cambiante da Umbanda, que a mostra menos como forma fechada que como processo de constituição, e o fato de contar com duas dimensões de produção têm permitido que se fale em relação a ela, seja em fragmentação, seja em bricolage. Caberia, sem dúvida, perguntar se a fragmentação Uustaposição mal articulada de elementos diversos) que atribuímos à Umbaoda, não é muito mais do nosso conhecimento em

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relação a ela; ou, por outras palavras, não sena a fragmentação muito mais um conceito analítico que resulta do fato de que, não encontrando uma lógica formalmente articuladora no trabalho simbólico da Umbanda, lhe atribuímos nenhuma lógica. Há de fato, na Umbanda, um intenso trabalho de construção simbólica a partir de dados do cotidiano, e cabe lembrar que a própria noção de bricolage supõe, além da justaposição de partes, pedaços, fragmentos, o condicionamento a um projeto. Melhor dizendo, um duplo condicionamento: ao projeto e à "matéria-prima" disponível para a ~zação do projeto. Talvez não seja demais lembrar aqui Duvignaud, quando indica que "existe uma coerência interna de todas as atividades possíveis. Somente que o princípio da coerência não deve ser procurado em detrimento do princípio da invenção (.-)". 6 A nossa intenção é seguir as pegadas desse trabalho simbólico, e partimos do suposto de que (pelo menos no caso da Umbanda), antes mesmo de assumir uma forma verbal, já existe um trabalho que passa pelo corpo e o utiliza como mediador e instrumento da idéia que nasce. Resumindo esse extenso porém necessário prólogo, diria que estamos partindo do suposto de que a religião de Umbanda nasce de uma tripla tensão estruturante afro-católica-Kardecista; não estamos preparados para aceitar (e a partir de pesquisa empírica) a origem pontual da religião de Umbanda; a Umbanda se constitui em religião popular, menos pela extração social dos seus adeptos que pelos símbolos que atualiza; finalmente, a Um banda é uma religião de transe; é por meio deste que suas figuras simbólicas são chamadas à vida e entram em contato direto com os homens. A Umbanda engendra nos seus rituais um verdadeiro teatro, um drama sagrado que supõe um espaço de representação (e uma proxêmica específica), peiSonagens sagrados, atores sagrados que os atualizam e criam, uma direção, mósica, coro e um póblico dinâmico que interage com o drama. Supõe ainda uma autoria. Essa autoria, conquanto social, abre espaço para a irrupção do individual. Do que ficou exposto, toma-se claro que o nosso campo de reflexão por excelência foi a dimensão do teueiro e do drama publicamente representado. E, falando do drama e do ator sagrado, finalizo buscando de novo em Duvignaud a palavra mais inspirada:" o ator provoca (então) essa participação ativa que prepara a efervescência renovadora da vida social que sem isso fica adormecida ou cristalizada".7 A QUESTÃO DO MITO Não vou retomar a extensa discussão acen:a do mito, mas apenas situar a concepção que deu origem a e&tas reflexões. 6DUVIGNAUD, Jean. El lenguaje perdido. Enaayo sobre la diforenciiJ antropol6gico.

7 A socio/ogiiJ do comediante.

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Parece inegável que mitos são nurativas que dão conta da fundação de um povo, de um comportamento cultural, da história de heróis culturais ou civilizadores. São nurativas fundantes. Tais nurativas, embora referidas a um princípio, a uma origem, não são fechadas enquanto tais - novos mitos podem surgir, novos elementos podem ser incorporados. As nurativas míticas, enquanto vivas e atuais, são atualizadas e reatualizadas na vida da sociedade ou segmento que as cria e mantém, e que encontra, nos mitos, suporte, sustentação, âncora e identidade. Isso é fundamental para a compreensão do mito: na medida em que são tundantes, são elementos que garantem a identidade de um povo e garantem sua continuidade. As nllil'ativas míticas, ou a atualização do mito, não se fazem apenas através de relatos verbais - orais ou até escritos - mas são vividas e experienciadas, ouradas também através do corpo. No que tange ao nosso problema, pudemos perceber histórias de personagens que não são verbalizadas ou totalmente verbalizadas, mas são, contudo, contadas através de signos gestuais antes de ganharem forma verbal. Gestos repetidos quando do transe de possessão elo '·médium" que incorpora um "guia", identificam o "guia", mas não são "explicados", verbalizados pelo ator. A verbalização, a incorporação dos signos gestuais numa história do personagem só se dá (e nem sempre se dá) paulatinamente, pois o "médium" alega freqüentemente desconhecer o modo de manifestação do "guia", do qual toma conhecimento através dos "clientes", os quais também o informam dos elementos da história do personagem. História essa recolhida pelo "cliente" interessado, que conversa com o "guia" nos momentos de consulta. O agente integrador dessa história é o "médium-ator'', mas muitos elementos são "explicados" pelo Pai ou Mãe-de-Santo detentor de um saber mais especializado e completo. ve-se, pois, que a questão é densa e que o ator lança mão de um repertório gestual significativo que passa pelo seu universo cultural interagindo com seu próprio imaginário. A verbalização mais ou menos completa da história implica por sua vez novos mecanismos articuladores e onlenadores. Coube sem dóvida à antropologia um papel relativizador no estudo dos mitos, ao trazer ao conhecimento e à reflexão erudita ocidental nurativas míticas não ocidentais. A questão do mito, contudo, pennanece mais ou menos fechada para a tradição ocidental, nos limites das sociedades antigas, arcaicas ou "primitivas". Essas produzem mi~os. A sociedade modema, recortada pelas distinções de classe e de poder, produz ideologias. De novo fugirei à polêmica da discussão, sem dóvida necessária, da relação mito-ideologia. s 8A relaçlo mito/ideologia foi trabalhada por um grupo de pesquisadores do CER, constitutdo por J os6 Roberto Benedetti (PU C-cAMPINAS e CEI<), Josuaeth G. Consorte (PUCSP-CER), Liana M.S. Trindade (USP.CER), Lisias N, Negrão (USP.CER), Maria Helena V.B. Concone (PUC.CER). Trabalho apresentado no VIII Encontro Anual da ANPOCS (1984),

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Parto do suposto de que, ao situar o caso da Umbanda, estou falando de verdadeiros mitos e, assumindo o meu papel de antropóloga, cometerei o ato herético de propor à discussão mitos em processo de constituição, mitos vividos e teatralizados, mais que contados, ouvidos ou sabidos, mitos vazados numa estética popular e kitsch, sem a elegância épica dos mitos trazidos por Homero ou Virgílio, tão mais afinados com o gosto e a tradição erudita. E, suprema heresia, mitos de uma sociedade modema, heterogênea e, sobretudo, uma sociedade de classes e que é a nossa. Esse é o ponto de partida. QUADRO MÍTICO DA UMBANDA: PANTEON DE PERSONAGENS Numerosos personagens míticos povoam o panteon umbandista. A concepção básica da existência de "linhas" que, em número de sete, se desdobram uma a uma em sete "sublinhas" (falanges), constitui, por assim dizer, o leque que abriga tais personagens. Os desdobramentos dessa progressão são humanamente infinitos. Cada uma destas linhas e falanges (e estou aqui usando evidentemente a denominação umbandista) é "comandada" por uma força (um Orixá, um "Santo") ligada a um elemento da natureza (água, ar, fogo, terra) e são verdadeiras linhagens que emprestam suas qualidades aos "guias" que as povoam. São as figuras dos guias que nos interessam aqui e será de alguns deles que falaremos. Esse universo, pobremente delineado por nós, fornece o esqueleto da cosmovisão umbandista estreitamente articulada com uma sociovisão específica. Esse território pouco percorrido pelo conjunto de pesquisadores da Umbanda é também pouco mapeado. Vamos tentar um mapeamento, seguramente precário, inicial, mas necessário: menos que um mapa, alguns marcos que permitam desvendar cautelosamente o terreno. Para tanto, partiremos da prática pública da religião umbandista, desse momento que chamamos de "teatro sagrado", onde os guias são' chamados a atuar através dos seus agentes, dos seus atores, por intermédio do transe de possessão. A atualização do drama comporta sem dúvida um espaço de encenação, atores ("filhos" e "filhas-de-santo"), ou "médiuns" (a linguagem varia segundo variáveis sociais e religiosas), música (músicos e coro), direção (que é, além disso, intérprete, partícipe) e orientador (cujo nome também varia), auxiliares e aprendizes. Comporta personagens sagrados que povoarão a cena. Comporta, afinal, e necessariamente, um público constituído de espectadores ativos e pólo necessário do drama sagrado. É no espaço do terreiro (para usar uma denominação comum, embora não exclusiva) que tais personagens são chamados à vida, através do transe de possessão, e ao convívio aberto, ombro a ombro e pessoal com os homens. Que gente é essa? Uma pergunta sem dúvida importante, mas que não é a nossa neste momento. Nossa pergunta será: que personagens são esses trazidos à vida? De onde vêm? Que símbolos representam? V amos por partes. 286

Caberia realmente chamá-los .personagens, na plena acepção do tenno? De fato, numa avaliação mais minuciosa, deveríamos dizer que a representação do panteon mítico umbandista, no que tange aos chamados guias ou espíritos, merece um nuançamento melhor, de vez que o trabalho de produção desse panteon se dá em vários níveis. Num primeiro nível mais propriamente social, a Umbanda produz o que chamaríamos, na falta de melhor expressão, de "grandes tipos" ou "personagens-tipo", de grande valor simbólico: são os caboclos e os pretosvelhos de um lado e os "pelintras" e "pombas-giras" de outro. ClJtrespondem grosseiramente a uma divisão do mundo em duas metades: a metade da direita e a metade da esquerda (ou ainda, ao "privado" e ao "público", o de dentro e o de fora, ou ainda, para usar uma linguagem cara a R. da Matta, o da "casa" e o da "rua"). O lado dos Orixás é o lado dos Exus. Embora os "personagens-tipo" sejam extremamente numerosos (há, além dos caboclos e pretos-velhos, os baianos, boiadeiros, marinheiros, ciganas, crianças, etc.), pode-se dizer que de um modo ou outro se articulam com os anteriormente lembrados, os quais, sem dúvida, são os personagens-tipo principais da Umbanda. Nos limitaremos, por isso, a discutir apenas o par constituído pelos pretos-velhos e caboclos. Não nos enganemos, contudo, é sempre bom lembrar que a prática umbandista brinca de confundir todas as nossas tentativas de classificação. A ciência insiste em ordenar e a vida impõe sua lógica. As categorias podem ser separadas, mas os personagens-tipo, quando chamados à ação, não se deixam aprisionar. Assim, pretos-velhos, por exemplo, podem ser chamados a "mudar de lado" e trabalhar com Exus "à esquerda" ou controlar pombas-giras "à direita". 9 Não devemos confundir as categorias estanques da nossa própria lógica e ética cristã de "bem" e "mal", com a lógica da umbanda vivida nos terreiros. O estabelecimento dessas realidades categorias de bem e mal, correspondendo a Orixás e Guias e a Exus, contudo, corresponde ao esforço "moralizador" e racionalizador das federações. Desses personagens-tipo considerados e a partir da sua atualização nos centros e terreiros, surgem outros mais específicos, como os Caboclos 7 Montanhas, Tupinambá, Seu Pena de Fogo, Seu Pena Roxa, Cabocla Jacira, entre muitos outros, e os pretos-velhos, como Pai Jacó, Mãe Maria Conga, Pai João da Guiné, Tia Luísa, Pai Miguel, Pai Benedito, Mãe Maria de Angola, etc. Esses verdadeiros personagens emprestam seu nome aos terreiros ou centros e participam, ou já participaram, das ••giras" (sessões de culto, o teatro sagrado ao qual nos referimos). Têm uma história própria, uma história da sua participação na casa de culto, características específicas, físicas ou de personalidade, e, dependendo da sua importância no terreiro em questão, uma representação iconográfica também específica. A iconografia dos terreiros é constituída de representações de caboclos e pretos-velhos genéricos (aos quais chamamos "personagens-tipo"), que podem ser adquiridas enquanto tais- isto é, enquanto representação de caboclo 9TRINDADE, Liana S. Exu - sfmbolo e função. 1985.

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(ou cabocla) ou preiü·velho (preta-velha) em qualquer casa especializada em artigos religiosos umbandistas. Além desses ícones genéricos, há também aqueles que já vêm denominados (Caboclo Tupinambá ou Pai João da Gomeia, por exemplo) e há, finalmente, aqueles identificados com personagens significativos para cada centro ou terreiro específico (e por isso. personagens desenhadas com maior detalhe). Um exemplo esclarecedor: num dos terreiros por n6s freqüentados, chamado Cabana de Umbanda Mãe Coranga, há uma grande imagem da preta-velha "dona da casa" que ocupa um lugar de destaque ao lado do altar. Essa grande imagem apresenta pelo menos uma característica, vamos dizer, pessoal - uma cicatriz em uma das faces que teria sido produzida pelo chicote de um feitor. Além disso, Mãe Coranga ostenta um vestuário feito de tecido (saia, blusa e lenço branco na cabeça) que é periodicamente trocado por um novo conjunto de padronagem e cor diferente, sempre lavado e cuidadosamente engomado. O exemplo acima retirado da representação iconográfica de uma pretavelha dá a devida medida das distinções que quisemos introduzir: Mãe Coranga se constituiu num verdadeiro personagem do terreiro em questão, tendo a casa sido montada "a seu pedido" pela primeira e falecida "madrinha", responsável pelo terreiro. Ap6s o falecimento de Dona Tereza, a "médium" que a incorporava ("recebia"), Mãe Coranga não se faz mais presente nas "giras" através da incorporação, mas sim através de cânticos especialmente criados para ela, das orações a ela dirigidas, das homenagens que recebe e da sua imagem devidamente entronizada em local de destaque no terreiro. Ora, nessa imagem podemos discernir as características típicas dos pretos-velhos, isto é, aqueles sinais genéricos que os distinguem enquanto representação iconográfica (e que fazem parte do jogo postural dos "médiuns incorporados"): postura sentada (em banquinho baixo), arqueada (indicativa da idade) ou semi-arqueada, joelhos separados, uma das mãos apoiada no colo (com freqüência segurando um terço) e a outra segurando um cachimbo de barro próximo ao rosto com o braço fletido e o cotovelo apoiado ao corpo. Esses os sinais gerais (além da cor das imagens, preta, evidentemente), indicadores do "tipo preto-velho". Além desses, no caso de Mãe Coranga, a marca na face, indicadora de uma identidade pr6pria. Eventualmente, também a roupagem sempre limpa e passada, de vez que a personagem em questão teria tido como atribuição na terra, nos tempos de cativeiro, "a lavagem da roupa da sinhá e das sinhazinhas'', mas talvez seja ir longe demais, uma vez que tudo nesse terreiro é limpo, arrumado, passado, encerado••• Nos terreiros de Umbanda, os guias, caboclos ou pretos-velhos é que participam das "giras" (não os Orixás), já com denominações específicas e "filhos" ou "filhas" (médiuns) também específicos, que lhes dão corpo, na verdadeira acepção da palavra. É, realmente, a partir do trabalho específico desses atores sagrados, que os "personagens-tipo" vão cedendo terreno a verdadeiros personagens. Por outras palavras, a partir da relação entre o ator e o personagem-tipo, que será, a princípio, desenhado a partir da expressão (sobretudo corporal) de grandes sinais diacríticos, que um novo e verdadeiro personagem irá "ganhando corpo" e identidade: um nome,

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caractensticas, uma história e, com o tempo, um . clientela própria. Aos sinais diacnticos genéricos somar-se-ão novos sinais específicos que comporão a figura e sua história: um andar manco que será explicado a partir da história terrena do espírito em questão (e que com :freqüência poderá permanecer muito tempo ou sempre sem explicação, mas como um "dado" do personagem), o uso de uma bengala (por um preto-velho), a preferência por um tipo de fumo (de bebida ou comida), de um cocar especial (por um caboclo), etc. É evidente que o tenitório entre "peiSonagens" e "tipos" ao nível da representação não é inteiramente demarcado: a composição primorosa do "tipo" pode tender para a construção do "personagem", pois, sem dúvida, na construção de um "peiSonagem" se lança mão de muitos dos traços estereotipados gerais. Como se pode ver, a questão realmente pode ser percebida em vários níveis quando se fala seja da "autoria do drama sagrado", seja da realização do "teatro sagrado". Há indubitavelmente um "subtexto" social e cultural, e nesse sentido é que afirmamos que a autoria dos símbolos sagrados da Umbanda é social: o peiSonagem é Brasil, um Brasil vivido, visto, representado, idealizado quanto à gênese significativa para o presente e o futuro. Dois problemas: esse Brasil peiSonagem não é uno, mas múltiplo, não é acabado mas em movimento, e a sociedade/cultura que o produz é multifacetada e a estrutura de classes sozinha não dá conta da diveiSidade, desde que há um jogo de expectativas e um movimento interno à estrutura de classes. O Brasil mitologizado na Umbanda se faz pelo recuiSo a figuras míticas que contemplam valores diveiSos e opostos e que se alocam numa estrutura mítica suficientemente aberta para acolher o movimento e a oposição. Num outro nível, a produção do personagem se dá a partir de sujeitos, sociais sem dúvida, mas a partir da sua individualidade num processo contínuo de objetivação e subjetivação, que repõe os modelos de forma sempre nova. Uma última palavra a respeito dos nossos "tipos" e "peiSonagens". Vale lembrar que há uma nova transposição ao nível doutrinário na Umbanda (que fica por conta da ação "teologizante" das federações) e tipos e personagens são transformados em realidades categoriais maniqueístas de "Bem" e de "Mal". Assim, a propósito dos Exus lembra Liana Trindade que a "doutrina umbandista codifica as figuras simbólicas dos exus criadas pela imaginação popular, tendendo em transformá-las em conceitos, imagens abstratas de categorias comportamentais". Mais que isso, em categorias éticas gerais. Sem dúvida, os peiSonagens míticos são prenhes de valores que dizem respeito à ação, à representação e à construção de identidades, a questão é que não são (a não ser ao nível doutrinário) categorias abstratas mas vivas e vividas. Finalmente, caberia perguntar que símbolos são expressos a partir dos caboclos e pretos-velhos, o que eles dizem, qual a sua mensagem e que significados viabilizam.

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Liana Trindade, trabalhando a questão mítica na Umbanda,lembra que "as características atribuídas ao 'caboclo' pela doutrina umbandista, como espírito altaneiro, ativo e guerreiro, desbravador, conjugadas àquelas de autoridade e chefia, tomariam possível a construção de uma imagem da religião umbandista mais adequada aos interesses da sociedade hegemônica. Nessa imagem estaria contido o culto às tradições da terra brasileira e aos feitos heróicos dos indígenas que, ao lado dos bandeirantes, foram desbravadores de novas terras". Na Umbanda oficial (federativa), diz a mesma autora, o caboclo toma-se um veículo para "expressar uma ideologia nacionalista, associada à consagração da autoridade e do poder". Segundo Liana Trindade, a maior freqüência de terreiros atuais com nomes que se referem a caboclos, ao contrário do que ocorria em décadas anteriores (até os anos 50), quando a referência mais comum era a preto-velho, significaria que o "culto à memória negra, representada pela ancestralidade dos pretos-velhos, teria sido contestado pela Umbanda oficial". 10 O que nos parece, de fato, é que, como dissemos antes, na Umbanda o esforço de construção de identidade religiosa (ao nível da Umbanda oficial, sem dóvida, mas também ao nível dos terreiros) passa .pela construção de uma identidade nacional brasileira em moldes "clássicos", utilizando amesma matéria-prima da ideologia nacional oficial: "três raças formadoras" principais, cujas contribuições se constituem num somatório equilibrado em todos os níveis (democracia, igualdade, etc.). Parece, também, que, sem dúvida, na constituição desse amálgama que se traduz em "brasilidade", o índio-caboclo (o qual com freqüência e curiosamente também vem da África para sua manifestação nos terreiros) é uma peça fundamental. Os dois modelos ideais, os dois arquétipos de brasilidade, o negro e o índio, convivem e às vezes se interpenetram no imaginário popular. Em outro momento, trabalhei suas distinções mais detalhadamente, 11 usando o gestual dos atores sagrados como suporte da tentativa de buscar os sentidos de cada um. Sob pena de querer inutilmente esgotar uma questão inesgotável e de transformar essa exposição, sem dúvida modesta, numa peça indigesta, finalizo aqui esta tentativa de balizamentos iniciais. Não sem recorrer como fecho às palavras de A. Bosi quando comenta Mário de Andrade no seu Macunaíma: "herói rapsódico, preto-índio-branco, afinal constelação, mas sempre sem nenhum caráter (••• ), o brasileiro-tupi, informe e voraz, deglute os objetos das civilizações alheias transformando, por meio de uma fantasia oral compensatória, o tabu em totem. Tudo assimilar é paradoxalmente o seu emblema de originalidade" • 12 Ora, aí está a originalidade da Umbanda. Mantendo o espírito de conciliação, tentando transformar a constelação formada de justaposições em 1°Trabalho apresentado à IX Reunião da ANPOCS, 1985. Dados da pesquisa: Umbanda em São Paulo (III). llTrabalho realizado graças a suporte financeiro da FUNARTE (Linguagem gestual na umbanda: a construção do personagem). Comunicações à Reunião da ABA (1986) e X Encontro da ANPOCS (1986). 12sosr, Alfredo. o nacional, artigo indefinido. Folhetim. FSP. 10.05.81.

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uno, ela recria, ao nível do discurso e ao nível do gestual, a figura do índio-caboclo (que é também preto-índio-branco) e a do preto humilde-amistoso-perigoso-feiticeiro, atribuindo a elas, cada uma a seu modo, o caráter de resistência que, com freqüência, a história e a literatura lhes negam. Nada mais revelador do que a representação da figura do negro, mesmo no estereótipo de submissão, que a coloca, ao nível do culto, sentada, obrigando aquele que procura sua ajuda ao mais significativo gesto de submissão: ajoelhado.

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MITO HOJE NO NORDESTE JOSÉ MARIA TAVARES DE ANDRADE*

Estou tirando um texto da gaveta, depois de dez anos: Religiosité et systeme symbolique. 1 Estou alegre de poder discutir a atualidade do mito na cultura brasileira. É um esforço de atualização minha, num tema caro, importante e prioritário. Encontro, finalmente, neste Seminá1io, o raro f6rum para a minha contribuição, que estava invisível. Agradeço esta oportunidade de manifestar uma preocupação que me acompanha na investigação antropol6gica. Em recentes pesquisas sobre o impacto da escrita e não escrita, 2 como sobre o conhecimento popular sobre as plantas medicinais, 3 encontrei manifestações do pensamento mítico, vivo, na cultura popular. Com alguns exemplos, de mitos mais recentemente coletados, poderei, no debate, atualizar meus dados. O mito na cultura brasileira tende a tomar-se uma questão da atualidade, e mesmo um novo campo de investigação da cultura brasileira. Aqui fica o meu reconhecimento do mérito da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, na pessoa do prof. Donaldo Schiller e de sua equipe, de atualizar esta pauta de trabalho, abrindo-a para um enfoque interdisciplinar. Este enfoque, que adoto como bandeira académica número um, tem na Antropologia do Conhecimento e no autor Edgar Morin um símbolo, um profeta. Refiro-me especialmente à sua obra La méthode (I La nature de la nature; II La vie de la vie) III/1. La connaissance de la connaissance, além de outras recentes. 4 Esta questão mito vinha sendo mantida no panorama da academia, pelos estudos clássicos, mesmo que quase invisível para o grande público, até que a Antropologia, como a de Lévi-Strauss - que esteve na Universidade Brasileira nascente - acrescenta aos estudos da mitologia chamada clássica a Mitologia das Américas, com uma teoria sobre o pensamento selvagem universal (não dos "selvagens"). E foi fora dos meios académicos

• José Maia Tavares de Andrade. Professor de Antropologia na UFPb. Doutor em Antropologia pela Universidade de Paris IJI!França. Ensaísta. I ANDRADE, J.M.T. de. Religiosttl et systbne symbolique. Paris III, IHEAL, 1976. (In6di to/tese), 2 Trabalho e cultura do analjàbeto (relatório CNPq. 1983). Cf. mesmo titulo, Seminário Cultura e Movimentos Sociais, MCS/UFPb, dez. 1983. 3Do conhecimento popular ao cientfjico sobre plantas nas pr4ticas de sa4de (relatório CNPq, 1987). Cf. sobre o mesmo título Cadernos Paraibanos de Antropologia. DCS/UFPb. n.l. p.57-67. 4MORIN, E. La mlthode 3: La connaissance de la connaissance. Paris, Seuil, 1987.

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que ocorreu, paralelamente, na comunidade tera~utica - sobretudo freudiana - o apelo ao mitológico como base, fala ou discuno primoJdial. Ci~ncia nova, para a prática clínica, a Psicanáliae se constroi como um espaço da escuta, da fala, do desejo não falado, do invisCvel, mas vivido mito, :ternamente subjetivo e coletivo na sua elaboração e cil'culação, universal e culturalmente enraizado. Mito cotidiano, mantendo-se invisCvel, arcaico como só ele e fazendo-se atual, não obstante a hegemonia prepotente do racionalismo, fisiologismo, biologismo e ismos tantos. DO MaTODO Durante os anos 60 ocupei-me da etnografia no Nordeste, como folclorista. Sem mais, surpreendi o mito, na realidade popular: foi na sobra de uma pesquisa encomendada por Hennilo Borba Filho - e da qual resultou inclusive o Movimento Annorial, pois em seguida trabalhei também com Ariano Suassuna - que encontrei, sem que tivesse procurado, um ~onjunto de narrações sobre os santos da devoção popular. A partir de 1970 fui montando um projeto que me ocupou até 1976. Uma hipótese antropológica com indicadores da literatura (oral, no caso). As histórias de santo, recolhidas nas Zonas da Mata e do Sertão, comprovavam a existência de um processo vivo do pensamento mitológico e de um ethos que legitimava popularmente a religiosidade (por oposição à religião católica). Tratava-se de um processo de canonização dos santos de devoções populares. Entre a versão hagiográfica (da religião) e as narrações populares, recuperadas das limalhas de um outro trabalho, vislumbrava-se um abismo. Entre o ponto de vista institucional e a escuta dos participantes do culto aos santos estava visível um grande fosso histórico: estava patente a disjunção entre escrita e não escrita, estava configurado o tradicional qfliproquó brasileiro entre elite (clero) e agentes/clientela da religiosidade. Se a missão católica não estava sendo suficientemente lt1cida para perceber que o povo não entendia/aceitava, mas reinterpretava a versão romana anunciada nas pregações, por outro lado o povo brasileiro não foi suficientemente estt1pido para passar a acreditar num ritualismo vazio, ou seja, a um mito/molde, imposto, repressivo/inquisitório' se incorporou uma mitologia engendrada no nascimento desta nacionalidade bastarda e distanciando-se das origens remota11, para dar alma às fonnas importadas ritualística e institucionalmente. Mas a antropologia da cultura brasileira tem sido para muitos a busca de heranças e a identificação de traços, dos ingredientes de novo bolo. Recuperamos os fatos históricos, os desafios enfrentados pelas camadas analfabetas e dominadas política e economicamente, e os confrontamos com a cognição apresentada como resposta de cosmovisão e de legitimidade de seus interesses, na resistência da Nação. Tentarei resumidamente mostrar o processo de contar a razão (não racionalismo) de ser (ontologia e não antologia) da mitologia na religiosidade 293

popular, o processo de reinterpretação que o próprio cristianismo europeu havia feito, como fizeram latino-americanos (a exemplo do México), e que justamente ocorre no Brasil, pelo menQs no Nordeste. Em termos de custo metodológico de uma tal empreitada, tive que fazer um atalho pela Lingüística e Semiótica. A vantagem, entretanto, é poder trabalhar sobre o que o povo diz sobre si mesmo, sem ser perguntado. Como se eu fosse o psicanalista que não pergunta quase nada, apenas escutei o desejo enigmático de legitimidade das camadas populares, na versão mitológica da religiosidade. Por respeito à complexidade do real, ou seja, dados do imaginário que tinham que ter um sentido, uma lógica, um sistema simbólico imanente, vivido, tentei um novo método antropológico, a exemplo do que já se tentava na época em que escrevi o texto, no campo da Sociologia da Religião, com novos recursos da Lingüística e Semiologia. Usava as técnicas disponíveis para captar a significação/cultura pelas malhas da linguagem. Método antropológico, com técnicas de tratamento ou de leitura de estruturas narrativas específicas. Fui buscar recursos metodológicos nos formalistas soviéticos, sobretudo através da síntese ou modelo simplificado de Victor Rénier: 5 construir um paradigma para produzir um récit não reducionista, sobre a narração recolhida. Ou então construir um modelo lógico-formal pertinente para a análise de especificidades do dito, do bem/ dito. Este, entretanto, foi um caminho que apenas exemplifiquei com a própria colaboração deste autor. Abre-se, portanto, uma frente de trabalho, um caminho a mais para a Antropologia, na busca do enraizamento cultural do mito num solo de estrutura social e de pensamento dos grupos regionais. Isso me foi possível concluir pois adotei uma análise a partir de paradigmas. Porque a preocupação era, justamente, provar a função comum do corpus propriamente dito, as histórias de santo (à parte outros gêneros ou estruturas narrativas a serem ainda trabalhadas: os testemunhos ou os casos, assim classificados). Não visava às leituras de conteúdos específicos de cada narração, em suas funções mitológicas, através de modelos lógicos que atingiriam conteúdos profundos, sim, mas inesgotáveis pelas potencialidades polissémicas do mito. Tive que empreender, como trabalho prévio, uma enquete sociolingüística para testar ou medir o enraizamento das narrações a partir de alguns critérios que não o referente apenas: se era conto universal ou produção local, regional, enraizada num contexto de vida, contexto de ecossistema ecológico e antropossocial. Na elaboração dos paradigmas apelei para R. Girard, 6 considerando a presença ou ausência da violência no ethos e ao mesmo tempo na tipologia dos personagens centrais. Cheguei, finalmente, a subdividir o 1corpus de modo a poder ler as narrações de três tipos, conforme os heróis sagrados, ou personagens centrais dos mitos. 5RENIER, v. Le probleme du rlcit slmiotique. Louvain, UCLIIL, 1974. 6GIRARD, R. La violenc:e et le sacrl. Paris, Grasseit, 1972.

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Como os humanos (tidos ou havidos no Nordeste) se tomam santos? Como os mortais se tomam imortais? Como os indivíduos se tomam hist6rias coletivizadas e símbolos no sistema simb6lico da religiosidade: centros de peregrinação, devoções específicas, elementos de culto, hierofanias? Deuses estavam sendo engendrados à imagem e semelhança dos homens, que, por sua vez, criavam (fazer depender, no sentido semita) os homens inteiros, dignos. A partir de uma matriz/esquema mostrarei os tipos de santo, diante da violência. Eles, quando violentos tiveram que abandonar a zona de luta para se tomarem santos, é o arrependimento. Veremos também os tipos, conforme as suas profissões, funções ou posições de classe. Os violentos/ guerreiros, donos ou defensores da terra, da lei, do poder constituído. Os semiviolentos, que não tiveram a iniciativa de fazer violência, mas respondem a ela como forma de defesa, eles que são representantes, já em vida, de categorias ou comunidades organizadas. Os não violentos, já plenamente na zona de vítima, são os mais freqüentes, e que têm como profissão ou posição de classe os papéis da plebe. [

TIPOS E NOMES DOS SANTOS

t~

PROFISSÕES

LENTOS

Severino dos Ramos Senhora dos Prazeres

Guerreiros

SEMIYlüLENTOS

Benedito Cicero Gonçalo

Sacerdotes

NÁüYlüLENTOS

Antônio dos Montes Cristo de lpojuca Lâzaro João dos Pombos

I

Artesão

I

Domêstico

ZONAS DE VÍTIMA

Caçador (criança)

Benedito

Escravo

Noê

Chefe de Comunidade

Coração de Jesus Luzia Abel

Funcionário Serva Pastor

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Violentos: do primeiro tipo, estes santos, durante sua vida terrestre, foram gueaeiros, soldados. Tiveram que sair da zona de luta, aaependendo-se das violências cometidas contra o povo, tomando-se santos. Estes que defendiam a lei, a terra ou o poder oligárquico, deixaram de assumir esta posição de classe e se salvaram. Semiviolentos: do segundo tipo, não tiveram a iniciativa de praticar a violência, apenas respondiam a uma violência, com uma não violência. Defendiam-se da violência cometida contra eles, que eram representantes de uma categoria ou de uma comunidade: os negros escravos, a comunidade messiânica, as prostitutas. São Benedito, escravo, toma o poder na paróquia como um rei de maracatu - vencendo o diabo, o patrão, seu superior religioso, branco. Padre: Cícero, meu padrinho do Juazeiro, foi suspenso de ordem para não poder mais ganhar dinheiro. Chamado a Roma, ele também vence os desafios e revela as contradições da ortodoxia ou hierarquia romana: fazendo falar uma moça muda, Padre Cícero pergunta-lhe - "Quem é teu pai". Ela responde:- "O bispo de Roma". São Gonçalo de Amarante, o casamenteiro das moças, vence os desafios legitimando sua pastoral alegre, junto às mulheres alegres, e seu culto toma-se uma dança, sagrada. Não violentos: são todos os outros que tiveram condições de vida da plebe e, como vítimas que foram de violências enfrentadas em seus cotidianos, sem entrarem na zona de luta, mas_por acontecimentos extraordinários, receberam a recompensa, tomando-se santos, também. Trata-se, sim, de uma das análises possfveis, não deixando de ser uma leitura do real imaginado, ou seja, o simbólico, a partir do logos. Este, enquanto modelo racional e científico, desde que não reconhecido· em seus limites, resultaria num reducionismo. Quanto a esta relação entre destino dos herois míticos e suas profissões - num contexto de sociedade de classe, sobretudo -lembro o recente trabalho de Lévi-Strauss.' Hoje poderemos trabalhar com contribuições mais recentes, inclusive do proprio E. Morin, 8 Gilles Deleuze, entre outros. Um esquema, portanto, que articule dialeticamente o simbólico COII'! o imaginário e com o real, parece-me muito fecundo. Podemos relacionar o mito, enquanto fala, com o logos, enquanto escritura (que é escritura: sagrada, contábil ou da propriedade "pdblica"),lei, ou ciência, racionalidade; como também relacionar a fala primordial, mitológica com o inconsciente (o desejo, sonho: individual e coletivo). 9 "O mito toma-se significante de uma estrutura social à qual pertence,"10 mas a cultura brasileira continua sendo encarada a partir da identificação de seus componentes remotos e não na dinâmica encontrada no imaginário social, criador de mitologias. Este equivale a um forjamento de uma 7L~VI-5TRAUSS, C. A o/eira clumenla. São Paulo, Brasiliense, 1986. SMQRIN, E. Op. cit. p.l55-70. 9oiREITOS HUMANOs e Universidade do Brasil, hoje. Projeto Educaçlo e Direitos Humanos. IIDH/PUC/UERJ/UFPb/Comissão de Justiça e Paz. Slo Paulo/Rio de Janeiro, 25 a 29/5/87. IOoRTIGUES, E. Le dlscoura et le S)lftime. Apud MORIN, E, Op. cit. p.l58,

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certa autonomia da cultura no Brasil, por uma resistência confonne os desafios concretos vividos pela coletividade, fundando primórdios em sistemas simbólicos. A uma dominação econõmica e política nem sempre corresponde uma dominação cultural. Como o insensato de um alegre saber, venho hoje a esta praça, não perguntar ou procurar deuses, santos, espíritos sagrados (negros, brancos, índios, amarelos), marias de acai. A cultura brasileira os forjou e continua forjando-os, ao mesmo tempo que ela se forja nas suas especificidades regionais. Mas, como Nietzsche e René Girarei, tendo a perguntar: nós não estamos escondendo os mitos que passam por cada um de nós? Nós, enquanto intelectuais, escribas, cientistas ou burocratas das agências do saber universitário, nós que dilaceramos o conhecimento em sesmarias ou colõnias, nós que dilaceramos a nação com o fosso elite/massa, não estamos contra o mito? Os literatos se refugiam na corrente cultural viva da nação, mas não são lidos pela nação analfabeta. Os estudos clássicos se refugiam no passado (de outras nações) para poderem pensar os eternos enigmas. Só que o pensa.mento mitológico vivo é qué vai enfrentando os desafios maiores e que não são respondidos pela academia, mas vividos no cotidiano de cada um. Quem sabe um dia cada um de nós possa confessar: eu matei o mito. Quem sabe estamos apenas seguindo o modelo ocidental (de oocfdio, carnificina), gramatologia mortífera, logocentrismo, contra a ritualização trágica da-nação. Com imitações que só criam rivais e só elegem a violência cega (destruidora: violência cotidiana brasileira do campo e da cidad~). estaremos num ritualismo sem mitos. E isso apela para a ressurreição do mito. Finalmente, nos perguntamos sobre a teleologia ou a serventia do estudo do mito na cultura brasileira, hoje. Sem pragmatismo, quanto ao poder do belo ou do estético na vida humana, nos perguntamos sobre a importância desta antropologia do conhecimento em nosso contexto da cultura, da-nação brasileira e do terceiro mundo. Parto da constatação de que não se conhece o Brasil, ou, como tennina o livro O nome da rosa: "não se sabe, nada se sabe, tudo se escolhe". Eurico Andrade, afinnando o desconhecimento do Brasil, pe~guntava: "quem conhece melhor o que se passa em nossa sociedade, nossa natureza e nossa cultura, é Lula ou Florestan Fernandes?" Em um Seminário interdisciplinar sobre Universidade e Direitos Humanos, o prof. Dalmo Dalari dizia que, no momento mesmo em que falava, estavam acontecendo simultaneamente, em todo o tenitório nacional, pelo menos 200 outros fóruns como aquele, mas, como a televisão não cobre, era como se não existissem. E, a propósito dos Direitos Humanos, lembrava o que disse Sartre, no Japão, em 1966: "A revolução burguesa expulsou Deus da terra", expulsou a somatória das regras morais. Daí concluirmos que as barreiras éticas se dissiparam confonne conveniências de dominantes e dominados; e a guerra cotidiana, a violência indiscriminada, impera, esperando uma liturgia (sentido grego), um serviço público, um bem comum. Que tal estudar a violenta cultura brasileira a partir de suas produções mitológicas, em âmbito nacional? 297

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O MITO EM SIGMUND FREUD (uma abordagem filosófica à mitificação) JOS~ N. HECK•

Freud teve a sorte de morrer em tempo. A Segunda Grande Guerra. com seus cinqüenta milhões de mortos, lhe ficou sendo uma incógnita e a bomba atômica, uma ilustre desconhecida. Freud dificilmente teria revisto sua teoria, caso houvesse sobrevivido à guerra. Ele não apenas teve reservas frente ao novo mundo, mas clara e distinta antipatia para com a Revolução Russa. Ocorre que o terror nazista, responsável pelo massacre de seis milhões de judeus, não foi sustado por algum posicionamento esclarecido da velha Europa mas, sim, pela máquina de guerra de dois povos, os quais para o judeu Freud ou estavam aculturados em demasia ou se encontravam narcotizados pelo veneno bolchevista. 1 Já a Primeira Guerra Mundial fora um trauma para o analista. O fato de franceses e alemães, dois povos com longa tmdição cultural, se haverem condenado ao extennínio recíproco nas planícies de Verdun deixara, de repente, obsoleta a idéia da época acerca do espécime bárbaro a se guerrear feito besta no claro-escuro de florestas tropicais. Teria sido, de qualquer modo, algo assim como uma concessão ao absurdo, se Freud houvesse sancionado o que, de fato, aconteceu: a cultura européia sobreviveu graças à aliança de uma democracia do além-mar com uma ditadum do proletariado do Leste europeu. Sob esse aspecto, o pai da psicanálise é um fenômeno do passado e, se quisennos, supemdo. Seu discurso acerca do real ou irreal, perceptível ou imaginado, sonho ou realidade necessita ser retraduzido para que possa continuar sendo eficaz. I

MITOLOGIA E METAPSICOLOGIA O exercício da tradução do mundo psicanalítico possui várias frentes. Assim, por exemplo, a reativação da psicanálise teve, sobretudo no plano terapêutico, enorme sucesso nos Estados Unidos nos primeiros decênios dos anos pós-guerra. A psicologia e boa parte da medicina acadêmica não • José N. Heck. Advogado com exercido no Tribunal Superior do Estado da Baviera! RFA. Ensaista. 1•(-) O entusiasmo com que a massa do povo segue a instigaçlo bolchevista, atualmente, enquanto a nova ordem estâ incompleta e ameaçada de fora, não oferece nenhuma certeza para o futuro, no qual estaria completamente constru1da e isenta de pecigos." FREUD, S. Novas conferências introdutórias sobre psicanâlise. ln: ESB.l933a. v.XXII, p.218-9.

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ignoram, desde então, o que Freud predicou sobre os mecanismos da chamada alma humana. Bem mais lento e menos sensacional foi o reativamento da contribuição da psicanálise para a filosofia atual. Embora não haja dúvidas de que Freud foi também um pensador, alguém ocupado com dimensões que transcendem o efeito imediato de uma teoria, o aspecto filosófico de sua obra repercutiu apenas de forma latente nas pesquisas de seu pensamento. As razões de tal dormência não são diffceis de identificar. Freud não teve formação filosófica, não escreveu como um filósofo, e seu raciocínio não se encaixa na seqüência argumentativa de uma história da filosofia. O lugar que seus escritos começam a ocupar nos círculos oficiais do filosofar é devedor ao trabalho pioneiro de autores como Habermas e Ricoeur. Mesmo sob o risco de generalizar, penso que o ponto crucial destas recepções filosóficas é, precisamente, a estatura do mito no horizonte da psicanálise ortodoxa. Posta em tennos genéricos, a 4uestão se apresenta da seguinte maneira. Quem lê os escritos de Freud constata a olho nu que os mitos não irrompem como grandezas episódicas em sua obra, mas pululam nela de todas as partes; de fato, Freud nãO apenas refere algo sobre os mitos, reportando o que deles bem ou mal já sabíamos. A mitificação localiza-se, muito mais, no cerne do argumentar, envolve como que a medula de sua conceituação da realidade. Seria a filosofia capaz de assear o pensamento freudiano, joeimndo o grão científico da palha mitológica? Minha tese é de que isso não seria possíveL Um projeto desses, o qual procurasse pôr a casa em ordem, acabaria demolindo o próprio prédio. Mas, ainda o pó da psicanálise, na medida em que nos recorda o nome de Freud, continuaria infeccionado com os germens de sua mitificação. A rigor, o problema não são os mitos, mas o lugar que Freud lhes dedica. Esse lugar é o plano da metapsicologia. Nela, Freud reconstrói seus informes analíticos em um sistema global de compreensão; ou, em outms palavras, a metapsicologia é o espaço totalizante do analista, quando este se afinna em sua pretensão de ser um terapeuta da espécie humana. A práxis analítica pode silenciar sobre esse nível conceituai de sua obra. Pam analistas e pacientes, em situação-de-análise, as construções metapsicológicas de Freud são algo assim como complexos abstmtos, marcos concepcionais a refletir, teoricamente, o que se passa na respectiva situação analítica. Quando, porém, a psicanálise vier a ser encarada sem os privilégios da situação terapêutica e se procura acesso àquilo que Freud veio a formular, sem nunca haver sido analisado, a metapsicologia deixa de ser uma superestrutura inconteste, sempre já justificada pelos resultados positivos ou negativos de análises individuais. Desprovido que está de uma situação particular, o filósofo se vê, assim, obrigado a lidar com elementos metapsicológicos como o comum dos mortais precisa lidar com o que se diz e desdiz em seu derredor. Que significado têm, então, palavras como inconsciente ou reações primárias, id e superego, eros e tanatos, narcisismo ou instinto de morte? Esse estilo de nomear coisas e de predicar, não é ele camcterístico de um arrazoado mítico-figurativo, o qual diz cada vez tudo do mundo 301

porque pode dele também não dizer nada? Esse modo de variar, sempre de novo, os mesmos conteúdos psíquicos, não constitui tal encenação de palavras a quintessência de um discurso mitológico ou, para ficar com Popper, o valor da obra de Freud diferencia ela dos relatos homéricos sobre os deuses do Olimpo? 2 Essa é a questão. Visto uma vez sob este prisma, o desafio que a metapsicologia representa para a filosofia traz à memória o mito do demônio socrático. Como sabemos, este não ficou devendo resposta nos diálogos de Platão, muito embora Sócrates jurasse pelos deuses que ele próprio de nada sabia. Sob o pano de fundo de tal ambivalência do saber, a posição de Popper parece-me um pouco superficial demais. Em verdade, considero-a inaproveitável. Isso não tanto pelo fato de Popper mitificar a psicanálise, mas porque subestima, rápido demais, os poemas homéricos. Valho-me assim de autores que, em contrapartida, levaram mais a sério os escritos de Freud ou, como se diz, colocaram o problema da mitificação em seu legado intelectual. O FREUDISMO COMO FÍSICA DA ALMA Habermas considera a metapsicologia como uma espécie de amuleto, algo assim como o resíduo de um fisicalismo mal digerido conceitualmente. A crítica habermasiana não é ideológica. Pelo contrário, sua repulsa frente às construções de Freud sobre o psiquismo apalpam as excrescências do foco mitológico. Para tanto, bastaria observar que, polemizando contra a metapsicologia, Habermas não se volta para a última fase de Freud, quando este redigiu os conhecidos textos metapsicológicos O futuro de uma ilusão e O mal-estar na civilização. O filósofo remete, pelo contrário, a crítica aos primórdios da teoria, deixando-se guiar por um instinto fllosófico que pressente na origem das coisas o locus privilegiado do mito. Com isso, porém, Habermas entrevê apenas meia-verdade da questão. O que, à primeira vista, confuma o ponto de vista habermasiano é a existência de um manuscrito cientificista nos umbrais da teoria freudiana. Trata-se de um texto fisiológico, publicado em Londres em 1950, juntamente com a correspondência de Freud com um amigo da época. W. Fliess, médico em Berlim. Nesse trabalho de 1895, conhecido como esboço ou projeto, Freud expõe, com uma terminologia de tisico, para não dizer de eletricista, o funcionamento do chamado aparelho psíquico: a alma não passaria de um especial reservatório a controlar fluxos e refluxos energéticos; carga e descarga seriam os fenômenos psíquicos elementares. O que o fllósofo Habermas parece ignorar é a posição de Freud frente a esse seu primeiro documento intelectual. A redução cientificista do Esboço foi vista pelo autor como um produto ilusório-racional, resultado de uma tentativa de apreensão do que lhe pareceu ser irredutível no homem: seu psiquismo. Em sua carta de 12 de dezembro de 1897 Freud escreve: "Tens uma idéia do que sejam 2POPPER, K.R. Conjectures and rejutations. The growth of scientijic knowledge. London, Routledge and Kegan Paul, 1963. p.38.

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'mitos ondcpafquicoa?' A olucnbraçlo maia mCODte do aàaba atiWiado intelectual A obacnm percepçlo interior do pt6pJio apamlbo plfquico provoca ilusões mcionaia, as quais obviamcmte alo pmjotadas p. . o mundo axterior" •3 So Jevmnoa a a6rio oaaa refer&lcia opiatolu o a rutroumoa em outros tmbalba!l da 6poca, o chiiDado fisicaHamo fmudiano adquim nova feiçlo. Em meu ontcmdcr, Habormu bagateliza a proteulo intelectual do Freud. Já om abrll do 1896 ele confrontara sou amigo com algumu perguntas metapaicológicas, o acabou confoaaando: Em millha juvoDtudo, nlo dve doaojo maior do que o do comocimoato fBoa6fico o o atou agora om viu do o pôr om pr4dca, ao pauar da medicina para a paleologia.4

Ao voltu, entio, a falu do "endopsiquismo", Freud emprega pela primoim vez o designativo metapsicdogia. Elo oacrovo: O roconhocimonto obscuro (-) do fatoroa o rolaçlloa inconac:iomoa oapolba-ao na conatruçlo do uma rtJGlidade 8111'~1. a qual devo aor rotranafonnada pela cl&ncia om pllcologlo do lncotUC#tftte. Doato modo podoP.~ia tor a ouaadia do explicar 01 mitos do paratso o do pecado original, do Dous, do bom o do mal, da imortalidade o aaaim por dianto, convertendo a metajfllca om metll(Micologla.s

O teJIDo metapaicologia assinala, assim, um conceito suplomontu, aonlo oposto ao da metafisica. Como tal a palavm trai o projeto freudiano do querer captu, afelir e topologizu em plano univeraalizanto o que, por excelência, se apresenta como individualizador o subjotivo. Visto uma vez sob este pano do fundo, o cfroulo fechado do apamto psíquico mo stm semelh ançu com o otomo retomo do mesmo om Nietzsche e não se esgota na dicção de um fisiólogo da alma. Soja como for, o que Habennas não expõe é por que um fisicalismo .tio canboatro como o do Projeto para uma psicologia cient(fica contenha tamanha oxploaividado e mereça ainda a atenção de uma crítica filosófica. Que Freud tenha permanecido o fisiólogo que, segundo Habormas, sempre foi, parece-me tão somente indicar o lugar onde se localiza o problema. Habormas nos ficou, de qualquer modo, devendo uma contribuição mais substancial sobre a função do mito na metapsicologia.6

3FRBUD, S. Au den Anjlngen rkr 1'8ychoana/pe·l887·190Z. Frankfurt 1111 Main, Fiachor, 1975. Carta 78, p.204. 4 Ibidcm. Carta 44, p.142. 5FRBUD, S. A plfcopatologla da vila cotldlona. ln: ~SB. 1901b. v.VI, p.309. 6HABERMAS, J. Conhecimento e, interesse. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1982, p.234. A posiçio de Habormas frente ao mito articula-se em contato com o textoiDialltlca do Uwnlnismo. Para Horkheimer e Adorno, h4 uma cumplicidade entre mito/iluminilmo ou nce-veraa: "JA o mito 6 iluminismo• e •o iluminismo vai dar no mito•. HORKHEIMBR, A. & ADORNO, Th. Dlalektlk der A'4fk/&'11ng. Frankfurt am Main, Fischer, 1985. Em seu posf4cio l nova ediçio do livro, Habennas v& Nietzsche e nlo Marx na raiz da anilho de Horkheimer e Adorno. KANSY, A. & WIBSCHEBRINK, UJWiederkehr dea Mythos. Milnchner Zeilldarlft jDr Philolophw, Nr. 12, 1986, p.71-8 e 79-114, roapoctivllllente.

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A RECUPERAÇÃO TEOLÓGICA DA MITIFICAÇÃO Bem mais concretas são, nesse sentido, as análises de Ricoeur em seu livro Da interpretação: um ensaio sobre Freud. O autor aborda com ins1st&lcia a relação entre cientificismo e a problemática do mito em Freud. Diferentemente de Habermas, o filósofo francês está interessado no mito como fc:oômeno cultural e ponto de referência para uma nova consciência religiosa. Ricoeur percebe que uma eventual contribuição da psicanálise para a teologia da palavra precisa, de saída, descomprometer a metapsicologia do modo de falar freudiano sobre o aparelho psíquico. Em oposição a este, a metapsicologia poderia vir a constituir-se em linguagem-de-sentido e, como tal, ir bem além de seu objeto em Freud. Desacoplada do linguajar energético, a metapsicologia fica, assim, à disposição de um outro discurso sobre os mitos. Esse discurso tende a tematizá-lo ao dizer, constantemente, o que eles não são. A metapsicologia fica com isso inócua porque perde qualquer fio analítico. Na medida, pois, em que Ricoc:ur inte110mpe o fluxo conceituai entre metapsicologia e aparelho psíquico em Freud, sua proposta confronta-se com dificuldades inerentes à metaHnguagem: por um lado, pretende-se entender o mundo e as coisas de um ponto de vista -que não màis -s-eja o das linguagens usuais, mas, por outro, só é possível ser entendido enquanto se continua a falar uma linguagem do cotidiano. O problema não se põe nesses termos agudos em Ricoeur porque seu raciocínio não perde o objetivo primordial: dinamizar o pc:osamento de Freud com a dialética hegeliana. Essa não me puece uma solução satisfatória. O modo como o filósofo propõe que se leiam textos de Freud não deixa de ser originaL Ele parte da hipótese de que o apamto psíquico 6 uma esp6cie primitiva de vaso comunicante: A liJWUagem da força n1o 6 (em Freud) jamais vencida pela l~uagcm do scntido.7

Desconcertante essa leitum se toma a partir do momento em que Ricoeur se dá conta de que o mecanismo psíquico, assim como Freud o apresenta no sétimo capítulo de A interpretação dos sonhos, funciona sem suporte anatômico. Se isso for assim, a chamada linguagem da força formula em Freud sempre já uma realidade diferente da mera ocorrência fisiológica. O determini1111o freudimo encontm-se, de fato, vinculado a um elemento nio disponível ao m"vel somático. Ocorre que a distinção entre soma e psique interessa a Ricoeur tã~-somente como conexão interpretativa em uma reavaliação da meta psicologia para o mundo da fé. O Freud dos primeiros anos teria sido ainda pré-humanista. Apenas seus textos tardios represenEm seu grande texto de 1981, Habcrmas trata o mito de forma tradicional: ele serve como introduçlo ao auunto c ê, cntlo, superado pela reflexão. Freud ê apenas lembrado como nome. Cf. HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt am Main. Surbkamp, f981, sobretudo v.I. p.72-114 c 262-98, respectivamente. 7RICOEUR, P. De l'inlerprltation: asai sur Freud. Paris, ~ditions du Scuil, 1965, p.I51: "Lc langagc de la force cst li. jamais inviociblc au langagc du scns•.

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tariam um desafio sério no horizonte da hermenêutica. Mas, como as teses freudianas sobre religião, cultma e Moisés devem ser tidas à luz dos primeiros tmbalhos, o resultado da leitma ricoeuriana impõe-se por si mesmo: odiswrso de Freud não satisfaz aos critérios de uma linguagem do sentido. Na verdade, as construções metapsicológicas são, desde o início, em Freud, redundantes; a circulação energética, pam a qual Ricoeur não cansa de chamar a atenção, articula a semântica de um ficcionismo totaL Também o Esboço, pam Ricoeur a parte não-hermenêutica do sistema, constitui uma modalidade de elaboração fantástica; Freud expõe af o que imaginou ser a pedm fDosofal daquilo que até hoje denominamos de "nosso mundo interior". A esse mundo Freud permaneceu fiel. Embora fosse extremamente versátil em rearranjar premissas pam sua teoria, quanto à interdependência desta com os mitos da tmdição, ele manteve-se conservad~ até o fim da vida. Assim, ainda aos 77 anos, ele escreve: A teoria dos instintos ê, por assim dizer, nossa mitologia. Os iDitintos são entidades míticas, magntficos em sua imprecisão.8

Ricoeur não se satisfaz com essa declamção de princípios. Isso não deixa de ser estmnho. Um pensador como ele, não interessado em desqualificar o discurso sobre os mitos como um equívoco metodológico, deveria ter encontmdo em Freud um aliado, no esfm:ço de ab«dar a questão em sua seriedade epistemológica. As mzões que levam o filósofo a se distanciar do analista, quando este como que hasteou a bandeira do mito no recinto mais biológico de seu pensamento, tem a ver com aquilo que, desde Aristóteles, é conhecido oficialmente com o termo teoria. Limito-me aqui a referir alguns aspectos da pesquisa de um filólogo alemão do seculo passado sobre um texto não mais acessível de Aristóteles acerca dos efeitos que a tmgédia, posta um vez em cena pelo teatro, desperta no espectador. De acordo com Bemays, antes de haver sido metafísico, o homem teórico foi em Aristóteles um espectador na arena do teatro. A distAncia do theorós, de quem vê o que se passa sob seu olhar, gera um autêntica experiência catártica. Pavor ou compaixão, todo complexo emocional que um espectador, seguro em seu topos teorético, vai reconstruindo em si no teatro, teria constituído pam o estagirita a única função da tmgédia. Um sentido pedagógico ou espiritualizante, o papel da edificação, portanto, teria sido desconhecido pam o filósofo grego. O que o cenário trágico suscita no espectador teria, pam Aristóteles, se esgotado na sensação de um saber distante de seu próprio destino passional. Tão-somente o prazer estético possibilitaria ao homem, enquanto espectador, a cura daquilo que se lhe apresenta, cada vez, como sendo sua fatalidade. Ou, dito em outms palavras: a experiência da mimesis é eficaz e, simultaneamente, gmtificante por tmtar-se de um saber à distância de si mesmo. Tal experimentação apenas o representar do mesmo com o que lhe é igual possibilita, eis que SFREUD, S. Novas conjlrlncias introdut6rias sobre a psict1114lise. ln: ESB. 1933a. v.XX ll, p.l19.

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somente deste modo a ilusão do que se expõe na trag6dia, como sondo inexorável, é capaz de ser exercitado como algo que já se abandonou atrás de si. 9 A poculiaridadc do theorós estaria, assim, na compensação que a ordem implacável das coisas gera, ao adquirirmos uma distância psíquica infinitesimal da leis que regem o mundo destas cO.sas. Esse efeito pu~gativo da teoria nos gmgos foi entrevista claramente por Marx. Ele observou que o problema da mitologia .. não está em compreender que a arte grega c a cpopéia estão ligadas a certas formas de desenvolvimento social. A dificuldade reside no fato de nos proporcionarem um pmzer estético e de terem ainda para nós, em certo aspecto, o valor de normas e modelos inacessíveis".1° Tamb6n na m6sica os homens fazem, segundo Aristóteles, uma experiência temca insofismável. Diferentemente de Platão, o qual era cú1ico frente aos músicos em sua pó/is ideal, o aluno viu na música uma fonna de terapia através do prazer à distância. Na medida em que aquilo que nos coros da tragédia for vivido como mímese, portanto, na efetiva distância de sua representação, o insuportável adquire a dosagem homeopitica de um efeito contagiante, já que o espectador pode se satisfazer em constatar o que ouve e vê, em vez de se ocupar sempre apenas de si próprio. Em parte alguma, porem, a eficácia catártica da teoria se afii'Dla de forma tão portentosa, em Aristóteles, quanto na introdução à M etaflsica. O ftl6sofo desceira aí o pano que dá para a teoria com a famosa frase: Todos os homens, por natureza, desejam conhecer.11

Em seu vértice metafisico, tal versão de teoria é estática. Ricoeur pode inclusive aqui recorrer com sucesso a Hegel, para o qual o nous aristotélico se imantiza em si mesmo. Além disso, Ricoeur mostra com razão que o status topológico ou, se quisermos, o plano estrutural não constitui a única dimensão metapsicológica na obra de Freud. Mas a teoria dos instintos, da qual ele diz ser .. nossa mitologia", é, sem dúvida, um dos pólos determinantes do arcabouço teórico em seu pensamento. Isso o filósofo também não contesta. Se, mesmo assim, ele procura implodir a psicanálise ortodoxa no ponto exato onde esta se reconhece mitológica, seus motivos devem ser procurados menos na dialética ou na hermenêutica do que em uma outra ordem do saber. Apenas ao final do livro, depois de haver reescrito uma epigênese do mito, Ricoeur abre o jogo e troca de plano. Ela traz a questão do mito para uma órbita argumentativa onde os enunciados sobre os mitos tomam contato com um outro, chamado Deus.

9BERNAYS, E. GrundzQge der verlorenen Abhandlung des Arlstoteles Qber Wirkung der Trag&lie. Breslau 1857. Ed. Grunder, Hildesheim 1970. 1°MARX, K. C0t1trlbuição para a crftica da economia politica. Lisboa, Estampa, 1973. p.240. 11 Metaftrica, Porto Alegre, Globo. p.36.

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A rigor, não há p
II OS MITOS E A RELAÇÃO TEORIA-PRÁXIS O pamdoxo da metapsicologia está no fato de ela existir. Esse modo declamdamente provocativo de formular a questão tem a vantagem de conduzir, sem rodeios mai<es, ao epicentro filosófico: de onde provém, para Freud, a necessidade do teoretizar? Se a psicanálise foi, como efetivamente veio a ser desde o início, a práxis de determinada cura, a presença de um corpo teórico é nela um elemento antes perturbador do que satisfatório. Problemas teóricos possuem pouco espaço em uma práxis que se orienta no sucesso de seu proprio proced«; tal prúis prescinde da teoria. Teorias só começam, realmente, a interesr-u-, no momento em que a práxis emperra e chega a seus limites. Assim, um projeto de pesquisa parte das dificuldades que se põem em determinado setor da ci!ncia ou, pelo menos, opera can a hipótese de 307

que no futuro tal ciência se confrontará can esta ou aquela dificuldade prática. Ocorre que Freud, ao começar a ser analista e a pmticar psicanálise, não fez pesquisa de modo algum ou algo que mereça esse nome. Enquanto terapia, atividade prática e processo de cura, a psicanálise se identifica, até hoje, com o caráter analítico do laborar freudiano. Este conhece apenas seus objetivos, os quais continuam, como o foram em qualquer época, inquestionáveis. Mas por que, então, o emaranhado de afirmações metapsicológicas, o risco de mitologizar o que visara à mera eficácia tempêutica? Freud não apenas recorre aos mitos para ilustrar o que irrompe na mspectiva análise. A situação analítica confirma nele, muito mais, o que nos mitos, lendas e rapsódias gregas vêm expresso. Exemplo típico é o complexo de Édipo. Freud não apenas diz que o texto de Sófocles ajuda a compreender o que se passa na análise; o que ele formula, de fato, é uma invarilncia teórica entre a tmgédia de Édipo e o destino dos pacientes. Estes acabam não tanto entendendo o que está acontecendo, quanto reconhecendo o poder absoluto do Oedipus rex. "A força que a lenda grega libem", escreve Freud, "é acena por caoa homem porque ele sente sua exist!ncia dentro de si. " 12 O mesmo acontece can o panicfdio primevo ou com a tese do instinto de morte. Freud, por exemplo, não volta a Emp6docles para comentar sua teoria dualista dos instintos; pelo contrário, ele identifica ao pé da letra sua doutrina instintual com as digressões do filósofo sobre o cosmo animado. Para quem, portanto, se aproxima da obm de Freud com intenções rigorosamente práticas, esse tipo de extmpolação só pode parecer suspeito, para não dizer quixotesto. Sob um ponto de vista terapêutico-pmtico, as construções metapsicológicas de Freud são, na verdade, supédluas. Afinal, o que interessa ao paciente é ficar sadio; o que gregos ou tmianos especularam sobre este ou aquele assunto não lhe passará de um trocadilho acadêmico. Tivesse a psicanálise um pouco da originalidade que seu fundador lhe reivindicou, não deveria ela haver ficado isenta de tal cobertura metapsicológica, livre de mais um colosso teórico a ofuscar os cristalinos objetivos da práxis? Este é o cerne da questão do mito em Freud. A CONTING~NCIA DA PRÁXIS

A resposta mais decidida a essa pergunta foi dada por HegeL A alavanca arquimédica de Hegel contra o estatismo-disciplinar em Aristóteles é a radicalidade do saber enquanto efetivo exercício cognitivo. O vigor do filosofar hegeliano não está tanto na crÍtica a quem o precedeu, mas no fato de haver demonstrado como, armai,' se pmtica filosofia. A tal prática damos o nome de dialética. O método dialético ammca do plano corpóreo-sensitivo e apreende o mundo sem jamais conceitualizá-lo ao nível genérico-universal. O que 12FREUD, S. ln: ESB. vJ, carta 71, p.358.

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cai em vista 6 apreendido por meio daquilo que nlo 6 o que se eat• wndo. Com isso, o que está sendo visto começa a se expor naquilo que efetivamente é, já que seu negativo pode ser encarado como sendo o que aponas se pensara haver visto. Esse processo de tomar posse de tudo o que abalca abstratamente o mundo, sem nunca abandonar as cooldenadas intramundaoas, força a consciência, em sua pretensio de saber disto ou daquilo, a dar continuamente a volta em si mesma, para se aperceber daquDo que, realmente, se lhe opõe como objeto. Tal consci&lcia, a qual nio apenas observa o que está sob seu olhar mas, ao mesmo tempo, mediatiza para si a objetivação do que for seu negativo, anacroniza sistematicamente uma cona"pçio de teoria de estilo aristotélico. Enquanto em exercício, a consciência não se ativa, em Hegel, como órgão em funçio deste ou daquele conhecimento, senão que se expõe sujeita à veldade do que ela, enquanto conscic!ocia imediata, não é. O despir-se de si propria, tomando posse do mundo por meio da negação do que se é em si, em vista do que se pode ser para si, constitui a dinlmica do espírito objetivo. Ao se desapossar do atributo mais querido da tradiçio aristotélica - o fonnalismo lógico-abstmto - a razio nio mais faz, em Hegel, outm experiência que não seja a das contmdições de sua práticL A -dialética não conhece, por conseguinte, uma teoria que não possa vir a ser o efetivo exercício de sua práxis. Talvez ninguém melhor do que Lenine entendeu a virulc!ocia filosófica do logos hegeliano. Ao estudar a Ciência da lógica durante a primeim grande gueD'a, o revolucionário chegou à conclusão de que, até entio, nenhum marxista havia entendido Marx. As notas que Lenine fez do texto são, infelizmente, pouco densas, compamdas com sua investida filosófica contm os empíriocriticistas. Mas a função que os chamados Cadernos tivemm na polémica do partido contra idealistas e mecanicistas mostra que o autor não viu na lógica hegeliana o solipsismo de um espírito ensimesmado mas, muito pelo contrário, a afinnaçio conseqüente de uma ratio científica em sua elementar concreção mundana. Como método radical de conhecer, a verdade dialética formula, litemlmente, a ação revolucionária, o momento histórico no qual a 6nica teoria que presta é aquela do agir que a dispensL Enquanto o saber ainda se concretiza em princípios -e seja no da esperança -qualquer enunciado permanece teórico, diria Lenine, porque não há notícia de que princípios - e seja o da violência - tenham algum dia levado à revoluçio. Esta precisa ser feita ou ela não será. No momento em que estiver senoo feita, perguntas acerca das qualidades da teoria já devem ser arcaísmos, eis que a verdade do todo não pode objetar a uma práxis que necessita ser ontologicamente eficaz. Este já fora o estatuto filosófico da violência em Marx. Contingente a práxis só se torna no instante em que a revoluçio estiver feita. O que isso significa pode ser relido em Trotsky ou, se necessário, no testamento de Lenine: o poder incomensurável, exorta o pai da revolução, não podia ficar nas mãos de um homem só. Mas, como sabemos, aconteceu o que não devia acontecer.

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Hegel foi um excepcional pensador porque tinha uma revolução atrás de si. A força persuasiva da Ciência da lógica está na formulação conscienciosa da práxis como verdade da Revolução Francesa. Que o espírito objetivo tenha que vir 'a ser absoluto não é, assim, uma idiossincrasia ideológica em seu pensamento, senão conseqüência imanente da práxis verdadeira: uma vez feita, o negativo da revolução vai precisar ser queimado, eis que o que resta por dizer não passa de variação semântica daquilo que veio a ser estabelecido pela ordem revolucionária. Marx fora ainda, quanto a isso, menos coerente. Depois de a ditadura do proletariado já estar funciO:. nando a todo vapor, vigora nele ainda o imperativo da passagem para o comunismo ou, como ele também diz, para o reino da liberdade. Quem tiver lido Hegel com atenção, provavelmente, sentirá vontade de substituir o eufemismo passagem pelo substantivo revolução. Afinal, por que a superação da ditadura do proletariado pelo comunismo, o dia D na pré-história da espécie, venha a ocorrer como mera passagem, sem as dores revolucionárias de um verdadeiro parto histórico? Em um jargão freudiano podér-se-ia talvez dizer que Marx, ao recalcar seu mestre, esqueceu a diferença entre evolução e revolução. De qualquer modo, o que não é passível de recalque é o fato de uma lógica toda revolucionária ser má conselheim quando se trata de passar dos tempos heróicos para o cotidiano da liberdade e sua cidadania socialista. Possivelmente a fllosofia coo temporânea teria menos problemas em lidar com esse problema, se mestre Hegel não houvesse visto em Napoleão o espírito absoluto a cavalo, dando de cara nos portais da cidade de lena nos idos de 1806 de sua Fenomenologia do espírito. Dito de outro modo: o idealista Hegel teria feito bem em dar atenção maior às célebres disquisições sobre a natureza em Rousseau, as quais Danton e Robespierre tiveram que retomar sob os pórticos de uma razão que acabara de se instalar no poder. A metapsicologia freudiana é uma variante pós-iluminista dessa polêmica acerca da chamada natureza do homem. Ela é mitológica porque socorre, em Freud, a práxis terapêutica no momento em que esta não sabe mais o que dizer. Nessa situação-limite os mitos foram, já nos gregos, absolutamente soberanos. O CONSERVADORISMO TEÓRICO DE FREUD A psicanálise afirma-se, antes de mais nada, como um exercício prático do saber. Isso é inconteste. Ocone que a práxis, assim como Hegel a pensou, não foi elaborada por Freud com os recursos do instrumentário filosófico. O pai da psicanálise teimou, nesse sentido, em permanecer um pensador pré-filosófico. Em nenhuma parte de sua obra este vácuo reflexivo é mais constrangedor do que em suas análises sobre a obra de arte. A criação artística não possui, para Freud, estatuto intelectual maior; ela se lhe afigura como sendo uma espécie de subproduto racional. Mas, também a teoria dos instintos não confere cobertura conceituà à dinâmica terapêutica da situação 310

analítica, eis que os instintos são, como enti:ficações mitológicas, viscemlmente conservadores para Freud. Em teimos dialéticos faz sentido dizer que a psicanálise não tem consciência de sua práxis porque não cmsegue articular-se filosoficamente. Freud não pôde, assim, ser o revolucionário que Marouse imaginou que ele viesse a ser. Mesmo se o tempo histórico houvesse sido tematizado em seus escritos, o futuro teria continuado ónao em sua teoria.D A raiz da mitificação em seu pensamento ou, em terminologia kantiana, 0 prolegômeno de sua metapsicologia é a idéia de que é possível teoretizar à revelia do tempo e/ou da história; em última análise, justificar-se à revelia de sua própria práxis. Esse me parece, dos gregos até Freud, o calcanhar de Aquiles do disauso mitológico. O nervo dolorido da psicanálise ortodoxa está no passado, na origem do homem e na de sua espécie. Freud investiu a vida diagnosticando o passado humano. Tal interesse por tudo o que é remoto lembra a ironia platônica no diálogo Crátilo. "Tenho a impressão", diz Sócrates a Heimógenes, "de que aqueles que por primeiro deram o nome às coisas não devem ter sido gente de somenos importância" (391c). Sem qualquer ponta irônica, é possível dizer que Freud sentiu-se bem em companhia dessa gente, dos grandes Nomes que deram nome a tudo o que nasce e morre sob o sol. Ele se encontra, quanto a isso, bem próximo de Aristóteles. Platão ainda fora renitente frente aos poetas do passado, suas estórias, deuses e mitos. Da sabedoria seu Sócrates era amigo, não tanto das plêiades mitológicas da tradição. Foi o realismo aristotélico que cunhou, junto ao consagrado termo filósofo, a expressão filómitos, o amigo dos mitos. Não é de estranhar, portanto, que a conhecida fórmula do mito para o logos recorreu sempre com mais sucesso ao estagirita do que a Platão. Mui possive1mente a idéia de que o mito seja o início do logos_ não teria feito história, caso Aristóteles não lhe houvesse conferido a dignidade metafísica. Em contraposição ao mestre, o discípulo considerou a admiração o começo da filosofia. Na admiração anuncia-se, para Aristóteles, o destino natural dos homens para o saber, já que o mito lhes narra o passado da origem do logos. Freud, por sua vez, não plagiou o filósofo grego ao escrever, com as categorias físicas da época, sua primeim grande teoria psíquica no Esboço de 1895. Mas, a idéia de que a metapsicologia tenha 13A falta de um sentido prospectivo em sua obra pode dar facihnente no anâtema filosófico. Talvez foi Jung quem, pela primeira vez, chamou atenção a isso, contrapondo li. anâlise regressiva de Freud o carãter antecipat6rio dos sonhos como suporte arquettpico da individuação. O surpreendente ê que esta perspectiva foi agressivamente combatida pelo fil~sofo da esperança E. Bloch: Jung' lhe foi o fascista reacionário por excelência. Cf. BLOCH, E. Prinzip Hoffnung. Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1980. p.61·2. Em uma tese de doutorado na Univ. de Tübingen. Hanna Gekle mostrou que regressão e progressão são, na psicanâlise, processos mais complicados do que Bloch entendera (Cf. W101o~t:h und Wirklichkeit. Studie zu Blochs Philosophie des Noch·Nicht·Bewussten und Freuds Theorie des Unbewussten, 1985). Cf. também capitulo N.- Da realidade do sonho ao sonho da realidade. ln: ALBORNOZ, S. ltica e Urq,ia - Emaio sobre E. 8/och. Porto Alegre, Movimento, 1985. p.l05-13.

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que se medir com a metafisica, para ser boa teolia e impor reapei1o, vivo de uma ~eeepçio aristot61ica do mito. Como vimos, a metapai.cologia quis, desde o início, colpOI'Üicar uma versio destfiada do mito, usim como a meta1Jai.ca pareceu a Freud a clúsica sublimaçio do mesmo. Esta adequação ou ccuespond&lcia entre metapsicologia e metailaica não está à supcrflcie no pensamento de Freud; pelo contdrio,lola 6 diflcll de ser flagmda em sua pmtensão intelectual, porque se processa u costas da situaçio terap&Jtica. Talvez a fórmula mais simples de o dizer seja esta: o passado encanta por ser o meu, o nosso passado. Em seu texto Trabalho junto ao mito, H. Blumenberg formulou tal fascinaçio oblíqua por nossa herança cultural da seguinte maneira: Homero e Hestodo slo nossos primeiros e, ao me1111o tempo, mais eficacl•imo• criadores de modelos m1ticos. Hmtero j4 pdo fato de haver dado inlcio à escrita de nossa tradiçlo literária. Mas, por ser tamb6m um de seus maiores, seDio o seu maior expoente, nos poupamos a contrariedade de var que algo assim e:~~~:epcio­ nalmente maduro teve que ser o primeiro dentre os no•os. Uma exig&ncia em n6s resiste, pois, a aceitar esse fato, a exi~ncia de que gostarliiDOS de constatar que tal grandeza apen• mais tarde, jA Df. altura de nossa idade humana, tivesse surgido e se afirmado com tamanho suceuo. 4

Essa me parece ser uma abordagem bem sucedida de um moderno ponto de vista acerca do consagmdo posicionamento clássico frente aos mitos da antiga Grécia. Seja como for, é esse classicismo e sua tmdiçio que repercutem do início ao fim na obm de Freud. OS MITOS E O INCONSCIENTE Em seu ndcleo mais resistente, os mitos representam para a reftexio filosófica o que em Sar1re se denomina a questão do método. O fato de o mito ser encarado como narrativa dos começos, portanto, como preAmbulo sempre já superado pela vitalidade do logos, envaidece o filósofo. Com tal cronologia dos primórdios ele pensa estar respondendo à pergunta acerca do que veio por primeiro: o ovo ou a galinha. Na verdade, a idéia tmdicional "do mito para o logos" desculpa a negligência filosófica frente ao pouco ou nenhum saber que temos da origem das coisas, dom undo, de nós mesmos. A tese implica o tácito reconhecimento de que os mitos estiveram onde o logos gostaria de haver estado. Essa troca de identidades, exatamente no momento em que se procum estabelecer as regras de jogo, já causou dores de cabeça a um dos primeiros filósofos da espécie. Ao começar a abrir os olhos, procurando ver o que se passava em seu deJ.Tedor, Tales de Mileto teve que fazer a desagradável experiência de que o mundo, há tempo, estava repleto de deuses. De onde eles vieram e por que aí estavam, isso ele ou algum outro até boje nio conseguiu explicar. Que a filosofia tenha seu solo no encanto telthico pelo firmamento expressa, sem dóvida, algo de verdadeiro sobre o parto do logos, mas 14BLUMENBERG, H. Arbeit am Mythos. Frankfurt am Main, Suhrk1111p, 1979. p.167.

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fu esquecer, com toda certeza, que os mitos foram, também eles, concebidos alguu;t dia. Esta é a minha tese acerca do mito em Freud. Heródoto, bem mais próximo da concepção mitológica do que n6s, relata que os theói eram de proveniência búbam; o Egito é nomeado como lugar preferido de sua origem. Esta explicação é deveras pamdoxal. A rigor, Her6doto afuma que as divindades gregas não foram concebidas no seio de seu povo mas, sim, à distAncia do Olimpo por uma raça búbam no além-mar. Essa informação é decepcionante porque o pai da história parece não se estar dando conta de que qualquer grego civilizado pensou, sinceramente, precisar ter tanto menos em comum com os búbaros de fora quanto mais orgulho de seus deuses podia ~entar dentro de si Como historiador, Heródoto constata, mui simplesmente, que a dimensão mais hel&rlca de sua alma era devedora à procriação religiosa de um grande povo no outro lado do Mediterrineo. Vista desta forma, a explicacão de Heródoto acerca das origens de seus deuses pátrios é mais do que reveladora. Nela se f
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licas que o monoteísmo é verdadeiro porque uma só é a verdade metafisica. A eficácia de uma salvação intramundana consiste, assim, na percepção elementar de que no lugar onde o motor imóvel, em Aristóteles, é soberanamente autárquico, reina na mitologia a desavença cósmica absoluta, eis que os deuses não se conseguiram entender quando se puseram a colocar o universo em ordem. As dissonâncias semânticas deste desacerto primitivo repercutem ainda na melhor das teodicéias, quando a infinita bondade de um Deus acaba falecendo diante da mais finita das dores mundanas: a fome e a sede da criatum. Um é, por certo, o grande disco nos céus do deserto monoteísta, mas muitas foram as estrelas no firmamento da Odisséia ou, como o jovem Kant ainda pensou: uma é a lei da causalidade, mas muitos os fenômenos do mundo. Em suma, as coisas- sejam as divinas ou as humanas -, em sua pluralidade, jamais se constituirão em meros sucedâneos de um singular único a se multiplicar ao infinito no horizonte do cosmo. Quanto ao um, ele será sempre o dos começos. Isso podemos chamar de enunciado básico do inconsciente freudiano. Uma consciência que recua até os confins dela mesma terá, segundo Freud, mais cedo ou mais tarde, vontade de olhar pam trás e ver tudo o que se localiza ainda aquém de suas origens. Dito de outro modo: o corte epistemológico não se aguça, pam Freud, pela reflexão sobre as contmdições do presente ou em vista a um futuro sempre incerto, mas se exercita, única e exclusivamente, em direção ao passado. É na dinâmica regressiva que o hiato epistêmico se impõe como inevitável em seu pensamento. A instância explicativa do logos, a qual mantém-se em vida pela explicação de uma coisa por outm na ordem do tempo, acaba dando, em Freud, em um ponto no qual o tempo pám, eis que a origem, enquanto for real, permanece indiferente frente às leis de sua história. Os começos determinam tudo o que segue mas, como tais, não podem provir de nada que os antecede. Este topos cognitivo, onde a explicação das coisas chega a repousar e o ser ainda não possui passado, é o ponto no qual a filosofia tematiza o nada, o crente sabe da existência de Deus e Freud fala no id, na dimensão antropomórfica do inconsciente. Nele "não há o que se possa comparar com a negação e, com surpresa, tomamos conhecimento de uma exceção da sentença filosófica, segundo a qual espaço e tempo são formas necessárias de nossos atos psíquicos" .11 Precisamente deste lugar, diz Freud, a consciência não encontm nada pam explicar. Que a eternidade seja um predicado do mundo, como Aristóteles pensou, ou Deus seja eterno, como o dogma afirma, não faz diferença: na origem do universo e ao final da explicação a causalidade precisa estar sem, por assim dizer, um dia haver estado, já que o princípio das coisas quer ser a finalidade do saber. Schopenhauer formulou tardiamente esta redundância do saber no quilómetro zero da Teogonia de Hesíodo da seguinte maneira: 17 FREUD, S. Novas conferências introdut6rias sobre a psican4lise. ln: ES B. 1933a. v .XXII, p.94-5.

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Tiveao a]gu~m se divertido e, sempre de DDVo e maia uma vez, perguntado o que veio antes do 4ltiiDo na a6rie, te~.,.ia respondido com uma piada. De primeiro foi o ovo e dele proveio Broa. Tal piada ~ouui, apenas ainda nlo comciente em abatrato, a critica da razio por fuQChmento. 8

Neste interregno enue ovo, Eros e abst:raçio, os mitos de Freud, chamados instintos, não se acasalam apenas para gerarem um homem a mais, mas coocebem os outros deles próprios, heróis que venham a povoar os c6us e gigantes que vieram aterrorizar a tei!'L A metapsicologia deve, segundo Freud, vir a substituir a metafisica porque somente nela a outra face da geração humana dará à luz. A consci&lcia filosófica pode fazer pilhém dessa face, porque a remete aos prlm6rdios do logos. O mito, pelo contrário, não tem como desculpar-se do passado, eis que esse 6 o seu lugar. Sob este aspecto, os mitos são para Freud os aliados incondicionais do discurso psicanalítico do real e de sua hist6Jia. O que o analista acabou aproveitando dos mitos não foi, porém, a perenidade de suas estruturas mas, na verdade, a força persuasiva de seu caos teórico. Freud não aceitou, por exemplo, a concepção de Jung acerca dos arquétipos do inconsciente coletivo. Os mitos não chegaram nele a ser eventos natumis do intelecto; eles permaneceram, muito mais, produções circunstanciais, as quais não conseguem extmpolar a exemplaridade de uma narrativa. Estranha lhe foi, assim, a idéia do numinoso, da aum mítica tmnscendental a envolver uma consciência mítica universal. O que Freud empresta dos mitos 6, a rigor, tão-somente aquilo que a razio dos milénios neles investiu. Ao alocar os mitos pam as entmnhas de sua própria gênese, o logos encontm dificuldade para questionar suas raízes, eis que o mito é por definição sua origem mais pdmitiva. O psi da psicanálise conduz ao paroxismo este tipo de glosa explicatória. Quanto mais para trás o logos foi empurrmdo o mito, diria Freud, tanto menos condições de reagir efe teve, ao ser passado para trás pelo encanto da mitificação: "Quase dois milénios e nenhum ónico novo Deus", apostrofará Nietzsche} 9 O que, afinal, aprendemos com a Teogonia de Hesfodo? Da luta dos titãs- a qual seria de interesse- o poeta apenas sabe o bastante para informar que Zeus saiu vencedor e, desde então, comanda o espetáculo. A ![(ada narra, por sua vez, uma história arrepiante de sangue, maldição, crime e sacanagem por entre os muros do palácio de Miceoas; o leitor fica sabendo, em detalhe, quem liquidou quem e, de passagem, que os gregos levaram a melhor em Tróia. Mas, como relatos tio fiéis à realidade chegaram da pré-história à cabeça de quem os conta - o que novamente seria do maior interesse - sobre isso Homero silencia poeticamente. A Bfblia sabe, a seu modo, da existência de um pamíso de amantes, cheio de amenidades, às margens do Euftates. Somos instnúdos de que os dois fizeram uma enorme asneira e que foram obrigados a colocar a roupa. Mas, como fom possível que personalidades tão perfeitas e felizes como Adio e Eva puderam 18scHOPENHAUER, A. Der lumd8darlftllche NachkJB. Ed. A. Hllbacher I. p.l51. 19Apud Blumenbe~g. Op. cit. p.36.

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cair no conto do vigário, isto - o que muito gostaríamos de saber o escriba ou não soube ou guardou para si. Ao conectar os mitos com o inconsciente em sua metapsicologia, Freud evita qualquer fonna de desmiti:ficação. Ele consegue, assim, levar o mito tão a sério quanto aquele que assiste a uma peça de Ésquilo, participa de um culto religioso ou vê a novela das oito. 20 Ao presentificar os mitos em sua obra, o analista dlsptmsa todo comentário depreciativo, como se ele soubesse melhor das coisas. A mitificação lhe pareceu ser a única maneira de convencer a razão discursiva daquilo que ela teima em não aceitar: o inconsciente. Neste sentido, a crítica freudiana à cultura, por mais cáustica que seja, poucas vezes é direta e jamais polêmica. Assim, Freud não consegue ver na religião o que Feuerbach ou Marx nela enxergaram. A força dos credos não lhe advém da exploração do homem pelo homem mas do fascínio ocioso, responsável pela inércia dos instintos em busca do caminho mais curto para a satisfação. O que, a rigor, lhe interessa na religião é o princípio econômico do psiquismo, já que em nenhum outro aglomerado humano é possível satisfazer tantos com tão pouco. Uma vez envolvido pela coalescência religiosa, o aparato psíquico consegue manter-se em vida com um mínimo de energia. Escreve Freud: O povo de Israel acreditava ser o filho predileto de Deus e, quando o grande Pai fez com que htortánios cada vez maiores desabassem sobre o seu povo, jamais a crença em Seu relacionamento se abalou, nem o Seu poder ou justiça foi posto em ddvida. Pelo contririo, foi então que surgiram os profetas, que apontaram a pecaminosidade desse povo e de seu sentimento de culpa criaram-se os mandamentos superestritos de sua religião sacerdotai.21

Igual ao mito, Eros continua operando milagres no seio do sentimento oceânico da fé. Possivelmente o modo todo peculiar de abotdar os mitos da Grécia antiga foi também responsável pelo fato de Freud conseguir tematizar o sexo com um máximo de realismo sem nunca, porém, falar da felicidade a dois. Por outro lado, ao considerar a masturbação uma atividade sexual maléfica, ele não cai no moralismo, mas diz que esta leva à doença: quem se satisfaz em si mesmo imagina a posse do outro quando, para Freud, apenas está favorecendo o ócio de um instinto que não se quer dar ao trabalho de procurar seu objeto.22 De forma parecida Freud encara o que chama de "nosso deus Logos" •23 Ele não desacredita dele ou critica a razão pelo pouco que conseguiu realizar. Pelo contrário, do que Freud desconfia é da onipotência do pensamento. 24

2°Cf. o excelente trabalho de FISCHER, R.M. Bueno. O mito na sala de jantar: discurso infanto-juvenil sobre televisão. Porto Alegre, Movimento, 1984. 21FREUD, S. O mal-estar na civilização. ln: ESB. 1930a. v.XXI, p.150. 22 _ _ • Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor. ln: ESB. 1912d. v.XI, p.163-73. 23 _ _ • O futuro de uma ilusão. ln: ESB. 1927c. v.XXI, p.69. 24 _ _ • Totem e tabu. ln: ESB. 1912-13. v.XIII, p.2ü-191.

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Mais do que cético, Freud é demoníaco, como o Satanás no livro de J ó ou o Sócrates nas entrelinhas de Platão. Mas, se o logos_ tivesse que possuir um pai, o analista concordaria· com Aristóteles: desejo seria o seu nome. III FILOG~NESE E ONTOG~NESE

Freud não foi o ónico pensadO!' que se valeu dos mitos para formular o que, em última análise, tencionava dizer. Mas, o que o distingue de outros autores é o modo descontraído e, ao mesmo tempo, metódico como lida com a mitologia grega. Esta não perfaz um objeto particular em sua investigação e, por certo, também nio chegou a ser seu tema plediloto. De resto, por6m, os mitos da Grécia antiga aio presenças tio familiaroa em sua obra que, vez oor outra, tem-se realmente a impressão de que o pai da psic111álise não abandonou o mundo da poesia e do teatm grego. Se a impressão fJ.Car nisso, ela apenas irá rememorar generalidades. O que importa, muito mais, é delimitar a área específica onde a mitificaçio adquinu corpo e veio a estabelecer, em Freud, o reduto inexpugnável da psic111álise or1Ddoxa. Como vimos, este reduto localiza-se no plano te6Jico, ao nível do uma argumentação metapsicológica. Inexpugnável a fortaleza 6, at6 nCllsos dias, porque Freud concentrou as linhas teóricas do sua defesa no eixo da ontogénese, portanto, no chio finne da análise individual. Tanto mais surpreende que, precisamente no reduto teónco da ontogénese, Freud mantenha a mitificação como forma preferencial do saber analítico. Ao reavaliar, no final da vida, o tmbalbo junto ao indivíduo e se perguntar se 6 possível libertar o ego de seu conflito instintual, o analista escreve: Se nos perguntarmos por meio de quais m6todos esse resultado 6 alcançado, nio será fiei! encontrar uma resposta. S6 se pode dizer: depois de tudo, tanos que pedir auxilio l feiticeira, a feiticeira chamada metapsicologia. San especulaçlo e teorização metapsicol6gica - quase teria dito fantasia - nlo daremos um pasao em frente. Infelbmente, aqui como alhures, as informaç6es da feiticeira alo pouco claras e minuciosas.25

Duvido que nos óltimos cem anos tenha existido um intelectual que, igual a Freud, se soubesse filiado à ciência de seu tempo e tivesse, mesmo assim, reconhecido que sua teoria é uma espécie de mitologia e recorrido à feiticeira do maior poeta de sua lfngua. O papel mitológico, o qual Freud reserva à temia é, a rigor, incompreensível no hOJ'izonte do debate cientffwo-filosófico contemporineo. Vou tentar, assim mesmo, um acesso à questão através de uma comparação entre K. Marx eM. Weber. 26 25FREUD, S. An4lise terminlvel e interminlvel. ln: ESB. 1937c. v.XXIII, p.257, 26cf. HOBNER, K. Die Wahrheit des Mytlws. München, Beck Verlag, 1985.

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Sempre que o assunto ' capitalismo, os textos webcdanos fazem ~lia a Marx. Pode-se, inclusive, dizer que Weber 'a 6nica alternativa te61ica respeitável a O capital. Em oposição ao estDo truncado de Marx, sem..-e às costas da dialética hegeliana, Weber oferece um raciocínio claro e transparente, mas não menos complexo e prenhe de informações históricas. Medido com Weber, Marx parece falar de uma realidade que, se um dia houve, há tempo não mais existe. Sobretudo o vaivém categorial de Marx, entm o que está por cima e o que sustenta por baixo as leis econômico-sociais, afigura-se nebuloso, aferido uma vez com a argumentação linear de Weber. Para este, a atividade científica nio deve prestar contas ao espírito prometéico, o qual os textos de Marx revelam. Tal espírito de contestação pode ser, segundo Weber, adequado para outras úeas do saber; pam uma vocação teórica, comprometida com o rigor metodológico, Prometeu não constitui ideal filosófico. Marx sentira-se, de fato, devedor ao espúito prometéico desde os dias em que se revoltam contra Hegel, o J6piter da filosofi~ de seu tempo. Ainda no ponto mais alto de sua análise da mais-valia, ele recorda a figura trágica de Prometeu, o qual roubou o fogo dos deuses e trouxe a chama à terra. As leis inexoráveis da acumulação, escreve Marx, "aferram o trabalhador mais solidamente ao capital do que a barra de Hefesto prensou o Prometeu contra o rochedo". 27 Na verdade, por mais prometéico que Marx tenha sido, suas análises do capitalismo nio pedem nele socorro aos heróis da velha Grécia. Estes lhe serviram, no máximo, de referência Dustrativa. Peso teórico a mitologia não teve em Marx. Esse carácter amitológico de O capital deve-se ao fato de Marx não se haver ocupado com a teoria do capitalismo mas, sim, de sua prática. Sua obra-prima é, nesse sentido, nio a metafisica do sistema, mas a vivissecção de seu tecido físico-real. Exatamente o oposto ocorre com o racionalismo weberiano. Como poucos autores, Weber tematizou a teoria do capitalismo, sua superestrutura conceituai, as allltrações que lulrificam a engrenagem de seu funcionllllento categoriaL Weber tlagra, como filósofo-sociólogo, a essência capitalista em seus fluidos mais sutis e confluências mais abstracionistas. Não tendo mais outra função àquela de refletir a atividade profissional, a teoria nio possui mais, no capitalismo, qualquer traço substancial em Weber. A razio capitalista exorciza, por assim dizer, qualquer argumento que queira se prevalecer contra a racionalidade do sistema. A teoria deve, para Weber, estar totalmente à disposição daquilo que, uma vez institucionalizado, venha também a funcionar. O sistema funcionará tanto melhor, de acordo com Weber, quanto mais desmisterizada for sua justificação. Esse grau de abstração dos textos de Weber explica tam~m por que sua leitura compensa intelectualmente. O sociólogo não f
27MARX, K. Das KapltaL Berlin, Dietz Verlag, 1972. v.l, pL!75.

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capitalismo e, sobretudo, da vocação teórico-científica que institucionalizou esse negócio. 28 Mas, este é o paradoxo, o logos weberiano não consegue evitar a mitificação. Por melhor que o sistema funcione, ele necessita de uma explicação que venha a transcender seus fins e possa legitimá-lo em sua pretensão de universalidade. Será na ética protestante, como sabemos, que o filósofo Weber irá buscar o sustentáculo epistêmico da ratio capitalista. 29 Com i&<~o a teoria recebe, para o sociólogo, uma justificação histórica a pairar incólume sobre os estamentos científicos do sistema. Tal história dos começos, a anteceder a racionalidade imanente de um sistema, é tão mitológica quanto a astúcia homérica de Ulisses. Weber acaba constatando na ética de Calvino o que este vira nos relógios suíços, a saber: que eram os melhores do mundo. Sem uma referência mítico-religiosa, o capitalismo se esgotaria na racionalidade de um funcionamento sistêmico. Mas, como todo bom negociante sabe, é a tradição que faz o nome do produto. Ao predicar ao capitalismo uma tradição humanista, Weber legitimou o otimismo sem fim de sua expansão mundial. Com isso, porém, ele justificou apenas as origens do sistema, de modo algum os seus fins. Com a distância, a qual o tempo permite, podemos constatar que a tese weberiana possui apenas valor histórico. A Europa weberiana imaginara-se o centro filogenético do planeta e apreciou ver o mundo girando em tomo de si. Na verdade, Lutero ou Calvino tem pouco, senão nada, a ver com o bom funcionamento do sistema capitalista. Disto os executivos de Zurique, Londres ou Frankfurt sabem, ao começarem a folhear freneticamente os grandes textos do zen-budismo, em vez de continuarem a citar a Bíblia em seus seminários de elite. O sucesso económico dos países do Extremo Oriente e a fascinação pubertária pelo espírito cibernético na China pós-M ao estão a indicar que a história dos começos capitalistas, assim como Weber os pensou, não foram bem contados. Ao pedir publicamente ajuda à feiticeira do poeta, a teoria confessa-se, em Freud, comprometida com a mitologia. Este é, a rigor, o crime de lesa-majestade de seu pensamento. A ontogênese que Freud veicula, com base no trabalho analítico junto a seus pacientes, possui na infância sua categoria básica. Mas, como tal, a infância não é um dado cru, senão um elemento elaborado ou, se quisermos, uma realidade construída metodicamente. O pensador que mais se aproxima de Freud, em sua obstinação teórica de elaborar uma episteme mítica para o real a nos envolver ontologicamente, é o inglês Th. Hobbes. A história dos começos, a qual o filósofo Hobbes narra, mereça talvez tão pouco crédito quanto as versões freudianas sobre a infância do homem. O certo é que ela foi bem contada. O elã prometéico e o otimismo weberiano perfazem ainda o inconsciente do Estado hobbesiano. A rigor, o Leviatã tem apenas consciência de sua necessidade ou, em outros termos, de sua autoridade inconteste. Por mais sofisticadas que as teorias 28 cr. WEBER, M. Ciincia e poUtica: duas vocações. São Paulo, Cultrix, 1972. 29wEBER, M. Die protestantiache Ethik, v. J. Winckelmann. 1972. 2.v.

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posteriores sobre o Estado sejam, nelas jamais se desconfiou seriamente de que Hobbes pudesse não ter razão. A tese de que scmos todos iguais perante a lei, desde que haja Estado, continua verdadeim, porque as leis dos estados permanecem desiguais entre si. O peso epistêmi~ da teoria de Estado de Hobbes está no fato de nela se poder pensar o Leviatã como grandeza filogenética. Deste modo, ele permanece uma realidade meramente mitológica. Histmco o grande acordo só o será, quando for universal. Enquanto esse não for o caso, um estado poderá, com razão, dizer do outro que nele ainda impem a lei da selva ou, como Hobbes preferiu dizer, as leis do estado natural. O mesmo ocorre em plano ontogenético, diria Freud. Enquanto a infln.. cia continua sendo o pai do adulto, nela encontramos a explicação mais abalizada para aquilo que os adultos, por definição, não pretendem ser. O MITO DA INFÂNCIA COMO CATEGORIA DO SABER Desde seu ensaio sobre Leonardo da Vinci (1910c), Freud tentou arrolar, sempre de novo, sua concepção sobre as origens da espécie. Para tanto de buscou apoio na obm de arte, no g&lio filosófico e na literatum. A maioria destes textos é, já sob um ponto de vista de método, extremamente problemática. O autor subestima por completo os recursos específicos e os critérios particulares que análises desse gênero impõem ao articulista.30 Possivelmente o exemplo mais crasso deste tipo de interpretação seja a venão psicanalítica do mito Prometeu. Não mais de sete páginas Freud precisou para encontrar sua explicação da nurativa mítica aceroa da aquisição do fogo. À revelia do texto clássico e sem nenhum instrumentfrio filológico, o pai da psicanálise inverte a figura de Prometeu e faz do herói o antimito originário da psicanálise. Ocoll'C que, como amigo dos homens e inimigo dos deuses, Prometeu fora a pemonificação mitológica grega mais bem-vista no mundo intelectual da Europa do século XIX. Descendente da velha casta olímpica. o herói jurara ódio eterno a Zeus, o qual havia destronado Cronos, o senh« do tempo. Sendo ele próprio titã e de linhagem divina, Prometeu sabia que no chão estava o segredo da vida. De modo igual ao Senhor no plimeiro · livro do Gênese, ele formou do barro os homens, à semelhança de seus ancestrais, insutlando-lhes o esp{rito da antiga estirpe celeste. Aos homens faltava, porém, o fogo. Este os deuses guardavam para si nas alturas. Assim, o herói subiu ao finnamento com um caule de funcbo e, ao passar pelo curo de fogo, incendiou a baste. Depois, sem ser descoberto, voltou junto aos seus. Desde então a terra se ilumina com labaredas que sobem até as nuven& Ao ver o que se passava, Zeus inventou a mulher, criando a astuta Pandora, a mãe de todo o gênero humano. Esta seduziu Epitemeo, o irmão do herói. Prometeu havia admoestado o irmão a jamais aceitar um presente 30BORNHEIM, G. O Idiota e o e~pfrlto o{Jjetivo. Porto Alegre, Globo, 1980. p.S2·70.

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dos deuiCS, eis que somente desse modo a te1ra ficaria livre do males, da fomo o da doença. Acontece que, do alto, Pandom trouxom uma caixa - a caixa de Pandora. Nela encontrava-se tudo de ruim que até hoje infesta a terra. Apenas uma coisa boa estava no fundo da cáixa, a ospomnçL Mas, antes de esta poder se soltar, Pandora voltou a fechar a caixa. E assim, até nossos dias, s6 existem mis6ria, dor o morte por entro os bOOlons. Feito isso, Zeus delegou poderes a Hefesto, o deus do fogo. Este levou o herói ao Oriento e o amarrou com pesada ccuonto por sobro o penhasco do Cáucaso. Trinta mil anos o herói devia ficar acorrentado, duro, som dormir e sequer mover o joelho. E, para aumentar a tortum, Zeus permitiu que uma águia viesse arrancar pedaços do sou ffgado. A ave voltava sempre de novo porque o ffgado do herói nlo parava do crescer. Ap6s tlinta anos, aconteceu que Hércules passasse por aí. Ele teve compaixão, estirou o arco, matou a águia e livrou Prometeu de sua imensa dor. Esta figura trágica, na qual Nietzsche ainda investiu o patos dionisíaco de O nascimento da tragMia3 1 e a qual identificara, cm toda tmdiçio, o homem em seu conflito com os poderes do alto, é reduzida por Freud a uma espécie de mascote filogenético. No caule de funcho, com o qual o herói trouxe o fogo à torra, o analista v! o falo da criatum. Em seu interior não é o fogo que Prometeu guarda mas, sim, o meio do o extinguir, a água. A tmgédia do hOOlem seriam as duas funções do órgão: a do ato amoroso e a do esvaziamento da bexiga. O conte6do mais profundo da lenda, imortalizada por Ésquilo, estaria no fato de "a tentativa do homem primitivo, de apagar o fogo com sua própria água, lhe haver significado uma luta prazerosa com um outro falo". 32 Freud procurou cmbasar esta sua versão homossexualizada de Prometeu com o método terapêutico da análise regressiva. Sub-repticiamente, o analista invoca Hesíodo, no qual a lenda foi contada pela primeim vez. 33 Nesta pretensão de saber algo de autêntico sobro a verdade do mito, com base em uma narrativa mais primitiva, o simplismo freudiano frente à criação literária dos gmndes trágicos do teatro grego chega às raias da vacuidade intelectual. Esta s6 merece ser lembrada, ao nível filosófico, porque sem eJa o discurso de Freud sobre a infância jamais teria adquirido a relevância metapsicol6gica que até hoje possui À primeira vista, o enunciado psicanalítico, de acordo com o qual a criança é o pai do adulto, é tão somente paradoxal. Na verdade, a frase indicia o espaço específico da investigação psicanalítica. Com base nesse enunciado, a psicanálise pode, inclusive, relativizar a seu bel-prazer as 31A interpretaçlo do jovem Nietzsche continua genial porque, tardiamente, o fildsofo teve razio em sua c6lebre polbnica contra o grande fil6logo v. Wilamowitli"MôDendorf: a data de chegada do deus Dioniso não se localiza no oitavo s6culo a.C., mas deve ser alocada bem mais para trÁs. Em base na decifraçlo da escrita crete111e linear B sab~se, hoje, que o deus j4 marcava presença no Polipon6sio durante o s6culo 13 a.C. (Der Streit um Niet1Jidie4 'Geburt der Trag&JW. H ildesheim, Ed. Grllnder, 1969. p.ll3-35). 32FREUD, S. A aqul6lfdo (e o controle) do fogo. ln: ESB. 1932a. v.XXII, p.231. 33JAEGER, W. Paidlül -a jormaçlio do homem grego. Slo Paulo, Herder, s/d. p.87-8.

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coutmções filogenéticu de Freud, ativando o substrato ontogenético em sou pc:osamonto: a inftnciL Esse é um dado genuinamente freudiano. Em oposição à filogénese, a qual Freud sempre tematizou próxima a outms úeas do saber, a ontogénese coutitui uma du propriedades incontestes do seu legado into:JectuaL Ao descobrir a inJincia do indivíduo como campo investigatório, Freud tomou posso do uma terra do ningulm. Por certo que o pensamento, desde cedo, tizom do homem a medida do todas as coiSII. Frente à sua infância, por6m, ele continua a olhar a esfinge dos primórdios. Ao deparar com a criança, o filósofo mais radical pára do pensar e começa a contar as estórias do todo mundo. Igual a este, a filosofia não tem o que contmp
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Uma teoria da pdxis, a qual não fosae mitológica. Fmud nlo a fODDulou. Uma vez adultos, os hmnens s6 conseguem, tamb6n em Fmud, exon::itar o logos quando se desvencfiham da pdxia que os fez adultos. Esta j4 foi a mzio por que os atenienses foram ao teatro. Que o divl ou a aJena leve de volta l pntxis constitui, por certo, um dos mais belos mitos da humanidade - mas nada mais do que um mito. Já em Homem, Ulisses teimou em voltar para casa.

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MITOLOGIA E PSICANÁLISE LUIZ VIEGAS DE CARVALHO*

Sinto-me dionisiacamente liberado, sem os delírios de Baco, para declarar de público o meu amor - e ele não é um mito? - aos promotores deste admirável banquete - Seminário Internacional sobre a Atualidade do Mito. Esse confessado afeto, experiência singular, é extensivo aos que aqui distribuíram, com tanta elegância, palavras que suscitam curiosidade e palavras de muita iluminação. Falar agora, depois de tantas vozes afinadas e melodiosas, seria um ato por demais ousado, se não fosse apenas para pontuar, entre vários, alguns ditos, ou inter-ditos, escolhidos entre os que me pareceram mais atinentes ao tema que me foi pedido. Autores, na verdade, se fosse questão de citá-los, como exige a formalidade acadêmica, eu teria de ler o folheto que todos temos em mãos. Acredito, no entanto, que todos os falantes - primeiro ato da palavra - me permitirão lembrar somente um ou outro, cujas palavras - do segundo ato - irei citando quase literalmente. Não é sem razão que a memória é uma faculdade seletiva, e de esquecer. Ao esboçar o percurso desta comunicação sobre mitologia e psicanálise, poderemos caminhar em três etapas: 1. aproximação do conceito de mito; 2. redução do mito à dimensão da história do indivíduo; 3. e, por fim: um modo de falar sobre os protofantasmas - os mitos do indivíduo. APROXIMAÇÃO DO CONCEITO DE MITO A dra. Zélia de Almeida Cardoso afirmou que definir - definhar? o mito é tarefa de psicólogos, psicanalistas e antropólogos. Então, deixou conosco. Jean-Claude Schmitt, que intercala as crenças judaicas e cristãs na dinâmica dos mitos, me fez lembrar um velho contraste da vida quotidiana: o ódio toma presente o odiado. O ateísmo invoca contraditoriamente a presença de Deus, assim como o antimito reclama, ao menos na linguagem, a presença do mito. E, ironicamente, colocando-o no lugar certo, isto é, na palavra e no discurso. O prof. J acyntho Brandão exumou o velho Aristides para dizer outra vez que as palavras são míticas, enquanto expressão de um conceito abstrato. *Luiz ViEgas de Carvallo. Psicanalista e professor de Psicanilise e Mitologia. Doutor em Filosofia do Direito. Ensaísta.

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Pelo menos por subtração, diria Bergson algo semelhante, uma vez que, para ele. conceituar ou abstrair é uma morcelage do real. O prof. Emmanuel Carneiro Leão, que não pretendeu eliminar a obscuridade, lembra que o filósofo renuncia explicar o mito e espera, com pr.ciência de sábio. encontrá-lo na transcendência do tempo e do esoaço. Como que seguindo a orquestra, sob a regência de uma varinha mãgica, o prof. Carlos Cime Lima - talvez apoiando-se em Platão - se apresenta oara anunciar, em boa hora, aue o mito é a tentativa de contar, em valavras de ser humano, a história aa ongem e do fim do universo, ocorrendo nesse intervalo a turbulenta passagem sobre o planeta terra, ou o nosso sistema planetário. Pode-se então verificar que o homem pensa e não se cansa de indagar sobre estas três fases fundamentais do ser: a) Qual é a origem do universo e da vida? b) Qual será o fim de tudo que se move no espaço e no tempo? Qual será o fim da natureza? c) A passagem do homem sobre a tem, que finalidade tem? Como vivê-la? Talvez se possa afirmar que todos os mitos, de todos os povos, antigos e modernos, são dizeres, são tentativas de respostas, são alegorias, que o ser humano usa para conviver com essas três perguntas, angustiantes e desafiadoras. E vamos repetindo, por metáforas e metonímias, pelos séculos dos séculos, o mesmo refrão: De onde viemos? Para onde vamos? Qual é o sentido - direção e significado -do amor e da vida? O prof. Augusto Novaski insistiu um pouco mais. Deslocando-se para a sala de aula, como convém a um professor, lembra ele que a experiência que cada homem tem -por exemplo, do afeto -é um saber gue participa do mito e talvez seJa, em parte, único, original, quase incomunicável. Esse nível de conhecimento escapa aos moldes clássicos da racionalidade cartesiana. Com alguma tristeza naroísica pela descoberta, mas talvez com muita realidade, o cogito cartesiano poderia ser declamado, depois de Freud, de outra maneira. Eu sou, logo eu penso que eu sou ... aquilo que eu penso que sou. Enfim, o homem é um ser de desejo, podendo-se acrescentar ainda: e é o desejo da mãe.

REDUÇÃO DO MITO À DIMENSÃO DA HISTÓRIA DO INDIVÍDUO A entrada de Freud, na cena, foi sabiamente preparada pelo prof. Augusto Novaski, dispensando-se de introduções mais longas. Judeu de ler Bíblia pelo menos aos sábados quando menino, Sigmund Freud ouviu a explicação da origem, segundo o livro do Gênese. Acompanhou a história do paraíso. Estremeceu-se perante o mal-estar da civilização nascente, onde Caim mata o próprio irmão - por ciúme e inveja - e 325

onde a incomunicabilidade, na construção da Toae de Babel, denunciava um destino esquisito para o convívio humano. Não foi só isso. Também o Dilúvio Universal, catastrófico, tem um sabor de fim-de-mundo, mesmo que talvez possa ter alimentado- desejo? -em Freud o sonho de transformar-se em um Noé do século XX agonizante. O Dil6vio Universal deslocouse, através da leitura do Uvro de Jó, possibilitando a experiência de uma certeza precoce, a da morte inevitável: Tu és pó - demonstrou-lhe a mãe -e a ele voltarás. Cada homem repete para si mesmo as mesmas perguntas, em relação à vida e ao univemo. Quem é meu pai? Como conduzir a estranha força de vida? O que será depois da morte? Sigmund Freud estuda o ser humano e o processo de respostas a essas perguntas cruciantes. E esse estudioso pesquisador, já adiantado em anos, foi dizer que encontrava mais psicanálise nos personagens de Shakespeare do que em tudo que se escrevera até então sobre o assunto. O construto psicanalítico-teórico, em Freud, para o nosso tema, merece ser lembrado sob três ângulos: a) Em primeiro lugar, a Categoria de História, a Universal, para efeito de clínica, restringe-se mais à história do indivíduo. É a famosa história de vida. O analisante - um ser de desejo - teceu no seu registro imaginário uma série de respostas às três perguntas: Quem são meus pais? O que faço com a força que sinto? Como esperar ou superar a morte? A primeira cena, ou cena primária, é o marco significativo de dnunas, às vezes infindáveis. O que estariam fazendo meus pais no quarto de doDDir? Por que não estou no álbum de casamento de meus pais? Outras cenas, no teatro da vida, vão se suceder na história do indivíduo. b) Num segundo momento, ou antes, porque a seqüência não é croQ.ol6gica, o infante, sedutoramente investido pelos carinhos, toques, sussurros e cuidados da mãe, ou por quem veio substituí-la, o infante - não fala, mas a cabeça já funciona - descobre a força misteriosa. Que fazer? É a sedução. c) Bem cedo ainda, essa força estranha vai sofrendo as castrações necessárias, não sem deixar em cada um pelo menos a lembrança do tão falado complexo de Édipo. São as três importantes protofantasias -da cena primária, da sedução e da castração - que compõem as diversificadas histórias maravilhosas de cada indivíduo. E o desejo não satisfeito - por esse ou aquele motivo - vai fiando - para lembrar o mito de Don Juan - o sofrimento humano que pode atingir o horizonte do intolerável. É bom lembrar que essa história de vida mental é alimentada na criança pelas canções de ninar, pelos contos de fadas e pelos jogos infantis, entre outras solicitações. No adulto, a vida mental constrói mitos, perante os quais o ser humano vai reagir de maneiras diversas. Na criança e no adulto, o sonho reproduz, em linguagem própria, a história dos desejos, reprimidos ou realizados, recalcados ou perseguidos. O analisante, na falha da língua e no sonho lembrado, pode repetir na transferência o que lhe pennanecia desconhecido. 326

Nessa aventura analítica, sob a escuta flutuante do analista, o analisante tenta um conhecimento mais profundo de si mesmo e dos próprios limites, de acordo com o oráculo de Delfos, do pai de Esculápio, de Apolo, que deixou marcas profundas na cultura de Freud e em seu contexto psicanalítico. Psicanálise e mitologia encontram-se na esquina do horizonte, onde o homem, limitado pelo tempo e pelo espaço, não encontra respostas satisfatórias sobre a origem, o amor e a morte. UM MODO DE FALAR SOBRE PROTOFANTASMAS OU MITOS DO INDIVÍDUO Se houvesse uma peça de teatro, não sei quantos personagens teria, nem quantos atos e muito menos quem se arriscaria a ser o autor - eu gostaria de colaborar na encenação. Estrutura das cenas. Decoração do palco. Entradas. Saídas. Contra-regra. Ponto. Ladrão da cena. Se houvesse uma peça de teatro, com o título Seria todo mundo nu; mas, não foi, eu gostaria de participar da encenação e de assisti-la, ao mesmo tempo. Participar e assistir. Participar na escolha das figuras, da rouparia, das máscaras, dos gestos possíveis. É impossível aproveitar tudo o que eu imagino, porque as lembranças correm assim, de relance, e depois eu as esqueço. Até parece que algumas eu esqueço de propósito. Mas, pensando um pouco, com esse título aí acima, eu não sei muito bem o que eu desejo encenar. Por isso, às vezes é mais fácil assistir à encenação. Sempre aparece um grande ator para falar justamente o que eu tinha planejado. E pode haver tanta coincidência!? Se houvesse um teatro••• e essas imagens vão me levando. Imagens e coisas. Que coisa! As coisas vão me levando? Se uma coisa leva à outra, será que existe alguma que se arrogaria a honra de ser a primeira? No prólogo do teatro, qual seria a primeira coisa? E não dizem que os primeiros serão os últimos? Insisto em voltar para a coisa, mesmo que não seja a primeira. Se houvesse um teatro infantil, com o povo lá da minha escola, qual seria o primeiro personagem? Para rir ou fazer medo? Para causar emoção - aquele frio na espinha! - ou para a gente donnir? Se houvesse um teatro, para facilitar o sono, eu lembraria as meninas que vaniam o terreiro de secar café. Depois do jantar, à luz da fogueira, elas se davam as mãos, rodavam e cantavam. Se bem me lembro, cantavam coisas assim: sete e sete são quatorze, com mais sete, vinte e um; todo mundo tem amores, s6 eu não tenho nenhum. Ou ainda: se essa rua, se essa rua fosse minha, eu mandava, eu mandava ladrilhar com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes, pro meu bem, pro meu bem poder passar. O ressonar tranqüilo da criança era o aplauso desejado pelas vozes de acalanto. E os sonhos com certeza acompanhavam as sugestões das letras. Se fosse para fazer medo, era s6 alguém vestir os trapos de espantalho de arrozal e correr nas redondezas, levando na mão uma lamparina de querosene dentro de uma abóbora grande, cortada de olhos, nariz e boca.

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Os meninos menores corriam para se esconder debaixo das saias das mães. Debaixo dos catres, também. Se fosse para fazer medo pra valer, a solução era ter coragem de parar, à noite, perto do cemitério, no tempo de calor. o fogo fátuo era deslumbrante e misterioso. Alma do outro mundo? E as teorias se multiplicavam, tentando explicar o esquisito. Se fosse para rir do insólito, o teatro bom seria imaginar os grandes - pai, mãe, avô, avó, tios e tias - no palco, mas todo mundo nu e falando alto aquelas conversas que eles inteiTOmpiam, quando as crianças chegavam perto. Só se ouviam pedaços de frases: ••• a mulher do farmacêutico com o dentista ••• a professora com o delegado••• Ou vi contar que um doido virou mudo completo, porque descobriu que as palavras serviam para vestir os pensamentos. Ninguém agüenta pensamento nu, diziam. O doido tinha medo de vacilllf nas frases e contar os seus pensamentos. Tinha medo de os pensamentos aparecerem totalmente sem roupas. Resolvi visitar os vi.zmhos, para conversar sobre o teatro. Implicava-me a história de esconder as coisas. As roupas servem também para esconder, digo, serviam, pelo menos naquele tempo. As palavras só servem para esconder? O teatro - com máscaras, figurinos e personagens - seria a nudez pennitida. E toleráveL Há um limiar de tolerância. Dei de cara com seu Laurindo, mestiço de negro com índio, herdeiro dos defeitos e das qualidades atribuídas às duas raças. Musicalidade e preguiça, conversa mole e sentenças peremptórias, sabenças inquestionáveis e gosto de mistério, desconfianças amügadas e sensualidade à flor da pele. Por graça de Deus e da civilização vigente, o seu Laurindo nunca ouvira falar de Freud, Melanie Klein e muito menos de Lacan. Estava vacinado, pois nasceu analfabeto de pai e mãe, e assim continuou o resto da vida. Nas redondezas onde viveu, ninguém falava dessas figuras européias. Seu Laurindo prestou muita atenção no meu projeto de teatro. Poderia ser lá no paiol ou no alpendre da casa do CoroneL Pensou. Revirou os olhos. Acendeu o pavio da binga, tirando fogo na pedra com um feninho que ele chamava de fuzil. Chupou a brasa com o cigarro de palha. Tragou tranqüilo. Soltou a fumaça no ar. E falou, com muito brilho nos olhos. - A vida já é teatro. E há dois teatros. O teatro das coisas: a mulher do farmacêutico com ares de séria; engana poucos. E há o teatro encenado na cabeça; acordado ou doimindo: é o teatro da cabeça que ilumina o palco. Conversa vai, conversa vem, Laurindo ia pontuando as características da cena do teatro da cabeça, onde o dono da cabeça se assistia a si mesmo, sem gastar dinheiro com entrada ou com outras despesas de montagem da peça. Diversão de pobre é esse teatro da imaginação, defendia Laurindo com entusiasmo. Nesse meio tempo, vindo do adro à igreja, aproximou-se o seu Olavo, irmão de Laurindo. Pegou um resto da prosa, quando eu falava de espantalho, esse fantasma para passarinho, ladrão de arrozal. -Eu acho que fantasma existe mesmo- sentenciava Olavo. - Ele não aparece, em carne e osso, s6 para não perder a autoridade. Não pode virar arroz-doce de festa. Agora, ver fantasma, isso é outra conversa. Só alguns conseguem. Mas ele existe. É uma realidade que não se confunde com pedra328

sabão, sombra de pau d'água ou um cavalo bom de sela. É coisa mais fina. Delicada. Deparar-se com um fantasma é privilégio de poucos. É um sonhar de dia. Depois de ouvir em siléncio as certezas de Olavo, Laurindo retoma a prosa. - E o sonhar acordado, esse ficar acordado, esse ficar cismando com a cabeça, enchendo-a de proezas? Isso é muito mais perigoso e comum. Não é privilégio. Detesto privilégio e privilegiados. Mas não convém cismar demais. O pensamento, carregado de desejos, pode invocar as coisas. E elas acabam aparecendo. Mas outro assunto, ligado a isso tudo, é a valia e serventia das coisas. Coisas que a gente põe a mão e coisas s6 da cabeça. O facão de sangrar capado gordo, que nosso falecido avô deixou para o meu pai, tem muito mais valia, além de serventia. Vale mais que uma faca de ouro ou de diamante. A serventia, essa pode ser a mesma para todos. Não resta dúvida. Mas a valia não é a mesma nunca. Quando pego naquele facão, parece que estou encostando-me no meu avô e, por via dele, também no meu pai, na minha mãe e nesse mundo antigo. Estimação gera benquerenças e também malquerenças. Tirando fora os viventes de alma, as coisas em si mesmas, quem sabe?, têm todas o mesmo valor. Valor de coisa. Diferente é só a serventia para quem precisa. A estima é coisa da cabeça. Não passo sem meu fumo de rolo. E o goiano é o melhor. Já o seu João da venda não gosta de cigarrar nada. Lá vem ele de mãos abanando. - E a serventia das pessoas? -perguntei encabulado. De gente viva -atalhou Laurindo,- a serventia pode contar ou não contar. Certas pessoas não valem a farinha que comem. O João, inteirado da prosa sobre espantalhos, aparições, cisma, lobisomem e fantasma, juntou-se ao grupo. Não há pé rachado que não encontre um chinelo velho -, anematou ele -, continuando: para si mesmo, cada um vale o que pensa que vale. O pensar do outro - um pé rachado qualquer - adianta ou não adianta. Mas esse troço da cisma na cabeça é o diabo. Se eu quiser inventar uma descrição desse cismar, que fica ondulando o dia inteiro, como o capinzal verde embalado pelo vento, eu vou ter um trabalhão da cachorra. Explicar é desdobrar, é tirar as dobras que escondem o embrulhado. Como é que vou explicar isso na Conferência dos Vicentinos? Sentir é uma coisa, divulgar é outra. Ali na capoeira - vocês sabem - tem cobra, da venenosa. Caninana. Para todo mundo ficar sabendo, a gente espalha a notícia. Até criança já viu cobra. Para avisar gente de fora, eu posso pendurar uma caveira de burro na forquilha de uma peroba. O forasteiro, vendo aquele esqueleto, vai logo imaginar ou lembrar. Pode lembrar erva braba, marimboudo mata-cavalo, atoleiro viscoso, ariranha ou ••• Lá no alto do morro, vocês encontram num poste uma caveira de burro - s6 a cabeça, é claro! Antes da revolução de 30, num dia de tempestade forte, caiu um raio em cima de um burro, que se escondia da chuva debaixo de uma árvore. O animal ficou lá. Os urubus deram conta dele depois. O pessoal contava o acontecido: raio, burro, urubu e morte. São coisas da vida. - Mas e a cisma? - perguntou Laurindo. - E prosseguiu: para mim é o mesmo que falar de mistério do começo do mundo. Pode haver um 329

palavreado que trace o mistério de alto a baixo? Na capela São Jos6, chega uma hora da reza. o sacristão bate a campainha ou sacode a matraca. O silêncio toma conta daquilo que não pode ser falado, porque não há palavras para divulgá-lo. Esse cismar da cabeça - certas horas as pessoas ficam com os olhos parados como se estivessem fora de si- é coisa muito fina demais. Muda de roupa toda hora. É como nuvem. Forma uma boiada, depois um vulcão e logo em seguida vira um lençol de renda branca. Transformação sem parar. Muda de formato e muda de lugar. O dia inteiro e noite adentro. E seu Laurindo atalhou: cismar é escarafunchar o mistério com a cabeça. O mistério tem parentesco com feitiço. Vocês já viram? Feitiço, vocês já viram. Tem muito, na cidade. Dá um medo. Não acontece a praga apregoada. mas pode acontecer. Gente enfeitiçada é um deus-nos-acuda! Eu tinha gostado muito daquela iluminação do palco, emanada da energia da cabeça, como Laurindo descreveu. Af, dei corda na conversa, para aprender um pouco mais com aqueles vizinhos. Meu projeto de teatro já tinha pulado para o segundo plano. - E esse negócio de fantasma da cabeça? -perguntei. O seu João da venda encarreirou um discurso, um pouco dife~nte dessa hist6ria de "atravessar o fantasma" - apunhalar as nuvens? -que incomoda o meu amigo Chaim. - Acho que existe dentro de n6s um material muito aprimorado e que é diferente das matérias que a gente conhece. É coisa mesmo s6 de pensamento, e pensamento comprometido, que remexe nas entranhas. Coisa de pensamento não se pega com a mão. Ninguém pega. Mas é um material, com desculpa da palavra, que em parte fala. Fala no gesto repentino. Aparece - representa-se - no jogo dos olhos. É uma coisa pensada, mas não é pensamento certo, falado em lfngua corrente nacional. É uma coisa sempre em movimento. Movimento amplo, que não é mudança de lugar. A matéria bruta. que se pega na mão, está sempre em movimento. Acho que nem pode haver movimento sem matéria, sem espaço, sem tempo de rel6gio. Daí eu vejo, doutor - e João se virou reverente para o meu lado -, que o tal de fantasma é um material que não é guarnecido de matéria. Não é nem sombra de árvore, que balança com o dar do vento e do sol na ramagem. Fantasma é coisa só de um pensamento especial. Depois que as matérias desaparecem da frente da gente, ou a gente se distancia delas, o pensamento entabola o seu reboleio. É um saracotear muito doido. Será que na cabeça de crianças novinhas acontece o mesmo? E com cachorro também? Cachorro tem faro, tem apego ao dono, distingue o morder de raiva do mordiscar de brinquedo. Cachorro brinca. Será que cachorro imagina que o dono dele pode abandoná-lo? Será que cachorro padece o medo do fantasma do acabamento dele, da morte, e do depois da morte? Nem imagino um cachorro preocupado com o fantasma - é fantasma? - do como ele veio a nascer, do como nasceu a cacholTilda toda da telTil. A pena é que não se entende' ainda. a lfngua canina. E nem a dos homens, pois o povo usa a fala para esconder o que não quer dizer. Conversa é adivinhação continuada. -Mas afinal, seu João, o que é fantasma? -perguntei novamente, já esquecido completamente do teatro. 330

-Fantasma que se preze - emendou ele - é coisa de pensamento misturado com os volteios do coração. Não é matéria de segurar com ~ mão, não senhor. A gente sofre uma espécie de relâmpago de uma coisa provável, a partir da combinação das idéias, e logo começa a sentir um friozinho pela espinhela acima, ou às vezes o coração dispara e, dependendo da força do raio, as pernas bambeiam, como se o possível já estivesse acontecendo. Pode até paralisar uma pessoa. Outro dia, numa roda, o compadre Gumercindo estava junto conosco e não estava. Era s6 corpo presente. Como se diz, ele estava nas nuvens. Então eu disse. -Acorda, compadre. Onde é que você andava? - Foi nada não, respondeu ele, como que despertando de um sono. Estava era pensando na alma de minha mãe lá no céu. Será que ela entristece, porque eu estou dando um adjut6rio à mulher do compadre Narciso, que não anda cumprindo as obrigações de casado? -Viu s6, doutor! Fantasma tem parentesco com remorso -respondeu Laurindo. O sol se punha. Os pernilongas começavam a perturbar. Despedimo-nos. Fui ruminando a conversa pelo caminho. Pensar o mundo é separar-se dele. Parar. Mergulhar-se no abstrato, muito além das nuvens e da lua. Parar-se, sem lugar, no tempo e no espaço. Cansei-me. Atravessar o fantasma! ••• o nada. •• Mas o ser humano - essa espécie mais ou menos,sapiens -pode alimentar-se de nada, do não-ser-material para ser alguém? Alimentar-se de nada••• Nascimento, vida e morte. Mistérios de alegria, de ansiedade e de dor. Lembrei-me do Laurindo, sentado à beira do fogão, à noite na cozinha, explicando a existência: -Vida é aventura e dureza. Todo mundo nasce nu, mas logo se esconde em trapos ou roupas vistosas. Mas, da morte, ninguém se esconde. Desejá-la, é pressa de desânimo. Adiá-la, sempre mais, é arte do saber. Aceitá-la, quando chegar a hora, não é s6 rendição, é cumprir a lei da terra. Sobre o depois dela - a morte - s6 fala quem não sabe. Quem sabe - se tal existir - nunca falou coisa com coisa que homem humano dê conta de entender e divulgar. Desisti. O teatro é o outro. O nu existe? CONCLUSÃO Vou concluir. Já é tempo. Gostaria de não chamar nunca a psicanálise de mito. Mas tenho, dentro de mim, que essa inclinação é apenas um desejo. O que fazer? - se a psicanálise é um contrato de palavras? O que fazer? - se não há análise sem transferência? É porque estamos vivos que se procura, a trancos e barrancos, responder aos desafios da Esfinge. É porque estamos vivos que podemos "mitar", incorporando mitos do passado, universais, ao nosso quotidiano, e produzindo, sem cessar, alegorias novas. 331

E agora, eu vou "i-mitar''! "Seja-me permitido delirar." Eu tive um sonho, grandioso. A língua do Lácio voltava ao ginásio, e o grego ao colégio. Em procissão, um grupo de Musas cantava suavemente. Não consegui decifrar a mensagem, embevecido que estava nos acordes. Mas parece que era assim: um povo que não canta é um povo de escravos. Virgflio, carregado pela dra. Zélia de Almeida Cardoso, entrava triunfante no Panteon da Universidade! Dr. Donaldo Schüler, esperto, presente e ativo, com ares de Hermes, e com a força de Atias, carregava Homero e Hesíodo nos ombros. Acompanhando a procissão, a dra. Marlene Soares dos Santos precedia uma carruagem florida, tripulada por Hamlet, Julieta, Romeu, Otelo, o Rei Lear e muitos outros. O Ájax, da dra. Filomena Garcia, não pôde aderir ao cortejo, porque recusou os direitos de cidadão! Discreto, com olhos de lince, Dante Alighieri incorporou-se ao desfile, guiado pelo prof. César Leal. Essa procissão conseguiu arrebatar a juventude, que passou a sonhar novos sonhos, projetando-se nas deslumbrantes fantasias. Enéias, Ulisses, Apolo, os irmãos Grimm, Anderson, Charles Dickens, Karl May e, solene, o Barão voo Münchhausen eram figurantes aplaudidos! Eu tive um sonho: depois da canção das Musas, o cordeiro recolhia-se na cova do leão; o suor do rosto começou a valer mais do que os papéis e os metais do FMI; ouvia-se a voz do povo a cantar. Eu tive um sonho: os estudos clássicos eram um remédio poderoso para abrandar a saudade do paraíso, para aliviar as incertezas da paixão e o sofrimento do amor, para dar um lenitivo ao mistério da solidão, para atenuar o medo da morte, para apagar o remorso da culpa - os deuses também pecam! - e para abrir as portas da amizade serena.

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MITO Y NEUROSIS JUAN CARLa> MONTERO*

En el seno de la experiencia analítica encontramos eso que llamamos mito, que marca tan indeleblemente ai hombre, que lo acompaíiará por la vida, alienándolo, en formaciones que no reconoce como propias, pero que son capaces de determinar su salud o su enfermedad. Freud designa con el término fantasía inconciente justamente ese nudo de relaciones fantasmáticas provenientes de las cosas oidas y repetidas ancestralmente que se entrecruzan coo lo vivido real por el sujeto. Formaciones estas, sentidas como extraõas por él mismo y que sin embargo soo lo más suyo, que son fuente de los s{ntomas. Aquí, es doode aparece Lacan, contradiciendo en un primer momento la tésis :freudiana, enseõando que no se podría pensar que formaciones simbólicas como el síntoma tendrían como causa lo imaginario de los mitos individuales dei neurótico. Sólo puede retomar a la tésis :freÚdiana después de establecer una estructura, a la que llama "fantasma" y en la que el objeto Damado "a", causa del deseo, relaciona lo simbólico coo lo real. Esta estructura no impide por eso ser una ficción encu bridora de la castración. De esto se concluye que los mitos, fuera de ser esa cosa arbitraria y dereal, tienen una estructura. Soo así organizaciones discursivas altamente complejas. Si el mito entonces relata un acontecimiento, por el sólo hecho de decirlo, se abre paso a una realidad que no es sólo psíquica, sino que podemos pensar que ha tenido lugar en lo real, aunque aparezca desligada de otros elementos y deformada en su decir. Yá que los mitos se transmiten oralmente, la función mediadora de la palabra es fundamental. Vemos que "eso" habla, a6n en el silencio dei ritual. En efecto, éste recompone el mito en el silencio de la manipulación de objetos y en los gestos repetidos dei oficiante. Vamos a pensar el mito como la transmisión de un relato que tiene por base un hecho real, no ajeno a las leyes dei lenguaje, que pone un límite ai tiempo para poder hablar de ese otro tiempo, primordial o sagrado, dei que nada se podría decir a no ser justamente en forma mítica. Si dijimos que en la base de un síntoma estaría un mito, siendo así i. Cómo operana éste en la neurosi.s? Quiero expooer, en la particularidad de un caso, desde el ángulo propio de un mito individual; en que si bien su estructura la podemos ver repetida

*Juan Carlos Montero. Psicanalista. Fonnado pela Universidade John F. Kennedy/Argentina. Ensatsta.

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en otros; esta nos ofrece, por ser conocida, la posibilidad de despejar una particular configuraci6n. Digo particular configuraci6n, que dará origen a este mito y no a otro - aunque sintamos que sus juegos nos tocan porque va a estar sujeto a lo vivido y oido por el paciente en forma de relato histórico, que ataiie a su prehistoria y determina el pooo grado de libertad de su futuro. Voy a referinne entonces, apoyado en el texto de Lacan Poesía y verdad, ai caso de Sigmund Freud conocido como El hombre de las ratas. Es en estos relatos, secretos jocosos, anécdotas, dichos, oidos repetidas veces por Pablo Lorenz - el hombre de las ratas - en boca de sus padres, o más específicamente dichos por su madre y conflnnados por su padre, que encontramos los detenninantes dei sujeto. Nos enteramos así que estos relatos se refieren a dos faltas dei padre, a dos deudas. A una deuda con el Amor y a otra deuda con el Honor; donde el dinero, o riqueza material, está implicado en las dos. Estas dos situaciones se ubican antes dei nacimiento de Pablo, en su prehistoria. La primera, la deuda con el Amor, nos dice que el padre de Pablo, antes de haber conocido a su esposa, se encontraba apasionado de la linda pero pobre hija de un carnicero, a la que abandon6 por su mujer, hija de una rica familia de extracci6n burguesa. Lo que queda implícito en el texto, no dicho, pero sin embargo leído por Pablo, es que el padre se vi6 ante una eleci6n: el amor de la linda pero pobre muchacha o el dinero de la rica mujer. El amor o el dinero. La segunda deuda, que llamamos deuda con el Honor, se refiere a que el padre, siendo un joven oficial dei ejército, se ve envuelto en una situación extremamente comprometida. Él era tesorero dei dinero dei regimiento confiado a sus cuidados y pierde este jugando una partida de cartas. Esta situación embarazosa lo coloca ai borde dei suicidio, dei cual es rescatado, salvado, por un camarada de armas, oficial como él, que le presta el dinero con el cual salvar la honra y la vida. Ya fuera dei ejército, quiere devolver el dinero emprestado, pero no encuentra nunca más a su antiguo amigo y camarada. Esta deuda no saldada se pasará para su hijo, así como se pasa una herencia, como se pasa una deuda de honor que deben resolver los descendientes. Deuda simbólica y real que llama a cumplir a aquello que no pudo ser cumplido por el padre y ai mismo tiempo lo reproduce en su actualidad. Pero aunque pudieramos pagar la deuda real, i, Como pagar la simbólica? j,Cual es el precio de una vida? Siempre va a quedar algo que no va a poder ser pago. Se dice, en este sentido, que la vida se paga dos veces: una con el nacimiento y otra con la muerte, y esto es lo que vamos a ver reproducido en Pablo. Si esto es así es porque el sujeto varón adquiere los emblemas de su masculinidad en la identificación imaginaria con el padre, ai que coloca en lugar de Ideal, poseedor de todas las potencias y que detennina, desde este lugar, su conducta futura.

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Este ideal, que es la otm cara dei superyó, se diferencia en qne no es punitivo como este y si permisivo, en que no manda sino qne ordonL Si el supery6 actuaría como categoría kantiana, probibiendo la sexuali.dad en general, en beneficio dei narcisismo, el Ideal dei yo lo bant como promotor de la misma ai encauzar la virllidad naciente dentro de un orden simbólico, se vé, ante la faDa dei Ideal dd. yo, el obsesivo se vé atoDDentado por un supery6 ai que llamaríamos cruel Es porque faDa la funci6n mediadora de la palabra; porque no se constituye el Ideal dei yo, que el sujeto se vé arrastrado, alienado en el Yo ideal. Desde su ilusión de ser amado por el Otro, de ser quico colma la falta dei Otro, se va a ver él, nevado a ser "la" falta "en" el Otro. Va así a decir su verdad, miticamente, en forma de mito, ya que 6ste va a servir para suturar la berl.da dei Otro, la falta dd. pad!e. ;.. Qué es un padre? "Es un deseo de madre que no se agota en deseo de bijo." Pero esta madre va a jogar su deseo en un más aDá dei padm. Engaocbada en el relato repetido de estas faltas dei padre que baceo que 61 tambalee de su lugar. Faltas que no contrl.buyen a sostener las insígnias identificatorias de un medio padre ante la madre. En que el dinero, como fetiàle, juega el juego binarl.o de la presencia o ausencia, marcando determinados pc:nonajes coo su valor relativo coo respecto ai padre, que es cuestionado en sus atrl.butos fálicos. Deuda coo el amor y deuda coo el honor, relacionadas ambas eo el equivalente fálico dei dinero.

~+Camarad~

Dinero ~ - Padre ----::::::::::: + Madre - Mucbacha pobre

Deuda

Este relato, entonces, esta constelación familar, es el tema básico dei mito individual dd. paciente. Mito que se repetirá conciente o inconcientemeote. Del que no podrá salir pues éllo determinL Se organiza a su vez, a tmvés de la literalidad de la pallbra, que pasa así a ser una palabra sagrada, a la que se le atrlbuye un grado do verdad incuestionable. Palabra proferida por quien es fuente de toda autmidad y toda fe. Recordemos las palabras dei paciente: "Esto lo ha dicho mi padre y la palabra de mi padre no puede mentir". Constituye así este mito, como todo mito, el modelo ojemplar de lo que debe hacerse o dejar de hacerse. Se organiza pues, en una configuraci6n enigmática que babla del origen, de lo que no puodo sabeno y en el que está incluído el sujeto que se ve obligado a habitar en él FJ mito así es lo más suyo, aunque no lo sepe, aunque no se reconozca on él y que olvidado se verá resurgir en esos momentos claves de su vidL Olvidado, pasa a ser relato de relatos, que apueceo on las fantasias, o en la asociación libre, como el eocadenamiento de significantes alrodedor dei nucleo "ratteo-rata", que oficia de pasaporte para los acontecimientos reprimidos. 335

El sujeto neurótico pasa así a ser e1 actor de un papel munnurado desde Otra escena, que está en él, antes de él y a través de él, pues si el mito se refiere a un pasado, es sin embargo vivenciado en el presente. Nos habíamos referido antes a tres momentos dei mito, que va a estar a su vez constituído por cuatro elementos. El primero, lo dijimos se inscribe en esa doble falta dei padre. Veamos entonces los otros dos ténninos de la ecuaci6n para poder seguir sus articulaciones. Lacan, en una conferencia titulada Poesia y verdad pronunciada en 1953, nos dice que la estructum de este mito corresponde a una doble identificaci6n especular, donde el sujeto se ve anticipado en la estructura narcisística de un Yo ideal, lugar que puede pasar a ser ocupado por otros personajes. Lo mismo pasa coo el objeto que también se duplica, formando en sus relaciones un velo, que anticipa el materna dei fantasma: S <> a. Voy a sintetizar; tendríamos una estructura de cuatro elementos dos de los cuales serían el sujeto y su doble anticipado. Relaci6n narcisística esta, relaci6n a muerte, ya que en la precipitaci6n especular tendríamos dos para ocupar ellugar de uno. Situaci6n que genera una tensi6n, Ramada agresividad, y que por otro lado es característica dei obsesivo. Es desde esta situaci6n donde se establece la relaci6n coo el tercer elemento: coo el objeto, que aparece como unificado justamente coando el sujeto se desgarra en su impotencia frente al Otro y que a su vez aparece unificado coando el objeto aparece duplicado en e1 cuarto elemento de la estructura. Este cuarto elemento, duplicaci6n dd objeto pero que va a actuar desde el lado del sujeto, es la Muerte. Muerte imaginada e imaginaria que va a pasar a ocupar el lugar de la castraci6n simbólica, propiciadora del deseo más allá dei deseo de la madre. Estos cuatro elementos originales pasan a ser así: el padre, doblemente en falta. La madre, mujer rica y que es la que introduce al padre a tmvés de sus faltas: una coo la muchacha pobre pero linda, tercer elemento, doble negativo de la madre, objeto del deseo dei padre y que entm en la contabilidad dei mito. La otra falta, elemento tam biéo de la estructura, será el antiguo camarada que salv6 su reputaci6n y su vida amenazada por la muerte en fonna de suicídio y que Lacan ubica como desde donde se jugarl'a una especie de castraci6n dei padre, capaz por lo tanto de producir efectos de castraci6n. Lugar también desde donde se cuestiona la palabra dei padre como palabra sagrada ya que una deuda impaga puede tener el mismo valar que una palabra engaiiadora. El padre, desde aquí, ya no se sostiene en su valor de ideal. En el segundo momento, en el momento de la instalaci6n de su neurosis, estos cuatro lugares vari a estar ocupados por otros personl\ies. Veamos este momento. El sujeto, uno de los términos de este nuevo tiempo, se plantea, ante la finalizaci6n de sus estudios de abogado, que pronto estará en situacion de casarse y se ve en la alternativa de tener que elegir entre dos mujeres.

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Una de ellas, Giselda, la dama de sus pensamientos, la que el sujeto ama, es pobre y es esta la que el padre prohibe. La otra, la indicada por su madre como aquella que ella desea, es la hija de un primo de la misma, que es rico y de la misma família de industriales. Este contlicto reaviva la leyenda familiar y coloca el sujeto entre dos alternativas: o la voluntad dei padre, o el amor de la madre. La enfermedad dei sujeto sirve aquí para resolver el con:fticto de esa manera tan peculiar de los obsesivos que es dejmdolo sin resolver. Haciendo que los Hados o la Fortuna tomen una decisión que él no se anima a tomar. Que no puede tomar. Pero un padre que ejerza as{ su función está en ese lugar dei padre de la "horda primitiva". No está actuando en forma de propiciar el deseo al prohibir a una mujer - su madre - sino que prohibe el deseo al prohibir a todas. Por otro lado, la madre, cómplice dei padre, seõalando a una mujer que ocupa frente a ella la misma posición que ella ocup6 coo su esposo, aliena e~· su deseo el deseo de Pablo. As{ esta rica mujer, hija de un primo de su madre, viene a ser para el sujeto el doble de la misma. Pablo, entre Escila y Caribdis, se ve visto a postergar sus estudios, demorando un aõo más en recibirse, para no casarse coo su madre ••• en otra mujer. El cuarto elemento de este segundo episodio va a ser la presencia de un amigo al que acode repetidas veces en busca de conforto, en los momentos en que se ve atormentado por ideas criminales. Coando esa muerte simbólica dei padre se vuelve contra sf mismo en fonna de suicídio. ldea que no es extraõa en su constelación familiar. Busca entonces, en este amigo, respuestas para ese interrogante que lo acucia: de si es una buena persona o no; y que tiene su antecedente en esas palabras escuchadas de niõo, por boca de su padre coando ante una crisis de furor asesino el padre responde diciendo: "Este niõo será un gran hombre o un gran criminal". ~C6mo ubicar su narcisismo entonces, ante estas palabras? ~Cómo ser bueno o maio si el acento está puesto en ser grande, sin importar la calidad de bueno o maio? Necesita entonces de otro, para se reasegurar, para precisar estas palabras. Este es el lugar al que el sujeto, más tarde, va querer colocar a Freud, pidiéndole un certificado de salud. Sustitución facilitada por ese juego significante entre Freud y Freund (amigo, en alemán). En relación coo el primer tiempo, vemos entonces corresponder distintos personajes en los mismos lugares. As{ el camarada salvador dei padre dei primer tiempo se va a corresponder coo este amigo consolador y salvador dei segundo, ligados entre sí por la muerte en forma de suicídio. Muerte indicando una castración no cumplida, una muerte simbólica dei padre no ejercida y que luego va a aparecer en el "delírio" de desear la muerte a un padre muerto. Es desde este lugar, lugar de la castración, desde donde va a actuar Freud, haciéndose el muerto ante la agresividad consternada de Pablo. Va 337

a actuar no Freud amigo, sino Freud analista, que va a permitir el deveiamiento, la descoostrucci6n dei mito, ai descifrar el movimiento significante articulado en este. Hay todavía otro tiempo ai que hicimos referencia, el tiempo dei "delírio" de las ratas, que es de donde toma ai nombre este caso. Es el siguiente: el paciente, estando en el servicio militar, durante un descanso en medio de las maniobras realizadas, pierde sus anteojos, pérdida, que como en el primer tiempo, no va a ser indiferente. En vez de buscados, encarga unos anteojos nuevos a su óptico en Viena, que los manda por coll'CO. Durante el mismo descanso en el que pierde las lentes, participa de la conversaci6n de dos oficiales - como él y su padre - en el que uno de ellos, coo cargo de Capitán, relata como se tortura a los prisioneros · en Oriente. "Se le adaptaba a las naigas un recipiente y se metian en el unas cuantas ratas, que exitadas, se le iban introduciendo por el ano." Ante esto Freud constata en el paciente una expresión de "horror ante un placer dei que no tenía conciencia" y ai mismo tiempo el surgimiento de una idea en el paciente: la idea de que eso podría suceder a personas queridas, más específicamente a su padre y a su amada. En el día siguiente, este mismo Capitán le entrega un paquete postal diciendo que un camarada suyo, el teniente A, había pagado por él el reembolso postal de sus anteojos. Es decir: dice, que tiene que pagar una deuda a su camarada. En el mismo momento surgi6 en su conciencia una sanci6n: "No devolvere el dinero", pues si lo hacía temía que se realizara coo el padre o coo la amada la fantasía de las ratas. Aparecen aqui el padre y la amada en la misma posici6n: ligados ambos a un placer sexual no reconocido como tal. Pero el sujeto se encuentra aquí en deudor de un camarada de armas. En la misma situaci6n en la que estuvo su padre, debiendo obedecer ai supery6 cruel encarnado en la figura dei temido Capitán. Si intenta cumplir esta orden, lo hace a la manem obsesiva, es decir no cumpliéndola. Ya que si la cumple podría acauearle la muerte a su padre. Que luego nos enteramos ya estaba muerto. Sabe por otro lado que no debe nada ai teniente A, ya que este no pag6la deuda, ni ai teniente B, que es el que se encarga de las cuestiones dei correo, sino a la empleada dei correo, que pag6 la cuenta confiando en la honorabilidad dei oficial. Pero el sujeto se atormentará pretendiendo para cumplir el juramento de saldar la deuda en fonna perfecta, reunir ai teniente A, al teniente B y a la dama dei correo. En ese momento entregará, a la vista de todo el mundo, el dinero dei reembolso postal ai teniente A, que funciona como el doble dei camarada de su padre, que a su vez lo dará ai teniente B y otra vez ai teniente A, para que por fio éste, en su presencia, lo entrege a la rica dama dei correo, doble de su madre, que es a quien verdaderamente debe el dinero. Y el sujeto lo sabe, aunque ai mismo tiempo nada quiera saber que sabe, para poder desarrollar el argumento fantástico de pagar una deuda, 338

corolario de aquella otra, impaga por su padre. De lo que resulta que no paga a nadie. Sólo consigue hacerlo coando comienza el tratamiento, mandando un giro postal a la seõora dei coneo. Esta dama dei correo, como era de esperar, se va a ver por su vez desdoblada en la dama pobre, hija de un posadero, que conoció durante las maniobras militares y a la que el sujeto desea con ese amor voluptuoso y expectante tan típico dei obsesivo. Es a esta mujer a quien el sujeto hubiera gostado de pagar la deuda, pero así como su padre no lo había hecho, también a élle resulta imposible, ya que no puede ir más allá de su padre, por estar este, aunque muerto, demasiado vivo para el paciente, por esta falla de la castraci6n, llamada simbólica. Es a partir de este relato dei Capitán, que aporta el azar de un significante, llamado a servir de pu ente a su construcción mítica, donde se organiza esto que podríamos llamar de "delirio" neurótico. Es este "rat" que vamos a encontrar en Heiraten-casamiento, raten-cuotas, spielmt-juego de cartas, ratten-ratas y que el sujeto va a contabilizar en sus deudas. AI respecto, asocia en relación a los honorarios de Freud: "Tantos florines, tantas ratas". Este significante, digo, es el que va a anudar los diferentes momentos de su historia produciendo esa organización compleja que llamamos mito. 6 Que podrlamos concluir de lo visto? Primero, creo, el hecho de que este significante "rat" es esclarecedor de cómo se relacionan los tres momentos de la historia. Es lo que nos permite oir lá continuidad de una seri.e que si en un primer momento se podría pensar azarosa, al_lora aparece lógica y necesaria. La repetición, en diferentes momentos, pone de manifiesto la estructura dei mito y a su vez, esta estructura básica dei mito es la que determina el acontecer neurótico. En este sentido, la muerte es fundamental, ya que se procura hablar desde ahí, y por no conseguido se repite esa ficción mítica enmascaradora de la castración.

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ÉDIPO E PSICANÁLISE CYRO MARTINS*

As idéias que se estruturaram em torno das vicissitudes edípicas foram as mesmas que urdiram o embasamento teórico da psicanálise. Demais, todos os seres humanos passam necessariamente pela fatalidade desse transe do crescimento, a fim de adquirir as características psicossexuais e sociais da espécie. O Complexo de Édipo assume configuração positiva ou negativa, conforme o pólo de convergência das emoções elementares e flutuantes que estão em jogo. Sob a forma dita positiva, o complexo se apresenta como no mito de Édipo Rei: desejo de morte do rival, que é o progenitor do mesmo sexo, e desejo amoroso pelo progenitor do sexo oposto. Sob a forma negativa, o quadro se mostra invertido: amor. pelo progenitor do mesmo sexo e ódio ciumento ao progenitor do sexo oposto. A primeira dessas formas corresponde a uma noção excessivamente esquemática e superficial do Complexo de Édipo. Fora dos círculos psicanalíticos, até pessoas que se consideram conhecedoras destas matérias supõem que essa tessitura afetivo-erótica dos primeiros anos se esgota aí. Menor número tem conhecimento teórico da forma invertida. E um número mais reduzido ainda sabe que essas duas formas se entrecruzam em graus diversos na configuração completa do Complexo de Édipo. Segundo os ensinamentos de Freud, o apogeu dessa fase do processo evolutivo corresponde ao período compreendido entre os três e os cinco anos, em plena etapa fálica. Seu declínio marca a entrada no período de latência, caracterizado por uma parada na evolução da sexualidade. Experimenta uma revivescência na puberdade. Desde já convém assinalar que o Complexo de Édipo desempenha um papel fundamental na estruturação da personalidade e na orientação da libido. Para a psicanálise, é o marco referencial mais importante da psicopatologia. Para cada tipo patológico, interessa muito determinar as nuanças de sua posição na história do indivíduo e de sua resolução •. Todos sabem, nesta sala, que Freud tomou da imponente tragédia Édipo Rei, do dramaturgo grego Sófocles, que viveu de 496 a 406 a.C., os elementos ilustrativos das idéias que fundamentam o núcleo da sua concepção de como se processa o desenvolvimento psicossexual do homem nos primeiros anos de vida e sua prospecção no decurso da existência. Portanto, impõe-se que façamos uma síntese dessa obra imortal, antes de prosseguirmos no esclarecimento científico do nosso tema. Com efeito, o herói tebano era filho de Laio, rei de Tebas, e de Jocasta. Nasceu sob o signo fatídico da profecia do oráculo, feita a J ocas ta, segundo a qual seu filho a desposaria, depois de assassinar o pai. Para fugir ao desígnio *Cyro Martins. Psicanalista. Formado pela Faculdade de Medicina -

Porto Alegre. Formação psicanalítica no Instituto de Psicanálise da Associação Psicanalítica Argentina. Escrito r e ensaista.

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sinistro, seus pais decidem mandar matá-lo ou abandoná-lo, recém-nascido, no monte Cíteron. Para maior garantia da efetividade de seu desiderato, perfuram-lhe: os pés, confiando na invalidez para que ninguém o recolhesse. A palavra Edipo quer dizer "o dos pés inchados", pois seu nome proveio da petfuração dos pés. Entretanto, o subalterno a quem Jocasta entregou o menino compadeceu-se da sua sorte e o abandonou simplesmente, na certeza de que um pastor de um reino vizinho o haveria de apanhar. De fato, o chamado "mensageiro de Corinto" agarrou o menino e o levou de presente, um valioso regalo, a seus reis, Políbio e Mérope, reis de Corinto, um casal estéril, desejoso de ter um filho. Educado por Políbio e Mérope, Édipo os julgava seus pais e os amava. Chegando à idade adulta, porém, ouviu de um ébrio, numa festividade, qualquer insinuação referente ao seu destino. Para certificar-se da verdade, procurou o oráculo de Delfos, o qual lhe confirmou a sorte que lhe estava prescrita. Para evitá-la, para não matar seu pai Políbio e casar com Mérope, fugiu de Corinto. No caminho para a F6cida, assassinou, após discussão e ao ser agredido, um viajar desconhecido, sem nem imaginar que estava matando Laio. Foi dar em Tebas e encontrou o país subjugado pela Esfinge, que propunha enigmas aos que passavam e devorava os que não conseguiam resolvê-los. O monstro lhe perguntou: Qual é o ente que, dotado de uma só voz, é o único a ter sucessivamente quatro, dois e três pés, e cuja força é tanto maior quanto menor o número de pés? Édipo respondeu que era o homem, pois, criança, arrasta-se de quatro, anda ereto na idade adulta e apóia-se num bastão quando velho. A Esfinge, profundamente desapontada com a derrota, suicidou-se ou foi morta por Edipo. O texto não esclarece. O prêmio de Édipo pelo feito heróico foi receber Jocasta como sua mulher e tomar-se rei de Tebas. Por isso, quase todas as enciclopédias começam o verbete "Édipo" com estas palavras: herói tebano ... Com Jocasta por esposa, Édipo goza a ventura de um reinado glorioso. Mais que um soberano, seus súditos vêem nele um pai e um salvador. Completando a felicidade, nascem-lhe quatro filhos com Jocasta. Mas eis que sobre Tebas se abate terrível peste. Foram inúteis os apelos dos vassalos dirigidos aos deuses do Olimpo. Édipo envia, então, seu cunhado Creonte ao oráculo de Apolo. Seu embaixador ainda não voltara quando o povo em desespero acorre ao rei. Édipo sai do palácio para receber seus patncios, que invocam sua ajuda. Nesse ponto começa o drama. Revelada a verdade sobre a união incestuosa, J ocas ta enforcou-se e Édipo furou os próprios olhos com os grampos da mãe-esposa. Além daquele significado da palavra "Edipo", referido anterionnente, há um outro, de sentido mais cultural, segundo o qual o nome "Édipo" quer dizer "o que explica um enigma ou esclarece um ponto obscuro", diretamente ligado ao seu sucesso junto à Esfinge. No seu ensaio "Dostoievsky e o parricídio';, em detenninada passagem Freud faz esta síntese: "Não cabe atribuir ao acaso que três obras-primas da literatura universal tratem o mesmo tema: o parricídio. Tal é, pois, o tema do Édipo de Sófocles, do Hamlet shakespeariano e de Os irmãos 341

Karamazov. E nas tr6s aparece tamb6m à plena luz o motivo do fato: a rivalidade sexual por uma mulher". Entre as tr6s obras, Freud escolheu a trag6dia de Sófocles para testemunhar a presença universal, no inconsciente humano, dos irrevogáveis desejos incestuosos relativos ao progenitor do sexo oposto, simultaneamente com sentimentos agressivos contra o genitor do mesmo sexo. Mas subsistem tam• bém, ao mesmo tempo, anelos carinhosos em relação ao progenitor rival, assim como outros hostis ao progenitor amado. Foi a essa configuração, como já vimos, que Freud denominou "Complexo de Édipo" e que alcança sua culminância ao redor dos cinco anos de idade, isto é, quando a criança atinge a fase genital do desenvolvimento psicossexual. Posterionnente, se a evolução é satisfatória, essa constelação de emoções e fantasias ficará reprimida no inconsciente. Sobrevém, então, o chamado período de lat6ncia emocional e instintiva que dura até à entrada na puberdade. Ainda constitui uma incógnita a natureza da latência, se é um fenômeno inato e universal, na dependência da imaturidade biológica própria do desenvolvimento humano, ou se está condicionado a culturas repressivas, cujas restrições repercutem no comportamento sexual infantil e imaturo dos indivíduos. O certo é que, na mente do adulto, não restará lembrança consciente do drama sexual infantil, intensamente vivido por todos os seres humanos. Segundo a antropologia psicanalítica, a estrutura triangular do Complexo de Édipo, cuja universalidade ela afirma, existe nas mais diversas culturas e não somente naquelas onde predomina a família conjugal. Vejamos agora um pouco do histórico da denominação "Complexo de Édipo". Só em 1910 ela aparece explicitamente nos escritos de Freud, embora o seu conceito já fosse admitido na prática analítica. Entrevista desde algum tempo no tratamento de seus pacientes, a concepção do "Complexo de Édipo" se tomou clara para Freud no decurso de sua auto-análise, que o levou a reconhecer em si mesmo a atração sexual por sua mãe e, em relação ao pai, um ciúme em conflito com o afeto que lhe votava. Por isso, a 15 de outubro de 1897 escrevia ao seu amigo Fliess: ..... o poder de influência de Édipo Rei se toma inteligível... o mito grego põe em destaque uma compulsão que cada um reconhece por haver percebido em si mesmo os traços de sua existência". Convém assinalar que, desde essa primeira fonnulação, Freud fez referência a um mito que paira além da história e das variações do vivido individualmente. Sem vacilação, afinnou, de início, pondo em xeque a generalizada negação humana, a universalidade do Édipo, tese que se reforçaria no decorrer do tempo. Pôs em evidência, portanto, esse imenso compromisso do gênero humano: o controle do Complexo de Édipo. A história do Complexo de Édipo é coextensiva à da psicanálise. Entretanto, não obstante toda a enonne importância que lhe atribui, em nenhuma passagem de sua vastíssima obra Freud fez uma exposição sistemática do Complexo de Édipo. Na tragédia Édipo Rei, de Sófocles, ele aparece sob a fonna dita simples e positiva. E assim também Freud o descreveu pela primeira vez. Entretanto, confonne o criador da psicanálise salientou, não se trata, nessa 342

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descrição, senão de uma "simplificação ou esquematização" se comparada à complexidade da experiência, sintetizada nesta passagem: " ..• o meninozinho não tem somente uma atitude ambivalente e uma eleição de objeto tema dirigida à mãe, mas ele se comporta ao mesmo tempo como uma meninazinha ao demonstrar uma atitude feminina tema em relação ao pai e a atitude co1respondente de hostilidade ciumenta em relação à mãe". Em realidade, constata-se entre a forma positiva e a forma negativa toda uma série de casos mistos nos quais essas duas formas coexistem, entrecruzando-se, e nos quais o analista aproveita para determinar as posições adotadas pelo indivíduo, quer na assunção, quer na resolução do seu Édipo. Em toda e qualquer vinculação afetiva entre ·seres humanos estão presentes as bases emocionais do amor e do ódio, coexistindo em proporções as mais diversas. O grande amor não implica tão-somente um enorme predomínio erotico, mas também tendências agressivas, postas no fluxo emocional favorável ao objeto amado. E todo sacrificio que o apaixonado seja capaz de fazer pela pessoa amada será à custa das energias agressivas voltadas contra si mesmo. O exemplo flagrante desse teor de conduta está em. Werther, que tantas identificações fatais provocou no auge da onda romântica. O conceito de ambivalência não é de fácil aceitação. Na história de um amor, por motivos vários, os sentimentos de ternura ou de ódio, além de se mesclarem, o que é habitual, com freqüência predominam, sucessivamente, uns sobre os outros. Esse ritmo alternado oco1re não somente nas grandes paixões como também nas grandes amizades. Foi a compreensão do Complexo de Édipo, na sua forma positiva, que permitiu a Freud explicar a ambivalência em relação ao pai, no varão, pelo jogo dos componentes hetero e homossexuais e não como simples resultado duma situação de rivalidade. Baseado no modelo masculino, Freud fez as primeiras elaborações teóricas do Édipo. Por bastante tempo ele· admitiu que, mutatis mutandis, o complexo podia ser transposto tal qual ao caso da menina. Esse postulado, entretanto, foi posto em xeque pelo proprio Freud, anos mais tarde, precisamente em 1923, no ensaio intitulado "A organização genital infantil da libido", segundo o qual, para ambos os sexos, na fase fálica, isto é, no apogeu do Édipo, conta apenas um órgão, o falo. Na menina, a transição da fase pré-edípica para a edípica caracteriza-se por uma mudança de objeto amoroso, passando da mãe para o pai. Para Freud, a idade em que se situa o Complexo de Édipo, de início, é indeterminada. No seu livro Três ensaios sobre uma teoria sexual, aparecido em 1905, por exemplo, ele diz que a eleição de objeto não se efetua plenamente senão na puberdade, a sexualidade infantil permanecendo essencialmente auto-erotica. Nessa peiSpectiva, o Complexo de Édipo, embora esboçado na infância, não surgirá à plena evidência senão na puberdade, porém para ser rapidamente superado. Essa incerteza a encontramos igualmente nas Lições de introdução à psicanálise, de 1916-1917, não obstante Freud já reconhecer, então, a existência duma eleição de objeto infantil muito proxima da eleição adulta. Em síntese, na peiSpectiva final de Freud, uma vez afirmada a existência duma organização genital infantil ou fase 343

fálica, o Édipo é relacionado a essa fase, ou seja, esquematicamente, ao período de três a cinco anos. Freud sempre admitiu um petíodo de relação objetal anterior ao Édipo. Quando se diferencia ou, melhor talvez, quando se opõe o pre-edípico ao Édipo, pretende-se ir além do reconhecimento desse simples fato: sublinha-se a existência e os efeitos duma relação complexa, de tipo dual, entre a mãe e o filho, e trata-se de procurar as fixações a uma tal relação nas estruturas psicopatológicas, as mais diversas. Cabe aqui perguntar se, enfocando os fatos psicológicos nesse plano de maior profundidade, se poderia ainda considerar como absolutamente válida a fórmula, que se tomou célebre, segundo a qual o Complexo de Édipo é o núcleo de todas as neuroses. Certos autores consideram que existe uma relação puramente dual precedendo a estrutura triangular do Édipo e que os conflitos que se relacionam com esse período podem ser analisados sem fazer intervir a rivalidade referente a um terceiro. Investigações ulteriores de alguns dos mais destacados seguidores de Freud, entre eles Melanie Klein, confirmam a validez das teorias do mestre quanto ao Complexo de Édipo genital. Com essa expressão se quer significar o grau atingido no desenvolvimento inicial da genitalidade e que culmina no desejo de estabelecer um vínculo sexual com o pai ou com a mãe nesse nível. Ao mesmo tempo, esses autores demonstraram a existência de um conflito de rivalidade e competição, que precisava ser estudado nos seus começos para que fosse entendido. Isso significa que, para compreendê-lo, só mesmo através da análise de fases muito primitivas, chamadas pré-genitais, da evolução psicossexual. Pesquisando-se nesse nível do inconsciente, constatou-se, então, que havia um Complexo de Édipo precoce, anterior ao desenvolvimento genital da criança. Dessa forma, a relação triangular que se estabelece entre mãe-paifilho cria uma rivalidade pela posse do peito e das satisfações orais primitivas. No início, o excluído da relação idflica entre mãe e filho é o pai, só o bebê goza do privilégio de mamar. Pouco a pouco, porem, o bebê vai sendo deslocado pela intromissão do pai. Irrompe, assim, um angustiante conflito na esfera da fantasia, pois, ante a inesperada atitude do pai, o bebê experimenta o desejo de eliminá-lo da relação com sua mãe. Nessa situação, como qualquer ser humano, não importa o estágio evolutivo em que se encontre, trata de afastar o intruso incômodo. O que se sabe hoje é que a competição entre o pai e o filho ou filha pela posse da mãe e logo a seguir a competição com a mãe pela posse do pai é um conflito que surge bem mais cedo do que inicialmente concebeu a psicanálise. Nessa pugna travada num nível muito primitivo do psiquismo, o anelo no qual o bebê concentra suas energias nascentes é o de mamar. Denomina-se "Complexo de Édipo oral" esse degrau da nossa evolução, para diferenciá-lo do "Complexo de Édipo genital", que implica o desejo de vincular-se sexualmente com o progenitor do sexo oposto. A influência do Complexo de Édipo se afinna na eleição do objeto de amor, naquilo em que este, após a puberdade, fica marcado a um tempo

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pelo investido no objeto e pelas identificações inerentes ao Complexo de Édipo e ainda pela interdição de cometer incesto. Os efeitos da situação edípica se fazem sentir também, e de maneira marcante, sobre a estruturação da personalidade, através da organização das instâncias psíquicas, particularmente as do superego e do ideal do ego. Esse papel estruturante na gênese da tópica intrapsíquica Freud relaciona com o declínio do Complexo de Édipo e a entrada no período de latência. Segundo o pensamento de Freud, o processo descrito é mais que uma repressão: " .•• no caso ideal, equivale a uma destruição, uma supressão do complexo (... ). Quando o ego não pode provocar mais do que uma repressão do complexo, este permanece no id em estado inconsciente: mais tarde manifestará sua ação patogênica". Diferentes fatores provocam esse declínio. No menino, a imaginária "ameaça de castração" pelo pai é o fator determinante dessa renúncia ao objeto incestuoso, e o Complexo de Édipo silencia às vezes de maneira abrupta. Isso significa que a situação de rivalidade com o pai, que veio dispondo-se desde aproximadamente os dois anos de idade, e que se manifesta sob a forma de ciúmes da mãe, inveja do pai e desejo do seu desaparecimento, ao redor dos seis anos sofre uma revolução, desencadeada pelo incremento da angústia e da culpa. Nesse transe, o menino trata de resolver o quê? Que espécie de pleito íntimo está em jogo? No apogeu edípico, e isso o demonstram as análises bem sucedidas, o menino vivencia com ansiedade o temor de ser castrado. Como tática de proteção, volta-se para o pai, identificando-se com ele. Isso quer dizer que assume os padrões de conduta do pai e passa a ter uma progressiva consciência da responsabilidade de controle de seu comportamento. Dessa forma se processa a resolução do Complexo de Édipo no menino. O que antes era externo, exercendo pressão de fora, controle e repressão dos pais, foi agora intemalizado. A voz do pai converteu-se em voz da consciência, a "voz secreta da alma", com atribuições de aprovar ou reprovar pensamentos, desejos e ações. Se atentarmos bem para esse reinado interior, não teremos dúvida em aceitar que o superego, como conceituou Freud, é o herdeiro do Complexo de Édipo. Na menina, a relação do Complexo de Édipo com o complexo de castração é diferente. Nela " .•. a renúncia ao pênis não se efetua senão após uma tentativa para obter uma reparação. A menina desliza- ao longo duma equivalência simbólica, poder-se-ia dizer - do pênis para o filho, e seu Complexo de Édipo culmina no desejo longamente alimentado de obter como regalo um filho do pai, de pôr no mundo uma criança". Disso resulta que, na menina, as dificuldades par& assinalar com nitidez o momento do declínio do Édipo são maiores. As considerações precedentes apenas informam acerca do caráter fundamental que reveste o Complexo de Édipo na obra de Freud, notadamente na hipótese ousada de 1912-1913, exposta em Totem e tabu, a respeito do assassinato do pai primitivo, considerado como momento original da civilização humana. Discutível do ponto de vista histórico, essa hipótese deve ser entendida, antes de tudo, como um mito que traduz a exigência imposta a todo ser humano de ser um "rebento de Édipo". E aqui se 345

torna importante ressaltar uma outm noção freudiana segundo a qual o Édipo tmnscende a vivência individual atmvés das fantasias originárias, filo geneticamente tmnsmitidas, "esquemas que estruturam a vida imaginária do indivíduo". O Complexo de Édipo só mmmente é redutível a uma situação real, à influência efetivamente exerdda sobre o filho pela dupla parental. Sua eficácia resulta do fato de ele, o Édipo, fazerintervir uma instância interditi va que, proibindo o incesto, barra o acesso à satisfação naturalmente procumda e liga insepamvelmente o desejo e a lei, constituindo uma instância psicológica bifronte. Esta concepção reduz o alcance da objeção lançada por Malinowski e retomada pelos cultumlistas, segundo os quais, em certas civilizações onde o pai é despojado de toda função repressiva, não existiria Complexo de Édipo, mas, sim, um complexo nuclear, camcterístico de tal estrutum social. Em contmposição, nas civilizações em questão, a psicanálise investiga em que figuras reais, ou mesmo em que instituições, se encarna a instância interditiva, em que modalidade sociais se especifica a estrutura triangular composta pelo filho, pelo seu objeto natural e pelo que consubstancia a lei. Uma tal concepção do Édipo vem ao encontro da tese de Lévi-Stmuss, que considem a interdição do incesto a lei universal e a condição mínima pam que uma cultura se diferencie da natureza. A psicanálise atribui um papel essencial, no conjunto das caracteristicas de um determinado Complexo de Édipo, não apenas no tocante ao indivíduo e a seus impulsos, mas também aos outros focos da situação - desejos inconscientes de um ou outro dos pais nutrindo atitudes sedutoms em relação ao filho ou à filha, modalidades das relações entre os progenitores e destes com o seu meio familiar e social mais próximo. O que será intemalizado, sobrevivendo na estrutum da personalidade como imagens parentais, são os diversos tipos de relacionamento existentes entre os vértices do triângulo. A psicanálise sustenta, como um de seus postulados básicos, que os neuróticos sofrem de um Complexo de Édipo mal resolvido. É sobretudo na vida amorosa que se manifesta a incidência do Édipo, fortemente intrometido no íntimo das relações de objeto, em qualquer idade, criando julgamentos errôneos acerca de pessoas e situações, determinando frustmções e, conseqüentemente, decepções e fracassos. Segundo Fenichel, estas fomm as várias formas de amor ligadas ao Complexo de Édipo mal resolvido, descritas por Freud: "O desejo do terceiro lesado", "O amor da prostituta", "A formação de uma longa série de amores análogos", "As fantasias visando salvar a bem-amada", enfim, e não das menores, a "Oivagem da ternura e da sensualidade". Mas os efeitos do Édipo mal liquidado não se configuram à vida amorosa propriamente dita, podem contaminar as relações sociais do indivíduo, em todos os seus aspectos. Nas pessoas consideradas normais ou menos manifestamente neuróticas, quando a eleição de objeto amoroso se faz tomando por modelo seus objetos infantis, o papel desempenhado por essa parecença se detém aí. Essas pessoas têm capacidade pam perceber as camcterísticas reais do objeto e reagir pemnte ele de modo considemdo adaptado pelo seu meio-ambiente. A perso346

nalidade neurótica, entretanto, cujo Complexo de Édipo não foi resolvido, está contaminada de passado em demasia e se deixa atrair ilusoriamente pelos objetos amorosos de "agora", vendo neles símbolos das figuras do pretérito, o que imprime ao vínculo uma tonalidade de artificio e insatisfação. Este é um dos traços marcantes do temperamento histérico. Para abreviar, entre muitos outros aspectos psicopatológicos que o tema suscita, lembrarei a problemática específica que apresentam as crianças adotadas, já que o menino Édipo do mito foi filho adotivo dos reis de Corinto. E inerente ao comportamento dessas pessoas, quando crianças, adolescentes e adultos, a constante e cansativa busca, na fantasia, consciente ou inconsciente, dos pais verdadeiros, por mais que aparentemente estejam ajustados à "sua farm1ia". A fonte permanente de sua inquietude reside na captação inconsciente da falsidade da situação que lhes foi imposta e que lhes servirá de base emocional para o estabelecimento de normas conscientes de conduta. Cumpridas suas etapas, toda a tormenta emocional edípica deverá amainar-se, por obra da repressão, sem deixar vestígio consciente de sua incidência na curva evolutiva do indivíduo. Mas o tema não se esgota aqui. Na concepção modema de Arnaldo Rascovsky, o parricídio e o incesto são os conteúdos manifestos do Complexo de Édipo. O conteúdo latente é representado pelo filicídio. Portanto, nos estratos profundos do psiquismo, correspondentes às fases pré-genitais, surgem as opções da pugna edípica nos níveis orais, onde a análise evidenciou a presença dos elementos subjacentes ao aspecto manifesto constituído pelo parricídio e o incesto. Na tragédia de Sófocles, os pais maus, Laio e Jocasta, mostram, no primeiro plano, seus imyulsos assassinos, que os impelem a mutilar, mandar matar e abandonar a Edipo. Na conceituação de Rascovsky, essa seria a situação básica da qual decorreria o enredo do drama. Como não é possível prolongar-me mais, termino citando estes períodos finais do ensaio de Arnaldo Rascovsky: "A existência reprimida do filicídio, do parricídio e do incesto constitui o fundamento essencial do desenvolvimento humano, mas sua expressão irreprimida produz atos incontroláveis e leva a uma conduta criminosa. Conduta criminosa que, como no caso de Édipo Rei, sempre tem sua origem na atitude dos pais". BIBLIOGRAFIA FENICHEL, Otto. La théorie psycanalytique des n/uroses. Presses Universitaires de France. FREUD, S. Obras completas. Buenos Aires, Santiago Rueda. (Especialmente Una teoria sexual y otros ensayos; lntroducci6n a la psicanáüsis; Toten y tabú; Estudio sobre Dostoyevski y el parricidio.) JACQUES, Elliot. Culpa, consciência e comportamento social. ln: A abordagem psicanaUtica. Imago. LAPLANCHE, J. & PONTALIS, J.B. Vocabulaire de lapsychanalyse. Presses Universitaires de France. MARTINS, Cyro. Vicissitudes ed!picas da conduta humana. Porto Alegre, Movimento. NUNBERG, Hennan. Principes de psychanalyse. Presses Universitaires (je France. RASCOVSKY, Arnaldo. El felicidio. Buenos Aires, Orion. RASCOVSKY, Arnaldo. Conocimiento dei hijo. Buenos Aires, Orion. SÓFOCLES. Obras completas. Buen>Js Aires, E! Ateneo.

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ENTRE MITO, MÚSICA E PSICANÁLISE SÉRGIO D. MESSIAs•

Cabe-me neste momento a tarefa de desfilar o discurso entre mito, música e psicanálise, tema que hoje nos reuniu neste seminário. Pretendo estender-lhes pontes e vinculações que possam unificar nossa concepção sobre as funções da criatividade e da comunicação humanas. Claude Lévi-Strauss, ao fazer uma análise estrutural do mito de Édipo, concebe a estrutura da narrativa mitológica como análoga à de uma partitura musical para orquestra. Nela os mitemas, ou fragmentos mitológicos significativos, colocam-se numa sincronia, tais como os instrumentos musicais na orquestração. Considera o "complexo de Édipo" freudiano como mais um relato mítico a ser alinhado na partitura orquestral. Deixa-nos ele um espaço para desfilar entre mito, música e psicanálise. Escolherei, no entanto, outro caminho, devido a ser psicanalista e não mit6logo ou mtisico. Na Jornada Sul-Rio-Grandense de Psiquiatria Dinâmica de 1981, desenvolvi um curso sobre música e psicanálise que, embora extenso para ser resumido neste espaço, pode fornecer alguns pontos de partida. Nesse curso, após revisar alguns conceitos psicanalíticos sobre música, procurei seguir um modelo evolutivo da personalidade, situado ao longo do processo de separação-individuação mãe-bebê, e compará-lo à evolução das formas musicais do mundo ocidental, retirando daí interessantes paralelos para a compreensão psicanalítica do fenômeno musical. Hoje, para tentar uma aproximação mais direta dos temas, usá-lo-ei como apoio. Começo por um mito que nos é relatado por Aristides Quintilhano, musicólogo grego do segundo século de nossa era. O mito, através de sua riqueza simbólica, diz em poucas palavras o essencial sobre a questão que nos interessa mostrar-lhes. Quintilhano narra-o como uma "história antiga", um mythos palaios. A alma cai redonda das alturas do céu; cai assim como a gota d'água da chuva. Se nada a contiver, ela se desfará em mil pedaços ao bater no solo; e daí nada se cria. O que ocorre, no entanto, é que essa massa informe, redonda, ao cair, vai passando pelas di versas órbitas dos planetas e se impregnando dos sons cósmicos. Os sons cósmicos das órbitas planetárias, assim como as teias de aranha, vão se introduzindo na gota e criando uma rede de fibras e cordões que vão delimitando cada órgão do corpo e dando-lhe sustentação. As óxbitas planetárias mais próximas da terra injetam ar (pneuma) nessa rede de sustentação, de modo que os órgãos, além de água retida nos canais, apresentam cordões, tendões e fibras em cujos espaços se aloja o ar. É assim que se forma o corpo do homem, tomando-se um só com a alma. Por serem corpo e alma, um entremeado de cordas •sérgio D. Messias. Médico. Especialista em Psiquiatria pela UFRGS.

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e ar são extremamente sensíveis ao som da lira, que é de cordas, e da flauta, que faz vibrar o ar. A música é, pois, usada de modo adequado e na medida certa, a melhor medicina para o homem: produz a harmonia das partes e dos órgãos. O mythos, de inspiração evidentemente pitagórica, ensina-nos que o corpo é absolutamente musical. Interpretando Quintilhano, eu diria que sua mensagem é de que o corpo humano é um só com a alma e um só com a música. Música e soma se correspondem de tal forma, se harmonizam, se interpenetram, se traduzem um na linguagem do outro, ou falam na mesma linguagem, vibram no mesmo diapasão. Por isso, talvez, chamamos nossas estruturas somáticas de órgãos, e nossos processos somáticos de orgânicos. Se o eu psicofisiológico vibra em harmonia com os sons da flauta e da lira, no sentido inverso se dá uma conversão de linguagens; a flauta e a lira são a tradução dos movimentos de um eu psicofisiológico silencioso. O surgimento das palavras e da comunicação verbal irrompe, dentro desse contraponto somato-musical, talvez como um modo novo ou diferente, uma nova tonalidade ou mesmo como uma dissonância incômoda, mal preparada (a palavra) para a transmissão sutil das harmonias do corpo. A unidade corpo-alma, se quiser expressar-se com fidelidade, deverá fazê-lo através da música. O mito de Quintilhano descreve-nos um ser humano em formação na fase de sua caída na terra, isto é, no estágio em tomo de seu nascimento. Descreve-nos, imaginemos, um ser humano em tomo de seu episódio de parto, passando da vida fetal para a de recém-nascido. Durante breves momentos, esse eu recém-formado viverá em espelhismos narcisistas, captando suas próprias transformações corporais de si para si mesmo: contrações, batidas rítmicas, contorsões, deslizamentos musculares, borborigmos, líquidos em fluxo, num diálogo do corpo com o eu rudimentar. Edith Jacobson, em seu livro sobre o self e o mundo objetal, descreve esse período como órgano-afetivo, em que a expressão da fantasia do bebê é de tipo psicofisiológico: um estado inicial caracterizado por um baixo nível de tensão e uma dispersão difusa, geral, de energia psicofisiológica ainda indiferenciada. A seguir, diz a autora, a partir de fatores intrínsecos e fatores externos, as forças indiferenciadas começariam a se transformar em impulsos agressivos e libidinosos. Nesse ponto se dá o aparecimento da mãe para quebrar o círculo especular narcísico e inaugurar o círculo especular objetal. Seria nesse contexto que se situa a música? Não seria a música, segundo o modelo de Quintilhano, o meio semiótico mais aproximado que encontrou o s~r humano para comunicar à distância, pelos sons, as impressões e harmonias somato-psíquicas e self-objetais desses primeiros instantes da vida? Semiótica do glissando, da síncope, da apogiatura, do mordente, do tremulo, do trinado, do bemol e do sustenido, das mudanças de tonalidade ou tônus, e também do adágio, do largo, do andante, do scherzo, e assim por diante? Imaginemos por um momento que relações significantes existam entre o glissando e um líquido que escorre pelos tubos digestivos ou uma gota que desliza sobre a pele; que a síncope equivalha a uma

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batida cardíaca descompassada, alarmante, inesperada; que a apogiatura represente algo que apóie, pressione, encoste; que o trinado (que vem do GpnvÉw grego, que quer dizer chorar) represente a dor ou uma exaltação erótica; que o bemol seja um amolecimento, um relaxamento muscular, alívio de tensão; que o sustenido seja a tonicidade mantida, assim como as mudanças de tonalidade equivalham a mudanças de tônus combinadas, ou variações de postura; que o adágio é estar acomodado, descansando, recostado, lento; que o largo é duradouro e generoso; que o andante se afasta ou flui; que o grave é pesado e oprimido: linguagem entre o eu e o si-mesmo, muda; linguagem entre o eu e o primeiro objeto, mãe, balbuciante, secreta, pré-verbal, silenciosa, traduzível somente através da música. Estamos tomando aqui a música como representante privilegiada, dentre todas as artes, de uma das fases mais antigas do desenvolvimento da personalidade e, como tal, a que exige do indivíduo uma maior capacidade de regressão para resgatar seus significados originais. Dizemos que as crianças, antes de falar, musicam, emitem sons musicais que, com o tempo, dão o substrato das palavras e a fala. A música, segundo estou expondo, concentra mensagens das fases mais antigas do desenvolvimento ontogenético, a música é o "museu" da comunicação humana, um repositório das peças mais antigas e valiosas, onde se codificam ao infinito as nuanças do círculo especular narcísico (os mais antigos diálogos do eu consigo mesmo), e do círculo especular objetal (os mais antigos diálogos do eu com seu ;"rimeiro objeto, a mãe ou o seio matemo). Quando uso a palavra diálogo, percebo a contradição (deveria dizer diamelos) em que me envolvo como pertencente a uma civilização que valoriza sobretudo a palavra e o logos. Entre a mitologia e os ritos das ~1vilizações não européias, menos lógicas, mais intuitivas, é que encontramos todo um manancial de especulações sobre o papel da música na formação do homem e do universo, um capítulo muito extenso que passarei por alto. Retomando o mythos de Quintilhano, passo a desenvolver minha idéia em mais profundidade. Quando a alma cai redonda das alturas pode ocorrer que, se não trespassada pelas esferas sonoras, ela se despedace em mil fragmentos ao :::hocar-se com a terra. Nesse trecho do mito, quero inserir uma convergência fundamental, uma convergência entre o recém-nascido e a fragmentação. O recém-nascido, nas suas primeiras relações com a mãe, vive um estado de intensa ameaça de desintegração, tal como se sna pele, seu continente, fosse muito frágil e delicada, prestes a desfazer-se, deixando espalhar-se como água o conteúdo somato-psíquico. O bebê vive num inquietante estado entre a unidade e a fragmentação. Lembra-nos a massa que cai redonda do céu no mythos de Quintilhano, e que, se não é recheada dos conteúdos sonoros dos diversos níveis planetários, estraçalhar-se-á na terra. Assim como a coesão da massa informe do mito é dada pela música, a coesão do bebê é dada pela mãe-música, ou, mais precisamente, pela interpenetração do par bebê-mãe num todo harmonioso, musical, como andam o piano e o violino numa sonata de Beethoven. Voltemos ao campo mítico - agora o mito de Orfeu, modelo para toda uma compreensão da musicalidade. Como 350

morre Orfeu? Lembram-se? Estraçalhado, despedaçado, tal como a massa informe de Quintilhano. Por que morre Orfeu assim despedaçado? Dou-lhes minha interpretação: morre por ter perdido a música, sua pele, seu envolt6rio protetor - música que acalmava mesmo as bestas selvagens e certamente distrairia as mênades que o despedaçaram - perde a música porque perde Eurídice, sua amada, Eurídice, sua música e sua mãe, enquanto continente de seus impulsos e paixões. Orfeu sem Eurídice é Orfeu sem música, é Orfeu sem musa, é Orfeu sem mãe, é Orfeu órfão. Repito, porque isso não é um simples jogo de palavras: Orfeu sem Eurídice Orfeu sem mt1sica Orfeu sem musa Orfeu sem mãe Orfeu órfão.

Expressando mais claramente, a música é a interpenetração de amantes; uma interpenetração de sustentação mútua, que se reporta às origens do desenvolvimento ontogenédco e que, nessa fase, mostra como objeto de sustentação a mãe ou o seio matemo (corpo da mãe) e como sustentado ou contido o bebê, em seu aspectc somático ou sentimental, sem o quê advém a desintegração, o esquartejamento. Penso que muitos de vocês devem estar-se perguntando, e a mim, se não será possível, a partir da música, estabelecer uma semiótica das origens do eu, ou se, pelo caminho inverso, pelas origens do eu-outro não será possível ter acesso a uma semiótica musical? Gostaria de poder deter-me nesse interessante campo de investigação, mas o tempo não o permite. Não estamos, no entanto, impedidos de um maior nível de aprofundamento. Mais familiarizados com o tema, como acredito estejam, posso propor-lhes um avanço mais ousado. Afirmei linhas acima que a música expressa uma relação primordial bebê-mãe, através dos atributos de conteúdo-continente, uma relação amante, em harmonia. Discorramos novamente pelo campo do mito a buscar uma correlação. Procuremos uma expressão mítica de continente: sugiro-lhes tomarmos a memória - nada no ser humano é tão continente quanto a memóri.a - tomemos pois Mnemosyne - a pensativa, que, em nove noites bem passadas com Zeus, engendrou as nove Musas. Tomemos da mesma forma uma personificação de conteúdo, e nada melhor que uma das filhas de Mnemosyne, Kalíope, por exemplo, mãe de Orfeu, ou por que não as nove Musas em conjunto, seres aquáticos, fugidios, impegáveis, que exatamente devem ser contidos, colhidos ou acolhidos para ganharem forma, e quem melhor que a memória para acolhê-los? E quem melhor que ela sabe fazer isso, a mãe Mnemosyne? Pois é dessa dupla relação Mnemosyne-Musa; memória-criatividade; vasilha-água; mãe-bebê; conteúdo-continente; seio-bebê; é dessa vinculação altamente viva e dinâmica que a música tira a sua expressão. É dessa aproximação, desse contato sensível e sutil que o homem tira a matéria-prima com que vai fazer música. Acompanhemos, numa esquemati351

zação, apesar da simplicidade do resumo, as figuras de Mnemosyne e Musa como se comportariam ao longo de alguns séculos de história musicaL Durante séculos indefinidos Mnemosyne esteve grávida, e se toma quase impossível determinar, nessa esquematização que lhes apresento, o que é Mnemosyne e o que era Musa- são os séculos do cantochão, também chamado canto gregoriano, um canto monódico, plano, unitário, indiferenciado, simbiótico, de uma só linha melódica, expressão da criatura no seio do criador. Esse capítulo mereceria alongados comentários, mas não vou além de apontá-lo. A partir desse momento, pelos séculos IX a XI começam a nascer as Musas, com gradativa separação do corpo da mãe, e podemos aos poucos diferençá-las. Mnemosyne marcará sua presença no cantusfirmus. As Musas vão nascendo aos poucos e em contraposição ou oposição ao cantus-firmus (Mnemosyne), e vão-se individualizando, como o organum e o discantus, em uma, duas, três, quatro ou cinco linhas melódicas; já estamos ultrapassando o penodo gótico. As linhas melódicas que se destacam sobre o cantus-firmus vão-se tornando mais ou menos independentes da base, já numa preparação para a polifonia renascentista e para o mrulrigal, onde o cantus-firmus (Mnemosyne) vai aos poucos sendo abandonado, cedendo lugar a outros recursos estruturais, tonais ou rítmicos de sustentação. No periodo barroco, Mnemosyne já se mostra mais claramente no baixo contínuo e as Musas discorrem por vozes ou solos já mais independentes e cheios de ornamentos, que se diferenciam cada vez mais do baixo de sustentação e criam novas estruturas melódicas: é o processo de individuação da música. À medida que lentos progressos vão ocorrendo na estrutura do discurso musical e vai nascendo um sentido de tonalidade e harmonia no sentido vertical, Mnemosyne vai tomando a forma de acorde de sustentação e as Musas vão-se soltaa1do por solos mais personalizados e temáticos. Enfim, a estrutura se firma numa dualidade genérica de solo e acompanhamento, que, como os nomes indicam, representam novas metamorfoses de Musas e Mnemosyne. A estrutura básica, através de metamorfoses, se mantém, no entanto, num princípio de sustentação ou continente, que convencionamos chamar Mnemosyne (a Memória) e noutro princípio, mais instável, ágil e movediço, que convencionamos chamar Musas, que representa o conteúdo fluido e líquido que deve ser sustentado. Assim são as primitivas e silenciosas relações da mãe com seu bebê, uma organização essencial da composição musical. Simplificando ao extremo: quando sentamos ao piano para esboçar a execução de uma música popular, por exemplo, usamos nossa mão esquerda como sustentação {Mnemosyne) trabalhando nos baixos, acompanhamento e continente, e a nossa mão direita como solo, bebê, Musa, conteúdo, tentando flutuar mais livremente, mas sempre contida pelos acordes. Em psicanálise, chamamos essa função de Mnemosyne com Musa de "capacidade de rêverie", isto é, uma capacidade de memória e lembrança semelhante ao sonho, que reproduz e contém as imagens mais carregadas de afeto. Imagino que a todo instante Musa testa Mnemosyne: tu ainda

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te lembras de mim? E Mnemosyneresponde: tu és meu sonho, minha fantasia, e meu pensamento é tua residência! Gostaria de poder mostrar-lhes isso através de gravações musicais de vários séculos, mas a conferência atual não se presta a maiores demonstrações. Retomando a Orfeu, entenderemos melhor sua função: criar e recriar contínua e incansavelmente a ficção de uma trans1ção íntima e permanente com a mãe. Um dos significados latentes do mito de Orfeu é sua orfandade, a perda muito precoce do seio matemo; sua música é uma tentativa de recriar a simbiose perdida. Dessa forma, acalma e tranqüiliza ansiedades muito profundas ligadas à fragmentação do eu, ansiedades que derivam de perigos tanto internos (pulsões), quanto externos, que são conjurados pela música, simbolizados no acalmar bestas selvagens e anular o desgarrador canto das sereais. Sua função precípua é, continuamente, através da música, reinjetar vida em objetos mortos, que representa recriar sua relação com a mãe e livrar-se do esquartejamento. Isso é a música, ou é o que entendo como parte essencial da estrutura musical. Pichon Riviere e Alvarez de Toledo escreveram que a música tem a importante função de dar ordenação ao caos e recriar a mãe perdida a cada instante; cantar (e, acrescento, escutar música ou produzi-la) significa succionar de forma mais profunda leite ou sangue. O grito desordenado expressa o terror inominável diante da separação; a cantilena já elabora a perda numa reorganização da fragmentação caótica e a palavra, ajuntada ao fundo musical, recria o objeto, já através de um processo simbólico mais eficaz. Essa idéia de que o cantar e o mamar se equivalem pode muito bem ser ilustrada através do mito das cigarras que nos é narrado por Platão no seu diálogo sobre a beleza, oFedro. Diz Sócrates: - Verdadeiramente não é próprio de um homem, amigo das Musas, não ter ouvido falar de coisas como essa. É sabido, pois, que num tempo passado as cigarras foram homens que viveram antes do tempo das Musas. Ao aparecer o canto, alguns desses homens de então perderam de tal forma o juízo, levados pelo prazer de cantar, que cantando se despreocuparam da comida e da bebida e morreram sem se dar conta disso. Desses homens é que se originou, depois, a raça das cigarras, que recebeu das Musas o privilégio de não necessitar nenhum alimento desde o instante do nascimento. Sem comer e sem beber, punham-se a cantar desde o instante de seu nascimento até a morte. Chegados neste ponto, penso poder-lhes oferecer numa linguagem mais próxima do evento clínico as hipóteses que sacamos do conteúdo mítico. O exame de alguns mitos levou-nos ao estabelecimento de uma dualidade vinculada. Uma dualidade que personifiquei pelos nomes de Mnemosyne (memória, continente) e Musa (água, conteúdo) e que se apresenta numa relação a1•amente dinâmica, delicada e sutil. Representa a relação que se estabeleceu entre a mãe e o bebê nas primeiras semanas de viúa. Essa relação delicada e sutil deve ser concebida como devendo ter uma medida ótima, uma proporção ideal, que pode ser chamada harmônica. Ela pode inverter-se num ou noutro momento, assim como um pianista, ao interpretar

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certas passagens de uma partit\•-a musical, CIUza ocasionalmente as mãos, passando a mão esquerda a fazer o solo na faixa mais aguda do teclado e a direita vindo a tocar os baixos. O bebê em estados de grande ansiedade sente-se como se fosse desfazerse; tem a impressão de que sua pele vai romper, perder os limites e seu conteúdo se desfazer e despejar como 4gua. Nesse momento, a mãe deve funcionar como jarro, conter a água e impedir que seu nené (Musa) tenha sensação de morte, que representa também estar no esquecimento, não estar contido na Mnemosyne. Mas assim como uma mãe pode ter escassa função mnésica (continente), ela poderá tê-la em excesso e então transformar-se numa carapaça rígida, pseudoprotetora, que comprime seu nené sem deixarlhe espaço para se desenvolver. Pode ocoaer também que o bebé tenha intrinsicamente pouca "memória", isto é, pouca capacidade para reter a imagem da mãe, sua presença ilusória ou onírica - uma incapacidade para reter a idéia do seio. Nesse caso o bebê terá do mesmo modo pouca tolerância à solidão, à separação, não saberá "solar" ou exercer a função de "solista", porque isso lhe trará a sensação de que vai se desintegrar. Quer dizer que há ocasiões em que também o nené deve servir de jaao ou vaso como, por exemplo, para conter o leite que lhe vem do seio matemo. A voracidade muito intensa, por exemplo, pode criar a fantasia, tanto no bebê como na mãe, de que ele é um saco sem fundos, sem capacidade de retenção, e a mãe tem a sensação de despencar, como a água de uma cachoeira, dentro do seu nené sem limites, de seu nenê infinito. Isso equivale à sensação materna de cair no esquecimento. Hã ocasiões, porém, em que graças a estados sutis e de alta ressonância empática, mãe e bebê sentem-se numa fusão íntima com apagamento dos limites de ambos, como se, pele com pele, elas se sublimassem, evaporassem; há um sentimento compartilhado, então, de que ambos são água e se misturam totalmente como se o caos primordial se tivesse restabelecido na figura de um só oceano, talvez um oceano pacífico, talvez agitado - configura-se o sentimento oceânico. Essa experiência sensacional, da qual um par adulto se aproxima muito no momento do orgasmo, é muito importante para o desenvolvimento, mas não deve perdurar indefinidamente porque perpetua a simbiose e a indiscriminação. A reversão deve se fazer no sentido em que a mãe vira continente e o bebê conteúdo. Através de processos silenciosos, vizinhos do mistério, processos velados que s6 encontram expressão sensível no discurso musical, podemos ter uma idéia aproximada dessas vivências primordiais. Sons sussull'lldos, contatos ffsicos,·fricções de pele, ritmos pulsáteis dos vasos, do coração, tônus musculares mantidos ou relaxados, líquidos e secreçõea que deslizam pelos tubos do corpo, lubrificações, sustentação, aleitamento, etc., criam uma dinâmica enormemente variada de afetos, emoções; coaespondências entre os componentes do par são como harmonia, e não-coaespondência como desarmonia; h4 cooson4ncias, disson4ncias ou contrapontos. Desse complicado e delicado jogo de situações nasce um sistema vincular que, unicamente pela linguagem musical, pode ser adequadamente codificado. A música é a expressão dinâmica e sonora desses vários estados compartilhados. Cas354

siodoro escreveu que a música é a expressão da medida exata; acrescento que é a expressão das mais variadas proporções da vinculação primordial. Acredito que, de todas as fases do ciclo vital humano, existe uma que é essencialmente cercada de musicalidade: a adolescência. Nela a então criança, fortemente impulsionada pela bioquímica somática, pelas pressões sociais e pelo crescimento, é impulsionada a tomar o caminho sem retomo no processo de individuação. Transforma-se a voz, surgem caractensticas sexuais do indivíduo adulto e as pulsões despertam fantasias de consumação do destino, que as obriga a um m~is rápido afastamento do seio da família, ou, mais regressivamente, do seio matemo. O adolescente transforma-se, assim, num Orfeu tangendo continuamente a lira, na tentativa de recriar um universo harmônico de fusão parental e proteção; sente-se mais consolado na tarefa destroçante de fabricar o seu mundo além das fronteiras da casa onde nasceu; mais consolado no luto pela perda das formas infantis de vida, das roupas infantis e de certos rituais lúdicos que marcaram a infância. Protege-se o adolescente como pode, de acordo com suas aptidões, adotando um instrumento de solo, ou de solo e acompanhamento, ou mais comumente instrumentos rítmicos, discos ou fitas cassetes, rádio-gravadores, fones de ouvido e o que estiver à disposição. Quando surge o impulso à individuação, acompanha-o o consolo na música. Música que traz em si, como procurei sublinhar, modelos infinitos de situações vinculares inspiradas no primeiro grande pavor de desgarramento e solidão: a separação do corpo matemo, ao nascer. O adolescente usará, em ensaios inconscientes os mais variados, as situações de vinculação e acasalamento que a música lhe oferece, usa-as em sentido prospectivo, para o futuro, fazendo neles um reaprendizado das situações arquetípicas de aproximação e harmonização com outros seres. Dentro desse mesmo pensamento, dentro dessa mesma concepção é que se coloca Nietzsche quando nos fala do consolo da tragédia na música. Diz-nos Nietzsche: temos de considerar o estado de individuação como a fonte e o primeiro fundamento de todo sofrimento; Dioniso, o sofredor de mistérios, é o deus que experimenta em si o sofrimento da individuação, Dioniso que pereceu, quando rapaz, despedaçado pelos Titãs. Depois de falar-nos na aptidão da música para gerar o mito, especialmente o mito trágico, Nietzsche diz-nos que somente a partir do espírito da música é que os gregos puderam estender um véu de alegria sobre o aniquilamento trágico. Gostaria de terminar esta palestra voltando a uma diferente versão do mito com que a iniciei, o mito de Aristides Quintilhano. Essa variação do mito pitagórico nos vem de uma tribo indígena do Extremo Oeste americano, oe Hopi. A meu ver, ninguém melhor do que eles souberam evidenciar em mito essa concepção sobre a essência sonora do ser humano. O homem nasce do som e sua essência permanecerá sonora para sempre. Entre os Hopi, os homens viviam originariamente sob a terra; para sair de sua caverna, eles plantaram duas árvores e alguns caniços (tambores e flautas), que encantaram com sua música, e usaram uma escada (escala musical) para sair pela abertura que as sementes genninadas ~briram na abóboda da caverna. Pousadc. à saída dessa abertura estava o pássaro-zom355

beteiro (seu herói cultural), que entoava cantos quando saíam os homens. Esses cantos determinavam para cada um dos nascituros uma linguagem e uma tribo que lhes corresponderia. Se o repertório do pássaro-zombeteiro se esgotava, nenhum homem mais poderia sair da caverna, pois não sobreviveria sem uma identidade sócio-musical. Além dessa melodia, representante de estado civil do indivíduo, havia dois outros cantos de fundamental importância: o som fundamental e a canção individual. O som fundamental é o protoplasma da força vital do homem, somente o indivíduo ao qual ele pertence tem conhecimento dele. Ele representa o produto da individuação da força ativa e anônima que reside na caverna da vida; precede o primeiro choro do recém-nascido e constitui sua alma e seu nome. A canção individual é uma melodia que exprime o ritmo individual da pessoa e que é praticamente inimitável. Não é necessário que a canção individual seja uma melodia original para cada indivíduo; sua originalidade consiste em que seja entoada de uma forma absolutamente pessoal e inimitável, se proxima muito do que chamamos estilo. Isso era exatamente o que eu queria dizer. Resumo, em poucas palavras, o sentido de minha palestra: estabelecendo algumas pontes entre mito e música, tentei passar a idéia de que a música é uma especial essência do ser humano. Que essência representa ela? Representa um diálogo de amor, tecido nas mais primitivas épocas da existência simbiótica e individual. Esse diálogo apaixonado se dá por vezes dentro de um circuito narcísi.co, em que o corpo estabelece diálogos sutis e não verbalizáveis com um eu nascente, ou dentro de um circuito objetal em que o recém-nascido estabelece diálogos silenciosos com a mãe e o corpo matemo. Tomei da mitologia uma alegoria, mãe e filha, representadas por Mnemosyne e Musa, que, através de relações de continente e conteúdo, podem servir de projeto de compreensão da evolução das formas musicais no mundo ocidental. No fundo dessa alegoria está a mesma afirmação: que a música é uma expressão codificada) capaz de reeditar relações precoces de sustentação e amor, e, como tal, serve de antídoto à desintegração do eu. Retomei ao mito, desta vez um mito de povos indígenas americanos, para reafirmar que o ser humano modela sua personalidade no que ela tem de mais íntimo e particular, tal como o estilo, por um sendeiro eminentemente rítmico e melódico.

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peramos no seio da morte. Contra essa meta, embora inevitável, varonilmente lutamos. O mito floresce como um entre muitos sistemas sígnicos, e nada declara que seJa o pior. A ele recorre Freud para explicar os segredos da psique. Não contente com a análise de mitos como o de Édipo, inventa os seus. O mito da horda primitiva, exposto em Totem e tabu, subsidia ainda hoje a reflexão. Se quiséssemos eliminar as metáforas de origem mítica que aparecem em tratados de sociologia, política, economia, filosofia, medicina, destruiríamos a possibilidade de comunicação. Em todos os campos somos bem mais mfticos de que estamos dispostos a admitir. Refletir sobre o mito ontem e hoje é imposição do nosso tempo. Donaldo Schüler

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